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cientíica ao longo de mais de 40 anos de pes-


quisa e docência em Linguística Românica
na principal universidade brasileira. Seu mais
recente livro revela toda a sua erudição e co-
nhecimento e representa uma série de avan-
ços em relação a outras obras do gênero, in-
clusive clássicos como o Manual de Linguística
Românica, de Heinrich Lausberg, por exemplo.
O livro adota terminologia linguística moder-
na e representação fonológica conforme aos
padrões internacionais vigentes, ao contrário
da maioria das obras de romanística, que, por
serem mais antigas (e, diga-se de passagem,
há muito não se publicava um compêndio tão
completo como este), trazem notações e no-
menclaturas desusadas.
Outro grande mérito do livro são as inú-
meras citações latinas, seguidas de tradução
em português para os não versados em latim,
que documentam os registros históricos e as
abonações de formas lexicais e sintáticas des-
de a fase pré-clássica até os autores do latim
medieval e eclesiástico.
Os dois volumes de Elementos de Filologia
Românica são fruto de muitos e muitos anos
BAssetto, Bruno Fregni (2010): Ele- de pesquisa, o que se relete no levantamento
mentos de Filologia Românica: bibliográico exaustivo e na própria quantida-
História Interna das Línguas Româ- de de conteúdo. Completa a obra um utilíssi-
nicas, v. 2. São Paulo: Editora da Uni- mo índice temático. Seria oportuno, no entan-
versidade de São Paulo, 456 pp. to, que também houvesse um índice remissi-
vo de palavras, pois, em manuais desse tipo,
Foi recentemente publicado o segundo vo- o leitor busca muitas vezes pelo termo latino
lume de Elementos de Filologia Românica, do ou românico e não pelo fenômeno linguístico
Professor Bruno Fregni Bassetto. Em continua- que ele representa.
ção ao primeiro volume da obra, de 2005, que Defeitos, a obra tem alguns que é forçoso
enfocava a história externa das línguas româ- mencionar, mas perfeitamente sanáveis nas
nicas, este novo volume, que trata agora da próximas edições, que, com certeza, serão
história interna dessas línguas, já chega como muitas. Em termos formais, notam-se falhas
um clássico e leitura obrigatória por todos os de revisão, sobretudo em exemplos estran-
estudiosos do tema, sejam alunos, professo- geiros (parece que o inoportuno corretor
res, pesquisadores ou mesmo curiosos com ortográico do processador de textos insistiu
interesse em linguística histórica e ilologia em “corrigir” palavras espanholas ou italianas
das línguas europeias. segundo a ortograia do português) e em ta-
O autor, titular emérito de Filologia Româ- belas, em que algumas células estão trocadas
nica da Universidade de São Paulo, dispensa ou repetidas.
apresentações, já que é um dos mais emi- Em termos de conteúdo, em que pesem os
nentes e conceituados romanistas de língua inúmeros méritos do livro e as preciosíssimas
portuguesa, com vasta e relevante produção informações nele contidas, há alguns equívo-

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cos conceituais que merecem ser comenta- (nasal) por assimilação com s, e monotongação
dos. Em primeiro lugar, o autor parte de uma de au para o.
má deinição de vocábulos cultos, semicultos Outro equívoco é a apresentação da palavra
e herdados, classiicando como cultos alguns domnie como exemplo do suixo -ie (< lat. -ia <
termos que, a rigor, são semicultos, e, por falta grego -ía) em romeno (p. 182). Segundo Teodo-
de clareza na redação, sugerindo que palavras ro Henrique Maurer Jr. (A Unidade da România
formadas a partir de termos herdados tam- Ocidental, 1951), esse suixo não tem a ver com o
bém são herdadas. -ía grego ou latino e aponta como indício o fato
Em segundo lugar, alguns (felizmente de que nenhuma palavra romena terminada em
bem poucos) exemplos são inadequados: -ie tem correspondente em línguas da România
numa ou noutra ocasião, o autor ilustrou a ocidental; além disso, ele mostra que em alguns
evolução fonética em uma língua por meio dialetos da Dácia a forma da palavra é domnilie,
de termo importado de outra; em alguns ca- o que indica que -ie proviria de -ilia e não de -ía.
sos, semicultismos foram mencionados como Mas, a meu ver, o maior problema do livro
exemplos de metaplasmo hereditário. é a adoção de algumas posturas teóricas in-
Há também algumas etimologias erradas, sustentáveis, baseadas em deinições grama-
como latim quassare > português cansar (na ticais superadas ou contraditadas por pesqui-
verdade, cansar provém do lat. campsare) e sas mais modernas. Senão vejamos.
outras não consensuais, como lat. tottus > Ao falar sobre os processos românicos de
francês tout, italiano tutto (a forma latina vul- formação de palavras, Bassetto airma, inspira-
gar mais provável é tuttus) e lat. vulgar accum do em Dionísio Trácio (p. 167):
illud > port. aquilo (é fato sabido que na Ibéria
e na Dácia o e inicial das palavras latinas passa- Esse é o conceito de composição: formação de
va a a enquanto na Gália e Itália desaparecia; palavra pela junção de dois ou mais elemen-
portanto, eccum illud é suiciente para explicar tos do sistema linguístico semanticamente
tanto o port. aquilo quanto it. quello). compatíveis. O foco central do processo de
Ainda em relação a etimologias, à p. 281 o composição é, portanto, formal. A derivação,
Prof. Bassetto airma, na esteira de outros roma- porém, é um processo semântico, em que há
nistas, que a desinência número-pessoal -ons da deslocamento do núcleo de signiicação; […]
primeira pessoa do plural em francês provém de Esse descolamento (sic), não ocorre sempre na
um suposto lat. -umus por analogia com a for- composição. Dito de outro modo, nem toda
ma verbal sumus (‘nós somos’). Ora, essa expli- composição é uma derivação. Consequente-
cação suscita vários problemas. Primeiro, sumus mente, não se pode falar em derivação nos ca-
deu em fr. sommes e não *sons. Segundo, por sos dos suixos considerados gramaticais (grau,
que todos os verbos franceses, em sua maioria gênero e número nos nomes, v.g., port-inh-a-s,
regulares, iriam tomar como modelo de lexão e tempo-modo e número-pessoa nos verbos,
um verbo irregular do latim que é único em seu como em fal-á-sse-mos) […] O mesmo se dá
paradigma? Terceiro, para que o fr. chantons pro- com os preixos, como com o verbo pôr, “colo-
viesse de um suposto *cantumus, seria necessá- car”, que admite compostos praticamente com
rio que o u fosse longo (isto é, *cantūmus, forma todos os preixos – apor, antepor, compor, con-
inconcebível em latim), caso contrário a palavra trapor, depor, dispor […], nos quais não se altera
seria proparoxítona em latim e paroxítona em o signiicado básico de “colocar”, mas apenas
francês. E se proviesse de *cantūmus, a forma fr. acrescenta-se uma noção adverbial, que não é
seria *chantuns. Mais plausível é postular -amus suiciente para causar uma derivação, uma vez
> -amos > *-ams > *-auns > -ons; neste caso, to- que o signiicado básico permanece o mesmo:
dos os metaplasmos são regulares: síncope do “colocar”, apenas acrescido da ideia adverbial
o, dissimilação da labial nasal m em u (labial) e n própria ou igurada do preixo.

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Nesse trecho, é visível a confusão entre os Sintetizando, número é categoria lexio-


conceitos de composição e derivação: “nem toda nal; gênero é categoria lexional no adjetivo
composição é uma derivação”. Melhor teria sido e derivacional no substantivo; grau é sempre
se o autor tivesse falado em processos de síntese derivação (nem todo substantivo tem aumen-
lexical (composição e derivação, com seus subti- tativo ou diminutivo, e as categorias lexionais
pos) em suas deinições formais modernas, que são obrigatórias; a maioria dos adjetivos só
fazem abstração do aspecto semântico, sempre apresenta grau na forma analítica, o que indi-
instável, da palavra. A seguir, fala dos “suixos ca que não se trata nem de lexão nem de de-
considerados gramaticais”, que, na verdade, não rivação, já que é um processo que transcende
são suixos, são desinências, responsáveis pelas os limites da palavra).
categorias de lexão (que são obrigatórias) e Ainda assim, os méritos e qualidades da
não pela derivação, que é facultativa. (Seguindo obra superam em muito esses pequenos des-
nessa imprecisão terminológica, Bassetto vol- lizes que, apesar de tudo, em nada compro-
ta a falar, à p. 276, em suixo modo-temporal e metem a compreensão do processo evolutivo
suixo número-pessoal). Como resultado dessa das línguas românicas em seus aspectos inter-
confusão, fala no grau dos nomes como se fos- nos. Muito pelo contrário, Elementos de Filolo-
se uma categoria lexional. Ora, aumentativos, gia Românica é desde já referência indispen-
diminutivos, comparativos, superlativos não são sável aos estudos de ilologia, crítica textual,
lexões de grau, são derivações (que em muitos linguística histórica, românica, comparada e
casos têm etimologia diversa da dos termos pri- demais áreas ains. Uma obra de fôlego, des-
mitivos). Também é questionável a airmação de tinada a ter sucesso e longa vida.
que a composição é um processo formal e a de-
rivação, um processo semântico. Aldo Bizzocchi
Outra impropriedade conceitual é air-
mar que a preixação não é uma forma de
derivação porque não altera o signiicado da
base do vocábulo. De fato, nos exemplos es-
colhidos (pôr, apor, antepor, etc.), o sentido de
‘colocar’ permanece. Mas cometer não se re-
laciona (mais) com meter, nem retratar e con-
tratar têm algo a ver com tratar. Se no latim
eventualmente havia parentesco semântico
entre esses termos, isso foi obscurecido pela
evolução linguística. Do mesmo modo, porti-
nha e condessa são derivados de porta e conde
(e não lexões), mas conservam o signiicado
básico de seus primitivos. Portanto, a semânti-
ca não é um bom critério de identiicação dos
processos de síntese lexical. Em resumo, tanto
a composição quanto a derivação são proces-
sos formais, que dizem respeito unicamente à
natureza morfológica dos constituintes (lexe-
mas ou gramemas). Aliás, o autor não consi-
dera os graus diminutivo e aumentativo como
derivações porque supostamente não há mu-
dança de signiicado. Entretanto, há inúmeros
contraexemplos: fogão não é um fogo grande,
nem santinho é um santo pequeno.

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