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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS


FACULDADE DE CIÊNCIAS ECONÔMICAS
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS ADMINISTRATIVAS
CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISAS EM ADMINISTRAÇÃO

RAQUEL DE OLIVEIRA BARRETO

CARTOGRAFIA DOS MODOS DE SER DA VELHICE E DO TRABALHO RURAIS


NO MÉDIO VALE DO JEQUITINHONHA

Belo Horizonte
2018
1

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS


FACULDADE DE CIÊNCIAS ECONÔMICAS
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS ADMINISTRATIVAS
CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISAS EM ADMINISTRAÇÃO

RAQUEL DE OLIVEIRA BARRETO

CARTOGRAFIA DOS MODOS DE SER DA VELHICE E DO TRABALHO RURAIS


NO MÉDIO VALE DO JEQUITINHONHA

Tese apresentada ao Curso de Doutorado em


Administração da Faculdade de Ciências Econômicas
da Universidade Federal de Minas Gerais, como
requisito parcial para a obtenção do título de Doutora
em Administração.

Área de concentração: Estudos Organizacionais e


Sociedade

Orientador: Prof. Dr. Alexandre de Pádua Carrieri

Belo Horizonte
2018
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Ficha catalográfica

B273c Barreto, Raquel de Oliveira.


2018 Cartografia dos modos de ser da velhice e do trabalho rurais no
Médio Vale do Jequitinhonha [manuscrito] / Raquel de Oliveira
Barreto. – 2018.
348 f.: il. e tabs.

Orientador: Alexandre de Pádua Carrieri.


Tese (doutorado) – Universidade Federal de Minas Gerais,
Centro de Pós-Graduação e Pesquisas em Administração.
Inclui bibliografia (f. 318-333) e apêndices.

1. Idosos - Condições sociais – Teses. 2. Idosos -


Jequitinhonha, Rio, Vale (MG e BA) – Teses. 3. Administração –
Teses. I Carrieri, Alexandre de Pádua. II. Universidade Federal
de Minas Gerais. Centro de Pós-Graduação e Pesquisas em
Administração. III. Título.

CDD: 362.6042
Elaborada pela Biblioteca da FACE/UFMG. – FPS/003/2019
3
4

Dedico esse trabalho ao meu amado pai, Gerson Barreto, e à minha


amada mãe, Maria Madalena Barreto, que a mim dedicaram suas vidas
e a quem serei eternamente grata.
5

Agradecimentos

Que momento especial e desejado esse de tecer agradecimentos... a construção deste trabalho
foi um processo marcado por muitos recomeços, e recomeçar nem sempre é uma tarefa fácil.
Assim como em uma longa viagem em alto mar, me encontrei por vezes sem uma direção clara
a seguir e, por isso, tenho certeza de que as rotas trilhadas só foram possíveis pelos belíssimos
encontros que experimentei: trocas afetivas que me marcaram, profundamente. Para além de
demonstrar minha gratidão, entendo ser uma oportunidade para falar sobre reconhecimento,
amizade e muito carinho.

Não posso deixar de iniciar agradecendo àqueles que se lançaram junto a mim nessa viagem,
com uma generosidade e doação sem as quais nenhuma dessas linhas teriam sido desenhadas.
Velhas e velhos coautores desse trabalho, que se dispuseram não apenas a compartilhar
histórias, mas a imprimir em cada canto suas marcas, suas caras e suas vidas. Belíssimas
companhias de viagem, que me levaram a conhecer outros horizontes.

Agradeço ao meu orientador, Prof. Alexandre de Pádua Carrieri, não apenas pelo acolhimento
e incentivo quando o barco já havia sido lançado ao mar, mas por ter me deixado livre para
experimentar e, principalmente, errar. Sua orientação me permitiu crescer e vislumbrar destinos
impensáveis quando ainda traçava as primeiras rotas dessa viagem.

Aos demais professores da linha de Estudos Organizacionais e Sociedade do CEPEAD, pelos


ensinamentos que tive o prazer de acessar ainda em outras viagens (desde a realização do
mestrado, alguns ainda na graduação). É um orgulho fazer parte desse programa e dessa
instituição de ensino pública e de qualidade, que me oportunizou mergulhar nesse percurso
formativo que pretendo honrar ao longo da minha trajetória profissional como docente.

Às professoras Dras. Fernanda Tarabal e Ludmila Vasconcelos que acompanharam a realização


dessa viagem desde o início, e cujas sugestões apontaram novas possibilidades de navegação.
Muito obrigada pela presença sempre afetuosa e produtiva! Às profs. Dras. Roberta Romagnoli
e Luciana Kind, que com suas presenças potentes e vibrantes me influenciaram profundamente.
Agradeço por compartilharem comigo esse momento especial de fechamento de um ciclo de
trabalho (para que outros se abram!).
6

Agradeço também, e em especial, à minha querida aluna e amiga Jeane, cujas fotografias
engrandeceram – e muito – esse trabalho. Como uma marinheira disposta a enfrentar os bons e
maus tempos, percorremos juntas por essas rotas desviantes... sua cumplicidade me encanta!
Gratidão pela parceria e carinho.

Quero agradecer também ao Instituto Federal do Norte de Minas Gerais, instituição da qual
faço parte e que me possibilitou o privilégio de me dedicar integralmente a essa viagem em um
momento tão necessário. Aos amigos do campus Araçuaí, pela torcida que sempre funcionou
como uma brisa leve impulsionando o barco adiante. Em especial aqui gostaria de agradecer as
minhas amigas e parceiras de vida: Gracia Lorena e Laís Barbosa. Vocês tornaram a minha
viagem ainda mais especial. Agradeço também ao apoio e parceria de meu amigo Lécio e de
sua linda família, da qual também me sinto parte. Não posso deixar de agradecer também a
participação do professor de história e amigo Fabrício Pereira, cujos registros fotográficos
povoam esse trabalho (p. 28, 39, 49 e 283). Obrigada pela gentil companhia nessa viagem. Aos
meus queridos alunos pelos constantes votos de sucesso que me fizeram sentir abraçada e
querida, mesmo quando distante. Ao Cisco que contribuiu imensamente para a construção desse
mapa, ainda nos seus primeiros traços, e que, mais do que isso, se lançou conosco ao mar
assumindo-o como um projeto que também era seu: muito obrigada, Cisquinho!

Agradeço também ao meu grande amor Fernando, parceiro de todas as viagens, mesmo as mais
desafiadoras. Seu apoio foi fundamental nesse projeto de navegação, que nunca foi apenas meu,
mas nosso. Que estejamos sempre juntos para planejar e realizar novas aventuras, alcançar
outros faróis... Já sabemos qual é a próximo destino: estou preparada! Amo-te!

À minha maravilhosa família: meus pais, Gerson e Madalena, meus irmãos, Renata, Rodrigo,
minha cunhada Rosane, e meus amados sobrinhos Rafael, Vinícius e Lívia. Vocês são minha
base e força para seguir em frente. Obrigada pelo afeto e carinho constantes! Nenhum destino
é tão encantador quanto a certeza de ter um lugar aconchegante para voltar, meu porto seguro.

Aos meus amigos que sempre se fizeram presentes, nas tempestades e calmarias, e que,
principalmente, compreenderam os vários momentos de ausências por vezes necessários para
que essa viagem fosse concluída. Agradeço à minha amiga-irmã Michele Castro que embarcou
nessa aventura comigo, me dando apoio e suporte, me fazendo acreditar que eu seria capaz de
comandar a embarcação, mesmo nos vários trechos do percurso em que seriamente duvidei.
7

Você e João Pedro são luz na minha vida! À minha querida amiga Ana Luiza (Ana Lu) que
desde o tempo do mestrado esteve sempre aqui. O que mais me emociona é saber que mesmo
seguindo por rotas diferentes, sempre podemos contar uma com a outra. Obrigada por tudo!
Aos meus amigos de longa data: Ana Paula e João Paulo Cordeiro, Fernanda Dias, Mariana
Amaral e Rafaela Luciana. Amizades que nasceram ainda na infância e que desejo para toda a
vida. Que delícia comemorar esse momento com vocês! Obrigada por fazerem parte da minha
história! Aos amigos que tive o prazer de conhecer ao longo desse doutorado no CEPEAD, em
especial, Aline, Patrícia, Rui e Simione. Com vocês compartilhei vários momentos dessa
trajetória: vocês são incríveis! Aline querida: sua força têm sido uma inspiração para mim, você
é muito especial.

Aos demais que também foram fundamentais nessa viagem: pessoas com quem tive a felicidade
de conviver durante a expedição pelo território (Ivani, Rosana, Eliene, Lívia, Raquel), aos
amigos do NEOS – Núcleo de Estudos Organizacionais e Sociedade; aos queridos funcionários
do CEPEAD (Érika, Luciana e Verinha) e da Universidade Federal de Minas Gerais, e a todos
que, mesmo que não citados nominalmente aqui, são parte desse momento de vida tão especial,
desejado e desafiante. Que venham as próximas viagens!
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KINTUSUGI1

Cada vez que me refaço


Fico mais cortante que aço

Cada vez que refaço


Sou leve como algodão no espaço

Perco todo o meu traço


Junto todos os meus cacos
Mas faço
Outro desenho imenso

Cada vez que eu me refaço


Eu me perco
Eu me colo
Eu me acho

Cada vez que me refaço


Sou mais inteira aos pedaços

Hilde Branda

1
Kintsugi é uma técnica japonesa de restauração de cerâmica. Com esta técnica objetiva-se, ao contrário de
esconder ou disfarçar as rachaduras, valorizá-las, preenchendo-as com ouro.
9

Resumo

A tese defendida nesse trabalho é a de que não existe uma velhice, mas modos de ser velho,
experiências singulares de vivência desse fenômeno em diferentes territórios. Tal tese
emergiu a partir de uma inquietação perante os discursos homogeneizantes e normativos
amplamente difundidos acerca da velhice na contemporaneidade. São discursos como o da
“Terceira Idade” e da “Melhor Idade” que preconizam um modelo ideal de velhice a ser adotado
pela totalidade dos sujeitos, caracterizando qualquer comportamento que se distancie desse
padrão como desviante e indesejável. Partindo do registro da Filosofia da Diferença,
empreende-se um diálogo com os autores Deleuze e Guattari para construir uma proposta de
concepção rizomática da velhice, em que esta é entendida como um fenômeno complexo, um
emaranhado de forças em constante interação. Nesse sentido, ao pressupor a existência de
múltiplos modos de ser velho construídos em meio a forças, linhas e agenciamentos, a pesquisa
objetivou cartografar os modos de ser da velhice e do trabalho rurais em um determinado
território, o médio Vale do Jequitinhonha. Tal objetivo se desdobrou em duas questões
orientadoras: 1. Como se configura a composição do rizoma velhice rural no território do
médio Vale do Jequitinhonha e 2. Qual é o lugar do trabalho nesse rizoma velhice?. Optou-
se pela cartografia em função do interesse em rastrear experiências de velhos trabalhadores do
campo que vivem em comunidades rurais do município de Araçuaí, Minas Gerais. Enquanto
pesquisa-intervenção, a produção dos dados consistiu na coleta de narrativas de velhos e de
outros sujeitos representantes do poder público e de instituições das sociedades civil e religiosa,
as quais permitiram a construção de conhecimentos, ainda que parciais, sobre a temática da
velhice e do trabalho rurais. Realizaram-se também a confecção de um diário de bordo e a
produção de narrativas fotográficas, recursos que contribuíram para aumentar a inteligibilidade
sobre o território e seus habitantes. Para a análise dos dados, optou-se pela análise narrativa
temática, da qual emergiram três eixos de análise: a vida no campo, as velhices no campo e o
trabalho no campo. Em cada um dos eixos foram rastreadas as linhas que compõem o rizoma
velhice rural nesse território pesquisado. Entre essas linhas estão questões como os longos
períodos de seca que acometem a região e que afetam os modos de viver e trabalhar; as
mudanças percebidas pelos participantes na vida rural a partir da chegada da energia elétrica e
da aplicação (ou não) de outras políticas públicas; a concepção da velhice como um direito
adquirido mediante uma vida de lutas e de trabalho duro; a força da religiosidade na vida desses
sujeitos; a concepção do trabalho como algo inerente à vida e fonte de vida; as especificidades
que marcam o trabalho da mulher do campo e a aposentadoria como um momento de liberdade.
10

Tais análises corroboram a tese de que o que existem são velhices múltiplas e distintas, que, ao
mesmo tempo que particulares, são parte de um contexto social que as atravessa, molda e é
também moldado por elas.

Palavras-chave: Velhice; Trabalho rural; Rizoma; Cartografia.


11

Abstract

The proposition supported in this study is that there is no old age, instead there are ways of
being old, unique experiences of living this phenomenon in different territories. This thesis
emerged from a concern involving widespread homogenizing and normative discourses about
old age in the contemporary world. These discourses such as the "Third Age" and "Best Age"
advocate an ideal model for the elderly to be adopted by all subjects, characterizing as deviant
and disruptive every behavior that deviates from such pattern. Taking the Philosophy of
Difference, a dialogue with the authors Deleuze and Guattari is performed in order to construct
a proposal of rhizomatic conception of old age, understanding it as a complex phenomenon,
fields of forces in constant interaction. In this sense, by presupposing the existence of multiple
ways of being old constructed in a context of forces, lines and agencies, this research aimed at
mapping the ways of being in old age and rural work in a specific territory, médio Vale do
Jequitinhonha. Such objective was divided into two guiding questions: 1. How is the framework
of rural old age rhizome in the territory of médio Vale do Jequitinhonha, 2. Which is the place
designed for work in this old age rhizome?. Cartography was chosen based on the interest in
tracking the experiences of old workers living in rural communities in Araçuaí, Minas Gerais.
As it is an intervention research, data construction included the collection of narratives told by
old people and other subjects representing public authorities and religious and civil society
institutions, which allowed the construction of knowledge concerning old age and rural work
though not in its totality. A logbook and photographic narratives were produced and such
resources contributed somehow to improve intelligibility about the territory and its inhabitants.
A thematic narrative analysis was performed for data analysis, emerging therefore three axes
of analysis: life in the countryside, old age in the countryside and work in the countryside. The
lines that make up the rural old age rhizome in this territory were outlined for each axe. Some
issues could be found crossing these lines such as long periods of dry season affecting the region
and the ways of living and working; the changes in rural life perceived by participants triggered
by the arrival of electricity and the implementation (or not) of other public policies; the concept
of old age as a right accrued to its possessor under struggles and hard work in life; the power
of religiosity for these subjects; the conception of work understood as inherent to life and as a
source of life; the peculiarities determining the women’s work in rural areas and retirement
perceived as freedom. Such analyzes confirm the proposition that there are multiple and distinct
old ages, which are both particular and part of a social context that crosses and shapes these old
ages but is also shaped by them.
12

Keywords: Old age; Rural work; Rhizome; Cartography.


13

Lista de Tabelas

Tabela 1 - População da Mesorregião Vale do Jequitinhonha ........................................... 99


Tabela 2 - Situação do domicílio na Mesorregião Vale do Jequitinhonha ........................ 99
Tabela 3 - Taxa de alfabetização na Mesorregião Vale do Jequitinhonha ....................... 99
Tabela 4 - Pessoas ocupadas por ramo de atividade (2010) .............................................. 118
Tabela 5 - Esperança de vida ao nascer .............................................................................. 120
14

Lista de Figuras

Figura 1 - Mapa da pesquisa ................................................................................................. 67


Figura 2 - Microrregiões do Vale do Jequitinhonha ........................................................... 98
Figura 3 - Composição da população com 18 anos ou mais (2010) .................................. 118
Figura 4 - Pirâmide etária da população de Araçuaí (1991-2010) ................................... 121
Figura 5 - Mapa das Instituições e Comunidades Rurais Pesquisadas em Araçuaí ...... 123
Figura 6 - Rizoma ................................................................................................................. 145
Figura 7 - Plantas de mangue (Caules Rizóforos) ............................................................. 146
15

Lista de Fotografias2

Fotografia 1 - A cidade de Araçuaí ..................................................................................... 106


Fotografia 2 - Escultura em homenagem ao centenário da cidade .................................. 110
Fotografia 3 - Dizeres da placa que compõem o monumento aos canoeiros ................... 111
Fotografia 4 - Monumento de boas-vindas à cidade de Araçuaí ...................................... 112
Fotografia 5 - Comunidade da Baixa Quente .................................................................... 125
Fotografia 6 - Comunidade de Córrego da Velha do Meio............................................... 126
Fotografia 7 - Comunidade de Gravatá de Cima .............................................................. 127
Fotografia 8 - Centro Comunitário da Comunidade de Santa Rita de Cássia ............... 128
Fotografia 9 - Comunidade de Tesouras de Cima ............................................................. 129
Fotografia 10 - "Terreirão" - Placa para captação de água da chuva na casa de Seu
Emílio e Dona Marlene ........................................................................................................ 178
Fotografia 11 - Unidade Básica de Saúde da Família da Comunidade da Baixa Quente
................................................................................................................................................ 184
Fotografia 12 - Igreja evangélica da comunidade Córrego da Velha .............................. 202
Fotografia 13 - Igreja católica comunidade Córrego da Velha ........................................ 202
Fotografia 14 - Casa do Seu Milton Granja e Dona Íris ................................................... 207
Fotografia 15 - Casa de Dona Luruca................................................................................. 208
Fotografia 16 - Família de Seu Emílio e Dona Marlene .................................................... 214
Fotografia 17 - Pés de Dona Luruca ................................................................................... 230
Fotografia 18 - O chapéu de couro de Seu Erotides e o lenço de tecido de Dona Íris .... 231
Fotografia 19 - Mercado Municipal de Araçuaí, aos sábados, dia de feira livre ............ 255

2
Nessa lista estão discriminadas as fotografias presentes apenas nos capítulos de 1 a 5. Optamos por não listar
aqui as imagens que compõem o capítulo 6, o foto ensaio “Velhices que brotam do/no semiárido mineiro”.
16

Lista de Quadros

Quadro 1 - Narrativas produzidas na pesquisa ................................................................... 68


Quadro 2 - Velhos das narrativas biográficas ..................................................................... 69
17

Lista de Siglas

• AIDS Acquired Immunodeficiency Syndrome


• APA Área de Proteção Ambiental
• ACS Agente Comunitário de Saúde
• ASSOCIAR Associação Comunitária e Infantil de Araçuaí
• BPC Benefício de Prestação Continuada
• CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
• CMI Capitalismo Mundial Integrado
• CODEVALE Comissão de Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha
• CPCD Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento
• CRAS Centro de Referência de Assistência Social
• CREAS Centro Especializado de Assistência Social
• DST Doenças Sexualmente Transmissíveis
• ECA Estatuto da Criança e do Adolescente
• EJA Educação de Jovens e Adultos
• ESF Estratégia Saúde da Família
• FETAEMG Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Minas Gerais
• IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
• IDH Índice de Desenvolvimento Humano
• IDHM Índice de Desenvolvimento Humano Municipal
• IFNMG Instituto Federal do Norte de Minas Gerais
• INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
• INSS Institucional Nacional do Seguro Social
• IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
• MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
• MUNIC Perfil dos Municípios Mineiros
• PAC Programa de Agentes Comunitários
• PEC Proposta de Emenda à Constituição
• PIB Produto Interno Bruto
• PL Projeto de Lei
• PRONAF Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar
• PSF Programa de Saúde da Família
• PT Partido dos Trabalhadores
• STR Sindicato dos Trabalhadores Rurais
• UBS Unidade Básica de Saúde
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Sumário

Introdução: Que mapas desenhar? ....................................................................................... 18


Histórias de Velhos ......................................................................................................................... 28
1. Tateando as primeiras linhas de uma cartografia ........................................................... 59
1.1 A construção de um mapa de pesquisa ....................................................................... 59
1.1.1 O rastreio: aproximações e inquietações .............................................................. 60
1.1.2 O toque: o encontro entre a velhice e o rural ...................................................... 61
1.1.3 O pouso: a abertura de um campo-tema .............................................................. 62
1.1.4 O reconhecimento atento: definições transitórias e experimentações ............... 64
1.1.5 O mapa da pesquisa ............................................................................................... 65
1.2 Buscando respaldos para uma experiência de produção de dados .......................... 71
1.2.1 Por uma analítica cartográfica (Ou Da crise da lógica da representação à
emergência do corpo vibrátil) ........................................................................................ 71
1.2.2 Elementos-chave para uma analítica cartográfica .............................................. 78
1.2.3 O fazer cartográfico (Ou sobre como fazer emergir o corpo vibrátil) .............. 81
1.2.4 Notas sobre o papel das narrativas na analítica cartográfica ............................ 85
2. Conhecendo o território ..................................................................................................... 92
2.1 Territorialidades: entre o urbano e o rural ................................................................ 92
2.2. Contextualizando o Vale do Jequitinhonha............................................................... 98
2.3 A cidade de Araçuaí: História e Memória ................................................................ 106
2.3.1 Araçuaí entre o rural e o urbano: mergulhando no território ......................... 113
2.4 Um mergulho no território usado: cartografando ................................................... 122
3. Uma perspectiva rizomática da velhice .......................................................................... 131
3.1 Porque precisamos repensar a velhice contemporânea? ......................................... 131
3.2 Por que propomos um olhar rizomático sobre a velhice? ....................................... 140
3.2.1 Rizoma: O conceito deleuze-guattariano ........................................................... 140
3.2.2 Por uma perspectiva rizomática da velhice ....................................................... 151
3.3 E o que sabemos sobre velhices rurais? .................................................................... 160
4. O rizoma velhice rural no médio Vale do Jequitinhonha ............................................. 174
4.1 A vida no campo: Experiências de velhos em comunidade rurais do médio Vale do
Jequitinhonha .................................................................................................................... 174
4.1.1 Linha “Eu moro numa região seca, né?” ........................................................... 175
4.1.2 Linha “A nossa vida lá vai melhorando” ........................................................... 178
19

4.2 As velhices no campo: Experiências de velhos em comunidade rurais do médio


Vale do Jequitinhonha ...................................................................................................... 192
4.2.1 Linha “Sessenta anos de luta não é sessenta dias não!” ................................... 192
4.2.2 Linha “Quem mora aqui é eu e Deus” ................................................................ 200
4.2.3 Linha “Eu tem uma família maravilhosa e, graças a Deus, nós somos uma
comunidade unida, né!” ................................................................................................ 213
5. O trabalho no campo ........................................................................................................ 223
5.1 O trabalho no campo: Experiências de velhos em comunidade rurais do médio
Vale do Jequitinhonha ...................................................................................................... 223
5.1.1 Linha “Eu criei trabalhando na roça” ............................................................... 225
5.1.2 Linha “Pra mim, a mulher inda trabaia mais do que o homem” .................... 240
5.1.3 Linha “A aposentadoria é a valência da gente, menina” .................................. 245
5.1.4 Linha “O mercado é bão!”. ................................................................................. 254
5.2 Reflexões sobre o trabalho rural no contexto da agricultura familiar no Brasil .. 262
6. Velhices que brotam do/no semiárido mineiro .............................................................. 271
Considerações (ainda que nada) finais ............................................................................... 306
Referências ............................................................................................................................ 318
Apêndices............................................................................................................................... 334
APÊNDICE A .................................................................................................................... 335
APÊNDICE B .................................................................................................................... 336
APÊNDICE C .................................................................................................................... 345
APÊNDICE D .................................................................................................................... 348
17

Introdução
18

Introdução: Que mapas desenhar?

Velhice Vida
[D]obra de arte de uma existência
Deixe de brigar com os ventos
Para navegar em todos os mares
SILVANA TÓTORA

Ao falar de cartografia, falamos de mapas, de traçados, de linhas... falamos de rastrear. Rastrear


o quê? No nosso caso, velhices. Se falamos de velhices, falamos de idade, de tempo, de espaço,
de vida e de morte. Falamos sobre o velho que vemos na TV, o velho que encontramos na rua,
o velho que nem sequer vamos conhecer, o velho cuja imagem está marcada em cada um de
nós... São muitas velhices. Cartografar velhices, esse era o caminho para essa tese. Tese essa
que assim enunciamos: Não existe uma velhice, mas modos de ser velho, experiências
singulares de vivência desse fenômeno em diferentes territórios, o que nos leva a propor sua
compreensão sob uma perspectiva rizomática. Essa é a aposta que nos acompanhou ao longo
da pesquisa e da produção dos dados, em que nos propomos então a rastrear as linhas que
compõem o rizoma velhice em um determinado território. Tendo em vista a tese que
enunciamos, o objetivo dessa pesquisa foi cartografar os modos de ser da velhice e do trabalho
rurais no médio Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais.

Mas por que velhos? Por que trabalho? Por que cartografia? Por que o médio Vale do
Jequitinhonha? Vamos, nesse momento de abertura, dedicar-nos a discutir essas questões.
Parece-nos importante iniciar dizendo sobre o porquê de utilizarmos o termo velho para nos
referir a esses sujeitos junto de quem construímos conhecimentos – ainda que provisórios –
acerca de suas vidas, seus trabalhos, seus cotidianos e, principalmente, sobre suas experiências
de envelhecimento. Cabe dizer que o termo velho tem em nossa sociedade uma conotação
negativa associada a sofrimento, decrepitude e proximidade da morte. Diante disso, outros
termos são utilizados para se referir a esses sujeitos - “velhinho”, “idade legal”, “melhor idade”
- os quais se revelam apenas recursos semânticos que não têm outro objetivo a não ser encobrir
e silenciar a própria velhice (NERI, 2007). Como qualquer categorização, elas também são
responsáveis pela criação de estereótipos homogeneizantes, os quais alimentam preconceitos e
processos de exclusão. Optamos, dentro de uma pesquisa que se coloca como crítica e política,
problematizar e desconstruir essas categorias que, ao serem concebidas como criações sociais,
podem ser repensadas e (re)construídas. Seguimos então falando de velhos e esperamos que
esse estranhamento nos retire de qualquer lugar comum naturalizante, assim como nos afaste
19

dos eufemismos que, na realidade, encobrem discussões mais profundas como a própria
negação da velhice (BEAUVOUIR, 1990).

Além de optar pelo uso do termo velho, cabe também destacar o porquê de elencá-los como
foco de estudo, sobretudo no campo dos Estudos Organizacionais. Partimos do entendimento
de que, nessa área de estudo, os interesses de pesquisa se voltam para um horizonte mais amplo
dentro da Administração, em que todas as relações que permeiam a vida social, bem como as
suas organizações ─ sejam elas econômicas ou não, constituem fontes de estudo para um
entendimento mais profundo da própria realidade social. E se nos situamos dentro de uma
perspectiva pós-estruturalista3, esses estudos se fazem ainda mais relevantes pelo interesse em
desvelar as condições de dominação e opressão que impedem a circulação da vida. Nesse
sentido, pensar na velhice é, de certa forma, lançar o olhar para uma população sobre a qual são
construídas verdades, formas de pensar e agir: uma população que passa a ser gerida
(FOUCAULT, 1999; 2008a; 2008b). Enquanto a quase totalidade dos estudos sobre o
envelhecimento populacional se inicia justificando sua relevância (e urgência) pelo aumento do
número de velhos (não só no Brasil como em todo o mundo)4, dizemos que não é isso que nos
mobiliza. Mais do que sua expressividade em termos numéricos, o que nos inquieta é o lugar
ocupado pelo velho na contemporaneidade.

Tal inquietação se assevera se problematizamos a existência de uma ‘velhice ideal’ capitalista


expressa, principalmente, por marcadores como a “terceira idade” ou “melhor idade”. São
construções de modos de ser baseados em uma visão positiva sobre a velhice, destacando
aspectos como o resgate do vigor físico, cuidado com a aparência, a realização de antigos
projetos de vida, dentre outros. A primeira questão trazida por pesquisadoras da temática como
Debert (1999; 2008) e Tótora (2006; 2013) pode ser traduzida da seguinte forma: esse
envelhecimento positivo é uma realidade comum a todos os velhos? Em quais valores esse
discurso se pauta? Discute-se justamente que essas novas categorias são fortemente associadas
ao universo do consumo e pretendem evidenciar o quanto a vivência da velhice pode ser

3
Esta tese se insere no registro do pós-estruturalismo, onde se encontram suas bases ontológicas e epistemológicas.
Entende-se aqui a importância de evidenciar esse registro, embora reconheçamos que a complexidade da temática
abordada da mesma forma nos demandou uma postura não limitada e/ou engessada por tais classificações.
4
Segundo a ONU (2018), o número de pessoas com 60 anos ou mais em todo o mundo deve alcançar a marca de
dois bilhões em 2050. Especialmente no que tange aos velhos com idade superior a 80 anos, identificou-se que, na
maior parte dos países, o número de pessoas deve quadruplicar para quase 400 milhões nesse mesmo período. No
caso brasileiro, a expectativa é de que 30% da população do país tenha idade superior a 60 anos, em 2050 (PNAD,
2013).
20

valorizada. Uma ampla rede de produtos e serviços é então colocada à disposição dos idosos
para reconquistarem, contraditoriamente, a tão desejada juventude perdida. Nesse contexto, a
expressão envelhecer com qualidade de vida é ouvida e replicada incessantemente, tornando-
se um lugar-comum por vezes esvaziado de sentido (DEBERT, 1999; 2008; NERI, 2007;
TÓTORA, 2006; 2013). A concepção compartilhada nesta pesquisa e bem explicitada por
Tótora (2008a, p. 26) é de que "a velhice não é uma essência substantiva, desvinculada de sua
produção histórica e cultural". E, nesse sentido, esse movimento deve ser contextualizado em
um sistema de produção específico, capitalista, que carrega consigo uma máquina produtora de
subjetividades (GUATTARI; ROLNIK, 2005).

Ao mesmo tempo em que essa perspectiva positiva é defendida, percebe-se claramente sua
transformação em um problema social contemporâneo (DEBERT, 1997; TÓTORA, 2008a).
Tal status é legitimado por meio de números e estatísticas que justificam e, mais do que isso,
colocam como imperativa a necessidade de se fazer algo sobre a velhice, gerenciá-la. Debert
(1999, p. 13) alerta para esse processo que ela denomina de "[...] socialização progressiva da
gestão da velhice" em que, ao deixar de ser uma questão pertencente apenas à esfera familiar,
a velhice torna-se objeto do poder público e das organizações privadas. Tótora (2008a) coaduna
com essa visão discutindo a percepção vigente dos idosos como um grupo de risco, em que se
deseja afastar o adoecimento e a morte. Nesse esteio, vários são os questionamentos que
emergem acerca dos impactos dessa realidade nos mais diferentes âmbitos: sistemas de saúde
e de seguridade social, mercado de trabalho, assistência social, novas necessidades de consumo,
dentre outros.

Em suma, o que essas discussões evidenciam é que o ser velho na sociedade contemporânea é
um espaço de embates e forças diversas. Concordamos com essa leitura e partimos para a
construção dessa pesquisa com o pressuposto de que a velhice é uma temática complexa5 e que,
portanto, deve-se lançar sobre ela outros olhares. O que propomos é que ela seja entendida sob
uma perspectiva rizomática – como fenômeno múltiplo, diverso, potente. Nesse sentido, refuta-
se qualquer tentativa de homogeneização e de redução das diferenças quando se trata do tema
da velhice – processo muitas vezes observado, por exemplo, no desenho de políticas públicas e

5
Concordamos com a explicação sobre complexidade de Passos e Benevides (2003, p. 81), a saber, que “complexo
não é só o complicado, o que ainda não se explicou ou o que insiste como um limite para o conhecimento. Na
ciência contemporânea, ao contrário, o complexo é a propriedade de certos fenômenos cuja explicação exige de
nós o esforço de evitarmos as simplificações reducionistas”.
21

nas definições dessa ‘velhice ideal’ capitalista que mencionamos. Para essa discussão,
dialogamos intensamente com os autores Deleuze e Guattari (1995a; 1995b; 1996; 1997a;
1997b), destacando o conceito de rizoma como possibilidade de desenvolvimento teórico
dentro do campo dos Estudos Organizacionais.

Para desenvolver essa proposta rizomática da velhice, é preciso, de antemão, discutir sobre um
entendimento particular da vida como um emaranhado de forças, formas e intensidades
(DELEUZE; GUATTARI, 1995a). Tal entendimento é amplamente debatido pelos autores
Deleuze e Guattari dentro de uma perspectiva de pensamento conhecida como Filosofia da
Diferença (PETERS, 2000; DOSSE, 2009). Para os autores, o mundo seria pura diferença
(MACHADO, 2009), o que inviabiliza qualquer forma de pensamento ou mesmo de vida que
opere via criação de modelos ou categorias homogeneizantes. Nesse sentido, consiste em um
modo de pensar que se contrapõe à lógica da representação característica da tradição platônica
que, ao se fixar na busca de uma essência das coisas, valoriza a representação e a identidade.
Para os filósofos da diferença, a identidade é uma mera convenção que nos permite a prática
cotidiana da vida. Entretanto, se levada a cabo como status constitutivo das coisas (as coisas
como elas são), torna-se uma forma de opressão que busca eliminar as diferenças. Em
contrapartida, o que se advoga é um pensamento que reconheça a complexidade inerente à vida
e às suas relações.

Tal complexidade se faz evidente por meio do conceito de rizoma, cunhado por Deleuze e
Guatarri na abertura da obra Mil Platôs, publicada em 1980. Trata-se de um conceito inspirado
na botânica, remetendo a um caule subterrâneo que se desenvolve de forma múltipla e
desordenada, sem um eixo central. Tal estrutura é antagônica ao modelo arbóreo tradicional,
cuja raiz possui um centro bem definido a partir do qual todas as ramificações são originadas.
Como forma de pensamento, os autores propõem essa imagem-rizoma composta por múltiplas
forças e linhas, em constante interação. São três os tipos de linhas que compõem o rizoma, a
saber: as linhas duras, que remetem à natureza do instituído, ou seja, referem-se às forças rígidas
que demarcam formas estratificadas de fácil apreensão como o ser mulher/ser homem; ser
novo/ser velho. As linhas flexíveis, como o próprio nome sinaliza, apresentam como
característica uma maior flexibilidade, assumindo modificações a partir do agenciamento
(encontros) com outras forças e linhas. Já as linhas de fuga, essas são forças potentes, aquelas
que conseguem escapar ao instituído rumo ao novo e à invenção (DELEUZE; GUATARRI,
1995a; GODINHO, 2007).
22

Mas como se dá a operação da realidade por meio dessas linhas? De modo sintético, a realidade,
segundo os autores, possui duas formas de funcionamento coexistentes e justapostas. Tais
modos correspondem a planos: o primeiro seria o plano de organização (molar); e o segundo, o
plano de imanência (molecular). Enquanto o primeiro plano seria justamente aquele
caracterizado pelos modelos (transcendência), estratos, formas e territórios, o segundo seria o
plano das forças, das intensidades e da pura diferença. Como explicitado, esses dois planos
coexistem e estão em constante interação, principalmente via conexão das forças que
corresponde aos agenciamentos. São os agenciamentos que possibilitam que essas forças se
transformem e se desloquem, criando outras formas (congelando em novos estratos) ou abrindo
espaços para o novo e para o diferente (linhas de fuga). Essa leitura nos permite discutir sobre
o quão somos limitados ao plano de organização na contemporaneidade, levados a conceber
modelos e a definir identidades superiores, como é o caso do ser jovem como superior ao ser
velho (SCHOPKE, 2004).

Nesse contexto, torna-se importante destacar que, ao falar sobre o funcionamento desses
diferentes planos, estamos falando, na realidade, sobre efeitos no âmbito dos processos de
subjetivação. E para tratar de processos de subjetivação é relevante problematizar, de antemão,
nosso próprio entendimento sobre os sujeitos, afinal, de quem estamos falando? Trata-se de um
sujeito prático que se constitui em um processo, na experiência que tem com o mundo objetivo
e como a partir dele e apesar dele inventa, cria e elabora. É um sujeito de ação, portanto, mas
diferente do conceito humanista de sujeito transcendental caracterizado, principalmente, pela
existência de uma essência (CAVALCANTI, 2015). A ideia de sujeito para Deleuze e Guattari
(1995a; 1995b) se afasta, justamente, dessa perspectiva que se volta para a interioridade,
deslocando o olhar para os efeitos produzidos pela exterioridade.

Nesse sentido, a criação de um “eu” transitório se dá nos encontros com o fora, com o outro,
não apenas sujeitos, mas objetos, formas e signos. Obviamente esses encontros nos causam
estranhamento e, por vezes, repulsa, mas também somatórios e novas experiências. Nessa
perspectiva o sujeito revela-se, portanto, como um vir a ser, que não se estabiliza e nem se
cristaliza. O constante fluir dessas forças é o que permite esse sujeito devir, “o lado de fora diz
respeito à força: se a força está sempre em relação com outras forças, as forças remetem
necessariamente a um lado de fora irredutível [...]” (DELEUZE, 1988, p. 93). Afastando-se de
uma identidade ou essência, Deleuze (1988) fala então sobre a exterioridade que se dobra para
a constituição de um Se. Quando falamos, portanto, de modos de ser velho não estamos nos
23

referindo a novas identidades construídas, mas a um devir-velho, ou seja, ao movimento de


constante tornar-se velho, um movimento que envolve formas, mas também invenção e
mutação. Nesse sentido, coexistindo com os modelos e padrões estabelecidos, buscamos
rastrear maneiras outras de habitar a velhice, ou seja, as velhices. Nesses termos, trata-se de um
sujeito da imanência, mas nem por isso menos concreto e prático (TÓTORA, 2008b;
CAVALCANTI, ALCADIPANI, 2011). A ideia de subjetividade, portanto, também se liga
menos a sujeitos e mais a intensidades, rompendo dicotomias entre sujeito e social, subjetivo e
objetivo, vida e morte. Como explicitamos, tal proposta é característica da Filosofia da
Diferença e remonta a uma crítica à ciência moderna ortodoxa.

Retomando o conceito de rizoma como um emaranhado de linhas (ou fluxo de forças) em


constante movimento, característica de uma realidade marcada pela multiplicidade e pela
complexidade (SOUZA, 2012), seguimos na busca por refletir sobre quais são as linhas que
compõem, especificamente, a velhice em um território. Tal busca se faz necessária pelo fato de
que leituras contemporâneas desse fenômeno tendem, como dissemos, a criar modelos
totalizantes que desconsideram a pluralidade de experiências do envelhecer. Compondo com
essas experiências de envelhecimento, o rompimento com o mundo do trabalho emerge como
um dos elementos comumente associados à figura do velho. Tal associação é problemática se
considerarmos os moldes do sistema capitalista de produção, em que o trabalho emerge como
valor central, associado à produtividade e à localização do sujeito na estrutura social. Nesse
sentido, o não-trabalho instiga-nos justamente a pensar sobre qual seria então o “papel exercido
pelo velho em uma sociedade produtiva, na qual estar e sentir-se inserido significa estar
produzindo” (PARK, 2006, p. 70). Discute-se que esta é uma das características típicas desse
sistema de produção: oferecer constantemente aos sujeitos modelos ideais a serem seguidos,
exercendo sobre eles uma força segregadora e disciplinar (FOUCAULT; 1999, GUATTARI;
ROLNIK, 2005). Tendo em vista essas discussões que envolvem a velhice e o trabalho,
interessou-nos ao longo da pesquisa compreendê-lo enquanto uma força, de modo a investigar
de que forma ele atua na construção dos modos de ser velho no território em questão.

Na medida em que a proposta de pesquisa foi desenhada, uma questão se colocou como central,
a saber, por meio de que caminho seria possível rastrear essas forças e linhas. Nessa busca,
encontramos na cartografia uma proposta teórico-metodológica capaz de “capturar as
intensidades” (KIRST et al., 2003, p. 92), na medida em que sua produção se realiza no
movimento e pelo movimento. Em uma proposta que se configura claramente como pesquisa-
24

intervenção (ROMAGNOLI, 2014a; PASSOS; BARROS, 2015), nega-se a concepção da


investigação enquanto um processo em que se debruça sobre um objeto, mas junto com ele, na
medida em que o conhecimento sobre os fenômenos são resultantes da interação
pesquisador/participantes. Trata-se de um tipo de pesquisa que demanda olhares outros sobre a
realidade, tendo sempre em mente que é o compromisso com a vida o que move o trabalho do
cartógrafo (ROLNIK, 2016).

Para a construção dessa cartografia, recorremos às narrativas de velhos, narrativas que


evocaram memórias e que nos possibilitaram, ainda que parcialmente, o acesso a experiências.
São velhos que vivem e trabalham no campo, em comunidades rurais pertencentes ao munícipio
de Araçuaí, localizado no médio Vale do Jequitinhonha. Velhos que narraram histórias sobre
como eles vivem, trabalham e, principalmente, significam o ser velho no território em que se
encontram. Ouvimos histórias e, assim como coloca Bosi (1994, p. 38) em seu estudo com
velhos, “nessa pesquisa fomos ao mesmo tempo sujeito e objeto. Sujeito enquanto
indagávamos, procurávamos saber. Objeto enquanto ouvíamos, registrávamos, sendo como que
um instrumento de receber e transmitir suas lembranças”. Foi uma intensa experiência de
vivência do território que envolveu também outros personagens que contribuíram para esse
mapeamento dinâmico e processual: representantes do poder público municipal (Prefeitura
Municipal; Centros de Referência de Assistencial Social – CRAS e Centro de Referência
Especializado de Assistência Social – CREAS; Unidades Básicas de Saúde) e de instituições
da sociedade civil e religiosas (Sindicato dos Trabalhadores Rurais; Cáritas Diocesana, Ação
Social Santo Antônio, Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento - CPCD e Associação
Comunitária e Infantil de Araçuaí - Associar). Essas múltiplas vozes estão presentes e atuantes
nessa construção dialógica acerca do território bem como do próprio texto da pesquisa6.

Cabe nesse momento falar, ainda que brevemente, sobre o contexto mais amplo em que esses
sujeitos se inserem, o Vale do Jequitinhonha. Essa é uma região do estado de Minas Gerais
marcada por amplos contrastes sociais, econômicos e paisagísticos, sendo frequentemente
rotulada de o “Vale da miséria”. Indo de encontro a essa percepção, alguns trabalhos científicos
(NASCIMENTO, 2009; ITABORAHY; DINIZ, 2015) têm buscado ressaltar a riqueza de sua
produção cultural popular, folclórica e religiosa, buscando problematizar esse estereótipo que
consideram ser uma visão preconceituosa em relação ao território e sua população. Várias foram

6
Essa é a razão pela qual optei pela redação do texto, em sua maior parte, na terceira pessoa do plural.
25

as razões que nos levaram a realizar a pesquisa nesse espaço, dentre as quais se destaca a baixa
produção científica sobre a região, o que vai de encontro às inúmeras demandas que emergem
no sentido de pensar no desenvolvimento social e econômico para a população que nela vive.
É mister dizer que essa baixa produção de conhecimento se torna ainda mais alarmante quando
se fala sobre o universo rural. Não menos importante, esse estudo também foi motivado pelo
meu interesse em contribuir com esse território em que me inseri ainda no ano de 2015, como
professora do Instituto Federal do Norte de Minas Gerais7. Partindo dessas motivações,
inquietou-nos pensar de que forma as forças associadas a esse território geográfico e suas
características atuam/afetam na construção dessas velhices, da mesma forma que também nos
interessou compreender a ação desses sujeitos no/sobre o território.

Ainda que marcados pelo dinamismo inerente à pesquisa cartográfica que a todo momento nos
fez repensar e trilhar outros caminhos, seguimos na tessitura da pesquisa guiados por duas
questões orientadoras, a saber: 1. Como se configura a composição do rizoma velhice rural no
território do médio Vale do Jequitinhonha? e 2. Qual é o lugar do trabalho nesse rizoma velhice?
Ou seja, neste processo de produção de subjetividades associadas à velhice, que força tem o
trabalho? Partindo dessas questões e percorrendo os caminhos que foram artesanalmente
traçados ao longo da realização da cartografia, chegamos a esse texto final (ainda que
provisório) que organizamos em 6 capítulos, além dessa introdução, das histórias e das
considerações finais. Antes de adentrarmos nessa breve apresentação dos conteúdos de cada
momento do trabalho, é necessário destacar que parte importante desses traços desenhados está
descrita no Apêndice B, denominada de “Manual do Cartógrafo”. Nele, detalhamos os
procedimentos da pesquisa e seus movimentos. A opção por situá-lo como apêndice se justifica
unicamente pelo interesse em não gerar uma interrupção na narrativa produzida a partir do
encadeamento dos capítulos, tal qual detalhamos a seguir.

Iniciamos o trabalho com as Histórias de Velhos, narrativas biográficas de sujeitos junto de


quem caminhamos ao longo de todo o nosso percurso. São histórias que compomos a partir de
vários momentos narrativos, os quais organizamos de forma a apresentar ao leitor esses sujeitos,
assim como eles quiseram ser apresentados. Um momento que é puramente narrativo, de
familiarização, de aproximação e, por que não, de criação de laços e afetos. Nosso objetivo
nessas páginas iniciais é de abrir espaço para fazer emergir a voz desses sujeitos, sem

7
Apresentarei essas questões de forma mais detalhada no capítulo 1.
26

intervenções analíticas8. São narrativas que nos alimentam e nos preparam para as discussões
posteriores sobre os modos de ser da velhice e do trabalho rural nesse território. Para fins de
apresentação das narrativas, usamos o recurso itálico para demarcar as falas dos velhos
(transcritas literalmente) e o recurso negrito para dar ênfase a alguns trechos.

Em seguida, no Capítulo 1 - Tateando as primeiras linhas de uma cartografia, buscamos


delinear para o leitor como se deu a constituição do mapa da pesquisa, explicitando os caminhos
que nos levaram a tecer o estudo em cada uma de suas dimensões. Nesse mesmo capítulo,
apresentamos nossa aproximação com a perspectiva teórica-metodológica da cartografia,
explorando suas bases de modo a buscar respaldos para a produção de dados.

No Capítulo 2 – Conhecendo o território, trazemos, além da discussão teórica sobre o


conceito de território que perpassa o estudo e a problematização sobre as diferenças entre rural
e urbano, dados históricos e análises relativas à composição do território específico em questão:
o médio Vale do Jequitinhonha e a cidade de Araçuaí. O objetivo é que possamos evidenciar o
contexto mais amplo em que se inserem as velhices que desejamos rastrear, levantando questões
como a vivência de longos períodos de seca, o baixo desempenho econômico da região, a falta
de oportunidades de emprego e o processo ainda perceptível de migração de mão de obra. Ao
final do capítulo, foram apresentadas as comunidades rurais visitadas em nossas andanças
cartográficas.

Já no Capítulo 3 – Uma perspectiva rizomática da velhice, dedicamo-nos a apresentar a


proposta teórica que sustenta a tese defendida nesse estudo. Trata-se, portanto, de um capítulo
em que discutimos as concepções que marcam a temática da velhice na contemporaneidade,
para então propormos um novo olhar sobre ela. Nele, sistematizamos o conceito de rizoma e
argumentamos sobre a sua aplicabilidade no contexto das teorias e práticas em torno da velhice
e, por fim, dedicamo-nos a aprofundar especificamente nas produções de conhecimento acerca
das velhices rurais.

O Capítulo 4 - O rizoma velhice rural no médio Vale do Jequitinhonha e o Capítulo 5 – A


força do trabalho no rizoma velhice rural constituem-se duas partes eminentemente
analíticas, onde de fato buscamos apresentar as linhas rastreadas a partir da análise do material

8
Cabe dizer, entretanto, que o próprio processo de organização das histórias a partir das narrativas livres dos
sujeitos pode ser considerada uma etapa analítica.
27

produzido junto com os participantes da pesquisa. São capítulos que visam responder, ainda
que não de forma exclusiva, às questões norteadoras da pesquisa. São textos que retomam as
histórias de velhos incialmente apresentadas, agora com enfoque nos recortes desejados para o
aprofundamento em torno da tese que enunciamos.

Por fim, o Capítulo 6 – Velhices que brotam do/no semiárido mineiro traz um foto-ensaio
composto pelo que denominamos de “narrativas fotográficas”. São imagens produzidas por nós
e que objetivam possibilitar ao leitor, em conjunto com as histórias e análises, se inserir nesse
universo rico que nos propusemos a cartografar. São fotos que trazem, mais que imagens,
narrativas sobre a vida, o trabalho, a família e as comunidades desses velhos. São imagens que
afetam.

Por fim, cabe dizer que cada capítulo foi marcado pelo difícil processo de fazer escolhas dentre
tantas histórias e experiências que pudemos viver nesse longo período de pesquisa. O convite
que fazemos ao leitor é o de que se permita sentir e que, mesmo com as limitações impostas
pelo formato desse texto que se propõe científico, possa experimentar esse rico território
cartografado, sua gente e suas histórias que generosamente se dispuseram a compartilhar.
28

Histórias de Velhos
Prepare o seu coração/ Pras coisas que eu vou contar/ Eu venho lá do sertão/ Eu venho lá do
sertão/ Eu venho lá do sertão/ E posso não lhe agradar...

Disparada, Geraldo Vandré


29

Seu Milton Granja

Fonte: Jeane Doneiro, 2017.

Eu trabalho porque eu gosto. Se você falar "Seu Milton, a partir de amanhã o senhor não
pode mais fazer"... eu prefiro morrer!
30

Após a passagem pela comunidade Gravatá de Cima, onde conhecemos Dona Santa, seguimos
o percurso planejado até a comunidade de Córrego da Velha. A paisagem foi se tornando mais
árida e seca.

Estamos a caminho da casa do Seu Milton Granja, em Córrego da Velha do Meio. A


paisagem é um pouco diferente da que vínhamos observando nas outras viagens. Tudo
parece mais seco e sem vida, são longos os trechos da estrada sem casas e
plantações, apenas terra a perder de vista. Não há água. O Córrego da Velha é um
vale seco, o rio morreu há quase 30 anos (Anotações do diário de bordo, 31/08/17).

Após algum tempo de viagem, chegamos na casa de Seu Milton. Uma casa simples marcada
pelo tempo, com portas e janelas de madeira azuis cercada de muita terra e pouca vegetação.
Seu Milton nos recebe com satisfação e logo nos convida para entrar e nos acomodar. Depois
das apresentações e uma conversa inicial, adentramos no rico universo da vida desse velho
lavrador, como ele mesmo gosta de ser reconhecido.

Atualmente com 67 anos, Seu Milton relata que a história de sua vida se traduz em muita luta.
Porque pra mim chegar no ponto que eu cheguei hoje, é muita luta, né. Graças a Deus! Porque
eu fui criado na casa dos outros. Órfão de mãe aos 3 anos de idade, foi acolhido por uma família
que, segundo ele, deu sustento, me criou, né, mas de lá, mesmo pra falar assim, eu... trouxe a
vida, né, e a roupa do corpo. Seu Milton revela então sua origem pobre que o levou a começar
a trabalhar bem cedo. Ele relata, em tom negativo, as vezes em que foi para o trecho9 trabalhar
com a colheita de banana em Itanhanhém - São Paulo, e em uma criação de gado no Mato
Grosso: eu fui pro trecho duas vezes, mas não gostei. No retorno dessa segunda viagem, Seu
Milton se casou com Dona Maria Íris, com quem teve duas filhas.

Depois de casado, ainda sem propriedade, Seu Milton se mudou com a esposa para a casa do
avô de Dona Íris, com quem viveram até comprarem sua terra e construírem a casa onde residem
até hoje. E aí pra nós construir essa casa aqui, foi lutando. Lutando, lutando e tirando daqui
da própria terra, né, da própria terra. Seu Milton, que não chegou a frequentar a escola, diz
apenas saber assinar seu nome, mas relata orgulhoso o sucesso das duas filhas que, conforme
ele mesmo diz, estão bem colocadas. Uma delas é vice-diretora da escola de uma comunidade
próxima à cidade de Araçuaí, a Baixa Quente, posição de status reconhecida e admirada pelo
pai.

9
Corresponde às viagens para trabalho agropecuário em outras cidades ou estados.
31

Seu Milton Granja, ou melhor, Seu Milton Ferreira de Souza diz que herdou esse apelido da
família e que todo o mundo o conhece por ele. Isso vem de família, né, meu pai chamava
Joaquim Granja. Era apelido. Porque, ele mesmo, chamava Joaquim Ferreira de Souza, né.
Ele num tinha assinatura de Granja. Então eu acho assim, que isso pode ser duma geração que
veio pra cá, do comércio lá do Granja, né. Veio o véio, veio os filho tudo por Granja, né. A
tradição se mantém viva e ele diz ser conhecido apenas pelo seu apelido, inclusive em Araçuaí.
Lá eles num coloca “Milton de Souza” não, só coloca assim “Milton Granja”. Eu já chego lá,
já acho anotado: Milton Granja. Aí eu ainda vou e brinco com eles, assim: “Mas aqui eu pago
se eu querer, que eu num tem nada de Granja, não.”

Com a voz firme Seu Milton relata uma trajetória de muito trabalho e dedicação ao campo. As
histórias sobre o início da vida ao lado de Dona Íris envolvem a divisão do tempo entre o
trabalho na própria roça e a prestação de serviços para fazendeiros da região. Naquela época
que nós terminava de limpar as lavoura, nós ia pegar empreitada. Essa empreitada era assim:
tinha um fazendeiro que tinha uma manga lá pra limpar [...], aí nós ia lá empreitar com ele
pra nós limpar aquele capim pra ele de foice, né. Aí é que nós sobrevivia, né, pois assim nós
sobrevivia da renda. Ele explica o quanto foi demorado o processo até que eles pudessem viver
apenas daquilo que produziam em sua própria terra.

Emocionado, Seu Milton acrescenta que suas filhas também participaram dessa história de
construção, contribuindo desde ainda jovens com o trabalho - fato este também relatado pelos
outros participantes da pesquisa. As menina trabalhava muito, minhas menina, graças a Deus,
é muito lutadeira, torrou muita massa... você sabe como era torrada? Na tacha. Você jogava
a massa crua na tacha ali... mexendo e jogando aqui, né, pra cima, porque se você deixasse
parada, queimava. Desde duas hora da manhã até cinco hora da tarde. Então, minhas duas
menina me deu muito gosto. Mesmo não tendo estudado, como contou ainda no início de nossa
conversa, Seu Milton se orgulha de todo o conhecimento acumulado ao longo dos anos de
trabalho direto com a terra, o que ele busca passar para seus netos nesse momento. Os dois neto
meu, é eu que ensinei trabalhar. Esse que tá lá no Instituto10, o que ocê pôr ele pra fazer, ele
faz. Se ocê jogar no cabo da foice, ele vai; se jogar no cabo da enxada, ele vai; se ocê jogar
ele no peito da vaca, ele vai. Ele faz tudo, mas é que eu ensinei, né. Para o Seu Milton é um
prazer saber que seus netos desejam voltar para o campo assim que se formarem no ensino

10
Instituto Federal de Norte de Minas Gerais.
32

médio, pois acredita que, ensinando-lhes a lidar com a terra e oferecendo um lugar onde possam
começar, eles podem, como ele mesmo diz, sobreviver. Aí eu já tô véio... e vou dar essa
oportunidade pra ele, né. Um num precisa, o pai dele tá vendo até comprar uma terra pra ele
agora, e o de lá eu já vou dar ele oportunidade aqui. Porque eu sei, eu sei, que se eu ensinar
ele, né, a lida, como ele mesmo já sabe, a maior parte da lida, e ele tá aprendendo a tecnologia
lá, eu sei que aqui vai produzir pra sobreviver.

Sobre o trabalho, Seu Milton conta que já plantou tipos diferentes de alimentos e também já
produziu farinha e rapadura. Eu plantava milho, arroz, feijão, manaíba11, né... eu já fui homem
de fazer quinhentos alqueire de farinha. Em um tom de voz que mistura claramente um orgulho
pelo vivido ao mesmo tempo em que constata um caminho de sofrimento, ele complementa:
De cada coisa, eu já fiz um pouco. Só o que eu num fiz é matar, nem roubar, graças a Deus,
nada disso eu fiz. Mas de serviço, o que você falar, me perguntar, assim: “Você já fez isso?”
Eu te prometo que eu já. Nesse momento, Seu Milton retorna ao tempo presente e diz que o
ritmo de produção diminuiu muito em função da idade. Ah, hoje eu planto, mas pouco, né,
porque você sabe, na idade que a gente tá, né. Mas não há na fala de Seu Milton lamentação
ou tristeza, apenas um reconhecimento de que algumas coisas mudaram.

Há alguns anos, Seu Milton e Dona Íris dedicam-se quase que exclusivamente à produção de
queijos que são vendidos atualmente apenas para compradores/atravessadores de São Paulo.
Seu Milton relata que, por muito tempo, comercializaram seus queijos no mercado municipal
de Araçuaí, onde frequentam até hoje. Entretanto, uma situação abriu caminhos para essa venda
direta que se mostrou mais interessante para a família. Eu comecei vender pra São Paulo porque
eu comecei vendendo na Feira em Araçuaí, né. Aí chegou um freguês e comprou na minha mão
pra levar pra São Paulo e gostou, né. Aí meu queijo foi muito aceito em São Paulo, né. Aí
como ele é atravessador, né, atravessador é aquele que compra e leva, né, aí toda semana ele
pega. Eu tenho uma freguesa também que lá que mora em São Paulo, né, e eu mando queijo
pra ela também. Eu levo por Jenipapo, já tem um cara que faz linha por Jenipapo pra São
Paulo, ele leva pra ela. Então, hoje tá difícil? Não. Num tá difícil de viver, não.

Observando todas as mudanças que ocorreram ao longo do tempo, Seu Milton revela-se um
crítico ferrenho daqueles que hoje em dia reclamam do trabalho com a terra, em vários sentidos.
É por isso que eu tô falando: o povo hoje tá com a barriga cheia e tá lá gemendo. Você

11
Outro nome para mandioca, aipim.
33

pergunta: “O que você tem?” “Oh, moço, tô com o corpo ruim.” Antes num tinha isso, não,
começava lutar aí a base de uma hora da manhã e ia terminar lá pras oito da noite. Ele
continua... Pra você ter noção, que nós num tinha descanso, não. O dia de domingo que era o
dia de nós descansar, nós ia carregar farinha pra entregar em outros lugar. E como é que era
entregado? Na carcunda de burro, porque num tinha carro. Seu Milton também fala, com
muita clareza, da importância da tecnologia e de como ela facilitou a vida de todos, inclusive
do produtor rural. “Ah, como é que tá hoje? A roça não dá, né.” Mas eu discordo com isso,
entendeu? Eu discordo com isso. Porque, às vezes, a roça hoje, tá melhor do que... antes,
porque hoje você tem mais oportunidade. E hoje tem a tecnologia. Antes num tinha e hoje já
tem, né.

Seu Milton complementa sua crítica dizendo que não concorda com os benefícios dados pelo
governo nos dias atuais: Se colocasse a frente de trabalho, igual era antes, entendeu? Era
assim: nós tinha um grupo aqui, nós quatro aqui era uma família. Aí nós quatro ia trabalhar,
ia produzir. “Vamo mexer com horta?” “Vamo.” [...] Nós tinha que mexer com aquela horta.
Porque vinha o fiscal fiscalizar nós. Nós tinha de produzir, né. Bão. “‘Acabou?” “Não, agora
vamo passar pro Bolsa Família, né, vamo passar pro Bolsa Família porque a dona de casa,
ela num pode deixar o menino falhar de escola e nem pode por ele pra trabalhar com a idade
menor”. Ele acredita que pouco o governo contribui para o desenvolvimento por meio desses
benefícios e que essa ausência de vivência do trabalho rural desde a infância estimula, por outro
lado, a criminalidade e a falta de vínculo com a terra.

Retomando sua trajetória, Seu Milton narra os prazeres de viver no campo. Por que você fala
assim: “O senhor gosta de conviver aqui?” Gosto, porque aqui é lugar sossegado. Tranquilo,
né. Num tem lugar mais tranquilo de que a roça, não. É a tranquilidade pra tudo, até pra você
dormir, né. Ali né, Araçuaí... por que que eu num gosto de Araçuaí? Araçuaí pra você dormir
tem que ser com uma cortina ou com o ventilador, ou então você colocar remédio pra espantar
as muriçoca. Associado a essa tranquilidade, ele demonstra o orgulho de ser lavrador... Eu vou
aplaudir ele por que ele é um lavrador, né, porque é dos braço dele que sai nosso sustento, né,
é dos braço dele que sai nosso sustento. É dos braço dele que sai o leite, é dos braço dele que
sai a carne, é dos braço dele que sai o arroz, sai o feijão, sai a verdura, né. Você já viu alguém
rancar algum balaio de verdura lá dentro da cidade, dentro da zona urbana pra puder levar
pro mercado vender? São palavras de alguém que defende o valor do campo e aquilo que nele
se produz.
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Dona Santa

Eu já passei tanta fome, menina... Toda vida trabalhei na roça, desde menina. Eu arribava
garapa, torrava farinha... Trabaiar na roça é difícil, você bate enxada o dia inteiro no sol, cê
toma chuva... Hoje ninguém quer.
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Em uma quinta-feira ensolarada, seguimos para mais um dia de visitas às comunidades rurais.

Hoje saímos no sentido oposto de nossa última viagem e a paisagem me parece


diferente, ainda mais árida. Ao nos aproximarmos da casa de Dona Santa, a
primeira de nosso roteiro de hoje, a surpresa é grande. No meio de tanta seca e
de estradas que parecem não levar a lugar algum, chegamos a um pedaço de
terra que se destaca pela presença de água e de vida verde. Cisco comenta que
essa é a casa de uma das filhas de Dona Santa e que dali seguiríamos a pé para
chegarmos até a sua que fica mais ao alto (Anotações do diário de bordo, 31/08/17).

Após uma subida relativamente íngreme, chegamos à casa da Dona Santa. Embora tenhamos
mandado recado a respeito de nossa visita por um de seus filhos, ela não nos aguardava.
Acompanhadas de Cisco, conhecido de sua família há muitos anos, rapidamente explicamos o
porquê de estarmos ali, e ela gentilmente nos acolheu e contou sua história. A primeira
impressão – que se confirmou ao longo de nossa longa conversa – é a de que Dona Santa é uma
mulher extremamente forte, cuja trajetória de vida foi marcada por muito trabalho e
dificuldades.

De paredes cor salmão claro e janelas de madeira, a pequena casa de Dona Santa é simples e
sua fachada revela as marcas do tempo. Na frente da casa, é a criação que recebe os visitantes
– três vacas magras encaram aqueles que se aproximam. Passada a cerca, o que mais chama a
atenção é a bela horta cultivada por ela. Aquela pequena área verde destoa de toda a aridez que
prevalece ao seu redor e foi ali mesmo que conversamos sobre sua história. São frutas, folhas e
verduras carinhosamente cultivadas por essa senhora que olha e fala sobre elas com muito
orgulho: Oh moço, eu gosto de mexer com isso a vida toda. Eu plantava lá perto do Graça, ia
a pé todo dia, daqui lá dá uns 5 km.

Hoje com 78 anos, Dona Santa é mãe de 9 filhos, 8 vivos. Nasceu tudo sozinho, mais Deus e
eu. Casada desde os 16 anos de idade, conheceu o esposo em uma casa onde começou a
trabalhar desde cedo. Dona Santa relata um casamento feliz, atravessado por muitas
dificuldades. Graças a Deus foi bom, só não foi melhor porque a gente era pobre, não tinha
casa pra morar, fez um barraco de cobertor e nós ficou morando um tempo debaixo desse
cobertor... depois fez dois cômodo, e depois que o pai dele morreu, nós mudou pra aqui porque
a terra ficou sendo dele. A vida com o marido, e depois com os filhos, foi marcada por muita
luta. Com a voz firme, Dona Santa relata: Eu já passei muita fome, menina... Eu já passei
tanta fome pra criar esses meninos, eu sofri, minha fia, que o pai dele que tinha as coisas,
ele não tinha nada, eu não também não tinha, era dois lutando...
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Nascida na comunidade de Setúbal, Dona Santa ficou órfa aos 7 anos de idade. Ela relata que,
depois do ocorrido, foi visitar uma de suas tias na comunidade de Gravatá, a qual a convidou
para viver com ela. Aí eu vim aqui pra casa dela, fiquei aqui, a vida toda. Sobre a sua infância,
Dona Santa evoca memórias associadas ao trabalho. Toda vida eu trabalhei na roça, desde
novinha. Aprendi com os outros que me ensinavam... eu arribava garapa, torrava farinha, até
cerca eu fazia.

Dona Santa lembra com certo orgulho de um episódio quando, ainda muito jovem, duvidaram
da sua capacidade física de trabalhar na roça. Teve uma vez que um velho me chamou para
torrar farinha, eu vim mais fina que essa menina aí (fazendo referência à presença da
Jeane), aí o homem falou comigo assim: “isso é torradeira de farinha que você arranjou?
Isso não vale nada, não paga nem o prato de comida”. Aí quando o velho acordou no outro
dia e viu a pilha de farinha cuzida, ele falou: “minha nossa senhora! Eu não trocava você
por nada, minha fia”. Eu falei pra ele: “não é o tamanho do porco que dá o tocinho, não
senhor”. Aí eu fiquei muito tempo torrando farinha, arribando garapa, tudo quanto é serviço
eu fazia.

Sobre o trabalho cotidiano na roça, Dona Santa narra uma trajetória de muito sofrimento,
revelando nunca ter se dedicado exclusivamente aos afazeres domésticos. Nós fazia a roça,
plantava milho, feijão, nós colhia muita coisa, né, até arroz nós colhia. Toda vida eu fui na
feira, eu fazia carga de banana num burro, levava montada... ia pra cidade mais Lica, nós
saía daqui 4 h da madrugada com o burro cheio de banana pra vender na cidade, ela levava
rapadura e eu levava banana, aí uma ajudava a outra. Meu marido não ia de jeito nenhum, ele
não gostava de jeito nenhum. Ao longo de sua narrativa, Dona Santa sempre se coloca ao lado
de seu marido na luta e no trabalho.

Embora com todo esse sofrimento, Dona Santa fala emocionada e orgulhosa sobre seus filhos.
Meus filhos graças a Deus nunca me deu trabalho pra nada, todos eles sabe viver com a vida.
Dos seus 8 filhos, apenas 2 vivem fora da zona rural. Eles estudou só o 4º ano, todo mundo. No
Graça, ia a pé, minha fia, não era de carro, não, ia a pé caminhando embaixo de chuva com
um saquinho embrulhadinho do lado. Dona Santa reconhece que hoje os tempos são outros e
que os jovens não aproveitam as oportunidades que têm. Hoje eles acha carro e não quer
estudar. Como exemplo, ela cita o neto que vive com ela, de quem cuida da criação. Eu mesmo
tenho esse neto que mora comigo, sem vergonha, mas de vez em quando eu dou um coro, ele
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faz pintura lá na escola, eu sei e pego ele. Severa, Dona Santa não aceita a atitude
desinteressada do neto em relação à escola e fala com dureza na voz: Semvergonhice eu não
aceito, os meus não fez isso!

Quando questionada sobre o peso dessas atividades de cuidar do neto e cultivar a horta para
alguém com 78 anos de idade, ela logo se apressa em dizer assertiva: Falei com a minha filha,
deixa meus trem quieto, senão eu endoido! Se disser que eu não posso fazer, eu morro de um
dia pro outro. Ela reconhece que muita coisa mudou com o passar dos anos e que uma de suas
filhas, em especial, se preocupa muito com a saúde dela. Mas Dona Santa diz não conseguir
deixar de fazer o cultivo da horta e de cuidar de seus animais, aos quais ela se refere como
membros da família. O véio não vivi sem essas duas vacas aí de jeito nenhum, pra ele é uma
doença. Além desses afazeres cotidianos, ela também gosta de cuidar de si mesma: Eu gosto de
me arrumar. Esse brinco aqui a minha nora me deu. Eu compro roupa, de vez em quando eu
compro, não é direto, não... porque com o que eu ganho... Aposentada, Dona Santa diz que
recebe muito pouco e ainda precisa pagar um empréstimo bancário que contratou quando teve
problemas de saúde. Sobre o cuidado com o dinheiro, ela demonstra autonomia: Eu mesmo que
recebo o meu dinheirinho. É meu mesmo, eu sei o que faço.

Ao falar sobre a aposentadoria, a temática da velhice invade a narrativa de Dona Santa, com
um certo tom negativo. Mas a gente não é gente mais não. A gente vai ficando velho, a gente
adoece, fica sem força nas pernas, de vez em quando eu caio, é cada tombo aqui... Dona Santa
relatou que uma de suas últimas quedas na porta de sua casa foi grave, tendo como consequência
a fratura de algumas costelas e a necessidade de repouso absoluto. Quando questionada sobre
o fato de ela obedecer às recomendações médicas de repouso, ela ligeiramente respondeu: Não
tenho tempo para isso, não. Essa falta de tempo é resultado de uma rotina diária de muitos
afazeres que começa às 5 h da manhã. Eu levanto e faço comida para o meu filho Venâncio
levar pro mato, vou tratar das galinhas, vou tratar dos porcos, venho depois de lá e vou molhar
a horta, depois eu torno a lavar as vasilhas de comida para fazer o almoço... e aí vai o dia.

Sobre o futuro, Dona Santa diz ter como única a certeza de que será no campo, em sua casa.
Não moro em cidade de jeito nenhum. Eu não gosto mesmo. Já acostumei ficar aqui mais meus
passarinho brincando, Deus me livre. Ciente das dificuldades que a velhice já tem lhe
apresentado, ela diz já ter conversado sobre o assunto com os seus filhos. Eu falei pros meus
meninos, se eu ficar velha, gente, não me leva pro asilo não, me dá um veneno pra mim
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morrer, não me leva pro asilo, não. Esse temor pelo asilo Dona Santa atribui a uma visita que
fez a uma tia institucionalizada em Belo Horizonte. Nós chegou lá, essa véia tava toda
machucada, disse que a enfermeira tinha batido nela. Eu falei, se fosse mãe minha, eu
carregava. Nesse momento, ela retoma a fala sobre os filhos e afirma que conta com a ajuda
deles para viver sua velhice.

Fechando nossa conversa sobre a vida, Dona Santa fala de felicidade. Mesmo com as
dificuldades, eu sou feliz. Deus vai me dá forças até o dia d’eu morrer. Essa é a imagem forte
e guerreira de Dona Santa.
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Seu Zezé das Tesouras

Fonte: Fabrício Luiz Pereira, 2017.

Na minha vida, a gente sempre tentou conscientizar os companheiros, as pessoas, pra


questão do meio ambiente na região desse semiárido que nós vivemos. A coisa vai mudando,
a gente vai sabendo por que chove menos, tem chuva, outra época num tem, é seca. Aí,
também, a gente vai aprendendo trabalhar pra viver nesse semiárido.
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Após o almoço, por volta das 14 h da tarde chegamos ao nosso último destino daquele dia na
comunidade das Tesouras: a casa do Seu Zezé e de Dona Isaura. Acompanhados de sua filha
Ivani, fomos recebidos já na porta pelos donos da casa, que nos aguardavam. A casa colorida
chama a atenção e se localiza em um ponto alto da paisagem, de onde se tem uma bela vista.
Ao chegarmos, Ivani nos mostrou ao longe sua casa, que fica em um nível abaixo da de seus
pais. Havia uma ansiedade por essa conversa com o Seu Zezé das Tesouras (como é chamado
por todos), afinal, sabíamos de antemão se tratar de um líder comunitário e de uma figura
bastante conhecida em Araçuaí. Com grandes expectativas, mergulhamos na história dessa
figura tão especial.

Na casa pintada de uma forte cor laranja com portões azuis, muitas plantas e uma bela rede
criam um clima familiar e agradável. Ainda na varanda, um filtro de barro coberto com um
tecido de barra rendada – objetos, fotos e enfeites artesanais ornamentam a casa simples e
acolhedora. Mais uma vez fomos recebidos na sala de estar e fomos convidados a nos sentar.
Falamos da proposta de conversarmos com os dois sobre suas histórias de vida, e os mesmos
se prontificaram imediatamente. Dirigimo-nos a um dos quartos, onde Seu Zezé relembrou e
reviveu emocionadamente momentos importantes de sua vida, de sua família e de sua
comunidade.

Aos 76 anos de idade, Seu Zezé nasceu e viveu toda a sua vida na região, onde se casou com
Dona Isaura e criou seus 7 filhos. Ao falar sobre seus pais, Seu Zezé relembra uma vida marcada
por muitos momentos de necessidade, tanto pela falta de condições financeiras quanto pela
própria dificuldade de acesso aos alimentos. Olha, nossa vida toda aqui – meu pai e nós – era
da agricultura... Agricultura familiar. Naquele tempo não falava agricultura familiar, falava
lavrador... É cultivá a terra. E criava um pouquim de gado, mas só para o consumo também,
num era pra vender, não. Ao recordar sobre esse tempo, Seu Zezé fala acerca da dura realidade
do semiárido, em que longos períodos de seca tornavam a terra improdutiva. Tinha que ir longe
buscar. Tinha um lugar que chamava Ribeirão da Pedra que era uma região de mata. Dava
uma seca que aqui num produzia, lá produzia porque era mais úmido, tinha mais umidade.
Produzia, a gente tem ir buscar lá. Às vezes ia busca o feijão no Ribeirão da Pedra, Novo
Cruzeiro, num é? Novo Cruzeiro já tinha uma linha de trem que trazia muita coisa pro
comércio, então a gente tinha que pegar o animal e ir lá comprar o produto. E nem sempre,
também, tinha capilé. Então às vezes você tava passando necessidade e não tinha o dinheiro
pra ir comprar.
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Entre casos e causos, Seu Zezé narra a história de uma família com fortes raízes na região. Pai
de sete filhos, tem orgulho de dizer que três deles optaram por permanecerem na roça e se
dedicarem à agricultura familiar, ainda que em meio às dificuldades. Saiu três pra Araçuaí. Os
outros têm três aqui e tem uma que mora na roça, no Ferreiro, hoje ela trabalha de servente,
trabalha lá na escola São Vicente, e três mora aqui trabalhando na roça. Sobre a formação dos
filhos, Seu Zezé lamenta não ter podido oferecer a eles uma educação formal e diz que a única
filha que cursou o nível superior o fez por ter optado, ainda jovem, pela formação religiosa.
Bem humorado, Seu Zezé completa dizendo: Ela saiu daqui com uma vocação pra irmã, virou
irmã, depois passado um tempo, ela formou no Colégio das irmã , depois eu brinco que ela
resolveu divorciar com São Francisco, né, e casar com Santo Antônio, Santo Antônio é
casamenteiro, né? Embora seus filhos não tenham tido a oportunidade de se formarem, Seu
Zezé sempre valorizou a questão da educação, sendo essa uma das principais lutas que
empreendeu junto à comunidade na posição de animador comunitário, função que exerceu
durante 38 anos. Eu fui animador da comunidade por trinta e oito anos. O animador da
comunidade é aquele que coordena os trabalhos da comunidade. O domingo a gente senta,
primeiro vamos pra igreja, onde rezava o terço, depois reza o culto dominical. Então, a gente
ia pra igreja, rezava. A partir daquela oração, a gente já combinava ter uma reunião pra
discutir os problemas que atingia a comunidade, num é, atingia a região, a comunidade, num
é. “Qual é o problema que tá atingindo nós aqui? Tá nos preocupando? Qual que é?”. Às
vezes, ia dizer, por exemplo: “é falta d’água ou é falta de escola ou falta de saúde. E aí, vamos
pensar como nós vamos fazer pra nós melhorar essa situação?”, porque acabar com o
problema a gente num acaba; “mas o quê que nós vamos fazer pra melhorar situação”.

Seu Zezé relata, emocionado, que foram muitas as lutas comunitárias que marcaram sua vida e
deixa claro que muito ainda há pra fazer. Sobre a questão da educação, ele relembra que apenas
por volta de 1948 que o ensino público passou a ser ofertado na região e que, ainda assim, era
necessário um grande esforço por parte da comunidade. Mas era assim: o pai tinha que
hospedar a professora e os pais tinha que fazer o salão de escola. Então, nós construímos aqui
um salão escolar. Mas também só tinha até a terceira série. Trazer a quarta série pra aqui foi
um problema, porque só o Estado que dava quarta série, o município não podia. Então, lá por
volta de setenta e oito, porque o pessoal tava saindo demais pra ir pra cidade pra estudar os
filho, e, às vezes, eu falava: “Gente, nós num podemos sair da roça, porque na cidade é mais
difícil. A pessoa num tem jeito pra viver lá, vai entrar em dificuldade.” “Mas como é que faz?
É obrigado estudar os filho.” Ó, nós vamos tentar.” Naquela época, a quarta série era muita
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coisa. “Vamos tentar trazer uma quarta série aqui pra roça?”; “Ah, mas num tem jeito”;
“Tem! Tem jeito. “É preciso lutar”.

Especificamente sobre o trabalho com a terra, ele relembra que, em sua infância e juventude, a
produção familiar de arroz e milho era significativa, entretanto, pelo fato das outras famílias da
comunidade produzirem os mesmos produtos, não era possível trocarem entre si. Além disso,
somavam-se as dificuldades de transporte que muitas vezes inviabilizavam a venda dos
produtos que ficavam então apenas destinados ao consumo. Seu Zezé relata que eram muitas
as dificuldades para chegarem até o mercado municipal em Araçuaí. Nessa época, quando eu
como jovem aí de catorze, quinze anos, a cidade era muito pequena. A gente ia, né, pra Araçuaí,
sabe como? De a pé ou a cavalo que a gente ia. Levava muito tempo. Às vezes, a gente ia
tocando o burro cargueiro e andando de a pé, chegava lá na sexta-feira, descarregava no
Mercado, dormia pra vender o produto no sábado e tinha hora que tinha que voltar com o
produto porque não achava quem comprava. O que sobrava, muitas vez perdia. Quando dava
um ano de crise, aí a gente passava necessidade porque não tinha o produto...

Mesmo com suas atividades de animador comunitário, Seu Zezé relata que nunca abandonou o
trabalho com a terra e com os animais, de onde tirava seu sustento. Sobre os dias de hoje, ele
diz que continua trabalhando, seguindo uma rotina diária que envolve o cuidado com a
plantação que ele orgulhosamente nos apresentou durante a visita. Continuo trabalhando. Mas
eu vou falar o seguinte: quando o dia tá fresco assim, eu só almoço, deito na rede, dou uma
cochilada, levanto e torno pegar no batente. Com calma, né, mas pode pegar pra trabalhar,
num é? Agora quando o sol tá quente, eu trabalho até dez horas, levanto muito cedim, sempre
eu levanto cinco, cinco e meia, até seis horas no máximo. Aí, levanto, dou uma respirada aí
fora, pego no pé de árvore, dou uma respirada funda, num é, e aí, é assim. Às vezes toma uma
colher de mel, vou lá, panho o livro da história que é a Bíblia Sagrada, leio um trecho pra ver
que recado Deus tá mandando pra mim, e aí entro na lida. Então, é isso aí. Porque o que me
conforta é a Palavra de Deus, se num fosse a Palavra de Deus, eu já tinha desesperado.

Hoje aposentado, assim como também sua esposa, Seu Zezé fala com orgulho da capacidade
de sobreviverem financeiramente de forma independente. Ora, hoje temos que agradecer a
Deus. Nós somos aposentado, a aposentadoria minha mais minha esposa, ela aposentou pelo
Estado que ela foi... Ela trabalhou muito tempo. Num precisamos de, às vezes precisa de ajuda
dum filho pra cortar um pau mesmo que é meio grosso ou panhar uma coisa, mas,
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financeiramente... Não. Ele completa dizendo que a aposentadoria é fundamental para quem
vive na área rural, mas que é preciso saber administrar o dinheiro, principalmente na velhice
com o aumento nos custos de vida. Então nós temos muitos amigo, muitas pessoas, que entra
no “vermelho”, na dificuldade, porque a gente tem que tá trabalhando e planejando e fazendo
a contabilidade pra gente saber controlar. Eu já vou planejando, quando chega a conta de luz,
eu já tô com o dinheirinho pra pagar. Às vezes eu vendi ovo da galinha, vendi outra coisa ou
reservei um pouquinho do meu salário. A gente de idade já gasta muito. Por exemplo, eu tem
um colírio que ele custa cento e vinte e cinco reais, mas eu tem o cadastro, ele fica pra mim
setenta e cinco, num é? E é um vidrinho que quase num pra trinta dia.

Seu Zezé diz que sente o peso da velhice na diminuição das forças físicas, mas, principalmente,
na dificuldade de lidar emocionalmente com algumas questões comunitárias que ainda o
incomodam. Eu senti as força diminui, né. Já senti, assim. Hoje eu num tem condição de fazer
mais o que eu fazia. Eu num posso pegar mais esse peso que eu pegava, num é. Eu tenho que
zelar pela saúde que eu tenho, que eu num sou capaz mais de fazer. Eu num sou capaz mais de
fazer aquela... Trabalhar com muita gente como eu trabalhava, porque eu já sinto o estado
nervoso, num é. Quando alguém começa contrariar uma coisa que é boa, ih, aquilo me
arrasa. Justamente em função da sua vida de lutas comunitárias, Seu Zezé demonstra grande
tristeza ao falar sobre questões que ainda o preocupam e sobre as quais ele vê pouca evolução.
Parte dessa tristeza ele associa às dificuldades que ainda enfrenta pelo fato de não ter tido uma
educação formal. Agora a tristeza que eu tenho, eu num estudei. Discutir com quem é formado,
é triste porque sabe falar palavra bonita que eu num sei, quero dizer, tá me xingando? Eu num
sei o que ela tá me xingando, num é. Então, a gente sabe disso, mas sempre eu falo. Em meio
a um misto de emoções, ele diz da tristeza, mas recupera as forças e se mantém em sua posição:
eu sempre falo.

Seu Zezé relata, com a voz embargada, que há dias difíceis em que a vontade é desistir das
lutas, principalmente quando percebe que as questões são muito complexas e de difícil
resolução. Tem dia que eu fico bom de chutar o balde, tem dia que eu fico com medo de
depressão, tem dia que eu choro. Aí sei que... a gente tá perto de ir embora, que a idade... com
uma idade avançada e a gente num vê esse crescimento dessa preocupação do ser humano com
a natureza. É isso que a gente pensa: “Oh, gente, a gente já deu um passo, mas a gente
gostaria que tivesse feito mais”. Gostaria que a sociedade tivesse feito mais pela natureza. A
quantidade de lixo que são jogado por todo lado. Teve um dia... Eu deitei na cama, quase num
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dormi pensando: “Meu Deus! Quê que faz? É tanto lixo”. Comecei pensar da criança quando
nasce. Nasce a criança, compra pra ela uma boneca de plástico, o padrim dá um presente de
plástico, as vazia da cozinha, a gente deixava praticamente quase tudo que nós usava daqui, é
artesanal, usa plástico, o carro é de plástico, isso é de plástico. E o mundo tá cheio de plástico,
tudo vai pro lixo. Hoje pras empresa puder manter, elas têm que produzir e produz o quê: tanta
coisa, tudo descartável pra encher o mundo de lixo, e aí eu tem que comprar isso que é
descartável pra amanhã eu jogar ele no lixo pra mim comprar outro, senão a empresa num
sobrevive. E aí, pensei, pensei, sabe... eu vou fazer minha parte, vou procurar cuidar das coisa
da natureza, procurar ter coisa em casa, começar ir descartando as coisa de plástico, usando
coisa artesanal e cuidar do meu quintal, cuidar pra num encher meu quintal de lixo. E o que
eu vou fazer é isso. Num vou conseguir muita coisa, mas vou conseguir um pouquinho.

E mesmo com os momentos de desgosto e descrença em relação às mudanças, Seu Zezé não se
distancia do trabalho comunitário. Eu participo de reunião da comunidade, participo do
Sindicato, mas não como diretor, sou membro do Sindicato. Aquele Sindicato de Araçuaí, eu
ajudei criar o Sindicato de Araçuaí, num é. Num tô satisfeito hoje com a forma que tá a
administração deles. Conversei até com o presidente lá que eu acharia que deveria melhorar
algumas coisa. Mantendo-se ainda como parte atuante da comunidade, Seu Zezé é reconhecido
e se mantém como referência quando se fala não apenas sobre a comunidade das Tesouras, mas
em relação às comunidades rurais de Araçuaí como um todo. Eles consideram que eu sou uma
pessoa que tem um pouco de experiência, num é, então me procura e eu sempre acompanho,
num é, ajudo articular os projetos, acompanho junto, né.

A caminho do quintal íngreme quando fomos conhecer não apenas suas plantações, mas
também a pequena represa que ele mesmo construiu para acumular água da chuva para os
períodos de seca, Seu Zezé complementa dizendo com satisfação de sua esperança de ainda
contribuir com a comunidade. Olha, eu sinto feliz, mas só acho que ainda num fiz o que eu
deveria fazer. Eu tinha que fazer mais ainda. De vez em quando, a vez a gente: “Oh, gente, isso
aqui tá precisando ainda de fazer, tá precisando a gente dar uma mãozinha aqui nisso aqui”.
Então, a gente vê que ainda não tá acabado, inclusive até um pessoal do CPCD me perguntou
se eu sentia realizado. Eu falei: “Ainda não”. Não. Eu acho que minha missão num foi
cumprida ainda não, porque eu acho ainda que nós, o ser humano, tem um dizer que fala
assim: Enquanto há vida, há esperança. Então a gente tem coisa que precisa fazer ainda.
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Dona Luruca

Fonte: Jeane Doneiro, 2018.

Eu gostaria de fazer o meu serviço, mas eu num guento mais fazer ele que ele é pesado.
Mexer com o barro... isso foi o que mais gostei de fazer na vida!
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Dona Luruca, de 77 anos, vive em uma das comunidades rurais mais próximas da cidade de
Araçuaí, chamada de Baixa Quente. Justamente por ser tão próxima à cidade (cerca de 15km)
e também ter fácil acesso, a oferta de transporte diário é maior, e, em função disso, muitos a
consideram como um bairro distante. É uma das comunidades de referência para o Programa
Saúde da Família, sendo sede de uma das cinco unidades de saúde da zona rural. O nome
original da comunidade é Bom Jesus da Aguada Nova, mas é mais conhecida pelo apelido de
Baixa Quente.

Hoje estou indo para a comunidade da Baixa Quente juntamente com a equipe do PSF,
a convite da enfermeira coordenadora da unidade. Vamos no carro da prefeitura que
leva os profissionais para a comunidade, mas fica claro que esse transporte não é feito
diariamente. Embora a distância seja curta, a ausência de ar condicionado faz com que
tenhamos que abrir as janelas – é muita poeira! O motorista reclama da frequência
com que os carros têm estragado por causa das condições das estradas de terra.
Chegamos na comunidade cerca de meia hora após a saída do centro da cidade,
com as roupas todas empoeiradas (Anotações do diário de bordo, 06/09/17).

Estou sendo acompanhada por duas agentes de saúde nas visitas aos velhos aqui na
Baixa Quente. Tenho considerado positivo porque essas profissionais têm grande
intimidade com a comunidade, pois fazem parte dela. [...] Chegamos na casa de
Dona Luruca. Ela nos recebe desconfiada, mas aos poucos foi se abrindo... mulher
forte, dura, foi difícil conquistar a sua confiança (Anotações do diário de bordo,
06/09/17).

Viùva há 30 anos, Dona Luruca se casou cedo e teve 14 filhos, dos quais 10 sobreviveram.
Fiquei sozinha com 10 filhos, dentro de casa e com Deus. Na época em que enviuvou, Dona
Santa tinha 35 anos e diz que teve que trabalhar muito para cuidar sozinha de seus filhos.
Quando meu marido morreu, trabalhei primeiro na roça, depois comecei a trabalhar com
barro para sobreviver, pra mim criar meus filhos. Levava, fazia carqueiro de plantar planta,
sabe? Nós levava para vender em Araçuaí. Assim como tenho ouvido de outros velhos, ela
afirma em tom de alívio: Aquela vida que nós viveu era muito sofrida, né? Agora tamo mais
um pouco melhor...

Embora com muito sofrimento, Dona Luruca lembra com carinho do tempo em que trabalhava
com cerâmica e com a produção de farinha. Nós levantava duas horas da madrugada para ir
aqui na tenda de farinha. Era ali dentro um pouco, pra nós pôr fogo no forno. Eles ralava sete
carga de mandioca, passava aquilo tudo num motor. Rala a mandioca, imprensa, descasca a
branquinha... aí sai a massa, aí imprensa, e eles vai torcendo aquilo. Quando a massa tava
sequinha, nós chegava e colocava fogo, aí nós ia mexer a mão. A quintura daquilo vem tudo
no seu rosto, aquela quintura da massa e num pode descansar a mão, não! Porque, se
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descansar, amarela, né? Queima. Trata-se de um trabalho artesanal, pesado e muitas vezes
dolorido, como a própria Dona Luruca coloca. As altas temperaturas chegavam a queimar a
pele de quem fazia a torra, uma colherzinha assim oh, ia mexendo de mão. Ela conta com pesar
que esse ofício não existe mais na região por causa da falta de chuva que faz com que as
plantações não sejam bem sucedidas. Quando planta a manaíba e ela tá começando a nascer,
tinha que dar aquela chuva, o sol monta e mata, não prospera.

Dona Luruca conta que seu marido também era artesão, fazia chapéus de couro – elemento
característico da vestimenta dos moradores de comunidades rurais. Ele era chapeleiro e eu
costurava o chapéu. Fazia melhor que homem. Nós dois aprontava dúzia e meia de chapéu
toda semana. Ele levava os chapéus pra vender e eu levava os carqueiro pra ajudar ele a
comprar as coisas pra dar os filhos, que os filhos era muito. Mas com o falecimento do marido,
Dona Luruca narra períodos de muita dificuldade, pobreza e trabalho duro. Já trabalhei, lutei
demais. Trabalhei pior que homem pra criar dez filhos e hoje em dia, num tem essa mãe que
nem eu. Graças a Deus criei dez filhos sem pai aqui dentro desse lugar. O amor de pai que
eles teve foi eu. Fui o pai e a mãe. Nesse momento, a voz inicialmente endurecida e desconfiada
se enche de orgulho e de paz.

Embora esteja gozando de boa saúde, ela se entristece ao falar da sua condição atual. Uai... o
que uma pessoa de setenta e tantos anos faz? Eu lavo uma vasilha aí na pia, né? Limpar a casa,
eu já não guento mais... Mas Deus nos deu uma ajuda, né? A aposentadoria. Mas o que eu
queria mesmo era fazer o meu serviço, mexer com o barro. Com um certo saudosismo, Dona
Luruca fala dessa arte de trabalhar o/com o barro... não apenas lamentando pela impossibilidade
de novamente exercer essa atividade em função de sua idade, mas por reconhecer que é uma
profissão que está em desuso. O que nós fazia acabou, hoje num tem mais. Sobre continuar com
o cultivo de hortas, algo que já fez muito ao longo de sua vida, Dona Luruca argumenta que,
para isso, é preciso ter um bom terreno e que os custos para a irrigação são altos.

Sobre a sua rotina, Dona Luruca conta que todos os dias se levanta bem cedo, por volta de 4
horas da manhã e vai fazer caminhada em seu quintal. Quando dá 4 horas eu tô andando aqui
no fundo da minha casa. Pegando com Deus, agradecendo Jesus pelos dias de vida que eu criei
dez filhos, pelos dia que Jesus tem me dado e ainda vai mim dar até no dia que Deus ver que
eu mereço! Dona Luruca tem uma pessoa da família que a ajuda fazendo a comida e arrumando
a casa. Eu lavo as vasilha depois que nós almoçou para mim não ficar sem fazer nada, mexer
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o corpo, né? Praticamente em todas as tardes, Dona Luruca visita Dona Nilza, sua amiga e
vizinha de comunidade, com quem passa longas horas conversando. O dia que eu não vou na
casa dela, eu sinto falta e, se eu não for, ela sente falta também, é assim.

Dona Luruca conta que sua casa atual é muito boa, dá pra viver bem, né? A casa anterior, onde
ficou viúva, era muito simples, feita de barro. Ela conta que essa casa foi um fazendeiro que
deu pra ela... ele era o pai da pobreza aqui dentro dessa comunidade. Isso quase tudo aqui era
dele. Já tem mais de sessenta anos que eu moro aqui ó, nesse lugarzinho aqui. Oh minha filha,
daqui eu não saio, não.

Quando chegamos na comunidade de Baixa Quente me chamou a atenção a diferença


em relação às demais comunidades que já havia visitado. Há algumas ruas calçadas e
as casas têm acabamentos melhores. Há uma infraestrutura, em geral, melhor. As
agentes de saúde relataram que, por ser próxima da cidade, os aposentados investem
em melhorias em suas casas aqui, ao contrário dos que vivem em comunidades mais
distantes, que optaram por investir seu dinheiro na aquisição de um imóvel na cidade.
(Anotações do diário de bordo, 06/09/17).

A aparência externa da casa de Dona Luruca é muito bonita. Uma bela varanda garante uma
sombra gostosa e bem-vinda para uma região em que o sol é tão quente. Arrumei tudo com o
meu dinheirinho depositado. Adentrando a casa, as fotos da família na parede são
acompanhadas de imagens religiosas, fé que acompanha toda a narrativa dessa forte senhora.
Ela conta que todos os dias, um de seus filhos que mora atrás de sua casa, sai ainda de
madrugada para trabalhar de moto. Eu conheço a zoeira da moto dele, eu levanto para ver meu
filho sair. Ele reclama: ‘Meu Deus! A véia já levantou!’, eu falo: ‘Oh meu filho, Jesus te
acompanha e te livra de todo mal, que Ele te livra seu corpo dos inimigos e dos mal passeio’.

Sobre viver na Baixa Quente, Dona Luruca fala com satisfação: Sô feliz aqui com todo mundo.
Meus filhos e com minhas amiga.
49

Seu Antônio da Velha

Fonte: Fabrício Pereira, 2017.

A base de eu acordar e levantar é 5 h... Mas pra quê 5 h?É porque eu tô habituado a assistir
o jornal... Ainda mais com essas coisa dos políticos que tá tendo no nosso Brasil, eu gosto de
tá sempre sabendo de alguma coisa que tá passando por lá.
50

Seu Antônio, conhecido como Antônio da Velha, tem 67 anos e vive em Santa Rita de Cássia,
comunidade localizada cerca de 40 km de Araçuaí. Conhecemos e conversamos com o Seu
Antônio na sede do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Araçuaí, onde ocupa um dos cargos
de direção. Posteriormente tivemos a oportunidade de conhecer sua comunidade.

Hoje foi a minha primeira visita ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Araçuaí.
Conheci o Seu Antônio, um dos diretores. Muito atencioso, disponibilizou-se a ajudar
na pesquisa como for possível. Nesse primeiro momento de conversa, Seu Antônio
me disse que todos os diretores são, por regra, trabalhadores rurais e que cada
um pertence a uma comunidade diferente. Quando perguntei se ele gostaria de
participar narrando sua história de vida, ele prontamente disse que sim e que também
poderá nos acompanhar em visitas à sua comunidade. As primeiras impressões são
de que o Seu Antônio é um homem simples, humilde e muito politizado
(Anotações do diário de bordo, 27/07/2017).

Lembrando-se de sua infância, Seu Antônio relata uma história permeada por muitas
dificuldades, as quais se iniciaram com o episódio de abandono do pai. Nós era treze irmãos,
eu sou o caçula. Ele, na época, como é que eu vou falar... Ele se envolveu com uma mulher
particular e acabou abandonando nós e acompanhando essa senhora. Desses trezes, dez
Deus tinha levado, só ficou três irmão. Ficou eu de homem e mais duas mulher. Embora fosse
o mais jovem, a voz embargada demonstra a responsabilidade assumida ainda muito
prematuramente de cuidar de sua mãe. Então as menina saiu pra trabalhar, foi pra fora e eu
fiquei mais ela (mãe). Aí aconteceu que a gente ficou, não tinha condições pra nada, morando
de favor na casa dos outros, ela, uma senhora de idade, e eu pequeno com a idade de 7 anos.

Seu Antônio diz que por vários anos essa foi a realidade dele e de sua mãe: viviam mudando
de um lugar para outro, sempre contando com a boa vontade e solidariedade de seus vizinhos.
Faltava tudo para ele e para sua mãe, inclusive o alimento do dia a dia. Nós passava uma semana
sem acender um fogo no fogão, que não tinha nada para cozinhar. Pra puder escapar, eu comia
semente de quiabo, eu comia essas vegetação que vem do mato, a chananga, mata dos
vaqueiro, olho de mutanga, folha de batata, umbigo de banana. Eu mais mãe foi criado dessa
forma.

Ele conta emocionado um episódio em que uma família, vendo o sofrimento e a necessidade
que passava junto de sua mãe, ofereceu a ele abrigo e comida em troca de trabalho. Mas ele se
orgulha de ter rejeitado a proposta, uma vez que aceitá-la significaria deixar sua mãe sozinha
naquela condição miserável. Aonde que mãe escapar, eu vou escapar junto com ela. Aonde que
ela morrer, vou morrer junto com ela. Num saio, não! Assim, após rejeitar a proposta, ele e sua
51

mãe foram sobrevivendo, morando de favor. Aí a gente foi vivendo desse jeito conforme Deus
determinou para nós e, quando eu cheguei na idade de 18 anos por aí, foi aí que eu comecei
trabalhando pra mim e mais ela e Deus ajudou que foi pagando as dívidas, devia muito.

Mais tarde Seu Antônio se casou e teve 9 filhos, mas sempre cuidando de sua mãe. Carregava
ela (mãe) num carrinho de mão, não tinha transporte na zona rural, ela adoecia, eu não
tinha transporte, trazia no carrinho de mão. Tinha um ponto que a gente pegava esses carro
particular, num tinha ônibus, tinha alguém por ali que tinha esses carro particular, então até
onde pegava esse carro, eu ia de carrinho de mão. Forrava uma coberta no carrinho, deitava
ela e transportava ela nesse carrinho de mão. E aí quando eu passava, eles gritavam, o
cachorro latia, o carrinho fazia um barulho: “Quem tá passando?”, “É o Antônio com a véia”,
“Quem tá passando?”, “É o Antônio com a véia”. A véia era querida, era minha mãe. Então
até hoje eu tenho o apelido, Antônio da Véia. A narrativa emocionada de Seu Antônio revela o
amor e o cuidado traduzidos nesse gesto repetido à exaustão, que lhe fez ser reconhecido pelos
outros e do qual ele se orgulha imensamente. Anos depois nessa luta de idas e vindas da cidade,
sua mãe faleceu.

Seu Antônio revela que a propriedade que tem hoje foi fruto de um processo de tomada de posse
de terra devoluta. A pessoa chega, que nem eu cheguei lá, fiz a casa e comecei a produzir, a
plantar abacaxi, aí eles me deu o direito como se eu já morava ali há tantos anos e tinha tirado
o sustento dali, então eu tinha direito na posse. Hoje é registrada, tem título, tem tudo. Mas
mesmo com a conquista desse pedaço de terra, por muito tempo Seu Antônio teve que trabalhar
para outras pessoas e relata, com muito carinho e reconhecimento, a importância de ter tido sua
esposa trabalhando ao seu lado. Tinha um lugar que eu trabalhava, a terra não era minha, era
de um senhor. As coisas já era mais difícil do que tá agora que as criança era mais pequena e
eu trabalhava longe, né e ela... até a comida ela tinha que levar pra mim. [...] Ela fazia a
comida, muitas vezes ela deixava um menino com a mãe, e aqueles mais pequeno ela punha
do lado e a vazia de comida na cabeça e ia pra roça levar. Chagava lá nós... eu tenho até
vergonha de falar, num tinha negócio de uma banheira, a gente num tinha rede, a gente
colocava dentro de uma gamela... [...] Colocava, forrava pano e botava lá numa sombra e
deitava ele lá dentro dessa gamela e ela ia me ajudar a capinar, me ajudar a plantar.
Trabalhava o dia todo, de manhã até a tarde. De tarde ela panhava ele e punha de um lado,
um fecho de lenha amarrado na cabeça e ia embora pra casa. Nossa vida foi desse jeito.
52

Seu Antônio conta que desde novo contribuiu com o STR e que acreditava que era algo
importante para que conquistassem direitos e melhores condições de vida. Para além do trabalho
na roça e do período em que teve que migrar para garantir o sustento da família, passou a
dedicar, desde 1996, parte do seu tempo ao trabalho no sindicato. Sobre a migração, ele conta:
Chegou um tempo em que eu tive que migrar né, eu trabalhei no corte de cana, eu tava até
no Mato Grosso do Sul para poder criar minha família. [...] Quando foi em 96, minha
produção tava caindo muito e envelhecendo, cansando e tudo; minha produção tava caindo.
Tinha caído. Aí eu pensei: ‘Gente, eu não vou conseguir mais manter minha família porque a
minha produção tá caindo muito. Eu tenho que caçar uma outra coisa pra mim trabalhar’.
Retornando a Araçuaí e considerando sua participação e envolvimento por todo esse tempo com
o Sindicato, ele participou das eleições daquele ano e iniciou o seu trabalho na instituição como
parte do Conselho Fiscal. Seu Antônio foi Secretário, Tesoureiro e depois se tornou Diretor,
cargo que ocupa atualmente. Mas ele deixa claro que, mesmo assumindo as funções no
sindicato, ele permanece sendo, prioritariamente, um trabalhador rural.

Sobre o envelhecimento, Seu Antônio fala com muita tranquilidade e parte disso parece ser
proveniente do quão unida é a sua família e a comunidade em que vive. Olha, na minha
comunidade é assim, aquelas pessoa quando eles tá dentro de casa, aguentando trabalhar, tudo
ali, fica os filhos junto. Quando eles fica velho e não tem mais condições, sempre tem um
filho que acompanha, os filhos [...] a gente vê o empenho da comunidade que, quando tem
uma pessoa que precisa, que adoece, que de uma forma ou de outra precisa de uma ajuda, a
comunidade toda se põe a ajudar, né. Graças a Deus somos uma comunidade unida, né. Essa
união se reflete nas constantes reuniões de domingo para rezar e para discutir alguma questão
que acomete a comunidade como um todo. Essas reuniões acontecem em um espaço
comunitário, onde já funcionou uma escola local.

Com o trabalho no sindicato, Seu Antônio espera continuar na luta pelos direitos dos
trabalhadores rurais. Assim, Graças a Deus, a gente vai dando certo, vai levando...
53

Dona Lia

Fonte: Jeane Doneiro, 2017.

Toda vida eu trabalhei no campo... Agora eu só tô trabalhando dentro de casa porque, como
se diz, num tem quem faz pra mim... O jeito é d’eu fazer. A coragem até que tem hora que
num dá muito, não. A luta é demais, né?
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No primeiro dia de visitas às comunidades rurais, tínhamos um primeiro ponto de parada, a casa
de Dona Lia, nossa também primeira participante da pesquisa.

Estamos chegando à casa de Dona Lia que está nos aguardando. Estamos muito
ansiosos para saber como será a receptividade e como se dará a dinâmica de nossa
conversa. Por enquanto, a estrada em condições ruins me faz pensar (e imaginar)
como é a vida cotidiana dessas pessoas (Anotações do diário de bordo, 24/08/17).

Dona Lia e Seu João Franca nos receberam como se nos conhecêssemos há muito
tempo. Acredito que a presença de Ivani, membro da comunidade, tenha
contribuído e muito para esse clima tão amistoso. Sentamo-nos na sala e logo
comecei a explicar o motivo de nossa visita, obtive a autorização e o consentimento
deles e dali mesmo iniciamos uma longa e deliciosa conversa (Anotações do diário de
bordo, 24/08/17).

Estacionamos a caminhonete em frente a uma cancela para então dali chegar a pé à casa de
Dona Lia, mais ao alto. Caminhamos por um trecho íngreme para chegar até a porta da casa:
Quando chove, ali embaixo não dá pra passar, não, só no caminho de cimento, avisaram.
Avistamos uma casa simples e bem cuidada. Ao adentrar, as fotos de família e as imagens
religiosas distribuídas pela parede criam um ambiente muito acolhedor.

Dona Lia tem 78 anos e é mãe de 13 filhos, casou-se aos seus 18 anos com o Seu João Franca
(83 anos) e desde 1961 eles vivem nessa mesma casa. Das suas 13 gestações, Dona Lia conta
que apenas 8 sobreviveram. Tudo foi parto normal, nunca fiz cesárea. Dona Lia narra uma
infância difícil, em que ficou órfã de mãe aos 11 anos de idade, quando teve que viver com o
pai e, posteriormente, com sua nova esposa. Ela conta que não gostava de viver lá e que desde
nova se dedicou aos trabalhos da casa e da roça. Eu ficava lá o dia todo trabalhando, sempre
trabalhava na roça, plantava, capinava e eu lavava roupa, aí tudo eu arrumava. Nos
domingos, depois de arrumar a cozinha após o almoço, ela costumava visitar a casa de suas
cunhadas, onde mais tarde conheceu o Seu João Franca e se casou. Eu casei e fui lutar com a
vida, né?

Dona Lia relata que teve muitos problemas de saúde ao longo da vida, inclusive um episódio
de sarampo após o casamento que colocou a sua vida em risco. Outros eventos, como a
contaminação por esquistossomose, dela e do Seu João Franca, também sensibilizaram sua
saúde. Aí a gente tratou, eu fiquei uns 5 anos sem trabalhar na roça, muito doente, muito
doente. Depois eu melhorei, continuei a vida. E aí até que os meninos saíram daqui, eu
trabalhava, depois que os menino saiu, eu falei assim: ‘Oh, eu num vou trabalhar na roça mais
não. Vou ficar em casa só’. Porque agora não tem quem cuida, né? Antes elas cuidava da casa.
55

Aí botava uma rocinha e eu ajudava plantar, mas num tem gado mais, a idade já num tá
permitindo essas coisas mais não. Permite a gente ficar mais sossegado. Mas hoje em dia ela
diz gozar de boa saúde, o que fica evidente na sua disposição e no cuidado com o Seu João.

Boa parte da vida de Dona Lia e de Seu João foi construída a partir do cultivo do fumo. Eu
ajudava minha filha, nossa! Era dia e noite, ia ainda pela madrugada. É um trabalho terrível
viu? Demora demais. Sol e Chuva. Todos da família ajudavam, inclusive os filhos. É a rotina
da vida, né? Dona Lia conta em detalhes o processo de produção do fumo, um processo longo
e desgastante... Tinha dia que nós ficava até meia noite sem dormir estalando fumo. A gente
vivia daquilo ali. Aí fazia isso e vendia. A sobrevivência era essa... Porque do dinheiro dele é
que tirava a roupa e o resto do que faltava para comer. Aí depois que nós aposentou, mexeu
com isso mais não. Ainda hoje muitas famílias sobrevivem da produção e venda do fumo, o que
faz com que a comunidade seja reconhecida por esse produto.

Mesmo aposentada, o dia de Dona Lia começa às 5 h da manhã. Ah, eu acordo todo dia cedo.
Faço café, tomo, encho minha barriga e agora eu vou cuidar de galinha, das plantas, fazer
uma coisa ou outra... Às vezes tem dia que tem que lavar roupa, mais tarde eu faço o almoço,
cuido da casa, outro dia já deixo de mão. Vou levando a vida assim. Sobre continuar no trabalho
da roça, Dona Lia coloca que, além do fato de os filhos não estarem mais em casa para ajudar,
ainda tem o problema da escassez de água na região. A água é pouca. A nossa sobrevivência é
essas caixas de cisterna. Tem uma aqui e outra lá em cima. Aí quando vai chovendo, vai
amparando ela aqui e jogando lá para cima com a bomba, aí é que dá pra gente se virar.

Para ir para a cidade, Dona Lia usa o ônibus que faz a linha Tesouras-Araçuaí três vezes por
semana, cujo motorista é um de seus genros. Ah, eu vou assim só na hora que tem necessidade.
Quando ele não vai, eu subo aqui e pego um ônibus que vem das Neves e vou. Dona Lia conta
que o transporte é usado mesmo só para ir para a cidade, porque lá dentro de Tesouras eles
fazem tudo caminhando, mesmo com as subidas íngremes. A igreja é uns 30 minutos daqui
andando. Eu vou sempre que eu posso. Eu ia todo domingo, mas agora tem hora que eu falho,
até dois domingos sem ir... Agora com essa poeira, fica muito difícil pra gente. E aí quando
chega lá, os pé tá que faz até medo, porque, se passar um carro na estrada, a gente fica afogado
na poeira... Mas quando o tempo tá bom, eu vou.
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Sobre o envelhecimento, Dona Lia diz: Eu envelheci muito porque eu sou branca! Gente branca
envelhece demais. Ela completa argumentando que foi percebendo o envelhecimento no dia a
dia, principalmente nos momentos de lapsos de memória. Só sinto diferença assim na memória
que eu sei. Eu tô esquecida demais... Mas a idade chega sem a gente perceber muito. Mas
Dona Lia fala desse envelhecimento com tranquilidade e se mostra agradecida por conseguir
fazer as coisas que gosta. Eu gosto muito de caminhar. Eu ainda tenho muito coragem de
caminhar ainda.

Dona Lia diz que gostaria de se mudar para Belo Horizonte, mas que ainda não foi porque Seu
João Franca se recusa a sair da região. Outro impeditivo para ela é o fato de cuidar de uma de
suas netas durante três dias na semana. Dona Lia diz gostar muito da cidade e que costumava
passear por lá muitas vezes no ano, entretanto, tem preferido não fazer viagens longas com o
marido. Porque ele chega no ponto, ele quer descer do ônibus e eu tenho medo. Ele liga uma
água e não desliga; ele acende uma luz e não desliga; eu tenho que ficar atrás. Ele tá forte
demais pra trabalhar, mas a cabeça ele esquece demais. Dona Lia controla o horário dos
remédios para garantir que ele faça o tratamento correto. Mas, quando perguntada se ela gostaria
de viver em Araçuaí, ela diz que não: Faz calor demais. Pra ir para Araçuaí, eu acho que não
vou nunca.

Além de arrumar a casa e cuidar da horta e das galinhas diariamente ao lado do Seu João, Dona
Lia também se dedica ao artesanato. Eu gosto muito. Depois que as menina saiu, eu fazia roupa,
eu que costurava pra família... Depois que elas saíram de casa, eu fiquei assim... Depois eu
inventei fazer colcha de retalho. Fiz várias colchas de retalho para mim e para os outros,
depois eu peguei fazer uns tapetes. [...] Depois eu enjoei. Quando foi ano passado eu fiz umas
bolsa de... Coisa que um menino meu trabalha lá, ele é tapeceiro, mandava os retalho que
sobrava pra mim, aí eu fazia as bolsas. Agora eu tô parada. Dona Lia mostra com orgulho suas
peças, ainda que diga a todo o momento que não seria objetivo vendê-las. Acho que isso não
dá renda, não. O artesanato surge então na vida de Dona Lia como distração e para amenizar
as saudades de seus filhos que foram aos poucos saindo de casa para estudar ou trabalhar.

Uma das razões para Dona Lia querer se mudar da região é o medo da violência. O que tá difícil
aqui é que a gente tem medo. Medo de assaltante que vem nas casas. Meu Deus! Já teve
vários aqui nessas Tesouras! Ali embaixo mesmo chegou lá, amarrou um senhor, a mulher
dele, amordaçou, roubou tudo que eles tinham dentro de casa e bateu nele ainda. A gente tem
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medo é dessas coisas. Mas ela diz que, mesmo assim, Seu João Franca prefere ficar na sua casa.
Não vai de jeito nenhum! Diz que num gosta de cidade, não. Por outro lado, um fator que
ameniza esse medo é o fato da comunidade ser unida e se ajudar. Aqui todo mundo conhece
todo mundo. É que o povo tem amizade, moça! Assim vão levando a vida Dona Lia e Seu
João... Num posso pensar no dia de amanhã que amanhã só Deus tem direito nele. O que
Deus quiser, seja feito.
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Capítulo 1

Tateando as primeiras linhas


de uma cartografia
59

1. Tateando as primeiras linhas de uma cartografia

Temos como objetivo, nesse capítulo, apresentar os caminhos percorridos para a construção
desta tese. Para além dos aspectos referentes ao delineamento do campo-tema da pesquisa, serão
apresentados os fundamentos e implicações da opção por realizar uma cartografia.

1.1 A construção de um mapa de pesquisa

Pesquisa é processo. Processo de pensar, delimitar, experimentar. Como colocam Corrêa e


Medrado (2016), esse caráter processual se revela ainda nos primeiros passos para a construção
e delimitação do que será a pesquisa, um recorte sempre necessário. Entretanto, em grande parte
das pesquisas esse percurso inicial não é explicitado em função de um temor de que, ao
evidenciar as escolhas e afetações que lhes deram origem, supostamente haveria prejuízos no
que tange à cientificidade. Como refutam os autores, "trata-se de uma posição ética, política e
conceitual de advogar em favor da inclusão, em primeiro plano, das afetações que se
configuram no desenvolvimento de uma pesquisa, em geral relegadas à dedicatória, epígrafe e
notas de rodapé" (idem, p. 170).

Seguimos cientes da impossibilidade de separar o processo da pesquisa das experiências do


pesquisador, enquanto sujeito que, da mesma forma, carrega consigo marcas e subjetividades.
Spink (2003) argumenta que o campo de pesquisa não é algo visitado por um pesquisador que,
após realizar seu trabalho, dele se retira, mas consiste em algo fortemente produzido na
interação. Nesse sentido, assumimos aqui "[...] o caráter experimental da pesquisa, não como
um isolamento de um objeto em laboratório, mas como experimentação, um processo aberto e
imprevisível que se desdobra em inesgotáveis inquietações e problemas" (CORRÊA;
MEDRADO, 2016, p. 151).

Kastrup (2007) nos convida a pensar a pesquisa a partir dos afetamentos dos quais ela surge e
se realiza. A autora apresenta quatro momentos (não lineares) de relação com o campo de
pesquisa, a saber: o rastreio, o toque, o pouso e o reconhecimento atento 12. Inspirados nessa

12
Essas são dimensões apresentadas por Kastrup (2007) no artigo “O funcionamento da atenção no trabalho do
cartógrafo”. A autora apresenta tais dimensões como quatro formas do cartógrafo se relacionar com o campo de
pesquisa: de um momento inicial mais aberto de exploração (rastreio), passando pelas primeiros afetamentos que
chamam a atenção (o toque), pela delimitação ainda que provisória do que será o campo de atuação do pesquisador
(pouso), até o momento em que o território é construído, acionando as múltiplas partes que o compõe
(reconhecimento atento). Nesse momento, minha proposta é apontar como foi esse processo em relação ao
60

proposta, apresentaremos, em seguida, como cada um desses momentos contribuiu para a


construção do que estamos chamando de mapa da pesquisa.

1.1.1 O rastreio: aproximações e inquietações

No final de 2015, tomei posse como professora efetiva do Instituto Federal de Minas Gerais -
IFNMG, na área da Administração. No momento da realização do concurso, tinha como
referência do norte de Minas a cidade de Montes Claros, a qual já havia visitado algumas vezes.
Fui nomeada para a cidade de Araçuaí, que se localiza a 329 km de MOC - como é
carinhosamente chamada pelos seus moradores. Com a bagagem nas costas me dirigi a Araçuaí
para tomar posse e realizar o sonho de ser docente em uma instituição de ensino federal,
extremamente feliz e animada não só pelo novo trabalho, mas também pela nova vida, nova
cidade, novos desafios. Pouco consegui saber sobre a cidade antes de lá chegar, apenas tinha a
certeza de que se tratava de uma cidade pequena, diferente da minha terra natal: Belo Horizonte.

Araçuaí é uma cidade com pouco mais de 37.000 habitantes, que se localiza no chamado médio
Vale do Jequitinhonha. Nas estradas que levam até a cidade chamam a atenção as características
típicas do cerrado: árvores de troncos retorcidos e distantes umas das outras, um clima seco e
quente (semiárido). Sobre o Vale do Jequitinhonha, povoava meu imaginário a ideia de uma
região marcada por amplas desigualdades sociais, pobreza e ausência de cobertura das políticas
públicas. De fato, parte desse imaginário encontrou eco na realidade, mas outras possibilidades
foram sendo apresentadas a mim. Com uma população de aproximadamente 720 mil habitantes
(IBGE, 2010) distribuídos em 51 municípios, O Vale tem como marca principal a miscigenação
proveniente da presença de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais
camponesas. Como bem colocam Fávero e Monteiro (2014, p. 8), para além da diversidade
cultural, observa-se também na região uma riqueza "[...] nas formas de ocupação do espaço e
usos dos elementos da natureza, assim como nas lógicas de produção e reprodução social
considerando as várias dimensões da vida".

Após a inserção na instituição e na comunidade de uma forma geral, iniciei o desenvolvimento


de um projeto de pesquisa que de alguma forma pudesse contribuir com a cidade e a região.
Optei por investigar um espaço que muito me chamou a atenção desde a minha chegada: o

território de pesquisa da tese. Para saber mais, ver: KASTRUP, V. O funcionamento da atenção do trabalho do
cartógrafo. Psicologia & Sociedade, 19, n. 1, p. 15-22.
61

mercado municipal e a feira livre. Trata-se de um dos principais atrativos da cidade de Araçuaí
e que abrange toda a microrregião: é o nosso cartão postal, dizem os moradores. O projeto,
iniciado no primeiro semestre de 2016, intitulou-se "Memórias e Identidades: um olhar
organizacional sobre o Mercado Municipal de Araçuaí" e objetivou compreender as dinâmicas
que marcam esse espaço de relações múltiplas. Os meses de observação e imersão no mercado
revelaram a riqueza das trocas que se dão naquele lugar, criado prioritariamente para a venda
de mercadorias pelos pequenos produtores rurais e artesões da região, mas que se mostra um
espaço de trocas, vivências culturais e sociais.

Tanto a experiência com a pesquisa do mercado quanto o contato diário com os estudantes do
IFNMG foram abrindo o meu olhar para um território para o qual até então eu não havia me
atentado: o universo rural. Sucessivas vezes esse universo foi me sendo apresentado - nas
histórias de alunos e de suas famílias, nos dias de aula inviabilizados pela ausência de estudantes
que não conseguiram chegar à instituição por causa da chuva que bloqueou as estradas, na vida
dos produtores que plantam e colhem cada produto que é ofertado no mercado e na feira. Essas
histórias ecoavam familiares e me remetiam as histórias de meu pai, hoje com 72 anos, que
viveu parte da infância e adolescência em uma área rural próxima à cidade de Divinópolis, em
Minas Gerais. Paradoxalmente, da mesma forma que as histórias e os relatos me traziam
surpresas e reflexões sobre as especificidades da vida nesse território (Como pode um aluno
não vir à aula porque choveu e não é possível passar pela estrada de terra? Como pode um
produtor rural, para vender seus produtos na feira de sábado, ter que sair a cavalo na sexta-feira
ainda à tarde?), havia uma certa familiaridade e empatia com aquele universo.

1.1.2 O toque: o encontro entre a velhice e o rural

Nesse ínterim, já como aluna do curso de Doutorado em Administração e com uma trajetória
de pesquisa sobre a velhice, esses universos foram se cruzando. O interesse pela velhice foi
despertado alguns anos antes, enquanto ainda era bolsista de iniciação científica. O
estranhamento pelo interesse nesses sujeitos esteve sempre presente e muitos foram os
questionamentos sobre o porquê da escolha de uma temática tão triste, “você é tão jovem!”. No
mestrado, eu me inseri em uma Instituição de Longa Permanência e busquei compreender quais
eram os sentidos subjetivos da velhice e como a instituição lidava (ou não) com essas
construções. Foi necessário falar de dependência, relações familiares e sociais e da morte. Foi
muito instigante identificar a nossa negação em relação a vários desses temas e o quanto isso
62

gera situações de exclusão e de abandono. O mergulho foi profundo e a única certeza era a de
que não me interessava ver os idosos como nicho de mercado, como talentos potenciais para
repensar a gestão de pessoas ou mesmo ainda como números que aterrorizam o sistema de saúde
e o previdenciário.

Se não pela grande admiração que sempre senti pelos velhos como histórias vivas - e como eu
tenho prazer em ouvi-las - muito me chamava a atenção o lugar ocupado pelos velhos em nossa
sociedade. Mais uma vez aqui atribuo essas afetações a meu pai, que por vezes acompanhei
sofrendo com esse não-lugar. Embora com uma capacidade de aceitação particular que hoje
reconheço claramente como uma postura sábia frente à vida, em vários momentos presenciei-o
lamentando que uma vida inteira de trabalho não teria sido suficiente para uma velhice com
dignidade. Nesse sentido, a velhice me mobiliza, me afeta e me inquieta. Não importa a minha
idade, não me amedronta a intensidade desse tema, sinto-me em casa.

No desenvolvimento do projeto de pesquisa no mercado municipal de Araçuaí, a velhice e o


rural tocaram-se e me tocaram de forma ainda mais intensa. Nas observações, entrevistas e
(re)construção da história da organização, a participação dos velhos foi fundamental. Foi em
longas conversas sentada em frente às barracas e pequenos armazéns que o conhecimento sobre
aquele espaço e seus habitantes foi ganhando cor e forma. São velhos que contam histórias, que
comercializam seus produtos e que vivem naquele espaço. Ainda que não presentes, são
lembrados pelos seus filhos e netos que hoje assumiram a comercialização dos produtos, em
grande parte cultivados em pequenas propriedades rurais da região. Esse encontro entre a
velhice e o rural passou a despertar cada vez mais o meu interesse e tornou-se, a partir de então,
o foco da investigação - ainda que de forma ampla e pouco delimitada.

1.1.3 O pouso: a abertura de um campo-tema

Já embebida pelas leituras pós-estruturalistas, o entendimento de que não se trata de Uma mas
de múltiplas velhices foi se tornando cada vez mais claro. Nesse momento, embora o interesse
de explorar essa multiplicidade já se fizesse presente, ainda não estava claramente delineado
qual seria o campo-tema dessa pesquisa. Como esclarecem Corrêa e Medrado (2016, p. 153),
esse campo-tema seria

[...] uma produção a partir de redes de sociabilidade e materialidade acionadas pelos


pesquisadores, de sorte que não é possível pensar num campo que possui determinado
63

assunto, mas num assunto (ou num conjunto deles) que constitui um dado campo a partir
das redes que aciona.

As vivências com os alunos, com a instituição e a experiência advinda da pesquisa no mercado


e na feira foram, paulatinamente, construindo sentidos. Quais velhices ou modos de existência
da velhice estão sendo experienciadas nesse espaço? Como é envelhecer nesse território? Dessa
forma foi-se constituindo um centro (ainda que móvel) acerca do qual a tese foi sendo
(re)pensada. Não seria também uma forma de contribuir para essa comunidade que tão bem me
acolheu?

Essa contribuição, no nosso entendimento, abarcaria, em meio a essas linhas e formas, entrar
na discussão sobre questões como a relação desses sujeitos com o território, as formas de
produção e trabalho e a atuação das políticas públicas a eles direcionadas. Dentro da
Administração e dos Estudos Organizacionais, a velhice ainda é uma temática pouco abordada
e, quando o é, fala-se de consumo, de estilo de vida e dos excessivos custos aos cofres públicos.
Parece-nos relevante ampliar essas discussões, lançando olhares sobre o que de fato afeta e
permeia a construção cotidiana da vida desses sujeitos. Nesse sentido, retomamos o interesse
teórico-epistemológico de abarcar a diferença, recusando a forma homogeneizada de se pensar
e agir sobre a velhice.

Se estou falando de uma velhice socialmente construída, de um vir a ser (devir) que se dá em
meio a vários agenciamentos (DELEUZE; GUATTARI, 1995a), a esquematização dessa rede
foi se mostrando um caminho necessário. Buscando fundamentos para essa abordagem pautada
na complexidade, entendi que somente seria possível prosseguir empreendendo uma leitura
ampla e aberta da realidade, o que vai ao encontro da perspectiva cartográfica de mapeamento
das linhas, forças e intensidades. A cartografia é capaz de identificar o singular, buscando
mapear o transitório, o local, o campo de forças que acompanha determinada situação, de modo
a abarcar, ainda que provisoriamente, essa complexidade que ali se faz presente e atuante
(MAIRESSE, 2003). Cartografar a velhice marcada pelo universo rural passou a ser então uma
possibilidade de campo-tema para a pesquisa.

A partir desse momento em que forjei tal campo-tema, foi possível revisitar o território
lançando olhares mais focados, identificando que movimentos e questões poderiam ser
elaboradas.
64

1.1.4 O reconhecimento atento: definições transitórias e experimentações

Revisitando o campo-tema da pesquisa, comecei a definir, ainda que de forma transitória, os


caminhos pelos quais especificamente iria submergir. Como coloquei anteriormente, optei por
compreender essa realidade como um rizoma (DELEUZE; GUATTARI, 1995a), permeado por
linhas, sejam elas duras, flexíveis ou linhas de fuga. Essas linhas se movimentam, por vezes
compondo estratos e segmentos, por vezes ensejando espaços de resistência e ressignificação.
O que me propus a fazer foi, por conseguinte, lançar-me nesse rastreamento com alguma
direção, mas de forma que prevalecesse a experimentação e a construção processual.

Para isso, atentei-me para o exercício do uso da atenção sensível, ao contrário da atitude já
naturalizada de selecionar informações do objeto de estudo a partir de critérios objetivos. É
importante ressaltar que não se trata, por outro lado, de um relativismo ou subjetivismo, uma
vez que a base está atrelada ao plano da experiência e a realização de práticas concretas
(KASTRUP, 2007). Essa postura me permitiu reconhecer e delimitar esse campo de
experimentação, cujo principal cenário revelou-se ser o cotidiano. Spink (2007) defende, dentro
dessa perspectiva, que, ao invés de pesquisar o cotidiano, pesquisamos no cotidiano. Tal sutil
distinção demarca a diferença entre considerar o objeto como algo externo e observável,
passível de uma descrição detalhada, e a investigação de algo do qual somos partícipes, pois,
"fazemos parte do fluxo de ações; somos parte dessa comunidade e compartimos de normas e
expectativas que nos permitem pressupor uma compreensão compartilhada dessas interações"
(SPINK, 2007, p. 7).

Nesse sentido, optei por pesquisar no cotidiano capturando narrativas que de certa forma
pudessem revelar linhas, forças e formas inscritas naquele campo-tema. Nesse sentido,
encontramos em Clandinin e Connely (2015) o sentido de pesquisa narrativa tal qual me
apropriei, a saber, a compreensão de que ela se presta à capturar as experiências, sendo esse o
fenômeno a ser investigado. Para os autores, as pesquisas narrativas têm como traços
fundamentais a temporalidade, a sociabilidade e o lugar. Essa perspectiva tridimensional, a qual
inclui justamente compreender o fenômeno em relação ao presente, passado e futuro; a
compreensão contextual que envolve as condições de vida dos sujeitos envolvidos e, por fim, a
identificação dos limites espaciais onde o fenômeno acontece. Tal perspectiva contribui,
portanto, para a tentativa de aproximação de um determinado fenômeno marcado pela
complexidade.
65

Mas que narrativas iria recolher? Nesses momentos de decisões provisórias, defini apenas o
óbvio: sujeitos velhos que vivem no rural serão os principais narradores. Utilizei o mercado
municipal e a feira como ponto de partida, mas a atenção sensível bem como o próprio
movimento da pesquisa no cotidiano foram abrindo outros caminhos.

1.1.5 O mapa da pesquisa

O projeto de pesquisa realizado no mercado municipal e na feira de Araçuaí evidenciou


questões relevantes como a importância do rural para a sobrevivência do urbano em diferentes
sentidos, tanto em termos de abastecimento quanto de consumo. De acordo com a prefeitura da
cidade, a feira foi constituída para a venda da produção dos trabalhadores rurais e artesões da
região. Nela uma diversidade de produtos é vendida: verduras, frutas, temperos, carnes, dentre
outros. Os vendedores não se restringem aos pequenos produtores rurais, mas eles representam
o foco principal dessa organização. Ao longo da pesquisa, os feirantes foram entrevistados e a
tradição foi um importante aspecto identificado: várias barracas são hoje comandadas por
pessoas que herdaram o espaço e a atividade de pais e avós. Alguns velhos ainda permanecem
no mercado, vendendo seus produtos; outros deixaram de ir, mas suas histórias em algum
momento se cruzam com a desse espaço singular.

Inicialmente me propus a experimentar o campo-tema da pesquisa nesse espaço, deixando-me


afetar pelas relações e sujeitos que o compõem. Nesse momento, durante os primeiros dias de
produção de dados, foram feitas sucessivas visitas ao mercado e à feira, com o intuito de
conhecer, conversar e explorar. Tendo em mãos um diário de bordo (MEDRADO; SPINK;
MÉLLO, 2014), tudo foi devidamente registrado de modo a, posteriormente, contribuir para a
construção/visualização do rizoma da velhice e trabalho rurais no médio Vale do Jequitinhonha.

Como disse ainda na introdução, paralelo a essas visitas de imersão, segui mapeando outros
atores sociais que poderiam, de alguma forma, se inserir significativamente nessa rede
complexa, começando pelo poder público. Realizei entrevistas com representantes da prefeitura
e de órgãos que compõem as redes municipais de saúde e assistência social (Atenção Básica
Municipal, Unidades Básicas de Saúde, Centro de Referência de Assistência Social e Centro de
Referência Especializado de Assistência Social). Em cada uma das entrevistas, outros atores
eram citados como relevantes dentro do campo-tema, e assim novas conversas foram sendo
agendadas.
66

Ainda na entrevista com representantes da prefeitura, um ator social chamou bastante atenção
pela sua relação direta com a proposta de pesquisa apresentada: o sindicato dos trabalhadores
rurais. A partir dessa sinalização, fiz a visita ao sindicato e outras portas se abriram
especialmente no que se refere aos sujeitos velhos. Nas várias visitas ao sindicato e nas
participações em eventos que diziam respeito ao universo dos trabalhadores rurais (Reunião do
Conselho da APA do Lagoão; I Conversa ao Pé do Tamboril), outros atores atuantes nesse
universo foram sendo identificados: Ação Social Santo Antônio, Associar e Cáritas Diocesana.

Em um processo de bola de neve, os velhos foram sendo indicados, seja por membros do
sindicato, que são também trabalhadores rurais, seja por profissionais "da ponta" dos órgãos
municipais, assim como também por membros das instituições do terceiro setor. As indicações
desses sujeitos se davam após a explicação sobre os interesses da pesquisa em compreender a
velhice rural e o trabalho na região. A única orientação é que fossem velhos trabalhadores rurais
que vendem ou que em algum momento de sua vida venderam seus produtos no mercado
municipal e na feira de Araçuaí. Essas indicações, que por vezes se desdobraram em
acompanhamento nas visitas às casas desses sujeitos, mostraram-se fundamentais para a
realização da investigação.

A experiência de coletar as narrativas dos velhos foi intensa e repleta de afetamentos, os quais
certamente estarão presentes nos próximos capítulos dessa tese. Por enquanto, cabe aqui
destacar os desafios dentro da perspectiva da produção dos dados. Os trechos do diário de bordo
ilustram alguns desses desafios que envolveram, por exemplo, o deslocamento até as
comunidades.

Saímos do instituto às 7 h da manhã rumo à comunidade das Tesouras. Fomos eu,


Fabrício, Jeane, Ivani e Cisco. A expectativa é muito grande, de como serão as
conversas e principalmente quanto à estrada - as notícias são de uma estrada em
condições muito ruins. A primeira casa, de Dona Lia e Seu João Branco, está a 44 km
de Araçuaí. A estrada tem apenas 13 km de asfalto, o restante (31 km) é de terra. A
estrada é precária, é muita poeira, terra fofa. Carros pequenos passam com muita
dificuldade. Em alguns trechos apenas um veículo por vez, ou seja, se encontrarmos
com o ônibus escolar, teremos que retornar de ré. Estamos em uma caminhonete 4x4
e mesmo assim, em alguns trechos, sentimos o veículo "patinando". O motorista Cisco
nos avisa: Se chover, não tem como passar. As paisagens, no mês de agosto, são de
uma seca árdua. Muita terra e pouquíssimo verde. A falta de água é evidente
(Anotações do diário de bordo, 24/08/17).

Estamos hoje em um carro pequeno alugado. As pedras batem na parte inferior do


carro, e as fissuras na estrada de terra dão a impressão de que o carro vai se desmontar.
Não há sinalização e todos os caminhos parecem iguais. Estamos apreensivos cada
67

vez que uma moto aparece, as notícias de assaltos nas estradas têm sido frequentes
(Anotações do diário de bordo, 27/08/17).

Hoje seguimos para a comunidade de Gravatá de Cima, Córrego da Velha do Meio e


de Cima. A paisagem me parece ainda mais seca. Estamos no caminho e já tivemos
que retornar de ré duas vezes porque em alguns trechos passa apenas um veículo por
vez. Em alguns trechos, parece que não vamos conseguir passar, nem mesmo de
caminhonete. Me pergunto como os moradores dessa comunidade fazem
cotidianamente para se locomoverem (Anotações do diário de bordo, 31/08/17).

A partir desse processo orgânico de produção de dados, o seguinte mapa da pesquisa se


configurou.

Figura 1 - Mapa da pesquisa

Fonte: Elaborado pela autora.

Com o mapa acima, busquei representar a constituição do território cartografado, que se deu
dentro da perspectiva da complexidade com múltiplos atores, sujeitos e relações. Apenas para
fins didáticos e para identificação na análise dividirei as narrativas em três grupos: narrativas
do poder público (prefeitura, órgãos da saúde e da assistência social), narrativas de instituições
da sociedade civil e religiosas (sindicato, instituições religiosas e da sociedade civil) e narrativas
68

dos participantes (histórias de velhos). O quadro abaixo traz o panorama geral das narrativas
recolhidas.

Quadro 1 - Narrativas produzidas na pesquisa


Grupo Subgrupo Especificação
Gestão Prefeitura
Coordenação
CRAS 1
Assistência Social
CRAS 2
CREAS
Poder Público Coordenação da
Assistência Básica de
Saúde Saúde
Coordenação PSF 1
Coordenação PSF2
Patrimônio Municipal Dostoievsky Brasil
Diretoria 1
Sindicato dos Trabalhadores Rurais
Diretoria 2
Instituições e da Ação Social Coordenação
Sociedade Civil Cáritas Diocesana Coordenação
Associar Coordenação
AMEJE Gestão
Comunidade de Tesouras de Cima Dona Lia
Comunidade de Tesouras de Cima Seu João Franca
Comunidade de Tesouras de Cima Dona Marlene
Comunidade de Tesouras de Cima Seu Emílio
Comunidade de Tesouras de Cima Dona Isaura
Comunidade de Tesouras de Cima Seu Zezé das Tesouras
Comunidade Gravatá de Cima Dona Santa
Velhos Comunidade Gravatá de Cima Seu Erotides
Comunidade Córrego da Velha do Meio Seu Milton Granja
Comunidade Córrego da Velha do Meio Dona Íris
Comunidade Baixa Quente Dona Luruca
Comunidade de Setúbal Seu Arlindo
Comunidade de Setúbal Seu Wilson
Comunidade Santa Rita de Cássia Seu Antônio da Velha
Comunidade Barra do Gravatá Seu Sebastião
Fonte: Elaborado pela autora.

De um modo geral, o material coletado foi de 30 narrativas que se dividem entre os grupos
apresentados. Sobre as histórias de velhos que acabei de apresentar, essas foram selecionadas
entre os sujeitos com os quais conversei de modo que: representassem as comunidades com as
quais tive um contato mais intenso; constituíssem um grupo de homens e mulheres; sujeitos que
69

autorizaram (mais que isso, desejaram) coconstruir sua história e apresentá-la em sua
integralidade. Foram eles13:

Quadro 2 - Velhos das narrativas biográficas


Nome Idade Comunidade Atividade
Seu Zezé das Tesouras 77 anos Tesouras de Cima Liderança
comunitária/Trabalhador
rural
Seu Milton Granja 67 anos Córrego da Velha do Meio Trabalhador rural
Dona Santa 79 anos Gravatá de Cima Trabalhadora rural
Seu Antônio da Velha 67 anos Santa Rita de Cássia Diretor do
sindicato/Trabalhador rural
Dona Luruca 78 anos Baixa Quente Trabalhadora rural/Artesã
Dona Lia 79 anos Tesouras do Meio Trabalhadora rural
Fonte: Elaborado pela autora.

Cabe dizer, nesse momento, que as análises que apresentarei nos capítulos seguintes são
compostas por trechos das narrativas desses sujeitos. Para isso, adotei dois critérios, a saber: as
narrativas dos velhos serão sempre identificadas pelos seu próprio nomes seguido pela idade
(processo negociado e, como dito anteriormente, identificado como um desejo deles); e as
demais narrativas, de modo a preservar as identidades dos entrevistados, serão sinalizadas a
partir do grupo ao qual pertencem14. As narrativas do poder público são divididas em quatro
subgrupos (Poder Público 1, Poder Público 2... Poder Público 4), conforme apresentados no
Quadro 1. Já as narrativas institucionais foram divididas em 5 subgrupos (Institucional 1,
Institucional 2... Institucional 5). A numeração dessas narrativas foi feita de forma aleatória, ou
seja, não corresponde à ordem de subgrupos apresentada no Quadro 115.

13
Esses sujeitos estão inseridos entre as 30 narrativas produzidas e apresentadas no quadro 1, acima. O quadro
apenas traz mais informações sobre eles.
14
A exceção, nesse caso, aplica-se aos relatos de Dostoievsky Brasil, servidor da prefeitura de Araçuaí
identificado nominalmente no texto devido sua formação em história e reconhecida dedicação aos estudos sobre
as memórias da cidade. O participante autorizou sua identificação, bem como realizou uma revisão do texto.
15
Não nos interessava, no que tange às narrativas dos participantes do Poder Público e Institucionais, delimitar
posições de cada subgrupo em específico, ou seja, dizer, por exemplo, que o código Poder Público 1 corresponde
aos profissionais da área da saúde. Isso porque tentamos, dentro do possível, resguardar cada um dos participantes
da pesquisa. Nesse sentido, ao dizermos, por exemplo, que uma determinada narrativa é do Poder Público 3, ela
pode ser de qualquer subgrupo explicitado. O único cuidado que tivemos foi o de manter a mesma identificação
ao longo de todo o trabalho.
70

Retomando as narrativas dos velhos, especificadas no Quadro 2, algumas questões me parecem


merecer um olhar mais atento. A primeira delas refere-se ao porquê da delimitação de 6
histórias, as quais apresentei ainda no início do trabalho. Como mencionei, a constituição do
mapa de pesquisa foi um processo orgânico construído entre idas e vindas e em diálogo com os
diversos personagens. Ao final do desenho desse mapa, cheguei a uma configuração que incluía
5 comunidades rurais pesquisadas, das quais a proposta era a de que pelo menos um velho teria
sua história contada, atendendo aos critérios já mencionados. Paralelo a esse objetivo de
selecionar velhos representantes de cada comunidade, também optei por realizar um estudo que
contemplasse homens e mulheres do campo, tendo em vista o interesse de observar os efeitos
das diferenças de gênero na constituição da velhice e do trabalho nesse território, ainda que este
não fosse um objetivo específico da tese. Sendo assim, cheguei ao número final de 6 histórias
de velhos (3 homens e 3 mulheres), embora ao longo de todo o percurso cartográfico um número
maior de sujeitos velhos tenha participado e contribuído essencialmente para a sua construção
(ver Quadro 1). Por fim, quero mencionar que a ordem de apresentação das histórias dos velhos
foi propositalmente desordenada, sem uma sequência lógica e estruturada, tendo em vista a sua
proposta prioritariamente experimental.

Outro aspecto fundamental que aqui destaco foi a vigilância constante em relação aos
parâmetros éticos para a realização, não apenas da produção das narrativas, mas do trabalho
como um todo. Isso significou desde a utilização dos procedimentos formais, como a explicação
detalhada dos objetivos de pesquisa e a assinatura do Termo de Livre Consentimento (TLC)
(Apêndice A) por todos os participantes, mas também da observância, durante todo o processo
da pesquisa, se permanecia o interesse das pessoas em participar, de uma atitude respeitosa
frente ao que eles gostariam ou não de narrar, da negociação constante sobre aquilo que seria
escrito, enfim, de que em nenhum momento a pesquisa (ou a pesquisadora) se tornasse invasiva
ou inconveniente.

Tendo em vista todos esses cuidados, a pesquisa foi sendo construída a partir de diferentes
experiências e, como disse anteriormente, por caminhos inicialmente impensados. O que me
possibilitou esse movimento foi um mergulho nos fundamentos teóricos sob os quais repousam
a cartografia, os quais serão apresentados em seguida.
71

1.2 Buscando respaldos para uma experiência de produção de dados

1.2.1 Por uma analítica cartográfica (Ou Da crise da lógica da representação à emergência
do corpo vibrátil)

A cartografia pertence tradicionalmente ao campo de estudos da Geografia e pauta-se na busca


pela precisão matemática e estatística: a ciência dos mapas. Tal caminho permite localizar
territórios, relevos, regiões e suas fronteiras, além de evidenciar características demográficas.
A cartografia foi então apropriada pelas ciências sociais de modo a contribuir para a
compreensão dos objetos que são próprios a esse campo de conhecimento (PRADO FILHO;
TETI, 2013), pois, como explicita Rolnik (2016, p. 23), “paisagens psicossociais também são
cartografáveis”. Entretanto, discute-se que a cartografia tradicional pauta-se na lógica da
representação, o que tornaria seu alcance restrito e pragmático (PERÁN, 2013). Nesse sentido,
advoga-se a sua apropriação a partir de um olhar crítico sobre os territórios sociais e suas
múltiplas composições; uma outra cartografia que seja capaz de aceitar e apreender a
complexidade.

Em 2016, Suely Rolnik escreveu um prefácio à nova edição de sua obra “Cartografia
sentimental: Transformações contemporâneas do desejo”, publicada no mesmo ano.
Relembrando os contornos contextuais que marcaram a escrita da primeira edição do livro
publicado em 1989, a autora argumenta que seu olhar naquela obra já se voltava para a
compreensão acerca de como se dava o processo de subjetivação a partir de uma concepção
atrelada aos aspectos políticos, sociais e culturais. Segundo Rolnik (2016), este é um interesse
que perdura mesmo tendo passado mais de 20 anos de publicação do livro e que a leitura atual
feita pela autora é a de que neste início de século não são as mesmas forças que atravessam os
corpos, mas outras que merecem ser cartografadas. Nesse sentido, Rolnik ressalta algumas das
questões que marcam a nossa contemporaneidade: “Como nossa subjetividade é capturada pela
fé na religião capitalista? Como nossa força de criação é drenada pelo mercado?” ou ainda,
“Que modos de existência estão sendo experimentados neste mundo flexível do pós-
fordismo e sua lógica rizomática?” (ROLNIK, 2016, p. 22, grifos nossos). Ela termina o
prefácio dizendo: “É a esses novos cartógrafos que dedico a reedição do presente livro”
(ibidem).
72

Sim, sentimo-nos convidados e de certa forma contemplados com essa colocação de Rolnik
(2016). É nesse sentido, destacado pela autora, que nos propusemos a construir essa tese, com
o intuito de problematizar a potencialidade da cartografia enquanto analítica que pretende dar
conta (ainda que parcialmente) da complexidade que marca a contemporaneidade, em especial
no que diz respeito à velhice e ao trabalho rurais. Falamos de uma analítica porque partimos do
entendimento de que a realidade é composta por forças, formas e relações, e, nesse sentido, faz-
se necessário identificar uma analítica - muito mais do que um método - para a compreensão
desses cruzamentos (SOUZA; PERTINELLI-SOUZA, 2014).

Essa concepção da realidade como um emaranhado de forças, linhas e formas é proposta por
Deleuze e Guattari (1995a) na obra Mil Platôs, publicada no ano de 1980. Especificamente no
primeiro Platô, os autores cunham o conceito de rizoma como uma forma de pensamento que
irradia em várias direções, sem começo e nem fim, múltiplas entradas e saídas. Essa forma de
pensamento e de composição da realidade pode ser associada ao modo de operação da
cartografia, pois, como expõe Deleuze (2006, p. 48), “[...] numa cartografia, pode-se apenas
marcar caminhos e movimentos, com coeficientes de sorte e de perigo. [...] análise das linhas,
dos espaços, dos devires”. Inserida na lógica da complexidade, trata-se de uma proposta de
compreender o território em termos de latitude e longitude (DELEUZE; GUATTARI, 1997a).
Enquanto a dimensão da latitude refere-se à composição do território em suas partes (de que é
composto o território?), a longitude se traduz pela potência e graus de afecção.

Martí Perán (2013), professor de Teoria da Arte da Universidade de Barcelona, defende um


argumento que vai ao encontro do que discutimos nesse ensaio: mais do que adaptar, é
necessário reinventar a cartografia tradicional fundada na lógica da representação. Nas palavras
do autor, “trata-se de uma breve reflexão sobre como funciona a nova cartografia” (p. 105,
tradução livre), isto é, outra forma de pensar os mapas e suas possibilidades de produção da
contemporaneidade. O autor recorda o objetivo inicial do desenho de mapas que, ainda na época
da antiguidade clássica, era associado à esfera do imaginário, como uma expressão de
sonhos/desejos sobre territórios e dimensões desconhecidas. Conforme o autor, ao longo do
tempo, a cartografia se tornou uma prática com vocação científica, uma máquina de guerra -
fazendo referência ao conceito deleuziano - com o intuito de localizar e delinear territórios, mas
também de demarcar espaços de oferta de mão de obra e de mercado consumidor. Mais adiante,
os mapas passaram a incorporar definitivamente o arcabouço confirmatório e legitimador da
ciência, sendo capaz de localizar cada coisa em seu lugar.
73

Segundo o autor, a lógica por trás da construção de conhecimento na modernidade repousa na


lógica da representação. Mas em que consistiria tal lógica? Ele explica que a cultura ocidental
acredita que o sentido das coisas, ou seja, aquilo que nos permite definir a noção de valor, de
bem e de beleza é proveniente da experiência. No entanto, a vida seguiria o imperativo de ser
vivida, o que não lhe permitiria “[...] permanecer amparada constantemente na operação de
buscar sentido na experiência. A vida não quer ficar deduzindo sentidos, a vida quer viver”
(PÉRAN, 2013, p. 107, grifos no original, tradução livre). Nesse sentido, abre-se um campo
contraditório em que os sentidos necessários à vida são imanentes da experiência, no entanto,
a vida não se dá ao trabalho de esperar a dedução constante desses sentidos, ela simplesmente
se realiza. A solução para esse impasse estaria, segundo o autor, na criação de uma espécie de
armazém de sentidos, em que estes estariam disponíveis para a vida, sem a necessidade
constante da autorreflexão acerca da experiência. Nas palavras do autor,

A lógica da representação e suas estruturas institucionais são os depósitos onde a


cultura moderna guarda suas noções de valor, as noções de sentido para liberar a vida
de constantemente se ocupar da reflexão sobre si mesma e sobre o valor de si mesma
(PÉRAN, 2013, p. 107, tradução livre).

Sendo assim, o autor evoca a complexidade do mundo contemporâneo para dizer que os
sentidos mantidos pelas instituições são incapazes de dar respostas às mudanças que vivemos
por três razões principais. A primeira delas seria em função da especialização, ou seja, pelo fato
de que cada instituição conserva seu nicho de conhecimento e de produção de sentidos, como
coloca o autor, “[...] temos depositado no museu o sentido estético; no parlamento o sentido da
experiência política, e, na ciência, o sentido da verdade objetiva” (p. 108, tradução livre). Tal
divisão entre especialistas garante a cada um deles um status de privilégio e hegemonia,
comprometendo-se cada qual a não invadir o espaço do outro. A segunda razão para essa
incapacidade das instituições frente ao mundo em constante mudança se daria, justamente, pela
sua falta de atualização e tendência à manutenção, “[...] porque [a instituição] não é porosa aos
reingressos de sentidos que o mundo da vida tem nos ofertado constantemente” (p. 109,
tradução livre). A terceira razão – e talvez a mais expressiva – consiste na conversão da estrutura
institucional em uma estrutura de poder. Nas palavras do autor, “o sentido, emoldurado pela
esfera institucional, não encontra nele um eco da experiência, e sim de um dogma indiscutível”
(p. 109, tradução livre). A cartografia, segundo o autor, prestar-se-ia a esse papel e a essas
mesmas debilidades, na medida em que seria responsável por decidir “[...] o que é visível e o
74

que não é visível” (p. 109, tradução livre). Isto é, o que merece ou não a ser incorporado no
mapa?

Essa perspectiva encontra ressonâncias na discussão da Filosofia da Diferença (MACHADO,


1990), especialmente nos escritos de Deleuze e nas suas obras em parceria com Félix Guattari.
Tal empreendimento filosófico pauta-se no argumento central de que a vida é pura diferença, e
não apenas representação e identidade. Segundo Leopoldo Silva (2017), o pensamento
ocidental se desenvolveu a partir dessa lógica da representação, em detrimento de outras. Nesta,
percebe-se um desejo de que as coisas permaneçam as mesmas com o passar do tempo, sendo
a mudança indesejável. O autor explica que, nessa perspectiva, a mudança existe, mas ela é
incapaz de alterar a qualidade das coisas em si. Tal modo de pensar existe desde a filosofia
antiga, destacando-se nessa tradição o pensamento de Aristóteles. O pensamento pautado na
diferença, por conseguinte, entende que a exaltação da identidade seria apenas uma convenção,
ou seja, uma questão de caráter prático para a realização da vida. Nesse sentido, acreditar na
identidade das coisas é muito mais uma questão de segurança do que um status de como as
coisas são. Dessa forma, retomando as considerações de Perán (2013), esses sentidos
resguardados pelas diversas instituições acabam por ser reificados e considerados verdades
únicas, sentidos identitários e instrumentos de poder.

Machado (2006, p. 37) explica a ideia de pensamento-sem-imagem em contraposição a do


pensamento-imagem, base da Filosofia da Diferença.

O objetivo de Deleuze é sempre contrapor um espaço do pensamento sem imagem,


“intempestivo”, que é pluralista, heterodoxo, ontológico, ético, trágico, ao espaço da
imagem do pensamento que é dogmático, ortodoxo, metafísico, moral, racional. O
espaço do pensamento sem imagem é o espaço da diferença; o da imagem do
pensamento é o da representação.

Nesse sentido, o que Perán (2013) anuncia é que há claramente uma crise da representação,
uma vez que os sentidos que nos são “entregues pelas” ou “negociados com” as instituições não
são atualizados, transversais e emancipatórios. Podemos compreender melhor essa
incapacidade e insuficiência da lógica da representação por meio da leitura da vida realizada
por Deleuze e Guattari (1995a). Para esses autores, a vida é um emaranhado de forças, fluxos
dinâmicos que ora permanecem nesse mesmo movimento e ora se cristalizam em formas e
configurações específicas. A realidade é um justaposto em que coexistem esses diferentes
75

elementos em constante interação. Para compreender essa perspectiva proposta pelos autores,
é necessário mergulhar em um de seus conceitos fundamentais: o conceito de rizoma.

Tal conceito foi desenvolvido pelos autores na introdução da obra Mil Platôs e corresponde a
uma forma de pensamento pautada na complexidade16. O rizoma consiste em um emaranhado
de linhas que apresentam modos de funcionamento diferentes. Inspirados pelo campo da
botânica, o rizoma corresponde a uma raiz fasciculada, como a de tubérculos (grama e erva
daninha), diferente da raiz pivotante, centralizada e cujo crescimento se dá por filiação. O
rizoma não tem início e nem fim, é submerso (não é claramente visível) e se desdobra em um
plano horizontal, sem um ponto central e nem hierarquias definidas. Esse modo de pensamento
se contrapõe, portanto, à forma de pensamento tradicional que é hierarquizada, vertical,
disciplinar (DELEUZE; GUATARRI, 1995a).

Os autores identificam três tipos de linhas que compõem o rizoma: as linhas de segmentaridade
duras, as flexíveis e as linhas de fuga. As linhas de segmentaridade dura, como o próprio nome
denota, são linhas marcadas pela rigidez e são da natureza do instituído. Pode-se dizer que são
as linhas de mais fácil identificação, uma vez que estão normalmente relacionadas à própria
formação dos sujeitos, como o percurso família-escola, escola-trabalho, trabalho-
aposentadoria. São as linhas que delineiam as classificações: sexo, classe, nível, dentre outros.
Pode-se dizer que as linhas duras remetem ao nível de realidade que se apresenta como dado,
naturalizado. Seu caráter permanente tende a afastar o questionamento e a repulsa. Já as linhas
flexíveis são de natureza mais maleável e se modificam, ainda que em pequenas proporções.
Por fim, as linhas de fuga são aquelas que se associam ao novo, à mudança, à reconstrução. Em
função disso, comportam-se de forma completamente oposta às linhas duras, pois permitem os
escapes e as resistências ao instituído (DELEUZE; GUATTARI, 1996).

Ao explicar o conceito de rizoma, os autores trazem a cartografia como uma de suas


características. Isso porque é inerente ao rizoma a ideia processual e dinâmica, uma vez que sua
composição é de fluxos de forças. Nesse sentido, tem-se no rizoma a construção de um mapa
variável,

16
O conceito de rizoma, apresentado ainda na introdução, será retomado nos capítulos posteriores, com maior
detalhamento.
76

O mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível,


suscetível de receber modificações constantemente. Ele pode ser rasgado, revertido,
adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser preparado por um indivíduo, um
grupo, uma formação social. [...] Uma das características mais importantes do rizoma
talvez seja a de ter sempre múltiplas entradas; [...] Um mapa tem múltiplas entradas
contrariamente ao decalque que sempre volta ao ‘mesmo’ (DELEUZE; GUATTARI,
1995a, p. 22).

Essa contraposição ao decalque remete à ideia do afastamento da representação fixa e essencial


do pensamento-com-imagem, ou seja, de uma tendência do pensamento à reprodução, ao
mesmo, à identidade. A cartografia caminha em um sentido contrário em que prevalece a
diferença, a mudança e o movimento. Nesse sentido, como repensar então a cartografia? Como
liberá-la da lógica da representação? Não há um modelo a ser seguido, até mesmo porque isso
iria de encontro com toda a lógica da diferença sob a qual está pautado o que estamos chamando
aqui de uma outra prática cartográfica. Como expõe Rolnik, torna-se primordial compreender
que

[...] “entender”, para o cartógrafo, não tem nada a ver com explicar e muito menos
com revelar. Para ele não há nada em cima – céus da transcendência -, nem embaixo
– brumas da essência. O que há em cima, em baixo e por todos os lados são
intensidades buscando expressão (ROLNIK, 2016, 66, grifos no original).

Intensidades, linhas e forças: esta é a natureza do universo de trabalho do cartógrafo. Dessa


forma, essa outra cartografia pauta-se muito mais em um mapeamento dinâmico dessas forças
e fluxos que emergem no/dos territórios do que da ideia tradicional, estática e seletiva de
localizar as coisas, de decidir entre “[...] o que é visível e o que não é visível” (PERÁN, 2013,
p. 109, tradução livre). Nesse sentido, a questão orientadora desse processo cartográfico nos
parece ser muito mais o que foi colocado por Deleuze (2002, p. 87) ao dizer “o que pode um
corpo?”. É nesse sentido que Rolnik (2016, p. 23, grifos nossos) explica que a

[...] tarefa do cartógrafo (é) dar língua para afetos que pedem passagem, dele se
espera basicamente que esteja mergulhado nas intensidades de seu tempo e que, atento
às linguagem que encontra, devore as que lhe parecem elementos possíveis para a
composição das cartografias que se fazem necessárias.

Partindo então dessa concepção de que há de fato uma crise da representação, como discutido
por Perán (2013), e que uma outra cartografia pode ser pensada a partir da lógica da vida como
fluxo de linhas e forças, como rizoma (DELEUZE; GUATTARI, 1996), seguimos com o
entendimento de que a analítica cartográfica se coloca a serviço de um retorno à experiência,
aos sentidos, aos afetos. Como coloca Perán (2013, p. 109, tradução livre), “regressar à
77

experiência é um imperativo histórico”, o que implica mudanças na cartografia tradicional e na


sua lógica de representação dos territórios.

Para tanto, uma mudança fundamental explicitada por Rolnik (2016) diz respeito à necessária
emergência do corpo vibrátil. Em uma proposta que pretende acessar os afetos, as linhas e
forças, é fundamental lançar mão de algo que permita ir além do “olho-do-visível” (p. 39). A
autora explica que nossos órgãos do sentido possuem uma dupla capacidade: cortical e a
subcortical. A primeira corresponde à nossa capacidade de atribuir sentidos às coisas a partir
da nossa percepção sobre suas formas, associando a elas as representações de que dispomos.
Nas palavras de Suely, “esta capacidade cortical do sensível é a que permite conservar o mapa
de representações vigentes, de modo que possamos nos mover num cenário conhecido em que
as coisas permaneçam em seus devidos lugares, minimamente estáveis” (2006, p. 2). Já a
segunda capacidade, a subcortical, remete à compreensão do mundo como um campo de forças,
em que nós e os outros somos parte desse mesmo campo.

O exercício desta capacidade está desvinculado da história do sujeito e da linguagem.


Com ela, o outro é uma presença viva feita de uma multiplicidade plástica de
forças que pulsam em nossa textura sensível, tornando-se assim parte de nós
mesmos. Dissolvem-se aqui as figuras de sujeito e objeto, e com elas aquilo que
separa o corpo do mundo (ROLNIK, 2006, p. 3, grifos nossos).

Essa segunda capacidade associada aos órgãos do sentido é denominada pela autora de corpo
vibrátil. Nesse sentido, a emergência desse corpo vibrátil, enquanto via para a apreensão das
forças que compõem a realidade da vida, seria parte fundamental para a construção de uma
outra analítica cartográfica, que não descarta as representações, mas insere junto delas a
capacidade de criação e invenção anestesiadas quando não há a utilização desse corpo vibrátil.
Dessa forma, falamos de uma “[...] capacidade do corpo, que não é o corpo dos órgãos da
medicina, nem do fitness, mas é esse corpo em sua vulnerabilidade ao mundo. Essa capacidade
é a nossa principal bússola, é o nosso principal instrumento que como vivos humanos temos
[...]” (ROLNIK, 2010). Dar vazão ao corpo vibrátil significa, portanto, a abertura a uma
sensibilidade para aquilo que está para além do visível, estar vulnerável ao mundo enquanto
campo de forças.

Após essa breve discussão acerca da crise da lógica da representação e a necessária emergência
do corpo vibrátil para o desenho de uma outra cartografia, iremos nos dedicar em seguida a
elencar os elementos-chave para a construção de uma analítica cartográfica.
78

1.2.2 Elementos-chave para uma analítica cartográfica

Um primeiro aspecto fundamental quando se propõe o empreendimento de uma analítica


cartográfica é a compreensão de sua natureza teórico-metodológica. Em nenhum momento,
portanto, estamos falando de uma proposta metodológica no sentido comumente utilizado, em
que uma série de procedimentos poderiam ser elencados de modo a criar uma receita a ser
seguida (KASTRUP, 2007). Isso porque a proposta da cartografia é consoante a uma
perspectiva de ciência que se distancia dos moldes da tradição platônico-racionalista, pautado
na busca de verdades e de causas e efeitos (REGIS; FONSECA, 2012). Concordamos com
Prado Filho e Teti (2013, p. 46) quando afirmam que “é bom lembrar que existem tantas
cartografias possíveis quanto campos a serem cartografados, o que coloca a necessidade de uma
proposição metodológica estratégica em relação a cada situação ou contexto a ser analisado
[...]”. E, seguindo tal perspectiva, emerge a figura do cartógrafo tal qual desenhada por Regis e
Fonseca (2012):
As cartografias são sempre resultados parciais, lances de uma viagem em terras
estrangeiras. É essa a potência que o cartógrafo quer alcançar, de sentir-se estrangeiro
dentro da própria morada, ele que de porto em porto se vê em um tempo outro, que
empurra, traveste, ora rasga e ora costura o mesmo e o faz diferir (p. 273).

Amador e Fonseca (2009) discutem um dos mais importantes aspectos que envolvem a analítica
cartográfica: a ideia de que não há uma coleta de dados, mas sim uma produção dos dados da
pesquisa. Essa proposição deriva da necessária imersão do pesquisador no campo para a
realização do mapeamento daquilo que escapa à representação. Como colocam Kastrup e
Passos (2013, p. 264), “partimos do pressuposto de que o ato de conhecer é criador da realidade,
o que coloca em questão o paradigma da representação”. É nesse sentido que Amador e Fonseca
(2009) argumentam que, se há produção e não apenas coleta de dados, o processo cognitivo
exercitado pelo pesquisador aproximar-se-ia da dimensão inventivo-intuitiva proposta por
Bergson (1984, p. 31), ou seja, a cartografia demandaria “(...) uma cognição muito mais capaz
de inventar o mundo”. Dito de outro modo, para cartografar, o pesquisador precisaria muito
mais de sua intuição e capacidade inventiva do que da inteligência (capacidade explicativa e
muitas vezes causal) propriamente dita – embora não haja uma separação definitiva entre elas.

É interessante destacar que a intuição, para Bergson (1984), é da natureza do imediato e da


afetação. Isto é, remete ao encontro com o objeto, consciência imediata que precede qualquer
tentativa de explicação (inclusive mediação pela linguagem). Nesse sentido, a tentativa de
exprimir a experiência a partir de conceitos já existentes torna o processo já de início obscuro,
79

pois “(...) ela (a intuição) é aquilo que atinge o espírito, a mudança, a duração, a mudança pura”
(AMADOR; FONSECA, 2009, p. 32). O que as autoras fazem, portanto, é discutir como a
intuição enquanto método filosófico pode se colocar a serviço da cartografia como método de
pesquisa. É importante destacar que o exercício da intuição, nos moldes traçados por Bergson
(1984) e pelo próprio Deleuze (1999), refere-se a um procedimento rigoroso, assim como se
propõe a cartografia, escapando dos riscos de uma definição costumeira de intuição.

E o que se espera então como objetivo do exercício cognitivo intuitivo e inventivo? Kastrup e
Passos (2013) esclarecem que o que se busca é a criação de um plano comum. Um aspecto
primordial é esclarecer que esse plano comum nada tem a ver com uma suposta homogeneidade
ou identidade entre os atores participantes. Dito de outro modo, estabelecer um plano comum
não significa criar um “espaço” de consenso, mas “(...) um fundo virtual, apresentando-se como
uma vitalidade social pré-individual, pura heterogeneidade e não totalizável” (p. 264). Isso
significa que a criação de um plano comum é, na realidade, a construção de um comum na
diferença. A resolução dessa aparente relação paradoxal só se faz possível a partir do
entendimento do conceito de transversalidade, proposto por Guattari (1987). Segundo o autor,
a transversalidade é “[...] uma dimensão que pretende superar os dois impasses, o da pura
verticalidade e o da pura horizontalidade; ela tende a se realizar quando uma comunicação
máxima se efetua entre os diferentes níveis e, sobretudo nos diferentes sentidos” (GUATTARI,
1987, p. 96).

Isso significa que, na dimensão da transversalidade vários elementos, conceitos e campos


distintos são conectados, mantendo a complexidade. Ela seria capaz de desestabilizar os dois
eixos organizativos que permeiam a comunicação nos grupos: o vertical (que corresponde à
hierarquia) e o horizontal (que corresponde à homogeneização), fazendo com que o coletivo e
o comum possam então emergir. Nesse sentido, o grupo que compõe a pesquisa é muito mais
do que uma reunião de pessoas e coisas, “[...] pois comporta uma dimensão fora-grupo ou
dimensão da processualidade do coletivo” (KASTRUP; PASSOS, 2013, p. 265). Nesse sentido,
buscar a construção de um plano comum na prática cartográfica é fazer uso da transversalidade
de modo que seja possível evidenciar no grupo o seu caráter coletivo e heterogêneo. De modo
prático, remete a ações como a derrubada de fronteiras entre disciplinas ou mesmo entre os
participantes da pesquisa, realizando uma abordagem intervencionista e participativa, trazendo
à tona saberes excluídos e respeitando a complexidade do objeto de pesquisa (KASTRUP;
PASSOS, 2013).
80

Vimos até o momento que uma pesquisa que se propõe a realizar uma analítica cartográfica
parte do pressuposto de que os dados serão produzidos, não coletados (AMADOR; FONSECA,
2009); de que o processo cognitivo do pesquisador se aproxima da dimensão inventivo-intuitiva
proposta por Bergson (AMADOR; FONSECA, 2009); e de que cartografar é buscar a
construção de um plano comum (KASTRUP; PASSOS, 2013). Para que essas características
ou elementos-chave se concretizem, outro fator fundamental deve ser observado: a relação
pesquisador e pesquisado não corresponde a uma relação de sujeito cognoscente e seu objeto,
uma vez que estamos falando de uma pesquisa do tipo intervenção (ROMAGNOLI, 2014a;
PASSOS; BARROS, 2015). Retomando o conceito de Guatarri (1987), a ideia de uma pesquisa-
intervenção remete à transversalidade em um plano comum, o que demanda uma implicação do
pesquisador para com um processo que seja participativo e coconstruído. Nesse sentido, admite-
se que, para a cartografia enquanto intervenção, deseja-se não apenas o interesse do pesquisador
para com o objeto, mas também o seu inverso (KASTRUP; PASSOS, 2013).

Retomando a ideia da construção de um plano comum, que remete à aplicação da


transversalidade e o fazer emergir de um coletivo, espera-se da analítica cartográfica a
composição com o plano de forças e de afetos daquele território que se pretende investigar,
intervir e transformar. Kastrup e Barros (2013) evidenciam esse pensamento,

A ideia de composição no plano das forças e dos afetos busca apontar que não há
jamais indiferença na escolha do tema e dos sujeitos da pesquisa. Cartografamos
com afetos, abrindo nossa atenção e nossa sensibilidade a diversos e imprevisíveis
atravessamentos. Ao final de um trabalho de pesquisa, a sensação de que avançamos
no conhecimento daquele território passa, mais uma vez, pela sensação de partilha
de uma semiótica e de um maior pertencimento àquele território. [...]. A ideia de
composição no plano das forças e dos afetos remete, por fim, à política de escrita da
pesquisa e ao compromisso ético das ações locais que ela poderá doravante sustentar,
concorrendo para a criação de um mundo comum e heterogêneo (p. 277, grifos
nossos).

De modo a fechar esse momento em que selecionamos os aspectos já discutidos na literatura e


que julgamos serem chave para a construção de uma cartografia, em especial aqui uma
cartografia dos modos de existência da velhice e do trabalho rurais, torna-se fundamental
apresentar o conceito de território que lhe é adjacente, afinal, a todo o momento estamos falando
de cartografar determinados espaços sociais. Aqui investimos no conceito de território proposto
por Deleuze e Guattari (1997a) e seus encontros com o que propõe o geógrafo brasileiro Milton
Santos. Nas palavras desse último, o território seria “[...] formado pelo conjunto indissociável
do substrato físico, natural ou artificial, e mais o seu uso, ou, em outras palavras, a base
81

técnica e mais as práticas sociais, isto é, uma combinação de técnica e política” (SANTOS,
2002, p. 87, grifos nossos). Assim como Deleuze e Guattari (1997a), o autor aposta em uma
leitura do território como espaço em constante construção, cuja composição é múltipla e
dinâmica. Tal dinâmica é descrita por Deleuze e Guattari como processos de territorialização,
desterritorialização e reterritorialização, em que as forças que compõem o território e que estão
em constante interação e ora se cristalizam em determinadas fôrmas e formas (territorialização),
ora se desfazem (desterritorialização) podendo ou não surgir desses movimentos territórios
outros (reterritorialização). Como explicita Romagnoli (2014b, p. 128), "[...] o território emerge
como um eterno fazer-se e desfazer-se, compondo um rizoma, uma rede de relações, que se
autoproduz por agenciamentos com os mais variados elementos da realidade, aos quais se
conecta e reconecta a todo instante".

Partindo dessa concepção de território, a cartografia revela seu potencial ético e político em
que, no processo de pesquisa-intervenção (ROMAGNOLI, 2014a; PASSOS; BARROS, 2015)
em que há a produção da realidade (KASTRUP; PASSOS, 2013), busca-se então a construção
de novos territórios que permitam escapes perante as linhas estratificadas e reificadoras, as
quais anestesiam o corpo vibrátil e naturalizam verdades. É nesse sentido que Rolnik (2016, p.
18, grifos nossos) anuncia a proposta de trabalho da obra “Micropolítica: Cartografias do
desejo”, “[...] como qualquer outra cartografia, seja qual for seu tempo e seu lugar, trata-se aqui
da invenção de estratégias para a constituição de novos territórios, outros espaços de vida e de
afeto, uma busca de saídas para fora dos territórios sem saída”.

Partindo desses elementos-chave apresentados, abordaremos a seguir aspectos associados


diretamente à práxis da pesquisa.

1.2.3 O fazer cartográfico (Ou sobre como fazer emergir o corpo vibrátil)

Ainda que tenhamos como base a proposição de que a analítica cartográfica consiste em uma
perspectiva teórico-metodológica e que não é possível e coerente delimitar passos a serem
seguidos, torna-se angustiante para o pesquisador o obscurantismo com que nos lançamos no
campo para produzi-lo. O que fazer? Como fazer emergir esse corpo vibrátil? Avançando nas
leituras e reflexões sobre o tema, encontramos alento na compreensão de que se trata menos de
que técnicas utilizar e mais sobre posturas no processo de investigação. É nesse sentido que
discorreremos agora, ainda que brevemente, sobre a postura do cartógrafo. Iniciamos então com
82

o relato de pesquisadores que realizaram uma pesquisa cartográfica sobre a sexualidade de


velhos homossexuais e relatam as transformações pessoais a partir desse trabalho.

Essa experiência possibilitou que o meu olhar e desejo escapassem de certos


padrões de repetição modelados por normas e ideais. Ao ampliar universos de
referência, passei a ser afetado pela possibilidade de erotizar outros corpos, de
enxergar sensualidades onde antes parecia existir “apenas” mais um corpo. Mas não
só isso: passei também a conviver com uma heterogeneidade de formas de
expressar o homoerotismo e a amizade. Um universo, que antes me escapava,
passava a recompor formas de interação, (re)singularizava-me e possibilitava novas
matérias de expressão (SANTOS; LAGO, 2015, p. 104, grifos nossos).

O relato dos autores chama a atenção para os encontros e "afetações" entre o próprio
pesquisador e os espaços/territórios pesquisados. Nesse sentido, a relevância desses encontros
pode mostrar que caminhos seguir na pesquisa, por exemplo, quando da seleção dos
participantes e, mesmo no momento analítico, sobre quais elementos de fato merecem concorrer
para a elaboração do trabalho final. Acerca dos encontros, Deleuze e Parnet (1998, p. 14, grifos
nossos) dissertam sobre sua intensidade:

Há uma solidão extremamente povoada. Não povoada de sonhos, fantasias ou


projetos, mas de encontros. Um encontro é talvez a mesma coisa que um devir ou
núpcias. É do fundo desta solidão que se pode fazer qualquer encontro. Encontram-
se pessoas (e às vezes sem jamais tê-las visto), mas também movimentos, ideias,
acontecimentos, entidades.

Ainda sobre os encontros, é importante ressaltar que eles nem sempre terão essa força produtiva,
potencializadora. Como explicita Rodrigues (2006), há por vezes o risco de experienciar o
contrário: encontros antiprodutivos que levam a um ponto de estagnação. Schöpke (2004, p.
97-98) concorda argumentando que alguns encontros produzem um “aumento de potência dos
corpos, enquanto outros, uma diminuição da potência do agir”. Nesse sentido, parece-nos
suficiente compreender que os encontros dar-se-ão em meio ao processo da pesquisa, a partir
da experiência e das relações estabelecidas no território em questão.

Associado a essa sensibilidade e vulnerabilidade frente à potência dos encontros no contexto


da pesquisa, advoga-se que o pesquisador faça uso da atenção sensível, ao contrário da atitude
já naturalizada de selecionar informações do objeto de estudo a partir de critérios objetivos.
Kastrup (2007) problematiza essa dimensão da atenção a partir dos conceitos de atenção
flutuante de Freud e de reconhecimento atento de Bergson, trazendo questões do tipo: Quando
inicio a cartografia, para o que (quem) deve chamar minha atenção? De forma ainda mais
83

específica considerando o pressuposto de produção dos dados, qual a configuração do território


que construo a partir da minha observação? Baseando-se no conceito freudiano, recomenda-se
a manutenção de uma atenção flutuante, dito de outro modo, trabalhar inicialmente com
fragmentos desconexos e evitar a seleção consciente imediatamente quando no contato com os
diversos elementos do campo. Nas palavras de Kastrup (2007, p. 18),

A atenção tateia, explora cuidadosamente o que lhe afeta sem produzir compreensão
ou ação imediata. Tais explorações mobilizam a memória e a imaginação, o passado
e o futuro numa mistura difícil de discernir. Todos esses aspectos caracterizam o
funcionamento da atenção do cartógrafo durante a produção dos dados numa
pesquisa de campo.

Nesse sentido, é importante ressaltar que o uso dessa atenção sensível, flutuante e fragmentada
remete a um processo construtivista de produção do conhecimento, afastando-se tanto de uma
perspectiva objetivista quanto subjetivista. O cartógrafo não se propõe a evidenciar uma
realidade pré-existente, mas da mesma forma não advoga uma posição relativista, em que
prevalece a perspectiva particular do pesquisador. Pautando-se nas restrições impostas pela
materialidade e pelos meandros do saber é que o cartógrafo constrói conhecimento, atento para
“[...] obedecer às exigências da matéria e de se deixar atentamente guiar, acatando o ritmo e
acompanhando a dinâmica do processo em questão” (KASTRUP, 2007, p. 21).

E como registrar esses percursos da atenção? Retomando a ideia da cartografia como


acompanhamento de processos, é importante compreender que, diferentemente da pesquisa
tradicional, a processualidade estará presente em todos os momentos, inclusive, em formas de
escrita marcada pela coletividade de sua produção. Barros e Kastrup (2015) destacam a
importância desses relatos de campo para o trabalho cartográfico, não em um sentido
burocrático apenas de transcrição formal e objetiva sobre o observado, mas um momento de
expor as intensidades dos encontros, as sensações sobre as forças e sobre os afetos. No que se
refere à escrita propriamente dita, as autoras trazem a relevância de que as análises evidenciem
"os fios soltos", as arestas do que foi vivido. Não é desejável apenas reafirmar modelos e
contribuições teóricas preexistentes, mas a abertura de novas linhas de pensamento. A pista
cartográfica desenhada pelas autoras se resume em: "Há um coletivo se fazendo com a pesquisa,
há uma pesquisa se fazendo com o coletivo" (BARROS; KASTRUP, 2015, p. 73-74, grifos no
original).
84

Na tentativa de contribuir para a definição das técnicas usadas na analítica cartográfica,


Tedesco, Sade e Caliman (2013) discutem sobre o uso da entrevista nesse contexto. Mais uma
vez emerge a problemática de que não se trata de uma técnica específica, nova e apropriada a
um suposto método cartográfico, mas uma discussão que remete à postura do pesquisador. Nas
palavras de Deleuze e Parnet (1998, p. 9-10, grifos nossos):

As questões são fabricadas como outra coisa qualquer. Se não deixam que você
fabrique suas questões, com elementos vindos de toda parte, de qualquer lugar, se as
colocam a você, não tem muito o que dizer [...] o objetivo não é responder a
questões, é sair delas [...] uma entrevista poderia ser simplesmente o traçado de
um devir.

Baseados nessa perspectiva, os autores trazem, a todo o momento, a necessidade de que a


linguagem nesse contexto seja compreendida como prática, que constrói e remodela a realidade.
Indo além da informação, advoga-se a dimensão genética da linguagem em que expressão e
conteúdo tornam-se indissociáveis. São três as diretrizes para a realização do exercício
cartográfico de entrevistar, a saber: a entrevista apresenta-se como via para a expressão da
experiência, e não transmissão de uma informação ou simples relato; a entrevista possui um
caráter rizomático na medida em que, com múltiplas entradas e saídas, sem início nem fim,
intervém diretamente na abertura à experiência do processo do dizer; e, por fim, a entrevista
busca a pluralidade de vozes.

Como explicitam Tedesco, Sade e Caliman (2013, p. 315), “no encontro entre diferenças
irredutíveis o coletivo se realiza”. Os autores recuperam justamente a discussão sobre a
construção de um plano comum e a possibilidade da emergência do coletivo como bases para a
construção da cartografia. Como discutimos anteriormente, esse coletivo se dá justamente pela
transversalidade e pelo encontro das diferenças; nas palavras dos autores,

Experimentar o coletivo é aceder ao plano do impessoal, das diferenças coexistentes.


Envolve um plano que só é comum justamente porque atravessa a todos, mas não é
de ninguém. É comum por estar além e aquém da dimensão pessoal, da dimensão das
individualidades (Ibidem).

Nesse sentido, retomamos o argumento de que as técnicas de pesquisa em si se tornam


secundárias frente à postura do pesquisador no e com o campo, de modo a propiciar, por meio
da experimentação, espaços ou momentos em que esse plano comum (KASTRUP; PASSOS,
2013) possa ser ativado. Na práxis dessa pesquisa, isso passou pelo estabelecimento de laços
de confiança com os participantes, pelo interesse recíproco, pela abertura ao inusitado e ao
85

diferente, pela suspensão das crenças e preconceitos e pelo envolvimento de um projeto que
realmente fosse coproduzido.

Esse mergulho no universo da cartografia (o desenho de uma outra cartografia; a identificação


de elementos-chave para a construção da analítica e a investigação sobre o fazer cartográfico)
foi fundamental para que construíssemos o nosso “Manual do Cartógrafo”17, dando-nos mais
segurança para a experimentação que estava por vir. Esses textos foram constantemente
revisitados e ressignificados, em um processo de construção que nos desafiava a todo o
momento. As questões que nos assombravam eram: Estamos realmente conseguindo fazer
emergir os nossos corpos vibráteis? Estamos suficientemente atentos às afetações capazes de
nos ajudar a discutir os objetivos dessa pesquisa? Quando parar?

Essas questões não foram facilmente respondidas. Ao final do trabalho, a sensação é a de que
essa abertura do corpo vibrátil não acontece integralmente, ou melhor, ininterruptamente. São
momentos em que – a depender dos sujeitos, das coisas, das forças e dos agenciamentos – isso
se torna possível, pois há mesmo os bons e maus encontros. Esses encontros se farão evidentes
nos capítulos a seguir, fazendo emergir possibilidades de análise em maior ou menor grau.

1.2.4 Notas sobre o papel das narrativas na analítica cartográfica

Tendo em vista esse arcabouço construído acerca da analítica cartográfica, sentimos a


necessidade de esboçar algumas notas sobre o papel ocupado pelas narrativas nesse trabalho –
um papel considerado fundamental. Discutimos anteriormente acerca da ideia de que, nesse tipo
de investigação, tornou-se mais relevante falar sobre o uso que se faz dos métodos e das técnicas
(postura do cartógrafo) do que sobre elas mesmas. Nesse sentido, trazemos a potência das
narrativas para a construção dessa pesquisa e empreendemos aqui uma espécie de bricolagem
em que a melhor definição parece ser: uma pesquisadora narrativa construindo uma cartografia.

Por que usar a pesquisa narrativa, ou melhor, por que se aventurar no exercício de ser um
pesquisador narrativo? Clandinin e Connelly (2015, p. 119) respondem a essa indagação
dizendo que seria “porque a pesquisa narrativa é um caminho, acreditamos que o melhor, para

17
Referência a um tópico do livro de Suely Rolnik, “Cartografia sentimental: Transformações contemporâneas do
desejo”, em que ela discorre sobre a prática do cartógrafo. O Manual do Cartógrafo elaborado a partir da realização
da tese está no Apêndice B.
86

pesquisar a experiência”. Mello (2016) chama a atenção para as dificuldades em se definir, de


fato, o que é a pesquisa narrativa, principalmente se consideradas as interfaces com abordagens
como a fenomenológica e a etnográfica. Para a autora, a questão da experiência seria um ponto
em comum entre essas metodologias, entretanto, o lugar atribuído a ela é que seria a via para a
distinção das abordagens. Baseando em uma metáfora usada por Clandinin e Connelly (2015),
a autora utiliza-se da cena do desfile carnavalesco para tornar mais claras algumas diferenças
fundamentais entre essas abordagens.

Considerando o contexto da experiência do desfile carnavalesco, o etnógrafo se


colocaria na arquibancada para observar, registrar e entender o que é o carnaval
enquanto uma manifestação cultural e social. Mesmo que o etnógrafo decida
participar do desfile como um insider, sua abordagem seria para tentar sentir aquela
experiência da forma como entende todos os demais estão vivendo naquele momento.
[...] Um pesquisador narrativo viveria a experiência do desfile como um insider.
Assim desfilaria, cantaria o samba, se divertiria, viveria suas emoções, ouviria as
histórias dos demais membros da Escola e então tentaria contar, recontar,
compor sentidos da experiência vivida. Um pesquisador da fenomenologia talvez
pudesse sambar por um tempo até que se decidisse pelo estudo de um fenômeno, o
qual poderia estar na experiência de dançar, ou na experiência de cantar ou a
experiência de desfilar e, assim que obtivesse algumas histórias sobre o fenômeno a
ser investigado, passaria para o lugar da arquibancada e como um outsider se
concentraria no seu exercício de escrita até que o fenômeno e sua essência emergissem
(MELLO, 2016, p. 44, grifos nossos).

Concordamos que essa metáfora apresentada por Mello pode contribuir – e muito – para um
entendimento do que é a proposta da pesquisa narrativa da forma como ela é apropriada nessa
tese. Na descrição sobre a postura do pesquisador narrativo, percebemos a importância de viver
a experiência em sua intensidade, o que nos remete à ideia da emergência do corpo vibrátil.
Entretanto, entendemos que o ínterim entre os tipos de pesquisa é nebuloso, e a complexidade
que marca a realidade e os sujeitos nela inseridos demandam que assim seja. Como coloca a
autora, “entendo que meu lugar no desfile pode mudar, dependendo de meus objetivos” (p. 45).
Sendo assim, não há de forma alguma uma tentativa de hierarquizar ou criar uma estrutura de
valor entre essas perspectivas até mesmo porque, como vimos, os pontos de contato são
múltiplos e somente tendem a contribuir para a construção de conhecimento relevante para a
área de estudo em questão, seja ela qual for.

O fato é que nos propusemos a viver a experiência do desfile como um insider, ainda que com
uma série de limitações advindas do tempo, do acesso, de disponibilidade, entre outros. Fizemos
isso intensamente no processo de construção dos dados da pesquisa, e as narrativas nos
ajudaram – e muito – a compor essa cartografia. Interessou-nos especialmente a perspectiva
tridimensional da narrativa defendida por Clandinin e Connelly (2015), a saber, o entendimento
87

de que esse tipo de pesquisa se dá pelo cruzamento de três dimensões, a temporal, a interacional
e a contextual. A primeira consiste na compreensão de que determinada experiência ocorre em
um determinado tempo e em caráter contínuo (passado, presente e futuro); já a segunda
corresponde ao entendimento de que toda experiência é concomitantemente particular e
coletiva, individual e social; e, por fim, a dimensão contextual que acrescenta às duas anteriores
a ideia de localização da experiência. Além dessas dimensões, os autores ainda destacam a
figura do pesquisador que está no entremeio, “localizado em algum lugar ao longo das
dimensões do tempo, espaço e do pessoal e do social” (CLANDININ; CONNELLY, 2015, p.
99).

Compreendemos que essas múltiplas dimensões tentam, de alguma forma, dar conta da
complexidade que envolve as narrativas, em consonância com o que discutimos anteriormente
sobre a historicidade (presente na perspectiva ontológica do estudo), o caráter dialógico da
pesquisa (múltiplas vozes, particulares e sociais) e a noção de território. Associado a isso,
concordamos com Tamboukou (2016) quando define três proposições em relação à pesquisa
narrativa e seus desdobramentos. A primeira delas refere-se ao entendimento de que as
narrativas pessoais são efeitos de poder/saber, cabendo então aos pesquisadores narrativos o
entendimento e exploração das suas condições de emergência. Já a segunda proposição consiste
no entendimento de que essas histórias também exprimem poder e desejo, isto é, da mesma
forma que respondem a um contexto mais amplo (macro), também refletem algo que se dá em
função do movimento dentro-fora (psíquico e extrapsíquico). Por fim, essas narrativas não
seriam da natureza da reprodução e da representatividade, mas sim revelam uma dimensão
produtiva de sujeitos e de realidades.

Partindo da perspectiva tridimensional, Clandinin e Connelly (2015, p. 129) argumentam que a


“[...] nossa intenção com a pesquisa narrativa é capturar, ao máximo possível, essa possibilidade
de abertura da experiência”. Assim também o fizemos. Especialmente nos encontros com os
velhos em que as narrativas tiveram um caráter biográfico. E como afirmam Benjamin (1994)
e Bosi (1994), para além dos sujeitos narrarem a partir de suas experiências, a própria atividade
narrativa transporta o que é narrado para a experiência daqueles que ouvem, o que é coerente
com a concepção de que a pesquisa cartográfica caracteriza-se como uma pesquisa-intervenção
(ROMAGNOLI, 2014a; PASSOS; BARROS, 2015).
88

Também é importante destacar o quanto a narrativa é, ao mesmo tempo, produção do sujeito e


do social. Os traços particulares dos narradores emergem na medida em que eles escolhem
práticas discursivas diferenciadas das comumemente utilizadas, as quais remetem à criatividade
com que o sujeito enfrenta o mundo e significa suas experiências (SPINK, 2003).
Principalmente no que se refere à narrativa dos velhos, fica evidente o quanto elas falam de si,
de suas famílias, mas também sobre as comunidades que, na maior parte dos casos, eles
ajudaram a construir. São sujeitos que viram ao longo desses muitos anos de vida várias
mudanças acontecerem e sobre elas fazem avaliações e criam novos significados.

Tendo em vista o fato de que a coleta de narrativas, seja dos velhos assim como dos outros
atores sociais, foi a principal forma de produção de dados nas nossas andanças cartográficas,
chegamos ao ponto em que a questão central era: Como analisar esse material? Tínhamos no
momento em que decidimos pela conclusão18 do campo mais de 400 páginas de transcrições de
narrativas que demandaram um processo sistemático de análise. Como colocam Clandinin e
Connelly (2015), a análise de todo o material produzido é, de fato, um momento
importantíssimo da pesquisa em que há por vezes uma mudança no status da relação com os
participantes. Nas palavras dos autores, “isso não significa que a relação próxima com os
participantes esteja encerrada, mas, ao contrário, os relacionamentos mudam de intensidade
daquele de viver as histórias com os participantes para o de recontar histórias por meio
dos textos de pesquisa” (p. 175, grifo nosso).

Conforme esclarecem os autores, esse é mesmo um momento-chave da pesquisa, em que


“textos de campo precisam ser reconstruídos para se tornarem textos de pesquisa”
(CLANDININ; CONNELLY, 2015, p. 176). Um primeiro passo para essa análise sugerido
pelos autores é a organização dos arquivos que foram gerados ao longo do processo de produção
de dados. Quais foram os textos de campo construídos? O segundo passo, segundo os autores,
seria a leitura sucessiva dos materiais e a busca pela identificação de aspectos fundamentais às
narrativas, tais como lugar, cenário, enredo, tensão, finalização, narrador, contexto e tom. Como
colocam os autores, “com os termos analíticos da narrativa em mente, pesquisadores narrativos
começam a tematizar narrativamente seus textos de campo” (idem, p. 177). Associado a isso, a

18
A sensação é a de que a produção de dados é um processo inesgotável, afinal, a própria complexidade do campo
abre paulatinamente novas oportunidades para novos olhares. A necessidade de finalizar a tese faz com que um
determinado recorte seja realizado.
89

sugestão dos autores é que o posicionamento dos textos de campo dentro do espaço
tridimensional da pesquisa seja um caminho para abertura de questões para a análise.

Como método de análise, optamos por empreender a análise temática das narrativas que
consiste em, basicamente, mergulhar nos conteúdos que emergem das falas. Baseamo-nos em
Riessman (2008) para empreender tal análise, compreendendo que há uma aproximação
possível com a proposta da Análise de Conteúdo de Bardin (2009). Segundo Riessman (2008),
o foco da análise temática envolve não apenas o que é dito, mas as experiências captadas
pelas/nas narrativas. Nesse sentido, partimos do entendimento de que tal tipo de análise vai
além do que está explícito na fala, na medida em que essa interpretação direta e sem
aprofundamento pode culminar em reducionismos e simplificações, movimento contrário ao
que propomos na cartografia. Zaccarelli e Godoy (2013) argumentam que a diferença entre a
análise temática proposta pela autora e a Análise de Conteúdo de Bardin (2009) está na forma
como a narrativa é trabalhada, pois na primeira as narrativas são consideras unidades e por isso
tendem a ser analisadas de modo menos fragmentado do que no caso da Análise de Conteúdo.
Nesse sentido, dizem as autoras, “a análise temática é centrada no caso e não se preocupa com
o que é possível encontrar em vários casos; trabalha com o que foi dito (told) e não com a
maneira de dizer (telling)” (ZACCARELLI; GODOY, 2013, p. 28, grifos no original).

Compreendemos a leitura de Zaccarelli e Godoy (2013), mas insistimos na aproximação


possível entre a análise narrativa temática e a Análise de Conteúdo. Assim como discutimos ao
longo do capítulo, trata-se mais de uma postura em relação aos dados produzidos do que de
técnica per si. Nesse sentido, fizemos um movimento analítico que julgamos coerente com a
proposta da cartografia ao buscar, na análise dos dados, transitar entre as dimensões que se
justapõem nas narrativas (temporal, interacional e contextual), buscando os elementos
particulares e também coletivos, tendo sempre como orientação os objetivos da investigação.
Isso significou ora preservar as narrativas enquanto unidades, ora elencá-las em categorias
fragmentadas. Esse processo analítico resultou na construção das narrativas biográficas
apresentadas anteriormente, assim como nas demais análises apresentadas nos capítulos a
seguir19.

19
O processo de análise é mais bem detalhado no Apêndice B.
90

Outro recurso fundamental que também utilizamos dentro da perspectiva narrativa foi a
fotografia. Ao longo das andanças cartográficas e com o foco sempre voltado para a
experiência, algo nos incomodava: seremos capazes de transmitir toda essa riqueza vista, vivida
e narrada no texto da tese? Por mais que buscássemos uma escrita menos formal e tradicional,
ainda que o diário de bordo pudesse aproximar o leitor daquele território, o que mais
poderíamos fazer? Inicialmente com um propósito meramente ilustrativo, aos poucos o uso das
imagens na pesquisa revelou-se essencial. Nesse sentido, apreendemos a fotografia nesse
trabalho como um importante componente narrativo que, juntamente com o universo da
oralidade, permitiu que nos aproximássemos daquelas pessoas, daquelas comunidades e de suas
histórias20. Especialmente nos inspiramos em Rose (2012) para desenvolver um foto-ensaio que
será apresentado no capítulo 6.

20
Nesse momento, gostaria de fazer um agradecimento especial à profa. Luciana Kind que ministrou a disciplina
“Uso de Imagens em Pesquisas Qualitativas”, marco fundamental que me encorajou não apenas a ver as fotografias
de modo diferente, mas, principalmente, de ousar fazê-las parte desse trabalho, ainda que com todas as limitações.
91

Capítulo 2

Conhecendo o território
92

2. Conhecendo o território

Neste capítulo, objetivamos discutir a concepção de território que embasa esta tese,
contextualizando historicamente as especificidades que marcam a microrregião do médio Vale
do Jequitinhonha.

2.1 Territorialidades: entre o urbano e o rural

A distinção entre o universo urbano e rural é pauta de debates que têm desdobramentos na vida
cotidiana dos sujeitos que residem nesses territórios. No Brasil, os municípios são os
responsáveis pelo desenho das fronteiras campo-cidade, o que significa que tal delineamento
se dá de forma arbitrária e categórica. Abramovay (2000, p. 2) argumenta que a definição do
IBGE demonstra essa fragilidade ao indicar que “as áreas rurais são aquelas que se encontram
fora dos limites das cidades, cujo estabelecimento é prerrogativa das prefeituras municipais”.
Uma das principais críticas associadas a essa prerrogativa dos municípios é a sua utilização para
alcançar benefícios de caráter fiscal, sobrepujando aspectos concretos e materiais dos
domicílios. Esse processo acarreta dificuldades no que tange ao planejamento e à execução de
políticas públicas (IBGE, 2017).

Os parâmetros para a qualificação de um território como urbano ou rural são vários, como o
volume populacional, a densidade demográfica, a ocupação econômica da população, além do
viés político-administrativo apresentado (ENDLICH, 2010). Entretanto, a utilização desses
parâmetros de forma isolada ou mesmo combinada recebe críticas em função de resultarem em
cenários muito distantes e fragmentados da realidade. Nesse sentido, “o rural e o urbano
precisam ser compreendidos em sua diversidade, que podem ser avaliados de forma plural [...].
A utilização de qualquer um dos parâmetros, de forma isolada ou combinada, deve ser vista
como uma aproximação parcial da realidade” (IBGE, 2017, p. 15). De modo a compreender um
pouco melhor a problemática em torno da diferenciação entre urbano e rural, iremos nos dedicar
brevemente a explorar alguns posicionamentos teóricos.

Uma das primeiras linhas de pensamento acerca do rural, associadas à Sociologia Rural, parte
do entendimento de que o rural e o urbano são opostos, em que o primeiro seria identificado
como o lugar da agricultura, da falta, da escassez e do atraso; enquanto o segundo seria
justamente o espaço da modernidade, do desenvolvimento e da tecnologia. O processo natural
93

e progressivo seria, nessa perspectiva, a urbanização das áreas rurais, as quais deixariam então
de existir. O resultado desse processo natural seria então a homogeneização desses espaços, sob
a égide de uma mesma lógica e modo de funcionamento (CARNEIRO, 2012).

Há outra corrente, entretanto, que aposta na configuração de novas ruralidades, que demonstram
um movimento contrário ao da fusão entre campo e cidade. Ainda que seja reconhecida a
aproximação entre o padrão de vida no campo e na cidade, seriam perceptíveis as diferenças
nos modos de vida, inclusive, dentre as próprias pessoas que vivem no campo. Não seria
possível, nesse sentido, homogeneizar. Entretanto, Carneiro (2012) questiona até que ponto essa
perspectiva visa negar a inexistência de uma dicotomia entre esses universos, podendo apenas
reforçar – pelas diferenças – a existência de dois mundos distintos.

Essas duas perspectivas vão de encontro ao que partilhamos como bases dessa pesquisa, a
Filosofia da Diferença. Isso porque, ao estabelecer a dicotomia urbano/rural, há por decorrência
a delimitação de identidades bem definidas e invariáveis. Se de um lado considera-se o urbano
como o moderno, o desenvolvido e o próspero, o rural seria o lugar do atraso, da inércia e da
pobreza. Tal categorização exclui quaisquer possibilidades outras de configuração e abre espaço
para análises ingênuas que se pautam apenas na tentativa de analisar o grau de urbanização ou
de ruralidade de determinado território.

Outra perspectiva, portanto, tenderia a abandonar essa ideia de que o campo e a cidade
constituem-se universos distintos. Pensando especialmente no contexto histórico brasileiro,
bem explorado por Sérgio Buarque de Holanda na obra “Raízes do Brasil”, esta apresenta a
cidade não como uma oposição ao rural, mas a extensão dela. Para o autor, haveria um processo
inverso do que normalmente se defende acerca da superioridade do urbano sob o rural uma vez
que teria a cidade se formado a partir das bases rurais. A conhecida “mentalidade da casa
grande” teria então ultrapassado os limites do campo e, juntamente com o patriarcalismo,
constituído a base de todas as relações sociais no país. Questiona-se, nesse sentido, a limitação
da dualidade urbano-rural e suas restrições no que tange a sua classificação como submissa ao
urbano, em vários aspectos.

Indagamos até que ponto o esgotamento do modelo modernizador nos possibilitou um


olhar crítico no sentido de nos liberarmos da imagem hegemônica do rural como
espaço da tradição e impermeável a mudanças e, assim, passamos a reconhecer,
também no chamado mundo rural, uma diversidade de dinâmicas e de atores sociais
(CARNEIRO, 2012, p. 28, grifos nossos).
94

Ainda nessa linha de pensamento binária e excludente (rural – urbano), o objetivo maior seria
então a extinção da figura do camponês – expressão máxima desse rural subdesenvolvido. E
quem seria esse camponês? Conforme definição apresentada por Wanderley (2014, p. 26, grifos
nossos), o campesinato

[...] corresponde a uma forma social de produção, cujos fundamentos se encontram no


caráter familiar, tanto dos objetivos da atividade produtiva – voltados para as
necessidades da família – quanto do modo de organização do trabalho, que supõe a
cooperação entre os seus membros. A ele corresponde, portanto, uma forma de
viver e de trabalhar no campo que, mais do que uma simples forma de produzir,
corresponde a um modo de vida e a uma cultura.

O termo camponês e campesinato, segundo a autora, é alvo de ampla discussão no âmbito


político, dos movimentos sociais e também entre os acadêmicos. As nomenclaturas, como
qualquer outro dispositivo normativo e classificatório, traduzem uma série de
interesses/questões políticas que não podem ser negligenciados. Nesse esteio, Sampaio (2011)
esclarece que toda agricultura camponesa é familiar, mas que nem toda agricultura familiar é
camponesa. Isso se justifica pelo fato de que a agricultura camponesa seria aquela que se
desenvolve no registro da subsistência, sendo realizada à margem do sistema capitalista de
produção. A agricultura familiar, por conseguinte, corresponderia aos produtores que, ainda
que pequenos, se inserem no sistema por meio de ações como a comercialização em feiras e
pelo acesso a políticas públicas para o campo21. Como coloca Sampaio (2011, p. 3), “criou-se
assim um termo de reconhecida força teórico-política”.

Wanderley (1999) discute que o agricultor familiar no Brasil, ainda que inserido no mercado,
guarda características de camponeses em função da realidade de precariedade e ausências de
apoio institucional. Nesse sentido, em muitos territórios, eles seguem sobrevivendo à própria
sorte, o que não os diferenciaria completamente do contexto camponês. Não obstante
reconheçamos a heterogeneidade desses termos (camponês, agricultores familiares, pequenos
produtores rurais) e a relevância do debate, o que se mostra fundamental é o reconhecimento
de que as experiências concretas revelam que ainda persistem no meio rural esses pequenos
produtores agrícolas, cuja produção é pautada nos laços familiares e comunitários, que
desenvolvem modos de vida e de trabalho diferenciados (WANDERLEY, 2014). No caso

21
Os autores que defendem o campesinato baseiam-se em autores como Marx (1979) e Lênin (1985) e dedicam-
se a tratar da luta e resistência desses sujeitos frente ao modo de produção capitalista.
95

específico do território abordado em nosso estudo, são sobre esses agricultores familiares (ou
mesmo lavradores, como alguns preferem ser chamados) que estamos falando.

Esse pequeno produtor rural familiar, diretamente associado à produção agrícola, seria o sujeito
típico desse rural acometido pelo estereótipo do subdesenvolvimento. Entretanto, como coloca
a autora, negar a relevância do camponês é negligenciar a história do campesinato no Brasil.
Tal postura resulta, por exemplo, na associação “naturalmente” feita entre a agricultura no
Brasil e os latifúndios monocultores, como se essa tivesse sido a base da estrutura e formação
agrária no país. Essa imagem por muitos anos disseminada permanece sendo reforçada pela
mídia mais recentemente por meio de uma suposta valorização da produção rural (leia-se
agronegócio), o que fica evidente, por exemplo, na campanha “AGRO é tech, AGRO é pop”
veiculada pela Rede Globo de televisão a partir de 2016.

De fato, Wanderley (2014) expõe que no Brasil a estrutura agrícola é herança do período
colonial em que prevalecia a produção monocultora e o uso de mão de obra escrava. Entretanto,
tal prevalência não impediu o surgimento de outra lógica produtiva, de base comunitária e
familiar. É importante compreender que uma das principais bandeiras erguidas pelos
movimentos sociais rurais, encampadas por diferentes representações, é a de que as pequenas
propriedades familiares não são incompatíveis com a proposta de desenvolvimento agrícola. A
autora reconhece que são vários os debates acirrados em torno da questão agrária no país, bem
como sobre o lugar social ocupado por essa categoria de “camponeses”. Se inserindo
especificamente nesse debate a partir dos anos 90, o estado assume a titulação de agricultores
familiares para fins de elaboração de políticas públicas, de modo a neutralizar o tom pejorativo
associado ao campesinato e, ao mesmo tempo, afastar seu conteúdo histórico-político
(WANDERLEY, 1999).

É interessante ressaltar a emergência de debates que trazem à tona o conceito de ruralidades.


Tais discussões pautam-se no argumento central de que não é possível falar no Brasil de um
rural específico, com determinadas características. E que tal multiplicidade vem acompanhando
mudanças significativas nas dinâmicas de vida e de organização nesses territórios, não no
sentido de uma urbanização, mas da produção de novos e diferentes formatos (ABRAMOVAY,
2000; VEIGA, 2003; ENDLICH, 2010; ROSA; FERREIRA, 2010). Uma das mudanças
sinalizadas por esses autores refere-se à desvinculação do rural e da atividade agrícola, realidade
já identificada em alguns trabalhos acadêmicos. Estes mostram, por exemplo, a dedicação da
96

população rural a outras áreas como a atuação na construção civil. Outro movimento
interessante é o do turismo rural, em que os moradores têm sobrevivido em torno da exploração
das vocações turísticas por meio da prestação de serviços.

Silva (2016) defende, baseada nas ideias de Santos (1985/2014), que, para além da discussão
sobre diferenças e aproximações entre o urbano e o rural, a questão repousa em compreender
que o sujeito constitui o território e também se constitui a partir dele. Nesse sentido, a autora
reclama a complexidade envolvida nessas categorias (campo e cidade) para que seja então
possível compreender diferentes formas de vida. Mas a autora adverte que é preciso nos
mantermos cientes de “esses olhares, contudo, necessitam estar informados pelo fato de que a
urbanização (associada à industrialização) é estratégica à expansão capitalista” (p. 318). Essa
perspectiva, da qual compartilhamos, nos convida a deslocar o olhar para “os modos de
ocupação do espaço na contemporaneidade e suas relações com a produção do espaço” (p. 312).

Partindo dessa breve discussão sobre a precariedade e ambivalência do binômio urbano-rural,


concordamos com Silva (2016) em considerar que a questão que nos parece mais relevante é:
afinal, o que compõe um território? Para essa compreensão, recorremos a um diálogo entre um
dos mais relevantes geógrafos brasileiros, Milton Santos e os autores Deleuze e Guattari.
Embora de perspectiva diferentes22, esse diálogo nos parece promissor no que diz respeito ao
entendimento do território em sua complexidade, como uma junção de elementos que
ultrapassam a questão geográfica. Santos (1998;1985/2014) tem uma extensa obra que tem
como fio condutor – ainda que com diferentes intensidades ao longo do tempo (MORAES,
2013) – o conceito de território. Especialmente nos interessa o entendimento trazido pelo autor
de que o território “[...] seria formado pelo conjunto indissociável do substrato físico, natural
ou artificial, e mais o seu uso, ou, em outras palavras, a base técnica e mais as práticas sociais,
isto é, uma combinação de técnica e política” (SANTOS, 2002, p. 87, grifos nossos).

A partir da definição de Santos (1985/2014), Silva (2017, p. 314) complementa dizendo que o
território é “espaço apropriado, comporta condições materiais e simbólicas, relações de classe,
de gênero, etárias; implica disputas. A territorialidade é expressão das formas de ocupação do
espaço na consolidação ou na (des)construção dos territórios” (SILVA, 2017, grifo nosso).
Nesse sentido, o que esses autores argumentam é que a noção de território suplanta a ideia de

22
Milton Santos tem em Marx uma das principais bases de sua geografia social.
97

limites territoriais ou mesmo a delimitação de categorias fixadas como urbano e rural,


estendendo-se para uma noção constitutiva de um espaço material e de ação humana, portanto,
dinâmico.

Para Deleuze e Guattari (1995a), dentro da perspectiva da complexidade e da Filosofia da


Diferença, o território é pensado em termos de forças em constante fluxo: o território é
entendido assim enquanto processo. Nesse sentido, pensar no território é entender os
movimentos que ora se cristalizam em formas (processo de territorialização), movimentos
desestruturantes que geram desestabilização no que é instituído (processo de
desterritorialização) e movimentos que geram novas formas (processo de reterritorialização).
Nas palavras de Deleuze (1989, p. 4), “o território só vale em relação a um movimento através
do qual dele se sai”. E o autor continua: “não há território sem um vetor de saída do território,
e não há saída do território, ou seja, desterritorialização, sem, ao mesmo tempo, um esforço
para se reterritorializar em outra parte”.

Buscamos nesse diálogo, ainda que limitado pelas diferenças teóricas e epistemológicas desses
autores, evidenciar uma noção ampliada de territorialidade que marca essa pesquisa. Nesse
sentido, dizer que estamos tratando de comunidades rurais não é suficiente para lançar sobre
elas categorias pré-fixadas (atraso, agrícola, passividade, dentre tantas outras). Quais são as
forças que compõem esse território? Que usos desse território fazem os sujeitos que ali vivem?

Abordar assim campo e cidade não significa reduzir um ao outro e, muito menos, o
rural ao urbano. Ao contrário, permite entender seus atravessamentos e também suas
especificidades, reverberando nos modos de compreensão da produção de
subjetividades encarnadas nos espaços. Considerando-se o contexto histórico,
político, geográfico e ideológico que marcou e marca as relações rural-urbano no
Brasil (que, no limite, é o pano de fundo da nossa sociedade atual e da coexistência
de tempos e espaços tão múltiplos), é possível enxergar processos de subjetivação
articulados a ruralidades diversas e, não raro, interpenetráveis, que se combinam tanto
nos espaços do campo e na cidade, a gerar territorialidades superpostas (SILVA, 2017,
p. 320).

Tendo em vista esse conceito dinâmico de território, lançamo-nos a compreender os primeiros


elementos que nos ajudarão a compor a cartografia proposta nesse estudo.
98

2.2. Contextualizando o Vale do Jequitinhonha

Figura 2 - Microrregiões do Vale do Jequitinhonha

Fonte: Gomes et al, 2009

Vale do Jequitinhonha é a denominação dada a toda a região constituída ao longo da bacia do


rio Jequitinhonha, cuja extensão supera 1000 km. A partir da divisão estadual de municípios
feita em 1991, a região conta com 51 municípios bastante diversos entre si. Com uma
sazonalidade climática bastante definida, a região abrange uma riqueza ecossistêmica
expressiva na medida em que coexistem múltiplos biomas e uma diversidade de vida vegetal e
animal. Entretanto, essa condição climática associada à irregularidade fluvial contribui para que
a região seja conhecida nacionalmente por suas vulnerabilidades sociais, resultantes, na
realidade, de um padrão histórico exploratório e de base coronelista (GONTIJO, 2017).

Essa mesorregião é divida em três microrregiões, a saber: o Alto Vale – região de Diamantina
e mais próxima à Belo Horizonte, o médio Vale – região de Araçuaí, foco dessa pesquisa e o
Baixo Vale – região de Almenara, próxima ao sul da Bahia. As microrregiões estão sinalizadas
e podem ser claramente visualizadas no mapa acima pelas cores rosa, amarela e laranja,
99

respectivamente. É importante destacar que a caracterização como alto, médio e baixo


corresponde à altitude dessas microrregiões, e não à posição geográfica. Em seguida,
apresentamos alguns dados para contextualizar a situação socioeconômica do Vale do
Jequitinhonha, baseados no censo de 2010 do IBGE.

Tabela 1 - População da Mesorregião Vale do Jequitinhonha


Mulheres Homens População Total
(pessoas) (pessoas) (pessoas)
Vale do Jequitinhonha 348.296 351.117 699.413

Fonte: IBGE, 2010.

Tabela 2 - Situação do domicílio na Mesorregião Vale do Jequitinhonha


Urbano Rural População Total
(pessoas) (pessoas) (pessoas)
Vale do Jequitinhonha 435.162 264.251 699.413
Fonte: IBGE, 2010.

Tabela 3 - Taxa de alfabetização na Mesorregião Vale do Jequitinhonha23

Mulheres Homens Total


Vale do Jequitinhonha 80,7% 81% 80,8%
Minas Gerais 92,1% 92,6% 92,3%
Fonte: IBGE, 2010.

Esses dados demonstram que a região possui um montante populacional expressivo e que parte
considerável deste reside em áreas rurais. Em termos educacionais, percebe-se a significativa
diferença entre os índices de alfabetismo da região e do estado. Outros indicadores nos parecem
também importantes, como a questão do acesso à energia elétrica. Quando da realização do
censo, 7.045 domicílios permanentes foram identificados como sem acesso à energia elétrica,
volume apenas superado pela mesorregião vizinha ao Jequitinhonha, a do Norte de Minas
(10.798 domicílios). Trata-se de números significativos se comparados aos das demais
mesorregiões, cujos números não superam 4.800 domicílios. O acesso à energia elétrica é um

23
Taxa de alfabetização das pessoas de 10 anos ou mais de idade, por sexo (%).
100

aspecto importante para avaliação do desenvolvimento de um país e, consequentemente, de uma


região, defendido por autores como parte dos direitos fundamentais tendo em vista as
características da vida moderna (CAVALCANTE, 2013).

Outro índice importante refere-se à existência de banheiro nos domicílios, sendo que, na
mesorregião em questão, o número de residências sem essa instalação básica é de 17.189.
Também nessa mesma pesquisa, identificou-se que o valor do rendimento mediano mensal dos
domicílios é inferior a todas as demais mesorregiões do estado. Sinteticamente, todos esses
índices retratam uma região marcada por desigualdades sociais e com déficits de
desenvolvimento nas mais diversas áreas: educação, saúde, economia, infraestrutura, dentre
outros.

Discute-se que, para compreender a contemporaneidade nessa mesorregião, é preciso retomar


aspectos históricos e econômicos relativos ao estado de Minas Gerais como um todo. Um
principal ponto relevante refere-se à associação direta desse território com a atividade
mineradora. Inicialmente, o foco da mineração era a extração do ouro e das pedras preciosas, e
o primeiro momento de intensa exploração na região remonta ao séc. XVIII, ainda sob os
auspícios da colonização portuguesa no país. Como coloca Antunes (2004, p. 10), “no rastro do
ouro, os colonizadores foram descendo o Jequitinhonha e seus afluentes, vencendo as
resistências indígenas e ocupando o Vale”. Nesse momento, a ocupação indígena era uma
realidade, e essa população sofreu as consequências das incursões dos bandeirantes em busca
das reservas de ouro. A primeira reserva de ouro foi encontrada no final do séc. XVIII na cidade
do Serro, o que atraiu uma enorme quantidade de garimpeiros para a região, e, assim, os
aglomerados e vilas foram se constituindo. Dessa maneira, foram surgindo os povoados de
Diamantina, Minas Novas e Grão Mogol (ANTUNES, 2004).

Essa atratividade da região em função das riquezas ali encontradas fez com que a coroa
portuguesa instituísse verdadeiros fortes militares com o objetivo principal de evitar o
contrabando, proteger os colonos e ‘civilizar’ os índios. Os confrontos diretos com o povo
indígena que vivia na região, em especial os Botocudos, fez com que a Coroa declarasse
oficialmente uma guerra alegando que eles passassem a ser vistos como inimigos e que,
portanto, deveriam ser capturados (LESSA; SOUZA, 2005).
101

Posteriormente ao boom da exploração do ouro e das pedras preciosas, a extração do minério


passou a ocupar esse lugar de destaque no estado em função do grande volume de incentivos
governamentais para as empresas que se dedicaram a essa atividade (e ainda se dedicam),
incentivos que perpassaram também investimentos em fontes energéticas e infraestrutura viária
para escoamento da produção. As empresas mineiras se instalaram então mais ao centro do
estado, sendo alimentadas por matérias-primas das demais regiões mineiras, como é o caso do
Vale do Jequitinhonha (GONTIJO, 2017).

Especificamente no caso do Vale do Jequitinhonha, paralelamente à exploração do ouro e das


pedras preciosas, desenvolveu-se também a pecuária extensiva. Sabe-se que o sonho do
enriquecimento atraía uma quantidade considerável de pessoas, mas que também se fazia
imperativo pensar no sustento desses mineradores. Sendo assim, a criação de gado passou a ser
condição necessária em termos de alimentação e de transporte de matérias-primas para aquilo
que seria fundamental para a sobrevivência da atividade mineradora. Com o enfraquecimento
da exploração de outro e pedras preciosas, a atividade pecuária em certa medida se manteve, e
a população passou a se ocupar da agricultura familiar principalmente fazendo uso dos rios,
córregos e ribeirões (LESSA; SOUZA, 2005).

Retomando a história do estado de Minas Gerais e a posterior predominância da atividade


mineradora centrada no minério de ferro, é importante pontuar que uma das consequências
importantes desse direcionamento se relaciona ao uso do carvão vegetal como fonte energética.
Isso estimulou as recomendações do próprio estado para a implantação da monocultura de
eucalipto em todo o território, inclusive no Vale do Jequitinhonha. Sobre essa prática da
monocultura de eucalipto, Gontijo (2017, p. 70) esclarece:

[...] fica claro que o plantio de eucaliptos no Alto/Médio


Jequitinhonha, sob forma de extensa monocultura homogênea, teve como
consequências sobre a biodiversidade original um grande desequilíbrio
ecológico, além da destruição da cobertura vegetal mais bem conservada
da região.

A inserção dessa prática da monocultura do eucalipto trouxe uma série de consequências


negativas para a região do Vale, dentre as quais se destacam os impactos para os camponeses
que exploravam os chapadões com o objetivo de complementar sua alimentação e dos seus
pequenos rebanhos. Além disso, essas pessoas perderam o acesso às plantas medicinais
naturalmente provenientes daquele território e perderam até mesmo suas próprias terras, uma
102

vez que parte desses camponeses não possuíam títulos das propriedades que foram consideradas
terras devolutas e então entregues às empresas responsáveis pelo plantio. Nesse sentido, os
impactos ambientais foram muitos, mas destacamos aqui os efeitos do ponto de vista social e
econômico para a população camponesa do alto e médio Jequitinhonha.

Nas nossas andanças, ouvimos sobre um assunto recente ainda polêmico: a “descoberta” de
reservas de lítio na região, próximas à cidade de Araçuaí. Grande divulgação tem sido realizada
focando no potencial de geração de riqueza desse metal que é conhecido como “petróleo
branco”. A polêmica existe porque, como em todos os outros momentos de descoberta de
reservas de metais preciosos na região, muitas promessas de desenvolvimento são realizadas e
pouco realmente se concretizou. Um exemplo dessa construção discursiva pode ser vista na
reportagem “Descoberta de lítio pode mudar a realidade de uma das regiões mais pobres de
MG” 24, publicada em 03 de janeiro de 2018. O artigo defende o argumento de que a exploração
do metal pode transformar a realidade da região que é notadamente pobre. Em reunião do
Ministério Público Estadual realizada no final de 2017 para debater a inserção de um polo de
exploração de lítio, o promotor de justiça responsável pela condução do debate declarou:
“Queremos aglutinar os esforços de todos os atores envolvidos para a melhoria da economia
local do Vale do Jequitinhonha. Através das prefeituras, da Associação de Desenvolvimento do
Vale, da comunidade local, queremos todos unidos nesse processo de discussão para que essa
oportunidade seja benéfica para todos”. Os moradores estão divididos e desconfiados perante o
histórico de exploração sem retornos positivos para a região e temem, assim como aconteceu e
ainda acontece com o plantio do eucalipto, pelos efeitos ambientais devastadores.

Tendo em vista todo esse contexto, concordamos com a leitura de Gontijo (2017, p. 59-60, grifo
no original) sobre a realidade contemporânea do Vale do Jequitinhonha,

Com cerca de um milhão de habitantes, a região do Jequitinhonha vive hoje problemas


relacionados não só à pobreza rural, mas também a um processo de urbanização
desordenado na medida em que o pequeno agricultor vem migrando para os núcleos
urbanos e estes não apresentam infraestrutura adequada. Resulta daí um aumento
significativo dos movimentos emigratórios, notadamente de homens, que buscam
trabalho temporário nas grandes monoculturas do sul de Minas, Oeste paulista e Mato
Grosso do Sul. Para as famílias que ficam resta a prática de uma subagricultura de
subsistência ou a opção de moradia em periferias deprimidas de núcleos urbanos já
deprimidos economicamente.

24
Disponível em: http://noticiasmineracao.mining.com/2018/01/03/descoberta-de-litio-pode-mudar-a-realidade-
de-uma-das-regioes-mais-pobres-de-mg/. Acessado em: 30 de julho de 2018.
103

Ainda sobre a história da região, um aspecto merece destaque. A partir da decadência da


atividade mineradora, a região teria então passado despercebida pela história e pelos olhos do
estado, voltando aos holofotes apenas posteriormente já caracterizada como o “Vale da
Miséria” (RIBEIRO, 1997). No capítulo “Vale do Jequitinhonha: a emergência de uma região”,
Mateus Servilha (2012) denuncia, a partir de uma análise crítica, a produção sócio-histórica de
um espaço que passa a ser disseminado nacionalmente como o lugar da miséria e do abandono.
Nas palavras de Servilha, “trata-se de uma região “inventada” a partir da “descoberta” de sua
pobreza e, concomitantemente, do discurso de sua superação, produzido e articulado, em
especial, pelo Estado” (idem, p. 39).

O argumento central é de que a região do Vale do Jequitinhonha passa a existir legitimamente


enquanto território a partir da criação da chamada CODEVALE25 – Comissão de
Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha. Tal autarquia estatal emergiu em 1964 e tinha
como objetivo, como seu próprio nome explicita, elaborar estratégias de desenvolvimento para
a região. Sua criação no contexto do período ditatorial brasileiro ia ao encontro de um projeto
mais amplo de modernização nacional. Nesse sentido, é a partir da criação desta autarquia que
o Estado se volta para esse território enquanto uma região específica que, da mesma forma que
o restante do país, deveria ter suas riquezas exploradas em prol do desenvolvimento.

Esse projeto de modernização se inicia ainda em 1930 e se fortalece durante a década de 50 e


6026. É importante destacar que tal projeto passava pelo ideal da modernização e do progresso,
ou seja, pelo necessário abandono das características rurais.

Um país, pensava-se, de olhos para o futuro, de costas para um passado marcado, em


especial, pela colonização, pelo atraso, pela necessidade de progresso. Um país em
processo histórico, ainda, de construção de elementos, simbólicos e narrativos, em
busca de sua unidade nacional (SERVILHA, 2012, p. 24).

O discurso proferido em torno da atuação da CODEVALE pautava-se, nesse sentido, na


tentativa de superação do padrão produtivo considerado retrógrado baseado na pecuária, na
lavoura de subsistência e na atividade mineradora. Sendo assim, o objetivo seria promover

25
A CODEVALE foi constituída pela Lei Constitucional n. 12, de 06 de outubro de 1964 e substituída em 2002
pelo Instituto de Desenvolvimento do Norte e Nordeste de Minas - Idene - criado de acordo com a Lei Nº 14.171.
26
A partir de 1960, a mesorregião do Vale do Jequitinhonha foi incorporada à área de abrangência da SUDENE –
Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste. Essa incorporação sinaliza a aproximação do território às
características percebidas pelo Estado no Nordeste do país. A CODEVALE, em particular, foi pensada
especificamente para a região (PESSÔA, 2012).
104

outras frentes de desenvolvimento de modo a evitar a perpetuação do atraso impresso por essas
atividades (SANTOS, 1971).

Especialmente no que diz respeito ao projeto de modernização do estado de Minas Gerais, havia
a necessidade da construção de um espaço de referência, a partir do qual os demais deveriam
se espelhar. Belo Horizonte, enquanto capital, assume esse lugar e passa então a servir de
parâmetro para o progresso mineiro, que incluía no seu projeto a superação do atraso rural. O
entendimento é o de que todo processo de modernização que se daria dentro dos parâmetros do
modelo capitalista de produção partiria da criação do binômio região desenvolvida/não
desenvolvida, ou seja, para que se legitimasse a capital como modelo de outras regiões distantes
(não apenas em termos geográficos, mas principalmente de sociabilidades).

Daí tem-se a constituição da CODEVALE e de toda a construção discursiva que lhe sucedeu.
Nas palavras de Sevilha (2012, p. 39), “o projeto de uma ‘Minas moderna’, para conquistar
unidade, legitimidade e dizibilidades sociais, necessita de espaços e práticas sociais que, à luz
de novas teorias, representem o indesejável”. Mas, mesmo com a criação da CODEVALE, em
termos de planejamento estatal a região do Vale do Jequitinhonha é oficializada enquanto tal
no ano 1969 a partir de um estudo de regionalização realizado pela Fundação João Pinheiro.

Associado a uma imagem pejorativa do sertão, o Vale do Jequitinhonha se aproxima do


Nordeste do país e da mesma forma é colocado como parte da dicotomia Nordeste/Sudeste do
país, isto é, atraso/modernidade.

Atraso e miséria tornam-se marcas históricas de uma região que acabara de surgir.
Uma bacia onde encontramos diferentes biomas naturais (cerrado, caatinga e mata
atlântica) e uma enorme diversidade de realidades socioespaciais, socioculturais e
socioeconômicas torna-se homogênea aos nossos olhos, representada pela repetição
de imagens da seca, de notícias da fome e de índices de pobreza (SERVILHA,
2012, p. 43, grifos nossos).

Ramalho e Doula (2009) trazem uma interessante análise acerca do papel do Jornal Geraes na
construção da identidade discursiva do homem do Vale do Jequitinhonha. A análise temporal,
que compreende diferentes posicionamentos da publicação ao longo do tempo, revela a
variabilidade na postura do jornal que ora se mostrava contrário às políticas da CODEVALE,
ora se mostrava parceiro da instituição. A análise das autoras evidencia uma postura
inicialmente combativa em relação à instituição, defendendo e logicamente construindo a
105

imagem do homem do Vale sofrido e abandonado pelo Estado. Posteriormente, a partir dos
anos 80, há uma mudança nessa construção em que o enfoque passa a ser a valorização da
cultura popular, e o homem do Vale é então representado como “elemento de transformação
social. [...] portador de uma originalidade, de uma cultura local que congrega elementos que
denotam uma mentalidade de resistência e preservação do passado” (idem, p. 10). Nesse
sentido, as autoras argumentam que a miséria e a pobreza, antes temáticas centrais da
publicação, passam a ser secundárias quando da discussão sobre a valorização da cultura e do
território.

As autoras finalizam a análise discutindo o quanto as publicações desse jornal contribuíram


para fazer emergir entre os leitores um sentimento de união em torno dessa identidade mais
positiva sobre o Vale, afastando o estigma de “Vale da Miséria” ou “Vale da Fome”. Entretanto,
ressalta-se que mudanças na estrutura social não foram realizadas e que os discursos de
dominação e exploração foram apenas esvaziados.

A cartografia que realizamos nos sinaliza justamente para esse conflito que ainda persiste no
discurso e no cotidiano dos moradores do Vale do Jequitinhonha. Encontramos, por parte deles,
uma resistência em relação aos estigmas que, de certo modo, ainda perduram, mas, ao mesmo
tempo, ouvimos desses mesmos sujeitos a constatação de um abandono por parte do Estado em
termos de políticas públicas, o que se reflete claramente nos alarmantes índices em torno de
direitos básicos da população. Parte dos sujeitos com quem conversamos reconhece o título de
“Vale da Miséria” como impróprio e desrespeitoso, mas não porque a miséria e a pobreza não
sejam uma realidade, mas porque ela teria sido, de fato, produzida. Nas falas dos velhos e de
outros membros da região, essas questões ficam evidentes.

Eu não concordo (Sobre o título Vale da Miséria). Porque o Vale do Jequitinhonha,


ele é rico. É o pessoal, as empresa que carrega a riqueza e deixa nós na pobreza. E aí,
é... Por exemplo, eu trabalho aqui, tem bastante coisa na minha casa, aí chega um
ladrão, rouba. Ocê chega, vem me visitar, quando chega aqui, não tem nada pra comer.
“Zezé é preguiçoso?” Ele trabalhou! Então, só que alguém roubou o que ele fez, num
é? Então a mesma coisa com nós do Vale do Jequitinhonha. O Vale do Jequitinhonha,
ele é rico. Eu fico ofendido quando eu vejo falar “Vale da Miséria”, né (SEU ZEZÉ
DAS TESOURAS, 76 anos).

Como que era chamado o Vale do Jequitinhonha? Vale da Miséria! Vale das Viúvas
Vivas! Vale da fome! Desculpa, Vale da prostituição! Vale das Viúvas de marido
vivo! E isso não é verdade. E todos nós sabemos como é que é o Vale. O Vale era um
vale de gente trabalhador, honesto, mas um vale esquecido por políticos (Diretora da
FETAEMG).
106

Frente a essas questões que perpassam a história e as construções acerca do Vale do


Jequitinhonha, faz-se necessária a abertura de novos e outros olhares para a região como um
todo.

[…] é necessário mudar a forma de pensar o Jequitinhonha: antes de compreendê-lo


como o lugar da pobreza e da ausência do progresso, é preciso pensá-lo como um
lugar específico, particular, singular. Portanto deveria ser sujeito – e não apenas objeto
– de políticas públicas particulares, específicas e diferentes. Analisar o Jequitinhonha
numa perspectiva mais particularizada é um grande passo para criar propostas
adaptadas de políticas pois, deixando de pensar a região pelo que ela não tem e
passando a pensá-la pelo que tem, é que podem ser construídas políticas consistentes”
(RIBEIRO et al., 2004, p. 8)

Nesse mesmo sentido, torna-se necessário compreender as particularidades que existem dentro
da própria mesorregião, uma vez que nela coexistem múltiplos municípios e múltiplas
realidades. Sendo assim, vamos nos dedicar a compreender melhor a história e o contexto da
cidade considerada polo do médio Vale do Jequitinhonha, foco da nossa pesquisa.

2.3 A cidade de Araçuaí: História e Memória

As velhas cidades do Vale do Jequitinhonha são relicários de História. [...] Ao


contrário, porém, de suas co-irmãs que, largadas, agonizam, Santo Antônio do
Arassuahy, que também escreveu história em capítulos gloriosos, não nasceu das
batalhas, dos entrevejos majestosos. Ao invés do bacamarte e da espada, dos gritos
de desespero ou de vitória sobre os corpos mutilados dos guerreiros, seus
alicerces escolheram resguardo nos braços do amor (PAULINO, 1977, s/p).

Fotografia 1 - A cidade de Araçuaí

Fonte: Jeane Doneiro, 2017.


107

A história do município é cercada de simbolismos e talvez seja esse o motivo pelo qual povoa
o imaginário de seus residentes. Pouco se encontra registrado oficialmente sobre a origem da
cidade de Araçuaí, mas basta perguntar a qualquer um de seus moradores para que alguns
personagens dessa história venham à tona, como os canoeiros e a Luciana Teixeira, os quais
serão apresentados a seguir.

Tendo em vista os poucos registros existentes, buscamos como fonte a história oral, narrada e
(re)construída cotidianamente pelos moradores. Nas andanças para a produção dessa
cartografia, a biblioteca municipal foi um dos locais onde encontramos pistas sobre essa
história27. Em conversa com Dostoievsky Brasil, que atualmente trabalha como encarregado da
biblioteca e do arquivo público da prefeitura, conhecemos um pouco sobre esse enredo e seus
personagens. Dostim, como prefere ser chamado, é bacharel em história, residente da cidade e
relata ser um estudioso interessado nas memórias do município e de seus precursores. Ele
contou ser bisneto de um canoeiro – figura importante nesse enredo, uma vez que essa era a
forma de transitar entre as cidades quando as estradas ainda não existiam: “Canoeiro era uma
profissão para a qual a prefeitura dava posse”.

Sobre o final do século XVIII e início do século XIX, Dostim narra que todo o transporte era
feito na região pelos canoeiros ou então pelos tropeiros. Sobre a profissão de canoeiro
especificamente, ele relata que esta perdurou por muitos anos, tendo registros de sua existência
até 60, 70 anos atrás.

Minha avó contava como era viajar de canoa naquela época, porque ela mesma viajou
com ele (meu bisavô) várias vezes. Saía daqui e ficava uma, duas semanas até chegar
a Jequitinhonha porque tinha que dormir na beira dos rios, parava para fazer almoço,
jantar, para dormir... As mulheres dormiam dentro das canoas e os homens dormiam
na praia.

Ele conta que os canoeiros também transportavam, além de pessoas, mercadorias, o que fazia
com que percorressem longos caminhos. Ao longo dos rios, vários eram então os pontos de
parada, chamados de entrepostos comerciais (onde era feita a comercialização). Próximo de
onde hoje se localiza a cidade de Araçuaí, há o encontro de dois rios, o rio Araçuaí e o rio
Jequitinhonha. Este lugar, chamado de Barra do Pontal (hoje conhecido como Itira, distrito de

27
A atual gestão municipal tem desenvolvido um trabalho de criação de um acervo e memória sobre a cidade de
Araçuaí, mas esse material ainda não se encontra sistematizado para consulta.
108

Araçuaí), teria sido um importante e estratégico entreposto comercial, onde muitos canoeiros
paravam durante suas viagens. Dostim segue narrando:

Era o caminho que os canoeiros faziam, subindo e descendo o rio. Trazendo de lá pra
cá tecido, querosene, sal e levando daqui pra lá rapadura, fumo, algodão dessa região
toda aqui... E Padre Carlos Pereira Freire de Moura, que era o padre dessa comunidade
de Barra do Pontal, segundo a história era filho de um dos Inconfidentes Mineiros que
se refugiou nessa região... Primeiro o pai dele teria se escondido aqui, tomou posse de
terras, ele era filho de um desses inconfidentes e ficou dono de todas essas terras que
tinha entre os rios Jequitinhonha e Araçuaí. E o pai teria doado as terras que onde hoje
está o distrito de Itira para poder fazer dali uma cidade. Era um entreposto comercial,
mas a ideia dele era fazer uma cidade ali.

E entre esses canoeiros teria aparecido em Barra do Pontal uma mulher chamada Luciana
Teixeira. Uma mulher, canoeira e comerciante, algo pouco comum naquela época. Entretanto,
não existem registros que esclareçam se ela seria uma canoeira ou então dona da frota de canoas.

De onde ela apareceu também não se sabe. Alguns falam que ela teria vindo da barra
de cima de Diamantina, outros dizem que ela teria vindo da Bahia porque a nossa
ligação aqui é direto com a Bahia... [...] Aí nesse lugar ela teria se tornado
comerciante: vendia coisas, trocava coisas e, em um lugar que tinha muitos homens,
ela teria trazido algumas mulheres para morar ali e teria montado um bordel nesse
lugar. O bordel funcionava à noite e é fato, a gente sabe que em todos esses pequenos
lugares no mundo inteiro e aqui no Brasil não seria diferente, onde se tinham muitos
homens havia sim bordeis e cafetinas, porque era um comércio, era um negócio.

Em um lugarejo pequeno com domínio da igreja católica, tal negócio teria então rapidamente
começado a incomodar não apenas ao padre, mas às famílias tradicionais. Diante disso, o
referido pároco teria então expulsado essas mulheres de Barra do Pontal, as quais teriam então
subido o rio Araçuaí, oito léguas acima. De acordo com essa história, Luciana teria comprado
terras nessa região em que a cidade está hoje e construído uma fazenda, a Fazenda de Boa Vista.
Luciana teria dado terras para essas mulheres viverem, o que posteriormente deu origem à
cidade de Araçuaí. Outra versão da história é a de que Luciana seria comerciante e proprietária
da fazenda, tendo ela acolhido essas mulheres que foram expulsas pelo padre de Barra do
Pontal. Isso significaria, portanto, que não seria ela uma cafetina e dona de Bordel, mas alguém
que acolheu essas mulheres que antes haviam se estabelecido no entreposto comercial.

Ela simplesmente morava aqui em cima e, quando o padre as expulsou, ela acolheu
essas mulheres. Porque aí, Saint-Hilaire um botânico francês que viajou pelo Brasil
pesquisando, ele teria passado por aqui. Ele a conheceu [...]. Ele teria chegado até aqui
e encontrado com ela na Fazenda da Boa Vista, ele diz: uma velha mulata chamada
Luciana Teixeira. Em momento algum do livro dele ele fala de mulheres, de
prostitutas... Ele fala de uma fazenda, que tinha muitos colonos e que ele ficou
admirado como que as pessoas comiam, aquele olhar do europeu sobre a gente. Ele
109

teria chegado no dia Pentecostes e que o padre teria celebrado na casa e que ela o
acolheu muito bem, deu comida para os animais. Dizem que o padre nunca iria na
casa de uma prostituta celebrar a missa de Pentecostes... Eu não sei, eu sempre gosto
de falar as duas versões da história.

O livro sobre o qual comenta Dostim chama-se “Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e
Minas Gerais” e foi escrito pelo botânico francês Saint-Hilaire em 1872. Nessa viagem que
fizera ao Brasil, especificamente por Minas Gerais, ele registrou sua passagem pela Fazenda de
Boa Vista.

Pousei na casa de Boa Vista, talvez a mais agradavelmente situada de todas as que até
esse momento vira. É construída sob o cume de uma colina isolada, em baixo da qual
se deslizam com lentidão as águas límpidas do rio Araçuaí [...]. Boa Vista era a
residência de uma velha mulata chamada Luciana Teixeira. Tendo sabido que eu
viajava com passaporte do governo, essa boa mulher cumulou-me de atenções e,
pondo-se quase de joelhos, quis abraçar-me as coxas; mas compreende-se bem que
recusei semelhante polidez. Passei em Boa Vista no dia de Pentecostes. Um
sacerdote ali chegara, vindo de nove léguas de distância, e todos os colonos da
vizinhança se tinham reunido na habitação com os filhos e netos da minha
hospedeira, para assistir ao serviço divino. [...] Minha hospedeira não quis aceitar
nada de mim pelo que eu comi, nem mesmo pela forragem dos animais. Contentou-
se em me pedir-me um pouco de papel e este mesmo, queria pagá-lo (SAINT
HILAIRE, 1975, p. 238-239, grifos nossos).

Este seria, portanto, o único registro oficial acerca da vida de Luciana Teixeira.

Ela é uma personagem que desaparece da história. Você não tem uma fotografia, você
não tem nada. Não tem certidão de nascimento, de óbito, não tem nada! Aí no dia de
ir embora ela teria pedido a ela papel e tinta, ela não quis receber pagamento, apenas
o papel e a tinta, o que dá a entender pra gente que ela poderia ser uma pessoa
alfabetizada. E uma mulher alfabetizada o que nesse tempo era muito raro...
Comerciante, dona de fazenda, então ela deveria ser alguém bem a frente de seu
tempo. Talvez nem fosse realmente prostituta, cafetina, mas ficou com essa imagem
porque era à frente do tempo. Então são essas duas vertentes da história: essa Luciana
que acolhe essas mulheres que são expulsas de Barra do Pontal e essa Luciana que é
expulsa junto com as mulheres.

Há algumas literaturas criadas em torno da personagem Luciana Teixeira, o que reforça esse
imaginário que persiste em torno de quem ela era e como ajudou na construção da cidade. São
obras como “O estranho mundo do Dr. Boa Ventura: Crônicas do Jequitinhonha”, de Otto
Paulino, 1977; “A mulata Luciana no Vale do Jequitinhonha”, de Augusta Figueiredo, de 1982,
e “Senhora do Mundo”, de Ronald Claver, de 1988. São textos que contribuem para a
construção desse mito que paira sobre a criação da cidade.

Mas o único dado histórico é de Saint-Hilaire. Infelizmente é o que nós temos. E aí


provavelmente essa fazenda, que é o que aconteceu com muitos lugares, essa fazenda
com o tempo tornou-se um arraial, uma vila e depois uma cidade. Porque a
110

emancipação daqui apenas acontece em 1871, mas a povoação é de 1816. Será que
ela estava ali? Será que ela viu isso? São curiosidades que nós temos. E aí essa
personagem que é meio enigmática, que não tem um rosto, não tem uma cara.

Essa história é então disseminada pelos moradores e permanece viva com o passar das gerações.
Quando do centenário da cidade, um monumento foi construído para marcar as comemorações
e está exposto em uma das principais praças da cidade, onde se localiza a igreja matriz. Em uma
placa logo abaixo da escultura de um canoeiro, os dizeres relembram e de certa forma celebram
essa história.

Fotografia 2 - Escultura em homenagem ao centenário da cidade

Fonte: Jeane Doneiro, 2018.


111

Fotografia 3 - Dizeres da placa que compõem o monumento aos canoeiros

Fonte: Jeane Doneiro, 2018.

Com o passar do tempo e com o crescimento, o local da fazenda e do seu entorno foi ganhando
importância. Famílias foram se estabelecendo e se multiplicando. Em 1857, por força da Lei
Provincial de nº 803 de 13 de julho, o arraial que ali havia se constituído foi elevado à categoria
de Sede de Distrito. Em 1871, passou a se chamar Vila de Arassuahy e, em 21 de setembro de
187128, tornou-se cidade. O nome do município é de origem indígena e significa “Rio das
Araras Grandes”, animal que ainda hoje é símbolo da cidade29.

28
Lei Provincial nº 1780.
29
Há também outra versão para o nome da cidade. Na mesma obra de Saint-Hilaire, ele relata que esse nome teria
sido dado ao rio em função de que muito ouro havia sido encontrado ali. Daí a fala dos portugueses: “Ouro só
ali!”. Dessa frase teria surgido o nome Araçuaí.
112

Fotografia 4 - Monumento de boas-vindas à cidade de Araçuaí

Fonte: Jeane Doneiro, 2018.

Entre os anos de 1880 e 1885, a cidade, que ainda compreendia outros distritos hoje
independentes, exerceu um importante papel como entreposto comercial, o que ainda se fazia
próspero pelo trabalho dos canoeiros. Mas no final do séc. XIX, com a expansão das estradas e
dos trens, a profissão de canoeiro foi sendo aos poucos abandonada. Nesse momento, a
população voltou-se para a pecuária de corte, para o artesanato e para a agricultura de
subsistência (SANTOS, 2016).

No ano de 1929, uma grande enchente devastou a cidade. Em termos econômicos, surgiu uma
oportunidade de novos negócios voltados para o processo de reconstrução das casas e
comércios. Após esse processo de recuperação socioeconômica e também em decorrência dele,
foi construída na cidade, em 1942, a estação da ferrovia Bahia-Minas30, símbolo de progresso
que buscava ligar o interior ao litoral do país. Foi um período muito importante para o município
e para a região, tendo Araçuaí chegado a ocupar a posição de 4ª cidade mais rica do estado.
Entretanto, com a mudança do eixo comercial nacional da Bahia para o Rio de Janeiro, a

30
A construção da estação ferroviária na sede é de 1942, mas a de Engenheiro Schnoor, distrito de Araçuaí, é de
1930.
113

ferrovia que havia sido promessa de progresso, emprego e desenvolvimento para todas as
regiões em que passava, foi extinta em 196631.

Nas décadas de 60 e 70, tem-se a concretização do cenário que apresentamos anteriormente,


quando da criação da CODEVALE. Poucas mudanças em termos de infraestrutura foram de
fato constatadas na cidade e na região. A exploração do eucalipto por grandes empresários
tornou-se uma realidade, cuja repercussão principal se deu – e ainda se dá – em termos de
prejuízos para o meio ambiente. Um longo período de seca foi vivido entre os anos de 76 e 77,
piorando ainda mais a qualidade de vida da população. Desemprego, pobreza, mortalidade
infantil, epidemias: era a realização (ou podemos falar de concretização do ‘projeto’) do Vale
da Miséria. No ano de 1979, nova enchente aterrorizou Araçuaí, fazendo com que o centro
comercial fosse transferido para a parte mais alta da cidade, cujo marco foi a construção do
novo mercado municipal (SANTOS, 2016).

Toda essa história/memória é retratada em um documentário “Do baixo do rio e das mulheres”
32
, dirigido por Ana Clara Silva. Nele, a história é contada na voz de vários moradores da cidade.
A diretora do documentário é fotógrafa e assina esse projeto ao lado de Nilmar Lage, colega de
profissão. A obra é resultado de um projeto chamado “Circuito de Imagens”, que visava
valorizar os patrimônios histórico-culturais da cidade, e surgiu do interesse de Ana Clara por
retornar ao município onde nasceu e viveu por 17 anos. Em reportagem da Gazeta de Araçuaí
sobre o lançamento do documentário, a diretora explicitou: “A minha maior preocupação é não
dar aval aos que deram ao Vale do Jequitinhonha o nome de Vale da Miséria. Não tenho a
pretensão de desmistificar a miséria, pois mesmo não sendo uma total inverdade, não é o ponto
que merece mais atenção”33. Percebe-se aqui, mais uma vez, a tentativa e interesse crescente de
dar respostas aos estereótipos atribuídos à região com um todo.

2.3.1 Araçuaí entre o rural e o urbano: mergulhando no território

Com uma população estimada pelo IBGE (2018) de 36.705 pessoas, Araçuaí é a maior cidade
da microrregião do médio Vale e uma das maiores – em termos populacionais – da região do

31
Para saber mais sobre a ferrovia Bahia-Minas, ver “Estrada de Ferro Bahia e Minas: Ferrovia do Adeus”, de
Arysbure Batista Eleutério.
32
O documentário está disponível no Youtube: https://www.youtube.com/watch?reload=9&v=BZna3wHUzk4.
33
“Parte da história de Araçuaí será resgatada em fotos”, 18/06/2012. Disponível em:
http://www.gazetadearacuai.com.br/noticia/445/parte_da_historia_de_aracuai_sera_resgatada_em_fotos/
114

Vale do Jequitinhonha como um todo. Em termos econômicos, a realidade observada


atualmente no município ainda corresponde a um cenário de baixas oportunidades de emprego,
o que continua a alimentar o processo de migração de mão-de-obra para outras cidades e estados
brasileiros.

Os problemas e desafios ambientais defrontados pelo município advêm da intensa


atividade de mineração e agropecuária verificada na região, onde as limitações do
ecossistema não são respeitadas. Práticas como o desmatamento e queimadas,
somadas ao mau uso dos solos, concorrem para uma erosão acelerada. Soma-se a esses
fatores o assoreamento dos rios e córregos, a redução da vazão de alguns rios, a
intermitência de outros, o ressecamento dos solos, enfim, questões que afetam
diretamente os padrões de qualidade de vida da população local e incrementam a taxa
de migração sazonal (TENÓRIO, 2016, p. 339).

Em termos demográficos, identificou-se que, do total populacional contabilizado pelo IBGE no


censo de 2010 (36.013 pessoas), 12.578 eram residentes da zona rural. Isso significa que cerca
de 1/3 da população de Araçuaí era, naquele ano, residente da zona rural. Nas narrativas
recolhidas, ficou evidente a percepção sobre o processo de esvaziamento do campo o que, em
vários momentos, tem sido identificado como o causador de outros problemas sociais como o
aumento da violência urbana e a proliferação do tráfico de drogas.

A gente tinha que lutar para o homem do campo num sair do meio rural. O homem
sai da roça, ele vai inchar as cidade, vai aumentar a violência e vai perturbar quem tá
na cidade. Se nós tivesse condições de vida no meio rural, o êxodo era menos, a cidade
não tava cheia do jeito que tá. E tanta gente na cidade sem condições de viver também,
né? Não é brincadeira! (SEU ZEZÉ DAS TESOURAS, 76 anos).

Igual tá acontecendo... Eles vêm pra cá (zona urbana) com suas famílias, chega aqui
não tem emprego também, aí vai e entra nas drogas, entendeu? Então se a gente
conseguir fixar ele lá, na terra dele, que ele nasceu lá tendo água, tendo como trabalhar
e produzir, tendo como criar os filhos dele lá, ele quer ficar! (PODER PÚBLICO 3).

Uma reportagem recente intitulada “Êxodo rural deixa cidades fantasmas no Vale do
Jequitinhonha (Minas Novas/Chapada de Minas/Jenipapo de Minas/Araçuaí)”34, publicada em
16/04/18 no jornal Gazeta de Araçuaí, levanta essa questão do êxodo rural que não é algo novo
na região, mas que tem se intensificado em função da redução dos postos de trabalho nas usinas
de açúcar e álcool ou na colheita de café no interior de São Paulo. Vários moradores do campo
migravam temporariamente para atuar nessas plantações, enquanto suas esposas e filhos se

34
Disponível em:
http://www.gazetadearacuai.com.br/noticia/6708/exodo_rural_deixa_cidades_fantasmas_no_vale_do_jequitinho
nha/.
115

mantinham na roça35. A mecanização do corte de cana e da colheita do café fez com que vários
desses trabalhadores, ao invés de retornarem para a sua região de origem, fossem buscar novas
oportunidades em outras cidades e regiões. Mas por que eles não retornaram? Pelas mesmas
razões que os fizeram migrar temporariamente para São Paulo: a falta de oportunidade de
emprego e os intensos períodos de seca na região. Ainda na reportagem, o presidente do
Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Jenipapo de Minas argumenta: “o pessoal tem que
migrar mesmo, caçar algum servicinho fora. Na nossa região não tem empresas e chove muito
pouco”.

Nas nossas andanças pelo campo para a construção dessa cartografia, passamos por várias casas
vazias, algumas fechadas e outras abandonadas. Em muitas conversas, ouvimos os mesmos
comentários: “o povo daquela família foi embora”, “aquela casa li já não mora ninguém tem
tempo”. Para aqueles que permanecem na roça, a sensação é, na maior parte das vezes, de
solidão. Na mesma reportagem que citamos anteriormente, o jornalista toca na realidade que,
em certa medida, motivou a realização dessa pesquisa: “além de casas fechadas, a migração em
busca de oportunidades de trabalho provocou no Vale do Jequitinhonha o isolamento de pessoas
idosas, que perderam passo a passo a companhia dos parentes”. Observamos que de fato são
muitos os idosos que vivem sozinhos ou então acompanhados de outro idoso. Nesse contexto,
como vivem essas pessoas? Era isso que queríamos responder. Os dados do IBGE baseados no
censo de 2010 indicam que, das 12.578 pessoas que residiam na zona rural quando do
levantamento, 12.8% pertenciam à faixa etária de 60 anos ou mais (IBGE, 2010).

A política para a zona rural atende a todas as pessoas que moram lá, mas nós sabemos
que a maioria que está ficando lá é de velhos, porque a turma nova não quer ficar lá
na roça, que vir pra cidade. E todos esses anos, né, Araçuaí que era talvez, metade
zona rural, hoje já tem 2/3 cidade, 1/3 zona rural e quem está ficando lá são as
pessoas mais idosas mesmo (PODER PÚBLICO 3).

Uma justificativa para a permanência desses idosos no campo associa-se ao recebimento da


aposentadoria, o que vamos tratar em detalhes posteriormente. Nesse momento, cabe notar os
dados crescentes associados à proporção da população de vulneráveis e dependentes de idosos
no município. De acordo com dados de 2010 do Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil
(2018)36, essa proporção era de 6,24% na década de 1990 e passou a 7,22% da população em

35
Essas mulheres eram conhecidas como “viúvas de marido vivo”, uma vez que os homens passavam longos
períodos fora de casa para a colheita da cana.
36
Dados disponíveis em: http://www.atlasbrasil.org.br/2013/pt/perfil_m/aracuai_mg.
116

2010. Isso significa, grosso modo, uma situação em que a aposentadoria ganha cada vez mais
importância na composição da renda familiar, algo sinalizado em estudos recentes em todo o
país. De modo geral, presenciou-se a redução do número de pessoas vulneráveis à pobreza no
município (redução de 30.73% entre os anos 1991 e 2010), mas o patamar identificado em 2010
permaneceu sinalizando que metade da população seguia vulnerável a essa condição de
pobreza, o que é algo significativo e alarmante.

Em termos educacionais, Araçuaí tem uma taxa de escolarização (para pessoas de 6 a 14 anos)
de 97.5, segundo dados do IBGE de 2010. Isso posicionava o município como o de número 475
dentre as 853 cidades do estado e a de número 2904 dentre as 5570 cidades brasileiras (IBGE,
2010). Em visita realizada na Escola Municipal Joaquim Viana Gonçalves, situada na
comunidade rural de Córrego da Velha, uma funcionária da secretaria nos informou que
atualmente a instituição possui 90 alunos e funciona apenas no turno da manhã. Ela contou,
emocionada, que a escola já chegou a receber 500 alunos em dois turnos. Sobre essa redução
drástica experienciada nos últimos anos, a funcionária lamenta: “A escola tá acabando, não tem
mais aluno...” (Anotações do diário de bordo, 01/08/2018). Segundo dados da Secretaria
Municipal de Educação37, o total de alunos matriculados em escolas nucleadas38 nesse ano de
2018 é de 679. Mais uma vez essa situação está associada ao fenômeno do êxodo rural e,
consequentemente, à sensível diminuição do número de crianças e jovens que vivem no campo.

No que diz respeito às taxas de analfabetismo, o município registrou no ano de 2010 um


percentual de 23,7% da população com 15 anos ou mais. Isso significa que, naquele momento,
essa era a parcela da população que não sabia ler e nem escrever um bilhete simples, enquanto,
em cidades como Belo Horizonte e mesmo nas vizinhas de macrorregião Diamantina (Alto Vale
do Jequitinhonha) e Almenara (Baixo Vale do Jequitinhonha), os percentuais eram de,
respectivamente, 4,6%, 13,8% e 30,7% (IPEA, 2011). É importante destacar que a maior parte
dos sujeitos velhos com quem conversamos é analfabeta ou apenas consegue assinar, com
dificuldades, o próprio nome39. Para alguns deles, esse não saber trouxe – e ainda traz –
sofrimentos na medida em que os coloca em situação desigual perante outras pessoas que, como

37
Informação verbal cedida em entrevista com representante da Secretaria Municipal de Educação em 14/08/2018.
38
Escolas nucleadas são aquelas localizadas nas comunidades rurais. São chamadas de nucleadas porque são
posicionadas em pontos estratégicos para atender as comunidades do entorno.
39
No caso das assinaturas demandas para a participação na pesquisa, como os Termos de Consentimento Livre e
Esclarecido (TLCE), eles foram lidos para os velhos e explicados. Para aqueles que não sabiam assinar, fizemos o
registro do áudio das autorizações.
117

eles dizem, “são estudadas”. A dificuldade de acesso à educação, a necessidade de dedicação


ao trabalho, entre outros aspectos, serão abordados posteriormente quando da apresentação das
narrativas biográficas dos sujeitos.

Em relação à economia, alguns dados nos parecem relevantes. De acordo com o IBGE (2015),
o PIB per capta no município era de R$ 9.759,17, o que colocava Araçuaí na posição de número
595 dentre os 853 municípios que compõem o estado de Minas Gerais. Isso o coloca dentre os
35% de municípios com o pior PIB per capita do estado. Comparando novamente com os outros
municípios da mesma macrorregião, Diamantina apresenta um valor de R$ 13.902,67; e
Almenara, de R$ 11.130,40. Associado a esse índice está o Índice de Desenvolvimento Humano
(IDH), uma métrica que visa evidenciar o desenvolvimento econômico e a qualidade de vida
de uma população. O IDH do estado de Minas Gerais, com base no ano de 2010 era de 0.731,
enquanto o de Araçuaí era de 0.663. É importante dizer que, dentre as 15 cidades mineiras com
os piores IDHM, sete delas pertencem ao Vale do Jequitinhonha e do Mucuri (Região adjacente
ao Vale do Jequitinhonha). Em termos de rendimentos, o IBGE identificou em 2016 que 47,3%
da população de Araçuaí vivia em domicílios com rendimentos mensais de até meio salário
mínimo por pessoa (IBGE, 2015).

Todos esses indicadores de base econômica apontam para a realidade marginalizada discutida
anteriormente. De forma geral, podemos observar as desigualdades que marcam o
desenvolvimento da atividade econômica do estado, o que acaba por favorecer a concentração
de renda em determinados municípios. Enquanto as principais economias do estado estão
localizadas na região metropolitana de Belo Horizonte, no Triângulo Mineiro e no Sul/Sudoeste
de Minas, as de menor nível de atividade são as do Vale do Jequitinhonha e do Mucuri, da
Central mineira e da Zona da Mata (PEROBELLI et al., 2017).

Em relação à composição das atividades econômicas municipais, podemos observar a


distribuição da população ocupada no ano de 2010 entre os diferentes setores.
118

Tabela 4 - Pessoas ocupadas por ramo de atividade (2010)


Ramo de Atividade Percentual da população ocupada (2010)
Serviços 35,41%
Agropecuário 30,38%
Comércio 11,54%
Construção 9,51%
Indústria de Transformação 6,81%
Utilidade Pública 0,91%
Fonte: Adaptado de Atlas de Desenvolvimento Humano no Brasil, 2018.

Essa população ocupada corresponde, como podemos observar na figura abaixo, a 59,8% da
população do município. Como destacam Pereira, Ribeiro e Almeida (2016), grande destaque
deve ser dado à agricultura familiar e à pecuária quando se discute o panorama das atividades
econômicas do município de Araçuaí.

Figura 3 - Composição da população com 18 anos ou mais (2010)

Fonte: Atlas de Desenvolvimento Humano no Brasil, 2018.

Sobre a composição do território avaliada pelo censo agropecuário de 2017 (dados


preliminares), identificaram-se 113.739,644 hectares (ha) destinados a 2.589 estabelecimentos
119

agropecuários (IBGE, 2017). Deste espaço, 76.499,587 ha são ocupados por produtores
individuais, enquanto os outros 37.128,057 ha são comandados por condomínios, consórcios
ou união de pessoas. Sobre a utilização das terras, 4.465,5 ha são destinados a lavouras
(permanentes ou temporárias) e 38.151,535 ha para pastagens. As demais áreas destinam-se a
matas ou florestas e sistemas agroflorestais.

Os sujeitos participantes da pesquisa pertencem a essa categoria: são pequenos produtores rurais
que se dedicam à lavoura e à criação de animais. São velhos que dedicaram suas vidas a essas
atividades, tendo como apoio para a realização do trabalho membros da família e, por vezes, a
contratação temporária de mão-de-obra. Os dados do censo indicam que essa é uma realidade:
das 7.565 pessoas que estão trabalhando nesses estabelecimentos agropecuários40, desses 6.662
têm laço de parentesco com o produtor, ou seja, a maior parte da produção é de caráter familiar.
O número de tratores, implementos e máquinas existentes em todo o território (112 unidades)
apontam para a baixa mecanização e utilização de tecnologias no processo produtivo (IBGE,
2017), o que ouvimos com frequência nas narrativas dos velhos lavradores: o plantio e a colheita
são manuais, assim como o cuidado com os animais também realizado sem a ajuda de
maquinário especializado.

Especificamente sobre a existência de um órgão gestor da política agropecuária municipal,


conforme o MUNIC – Perfil dos Municípios Brasileiros, a prefeitura declarou que este é
subordinado à Secretaria de Desenvolvimento Econômico. Ela declarou também possuir um
conselho municipal de desenvolvimento rural, criado em 2017 e com a participação da
sociedade civil. O município declarou desenvolver programas de estímulo à agricultura familiar
e realizar cessões temporárias gratuitas de maquinários aos produtores agropecuários. Sobre as
condições de risco s quais o município está submetido, no relatório está declarada a incidência
de períodos de seca intensa, tendo o ano de 2015 sido relatado como o mais grave. A fim de
minimizar os danos causados pela seca, o município declarou a construção de barragens e
poços, itens que compõem o plano de contingência e/ou preservação municipal para a seca
(IBGE, 2017).

Em termos de saúde pública, os índices acompanham para a mesma realidade de


vulnerabilidades, embora melhorias tenham sido indicadas pelo poder público e percebidas

40
Pessoal ocupado em 30/09/2017 (IBGE, 2017).
120

parcialmente pela população41. Um indicador bastante utilizado para avaliação dessa dimensão
é a taxa de mortalidade infantil, que, em avaliação no ano de 2014, era de 8,53 óbitos a cada
mil nascidos vivos. Comparativamente, este índice coloca o município como o de posição 496
dentre os 853 municípios mineiros. Segundo dados da Secretaria de Estado de Saúde de Minas
Gerais, esse número reduziu para 5 em 2017 (5 óbitos a cada 100 nascidos vivos). Atualmente,
o município conta com a cobertura de Estratégia da Saúde da Família, sendo 13 equipes para
abranger todo o território – urbano e rural. Entre as principais causas de mortes no município
estão: Doença de Chagas, Leishmaniose, Doenças Respiratórias, Mentais,
Verminoses/Esquistossomose, Oncologia e Desnutrição (SINAN NET, 2017).

Por fim, um dado que particularmente nos interessa é o da esperança de vida ao nascer. Este
indicador é utilizado para compor a dimensão Longevidade no cálculo do IDH que
apresentamos anteriormente (além dessa também se utilizam as dimensões Educação e Renda).

Tabela 5 - Esperança de vida ao nascer


Esperança de vida 1991 2000 2010
ao nascer
(Local/Década)
Araçuaí 64,1 anos 68,4 anos 74,3 anos
Brasil 64,7 anos 68,6 anos 73,9 anos
Fonte: Atlas de Desenvolvimento Humano no Brasil, 2018.

A tabela acima evidencia um crescimento de 5,9 anos na esperança de vida ao nascer no


município na última década, acompanhando um crescimento que também aconteceu em nível
nacional. Especificamente a respeito da estrutura etária do município, é possível verificar uma
redução da razão de dependência no município, ou seja, a proporção de crianças e jovens
(abaixo de 15 anos) e idosos (acima de 65 anos) em relação à população potencialmente ativa
(entre 15 e 65 anos) diminuiu na década entre 2000 e 2010. Por outro lado, a taxa de
envelhecimento que corresponde à proporção entre a população acima de 65 anos em relação à
população total cresceu de 7,50% para 9,52%. Se houve uma redução da taxa de dependência
ao mesmo tempo em que se verificou um aumento do número de idosos (para essa métrica =
pessoas acima de 65 anos), podemos concluir pela redução do número de crianças e jovens.
Essa redução pode ser explicada pela redução da taxa de fecundidade (de 3,2 em 2000 para 1,9

41
Esse aspecto será tratado com maior detalhamento no capítulo 4 , com enfoque sobre a velhice.
121

em 2010), associada ao processo de êxodo rural mencionado anteriormente (ATLAS DE


DESENVOLVIMENTO HUMANO NO BRASIL, 2018).

Fechamos então essa seção demonstrando esse processo de envelhecimento a partir da


comparação das pirâmides etárias do município – 1991 e 2010.

Figura 4 - Pirâmide etária da população de Araçuaí (1991-2010)

Fonte: Atlas de Desenvolvimento Humano no Brasil, 2018.

As mudanças na configuração da pirâmide etária do município acompanham as alterações que


estão ocorrendo a nível nacional, ou seja, observamos o estreitamento da base e a ampliação do
122

topo. O envelhecimento da população se torna evidente e, como colocamos anteriormente,


aparece e é problematizado a partir de diversos olhares, inclusive, o de problema social
(DEBERT, 1997; TÓTORA, 2008a). Mas como a velhice é experienciada nesse território
especificamente? Para compreender essa realidade que se traduz no cotidiano de vida desses
sujeitos no território, vamos nos dedicar nessa próxima seção a compreendê-la mais
profundamente.

2.4 Um mergulho no território usado42: cartografando

Como colocamos inicialmente, nosso intuito ao construir esse capítulo era o de rastrear aspectos
gerais que nos ajudassem a aumentar a inteligibilidade sobre o território no qual se baseia a
pesquisa, para que pudéssemos então desenvolver análises associadas aos temas centrais da
tese, a relação entre velhice e trabalho rurais. Sinteticamente, os índices e dados apresentados
retratam, tanto em termos da mesorregião, microrregião e do próprio município de Araçuaí,
uma realidade marcada por baixo desempenho econômico, o que se reflete na falta de
oportunidades de emprego e em um processo ainda perceptível de migração de mão-de-obra.
Apesar de melhorias observadas e narradas pelos sujeitos que contribuíram para a construção
dessa cartografia, os índices e comparativos ainda indicam que um longo caminho precisa ser
percorrido para a redução das desigualdades sociais e melhoria das condições de vida da
população.

Entretanto, é relevante que retomemos aqui o conceito de território inicialmente discutido:


como a junção de uma série de forças que concorrem para a construção da realidade ou, nos
temos de Santos (1994), o território usado por aquelas que nele residem, sobrevivem e
constroem cotidianamente a vida. Nesse sentido, compreendemos que, para a construção
cartográfica, os aspectos históricos assim como esses índices demográficos-sociais-econômicos
– e porque não políticos – são apenas parte desse universo que pretendemos rastrear,
compreender, intervir e coproduzir.

Isso porque corremos um sério risco de uma leitura apressada: o risco de pensar que podemos
antecipar, logicamente, o que iremos visualizar quando do encontro com os sujeitos que usam
esse espaço. O convite ao leitor é que se mantenha atento a esse risco, afastando o quanto

42
Para Milton Santos (1994) a categoria de análise social não é o território em si, mas o território usado, isto é,
um espaço simultaneamente material e social.
123

possível os pré-conceitos e delimitações que insistem a nos conformar. O território pulsante é


também o espaço dos escapes, da dinâmica e da desterritorialização. Manter-se vigilante para
ser capaz de abarcar, ainda que parcialmente, a riqueza que emerge da complexidade.

Nesse sentido, para fazer emergir a complexidade, tentamos rastrear os espaços, ouvir
narrativas e experimentar o território. Isso implicou, como expomos anteriormente, idas e
vindas entre a cidade e algumas comunidades rurais, conversas com representantes de
instituições, da prefeitura, além de visitas ao mercado municipal. O mapa a seguir representa
essas trajetórias percorridas.

Figura 5 - Mapa das Instituições e Comunidades Rurais Pesquisadas em Araçuaí

Fonte: Elaborado pela autora.

Como explicitado, um terço da população araçuaiense atualmente vive no campo. Essa


população está distribuída entre aproximadamente 70 comunidades43 localizadas no entorno do
centro urbano do município. Até mesmo em função das distâncias, origens, vocações produtivas

43
Esse número pode variar um pouco a depender da forma de registro. Por exemplo, algumas comunidades se
subdividem em outras, como Tesouras: Tesouras de Cima, Tesouras do Meio e Tesouras de Baixo.
124

e organização em associações comunitárias, são comunidades com características específicas e


que desenvolvem diferentes relações com a cidade. Um exemplo é a comunidade dos Bois que
está a aproximadamente 77 km de Araçuaí e, embora pertença ao município, está mais próxima
de outro município chamado de Padre Paraíso. Essas diferenças foram captadas quando do
rastreamento que realizamos em algumas dessas comunidades.

No capítulo 1, descrevemos em linhas gerais como o processo de construção cartográfico foi


dinâmico e orgânico, e que as visitas a essas comunidades se deram a partir de indicações de
possíveis sujeitos para participar da pesquisa. São sujeitos velhos, trabalhadores rurais que
ainda comercializam ou já comercializaram seus produtos no mercado municipal de Araçuaí.
A partir da aproximação com o STR, fomos convidados a visitar as comunidade de Tesouras e
lá mesmo, na instituição, conhecemos o primeiro sujeito participante: o Seu Antônio da Velha,
membro da comunidade de Santa Rita de Cássia. A partir da aproximação com o Centro de
Referência de Assistência Social e com a Equipe da Saúde Básica, fomos convidados a
acompanhar a equipe de uma das Unidades Básicas de Saúde da zona rural instalada na
comunidade da Baixa Quente. Por fim, chegamos aos sujeitos das comunidades de Córrego da
Velha e de Gravatá de Cima a partir de indicações de profissionais de instituições da sociedade
civil que atuaram diretamente com essas comunidades e seus membros. Foram bons encontros
que permitiram explorar e experimentar muito além do que inicialmente pretendíamos. Sendo
assim, visitamos no total cinco comunidades rurais, a saber: Baixa Quente, Córrego da Velha,
Gravatá de Cima, Santa Rita de Cássia e Tesouras. Falemos brevemente sobre cada uma delas.

Tabela 6 – Distância aproximada entre as comunidades e a cidade de Araçuaí


Comunidade Distância de Araçuaí
Baixa Quente 14 km
Córrego da Velha 31 km
Gravatá de Cima 21 km
Santa Rita de Cássia 39 km
Tesouras 40 km
Fonte: Elaboração da autora.
125

Fotografia 5 - Comunidade da Baixa Quente

Fonte: Jeane Doneiro, 2018.

A comunidade de Baixa Quente é uma das comunidades mais próximas ao centro urbano de
Araçuaí. Em menos de 30 minutos é possível chegar até lá, sendo que a maior parte do trecho
é asfaltado. Essa proximidade faz com que a comunidade seja comparada a um bairro mais
distante, e, em função disso, o trajeto comunidade-Araçuaí é movimentado e realizado com
maior facilidade. As casas são próximas entre si e tem como ponto central uma quadra de
esportes comunitária coberta, onde parte dos eventos e reuniões acontece. Segundo os
moradores, a comunidade recebeu esse nome pelo temperamento intempestivo das mulheres
que ali viviam. Residem na comunidade aproximadamente 169 famílias, totalizando 594
pessoas. A associação comunitária é chamada de Associação Comunitária Bom Jesus da
Aguada Nova e foi fundada em 1978. Nessa comunidade, conversamos com Dona Luruca e
paticipamos de atividades promovidas pelo CRAS Dona Nati e pela UBS.
126

Fotografia 6 - Comunidade de Córrego da Velha do Meio

Fonte: Jeane Doneiro, 2018.

Já a comunidade de Córrego da Velha do Meio está a cerca de 31 km do centro urbano de


Araçuaí, em um trajeto que, de carro, tem a duração média de 50 minutos.

Fazia aproximadamente um ano da nossa última visita... Não me recordava da


distância e da dificuldade de passar por aquela estrada, cheia de pedras, e que agora
estava “boa”. Mais uma vez nos deparamos com um caminhão no caminho e tivemos
que retornar alguns metros de ré para dar passagem. O sol está muito quente, a
paisagem é muito seca e estamos cobertos de poeira (Anotações do diário de bordo,
01/08/2018).

Segundo os moradores, a comunidade leva esse nome porque há muitos anos uma velha índia
teria sido vista várias vezes às margens do córrego ao longo do qual o povoado se constituiu.
Conforme registrado no diário de bordo, atualmente esse corrégo que deu origem à comunidade
tem pouquíssima água, e a paisagem é extremamente seca. Segundo dados da Coordenação da
Atenção Básica de Saúde do município, 34 famílias vivem em Córrego da Velha do Meio,
totalizando 95 pessoas. As casas ficam mais distantes uma das outras em uma configuração
bem diferente da encontrada na comunidade da Baixa Quente (até porque é mais populosa). A
fundação da associação comunitária data do ano de 1995. Foi em córrego da Velha que
conversamos com o Seu Milton Granja e com a Dona Íris, sua esposa.
127

Fotografia 7 - Comunidade de Gravatá de Cima

Fonte: Jeane Doneiro, 2018.

Cerca de 20 km da comunidade de Córrego da Velha está a comunidade de Gravatá de Cima.


A comunidade também carrega o nome do ribeirão ao longo do qual foi constituída, e a
paisagem é bem parecida com a da comunidade anterior. As casas distantes umas das outras
dão a impressão de isolamento, e há pouquíssimo movimento na estrada. Em termos
populacionais, cerca de 74 famílias vivem na comunidade. A associação comunitária foi
fundada em 1996 e também leva o nome da comunidade: Associação Comunitária de Gravatá
de Cima. Na comunidade de Gravatá de Cima conversamos com Dona Santa e seu esposo, Seu
Erotides.

Já a comunidade Santa Rita de Cássia é a menor das comunidades que visitamos, está localizada
a cerca de 31 km do centro de Araçuaí. O trajeto para a comunidade é o mesmo da comunidade
de Tesouras, mas mais perto e rápido. Na comunidade, vivem cerca de 20 famílias com
aproximadamente 79 pessoas. Lá conversamos com o Seu Antônio da Velha e com membros
da comunidade, após a celebração do culto dominical. A Associação Comunitária Santa Rita
de Cássia da Cabeceira da Barriguda foi fundada em 1995, mas nesse momento está com as
suas atividades suspensas.
128

Fotografia 8 - Centro Comunitário da Comunidade de Santa Rita de Cássia

Fonte: Fabrício Pereira, 2017.

Por fim, Tesouras de Cima foi a comunidade mais distante que visitamos, não apenas em termos
de quilometragem, mas principalmente pelo tempo de deslocamento. Localizada a
aproximadamente 40 km do centro urbano de Araçuaí, a comunidade está numa região mais
alta dentro da área conhecida como APA do Lagoão.

Chegamos em Tesouras e a primeira parada é a casa de Dona Lia. Aqui o clima é bem
mais agradável e fresco, imagino que pela altitude. As casas são distantes umas das
outras e as estradas bem íngremes. Mesmo com o clima mais brando, a poeira está
solta na estrada (Anotações do diário de bordo, 02/08/2018).

Com 53 famílias e cerca de 165 pessoas, Tesouras de Cima tem uma das associações
comunitárias mais antigas (fundada em 1980) e atuantes, chamada de Associação Comunitária
N. Sra. de Fátima. Nessa comunidade, conhecemos o Seu Zezé das Tesouras (líder comunitário
e figura conhecida em Araçuaí), sua esposa Dona Isaura, Seu Emílio e Dona Marlene, Dona
Lia e Seu João.
129

Fotografia 9 - Comunidade de Tesouras de Cima

Foto: Jeane Doneiro, 2018.

As andanças cartográficas por essas comunidades foram experiências enriquecedoras para a


pesquisa, mas principalmente significativas em termos de trocas subjetivas. Foram muitos bons
encontros, nos termos de Deleuze e Parnet (1998), outros nem tanto. Vários elementos sobre os
modos de viver nesses espaços estão distribuídos ao longo deste trabalho, iniciando pelas
histórias de vida dos velhos que trazem nas suas particularidades elementos de um comum
compartilhado e coconstruído. Esses elementos continuarão a aparecer nos capítulos seguintes
quando trataremos das temáticas centrais: velhice e trabalho.
130

Capítulo 3

Uma perspectiva rizomática da velhice


131

3. Uma perspectiva rizomática da velhice

Neste capítulo, nosso objetivo é discutir um dos principais temas da tese: a velhice. Iniciamos
apresentando brevemente como a temática tem sido tratada na contemporaneidade para, em
seguida, propormos a perspectiva da velhice como rizoma.

3.1 Porque precisamos repensar a velhice contemporânea?

A velhice é uma produção da modernidade (SAIS, 2011). Isso não significa, entretanto, que em
períodos anteriores ao séc. XX não houvesse pessoas de mais idade, mas sim que em nenhum
outro momento esse fenômeno chamado velhice teria sido tratado dessa forma, como objeto de
interesse e investigação. Peixoto (2006) chama a atenção para o contexto francês, em que os
termos ‘velho’ ou ‘velhotes’ eram utilizados socialmente para designar aqueles que vendiam
sua força de trabalho e que, em função do avançar da idade, perdiam sua capacidade de produzir.
Ou seja, o velho era aquele que não possuía status social. Já o termo idoso surge para
caracterizar e garantir diferenciação ao patriarca e àqueles que detinham bens. Sendo assim,
considerar alguém como velho nada mais era do que uma questão de distinção social. Segundo
a autora, apenas no séc. XX é que a velhice teria então passado a ser considerada como um
objeto a ser compreendido e, logicamente, gerido.

No Brasil, esse interesse pelo tema teria surgido apenas a partir da segunda metade do sec. XX,
como esclarece Debert (1999). A autora argumenta que foi especificamente na década de 90
que assistimos no país à disseminação da velhice como um tema privilegiado, seja nas
discussões no âmbito das políticas públicas ou na identificação de novos mercados
consumidores. Obviamente, o aumento populacional comprovado estatisticamente contribuiu
para estimular e direcionar o olhar para essa população, entretanto, para compreender esse
interesse, é necessário ir além da questão demográfica. Sob os holofotes, a velhice passa a ser
uma questão pública ao mesmo tempo em que há um discurso de responsabilização individual
pela sua vivência. Esse seria então o duplo movimento denominado pela autora como processo
de reprivatização da velhice: privatização (do privado ao público) e reprivatização (do público
ao individual).

Uma das obras mais importantes dentro da discussão sobre o envelhecimento foi publicada por
Simone de Beauvoir em 1970, intitulada “A Velhice: Realidade Incômoda”. Nela a autora
132

denuncia o que considera ser uma ‘conspiração do silêncio’ em torno da velhice, que implica
uma situação de invisibilidade histórica desses sujeitos. Fazendo referência à obra clássica de
Beauvoir, Debert (1999) levanta a seguinte questão: seria esse interesse recente pela velhice um
processo de rompimento com a ‘conspiração do silêncio’ denunciada pela autora nos anos 70?
Bosi (1994) é autora de outra obra de extrema importância no contexto dos estudos sobre o
envelhecimento, chamada “Memória e Sociedade: Lembranças de velhos”. A autora argumenta
que a sociedade industrial (precursora da sociedade contemporânea) foi indiscutivelmente “[...]
maléfica para a velhice” (idem, p. 77). Isso porque em um contexto de proliferação da atividade
industrial e da demanda por mão de obra, o velho teria pouca ou então nenhuma utilidade. De
uma forma geral, essas autoras problematizam o lugar atribuído ao velho na sociedade e os
impactos desse (não)lugar em várias dimensões, inclusive, para a subjetividade.

E se pensarmos na contemporaneidade? De que forma o velho participa da sociedade atual?


Como explicitamos na introdução desta tese, uma das principais inquietações que motivaram a
realização desse trabalho é a forma como a velhice tem sido tratada, isto é, os discursos e
práticas que emergem cotidianamente sobre esse tema. Tais discursos, em geral, apontam para
uma visão positiva da velhice traduzida em expressões como “melhor idade” ou “velhice bem-
sucedida”. Essa suposta positividade corresponde a um ideal de velhice associado à valorização
da juventude e realizado por meio do consumo. Daí a proliferação de universidades para a
terceira idade, grupos de convivência para idosos, oferta de serviços especializados para essa
população (lazer, exercícios físicos, procedimentos estéticos), bem como das fórmulas a serem
seguidas para a vivência de uma ‘velhice saudável’.

Essa visão positiva da velhice que marca a contemporaneidade ganhou cada vez mais
legitimidade em função do saber médico que lhe sustenta. Como qualquer objeto que se torna
alvo de um saber científico, recai sobre ele o peso da institucionalização e da autoridade. Essa
questão é evidenciada por Debert (1994) e Silva (2008), respectivamente,

O discurso gerontológico é um dos elementos fundamentais no trabalho de


racionalização e de justificação de decisões político-administrativas e do caráter
das atividades voltadas para um contato direto com os idosos. Mesmo quando o poder
de decisão final não é do gerontólogo, ele é o agente que, em última instância, tem a
autoridade legítima para definir as categorias de classificação dos indivíduos e
para reconhecer nos indivíduos os sintomas e os índices correspondentes às categorias
criadas (p. 25, grifos nossos).

De fato, a definição médica da velhice disseminou-se para outros campos de saber e


determinou amplamente o seu espectro no imaginário cultural, alimentando os
133

discursos do Estado, a formulação de políticas assistenciais e a formação de


outras disciplinas como a gerontologia (p.159, grifos nossos).

Debert (1999) tece críticas em relação ao papel da gerontologia, enquanto ciência do


envelhecimento, no que diz respeito à sua participação ativa no processo de reprivatização da
velhice. Inicialmente pautada exclusivamente nas questões biológicas/funcionais, esses experts
tratavam do envelhecimento orgânico, pautando-se em técnicas e práticas para o retardamento
do desgaste físico. O retrato desenhado pelos profissionais era do envelhecimento associado à
miséria, dependência e passividade. Posteriormente, esses profissionais assumiram o discurso
da velhice como uma construção sociocultural, sendo representantes dessa ‘ideologia’ positiva
do envelhecimento, deslocando a juventude como determinação etária para um lugar de estado
de espírito. Seria esse processo um caminho de negação da velhice? Apostar na positividade da
velhice como algo natural e possível faz recair sobre os sujeitos a responsabilidade por não
assumir essa identidade.

Grosso modo, a autora destaca que os dois extremos criadores de estereótipos, a saber, a velhice
como miséria e deterioração e a velhice como positiva e fonte de recursos, ambos contribuem
para manter a ‘conspiração do silêncio’ em torno da velhice, sob outras roupagens (DEBERT,
1999; NERI, 2003). Como qualquer estereótipo, seu papel acaba por ser normatizador.

O que é certa idade? Eufemismo utilizado para se justificar uma sorte de coisas pelas
quais os velhos sofrem, sem haver conhecimento factual delas. A certa idade é um
modo de generalização, uma herança newtoniana que carregamos. Enaltecer a
generalidade em detrimento da particularidade do velho é absurdo e arbitrário
(MONTEIRO, 2005, p. 66, itálico no original).

Retomando o contexto francês explicitado por Peixoto (2008), a autora explica que, após a
Segunda Guerra Mundial, a realidade da população de mais idade no país era de miserabilidade.
Nesse sentido, as políticas sociais teriam sido revistas e uma nova categoria foi criada de modo
a fomentar um outro olhar sobre a velhice: a terceira idade. Houve a criação das Universidades
dedicadas a esse público, e o sistema de aposentadoria também foi remodelado. Essa categoria
social chega ao Brasil nos anos 60 e em pouco tempo o termo ganhou popularidade no Brasil
por ser uma denominação ainda não carregada de conotação pejorativa, sendo incorporada
inclusive pelo Estado na elaboração de seus documentos oficiais.

Segundo Debert (1997), a Terceira Idade não se refere a uma idade específica, mas é utilizada
genericamente para se referir às pessoas de mais idade. Segundo a autora, foi nos anos 90 que
134

os programas destinados a esse público se disseminaram tanto pela iniciativa pública como
privada. As atividades desses programas são de caráter recreativo como encontros de dança,
passeios programados, atividades físicas, ou então, como no caso das universidades, consistem
em aulas e conferências. Com grande adesão por parte da população, tanto os programas quanto
o próprio termo persistem nos discursos midiáticos e institucionais.

Debert (1994) discute que a criação da chamada "Terceira Idade" ou "Melhor Idade" teria sido
justamente uma manifestação de um jogo político que definiu novas práticas, direitos e deveres
associados a esse público de velhos. Tal tentativa de definição de um novo grupo de sujeitos
relaciona-se diretamente à identificação de um novo mercado consumidor, com necessidades e
expectativas particulares. Isso porque, conforme a autora, a própria ideia de periodização da
vida seria uma construção social que atende a determinados interesses. As ‘grades de idades’
reforçadas por uma perspectiva evolucionista de desenvolvimento humano seria capaz de
explicar o comportamento humano a partir da sua localização no espectro etário, ou seja, atribui
a cada faixa etária formas de agir e, logicamente, consumir. Entretanto, tal argumento de
desenvolvimento ‘genético/biológico’ comum aos seres humanos se desconstrói na medida em
que se tem conhecimento de outras sociedades em que esse processo não funciona da mesma
forma44. Tótora (2008a) complementa essa discussão ao dizer que a conformação da velhice se
exerce não apenas sobre aqueles que são velhos, mas abarca a sociedade como um todo por
meio de discursos preparatórios do tipo "alimente-se bem para envelhecer de forma saudável".

Se por um lado o discurso da ‘Terceira Idade’ emerge trazendo uma proposta de envelhecimento
ativo e saudável, por outro a velhice é trazida à tona por pesquisas sob a perspectiva de um
problema social da sociedade contemporânea. E, como qualquer problema, deve ser tratado,
resolvido, remediado. Ora, se assim a questão é tratada, o pressuposto é totalmente diferente -
um problema é um fato perturbador da normalidade, ou seja, seria a velhice algo que saiu do
curso normal esperado? Números são amplamente utilizados para justificar a relevância de
estudar esse fenômeno e não são, de fato, dados desconsideráveis. Mas não se pode restringir a
questão ao universo do quantitativo e, mais uma vez, a algo que nesse momento deve ser
consertado (TÓTORA, 2013).

44
Para entender mais sobre contextos sociais que desconstroem a perspectiva evolucionista de desenvolvimento
humano, ver: MEAD, M. Coming of Age in Samoa. American Museum of Natural History, New York, 1973.
135

Uma das discussões mais atuais que se enquadra nessa perspectiva da velhice como problema
social consiste no cuidado do velho, afinal, quem cuidará desses sujeitos? Discute-se que esse
cuidado pode ser exercido pela família - na maior parte dos casos por uma figura feminina -
assim como pela comunidade e por instituições. A realidade é que as mudanças na constituição
das famílias, bem como a inserção cada vez maior das mulheres no mercado de trabalho, têm
deixado dúvidas quanto à resposta para a questão. A responsabilização das famílias pelo idoso
é uma realidade no Brasil, tendo o Estado delimitado sua atuação por meio de Instituições de
Longa Permanência para os Idosos assim como por instituições que oferecem apoio nas
Atividades da Vida Diárias, ambas ainda bastante incipientes.

Tal responsabilização é prevista em lei e assegurada pela Constituição Federal de 1988, na qual
se evidencia a preferência pela atenção ao idoso no âmbito doméstico. Tal discussão abre
espaço para outros debates como a regulamentação do trabalho do cuidador de idosos, uma
figura que tem sido cada vez mais demandada frente ao envelhecimento populacional.
Entretanto, até mesmo em função de sua recenticidade - como profissão -, não há consenso
sobre aspectos como a escolaridade demandada para esse profissional bem como os limites da
sua atuação: seriam atividades no âmbito da assistência social ou da enfermagem? (DEBERT;
OLIVEIRA, 2016).

Em dissertação realizada em 2012 em uma instituição de Longa Permanência para Idosos no


interior de Minas Gerais, a percepção da velhice como problema social bem como a dificuldade
dos vários profissionais que lidam cotidianamente com esses sujeitos se mostraram evidentes.
Grande parte desses problemas identificados derivam da própria incompreensão do que é a
velhice, revelando um despreparo dos profissionais, não em termos técnicos, mas,
principalmente, no que diz respeito ao entendimento das especificidades subjetivas que marcam
esses sujeitos. Os reflexos identificados desse desconhecimento foram o sentimento de
insucesso no trabalho por parte dos profissionais, a percepção de que exercem uma função
inferiorizada, o silenciamento da morte, dentre outros. Mais uma vez reforça-se a percepção da
velhice como um problema social que precisa ser resolvido e gerido (BARRETO, 2012;
BARRETO; PAES DE PAULA, 2015).

Toda essa problematização se insere no debate acerca da gestão do envelhecimento na


contemporaneidade, o que Sais (2011) desenvolve a partir do entendimento das redes de saber-
poder em que a velhice está submersa. Baseando-se em Foucault (2008a), o autor problematiza
136

que o controle sobre o corpo e sobre os modos de ser (como o ser criança) é algo que data do
século XVIII, com o desenvolvimento das biotecnologias. Especificamente o modo de ser velho
na sociedade contemporânea, a qual também tem sido projetada sob a luz da tutela e do controle,
são os mecanismos como o Estatuto do Idoso os responsáveis pela classificação, registro e
acompanhamento do velho. Nesse sentido, mais uma vez despontam, por um lado, as medidas
consideradas protetivas desses sujeitos considerados necessitados de tutela ao mesmo tempo
em que são promovidos, ainda que implicitamente, os discursos sobre uma velhice positiva
desejada.

Para Foucault (2008a), esses são jogos de verdade que em constante circulação influenciam e
por vezes determinam a forma como esses sujeitos estão incluídos ou não nessa sociedade. A
dinâmica é, portanto, a de produção constante de verdades que legitimem as práticas sociais.
Diante disso, Sais (2011) argumenta que a velhice nada mais é que um dispositivo, nos termos
foucaultianos. Para o autor,

Idoso, terceira idade, melhor idade, gerontologia, geriatria, longevidade, demografia,


população, estatística, comportamento deficiente, saúde precária, dietética,
instabilidade, plasticidade, estatuto do idoso, entre outros, são todos componentes dos
jogos de verdade constituintes do dispositivo (SAIS, 2011, p. 66).

Nesse contexto, a população aparece como objeto, a partir do qual e para o qual mecanismos
serão criados com vistas a gerar efeitos. Na perspectiva de Sais (2011), a criação da categoria
velhice já seria uma ação do dispositivo de segurança dessa população que sutiliza o controle,
mas que de forma alguma o exclui. Nesse esteio, a velhice se insere na trama de saber-poder,
em que o corpo está na linha de frente sob o ponto de vista da biopolítica, afinal, estão no corpo
as primeiras marcas de uma velhice que se quer evitar. Como coloca o autor, “o que vemos é
formatado pelos discursos do que deve ser visto” (idem, p. 83). Nesse sentido, os efeitos desse
dispositivo se tornam claros (e dolorosos):

[...] a velhice a partir do dispositivo parece ser tomada como um substrato, um ethos
e um phatos onde o agente está descolado da ação. Não existe um devir, mas um
dever (ser). Ser o velho da velhice, do dispositivo. Sua sexualidade é “angelical”,
suas dores não são para serem tratadas, mas louvadas por serem típicas de quem
triunfou sobre a vida desafiando a morte. Seu tempo não é para ser vivido, mas
passado, está no lucro. Seu tesão é escárnio. Seu corpo não é seu corpo, é do médico,
dos filhos, dos asilos, da lei, da instituição, da velhice, do dispositivo. Como diz o
Estatuto do Idoso, deve ser cadastrado e submetido à cultura, ao lazer e à educação
adequados a sua condição. Velho não radicaliza, se rebela. Não se sensualiza, é
tarado. Não é doente, é doença. Não é agente, é paciente (SAIS, 2011, p. 92).
137

Concordamos com a crítica impressa na discussão de Sais (2011) na medida em que reforça a
perspectiva de que os estudos sobre o envelhecimento nos mais diferentes enfoques acabam por
fazê-los de forma descolada das condições de existência da pessoa que envelhece. Isso significa,
grosso modo, a criação de modelos associados ao envelhecimento que, mesmo garantindo-o
como um processo que teoricamente se entende como dinâmico, homogeneízam-no em termos
sociais: todos passarão pelo mesmo processo da mesma forma. Nesse sentido, faz-se necessário
estender a discussão para o contexto mais amplo em que essa velhice se realiza, isto é, o sistema
capitalista de produção. Afinal, em que contexto social, econômico, político, cultural estamos
falando sobre a velhice?

Guattari e Rolnik (2005) trazem contribuições a esse debate a partir do que denominam
produção de subjetividade capitalística45. O termo capitalístico remete não somente às
sociedades propriamente capitalistas, mas todas as outras que de alguma forma dela dependem.
Para os autores, esse sistema de produção de subjetividade capitalística possui algumas funções
como a culpabilização, a segregação e a infantilização. A primeira diz respeito à oferta de
modelos de referência únicos a serem seguidos pelos sujeitos que, caso não o alcancem por
razões as mais diversas, amargam o sabor da culpa pela sua incompetência de fazê-lo (como é
o caso da “Melhor Idade”). A segunda função, de segregação, relaciona-se diretamente à
questão da culpabilização. Sobre esses mesmos modelos de referência repousam hierarquias,
sistemas de valores e códigos disciplinares que demandam por parte dos sujeitos uma
localização. Por fim, e talvez a mais importante, seja a função de infantilização. Esta remete ao
fato de que "pensam por nós, organizam por nós a produção e a vida social" (GUATTARI;
ROLNIK, 2005, p. 41).

Associada a essas questões está a ideia de perenidade que marca a "ordem capitalística".
Perenidade aqui no sentido de que ela se faz reproduzir de forma inquestionável pela sociedade
de uma forma geral. Como expõe os autores, "aceitamos tudo isso porque partimos do
pressuposto de que essa é a ordem do mundo, ordem que não pode ser tocada sem que se
comprometa a própria ideia de vida social organizada" (idem, p. 42). Nesse contexto, o que se
tem é um esvaziamento da produção das singularidades, estas sim, espaços de resistência e de

45
A expressão foi cunhada por Guattari e Rolnik (2005) para se referir não somente a um modo de existência
vinculado à perspectiva e estrutura econômica, mas também a uma economia do desejo, um aprisionamento do
sujeito e uma apropriação/privatização/controle da subjetividade, fazendo com que as relações entre os seres
assumam uma lógica mercantilizada e privatizante do desejo.
138

questionamento do status quo. No que tange à velhice, podemos então questionar: quais modos
de existência nos são permitidos na contemporaneidade?

A apropriação da produção de subjetividade pelo CMI esvaziou todo o conhecimento


da singularidade. É uma subjetividade que não conhece dimensões essenciais como
a morte, a dor, a solidão, o silêncio, a relação com o cosmos e com o tempo. [...]
O mesmo se dá em relação à velhice. Ela é tão inconcebível que se fabrica uma
cadeia de 'micro-gulags' para velhos, com o único intuito de isolá-los. E as pessoas
aceitam esse isolamento. É escandalosa essa entrega passiva dos velhos a um destino
que os conduz a essas espécies de campos de desespero, quando não, em alguns casos,
a esses verdadeiros campos de extermínio em sua visão moderna (GUATTARI;
ROLNIK, 2005, p. 43, grifos nossos).

Reis e Heckert (2012) corroboram essa ideia de que apenas algumas possibilidades de sujeito
nos são permitidas e potencializadas, o que se reflete, por exemplo, na construção de políticas
públicas que buscam viabilizar esses certos modos de vida. Como colocam os autores:

Essa velhice é tomada, na maior parte do tempo, de forma tutelada, a partir de uma
lógica do cuidado que retira do sujeito sua autonomia e liberdade e impõe regras
prescritivas e padrões de vida formatadas na lógica capitalista contemporânea. [...]
Nessa linha de pensamento, produz-se ainda o discurso do entendimento do idoso
como sujeito de direitos, instaurando-se, assim, um novo regime de verdade que se
inscreve na realidade algo que até então não existia. [...] A justiça ou os regulamentos
jurídicos produzindo a realidade, ditando verdades e normatizando modos de vida!
(REIS; HECKERT, 2012, p. 102).

Como lidar então com essa apropriação da subjetividade tal qual se observa atualmente?
Guattari e Rolnik (2005) vão trazer a perspectiva de uma revolução molecular justamente
elencando a necessidade de mudanças no nível micropolítico e da subjetividade.

O que chamo de processos de singularização é algo que frustra esses mecanismos


de interiorização dos valores capitalísticos, algo que pode conduzir à afirmação de
valores num registro particular, independentemente das escalas de valor que nos
cercam e espreitam por todos os lados (GUATTARI; ROLNIK, 2005, p. 47, grifos
nossos).

Para Foucault, a frustração desses mecanismos refere-se ao que ele chama de possíveis práticas
de liberdade, em que justamente é possível enfrentar e combater o poder estabelecido
(DELEUZE, 2005). Quais modos de existência outros podem ser construídos? Haveria, nessa
perspectiva, lugar para a resistência e a reconstrução. Em uma das poucas entrevistas de
Deleuze (1989)46 em que o autor discorre especificamente sobre a velhice, ele abre espaço para

46
O abecedário de Gilles Deleuze foi um vídeo gravado em VHS por Claire Parnet, em 1989, o qual somente seria
veiculado após a morte de Deleuze, segundo acordo entre ambos. Há disponível uma tradução do material. Ver:
http://escolanomade.org/wp-content/downloads/deleuze-o-abecedario.pdf.
139

a discussão que Tótora (2008a) vai tratar como dimensão ético-política da velhice, ou seja, a
necessidade de discutir a temática em termos de resistência, para além do estabelecimento de
rótulos e padrões.

O velho é alguém que é. Ponto final. [...] Ele adquiriu o direito de ser. [...] Quando
se é velho, deixa-se de ser suscetível. Não há mais suscetibilidades, não há mais
decepções fundamentais. [...] Basta sacudir-se um pouco para que tudo caia. Caem
todos os parasitas que você carregou a vida inteira. E o que resta à sua volta? Só
as pessoas que ama e que o suportam e o amam também. O resto você deixou de lado
(DELEUZE, 1989, p. 8).

Nessa fala de Deleuze (1989), temos as bases de uma perspectiva de potência da velhice, de
uma liberdade em relação às amarras que Debert (2008) apresenta como ‘escolhas’ para a
construção de uma identidade do ser velho. Para Tótora (2008a), a discussão da velhice como
campo ético-político refere-se ao reconhecimento dessa liberdade sobre o vivido. A ética da
velhice estaria na possibilidade de subjetividades resistentes, que confrontem e escapem aos
poderes e saberes que transformam a velhice nesse objeto de conhecimento que é de muitas
formas gerenciado.

Resistir é um experimento irredutível a qualquer projeto de bem-estar, melhoria do


homem ou da sociedade, pois tem sido isso justamente o que a história passada e
presente vêm largamente apregoando, seja na forma de experiências de seus
protagonistas, seja através de seus profetas. Resistir é abrir-se ao ilimitado do devir.
Amor fati! Seja esse o único destino, longe de qualquer tentação de projetos
edificantes ou emancipatórios da humanidade (TÓTORA, 2006, p. 249, grifos
nossos).

Tendo em vista essa discussão, defendemos a necessidade de repensar a forma como a velhice
tem sido tratada na contemporaneidade. Falamos sobre o velho do adoecimento e da
vulnerabilidade, o velho do consumo e fonte de recursos, o velho sujeito de direitos e alvo da
gestão e controle do estado. São múltiplas as perspectivas, interesses e formas de olhar esse
fenômeno, mas que se revelam estanques, parciais e reducionistas. Tais perspectivas colocam
em risco a complexidade que marca a questão do envelhecimento e, especificamente, a
concepção de velhice e do ser velho. É nesse registro que defendemos o entendimento da
velhice sob uma perspectiva rizomática, que em nenhum momento se pauta na (inconsistente)
definição universal de quem é o velho, mas nos cruzamentos que permitem essa construção
transitória e plural. Nesse contexto, não falaremos de envelhecimento – como processo – mas
de modos de ser velho na sociedade contemporânea.
140

3.2 Por que propomos um olhar rizomático sobre a velhice?

Mercadante (2005), no texto “Velhice: Uma questão complexa”, recorre às ideias de Edgar
Morin para argumentar que considerar a velhice como complexidade é assumir as dificuldades
intrínsecas à tentativa de explicar o fenômeno. Nesse sentido, qualquer pensamento que não
considere a velhice como multifacetada, trata-se apenas de um olhar parcial. Tal complexidade
em relação ao envelhecimento não é algo novo; na sua obra clássica, Beauvoir (1990) já falava
abertamente sobre as várias dimensões que perpassam o processo de envelhecimento e, mais
do que isso, chamava a atenção para a necessidade de considerá-las de forma interdependente
e como mutuamente implicadas. Nas palavras da autora: [...] uma descrição analítica dos
diversos aspectos da velhice não pode ser suficiente: cada um deles reage sobre todos os
outros e é por ele afetado. É no movimento indefinido dessa circularidade que temos que
apreendê-la (BEAUVOIR, 1990, p. 156, grifos nossos).

É sob esse olhar que propomos pensar a velhice nesta tese a partir de uma perspectiva
rizomática. Conceber a velhice como um rizoma é entendê-la como um emaranhado de forças
que estão em constante interação (forças de toda ordem: forças sociais e políticas; forças
econômicas; forças corporais; forças associadas ao convívio familiar; forças relacionadas ao
trabalho; forças no campo da espiritualidade; forças provenientes de crenças e modos de ver a
vida, dentre tantas outras). Essas forças em constante fluxo configuram modos de vida e de
subjetivação e se particularizam nas vidas de cada sujeito, trazendo à tona a ideia de que a
velhice é, ao mesmo tempo, coletiva E particular (lógica da inclusão). Nesse sentido, discutimos
que, em tentativas de construir conhecimento no campo, mesmo sinalizando a concordância
com essa perspectiva da complexidade, por vezes os estudos caminham para a valorização de
uma das dimensões, seja ela a biológica, a social, a econômica, dentre outras.

Vamos nesse momento retomar o conceito de rizoma ligeiramente apresentado no início do


trabalho para então construir a proposta da velhice como rizoma.

3.2.1 Rizoma: O conceito deleuze-guattariano

Cunhado por Deleuze e Guattari, o rizoma é um conceito filosófico que abre perspectivas para
a compreensão da vida - em um sentido mais amplo - a partir da complexidade que lhe é
inerente. Considerados como filósofos da diferença, da imanência e/ou da multiplicidade, os
141

autores compreendem a própria construção do conhecimento como um devir. Isso significa


abrir mão da noção de que os conceitos se constituem como certezas sobre algo e reconhecer,
por conseguinte, que o conhecimento é uma produção genuinamente circunstancial.

A escrita conjunta de Deleuze e Guattari se iniciou com a publicação do clássico O Anti-Édipo


(primeira edição francesa datada de 1972), seguiu com as obras Kafka - por uma literatura
menor (1975 e 1976) e Mil Platôs (1980), e encerrou-se com o título O que é a filosofia? (1991).
Neste último livro, os autores explicitam o que entendem ser o papel da filosofia – algo que na
realidade se mostrou uma assinatura deles, a produção de conceitos: “a filosofia é a arte de
formar, de inventar, de fabricar conceitos” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 10). Nesse
contexto, os conceitos revelam-se tentativas de compreensão das circunstâncias e dos
acontecimentos, e não uma busca por definir o que as coisas são (conceito como essência).
Como explica Souza (2012, p. 237), “o conceito passaria a responder ao fenômeno e não mais
ao seu significado puro”, insistindo nas conexões singulares que são estabelecidas em cada
situação que se deseja conhecer, bem como nas forças que são ali convocadas.

Outra marca fundamental na escrita de Deleuze e Guattari (1992), associada à ideia de criação
de conceitos, é a interlocução constante com outras áreas como o cinema, a literatura, a música,
a biologia, dentre outros. Tal imbricação de diferentes saberes, embora para muitos possa
parecer um risco, torna-se para os autores um caminho sistemático e criativo de pensar o mundo
e suas complexidades, sustentando as diferenças e heterogeneidades. Um exemplo claro dessa
posição é o conceito de rizoma, nosso objeto de discussão nesta seção. Fazendo uma referência
direta à imagem de extensões subterrâneas de caules, responsáveis pela absorção de nutrientes,
o rizoma seria um emaranhado de linhas em que não é possível distinguir início e fim, nem
núcleo ou ponto central.

De acordo com Romagnoli (2017, p. 428), ao estudar a intersetorialidade nessa perspectiva,


“essa rede pode ser percorrida em diversas direções, não tendo um ponto fixo de entrada e de
saída. Deslizar por um rizoma é efetuar percursos reinventados em cada viagem e por cada um
que o explora”. Assim, para todos esses autores, essa imagem-conceito refere-se ao processo
de construção do pensamento, sobre o qual nos debruçaremos em seguida.

Como discute Souza (2012), a multiplicidade conceitual trazida por Deleuze e Guattari neste
exercício de construir uma filosofia do concreto cotidiano (GALLO, 2003) faz com que outras
142

áreas os busquem como referência, ainda que sem considerar aspectos fundamentais que
resguardem uma compreensão acerca da totalidade de seus conceitos. Um dos primeiros passos
a fim de entender melhor os autores franceses consiste em explorar as várias nomenclaturas sob
as quais são reconhecidos, dentre as quais Filosofia da Imanência (PRADO JR., 2000), Filosofia
da Diferença, Filosofia da Multiplicidade (MACHADO, 1990; ROMAGNOLI, 2014b) e
Esquizoanálise (DELEUZE; GUATTARI, 2011). Basicamente, essas nomenclaturas buscam
evidenciar pontos-chave do pensamento desenvolvido pelos autores, um pensamento que visa
romper com a lógica que permeia a construção de conhecimento na modernidade. Buscaremos,
nesse momento, introduzir as principais ideias dos autores tomando como base esses pontos-
chave dos quais emergem essas nomenclaturas, sem nenhuma pretensão, entretanto, de esgotá-
las.

Filosofia da Imanência. A imanência insiste na coexistência das diferentes composições da


realidade, que se encontram justapostas e não totalizadas (SCHOPKE, 2004). Isso significa que
há diferentes modos de funcionamento da realidade: o modo de funcionamento por organização,
em que prevalece a tentativa de organizar, estruturar e homogeneizar; e o modo de
funcionamento por imanência, também chamado intensivo, em que prevalece a pura diferença,
a ausência de modelos e a heterogeneidade. De acordo com Deleuze e Guattari, a realidade
pode ser compreendida como um campo de forças em constante relação, forças essas que ora
permanecem em fluxo, ora se cristalizam em formas (GODINHO, 2007). Para os autores, esses
modos de funcionamento coexistem na realidade em um processo de construção cotidiana. O
modo de funcionamento por organização corresponderia às tentativas de redução das incertezas
e da instabilidade, o que vemos, por exemplo, na definição das leis, na criação das instituições
e nos grupos sociais. É uma dimensão da vida dominante (molar), necessária e visível.
Entretanto, a vida para os autores não seria somente organização, reprodução, mas também
criação, possibilidade de invenção e do exercício da diferença.

Filosofia da Diferença. Para Deleuze e Guattari, o mundo é uma justaposição de opostos, que
não se apresentam necessariamente de forma antagônica, uma vez que a realidade é pura
diferença (MACHADO, 1990). Dito de outro modo, a Filosofia da Diferença surge em oposição
à lógica de pensamento pautada na identidade, na estabilidade e na permanência do mesmo.
Segundo Leopoldo Silva (2017), o pensamento ocidental se desenvolveu a partir dessa lógica,
em detrimento de outras. Nesta, percebe-se um desejo de que as coisas permaneçam as mesmas
com o passar do tempo, sendo a mudança indesejável. O autor explica que, nessa perspectiva,
143

a mudança existe, mas ela é incapaz de alterar a qualidade das coisas em si. Tal modo de pensar
existe desde a filosofia antiga, destacando-se nessa tradição o pensamento de Aristóteles. O
pensamento pautado na diferença, por conseguinte, entende que a exaltação da identidade seria
apenas uma convenção, ou seja, uma questão de caráter prático para a realização da vida. Nesse
sentido, acreditar na identidade das coisas é muito mais uma questão de segurança do que um
status de como as coisas são. Tendo em vista essa base do pensamento pautado na diferença,
ele se distancia do pensamento dialético na medida em que este busca a superação das
contradições (MACHADO, 1990). Sendo assim, emerge na obra conjunta de Deleuze e Guattari
a discussão da transcendência versus imanência, porque pensar nessa perspectiva é buscar o
plano de imanência, e não as semelhanças (SCHOPKE, 2004). A operação nesse modo de
pensamento consiste em ligar vários elementos que possuem suas próprias dimensões,
mantendo suas diferenças. Envolve reunir fragmentos e diversificar afetos para construir um
plano de imanência (LEE, 2014).

Filosofia da Multiplicidade. Se nos atentarmos para a vida na contemporaneidade, é possível


perceber que somos cada vez mais convidados a abarcar as diferenças. Os modelos tradicionais
demonstram esgotamento frente às suas tentativas de explicar a vida. Um exemplo seria o quão
estanques são as delimitações de gênero na tentativa de definir tipos/perfis e categorizar os
sujeitos. Os modelos binários (homem ou mulher, homossexual ou heterossexual) deixam
escapar uma série de outras manifestações da realidade, exatamente porque usam lentes
limitadas. Mas junto à complexidade emergem as incertezas e a necessidade de lidar com elas.
Tal cenário demanda uma operação lógica diferente, substituindo o OU pelo E. Um exemplo
claro remete ao próprio sujeito, muitas vezes representado nas obras ficcionais como bom OU
mal, quando na realidade nada mais apropriado do que pensar que todo sujeito é, ao mesmo
tempo, bom E mal, nunca uma coisa só. O Rizoma, como veremos em seguida, é uma forma de
pensamento que funciona a partir dessa lógica da complexidade (DELEUZE; GUATTARI,
1995b).

Esquizoanálise. No fechamento do primeiro livro escrito pelos autores intitulado “O Anti-


Édipo”, há a proposta da Esquizoanálise, corpo de pensamento que se caracteriza por uma
oposição a toda e qualquer hegemonia, trazendo uma nova concepção de desejo em estreita
associação ao social. Para Andoka (2012), este livro sustenta uma leitura maquínica da
realidade que se produz por movimentos e conexões, afastando-se de uma leitura
representacional ou cartesiana. Essa vertente possui duas tarefas fundamentais, a saber:
144

raspagem ou curetagem, crítica ao modus vivendi atual, fundamentada pelo rastreamento das
formas de classificação, hierarquização e homogeneização, e produção de dispositivos que
consiste em operar para produzir novas maneiras de viver e de pensar, que atuam em combate
ao poder opressão, com a proposta de invenção sustentada pelo poder potência em
contraposição ao poder opressão. Dessa maneira, a crítica vem sempre associada à criação.
Defende-se que eles fundaram a Esquizoanálise em uma proposta para combater o
estruturalismo (pensamento binário e fechado) e defender um funcionamento produtivo e
maquínico da realidade (ideia de máquinas desejantes) (ZOURABICHVILI, 2005).

Esse corpo de pensamento favorece um pensamento em rede, colocando em justaposição


diferentes modos de funcionamento da realidade, que sustentam modelos, formas, mas,
também, invenções e forças. Como vimos, os referidos autores sustentam a imanência, as
produções e os processos que escapam à transcendência e à divisão binária da realidade, mesmo
sabendo que esta é uma das maneiras pelas quais o mundo se apresenta. Como nos lembra
Godinho (2007), nessa leitura o pensamento se faz por movimentos, escapando dos
reducionismos, deslocando do domínio da representação, dos modelos que codificam a
realidade, para o domínio da experimentação, das forças que nos afetam e se expressam nas
situações.

Em ruptura com o modelo moderno, Schopke (2004) atesta que essa forma de pensar não busca
moldes transcendentes que (re)conhecem a realidade, mas sim visa associar o pensamento com
a vida, investigando a diferença em sua atividade inventiva. Pensar é assim experimentar, não
igualar, imitar. Romper com a representação significa que a potência do pensamento está na
sua associação com a vida, com a sustentação da diferença e da atividade criadora, cujo desafio
é exatamente se livrar dos modelos da representação. Nesse contexto, o rizoma revela-se como
o conceito por excelência que sustenta essa forma de pensamento.

O termo rizoma aparece pela primeira vez no texto “Rhizome”, sendo posteriormente publicado
como capítulo inicial de Mil Platôs (1980) a partir do qual se tornou mais conhecido. Refere-
se a uma forma de compreensão da vida - no sentido mais amplo - como um sistema de
conexões, sem início e nem fim, permeado por linhas, estratos, intensidades e segmentaridades.
Como explicitado anteriormente, a ideia-imagem de rizoma é oriunda da botânica e consiste
em uma haste subterrânea com ramificações em todos os sentidos, como os bulbos e os
145

tubérculos. De forma antitética, tem-se a árvore, com o caule e ramificações que se desdobram
desse eixo central (DELEUZE; GUATTARI, 1995a).

Figura 6 - Rizoma

Fonte: https://casacor.abril.com.br/noticias/estudio-guto-requena-lanca-colecao-de-cobogos-rizoma/
146

Figura 7 - Plantas de mangue (Caules Rizóforos)

Fonte: www.googleimagens.com

Os autores utilizam a imagem do rizoma para explicar como se processa o pensamento, trazendo
à tona as bases para a compreensão do que podemos chamar de teoria da multiplicidade. Isso
remete, basicamente, à discussão sobre a incapacidade do modelo de pensamento pautado na
imagem da árvore (caule central do qual partem ramificações) de dar conta da realidade
contemporânea que é múltipla, não binária e permeada por rupturas e incertezas. Tal modelo
arborescente de pensamento limita-se à busca pela essência das coisas, isto é, pela reposta para
a pergunta: o que é? Deleuze e Guattari, por conseguinte, pautam o pensamento na ideia de
construção, afastando-se dos conceitos enquanto essências (o que é) e aproximando-se das
circunstâncias que os envolvem. Nesse sentido, as respostas almejadas seriam: em que casos?
Onde e como? Quando? Como explicita Souza (2012, p. 245), “era preciso sair do modelo
arborescente, remissivo e essencial, para um modelo que proporcionasse uma representação
mais próxima da superfície, do pensamento que se propaga em vastidão, para isso eles
produziram o modelo rizoma”.

Para compreender melhor o conceito de rizoma, consideramos fundamental elencar suas


características ou princípios. Os dois primeiros remetem à ideia de que, em um sistema
147

rizomático, todos os pontos podem ser conectados, sem uma referência hierárquica ou central
(Princípio da conexão). Associado a esse princípio está o de heterogeneidade. Tal característica
deriva da noção de uma realidade complexa, em que "diferentes estatutos de estado de coisas"
(DELEUZE; GUATTARI, 1995a, p. 14) coexistem em movimento, formando conexões
diversas e múltiplas. Nesse sentido, não se pode pensar em uma coisa OU outra, mas uma coisa
E outra. Um exemplo desses agenciamentos múltiplos se dá na análise da língua que não se
limita ao que se diz e seus significados expressos, mas traz consigo "modos de agenciamento e
tipos de poder sociais particulares" (Idem, p. 14).

O terceiro princípio consiste na multiplicidade. Tal princípio, diretamente relacionado aos


anteriores, refere-se ao abandono do pensamento dicotômico que determina a separação binária
entre pólos como bem e mal, objeto e sujeito, homem e mulher. Para os autores, essa forma de
compreender a vida não é capaz de traduzi-la uma vez que são várias as conexões e as linhas
que se cruzam, são agenciamentos, movimentos. Como expõem os autores, "um agenciamento
é precisamente este crescimento das dimensões numa multiplicidade que muda necessariamente
de natureza à medida que ela aumenta suas conexões" (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 16).

Já o quarto princípio é o de ruptura a-significante, que remete justamente à impossibilidade de


uma ruptura definitiva de um rizoma. Esse sistema, como já visto - marcado por conexões,
heterogeneidade e multiplicidade - compreende e abarca o diferente, havendo sempre espaço
para reconfigurações. Nesse sentido, pode-se destacar a inexistência de uma perenidade; pelo
contrário, há a prevalência do temporário. "O bom e o mau são somente o produto de uma
seleção ativa e temporária a ser recomeçada" (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 17). Aqui
podemos destacar sua referência à ontologia da indeterminação, uma vez que envolve abrir mão
das essências e assumir a sua determinação histórica e, portanto, temporal.

A cartografia e a decalcomania são os dois últimos princípios de um sistema rizomático.


Conforme já sinalizado, o rizoma se opõe a ideia de uma árvore, com um eixo central. Enquanto
o modelo da arvore-raiz é “decalque”, reprodução ao infinito, o rizoma é “mapa”, “voltado para
uma experimentação ancorada no real”, aberto, desmontável, reversível, sujeito a modificações
permanentes, sempre com múltiplas entradas, ao contrário do decalque, que “volta sempre ‘ao
mesmo’” (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 17-22). Se o rizoma é mapa, nada melhor do que
a cartografia para expressá-lo.
148

Nesse momento, especificamente, os autores fazem críticas à psicanálise em função das suas
explicações ancoradas na obscuridade do inconsciente e na fixação a posições de uma estrutura
psíquica única. A perspectiva do rizoma, por outro lado, pressupõe que "a questão é produzir
inconsciente e, com ele, novos enunciados, outros desejos: o rizoma é essa produção de
inconsciente mesmo" (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 27). De forma sintética, o rizoma se
contrapõe a ideia de arborescência, de representação e não se deixa capturar pelas forças
cristalizadoras que endurecem e paralisam a potência da vida, mesmo que em determinadas
circunstâncias se encontre segmentarizado, estratificado. Incita sempre ao novo, à criatividade,
à heterogeneidade através de agenciamentos.

Esse é outro conceito tão importante quanto o de rizoma, correspondendo a alianças e passagens
entre o que está estabelecido e estratificado, e os fluxos, entre segmentos e forças. Como
passagem entre estratos e fluxos, o agenciamento remete à exterioridade, aos deslocamentos
que se fazem na conexão com o que está fora do indivíduo, fora do instituído. O agenciamento
engendra a experimentação, partindo de um estrato e se fazendo em um rizoma, e é
“precisamente este crescimento das dimensões numa multiplicidade que muda necessariamente
de natureza à medida que ela aumenta suas conexões" (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 17).
Desse modo, o rizoma é também por onde a vida circula e se agencia, não tendo início nem fim,
é mutável e se autometamorfoseia a todo instante, trata-se de um campo de experimentação.

Como então capturar e compreender a potência da vida que se faz presente na perspectiva
rizomática? A compreensão do conceito de Rizoma passa, necessariamente, pelo entendimento
das diferentes linhas que o compõem. Na tentativa de escapar dos modelos transcendentes e
defender a imanência, os autores propõem a apreensão da realidade por linhas, que possuem
funcionamentos diferentes. São três os tipos de linha: as linhas da segmentaridade dura, as
linhas flexíveis e as linhas de fuga.

As linhas de segmentaridade dura, como o próprio nome denota, são linhas marcadas pela
rigidez e são da natureza do instituído. Pode-se dizer que são as linhas de mais fácil
identificação, uma vez que estão normalmente relacionadas à própria formação dos sujeitos,
como o percurso família-escola, escola-trabalho, trabalho-aposentadoria. São as linhas que
delineiam as classificações: sexo, classe, nível, dentre outros, funcionando de modo dicotômico
e classificatório (DELEUZE; GUATTARI, 1996). Pode-se dizer que as linhas duras remetem
ao nível de realidade que se apresenta como dado, naturalizado. Seu caráter permanente tende
149

a afastar o questionamento e a crítica. Já as linhas flexíveis são de natureza mais maleável e se


modificam, ainda que em pequenas proporções, nos permitindo captar outras forças e agenciar.
Por fim, as linhas de fuga são aquelas que se associam ao novo, à mudança, à reconstrução
quando, de fato, ocorrem os agenciamentos instituintes. Em função disso, comportam-se de
forma completamente oposta às linhas duras, pois permitem os escapes e as resistências ao
instituído.

Há outros conceitos, subjacentes às linhas, que permitem uma maior compreensão sobre o
vivido e suas dimensões, ampliando ainda mais a concepção do rizoma e sua composição. Um
dos primeiros conceitos importantes refere-se à segmentaridade que, segundo Deleuze e
Guattari (1996, p. 77), é "[...] algo que pertence a todos os estratos que nos compõem". Essa
segmentaridade se faz de três modos: binariamente, circularmente e linearmente. A primeira,
binária, diz respeito às dualidades que marcam nosso contexto espacial e social; são os opostos
classificatórios: mulher e homem, bem e mal, vida e morte. Já a circular pode ser entendida
como amplitudes - somos referenciados por esferas das quais participamos, desde as mais
restritas às mais amplas (bairro, cidade, estado, país, mundo). Por fim, a linear consiste na
demarcação de processos, processos de vida individuais ou coletivos, o que significa que os
segmentos e os estratos são compostos por linhas duras, que aprisionam a vida em determinado
formato.

É importante ressaltar que os autores, ao tratarem da segmentaridade, destacam cuidadosamente


a sua não oposição ao que é central. Isso porque poder-se-ia, ingenuamente, entender que a
sociedade moderna, ao ter um Estado centralizado, seria, por conseguinte, menos segmentada.
Deleuze e Guattari (1996) discordam dessa posição alertando que a sociedade moderna,
representada claramente pelo aparato burocrático, nada mais é que uma forma específica e
particular de segmentaridade, alertando, inclusive, para suas disfunções e deslocamentos.

Retomando o conceito de agenciamento apresentado anteriormente, reiteramos sua importância


para a compreensão do rizoma. Afinal, se estamos falando de linhas, forças e estratos, são os
agenciamentos as passagens que conectam os vários elementos heterogêneos, “tanto da ordem
biológica, quanto social, maquínica, gnosiológica, imaginária” (GUATTARI; ROLNIK, 2005,
p. 381). Como complementa Souza (2012, p. 246), “tudo pode ser agenciado, basta que haja
vontade, aumentando, assim, a sua dimensão, modificando sua natureza e potencializando sua
heterogeneidade no acontecimento, o agenciamento é uma dimensão de conexões”. Esses
150

agenciamentos (encontros e conexões), por conseguinte, formam territórios – um mapa que


representa suas múltiplas conexões. São os agenciamentos que nos permitem conectar com
outras forças que não habitam os estratos, mas circulam fora deles, pela possiblidade de nos
afetar por essas forças e nos associar com diferenças. Que agenciamentos possíveis observamos
em determinado território?

A territorialidade emerge, portanto, como mais um conceito importante e se refere ao plano de


imanência dos agenciamentos. Os agenciamentos trazem consigo um esforço territorializante,
de organização das forças que foram conectadas, gerando novos territórios. Como explicita
Haesbaert (2006), o conceito de território é um constante fazer-se e desfazer-se, um conjunto
de conexões, uma rede de relações que se autoproduz por agenciamentos. Romagnoli (2014a)
afirma que nos territórios coexistem forças que são de natureza inventiva e formas estratificadas
e endurecidas. Essas forças e formas, em constante relação, mantêm padrões cristalizados por
repetição, mas também abrindo espaço para novas dimensões. Como explica Haesbaert (2006,
p. 111), “[...] o território é entendido como um processo”.

A ideia de movimento que perpassa o território associa-se aos constantes agenciamentos que o
constituem, possibilitando estados de permanência ou de mudança. Como expõe Deleuze
(1989, p. 4), “o território só vale em relação a um movimento através do qual dele se sai”. E
continua: “não há território sem um vetor de saída do território, e não há saída do território, ou
seja, desterritorialização, sem, ao mesmo tempo, um esforço para se reterritorializar em outra
parte”. Quais forças são capazes de gerar mudanças (ou um processo de desterritorialização)
em determinado território? Não há uma resposta única para essa pergunta, pois a noção de
território seria, de fato, relacional.

Dito de outro modo, podemos sintetizar o conceito de rizoma como um emaranhado de linhas
em constante interação (fluxos), sem início e nem fim definidos. Essas linhas ora se estratificam
em formas, ora permanecem fluídas como potência. Como vimos, as linhas podem ser duras,
flexíveis e de fuga, as quais, por meio de agenciamentos, formam novos territórios. O rizoma
se expressa nos territórios, que, embora dinâmicos e mutantes, permitem-se mapear e se
deslocam pelas forças que o atravessam.
151

3.2.2 Por uma perspectiva rizomática da velhice

Partindo desse panorama sobre o conceito de rizoma, passemos então a pensar a velhice sob
essa perspectiva. Vamos iniciar retomando uma questão básica que diz respeito ao
entendimento da vida e da realidade como pura diferença (MACHADO, 1990). Se olhamos a
velhice com essas lentes, já estamos, como ponto de partida, negando qualquer pretensão
essencialista (LEOPOLDO SILVA, 2017): não existe, portanto, uma essência que possa definir
o que é ser velho. Se assim fazemos, nós nos contrapomos às tentativas de elencar
características para esse sujeito, por mais sedutor que isso possa parecer. Essa questão da
essência remete à definição de identidades e está intimamente associada à discussão sobre
normatização inerente aos termos melhor idade ou terceira idade.

Para exemplificar esse argumento, podemos trazer aqui a nova categoria criada, a dos
superidosos. Uma breve pesquisa no Google com o termo nos mostra o tom da discussão: “Eles
passaram dos 75 anos, mas têm memória de jovens”47; “Qual o segredo dos superidosos que
esbanjam saúde com mais de 80 anos”48; “Cientistas revelam ‘segredo’ dos superidosos que
superam a expectativa de vida49”. Em geral, esse tipo de reportagem, algumas delas até mesmo
baseadas em estudos científicos, traz uma espécie de moral da história: para ter uma boa velhice
ou uma velhice saudável, o idoso deve se exercitar, manter-se ocupado, ser sociável, buscar
contato com a cultura, ser menos paranoico, dentre outros. A existência desse padrão implica
duas situações sobre as quais já comentamos anteriormente: a primeira delas enquadra-se no
processo de responsabilidade individual sobre o envelhecimento, ou seja, cabe ao sujeito desejar
e realizar esse projeto de velhice feliz; e segunda consiste na suposição de que essas atitudes
desejadas estariam disponíveis a todos os velhos da mesma forma, a seu bel prazer
(desconsiderando desigualdades sociais históricas, econômicas, políticas e culturais).

A crítica em relação às identidades fixas e a percepção do potencial da perspectiva rizomática


de pensamento são discutidas por Linstead e Thanem (2007) no que diz respeito à categoria de
gênero. Os autores argumentam que pensar o gênero para além do binarismo homem/mulher é
algo que já tem avançado em termos de privilegiar uma abordagem baseada na multiplicidade.

47
https://noticias.r7.com/saude/eles-passaram-dos-75-anos-mas-tem-memoria-de-jovens-os-superidosos-
29072018. Acessado em: 20/07/2018.
48
https://www.bbc.com/portuguese/geral-42419668. Acessado em: 20/07/2018.
49
https://ultimosegundo.ig.com.br/ciencia/2018-02-20/super-idosos.html. Acessado em: 20/07/2018.
152

Entretanto, os autores argumentam que há várias formas de pensar a multiplicidade e que, a


depender da escolha, ainda sim podem persistir visões reducionistas e opressoras. Eles
exemplificam trazendo estudos que, embora reconheçam as limitações de reduzir o gênero a
distinções biológicas, eles pouco avançam ao levantar possibilidades que permanecem
ancoradas em binarismos como o feminino e o masculino, assim como em suas representações.
Nesse sentido, eles propõem um olhar sobre o gênero pautado na concepção de rizoma de
Deleuze e Guattari, discutindo que a identidade de gênero pode ser repensada como imanência
e intensidade.

É nesse mesmo sentido que propomos a perspectiva rizomática da velhice. Como explicitam os
autores, as implicações do pensamento pautado no modelo arbóreo centralizado é que acabamos
presos, ainda que de forma não consciente, às amarras que nos conduzem a uma cultura de
manutenção dos sistemas centrais de poder e conhecimento que perpetuam hegemonia e a
opressão (LINSTEAD; THANEM, 2007). Quais são as amarras que trabalham a favor da
manutenção das estruturas opressivas de gênero (e etárias)? Essa tentativa de pensar para além
do modelo arborescente é discutida pelos autores:

Este é o significado de rizoma. A identidade de gênero, entendida assim como


rizomática ou como tendo características de um rizoma, não origina uma
multiplicidade ou mesmo adquire multiplicidade – ela é multiplicidade, embora o
sentido implícito ao verbo ‘é’ não deva ser entendido como estabilidade, mas com
constante mudança para tornar-se50 (LINSTEAD; THANEM, 2007, p. 1291, itálico
no original, tradução livre).

Conforme os autores, o resultado da não compreensão do gênero sob esse olhar é considerar
que apenas algumas identidades (fixas) sejam humanamente normais e que as demais se tornam,
por conseguinte, patológicas. O mesmo pensamento se estende em relação às identidades de
velho aceitas como normais e patológicas na sociedade contemporânea. Nesse sentido, nossa
contribuição é recorrer à filosofia da imanência para pensar a velhice também como um vir a
ser, como fluxo e fluidez.

Um segundo ponto nessa construção da perspectiva rizomática da velhice relaciona-se


diretamente a essa discussão anterior sobre a essência, pois consiste na negação da construção
da realidade a partir dos binarismos (jovem/velho). Tal pensamento binário - um dos aspectos

50
No original: “This is what meant a rhizome. Gender identity, understood in this way as rhizomatic or having the
qualities of a rhizome, does not originate in multiplicity or acquire multiplicity – it is multiplicity, although the
sense of being implied by the world ‘is’ should not be understood as stability, but the constant change of
becoming”.
153

combatidos pela Esquizoanálise (ZOURABICHVILI, 2005) - é uma negativa da multiplicidade


e funciona como linhas duras que buscam estratificar a vida. Associado ao binarismo
jovem/velho comumente está o bom/ruim, o que fica evidente no título da reportagem anterior
sobre os superidosos: “Eles passaram dos 75 anos, mas têm memória de jovens”. Se olharmos
com atenção, a idade é apresentada como o fato que evidencia a velhice e logo depois a boa
memória é apresentada como um atributo jovem que, surpreendentemente, esses idosos
possuem. Não negamos aqui a existência de estudos que comprovam debilidades advindas do
processo de envelhecimento, mas o problema está no discurso totalizante que acaba por ser
incorporado e internalizado por todos, não apenas pelos idosos.

Seguindo nossa proposta de uma perspectiva rizomática da velhice, vamos especificamente


adentrar nos princípios do rizoma e como eles nos ajudam a compreender esse fenômeno.

Princípios da conexão e heterogeneidade. Se olharmos especificamente para as múltiplas


dimensões que compõem o fenômeno da velhice, como a questão biológica/genética, social,
psíquica, etc., percebemos que não há entre elas uma hierarquia como muitas vezes se pretende
propor. Como dissemos, o discurso médico é predominantemente voltado para as
vulnerabilidades que acometem a população que envelhece, dando destaque para a dimensão
biológica/genética. Nesse sentido, a maior parte de discursos como o da melhor idade se pautam
no imperativo da manutenção do corpo saudável. Não descartando outras dimensões, esse
discurso se coloca como hierarquicamente superior e, portanto, determinante para se pensar
(agir e gerir)51 essa população.

Essa forma de pensar subjuga outros componentes fundamentais do processo de


envelhecimento como os de natureza social e econômica. Alguns questionamentos podem ser
colocados: as boas condições de saúde garantem que a velhice seja experienciada como melhor
idade pelos sujeitos? Velhos com problemas de saúde estão impossibilitados de significarem e
viverem suas vidas com satisfação? Um contexto que chama a atenção e que de certa forma
reitera a argumentação que aqui trazemos está presente em trabalhos que investigam o suicídio
de idosos. Santos (2014) analisou os fatores de risco associados a esse fenômeno e destacou:

51
Aqui mais uma vez fazemos a crítica à área médica e à Gerontologia em especial recorrendo às noções de saber-
poder foucaultianas, que se aplicam por meio da biopolítica exercida enquanto controle da população.
154

O processo de envelhecimento e as perdas dos papeis sociais (trabalho, sexualidade


e família) destacam-se como motivadores para o ato suicida em idosos, colocando
desafios muitas vezes intransponíveis para a reformulação de projetos de vida
válidos para si e para o outro (p. 84-85, grifos nossos).

Embora não tenhamos como objetivo aprofundar nessa discussão sobre o suicídio de idosos, o
que chamamos a atenção é sobre a existência de outros fatores que também influenciam a não
experiência de uma velhice bem-sucedida, que não apenas problemas relacionados à saúde
biológica/funcional. Nesse sentido, o ato do suicídio, muitas vezes interpretado como
sintomático de uma insatisfação perante a vida ou mesmo de distúrbios de natureza psíquica,
indica que outras questões precisam ser consideradas quando falamos do fenômeno da velhice.
Sendo assim o que discutimos com a perspectiva rizomática da velhice é justamente isso, um
entendimento de que todas essas forças estão presentes simultaneamente na construção do que
é ser velho e que, a depender da dinâmica dos agenciamentos, certas forças se sobrepõem às
outras, transitoriamente, formando certas configurações coletivas, mas também particulares.

De modo mais aprofundado, discutimos que não há como separar essas dimensões, pois elas
coexistem. No caso dos fatores de risco associados ao suicídio, por exemplo, uma questão de
cunho social (como é o caso da morte social advinda da aposentadoria) pode culminar ou
intensificar desequilíbrios de ordem psíquica (como a depressão) e compor o cenário que
origina a ocorrência do evento. Observamos outro exemplo de coexistência de forças nesse
contexto da velhice em nossas andanças cartográficas. Uma das senhoras com as quais
conversamos, Dona Íris, relatou que estava realizando um tratamento de saúde em que o médico
havia prescrito a ela uma série de medicamentos, “tava com pobrema de coração, tinha duas
falhas” (DONA ÍRIS, 59 anos). Após um tempo de uso da medicação, Dona Íris disse que
visitou a cidade de Aparecida do Norte onde se localiza o Santuário de Nossa Senhora
Aparecida, em São Paulo. Ela relata que aos pés da santa deixou os medicamentos e que, a
partir de então, não faz mais o uso das drogas, mas que está bem e que os exames comprovam
sua melhora. Sem adentrar em discussões a respeito do que aconteceu, o fato é que a saúde
encontra nesse contexto a força da religiosidade, o uso de plantas medicinais e as crenças que
constroem outras formas de lidar com as enfermidades.

Princípio da ruptura a-significante e multiplicidade. Grosso modo, o que queremos dizer é


que há tantos modos de ser velho quanto possíveis e (in)imagináveis. São configurações
rizomáticas, das quais podemos apenas tirar um retrato – momentâneo e, portanto, passageiro.
Essa temporalidade que faz com que uma força que é mais intensa em um determinado
155

momento seja, a partir de agenciamentos, transformada em relações de outras naturezas. Se


olharmos historicamente a questão da aposentadoria rural, por exemplo, podemos observar essa
mudança em termos de intensidade de forças e os impactos na configuração social e familiar
dos sujeitos. Ouvimos nas nossas andanças o quanto as dificuldades provenientes da seca e da
falta de acesso a recursos adequados tornam a produção agrícola familiar na região estudada
bastante precária. Essa situação de precariedade já existia antigamente, e os velhos lavradores,
com as dificuldades de trabalhar em função do peso das atividades agrícolas e da agressividade
do sol, acabavam por se tornarem dependentes dos seus familiares.

[...] no campo não tinha direitos previdenciários pra gente poder viver, quem tinha
seus velhos tinha que cuidar deles da maneira que fosse. Quantos e quantos idosos
morreu no mato de fome, porque a família não dava conta! E naquela época os idosos
deixavam os filhos comer pra eles sobreviver, porque pra eles tanto faz viver ou
morrer pelo sofrimento que eles viviam (Diretora da FETAEMG).

Nesse sentido, é evidente o quão significativo e transformador foi a inclusão dos trabalhadores
rurais dentre os beneficiários da previdência social. Eles passaram de dependentes a, na maior
parte das vezes, provedores do lar (IBGE, 2010). Esse é um exemplo de análise histórica que
demonstra a inserção de novas forças que transformam determinadas realidades, vivências e
subjetividades. A aposentadoria rural, que será mais bem explorada posteriormente, mudou a
configuração do rizoma velhice nesse território, fazendo emergir outras configurações.

Princípios da Cartografia e Decalcomania. Um outro princípio importante do rizoma é a


cartografia, uma vez que os fluxos de forças demandam para sua leitura um caminho (ou modo
de pensar) da mesma forma aberto e dinâmico. Esse olhar cartográfico se justifica pela
aderência à complexidade, um navegar pela rede e pelas suas múltiplas conexões. Pensar na
velhice sob a perspectiva rizomática implica esse movimento e, mais que isso, essa convivência
com as incertezas. Nesse caso em especial, utilizamos a cartografia como posição teórico-
metodológica (capítulo 1) e isso significou estarmos abertos para os diversos elementos que
concorrem para a construção da velhice naquele contexto. Uma importante observação sobre o
princípio da cartografia é que, para compreender a velhice sob essa perspectiva, faz-se
necessário um aprofundamento na realidade cotidiana dos sujeitos em questão, justamente para
que seja possível emergir as forças e suas intensidades. Nesse sentido, em termos
metodológicos, entendemos que essa abertura se faz possível a partir da articulação entre
diferentes técnicas de produção de dados, como observação, entrevistas, histórias de vida,
156

fotografias, dentre outros, compreendendo que algo que escapa a uma delas pode ser captado
de outras formas.

A importância desse aprofundamento no cotidiano dos sujeitos velhos para compreender as


forças que compõem o ser velho repousa no entendimento de que a velhice na perspectiva
rizomática consiste em uma experiência ancorada no real. Isso significa que as práticas
cotidianas (re)constroem esse modo de vida da velhice e, por isso, nenhum ‘decalque’, ou
identidade, ou definição fixa é capaz de registrá-las sem reduzir e simplificar. O decalque é o
retrato estático do mapa. Aqui mais uma vez retomamos a lógica da inclusão que marca a figura
rizomática, contrapondo-se à lógica da exclusão (arborescente). Nesse sentido, não
encontramos, em nossas andanças cartográficas, velhos que sejam apenas felizes, saudáveis e
produtivos, mas sim felizes E sofridos, saudáveis E adoecidos, produtivos E improdutivos.

É fundamental compreender que essas diversas forças que ora se cristalizam em fôrmas (por
exemplo, velhice bem-sucedida, melhor idade), ora escapam por linhas de fuga (criando
velhices outras) estão ancoradas em experiências cotidianas e estão circunscritas a um território.
Para isso vamos retomar a definição ampliada de território apresentada no capítulo anterior.

A definição de território é entendida aqui num sentido muito amplo, que ultrapassa o
uso que dela fazem a etiologia e a etnologia. Os seres existentes se organizam segundo
o território que os delimitam e os articulam aos outros existentes e aos fluxos
cósmicos. O território pode ser relativo tanto a um espaço vivido quanto a um
sistema percebido no seio do qual o sujeito se sente “em casa”. O território é
sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma. Ele é o
conjunto dos projetos e das representações nos quais vai desembocar,
pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos tempos
e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos (GUATTARI; ROLNIK, 2005,
p. 388, grifos nossos).

Esse território, que suplanta o espaço geográfico, mas que também o inclui, é parte essencial
para o que estamos propondo como uma perspectiva rizomática da velhice. Nesse sentido,
algumas questões podem contribuir para a compreensão desse rizoma velhice que, no caso
específico desta tese, circunscreve-se ao território das comunidades rurais do médio Vale do
Jequitinhonha.

Para fecharmos essa seção que traz a proposta da perspectiva rizomática da velhice, ainda que
sem qualquer pretensão de esgotá-la, entendemos ser fundamental debater o porquê da
importância dessa forma de olhar o fenômeno, especialmente no contexto dos Estudos
157

Organizacionais e de Gestão Pública. Partiremos da pesquisa de Reis e Heckert (2012) para


construir nossa argumentação sobre o quão relevante se mostra lançar olhares diferentes sobre
a velhice, especialmente no que tange à elaboração de políticas públicas sobre o tema. Partindo
da concepção da velhice como enunciação de modos de vida disruptivos, os autores buscaram,
nas narrativas e observações junto a idosos de Vitória/ES, captar formas particulares de viver a
velhice, formas estas que enfrentam e interferem no fazer das políticas de assistência social
voltadas a esse público.

A pesquisa realizada pelos autores nos permite questionar o sujeito usuário padrão da política
de assistência social, um usuário universal e de certa forma abstrato. A pesquisa nos chama a
atenção porque nos mostra, principalmente, como a recusa de idosos em relação à ação da
política, experimentada junto aos sujeitos ou por meio de relatos técnicos, pode ser interpretada
como resistência e subversão. Ao adentrar no campo de pesquisa, os autores se deparam com
realidades que desafiaram (e muito!) suas próprias concepções:

Em meio àquilo que julgamos como condições insalubres de higiene, habitações


precárias e mal conservadas, histórias de violência e abandono (não as negamos sob
hipótese alguma!), saberes produzidos como estratégias para a reinvenção da vida e
histórias de luta, de afirmação da dignidade, de gritos silenciosos por liberdade
ficam, muitas vezes, invisibilizados, emudecidos, inodoros... (REIS, 2010, p. 66).

Nos relatórios técnicos analisados pelo autor, fica evidente a avaliação dos profissionais sobre
esses idosos que recusam a intervenção da assistência social, e observa-se que são frequentes
os termos: negligência, abandono, falta de higiene, condições insalubres. É importante destacar
que em nenhum momento o autor discute a validade desses relatórios e nem desconsidera “a
realidade de pobreza e miséria, de subjugamento e de tutela, produzida pela sociedade
capitalista [...]” (idem, p. 66), mas discute os efeitos de uma política que é, por natureza, um
espaço de luta, forças e interesses distintos. Nesse sentido, o autor questiona: que histórias
tinham por trás daquelas casas e daqueles sujeitos? “Haveria outras histórias a serem ouvidas
que contassem algo para além da dureza da miséria, dos entulhos e escombros, da falta e da
subalternidade?” (idem, p. 76). As intervenções padronizadas programadas em instâncias
distantes dessa realidade encontrada são por vezes disformes. Qual é o cuidado preconizado nas
práticas da assistência social? Essa é a tônica da discussão, ou seja, em que medida a elaboração
e as práticas desenvolvidas trabalham em prol da resolução de um problema que é local e
específico a partir de padrões pré-estabelecidos.
158

Vimos questão semelhante nas nossas andanças cartográficas. Um dos temas que nos
interessava era compreender a questão do cuidado do velho que vive nas comunidades rurais,
pois, diante do movimento de saída dos jovens desse território, quem exerce o papel de cuidador
dos mais velhos? Nas conversas com o poder público e com as instituições, em especial com a
única entidade de Longa Permanência para Idosos da região, essa questão dos embates de
saberes e prescrições se tornou evidente.

A gente tenta fortalecer os vínculos da família e mostrar que eles têm obrigação de
cuidar, né? Porque não é que envelheceu descarta a pessoa. Nós conseguimos mudar
isso bastante, porque aqui você deve ter ouvido tem a Ação Social... Antes era assim:
Envelheceu? Manda para a Ação Social. E hoje a gente tenta fazer esse trabalho. Não
é assim... Num é só buscar um papel na assistência social (PODER PÚBLICO 2).

São dois [idosos] que a gente vê assim que são perfis que precisam [ser
institucionalizados] então, lugar de difícil acesso, são problemas de saúde só que
infelizmente a outra equipe não vê como necessária (PODER PÚBLICO 2).

[...] para você ter uma ideia, o cidadão da zona rural, ele tem dificuldade de vir morar
na casa de um familiar na zona urbana, o que dirá de um lugar onde ele não conhece
ninguém, não tem vínculos, então assim, é uma realidade totalmente diferente lá do
campo (PODER PÚBLICO 1).

A questão do cuidado do idoso se insere nessa arena de luta em que muitas vezes, se levadas
apenas em conta questões higienistas e de controle alimentar e de medicação, a instituição pode
se fato ser apresentada como a melhor solução. Entretanto, como explicitado no terceiro trecho,
tendo em vista se tratar de um lugar com o qual o idoso não tem vínculos familiares, sociais e
simbólicos (se pensarmos na velhice rural há ainda o forte vínculo com a terra), será a
institucionalização o caminho mais ‘adequado’? Podemos então complementar questionando:
adequado para quem? Há claramente entre as instituições uma disputa de poder-saber sobre a
velhice, demonstrada no segundo trecho quando do levantamento de discordâncias sobre
institucionalizar ou não. A quem caberia essa decisão? Quem saber o que é o ‘melhor’ para o
idoso? Pouco pudemos perceber em termos de práticas nesse campo que considerassem os
desejos dos velhos e a articulação de formas outras de enfrentamento da situação.

Outro contexto que sinaliza os prejuízos decorrentes de visões reducionistas sobre a velhice é
o caso do aumento das doenças sexualmente transmissíveis (DST) entre velhos. De acordo com
o Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde de 2016, de 1980 a junho de 2016 foram
identificados no Brasil 842.710 casos de AIDS. Nos últimos dez anos, observou-se um aumento
da taxa de detecção de AIDS entre homens com 60 anos ou mais, e, entre as mulheres nessa
mesma faixa etária, relata-se que houve 24,8% de aumento de 2006 para 2015. Em revisão de
159

literatura sobre DST em idosos publicada em 2015 no periódico Ciência e Saúde Coletiva,
Dornelas Neto et al. (2015) explicitam a conclusão de que os idosos não constituem foco das
políticas que envolvem as DST, o que reforça um desconhecimento ou ineficiência frente às
mudanças de comportamento desses sujeitos, bem como de seu perfil epidemiológico. Grande
parte das dificuldades relacionadas a essas doenças associa-se à representação errônea de que a
sexualidade não é exercida na velhice. Como colocam os autores (idem, p. 3862), “mais uma
vez, a falta de reconhecimento da sexualidade faz com que todos os esforços de prevenção,
diagnóstico e tratamento sejam voltados para populações mais jovens e naquelas percebidas
como mais vulneráveis”.

Outro estudo que corrobora nossa discussão sobre os impactos de visões parciais sobre a velhice
em termos de políticas públicas é o elaborado por Passos (2017). Na pesquisa, o autor
investigou o processo de gestão da velhice no estado de Minas Gerais, lançando olhar
especificamente sobre um programa denominado Mais Vida. Inspirado pelos conceitos
foucaultianos, o autor explora os feixes discursivos presentes na legislação brasileira acerca da
saúde do idoso e demonstra os mecanismos desenvolvidos no âmbito desse programa para
promover uma velhice massificada e pautada em um modelo ideal de velho, a saber, saudável
e ativo. Nesse sentido, a velhice prescrita no programa é condizente com a proposta da ‘melhor
idade’ e, como sinaliza o autor, parece considerar que assumir essa identidade é uma questão
de autogestão da vida, do corpo e da saúde. Como conclusões do estudo, o autor sinaliza que,
justamente em função dessas debilidades, programas como esse se mostram pouco efetivos
naquilo que se propõem.

Esse olhar sobre as políticas públicas em relação ao idoso, de uma forma geral, nos permite
questionar que o foco ainda tem sido direcionado para as maiorias estatisticamente
comprovadas e limitam-se, por vezes, a trabalhá-las como um grupo unívoco. Pensar na esfera
pública e em políticas que genuinamente se direcionem à população como um todo perpassa a
disposição de rever práticas e (re)pensar procedimentos, buscando cada vez mais aderência com
a realidade cotidiana dos usuários e menos em padrões abstratos desejados. Esses estudos
recuperados nos ajudam a problematizar as consequências desastrosas de uma visão limitada
sobre a velhice, dentre as quais a mais expressiva talvez seja a atuação em prol da manutenção
da “conspiração do silêncio” denunciada por Beauvoir em 1970.
160

Partimos então dessa proposta de perspectiva rizomática da velhice e da necessidade de


apreender o fenômeno em sua complexidade, para discutirmos a produção de conhecimento
sobre as velhices rurais, tendo em vista ser esse o território específico desta tese.

3.3 E o que sabemos sobre velhices rurais?

Falar sobre as velhices rurais é, de certo modo, considerar essa dimensão territorial como mais
uma dentre as que atuam nesse processo de construção do fenômeno. Autores argumentam que,
embora o número de trabalhos que têm a velhice como objeto de análise tenha aumentado ao
longo dos anos, grande parte deles dedicam-se exclusivamente ao contexto urbano (MOTTA,
2003; TAVARES, 2015; ALCÂNTARA, 2016). Alcântara (2016) complementa dizendo que o
fato de que pouco conhecimento tem sido produzido sobre a velhice nesse contexto específico
acaba por alimentar visões estigmatizadas que sustentam imaginários e preconceitos.

O Brasil é um país diverso em termos regionais, socioeconômicos e culturais. Com


isso, urge a necessidade de se fomentar pesquisas voltadas a entender a inserção do
velho para além do meio urbano brasileiro, haja vista a carência de estudos pontuais
sobre o envelhecimento humano no espaço rural, lugar onde se supõe tão singular
(ALCÂNTARA, 2016, p. 339, grifos nossos).

Ao tratar da velhice nesse contexto, Tonezer, Trzcinski e Magro (2017) destacam algumas
características que lhe seriam próprias como as dificuldades de acesso às políticas públicas das
mais diversas áreas: saúde, assistência, educação e transporte. Segundo os autores, grande parte
dessas dificuldades de acesso é resultante da distância desses sujeitos em relação aos centros
urbanos, onde esses serviços são preferencialmente ofertados. Além disso, os autores destacam
também a existência de residências precárias nos espaços rurais, condizentes com o cenário de
miséria e isolamento social. Seria essa a realidade predominante no campo em todo o país? O
que mais podemos dizer sobre as velhices nesse contexto? Quais particularidades podemos
identificar explorando regiões específicas?

Para um aprofundamento na produção de conhecimento sobre a velhice rural, buscamos


conhecer estudos empíricos nacionais que foram produzidos sobre a temática de modo a
encontrar elementos que contribuíssem para a leitura desse fenômeno no território por nós
selecionado. Em busca realizada no Banco de Teses e Dissertações da CAPES no período entre
julho e agosto de 2017 (atualizado em agosto de 2018), foram encontrados 5028 trabalhos a
partir dos descritores “velhice”, “rural” e “idoso”. Os parâmetros da busca foram os seguintes:
161

estudos desenvolvidos entre os anos de 2007 e 2018; pertencentes às seguintes áreas do


conhecimento – Administração, Antropologia, Educação, Filosofia; Psicologia, Sociologia,
Extensão Rural e Serviço Social; e incluídos trabalhos em nível de mestrado e doutorado
(acadêmico e profissionais). O critério para a exclusão de trabalhos foi a não referência à velhice
rural, ou seja, não consideramos trabalhos que não explicitaram que, dentre o público
pesquisado, estivessem velhos que residem ou residiram nesse espaço especificamente.

Em um primeiro momento, como colocamos, o resultado apresentado foi de 5028 trabalhos.


Após a leitura de todos os títulos das obras e, na maior parte dos casos, também dos resumos52,
chegamos em um total de 30 trabalhos, entre teses e dissertações. Ou seja, de 5028 trabalhos
que resultaram da busca a partir dos descritores apontados, apenas estes tratam de alguma
problemática associada ao envelhecimento rural. De uma forma geral, um primeiro olhar sobre
esses trabalhos indica que se trata de uma temática que tem chamado atenção de pesquisadoras:
os trinta trabalhos identificados nesse período de tempo são de autoria feminina. As áreas que
mais têm se dedicado ao tema são, respectivamente, a Sociologia, a Educação e a Psicologia.
Outro aspecto interessante é que 80% dessa produção concentra-se nos últimos 5 anos (em um
período avaliado total de 11 anos), ou seja, indica que o interesse pela temática é realmente
recente.

Antes de adentrar especificamente nos trabalhos identificados, algumas observações se fazem


necessárias. Sem a pretensão de esgotarmos a produção sobre a temática, optamos por fazer
esse levantamento com o intuito de nos aproximar do conhecimento que tem sido produzido
acerca da velhice rural. Entendemos que essa plataforma reúne os trabalhos dos programas de
pós-graduação constituindo-se, de certa maneira, um referencial para consultas sobre a
produção acadêmica brasileira. Partimos também do pressuposto de que parte da produção
científica veiculada em congressos e periódicos é derivada desses trabalhos e estão geralmente
associados a pesquisadores com tradição nos temas e grupos de pesquisas.

Dito isso nos chamou a atenção a identificação de apenas um trabalho associado a programas
de pós-graduação de Administração, a saber, a tese de Letícia Alves de Melo sobre o impacto
da previdência rural (MELO, 2017). Além dessa, podemos destacar a tese de Valmiene Florindo

52
Sobre o processo de mapeamento da produção sobre a temática da velhice rural, alguns pontos chamam a
atenção: a) grande número de trabalhos com títulos que não expressam suas temáticas centrais e b) grande volume
de trabalhos sem informações disponíveis (precisamos buscá-las em outras bases de dados).
162

Farias Souza sobre eletrificação rural (SOUZA, 2017), desenvolvida no programa de Políticas
Públicas da Universidade Federal do Maranhão; a dissertação de Erly Cristine sobre
Hipertensão em idosos Pomeranos, da Escola Superior de Ciências da Santa Casa de
Misericórdia de Vitória (VALÉRIO, 2012); e a dissertação de Aline Duarte desenvolvida no
mestrado de Políticas Públicas e Sociedade da Universidade Estadual do Ceará (DUARTE,
2015). Embora não seja conclusivo, esse levantamento nos permite problematizar o baixo
interesse do nosso campo de pesquisa (Administração e Estudos Organizacionais) sobre a
temática da velhice rural.

A partir desse contexto, o que mais nos interessa por hora é explorar as problemáticas trazidas
nesses trabalhos. Um dos aspectos importantes nesse tipo de análise refere-se ao
reconhecimento da pluralidade epistêmico-teórico-metodológica dos trabalhos. Tal pluralidade
se justifica, entre outros aspectos, pela própria diversidade de áreas em que se inserem as
pesquisas, o que avaliamos ser enriquecedor quando se trata de um tema marcado pela
complexidade como é o caso da velhice rural. Nesse sentido, reconhecendo essas diferenças e
até mesmo algumas incompatibilidades existentes entre elas, o que nos motivou foi a construção
de um panorama dos estudos de modo a contribuir para a análise dos dados produzidos nessa
cartografia. Retomando a questão que intitula essa seção, o que sabemos sobre velhices rurais?

Uma primeira temática que perpassa os trabalhos levantados é a da aposentadoria rural. O


trabalho “A aposentadoria do idoso no meio rural: Implicações na administração dos recursos
familiares e na qualidade de vida”, de 2011, discute os impactos da aposentadoria rural para a
qualidade de vida do idoso e do grupo familiar (TAVARES, 2011). A pesquisa de caráter
quanti-qualitativa envolveu 65 idosos residentes da zona rural da cidade de Viçosa-MG e 65
familiares, um de cada idoso. Os resultados da pesquisa apontaram para a alta dependência
econômica familiar em relação ao idoso, chegando este a ser responsável por cerca de 50% da
renda familiar (em 80% das famílias estudadas). Essa mudança na estrutura da família brasileira
foi constatada pelo IBGE (2006) que declarou que, em pesquisa realizada em 2005, 65,3% dos
idosos foram considerados como a pessoa de referência no domicílio53. Em relação à qualidade
de vida desses idosos, a pesquisa sinaliza para resultados positivos a partir da aplicação de
alguns instrumentos de avaliação da Organização Mundial da Saúde (World Health

53
Ver artigo “IBGE detecta mudanças na família brasileira”, disponível em:
https://censo2010.ibge.gov.br/noticias-censo.html?busca=1&id=1&idnoticia=774&t=ibge-detecta-mudancas-
familia-brasileira&view=noticia.
163

Organization Quality of Life Instrument Older Persons). Essa melhoria da qualidade de vida
observada na pesquisa identificada pela autora pode ser atribuída ao aumento da capacidade de
consumo, à possibilidade de ajudar os familiares, dentre outros aspectos que foram explorados
em outros estudos.

Em 2014, o trabalho “A institucionalização do habitus previdenciário rural na vida de idosos


que vivem no campo: em análise os municípios de Piranga e São Miguel do Anta, Minas
Gerais” da mesma forma traz a discussão sobre a aposentadoria rural, tendo como uma de suas
linhas teóricas centrais a obra do sociólogo francês Pierre Bourdieu (BARROS, 2014).
Especificamente, os resultados mostraram que muitas mudanças ocorreram no modo de vida
dos idosos do campo, os quais por meio da aposentadoria passaram a ter maior acesso a
elementos (tecnologia, produtos, comportamentos) associados à vida urbana. Entretanto, o
autor reconhece que esse processo não acarretou uma descaracterização do universo rural, mas
a criação de um modelo híbrido. Uma questão interessante que emergiu da pesquisa refere-se à
ideia de que o benefício previdenciário possibilitou aos idosos pensar no futuro e colocar em
práticas planejamentos, seja em relação à propriedade ou mesmo à produção. No estudo, o autor
faz referência ao impacto diferenciado da aposentadoria no contexto de vida das mulheres do
campo, embora esse não tenha sido o olhar específico do trabalho.

Esse enfoque na mulher idosa é dado no estudo realizado por Núbia Freitas em 2017, “A
influência da aposentadoria rural no habitus da mulher idosa em um pequeno município da zona
da mata mineira”, que da mesma forma se baseia em Bourdieu (FREITAS, 2017). A pesquisa
traz elementos importantes acerca das mudanças percebidas na vida dessas mulheres a partir do
momento em que se aposentaram. Assim como no trabalho anterior, a pesquisa reforça a
posição das idosas como provedoras do lar, ressaltando a importância do benefício não apenas
para ela, mas para o grupo familiar. Em especial no caso da mulher rural, chamou a atenção o
fato de que ter o benefício significa para ela um rompimento com um histórico de dependência
financeira do companheiro, trazendo autonomia e novas formas de ver a vida. A autora relata
inclusive, que a aposentadoria proporciona a elas a capacidade de adquirir produtos desejados,
fazer reformas em suas residências e até mesmo empreender mudanças em termos de hábitos
alimentares (antes a alimentação restringia-se ao que era produzido na sua propriedade).

Para além das mudanças em termos da qualidade de vida dos sujeitos, os impactos da
previdência rural também são sentidos no âmbito comunitário. Essa é a abordagem do trabalho
164

de Letícia Melo: “Os impactos da política de previdência rural em comunidades: O caso do


Vale do Catimbau - Buíque-PE”, de 2017. Além da avaliação pessoal no que diz respeito aos
benefícios decorrentes da aquisição de produtos e serviços a partir do recebimento do benefício,
a autora traz reflexões – ainda que breves – sobre os impactos expressivos da aposentadoria
para populações rurais do semiárido nordestino. Nesse sentido, a autora destaca no estudo a
dimensão particular do território, elencando especificidades que precisam ser consideradas
nessa avaliação de impacto. Dito de outro modo, a autora expõe que o contexto de desigualdade
social e de desemprego que marca essas comunidades faze com que o benefício previdenciário
emerja como fonte de sobrevivência não apenas para o idoso, mas para toda a família (MELO,
2017).

Como vimos no capítulo anterior sobre o território cartografado, há grandes semelhanças entre
o contexto do semiárido mineiro e o que foi relatado pela autora sobre o semiárido nordestino.
Assim como exposto por Melo (2017), as condições climáticas associadas a um cenário de
precariedade das políticas públicas resultam em populações expostas a inúmeras
vulnerabilidades. Nesse sentido, a importância de benefícios como o previdenciário se faz ainda
mais evidente, como também pudemos observar nas narrativas dos velhos e dos representantes
de instituições ao longo das andanças cartográficas. Nas histórias que abriram esta tese, assim
como nas demais narrativas coletadas, a aposentadoria aparece sempre de forma positiva, como
um momento crucial de transformação na vida dessas pessoas 54.

Ainda sobre a questão da aposentadoria rural, embora sua importância seja reconhecida e
evidenciada por pesquisas como essas, há um aspecto fundamental a ser questionado: essa
proteção social de caráter universalista está, de fato, acessível a todos os trabalhadores rurais?
Essa é a discussão trazida por Jéssica Barreto na pesquisa “Condições de viabilização e acesso
à aposentadoria rural em Maués/AM” (BARRETO, 2016). O objetivo da investigação foi
justamente compreender as condições de viabilização e acesso à aposentadoria rural por idade
no município de Maués/AM. Especificamente a autora trata de velhos pertencentes a
comunidades ribeirinhas, que se enquadram na caracterização de Povos Tradicionais: povos
que historicamente vivem na região e desenvolvem uma relação peculiar com a natureza e com
o território. Sobre o acesso desses velhos à aposentadoria rural, a pesquisadora identificou
algumas questões: dificuldade de acesso em função da falta de informações qualificadas sobre

54
A questão do papel da aposentadoria rural para os velhos pesquisados será abordada em detalhes no capítulo a
seguir, sobre trabalho rural.
165

o assunto; a falta de reconhecimento sobre o valor social do trabalho rural, valor este que
justifica seu reconhecimento como assegurado especial no sistema previdenciário;
complexificação dos requisitos e regras para acesso ao benefício, o que gera dificuldades pela
especificidade desses sujeitos; número reduzido de profissionais do INSS, o que torna o
atendimento moroso e também implica redução da qualidade do atendimento, dentre outras.

O trabalho de Barreto (2016) evidencia que, embora o direito ao benefício previdenciário rural
tenha sido uma grande conquista, muito ainda precisa ser feito para que efetivamente esse
direito seja acessado pela população em questão. Parte dessas questões também foi levantada
no trabalho “Políticas Sociais, Previdência e Trabalhadores Rurais: Reflexões a partir de
evidências recentes no estado de Sergipe”, de Eliane Resende Moreira, de 2010. Da mesma
forma que no trabalho de Barreto (2016), Moreira (2010) esclarece que, no contexto sergipano,
as dificuldades encontradas pelos trabalhadores rurais dizem respeito, principalmente, aos
documentos comprobatórios. Um argumento curioso apresentado na pesquisa refere-se à
avaliação de aparência física incorporada aos processos que envolvem a concessão de
benefícios previdenciários rurais. De acordo com Moreira (2010), houve um momento em que
essa avaliação pautada em características físicas constava como parte do trabalho do técnico do
INSS. Entretanto, a partir de debates com instituições como a federação dos trabalhadores
rurais, a chamada ‘inspeção física’ deixou de ser (oficialmente) realizada. Percebe-se, nesse
sentido, a complexidade que marca não apenas o processo de concessão, mas os
desdobramentos que se traduzem em práticas que afetam diretamente a vida e a subjetividade
desses sujeitos.

Essa questão da aparência e dos estereótipos associados ao trabalhador rural foi uma dimensão
abordada por Eveline Lucena Neri (2014), em sua tese intitulada “’Trabalho Leve’ e ‘Trabalho
Pesado’ nos processos de aposentadoria especial rural”. Especificamente a autora investiga as
dinâmicas que marcam os julgamentos de processos de aposentadoria especial rural pelos
juizados especiais federais, evidenciando principalmente as ‘tecnologias de gênero’ presentes
nesse saber fazer. Para a autora, as tecnologias de gênero são “[...] pré-concepções que
cumprem a dupla função de tornar compreensível e normalizar as diferenças produzidas sobre
o masculino e o feminino” (NERI, 2014, p. 15). O estudo discute sobre a diferenciação realizada
no âmbito judicial entre o ‘trabalho pesado’ exercido pelo homem trabalhador rural e o ‘trabalho
leve’, acessório e complementar exercido pela mulher do campo.
166

De acordo com Neri (2014), as decisões sobre o direito ou não de receber o benefício
previdenciário rural, ou melhor, o julgamento sobre a qualidade de segurado especial rural é
algo cotidiano nessas varas judiciais. Retomando a questão da aparência e dos estereótipos, a
autora avaliou as percepções dos magistrados sobre quem se enquadra nessa condição de
segurado especial rural e identificou que um dos elementos corporais que mais traduzem o
trabalho rural para esses profissionais são as mãos calejadas, as quais remetem ao trabalho com
a enxada. Nesse sentido, as mulheres encontram maiores dificuldades nesse processo de
‘provar’ sua identidade de trabalhadora rural, na medida em que nesse processo de avaliação
acabam sendo negligenciadas/desconsideradas outras atividades que também fazem parte do
trabalho na agricultura familiar, como é o caso do cultivo da horta, criação de animais, dentre
outros. Tais estereótipos acabam por reforçar o estereótipo de que, no campo, as mulheres
atuam apenas como ajudantes de seus companheiros.

Esses trabalhos sobre a aposentadoria rural nos permitem compreender a importância desse
benefício na vida desses sujeitos, do grupo familiar e da comunidade de uma forma mais ampla.
Sendo assim, chamam a atenção para o avanço que significou a inclusão dos trabalhadores
rurais como segurados especiais a partir da Constituição de 1888. Entretanto, sinalizam as
dificuldades encontradas pelos trabalhadores para o alcance desse benefício e os impactos que
os estereótipos sobre o homem e a mulher do campo têm sobre esse processo, afetando a vida
e a subjetividade dessas pessoas.

A segunda temática que perpassa os trabalhos levantados é a da saúde na velhice. Embora


não tenhamos pesquisado nesse levantamento as áreas de Ciências da Saúde e Biológicas,
alguns trabalhos identificados apresentam discussões que giram em torno da saúde, seja em
termos de práticas e cuidados pessoais, seja no que diz respeito à atuação das políticas públicas
nesse campo. O estudo de Milena Vieira Coelho, intitulado “A influência da atividade física
nos perfis de fragilidade, funcionalidade, cognição e qualidade de vida em populações de
diferentes contextos ambientais rurais e urbanos”, traz uma análise sobre o quão positiva é a
realização de atividades físicas por idosos em termos de melhorias nas condições de saúde
(COELHO, 2014). Após a utilização de escalas específicas para dar conta dessa avaliação,
dentre as quais a Escala de Atividade de Vida Diária de Barthel e a Escala de Atividades de
Vida Diária Instrumentais de Pfeffer, a autora conclui que tanto para os idosos urbanos quanto
rurais a prática de exercícios parece ser um bom mecanismo de proteção frente aos declínios
167

do envelhecimento55. Nesse sentido, o olhar da autora é voltado para os cuidados pessoais e os


seus efeitos sobre o modo de envelhecer.

Outro estudo que aborda a questão da saúde concentra-se em uma das doenças crônicas
associadas ao envelhecimento: a hipertensão arterial. De forma específica, Erly Valério (2012)
buscou compreender a relação estabelecida entre os idosos pomeranos56 hipertensos de Joatuba
e as práticas desenvolvidas pela Estratégia Saúde da Família (ESF). No que tange às ações da
ESF na comunidade, os idosos apontaram diversos problemas como: alta rotatividade do
médico, ausências cotidianas dos profissionais e demora no agendamento de consultas. Outra
reclamação dos idosos pomeranos refere-se às dificuldades de aquisição de remédios que não
estão dentre os fornecidos pelo Programa de Farmácia Básica, gerando gastos que representam
uma parcela significativa do orçamento mensal. Embora a autora não tenha realizado um
aprofundamento na discussão, as conclusões giram em torno da necessidade de melhoria do
atendimento público de saúde em relação aos idosos rurais, não apenas em relação aos casos de
hipertensão, mas também de outras síndromes que acometem idosos e que são causas de
mortalidade nessa população.

Ainda dentro dessa perspectiva da saúde, identificamos o trabalho da Claudia Weyne Cruz
intitulado “As múltiplas mortes de si: Suicídio de Idosos no Sul do Brasil”. Dizemos ser um
trabalho que se insere na temática porque de fato o suicídio tem sido considerado um grave
problema de saúde pública na contemporaneidade. Cruz (2014) aborda na pesquisa como se
deu o processo social em que suicídios de idosos ocorreram no Sul do país, analisando também
os impactos destes na vida dos familiares. Como metodologia, a autora realizou autópsias
sociais de 15 idosos, um tipo de investigação pós-morte que contribui para a compreensão do
contexto do óbito57. A partir dessa investigação, a autora aponta que o evento crítico do suicídio
de idosos constitui algo de extrema complexidade, sendo impossível indicar um fator motivador
isolado. Entretanto, alguns elementos chamaram a atenção na pesquisa com os familiares como,
por exemplo, sentimentos e percepções dos idosos sobre a desvalorização do sujeito velho, o
temor de se tornar um peso na vida da(o) companheira(o) e das(os) filhas(os), a perda da fé e

55
Ressaltamos que esse estudo tem o olhar voltado para aspectos biológicos, capacidade física e cognitiva, ou seja,
uma abordagem de caráter clínico.
56
Imigrantes oriundos da Pomerânia, uma região que era localizada ao norte da Polônia e Alemanha (costa sul do
mar Báltico).
57
Segundo Cruz (2014), esse instrumento que inclui aspectos de natureza social culturais, além de questões
psicológicas, foi desenvolvido por pesquisadores do Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde
Jorge Careli – CLAVES/FIOCRUZ.
168

do sentido da vida. No que tange especificamente à velhice rural, destaque foi dado à
importância do trabalho na vida dos agricultores e como o fato de por algum motivo ser
impedido de exercê-lo gera um alto nível de sofrimento aos sujeitos. Entre os familiares, foi
comum identificar adoecimentos psíquicos e a consequente dificuldade de retomar a vida após
o evento.

A questão da morte, como falamos anteriormente, ainda é um tabu social e uma realidade que,
em geral, preferimos não enfrentar. Especialmente quando falamos sobre velhice, há
comumente uma associação com a ideia de finitude. Nesse contexto, Oliveira (2008) e Gomes
(2016) se propuseram a investigar quais são as representações/narrativas sobre a morte
construídas por idosos de comunidades rurais de Pernambuco. Embora com diferentes olhares
teórico-epistemológicos e uma distância temporal de oito anos entre as pesquisas, ambas
evidenciam a associação entre velhice, adoecimento e morte na perspectiva dos sujeitos.
Aparece também nas pesquisas a questão da religiosidade que envolve as representações e
narrativas sobre o fenômeno, associando especificamente, no caso da pesquisa de Gomes
(2016), a morte à ideia de ‘ida para a vida eterna’. Tal autora reflete também sobre a manutenção
de certos costumes camponeses em relação aos rituais fúnebres, costumes pautados em valores
de solidariedade e comunidade. Interessante ressaltar que o trabalho de Gomes (2016) vai além
do de Oliveira (2008) na medida em que reconhece que falar da morte torna inevitável falar da
vida, e, nesse sentido, somente é possível compreender esses significados atribuídos pelos
idosos rurais à morte a partir de uma maior compreensão sobre o modo como eles
vivem/encaram/enfrentam a vida cotidiana.

Compreender a vida cotidiana desses velhos rurais é algo que tem despertado o interesse de
pesquisadores, sendo essa a próxima temática (terceira temática) identificada nesse
levantamento. É interessante observar que esses trabalhos em questão tratam da velhice em
determinados territórios, um exercício similar58 ao que estamos nos propondo nesta tese. Nesse
sentido, elementos culturais, espaciais (geográficos e climáticos), hábitos e práticas populares
são levantados e ajudam a explicar a construção da velhice naquele espaço. Nesse grupo,
inserem-se os trabalhos de Alcântara (2010)59, Lima (2013), Souza (2013a), Souza (2013b),

58
Aqui mais uma vez ressaltamos que existem diferenças teórico-epistemológicas entre as pesquisas, mas o objeto
e a opção por investigá-lo a partir do território onde é constituído é o que estamos considerando como ponto em
comum.
59
Há uma especificidade no trabalho de Alcântara que, além de pesquisar territórios específicos, demarca com
clareza um contexto temporal para a investigação da velhice – a hipermodernidade.
169

Cunha (2014), Duarte (2015), Silva (2016) e Duarte (2017). Tendo em vista a aproximação da
nossa pesquisa em relação ao que foi desenvolvido nesses estudos, eles serão (re)visitados ao
longo das análises que apresentaremos em seguida. Mas, de uma forma geral, o que essas
pesquisas têm a nos dizer?

Em termos de objetivo, todas essas pesquisas se propõem a investigar a experiência da velhice


em um determinado espaço rural. São investigações que partem do pressuposto de que há uma
particularidade inerente ao território que afeta a vivência desse fenômeno velhice. Um princípio
fundamental compartilhado pelas autoras é o de que, para alcançar esse objetivo, seria preciso
falar da vida cotidiana desses sujeitos, compreendendo nesse sentido a coexistência de
universos particulares e coletivos (sociais). De modo geral, essas pesquisas abordam
significados/sentidos ou percepções sobre a velhice naquele espaço; trazem à tona dinâmicas
familiares e comunitárias; problematizam a questão da morte para os sujeitos; ressaltam práticas
e costumes religiosos; identificam percepções sobre os impactos da aposentadoria e tangenciam
discussões sobre as políticas públicas acessadas no território60.

Em termos de referenciais utilizados para a discussão da velhice, percebe-se um alinhamento


em torno da discussão sobre a forma como esse fenômeno tem sido tratado na
contemporaneidade. A totalidade dos estudos fazem referências à obra clássica “A velhice”, de
Simone de Beauvoir (1990), e também utilizam de forma expressiva os escritos nacionais de
Bosi (1994), Debert (1994; 1999), Neri (2005; 2007) e Moragas (1991)61. No que diz respeito
às opções metodológicas, identificamos a prevalência de pesquisas de caráter qualitativo
baseadas em entrevistas, relatos/histórias orais, observações, e, em alguns casos, as autoras
caracterizam as investigações realizadas como etnografias e cartografias.

A quarta temática identificada nesse levantamento denominamos de história, memória e


comunidades. Embora, como nos trabalhos anteriores, essas pesquisas discutam elementos
associados à velhice e adjacentes, percebemos neles um olhar diferente: a busca por resgatar
histórias e memórias das comunidades ou de instituições (escola) por meio das narrativas dos
velhos. Nesse sentido, os velhos aparecem como aqueles sujeitos capazes de dar vida a essas

60
Esses temas são os que aparecem com maior frequência nos trabalhos que se inserem nessa temática do
cotidiano. Isso não significa, por conseguinte, que eles sejam tratados sob perspectivas coincidentes ou mesmo
com intensidade (profundidade) semelhante.
61
Outros autores foram utilizados nas pesquisas, mas esses são os que aparecem com maior frequência e destaque
no texto.
170

histórias e (re)criá-las. Esse é o caso, por exemplo, da pesquisa de Santos (2016) que explorou
a construção de identidades étnicas de comunidades quilombolas a partir das histórias de seus
membros mais velhos. As memórias compartilhadas por eles revelam as lutas sociais e políticas
frente à invisibilidade e à histórica negação de direitos dos quilombolas. Em um contexto em
que as lutas também se pautam na defesa de territórios materiais e simbólicos, os velhos são
valorizados como aqueles capazes de manter vivas as bases das comunidades. Barbosa (2016)
da mesma forma investiga o território do Quilombo Kalunga – GO – a partir da história de vida
de um dos seus líderes, um senhor de 80 anos prestigiado e reconhecido pela comunidade.

Esforço semelhante é empreendido por Pombo (2014) ao buscar, nas narrativas de idosos, a
história de um patrimônio cultural amazônico: o vaqueiro marajoara. Nos campos do Marajó, a
grande extensão territorial foi propícia ao desenvolvimento da atividade pecuária que marca a
vida cotidiana das comunidades que ali residem. Tal profissão carrega saberes que são próprios
da região amazônica e que correm o risco de se perderem com o passar do tempo. Nesse sentido,
a autora utilizou a memória de velhos vaqueiros como fontes de história oral de modo a resgatar
esses saberes e problematizar o papel da educação para que essa história não se perca, assim
como seus modos de vida, suas lendas e rituais. A educação também despertou o interesse de
Schwabenland (2013) ao investigar como velhos alunos que frequentam o EJA (Educação de
Jovens e Adultos) percebem a escola e em que medida os saberes advindos das experiências de
vida desses sujeitos são compartilhados. Nesse sentido, tal pesquisa se insere no campo da
educação para idosos e destaca o quanto essa dimensão é importante quando se trata de saberes
que escapam à educação formal e são, da mesma forma, relevantes.

A participação de idosas em um projeto de letramento na comunidade de Saquinho – BA –


também foi o percurso inicial para a realização de uma investigação por Pereira (2014). A autora
registra a trajetória de mulheres no projeto, o que envolve um olhar mais amplo sobre a velhice
e o cotidiano da comunidade da qual fazem parte. A participação ativa das velhas na
comunidade, seja na lavoura, na igreja e na própria escola chamou a atenção da pesquisadora
que buscou compreender melhor como se dava a participação e aprendizagem dessas mulheres
no projeto de letramento. A autora demonstra a frustação das idosas de não conseguirem
avançar no aprendizado da leitura e da escrita e que grande parte dessas dificuldades são
provenientes de práticas pedagógicas que desconsideram as particularidades dessas alunas. As
memórias das mulheres idosas de Saquinho trazem elementos sobre a tradição e ancestralidade
171

africana e revelam saberes de si e da comunidade que permanecem vivos, mas que escapam das
salas de aula do projeto analisado.

Ainda dentro dessa temática, o trabalho de Freixo (2010) explora as leituras que velhos
agricultores fazem do lugar em que vivem e trabalham. Na pesquisa, a autora discute o
surgimento de uma nova ruralidade, com a emergência e expansão da produção do Sisal, planta
bem adaptada ao clima semiárido que pode ser utilizada para a confecção de tapetes, carpetes,
dentre outros. Nesse sentido, a pesquisadora buscou nas memórias dos velhos lembranças e
histórias que contribuem para a compreensão do processo de transformação do Sertão dos
Tocós na Bahia em um território do Sisal. A autora relata que as histórias contadas por eles
revelaram lembranças coletivas que dizem sobre modos de vida, de trabalho e que permitem
reflexões sobre as mudanças das paisagens desse território.

Por fim, a quinta e última temática a partir da qual foram agrupados os trabalhos levantados
diz respeito às especificidades relacionadas à velhice rural. Nesse grupo, estão os trabalhos
de Rodrigues (2013), Amorim (2015), Souza (2017) e Jahn (2018), os quais tratam,
respectivamente, das percepções de professoras aposentadas que atuaram e vivem no campo a
respeito das identidades e práticas de mulheres da comunidade, incluindo a nova geração de
professores; uma avaliação dos níveis de felicidade entre velhos urbanos e rurais, a partir do
recebimento da aposentadoria; dos impactos na vida de idosos rurais a partir da implementação
do Programa Luz para Todos do Governo Federal; e do papel educativo dos Movimentos
Sociais na vida de idosos rurais, com destaque para a questão do crédito consignado. São
trabalhos que investem no aprofundamento de especificidades relacionadas à velhice rural e
contribuem, cada um à sua maneira, para expandir os níveis de inteligibilidade sobre esses
sujeitos e contextos.

Após a leitura aprofundada desses trabalhos, podemos então retomar a pergunta que intitula
essa seção: o que sabemos sobre as velhices rurais? De um modo geral, as cinco temáticas em
torno das quais os trabalhos foram classificados apontam para uma variedade de interesses, com
destaque para os estudos sobre a aposentadoria rural e para a vida cotidiana de sujeitos velhos.
A despeito das diferenças teórico-epistemológicas, um aspecto que nos chamou a atenção na
leitura desses trabalhos é que, embora parte deles traga um conceito de velhice apresentado
como complexo, ou seja, defendam a necessidade de compreender o fenômeno em suas diversas
172

faces, essa complexidade pouco reverbera nos momentos analíticos que acabam por privilegiar
uma ou outra dimensão.

Outro aspecto para o qual nos atentamos é que, em parte dos estudos, dentre os quais se
destacam os incluídos na temática sobre história, memória e comunidades, a velhice aparece de
forma coadjuvante para a construção de conhecimento sobre outras temáticas como
comunidades tradicionais, programas educacionais, dentre outros. Nesse sentido, a velhice
como temática não chega a ser problematizada nessas pesquisas, mas sim os sujeitos assumem
a posição de narradores privilegiados sobre outras histórias, não apenas particulares, mas
também coletivas. Embora reconheçamos a importância dessa dimensão do sujeito velho como
memória social, o que argumentamos é que esses trabalhos acabam por voltar o olhar quase que
exclusivamente para essa perspectiva.

Retomando a proposta que trouxemos sobre um olhar rizomático da velhice, entendemos que o
campo – enquanto um território no sentido mais amplo do termo – pode ser lido como mais
uma das forças que compõe o fenômeno. Nesse sentido, que intensidades essa força apresenta?
Mais do que descrever o cotidiano desses sujeitos e suas relações, interessa-nos saber como
essa linha território, com todas as suas características materiais e simbólicas, afeta essa
construção dos modos de ser velho. A partir disso, é possível ir além nas reflexões sobre o lugar
que a velhice rural ocupa em nossa sociedade contemporânea, problematizando e contribuindo
para novos discursos e práticas sobre a realidade.
173

Capítulo 4
O rizoma velhice rural no médio Vale
do Jequitinhonha
174

4. O rizoma velhice rural no médio Vale do Jequitinhonha

Neste capítulo damos continuidade ao anterior explorando, especificamente, os modos de ser


velho nas comunidades rurais do médio Vale do Jequitinhonha.

Tendo em vista o volume de dados produzidos ao longo da cartografia optamos, como detalhado
no capítulo 1, realizar a análise temática das narrativas (REISSMAN, 2008). Como resultado
dessa análise três eixos analíticos foram definidos, a saber: a) A vida no campo; b) As velhices
no campo e c) O trabalho no campo. É relevante dizer que esses são macro temas 62 que se
desdobram em outros abordados dentro de cada eixo analítico. Neste capítulo abordaremos os
dois primeiros eixos e o terceiro, sobre trabalho, será apresentado no posterior.

4.1 A vida no campo: Experiências de velhos em comunidade rurais do médio Vale do


Jequitinhonha

Quando tentamos nos aproximar da realidade de municípios de pequeno porte e, em especial,


de suas áreas rurais, duas imagens estereotipadas logo se colocam em evidência. A primeira
delas diz respeito à imagem de extremo sofrimento, em que a luta pela sobrevivência é um
imperativo. A segunda imagem, praticamente uma antítese da primeira, refere-se à visão
romantizada da vida no campo como tranquilidade e paz, em que há o acesso a produtos sem
agrotóxicos e distância da loucura e correria das grandes cidades (CUNHA, 2014). Como temos
problematizado desde a abertura dessa tese, a realidade é complexa demais para se resumir a
esses estereótipos. Não há sofrimento OU tranquilidade, há sofrimento E tranquilidade E tantas
possibilidades outras que por vezes nos escapam.

Nesse sentido, os elementos que compõem esse eixo analítico remetem à resposta para a
questão: como é então a vida nessas comunidades que compõem essa cartografia? Um primeiro
aspecto que nos chamou bastante a atenção refere-se às percepções das mudanças ocorridas
nessa realidade ao longo do tempo. Há em todo o momento nas narrativas um processo de
diferenciação entre o “que era antes” e o “que é hoje”. Sem a marcação de um tempo preciso,
essas diferenciações entre o passado e o presente perpassam por vários elementos que mudaram
em maior ou menor grau o jeito de se viver no campo, como a questão da redução das chuvas

62
Esses foram os códigos gerados inicialmente na análise narrativa. A partir desse primeiro processo, outras
categorizações foram realizadas dentro de cada um respeitando não apenas o que emergiu das múltiplas narrativas,
mas também o quadro analítico decorrente da proposta teórica elaborada: a perspectiva rizomática da velhice.
175

e aumento dos períodos de seca, a importante chegada da energia elétrica e todos os seus
desdobramentos, o aumento dos índices de violência no campo, ampliação do acesso a serviços
públicos para a população rural, dentre outros. Essas mudanças produziram marcas importantes
trazidas à tona sucessivas vezes nas narrativas recolhidas.

4.1.1 Linha “Eu moro numa região seca, né?”

Em todas as narrativas, sejam as de representantes do poder público, institucionais ou dos


próprios velhos, a questão da falta de água na região se mostrou emblemática. Um primeiro
ponto que chamamos a atenção é que a existência de períodos de seca ao longo do ano é uma
característica do clima da região: o semiárido. Deve-se ressaltar que nos últimos anos as
experiências nesse território são de períodos muito extensos de seca, com índices
pluviométricos abaixo do que seria esperado para a região ou então concentrados em breves
períodos causando enchentes e inundações. Como colocamos anteriormente, parte dessa
realidade pode ser explicada pelo histórico de atividades econômicas exploratórias e
depredatórias que tem como consequências a extinção de nascentes, o assoreamento dos rios,
dentre outras. Algumas narrativas deixam clara essa noção de deterioração ao longo do tempo.

Oh, moça, antes era melhor que chuvia mais, a gente culhia muita coisa, né? A
gente culhia feijão, culhia arroz, culhia milho. Tudo a gente culhia. [...] Hoje a gente
quase num tá colhendo mais! Toda vida tem seca, mas num [não] é a seca muito
assim igual tá agora não (DONA MARLENE, 68 anos).

Falta de água, falta de chuva. Antigamente chovia bem mais. A gente plantava arroz,
milho, colhia. O ano passado mesmo, Emílio colheu milho... Colheu milho lá embaixo
porque molhou com a água do tanque, mas os que plantou na roça, num deu não. [...]
Quando é na época de vingar, a chuva falta, a terra vai e num vinga (DONA LIA, 79
anos).

Essa mudança percebida em relação à diminuição das chuvas e aumento das secas tem
implicações diretas, como bem comentam os velhos, sobre a capacidade de produzir e
sobreviver a partir do que se planta e se colhe. Esse argumento é utilizado para explicar o
movimento crescente de êxodo rural e o consequente “envelhecimento do campo 63”. É
necessário ressaltar que encontramos em nossas andanças cartográficas sujeitos velhos
envolvidos nas lutas sociais relacionadas às problemáticas da água e das secas, lutas que se
estendem para a busca do desenvolvimento da região de uma forma geral. A narrativa de Seu
Zezé das Tesouras – conhecido como guardião das águas – deixa claro esse posicionamento.

63
Expressão que denota a permanência de pessoas mais velhas no campo, em detrimento dos mais jovens.
176

A natureza tá desequilibrada, né? Mas o quê que desequilibrou: o ser humano. Nós
arrasamos a natureza, ela desequilibrou. [...] Então a gente tem essa preocupação
para ver se melhora esse equilíbrio, pelo menos formar a pessoa, que melhorar não tá
fácil não porque o desequilíbrio veio já de muitos anos, desde os nossos antepassados,
num cuidou dessa natureza, mãe terra (SEU ZEZÉ DAS TESOURAS, 77 anos).

Nesse sentido, o tema da preservação da natureza e a necessidade de repensar as formas de


ocupação e exploração do território estão entre as pautas de lutas sociais em que esses sujeitos
se inserem. Participamos das discussões do Conselho da APA64 da Chapada do Lagoão, uma
área que pertence ao município de Araçuaí e é conhecida como de recarga d’água por abranger
cerca de 139 nascentes e 8 lagoas, além de uma diversidade de espécies de fauna e flora. Desde
a década de 70 a região sofreu com processos de grilagem e com o avanço de atividades
empresariais exploradoras de monocultura e mineração. Para enfrentar esse cenário foi criado
esse Conselho da Chapada do Lagoão, que conquistou a transformação da área em APA a partir
de uma Lei Orgânica do Município. A tentativa do conselho é de lutar pela preservação dessa
área sempre alvo de múltiplos interesses. Dentre os membros do conselho estão representantes
do Sindicado dos Trabalhadores Rurais e lideranças comunitárias, além de outras instituições
da sociedade civil e de representantes do poder público65.

Então, a gente teve uma luta aqui muito longa em defesa do meio ambiente,
chama Chapada do Lagoão, que o pessoal tava grilando e quando a gente deu por
fé, já tava adiantada a grilagem, né. Aí a gente começou, nós começamos tomar as
iniciativa pra se defender (SEU ZEZÉ DAS TESOURAS, 77 anos).

A participação em reuniões do Conselho da APA bem como em outras discussões/eventos sobre


o tema realizados na cidade de Araçuaí demonstrou que a problemática da água é algo urgente.
Um aspecto fundamental é reiterar que na maior parte das vezes essas discussões têm por trás
disputas de caráter político e econômico, se distanciando da questão socioambiental.

Então por isso hoje você vê que é muito berrante o apoio a entrega de água via
caminhão pipa, e aí com isso veio um pacote de... como eu diria... Coronelismo talvez
meio que camuflado né? E que tem norteado as lideranças políticas que tão frente
aos projetos municipais né. Então a água... eu diria que não debate o
aprofundamento dessa política, hoje você vê ela muito mais agravada porque
dentro de um projeto que beneficia o capital e ele entra né? Com a exploração do
meio ambiente, com os grandes projetos aí cê vê eucalipto, mineração né,
inclusive a própria construção das barragem onde não considera esses fatores e as
comunidades elas são penalizadas (INSTITUCIONAL 2).

64
Área de preservação ambiental.
65
Seu Zezé das Tesouras e Seu Antônio da Velha, participantes desse trabalho, estão diretamente ligados às lutas
envolvendo a Chapada do Lagoão.
177

Ao mesmo tempo, em uma perspectiva mais micro e voltada para a população que efetivamente
vive cotidianamente nesse território, há a tentativa por parte de diversos atores de pensar
alternativas para a convivência com o semiárido. Tais iniciativas envolvem a disseminação de
práticas produtivas sustentáveis como, por exemplo, a permacultura66.

A luta principal que é demandada pelas famílias é da água né? E a água ela é norteada
pra questão do consumo familiar né, pra uma situação de água como diria pra beber
né, consumo, e outra pra produção. [...] Essa demanda ela é desencadeada frente a não
construção anteriormente dentro das comunidades do projeto de sustentabilidade em
relação aos recursos hídricos. [...] Agora nós estamos reafirmando a questão de
trabalhar essa num projeto maior que é pras famílias pensar onde que elas vivem, no
território onde vive que nós chamamos que é o grande projeto da convivência com o
clima né, a convivência com semiárido, e dentro desse programa se pauta a
questão da água (INSTITUCIONAL 5)

Tem um objetivo muito grande do nosso trabalho do CPCD, da permacultura, que é


tentar permanecer a vida do homem no campo aonde é o lugar de origem dele.
Porque a gente sabe muito bem que aonde é o lugar de origem da gente, a gente tem
muito mais probabilidade de ter uma vida sustentável, porque a gente tem todo o
conhecimento do meio (INSITUCIONAL 3).

A fala desse último representante de uma das instituições da sociedade civil traz outro aspecto
também associado à problemática da falta de água: o êxodo rural. Por vezes a seca é apontada
como responsável pela intensa saída de pessoas do campo, principalmente dos jovens. Como
colocamos no capítulo 2, a seca afeta o desenvolvimento das atividades agrícolas e pecuárias
na região e isso faz com que a sobrevivência nesse território fique comprometida.

O pessoal vai muito pra fora por isso, porque não tem opção de emprego e
lavoura não dá, você vê muitos idosos que gostam e ficaram a vida inteira...
Antigamente era um meio de renda bom, os agricultores tinham mais a terra mais
fértil, o clima... Chovia mais, hoje não, hoje é mais difícil, por isso está tendo muito
deslocamento do pessoal adulto (PODER PÚBLICO 3).

Aqui pra gente, água na zona rural, por exemplo, do Médio Jequitinhonha, a gente
sempre conversa, é 70%. Se eu conseguir, se a gente conseguir, botar água pra
todas as pessoas em quantidade e em qualidade, por exemplo, na zona rural, vai
ser um desenvolvimento grande (PODER PÚBLICO 4).

Os principais avanços narrados pelos velhos em relação à seca nos últimos anos relacionam-se
à adoção de tecnologias como cisternas, barragens e outros mecanismos para armazenamento
de água de chuva. Percebemos que a maior parte dessas iniciativas chegaram às comunidades

66
Permacultura é um sistema de princípios agrícola e social de design centrado em simular ou utilizar diretamente
os padrões e características observados em ecossistemas naturais.
178

rurais por meio de instituições da sociedade civil e religiosas, ou mesmo de mutirões


organizados por membros da própria comunidade.

E com essa luta com o povo, a gente conseguiu aquelas caixas, né, através das
Cáritas, a gente conseguiu as caixas coletoras de água da chuva, que foi um dos
melhores projetos que nós temos na comunidade (JOANA, Virgem da Lapa).

Água aqui, nós tem água do poço, que é o poço artesiano. Esse daí foi a premeira
busca minha de presidente da Associação (comunitária), fui eu que consegui pra
cá, né. E nós tem essas caixa de placa, né? Isso aí é uma fundação ASSOCIAR
que foi um órgão que ajudou demais aqui. Demais da conta, né. Que fala a verdade:
a ASSOCIAR ajudou demais essas roça. Demais. E temos represa, né que juntou
todo mundo e fez (SEU MILTON GRANJA, 67 anos).

Nós tá se valendo aqui das represa que a gente faz e essas caixa aqui nós ganho,
né? Essas da captação da chuva, né? Essa daí cai, a água junta nela, né? Aquela lá de
baixo já é do... Desse calçadão que junta e essa outra caixa que eu tem [tenho] aqui já
é água suja de represa que a gente põe pra puder [poder] moiar [molhar] planta, né
(SEU EMÍLIO, 79 anos).

Fotografia 10 - "Terreirão" - Placa para captação de água da chuva na casa de Seu Emílio
e Dona Marlene

Fonte: Jeane Doneiro, 2018.

4.1.2 Linha “A nossa vida lá vai melhorando”

Esta linha, da mesma forma que a anterior, compreende narrativas que versam sobre mudanças
ocorridas na vida cotidiana no campo, mudanças essas que em sua maior parte relacionam-se à
179

aplicação (ou não) de políticas públicas. A primeira delas – e talvez uma das mais importantes
– foi a chegada da energia elétrica. De acordo com os próprios narradores, isso foi algo que
gerou mudanças significativas e duradouras no cotidiano das comunidades rurais. Trata-se de
uma conquista recente que se tornou mais expressiva a partir de um programa do Governo
Federal chamado Luz para Todos, iniciado em 2003. Em 2009 houve o lançamento da segunda
etapa do programa, quando efetivamente as cidades do Norte de Minas e do Vale do
Jequitinhonha foram beneficiadas. Trata-se, portanto, de uma mudança realizada a cerca de 20
anos e que está registrada na memória dos velhos com os quais conversamos.

Foi logo quando criou o projeto Luz para Todos, logo ela veio pra nós. Tem uns quinze
anos, por aí. Antes tinha solar e, antes, era querosene. Antes da querosene era um
pavio assim, de mamona muída junto com algodão. [...] Olha, era uma coisa triste.
Muito preocupante e sem muito futuro né? Mas era o que a gente tinha (SEU
ANTÔNIO DA VELHA, 67 anos).

A diversão era ir na casa duma amiga, né? Dum [de um] parente. Chegava lá, sentava,
bater papo, né? Até dar na hora da gente vim durmir. Nessa época num usava luz. A
nossa luz aqui era a lua (DONA LURUCA, 78 anos).

A chegada da energia elétrica nas comunidades rurais, segundo os velhos, trouxe mudanças
significativas no estilo de vida no campo. Como coloca Dona Luruca, antes de terem acesso à
televisão outras formas de diversão eram realizadas, principalmente, em comunidade. Nesse
sentido, até mesmo as práticas religiosas foram modificadas com a chegada da televisão: os
terços diários deram lugar às missas televisionadas.

O que nós fazia de noite quando num tinha televisão? O que nós fazia é rezar o
terço. Todo santo dia, minha fia, nós rezava o terço. Mas nós por causa da
televisão... Por que nós escuta muito a missa na Rede Vida, na Aparecida, né. Nós
escuta muito, quase todo dia, mas o terço mesmo, nós só tira o dia de sábado pra rezar
o terço, no final da semana, né (DONA MARLENE, 68 anos).

Dona Isaura, inclusive, explica que a chegada da energia elétrica fez com que não houvesse
mais diferenças entre a vida no campo e na cidade. Seu Antônio da Velha e Dona Santa
concordam dizendo que esse processo trouxe melhoria para a vida de todos.

Ah, muito melhor do que na cidade... Tudo é bom. Morar na roça, né? Que a gente tá
ali... Tem tudo. Principalmente agora! Antes num tinha... Como é que fala?
Energia! Num tinha essas coisa, energia, aparelho telefônico, mas hoje tá do mesmo
jeito. Como se fosse na cidade mesmo que tem telefone, tem energia, tem tudo, tá
bom. Eu acho melhor morar na roça (DONA ISAURA, 78 anos).

Tem televisão, tem geladeira, tem tudo! A maior parte. Alguns têm freezer, né?
Graças a Deus! Miorou bastante (SEU ANTÔNIO DA VELHA, 67 anos).
180

Eu tenho televisão, eu tenho geladeira, eu tenho congelador! A gente não sabia o que
que era uma água gelada, não sabia oque que era uma luz, quando pôs a gente
ficou até besta, melhoro demais da conta (DONA SANTA, 79 anos).

Essas observações e narrativas corroboram os achados de Souza (2017) em trabalho sobre os


impactos da eletrificação rural (Programa Luz para Todos) nas condições de vida de idosos no
Baixo-Amazonas. A autora verificou na pesquisa que a implantação do programa trouxe
mudanças no que diz respeito ao consumo, à educação e à convivência social e comunitária.
Sobre o consumo, como vimos nas falas acima, houve um aumento expressivo da aquisição de
eletrodomésticos e eletroeletrônicos, com destaque para a televisão, o rádio e a geladeira (que
trouxe mudanças também nos modos de armazenamento dos alimentos). Em termos de
educação, a autora identificou na região estudada que a chegada da energia elétrica oportunizou
a oferta de cursos tecnológicos para os idosos, o que não é uma realidade nas comunidades
estudadas67. Sobre a convivência social e comunitária também ouvimos narrativas sobre essa
dimensão embora o contrário também tenha sido observado (a televisão e, mais recentemente
o celular e a internet prejudicando as relações sociais).

Interessante observar que poucas mudanças foram identificadas por Souza (2017) no que diz
respeito a incrementos na produção propriamente dita. Embora não tenhamos nos dedicado a
esse tipo de análise, nos parece pertinente dizer que a baixa utilização de mecanização e
tecnologias dependentes de energia faz com que realmente pouco impacto em termos de
produção possa ser observado também nas comunidades estudadas. Tais tecnologias poderiam
ajudar no processo de convivência com o semiárido, como levantamos anteriormente, mas
constatamos que ainda não estão acessíveis aos agricultores familiares da região, o que fica
claro nas narrativas recolhidas.

A gente não vai combater porque é uma coisa natural (semiárido), climática, são
fenômenos da natureza, tem que aprender a conviver com a seca, e hoje eu vejo que
está começando, está rastejando esse novo olhar, como exemplo, citei aqui o Instituto
(IFNMG) que tem técnicas muito interessantes mais isso aí infelizmente não chega
para o cidadão não lá na roça (PODER PÚBLICO 1).

Eles não têm esses mecanismos, essas tecnologias, não têm acesso a essas tecnologias
do campo sabe? Questão de irrigação isso ainda é muito... É praticamente
inexistente para o trabalhador rural (PODER PÚBLICO 1).

Este baixo nível de mecanização e de tecnologias empregadas na produção pode ser visualizada
nos dados do IBGE apresentados no capítulo 2 e, de fato, pode ser constatada nas visitas às

67
A questão da educação nas comunidades estudadas será abordada posteriormente.
181

comunidades. Principalmente no que tange à produção da agricultura familiar, o que vimos é


uma produção bastante pautada no trabalho manual, com ferramentas simples e muitas vezes
improvisadas. Sendo assim, nesse caso específico dos agricultores familiares, a inserção da
energia elétrica de fato não trouxe efeitos na produção em termos de aumento da produtividade.

Apesar disso, no que diz respeito aos idosos, percebe-se uma melhoria na qualidade de vida –
algo que nos parece indiscutível também no território cartografado. Sobre os impactos da
eletrificação rural, Santos (2017) conclui, portanto, que se trata de uma realidade paradoxal.
Isso porque faz-se necessário destacar que, sob o ponto de vista do desenvolvimento local, ainda
que seja possível reconhecer a positividade do programa, entende-se que sua efetividade
dependeria da articulação com outras políticas públicas. Concordamos com Santos (2017) ao
constatar que a existência da energia é fundamental, mas que ela não se configura como
condição suficiente para o desenvolvimento dessas comunidades na medida em que persistem
os obstáculos relativos à água (como já colocado), ao transporte, à segurança, dentre outros.

Adentrando nessa discussão das políticas públicas, a questão da segurança se insere no rol de
aspectos que os narradores velhos apontam como diferenças entre o passado e o presente nas
comunidades. É unânime entre os velhos, assim como entre os demais narradores, a
preocupação com a insegurança que prevalece no campo atualmente.

Que nessa época, assim, que eu tô contando ocês, era a gente morava, assim, sozim,
num tinha negócio de ter medo e nem nada não, né, que nossa região era
sussegada, né. Hoje nós tá aqui, essa casa cheia de gente e já quando é de noite, já
fecha as porta já com medo de chegar alguma pessoa atrapaiado, né (SEU
EMÍLIO, 79 anos).

Cê [você] tá doido! Isso aí tá feio demais. A gente tem que rezar muito pra isso
(DONA ISAURA, 78 anos).

O que tá difícil aqui é por que a gente tem medo. Medo de assaltante que vem nas
casa... Pelo amor de Deus! Já teve vários aqui só nessa Tesoura! Ali embaixo, chegou
mesmo um senhor lá, amarrou, foi lá, amarrou ele, a mulher dele, amordaçou e roubou
tudo o que ele tinha em casa e ainda deu uns bate [bateu] nele ainda. A gente tem
medo é dessas coisa (DONA LIA, 79 anos).

Há cerca de um mês mais ou menos, na comunidade de São Marcos que falei que é
duas horas daqui pra chegar, uma usuária veio aqui relatando pra gente que os dois
que são líderes comunitários que já são idosos haviam sido roubados e agredidos
(PODER PÚBLICO 2).

Em levantamento realizado em um dos principais jornais da região essa questão da violência


no campo ficou evidente. Especificamente sobre a temática de violência na zona rural de
182

Araçuaí são mais de 35 notícias entre os anos de 2012 e o início de 2018. As manchetes chamam
a atenção: “Lavrador é encontrado morto e parcialmente carbonizado em Araçuaí”
(23/11/2012); “Lavrador é morto a tiros na zona rural de Araçuaí” (03/02/2013); “Homem é
morto a tiros na zona rural de Araçuaí” (21/04/2014); “Dupla assalta mulher na zona rural”
(14/08/2016); “Disputa por terras entre irmãos termina em morte em Araçuaí” (04/06/2018).
Em especial a reportagem de 2015, “Violência assusta moradores da zona rural de Araçuaí”,
traz um panorama desse aumento da insegurança da vida no campo chamando a atenção para a
ocorrência de furtos, assaltos e assassinatos em “lugares antes reconhecidos como tranquilos,
[que] são agora motivo de preocupação para seus moradores” 68.

Essa questão da insegurança teve efeitos, inclusive, na própria produção da cartografia. Sempre
que falávamos em qualquer espaço sobre a ida às comunidades rurais as pessoas logo
perguntavam: “Vocês vão sozinhas?”, “Vão de carro?”, “Cuidado!”. Confessamos que esses
comentários nos trouxeram algum desconforto e nos fizeram, naquele momento, tentar
compreender melhor quais eram os perigos envolvidos. A partir desse contexto dois efeitos se
fizeram presentes na experiência cartográfica: o primeiro deles foi essa preocupação de buscar
apoio e companhia para a realização das visitas, o que conseguimos com a parceria do IFNMG;
e o segundo foi a confirmação de que chegar na casa dos velhos de forma abrupta e sem uma
aproximação adequada também não seria positivo. Além de todos os fatores que envolvem a
construção de laços necessários à pesquisa qualitativa, também tememos por uma rejeição dos
moradores por sermos visitantes desconhecidos. Optamos então por visitar comunidade nas
quais fomos convidados, apresentados e acompanhados por moradores e/ou profissionais que
atuam no local (pelo menos nas primeiras visitas). Sobre esses temores, seguem alguns registros
do diário de bordo.

Hoje seguimos para Santa Rita de Cássia para a realização da dinâmica com os
membros da comunidade. Estávamos em um carro pequeno e não conseguimos
companhia de alguém que conhece bem a região. Tivemos uma grande preocupação
em não nos perdermos – as estradas são muito parecidas e sem sinalização – e cada
momento que uma moto passava por nós gerava uma tensão. Tivemos muito
medo (Anotações do diário de bordo, 27/08/17).

É interessante observar a reação das pessoas quando chegamos ou mesmo


passamos pelas comunidades. São muitos olhares atentos, curiosos e desconfiados.
Quando passamos pela estrada as pessoas logo vão chegando às janelas ou nas

68
Disponível em:
http://www.gazetadearacuai.com.br/noticia/4680/violencia_assusta_moradores_da_zona_rural_de_aracuai/
183

porteiras para ver do que trata aquele movimento (Anotações do diário de bordo,
06/09/17).

Nas falas dos sujeitos representantes das instituições religiosas e da sociedade civil, bem como
na narrativa dos próprios velhos, não aparecem sinalizações acerca de ações específicas que
estejam sendo feitas para lidar com a questão da falta de segurança no campo. Na realidade,
essa insegurança estende-se para o contexto urbano sendo perceptível entre os moradores da
cidade. Ainda nesse esteio das políticas públicas, especialmente no âmbito da zona rural, a área
da saúde foi apontada como uma das que evoluíram nessa avaliação temporal dos velhos em
relação ao passado-futuro. Alcântara e Lopes (2012) destacaram em pesquisa realizada com
idosos residentes de áreas rurais no sul do país que,

Como a maioria dos serviços de saúde encontra-se na sede municipal, a população do


meio rural e os idosos, em particular, encontram dificuldades de acesso e,
consequentemente, desigualdade no atendimento aos problemas de saúde, bem
como de ações de promoção da saúde, como acesso à informação entre outras (pg.
100-101, grifos nossos).

Em conversas com representantes do poder público, a ampliação do atendimento à saúde no


campo foi apontada como um dos principais avanços da atual gestão municipal, que em 2018
está em seu segundo mandato. O modelo de atendimento da saúde primária anterior era o
chamado Programa de Agentes Comunitários (PAC)69, em que uma equipe formada apenas por
profissionais da enfermagem e agentes comunitários era responsável por fazer o
acompanhamento rural, sem a existência do médico cujo atendimento permanecia centralizado
na área urbana. Esse modelo tornava o acesso à saúde para a população rural mais difícil na
medida em que era necessário o deslocamento até a cidade para exames, consultas e quaisquer
outros procedimentos.

Antigamente não tinha o programa da família, então os idosos tinham que vir
tomar vacina da gripe aqui (na policlínica), a campanha era só aqui... Hoje nós
levamos, não só nesses pontos de apoio que a médica atende, mas ainda têm os pontos
de apoio extras, tipo assim, uma igreja, uma igreja eu fica mais próxima que facilita
para a locomoção do idoso, de uma mãe com criança de colo recém-nascida (PODER
PÚBLICO 3).

Então hoje, em toda zona rural, nós temos atendimento médico. São divididos em
5 USFs na zona rural de Araçuaí. Esses USFs são atendidos pelos médicos cubanos,
né? E esse PSF num é um só local... [...] Em vez de atender só um local, a gente já
tem duas, três ou talvez até quatro pontos de apoio (PODER PÚBLICO 4).

69
Programa de Atenção Primária à Saúde criado pelo Governo Federal em 1991 que, como o próprio nome
explicita, trouxe como ponto central a atuação dos Agentes Comunitários.
184

A nossa comunidade sempre vinha aqui para Araçuaí tanto faz os idosos, o pessoal
em si vinha pra fazer assim uma consulta, tinha que pegar fila na policlínica né.
Hoje já tem uma equipe médica, tem agente de saúde na nossa comunidade, tem
também a enfermeira né. E a doutora que vai de 8 em 8 dias, todas as quartas feiras
de cada semana eles vão atender lá, é uma coisa ótima que evita da pessoa tá vindo
pra cá pegar fila né (SEU ANTÔNIO DA VELHA, 67 anos).

Nós participa do PSF do Graça né? Aqui pertim, 5 km. Caminhando agora não
aguento não que eu ia de primeiro agora não (DONA SANTA, 79 anos).

Fotografia 11 - Unidade Básica de Saúde da Família da Comunidade da Baixa Quente

Fonte: Jeane Doneiro, 2018.

O programa posterior lançado pelo governo federal é chamado de Estratégia Saúde da Família,
a qual é composta por Unidades de Saúde da Família (USF) e equipes de Saúde da Família
(ESF). O município de Araçuaí possui cinco USFs rurais, dois cujas construções seguem o
padrão de estrutura hospitalar (como o da Baixa Quente) e os demais que estão em processo de
transição. A estratégia utilizada para a instalação dessas USFs, segundo as narrativas
institucionais, foi pensar numa distribuição territorial que permitisse o atendimento das
comunidades do entorno, lembrando que a extensão territorial rural do município é expressiva
(aproximadamente 70 comunidades). Sendo assim, além dessas unidades há em algumas
comunidades pontos de apoio como por exemplo, o que visitamos na comunidade de Tesoura
de cima, que fica ao lado da igreja. Nesses pontos de apoio a equipe faz visitas periódicas, a
depender da disponibilidade de médicos e de carro.
185

Era PAC que é diferente, é só os agentes e o enfermeiro coordenador, então assim


precisava de médico tinha que agendar aqui na policlínica... Hoje não! O médico vai
praticamente no local que é mais próximo da sua residência, claro que tem gente que
mora no Córrego da Velha, ele não está tão próximo da Malhada dos Bois, mas
com certeza é mais próximo do que vir aqui, fora o custo que ele tem que pagar a
passagem, lá ele vai no escolar... (PODER PÚBLICO 3).

Essa maior cobertura de saúde da população do campo revelou, em termos estatísticos, um


aumento no número de registros de adoecimento, também entre os idosos. Os representantes
das instituições públicas de saúde relatam que esse aumento não significa que essa população
esteja adoecendo mais e sim que havia uma demanda reprimida que a partir do programa
começou a ser atendida. Nesse sentido, não é que os casos de adoecimento aumentaram, mas
que se passou a ter conhecimento sobre eles. Na perspectiva da saúde, desenha-se um território
que por muito tempo ficou descoberto e por isso sofre as consequências dessa ausência de
cuidado especializado.

Acho que aquelas síndromes geriátricas elas existem porque eles não tiveram
acesso, então a gente tem muita sequela de acidente vascular cerebral, a gente tem
incontinência urinária, a gente tem câncer que foi diagnosticado tardiamente e isso
leva a casos de demência e causa muito sofrimento para a família (PODER PÚBLICO
3).

Na zona rural a gente vê a questão da saúde bucal também, assim, a zona rural tem
um alto índice de cárie e doença bucal, mutilação mesmo, as vezes o paciente chega
já quando não tem mais o que fazer, é extração, a gente vai tirar porque num teve
acesso ao serviço... Não atendeu precocemente então não dá nem para você restaurar
mais o dente... Então a gente tem uma população com certeza de idosos que estão
totalmente desdentados, porque não tiveram acesso à saúde bucal (PODER
PÚBLICO 3).

Sobre as percepções acerca da implantação desse serviço, um aspecto em especial nos chamou
nossa atenção e se mostrou uma constante nas narrativas escolhidas: a presença positiva dos
médicos cubanos. Esses médicos vieram para o Brasil a partir da criação de uma Programa do
Governo Federal chamado “Mais Médicos”, cujo objetivo era justamente ampliar o número de
profissionais para atendimento no âmbito da saúde da família.

E aí começaram a aparecer demandas que a gente... que até então ficavam reprimidas
e eles têm (médicos cubanos) uma habilidade muito grande porque já trabalham com
isso há muito tempo, então eles são muito disponíveis, eles acolhem muito bem, tem
uma escuta qualificada, uma atenção, um olhar diferenciado, que eu acho que isso vai
contribuir muito para o atendimento aqui (PODER PÚBLICO 3).

Eles são realmente muito disponíveis, eles vão não tem questão do atendimento, de
demora, eles vão mesmo com o maior prazer e atendem, e acolhem muito bem. Eu
acho que isso é um diferencial também que a gente pretende que continue que
realmente é muito difícil a gente conseguir médico para a zona rural (PODER
PÚBLICO 3).
186

Santos, Souza e Cardoso (2016) realizaram uma avaliação sobre a qualidade da estratégia da
saúde da família e do Programa Mais Médicos em uma área rural de Porto Velho, Rondônia.
Especificamente sobre a ida dos médicos cubanos para a região estudada, os resultados da
pesquisa apontaram para a satisfação dos usuários e dos demais profissionais das ESFs, na
medida em que a presença deles resolve, ou pelo menos ameniza duas questões: a dificuldade
de contratação de médicos para essas regiões mais remotas e alta rotatividade dos profissionais
que passavam pelas UBSs, prejudicando um dos pilares do programa que seria o de
acompanhamento das famílias cadastradas.

Nas conversas com os profissionais de saúde ouvimos que esses mesmos problemas existem na
realidade que estudamos, uma vez que a zona rural seria considerada como pouco atrativa pelos
médicos. Medeiros et al. (2010) discute esse desinteresse dos profissionais da medicina pelos
locais distantes dos grandes centros, destacando a busca destes por programas de especialização
(residências) e por oportunidades de valorização profissional encontradas nas capitais do país.
A última frase da narrativa que apresentamos acima retrata justamente essa dificuldade
experimentada também pelo município de Araçuaí.

Sobre a existência de dificuldades no atendimento dos médicos cubanos em função das


diferenças culturais e de idioma, Santos et al. (2016) ressaltam que o resultado na balança
também é positivo. Isto é, os autores identificaram essas dificuldades, mas destacam que a
qualidade percebida no atendimento é um fator que sobressai positivamente. Essa percepção de
cuidado e atenção desses profissionais também apareceu expressivamente nas narrativas que
coletamos.

Era uma médica simples, mas gente que vivia igual a gente com a simplicidade, mas,
oh, médica boa, num é... E atendia o paciente com aquela maior delicadeza, com
aquele jeito que cê precisava ver, num é. Boa, boa! (SEU ZEZÉ DAS TESOURAS,
77 anos).

Foi bom. Ela é uma dotorinha que tomou conhecimento do pessoal. Só vendo como é
que foi, né? Todo mundo gostava! Quase todo mundo fez uma festinha de despedida
dela quando ela foi embora, né. (SEU EMÍLIO, 79 anos).

É, o pessoal no início estranhou porque eles falam diferente, o sotaque é diferente


né? E tem as palavras culturais, regionais... no caso da zona rural mesmo, ainda hoje
a médica me pergunta: ‘Ele falou essa palavra e eu não sei o que é... o que é isso?’,
me chama na sala, eu explico para ela, porque quando eu comecei eu também não
sabia, eu não morei na zona rural... (PODER PÚBLICO 3).
187

Interessante destacar nessa última fala de um dos profissionais da saúde com o qual
conversamos que essas dificuldades e embates culturais não acontecem exclusivamente com os
médicos cubanos, mas com qualquer profissional que não seja familiarizado com a cultura e o
modo de vida rural. Sobre a permanência desses profissionais no território que pesquisamos,
até o momento em que realizamos as entrevistas esse cenário parecia incerto. O município
alegou estar em processo de renovação do acordo com o governo federal e que haveria rumores
sobre um possível cancelamento em função das mudanças no cenário político mais amplo.
Ainda sobre a necessidade de adaptação dos profissionais para atuação junto às comunidades
rurais, uma figura se mostrou fundamental para o funcionamento da Estratégia da Saúde da
Família e que também é vista com carinho pelos moradores: o agente de saúde.

Ele tem que ser da própria comunidade, tem que morar na área de abrangência,
é exigido também ensino fundamental completo. [...] Hoje a gente tem 79 agentes
trabalhando. A maioria dos nossos agentes tem ensino médio completo (PODER
PÚBLICO 3).

Tem a agente de saúde que já vai fazendo as visitas nessas casas e já vão marcando as
consultas nessas casas para as pessoas, pra fazer aquele controle, para as pessoas não
ta perdendo viagem, então a agente de saúde já vai fazendo o controle, já marca né,
naquele dia marcado na quarta feira já marca pra uma turma, na outra quarta que vem
já marca pra outra. Então está funcionando muito bem, o povo ta gostando muito
né. (SEU ANTÔNIO DA VELHA, 67 anos).

Tem os agente de saúde aí que passa de vorta e meia, né. (SEU MILTON
GRANJA, 67 anos).

Ficou evidente nas narrativas e nas nossas próprias observações nas visitas às comunidades a
importância desse profissional, uma vez que por fazerem parte da comunidade conhecem e
participam da vida naquele espaço. Inclusive na realização da pesquisa, em uma das
comunidades que visitamos o acompanhamento da agente de saúde foi fundamental tanto para
a indicação de velhos com os quais poderíamos conversar, quanto pelo papel de intermediação
que fez com esses sujeitos inicialmente aceitassem a nossa presença e aos poucos se abrissem
para a participação na pesquisa. Vale aqui destacar que esses profissionais, a maior parte
mulheres, atendem não apenas a sua comunidade, mas um conjunto delas – trajeto que por vezes
é realizado a cavalo, a pé e, mais recentemente, de motocicletas.

Bapstini e Figueiredo (2014) investigaram os desafios que marcam a atuação do Agente


Comunitário de Saúde (ACS) que atua em zonas rurais. Especificamente, abordaram a realidade
de profissionais que atuam em comunidades em um município no interior do Espírito Santo.
Como principais desafios apontados pelo profissionais dessa região estão a dificuldade de
188

acesso aos domicílios (o uso do cavalo como transporte é citado), a precariedade das estradas
(risco de acidentes, principalmente na época de chuvas) e a necessidade de trabalhar em
horários alternativos, uma vez que é comum encontrar as casas vazias em função do trabalho
na colheita do café. Embora não estivesse dentre os objetivos da pesquisa, em nossas andanças
cartográficas encontramos as mesmas dificuldades dos ACSs no que se refere ao acesso e à
necessidade de se adequarem para que consigam realizar esse trabalho. Sentimos a proximidade
que esses profissionais têm com as famílias, afinal, são visitas constantes e que demandam o
conhecimento sobre a vida e o cotidiano daquelas pessoas.

Especificamente sobre a predominância de mulheres como ACS os autores justificam pela


feminização dos trabalhos na área da saúde, remetendo ao perfil feminino culturalmente
associado ao cuidado. Outra justificativa seria a priorização da contratação de mão-de-obra
feminina como forma de melhorar sua condição social e estímulo a uma participação mais ativa
na comunidade. (BAPSTINI; FIGUEIREDO, 2014). Para além dessas questões, no caso das
comunidades que visitamos a prevalência de agentes comunitárias femininas pode ser explicada
pela forte migração temporária da mão-de-obra masculina para as lavouras em outros estados.
Nas conversas sobre o assunto, ficou claro que essas mulheres que permaneceram no campo
com seus filhos (caracterizadas como “viúvas de marido vivo”) buscavam – e ainda buscam –
formas de complementação de renda. Nesse sentido, são elas que estariam disponíveis e se
tornariam ACS.

Em relação aos velhos as ACSs desempenham um papel fundamental, principalmente no que


se refere àqueles que vivem sozinhos e/ou com o cônjuge. Além da atuação no âmbito da saúde
(agendamento de consultas e outros), esses profissionais também exercem o papel de
informantes para a execução de outras políticas públicas, como é o caso da Assistência Social.

É um braço firme, porque eles têm um laço muitas vezes com aquelas famílias. É
tanto que quando a gente vai fazer uma visita urbana ou uma visita rural para
determinada família, a gente tem o hábito de, mesmo tendo saído para fazer as visitas
a X, Y e Z, a gente passar no PSF para trocar uma ideia mesmo saber como estão as
coisas na comunidade, para saber se tem alguma novidade, alguma coisa que eles
gostariam de passar para a gente... e sempre tem algo para reportar, entendeu?”
(PODER PÚBLICO 1).

A política de assistência social do município é exercida, basicamente, por meio de dois


equipamentos públicos: o CRAS – Centro de Referência de Assistência Social e o CREAS –
Centro de Referência Especializada de Assistência Social. Enquanto o CRAS atua em termos
189

de prevenção de situações de violação de direitos, o CREAS é convocado quando há a


identificação de um contexto em que tal violação já se efetivou. O município de Araçuaí é
atendido por dois CRAS, os quais são responsáveis cada qual por parte da população urbana e
rural e apenas um CREAS. Para atender a população rural os CRAS possuem equipes chamadas
volantes, ou seja, equipes que se deslocam até o campo para realizarem suas atividades: “A
referência do rural acaba sendo o volante” (INSTITUCIONAL 2).

Sobre a atuação desses equipamentos em relação ao público idoso, acompanhamos algumas


atividades e coletamos narrativas dos profissionais envolvidos. A maior parte da demanda desse
público é para emissão de carteiras de idoso que possibilitam a realização de viagens
gratuitamente, assim como para o acesso ao BPC – Benefício de Prestação Continuada, um
benefício que garante à pessoa com deficiência e ao idoso (com 65 anos ou mais) que não
tenham condições de sobreviver o provento mensal de um salário mínimo. Segundo dados da
Secretaria de Assistência Social do município, há atualmente 48 velhos de comunidades rurais
beneficiados com o BPC. Tal número não é maior porque essa população é amparada em sua
maior parte pelo benefício da aposentadoria rural70. Para além da informação e apoio para o
alcance desses benefícios, as equipes desenvolvem atividades como grupos de convivência e
outras iniciativas temáticas como, por exemplo, de combate à violência contra a mulher.

Sobre a atuação do CREAS identificamos que as principais demandas que chegam ao serviço
estão associadas a situações de negligência e abandono familiar e também à violência
patrimonial. “A gente tenta diminuir ou até mesmo zerar aquela situação de violência que é
quando a pessoa está exposta” (PODER PÚBLICO 1). Em função do CREAS estar apenas no
centro urbano, as denúncias relativas à zona rural chegam por meio de diferentes canais: CRAS,
USF, ACS, Associações de moradores (líderes comunitários); Ministério Público e Polícia. “No
caso da população rural, eu diria que a porta de entrada mais usada seria mesmo a equipe do
CRAS volante” (PODER PÚBLICO 1).

Entre os velhos dos quais recolhemos narrativas biográficas, identificamos certo distanciamento
em relação a esses serviços, apenas uma das velhas participa dos grupos promovidos pelas
equipes de um dos CRAS volante e nenhum deles relatou ocorrências associada ao CREAS.

70
A aposentadoria rural é um benefício extremamente importante para os sujeitos da nossa pesquisa. Essa
questão será retomada, em detalhes, no capítulo 5.
190

“Não. Aqui tem só é... só agente de saúde”. (DONA MARLENE, 69 anos)71. Entretanto,
tivemos oportunidade de acompanhar iniciativas que nos permitiram em certa medida
compreender um pouco melhor de que forma essas instituições contribuem para a construção
da vida e da velhice no território pesquisado. Uma preocupação apontada de uma forma geral
por essas e pelas demais instituições do poder público é a necessidade de trabalhar de modo
integral para enfrentar os desafios que se colocam na realidade cotidiana dessas comunidades.

Com o aumento do serviço de saúde e com o CRAS e o CREAS s gente tem


conseguido trabalhar de uma forma mais integrada e harmônica, mas a gente ainda
tem um caminho muito longo porque muito deixou de ser feito então tem muita
coisa que a gente ainda não dá conta de fazer (PODER PÚBLICO 3).

Facilitou muito, muito mais ainda tem deficiência que precisa melhora, né?!? No
sentido tanto pro idoso quanto pra criança né (INSTITUCIONAL 1).

Os sujeitos que de fato vivenciam e são alvo dessas políticas reconhecem que a vida no campo
atualmente goza de melhores condições e de um acesso maior aos serviços públicos. As duas
narrativas que apresentamos a seguir são de velhos, líderes comunitários, que se expressam
emocionados sobre esse contexto. Entretanto, se olharmos atentamente, essas duas falas
demonstram que essas melhorias não aconteceram gratuitamente, mas foram resultados de lutas
comunitárias empreendidas ao longo dos anos.

Então é isso de questão da saúde, mas de tudo a gente tem um pouco, a gente tem da
saúde, a gente tem de escola, a gente tem meio ambiente, mas de tudo a gente tem
um pouco. Sempre eu senti empenhado de articular e lutar pra isso, num é, por
que seria coisa que daria condições pra o ser humano, num é? Por que a gente tem que
cuidar, como diz, do ser humano, todos nós somos ser humano que precisamos ser
cuidado, merece respeito, merece cuidado, num é? (SEU ZEZÉ DAS TESOURAS,
77 anos).

Naquela época, eu vivi sem direito nenhum no campo, porque quando eu comecei a
minha caminhada, eu num tinha direito. No campo num tinha crédito, no campo
num tinha luz, não campo não tinha internet, não tinha telefone, no campo não
tinha saúde, no campo não tinha educação, no campo não tinha direitos
previdenciários pra gente poder viver, a quem tinha seus velhos tinha que cuidar
deles da maneira que fosse. Quantos e quantos idosos morreu no mato de fome,
porque a família não dava conta! E naquela época os idosos deixavam os filhos comer
pra eles sobreviver, porque pra eles tanto faz eles viver diante do sofrimento que eles
viviam. Nós avanço [avançamos] muito, nós conquistamos (Diretora da FETAEMG).

Finalizamos essa seção sobre a vida no campo sem nenhuma pretensão de esgotá-la, mas com
o intuito de trazer luz sobre esse território que foi aos poucos se configurando. Em meio a toda

71
Sobre o tipo de trabalho realizado pelos CRAs volantes especificamente para o público idoso, retomaremos na
seção posterior sobre a velhice no campo.
191

essa complexidade, entre avanços e obstáculos, prevalece nas narrativas dos velhos o amor pela
vida no campo, o apego à terra e a sensação de pertencimento.

Que nem tava falando... Eu amo a zona rural porque nasci e criei né? E vivo lá
graças a Deus! Tô tranquilo, gosto de lá (SEU ARLINDO, 70 anos).

Oh, minha fia, num [não] sai daqui não. Tem mais de sessenta ano que eu moro
aqui, ó, nesse lugarzinho aqui (DONA LURUCA, 78 anos).

Já acostumei ficar aqui mais meus passarinho brincando... Mesmo com as


dificuldades eu sou feliz (DONA SANTA, 79 anos).

De forma a sintetizar os aspectos que identificamos nesse eixo analítico, podemos retomar a
questão que colocamos como orientadora da nossa discussão: como é a vida nessas
comunidades que compõem essa cartografia? Vimos que os sujeitos, apoiados principalmente
por instituições da sociedade civil, têm buscado alternativas para o enfrentamento de uma das
maiores dificuldades que se impõe sobre o território: os longos períodos de seca. Trata-se de
uma linha dura que estratifica e aprisiona os sujeitos, na medida em que por vezes impede a
vida de circular naquele território. A falta de água, tanto para uso pessoal quanto para a
produção dificultam e ameaçam a sobrevivência nessas comunidades, as quais sofrem com as
perdas de plantações, morte de animais e adoecimento em função da utilização de águas não
adequadas para o consumo humano. Ao mesmo tempo, percebe-se a criação de linhas de fuga,
invenções que buscam minimizar essa realidade dura e limitante, seja com a ajuda de outras
instituições, seja pela implementação de estratégias familiares e comunitárias (desenvolvimento
de técnicas de reaproveitamento da água, criação de outros mecanismos de captação da água da
chuva – ainda que improvisados, cooperação entre vizinhos para abastecimento, dentre outros).

De forma geral, também pudemos perceber que se trata de um território ainda carente em termos
de políticas públicas, assim como argumentam autores que também investigaram o contexto
rural (CAMARANO et al, 2004; ALCÂNTARA, 2016; TONEZER; TRZCINSKI; MAGRO,
2017). Em suas pesquisas os autores identificaram as dificuldades dos idosos que residem nas
áreas rurais a terem acesso à educação, saúde, transporte e segurança. No caso específico do
território pesquisado, ainda que essas debilidades sejam uma realidade, identificamos que os
sujeitos percebem uma série de melhorias ao longo dos anos, em especial a partir da chegada
da energia elétrica na região e de avanços no que tange à oferta de serviços de saúde locais. Os
trechos narrativos apresentados logo acima assinalam para os vínculos fortes desenvolvidos
192

entre esses sujeitos e o território, em que pesem todas as dificuldades levantadas e que marcam
não apenas o território em si, mas as velhices que nele são construídas.

4.2 As velhices no campo: Experiências de velhos em comunidade rurais do médio Vale


do Jequitinhonha

Neste segundo eixo analítico nos dedicamos a explorar a seguinte questão: Como os sujeitos
que emergem no/do/com esse território experienciam a velhice? De forma ainda mais específica
esperamos evidenciar os modos de ser velho possíveis nesse território (O que pode um velho
rural?72). É relevante destacar que se estamos partindo da perspectiva de que a velhice é um
rizoma, cabe-nos compreendê-la em termos das linhas que a compõem. Como discutimos
anteriormente, o fato dessas linhas constituírem-se forças em constante interação, ora
cristalizando-se em estruturas rígidas, ora escapando e criando novas possibilidades, torna o
processo de defini-las separadamente apenas um exercício didático, não condizente com a
realidade vivida. Mapear essas linhas é, no nosso entendimento, a expressão máxima do
movimento cartográfico que nos propusemos a realizar, cujos resultados apresentamos a seguir.

4.2.1 Linha “Sessenta anos de luta não é sessenta dias não!”

Falar sobre a velhice com os velhos rurais fez emergir significados e experiências diversas. Se
retomarmos as histórias de vida apresentadas no início dessa tese, podemos identificar uma
constante: o narrar de vidas de lutas e sofrimento. Quando Seu Milton Granja (67 anos) diz com
veemência que “sessenta anos de luta não é sessenta dias não!” ele fala sobre Uma vida
(DELEUZE, 2015) que longe de individual e privada, é múltipla e uma produção coletiva que
se atualiza nos sujeitos. Essa coletividade se faz expressa quando esse sentido ecoa nas demais
narrativas trazendo à tona esse sofrimento, não como lamúria ou uma suposta vitimização, mas
como uma análise sobre o vivido que perpassa, principalmente, as dificuldades associadas ao
território em que viveram e ainda vivem. Essas dificuldades remetem aos aspectos que foram
tratados anteriormente (na seção sobre “A vida no campo” e no Capítulo 2 sobre o território),
quando falamos sobre os elementos históricos, políticos e sociais que marcaram o
desenvolvimento da região. De forma mais específica, vimos as dificuldades de acesso dessa

72
Referência à questão “O que pode um corpo?” feita por Espinosa e recuperada por Deleuze na discussão sobre
a potência envolvida no devir.
193

população das comunidades estudadas à direitos básicos como saúde, educação e transporte, o
que se singulariza em cada narrativa, em cada história que coletamos.

Dona Santa (79 anos), Dona Luruca (78 anos) e Seu Antônio da Velha (67 anos) falaram
claramente sobre o sofrimento associado a episódios em que a ausência total de recursos
significou o extremo de não ter com o que se alimentar. A narrativa de Seu Antônio ilustra não
apenas a situação em si, mas a forma pela qual ele e sua mãe a enfrentavam.

E como nós era dez, mas vivo nessa época só tinha três, dez Deus tinha levado, né, só
ficou três irmão. Aí como ficou eu de homem e duas mulher, aí mãe era naquele
tempo... num tinha merenda escolar, num tinha Bolsa Família, num tinha Bolsa
Escola, num tinha nada, serviço de mulher também... o de mulher era menos valor.
Então ficou difícil, ficou difícil. [...] eu fiquei em casa mais mãe, né. Então as menina
saiu pra trabalhar, foi pra fora e eu fiquei mais ela. Aí aconteceu que a gente ficou...
num tinha condições pra nada, morando de favor dos outro, ela uma senhora já de
idade e eu pequeno com a idade de sete anos... aí a gente caiu naquela necessidade
até mesmo de ter... precisar trazer um prato de comida da casa do vizim, como
também passar o dia sem comer, né. Foi muita coisa que a gente viveu, até de pedir
um leite no curral dos outro pra tomar. Sempre eu falo pro pessoal... num existia fogão
a gás, era só fogão a lenha. Nós passava uma semana sem acender um fogo no
fogão, que num tinha nada pra cozinhar. Aí eu completo assim: pra puder
escapar, eu comia semente de quiabo, eu comia... essas vegetação que vem dos
mato, a chananga, mata dos vaqueiro, óio de mutanga, né, folha de batata,
umbigo de banana, né. Eu mais mãe foi criado dessa forma.

Seu Antônio conta essa história emocionado, relembrando não apenas das dificuldades e da
dureza dos momentos vividos, mas expressando um carinho enorme pela mãe a quem ele
orgulhosamente atribui a força para o enfrentamento da situação de miséria em que se
encontravam. Esses valores associados à família vão ser mais bem explorados posteriormente.
Por hora o que chamamos a atenção é que são esses tipos de narrativas que compuseram as
histórias desses velhos, trazendo marcas fundamentais e influenciando a forma como eles
percebem, significam e experienciam suas velhices na contemporaneidade. Isso porque a
velhice é apresentada pela maior parte deles como um contraponto positivo a esse cenário de
miséria, pois hoje, “ah, hoje a vida é muito melhor!” (SEU ARLINDO, 70 anos).

É importante dizer que parte dessa percepção de melhoria em relação às condições de vida
decorre, principalmente, das mudanças provenientes do acesso ao benefício previdenciário
assim como à benefícios sociais como os identificados por Seu Antônio da Velha no trecho
narrativo destacado: “(antes) num tinha Bolsa Família, num tinha Bolsa Escola, num tinha
nada”. Nas demais narrativas dos velhos ficou clara a percepção de que, no que diz respeito a
essa dimensão social da vida no campo as melhorias foram significativas, embora ainda que
194

insuficientes para a manutenção dos jovens no território. Retomando a questão sobre a


experiência do envelhecer nesse contexto, essa percepção de melhoria de fato parece contribuir
expressivamente para a forma como a velhice é significada por esses sujeitos, na medida em
que antigamente:

Naquela época, eu vivi sem direito nenhum no campo, porque quando eu comecei a
minha caminhada, eu num tinha direito. No campo num tinha crédito, no campo num
tinha luz, no campo não tinha internet, não tinha telefone, no campo não tinha saúde,
no campo não tinha educação, no campo não tinha direitos previdenciários pra gente
poder viver... quem tinha seus velhos tinha que cuidar deles da maneira que fosse.
Quantos e quantos idosos morreram no mato de fome, porque a família não dava
conta! E naquela época os idosos deixavam os filhos comer pra eles sobreviver,
porque pra eles tanto faz eles viver por causa do sofrimento que eles viviam (Diretora
da FETAEMG).

Nesse sentido, é a partir dessa análise comparativa realizada pelos velhos que emergem os
sentidos mais positivos da experiência de ser velho. Em função do sofrimento vivido, há uma
construção de vitória nas narrativas, no sentido de ter chegado até essa idade avançada ainda
que enfrentando tantos desafios em suas histórias de vida. “Pra mim, inté hoje... não sei de hoje
em diante, mais inté hoje não foi ruim não (envelhecer). Conheci muito o mundo, sofri
demais... Mais pra mim foi bom. Tô mais maduro, pra mim foi bom” (SEU ARLINDO, 70
anos). Esse modo de pensar remete ao que foi dito por Deleuze (1988) sobre o velho que adquire
o direito de ser, no caso dos narradores tal aquisição associa-se justamente à superação de um
vivido. “Ah minha fia, já sufri muito nessa vida! Hoje eu tô bem, graças ao bom Deus!”
(DONA SANTA, 79 anos).

Como explicitamos anteriormente, essa ideia de superação trazida pelos velhos está atrelada ao
cenário de pobreza a que esses sujeitos foram submetidos e que teve como consequência,
portanto, o desenho de histórias de vida cujo objetivo maior foi a garantia de sobrevivência.
Nesse sentido, adquirir o direito de ser significou um processo de “luta” realizado por meio de
muitos anos de trabalho pesado e explorado, para além do pouco ou inexistente acesso a bens e
serviços que poderiam contribuir para uma melhor qualidade de vida e conforto para si e seus
familiares. Adquirir o direito de ser velho é, portanto, a realização desse projeto de
sobrevivência. Nesse contexto, Seu Arlindo (70 anos) expressa o sentimento positivo de ser
chamado de velho.

Pode me chamar de véio por que... Agora se me chamar de novo eu acho ruim! É
ruim porque eu não sou (enfático). Agora falar “ôh véio!” aí então eu acho bom...
Tanto que eu tem uma neta, e a moda pegou. Porque foi ela que, só me chama: “ôh
195

veio”. Então a moda pegou, já tem um cado de gente chega lá em casa me chama de
véio.

A fala de Seu Arlindo remete ao carinho com que a neta o chama de velho, negando qualquer
tom pejorativo associado ao termo. Quando ele diz “agora se me chamar de novo eu acho ruim!
É ruim porque eu não sou”, Seu Arlindo se coloca justamente como resistente ao que
discutimos anteriormente sobre a valorização da juventude em detrimento da velhice e ao
confirmar o que é – velho – ele valoriza o direito de sê-lo (DELEUZE, 1989), dizendo inclusive
o quanto lhe parece carinhoso ser reconhecido dessa forma.

Ao lado desse sentido de vitória diante de uma história de vida de luta e sofrimento, emergem
nas narrativas dos velhos o principal aspecto negativo decorrente da experiência do
envelhecimento: a perda da capacidade física para o trabalho. “Ficá mais véio assim... a gente
só vai... só vai enfraquecendo mais e num guenta fazer muita coisa quase, né... e a gente vê
mesmo que tá ficando véio, eu mesmo sinto que eu tô ficando véio, né” (SEU EMÍLIO, 79
anos). Em sua narrativa, Seu Emílio demonstra claramente o gosto pelo trabalho na roça que
desenvolveu ao longo de muitos anos. Nesse sentido, a velhice para ele se revela nas
dificuldades que passaram a impedi-lo de continuar com suas atividades no mesmo ritmo que
as desempenhava antes. Essa mesma constatação se fez presente em outras narrativas:

Ah, hoje eu planto, mas pouco, né? Por que cê sabe, na idade que a gente tá..., mas eu
já fui homem de fazer quinhentos alqueires de farinha (SEU MILTON GRANJA,
68 anos).

Envelhecer que cê trabalha muito, quando cê fica velha, sua saúde já foi, a gente
fica fraca das perna, dos braço, da mente e vira tudo. De vez em quando eu caio
cada tombo aqui, esses dias mesmo precisou d’eu ir pra cidade ficar uns 2, 3 meses lá
(DONA SANTA, 79 anos).

O quê que uma pessoa de setenta e tantos ano... faz o quê? Eu lavo uma vazia aí
na pia, né, limpar a casa já num guenta mais (DONA LURUCA, 78 anos).

Essa percepção do envelhecimento como perda da capacidade funcional para o trabalho e para
o exercício das atividades diárias foi algo que emergiu intensamente nas narrativas sendo,
inclusive, apontada como o marco para a percepção dos velhos sobre o próprio envelhecimento.
Dito de outro modo, a maior parte deles disse que foi a partir da identificação dessas
dificuldades que eles passaram a se reconhecer como velhos. Resultado semelhante foi
encontrado por Freitas, Queiroz e Souza (2010) ao realizar uma pesquisa com velhos moradores
196

da zona rural do Estado do Ceará. A pesquisa de caráter qualitativo envolveu 48 velhos rurais
e evidenciou aspectos relevantes associados à velhice, como fica claro no trecho,

Percebeu-se no estudo que, no meio rural, os idosos não têm grandes preocupações
em manterem a beleza física, desejam tão-somente poderem manter-se ativo no
exercício diário de seu trabalho. Dessa forma, a velhice e o processo de envelhecer,
para eles, significam a perda da capacidade funcional, a autonomia e independência
(p. 412, grifos nossos).

Associada à percepção negativa atribuída pelos velhos à velhice como perda da capacidade
funcional, identificamos também em parte deles essa noção identificada pelos autores de que a
velhice também pode significar a perda de autonomia e da independência. Essa questão fica
evidente na narrativa de Dona Luruca (78 anos):

Oh, menina, vou fala com cê a franca verdade: o que incomoda de eu ter ficado, assim,
da minha idade, porquê na minha época que eu era mais nova, eu (ênfase)
comprava e eu (ênfase) vendia, eu (ênfase) viajava, eu (ênfase) desenvolvia
minhas vida tudo. E pagava dinheiro, num precisava ninguém fazer nada pra mim.
Eu fazia minhas coisa tudo.

A fala de Dona Luruca expressa claramente essa percepção de uma perda da posição de sujeito
de sua vida, o que ela reforça ao usar repetidamente (e de forma enfática) o eu, sinalizando as
atividades que costumava realizar e que não realiza mais. Se retomarmos a história de vida de
Dona Luruca que se tornou viúva ainda jovem e que, por isso, teve que criar seus filhos sozinha,
essa ideia de uma vida autônoma ganha ainda mais destaque, uma vez que ela narra ter tido que
assumir a postura de responsável pelo lar e pela criação dos filhos em função da morte do
marido. Nesse sentido, ela parece experimentar de forma ainda mais intensa esse “deixar de
fazer” suas próprias coisas. Ela relatou que hoje seus filhos, em especial um que vive próximo
de sua casa, é que recebe sua aposentadoria e faz para ela todas as compras para a casa, de
medicamentos, dentre outros.

Nesse caso, a perda da autonomia se dá em função não apenas das debilidades físicas, mas
também por aspectos já comentados como o aumento da violência tanto na cidade quanto no
campo. Dona Luruca argumenta que mesmo se conseguisse ir até a cidade receber sua
aposentadoria, não o faria devido ao temor de assaltos. Ouvimos argumentos semelhantes de
Dona Lia (79 anos) sobre o quanto a violência, nesse cenário de envelhecimento, tornou-se fator
decisivo para que ela e seu marido João Franca (84 anos) deixassem de realizar uma série de
atividades, como viajar, por exemplo. Se dentre os significados da velhice identificamos essa
197

questão da perda de autonomia ao mesmo tempo, justapondo-se a esse cenário identificamos a


vontade e a resistência dos sujeitos por mantê-la. Um exemplo é a Dona Santa (79 anos) que
diz: “Ontem mesmo fui lá receber meu dinheirinho. É meu mesmo, eu que sei o que faço”.
Cuidar do próprio dinheiro é então um símbolo de autonomia e permite assumir outro poder
fundamental na nossa sociedade contemporânea e que também atribui lugar ao sujeito:
consumir. No caso de Dona Santa, esse consumo volta-se para a alimentação dos seus animais
e itens que o marido não costuma comprar. Interessante aqui pontuar que o consumo realizado
por esses sujeitos se distancia – e muito – do que se preconiza como o consumo associado à
melhor idade (viagens, cosméticos, etc.) (DEBERT, 1999).

Outras formas de resistir à perda de autonomia dizem respeito às tentativas de se adaptarem


frente às mudanças percebidas em termos de suas capacidades funcionais. Nas narrativas torna-
se claro esse processo de testar os limites do corpo e respeitá-los, contorná-los, encontrando
formas de lidar com essa realidade.

Tô fazendo um quintal ali, aí trabalhei demais e eu já tô meio idoso, a coluna


danou assim. Quando eu deitei, tomei banho, levantei, deitei, mas quando eu ia rodar
na cama, cadê?!? A coluna tava doendo demais. [...] Aí quando foi hoje, eu levantei,
falei: “Ah, num vou mexer com nada não”. Aí num mexi com nada não. Só moiei as
pranta lá (SEU JOÃO FRANCA, 84 anos).

Outro aspecto interessante que emergiu nas narrativas dos idosos refere-se à experiência de vida
como componente da velhice. Em vários momentos eles retratam que ao longo da vida
acumularam conhecimentos seja sobre o modo de produzir os alimentos e de cuidar dos
animais, seja sobre o uso medicinal de plantas e ervas, ou mesmo sobre a própria história da
comunidade e de suas lutas. O conhecimento associado ao trabalho é trazido por eles, em
especial, como algo a ser passado entre as gerações, pois assim como aprenderam com os pais
e avós também desejam e esperam ensinar aos seus filhos e aos outros membros da comunidade.

Essa parte de farinhada, a parte de moagem, eu já aprendi com os mais véio, né? (SEU
MILTON GRANJA, 68 anos).

Com quem eu aprendi? Com a minha cabeça mesmo... Eu via os mais véio fazer. As
mais véia daqui era cumadre Isaíra e Conceição e a finada Lôra, que morava aqui, ó.
Eu ficava olhando e pedia pra me ensiná... aí eu aprendi (DONA LURUCA, 78 anos).

Eu já tô véio... e vou dar essa oportunidade pra ele, né. Já ensinei eles trabaiar, né,
porquê fui eu que ensinei. Os dois neto meu, eu é que ensinei trabaiar. Esse que tá lá
no Instituto, o que cê pôr ele pra fazer, ele faz. Cê jogar no cabo da foice, ele vai; se
jogar no cabo da enxada, ele vai; se ocê jogar ele no peito da vaca, ele vai. Ele faz
tudo, mas é que eu ensinei, né! (SEU MILTON GRANJA, 68 anos).
198

Além dessas referências ao conhecimento sobre o trabalho, como falamos, nos chamou a
atenção o papel de liderança desempenhado por alguns desses velhos com os quais
conversamos, em suas comunidades e também fora delas. Em especial dentre os velhos que
recolhemos as histórias de vida, os homens assumiram fortemente esse papel, o que decorre de
outra questão: o lugar marginal atribuído à mulher do campo73, apenas como ‘ajudante’ de seus
companheiros nas atividades produtivas, responsável pela casa e pelos filhos. Tanto o Seu
Milton Granja, quanto o Seu Antônio da Velha e o Seu Zezé das Tesouras são figuras
amplamente conhecidas em suas comunidades, assim como em Araçuaí, em função de suas
atuações em lutas comunitárias e sociais. Além de terem participado ativamente da fundação
das Associações Comunitárias de suas respectivas comunidades, são membros de conselhos e
de outras instâncias de participação popular. Tal participação ativa, segundo eles, os fizeram
ser vistos de forma crítica pelas suas comunidades, como “brigões”, ao mesmo tempo em que
se tornaram uma referência.

Então, por exemplo, nós lutamos aqui em cima de vários problema. Quando morreu
nós construímos cemitério. Tinha uma igrejinha, tava querendo cair, nós construímos
outra igreja maior. Nós lutamos pela escola, num é? Então, o líder era aquele que tinha
que correr atrás, corria atrás das coisas e vinha e sentava com o pessoal, né. Uma hora
dava bem, outra hora num dava, tem hora o próprio povo da comunidade se
contestava com aquela forma que tava a proposta dele, e aí tinha que saber
liderar pra puder fazer as coisa, num é?! [...] Hoje já tem outra liderança. Mas, por
enquanto, procura. Quando me procura, eu me coloco à disposição... Então, as
vezes eles ta com dificuldade, me pede pra ir participar. Eu vou participar da
reunião, né, representando a comunidade (SEU ZEZÉ DAS TESOURAS, 77 anos).

Seu Antônio, como narrado em sua história, hoje é membro diretor do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais de Araçuaí, atuando no conselho fiscal do órgão. Assim, como parte do
seu próprio cotidiano de trabalho, ele é procurado pelos trabalhadores rurais para saber mais
sobre os seus direitos. No que tange à sua comunidade, Santa Rita de Cássia, ele relatou que
por vários anos foi presidente da Associação e, mesmo não estando nessa posição, fala sempre
em nome da coletividade e de projetos que buscaram conquistar junto ao governo estadual e
municipal, como é o caso da construção de cisternas e placas para armazenamento de água das
chuvas. O mesmo ouvimos do Seu Milton Granja, que ao longo das conversas demonstrou ter
várias ideias e sugestões para melhorar a vida das comunidades, como a criação de cooperativas
de produção para garantir a qualidade e a venda dos produtos típicos da região. São velhos que

73
O papel da mulher no campo tem sido cada vez mais problematizado pelas próprias sujeitas investidas em
movimentos sociais importantes como, por exemplo, a Marcha das Margaridas. Para saber mais ver: OLIVEIRA,
D. S. S.; GOMES, L. S. G.; PEREIRA, J. B. Marcha das Margaridas: Trabalhadoras Rurais em Luta. Cadernos de
Graduação: Ciências Sociais e Humanas. Alagoas, v. 4, n. 2, 2017.
199

reconhecem o valor do saber acumulado ao longo dos anos e das experiências vividas, ainda
que por vezes sintam que esse conhecimento não seja valorizado por outras pessoas, como
podemos exemplificar com uma situação que presenciamos em nossas andanças cartográficas.

Reunião do Conselho da APA do Lagoão74. Hoje estou participando dessa reunião


cujo objetivo principal parece ser a realização de um balanço das atividades feitas até
o momento pelo conselho e pensar novas ações em relação à APA. A reunião está
bastante tensa, as discussões giram em torno de que pouco tem sido efetivamente feito
para a preservação da APA. Alguns representantes de instituições e órgãos
governamentais estão presentes. Um deles disse de forma dura que todas as iniciativas
feitas até o momento foram “bobagens” que não “ajudaram em nada”. Seu Zezé das
Tesouras, líder comunitário da comunidade de Tesouras de Cima sai da sala. [...] Seu
Zezé retorna um tempo depois visivelmente chateado, parece ter chorado (Anotações
do diário de bordo, 11/08/2017).

Inclusive, nós tivemos uma reunião, você tava lá, da APA – Área de Proteção
Ambiental – num é? Essa luta foi longa. Nós tem muita coisa... se eu sentar com você
pra contar a história de luta, as vezes, nós fica um mês. Um mês contando a luta de
tantos ano, tantos ano que nós lutamos por isso e por isso, num é? E lutamos por essa
consciência do ser humano. Naquele diz aquele engenheiro começou a me desafiar...
Ele falou comigo: “Oh, Zezé, daí... cês criou a APA... e daí? Lagoão tá ficando
pior do que era. O quê que tá acontecendo? De que adiantou ter criado a APA?”
Falei: “Não, mas eu tô fazendo minha parte. Eu num dô conta de resolver. As
autoridade teria que tomar... paternidade com as coisa, mas num dô conta. Eu tô
fazendo minha parte”. Falei com ele: “Cê num passa na estrada, cês num vê uma
cerca de poste de cimento que fiz lá pra proteger as cabeceira minha e de outros
proprietário, pra criação num entrar e evitar o fogo?” Eu disse: “O quê que aquilo
vale? Num vale muita coisa não, mas já um pouco”. O que eu posso fazer, eu tô
fazendo. Quando alguém começa contrariar uma coisa que é boa, ih!!!! Aquilo
me arrasa... Naquele dia mesmo eu tive que sair um pouco. Entrei, nem falei com
minha esposa, entrei lá dentro, chorei um pouco e voltei. Então, hoje eu num tô
pudendo lutar com muito desafio. Esse desafio que é contra... que é contra a justiça,
contra a natureza, contra o que é legal, num é? Eu fico muito nervoso (SEU ZEZÉ
DAS TESOURAS, 77 anos).

No que tange às mulheres velhas, seu papel como guardiãs de um determinado saber relaciona-
se principalmente aos conhecimentos sobre cuidados alternativos com a saúde. A totalidade
delas relatou fazer uso de plantas medicinais bem como de chás para cuidar da família e de si
mesmas. Esses conhecimentos também foram adquiridos ao longo da vida, passados por
mulheres de outras gerações. Conhecemos velhas que foram parteiras em suas comunidades e
que atuaram ativamente no cuidado da saúde comunitária, algo muito comum e importante
tendo em vista, além dos aspectos culturais, o histórico de pouco acesso aos serviços públicos
de saúde. Percebemos, entretanto, pelas narrativas recolhidas que são saberes que tem cada vez
mais perdido espaço frente aos tratamentos médicos tradicionais ou alopáticos, o que
acompanha o movimento de maior acesso aos serviços e aos medicamentos. Dona Isaura (78

74
A APA do Lagoão foi apresentada no Capítulo 2, sobre o território. Trata-se de uma área de proteção ambiental
que compreende algumas comunidades rurais, considerada importante área de recarga d’água da região.
200

anos) fala sobre questão: “Ah, não. Hoje não... Acho que já tô véia agora e esqueceu de eu (risos
tímidos). Esqueceu de eu, não procura mais. Eu tô de brincadeira, mas muita gente eu já ensinei,
né? Quem me procurar, eu ensino”.

De uma forma geral, essa linha do rizoma velhice rural traz as marcas relativas aos sentidos
identificados sobre a velhice em si e sobre o processo de envelhecimento. Identificamos como
força a ideia de uma velhice como direito adquirido a partir de uma vida de lutas e sofrimentos,
ou seja, a velhice como uma espécie de vitória. Além disso, vimos emergir uma velhice que se
configura como positiva se comparada à vivida por gerações anteriores, como a de seus pais, e
até mesmo frente às dificuldades que eles próprios viveram para sobreviver até os dias atuais.
Em termos do processo de envelhecimento ficaram evidentes as marcas provenientes das perdas
das capacidades funcionais para o trabalho e para o exercício das atividades diárias, como um
marco que inaugura o próprio tempo da velhice para cada um deles. Justapostas nesse
emaranhado de forças, identificamos as resistências empreendidas pelos velhos em relação à
perda da autonomia, que se expressam na tentativa de se manterem como responsáveis pela
gestão de seus recursos financeiros e de suas vidas de uma forma geral. Por fim, emergiu
também nessa linha significados associados à questão da velhice como momento de
compartilhar experiências, seja em relação às questões comunitárias e de trabalho, seja sobre
as propriedades encontradas nas plantas e nas ervas para a promoção de saúde. São velhices
que se constroem nos embates e agenciamentos entre essas forças, ora de forma mais positiva,
ora causando sofrimento a esses sujeitos.

4.2.2 Linha “Quem mora aqui é eu e Deus”

A religiosidade é uma das forças mais intensas identificadas nas narrativas dos velhos, a qual
permeia seus modos de vida, de ver o mundo e de significar sua própria experiência de
envelhecimento. Essa relação entre a velhice e a religiosidade é discutida por Maldaun et al.
(2008), os quais evidenciam o papel da fé como amortecedor frente às dificuldades inerentes a
esse momento da vida, aos aborrecimentos do dia-a-dia e aos sofrimentos advindos de doenças
crônicas. Além disso, os autores argumentam que ela se mostra importante na medida em que,
ao participar de eventos religiosos coletivos, os velhos encontram maior suporte social e
sentem-se acolhidos como parte daquele grupo e daquela comunidade. Dona Isaura (78 anos)
exemplifica em sua narrativa essa noção de pertencimento argumentada pelos autores.
201

A gente fazia, assim, um grupo pra liderar as reza ali na igreja e tudo. Eu fiz o curso
também, né. Uai... liderei porquê eu sempre rezo, é eu que... animar nos cântico,
animar nas celebração... tô liderando, né, até hoje. Agora que eu já tô cansada, mas
ainda tô. Ainda tô na comunidade. Esse domingo agora que vem agora, quem vai
animar é eu, então tem que liderar, né.

É interessante observar na fala de Dona Isaura que o sentido de continuar como líder das
celebrações e dos cânticos lhe confere um papel dentro da comunidade, ainda que ela fale do
cansaço por todos os anos em que já realiza essa atividade. Se pensarmos em termos da velhice
e dos traços de autonomia e independência elencados anteriormente, assumir esse papel é, de
certa forma, manter-se ativo e atuante, evitando justamente situações de isolamento e de solidão
muitas vezes presentes entre os sujeitos velhos. Esse envolvimento e mobilização em torno das
atividades religiosas comunitárias foi uma constante entre os moradores de todas as
comunidades pelas quais passamos em nossas andanças cartográficas.

Observamos que as atividades religiosas mobilizam os moradores semanalmente para a


realização de celebrações, assim como para a organização de festividades maiores em que
outras pessoas de fora da comunidade também participam. Vimos que todas as comunidades
possuem sua própria igreja ou um local onde realizam suas orações coletivamente. São
construções simples, mas muito organizadas, enfeitadas e cuidadas pela comunidade, com
divisão de tarefas e responsabilidades. Os velhos narram que as igrejas de suas comunidades,
pelo menos a maior parte delas, foram feitas pelos próprios moradores em terrenos doados por
eles e construídas por meio de mutirões. As celebrações locais com um sacerdote da
arquidiocese de Araçuaí acontecem apenas esporadicamente, sendo as demais organizadas e
comandadas pelos próprios moradores semanalmente. Alguns velhos relatam que frequentam
as missas dominicais nas igrejas localizadas no centro urbano.
202

Fotografia 12 - Igreja evangélica da comunidade Córrego da Velha

Fonte: Jeane Doneiro, 2018.

Fotografia 13 - Igreja católica comunidade Córrego da Velha

Fonte: Jeane Doneiro, 2018.

Entre os sujeitos com os quais conversamos prevalece a adesão ao catolicismo, embora todos
reconheçam um crescimento da religião evangélica no campo. Em relação às atividades
religiosas comunitárias, percebemos nas narrativas dos velhos grande envolvimento em que há
doação de tempo e de esforço. Dona Lia (79 anos) relatou que foi ministra da eucaristia durante
203

20 anos e que, mesmo depois de deixar essa função, passou a contribuir de outras formas com
a comunidade:

Eu fui ministra75 20 anos. Eu sempre trabalhava lá (na igreja da comunidade). Quando


eu parei de ser ministra, eu fui trabalhar com limpeza, quando eu parei de trabalhar
com limpeza, eu lavei roupa uns tempo... Agora que num tô fazendo nada que num
tem mais condição de tá andando pra fazer essas coisa não.

As celebrações, para além de momentos de manifestação de fé, são espaços de confraternização,


lazer e encontro com amigos e familiares que por vezes não se veem cotidianamente. São
espaços em que também são discutidos problemas que afligem a comunidade e sobre os quais
eles buscam, coletivamente, pensar em alternativas e soluções. “Na minha comunidade
acontece lá nesse próprio salão que era escola e foi desativada, hoje é o ponto de referência pra
gente celebrar o culto né, a gente celebra o culto lá e as vezes depois reúne pra discutir as coisa
da comunidade” (SEU ANTÔNIO DA VELHA, 67 anos).

Para além das vivências religiosas de caráter comunitário foi possível identificar uma intensa
vivência particular da fé pelos velhos, que se expressa em rituais cotidianos e rotineiros, nos
símbolos espalhados por todos os cômodos das casas e pelas narrativas sobre a leitura do
mundo. Em análise feita por Maldaun et al (2008) essa intensidade da religião entre os velhos
pode ser explicada pelo contexto em que eles nasceram e cresceram, contexto este em que, na
visão dos autores, a religiosidade era exercida de forma mais normativa do que na
contemporaneidade. Isso explicaria, portanto, a maior vivência da religiosidade pelos mais
velhos do que entre os jovens. Devemos ponderar, entretanto, que quando tratamos de
comunidades rurais em que a vivência das práticas religiosas tanto familiares quanto
comunitárias permanecem como fundantes da sociabilidade, ainda se pode observar a
preservação dessa “normatividade” associada pelos autores como algo pertencente a outras
épocas.

Ouvimos com certa frequência nas narrativas de sujeitos que não os moradores rurais, o quanto
a religiosidade, somada a outras dimensões, permanece forte no campo e gera efeitos, por
exemplo, na educação76 das crianças e dos jovens:

75
O ministro da eucaristia é, para a igreja católica, um membro a quem é autorizado a distribuição da comunhão
aos fiéis quando o padre (ou outro ministro ordenado como o bispo ou presbíteros) não está presente.
76
O conceito de educação, nesse caso, é mais amplo de caráter não-formal, referindo-se à forma como essas
crianças e jovens se comportam e como se relacionam.
204

Você vê os meninos da roça como são educados, né? Você compara os meninos da
roça com os meninos nossos mesmos, assim, são diferentes... a educação, o valor
que dá, aquela tradição, aquela religiosidade, aquela cultura ainda do amor, na
forma bruta, né? Na forma do sentir e não do raciocinar, ainda existe, né (PODER
PÚBLICO 1).

Para além dos efeitos na educação das crianças e jovens, ouvimos também sobre o impacto da
religiosidade no modo como esses sujeitos veem a vida e enfrentam suas dificuldades. Para a
maior parte das pessoas com quem conversamos, o sentimento pelos velhos rurais é de
admiração (salvo alguns casos em que foi possível identificar um tom de ironia77) no sentido
de que eles conseguem, em meio ao sofrimento, persistirem firmes na fé acreditando que as
coisas irão melhorar e que outras realidades serão possíveis.

Eles conseguem ver de maneira muito tranquila e muito religiosa também, sempre
pegando com Deus e com a religião para resolver o problema da chuva, para
resolver o problema da comida (PODER PÚBLICO 1).

Muitos se apegam a questão religiosa, muitos não sei, na perspectiva de vida, tem
uma força mesmo espiritual, tem uma força bacana de estar sempre de cabeça
erguida mesmo diante das adversidades (PODER PÚBLICO 1).

Se eu vejo eles reclamando da dureza da vida? Praticamente não existe crítica. Eles
estão sempre muito crentes, muito religiosos, muito ‘Deus vai abençoar que vai vir
aquilo e a gente vai conseguir’, para eles não têm dificuldades (PODER PÚBLICO
1).

Essa percepção da importância da religiosidade para os velhos que emergiu das narrativas do
poder público e das instituições da sociedade civil de fato se confirmou nas conversas com os
próprios sujeitos. Retomando o que dissemos anteriormente, uma primeira expressão dessa
força da religiosidade se traduz nos rituais cotidianos realizados pelos sujeitos. Seu Zezé, das
Tesouras (77 anos) e Dona Luruca (78 anos) narram em detalhes seus rituais, respectivamente:

[...] sempre eu levanto cinco, cinco e meia, até seis horas... o máximo que eu fico na
cama é até seis hora da manhã. Aí levanto, dou uma respirada aí fora, pego no pé de
árvore, dou uma respirada funda, num é? Aí é assim: as vezes toma uma colher de
mel... vou lá, panho o livro da história que é a Bíblia Sagrada e leio um trecho, eu
já tem as leitura dedicada de cada dia... leio um trecho pra ver que recado Deus
tá mandando pra mim e aí entro na lida. Então é isso aí. Porquê o que me
conforta é a Palavra de Deus. Se num fosse a Palavra de Deus, eu já tinha
desesperado também.

Óia menina, eu deito à noite e quando é quatro horas tô andando aqui no fundo de
minha casa. Fazendo o que? Pegando com Deus. Agradecendo Jesus pelos dia de
vida, que eu criei dez filho... (os dias) que Jesus tem me dado e vai mim dar até

77
Nesses casos identificamos a percepção de que esses velhos, justamente em função de sua fé, seriam ingênuos
ou pouco críticos.
205

no dia que Deus ver que eu mereço. Aí eu entro pra dentro, vou pôr um pouco de
água na vazia, no canecão e vou coar café, vou tomar.

A prática de rituais pode ser identificada no cotidiano de todos os velhos, em maior ou menor
grau. É interessante notar na narrativa de Seu Zezé das Tesouras que para além da leitura da
Bíblia como orientação para o seu dia de vida e trabalho, ele a evidencia como o ‘conforto’
capaz de evitar o ‘desespero’. Se retomarmos a história de vida de Seu Zezé podemos
compreender melhor sua narrativa na medida em que ele demonstra grande preocupação com a
forma como estamos lidando com a natureza e com o meio ambiente. A todo o momento ele
lamenta a falta de consciência das pessoas e reflete sobre como as coisas poderiam ser
diferentes. Acreditando ainda ter muito o que fazer e contribuir, essa ideia de ‘desespero’
expressada por ele remete ao sentimento de impotência que por vezes o aflige e cuja baixa
resistência ele acredita ser resultado da sua idade avançada. “Se nós estamos aqui trabalhando
pra construir alguma coisa boa pra trazer benefício e chega alguém e desafia, fala que não vai
adiantá, que não vai valê a pena, eu fico nervoso... então acho que é a idade, porque antes num
era assim...” (SEU ZEZÉ DAS TESOURAS, 77 anos).

Essa questão remete ao que discute Maldaun et al. (2008) sobre o papel da religiosidade para o
enfrentamento dos desafios cotidianos que, no caso do Seu Zezé, estão bastante associados à
sua atuação enquanto líder comunitário. Ouvimos histórias de outras naturezas, mas que
também se referem ao enfrentamento de situações perigosas em que a religiosidade se sobressai
como justificativa e/ou saída:

Ocê sabe o que aconteceu uma vez? Coloquei minha menina dentro de uma gamela...
chamava assim, feita de madeira... deixei lá e fui trabaiá mais ele e coloquei a outra
numa beirada pra olhá. Aí ela falou: “Mãe! Tem uma lagarta aqui dentro da gamela!”.
Quando eu oiei... era uma cobra! Quem livrou: Jesus! A cobra dentro da gamela da
menina com quatro mês... (exaltação) (DONA ÍRIS, 59 anos).

Assim como Dona Íris (59 anos) fala sobre a intervenção divina em relação ao episódio da
cobra, ela também atribui à Deus a melhora de sua saúde e o abandono de medicações indicadas
por um médico para tratamento cardíaco. “Deixei eles tudo lá nos pés da santa. Nunca mais eu
desmaiei”. Assim também expressa Dona Luruca (78 anos) quando questionada sobre viver
sozinha em sua casa: “Quem mora aqui é eu e Deus”. Segundo ela, essa é a resposta que dá aos
filhos quando eles insistem para que ela vá dormir na casa deles, ou mesmo para que se mude
para a cidade de Araçuaí. A fé na presença de Deus é motivo suficiente para ela se sentir segura
206

e protegida, guiando sua decisão por manter-se vivendo sozinha em sua casa. Dona Isaura (78
anos) traz outra narrativa de manifestação de fé:

Tava com uma lagartona desse tamanho assim. A gente tem que rezar uma oração,
assim: pega o livro e vai rodando o pé de planta e deixa uma porteira pra ela sair, aí
vai rezando devagarzim até... começa aqui, roda aqui, roda aqui a planta e a porteira
fica aberta pra ela sair. Então, tem umas bitelona aqui, eu rezei, sarou. Saiu. Sai. [...]
A gente tem fé (DONA ISAURA, 78 anos).

Essas ponderações fazem parte do que consideramos ser a influência da religiosidade na visão
de mundo desses sujeitos, o que significa uma compreensão do divino como aquela instância
que regula a vida e define seus parâmetros, como um juiz (DUARTE et al., 2006). Nesse sentido
é muito comum nas narrativas ouvirmos desses sujeitos expressões como “Deus quem quis”,
“Graças a Deus” e “Deus que me deu”. Há, nesse contexto, uma noção de autoridade implícita
nessas narrativas e uma visão que coloca a vida como determinada por uma força superior capaz
não apenas de criar, mas de organizar e de manter a estabilidade do mundo (natural e social)
(RIBEIRO, 2008).

Mas Deus deu nós uma ajuda, né: a aposentadoria. Porquê se a pessoa num fosse
lavrador e num entrasse no Sindicato, não tinha direito de aposentar (DONA
LURUCA, 78 anos).

Isso foi antes logo depois que nós casou que a gente não tinha nada até pra nós plantá,
a gente comprava as medidinha pra gente comer. Hoje não! Graças a Deus!
(Apontando para o céu) Hoje a vida é outra. (DONA SANTA, 79 anos).

Aí nós começou lutando, lutando... E Deus ajudou e o povo foi voltando (para o
sindicato) e a gente começou trabalhando junto com a FETAEMG, que é a Federação
dos Trabalhadores de Minas Gerais, e a CONTAG né? Foi ajudando e a gente
conseguiu tá fazendo as viaginha pra conquistar o direito dos trabalhador pra ver se a
gente trazia eles de volta, até que a gente conseguiu... Foi Deus que ajudou (SEU
ANTÔNIO DA VELHA, 67 anos).

Num posso pensar no dia de amanhã que amanhã só Deus tem direito nele... O que
Deus quiser, seja feito, né? (DONA LIA, 79 anos).

(Sobre a violência) Eu só rezo. E eu num tem nada... num tem arma de fogo, eu pego
tanto com Deus... eu num panho uma foice, um pau, um facão e põe aqui dentro de
casa pra me defender um ladrão. E eu pego é com Deus, que se eu, minha opinião, se
eu pegar um pedaço de pau, uma foice e esconder aqui, e falar assim: “Isso é aqui é
pra mim livrar dum ladrão”. Eu tenho a impressão que eu tô perdendo a fé em
Deus, tô confiando mais naquela foice ou no facão de que em Deus, né. Eu pego
com Deus e graças a Deus! Aqui pra nós aqui em casa, num pode reclamar nada (SEU
EMÍLIO, 79 anos).

Tais demonstrações de fé puderam ser claramente observadas também a partir dos símbolos
espalhados por todos os cômodos de suas casas. O mesmo foi apontado em outras pesquisas
sobre velhos rurais como a de Cunha (2014), a qual destacou que para além de serem artigos
207

decorativos esses itens trazem, de fato, uma dimensão religiosa particular. São fotos e imagens
de santos, altares, crucifixos, Bíblias, entre outros artigos que compõem esse universo de
religiosidade que criam, no ambiente doméstico, verdadeiros espaços de manifestação de fé.
Nas imagens abaixo podemos ver a imagem da Sagrada Família de Jesus afixada na parede da
sala do Seu Milton Granja e de Dona Íris. Tal imagem representa a coroação de Nossa Senhora
do Céu pela Santíssima Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo), o que na religião católica
simboliza as três pessoas reunidas em um único Deus. Já na casa de Dona Luruca é a imagem
de Jesus Crucificado que enfeita sua sala e, nas suas próprias palavras, “governa minha casa”.

Fotografia 14 - Casa do Seu Milton Granja e Dona Íris

Fonte: Jeane Doneiro, 2018.


208

Fotografia 15 - Casa de Dona Luruca

Fonte: Jeane Doneiro, 2018.

Um aspecto importante associado a essa construção de espaços religiosos para além as igrejas
e dos centros comunitários é que ela possibilitou mudanças de comportamento dos velhos a
respeito de suas rotinas religiosas. Como comentamos, a principal mudança diz respeito à
chegada da energia elétrica nas comunidades e, com ela, a aquisição dos aparelhos de televisão.
A maior parte dos velhos contou que acompanha as missas diariamente pela tv.

O que nós fazia de noite quando num tinha televisão? Rezá o terço. Todo santo dia,
minha fia, nós rezava o terço. Trabaiava o dia interim, quando era de noite, chegava,
tomava banho, jantava e ia rezar o terço. Põe todo mundo em cima da cama... Hoje a
gente acompanha na tv (DONA MARLENE, 68 anos).

Vixe! Enquanto eu num assisto Padre Alessandro Campos, num deito. Eu gosto
do show daquele Padre Alessandro (DONA LURUCA, 78 anos).

Um aspecto relevante associado a esse comportamento de acompanhar as celebrações religiosas


pela tv remete a uma situação de maior liberdade percebida pelos velhos em relação à frequência
da participação nas missas, cuja orientação formal da igreja católica é, segundo eles, a presença
obrigatória nas celebrações de domingo. Até mesmo em função de dificuldades de
deslocamento até à igreja da comunidade, por vezes alguns velhos têm optado por acompanhar
as celebrações pela tv. A ideia da celebração transmitida “valer a mesma coisa” que a presença
física, desobrigou os sujeitos de se sentirem culpados pela ausência. Entretanto, devemos
209

ressaltar que há um prazer envolvido na participação, que remete à dimensão da sociabilidade


envolvida nesse contexto. Sendo assim, as missas televisionadas deram maior liberdade de
escolha aos velhos, o que não significa que eles tenham deixado de ir aos encontros em suas
comunidades.

É válido lembrar que na maior parte das comunidades estudadas, com exceção da Baixa Quente,
as casas são distantes umas das outras, assim como a igreja e os centros comunitários. Nesse
sentido, quando falamos sobre o esforço de participar isso inclui longas caminhadas pelas
estradas de terra, por vezes íngremes e sem passagem apropriada para pedestres. Dona Lia (79
anos) comentou sobre essa dificuldade em sua história:

A igreja é uns 30 minutos daqui andando. Eu vou sempre que eu posso. Eu ia todo
domingo, mas agora tem hora que eu falho até dois domingos sem ir... Agora com
essa poeira, fica muito difícil pra gente. E aí quando chega lá os pé tá que faz até medo
(risos), porque se passar um carro na estrada a gente fica afogado na poeira... Mas
quando o tempo ta bom eu vou. Enquanto isso vou rezando as missa da televisão
também.

Por fim, a questão da religiosidade se apresenta também no que tange às próprias percepções
sobre o processo de envelhecimento e sobre a morte. Ao falarem acerca de suas experiências
em relação à velhice, por vezes a força da religiosidade emergiu trazendo à tona perspectivas
relacionadas à sobrevivência e ao sentimento de gratidão pelo tempo vivido.

Ah, esse dia aí é direto (sobre pensar na velhice). A gente só pensa isso direto, né? E
eu falo a verdade... E eu ainda agradeço a Deus muito porquê aí, setenta e oito
ano... Eu tenho uma turma de amigo que nós era rapaz tudo da infância, e tudo
já morreu. Tudo meus colega. Ainda tem algum, né, mas a turma aí que nós era rapaz
novo que ia pra festa passear, Virgem da Lapa, todo canto que tinha, nós ia pra festa,
já morreu tudo e eu ainda tô guentando, ainda tô vivo ainda. Ainda tô aí, né? (SEU
EMÍLIO, 79 anos).

Igual eu falei pro cê, o meu futuro mais ela agora é... nóis ta nas mãos de Jesus
Cristo, nós já fizemos nosso futuro, nós já sobrevivemos, cê entendeu? (SEU
MILTON GRANJA, 67 anos).

Oh, menina! Sô mãe de quatorze filho, Graças a Deus! Perna num dói, braço num dói,
corpo num dói, perna num dói... Graças a Deus, meu Jesus, eu te agradeço!
(Fazendo um gesto com as mãos unidas) [...] E durmo aqui dentro dessa casa de sete
cômodo com Deus e Nossa Senhora! (DONA LURUCA, 78 anos).

Retomando a linha anterior especificamente sobre os sentidos da velhice, essa percepção de


sobrevivência foi evidenciada como algo marcante e simbólico. Nas narrativas dos velhos
pudemos perceber que esse sentimento de vitória existe e aparece sempre associado à vontade
210

divina e também como resultado da fé e da dedicação à Deus e aos seus mandamentos. “Eu
sempre andei certo, graças a Deus! Agora eu tô tranquilo... até quando Deus quiser”
(ARLINDO, 70 anos). A velhice como uma gratificação divina emerge, nesse sentido, na
totalidade das narrativas que recolhemos, ora de forma mais branda, ora com mais intensidade
e potência.

Ao mesmo tempo em que se agradece pela vida, fala-se da morte como algo sobre o que não se
tem, da mesma forma, qualquer domínio ou controle. Cassorla (1991) discute justamente sobre
o quão a religiosidade afeta a forma pela qual as pessoas simbolizam e significam a sua morte
e a dos outros. No caso dos velhos com os quais conversamos, essa relação é clara.

Eu tenho um pouquinho de medo (da morte)... Mas, a hora que Deus chamar para
a vida eterna... (DONA ÍRIS, 59 anos).

[...] Deus não mata ninguém antes do dia naum. Já tem escrito oh... Ninguém
morre antes do dia, só morre no dia chegado. Um carro pode dispenca com ocê, se
não for seu dia ocê num morre não, Deus ampara (SEU MILTON GRANJA, 67 anos).

Diz que ninguém gosta... ninguém quer morrer não, mas seja o que Deus quiser.
Como diz, eu já quase morri quando eu tive sarampo mesmo, eu lembro que eu perdi
os sentido, ficava fora de si, né? Então aí, eu acho, que é um pedacim da morte. Eu
num sei não. Eu tem medo da morte, mas seja o que Deus quiser (DONA LIA, 79
anos).

Se a gente tiver medo, morre; e se num tiver, morre. Eu tem medo de morrer?
Qualquer hora, me chamar, eu tando preparada, eu tô pronta. Tando preparada, pode
me chamar. Cê tem que pegar com Deus e preparar pro cê morrer (DONA
LURUCA, 78 anos).

Observamos nas conversas que a morte persiste como tabu e/ou assunto indesejado. Entretanto,
a religiosidade aparece sempre nesse contexto atuando como amortecedora das angústias a
respeito do fenômeno, do qual os sujeitos claramente reconhecem sua inevitabilidade
(CASSORLA, 1991). Novamente atribuindo ao divino o papel de juiz, cabe a ele decidir sobre
como, onde e quando a morte vai acontecer (DUARTE et al., 2006). A narrativa de Seu Milton
Granja deixa explícita essa percepção de Deus como definidor do evento da morte, da qual não
se pode escapar. Outro aspecto que também traz consolo e amparo frente às incertezas sobre a
morte refere-se ao que Dona Íris declara: “A hora que Deus chamar para a vida eterna...”. A
ideia de que a morte significa apenas uma passagem para outra vida, também oferece aos que
nela acreditam, aqui em especial aos idosos, o conforto advindo da redução das incertezas.
Kovács (2011) argumenta que essa perspectiva da morte como uma viagem ou mesmo uma
211

passagem de fato consiste na tentativa de construir significados para o fenômeno associados à


tranquilidade e, portanto, visam amenizar o sofrimento inerente à realidade da finitude.

A identificação da força da religiosidade do rizoma da velhice rural nas comunidades


cartografadas chama a atenção para os agenciamentos que ora se cristalizam levando a
aprisionamentos, ora emergem como linhas de fuga em que o novo se constitui. Essa dinâmica
de intensidades revela que as normatizações associadas à religiosidade (ou às religiões) acabam
por, em algumas situações, aprisionarem a vida. A ideia de um poder superior divino que
determina a vida em suas várias dimensões retira dos velhos a condição de sujeitos de sua
história, transformando suas trajetórias em resultados de escolhas de outrem que não eles
próprios. Ao mesmo tempo observamos que essa fé atua como uma linha de fuga, revelando-se
um mecanismo subjetivo de resistência frente à dureza da vida. Se retomarmos o trecho
narrativo do Seu Zezé das Tesouras apresentado anteriormente, em que ele diz “se num fosse a
Palavra de Deus, eu já tinha desesperado também”, podemos ressaltar essa força ou suporte
alcançado pela fé.

Se olharmos mais atentamente para a realidade desses velhos podemos identificar


manifestações de linhas de fuga que escapam à religiosidade em sua dimensão normalizadora.
Um exemplo seria a questão da forma como esses velhos lidam com a seca na região. Vimos
no capítulo II, sobre o território, que a região do médio Vale do Jequitinhonha se caracteriza
pelo clima semiárido e que, portanto, períodos de seca são considerados típicos. Entretanto, nas
lembranças dos velhos fica evidente que anos atrás as chuvas eram mais regulares e que hoje a
seca tem se intensificado. Vimos nas narrativas desses sujeitos a referência ao divino para
justificar a diminuição das chuvas e, consequentemente, o agravamento da seca, ainda que essa
ação divina seja explicada como uma espécie de castigo pela ação humana predatória sobre a
natureza. O aprisionamento da vida pela força da religiosidade acaba por, muitas vezes, gerar
um sentimento de aceitação e passividade frente à realidade.

Nesse sentido, se entendo que “Deus quis assim” me parece então natural assumir uma postura
de resignação diante da seca e da deterioração do meio ambiente. Isso acontece? Sim, mas não
apenas isso. Ao mesmo tempo em que há o aceite da vontade divina, emergem forças outras de
enfrentamento dessa realidade. Como linhas de fuga desse aprisionamento surgem cenários de
engajamento político desses velhos em movimentos sociais, como é o caso do já citado
Conselho da APA do Lagoão, em que há mobilização em torno da causa socioambiental. Nesse
212

sentido, acreditar que “Deus quis assim” não inviabiliza as lutas por melhorias da relação
homem-natureza que resultam, por exemplo, na aprendizagem de novas tecnologias sociais de
produção e captação da água e na tentativa de conscientização dos outros membros da
comunidade sobre a importância de adotar práticas mais sustentáveis que economizem o recurso
água.

Tendo em vista essas discussões, retomamos aqui a argumentação defendida nesse trabalho a
respeito da necessidade de compreender esses sujeitos em sua complexidade, de modo a superar
estereótipos que se cristalizaram. Esse exemplo da questão da seca nos faz refletir sobre os
estigmas dos velhos rurais como ignorantes, desinformados, avessos às tecnologias e em
relação à religiosidade, em especial, como sujeitos passivos. Nesse sentido, coexistem na
realidade desses velhos essas forças que configuram cenários diversos e potentes, os quais
escapam a olhares ligeiros e superficiais. Um exemplo disso que presenciamos em várias
situações é a alegação de que não seria viável (vantajoso) pensar em novas tecnologias para a
agricultura familiar tendo em vista a predominância de pessoas já idosas no espaço rural, uma
vez que eles teriam dificuldades/resistência em mudar suas formas tradicionais de trabalhar 78.
No âmbito das políticas públicas, retomamos mais uma vez o que se propõe com esse trabalho
e concordamos com Albuquerque, Sousa e Martins (2010) quando dizem que para a avaliação
da efetividade das políticas destinadas aos velhos do campo é necessário, primeiramente,
compreender quais são as suas condições de vida para então verificar se essas políticas de fato
existem e em que medida são capazes de atingir essa parcela da população.

Sintetizando os aspectos abordados nessa linha da religiosidade, destacamos as marcas


presentes nos modos de vida da comunidade, na medida em que grande valor é atribuído aos
espaços de celebração da fé, os quais também representam espaços de lazer e de exercício
político envolvendo aspectos comunitários. Vimos também a presença da religiosidade como
lente de leitura do mundo para esses sujeitos, a partir da qual se desenvolvem concepções sobre
o próprio processo de envelhecer e sobre o fenômeno da morte. Reiterando a complexidade que
marca o território e os sujeitos, vimos que a força religiosidade ora atua de forma a aprisionar
a vida, mas dela também surgem linhas de fuga em que outras possibilidades de vivê-la se
fazem presentes. Não podemos deixar de salientar que a intensidade dessa força se revelou

78
Esse tipo de comentário foi presenciado várias vezes (com pequenas variações) pela pesquisadora em sua atuação
como professora no Instituto Federal do Norte de Minas Gerais, em reuniões e conversas informais.
213

também de forma múltipla nas narrativas, nos símbolos e nas práticas cotidianas observadas em
nossas andanças cartográficas.

4.2.3 Linha “Eu tem uma família maravilhosa e, graças a Deus, nós somos uma
comunidade unida, né!”

Essa linha, em especial, traz elementos das narrativas e da realidade dos velhos associados à
família, à comunidade e ao território. Ao tentar compreender os modos de ser da velhice rural,
mais uma vez são forças que emergem de forma significativa e compõem esse rizoma que
buscamos cartografar. Retomamos a importância de pensar nessa divisão das linhas apenas
como um procedimento de caráter didático, pois na realidade essas forças estão em constante
afetação e co-construção. Não há como falar de família sem adentrar no campo da religiosidade,
ao mesmo tempo que não há como pensar o território sem considerar outros aspectos da história
de vida desses sujeitos, como o trabalho. Comecemos então pela forma como a família é
evidenciada nas narrativas dos sujeitos, de forma intensa e como razão para a superação das
dificuldades e do sofrimento.

Se voltarmos as histórias narradas, vemos em cada uma delas um lugar privilegiado atribuído à
família: “Minha vida é a minha família, menina” (DONA SANTA, 79 anos); “Eu só dedico pra
minha família e pra igreja, é só isso que eu faço” (DONA ÍRIS, 59 anos); “Minhas duas menina
me deu muito gosto!” (SEU MILTON GRANJA, 67 anos). Todos falam sobre a família de
forma muito amorosa, agradecendo a Deus pelo fato de terem a constituído e, principalmente,
no que se refere aos filhos, pelo bom caminho que eles seguiram:

Muito trabalho, muito sufrimento mas, graças a Deus eu tô muito gratificado!


Agradeço Jesus muito por que criei meus filho tudo e hoje, graças a Deus, eu num tem
nenhum que eu falo assim: “Ó, tava ali numa beberagem, tava ali num bar, tava
na droga”. Todos eles, graças meu bom Deus, eles é muito trabaiador e tudo, já
tá morando na casinha deles e os que num tem as casinha, tá morando comigo, né.
Então graças a Deus, eu tem uma família maravilhosa! Meus filho são
maravilhoso, tanto os homem como as mulher. Todos. Graças a Deus. E minha
esposa também (SEU ANTÔNIO DA VELHA, 67 anos).

A despeito da existência de desavenças consideradas como naturais no ambiente familiar, eles


narraram que a solidariedade e a ajuda mútua são marcas que caracterizam os valores associados
à família. Seu Antônio da Velha relata, inclusive, uma situação comum em várias casas que
visitamos: a permanência de filhos na casa dos pais. Tal fato relaciona-se ao que já discutimos
sobre o papel de provedor assumido pelos velhos que acabam usando o benefício previdenciário
214

para cuidar não apenas deles próprios, mas de outros membros da família (IBGE, 2010;
FREITAS, 2017). São avós que ajudam diretamente na criação dos netos, criando com eles
vínculos fortes.

Fotografia 16 - Família de Seu Emílio e Dona Marlene

Fonte: Jeane Doneiro, 2017.

É interessante observar, se retomarmos as histórias de vida que coletamos, que muitos dos
velhos contam sobre relações familiares fragilizadas no passado, são órfãos ou foram viver
muito cedo na casa de outras pessoas. Nos relatos podemos observar uma certa tentativa de
construir um futuro diferente desse passado vivido, como deixa claro Dona Íris (59 anos), “eu
sofri um bucado pra modo de minhas menina podê consegui”.

Sobre o tamanho da família, identificamos que quase a totalidade dos velhos (com exceção
apenas de Seu Milton Granja e de Dona Íris79) constituíram famílias grandes, com uma
quantidade expressiva de filhos. Dona Luruca, por exemplo, disse ter tido 14 gestações, sendo
que desses 4 não sobreviveram para além da infância. Embora não tenhamos as estatísticas

79
Ao conversamos sobre o tamanho da família, eles disseram que não tiveram mais filhos porque tinham que
trabalhar e não tinham com quem deixar.
215

referentes à taxa de mortalidade na zona rural algumas décadas atrás, fato é que ouvimos com
muita frequência relatos sobre crianças que já nasceram sem vida ou então que viveram poucos
anos. Aqui podemos remeter ao que discutimos na seção anterior sobre um histórico de falta de
acesso à saúde pela população rural. A maior parte dessas mulheres tiveram seus filhos em suas
próprias casas com a ajuda de parteiras (ou mesmo sozinhas) e, portanto, também não tiveram
acompanhamento médico ao longo e após a gravidez.

Eu casei, sô mãe de quatorze filho, tudo aqui. Dez vivo e quatro morto. Uma morreu
com sete ano e a outra morreu com dois. Os outro foi... pequeno, né. Uma de sete mês
e o outro foi perdido. E de que eles morreram? Ai, agora, só um que eu sei. Que foi
é... sarampo do preto (DONA LURUCA, 78 anos).

Eles era 9 morreu uma, ficou 8. Ela morreu de que? De parto, deu eclampse, ela foi
pra cidade, chegou lá morreu lá. [...] Nunca tive mais parteira e nem mais na cidade.
Tudo mais Deus e eu sozinha e Deus. É... Nascia e esperava uma pessoa pra pode
cortar o embigo (DONA SANTA, 79 anos).

Em geral os velhos narraram terem se casado jovens, como é o caso de Dona Santa (79 anos),
“casei com 16 anos”, Dona Lia (79 anos), “eu tinha 18 anos quando eu casei”; Seu Antônio da
Velha (67 anos), “Eu casei em setenta e sete, com 20 anos”. As histórias da constituição das
famílias antes e após a chegada dos filhos trazem a marca da luta em conjunto para a
sobrevivência, o que fica claro em todas as narrativas em que os dois, homem e mulher, iam
juntos para o campo trabalhar na lavoura, a maior parte das vezes em propriedade de terceiros
já que ainda não possuíam terra própria. “Fui trabalhar mais Milton pra pudê ganha o pão de
cada dia. Nós trabaiava pros outro pra pudê comprar um pote pra pôr água” (DONA ÍRIS, 59
anos). Essa parceria se mostrou intensa e sempre associada ao trabalho, algo muito
característico do universo rural, como explicitou Wanderley (2014) ao dizer que no caso dos
pequenos agricultores os laços familiares e comunitários são as bases desse modo de
produção80. Nesse sentido, família e trabalho são forças que a todo o momento se confundem81.

Essas relações próximas de solidariedade se estendem para a comunidade que, na narrativa dos
velhos, aparece a partir de uma noção ampliada de família. Isso acontece tanto quando
realmente existem laços consanguíneos entre eles (muitas comunidades são compostas por
pessoas de uma mesma família, que casam entre si), mas também pelos laços construídos em
função do compartilhamento do território. Isso não significa que não existam divergências de

80
Essa questão da indissociação entre família e trabalho será mais bem apresentada a seguir, no eixo analito sobre
o trabalho rural.
81
O papel da mulher na produção agrícola familiar também será mais bem explorado no próximo capítulo.
216

interesses, fofocas e outras situações consideradas desagradáveis como relata Dona Santa (79
anos): “tem vez que eu não gosto muito de ir na casa dos outro não, porque cê chega na casa de
fulano e já vem fazer fofoca... tem um povo ali em cima mesmo que não vale nada”. Para além
dessas dinâmicas, percebemos que em algumas comunidades a união entre os moradores é
maior que em outras, mas que de uma forma geral prevalece um senso de ajuda mútua, de
compartilhamento e de pertencimento. Sr Antônio da Velha (67 anos) conta sobre a comunidade
de Santa Rita de Cássia:

Graças a Deus, nós somos uma comunidade unida, né! Assim, tem umas pessoas
que por um motivo ou outro, não sei, por um pensamento, que os pensamentos são
diferentes, né? Tem pessoas que é mais afastada um pouco, mas a maioria mais é
unida. Nós encontramo no domingo, é o dia certo do culto e de vez em quando a
gente marca umas reunião assim, a noite sempre a gente tem reunião, tem aquelas
tradição... a gente faz a novena, se não é quando não vai celebrar no salão a gente
marca nas casas, os nove dias marca nove casas, um dia em cada casa, outra hora
marca em oito casa e no dia pra fechar vem todo mundo no salão, mas domingo é o
dia certo. Aí junta todo mundo! (sentimento de satisfação).

É interessante observar a partir da narrativa de Seu Antônio a relação entre a comunidade e a


vivência da religiosidade, motivo pelo qual os moradores se reúnem com frequência. Nesse
sentido, os rituais religiosos (celebração das missas, realização de novenas, organização de
festas dedicada à santos padroeiros) acabam por fortalecer os laços comunitários e promover
esse sentimento de pertencimento a um grupo entre os sujeitos, como o que comentamos na
discussão da linha anterior. Como vimos em nossas andanças cartográficas essas práticas
religiosas em comunidade são apontadas como formas de lazer para esses sujeitos, algo já
discutido por autores que analisaram a dinâmica de vida e lazer em comunidades rurais de
outros territórios (ALVES, 2009; ANDRADE et al., 2009).

Como discutimos até o momento, a importância da família e da comunidade é força marcante


na constituição dos modos de ser velho nesse território cartografado. Em especial nos chamou
a atenção a questão do cuidado do idoso, algo fundamental dentro das discussões sobre a
velhice, afinal, de quem é a responsabilidade de cuidar daqueles que chegam à idade avançada?
Comentamos sobre esse tema anteriormente, no capítulo 3, levantando-o como algo que se
tornou problemático para a nossa sociedade contemporânea tendo em vista fatores como o
crescimento de famílias sem filhos e a saída progressiva da mulher para o mercado de trabalho.
Especificamente na realidade do campo, a preocupação se volta para o aumento do êxodo rural
e a permanência dos velhos nas comunidades. Seu Milton Granja (67 anos) faz essa observação,
217

“O que mais você acha aqui, é gente véio, num é? O que mais você vê aqui, é gente véio, porque
os novo foi tudo embora”.

O Estatuto do Idoso prevê a família como a principal responsável pelo cuidado e proteção do
idoso, responsabilidade que se estende ao Estado e à sociedade como um todo (BRASIL, 2003).
Observamos em algumas narrativas que os idosos compartilham desse entendimento de que
cabe à família a tarefa do cuidado, o que de fato acontece em alguns casos citados.

[...] o dia que cê tiver os seus cê vai saber o trabaio que um filho dá. E vai saber o
tanto que cê tem que valorizar seu pai mais sua mãe, né? Porque um pai ele num quer
o mal pro filho, a mãe num quer o mal pro filho. Aí, pra depois que aquela pessoa
tiver véia... ele luta, luta, luta, cuida bem daquele filho, faz tudo pra aquele filho, aí
depois que aquele filho... depois que aquele pai tiver já num guentando mais... vamo
colocar assim: isso é igual eu tem um animal de serviço, né, eu tem um animal de
serviço, eu pegar aquele animal que já me ajudou tanto e lá e matar ele, né. Isso tá
certo? Não!!! (enfático). (SEU MILTON GRANJA, 67 anos).

Minha vó... minha mãe morreu com noventa e sete, ficou eu cuidando aqui. Eu
cuidava. Ticiana morreu com cento e três, quem cuidou foi os filho dela. Agora tem
um aí que tá... cento e cinco, é tia nossa. Minha tia. Tá viva ainda. Os filho dela tá
cuidando dela (DONA ISAURA, 78 anos).

Uai, cada um tem o cuidado... Ali mesmo tem uma senhora que tá com 105 anos, que
é tia de Vanda. Ela tá de cadeira de roda, mas ela tem um filho e uma neta que tá
cuidando dela. A neta cuida da roupa, do banho e troca ela quando precisa, tudo, e o
filho fica no pé dela o dia interim com ela no terrero porquê tá sol, vai lá e fica lá com
ela conversando e ela tá até lúcida (DONA LIA, 79 anos).

A construção da narrativa do Seu Milton Granja é extremamente interessante na medida em que


ele usa o exemplo do “animal de serviço” para argumentar que os filhos devem sim cuidar de
seus pais em retribuição a todo o cuidado que lhe foi dado ao longo da vida. Esse apoio entre
as gerações é percebido na fala do velho como algo que perpassa a dimensão dos valores.
Quando ele argumenta, de forma enfática, que isso não está certo, Seu Milton Granja está, na
realidade, dizendo que a atitude de abandonar os pais na velhice é algo errado, inclusive algo
que fere a perspectiva religiosa da qual eles comungam. Essa questão de que a responsabilidade
da família em cuidar dos seus idosos foi algo percebido por Souza (2013) nas comunidades
sertanejas que pesquisou. Segundo a autora “fica evidente que a responsabilidade da família em
relação aos seus idosos é algo esperado por todos da comunidade que apenas auxilia quando
necessário” (p. 71).

Debert (2001) chama a atenção, entretanto, para a necessidade de desmitificar essa ideia da
família como sinônimo absoluto de acolhimento aos idosos, sendo esse, segundo a autora, um
218

discurso interessado às políticas públicas em termos da possibilidade de sua


desresponsabilização. Infelizmente, as denúncias de maus tratos e violência contra esses
sujeitos, muitas vezes praticadas pelos próprios familiares, fazem com que esse paradigma deva
ser questionado e que a situação desses idosos violados seja problematizada. No caso do
território que cartografamos, ficou evidente nas falas de representantes do poder público a
ocorrência desse tipo de situação.

Existe caso de negligência, existe caso de abandono, às vezes o idoso tem 7 filhos,
mas nenhum sabe bem por onde anda o pai [...] aí é uma situação complicada, nós
tentamos mapear essa família toda, para tentar retomar esses laços que já foram
rompidos ou até mesmo que estão muito frágeis ao longo dos anos, uma coisa muito
solta... aí é uma questão cultural também, aquela cultura do descuido mesmo de cada
um ir seguindo sua vida, entra em uma rotina mesmo e as vezes esquece da família
(PODER PÚBLICO 1).

Muitas vezes a gente se depara com esse abandono. Está debaixo do mesmo teto, o
número de pessoas, mas o idoso se sente abandonado. E às vezes, literalmente
abandonado. É o caso que a gente atendeu recente, a pessoa tem 16 filhos e nenhum
quer tomar conta (PODER PÚBLICO 2).

Identificamos que as denúncias de abandono de velhos chegam às autoridades competentes por


meio de canais como os serviços do CRAS, por funcionários das UBS, pelos próprios líderes
comunitários, ou seja, profissionais e pessoas que estão mais próximas à população rural. Nas
conversas com o poder público ficou claro que as providências em casos dessa natureza são
diversas e dependem de cada realidade em específico. Mas e nas situações de velhos cujos
filhos se mudam para outras localidades, por vezes distantes? Quem exerce esse cuidado? A
questão do abandono existe, mas, em suas narrativas, os velhos refletem sobre as outras
experiências associadas a essa dimensão do cuidado.

Uai... quem que cuida é as pessoa... (pensativa). Ó, aí, eu num tô aqui? Sozinha? Tem
a pessoa que cuida aqui que minha menina que tá aqui mais eu. [...] Pago uma pessoa,
procuro uma pessoa, paga pra ficar mais aquele idoso pra cozinhar, lavar, asseá a casa
dele aí, ó. Eu pago (DONA LURUCA, 78 anos).

Uai... é os outro mesmo que tem que cuidar, né. [...] E a valência é o aposento, minha
fia, que se num fosse o aposento, ninguém queria... ninguém! A gente paga as pessoa
pra fazer as coisa pra gente e tudo, né? (DONA MARLENE, 68 anos).

Essa ideia de pagamento pela prestação de serviços trazida por Dona Luruca e Dona Marlene
refere-se, principalmente, ao auxílio com as atividades cotidianas do lar, como a limpeza, a
preparação das refeições e o cuidado com as roupas. Nesse sentido, não são pessoas que
exercem atividades compatíveis com as que se espera de um cuidador de idoso profissional,
219

eles se dedicam mesmo a ajudar nas atividades cotidianas que os velhos têm dificuldades de
desenvolver. Chamamos a atenção para a expressão utilizada por Dona Marlene - “a valência é
o aposento” - em que ela destaca o poder alcançado através do benefício previdenciário, dando
a entender que se não houvesse a retribuição financeira eles, ou não teriam, ou teriam maior
dificuldade em conseguir esse apoio. Para além dessa possibilidade de contratação, também
ficou claro nas narrativas o papel da comunidade nessa dimensão do cuidado.

É igual Dona Rosa mais Dona Florida que foi pro Graça82... a Dona Rosa agradece
mais quem? Sua mãe (falando para o Cisco83). Sua mãe que mais cuidou dela. Num
foi pro asilo não! Quantos ano que aquela véia viveu? Noventa e quatro! A mãe dele
que cuidou dessa véia... mesmo num sendo parente. Isso acontece, moça. Hoje eu
acho que é um mal de caridade... de criação e de caridade. Por que igual nós... nem
o bicho pagão que nós vê sofrendo lá... é nossa obrigação de panhar ele e cuidar dele,
né? (SEU MILTON GRANJA, 67 anos).

Alguns filhos solteiros são os que ficam com esses pais ou então o próprio idoso que
é o seu cuidador. Tem alguns que moram sozinhos ou com um vizinho mais
próximo (PODER PÚBLICO 2).

A gente vê o empenho da comunidade que quando tem uma pessoa que precisa, que
adoece, que de uma forma ou outra precisa de uma ajuda a comunidade toda se põe a
ajudar né? Cada um de uma forma, mas a comunidade toda de dispõe a ajudar...
(SEU ANTÔNIO DA VELHA, 67 anos).

A ideia de pertencimento à comunidade se fez evidente nas narrativas dos velhos, sendo,
inclusive uma possibilidade relacionada a essa questão do cuidado. Em parte, observamos que
esse sentimento justifica a negativa desses sujeitos em também migrarem para a cidade, assim
como os jovens já o fazem, o que é colocado como uma resposta lógica (e conveniente) para
maior acessibilidade aos serviços públicos diversos, principalmente os de saúde.

[...] eles têm uma questão afetiva com aquele espaço e mais do que uma relação de
poder de tantos hectares de terra, porque normalmente são pequenas propriedades
também. Então, assim, é mais uma questão afetiva mesmo estão muito vinculados
às comunidades, muito entrelaçados, o compadre e a comadre, aquele negócio
assim com a comunidade e com o próprio espaço mesmo, a casinha dele, quero
viver e morrer aqui (PODER PÚBLICO 1).

Eles acabam criando vínculo no local e assim tem essa resistência, tem os filhos
morando na cidade, mas assim não saem de jeito nenhum, preferem ficar nesse local
por causa desses vínculos [...] um conjunto de tudo, com a terra, com as pessoas
(PODER PÚBLICO 2).

Se pensar que envelhecer já é difícil, imagina na zona rural onde você tem menos
acesso a quase tudo... só que a gente vê muito essa paixão que o pessoal tem, pelos

82
Comunidade rural também pertencente ao munícipio de Araçuaí.
83
Cisco é o apelido do motorista do IFNMG que nos acompanhou em uma das visitas ao Seu Milton Granja, quem
conhece há muitos anos.
220

vínculos comunitários, pela terra, acaba sendo um pouco maior que os


empecilhos que eles acabam encontrando (PODER PÚBLICO 2).

Nesse sentido, embora ecoe nas narrativas do poder público tal conveniência no sentido de que
seria melhor se esses sujeitos estivessem no centro urbano (melhor para quem, podemos
perguntar), há o reconhecimento nas falas a respeito dos vínculos estabelecidos com a terra,
com a comunidade e com o território. Ainda assim, pouco foi possível perceber em termos de
ações que, a partir do reconhecimento de que o desejo dos sujeitos é o de permanência no
território, efetivamente façam chegar até eles as condições necessárias de uma sobrevivência
digna, tal qual é apregoado, por exemplo, no Estatuto do Idoso. Dona Luruca (78 anos) é
enfática ao dizer do seu projeto de permanecer e experimentar a sua velhice exatamente onde
está.

Oh, minha fia, num saio daqui não. Eu penso viver só aqui dentro de minha casinha
até no dia d’eu... eu só saio daqui depois que eu morrer, com os dois pé amarrado pra
baixo. Mas do contrário... sair daqui eu num saio não! (enfática).

O mesmo sentimento ouvimos (e sentimos) na narrativa de todos os velhos com os quais


conversamos, com a única exceção de Dona Lia que demonstra vontade de migrar
exclusivamente em função do temor frente à violência que se instalou no campo, como
discutimos no item 1 desse capítulo sobre “A vida no campo”. Nesse sentido, há um fator
externo que provoca esse desejo e que claramente gera tristeza e lamentação, o que remete à
inefetividade das ações do poder público no que tange ao campo, como comentamos
anteriormente.

Se olharmos para esses elementos atentamente, percebemos que a família, a comunidade e o


próprio espaço (o lugar, a terra) são partes importantes nos modos de ser velho desses sujeitos.
À família e à comunidade são dedicados lugares potentes em que se encontram os sentidos de
vida, de trabalho e de compartilhamento. É nesse lugar que repousam as expectativas em relação
ao cuidado nesse momento da vida, uma concepção natural que decorre da própria leitura que
eles têm do mundo, dos valores religiosos e tradicionais que ainda cultivam. Esses valores
resistem, ainda que algumas evidências como o êxodo rural, as situações de abandono e
violência em alguma medida os confrontem e desafiem. O território emerge nesse emaranhado
como onde eu posso ser ou, nas palavras do Seu Arlindo (70 anos), “[...] onde eu sou mais
livre”. Nesse sentido, entendemos, sentimos, percebemos e experimentamos que não há como
221

dissociar as possibilidades de ser velho rural no médio Vale do Jequitinhonha sem falar sobre
a família, sobre a comunidade e sobre o território (enquanto lugar, espaço).

Partindo desse panorama, parece-nos relevante retomar uma das questões a partir da qual demos
início a esse eixo analítico sobre “As velhices no campo”, a saber, como os sujeitos que
emergem no/do/com esse território experienciam a velhice? Entendemos que nosso propósito
ainda não pode ser dado como concluído, uma vez que ainda vamos nos dedicar à força que
identificamos como de maior intensidade nessa construção rizomática: o trabalho rural, a qual
será alvo dos nossos esforços no próximo capítulo. Entretanto, por hora, cabe-nos algumas notas
sobre o rumo a que essa multiplicidade de experiências e narrativas parecem nos levar.
Recuperando a imagem do rizoma, um emaranhado de linhas que crescem desordenadamente,
sem um início e nem um fim, que se multiplicam e está sempre aberto para possibilidades
outras, acreditamos que esse rastreamento nos trouxe elementos de reflexão importantes para
nossa tentativa de aumentar a inteligibilidade sobre esses sujeitos e seus modos de vida.

Nesse processo de rastreamento nos deparamos com sujeitos e velhices marcados por histórias
de vida em que a sobrevivência e a luta são palavras de ordem, as quais permitem a construção
de um sentido de vitória por serem quem são hoje, bem como por aquilo que eles foram capazes
de conquistar (direito de ser). Essa vitória é atribuída à graça divina e é celebrada
constantemente por meio das práticas religiosas particulares, familiares e comunitárias. A
presença de Deus como guia e juiz da vida (assim como da morte) marca a forma de ver o
mundo desses sujeitos, ora atuando de forma a aprisionar a vida (pela resignação e
assujeitamento), ora encontrando frestas para novas possibilidades em que, fortificados por essa
religiosidade atuam como agentes políticos em causas comunitárias. São velhices situadas em
um território, em que a terra, a família e os laços com a comunidade geram um sentimento de
pertencimento e de partilha e justificam o desejo de ali permanecerem por toda a vida.
Permeando todas essas construções e esses modos de vida está o trabalho – um trabalho que é
realizado junto à família, guiado por Deus e intrinsecamente ligado a esse território - que
emerge potente e sobre o qual falaremos a seguir.
222

Capítulo 5

O trabalho no campo
223

5. O trabalho no campo

Este capítulo dedica-se à discussão do terceiro eixo analítico da pesquisa: o trabalho no campo.
De forma específica, buscamos nesse momento da tese responder às seguintes questões: Qual
é o lugar do trabalho nesse rizoma velhice? Ou seja, neste processo de produção de
subjetividades associadas à velhice, que força tem o trabalho? Aqui chamamos a atenção,
em especial, para o motivo pelo qual optamos por desenvolver um capítulo inteiramente
dedicado à linha trabalho. A principal justificativa, que será evidenciada a partir das narrativas
recolhidas, é a de que, de fato, o trabalho é uma força intensa na constituição dos modos de ser
velho nesse território, imbricada às demais discutidas anteriormente. A segunda justificativa
refere-se à importância dessa categoria enquanto uma temática cara ao campo dos Estudos
Organizacionais, o que nos convida a aprofundar nas reflexões de modo a buscar outros olhares
e contribuições.

5.1 O trabalho no campo: Experiências de velhos em comunidade rurais do médio Vale


do Jequitinhonha

Antes de adentrarmos especificamente nas linhas associadas ao trabalho, algumas pontuações


precisam ser feitas. Colocamos, desde o início da pesquisa, que estamos falando sobre velhos
que são pequenos proprietários de terra e que trabalham segundo o regime da agricultura
familiar (WANDERLEY, 1999; 2014). O que observamos é que para esses velhos participantes
da pesquisa o ser proprietário se confunde com o ser trabalhador rural, sendo essa última a
forma pela qual eles mesmos se definem e se reconhecem. Além desse autorreconhecimento,
em todos os discursos institucionais, eles são da mesma forma caracterizados como
trabalhadores, e não como proprietários, sendo essa identidade, inclusive, a que lhes garante o
acesso ao benefício da aposentadoria rural enquanto segurados especiais84.

Seu Antônio da Velha (67 anos) fala sobre a definição de trabalhador rural enquanto membro
da diretoria do sindicato que os representa.

O trabalhador rural é aquela pessoa que cultiva..., por exemplo, eu tenho a minha
terra e eu vou para a foice, aqui a gente não usa máquina, eu vou para a foice e vou
roçar o meu mato, vou queimá, vou limpá, eu mesmo vou plantá, vou cuidá da planta,

84
Aqui estamos nos referindo à aposentadoria por idade do segurado especial, uma categoria considerada
especial porque o direito ao acesso não está associado ao tempo de contribuição ao INSS.
224

vou colher, esse é um trabalhador rural, ele que tá trabalhando na lavoura. [...] O
trabalhador, ele tá lá no dia a dia trabalhando braçal.

Podemos destacar nesse trecho narrativo que a definição do trabalhador rural apresentada
remete à realização de atividades associadas à agricultura e à pecuária. Entretanto, chama a
atenção na fala de Seu Antônio justamente a referência à posse da terra, algo que não se insere
na definição legal de trabalhador rural. O conceito jurídico de trabalhador rural está disposto
no artigo 2º da Lei no 5.889/73: “Empregado rural é toda pessoa física que, em propriedade
rural ou prédio rústico, presta serviços de natureza não eventual a empregador rural, sob a
dependência deste e mediante salário”. Nesse sentido, o conceito de trabalhador rural remete,
grosso modo, à venda da força de trabalho para a realização de atividades associadas à
agricultura, pecuária e extrativismo. Sobre os pequenos produtores rurais, há uma definição
disposta na Lei 11.428/2006 que os caracteriza como aqueles que residem na zona rural e
exploram, a partir de seu trabalho e de sua família, uma área de até 50 hectares. Embora exista
essa delimitação, para o acesso aos recursos do PRONAF – Programa Nacional de
Fortalecimento da Agricultura Familiar –, a medida considerada é a de módulos fiscais, ou seja,
uma medida definida pelos munícipios (que no caso de Araçuaí é de 65 hectares). Sendo assim,
nos termos da lei 8.629/93, a pequena propriedade é, no caso de Araçuaí, terras de até 260
hectares (INCRA, 2018).

Cabe observar que essa medida de quatro módulos fiscais é a mesma utilizada como referência
pela legislação previdenciária no que se refere à qualificação do trabalhador enquanto segurado
especial. Nesse sentido, perante o Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), o fato de a
pessoa possuir uma pequena propriedade rural não o desqualifica como trabalhador rural, pois,
na lei, o que prevalece é o tipo de trabalho exercido, como diz Seu Antônio, “esse é um
trabalhador rural, ele que tá trabalhando na lavoura”. Consequentemente, essa é a mesma
referência utilizada pelo Sindicato de Trabalhadores Rurais para analisar os pedidos de afiliação
à instituição. Nas conversas com profissionais do sindicato, ficou clara a tentativa de, já nas
primeiras entrevistas com o trabalhador, compreender como é o seu cotidiano de trabalho, as
atividades realizadas e a forma como sua família se insere nesse contexto. O próprio sindicato
conta com coordenadores de área85 responsáveis por fiscalizar as informações prestadas pelos
trabalhadores.

85
Os coordenadores de área são empregados dos sindicatos responsáveis por fiscalizar e atuar em uma determinada
área composta por um número específico de comunidades rurais. Como o STR de Araçuaí abrange um território
de mais de 70 comunidades, esse trabalho local facilita a atuação da instituição.
225

Quando conversamos com os velhos participantes da pesquisa, identificamos que todos se


caracterizam como pequenos proprietários de terra nos termos da lei, atendendo ao critério de
possuir terras com áreas de, no máximo, 4 módulos fiscais. Segundo as narrativas, tais
propriedades foram frutos de doações, compra e, em alguns casos, herança familiar. Em sua
totalidade, eles são membros do STR e aposentados sob o registro de segurados especiais. Nesse
sentido, para além do fato de que todas essas instituições os legitimam enquanto trabalhadores
rurais, percebemos que esse autorreconhecimento também é fruto de suas próprias histórias de
vida. A maior parte dos velhos já venderam sua força de trabalho para fazendeiros da região,
ou mesmo migraram buscando empregos em lavouras de cana-de-açúcar em outros estados
(migração temporária, frequente na região). Eles relatam uma história comum de luta
“trabalhando pros outros” até que conseguissem adquirir ou melhorar suas pequenas
propriedades. Além disso, eles trazem narrativas sobre o cotidiano de trabalho, um trabalho
duro, braçal, desgastante, sobre o qual trataremos em seguida de forma mais detalhada.

Partindo desse entendimento de que, no caso dos velhos participantes dessa pesquisa, a posse e
trabalho se confundem, vamos avançar na tentativa de mapear outras linhas que compõem o
rizoma velhice rural nesse território. A fim de organizar melhor o capítulo, optamos por dividi-
lo tendo como referência as quatro linhas que emergiram a partir da análise desse eixo (ou
código) denominado de “o trabalho no campo”. São elas, a saber: “Eu criei trabalhando na
roça”; “Pra mim a mulher inda trabaia mais do que o homem”; “A aposentadoria é a valência
da gente, menina”; “e “O mercado é bão!”. Após a discussão dessas temáticas, apresentaremos
uma seção de fechamento trazendo reflexões sobre o trabalho rural no contexto da agricultura
familiar no Brasil.

5.1.1 Linha “Eu criei trabalhando na roça”

Um dos primeiros aspectos que emergem quando da discussão sobre o trabalho é o


entendimento a respeito do que ele significa, ou seja, de que trabalho estamos falando? Barreto
(2016, p. 154), em uma pesquisa que investiga a aposentadoria rural, enuncia com clareza a
relação ou mesmo o significado que o trabalho tem para esses sujeitos.

[...] o trabalho possui uma dimensão orgânica que é inerente a esses sujeitos sociais.
Não existe uma relação de exterioridade porque o trabalho é uma dimensão
constitutiva da própria vida desses sujeitos. O fato de não poder trabalhar é
considerado pelos sujeitos da pesquisa como algo ruim que os incapacita para a
própria vida. É reconhecido como sinônimo de doença, de morte anunciada. Para
226

esses sujeitos, enquanto existir vigor físico e força para trabalhar, existe prazer
em poder trabalhar (grifos nossos)

Compreendemos que essa concepção de trabalho se aproxima da leitura de Viegas (1989) sobre
o trabalho como vida. Nas palavras da autora,

Trabalho é a forma humana de fazer jus à vida, é a forma humana de produzir, não
no sentido de criar objetos reificados, simplesmente, mas no sentido de criar
significações. […] o trabalho acrescenta o que sou ao que não sou, acrescenta o que
não sou ao que sou. Ele dá uma dimensão virtual para o meu ser (VIEGAS, 1989, p.
10-11, grifos nossos).

Nesse sentido, essa concepção de trabalho como algo que faz parte da constituição do sujeito
nos parece ser compatível com o entendimento do trabalho como uma força, nos termos de
Deleuze e Guattari (1995a). Isso porque, ao compreendê-lo dessa forma, podemos então rastreá-
lo dentro do rizoma da vida, buscando justamente analisar de que forma ele se insere e
influencia a construção de determinados modos de ser. Nas narrativas dos velhos trabalhadores
rurais, sujeitos que compõem o corpus da pesquisa, o trabalho emerge como fonte de
subsistência, mas principalmente como elemento para a constituição de si (dimensão orgânica)
associando-se a valores tradicionais: família, terra e comunidade (CUNHA, 2014).

Nas narrativas tanto dos representantes do poder público e das instituições da sociedade civil e
religiosas, assim como dos próprios velhos, ficaram evidentes as marcas que caracterizam o
trabalhado rural.

Todos (pessoas que vivem no campo) são lavradores, às vezes tem algum professor
aposentado..., mas, a maioria absoluta é de trabalhadores rurais (PODER
PÚBLICO 3).

A maioria dos trabalhos deles (trabalhadores rurais) é um trabalho braçal, não tem
uma indústria que dá condições de trabalho... É um trabalho que não tem muita
segurança do ponto de vista de: ‘ah, esse ano eu vou trabalhar, vai ter produção’. Ele
não tem uma produção certa. Mas ele trabalha. Todo ano ele faz o mesmo sistema.
Eu falo aquele da zona rural que todo ano faz uma roça, que prepara a terra,
que planta esperando chuva vir e colher (PODER PÚBLICO 4).

As pessoas da zona rural têm muita dificuldade financeira. É porque na zona rural a
fonte de renda que o trabalhador rural tem é do que planta, e a gente sabe que
nós estamos em uma região muito seca. Então assim, planta e não colhe, né? A
questão financeira é o que mais impacta (PODER PÚBLICO 2).

Nesses trechos narrativos, podemos identificar algumas dessas marcas do trabalho rural como:
o fato de ser tipicamente uma atividade braçal e que, portanto, demanda esforço físico; ser uma
atividade em que o trabalhador (enquanto pequeno produtor familiar) não tem garantidos
227

direitos trabalhistas como férias, auxílio doença, entre outros; trata-se de uma atividade cuja
produção está diretamente associada às condições climáticas, o que na região significa o
enfrentamento de longos períodos de seca. Além disso, até mesmo como resultado dessas
características climáticas, a renda proveniente da produção agrícola e da criação de animais é
incerta, gerando situações de extrema dificuldade em termos de sobrevivência. Como
discutimos anteriormente, essas marcas inserem-se em um contexto mais amplo de pouco ou
nenhum acesso a políticas públicas, o que contribui para um cenário de precarização não apenas
do trabalho, mas da vida de um modo geral. Vamos retomar essas questões posteriormente,
quando das reflexões ao final deste capítulo, mas por ora o que ressaltamos é a identificação
dessas vulnerabilidades associadas ao trabalho no campo em nossas andanças cartográficas, as
quais apresentamos como marcas múltiplas explicitadas também nas narrativas dos próprios
lavradores.

Apesar da gente ter umas terras boas que produz bem, mas a chuva é muito
pouca, acontece que vem uma chuva assim, que num sei né, que Deus me perdoa que
eu não sei o que tô falando, mas é uma coisa que não é bem distribuída, né, às vezes
tem um período que cai bastante chuva e aí ela afasta e demora a voltar, quando ela
volta as lavouras já estão bastante... já tem uns três anos que as pessoas num colhe
nada, planta, planta, e não colhe (SEU ANTÔNIO DA VELHA, 67 anos).

A questão da seca... As chuvas são mal distribuídas aqui nessa região nossa do
semiárido. Então dá muitos anos seguidos de seca de produzir pouquinha coisa,
então às vezes não dá para levar para o comércio. E às vezes quando a gente produz
um pouquinho a mais... quando a gente vai comparar o transporte com o preço
dele no mercado, não vale a pena, não compensa (SEU ZEZÉ DAS TESOURAS,
77 anos).

Agora num tá dando pra ser plantado, não, porque agora tudo tem que ser comprado.
Feijão, arroz, a gente tá comprando... Porque a coisa aqui é muito difícil... O trabalho
aqui num dá renda, assim... então acaba que pro jovem, eles tem que sair... Meus
filhos mesmo, eles tinha vontade de estudar e aqui num tinha como estudar, né? Então
teve que sair pra estudar, depois pra trabalhar... é o caso de muita gente aqui (DONA
LIA, 79 anos).

Lendo atentamente as narrativas, é possível identificar que os velhos trazem à tona as


dificuldades apontadas sobre a problemática da seca e seus efeitos em termos de baixa
produtividade, os preços pouco significativos daquilo que ainda assim conseguem produzir e
os altos custos de transporte para a comercialização. Dona Lia ressalta também outro efeito
desse cenário sobre o qual também já comentamos: o crescimento do êxodo rural, seja ele
temporário ou definitivo. Não obstante esses fatores sejam percebidos pelos velhos, eles ainda
acreditam ser possível reverter essa realidade sobre o trabalho e a produção nesse território.
228

O homem sai da roça, ele vai inchar as cidades, vai aumentar a violência e vai
perturbar quem tá na cidade... Se nós tivesse condições no meio rural, o êxodo rural
era menos, a cidade não tava tão cheia do jeito que tá. E tanta gente que tá na
cidade sem condições de viver... (SEU ZEZÉ DAS TESOURAS, 77 anos).

A zona rural tem muito favorecimento. Por exemplo: se a gente vem morar na
cidade, aí a gente tem que comprar de tudo, né! Tudo que a gente precisa pra
alimentação a gente tem que ir na feira, no supermercado, tem que comprar de tudo e
além disso tudo que é comprado, muitas vezes a gente não vai ter uma alimentação
muito saudável. [...] lá a gente colhe ali uma verdura, a gente colhe um pouco de
feijão, a gente pega uma folha da horta (SEU ANTÔNIO DA VELHA, 67 anos).

Nesse sentido, embora seja perceptível para os sujeitos que as dificuldades existem, há entre
eles o entendimento de que é possível lançar sobre o campo um outro olhar, não apenas via
melhorias em termos de acesso às políticas públicas, como argumenta o Seu Zezé ao dizer “se
nós tivesse condições no meio rural”, mas também em relação a um investimento e dedicação
por parte das próprias pessoas que vivem no campo. Esse argumento é defendido com
veemência pelo Seu Milton Granja (67 anos).

Difícil, difícil! Ó, é o caso que eu falo hoje! Cês me desculpa eu falar, né, por que o
povo hoje vem falar assim: “O governo num presta”. Gente!!! Nós é que tem que
fazer a nossa parte. Nós num vamo olhá o governo lá, não, entendeu? Porque quem
tem os poder de dar a gente, é só Um, é só Jesus Cristo, né. Agora o governo, às vez
ele pode te dar hoje e amanhã ele num dá. E comé que cê vai sobreviver? É por isso
que eu tô falando: o povo hoje tá com a barriga cheia e tá lá gemendo. Cê pergunta
ele: “O quê cê tem?” “Oh, moço, tô com o corpo ruim.” Antes num tinha isso,
não! Porque cê começava lutar aí a base de uma hora da manhã e ia terminar lá pelas
oito da noite (SEU MILTON GRANJA, 67 anos).

A narrativa de Seu Milton nos faz retomar o argumento sobre a complexidade que marca as
temáticas que estamos tratando, em especial, os modos de ser velho nesse território. Nesse
trecho, Seu Milton critica o comportamento daqueles que dizem que o trabalho no campo não
é algo viável e alega que não se deve tornar dependente exclusivamente da atuação
governamental. Ele faz referência ao poder divino (religiosidade) como aquele capaz de ajudá-
los a enfrentar as dificuldades cotidianas de viver e trabalhar no campo. Em vários outros
momentos narrativos, ele critica a falta de vontade, a preguiça e a pouca disposição para o
trabalho como um “mal dos dias de hoje”. Essa visão otimista em relação à potência da vida no
campo é uma característica forte e presente em toda a narrativa do Seu Milton: a crença de que
nesse território há uma oportunidade real de vida e trabalho, ignorada e subvalorizada pela
juventude e por outros sujeitos sociais.

Para além de todas essas questões sobre as quais falamos e que caracterizam o trabalho do
pequeno agricultor familiar do campo, há também as marcas dessa atividade que se fazem ainda
229

mais evidentes: as marcas que se inscrevem no corpo. Como explicita Cunha (2014, p. 203),
“no trabalho rural o ponto central ainda é o ‘corpo’ e não as tecnologias e maquinários. Assim,
corpo e trabalho se entrelaçam de uma maneira intrínseca, um existe para cumprir o outro”.

A pele muitas vezes... repara a pessoa, ainda mais quando a gente já tem uma vivência,
já está aí há algum tempo... A gente olha para o cidadão que tem um modo de se vestir,
o visual mesmo... as mãos e os pés do trabalhador rural são diferentes do
trabalhador urbano, repara pra você ver! (PODER PÚBLICO 1).

Essa narrativa em especial nos chamou bastante a atenção, tendo em vista ser algo que
recorrentemente é trazido à tona na discussão sobre a velhice. Inspirados e de certa forma
instigados por essa narrativa (e por outras dos próprios velhos que complementam essa temática
do corpo) é que desenvolvemos as fotografias que se encontram (parte delas) na capa da tese.
São velhices de trabalhadores rurais cujas marcas são inscritas nos seus próprios corpos, em
especial nas mãos e nos pés, os quais estão diretamente implicados nessa luta cotidiana do
trabalho rural. São, nesse sentido, mais do que marcas de trabalho, são marcas de vida, de
experiência, de existência. As mãos e os pés especificamente revelam a dureza do trabalho sob
o sol forte e das atividades pesadas realizadas sem a ajuda de maquinários. São anos de
dedicação ao preparo da terra, ao plantio, à colheita, ao cuidado dos animais.

Dentre as imagens registradas, uma em especial me gerou grande afetamento, ao evocar


pensamentos e reflexões sobre esse território que nos propusemos cartografar.
230

Fotografia 17 - Pés de Dona Luruca

Fonte: Jeane Doneiro, 2018.

Os pés de Dona Luruca (78 anos), “trabalhadeira rural”86, se misturam à terra, se confundem
com ela... são a própria terra, a mesma matéria, a mesma força. Esses pés trazem a marca desse
trabalho que identificamos: braçal, exaustivo, pouco valorizado... trabalho que faz recair sob os
sujeitos o mal da invisibilidade e uma série de estereótipos que por vezes impedem, naquele
território, a circulação da vida. Uma imagem que também nos evoca pensar nos ciclos naturais,
na vida que, ainda que com suas diferenças, não escapa ao sentido literal da expressão “do pó
viemos e ao pó voltaremos”87. São pés que expressam a história de Uma vida (DELEUZE,
2015), uma produção coletiva, compartilhada e ao mesmo tempo singularizada em cada
experiência particular. Há uma beleza naquilo que se supõe destoante da beleza tradicional, do
trabalho tradicionalmente belo, das experiências tradicionalmente belas. Talvez seja melhor
perguntar: de que beleza se está falando?

Ainda no último trecho narrativo destacado, o sujeito menciona um determinado “modo de se


vestir” que seria característico do trabalhador rural. Sobre essa questão em particular nos

86
Expressão utilizada por ela para se autodefinir.
87
Frase do texto bíblico Gênesis, 3, versículo 19. Desconsideramos nessa proposta analítica o sentido teológico
do trecho.
231

chamou a atenção a utilização frequente de dois acessórios: o chapéu de couro, no caso dos
homens, e o pano na cabeça, no caso das mulheres.

Fotografia 18 - O chapéu de couro de Seu Erotides e o lenço de tecido de Dona Íris

Foto: Jeane Doneiro, 2018.

Essa ‘identidade visual’ atribuída aos trabalhadores rurais e que os torna reconhecíveis aos
olhos dos outros emergiu nas narrativas – orais e fotográficas – de forma marcante e simbólica.
Em um misto de positividade e preconceito, que ora gera orgulho, ora sofrimento, essa questão
do corpo e do modo de ser velho trabalhador rural foi evidenciada pelos sujeitos.

É de couro esse chapéu, do tempo dos avô. Eu que vivo nessa ainda. Eu acho bonito.
Mas hoje em dia o pessoal não tá querendo isso mais, não! Acho que eles têm é
vergonha (pensativo) (SEU ARLINDO, 70 anos).

É costume... A gente nasce, o pai da gente já coloca na cabeça para não andar no
sol, aí não tira nunca mais (SEU SEBASTIÃO, 71 anos).

Eu num gosto de outra qualidade de chapéu a num ser chapéu de couro. Ne


qualquer parte de Araçuaí, eu ando com chapéu de couro. Outro dia eu cheguei lá inté
lá naquele menino Marcelo do Milho e falei: “Oh, Marcelo”. Eu num tinha
conhecimento com ele não. Aí eu falei: “Oh, Marcelo, hoje eu num tem dinheiro não.
Eu quero comprar um milho. Precisa alguém pra representar aqui?” Aí ele olhou pra
mim: “Não, senhô. A pessoa que eu vejo com o chapéu de couro na cabeça e uma
muchila de couro do lado aqui, pra mim, eu sei que ele é homem.” Então, isso é
uma honra! Isso é um prazer que a pessoa tem, né. Mas eu questiono, que tem
232

muita gente da zona urbana que abusa do lavrador. Passa por ele, num dá nem
bom dia, nem boa tarde (SEU MILTON GRANJA, 67 anos).

Chegando na porta da casa tivemos uma grata surpresa: Dona Íris, esposa de Seu
Milton estava em casa. Descalça, com a pele queimada de sol, um vestido velho e
um pano na cabeça, ela veio nos receber, alegre. Logo fomos convidados a nos
sentar próximos ao fogão de lenha, onde Dona Íris continuou a fazer o que
inicialmente já desconfiamos ser o almoço [...]. Ao longo da conversa, perguntei a
Dona Íris sobre sua aparência e seu modo de se vestir, se gostava de se cuidar. Ela
disse que sempre está daquele mesmo jeitinho, de vestido, com um pano na cabeça e
com os pés no chão. Me contou que já se acostumou a andar descalça e que assim o
faz mesmo quando está na cidade. Sentida, Dona Íris contou de um episódio em que
estava em Araçuaí e que uma mulher olhou para os seus pés e a chamou de
cascão. Ela disse ter chegado em casa e chorado muito (Anotações do diário de
bordo, 01/08/18).

Entre narrativas que revelam momentos de humilhação e invisibilidade pública (GONÇALVES


FILHO, 2004), e outros em que o fato de ser trabalhador rural é visto como sinônimo de honra
e hombridade, esses velhos vão construindo seus modos de ser nesse território. Especialmente
quando o Seu Milton diz “passa por ele, num dá nem bom dia, nem boa tarde”, podemos
compreender a realização da invisibilidade pública, em que o que ocorre é o desaparecimento
simbólico do sujeito a quem um olhar objetificante e de humilhação é direcionado. Nas palavras
de Gonçalves Filho (2004, p. 22), “a invisibilidade pública é cegueira psicossocial”. Não seria
então uma linha que aprisiona a vida? Que tenta limitar as subjetividades possíveis nesse
espaço? Ouvimos sobre um episódio em que uma autoridade da esfera federal esteve em
Araçuaí para resolver questões associadas a benefícios rurais. Com indignação, a narradora
relatou ter ouvido do profissional: “mas o povo da roça é ignorante!”. Ofendida, ela relata ter
respondido dizendo se tratar de preconceito e que ele deveria se retratar, mas a narradora
entende que isso vai para além de uma opinião pessoal daquele profissional; é algo que teve
que enfrentar na universidade e em outros espaços por onde esse tipo de preconceito é
cristalizado e reproduzido.

Ainda sobre a questão da identidade visual do trabalhador do campo, ela é apontada como
perceptível, principalmente, quando se realiza uma comparação com os trabalhadores urbanos.
Essa questão é levantada por um dos representantes do poder público.

Se você pegar um trabalhador rural de 50 anos e um trabalhador urbano de 50 anos,


se você colocar os dois um do lado do outro, o urbano muitas vezes você vai dar pra
ele 45 anos, e o rural você vai dar 60. Isso é uma questão nítida, entendeu? Quem
não enxerga isso é só um bobo mesmo pra não saber que um cidadão da zona
urbana tem uma questão do trabalho diferente do cidadão do campo (PODER
PÚBLICO 1).
233

O que o narrador chama atenção é que as marcas do trabalho no campo são resultantes de fatores
como a excessiva exposição dos trabalhadores ao sol forte e o grande dispêndio de força física
(desgaste do corpo), o que transparece nesse corpo velho com o qual nos encontramos. Mais do
que se refletir na imagem, vale aqui retomar os impactos dessas condições de trabalho na saúde
dos trabalhadores, impactos estes explicitados pelos profissionais da área da saúde. Eles
apontam para uma ocorrência significativa de casos de câncer de pele, o que ainda é agravado
pelo diagnóstico e, consequentemente, tratamento tardio. Nas narrativas dos velhos, essas
marcas do trabalho no corpo (um trabalho que queima a pele, enfraquece o corpo e pode levar
ao adoecimento) é o mesmo trabalho que os mantem vivos até hoje, trabalho que não apenas
garantiu a sobrevivência, mas que propiciou o direito de ser velho sob o qual falamos no
capítulo anterior.

Eu vou aplaudir ele porque ele é um lavrador, porque é dos braço dele que sai
nosso sustento. É dos braço dele que sai o leite, é dos braço dele que sai a carne, é
dos braço dele que sai o arroz, sai o feijão, sai a verdura, né. Você já viu alguém
rancar algum balaio de verdura lá dentro da cidade, dentro da zona urbana pra
puder levar pro mercado vender? (SEU MILTON GRANJA, 67 anos).

Olha, às vezes, tem muita pessoa na zona urbana que discrimina o lavrador e
num sabendo eles que o futuro deles tá na zona rural (SEU ANTÔNIO DA
VELHA, 67 anos).

Ninguém vive sem o campo. Ninguém! Todos nós precisamos do homem, da mulher
e do jovem do campo. A roupa que nós vestimos, o sapato que nós calça, o papel que
você está com ele na mão, o óculos que você está usando, cê precisa da matéria-prima,
o remédio que você toma a hora que você sente qualquer coisa. Tudo, tudo na vida
de um ser depende do campo. Tudo! (exaltada) E hoje, olhando depois de tanto
sofrimento, depois de tanta luta e de tanta conquista para uma sociedade mais justa e
igualitária, a gente vê tantas coisas... (Diretora da FETAEMG).

Esta valorização do trabalho rural pelos próprios velhos emergiu em suas narrativas,
principalmente sob o argumento da importância do campo em termos da produção dos
alimentos (não apenas verduras e vegetais, mas também das carnes, ovos e derivados) que
sustentam a cidade. Embora a produtividade na região seja baixa e cada vez mais o
abastecimento seja de fontes externas, para eles a diversidade de produtos oferecida no mercado
municipal e a grande circulação de pessoas cotidianamente são um demonstrativo de que o que
fazem é mesmo importante e valoroso. Nesse sentido, ver a satisfação das pessoas ao
comprarem seus produtos e falarem sobre sua qualidade (sabor e ausência de agrotóxicos) é
algo que gera orgulho nesses produtores. Nesse sentido, como coloca Cunha (2014, p. 223), “a
relação que estes velhos estabelecem com a terra não é uma relação apenas ‘produtiva’, no
sentido mesmo de mercadoria e objeto de trabalho, é permeada por um valor moral e selada no
234

valor ético do trabalho que produz também o valor da família”. Ao falar de seus produtos, eles
estão falando de suas famílias, de sua terra e de si próprios.

Essa ideia de que o trabalho é algo inerente à vida (e ao corpo) também é desenhada nas
narrativas do sujeito na medida em que eles o trazem como algo que fazem desde a infância,
desde “que eu me intindi por gente” (DONA LURUCA, 78 anos). Nesse sentido, como
dissemos anteriormente, o trabalho é visto como orgânico, como parte de uma história de vida
sem o qual não haveria o que contar.

Eu sempre trabaiei na roça, desde novinha. Eu arribava garapa, torrava farinha...


(pensativa). Vixe! Desde novinha! (DONA SANTA, 79 anos).

Toda vida eu trabalho no campo. A minha mãe, eu perdi minha mãe eu tinha 11
anos de idade, aí eu fiquei com meu pai, ele casou e eu fui pra casa da madrasta, mas
eu num gostava da casa de meu pai. Eu ficava lá o dia trabalhando, sempre
trabalhava na roça, plantava, capinava e eu lavava roupa, aí tudo que eu
arrumava (DONA LIA, 79 anos).

Como ele saiu (pai) e num deixou terra pra gente morar, num deixou casa, a gente
morava de favor na casa dos outros... eu comecei a trabalhar com ela (mãe), desde
que me intindi por gente! (SEU ANTÔNIO DA VELHA, 67 anos).

Eu criei trabalhando na roça (SEU ZEZÉ DAS TESOURAS, 77 anos).

Desde de dez anos... dez anos não! (pensativo) Desde quando eu comecei eu acho
que num tinha interado nem dez anos ainda não, mas era puxado demais. Toda
vida. Nunca saí pra canto nenhum [...] (SEU EMÍLIO, 79 anos).

A ideia de aprender a trabalhar desde muito cedo que apareceu na totalidade nas narrativas dos
velhos é algo que se reproduziu nas histórias contadas sobre os seus filhos. Ouvindo cada um
deles, entendemos que essa organicidade do trabalho é passada para as novas gerações,
ensinamento de que se orgulham muito. Como argumenta Delgado (2007, p. 177), “[...] o valor
do trabalho e a construção de um corpo apto a trabalhar são os bens que, num contexto marcado
pela pobreza, foi possível aos pais lhes transmitir”. Isso não significa, entretanto, que não
reconheçam a importância dos filhos realizarem outras atividades como estudar. Eles
ponderam, inclusive, o quanto gostariam de ter tido a oportunidade de estudar, o que na
atualidade percebem como algo bem mais acessível. É fundamental destacar que a escola e o
trabalho, nesse contexto, não são apresentadas como realidades antagônicas.

Nós levava eles pro mato miudim, minha fia, e tava na enxada capinando. Nós criô
esses filho tudo foi, assim, trabalhando na roça. Primeiro levando eles, depois eles
ajudando também (DONA MARLENE, 67 anos).
235

É um trabalho terrível, viu! Demora demais (sobre a produção do fumo). [...] Sol e
chuva. Do jeito que vier. Com a chuva ele perde. Ainda tem mais essa. Tinha dia que
nós ficava até meia noite sem durmir estalando fumo, todo mundo ajudando... é
a rotina da vida né? (DONA LIA, 79 anos).

O jovem... jovem de quinze ano, doze, quatorze, quinze ano ele tem que tá estudando
e acompanhando o pai fazendo o que o pai tá fazendo. Se você tem uma loja, seu
filho vai pra escola, chegou da escola, o intervalo, ir pra loja mais eu. Se eu sou
pedreiro, meu filho chegou da escola, vem cá pro meu serviço. Num obriga ele
fazer nada, não. A própria criança, ela quer fazer o que o pai faz e isso é uma
coisa do ser humano (SEU ZEZÉ DAS TESOURAS, 77 anos).

Essa questão da justaposição entre o trabalho e os estudos na vida dos filhos pode também ser
entendida sob a ótica do que caracteriza o modo de produção agrícola familiar que, como o
próprio nome explicita, tem como uma de suas bases a família. Sendo assim as características
internas de organização do trabalho, nesses contextos como o que estudamos, assenta-se no
próprio grupo doméstico em que não apenas os pais, mas também os filhos são partes
constituintes dos processos produtivos (WANDERLEY, 2014). Aqui cabe fazermos uma
ressalva em relação à temática do trabalho infantil. Encontramos nas narrativas dos velhos
referências negativas às legislações mais recentes como o Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA) no que tange à proibição do trabalho infantil enquanto algo que é prejudicial ao
desenvolvimento dos sujeitos. Os velhos compreendem que o aprendizado do trabalho na
lavoura e o cuidado com os animais, assim como exemplificado na fala de Seu Zezé apresentada
acima, representam algo que faz parte da tradição e do próprio sistema de produção de caráter
familiar. Nos termos do ECA, entretanto, o trabalho infantil é permitido, mesmo sendo
realizado junto aos pais, apenas a partir de 14 anos de idade e na condição de aprendiz, desde
que a criança/adolescente esteja matriculada e frequentando a escola88.

Não obstante essa discussão, em nossas andanças cartográficas identificamos que a ideia do
trabalho como inerente à vida é semeada desde os primeiros anos de vida, em que as atividades
associadas ao cultivo de alimentos e a criação de animais acabam por compor a própria
dinâmica familiar. Essa argumentação pode ser ilustrada pela narrativa de Dona Íris sobre uma
de suas filhas que, mesmo tendo estudado e hoje atuar como professora em uma instituição de
ensino, ao chegar na casa dos pais ela logo se dedica às atividades cotidianas (tirar o leite,

88
Os altos índices de evasão escolar de crianças e adolescentes do campo fizeram com que o regime escolar de
Alternância (modelo que intercala períodos de internato na escola e períodos em casa) fosse reconhecido como
adequado, inclusive, para valorizar o trabalho no campo. Para saber mais, ver: PASSADOR, C. S. A Educação
Rural no Brasil. São Paulo: Annablume, 2008.
236

plantar, cozinhar os quitutes típicos da roça), porque assim ela foi criada e isso seria parte de
quem ela é.
Essa mesmo que é diretora (de escola) lá na Baixa Quente (comunidade rural), ela faz
a mesma coisa quando ela vem pra aqui pra roça. Ela chega, ela capina, ela torra
massa, ela ajuda fazê a ração... tudo que cê joga ela pra fazer ela faz. A outra é a
mesma coisa, porque uma coisa que eu ensinei minhas minina foi trabaiá, isso é que
nóis somo (DONA ÍRIS, 59 anos).

Nesse sentido, o que percebemos é que a família, a relação com a terra e o trabalho são forças
em constante composição, indissociáveis e que marcam os modos de vida desses sujeitos nesse
território. Isso não significa, entretanto, que essas mesmas configurações se realizarão no
processo de construção dos modos de vida de sujeitos outros, em um tempo histórico-social
outro, como no caso dos filhos e netos desses velhos. Ouvimos, em nossas andanças
cartográficas, histórias como a de uma das filhas do Seu Zezé das Tesouras sobre o desejo de
construir uma realidade diferente da experimentada no campo.

Eu trabalhei na roça, eu recordo desde dos sete anos, né? E a gente trabalha, é
vamos dizer que se fosse hoje pra nós era trabalho infantil..., mas não quero com isso
é... culpabilizar meus pais, não, porque meu pai tinha uma coisa muito boa, ele cuidou
muito da gente. Eu tinha dezesseis anos, e aí teve esse convite pra vida religiosa, aí
nós saímos, um grupo de moça, dez moças lá da roça a pé... Aí teve o encontro
vocacional, e desse encontro vocacional eu fiquei um dia no Colégio Nazaré com as
irmãs e aí eu digo assim exatamente... hoje eu falo isso: sabe o quê que eu admirei
nas irmãs? As mãos lisas das moças... Aquilo que eu não era, porque até hoje eu
tenho calos nas mãos (risos)... Hoje eu tenho os calos na mão e os respeito, é a
minha vida, né? (MARIA SALETE).

No caso específico da narradora, a vontade de viver outras experiências motivou sua saída do
campo, e a oportunidade apareceu a partir da proposta de “uma vida religiosa”. A filha de Seu
Zezé das Tesouras (77 anos) e de Dona Isaura (77 anos), após alguns anos de dedicação à igreja,
formou-se assistente social e hoje atua na área como servidora efetiva na prefeitura de Araçuaí.
Apesar dessa história, ela ressalta: “eu digo que eu saí da roça, mas a roça não saiu de mim,
né?”. A filha de Seu Zezé fala sobre o desejo de, após aposentar-se, voltar a produzir algo na
zona rural, uma plantação de frutas ou mandioca. Retomando o trecho narrativo anterior,
quando ela diz “sabe o quê que eu admirei nas irmãs? As mãos lisas das moças... Aquilo
que eu não era...” está fazendo referência direta às marcas do trabalho rural que, desde cedo
já estavam inscritas em seu corpo. Ouvimos histórias semelhantes no cotidiano de trabalho
como docentes do IFNMG, mas em nenhum momento nos parece possível desconsiderar que
as condições mais amplas que perpassam esse território (seca, baixa produtividade, rendimentos
baixos) influenciam nesse processo de decidir por permanecer ou não no campo. Além disso,
237

outros elementos trouxeram mudanças na vida cotidiana, como argumenta Dona Íris (59 anos)
que lamenta ao dizer que hoje ela encontra obstáculos para passar para suas netas os mesmos
ensinamentos que passou para suas filhas.

Hoje eu não consigo insinar minhas netas, porque elas não quer pegar... elas vem
pra cá e só fica no celular, infelizmente tem essa praga hoje que acabou com a coragem
da juventude, cê me desculpa eu falar que ieu não tô falando docê não (direcionando
o olhar para Jeane)... mas cabô! Chega aqui, a casa tá suja, ó (movimentando os
ombros sinalizando indiferença).

A construção de novos modos de vida que também se dão no contexto do campo por vezes são,
na visão dos velhos, perdas em termos desse aprendizado para o trabalho – algo que lhes é tão
caro. Nesse sentido, identificamos também o pesar associado ao futuro de tudo que foi
construído por eles, afinal, o desinteresse demonstrado pela “juventude” ameaça as
possibilidades de concretizar esse futuro. Alguns autores (WOORTMANN; WOORTMANN,
1999; CAMARANO; ABRAMOVAY, 1998; SILVESTRO, 2001; CARNEIRO, 2001; 2005;
KISCHENER; KIYOTA; PERONDI, 2015) discutiram em suas pesquisas a questão da
sucessão das pequenas propriedades rurais, algo realmente problemático tendo em vista o
aumento do êxodo rural e o avanço do agronegócio, e, embora não tenhamos nos dedicado
especificamente a esse tema, ele aparece tangenciando essa discussão sobre o trabalho e as
futuras gerações.

Especificamente sobre a relação entre velhice e trabalho rural, vimos no capítulo anterior que
grande parte dos sujeitos com os quais conversamos se notaram velhos, ou seja, reconheceram-
se como tais a partir das perdas associadas à capacidade para o trabalho. Revisitamos esse
argumento porque a partir dele podemos compreender a intensidade da linha trabalho na
constituição desses sujeitos, isto é, o trabalho concebido não apenas como inerente à vida, mas
também como fonte de vida. Ao trabalho é atribuído o alcance do direito de ser velho, dito de
outro modo, eles dizem terem chegado até os dias de hoje graças à dedicação à terra, à
agricultura, ao campo.

E aí pra nós construir essa casa aqui, foi lutando, lutando, tirando daqui da própria
terra, né, da própria terra. E nós veio assim lutando, lutando, mexendo, tocando a
roça e na roça nós tá até hoje. E eu não reclamo da roça, não, nós tamo aqui vivo
até hoje por causa desse trabalho (SEU MILTON GRANJA, 67 anos).
238

Essa questão se tornou evidente em nossas andanças cartográficas na medida em que várias
narrativas dos velhos traziam à tona a positividade associada ao trabalho e, por vezes, vimos
emergir certo pesar de não poder mais realizar esse trabalho da mesma forma.

Num guento mais o movimento de serviço! E quando eu era mais novo, eu guentava.
A gente sente que a gente tá tá infraquicendo... Mas continuo cuidando. Tá vendo
aquele quintalinho ali? Hoje mesmo eu já fiquei aí um cado aí, né? Mexe com
alguma coisa... (SEU EMÍLIO, 79 anos).

Eu gostaria de fazer o meu serviço, mas eu num guento fazer ele mais que ele é pesado.
[...] Como eu gostei de mexê com barro, menina! E outra coisa que eu gostei
também... agora também já num guento mexer com torração de massa, sabe. Nós
levantava duas hora da madrugada pra ir aqui na tenda de farinha. [...] Era tudo na
mão, precisava de força, ocê tinha que ver! (DONA LURUCA, 78 anos).

Num acho muito difícil não (a vida na roça). Trabaiamos muito, mas né difícil, não.
No tempo que a gente plantava e colhia, eu ia pra roça ajudar plantar mais Zezé,
quando chegava em casa, eu ia fazer o almoço e ele ia ficar aí esperando, né. Eu num
achei difícil não... Eu sou assim: nada, assim, eu num acho difícil pra mim, não. Eu
faço tudo. Às vezes tô cansada de trabalhar fazendo as coisa e tudo, num to
guentando mas quero fazer! (DONA ISAURA, 78 anos).

O uso do verbo aguentar pelos três narradores remete justamente ao peso associado ao trabalho
rural, o qual o corpo envelhecido não suporta mais. Mesmo que com essa constatação de que
hoje eles, de fato, não possuem a mesma capacidade física para o trabalho, em nenhum
momento isso é colocado em tom de lamentação e tristeza. Os movimentos e as técnicas
relacionadas ao trabalho são trazidos em vários trechos de suas narrativas de forma tão
detalhada e cuidadosa que é possível sentir o prazer revivido nessa experiência.

Foi muito interessante esse (re)encontro com Dona Luruca hoje. Ao ver as fotos, ouvir
sua história, ela se abriu... ainda não tinha visto aquele sorriso. Quando falamos
sobre a produção de farinha (“farinhada”), foi emocionante... ela repetia os
movimentos com as mãos, tentando me explicar animadamente cada etapa, cada
detalhe... fiquei admirada com aquele conhecimento passado de uma forma tão
simples, mas contendo uma complexidade imensurável: trabalho duro, cansativo,
desgastante (Anotações do diário de bordo, 04/08/2018).

Nesse sentido, percebemos que eles se orgulham do trabalho que fazem (embora alguns não
mais o façam) e que gostam da rotina do campo, ainda que com todas as dificuldades inerentes
às atividades que realizam. É relevante destacar que o fato de não realizar o trabalho da mesma
forma que antes (não aguentar) não significa para esses velhos deixar de fazê-lo, mas apenas
um reconhecimento de que é necessário fazer de maneira diferente, diminuir ritmo, desenvolver
outras atividades.
239

Aí eu planto! Eu já amanheço o dia na beira daquelas planta antes de tomar café. [...]
Vou panhando o regador e vou jogando água. Móio tudo, não gosto de ficá
parada não (DONA ISAURA, 78 anos).

Maria Emília, minha fia, me xinga, ontem mesmo nós encontrou na cidade: “oh, mãe,
a senhora tá caminhando com esse joelho”, falei: “oh, minha fia, enquanto Deus
me dá vida eu vou caminhar, não vou esquecer meus trem não...”. Ela falô: “É, eu
soube, eu quero ir lá pra ver essa horta, senhora fica plantando horta, já falei com a
senhora!”, aí eu falei: “ah, deixa meus trem quieto, se eu não tiver eu endoido”. Se
eu pará de mexer, eu morro de um dia pro outro (DONA SANTA, 79 anos).

O que eu mais gosto de fazer é lidar com gado. Isso é que eu gosto. Se ocê falar assim
que eu não posso mais... Ah! Eu prefiro a morte! (SEU MILTON GRANJA, 67
anos).

Ouvindo com atenção as narrativas dos velhos, fica evidente que, se o trabalho é inerente à
vida, o não-trabalho seria logicamente o não viver, como constata Seu Milton ao dizer “ah! Eu
prefiro a morte!”. Essa importância do trabalho para o velho do campo também foi evidenciada
pelos representantes do poder público, inclusive em uma dimensão terapêutica e de manutenção
da saúde: o trabalho como remédio.

A gente vê muitas vezes a pessoa que já está idosa, muito idosa, está com problema
osteoarticular e não tem condição, mas está querendo continuar na lavoura lá
capinando e plantando o jardim, a horta... [...] Eu acho o trabalho fundamental,
tem sido a melhor distração, eu acho que uma pessoa produtiva adoece menos, adoece
menos de questões psíquicas porque ela se sente útil, ela é ativa (PODER PÚBLICO
3).

Eu acho muito importante o trabalho, eles continuarem trabalhando... assim, eles não
conseguem roçar, cultivar, né? Mas sempre criam uma galinha, uma vaca, alguma
coisa... porque se ficar parado de tudo, esse idoso adoece (PODER PÚBLICO 3).

Tem um senhorzinho mesmo em Machado que ele tem câncer de pele por exposição
ao sol. Agora ele está cuidando, está controlando o câncer. Ele mora em Machado
(comunidade rural de Araçuaí), só ele e a esposa, e assim... ele tem 90 anos é lúcido,
orientado, tem que ir todos os dias às 6 h da manhã subir a ladeirinha e ver a
criação dele, mesmo que ele não consiga fazer mais nada, mas tem que subir todo
dia. A mulher dele fala assim ‘Ele tem o problema de pele, eu falo para ele usar boné,
usar tudo que protege’, mas tem que ir, às vezes não está aguentando e ele diz ‘não,
vai melhorar se eu subir aqui e ir lá ver a minha criação’ (PODER PÚBLICO 3).

É necessário sinalizar que, embora essa importância do trabalho para os velhos lavradores seja
reconhecida pelos representantes do poder público, não identificamos ações institucionais que
assinalem nessa direção. Quando questionamos os equipamentos públicos que atuam
diretamente com os velhos no âmbito da assistência social, por exemplo, identificamos que os
poucos projetos desenvolvidos de certa forma vão de encontro a essa realidade, tentando
abordar com esses velhos a ideia de que o trabalho não seria mais compatível com seu momento
de vida. Essa questão é evidenciada na fala do profissional do CRAS: “os idosos nesse processo
240

de envelhecimento acabam focando muito na questão do trabalho. Eu acho que nos nossos
grupos a gente tem pensado nisso: como possibilitar uma opção nessa idade agora, já que não
é produtiva, não é de trabalho, uma opção de lazer para eles”. Embora nosso objetivo não
seja o de avaliar os projetos e ações desenvolvidas, essas narrativas nos provocam pensar sobre
esse reforço discursivo, ainda que não intencional, sobre a velhice como a idade da
improdutividade e do não-trabalho.

Diante de todas essas discussões, entendemos que esse subcódigo nos permitiu iniciar a reflexão
sobre a relevância da força trabalho na constituição dos modos de ser velho nesse território. Tal
relevância se evidencia nas narrativas que o revelam como algo que é aprendido, desde a
infância, como natural e orgânico e que é passado aos filhos enquanto tradição e valor. Um
trabalho braçal, desgastante, que deixa marcas nos corpos que, envelhecidos, apresentam-se
como resultados do acúmulo de anos de dedicação cotidiana à terra e aos animais. Esse corpo,
que ora possibilita experiências de orgulho, é o mesmo corpo que se torna invisível aos olhos
dos outros, sendo negligenciado e objetificado. Um trabalho que, justamente em função do
desgaste provocado pela sua intensidade, enfraquece o corpo, “estraga os braços e as pernas”
(Seu EMÍLIO, 79 anos). Um trabalho que, ainda que desgastante, significa vida e contribui para
a definição de si pelos velhos e, nesse sentido, a ideia de parar de realizá-lo significa uma
aproximação com a morte. Retomando as características que permeiam a própria definição de
pequeno produtor rural, trata-se de um trabalho que se confunde com a família e com a terra.
Nessa perspectiva rizomática da velhice no campo que estamos propomos, o trabalho alcança
patamares outros, de sustentação, de autodefinição e de relação com o mundo.

5.1.2 Linha “Pra mim, a mulher inda trabaia mais do que o homem”

Uma outra questão que emergiu intensamente nas narrativas dos sujeitos, embora por vezes de
forma marginal, diz respeito ao trabalho da mulher no campo. Encontramos em nossas andanças
cartográficas mulheres que narraram sobre suas histórias de vida marcadas por muita luta e
trabalho, em que, além da lida com a lavoura e com os animais, coube a elas o cuidado com os
filhos e com a casa. Nesse sentido, é importante ressaltar que estamos falando de famílias, em
geral, com um número grande de filhos, o que significa a vivência de inúmeras gestações e a
responsabilidade, também multiplicada, do cuidado cotidiano com as crianças. Nesse momento,
resgatamos a fala de Dona Luruca (78 anos) que, ao ficar viúva ainda jovem, teve que criar seus
filhos sozinha:
241

Fiquei sozinha dentro de casa com Deus! Tive que trabaiá muito..., mas, graças a
Deus. [...] Oh, gente, eu trabalhei pra criar dez filho. Num tinha direito a nada. [...]
Eu num dei ninguém, eu criei todos dez, eu num dei ninguém, eu num matei ninguém,
num judiei com ninguém. Tá todos dez aqui vivo dentro dessa comunidadinha
(pensativa). Pra mim sobreviver, eu fui trabaiá pra criar meus filho, Trabaiei no
barro. Trabaiei na cerâmica. Levava, fazia carqueiro de plantar planta, sabe? Nós
levava pra cidade pra vender pra Araçuaí. Eu gostaria de fazer o meu serviço, mas
eu num guento fazer ele mais que ele é pesado (DONA LURUCA, 78 anos).

Assim como Dona Luruca (78 anos), ouvimos de Dona Santa (79 anos), Dona Lia (79 anos),
Dona Isaura (78 anos), Dona Íris (59 anos) e Dona Marlene (67 anos) narrativas sobre as
dificuldades vividas, sobre o peso do trabalho, desde a infância até a vida adulta, e sobre os
episódios em que, já casadas, carregavam os filhos recém-nascidos para o trabalho na roça.

Vixe! Já fiz demais de tudo! Ração de farinha e tudo, minha fia. Tudo eu já torrei.
Tudo. Que pai mexia com tudo... Só vendo! Pra vender também. Vendia pro povo
daqui mesmo que quase ninguém fazia, né? Depois que casei foi nóis dois... Nós
levava eles pro mato miudim, minha fia, e tava na enxada capinando. Nós criô esse
filho tudo foi, assim, né, trabalhando na roça (DONA MARLENE, 67 anos).

Eu já passei tanta fome, pra mim criar esses minino eu sufri, minha fia... Era nóis
dois lutando com a vida, trabalhando pro zoto, ele trabalhava, eu trabalhava, nós
fazia a feira, passava a semana e tornava fazer outra feira, passava a semana toda, foi
sufrido demais (DONA SANTA, 79 anos).

Eu sô daqui, criei mais minha vó dês dos sete ano, torrando massa pros outro e
pra ela, mexendo dentro de casa. Depois trabaiava pros outro aí e cuidando dos véio
e cuidando da casa. Casei, fui trabaiá mais Millton fora pra pudê ganha o pão de
cada dia... Limpava casa pros outro quando eu tava grávida de...da... minha filha, eu
trabaiei muito arribano garapa pros outro que é coisa que ocês nem sabe... Eu limpava
arroz com a mão de pilão, limpava arroz pra fazer comida pra vinte e cinco, vinte e
seis camarada, sem brincadeira! Eu torrava café, socava o café no pilão, panhava água
na cabeça no pote.... (DONA ÍRIS, 59 anos).

São narrativas de trabalho em que essas velhas se colocam como trabalhadoras, como parte
fundamental no processo de garantia do sustento para a família. Entretanto, é relevante ressaltar
que, como coloca Paulilo (2004), dentro do modo de produção caracterizado por agricultura
familiar, há que se considerar a demarcação de diferenças de gênero no que tange à realização
do trabalho, ou seja, destina-se, nesse contexto, um lugar inferior ao trabalho feminino, mesmo
quando desempenhadas atividades consideradas tipicamente masculinas. Neri (2014) discute,
nessa mesma linha, a separação clara entre o ‘trabalho leve’ e o ‘trabalho pesado’, os quais
seriam, respectivamente, atribuídos ao gênero feminino e masculino, dizendo sobre como essa
separação influencia negativamente no momento da solicitação de acesso à aposentadoria rural
pelas mulheres. Segundo a autora, prevalece entre os juízes a percepção do trabalho da mulher
no campo como restrito a uma ‘ajuda’ ao trabalho masculino e que, portanto, pode ser avaliado
242

como mais leve. Em sua pesquisa, a autora avalia como são operadas as tecnologias de gênero
nos processos de validação de mulheres enquanto seguradas especiais elegíveis para o
recebimento da aposentadoria rural, discutindo as representações que permeiam esse processo
no âmbito dos Juizados Especiais Federais.

Os resultados da pesquisa apontam para as dificuldades encontradas pelas mulheres para


alcançar o acesso ao benefício previdenciário, tendo em vista que, por vezes, atividades
realizadas por elas – como o cuidado da horta e de animais – são desconsiderados ou avaliados
de forma subvalorizada na determinação sobre ser ou não uma trabalhadora rural. Como
explicita a autora:

O uso exagerado ou peso demasiado à inspeção judicial pode ser extremamente


desfavorável às mulheres, especialmente as casadas, visto que a depender da região
paraibana o labor com a enxada está mais reservado aos homens. Se a mulher
efetivamente não trabalhar com a enxada mas plantar e colher saberá responder a
perguntas “técnicas” feitas pelos magistrados acerca das espécies de plantação e
modos de trabalho. Porém, se o cerne de suas atividades produtivas for o quintal,
por exemplo os cuidados com a horta e os animais, ela terá poucas chances de ter
seu pedido de aposentadoria reconhecido, pois terá que criar uma performance
muito distante da sua realidade para historicizar seu modo de vida na fachada
social da agricultura, roça e enxada (NERI, 2004, p. 132, grifos nossos).

Os resultados da pesquisa foram corroborados por Sales (2007) ao realizar uma investigação
no contexto de comunidades rurais cearenses. Como coloca a autora, essa percepção do trabalho
feminino no campo como ajuda é algo que se inscreve no âmbito familiar e se estende para
outras instituições como o Sindicato dos Trabalhadores Rurais, algo que inviabilizou por muitos
anos o acesso das mulheres aos seus direitos sociais. É importante também destacar as outras
atividades que são desenvolvidas pelas mulheres do campo e que, da mesma forma, são por
vezes desconsideradas como o plantio de ervas medicinais e a produção de artesanatos. Vimos,
dentre as velhas com as quais conversamos, que de fato todas essas atividades eram realizadas
por elas (algumas ainda são), para além da prática do roçado.

Tem planta de medicina, ali tem um pezim de planta que é de medicina. Eu sempre
plantei... Eu planto também as planta de fazer o chá. Eu tomo muito chá. Eu num
mexo, muito assim, com comprimido. Pode perguntar o dia que eu tomei um
comprimido que eu num sei nem falar. Um comprimido pra dor de cabeça... sempre
que as pessoa vai tomando... febre, tudo. Eles vai tomando, ainda fala assim: “Oh,
gente, esse menino tá com febre”, a febre também ajuda na doença. Num pode tirar a
febre do menino, assim, duma vez não. Cês tem que dar eles chá, as criança pra puder
melhorar. Agora vai, vai sentindo uma dorzinha na cabeça, uma febrezinha assim:
comprimido! [...] Eu falo, ensino todo mundo como tem que fazê (DONA ISAURA,
78 anos).
243

Tanto Dona Lia (79 anos) quanto Dona Isaura (78 anos) e Dona Íris (59 anos) contaram que,
além de todas as atividades da roça e da casa, elas ainda se dedicavam a costurar as roupas para
a família. Dona Isaura (78 anos) conta, inclusive, que essa era uma característica valorizada
pelos rapazes na busca por suas esposas e que ela teria passado por esse ‘teste’ antes do
casamento.

Ele, pra saber se eu sabia fazer alguma coisa, pra testar, ele comprou um pano pra
fazer uma calça e levou pra mim fazer antes de casar. E eu fiquei com uma vergonha
que eu num ia saber fazer essa calça, mas daí eu fiz a calça pra ele. Testando se eu
sabia costurar! (Risos) (DONA ISAURA, 78 anos).

Diferentemente dos homens, as velhas que narraram suas histórias revelaram uma baixa
participação política em suas próprias comunidades e em outras instituições como no STR.
Embora demonstrem conhecimento sobre as problemáticas que enfrentaram historicamente
enquanto população do campo - e que ainda enfrentam -, percebemos que esse espaço não é
ocupado por elas. Essa questão corrobora os argumentos apresentados por Sales (2007) sobre o
fato de que o movimento político das mulheres do campo é relativamente recente e que, embora
com avanços expressivos, ainda tem um caminho a ser percorrido. No âmbito do STR de
Araçuaí, conversamos sobre a participação das mulheres tanto como associadas quanto na
própria estrutura organizacional da instituição. O STR conta atualmente com duas diretorias
comandadas por mulheres, um avanço na perspectiva de uma dessas diretoras que contou que
a temática da mulher do campo tem sido tratada dentro da instituição, ainda que muito ainda
precise ser feito. Em parceria com outros órgãos, o principal assunto em pauta no momento é,
segundo ela, a violência contra a mulher.

Um tema que infelizmente não sei por que ainda não saiu do papel, mas nós precisa
debater sempre é sobre a violência contra a mulher. A gente tem que lutar contra isso...
porque existe muita violência. Doméstica, verbal e física também. Existe! Morre
mulheres, muitas mulheres, tanto aqui no município de Araçuaí quanto no meio
rural por causa dessa violência (INSTITUCIONAL 1).

Participamos junto a uma das equipes do CRAS volante de uma oficina voltada para o tema da
violência contra a mulher, realizada na comunidade da Baixa Quente. A oficina reuniu mulheres
de todas as idades, inclusive velhas, mobilizadas por meio das ACS a se encontrarem na quadra
que se localiza em um ponto central da comunidade. Os temas tratados ao longo da oficina
giraram em torno do que pode ou não ser considerada uma atitude violenta contra a mulher e
como lidar com isso. Percebemos o quanto essa discussão ainda parece nova para aquele grupo
além de, na maior parte das vezes, incômoda. Falou-se sobre atitudes do marido em relação à
244

esposa e sobre a necessidade do consenso no que tange à prática de relações sexuais, mesmo
entre o casal. Percepções como a de que “a mulher deve estar sendo cheirosa e agradar ao
marido” foram problematizadas e diferentes visões apresentadas, mas ainda foi possível
identificar que a concepção de que o corpo feminino é propriedade masculina permanece
enraizada (SAFFIOTI, 2005). A partir dessa breve participação e de conversas com os
profissionais, a sensação é justamente essa: a de que o papel de subalternidade historicamente
atribuído à mulher persiste e produz efeitos perversos na vida cotidiana.

Em relação a esse debate sobre o lugar ocupado pela mulher do campo também nos chamou
muita atenção a fala da Diretora da FETAEMG89 sobre a sua condição e as questões que
enfrentou ao longo de sua trajetória de vida.

Os coronéis, eles... nós, mulheres, não éramos respeitadas. Nós, mulheres, era
objeto... e aquilo pra mim era o fim da vida. Eu criança e não aceitava! A gente
tinha os nossos pais, mais quem nos batia eram os coronéis, além dos abusos que
a gente sofria, da humilhação que a gente sofria – isso era o ontem. Eu dormi
muitas vezes no mato, dentro do vale... muita gente aqui sabe o que é vale, que os
patrões não fazia cerca, eles abria um buraco pra dividir as terras. Era um vale. Quando
a praga vinha, eu corria pro vale, dormia lá. Eu comia mamão, comia uma fruta, comia
outra, mas eu não queria essa vida pra mim..., mas eu consegui! Porque eu vivi isso
ao longo desse tempo, obedecendo, que eu sou de Coronel Murta – uma cidade de
coronel, como todo mundo sabe que aqui na região era isso que comandava, mas
também eu sou descendente de quilombola. Cês imagina o quê que eu passei! Negra!
E antes de ser uma negra, trabalhadora rural muito pobre e eu não aceitava as
qualidades que me colocavam: negra, pobre... pra depender de alguém. Eu tinha
que ter alguma coisa (Diretora da FETAEMG).

Retomando o debate sobre o trabalho da mulher do campo, são várias as questões que se
apresentam e que se cruzam; forças que dizem respeito à macro e à micropolítica, questões de
ordem molar e molecular. Especialmente sobre o peso do trabalho, Dona Íris (59 anos) não
hesita ao dizer que, “pra mim, a mulher inda trabaia mais do que o homem” e, longe de
tentarmos realizar esse tipo de avaliação, o que importa é que ouvindo-a narrar sua história não
nos atreveríamos a dizer o contrário. Nossa experiência nesse encontro com essas mulheres foi
de força, de resistência e de luta. Seu Milton (67 anos), marido de Dona Íris, completa a fala da
esposa dizendo “porque a mulhé, ela tá lavando o arroz, e o homem tá sentado, ela tá lavando
uma roupa, o home tá sentado... entendeu? O serviço dela num para, não. Ela num tem tempo,
não”.

89
Ouvimos a narrativa da diretora, uma mulher velha, durante um evento realizado pelo IFNMG – Campus Araçuaí
chamado “I Conversa ao pé do Tamboril”, realizado em 30/08/2017, promovida pelo NEPRU (Núcleo de Estudos
e Pesquisas Rurais).
245

Um aspecto importante foi abordado por Freitas (2017) ao tratar dos impactos da aposentadoria
rural para a vida das mulheres. Não obstante existam as dificuldades para o alcance do benefício
apontadas por Neri (2014), o fato é que, quando conquistam o direito à aposentadoria, as
mulheres do campo vivenciam mudanças significativas em sua vida cotidiana. A autora destaca
ter analisado situações de alterações na dinâmica familiar em função do recebimento do
benefício, uma vez que muitas das velhas tornam-se as provedoras do lar. Nesse esteio, fala-se
sobre uma autonomia financeira dificilmente experimentada anteriormente e que resultou na
realização de reformas na casa, aquisição de novos móveis e utensílios. Segundo a autora, foi
possível identificar mudanças na forma dessas mulheres verem à vida, o que se relaciona com
esse histórico patriarcal que coloca a mulher enquanto figura social subalterna e marginalizada
(SAFFIOTI, 2005).

Nesse sentido, são múltiplas as forças que se inserem no rizoma velhice rural, em especial aqui
nos remetemos à velhice da mulher no campo. Embora a discussão de gênero não esteja dentro
do escopo dessa tese, ela emergiu com intensidade e enriquece, ao nosso ver, as reflexões sobre
a complexidade que marca esse território.

5.1.3 Linha “A aposentadoria é a valência da gente, menina”

Vimos até o momento que o trabalho, nesse território, emergiu como aquilo que é inerente ao
viver e que também se configura como fonte de vida para esses velhos rurais. São forças que
emergiram nas narrativas com intensidade, e porque não dizer, com muita beleza. Nesse
sentido, falar da aposentadoria como um momento de liberdade parece algo contraditório.
Afinal, se trabalho é experimentado por eles como vida e o não-trabalho os aproxima da morte,
por que falar em aposentadoria como exercício de liberdade? De que liberdade estamos
falando?

Uma leitura apressada poderia nos deixar levar pelo discurso amplamente difundido na
contemporaneidade de que afastar-se do trabalho possibilita a vivência do ócio, de outras
experiências ou mesmo a construção de novos projetos. Trata-se de uma leitura alinhada ao que
discutimos anteriormente sobre os discursos da Melhor Idade ou Terceira Idade. Há nesse
sentido, inclusive, uma tentativa de desvincular a aposentadoria da velhice, na medida em que
sob uma determinada perspectiva a aposentadoria inaugura um novo nicho de mercado, um rol
de pessoas que continuam ativas e que possuem, em geral, uma fonte de renda estável e segura.
246

Daí a eclosão de serviços especializados para atender a esse rentável nicho de mercado. O
aposentar-se se torna então uma oportunidade de gozo da liberdade longe do trabalho e, na
maior parte das vezes, diretamente associada ao consumo. Entendemos que, nesse caso, estamos
falando de outras velhices90.

Em nossas andanças cartográficas, uma questão nos chamou bastante atenção: ouvimos desses
velhos que a experiência da aposentadoria é também vivida como liberdade, mas não para
consumir ou realizar outros projetos, mas sim para continuar trabalhando.

Ah, agora nóis tá mais tranquilo, a vida tá muito melhor... todo mês nóis recebe o
dinheirinho da gente. Aí dá pra viver... [...] Mas todo dia seis horas nós já levantou
pra trabalhar, vamo cuidar da horta, dos bichinho que nóis tem aí... Plantá alguma
coisa... Mas quando é onze hora, eu armoço... e já tem até uma cama ali no quarto. E
eu vô pra lá e deito, porque como se diz, minha vida agora no meu caso eu posso
aproveitar um pouco o... é aproveitar a aposentadoria ali (SEU EMÍLIO, 79 anos).

Continuo trabalhando... ah, isso eu nunca vou deixar de fazê! Mas eu vou falar o
seguinte: quando o dia tá fresco assim, eu só almoço, dou uma descansada, deito na
rede, dou uma cochilada e eu levanto e torno a pegar no batente. Com calma, né?
Mas pode pegar para trabalhar... Às vezes já tá até no fim, mas a gente não sabe,
né? Mais ainda tenho muito o que fazer... Eu ainda sonho em ajudar a fazer
barragem no córrego [...] E ainda acho que devo melhorar também dentro da minha
própria propriedade, né, ainda devo melhorar um pouco mais... (SEU ZEZÉ DAS
TESOURAS, 77 anos).

O mais difícil é a força para trabalhar... Às vezes eu facilito um pouco para não
estragar mais meu corpo, minhas pernas e nem a mente, né? [...] Então mais antes ocê
diminuir o trabalho hoje, né, aí se ocê amanhecer vivo amanhã... ocê pode guentar a
lida do mesmo jeito. Porque o que eu tô fazendo aqui hoje num tá servindo só pra mim
não, tá servindo pra ocê, pra aquela menina, pra ele aqui, né? Porque, o que eu tô
fazendo aqui hoje... se eu tivesse parado, veja bem! Se eu tivesse parado, eu tava
só recebendo do governo. Eu num tava contribuindo com nada, né? Mas como
eu tô trabalhando, eu ainda tô contribuindo, mesmo recebendo o meu aposento
ainda. Cê concorda? (SEU MILTON GRANJA, 67 anos).

Essa tranquilidade trazida nas narrativas pelos velhos se justifica pelo impacto significativo que
o benefício traz para a vida dessas pessoas, garantindo níveis mínimos de sobrevivência
(subsistência e acesso a serviços) que por vezes não eram alcançados por meio da dependência
exclusiva das atividades como pequenos produtores rurais (MOREIRA, 2010; TAVARES,
2011; BARROS, 2014; FREITAS, 2017; MELO, 2017). Falamos anteriormente sobre os baixos

90
Isso não significa, entretanto, que esses sujeitos também não encontrem dificuldades associadas ao processo de
aposentadoria. Há inúmeros trabalhos que tratam do adoecimento decorrente do rompimento com o mundo do
trabalho, na medida em que um dos pilares da sociedade contemporânea repousa sobre a utilidade dos sujeitos
para a reprodução do sistema. Nesse sentido, romper com o mundo do trabalho significa, por vezes, a entrada na
categoria dos inúteis e dos sem valor. Os discursos sobre o ócio e “novas” possibilidades de vida (viagens,
voluntariado) aparecem como forma de reinserção no sistema, o que se dá pincipalmente via consumo
(BARRETO, 2015).
247

rendimentos da lavoura em função dos períodos de seca, falta de recursos materiais e imateriais
para melhorar o desempenho da produção, falta de acesso a políticas públicas específicas
voltadas para o campo, dentre outros. Nesse sentido, receber o benefício garantiu aos velhos e
suas famílias melhores condições de vida e possibilitaram que eles pudessem exercer o trabalho
(inerente à vida e fonte de vida) sem a preocupação com a sobrevivência que os assombrou ao
longo de suas histórias de vida.

Quando ele morreu (tio), morreu passando fome, porque ele morreu com 96 anos
de idade e num guentava mais trabalhá, então nesse tempo ninguém aposentava.
Sempre eu via aqui, no tempo d’eu nova, umas senhoras que tinha aqui de idade que
num era aposentada. Gente é que tinha que fazer cesta pra distribuir pra essas senhoras
que vivia naquele sufrimento, naquela necessidade. E hoje não! Hoje o dinheiro de
aposentar é pouco, mas dá pra gente comer, dá, que o que importa é comer, né?
É o melhor do mundo (DONA LIA, 79 anos).

Na totalidade das narrativas dos sujeitos velhos e dos demais com quem conversamos, a
aposentadoria rural emergiu como algo extremamente simbólico e importante para a vida das
pessoas do campo. Nesse trecho em especial, Dona Lia (79 anos) chama a atenção para a
importância de ter o que comer, e que isso “é o melhor do mundo”. No trabalho de Cunha (2014,
p. 207), a questão do alimento e “da fartura” apareceu como um traço forte nas narrativas dos
velhos participantes de sua pesquisa, como algo extremamente valorizado uma vez que “[...]
este tema – alimentação – traz para as lembranças destes velhos exemplos muito concretos da
ameaça que paira sobre suas vidas, a fome e, igualmente, as formas de ludibriá-la”. Ouvimos o
mesmo de nossos velhos, histórias de pobreza e fome que a aposentadoria parece finalmente
afastar. Associada a essa questão da aposentadoria como uma forma de melhoria das condições
de vida, mais uma vez nos deparamos com a referência à religiosidade, ou seja, a atribuição
dessa conquista à graça divina, e, diante disso, vários agradecimentos são expressados.

Ah! Hoje temos que agradecer a Deus. Nós somos aposentados... (SEU ZEZÉ DAS
TESOURAS, 77 anos).

Mas Deus deu nós uma ajuda, né: a aposentadoria. [...] Que se num fosse minha
aposentadoria, num tinha condições de pagar a menina (que cuida da casa), guentar
trabaiar mais eu num guento! (DONA LURUCA, 78 anos).

O fato de assumir o papel de provedor do lar e responsável pela manutenção da casa emergiu
na maior parte das narrativas como algo que desperta satisfação e prazer nesses sujeitos. Em
pesquisas como a de Freitas (2017), destaca-se como essa satisfação é ainda mais evidente entre
as mulheres, uma vez que grande parte delas eram, até o momento da aposentadoria,
dependentes dos maridos. Nesse sentido, nada mais compreensível do que a emergência de um
248

sentimento de empoderamento a partir da conquista do benefício, o que se torna claro na fala


de Dona Marlene (67 anos) que intitula essa linha “a aposentadoria é a valência da gente,
menina”. Essa ideia da aposentadoria como algo que traz ‘valor’ para a vida dos velhos foi algo
que apareceu como um ganho na perspectiva dos narradores, na medida em que, de fato,
experienciaram a melhoria da qualidade de vida a partir do benefício91.

Esse papel de autonomia financeira alcançada pelos velhos gera efeitos no próprio âmbito da
economia local, algo claramente perceptível se observamos com atenção o movimento no
comércio nos primeiros dias do mês, quando do pagamento dos benefícios previdenciários. O
centro urbano é ocupado pelos velhos rurais, que lotam os supermercados, as mercearias, os
bancos e as casas de produtos agrícolas e agropecuários. Geralmente o que vemos são compras
em quantidades maiores, com o intuito de durar até o próximo dia de pagamento, e, assim, a
cena se repete, mensalmente.

Em um aspecto municipal os pagamentos que são feitos pelo INSS, seja ele BPC ou
aposentadoria, tem um papel de uma significância enorme para a economia local, uma
coisa assim, que eu nem conseguiria mensurar [...] É uma questão visual mesmo,
você consegue notar os mercados mais cheios, isso é notório... e aí também é
muito presente a questão do cidadão da zona rural que vem receber seu benefício
e já faz suas compras e volta para a zona rural (PODER PÚBLICO 1).

No trabalho de Melo (2017), que investigou a realidade de comunidades rurais do semiárido


nordestino, a importância da aposentadoria rural não apenas para os velhos, mas para a
comunidade de uma forma geral, ficou evidente. Percebemos grandes semelhanças dessas
análises com a realidade encontrada no semiárido mineiro, uma vez que ambos os contextos
compartilham da tríade: precariedade das políticas públicas, condições climáticas adversas
(longos períodos de seca) e economia empobrecida (baixo desempenho econômico), o que afeta
diretamente a população rural que sobrevive do campo, ampliando as condições de
vulnerabilidade. Nesse sentido, os impactos – ainda que não mensurados – são perceptíveis e
considerados importantes e positivos pelo município como um todo.

Embora os velhos reconheçam a importância do benefício previdenciário para a sua


sobrevivência e que, de fato, muitas mudanças foram experimentadas em suas vidas a partir do

91
Essa significação da aposentadoria como valência também foi evidenciada no capítulo anterior quando da
discussão sobre o cuidado do velho rural. Os narradores levantaram a importância do benefício previdenciário não
apenas para sobrevivência em termos de alimentação e medicamentos, mas também para contratação de serviços
como o de cuidado da casa e preparação da comida.
249

acesso a ele, os velhos avaliam que o valor é baixo tendo em vista os gastos que possuem,
principalmente com medicamentos. Além disso, Seu Antônio da Velha (67 anos) traz à tona
uma questão já problematizada, o fato de que muitos velhos – não apenas em Araçuaí, mas em
todo o país – se tornaram os responsáveis economicamente pelo lar em função de fatores
diversos que afetaram os familiares como a crise econômica e o desemprego. Ele conta sobre
uma realidade que encontramos frequentemente em nossas andanças: velhos que abrigam,
criam e sustentam seus filhos e/ou netos.

Com relação ao valor da aposentadoria é o salário mínimo, a gente vê que é uma


coisa que ajuda muito, mas não é o suficiente, aquele dinheiro não dá pra todos...
que sempre quando a pessoa chega numa idade ele tem que usar muitos remédios né,
por um motivo, por outro... Mas de qualquer forma o idoso toma muito remédio.
Então aquele dinheiro pra poder comprar os remédios e trazer o sustento da
casa... na minha região tem os neto, né? A gente criou os filhos, mas depois tem
uma parte de neto que aquele dinheiro da aposentadoria, muitas vezes, a gente tem
que tá ajudando também (SEU ANTÔNIO DA VELHA, 67 anos).

Realidades semelhantes encontramos na casa de Seu Milton Granja (67 anos) e Dona Íris (59
anos), de Dona Santa (79 anos) e Seu Erotides (85 anos), de Dona Lia (79 anos) e Seu João
Franca (84 anos). São famílias que contam com a aposentadoria dos velhos como parte
importante, quando não integral, para a subsistência. Dona Santa chamou a atenção para um
fator importante que contribui ainda mais para as dificuldades associadas ao valor baixo do
benefício previdenciário: os empréstimos bancários.

Eu sou aposentada, mas eu ganho é mixaria porque eu fiz empréstimo, tô


pagando empréstimo. Peguei porque adoeci, aí precisou. Fiz um empréstimo de
R$7.000,00, aí vai descontando todo mês... sobra pouquinho (DONA SANTA, 79
anos).

Estamos no início do mês e os bancos super movimentados. Me encontrei com vários


velhos do campo nas ruas, provavelmente vieram buscar o dinheiro da aposentadoria.
É impressionante como a presença deles é visível, a cidade se movimenta, os
mercados estão cheios: há claramente dinheiro circulando. Um fato me chamou muita
atenção... Enquanto eu esperava na porta do banco, vi um homem inquieto andando
de um lado para o outro na fila, parava e conversava com cada um dos velhos.
Perguntei a uma aluna que trabalha no banco quem era aquele homem e ela disse: “Ih
professora! Todo início do mês é assim lá na porta... É esse povo oferecendo
empréstimos... eu fico até com pena dos idosos”. Aquilo me incomodou
profundamente, fiquei pensando em que medida eles têm acesso às informações sobre
as taxas de juros, conseguem se planejar financeiramente ou mesmo se sabem o que
estão contratando (Anotações do diário de bordo, 20/03/17).

No trabalho de Jahn (2018), ela analisou a relação entre campesinato, envelhecimento e os


movimentos sociais. Especificamente o objetivo da autora era compreender o papel educativo
dos movimentos sociais em relação à vida dos velhos camponeses, incluindo as questões
250

financeiras. Interessante observar que os achados da pesquisa apontam justamente para o baixo
nível de conhecimento (e entendimento) dos contratos de crédito consignado não apenas pelos
idosos, mas também pelos próprios líderes dos movimentos. Em consonância com os temores
que me incomodaram ao perceber a cena do homem na fila do banco em Araçuaí, a autora
identificou na pesquisa o desconhecimento dos velhos sobre aspectos do contrato como a taxa
de juros praticada, além da contratação de pessoas das comunidades para atuar como agentes
de venda, uma vez que a confiança apareceu como fator decisivo para a aquisição do serviço
de crédito. Ações de má fé por parte das operadoras financeiras também foram identificadas na
pesquisa, configurando situações de violência muitas vezes despercebidas pelas vítimas.
Embora não tenhamos aprofundado nessa questão, foi algo que emergiu na produção dos dados,
algo que não podemos desconsiderar.

Ainda em termos de violência sofrida pelos velhos relacionadas ao benefício previdenciário, é


importante ressaltar as práticas realizadas dentro do próprio âmbito familiar descritas por
representantes do poder público.

Porque muitas vezes o idoso, alguns filhos, parentes, ainda tem esse idoso dentro de
casa por questão financeira porque o idoso é aposentado. Muitas vezes é ele quem
mantem a casa... Ele mantém, mas não tem esse espaço nessa casa. [...] A gente
atende alguns casos, tem um senhor mesmo que tem 16 filhos... É um idoso que
quando chegou numa situação que ele passou por uma questão de saúde, aí de repente
os 16 filhos já não serviam para cuidar porque cada um tem uma obrigação, não pode.
Mas quando ele estava gozando de plena saúde ele podia ficar porque ele mantinha a
casa [...] é uma violência contra o idoso” (PODER PÚBLICO 2).

A violência de uso financeiro é a que mais acontece, no sentido assim, de usar


mesmo esse dinheiro aí e muitas vezes privar esse idoso de uma alimentação
adequada, de um medicamento que ele precisa comprar (PODER PÚBLICO 2).

[...] Às vezes esse idoso ele ainda é a renda da família, tem pessoas jovens adultos que
eu vou falar uma palavra feia aqui – escoram – no idoso. Porque o idoso, ele
aposentou, ele tem sua renda, mas ele acaba sustentando ainda os filhos, os netos, os
bisnetos, então às vezes existe até uma exploração mesmo (PODER PÚBLICO 3).

No que tange aos casos de violência contra os velhos, os representantes do poder público
relataram que tais casos podem chegar ao conhecimento do Estado por várias formas, sendo a
maior parte deles identificados pelas equipes do CRAS volante e das UBS, uma vez que são
serviços mais próximos da população. Foi-nos relatado que esses casos de violação pertencem
ao escopo de atuação do CREAS que, ao ser notificado da situação, pode atuar por meio de
ações mais brandas, como orientação e conscientização dos envolvidos, até a realização de
intervenções mais drásticas em que há a mudança do responsável pelo idoso, ou mesmo o
251

encaminhamento para a aplicação de medidas legais de garantia de direitos (processos,


penalidades).

A questão da violência patrimonial acontece também porque, isso não é só em


Araçuaí, em nosso país todo, não é? Principalmente tem épocas em que a economia
não anda lá muito bem, mas os benefícios previdenciários continuam sendo pagos,
então normalmente o idoso ali tem uma aposentadoria, às vezes uma pensão... aí a
gente depara muito com a situação de uma família toda vivendo com aqueles
benefícios do idoso, entendeu? [...] Em certas situações pode configurar até a
violência patrimonial mesmo, e em outras não, a gente vê ali uma solidariedade
de um familiar colaborando com o outro, porque o desemprego é muito nítido
aqui [...]” (PODER PÚBLICO 1).

Nesse contexto, é necessário destacar que essas situações de violência não emergiram de forma
direta nas narrativas dos velhos com quem conversamos enquanto percepções negativas de
exploração familiar. Ouvimos dos velhos sobre situações em que os filhos, em momentos de
dificuldades, recorrem a eles, o que é exemplificado pela fala de Dona Lia (79 anos).

Nós num depende deles não. Tá mais fácil quando um tá numa situação difícil, a
gente ajudar eles. Quando a gente pode... porque eu tem um filho mesmo que... Ele
foi pro Mato Grosso e ele tava lá numa situação... Ficou desempregado, aí nós
queremos que ele viesse pra cá, aí eu mais minha outra filha, nós ajudamos pra ele
vim pra cidade.

Como ressaltado no trecho anterior de um representante do poder público, essas situações


podem se caracterizar como práticas de solidariedade familiar. Não podemos deixar de
sinalizar, entretanto, a complexidade que marca essa questão de definir o que se configura ou
não como violência patrimonial no âmbito da família; mais que isso, a delimitação sobre o papel
do poder público, em especial de equipamentos como o CRAS e o CREAS, na definição sobre
a necessidade de intervenção. Embora não seja esse o escopo da pesquisa, a leitura das múltiplas
narrativas abre questionamentos sobre quais são os limites entre as práticas de solidariedade
familiar e a violência patrimonial. De forma ainda mais específica, leva-nos a pensar sobre a
responsabilidade dos profissionais que atuam nesses equipamentos e as limitações que
encontram ao tomar a decisão de intervir (ou recomendar intervenção). Em termos de riscos,
percebemos o quão prejudicial e intransigente pode ser caso essa tomada de decisão se paute
exclusivamente em perspectivas individuais – e até mesmo morais – dos profissionais, não
apenas em função de suas particularidades, mas pelo distanciamento existente entre os serviços
e a população rural nesse território, algo que sinalizamos anteriormente.
252

Presenciamos outras questões relacionadas à violência contra os velhos que nos chamaram
bastante atenção. Ainda no início da pesquisa, nas idas ao mercado municipal, deparei-me com
duas situações relatadas na íntegra no diário de bordo.

Hoje passei o dia novamente no mercado. Foi um dia produtivo, conversei muito com
os membros mais antigos que ainda comercializam produtos na área do armazém.
Como é uma segunda-feira, encontrei pouco velhos que ainda permanecem no campo,
embora a maioria tenha certamente nascido e vivido lá por muito tempo. [...] Depois
de horas conversando com o Seu Antônio, passei por outros armazéns... chegando em
um deles, uma cena prendeu meu olhar: vi uma senhora que me parecia vinda do
campo, com o lenço na cabeça e acompanhada de seus familiares, eles escolhiam
caixas de biscoitos, farinha e outros produtos, em grande volume. Tudo ia sendo
rapidamente organizado pela dona da pequena mercearia que, depois de atendê-la, ao
conversar comigo, disse que a maior parte dos seus clientes são pessoas do campo,
que todos os meses vão buscar seus produtos e que eles são “clientes bons, fiéis,
pagam direitinho”. Continuamos a conversar, e logo uma terceira pessoa chegou e
disse: “Essa mulher aqui é boa demais, ela ajuda muita gente!”. Continuamos a
conversar, e essa mesma pessoa disse que essa ajuda realizada pela dona da mercearia
consiste em auxiliar várias velhos e velhas do campo, a maior parte deles sem estudo,
a conseguirem o acesso ao benefício previdenciário. Ela confirmou: “Ajudo mesmo!
Vou com eles no sindicato, falo com advogado, o que for preciso”. Depois de ouvi-la,
perguntei: Esses velhos devem agradecer muito a senhora... eles são seus clientes? Ela
logo respondeu: “Claro, uai! Eu ajudo eles!” (Anotações do diário de bordo,
20/03/2017).

Hoje passei a tarde no mercado com o Seu Antônio, ele me disse que está muito doente
e que tem ido ao hospital com frequência para trocar o curativo da ferida nas pernas.
Perguntei se ele não preferia ficar em casa por causa da dor e ele disse que não, que
ali no mercado “é muito tranquilo”. [...] Conversando sobre o pessoal do campo, ele
me disse que eles são os maiores compradores da área do armazém no mercado,
compram farinha a granel, arroz e outros itens como de higiene pessoal e de limpeza.
Observando os produtos, vejo poucas marcas e opções, com preços mais elevados do
que os encontrados nos supermercados da cidade. Isso me levou a questioná-lo sobre
o porquê de eles preferirem comprar no mercado, mesmo com preços mais elevados.
Seu Antônio falou da tradição, do gosto pelo mercado, da amizade e da facilidade de
encontrar tudo no mesmo lugar. Ele falou também sobre uma situação que me deixou
bastante chocada: ele me disse ser comum a prática de que os velhos façam suas
compras e “vão anotando”, e que o comerciante fica com o cartão do banco do velho
e sua senha, para que faça o saque do valor da aposentadoria no dia do pagamento.
Tentei disfarçar o quanto essa situação me pareceu absurda. Ele me disse não gostar
dessa prática porque tem muito idoso “mal caráter” que deixa o cartão com a senha,
mas vai até o banco e cancela ou troca a senha, deixando-os no prejuízo (Anotações
do diário de bordo, 12/04/2017).

Essas duas situações de violência contra esses velhos são viabilizadas pelo desconhecimento e
pela vulnerabilidade que os cerca. Assim como Jahn (2018) sinalizou sobre a má fé em práticas
realizadas pelas instituições financeiras no caso dos empréstimos consignados, identificamos
nessas situações aspectos similares, ainda que o sentimento e o discurso das pessoas que as
pratiquem sinalizem intenções como a de ajudar esses velhos, uma vez que também vieram do
campo e conhecem suas dificuldades. Independentemente da intencionalidade, o que
argumentamos é que essas situações são viabilizadas por um conjunto de características que,
253

tensionadas, acabam por torná-las possíveis. Falta de informação, falta de apoio por parte do
poder público, dificuldades de acesso92, enfim, tornam-se facilitadores desses episódios de
violência. Nesse sentido, a aposentadoria que ao mesmo tempo traz a independência e a
possibilidade de que esses velhos sobrevivam, torna-os alvos de circunstâncias de abuso e
exploração.

Outra questão importante e que emerge como parte dessa linha da aposentadoria rural é o
entendimento de que ela tem diferenças importantes em relação à aposentadoria dos
trabalhadores urbanos93. É necessário destacar que o trabalhador rural é considerado, pela lei
da previdência, como um segurado especial na medida em que, ao contrário do trabalhador
urbano, não realizou a contribuição previdenciária para o INSS. Nesse sentido, desde que tenha
como comprovar o exercício de pelo menos 15 anos como trabalhador rural em atividades que
se caracterizem como de economia familiar e que, esteja, no momento da solicitação exercendo
esse tipo de atividade, o(a) trabalhador(a) pode solicitar o enquadramento enquanto segurados
especiais. Uma especificidade da aposentadoria rural remete à idade mínima para o acesso ao
benefício: 55 anos para as mulheres e 60 anos para os homens, cinco anos a menos que para os
trabalhadores urbanos. A falta de contribuição e a idade mínima inferior geram debates em
tornos da legitimidade desses considerados privilégios dos segurados especiais. Sobre essa
questão, as narrativas giram em torno de justificativas pautadas nas diferenças quanto à própria
natureza do trabalho.

Porque o trabalhador rural faz uma diferença, né? Vamos colocar assim: você ganha
o seu dinheiro, Raquel, sentada em cima duma cadeira! Você vai me desculpá o
que eu tô falando... Eu ganho o meu dinheiro é no sol e na chuva, em cima das
perna. Agora, tem diferença ou num tem?!? Todo o dia eu levanto, de sol a sol, eu
levanto, vou lá em cima, tiro o leite, torno a voltá... Vai indo as perna acaba... quando
um lavrador chega nos sessenta ano... o trabalho é pesado demais (SEU MILTON
GRANJA, 67 anos).

Até a jornada de trabalho no campo é mais estendida, ele acorda muito cedo, dorme
muito cedo também, mas ele já começa a trabalhar de madrugada e até o final do dia,
até o entardecer quando o sol se põe. Então tem essa jornada pesada e tem a
questão da exposição mesmo, a questão do calor, exposição ao sol escaldante,
principalmente o da nossa região, então assim há uma insalubridade no trabalho
rural que nada mais justo que essa redução de 5 anos mais cedo que o cidadão

92
A falta de acesso, nesse caso, remete a duas situações diferentes. Por um lado, podemos falar sobre a dificuldade
de acesso ao benefício em função da falta de documentação e de uma série de requisitos legais exigidos que por
vezes não podem ser cumpridos ou comprovados por esses velhos. Por outro lado, há dificuldades de acesso
relacionadas ao transporte até as comunidades. Frente a tal empecilho, essas pequenas mercearias facilitam
entregando as mercadorias ou ajudando no transporte e acomodação nos ônibus ou táxis. Nesse sentido, as
dificuldades de transporte por vezes tornam a escolha por esses comerciantes como a mais cômoda e viável.
93
Artigo 48 da Lei nº 8.213/1991.
254

da zona urbana. No meu ponto de vista, nada mais injusto que mexer nisso, aí
realmente é uma falta de sensibilidade (PODER PÚBLICO 1).

Mais uma vez são as marcas do trabalho rural, suas características e inscrições nos próprios
corpos dos trabalhadores os elementos convocados para explicitar essa diferença entre o
trabalhador urbano e rural. Trabalho esse que, acumulado ao longo dos anos, justifica a
necessidade, como coloca o narrador representante do poder público, de que ele seja visto com
“sensibilidade”. Cabe nesse momento resgatar a recente proposta de reforma da previdência
(PEC 287/16) elaborada no governo do Presidente Michel Temer e que tinha inicialmente, entre
as suas pautas, a modificação da idade mínima para o acesso à aposentadoria pelos
trabalhadores rurais. Ainda sem desdobramentos de caráter mais definitivo até o momento de
fechamento dessa tese, o fato é que essas propostas colocam em jogo muito mais do que
alterações legais, mas estão associadas a vidas, histórias e contextos particulares que precisam
ser considerados.

Essas questões de ordem macropolítica são de extrema relevância na medida em que se inserem
nesse rizoma da velhice rural e trazem impactos nos modos de ser possíveis desses sujeitos. Se
até o momento discutimos as experiências dos velhos advindas do acesso ao benefício
previdenciário e os desdobramentos em termos do exercício de uma liberdade para o trabalho
que lhes é orgânico, inerente à vida e fonte de vida, as situações de violência assim como
propostas de mudanças como essas atuam como linhas duras, estratificando e impedindo, por
vezes, a circulação da vida. Uma alteração como, por exemplo, na idade mínima de acesso à
aposentadoria rural significa, na prática, acrescentar a obrigatoriedade de somar ainda mais
anos desse trabalho braçal e desgastante. Especificamente no território em questão, significa
acrescentar anos de um convívio com a seca que dificulta a sobrevivência e que não tem, em
contrapartida, o desenvolvimento de políticas outras que possam viabilizar experiências
diferentes das que encontramos, de luta, de fome e de pobreza.

5.1.4 Linha “O mercado é bão!”.

Relacionada às demais temáticas associadas ao trabalho no campo que emergiram nas narrativas
dos velhos, retomamos o ponto a partir do qual fizemos os primeiros movimentos dessa
cartografia: o mercado municipal. Como era de se esperar, essa temática aparece também pelo
fato de ter sido um dos critérios que utilizamos para encontrar os velhos participantes da
255

pesquisa, afinal, queríamos que eles tivessem tido em comum experiências nesse espaço que é
um marco do trabalho do campo na cidade. Para além dessa intencionalidade, identificamos o
mercado como força na medida em que fazer parte dele, vender seus produtos, encontrar com
amigos e ser reconhecido como alguém que produz alimentos livres de agrotóxico é algo que
mobiliza e faz parte da história de cada um desses sujeitos.

O mercado municipal de Araçuaí é um espaço localizado no centro urbano, ocupando uma área
ampla e de destaque. O funcionamento é diário e sua estrutura se subdivide entre quatro grandes
áreas: a externa, em que estão localizadas as barracas de verduras e frutas, doces e outros artigos
como mel, queijos e fumo; a área do empório onde se localizam boxes em que estão instaladas
minimercearias; a área do açougue e outra área mais ao fundo onde estão localizados bares e
restaurantes. No apêndice D, é possível ver em detalhes o mapa da estrutura do mercado. Nos
sábados pela manhã, no próprio mercado e nos seus arredores, acontece a feira, momento em
que o número de pessoas, tanto consumidores quanto vendedores, aumenta significativamente.
São nos sábados pela manhã que muitos moradores da zona rural vão para a feira vender seus
produtos, sendo o dia de maior movimento.

Fotografia 19 - Mercado Municipal de Araçuaí, aos sábados, dia de feira livre

Foto: Jeane Doneiro, 2017.

Se você chegar lá agora, tem um monte de idoso sentado, principalmente ali no


fundo, naquele pedaço de dentro, ali... alguns que vendem doce bem antigos, as
256

mulheres. Há quantos anos eles vão ali vender, trabalhar ali e não saem porque
ali faz parte da história, da vida deles e o mercado de Araçuaí é muito forte, não
só economicamente, mas forte num todo. É um ponto de encontro... se você olhar,
de relação social (PODER PÚBLICO 2).

Alguns vêm para vender, outros vêm mesmo para passear, fazer alguma coisa assim,
ou mesmo para fazer compra, mais tem muitos (idosos)! (PODER PÚBLICO 2).

Muitos vêm na feira vender, é tanto que elas gostam de marcar preventivo, porque o
preventivo dessas áreas todas eu não faço na escola [...] então eu atendo elas aqui,
elas adoram marcar na sexta porque já vêm vender na sexta. Eu vejo no sábado
também muita gente.... (PODER PÚBLICO 3).

No mercado, é vendida uma variedade enorme de produtos: verduras, legumes e frutas, carnes,
ovos e peixes, a doces, temperos, fumo, artesanato, produtos industrializados... como narra Seu
Milton Granja (67 anos), “aquilo é bonito demais na feira. Aquela fartura. Tem coisa mais
bonita que uma fartura? Num tem!”. Essa fartura lembrada pelo Seu Milton Granja é a razão
pela qual o mercado se tornou ponto turístico da cidade e região, título compartilhado pelos
moradores e um grande motivo de orgulho. Nas anotações do diário de bordo, registramos a
experiência de andar pelo mercado.

Ao chegar na esquina, é possível observar uma grande estrutura antiga, imponente por
ocupar o espaço de um quarteirão. O local é privilegiado: já é possível vê-lo quando
nos aproximamos da Arara (Estátua do símbolo municipal) que dá as boas-vindas para
aqueles que chegam à cidade. Localizado ao lado da rodoviária, é passagem
obrigatória para aqueles que chegam e que partem: É nosso cartão postal. O
burburinho revela a tônica do mercado - vida! Vida que se traduz nos perfumes dos
temperos, nas cores intensas dos alimentos e artesanatos e nos movimentos de toda a
gente. Em cada canto, um causo94. Ao subir pela escada, logo é possível ver o lado de
fora, onde são vendidas as verduras, hortaliças, queijos, doces e condimentos. Nas
bancas simples, de madeira, encontram-se produtos diversos, gente diversa. A
sensação é boa: que cheiro gostoso! Cheiro de frescor. As barracas dispostas nesse
amplo espaço oferecem uma grande variedade de produtos: são verduras, legumes,
temperos, queijos, cachaças e doces. Para quem chega, o espaço parece
desorganizado, mas a menina logo avisa: Aqui cada um tem seu lugar. De longe,
podemos ouvir o grito da feirante: Oh, o produto freguês! Olha a alface, gente! É para
acabar! Os companheiros de feira dão risadas... Entre uma propaganda e outra ela
come o pastel, vendido na própria feira. Ao passar pelos corredores, cada feirante
oferece seu produto destacando suas qualidades: Fresquinho! Docinho! Muitas
barracas vendem os mesmos produtos, e a palavra de ordem é negociar. O preço
respeita a mais antiga das leis de mercado - a lei da oferta e da demanda. Se tem muito,
a gente vende barato, se tem pouco, a gente aumenta o preço. A ‘modernidade’ já
chegou para algumas barracas: Aceitamos crédito e débito! O primeiro corredor em
direção à parte fechada do mercado nos leva ao chamado empório. De um lado, vemos
uma série de boxes - alguns abertos, mas a maioria fechada. Nos espaços abertos,
vemos pequenas lanchonetes, venda de produtos como ração, feijão, arroz e farinha a
granel, dentre outros. No lado oposto, os boxes estão dispostos em dois grandes
corredores, com comércio dos dois lados. Aqui o movimento e a variedade são

94
Esse primeiro trecho do diário foi publicado na seção de capa da revista Farol – Revista de Estudos
Organizacionais e Sociedade –, acompanhando uma foto do mercado municipal de Araçuaí. Ver: Barreto, R. O. &
Doneiro, J. S. (2018). Pro mercado eu vou! Farol – Revista de Estudos Organizacionais e Sociedade, 5 (13), 473-
476.
257

maiores, alguns comerciantes montaram minimercearias com produtos diversos de


higiene pessoal, alimentícios e de limpeza doméstica. Ali estão um dos mais antigos
comerciantes da feira... São 30, 40 anos de trabalho.

Sobre esse ambiente envolvente, múltiplo e colorido, as narrativas tanto dos velhos quanto dos
demais participantes da pesquisa evocam a dimensão de sociabilidade desse espaço, dos
encontros que nele acontecem cotidianamente.

Gosto de vim pra feira porque aqui a gente encontra, a gente faz um negucim, pega
um trocadinho e se encontra... Faz amizade também (SEU ARLINDO, 70 anos).

É tudo é amigo demais. Ali dentro daquele mercado, vixe! Ali eu tem amigo demais
ali. Quase toda... todo princípio de mês, eu vou lá. Vou lá panhar o... cascái (SEU
JOÃO FRANCA, 84 anos).

Você vai no mercado, você encontra Araçuaí em peso. Então é isso. Vai a história...
é um ponto que quem vai ali consegue fazer sua feira em meia hora, quarenta minutos,
mas você passa uma manhã lá se você quiser. É um ponto de encontro (PODER
PÚBLICO 2).

Na sexta e no sábado, a presença da população da zona rural é muito intensa lá nesses


dias. Que é o dia que eles trazem as suas mercadorias pra poder comercializar no
mercado. Então é um ponto de encontro mesmo, desses idosos de várias
comunidades. E aí vem e encontra com esses que estão aqui na cidade, realmente é
um espaço que ao mesmo tempo é de trabalho e de lazer (PODER PÚBLICO 2).

Sobre a importância do mercado para os velhos participantes da pesquisa, identificamos em


suas narrativas que a maior parte deles ainda frequenta o mercado e leva mercadorias para a
comercialização, quando tem alguma sobra. Mesmo entre aqueles que não o fazem mais com
frequência, até mesmo por dificuldades de locomoção, suas histórias mostram uma relação
muito próxima com o lugar.

Lá eu produz é... coisa de lavrador mesmo. Feijão que a gente planta colhe um
poquinho, um poquinho de milho também, colhe um poquinho, né. Os anos tá muito
ruim, não tá dando mais, mas tá dando pra viver, laranja... uns dois pé de laranja que
eu tem, pé de banana é o que a gente produz. E o que sobra que a gente traz pra
feira, do consumo que sobra a gente traz cá pra feira pra ajudar na despesa da
casa né... (SEU ARLINDO, 70 anos).

Eu frequento o mercado, não é diretamente porque tem uns espaços no ano que a gente
não tem nada para trazer, né, mas quando a gente tem lá a gente traz um pouco de
feijão verde, a gente traz um maxixe, a gente traz um quiabo, a gente traz uma
folha de horta que sobra... Vixe! Tem hora que eu saio aqui no sábado que eu vou
só para bater papo mais os conhecidos. Mesmo que eu não tenha nada pra vender
ou pra comprar na feira, mas eu vou pra contar causo mais os amigo (SEU
ANTÔNIO DA VELHA, 67 anos).

Toda vida eu vou feira, eu fazia coisa, eu fazia carga de banana num burro, levava
montava ia pra cidade mais Lica, nós sai daqui 4 horas de madrugada com o burro
cheio de banana pra vender na cidade, ela levava rapadura, e eu levava banana, aí uma
258

ajudava a outra. Meu marido não vai de jeito nenhum, porque ele não gosta. Ah! Eu
adoro! Se eu guentasse todo dia eu ia (DONA SANTA, 79 anos).

Depois que meu marido morreu, comecei a trabalhá com barro pra mim sobreviver,
né? Pra mim criar meus filho. [...] Levava, fazia carqueiro de plantar planta, sabe?
Nós levava pra cidade pra vender pra Araçuaí. Na feira, sabe? Era ali que nós
ficava vendendo, onde que era o Mercado véio... num era aquele Mercado que
tem ali não, que tem hoje não. Era o Mercado véio. Nós vendia do lado de fora.
Nós levava na cabeça, que nós quemava as vazia, os carqueiro, no forno, né, na lenha.
Esfriava, nós tirava, arrumava no saco, e as vazia, nós levava na cabeça. Nós ia a pé.
Negócio de quatro hora, nós tava panhando os saco de carqueiro e fazendo a rudia e
indo pra cidade, pro mercado vender. Uai, nós saía... nós saía cedo, porque daqui a
Araçuaí é uma puxada boa, né... (pensativa). Quanto mais a pé. Nós saia... quando a
gente sentia que tava muito pesado, a gente descansava um pouco na estrada, né, e
tornava colocar na cabeça e romper, né. Quando era assim, na base de sete hora, nós
tava chegando lá. Era uma turma. Tudo junto. Chegava lá, punha tudo nas carreira.
Tudo junto. Vendendo tudo junto, né, cada qual vendia o seu. Ganhava um dinherim
pra comer (ela abre um sorriso). [...] Nós insacava tudo dentro do saco, arrumava os
carqueiro tudo dentro do saco... Nós. Todo mundo junto. Até a lua alumiar... nós
ia tudo junto. Nessa época podia andar, né, num tinha nada. Podia ir tranquilo e
voltar tranquilo... era uma festa (DONA LURUCA, 78 anos).

Dona Luruca lembra emocionada dessa época em que, como ela diz, “mexia com o barro”. A
viagem para vender os vasos na feira, realizada junto às companheiras da comunidade, era feita
todos os finais de semana, e, apesar de todo o sofrimento e da luta pela sobrevivência em função
dos baixos rendimentos da atividade, ela diz em vários momentos ser algo de que sente
saudades. Ela é uma dentre os velhos narradores que não mais frequenta a feira com frequência,
uma vez que seus filhos se ocupam da realização das compras para a casa. Seus laços de
amizade se mantêm na comunidade, onde passa longas horas do seu dia conversando e orando,
como ela mesma nos contou. Encontramos Dona Luruca em eventos realizados pelo CRAS na
comunidade, mostrando-se ativa e participativa. Assim como no caso dela, ouvimos de Seu
Milton (67 anos), de Dona Isaura (78 anos), de Seu Zezé das Tesouras (77 anos), de Seu Antônio
da Velha (67 anos) histórias que entrelaçam suas vidas ao mercado, em que se repetem as
dificuldades no transporte entre a comunidade e a cidade, os baixos rendimentos do que é
vendido e, ao mesmo tempo, boas lembranças de fazer parte desse espaço e o orgulho atrelado
ao que produziam e/ou ainda produzem. Seu Emílio (79 anos) conta sobre as dificuldades que
enfrentava com o filho para trazer o fumo – produto tradicional da comunidade de Tesouras -
para ser vendido no mercado.

Daqui lá no Mercado dá 32 quilômetro. E eu mais esse menino aqui nós fazia o


seguinte: nós vendia pra esse homem lá em Araçuaí às vezes 10, 20, 30, 40 arroba de
fumo e isso era tudo carregado na carcunda de burro. Eu panhava dois burro e
carregava aqui, outro panhava dois, saia daqui uma hora da madrugada, porque o véio
era um véio besta, sistemático, queria que a gente chegasse lá de noite pra guardar
mercadoria na casa dele sem ninguém ver. Com medo de fiscal, né, porque tinha
fiscalização. Nós ia, passava a noite intirinha... Ficava lá o dia fazendo um
259

movimento, arrumando. Quando as luz acendia, nós vortava pra trás, chegava
aqui uma hora da madrugada. Toda semana, toda semana, toda semana montando
o cavalo e tocando dois burro de carga, né. Vô falar com cê: nós saia da rua ali de
Araçuaí e as luz acesa, a gente vendo a sombra do animal assim, ó, e dois burro
tocando e vinha, chegava aqui uma hora da madrugada. E estrada ruim também. Num
era estrada... nem pode comparar com agora (SEU EMÍLIO, 79 anos).

Conversando com representantes do poder público, fica evidente o discurso de que o mercado
municipal é um espaço público criado para que os pequenos produtores rurais da região possam
vender seus produtos. Recentemente, presenciamos debates em torno dessa questão, uma vez
que comerciantes de outras regiões (na maior parte deles atravessadores) passaram a parar
caminhões nas proximidades do mercado, geralmente nas sextas-feiras, com grandes volumes
de produtos como frutas e verduras. Ao vender esses produtos por preços mais baixos, tal
comércio passou a prejudicar as vendas dos pequenos produtores, principalmente aqueles que
somente vendem os seus produtos na feira aos sábados pela manhã. Diante desse cenário e da
reflexão sobre os objetivos da existência desse espaço público, um vereador do município
propôs um projeto de lei para restringir a participação desses membros externos, o que gerou
certa polêmica entre os moradores. Ainda que muitos apoiem os pequenos produtores, o fato de
os atravessadores conseguirem vender produtos a preços mais baixos tornou-se uma vantagem
aos olhos da população. Tanto a população quanto os feirantes estão fazendo abaixo-assinados
defendendo seus pontos de vista. Até o momento não houve uma decisão definitiva sobre a
questão95.

Como nós observamos nas frequentes visitas ao mercado nos dias de semana e à feira aos
sábados, de fato é perceptível a presença de velhos nas barracas e circulando no espaço.
Conversando com algumas pessoas, identificamos que a atividade de vender produtos no
mercado também se configura como uma atividade tradicional familiar, passada entre gerações.
Sendo assim, mesmo as barracas comandadas por jovens têm em sua história a marca dos
membros da família que em sua maior parte são oriundos do campo. No final de semana,
entretanto, com o aumento significativo do número de comerciantes em função da vinda do
pessoal do campo, é que vimos muitos velhos que ainda vivem na zona rural e que se colocam
naquele território com pequenos volumes de produtos, velhos que chegam ainda de madrugada
e se acomodam em locais que, embora sem demarcação visível, são milimetricamente

95
Na reportagem “Vereadores querem acabar com a feirinha em Araçuaí. Projeto divide opiniões”, publicada na
Gazeta de Araçuaí em 08/06/2017 traz maiores detalhes sobre essa problemática. Disponível em:
www.gazetadearacuai.com.br/noticia/6060/vereadores_querem_acabar_com_feirinha_em_aracuai__projeto_divi
de_opinioes_/.
260

divididos. Há claramente uma dinâmica organizacional do mercado, com relações de poder


traduzidas nos espaços e tamanhos das barracas, nas discussões sobre quem pode ou não vender
seus produtos, dinâmica na qual esses velhos se inserem, resistem e também por vezes se
resignam.

Sobre essa questão organizacional do mercado, Seu Antônio explica em detalhes a problemática
da concorrência e os impactos negativos da entrada do pessoal externo para a venda de produtos.

[...] A gente tem muito concorrente... Se fosse um só, os da região, aí a gente tinha
mais lucro, né, porque, por exemplo, vou tirar experiência por mim: eu trabalho com
plantio de abacaxi... é, por exemplo, eu começo vender o abacaxi vendendo uma
unidade por dois e cinquenta. Quando chega do meio da safra pro fim que,
quando o Mercado enche, acaba vendendo cada um por até vinte centavos.
Porque também vem os abacaxi de Berilo, né, quando a gente chega, é caminhão mais
caminhão, caminhonete mais caminhonete, tá tudo cheio. Então o que faz mais a gente
nem puder expandir muito essa produção pra... pensando num negócio mesmo, é
porque é os concorrente que a gente tem, né. O pequi. Pequi, por exemplo, pequi
vem de Montes Claros, vem de Taiobeiras, né, quando aqueles de lá sempre
chega primeiro, lá vai vindo, vai vindo, vai vindo, quando os daqui chega, muitas
pessoas fala: “Ah, já tô enjoado de pequi. Já comi pequi demais” (SEU ANTÔNIO
DA VELHA, 67 anos).

Assim como em relação ao abacaxi e ao pequi, o que identificamos é que essa concorrência, de
fato, traz perdas financeiras para os velhos que na maior parte das vezes têm pouco volume para
a venda. Conversando com consumidores que frequentam o espaço por vezes ouvimos que há
um reconhecimento de que os produtos dos pequenos produtores da região são de melhor
qualidade, por não serem cultivados com agrotóxicos. Uma consumidora disse que o que a faz
comprar esses produtos, mesmo quando os caminhões de comerciantes de outras regiões estão
na feira, é que “[...] aqui nós sabemos de onde o produto vem, como ele é cuidado... o povo
daqui vende a mesma verdura e mesma fruta que a família dele come” (Anotações do diário de
bordo, 08/04/2017). Entretanto, como colocamos anteriormente sobre o projeto de lei proposto
pelo vereador da cidade, grande parte da população – até mesmo em função das dificuldades
socioeconômicas características da região – acaba optando pelo produto mais barato e acessível.

Dentre os velhos com quem conversamos, apenas Dona Íris (59 anos) e Seu Milton Granja (67
anos) tentaram, diante dessa realidade encontrada no mercado, buscar outras formas de escoar
seu produto: o queijo. Quando das visitas a sua casa, vimos em detalhes o processo produtivo
artesanal desse produto, que hoje é em sua maior parte realizado por Dona Íris. Seu Milton narra
que percebeu a receptividade de seus queijos para além do mercado e passou então a vendê-los
261

para fora de Araçuaí. Ele destaca como essa opção foi mais interessante em termos de resultados
econômicos e problematiza que muitos outros produtores da região poderiam fazer o mesmo.
Nesse contexto, ele fala sobre o desejo de que fossem formadas cooperativas na região, pois
acredita que em conjunto seria ainda mais fácil realizar vendas para fora da cidade. Entretanto,
quando perguntamos sobre o porquê dessa alternativa não se realizar, ele demonstra acreditar
na falta de mobilização das pessoas, falta de interesse e mesmo desconhecimento.

A sensação que experienciamos é que a feira se coloca como um espaço de encontro entre o
campo e a cidade, um espaço não apenas de comercialização, mas de convivência, de
sociabilidade e, porque não dizer, de muitas trocas (materiais, simbólicas e afetivas). A frase de
Seu João Franca (84 anos), “o mercado é bão!”, ecoou fortemente nas narrativas dos demais
participantes da pesquisa. É nesse mesmo microterritório que se evidenciam relações de poder
e por vezes de opressão, em que o mesmo trabalhador que, em termos discursivo, é a razão de
existência do mercado, encontra espaços demarcados, barracas grandes e atravessadores que
tornam seus produtos – sempre em volumes comparativamente menores – pouco competitivos.
Ali nesse mesmo lugar de amizade e convivência também identificam o olhar de “vergonha”
dos jovens e até mesmo experienciam o fenômeno da invisibilidade pública sobre o qual já
comentamos. Nesse ambiente que é, antes de tudo, organizacional, as tensões de forças são
evidentes e se colocam como linhas que também se inserem na composição do rizoma velhice
rural nesse território.

De forma sintética, vimos até esse momento as linhas associadas ao trabalho que emergiram
nas narrativas, observações e experiências em nossas andanças cartográficas. Identificamos que
o trabalho é inerente à vida e também significa fonte de vida para esses sujeitos, um trabalho
orgânico realizado cotidianamente junto à família e à comunidade. Um trabalho que, ao mesmo
tempo em que traz orgulho e dignidade, é pesado, desgastante e adoecedor. Um trabalho voltado
prioritariamente para a subsistência, sem a garantia de direitos e vulneráveis às condições
ambientais (quase sempre desfavoráveis). Associado a isso, identificamos a força da
aposentadoria na vida desses sujeitos como um fenômeno que os permite ser livres para
continuar a realizar seu trabalho no campo, sem a sombra da fome e da pobreza que os
assombrou ao longo de suas histórias de vida. Identificamos também que, além da justificativa
do prazer de trabalhar, continuar também se torna uma opção mediante os baixos valores da
aposentaria, a qual por vezes é insuficiente para cobrir todos os gastos com medicamentos, ou
mesmo para sustentar a família que – por inúmeras razões – passa também a depender desse
262

benefício do velho. Por fim, identificamos a importância do mercado na história desses velhos
como um espaço em que, além de vender seus produtos, constitui-se um lugar de encontro, de
amizade e diversão. O mesmo mercado que pode ser visto sob uma perspectiva organizacional
e que, portanto, é permeado por relações de poder que ora atuam beneficiando esses sujeitos
velhos, ora os oprime e marginaliza. De um modo geral, são linhas que se agenciam,
movimentando-se nesse processo de produção de modos de existência da velhice naquele
território.

5.2 Reflexões sobre o trabalho rural no contexto da agricultura familiar no Brasil

Nessa seção em especial, pensamos ser necessário levantar96 outras questões que permeiam o
trabalho rural e que dizem respeito a uma leitura que se situa no âmbito da macropolítica.
Afinal, compreendemos que estes são fatores que também atuam na definição dos modos de
vida possíveis no território, ou mesmo no delineamento dos modos pelos quais a vida pode (ou
não) circular nesse espaço. Sendo assim, pensamos que, para compreender o trabalho rural no
Brasil, é preciso pontuar o histórico da política agrária no país e a expressiva concentração
fundiária, os quais se traduzem em um cenário de prevalência do agronegócio sobre as pequenas
propriedades rurais de base familiar.

Sem nenhuma pretensão de esgotar o assunto, ou mesmo de dar conta de sua complexidade,
nosso objetivo aqui é o de situar no nível mais amplo a discussão sobre a questão agrária
brasileira. Se pensarmos historicamente, esse processo de concentração fundiária no país remete
ao período colonial, quando da definição do sistema de sesmarias trazido ao país pelos
portugueses. Podemos compreender que o modelo colonial brasileiro se constituiu a partir desse
cenário, a saber: a existência de grandes propriedades de terra exploradas a partir da mão de
obra escrava em um modelo de monocultura para exportação, o que trouxe consequências
históricas que reverberam na contemporaneidade. Inseridas nessas grandes propriedades, mas
subordinadas a elas, devolvia-se o modelo de produção familiar dedicado à subsistência, uma
vez que a grande produção era dedicada exclusivamente à monocultura da cana-de-açúcar.
Nesse sentido, a produção familiar sempre existiu enquanto algo necessário, mas secundário à
grande produção, como explicita Szmrecsányi (1990, p. 16), “de um modo geral, todavia, as

96
Dizemos levantar porque compreendemos a complexidade que marca cada uma dessas questões não sendo
possível, e nem mesmo desejável, tratá-las em profundidade nesse texto. O objetivo de pontuá-las é trazer para o
contexto da proposta de uma leitura rizomática da velhice rural elementos que se situam também no nível da
macropolítica e que atuam como forças nesse processo de construção de subjetividades.
263

culturas de subsistência nunca deixaram de constituir atividades secundárias e subsidiárias em


relação às grandes lavouras escravistas de exportação”.

Wanderley (2011) chama a atenção para o fato de que essa posição secundária da produção
familiar se manteve ao longo da história do país, tendo sido, portanto, segregada em termos do
desenvolvimento de políticas agrícolas. Nesse sentido, a história dos pequenos produtores
familiares estaria associada a um longo processo de lutas para a conquista de um espaço não
apenas em termos territoriais, mas também sociais. Se até então a posse da terra era restrita às
elites que comandavam as capitanias hereditárias, com a Lei de Terras em 1850, isso passou a
ser feito por meio de aquisição monetária, o que, segundo Martins (1997), nada mais foi do que
um mecanismo perverso encontrado pela elite brasileira, já pressionada para o fim da
escravidão, para manter a estrutura agrária de concentração fundiária e gerar um excedente
populacional à procura de trabalho. Não haveria, nesse sentido, acesso livre à terra, apenas por
meio de pagamento, o que fazia com que a população pobre permanecesse na condição de
desvalidos e não-proprietários. O autor argumenta que esse foi um dos momentos em que o
Brasil teve a oportunidade de realizar uma reforma agrária, mas que, seguindo os interesses da
elite, optou por manter a concentração e garantir um exército de trabalhadores para as grandes
lavouras que, nessa época, dedicavam-se à produção de café.

Com o processo de modernização industrial do país no final do século XIX e início do século
XX, a burguesia industrial demandava a abertura de mercados consumidores, uma vez que o
grande volume de trabalhadores (colonos) não tinha condições de adquirir os produtos
industrializados. As elites industriais pelo mundo atuaram com o objetivo de desfazer esse
modelo de concentração de terras, na medida em que o entendiam como um entrave ao
desenvolvimento capitalista. Nesse sentido, vários movimentos de reforma agrária foram feitos
pelo mundo, como nos Estados Unidos e Japão. Entretanto, no Brasil, esse confronto entre a
elite burguesa industrial e a oligarquia agrária não aconteceu de forma intensa, uma vez que
ainda no início do século XX o café mantinha-se como fonte de riqueza nacional. A
industrialização apenas se inicia de modo mais efetivo no governo de Getúlio Vargas, em 1930,
após os abalos no preço do café e a proposta de implantação de um modelo de substituição das
importações, objetivando estimular a indústria nacional e fortalecer o mercado interno
(MARTINS, 1997).
264

Em um processo de acordo político entre a elite burguesa industrial e as oligarquias agrárias, o


país mantém sua estrutura fundiária e seus modos de produção, apenas diversificando os
produtos, abandonando a monocultura do café e iniciando outras culturas como o arroz, o feijão
e o algodão. Nesse sentido, segundo Sorj (1986, p. 21, grifos nossos):

A situação que se configura a partir de 1930 é o deslocamento dos grandes


proprietários rurais da direção do Estado, visto que tanto as políticas econômicas
quanto o conjunto da estrutura política se centram agora no setor urbano-industrial.
Esse deslocamento, porém, não chega a eliminar os grandes proprietários
fundiários da estrutura política, que permanecem no bloco do poder, mas em
uma posição subordinada. Sua permanência refletir-se-á não só na manutenção da
estrutura fundiária, mas também na não efetivação do emprego da política social e
salarial desenvolvida para o setor urbano industrial no setor rural.

A partir de 1950, iniciou-se um processo de modernização também no campo (conhecida como


modernização conservadora), com estímulos do Estado para a adoção de tecnologias e novos
maquinários nas grandes lavouras. Paralelamente, a pequena produção familiar continua
existindo – e resistindo – mas sem esse apoio governamental. Nesse período, vários
movimentos sociais no campo vão ganhando força de modo a questionar as desigualdades
existentes no meio rural, principalmente decorrentes da concentração fundiária. Tais lutas
encontraram apoio na época do presidente João Goulart, o qual defendia a realização da reforma
para o desenvolvimento do país. Entretanto, com o golpe militar de 1964, apoiado inclusive
pelas elites oligárquicas, esse projeto não se realizou. O que se fez pós-64 foi a ampliação do
projeto de modernização do campo, com a construção de leis e de incentivos para os grandes e
médios proprietários. Surge então, convenientemente, o complexo agroindustrial no país, com
a expansão e modernização do campo e a criação de indústrias especializadas em atender as
demandas desse “novo” e produtivo universo rural. O sistema capitalista de produção se
consolida no campo, com o aumento da mão de obra assalariada trabalhando sob condições
precárias e baixos salários (MARTINS, 1997; MIRALHA, 2006).

Enquanto esse processo de modernização agrícola trouxe resultados produtivos em termos


econômicos, no tange à dimensão social, cultural e ambiental trouxe consequências
devastadoras como o aumento do êxodo rural, ampliou ainda mais a concentração fundiária,
ampliou também as desigualdades regionais tendo em vista esse projeto de modernização
favorecer a região centro-sul do país, danos ao ambiente e à saúde humana com o aumento do
uso de agrotóxicos focados na produtividade, bem como os estímulos a mudanças nos padrões
alimentares da população a partir do aumento do consumo de produtos industrializados.
265

Com o passar dos anos, após o processo de redemocratização do país, mostrou-se novamente a
falta de interesse em realizar mudanças na estrutura agrária brasileira. Em termos jurídicos,
mais e mais legislações foram criadas com a finalidade de dificultar a viabilização dessas
iniciativas e os movimentos sociais que as defendem. A partir dos anos de 1990, ainda no
governo de Fernando Henrique Cardoso, a pauta do Movimento dos Trabalhadores sem-terra
(MST) começa a ganhar mais visibilidade em função da grande capacidade de mobilização
popular naquele momento, o que fez com que o número de famílias assentadas em terras
consideradas improdutivas aumentasse consideravelmente. Entretanto, sem uma política que a
sustentasse, esses números logo começaram a regredir. Martins (1997) critica que, para além
de se pensar no número de famílias assentadas, é preciso analisar as condições para a
continuidade da vida nesses territórios, como o acesso ao crédito, à educação, à saúde, dentre
outros. Nesse momento sócio-histórico e político, essas condições não se desenvolveram.

Mais recentemente, durante os anos em que o Partido dos Trabalhadores (PT) esteve no
comando do país, uma série de ações foram empreendidas no sentido, principalmente, de
combater a pobreza e buscar o desenvolvimento do campo. De acordo com Stédile (2005), entre
as propostas de governo lançadas pelo Presidente Lula nas campanhas de 1989 e 2002, houve
diferenças significativas no que tange à reforma agrária. Enquanto no primeiro momento o
enfoque seria em mudanças na estrutura agrária visando à diminuição da concentração
fundiária, o segundo consistiu em um olhar voltado para a superação da pobreza e para o
desenvolvimento do campo, sendo a questão agrária incorporada dentre os pilares de um
programa mais amplo denominado Fome Zero97.

De uma forma geral, nesse segundo momento, o conjunto de propostas do PT envolvia, a grosso
modo, a realização de desapropriação de terras improdutivas e a criação de um conjunto de
políticas básicas para estruturação de assentamentos. Entretanto, paralelamente a essas
propostas, verificou-se também no governo do PT a manutenção de benefícios e subsídios ao
agronegócio, até mesmo em uma tentativa de manter a governabilidade tendo em vista a
permanência de uma bancada ruralista forte no Congresso nacional. É importante destacar,
dentro desse guarda-chuva de programas do governo petista, a criação e implementação do
Programa Bolsa-Família, o qual teve implicações positivas em termos de amenizar o quadro de

97
Política do Governo voltada para a soberania alimentar.
266

miserabilidade da população em algumas regiões do país, em especial a do campo (ABRAÃO;


MODESTO, 2010).

Nesse sentido, o cenário que se desenha atualmente em relação à questão agrária brasileira é
incerto. Mesmo com os avanços recentes, muito ainda precisa ser repensado em termos de um
desenvolvimento territorial que permita que os pequenos produtores rurais possam desenvolver
suas atividades de forma mais digna. Como coloca Abramovay (2000, p. 13, grifos nossos):

Construir novas instituições propícias ao desenvolvimento rural consiste, antes de


tudo, em fortalecer o capital social dos territórios, muito mais do que em
promover o crescimento desta ou daquela atividade econômica. O próprio
crescimento urbano recente aumenta a demanda por novos produtos e novos serviços
vindos do meio rural. O desafio consiste em dotar as populações vivendo nas áreas
rurais das prerrogativas necessárias a que sejam elas os protagonistas centrais
da construção dos novos territórios.

Infelizmente, se analisarmos o contexto político brasileiro, não nos parece que estejamos
caminhando para essa ideia de fortalecimento do capital social dos territórios, em especial, os
rurais. Vemos a atuação interessada da chamada “bancada ruralista”98 e a proposta/aprovação
de leis, como a PL 6.299/200299, que cada vez mais nos distanciam de uma nova perspectiva
sobre a questão agrária brasileira. Cabe disse que é nesse contexto mais amplo, que se configura
pela atuação do agronegócio que constantemente ameaça a existência dos pequenos produtores
familiares marginalizados, que buscamos compreender o trabalho rural enquanto força na
composição do rizoma velhice no território que investigamos, ou melhor, experienciamos.

Falamos, ainda no capítulo 2, sobre a história do território do médio Vale do Jequitinhonha e


da cidade de Araçuaí. Principalmente nos interessa nesse momento retomar aqui os avanços da
monocultura de eucalipto e as atividades mineradoras na região (descobertas das reservas de
Lítio), que ameaçam cotidianamente os pequenos produtores. Inserindo-a na discussão dessa
seção, tais ameaças são repercussões desse contexto socioeconômico e político brasileiro mais
amplo. Nesse sentido, vemos claramente se expressar no campo a perversa lógica capitalista,
em que essa pequena produção vai sendo deixada de lado, dando a impressão de que ela por si
só está se esgotando (ao invés de estar sendo intencionalmente esgotada). Se pensamos no
próprio âmbito do mercado municipal de Araçuaí enquanto espaço organizacional, esse
processo de desmantelamento da pequena agricultura familiar mostra sua face, quando a

98
Grupo informal que agrega parlamentares que, articulados, defendem as demandas do agronegócio.
99
Também conhecida como PL do Veneno, tem como objetivo revisar a legislação sobre agrotóxicos no país.
267

presença dos atravessadores enfraquece os pequenos produtores que deixam, aos poucos, de
levar seus produtos para comercialização. Assim as histórias de sobrevivência dos sujeitos do
campo tornam-se emblemáticas de uma luta que pode ser lida, dentro desse contexto histórico,
como resistência.

Dentro dessa discussão, não podemos deixar de pontuar que o próprio conceito de trabalho é
resultado de relações de produção localizadas em um determinado contexto sócio-histórico e
político. Afinal, quando falamos de trabalho nesse contexto do sistema capitalista de produção,
várias implicações podem ser observadas. Guattari e Rolnik (2005) discutiram sobre o que
denominaram de produção de subjetividades no âmbito do CMI. Nesse contexto, fala-se de um
trabalho que é capturado e significado em termos de produtividade, resultado e desempenho. O
sistema capitalista de produção é concebido, nesse contexto, como uma grande máquina
produtora de subjetividades serializadas, que busca constituir uma força coletiva de trabalho.
Como colocam os autores:

Os indivíduos são reduzidos a nada mais do que engrenagens concentradas sobre o


valor dos seus atos, valor que responde ao mercado capitalista e seus equivalentes
gerais. São espécies de robôs solitários e angustiados, absorvendo cada vez mais as
drogas que o poder lhes proporciona, deixando-se fascinar cada vez mais pela
promoção. E cada degrau de promoção lhes proporciona um certo tipo de moradia,
um certo tipo de relação social e de prestígio (GUATARRI; ROLNIK, 2005, p. 48).

A partir desse progressivo movimento de inserção do campo na lógica capitalista, em que ele
próprio passa a ser uma de suas grandes engrenagens, questionamo-nos ao longo de nossas
andanças cartográficas sobre em que medida esses velhos participantes da pesquisa estão
inseridos nessa lógica (ou mesmo de que forma), enquanto engrenagens do sistema e como isso
se traduz em suas vidas cotidianas. Se retomarmos as linhas associadas ao trabalho que
analisamos anteriormente, podemos pensar que, em termos de produção (produtividade) e
geração de riquezas pelo trabalho, esses velhos são pouco interessantes aos olhos do sistema,
uma vez que prevalece entre eles a perspectiva da produção para a subsistência, e não para
geração de lucro. Sendo assim, o que se torna interessante é a produção de mão-de-obra (barata)
que emerge desse território e se desloca para outras regiões, seja para atuar no próprio setor
agrícola, ou mesmo em outros setores como a indústria e os serviços. É o que identificamos
claramente nas comunidades que visitamos com o crescimento do êxodo rural, seja temporário
ou definitivo. Aqui também é válido ressaltar que as condições ambientais desfavoráveis e o
histórico de abandono em termos de investimentos públicos aproximam a região do panorama
268

encontrado no norte e nordeste do país, ou seja, embora faça parte do eixo centro-sul do país,
não foi incluída quando do então projeto de modernização agrícola, o que reforça a ideia de ser
uma região marginalizada.

Os velhos, especialmente, interessam ao sistema enquanto potência de consumo, como forma


de alimentar e manter o funcionamento das engrenagens. Se retomamos os discursos e práticas
relacionadas à terceira idade e melhor idade, essa questão do consumo parece ainda mais
evidente e se materializa em propostas de estilos de vida que cada vez mais visam, na realidade,
a negação da velhice. Se nos voltamos para esses velhos trabalhadores rurais aposentados,
identificamos particularidades como as que apontamos anteriormente: com baixos valores de
benefícios e com estilos de vida que pouco se modificam com o advento da aposentadoria, há
mudanças em termos de comportamento de consumo, mas são proporcionalmente pequenas.
São aposentadorias que por vezes sustentam a economia local e contribuem em outras
dimensões como a garantia da sobrevivência familiar. Se pensarmos ainda mais nesse contexto
complexo, podemos pensar nos desdobramentos desse benefício, como a redução das taxas de
violência em função da pobreza, dentre outros.

Nesse sentido, tendo em mente os velhos participantes da pesquisa, pequenos produtores


familiares que vivem no médio Vale do Jequitinhonha, podemos falar de um trabalho capturado
pelas amarras do sistema capitalista de produção? Parece-nos ingenuidade ou mesmo
imprudência dizer que não. Todos estamos inseridos e acabamos, desejando ou não,
contribuindo enquanto engrenagens. O que vimos no caso desses velhos é que, mesmo atuando,
estão à margem. Se enquanto pequenos produtores estão sendo engolidos pelos grandes
proprietários, não recebem auxílios e nem investimentos, enquanto consumidores também são
marginalizados, na medida em que pouco está ao alcance deles. Nesse esteio, podemos também
pensar em termos de políticas públicas, e a realidade também é de ausências e de insuficiências.
Trata-se, nesse contexto, de uma inserção no sistema que também se dá pela margem, algo
necessário ao seu próprio funcionamento.

Longe de uma leitura pessimista, o que buscamos é adentrar cada vez mais nesse emaranhado
que, ao se movimentar, vai configurando os modos de ser da velhice e do trabalho rurais nesse
território. Nesse sentido, rastreamos opressão e marginalização, mas também - e principalmente
- nos interessava as linhas de fuga e as possibilidades de resistência emergentes. E encontramos
muitas delas, intensas e diversas. Em relação ao trabalho, identificamos essas possibilidades a
269

partir da própria significação do que é trabalhar para esses velhos, para além da produção e dos
resultados, mas como componente ético e constitutivo de quem eu sou. Vimos as lutas
empreendidas pelos velhos frente aos avanços do agronegócio, bem como a políticas
governamentais que os desfavorecem. Também entendemos como resistência a vivência da
aposentadoria como um momento de liberdade, em que, escapando aos padrões estabelecidos,
eles se movem pelo desejo de permanecerem em suas terras e realizar suas atividades. A leitura
que fazemos é que esses são alguns exemplos dessa vida que circula e que não se deixa
aprisionar por completo.
270

Capítulo 6

Velhices que brotam do/no semiárido


mineiro
271

6. Velhices que brotam do/no semiárido mineiro

Este capítulo consiste em um ensaio fotográfico que tem como objetivo compor com as demais
narrativas que se fizeram presentes ao longo dessa tese. Dizemos compor porque partimos do
entendimento de que essas fotografias são como “caixas de memórias”100 que trazem à tona
momentos e experiências vividas, inseridas aqui para mostrar a nossa perspectiva sobre os
participantes da pesquisa, suas vidas, suas casas e suas histórias. Inspiramo-nos na definição de
foto-ensaio de Rose (2012) para delinear esse projeto narrativo, cujos resultados apresentamos
a seguir. Nas palavras da autora, os fotos-ensaios não seriam “um método de pesquisa per se.
Ao contrário, são um método particular de transmitir os resultados de um projeto de pesquisa
para uma audiência” (p. 318, tradução nossa). Nesse esteio, ao pensar na comunicação dos
resultados da pesquisa, nosso intuito é que, de alguma forma, essas narrativas imagéticas atuem
na produção de experiências que permitam aos leitores aproximarem-se desse território e das
velhices que nele e dele brotam.

A organização desse capítulo segue a mesma estrutura da análise narrativa temática realizada
ao longo dos capítulos anteriores, ou seja, as fotografias estão organizadas a partir dos eixos
analíticos da pesquisa, “A vida no campo”, “As velhices no campo” e o “O trabalho no campo”.
Além desses, ao final do capítulo, apresentamos algumas imagens sobre “O fazer cartográfico”,
que compreendem alguns momentos de produção de dados. Para o leitor, o convite é que
mantenha a atenção flutuante (KASTRUP, 2007) e se permita a experiência de deixar emergir
o corpo vibrátil (ROLNIK, 2015).

100
Clandinin e Connely (2011, p. 157).
272

Ficha Técnica do Foto-Ensaio

Ensaio: Velhices que brotam no/do semiárido mineiro

Fotógrafa: Jeane Soares Doneiro

Direção de Imagem: Raquel de Oliveira Barreto

Período de produção: março/maio de 2017 e julho/outubro de 2018

Equipamento: Câmera Sony Cyber-shot DSC-HX400V


273

A vida no campo
274

O cotidiano é aquilo que nos é dado a cada dia (ou o que nos cabe em partilha)
(CERTEAU, 1996, p. 31).

Na verdade, o sertão não é um lugar, mas uma condição atribuída a variados e


diferenciados lugares. Trata-se de um símbolo imposto – em certos contextos
históricos – a determinadas condições locacionais, que acaba por atuar como um
qualificativo local básico no processo de sua valoração. Enfim, o sertão não é uma
materialidade da superfície terrestre, mas uma realidade simbólica: uma ideologia
geográfica (MORAES, 2012, p. 2).
275

Todo final de semana eu vou (pro campo). Porque lá a gente tá solto, né, tem a
liberdade da gente. Aqui não, aqui na cidade aqui, a vida aqui é... a gente só fica preso
dentro de casa, né, a noite a gente não pode sair nem na rua (SEU SEBASTIÃO, 70
anos).
276

Estava apreensiva para encontrar Seu Milton. Não sabia como seria a recepção em
relação à história, como seria a dinâmica... Seu Milton é conhecido como
“sistemático” e fomos com isso na cabeça: será que ele vai gostar? Será que vai dar
certo? Tínhamos que completar aquela história, aproveitar aquela oportunidade.
Depois de quase 40 km e uma hora de viagem (com as breves paradas na escola e
igreja), chegamos à casa de Seu Milton. Paramos, e ele vinha de longe, caminhando
no sol com um chapéu de palha na cabeça. Desci e fui ao encontro dele perguntando:
“O senhor se lembra de mim, Seu Milton?” (Anotações do diário de bordo,
01/08/2018).

O empecilho pra gente acaba sendo as estradas, tem umas que a gente demora duas
horas para chegar à comunidade e a gente ainda tem que caminhar cerca de 40
minutos, 1 hora para chegar na casa do usuário (PODER PÚBLICO 2).
277

E o campo invade a cidade...

[...] assim como esses moradores trazem para o espaço “urbano” características de um
modo de vida tido como próprio do meio rural, perpetua-se no espaço urbano a
situação de pobreza por eles vivenciada na “vida dura” da “roça”, representada pela
escassez do dinheiro, hoje garantido pelas aposentadorias [...] (CUNHA, 2014, p.
108).

Eu digo que eu saí da roça, mas a roça não saiu de mim, né? (Filha de Seu ZEZÉ das
TESOURAS).
278

As velhices no campo
279

Retratos

O sertanejo é, antes de tudo, um forte. [...] A sua aparência, entretanto, ao primeiro


lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno, a
estrutura corretíssima das organizações atléticas. É desgracioso, desengonçado, torto.
Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos” (EUCLIDES
DA CUNHA. OS SERTÕES, 1982, p. 47).
280

A vida escorre pelo corpo e reúne o fragmento do acaso que nos produziu, afinal,
somos o fruto fortuito de uma multiplicidade de relações de forças que, numa luta
desigual de suas potências, impulsionam a vida. Sem finalidade, sem causa. Puro
acaso. Urge agarrar esse presente da fortuna e fazer dele destino ou necessidade: amor
fati (TÓTORA, 2015, p. 2018).
281

[...] Quando eu não puder pisar mais na avenida


Quando as minhas pernas não puderem aguentar
Levar meu corpo junto com meu samba
O meu anel de bamba entrego a quem mereça usar [...]
(NÃO DEIXE O SAMBA MORRER. EDSON CONCEIÇAO & ALOÍSIO SILVA)
282

[...] não há vida melhor a não ser aquela que tá no campo cuidando das coisinha da
gente, né, cuidando dos nossos galinheiros, cuidando de nossas vaquinhas, cuidando
de nossas hortas, da nossa plantação e comendo aquilo que não é agrotóxico, né
(JOANA, Virgem da Lapa, I Conversa ao Pé do Tamboril).
283

Tem as imagens assim na parede, até porque eu me encantei assim com uma imagem,
um crucifixo de Bom Jesus assim em cima da porta da sala, se a pessoa for de outra...
de outra seita e entrar tem que passar debaixo dela. Mas nós temos de Nossa Senhora
Aparecida, de todos os santo! Nossa senhora Aparecida, Santa Luzia, tem uns quadro
que vai enfeitando as parede assim, muitas imagens (SEU ANTÔNIO DA VELHA,
67 anos).
284

Eles têm uma relação muito sagrada, né? O homem e a mulher do campo, eles têm
essa questão, a religiosidade como uma situação forte na vida deles, por isso eu vejo
que o enfrentamento aos... às adversidades climáticas, às políticas públicas, eles têm
tirado essas energias a partir disso aí (PODER PÚBLICO 1).
285

Todo mundo tem medo de morrer. Só que ainda tem um dizer assim que ninguém
custuma com a morte, né, mas é uma coisa que nóis tem por certo... uma coisa que
nóis tem por certo é a morte. [...] Já tem escrito, então ninguém morre antes do dia
não, só morre no dia chegado. Um carro pode dispencá, se num for seu dia, cê num
morre não, né, Deus ampara (SEU MILTON GRANJA, 67 anos).

“[...] Porque o tempo é uma invenção da morte:


não o conhece a vida - a verdadeira -
em que basta um momento de poesia
para nos dar a eternidade inteira.”
(AH! O RELÓGIO. MÁRIO QUINTANA. 1989)
286

Paramos na estrada para conhecer o cemitério da comunidade, sobre o qual falamos


algumas vezes em nossas conversas. Este acabou de ser ampliado, pois não estava
comportando mais as pessoas da comunidade. É uma construção simples. Em todas
as comunidades, a história se repete: alguém doa um pedaço de terra para construir o
cemitério, a comunidade se une para construí-la e não há lugar marcado, de cada
família. O serviço de funerária hoje já atende a zona rural e parece bem aceita pelos
moradores, mesmo os mais velhos. Eles relatam como era antigamente, o processo de
construção dos caixões, mas parecem concordar com a forma como hoje esse processo
é organizado (Anotações do diário de bordo, 01/08/2018).
287

O trabalho no campo
288

A pele muitas vezes... repara a pessoa, ainda mais quando a gente já tem uma vivência,
já está aí há algum tempo... A gente olha para o cidadão que tem um modo de se vestir,
o visual mesmo... as mãos e os pés do trabalhador rural são diferentes do
trabalhador urbano, repara pra você ver! (PODER PÚBLICO 1).
289

Umas das principais funções políticas das narrativas é, então, possibilitar que o
“outro” (invisível, silenciado, subalterno, oprimido, anônimo, diaspórico ou qualquer
outra adjetivação encontrada na literatura especializada), alvo e beneficiário das
políticas públicas e práticas sociais de “integração” possa falar por si mesmo, que
possa encontrar espaços de acolhida e de difusão de sua experiência da história pessoal
e coletiva e “leitura de mundo” como enfatizava Paulo Freire [...] (REIGOTA, 2016,
p. 55).
290

O mundo dos velhos, de todos os velhos, é, de modo mais ou menos intenso, o


mundo da memória. Dizemos: afinal, somos aquilo que pensamos e amamos,
realizamos. E eu acrescentaria: somos aquilo que lembramos. (BOBBIO, 1997, p.
30).
291

Eles sempre correm muito atrás, entendeu? Eles sempre estão ali o dia todo, o galo
cantou, eles já estão ali prontos para poder trabalhar, muitos deles envelhecem, a
mulher ali com 55 anos, o homem com 60 anos, cada um com a sua aposentadoria,
mas não abandonam de jeito nenhum a enxada. E vai para a sua rocinha todo ano, todo
ano eles estão lá plantando a rocinha deles (PODER PÚBLICO 1).

Às vezes deparamos com idoso que está na situação de fragilidade que faz a gente
pensar assim: “mais gente, esse idoso, nessa condição ainda está com a enxada na
mão?”, aí você pergunta para o filho, para a família e eles dizem: “oh, meu filho, se
ele não fizer isso, ele adoece”. É porque gerou um vínculo com o trabalho de uma
maneira tão firme que às vezes não consegue viver sem a vida no trabalho (PODER
PÚBLICO 1).
292

[...] Que braseiro, que fornalha


Nem um pé de plantação
Por falta d'água perdi meu gado
Morreu de sede meu alazão [...]
(ASA BRANCA. LUIZ GONZAGA)
293

Muitos falam que não vem para cá (cidade) justamente por esse motivo, o que eles
vão vir fazer aqui? Lá tem a terra que eles plantam, tem as galinhas e, vindo para cá,
como eles vão trabalhar? Eles não vão ter o que fazer aqui (PODER PÚBLICO 4).
294

E o tipo de trabalho pesado... todo tempo que trabalha tá enfrentano cobra, carrapato,
é frio, é chuva é tudo a gente enfrenta... o trabaio é mais pesado. E aí depois quando
entrou esse Michel Temer com a reforma de previdência aí eles já queria tirá todos
esses direitos do trabalhador. A gente teve medo... Eles falou que a previdência tava
quebrada. Aí vem aquela pergunta, mas será quem quebrou? Será que foi o trabalhador
que recebe um salário mínimo? Ou será que foi eles que roubou a previdência? (SEU
ANTÔNIO DA VELHA, 67 anos).
295

Eu gosto muito! Depois que as menina saiu... antes eu fazia roupa, eu que custurava
pra família, né? Depois que elas saíram de dentro de casa, eu fiquei, assim... depois
inventei fazer colcha de retalho. Fiz várias colcha de retalho pra mim e pros outros,
depois eu peguei fazer uns tapete (DONA LIA, 79 anos).

Depois de Seu Milton ler sua história e nós conversarmos um pouco sobre a de Dona
Íris, perguntamos a eles se poderíamos fazer alguns registros fotográficos. Eles logo
se colocaram à disposição e, mais do que isso, propuseram locais, imagens que
gostariam de revelar... “Pode tirar aqui óh, Raquel, eu lavando minhas vasilha...”
(Anotações do diário de bordo, 01/08/2018).
296

Ó lá ó!!! A véia muntadeira lá ó! A véia tem mais de setenta ano, ó, puxando um gado
lá, ó! O homem tem pra mais de setenta, tá vendo? (SEU MILTON GRANJA, 67
anos).
297

A gente come aquilo que planta. [...] Agrotóxico tem muito nesses negócio de feira, e
eu também num sou muito de comer... esses trem: extrato de tomate, essas coisa tudo.
Aqui. Tem que prantar aqui, colher aqui, comer aqui. É assim que nós faz. Nós tem
couve, nós pranta a hortinha... nós sempre tem verdura. Pouquinha, mas pra nós dois
sozim, dá e sobra (DONA ISAURA, 78 anos).
298

Eles falam assim, “ah minha estrela”, os nomes das vaquinhas, minha criação
entendeu? Então é uma relação forte, uma tristeza na época da seca que às vezes a
criação está magra, sentida, às vezes vem na zona urbana fazer uma compra e daí a
pouco já está voltando para trás... aí a gente pergunta por que a pressa eles dizem que
os bichos não podem ficar só, que tem ir alimentar os porcos, as galinhas, o boi, a
vaca (PODER PÚBLICO 1).
299

Pro mercado eu vou!

Nós somos o Vale


Nós valemos mais pelo que somos e menos pelo que temos.
Valendo assim e assim sendo, sempre valeremos
(GONZAGA MEDEIROS)
300

[...] Mas é preciso ter manha


É preciso ter graça
É preciso ter sonho sempre
Quem traz na pele essa marca
Possui a estranha mania
De ter fé na vida [...]
(MARIA MARIA. MILTON NASCIMENTO)
301

Quando cê tá na feira cê tá... vendo aquele pessoal lá, aquele movimento de gente
vendendo, outros comprando, né, aquilo é bonito demais na feira! Aquela fartura!
Tem coisa mais bonita que uma fartura, num tem! Eu acho, assim, dentro do Vale do
Jequitinhonha, a melhó feira que tem é dentro de Araçuaí (SEU MILTON GRANJA,
67 anos).
302

O fazer cartográfico
303

O fato como aconteceu não é o mais importante na pesquisa narrativa que privilegia
a forma como as pessoas (participantes de pesquisa) sentem e entendem as
experiências que viveram (MELLO, 2016, p. 41).
304

Perguntei a Dona Santa se eu poderia ler a história para ela, e ela disse sim. Logo que
mostrei a ela o documento com sua foto na capa, ela disse: “Nossa! Pareço uma louca!
(Risos)”. Sentada ao meu lado, Dona Santa ficou atenta a cada palavra, sorria e
antecipava suas falas na medida em que a história ia sendo contada. Em outros
momentos, Dona Santa complementava a narrativa, repetindo constantemente,
“minha vida é os meu filho”. Ao final, ela disse: “É isso mesmo! Essa é a minha
história, minha fia”. Foi emocionante, talvez mais pra mim do que pra ela...
(Anotações do diário de bordo, 01/08/2018).
305

Hoje foi o último dia das visitas... Me sinto estranha, com o coração apertado, como
quem se despede de amigos queridos para uma longa viagem. Me senti tão bem aqui,
acolhida... meu desejo era ficar por mais tempo, ouvir mais, aprender mais... A
sensação é que não foi possível registrar tudo e é claro que não foi... Despedi-me de
cada um deles com um “até logo!” caloroso. Seu Emílio me surpreendeu dizendo: “Vê
se não demora muito, Raquel! Dessa vez ocê termina esse ‘livro’ seu, né?” (Anotações
do diário de bordo, 02/08/2018).
306

Considerações (ainda que nada) finais

Falar sobre o final de uma cartografia nos parece uma imprecisão teórica, pois, enquanto
processo, não há como pensar realmente em um encerramento. Chegamos nesse ponto, então,
tendo em mente que o que fizemos foi uma tentativa de aumentar o grau de inteligibilidade em
relação à realidade sobre a qual nos debruçamos, delineando construções provisórias de
conhecimento que nos desafiam muito mais do que nos trazem qualquer sensação de
estabilidade ou certeza. A tese que buscamos defender ao longo dessa pesquisa é a de que não
existe uma velhice, mas modos de ser velho, experiências singulares de vivência desse
fenômeno em diferentes territórios, o que nos leva a propor sua compreensão sob uma
perspectiva rizomática. Tal tese nos parece fundamental se pensarmos no movimento
homogeneizante que paira em torno da temática da velhice, culminando em rótulos e
estereótipos como os da “Terceira Idade” ou “Melhor Idade”, ou, ainda mais recentemente, os
“Superidosos”. Desde o início, inquietou-nos a disseminação da perspectiva do processo de
envelhecimento como algo natural e comum entre os sujeitos, o que traz implicações diversas,
por exemplo, na construção de políticas públicas voltadas para essa população. Nesse sentido,
chegamos nesse momento reafirmando a não existência de uma velhice, mas de modos de ser
velho construídos em processos de singularização que se dão em meio a um emaranhado de
forças em constante interação, o rizoma velhice.

Tendo em vista o objetivo geral da investigação de cartografar os modos de ser da velhice e do


trabalho rurais no médio Vale do Jequitinhonha, duas questões norteadoras nos acompanharam
ao longo de todo o percurso. Vamos aqui retomá-las a fim de pontuar em que medida
conseguimos avançar e que novas inquietações emergiram. A primeira questão, “Como se
configura a composição do rizoma velhice rural no território do médio Vale do
Jequitinhonha?”, levou-nos a rastrear as linhas que se fizeram sentir enquanto forças potentes
nas narrativas dos velhos sobre suas próprias vidas, de suas famílias e de suas comunidades.
Dois eixos analíticos emergiram da análise narrativa temática que empreendemos e que estão
circunscritas a essa questão norteadora, os eixos “A vida no campo” e “As velhices no
campo”. O primeiro eixo nos permitiu rastrear aspectos que marcam a vida nas comunidades
cartografadas, com destaque para as ausências em termos de políticas públicas e para os efeitos
perversos dos longos períodos de seca. Não obstante essas dificuldades existam, identificamos
a construção de laços fortes entre os sujeitos e o território: há um amor pela vida no campo, um
apego à terra e uma forte sensação de pertencimento. Percebemos que esses modos de viver
307

associados ao campo permitem que esses sujeitos estabeleçam com a natureza relações de
proximidade, coexistência e interdependência, relações aparentemente diferentes das
experienciadas pelas velhices urbanas.

No segundo eixo, “As velhices no campo”, emergiram as linhas que, juntamente com as
anteriores, também refletem nos modos de ser velho nesse território. São velhices que surgem
como um direito adquirido mediante uma vida de lutas e de muito trabalho, gerando nesses
sujeitos um sentimento de vitória simplesmente por terem se tornado aquilo que são.
Identificamos na religiosidade uma força potente que sustenta seus modos de ver a vida e que
balizam suas formas de agir, em que o divino ocupa o lugar de juiz de todas as coisas, inclusive
da morte. Vimos também velhices que se constituem em meio à terra, à família e à comunidade,
formando laços fortes que justificam o desejo desses velhos ali permanecerem por toda a vida,
resultados semelhantes de estudos anteriores sobre comunidades rurais como o de Woortmann
(1999). Especificamente sobre a experiência da velhice, foi possível então perceber que, embora
essa fase da vida esteja associada às perdas da capacidade física e/ou mentais, assim como
também os velhos reconhecem as marcas inscritas por ela nos seus corpos, sentimos que a vida
cotidiana desses sujeitos não se mobiliza em torno dessa questão, isto é, não há entre eles uma
tentativa de compreender a velhice ou mesmo de negá-la, como discutimos ser algo comum na
contemporaneidade (TÓTORA, 2006; 2008a; 2008b; 2015; DEBERT, 1994; 1997; 1999;
2008; DEBERT; OLIVEIRA, 2016). Cabe também pontuar que, embora esses velhos transitem
e sejam afetados pelos espaços públicos e institucionais reguladores da cidade, o campo
constitui o lugar onde a experiência do envelhecimento é construída.

Retomando os estereótipos disseminados sobre a vida no campo que remetem, por um lado, a
um cenário de completo sofrimento e luta pela sobrevivência, e por outro, à visão romantizada
do território rural como espaço de paz e tranquilidade e de um ritmo de vida totalmente diferente
da cidade (CUNHA, 2014), podemos dizer que encontramos elementos que se alinham a essas
características E a tantas outras. Trata-se de vivências que realmente escapam a esses
estereótipos e revelam formas outras de vida, por vezes invisibilizadas. São velhos que narram
histórias de vida de muito sofrimento E que ao mesmo tempo se reconhecem enquanto parte
desse espaço que não desejam abandonar. São velhos que se resignam diante da vontade divina
E que ao mesmo tempo utilizam-se da força da religiosidade para se posicionarem em torno de
causas políticas comunitárias. São velhos que constroem seus próprios ritmos de vida E ao
mesmo tempo se inserem na lógica “da cidade” para venderem seus produtos, discutir mudanças
308

necessárias e correr atrás de melhorias para suas famílias e comunidades. São complexidades
que as andanças cartográficas nos permitiram acompanhar, ainda que parcialmente.

A segunda questão norteadora, “Qual é o lugar do trabalho nesse rizoma velhice? Ou seja,
neste processo de produção de subjetividades associadas à velhice, que força tem o
trabalho?”, pautou as análises do terceiro eixo analítico da pesquisa, “O trabalho no campo”,
em que rastreamos as linhas associadas especificamente ao universo do trabalho. Como
dissemos anteriormente, um capítulo foi dedicado a esse eixo tanto em função da força que essa
categoria revelou em termos da constituição dos modos de ser velho nesse território quanto pelo
interesse que ele também nos desperta no âmbito de nossa área de estudo. Ao longo das
narrativas sobre as histórias de vida dos velhos, o trabalho emergiu como algo inerente à vida
e que, como eles mesmos dizem, eles conhecem desde que “se entendem por gente”. Nesse
sentido, é relevante destacar o papel do trabalho como marcador para a percepção da velhice
pelos sujeitos, isto é, eles narram que se reconheceram como velhos a partir do momento em
que começam a aparecer as dificuldades em relação ao desempenho das atividades cotidianas
de trabalho. Ao mesmo tempo, é justamente essa vida de trabalho duro, que traz marcas no
corpo, que possibilitou a eles terem se tornado aquilo que são. Vimos que esse trabalho também
reflete desigualdades históricas de gênero, na medida em que recai sobre as mulheres rurais o
estereótipo da realização do “trabalho leve” em contraposição ao “trabalho duro” masculino.
Nas narrativas femininas, encontramos, ao contrário, um acúmulo de atividades para além do
trabalho na lavoura e com os animais, afinal, é delas a responsabilidade pelos cuidados da casa,
dos filhos, por vezes da horta e ainda se desdobram em outras atividades como o artesanato.
São desigualdades que culminam em violências e que se mostram como questões urgentes a
serem discutidas.

Vimos também que, em relação ao mundo do trabalho, a questão da aposentadoria rural surgiu
como uma força intensa e potente. Tendo em vista o histórico de lutas em função das
dificuldades encontradas nas atividades agropecuárias decorrentes das condições climáticas e
da falta de incentivos em termos de políticas públicas, os velhos narraram histórias em que nem
sempre a subsistência foi possível. Nesse sentido, o acesso ao benefício previdenciário
significou para eles um momento de liberdade, liberdade para desenvolverem seu trabalho sem
o risco da fome e da miserabilidade que por muito tempo os assombrou. Ainda que com valores
baixos e por vezes insuficientes para cobrir todas as despesas que aumentam nessa fase de suas
vidas, os velhos aposentados alcançam autonomia financeira e passam até mesmo a ocupar o
309

lugar de provedores do lar. Do ponto de vista da mulher velha, essa autonomia parece ainda
mais significativa mediante uma história de dependência e subordinação ao marido. Vimos
também que esse mesmo benefício que traz autonomia torna-os vulneráveis aos vários tipos de
violência, desde familiares até as exercidas de forma sutil por outros atores institucionais como
bancos e comerciantes.

Identificamos, por fim, a importância do mercado municipal de Araçuaí como elemento que
compõe a história desses sujeitos. São velhos que já comercializaram ou ainda comercializam
seus produtos no mercado, em especial durante os dias de feira livre, aos sábados pela manhã.
Ouvimos desses velhos histórias de antigamente em que eles iam até o mercado acompanhados
por membros de suas famílias e da comunidade, por vezes a pé ou montados no lombo de
animais, em viagens que duravam longas horas ou mesmo a noite toda. Ainda hoje, o mercado
revela-se um espaço que, para além da venda de produtos diversos, é um lugar de sociabilidades,
de amizades e de diversão; nesse espaço que é, antes de tudo, uma organização composta por
diferentes atores e permeada por relações de poder que ora atuam de forma a beneficiar esses
velhos, ora os oprime e marginaliza.

Embora não tenha sido colocada como uma questão norteadora do estudo, houve uma terceira
pergunta que nos acompanhou ao longo da pesquisa, a saber: Como as instituições (Poder
público, Sociedade Civil e Sindicato) atuam (operam) nos Planos que compõem o rizoma
velhice? Entendemos que várias pistas que contribuem para a compreensão dessa questão se
encontram distribuídas entre os momentos analíticos da pesquisa. De modo geral, a
precariedade das políticas públicas destinadas ao campo - e especialmente aos velhos - é uma
constatação da totalidade dos estudos que encontramos em nossa pesquisa bibliográfica sobre
a velhice rural101. No caso específico de Araçuaí, rastreamos que o município não desenvolve
políticas públicas desenhadas especificamente para os idosos, salvo algumas atividades no
âmbito da saúde que se destinam à “Terceira Idade”, mas que acabam por beneficiar apenas os
velhos urbanos. Embora nas suas narrativas os velhos rurais reconheçam melhorias recentes em
função de programas governamentais, como é o exemplo do “Luz para Todos” e a implantação
das UBS rurais, admite-se que muitos direitos básicos permanecem descobertos. Nas narrativas
do poder público, percebemos a identificação desse velho rural como uma figura associada à
luta, à força e à sobrevivência e que, embora se tenha noção da necessidade de melhor atendê-

101
Levantamento apresentado no capítulo 3, na seção “O que sabemos sobre as velhices rurais?”.
310

los, a precariedade das políticas públicas é apontada como resultado de um quadro político mais
amplo, assim como de crises econômicas que têm afetado o país e o mundo. Em termos locais,
as dificuldades apontadas pelos profissionais como entraves para a melhoria da prestação dos
serviços públicos para esses sujeitos são: grande número de comunidades rurais e grande
extensão territorial do município; péssima qualidade das estradas que levam até as
comunidades; falta de veículos institucionais disponíveis (muitos estão quebrados em função
das estradas); falta de profissionais (médicos, por exemplo) que se disponham a atuar na zona
rural, dentre outros.

Em relação às demais instituições da sociedade civil e religiosas, rastreamos contribuições


importantes no que tange à construção dos modos de ser velho nesse território. Vimos, por
exemplo, o papel de instituições como a Cáritas, a Associar e ao CPCD no que tange às
tentativas de lidar com um dos maiores problemas enfrentados pelas comunidades rurais: a falta
de água e os longos períodos de seca. Percebemos o sentimento de gratidão dos velhos em
relação aos projetos de construção das barragens ou aplicação de tecnologias de armazenamento
de água da chuva promovidos/financiados ou viabilizados por essas instituições. Em especial
no que tange ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais, mapeamos que este é considerado pelos
velhos como o caminho fundamental para o alcance da aposentadoria rural, e que de fato o é102.
Entretanto, enquanto instituição representativa de uma classe de trabalhadores, poucas
referências foram feitas pelos participantes da pesquisa a respeito de projetos e propostas de
luta envolvendo a instituição, o que não significa que essas não existam, mas que não há
envolvimento e engajamento entre eles. Apesar disso, a totalidade dos velhos com quem
conversamos se mantêm afiliados ao sindicato e contribuem financeiramente, ainda que essa
contribuição não seja mais obrigatória.

Atentos a essas produções possibilitadas pela coleta das narrativas - tanto orais quanto
fotográficas –, pensamos que a realização de todo esse processo de produção de dados nos leva
a refletir sobre como a vida circula naquele território. Se falamos especificamente sobre o
mapeamento das linhas que ora estratificam e modelam fôrmas e formas (linhas duras e
flexíveis) e ora permitem a invenção (linhas de fuga), como essas linhas que mapeamos se
comportam? Que efeitos elas geram? Vimos se tratar de um processo também dinâmico, o que

102
Conforme sinalizamos anteriormente, o STR emite um documento certificando que aquele sujeito é um
trabalhador rural, o qual é anexado aos documentos de solicitação de acesso ao benefício da aposentadoria rural
junto ao INSS.
311

é coerente com o entendimento do rizoma enquanto fluxos de forças. Nesse sentido, o que
vimos foram forças se comportando ora como linhas duras e flexíveis, ora como linhas de fuga,
em planos diferentes. Assim podemos olhar para as linhas que remetem à vida, às velhices e ao
trabalho no campo. Se pensarmos especificamente na questão do trabalho, por exemplo,
entendemos o quanto ele se apresenta a esses sujeitos, por um lado, como um linha dura, que
ao ser realizado por anos a fio sob condições quase que desumanas (sob o sol forte, sem
intervalo, jornadas extensas, dentre outros), gera adoecimento e não lhes garante a
sobrevivência. Por outro lado, é esse mesmo trabalho que, enquanto linha de fuga, permite a
esses velhos a experiência do reconhecimento de si e que, ao ser adaptado, moldado e
significado, é fonte de vida e sobrevivência para ele, para a família e para a comunidade. Assim
também identificamos a complexidade que se apresenta em relação à religiosidade, aos
costumes e modos de vida, inclusive ao próprio processo de envelhecimento. São velhices
múltiplas e distintas, que, ao mesmo tempo que particulares, são parte de um contexto social
que as atravessa, molda e é também moldado por elas.

Nesse sentido, partindo de uma análise que contemple os fluxos de linhas e forças, podemos
dizer que, para além da realidade de um modo mais amplo, a subjetividade é da mesma forma
uma resultante desse processo complexo. Se retomamos então a velhice ideal discursivamente
hegemônica na sociedade contemporânea, é possível lê-la como um modo de existência
sustentado no plano de organização (molar), que nos aprisiona e nos engessa, dizendo por meio
de práticas e normas como é a velhice correta a ser almejada. Nesse plano, a tendência é do
esgotamento das diferenças e o afastamento da ideia de velhice-devir, indo de encontro ao que
propomos enquanto perspectiva rizomática desse fenômeno. Entretanto, como vimos na
aproximação e experiência com os velhos rurais, existem sim, outros modos de ser velho
possíveis, que escapam – ainda que com dificuldades – dessas amarras do plano de organização.
São velhices-devir que emergem sustentadas pelo plano de imanência (molecular) e refutam os
corpos prontos, acabados. São velhices resultantes de agenciamentos produzidos nesse plano
de expansão da vida e da inventividade, ainda que transitórios. Nessa leitura que podemos
chamar de Deleuziana, encontramos a coexistência dessas velhices, que se assujeitam às normas
e desejam seguir os padrões, e àquelas que buscam o novo, o diferente. São velhices que podem,
inclusive, transitar dentro de um mesmo sujeito. Diante disso, entendemos que o nosso percurso
aqui foi o de, a partir de um entendimento sobre a velhice molar que delimita uma população a
ser gerida, explorar como isso se realiza no nível molecular, no singular das experimentações
dessas velhices.
312

Para além dessas questões norteadoras, o que mais podemos dizer? Podemos falar de outras
questões que essa pesquisa nos suscitou. Pensando na diversidade do território brasileiro em
termos regionais, econômicos, sociais, políticos e culturais, como se configura o rizoma velhice
em outros lugares? Reconhecer a diferença que marca a constituição da vida nos leva a pensar
na importância de pesquisas que busquem compreender o lugar ocupado pelo velho em outros
territórios, especialmente os rurais, os quais têm sido pouco explorados em termos de produção
de conhecimento (ALCÂNTARA, 2016). Outro aspecto que nos chamou a atenção é a
desconstrução do velho rural como aquele sujeito atrasado, desinformado e alheio ao que se
passa no mundo em que está inserido. Encontramos, em nossas experiências, velhos
extremamente politizados e cientes das questões que permeiam a realidade não apenas de suas
comunidades, mas da região e do mundo. Velhos que discutem sobre a necessidade da mudança
de comportamentos sociais como a exploração da natureza e que propõem, a partir do seu
universo, formas de contribuir para que transformações sejam feitas. Velhos que dizem que a
modernidade trouxe muitos benefícios, mas que pontuam e avaliam, em contrapartida, perdas
em termos das relações humanas e do trabalho. Nesse sentido, inquieta-nos pensar em quantas
‘verdades’ são cotidianamente produzidas e disseminadas a partir desses estereótipos e o quanto
perdemos, no âmbito do universo científico, ao invisibilizar esses saberes considerados
menores103.

E onde queremos chegar com esse conhecimento produzido? Sob o ponto de vista das
contribuições desse trabalho doutoral, parece-nos relevante destacar alguns aspectos. Em
termos teóricos, compreendemos o avanço ao trazer o conceito de rizoma como uma
possibilidade a ser utilizada no âmbito dos Estudos Organizacionais, algo pouco realizado
quando observamos especialmente a produção nacional na área. Nesse sentido, tendo em vista
ser uma literatura ainda pouco explorada no campo, lançamos uma possibilidade outra para um
processo de construção de conhecimento que se propõe a dar conta, ainda que de forma
transitória e parcial, da complexidade que marca nossos objetos de estudo e a realidade de uma
forma geral. Nesse sentido, cabe também dizer que compreendemos que a complexidade que
marca não apenas os objetos dos Estudos Organizacionais, mas da Administração como um
todo, demanda justamente outras formas de leitura da realidade, assim como outras percepções
acerca dos processos sociais e institucionais.

103
Referência à expressão trazida por Deleuze e Guattari na obra “Kafka: Por uma literatura menor”.
313

Diante desse contexto, o convite para dialogar com autores como Deleuze e Guattari dentro
desse campo de conhecimento é insistir na experimentação, colocando em primeiro plano as
relações rizomáticas nas quais agenciamentos são feitos, rastreando o que é produzido entre (e
com) as instituições, entre (e com) os profissionais, entre (e com) as equipes, entre (e com) os
sujeitos, cotidianamente. Em especial, atentos às linhas e formas que compõem o rizoma,
problematizar os aspectos e as situações que insistem em permanecer, como normas, regras e
padrões; por outro lado, acompanhar processos que apontam espaços de invenção e resistência,
desestabilizações que favorecem passagens. Mais do que identificar esses modos de
funcionamento da realidade, é compreender que eles se justapõem e que não há nesse processo
a tentativa de dizer o que é bom e o que é mau, mas o que favorece ou não, naquele contexto,
espaço para a força produtiva da vida.

Ainda sobre os avanços teóricos, destacamos que, da mesma forma que fizemos em relação ao
conceito de rizoma, avançamos dentro do âmbito do campo dos Estudos Organizacionais ao
nos lançarmos ao desafiante processo da pesquisa cartográfica. Ao entendermos a cartografia
enquanto uma postura teórico-metodológica, construímos um percurso de produção de dados
que foi sendo desenhado ao longo do próprio fazer da pesquisa e que se revelou, ao final, uma
possibilidade rica para investigações que se dedicam à compreensão do cotidiano. Cabe nesse
momento dizer sobre a crítica que dirigimos às pesquisas que se propõem realizar uma
cartografia, mas que pouco podemos perceber acerca de seus desdobramentos no processo da
pesquisa em si. São pesquisas que se dizem cartográficas e ponto. Dito de outro modo,
advogamos a necessidade de que a pesquisa cartográfica seja pensada em termos de postura
teórico-metodológica, de aprofundamento na produção de dados e na busca pelas experiências.
Trata-se de uma prática e um compromisso, antes de qualquer coisa. Nesse sentido, cabe
destacar nossos desafios bem como nossos ganhos ao experimentar uma pesquisa que fala com
os sujeitos, não sobre eles ou mesmo deles, assumidamente uma pesquisa-intervenção. O que
experienciamos foi um mergulho na tentativa de fazer emergir o corpo vibrátil e ir além das
formas consideradas tradicionais de pesquisa em nosso campo de estudo, buscando formas mais
inventivas desse fazer científico.

Outra dimensão que consideramos de destaque foi o uso das fotografias enquanto recurso para
composição da cartografia, buscando superar o sentido ilustrativo comumente utilizado.
Compreendemos que os resultados da utilização desse recurso foram fundamentais para os
momentos analíticos da pesquisa e que essa também se revela uma possibilidade a ser explorada
314

por pesquisadores no campo dos Estudos Organizacionais. Ainda que com todas as limitações,
acreditamos que essa tese possa instigar novos usos de imagens para produção de
conhecimento, a partir de uma leitura da fotografia como composição narrativa que, como tal,
junta-se às demais formas de produção de dados em um compromisso de abertura à
complexidade, ao diferente e à exploração daquilo que se tenta invisibilizar.

Nesse esteio, não podemos deixar de pontuar a importância das narrativas nessa construção
cartográfica, sejam elas orais ou fotográficas. Em especial, chamamos a atenção para algo que
impregnou cada passo dessa pesquisa, de cuja grandiosidade talvez apenas ao final tenhamos
nos dado conta: o entendimento de que esses velhos trabalhadores rurais são também
trabalhadores da memória (BOSI, 1994). Foi por meio de suas narrativas, de suas histórias e de
seu trabalho que conseguimos acessar não apenas à memória particular, mas também coletiva
de suas famílias e comunidades. Como nos lembra Bosi (1994, p. 54), “lembrar não é reviver,
mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e ideias de hoje, as experiências do passado” e
assim pudemos experimentar também em que medida esse refazer se fez para os velhos como
uma oportunidade de algo novo. Ouvimos deles o quanto trazer essas memórias à tona
possibilitaram novos diálogos com os filhos, que o ato de contar suas histórias gerou em si
mesmos orgulho e satisfação, que a notícia de uma pesquisa sobre os velhos fez despertar em
outros o interesse de saber sobre o que eles têm a dizer. São memórias e narrativas que ecoaram
para muito além do que poderíamos imaginar.

Como qualquer trabalho que se propõe a dar conta, ainda que parcialmente, da complexidade
que marca o processo de construção da realidade, chegamos nesse momento avaliando que
algumas questões, de fato, poderiam ter sido melhor exploradas. Entendemos que as limitações
fazem parte do processo de pesquisar, um processo que não se finda, mas ao longo do seu
desenvolvimento fazemos ‘pausas’ em função de etapas formais que devemos cumprir, como é
o caso dessa tese. Reconhecemos em nossas limitações possibilidades de desenvolvimento de
outros estudos sobre a mesma temática ou mesmo desejamos que estas sirvam de reflexão para
pesquisadores de uma forma em geral, pois falam sobre a pesquisa em si, sobre afetamentos e
experiências vividas. Se pensarmos em termos teóricos, compreendemos que avançamos ao
dialogar e tentar ‘traduzir’ conceitos e discussões de Deleuze e Guattari para o campo dos
Estudos Organizacionais, em especial o de rizoma, mas entendemos que há uma série de outros
conceitos adjacentes que poderiam ser trazidos (ou mais detalhados) de modo a dar suporte a
esse elemento central, tal como o de “Corpo sem órgãos”, por exemplo. Nesse sentido, em
315

vários momentos nos questionamos, até onde devemos ir? O convite é que a nossa área se
enverede por esse caminho e possa, cada vez mais, explorar esse caminho.

Especificamente sobre a prática cartográfica, muitos foram os desafios para a sua realização,
alguns, inclusive, de ordem prática como o deslocamento até as comunidades. Entendemos que
o que prevalece nesse momento de produção de dados é a qualidade dos encontros e os
afetamentos produzidos, algo que felizmente conseguimos experimentar. Entretanto,
reconhecemos que seria ainda mais enriquecedor se estendêssemos tanto o tempo de interação
com os participantes quanto as comunidades visitadas. Nossa intuição é que ainda há muita
riqueza e diversidade nesse território que poderiam ser exploradas. Um exemplo disso é a
especificidade que marca a constituição do ser velha rural, em que a problemática do gênero se
destaca, mas da qual não demos conta nesse trabalho. Quais outros temas nos escaparam?
Também tangenciaram nossa investigação discussões como a do êxodo rural dos jovens, o que
nos levou a pensar sobre a atuação desses (e de outros) sujeitos na constituição do rizoma
velhice rural. Nesse sentido, ainda que tenhamos conversado com alguns filhos e familiares dos
velhos, não foi algo sistemático no âmbito do mapa cartográfico desenhado. Esta ausência
também nos parece uma boa sugestão de novos estudos, investigações que contemplem esses
outros sujeitos e suas narrativas sobre as velhices e seus velhos.

Não podemos também deixar de mencionar nesse momento em que rascunhamos considerações
sobre a pesquisa acerca de algo que vem sendo amplamente discutido, o lugar de fala do
pesquisador. Devo dizer, e agora assumo realmente uma fala singular, que essa pesquisa foi
produzida (em parte) por mim enquanto professora de uma instituição federal de ensino
localizada nesse mesmo território pesquisado, que entende a pesquisa como uma ação de caráter
totalmente político. Nesse sentido, tenho aqui um compromisso e um desejo de problematizar
essa realidade da qual também faço parte, embora tenha consciência dos privilégios que em
todas as dimensões recaem sobre mim. Se acima falei sobre a identificação de linhas que
permitem a vida circular nesse território, espero que esse trabalho seja viabilizador de outras
linhas, ainda que com todas as suas limitações. Um trabalho político, nesse sentido, de
questionar o que está posto na maior parte das vezes como natural e até mesmo tradicional.
Entendo ser esse também o compromisso que assumi com os sujeitos que generosamente se
dispuseram a coconstruir esse trabalho e a quem eu espero ter feito jus, em cada uma dessas
linhas. Nada mais coerente do que fechar essas considerações com a fala de Seu Milton Granja
(67 anos) sobre o que ele pensava acerca da nossa pesquisa. “Oh, Raquel, eu acho muito
316

importante isso de mostrar pras pessoas e pros governante a importância do lavrador... a


importância do trabalho da roça, né?”. Sim, Seu Milton, espero que tenhamos conseguido dar
alguns passos não apenas nesse, mas também em outros caminhos.
317

Referências
318

Referências

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334

Apêndices
335

APÊNDICE A

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS


FACULDADE DE CIÊNCIAS ECONÔMICAS
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS ADMINISTRATIVAS
CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISAS EM ADMINISTRAÇÃO

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO


Título da pesquisa: CARTOGRAFIA DOS MODOS DE EXISTÊNCIA DA VELHICE E
DO TRABALHO RURAIS NO MÉDIO VALE DO JEQUITINHONHA
Prezado Sr(a),
Sou estudante do curso de Doutorado em Administração na Universidade Federal de
Minas Gerais. Estou realizando uma pesquisa sob supervisão do professor Dr. Alexandre de
Pádua Carrieri, cujo objetivo é compreender quais são os modos de ser da velhice e do trabalho
rurais no médio Vale do Jequitinhonha.
Sua participação envolve a concessão de uma série de entrevistas que serão gravadas,
se assim você permitir, e que tem a duração aproximada de duas horas. A participação nesse
estudo é voluntária e se você decidir não participar ou quiser desistir de continuar em qualquer
momento, tem absoluta liberdade de fazê-lo. O trabalho inclui também a produção de
fotografias pessoais, de objetos e da propriedade e, sendo assim, sua imagem poderá ser exposta
no trabalho, se assim permitir. Na publicação dos resultados desta pesquisa, seu nome poderá
ser exposto, se assim o permitir.
Mesmo não tendo benefícios diretos em participar, indiretamente você estará
contribuindo para a compreensão do fenômeno estudado e para a produção de conhecimento
científico. Quaisquer dúvidas relativas à pesquisa poderão ser esclarecidas pela pesquisadora
Raquel de Oliveira Barreto, no email prof.raquel.barreto@gmail.com.
Atenciosamente,

___________________________ ____________________________
Assinatura da pesquisadora Local e data

______________________________
Assinatura do professor orientador

Consinto em participar deste estudo e declaro ter recebido uma cópia deste termo de
consentimento.

Aceito que minha história e meu nome sejam publicados com fins acadêmicos.

Aceito que minhas fotos sejam publicadas com fins acadêmicos.

___________________________________

Participante da pesquisa
336

APÊNDICE B

Manual do Cartógrafo

A proposta de elaborar um ‘Manual do Cartógrafo’ surgiu a partir da minha leitura do livro


“Cartografia Sentimental: Transformações Contemporâneas do Desejo”, de Suely Rolnik
(2016/1989). Esse é o título de uma seção que compõe o capítulo VII, “O cartógrafo”, onde a
autora discorre sobre inúmeros aspectos associados à prática cartográfica. Me inspirei nesse
título para construir algo que nada mais é do que uma tentativa de tornar mais claro o ‘processo’
desta cartografia, aspectos que por várias razões não ‘couberam’ nas demais linhas do trabalho.
Não couberam, vale dizer, não por serem de menor importância (muito pelo contrário!), mas
pela quebra da narrativa naquelas páginas fui construindo. Nesse sentido, apresentar esse
manual, nesse momento, constitui-se um recurso usado por mim para esclarecer procedimentos
de cunho metodológico (e também teórico) da pesquisa, apenas uma outra possibilidade de
experimentação nesse fazer científico. A expectativa é que esse manual, que obviamente sugiro
que seja entendido como um projeto inverso ao que o próprio termo denota, permita que o leitor
consiga se aproximar mais da experiência vivida nessa trajetória de pesquisa.

Primeiras aproximações

Ao definir que o tema estudado seria a velhice naquele território em particular comecei a buscar,
em termos metodológicos, quais os caminhos me ajudariam a chegar até lá. Tendo em vista
minha aproximação com os autores Deleuze e Guattari, logo a cartografia apareceu como uma
possibilidade. Até então a percepção que eu tinha sobre ela era a ideia de mapa, de desenho e
de território. Após muitas leituras sobre o tema, as dúvidas persistiram: Como fazer? Como
começar? Onde isso vai me levar? Entendi ao longo do percurso que essas questões jamais
seriam respondidas antes da própria imersão naquele território, da experimentação, da vivência,
do se deixar levar. Falar parece fácil, mas foi inicialmente um pesadelo. Por mais que eu fosse
uma pesquisadora interessada por questões sociais, com experiência em pesquisas qualitativas
do tipo etnográfica, que me considerasse crítica e aberta ao novo... a cartografia foi algo
totalmente diferente. Nesse sentido, aos poucos fui compreendendo que realmente estava
produzindo dados, não os coletando; que fazer emergir o corpo vibrátil é mais que um desejo,
é um exercício que nunca se aprende por completo e que a palavra controle (etapas certas,
definições de sujeitos de pesquisa, sequência de narrativas) não existe nesse vocabulário (e não
337

deve mesmo existir!). É por isso que falar de um manual cartográfico é uma grande bobagem...
nada aqui poderá ser replicado, mas quem sabe sirva como inspiração ou mesmo um norte para
quem escolher a cartografia para rastrear algum campo de interesse. Na verdade, eu gostaria
muito de ter encontrado algo parecido no meu percurso de pesquisa, então ofereço a você leitor,
com carinho.

A. Sobre a permanente produção de dados

Na minha experiência, o momento em que resolvi fazer uma cartografia marcou o início da
produção dos dados, talvez até antes, uma vez que parte do território que escolhi pesquisar era
aquele em que vivia cotidianamente. Digo isso porque visitar o mercado municipal da cidade
para ‘fazer a feira’, como dizemos por lá, era uma rotina que havia internalizado desde a minha
mudança para a cidade de Araçuaí. Meu contato com os velhos lavradores se dava
principalmente nesse espaço, todos os sábados pela manhã. Também os encontrava e observava
no andar cotidiano pela cidade, quando nos cruzávamos nas filas do banco e nas ruas. Eles
nunca escaparam ao meu olhar, mas é claro que a partir da definição da pesquisa essa atenção
se tornou maior e mais detalhista. O que quero dizer é que a produção de dados se dá a todo
o momento da cartografia, mesmo quando da escrita do trabalho em suas linhas finais. Não
há tempo separado de coleta como eu estava acostumada a realizar (e penso que muitos
pesquisadores como eu), tudo se dá ao mesmo tempo.

E dentro dessa produção permanente de dados as mudanças de curso são inevitáveis, na verdade
são inerentes ao processo. Como relatei no capítulo metodológico, o projeto inicial que tracei
era de encontrar esses velhos no espaço do mercado – espaço no qual eu já os havia visto e
conversado. Entretanto, nas várias idas ao mercado as conversas com os velhos não
aconteceram como eu previa, como eu gostaria/imaginava que fossem ser... talvez em termos
de coleta das narrativas, se eu prosseguisse conseguiria ‘resolver’ a pesquisa, mas sabia que não
era essa a proposta da cartografia. De fato, a cartografia é uma experiência que se dá nos
encontros. Refletindo sobre a potência de encontros que eu acreditava ser o que daria vida à
pesquisa, busquei por outros caminhos, outros interlocutores, outras formas de chegar aos meus
sujeitos de pesquisa. Mas nesse momento me senti frustrada, aquele projeto redondinho de
pesquisar os velhos que se encontravam no território do mercado municipal não se concretizou.
338

Como relatei anteriormente, cheguei aos velhos cujas histórias compõem essa pesquisa por
meio de outras pessoas que os conheciam e que quando eu explicava sobre os objetivos do
trabalho diziam: “Ah, seria bom você conversar com a Dona Fulana”. Indicações que a maior
parte das vezes se transformaram em companhias de ‘viagem’, o que agora ao final avalio como
essencial para a construção que realizamos. Digo construção porque essas pessoas participaram
ativamente do processo cartográfico e, portanto, são coautores dessa pesquisa. Na minha
experiência, a prática cartográfica é uma realização coletiva, em vários sentidos. Tanto na
indicação dos sujeitos, na atuação de cada um deles cotidianamente naquele território, nas
presenças nos momentos de encontros, nas suas próprias narrativas coletadas.

Vou exemplificar essa questão a partir de uma situação que apresentei ao longo do trabalho.
Viajamos várias vezes para as comunidades e na maior parte delas tive a companhia de Jeane
Doneiro, autora das fotos e bolsista voluntária da pesquisa. Jeane é aluna do curso de
Administração do Instituto Federal de Minas Gerais e foi uma das pessoas que ‘comprou a ideia
da pesquisa’. Apesar de ser natural da região, nunca havia conhecido as comunidades que
visitamos, nem havia estudado o tema da velhice ou mesmo pensado que era possível fazê-lo
no registro da Administração. Quando propus a ela me acompanhar e fazer os registros
fotográficos, ela aceitou como se estivesse embarcando em uma aventura, mas se envolveu de
tal forma que se tornou parte fundamental. Nas narrativas dos velhos Jeane é citada por eles e
envolvida nas histórias, quando retornamos às casas deles, eles logo perguntavam por ela e
chegavam a dizer: “Ah, que bom que a menina veio, estava com saudades”. Jeane é parte dessa
cartografia que com certeza seria outra, caso ela não estivesse. Assim aconteceu com Cisco
(motorista do IFNMG e ex-funcionário da ASSOCIAR), Ivani (Diretora do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais, Membro da Associação Comunitária de Tesouras de Cima e Filha do
Seu Zezé das Tesouras), Miro (Também motorista do IFNMG e ex-funcionário de uma das
escolas nucleadas), enfim, pessoas que compuseram significativamente esse território.

Especificamente sobre os diálogos empreendidos nesses encontros, talvez seja interessante


detalhar um pouco melhor sobre como eles se realizaram. A maior parte deles se deu, no caso
dos velhos, em momentos de visitas as suas casas, em meio à deliciosos convites para cafés e
almoços. Visitamos, conversamos, observamos. Praticamente em todas as visitas tive, como
disse anteriormente, a companhia de outros sujeitos, incluindo Jeane. Entretanto, a maior parte
dos diálogos com os velhos foram realizados em um cômodo separado da casa, a sós, para que
pudéssemos nos concentrar (eu e eles) nas narrativas que ali estavam sendo produzidas. Com
339

algumas interrupções e, até mesmo participações, havia sempre um momento em separado de


atenção e escuta atenta das histórias. Não havia um roteiro pré-estabelecido a ser contemplado.
Muito mais me interessava a atitude de me deixar levar pelos caminhos desenhados por cada
um dos sujeitos. Obviamente, tinha sempre em mente os objetivos da pesquisa os quais
elencavam algumas temáticas de interesse que ora e outra eram recuperadas por mim ao longo
dos diálogos: infância, família, terra, velhice, comunidade, trabalho, corpo. O mesmo fiz em
relação aos outros participantes da pesquisa: os objetivos eram claramente explicitados logo de
início e assim a conversa fluía, tendo como pano de fundo o interesse em saber como aquelas
instituições que cada um deles representa (poder público e instituições do terceiro setor e
sociedade civil) atuam na construção do rizoma velhice naquele território.

Importante dizer também sobre um aspecto fundamental nesse processo de pesquisa: a questão
ética e os dilemas que se colocam em termos de lugar de fala. Na construção da cartografia a
ética é fundamental e consiste, basicamente, em deixar claro a todo o momento o que se
propõe com a pesquisa. Muito me questionei antes de chegar até os sujeitos, entrar na casa
deles e coletar suas narrativas sobre como eu deveria me portar, como deveria me apresentar e
falar sobre a pesquisa. Me questionei, por exemplo, se me apresentar como professora do
IFNMG seria estabelecer ali automaticamente uma hierarquia, pois o lugar de fala do professor
para esses sujeitos é o lugar do conhecimento e do respeito. Não consegui pensar em outra
forma de fazê-lo... Foi assim que fui reconhecida por cada um dos sujeitos com quem conversei:
velhos, familiares e representantes de instituições. Por isso ouvi: “Não sei contar minha história
não...”, “Não preciso nem falar isso porque a senhora é professora”, “A senhora me desculpe
esse meu jeito...”. Minha estratégia foi desconstruir esse lugar ao longo das conversas, mostrar
que naquele contexto quem deveria ‘ensinar’ algo eram elas e eles, que aquele universo era em
muitos sentidos estranho para mim. Eles me apresentaram vegetais e frutas que eu não conhecia,
me ensinaram modos de falar e de fazer particulares, me passaram receitas para curar doenças,
dentre outras tantas coisas que nos ajudaram a construir laços, nos tornar próximos, a
experimentar cumplicidade. Não há cartografia sem a imersão naquilo que se pretende
cartografar.
340

Essa foto foi um presente que recebi de um colega que nos acompanhou na ida à comunidade
de Tesouras. Nesse momento estávamos várias pessoas sentadas na sala da casa do Seu Emílio
aguardando o almoço e conversávamos sobre amenidades, lembrávamos da última visita e ele
me dizia do quanto estava contente por nos receber novamente. Esse colega registrou o
momento e depois me enviou dizendo ter achado a foto muito bonita. Eu concordo, é um dos
meus registros preferidos da produção da pesquisa, porque traduz imageticamente um
sentimento inexplicável em todo esse processo. Para uma legenda eu escolheria: “A potência
dos bons encontros”.

Outro momento importante que diz respeito ao pressuposto de que a cartografia é uma
construção coletiva ficou evidente no momento de diálogo e co-construção das/sobre as
histórias dos velhos. Após as primeiras narrativas recolhidas escrevi as histórias de cada um
tentando sistematizar parte daquilo que haviam me contado, os resultados foram os
apresentados na abertura da tese. Um ano após essas primeiras visitas retornamos a todas as
comunidades com as histórias em mãos, impressas e com as fotos tiradas por Jeane naquela
ocasião. Foi emocionante, belo, potente. Primeiro eles viram as fotos, alguns olharam
341

admirados e outros logo comentaram: “Ai meu Deus!”. Para aqueles que não sabem ler fiz a
leitura em voz alta, pausadamente, aproveitando para observar cada reação. Outros leram
sozinhos, concentrados. De todos ouvimos suas impressões, perguntei sobre o que gostariam
de mudar, acrescentar, descartar. Eles disseram: “Nossa, está direitinho... tudo aí eu que falei
mesmo! Eu gostei”; “É isso mesmo, minha história” e ainda, “Que bom, agora vou poder
mostrar meus filho a minha história, muita coisa daqui eles não sabe!”.

Fonte: Jeane Doneiro, 2018.

Nesses momentos em especial novas narrativas surgiram, outros temas foram abordados, novas
emoções emergiram. Percebi que a prática cartográfica não tem fim, ela nunca será
suficientemente ‘completa’ para dar conta daquele território. Na realidade, ela nunca se propôs
a isso, o que fiz foi um rastreio que por mais que tenha tentado abarcar o movimento, ele é um
retrato, um registro transitório.

B. Sobre a análise de dados

O grande volume de dados produzidos na cartografia inicialmente me causou certo


desconforto... Desde o início do trabalho sabia da necessidade de explorar o território, por isso
mesmo pensar em uma proposta como a da cartografia me pareceu coerente. Mas não imaginava
de antemão como seria lidar com esse grande volume de informação, de tantas forças que se
342

fizeram evidentes (outras nem tanto) e de tantos afetamentos. De alguma forma foi preciso
começar e fiz isso quase que intuitivamente, ainda que influenciada por toda uma trajetória de
pesquisa qualitativa marcada por apostas em técnicas de análise como a Análise de Conteúdo e
a Análise de Discurso. Quando digo intuitivamente mais uma vez em nenhum momento estou
dizendo que fui menos rigorosa ou mesmo cuidadosa com os dados produzidos – muito pelo
contrário – a preocupação era como evidenciá-los da melhor forma possível, respeitando a cor
e a intensidade com que eles me foram generosamente apresentados.

Iniciei então esse processo analítico com uma leitura sucessiva das transcrições das entrevistas
e narrativas biográficas. Quando digo sucessivas – foram sucessivas mesmo! Entendam como
leituras e mais leituras desses textos, com o objetivo de reconstruir esse percurso investigativo
criando novos olhares e flertando com os possíveis tangenciamentos entre os diversos atores e
suas histórias, memórias e relatos. Após esse primeiro momento de caráter um pouco mais
amplo, optamos por segmentar a leitura desses textos a partir da construção do mapa da
pesquisa, em que evidenciamos narrativas institucionais, narrativas de instituições da sociedade
civil e narrativas de velhos.

Vou então, dentro da proposta de um ‘manual’ que nenhuma fórmula pretende ensinar ou
prescrever, destacar os passos que aos poucos foram dando contornos à análise realizada.

PASSO 1. Concentrei-me inicialmente nas narrativas dos velhos. O primeiro passo foi o
mergulho nessas narrativas de modo a elaborar um rascunho de suas histórias que seriam
posteriormente negociadas e coconstruídas com os sujeitos. Nesse momento inicial revisei as
narrativas em conjunto com as anotações do diário de bordo. Como é característico das
narrativas biográficas, organizei os fatos narrados em ordem difusa e não linear e apresentei em
um formato quase que cronológico, de modo a apresentar aos leitores da tese esses sujeitos e
suas riquíssimas histórias. Optei por uma apresentação das histórias que mesclasse a narrativa
dos sujeitos e as percepções do pesquisador o que, além de um recurso estilístico, permitiu
incluir nessa construção os afetamentos – algo muito caro a essa pesquisa. Baseei a construção
dessas histórias em temas-chave que emergiram nas conversas: Infância, Família, Trabalho,
Velhice. A partir desse primeiro rascunho das histórias, como disse anteriormente, retornei aos
sujeitos para que eles pudessem ler, repensar, reconstruir, corrigir, negar, enfim, para eu
conseguisse de fato realizar um processo que fosse de co-construção. Esse retorno aconteceu
343

por volta de um ano após as primeiras visitas e essa retomada foi fundamental para os resultados
da pesquisa.

PASSO 2. Paralelamente à construção das histórias retomei constantemente os objetivos da


pesquisa para ser capaz de manter o foco em meio a tanto material. Não podia perder de vista
que o intuito principal era rastrear os modos de ser velho naquelas comunidades e, de forma
específica, compreender que papel tinha o trabalho nessa construção da velhice. Tinha como
ponto de partida então dois temas velhice e trabalho, em torno dos quais fui categorizando
todas as transcrições das narrativas (dos velhos e das instituições). Essas leituras sucessivas
mostraram a necessidade de incluir outra temática: o cotidiano da vida no campo. Assim defini
os três eixos analíticos da pesquisa, de acordo com a perspectiva da narrativa temática: 1. A
vida no campo; 2. A velhice no campo e 3. O trabalho no campo. Dentro de cada um desses
eixos outros temas aparecem e foram analisados, sempre mantendo em mente os objetivos da
pesquisa. Optei por não utilizar softwares que dão suporte à análise de dados qualitativos, até
mesmo pela falta de familiaridade com esses recursos e, em função disso, tive muitas
dificuldades em organizar e sistematizar todos os dados. Esse processo manual e artesanal
demandou, além das inúmeras leituras, a criação de um número significativo de arquivos para
categorização dos diferentes subtemas e sucessivos movimentos de cruzamento entre as
narrativas.

PASSO 3. As fotografias foram produzidas desde os primeiros momentos da pesquisa.


Inicialmente, tínhamos como tom principal o registro para composição dos dados do estudo e
meu pensamento era de utilizá-las em um caráter ilustrativo das visitas, dos sujeitos e dos
eventos. Após estar com as fotografias em mãos me surpreendi pela qualidade das fotos em
termos da riqueza das narrativas que elas expressam. Após o contato com bibliografias
referentes ao uso de imagens em pesquisas qualitativas, me aprofundei nas possibilidades e me
preparei para que novas fotografias fossem registradas para a construção de um ensaio
fotográfico. Empreendi com as fotografias o mesmo processo de análise temática, o que
resultou na composição do capítulo 5 do trabalho. Sem a pretensão de atingir patamares
profissionais no que diz respeito à qualidade das imagens ou mesmo a realização de uma análise
de cunho técnico (luz, enquadramento, foco), optei por dar um lugar de destaque para as
narrativas que elas fazem evidentes. A avaliação ao final de todo esse percurso é que as
fotografias foram fundamentais na construção dessa cartografia, tanto em termos de técnica de
produção de dados quanto para a construção do mapa final do estudo. Aqui gostaria de ressaltar
344

os efeitos das fotografias para os sujeitos, tanto no sentido de serem ‘personagens’ daquelas
imagens quanto a experiência de se reconhecerem velhos naqueles ‘espelhos’. Ser os
personagens das fotos, embora no momento inicial eles tenham se mostrado constrangidos ou
mesmo desconfortáveis, a partir das conversas e do esclarecimento dos objetivos (contar sua
história) geraram efeitos: eles sugeriram cenários para as fotos e se prepararam com adereços
(chapéu e batom) e outras vestimentas. Por outro lado, as imagens também geraram efeitos no
momento de vê-las reveladas algum tempo depois, elas geraram oportunidades de
reconhecimento da velhice registrada no corpo, atribuir significados e (re)construir memórias.

Seguir esses passos me levou a esse formato final da tese, que longe de ser um produto acabado
é um mapa circunstancial, parcial e transitório. Enquanto produção acadêmica, me sinto
satisfeita por de certa maneira contribuir para a construção de conhecimento sobre esses sujeitos
nesse território, mas nenhuma satisfação se compara a de ter vivido essa experiência em que
muito mais aprendi. Talvez como um manual esse texto não preencha os requisitos, mas o
intuito foi de compartilhar os desafios e caminhos que marcaram essa cartografia dos modos de
ser da velhice e do trabalho rurais no médio Vale do Jequitinhonha.
345

APÊNDICE C

Quadro – Levantamento da produção nacional de Teses e Dissertações sobre velhice rural


Título Tipo* Ano Autor Área
O olhar do idoso sobre a finitude: D 2008 Sandra Psicologia
Um estudo sobre as representações Carolina
sociais da morte em Idosos de uma Faria De
cidade do Sertão de Pernambuco Oliveira
Da velhice da praça à velhice da T 2010 Adriana De Antropologia
roça: revisitando mitos e certezas Oliveira
sobre velhos e famílias na cidade e Alcântara
no rural
Políticas Sociais, Previdência e D 2010 Eliane Sociologia
Trabalhadores Rurais: Reflexões a Resende
partir de vidências recentes no Moreira
estado de Sergipe
Entre a valentia do boi e as fibras T 2010 Alessandra Ciências Sociais
do sisal: narrativas e imagens de Alexandre
velhos agricultores sobre seu Freixo
ambiente
A aposentadoria do idoso do meio D 2011 Vívian Economia
rural: Implicações na Oliveira Doméstica
Administração dos recursos Tavares
familiares e na qualidade de vida
O idoso pomerano hipertenso e a D 2012 Elry Cristine Políticas Públicas
estratégia saúde da família: a Nickel
experiência de uma comunidade Valério
rural
Rotinas de tempo livre e lazer da T 2013 Terezinha De Educação
velhice rural em cenários Jesus Lima
brasileiros
Professoras aposentadas em T 2013 Isabel Educação
território rural/ribeirinho: Cristina
identidades e práticas socioculturais França
Rodrigues
As Velhices que Habitam os T 2013 Maria Sociologia
Sertões: Cartografia dos Modos de Rosangela
Envelhecer e Morrer no Semiárido De Sousa
Piauiense
Hipermodernidade no cotidiano de T 2013 Maria Educação
pessoas idosas: A instauração do Cleonice
futuro mutante no imaginário de Mendes de
órfãos do passado Souza
Saberes vivenciais de idosos frente D 2013 Flavia Educação
sua experiência no espaço escolar de Peruzzo
uma área rural
A institucionalização do habitus D 2014 Vanessa Ciências Agrárias
previdenciário rural na vida dos Aparecida
346

idosos que vivem no campo: em Moreira De


análise os municípios de Piranga e Barros
São Miguel do Anta, Minas Gerais
A influência da atividade física nos D 2014 Milena Psicologia
perfis de fragilidade, Vieira
funcionalidade, cognição e Coelho
qualidade de vida em populações de
diferentes contextos ambientais
rurais e urbanos
Tempo de plantar, tempo de colher: T 2014 Aurea Da Educação
mulheres idosas, saberes de si e Silva Pereira
aprendizagens de letramento em
saquinho
Sobre envelhecer e ser velho em T 2014 Estela Saleh Serviço Social
liberdade: religiosidade, trabalho e Da Cunha
família em um pequeno município
da zona da mata mineira
Trabalho Leve e Trabalho Pesado T 2014 Eveline Sociologia
nos processos de aposentadoria Lucena Neri
especial rural
As múltiplas mortes de si: suicídios D 2014 Claudia Ciências Sociais
de idosos no Sul do país Weyne Cruz
Educação, memórias e saberes D 2014 Delcia Educação
amazônicos: vozes de vaqueiros Pereira
marajoaras Pombo
Velhice e espaço rural: (re) D 2015 Aline Políticas públicas e
desenhando discursos Gadelha sociedade
Duarte
Preditores da felicidade em D 2015 Silvia Psicologia
aposentados do meio urbano e rural Miranda
Amorim

Uma morte selvagem, mãe de todos! D 2016 Giliane Psicologia


Narrativas sobre a morte por idosos Cordeiro
e idosas rurais Gomes
"A peleia dos velhos do/no Karú": D 2016 Elaine Lima Sociologia Política
discursos/percursos sobre Da Silva
envelhecimento em São José do
Cerrito/SC
Condições de viabilização e acesso à D 2016 Jéssica Da Serviço Social
aposentadoria rural em Maués/AM. Silva Barreto
Memórias compartilhadas: uma D 2016 Maria Das Ciências Sociais
etnografia sobre a trajetória do Candeias
idoso e o papel da memória na Dos Santos
construção de identidades étnicas
nas comunidades quilombolas de
São Braz e Cambuta, em Santo
Amaro - BA.
347

Um homem e mil histórias D 2016 Jordana Antropologia


Cristina Social
Barbosa
A influência da aposentadoria rural D 2017 Núbia Economia
no habitus da mulher idosa em um Cristina De Doméstica
pequeno município da zona da mata Freitas
mineira
"Quando chega a idade": D 2017 Franciely Sociologia
Experiências de envelhecimento na Fernandes
comunidade Nossa Senhora da Duarte
Guia, Lucena/PB
Os impactos da política de D 2017 Leticia Alves Administração e
previdência rural em comunidades: De Melo Desenvolvimento
O Caso do Vale do Catimbau - rural
Buíque-PE.
Eletrificação rural no baixo- T 2017 Valmiene Políticas Públicas
amazonas: da concepção da Política Florindo
às mudanças nas condições de vida Farias Sousa
dos idosos impactados pelo
Programa “Luz para Todos”

Campesinato, envelhecimento e o T 2018 Elisiane de Educação


crédito consignado: Fátima Jahn
o papel educativo de Movimentos
Sociais em relação a vida de idosas
camponesas e
idosos camponeses
*T= Tese e D = Dissertação.
Fonte: Elabora pela autora.
348

APÊNDICE D

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