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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

CENTRO DE ARTES, HUMANIDADES E LETRAS


BACHARELADO EM ARTES VISUAIS

VICTÓRIA BARRETO OLIVEIRA

ACOMODAÇÃO DOS OSSOS:


AFETO, CORPO E SUBJETIVIDADE EM PROCESSOS DE CRIAÇÃO

Cachoeira
2023
VICTÓRIA BARRETO OLIVEIRA

ACOMODAÇÃO DOS OSSOS:


AFETO, CORPO E SUBJETIVIDADE EM PROCESSOS DE CRIAÇÃO

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao


colegiado do bacharelado em Artes Visuais da
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia,
como requisito para a obtenção do título de
bacharela em Artes Visuais.
Orientação: Prof. Drª. Priscila Miraz de Freitas
Grecco

Cachoeira
2023
VICTÓRIA BARRETO OLIVEIRA

ACOMODAÇÃO DOS OSSOS: AFETO, CORPO E SUBJETIVIDADE EM


PROCESSOS DE CRIAÇÃO

Memorial apresentado como requisito para obtenção do grau de Bacharel em Artes Visuais,
Centro de Artes, Humanidades e Letras, Universidade Federal do Recôncavo da Bahia.

Cachoeira, 31 de maio de 2023.

BANCA EXAMINADORA

Priscila Miraz de Freitas Grecco (Orientadora): _____________________


Doutora em História pela Universidade Estadual Paulista/ Assis.
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia.

Antônio Carlos de Almeida Portela __________________________


Doutor em Artes Visuais pela Universidade Federal da Bahia.
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia.

Silvio Cesar Oliveira Benevides __________________________


Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia.
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia.
TERMO DE AUTORIZAÇÃO PARA PUBLICAÇÃO DIGITAL -
BIBLIOTECA CENTRAL DA UFRB

1 Identificação do tipo de documento


Tese [ ] Dissertação [ ] Monografia [ ] Trabalho de Conclusão de Curso [ x ] Memorial [ ] Outros [ ]

2 Identificação do autor e do documento

Victória Barreto Oliveira


Nome completo: _____________________________________________________________________________
065.770.485-76
CPF:_________________________________________________________________________
2017204378 (75) 9 9226-4098
Nº de Matricula do Curso:___________________Telefone:___________________________
vikkyoliveira69@gmail.com
e-mail:____________________________________
Bacharelado em Artes Visuais
Curso de Pós-Graduação/Graduação/Especialização:__________________________
_____________________________________________________________________________

2.1 Título do documento:


acomodação dos ossos: afeto, corpo e subjetividade em processos de criação
_____________________________________________________________________________________________________
_____________________________________________________

31 / 05 / 2023
Data da defesa: ______________________________________

3 Autorização para publicação na Biblioteca Digital da UFRB


Autorizo com base no disposto na Lei Federal nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998 e na Lei n o 10.973, de 2 de dezembro
de 2004, a Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) disponibilizar gratuitamente sem ressarcimento dos direitos
autorais, o documento supracitado, de minha autoria, na Biblioteca da UFRB para fins de leitura e/ou impressão pela
Internet a título de divulgação da produção científica gerada pela Universidade.
Texto completo [ x ] Texto parcial [ ]
Em caso de autorização parcial, especifique a (s) parte(s) do texto que deverão ser disponibilizadas:
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_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________

3. Local Data Assinatura do (a) autor (a) ou seu representante legal

Cachoeira - BA, 31/07/2023,


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4 Restrições de acesso ao documento


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[ x ] Não
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Conforme Resolução 003/2018 do CONAC, Após a apresentação e aprovação do trabalho, o aluno deverá encaminhar duas
copias do trabalho final em mídia digital (em formato pdf) devidamente assinada pela Banca e pelo Orientador para registro
no Colegiado do Curso e 1 (uma) mídia para ser encaminhada para a Biblioteca onde o curso funciona acompanhada do
termo de autorização para publicação .
AGRADECIMENTOS

Agradecer é um ato que parece feito de fermento, quanto mais agradecemos, por mais
coisas temos a necessidade de agradecer.
Agradeço ao Universo por seus mistérios, suas forças, suas providências e livramentos,
por estar comigo em cada passo dado, pelos ensinamentos e pelos caminhos ora fechados, ora
abertos. Agradeço por sempre poder contar com a minha família para o que quer que seja
necessário. À minha mãe Virgínia, por todo suporte, por estar disponível sempre que precisei e
por me ensinar a sempre ter fé. À minha irmã Bárbara, por se preocupar comigo, pelos puxões
de orelha, por me instigar a sempre me superar e a ser mais durona. Ao meu irmão Matteus,
pelo apoio e incentivo financeiro e intelectual aos estudos desde que me entendo por gente, e
por acreditar em minha capacidade quando nem eu mesma acreditava. Ao meu pai Roberto,
apesar da ausência nos últimos anos, por me doar e me ensinar cuidado, carinho e
companheirismo.
Agradeço aos amigos que conheci durante o curso – em especial à Joadson, Drica,
Carmen, Bia, Mari, Elayne, Roberta, Laissa, Sarah, Maria e Taynara – pelo compartilhar de
aventuras, alegrias e perrengues, pelo apoio moral e emocional, pelos almoços coletivos, pelas
trocas e aprendizados e por todo companheirismo ao longo dessa jornada. Agradeço também
aos queridos colegas de turma, que fizeram dessa caminhada mais agradável e menos pesada
de encarar, por todo apoio e admiração compartilhados. Agradeço em especial à Leo por sempre
ser um abraço apertado com o qual podia contar e por toda doçura, leveza e luz que sempre
transmitia com sua presença. Agradeço também aos amigos de longa data – como Alice,
Rafaela, Douglas, Raissa e Thiago – que apesar da distância física ou temporal sempre foram
importantes nessa extensa rede de apoio, cada um à sua maneira e peculiaridade. E agradeço à
Luiza: seu trabalho como psicóloga foi fundamental nessa caminhada de entendimento dos
afetos, nos processos de autoconhecimento, de encarar os medos e valorizar as potencialidades,
bem como na ressignificação das minhas relações.
Agradeço a Vini, por tanto que tem compartilhado comigo nesses anos de namoro, por
todo cuidado, carinho, respeito, paciência, alegrias, companheirismo, aprendizados, incentivos
e por todo amor que tenho aprendido a dar, a receber e a cultivar. Agradeço por me acolher e
ser abraço onde posso desmoronar vez em quando. Agradeço por me apoiar e me lembrar todos
os dias de acreditar em mim e na minha potência. E por último, agradeço pelas concatenações,
piras, devaneios e insights compartilhados.
Não posso deixar de agradecer também aos professores do curso como Silvio Benevides
– que gentilmente aceitou participar da banca examinadora –, Rosana Soares, Carolina Fialho,
Roseli Amado, Ayrson Heráclito, Roberto Evangelista, mas em especial a Tonico Portela e à
Priscila Miraz com os quais criei um vínculo afetivo e que tiveram impacto significativo em
minha formação e no meu desenvolvimento crítico dentro da academia, bem como no meu
posicionamento enquanto artista pesquisadora. Agradeço por suas orientações, incentivos,
puxões de orelha e acolhimento dentro de um lugar que por vezes pode ser muito hostil.
Agradeço também ao Programa de Extensão História da Arte e Gênero e ao Projeto de Pesquisa
El Mapa pelo espaço de discussão, debate, crescimento e acolhimento, pelas pessoas gentis e
queridas que os compõem e por todo aprendizado compartilhado. Quero também deixar um
agradecimento à professora Joice Ferreira, com quem só tive contato nesse último semestre do
curso, mas que se mostrou uma profissional compreensiva e acolhedora sempre que necessitei
durante esse período de encerramento, o que foi fundamental para que eu desse conta dos prazos
da melhor forma possível.
Sou grata a todos que fizeram parte dessa trajetória que não foram mencionados aqui,
mas que foram importantes, cada um à sua maneira. Assim, também agradeço a todos que
vieram antes de mim e me possibilitaram estar onde estou agora.
Por fim, agradeço a mim, por não desistir e por não deixar de investir no que acredito,
assim como pelo esforço em me cuidar da melhor forma possível buscando honrar a vida que
corre em meu corpo.
[...]
Não te rendas, por favor, não cedas,
ainda que o frio queime,
ainda que o medo morda,
ainda que o sol se esconda,
e se cale o vento:
ainda há fogo em tua alma,
ainda existe vida nos teus sonhos.
Porque a vida é tua, e teu é também o desejo [...]
Porque cada dia é um novo início,
porque esta é a hora e o melhor momento.
Porque não estás sós,
por que eu te amo.

(Autoria desconhecida)
RESUMO

No presente memorial, me propus a apresentar algumas das minhas produções artísticas e dos
meus processos criativos – ao longo dos anos do bacharelado – tendo os afetos como eixo
mobilizador poético. Tendo isso em vista, a fim de delinear o que trago como afeto, abordo um
breve recorte da teoria dos afetos do filósofo Baruch Spinoza, complementando com a teoria
micropolítica desenvolvida pela psicanalista Suely Rolnik para compreendê-lo em sua relação
com os processos de subjetivação. Reconhecendo o medo e o amor como afetos políticos e,
portanto, fundamentais a esses processos, agrego à discussão a escritora bell hooks.
Estabelecida a discussão sobre os afetos, utilizo a arqueologia como método para identificá-los
em minha experiência e em meus processos de subjetivação, considerando sua relevância como
fio condutor do trabalho artístico aqui apresentado. Por fim, pude identificar e demonstrar a
importância da dimensão afetiva tanto em relação à subjetividade quanto em relação à
construção de poéticas visuais, elementos intrinsecamente conectados quando falamos de
produção artística contemporânea.

Palavras-chave: Afeto, Subjetividade, Poética, Processos Criativos, Artes Visuais.


RESUMEN

En el presente memorial, me propuse presentar algunas de mis producciones artísticas y mis


procesos creativos - a lo largo de los años de mi licenciatura - teniendo los afectos como eje
movilizador poético. Con eso en mente, para delinear lo que traigo como afecto, abordo un
breve recorte de la teoría de los afectos del filósofo Baruch Spinoza, complementándola con la
teoría micropolítica desarrollada por la psicoanalista Suely Rolnik para entenderlo en su
relación con los procesos de subjetivación. Reconociendo el miedo y el amor como afectos
políticos y, por lo tanto, fundamentales para estos procesos, añado a la discusión a la escritora
bell hooks. Una vez establecida la discusión sobre los afectos, utilizo la arqueología como
método para identificarlos en mi experiencia y en mis procesos de subjetivación, considerando
su relevancia como hilo conductor del trabajo artístico aquí presentado. En conclusión, pude
identificar y demostrar la importancia de la dimensión afectiva tanto en relación con la
subjetividad como en relación con la construcción de poéticas visuales, elementos
intrínsecamente conectados cuando hablamos de producción artística contemporánea.

Palabras-clave: Afecto, Subjetividad, Poética, Procesos Creativos, Artes Visuales.


LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – nuvem de palavras .................................................................................................. 24


Figura 2 – Sem título, [2005?] ................................................................................................. 44
Figura 3 – ausências e presenças (processos), 2019, colagem digital ..................................... 45
Figura 4 – Sem título, 1999 ...................................................................................................... 49
Figura 5 – Sem título, [2005?] .................................................................................................. 49
Figura 6 – Sem título, 2000 ...................................................................................................... 50
Figura 7 – Sem título, 2018, nanquim, grafite e marcador s/ papel, 14,8 cm x 21 cm .................. 56
Figura 8 – Sem título (hoje eu não vou deixar o ódio entrar), Aureliano Medeiros, 2017, cartum
.................................................................................................................................................. 58
Figura 9 – Sem título (precisei me fazer em pedaços para construir o melhor de mim), Aureliano
Medeiros, 2018, cartum ........................................................................................................... 58
Figura 10 – Sem título, Éff, 2016, HQ ..................................................................................... 59
Figura 11 – Sem título, Éff, 2016, HQ ..................................................................................... 59
Figura 12 – eterno retorno vazio, 2018, HQ ............................................................................ 60
Figura 13 – estar tão acostumada com o peso que não sabe lidar quando a leveza vem, 2020,
cartum ...................................................................................................................................... 60
Figura 14 – Morte em Vida (frames), 2018, animação digital feita a partir de folioscopia
.................................................................................................................................................. 61
Figura 15 – Sem título, 2019, tinta de tecido e acrílica s/ tela ................................................ 63
Figura 16 – Registros do processo do ato de sobreposição ..................................................... 63
Figura 17 – O corpo que é meu quer... (recorte), 2018, fotografia .......................................... 64
Figura 18 – Vulva (registros da mostra Estudos em Artes Visuais), 2019, objeto instalativo
(obra conjunta com Bianca Brito) ........................................................................................... 65
Figura 19 – Sem título ............................................................................................................. 66
Figura 20 – siririca, 2019, linoleogravura ............................................................................... 66
Figura 21 – Garota Siririca (p. 6 e 7), 2013, HQ ..................................................................... 67
Figura 22 – Especial Ask Garota Siririca, [s.d.], HQ .............................................................. 68
Figura 23 – Sem título, 2019, nanquim e lápis de cor s/ papel, 10,5 cm x 14,8 cm ............... 69
Figura 24 – dentro aqui todas que me trouxeram, 2021, pintura digital ................................. 70
Figura 25 – sangue, terra, cura, 2020, aquarela e nanquim s/ papel, 14,8 cm x 21 cm ............... 71
Figura 26 – fé cega, faca amolada, 2020, aquarela, nanquim e lápis de cor s/ papel, 14,8 cm x 21
cm ............................................................................................................................................. 72
Figura 27 – memória familiar - ausências e presenças, 2019, colagem digital ....................... 73
Figura 28 – para (e sobre) o amor, 2021, colagem digital ....................................................... 75
Figura 29 – fantasmas não derrubam árvores, 2023, aquarela, nanquim e pastel s/ papel, 14,8 cm
x 21 cm ....................................................................................................................................... 76

Figura 30 – território-afeto (díptico), 2018, mobgrafia ........................................................... 77


Figura 31 – ser e estar, aqui e agora, 2019, monotipia ............................................................ 79
Figura 32 – sangria, 2020, colagem digital .............................................................................. 80
Figura 33 – ai de nós se não fosse o amor..., 2020, colagem digital ....................................... 81
Figura 34 – Registros em diário de bordo sobre bloqueio criativo ......................................... 82
Figura 35 – eco-fragmento I, 2022, gravura expandida .......................................................... 83
Figura 36 – Se sentia cada vez mais ramificada, 2021, Efe Godoy, aquarela e acrílica dourada
s/ papel ..................................................................................................................................... 85
Figura 37 – despertar o silêncio para não cair, 2020, asteracea, ilustração ............................. 85
Figura 38 – corpus affectus, 2022, fotoperformance ............................................................... 86
Figura 39 – vazio agudo ando meio cheio de tudo, 2017, mobgrafia de longa exposição ...... 87
Figura 40 – Registro da mostra Arte da Revolução, 2018 ....................................................... 98
Figura 41 – Vulva (processos de construção e objeto), 2019, obra feita com material têxtil,
papelão, arame e dispositivos eletrônicos ................................................................................ 99
Figura 42 – Capturas de acomodações corporais .................................................................... 100
Figura 43 – Registros de percurso da fotoperformance corpus affectus ................................. 101
Figura 44 – Registros de processo da obra eco-fragmento I em diário de bordo ................... 103
SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO........................................................................................... 12
2. O CORPO AFETIVO ……..........................……...................................... 17
2.1. Forças e formas: compreendendo sua relação com o desejo ................. 24
2.2. Medo e amor como afetos políticos....................................................... 31
2.3. Arqueologia dos afetos .......................................................................... 39
2.3.1 Vestígios ........................................................................................ 40
3. ACOMODANDO OS OSSOS: experiências e processos
....................................................................................................................... 54
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................... 90
5. REFERÊNCIAS ......................................................................................... 92
6. ANEXOS ..................................................................................................... 95
12

1. INTRODUÇÃO

Nesse trabalho de conclusão de curso, abordo a ideia de corpo afetivo e sua construção
em termos de atravessamentos, organização e manifestação. O que aqui chamo de corpo afetivo
pode também ser compreendido por construção de subjetividade, ou ainda como algo que se dá
no tempo e no espaço de forma ininterrupta, processos de subjetivação.
A princípio, escolhi o tema pela necessidade que sentia de me compreender,
compreender o quanto da minha criação e das minhas relações de mundo me impulsionavam
ou me paralisavam. Quanto do mundo externo marca a subjetividade de uma pessoa (e por
quê?), ou talvez a pergunta que seja mais importante: como? Sempre fui uma pessoa curiosa.
Aquela criança “chata” que pergunta o porquê de tudo e não aceita “porque sim” ou “porque
não” como resposta. Também fui tachada pelos “adultos” de “criança chorona”, “criança
dengosa” e ainda, “sensível demais”, derivando em um “leva tudo muito a sério”. Assim, quase
que automaticamente, me vem o questionamento: por que será? São e serão muitas
interrogações. E acredito que, de certa forma, elas sejam fundamentais quando estamos falando
de afetividade.
Assim, quanto mais essas inquietações eram remexidas, através das memórias e das
teorias e discussões que tive contato durante a graduação de Artes Visuais, no programa de
extensão História da Arte e Gênero (em seus primórdios grupo de estudos), mais denso o tema
foi se tornando. Curiar a complexidade das coisas é como entrar em areia movediça. Desse
modo, tal abordagem não se reduz a minha experiência individual, mas ao emaranhado de forças
– que em mim reverbera e se manifesta – na relação com a subjetividade de outros sujeitos, e
assim por diante, como um encadeamento estrutural. O monge budista vietnamita Thích Nhat
Hạnh1 afirma que “carregamos conosco os nossos antepassados, nossos pais e avós, a educação,
os alimentos e a cultura que recebemos” (2018, s/p) e continua:

Ao observar uma criança, é fácil perceber que nela estão presentes seus pais e avós.
Na aparência dessa criança, na maneira como ela age, nas coisas que ela diz [...]. Às
vezes, se não conseguimos entender por que uma criança está agindo de certa forma,
devemos nos lembrar que ela não é uma identidade individualizada. Ela é uma
continuação. Seus pais e antepassados vivem dentro dela. Quando ela caminha e fala,
eles também caminham e falam (NHAT-HANH, 2018, s/p).

1
Nascido em 1926 no Vietnã, Tich Nhat Hanh foi um monge budista, pacifista, escritor e poeta. Cunhou o termo
“budismo engajado” na década de 1950 em um cenário devastado pela guerra. O termo se refere a aplicação dos
ensinamentos de Buda, como a meditação e a atenção plena, ao cotidiano e à prática de ações sociais. Meu primeiro
contato com o monge se deu através de bell hooks, na leitura de seus livros Ensinando a transgredir: a educação
como prática de liberdade (2013) e Tudo sobre o Amor: novas perspectivas (2022). Ela o traz em sua produção
como uma de suas principais referências quando se trata de ações conscientes e engajadas, desde em um trabalho
realizado em sala de aula à prática do amor.
13

Quando nos movemos, movemos conosco uma coletividade. Portanto, se faz inerente
ao processo de compreensão do corpo afetivo – aqui proposto como objeto de pesquisa – uma
retrospectiva existencial analisando aspectos íntimos como a relação com minha família, meu
relacionamento com o outro, comigo mesma e com o mundo que me é disposto e, assim, como
esses aspectos são digeridos e reverberados por mim enquanto sujeito desejante, complexo e
questionador. No capítulo 1 – O corpo afetivo – levo essa análise à luz de conceitos
desenvolvidos pela psicanalista Suely Rolnik em seu livro Esferas da Insurreição: notas para
uma vida não cafetinada (2021), como os de força e forma e suas inserções nos distintos
direcionamentos micropolíticos para compreender os atravessamentos que circundam e
ressoam nesse corpo, que é indivíduo e é coletivo, e suas formas de (re)apropriação da força
vital e de constante atualização dos modos de existência frente à cafetinagem por um regime de
inconsciente colonial-capitalístico, como a autora designa.
Em dado momento do capítulo, em consonância com esses conceitos conectados à
análise do corpo afetivo, abordo o medo e o amor como afetos potencialmente agenciadores na
consolidação ou no desvio de uma ética de vida, dimensão vetorial no que tange o corpo afetivo
e seu movimento no mundo. Ou seja, aqui o medo e o amor não se reduzem ao “mero
sentimentalismo”, mas sim, tratam-se de forças políticas na construção de uma subjetividade e
do alcance de mundo de suas potências. Por isso mesmo, o capítulo é iniciado com um breve
recorte da teoria dos afetos do filósofo holandês Baruch Spinoza a fim de delinear o que se
entende por afeto – o que acabou conduzindo à abordagem de outros conceitos do filósofo que
estão intrinsecamente conectados a compreensão do mesmo, como afecção, paixões e conatus.
Como é elucidado, são dimensões diretamente conectadas à variação da força de existir (vis
existendi) ou potência de agir (potentia agendi) do sujeito. Para tal abordagem, utilizei como
referência principal a coletânea Cursos sobre Spinoza (Vincennes, 1978-1981) por Gilles
Deleuze (2009). A teoria de Spinoza e de Rolnik desempenham, portanto, função complementar
nesse trabalho. Para abordar o amor, dentro dessa perspectiva, utilizo a teorização da práxis
realizada pela escritora, professora, teórica feminista e ativista antirracista estadunidense bell
hooks2 em Tudo sobre o amor: novas perspectivas (2022) – seu primeiro livro da Trilogia do
Amor –, onde ela o coloca na qualidade de verbo, um afeto-ação, que conduzido no sentido de
uma ética propõe a reflexão e a transformação baseadas em princípios como cuidado, afeição,
reconhecimento, respeito, compromisso e confiança. Assim, o amor sai da imagem de

2
Nascida Gloria Jean Watkins, bell hooks utilizava esse pseudônimo em homenagem à sua avó e fazia questão
de grafá-lo em caixa baixa como um posicionamento político, para que a atenção fosse direcionada ao trabalho
em vez da pessoa, rompendo com convenções academicistas (FURQUIM, 2019).
14

passividade, a qual nos é vendida pela indústria cultural e pelas convenções romantizadas, e
passa a ser encarado como estratégia política de fortalecimento e mobilização.
Contudo, vale pontuar que escrever sobre si mesma com toda profundidade com que os
acontecimentos e fatos me atravessam parece ser uma tarefa fácil, mas não é. Quando tento
capturar os registros da memória eles me fogem da materialização, como mercúrio; você já
tentou pegar mercúrio com as mãos? Quanto mais nos aproximamos mais nos escapam entre
os dedos. Como então conseguir me aproximar desses registros? Registros esses que ocupam
não só as lembranças, mas que ressoam através do meu corpo, do meu modo de ser e sentir, de
me entender e me colocar no mundo? Como emergir esses atravessamentos, que me conduziram
subjetivamente, localizados num tempo-espaço outro?
Ao final do primeiro capítulo, empreendo uma arqueologia que passa pela memória e
por seus vestígios. Sendo assim, me utilizei de registros escritos, relatos familiares e fotografias
antigas do arquivo familiar para compor um mosaico de rastros afetivos. E claro, a memória,
como algo instável e relativo, possui licença à fabulação de suas brechas, como parte viva e
pulsante do processo de subjetivação. A psicóloga Juliana Milman Cervo (2016a) traz o escritor
Marcio André para afirmar a memória como “[...] fundação de imagens, abertura e tensão entre
lembrança e esquecimento, mudança e permanência, que se projeta no passado e no futuro,
concomitante e intervenientemente”. Quando olho para o caminho que percorri até aqui,
percebo que foi através da escrita, do hábito de manter um diário, das produções como
desenhos, pinturas, colagens e afins que me foi possível transbordar e me organizar enquanto
sujeito. Desse modo, me pareceu plausível que me utilizasse desses meios, suportes,
documentos familiares e o que mais conviesse nesse perscrutamento para adentrar no território
da afetividade.
O filósofo francês Michel Foucault (2017) aborda as técnicas de si – as quais
possibilitam uma laboração de si sobre si –, apontando como o uso de meios como a escrita
pode ser uma maneira de meditar sobre si mesmo, sobre nossas ações e pensamentos ampliando
o entendimento de nossas potências e limitações para assim, nos encaminhar a um cuidado de
si que permita nos aproximar de nossa potência tanto quanto for possível. A escritora chicana3
Glória Anzaldúa, em Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do
terceiro mundo (2000), reivindica esse espaço da escrita como uma necessidade visceral de
organização, mobilização e transformação da realidade:

3
Segundo a artista pesquisadora Adriana Teles de Souza, em seu artigo Nas encruzilhadas da autohistória:
diálogos artísticos com Gloria Anzaldúa e Rosana Paulino (2022, p. 18), a designação “chicana” se refere
“principalmente a pessoas hispânicas com descendência mexicana que vivem nos Estados Unidos da América”.
15

Por que sou levada a escrever? Porque a escrita me salva da complacência que me
amedronta. Porque não tenho escolha. Porque devo manter vivo o espírito de minha
revolta e a mim mesma também. Porque o mundo que crio na escrita compensa o que
o mundo real não me dá. No escrever coloco ordem no mundo, coloco nele uma alça
para poder segurá-lo. Escrevo porque a vida não aplaca meus apetites e minha fome.
Escrevo para registrar o que os outros apagam quando falo, para reescrever as histórias
mal escritas sobre mim, sobre você. Para me tornar mais íntima comigo mesma e
consigo. Para me descobrir, preservar-me, construir-me, alcançar autonomia. [...]
Finalmente, escrevo porque tenho medo de escrever, mas tenho um medo maior de
não escrever (ANZALDÚA, 2000, p. 232).

Meios que propiciam a materialização dos processos de subjetivação – tão abstratos –


se portam como uma via de mão dupla entre o acontecer e o compreender, ferramentas de
projeção de si – de mundos possíveis e de modos de existência outros – ao compreender o(s)
passado(s) por meio da ação presente.
Minhas memórias afetivas, por sua vez, e a consequente construção de subjetividade
remontam às relações que se construíram no seio familiar e desaguam através do tempo pelos
caminhos tortuosos da adolescência, da vida ao adentrar na universidade e na busca pelo cultivo
do autoconhecimento, do autocuidado e da autocompaixão que guiam por e para uma vida
amorosa. É isso que eu sou hoje. Ou “estou”, afinal, nada é permanente.
Porém, buscando evitar cair nos equívocos da perspectiva única, evocando a sabedoria
da baiana Maria Dolores Sosin Rodriguez4, afirmo que escrevi “[...] compreendendo a escrita e
a linguagem, qualquer que sejam, como dimensões da experiência, que não desejam transmitir
uma verdade [...] uma tendência às certezas, um desejo de domínio, controle de uma voz
absoluta [...]” (RODRIGUEZ, 2019, s/p). Não me aprofundei em traçar perfis, mas sim, nas
relações que chegaram até mim e me marcaram em algum grau, ou ainda, me apontaram
caminhos possíveis (ou não) para existir. A complexidade alheia é muito mais do que posso
alcançar. E sei do ressoar das escolhas que fazemos cotidianamente, mas, no fundo, acredito
sermos sujeitos emaranhados no tear da vida, com todas as suas problemáticas estruturais e
dores e prazeres ancestrais. Assim, escrevo pra entender as circunstâncias. É isso que busquei
trazer aqui, circunstâncias de uma intrincada rede. E apesar de a autobiografia não ser o foco
da pesquisa que desenvolvo aqui, é a ela que recorro ocasionalmente para entender o jogo de
toma lá, dá cá das afetividades.
Por fim, no capítulo 2 – acomodando os ossos: experiências e processos – abordo minha
relação com o lugar de artista e o desenvolver dessa relação ao longo dos anos da graduação,

4
Doutora e mestra em Teorias e Críticas da Literatura e da Cultura pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura
e Cultura do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Rodriguez é poeta, artista visual, crítica
literária, professora e pesquisadora na área da literatura, das artes e da epistemologia.
16

bem como meu processo de amadurecimento enquanto pesquisadora. Também trago algumas
obras minhas para falar sobre como se dão meus processos criativos e explicitar a intrínseca
ligação entre eles e as perturbações afetivas provocadas em minha subjetividade.
17

2. O CORPO AFETIVO

Quando iniciei esse projeto de abordar o corpo afetivo, talvez o princípio fosse
compreender a dor. Ainda não havia me apropriado do nome enquanto conceito. E, como tudo
é processual, o entendimento das inquietações que me moviam ou me paralisavam também o
foi. Os questionamentos desse enquadramento do espaço-tempo foram germinando a partir do
encontro entre uma BO5 de 18 anos, recém saída do ensino médio e com uma cabeça crua de
quem está (re)conhecendo as várias facetas do mundo, e o universo acadêmico, cheio de
possibilidades, frustrações e aprendizados. Assim, percebendo certos padrões que me
acompanharam ao longo da adolescência – período em que a existência se vira do avesso –,
listo aqui alguns como:

• melancolia persistente;
• comportamentos autodestrutivos;
• carência emocional;
• baixa autoestima;
• autossabotagem;
• dificuldade em me comunicar assertivamente e em dizer não;
• passivo-agressividade;6

Quando repasso meus poucos anos de vida, e me deparo com esses aspectos
depreciativos da minha formação subjetiva – que predominam no horizonte quando recorro ao
arquivo da memória, como se fosse mais fácil lembrar do peso do que da leveza –, compreendo
que apesar dessas condições, a vida em sua teimosa perseverança pulsava em busca de ar fresco,
sol e água potável. O que me levou a compreender que eu não queria morrer, não de verdade.
Eu queria ser amada. Precisava ser amada. E antes de tudo, conhecer e entender de verdade o
que seria o amor e onde encontrá-lo.
Contudo, como nada surge do nada, acredito que essas manifestações subjetivas entre
pulsão de vida e morte tenham suas raízes fincadas em tempos imemoriáveis, não se limitando
ao momento do nascimento de uma pessoa, nem em sua permanência num momento presente.
Quando paro para escutar as histórias que os mais velhos contam e recontam, não consigo deixar
de associar algumas marcas das gerações anteriores aos reflexos que encontro nas gerações

5
Apelido pelo qual sou mais conhecida e o qual costumo utilizar como assinatura em meus trabalhos. BO deriva
das iniciais do sobrenome Barreto Oliveira.
6
Em referência ao hábito – tão importante ao mapeamento dos afetos – de ter sempre um caderninho de bordo à
mão no qual faço anotações de processos, pensamentos e esboços, trarei partes do texto em manuscrito. Dessa
forma aproximo a escrita do caráter íntimo e pessoal que algumas passagens desse trabalho evocarão.
18

atuais e, portanto, em mim. De onde vem o costume da violência como forma de educar? E qual
o propósito, afinal? E a comunicação, como se tornou tão ruidosa e distante? O quanto das
experiências ocorridas na infância, dentro de um seio familiar disfuncional, impacta na
autoimagem e no desenvolvimento pleno das potencialidades de um sujeito? Quão arraigados
estão o patriarcalismo, o racismo e o classismo na definição das relações dos sujeitos? Quem
disse que a luta pela sobrevivência exclui o cultivo diário do amor7?
São questionamentos que vão surgindo com a abertura de mundo que acompanha o
passar dos anos da nossa formação como sujeito. Há quem diga que recordar é viver; digo,
então, que recordar é questionar e ressignificar. Uma constante atualização da existência que
demanda coragem, tempo e mergulho. Para falar da potente fragilidade da memória, Cervo
(2016a) recorre ao pensamento da filósofa Jeanne Marie Gagnebin:

De acordo com Gagnebin (2006), a rememoração vincula-se à potência da dimensão


da experiência, visto que vai abrir-se aos brancos, aos buracos, para dizer com
hesitação aquilo que não teve direito nem às lembranças, nem às palavras. Rememorar
é também atuar sobre o presente [...] (CERVO, 2016a, s/p).

A memória, para além de um registro trivial, é também a experiência em manifestação


contínua do encontro entre a intangibilidade do passado e do futuro – entre o que foi e o que
poderá vir a ser – cristalizada em sucessivos “aqui agora”. Memória é também presente. A
respeito da distinguibilidade da experiência e do saber da experiência em tempos modernos
inundados por informações com seus consumidores insaciáveis a postos, Jorge Larrosa Bondía
(2002, p. 24) define o sujeito da experiência como “[...] um território de passagem, algo como
uma superfície sensível que aquilo que acontece afeta de algum modo, produz alguns afetos,
algumas marcas, deixa alguns vestígios, alguns efeitos” e destaca a importância de sua
“passividade anterior à oposição entre ativo e passivo” enquanto “uma receptividade primeira,
como uma disponibilidade fundamental, como uma abertura essencial” ao que lhe acontece e
assim o transforma.

7
No caos que o sistema capitalista impõe, seu programa de morte se instaura também pela urgência e, portanto,
para a falta de tempo às demandas primárias do “ser”. Nele precisamos correr para dar conta cada vez mais em
menos tempo possível; o ritmo do tempo, assim como as pautas as quais nos dedicamos, não mais nos pertencem.
Em consequência, o corpo, os afetos e a subjetividade se tornam matérias-primas e mãos-de-obra. É fato palpável
que enquanto uns podem se dar "ao luxo" de lutar por certas coisas (válidas e necessárias, mas não primordiais à
sobrevivência), outros ainda tem sua vida limitada a lutar pelo “básico” para continuarem existindo. E é isso que
interessa a tal sistema: nos fazer acreditar que o básico, aquilo que concerne a todos pelo menos em teoria, não
inclui “o luxo” endereçado, atualmente, apenas a uma parcela da sociedade. À luz desse sistema, esses aspectos
fundamentais à expansão da vida potente se tornam besteira, frivolidades, não-prioridades ou matéria prima para
geração de lucro com o esvaziamento dos seus sentidos. Próprio de uma lógica binária que concebe a distinção
entre corpo e alma, sagrado e profano, público e privado, humano e natureza. Se se possível, me questiono então,
como subverter essa distorção das prioridades existenciais para que o cultivo do amor seja entendido como
necessidade básica para o cultivo e proliferação da vida? Em outras palavras, como estabelecê-lo como uma ética
de vida?
19

Tais manifestações se fazem, portanto, mais ou menos palpáveis de acordo com o grau
de afetação causada no sujeito e com a vulnerabilidade disponível a ele naquele momento. Ao
contrário de uma via de mão única, essa variação se dá tanto pela forma como o outro me
alcança, quanto pela suscetibilidade à qual me disponho. “Voltamos a dizer que cada coisa,
corpo ou alma, se define por certa relação característica, complexa; mas eu também havia dito
que cada coisa, corpo ou alma, se define por um certo poder de ser afetado” (DELEUZE, 2009,
p. 38). O que diz muito da relevância da memória à serviço da compreensão de um corpo
afetivo enquanto registro de vivência e ampliação da sensibilidade a partir da sua
complexificação. Isso me faz refletir sobre o modo como ela chega em mim. Não como distintas
fotografias da realidade, mas sim, como vislumbres e sensações: camadas de elementos e
circunstâncias permeadas de nuances. Cenas subjetivas e deformadas pela velocidade dos
afetos. Nelas, um vai e vem entre o que senti, o que vi dos presentes nos instantes capturados e
o que percebi através da ação do outro em mim.
É nesse processo de reconhecimento dos atravessamentos e das marcas que carrego em
meu corpo que percebo os múltiplos direcionamentos de uma subjetivação ininterrupta, guiada
pelas paixões que me paralisam ou que me mobilizam, pelas forças que me restringem à
conservação por um modo de existência estéril ou que me impelem à constante atualização de
modos de existência outros e potentes, pela tirania do medo ou pela ação germinadora do amor.
Pensando nessa perspectiva, Rolnik (2021, p. 36) ressalta a importância de “[...] que se
diagnostique o modo de subjetivação vigente e o regime de inconsciente que lhe é próprio, e
que se investigue como e por onde se viabiliza um deslocamento qualitativo do princípio que o
rege” e prossegue definindo como inconsciente colonial-capitalístico “[...] a política de
inconsciente dominante nesse regime, a qual atravessa toda sua história, variando apenas suas
modalidades junto com suas transmutações e suas formas de abuso da força vital de criação e
cooperação” (ROLNIK, 2021, p. 36-37). Podemos compreender a partir disso que as formas de
opressão que estruturam a sociedade atual – capitalista, patriarcal e racista –, ainda que se
mantenham as mesmas, se atualizam em sua operacionalidade e em seus mecanismos de
controle, em suas dinâmicas e manifestações.
Por sua vez, a ampliação do acesso ao que a autora chama de saber eco-etológico é
fundamental para que se possa desanestesiar a vulnerabilidade aos efeitos de tais
atravessamentos no corpo e, consequentemente, encontrar estratégias de resistência e de
reapropriação da potência criadora. A respeito desse processo, a autora reitera que:

Há que se buscar vias de acesso à potência da criação em nós mesmos: a nascente do


movimento pulsional que move as ações do desejo em seus distintos destinos. Um
20

trabalho de experimentação sobre si que demanda atenção constante. Em seu


exercício, a formulação de ideias é inseparável de um processo de subjetivação em
que essa reapropriação se torna possível por breves e fugazes momentos e cuja
consistência, frequência e duração aos poucos se ampliam, à medida que o trabalho
avança (ROLNIK, 2021, p. 37).

E foi a isso que se propôs a presente escavação: perscrutar o território das afetividades
para que sobre ele e a partir dele se pudesse encontrar formas de caminhar, existir e ramificar.
Em seu livro, Rolnik reforça que, concomitante a esse processo de deslocamento da política de
produção do desejo, se desloque também a política de produção do pensamento, reconduzindo-
as aos seus propósitos éticos. Também, segundo ela, “[...] tal prática alimenta-se de
ressonâncias de outros esforços na mesma direção e da força coletiva que elas promovem – não
só por seu poder de polinização, mas também e sobretudo pela sinergia que produzem”
(ROLNIK, 2021, p. 38).
Em minha experiência, essa espécie de contramovimento é perceptível nas rodas do
Programa de Extensão História da Arte e Gênero, em que a partir da teoria – feminista,
antirracista e decolonial – nos é possível movimentar pensamentos e ações que nos conduzam
a deslocamentos existenciais, ainda que mínimos ou a princípio dados numa esfera particular,
gerando um fortalecimento mútuo e expandindo o alcance desse meio de germinação, de
fabulação e de transformação da realidade. Assim, pensando nesse contexto onde a voz e o
discurso de cada uma têm lugar e são respeitados, ainda que haja discordâncias, se torna
evidente a importância do feminismo e de seus atravessamentos na construção desses espaços
de saúde, acolhimento e reafirmação do ser em sua potência. “Com essas sinergias, abrem-se
caminhos para desviar tal potência de seu destino destruidor” (ROLNIK, 2021, p. 39).
Nessa perspectiva, os afetos nos chegam como forças que atuam no direcionamento
ético das subjetividades. Afetos vetoriais e, portanto, políticos. Ao destrinchar a teoria dos
afetos de Spinoza, em um de seus cursos em Vincennes, Gilles Deleuze (2009) nos apresenta à
compreensão da existência de paixões tristes e paixões alegres, sendo as primeiras aquelas que
diminuem nossa potência de agir e as segundas aquelas que aumentam tal potência. E a esse
respeito aponta que:

Essas paixões fundamentais permitirão a Spinoza [...] formular o problema político:


como acontece das pessoas que têm o poder, não importando em qual domínio, terem
necessidade de afetar-nos de uma forma triste? [...] Inspirar as paixões tristes são
necessárias ao exercício do poder. E Spinoza diz, no Tratado Teológico Político, que
é este o laço profundo entre o déspota e o sacerdote, eles têm necessidade da tristeza
de seus sujeitos (DELEUZE, 2009, p. 27-28).

Para Spinoza, tais paixões se configuram como ideias (ideias-afecções), as quais nos
ocorrem em sucessões, regendo assim os afetos em uma variação contínua da potência de agir
21

(potentia agendi) ou de existir (vis existendi) do sujeito, para mais ou para menos. A afecção é
definida pela ação de um corpo sobre outro corpo. Ou seja, se dá na relação com o outro, se
ocupando dos efeitos de tal ação no corpo afetado. E sobre isso, Deleuze apresenta dois tipos
de afecção: uma no sentido de composição, “a ideia de um efeito que se concilia ou que favorece
minha própria relação característica” (DELEUZE, 2009, p. 37), e a outra, no sentido de
decomposição, “a ideia de um efeito que compromete ou destrói minha própria relação
característica” (DELEUZE, 2009, p. 37)8. Assim, a ideia-afecção se dá numa perspectiva de
passividade: “Em outros termos, eu não sou causa dos meus próprios afetos, e visto que eu não
sou a causa dos meus próprios afetos, eles são produzidos em mim por outra coisa: eu sou,
portanto, passivo, eu estou no mundo das paixões” (DELEUZE, 2009, p. 43). Nesse ponto
podemos, então, evocar os afetos ativos, que dizem respeito ao conatus: “Esse esforço, conatus
– expressão de força constante de ser e agir no mundo –, no ser humano manifesta-se em sua
própria essência como desejo” (MARTINS AMARAL, 2021, p. 67). Quer dizer, se for de haver
uma essência humana, esta seria o desejo, enquanto força motriz do ser. Consequentemente,
“[...] este busca inexoravelmente a sua satisfação, conservando ou aumentando a sua potência.
Entretanto, para que isso ocorra, um corpo precisa necessariamente entrar em contato com
outro” (MARTINS AMARAL, 2021, p. 71).
A esse respeito, no segundo tipo de ideia que Spinoza apresenta, a ideia-noção “tem por
objeto a conveniência e a desconveniência das relações características entre os dois corpos”
(DELEUZE, 2009, p. 44), ou seja, a relação de composição ou decomposição no encontro entre
corpo afetado e corpo afetante. Dessa forma, como aponta Deleuze, se conhecemos a relação
característica de cada corpo, então, podemos ter uma noção das causas do tipo de encontro que
poderá ocorrer entre esses dois corpos, se um decompõe o outro, ou vice-versa, ou ainda, se
ambos se compõem ou se decompõem mutuamente.
Ao abordar a ideia-noção, Deleuze relata o uso do termo noção comum que “ele
[Spinoza] sempre a define como: a ideia de alguma coisa que é comum a todos os corpos ou a
muitos corpos [...] e que é comum ao todo e à parte” (DELEUZE, 2009, p. 46). Tendo em vista
a compreensão que o filósofo racionalista tem do que seja um corpo, a noção comum diz
respeito às relações características que se encontram enquanto composição e, portanto, são
afetadas de alegria.

8
Quando ele faz referência à uma relação característica própria, Deleuze parte da concepção de Spinoza sobre o
que é um corpo, afirmando que “[...] é quando certa relação composta [...] ou complexa de movimento e de repouso
se mantém através de todas as mudanças que afetam as partes desse corpo” (DELEUZE, 2009, p. 33).
22

Em contrapartida, na tristeza – onde as relações características se encontram enquanto


decomposição – temos nossa potência diminuída, ou melhor dizendo, estamos ainda mais
distanciados dessa potência e, portanto, não encontramos vias de formar uma noção comum. A
conexão com o mundo se torna cada vez mais frágil. Ao sermos afetados de tristeza, somos
cada vez mais imobilizados, interrompidos, esterilizados, “cafetinados”, e as possibilidades de
movimento em direção a um destino ético do desejo, minguadas.
“É por isso que os poderes têm necessidade de que os sujeitos sejam tristes. A angústia
jamais foi um jogo de cultivo de inteligência ou vivacidade” (DELEUZE, 2009, p. 47). É nesse
momento que nossa potência vital se encontra sob o abuso no que Suely Rolnik chamou de
regime de inconsciente colonial-capitalístico. O desejo enquanto pulsão de vida é viabilizado
quando – no que Baruch Spinoza defendia em sua ética – nos instituímos aos bons encontros
(composição) e evitamos os maus encontros (decomposição). Só assim a vida seria concebida
em sua plena potência e, “[...] ele se pergunta todo o tempo do que nós somos capazes, o que
está em nossa potência; a ética é um problema de potência [...]” (DELEUZE, 2009, p. 43).
A teoria de Spinoza a respeito dos afetos, e do que ele se refere como uso adequado ou
inadequado da razão, é densa e complexa. A grosso modo, temos os afetos passivos, onde
estamos à mercê das paixões tristes ou alegres, e temos os afetos ativos, onde opera o desejo e
a apropriação da potência de agir (potentia agendi)9. Assim, o que trago aqui na verdade se
limita a uma breve pincelada introdutória para que se possa compreender a relevância da
operação dos afetos sobre a subjetividade, suas potências e seus múltiplos direcionamentos
éticos em relação à vida. Conhecer os limites e as possibilidades de afetação. “De que é capaz
um corpo?” (DELEUZE, 2009, p. 38). Até onde podemos ir? O que nos restringe e nos faz
definhar? O que nos permite expandir e sustentar a vida em sua plenitude?
Para tentar responder a esses questionamentos, podemos pensar em duas forças
igualmente potentes, mas com direcionamentos opostos: temos o medo, que segundo Spinoza
se trata de um afeto passivo triste derivado da incerteza e da ignorância, e que pode ser pensado
como uma ferramenta de controle do corpo e, portanto, de controle social, e temos o amor, um
afeto que, apesar de postulado pelo filósofo como um afeto passivo alegre, é construtivo,
múltiplo, fabulativo e, de certa forma, restaurador. Sobre este último, bell hooks o afirma como
uma ação, postura ética ou, ainda, uma espécie de epistemologia, como aponta a historiadora

9
Vale destacar, a respeito dessa distinção, que “Para Espinosa, os afetos ativos são mais potentes que os passivos,
assim como os afetos passivos alegres são, por sua vez, igualmente mais benévolos que os afetos passivos tristes”
(MARTINS AMARAL, 2021, p. 71).
23

Silvane Silva no prefácio à edição brasileira de Tudo sobre o amor: novas perspectivas
(2022):

[...] pontuando o quanto nossas ações pessoais relacionadas ao amor implicam uma
postura perante o mundo e uma forma de inserção na sociedade. Ou seja: o amor não
tem nada a ver com fraqueza ou irracionalidade, como se costuma pensar. Ao
contrário, significa potência: anuncia a possibilidade de rompermos o ciclo de
perpetuação de dores e violências para caminharmos rumo a uma ‘sociedade amorosa’
(SILVA, 2022, p. 10).

Podemos entendê-lo, então, não só como um sentimento provocado por causa outra que
não parta do sujeito em si, mas, também, como um afeto ativo, expansivo, criativo e, que, a
princípio deve germinar e ser cultivado cotidianamente, tal qual uma prática, por cada um de
nós. O sujeito, portanto, é concebido enquanto partícula de um todo, indivíduo coletivo, corpo
que manifesta em sua subjetividade um denso “arquivo” de forças atuantes na estruturação da
sociedade em que se insere. Em suma, o pessoal é político. Ao falar do deslocamento da política
de produção de pensamento e subjetividade do regime colonial-capitalístico, Rolnik afirma que
tais movimentos não se dão de forma isolada, individualizada, pois:

[...] seu próprio motor não começa nem termina no indivíduo, já que sua origem são
os efeitos das forças do mundo que habitam cada um dos corpos que o compõem e
seu produto são formas de expressão dessas forças – processos de singularização em
cada um deles, que se esculpem num terreno comum a todos e o transfiguram
(ROLNIK, 2021, p. 38).

A atuação dessas duas forças – ou afetos, nas palavras do filósofo holandês – se


configura politicamente ao inibirem ou potencializarem as condições para que a vida seja
exercida em sua plenitude e íntegra capacidade de proliferação. Assim, trago uma nuvem de
palavras para ter uma noção panorâmica das relações dadas com esses afetos. O medo como
uma consequência, afeto causado ou força reativa. O amor como ação, afeto causador ou força
ativa (Figura 1).
24

Figura 1 – nuvem de palavras

Fonte: Acervo pessoal.

Essa relação dicotômica que trago aqui se refere não à uma experiência universal, ainda
que esta esteja presente, mas sim, àquilo que conheço e vivencio. Ou seja, a dimensão do afeto
medo que exploro nesse trabalho é o medo que identifico a partir da minha formação e limitação
enquanto sujeito; o amor, por sua vez, é aquele que conheço e sigo reconhecendo em minha
(re)construção subjetiva. Posto isso, para o aprofundamento da compreensão de um corpo
afetivo dou prosseguimento na abordagem dos conceitos, segundo a teorização de Suely Rolnik,
de forças e formas buscando esclarecer como eles se inserem nos processos de subjetivação de
um indivíduo.

2.1 - Forças e formas: compreendendo sua relação com o desejo

Para adentrar nos conceitos de força e forma em seu livro Esferas da Insurreição:
notas para uma vida não cafetinada (2021), a psicanalista Suely Rolnik traça um breve
panorama a respeito do funcionamento do sistema capitalista e seus condicionantes estruturais
guiado pelo regime de inconsciente colonial-capitalístico baseado no abuso da potência vital,
numa relação de retroalimentação reativa, relação essa a qual ela atribui o conceito de
cafetinagem. Assim, ela propõe “[...] perscrutar a modalidade atual do inconsciente colonial-
capitalístico introduzida pelo capitalismo financeirizado e neoliberal – a qual se define, insisto,
pelo sequestro dessa força no próprio nascedouro de seu impulso germinador de mundo”
25

(ROLNIK, 2021, p. 37) levando “a examinar tanto a política de produção de subjetividade, do


desejo, do pensamento e da relação com o outro que nos leva a uma entrega cega à apropriação
da força de criação pelo capital, quanto aquela em que se viabiliza sua reapropriação”
(ROLNIK, 2021, p. 39).
Para distinção de tais direcionamentos micropolíticos, a autora recorre à uma das
principais obras da artista neoconcretista Lygia Clark, o Caminhando (1963). Ela justifica essa
escolha por seu contexto artístico dos anos 1960 e 1970, caracterizado pelos movimentos sociais
de contracultura, integrando o desenvolvimento do movimento micropolítico que se originou
num “[...] longo processo desencadeado pelas vanguardas do início do século XX, cujas
invenções foram se capilarizando pela trama social [...]” (ROLNIK, 2021, p. 40). Segundo a
autora, trata-se de uma das práticas propositivas da artista as quais possibilitavam àqueles que
a vivenciavam “[...] o acesso à sua própria potência de criação e à eventual ativação do trabalho
para dela reapropriar-se, inviabilizando seu abuso o máximo possível” (ROLNIK, 2021, p. 40).
A proposta procede da confecção de uma fita de Moebius pela pessoa que está
vivenciando a obra. A fita é produzida por uma tira de papel com uma de suas pontas invertida
colada à outra. Temos, assim, uma superfície com uma única face, uma superfície topológica.
Com a tesoura em um corte contínuo, a pessoa deve percorrer ao longo da fita, sob a orientação
da artista de que ao passar novamente pelo corte anterior o evite. Dessa forma, poupa a
experiência de findar-se prematuramente. A respeito da experiência decorrente da proposição,
Rolnik declara:

Tal experiência consiste na abertura de uma outra maneira de ver e de sentir o tempo
e o espaço: segundo ela [Lygia Clark], um tempo sem antes nem depois; um espaço
sem frente e verso, dentro e fora, em cima e embaixo, esquerda e direita. Essa outra
maneira de ver e de sentir lhe dá, portanto, acesso à experiência de um espaço que não
precede o ato, mas dele decorre e que, sendo assim, tampouco pode ser dissociado do
tempo. [...] o espaço surgiria das formas que vão sendo criadas na superfície
topológica da tira, produtos das ações de cortá-la (ROLNIK, 2021, p. 42).

Ela ressalta que a ressalva que a artista faz sobre evitar o ponto anterior é importante
pois, a depender da escolha feita, a obra continuaria ou não acontecendo. A duração da
experiência depende da diferença, do deslocamento. A autora nos apresenta assim as duas
situações, em uma seguindo a orientação e na outra não. “É que o ato de cortar não é neutro:
seus efeitos variam segundo o tipo de recorte que cada um escolhe efetuar em seu
‘caminhando’” (ROLNIK, 2021, p. 44). Como já foi elucidado, no primeiro caso o caminho
percorrido é extenso, múltiplo e diverso, “A obra se efetua na repetição do ato criador de
diferença [...]” (ROLNIK, 2021, p. 44). No segundo caso em que o corte prossegue no mesmo
local anterior, a experiência é curta, contida e homogênea, ou seja, “[...] o resultado é a
26

reprodução infinita de sua forma inicial. [...] Nesse tipo de corte o ato é estéril, não produz obra”
(ROLNIK, 2021, p. 47). Em cada uma dessas situações se manifestam modos micropolíticos
de possibilidades e impossibilidades. A partir dessas situações, poderemos compreender um
tanto mais a respeito da reapropriação da potência de criação e da permanência da produção de
subjetividade sob o domínio do inconsciente colonial-capitalístico.
Antes de prosseguir com a abordagem dos conceitos e a inserção deles na diferenciação
dos modos micropolíticos de subjetivação, Rolnik utiliza a imagem da fita e sua
operacionalidade na obra de Lygia Clark para fabular uma superfície topológica-relacional
constituída pelas formas e pelas forças do mundo, numa associação de atualização mútua:

[...] não há forma que não seja uma concretização do fluxo vital e, reciprocamente,
não há força que não esteja moldada em alguma forma, produzindo a sustentação vital
da mesma, como também suas transfigurações e inclusive sua dissolução, num
processo contínuo de diferenciação (ROLNIK, 2021, p. 50).

Tal imagem evocada pela autora nos serve a compreender, então, como se dá a relação
entre as forças e as formas, qual a constituição de cada uma delas e como elas se inserem dentro
da dinâmica de produção de subjetividade, ou como podemos recorrer no presente trabalho, na
construção do corpo afetivo. Partiremos da noção de que formas e forças são manifestações da
realidade do mundo como é. Além disso, cada uma dessas manifestações desempenham uma
função – ou seja, possuem em si uma determinada capacidade constituinte no processo de
subjetivação – e atuam de forma concomitante e paradoxal, numa relação de composição
retroalimentar.
Pois bem, esclarecidos os pressupostos, as formas se constituem enquanto
manifestações do mundo em seus aspectos concretos e palpáveis dados pelas relações
socioculturais, históricas, geopolíticas, pelos marcadores identitários ou ainda, utilizando os
termos da autora, pelas cartografias do mundo, como rastros deixados na paisagem:
receptáculos das forças que se instituíram ou se instituem constantemente na superfície
topológica-relacional do mundo. “São modos de existência, articulados segundo códigos
socioculturais [...] o que é inseparável da distribuição do acesso aos bens materiais e imateriais,
suas hierarquias e suas representações” (ROLNIK, 2021, p. 52). Sobre essa dimensão da
subjetividade Rolnik explica que os sinais de tal manifestação são apreendidos, portanto, pelas
vias cognitivas da percepção e do sentimento e que é através dessa decodificação que
processamos o cotidiano, nos organizando e nos inserindo socialmente. Esse processo de
reconhecimento e significação da realidade resulta no que é denominado experiência do
27

“sujeito”, ou seja, estamos falando aqui de um processo de singularização do comum, da


realidade coletiva.

Sua função é a de possibilitar que nos situemos na vida social: decifrar suas formas,
seus códigos e suas dinâmicas por meio da percepção, da cognição e da informação,
estabelecer relações com os outros por meio da comunicação e senti-las segundo nossa
dinâmica psicológica (ROLNIK, 2021, p. 52).

Apesar das formas e sua captação desempenharem um papel importante na localização


do sujeito nas dinâmicas relacionais, a autora alerta para a ação do regime de inconsciente
colonial-capitalístico na apropriação dessa função como única e exclusiva via de apreensão da
realidade, obstruindo nosso acesso à outras vias e, portanto, a outras possibilidades existenciais,
limitando assim nossa experiência subjetiva.
As forças, por sua vez, se manifestam pela ação, mobilizando e transformando o mundo
em seus aspectos sutis. Podemos compreender as forças, então, como vetores da realidade e das
relações que se instituem e se atualizam nos encontros com o entorno. As consequências desse
processo se configuram em “outras maneiras de ver e de sentir” (ROLNIK, 2021, p. 53) das
quais são identificados os perceptos e os afetos. O afeto é uma via de captação que se define,
não como afeição ou ternura, mas pela capacidade de afetar, desestabilizar, inquietar, ou
mesmo, mover, sendo diferenciado pela autora como uma “emoção vital” (ROLNIK, 2021).
O percepto por sua vez configura sua captação da realidade para além do dado, do
concreto, dos contornos bem delimitados. Poderíamos afirmar que o percepto tem a capacidade
de atravessar fronteiras e perscrutar múltiplos caminhos. Em conjunto, essas duas vias, que se
configuram como maneiras outras de ver e sentir – e, portanto, maneiras outras de captar o
entorno e os efeitos dos encontros que ali ocorrem –, são capazes de acessar múltiplas
possibilidades, caminhos e devires, que poderão direcionar e vir a acolher a vida em sua plena
potência.
A essa via dupla de apreensão do mundo, caracterizado por um “modo extracognitivo”
(ROLNIK, 2021, p. 53) de operar, a autora denominou de “saber-do-corpo” ou “saber eco-
etológico” (ROLNIK, 2021, p. 54). Seu território se localiza na dimensão subjetiva “fora-do-
sujeito” na qual o fluxo vital do mundo e suas relações se sustentam virtualmente. Segundo
Rolnik, ao contrário da experiência restrita ao “sujeito” na qual as relações se dão por meio da
comunicação, nessa experiência as relações se dão pelas “ressonâncias”. Aqui, ela afirma que
“não há distinção entre sujeito cognoscente e objeto exterior” (ROLNIK, 2021, p. 54), ou seja,
no plano das forças os limites são borrados: não há dentro e fora, nem antes e depois, tal qual o
28

Caminhando de Lygia Clark. O corpo abriga em si o movimento do mundo e com ele necessita
reverberar.
Através dessas ressonâncias são lançados nos corpos “gérmens de mundo”, gérmens
esses que guardam em si multiplicidade de possibilidades aguardando para disparar e tomar
suas respectivas formas. No entanto, esse processo provocará, a princípio, um estranhamento e
consequentemente um mal-estar que, todavia, será fundamental para a formação do corpo
afetivo. Quando experienciamos os encontros com o entorno da realidade, são lançados mundos
nos mundos e os atravessamentos que nos afligem perturbam a estabilidade das formas ao
ressoarem nas forças instituídas até então:

[...] os mundos virtuais engendrados na experiência das forças produzem uma fricção
com a experiência das formas moldadas segundo as cartografias socioculturais
vigentes. A razão é simples: o fato de tais cartografias serem a materialização de
arranjos de forças anteriores – distintos do atual, pois resultam de outros corpos e
outras conexões entre eles – impede a expressão dos mundos virtuais gerados pelo
novo arranjo de forças no presente (ROLNIK, 2021, p. 56).

Em consequência, a subjetividade encontra seus limites em estado de suspensão. É nesse


momento que o “inconsciente pulsional” conduz a qual caminho o desejo deverá seguir,
distinguindo assim suas micropolíticas: pela conservação das formas cristalizadas e obsoletas
às férteis possibilidades de existência ou pelo movimento da vida em sua potente pulsação e
atualização. “O desejo é então impelido a fazer cortes na superfície topológica-relacional do
mundo que devolva à subjetividade um contorno, uma direção e seu sentido” (ROLNIK, 2021,
p. 57). Tais micropolíticas, porém, não são fixas e imutáveis. A autora as postula em um
espectro no qual o desejo e, portanto, os diferentes destinos – éticos ou não – oscilam ao longo
da vida e de distintas circunstâncias. “Impõe-se ao desejo uma negociação constante entre esses
dois movimentos. É precisamente nesse ponto que se definem as políticas do desejo – das mais
ativas às mais reativas” (ROLNIK, 2021, p. 113). Dito isso, me questiono então o que determina
esses direcionamentos? Quer dizer, o que faz o desejo seguir por uma micropolítica ativa ou
reativa? O que move o desejo? Em um cenário de cafetinagem da pulsão vital, como nos
reapropriamos do desejo para direcioná-lo em uma ética pela potência da vida? Ou ainda, para
evocar Baruch Spinoza e sua teoria dos afetos, como compomos autoafecções? Como nos
instituímos aos bons encontros, apesar do acaso dos afetos passivos?
Numa micropolítica ativa o desejo irá agir buscando encontrar contornos outros que
façam sentido às ressonâncias causadas pelas forças atuantes nos novos encontros, as acolhendo
e sustentando a vida em sua plena potência dentro de cada circunstância. Por isso é tão
importante, aqui, que a subjetividade se encontre nesse estado tal de
29

limite/fronteira/estranhamento, pois só assim ela poderá acolher essas ressonâncias da melhor


forma possível e, ainda assim, se manter atenta e aberta ao novo, ao outro, ao possível.

[...] essa política do desejo é própria de uma subjetividade que habita o paradoxo entre
suas duas experiências simultâneas, como sujeito e fora-do-sujeito. [...] que consegue
sustentar-se na tensão entre as forças que dela emanam [...] E que logram igualmente
manter-se alerta aos efeitos dos novos diagramas de forças, gerados na experiência
intensiva de novos encontros [...] (ROLNIK, 2021, p. 60).

A subjetividade renovará seus contornos a partir da transformação das forças agora


presentes em formas acessíveis à experiência sensível e, portanto, se manifestará a fim de dar
passagem aos novos mundos germinados e em germinação, num modus operandi outro de ver
e sentir a realidade, ou seja, a subjetividade encontrará seus contornos em relações outras de
mundo, ressignificadas e ressignificantes.

Em outras palavras, o que importa é transduzir o afeto ou emoção vital, com suas
respectivas qualidades intensivas, em uma experiência sensível – seja pela via do
gesto, da palavra etc. –, e que esta se inscreva na superfície do mundo, gerando desvios
em sua arquitetura atual (ROLNIK, 2021, p. 61).

Aqui os processos de criação são fundamentais na formação do corpo afetivo,


possibilitando sua organização em uma espécie de balanço dos afetos e de retomada da potência
de existir para direcionar a efetuação da vida em uma conduta ética. Não nos é mais suficiente
existir com menos que o básico, e que seja o básico abundante em nutrientes que possibilitem
uma vida pulsante, inquieta e íntegra. A vida exige curiosidade, movimento, acolhimento e
compromisso. É que na micropolítica ativa, o desejo é guiado pelo deslocamento, pela produção
de diferença, pela estetização do múltiplo e, portanto, pelo acolhimento do outro e do além. Só
assim a vida poderá se manter fértil como lhe é possível.
Passemos agora à compreensão da micropolítica reativa e seus aparatos subjetivadores,
fundamentais à execução e manutenção do regime de cafetinagem. Sobre essa dimensão
subjetiva, Suely Rolnik desenvolve conceituando-a por uma experiência restrita ao sujeito e
desagregada da experiência fora-do-sujeito, condição essa que lhe obstrui o acesso àquilo que
o saber-do-corpo, com seus afetos e perceptos, captaria e transmitiria. Essa subjetividade
compreende-se numa realidade “supostamente” constituída de partes categorizavelmente
dissociadas, fixas e imutáveis, da qual o sujeito integraria tomando seu devido lugar como
indivíduo absoluto. A autora afirma, a respeito dessa apreensão limitada do mundo, que “É
evidente o teor alucinatório dessa imagem de uma conservação eterna do status quo de si e do
mundo, pois se tal conservação de fato ocorresse, isto implicaria no estancamento dos fluxos
vitais que animam a existência de ambos, o que no limite significaria sua morte” (ROLNIK,
30

2021, p. 67). Ela explica que tal estado alucinatório, ao qual a subjetividade se submete, é fruto
do medo de que a atualização convocada por essas outras forças resulte na destruição de si
mesma, o que faz com que não consiga suportar e sustentar-se no estado de confronto causado
pelo atrito dos encontros que lhe ocorrem borrando suas certezas e delimitações, pois ela se
reflete da realidade das formas pré-estabelecidas, tal qual uma experiência restrita ao sujeito.
Consequentemente, o estranhamento que é característico de tal paradoxo, proveniente
da relação de forças e formas, se intensificará distorcendo o mal-estar causado pela
desestabilização da subjetividade a ponto de ser experienciado como algo a ser repelido ou
eliminado a qualquer custo, como “coisa ruim”. “Assim interpretado, tal mal-estar converte-se
em angústia do sujeito” (ROLNIK, 2021, p. 67). Nesse caso, a subjetividade buscará
desesperadamente desfazer tal desestabilização a fim de retornar aos seus familiares contornos.
Ela evitará lidar com a demanda posta pelo inconsciente pulsional subjugando o desejo à uma
bússola moral, que a conduzirá a formas de existência já conhecidas, reproduzindo sempre o
mesmo modo e funcionamento, numa adictiva alienação da pulsão criadora. É nesse momento
que o desejo e a produção de subjetividade, com o acesso ao saber eco-etológico bloqueado,
são cooptados pelas irresistíveis opções de alívio rápido da angústia do sujeito, assim oferecidas
pelo regime de inconsciente operante nesse modo micropolítico, reestabelecendo o equilíbrio e
contornos temporários, como é apontado pela autora.
Falar em polos micropolíticos, nos quais em um o desejo é guiado por uma bússola ética
e no outro por uma bússola moral, muito me remete ao que Deleuze (2009, p. 43) destaca da
postura de Spinoza em relação a tais valores, de que a ética é uma questão de potência do ser,
enquanto que a moral é dada pelo dever. Percebo, então, em minha experiência o quanto da
moralidade está entranhada no cerne das instituições – como a família, a Igreja, o Estado e, até
mesmo, a escola – regidas por uma ordem monocultural10 em que prevalece como modelo
existencial tudo que gira em torno do imaginário do homem branco cis hetero cristão, ou nos
termos de Rolnik, de uma perspectiva antropo-falo-ego-logocêntrica. A moral aqui nada mais
é que um mecanismo de controle da potência que abrigamos dentro de nós; um fim alcançado
por meio de afetos tristes que nos atravessam na normalização de convenções sociais
disfuncionais ao longo da nossa formação subjetiva.

10
A psicóloga e ativista indígena Geni Núñez (2021) se utiliza do termo monocultura enquanto lógica de um
sistema, intrinsecamente colonial, de apropriação e assimilação das alteridades viabilizando a homogeneização
dos modos de existência. Nessa via de pensamento ela aponta a monocultura dos afetos, da sexualidade e da fé
como alguns desses modelos de controle.
31

2.2 - O medo e o amor como afetos políticos


O homem, como os outros animais, tem medo e é repelido pelo que ele não entende, e uma simples diferença é
capaz de conotar algo maligno.

– Zora Neale Hurston11

Assim como no caso das micropolíticas em que Suely Rolnik se utiliza da noção de
espectro para localizá-las como polos opostos e para explicar o movimento da subjetividade
entre eles, assim podemos definir a relação entre esses dois afetos, os compreendendo como
dispositivos de um direcionamento ético ou moral do desejo, ou, evocando Baruch Spinoza, do
conatus, possibilitando a reapropriação ou expropriação da potência vital, ou, potentia agendi.
Então, como posso definir o medo? Segundo o Dicionário de Língua Portuguesa
comentado pelo Professor Pasquale (2009, p. 386) temos que: “me.do (ê) (lat metu) sm 1
Sentimento de grande inquietação diante de um perigo real ou imaginário, de uma ameaça;
pavor; temor; terror. 2 Apreensão. 3 Receio”. O medo também é entendido fisiologicamente
como uma reação química que provoca um estado de alerta relacionado à sobrevivência.
Deste modo, para além de sua função instintiva de autopreservação, ou numa distorção
assombrada desta, compreendo o medo como um estado de impotência e de descrença do
sujeito. Uma acuação da subjetividade. A partir do que observo em minha experiência e do que
Rolnik traz em seu livro, esse estado costuma ser caracterizado pela sensação de imobilidade.
Angústia, desespero, crises existenciais, paranoias causadas por insegurança, suscetibilidade às
dependências – física, emocional e/ou química – ou busca por soluções milagrosas que
“supram” de alguma forma suas supostas incapacidades e/ou que as distancie da consciência de
tal desconforto, impossibilitando cada vez mais a compreensão e a subversão de tal jugo,
compõem o cenário desse estado afetivo.
O medo é resultado, a princípio, de uma ansiedade – tal como um deslocamento do aqui
agora – que varia em grau. “O Medo é a Tristeza inconstante originada da ideia de uma coisa
futura ou passada de cuja ocorrência até certo ponto duvidamos” (ESPINOSA, 2015 apud
MARTINS AMARAL, 2021, p.72), mas, a longo prazo, se institui através de certas ações e
contextos de macro e microviolências como silenciamento, inferiorização, autoritarismo
iminente de uma estrutura patriarcal, dogmatismos moralistas e cerceamento de direitos. Ao
caminhar com o medo, se torna familiar a sensação de pequenez e incapacidade de ser, de
mover, de relacionar consigo e com o outro, de acreditar em si, na própria voz e na própria

11
ANZALDÚA, 2000, p. 230.
32

potência. Instaurado a nível “molecular”, faz com que questionemos não uma ou duas vezes
antes de colocar qualquer coisa no mundo, mas exaustivamente incontáveis vezes.
Nesse estado de imobilização, tal pulsão se encontra esfarrapada, faminta e letárgica.
Isolada da superfície oxigenada. O medo fragiliza, então, a subjetividade numa eterna incerteza,
fazendo com que ela sinta sempre a necessidade vulnerável de se amparar em parâmetros
externos que já estão dados “desde que o mundo é mundo” e que lhe foram apresentados como
normas absolutas de existência. A partir daí, toda a realidade se converte numa espiral
agonizante do desejo, soterrando cada vez mais sua potência. Esse afeto serve, portanto, à
execução e à manutenção das hierarquias de poder e opressão, as quais atribuem um locus
específico para cada sujeito a depender das “suas credenciais”, limitando quem deve ser o quê
e o quê deve ser acessível a quem. “O medo é a força primária que mantém as estruturas de
dominação” (HOOKS, 2022, p. 129).
Podemos verificar sua operação em diversos contextos como, por exemplo, no discurso
repressivo da LGBTfobia veiculado, principalmente, na maioria das igrejas cristãs com a
promessa do inferno caso o sujeito viva tal “comportamento desviante”; na violência racial
sustentada e manutenida pela indústria cultural e pela máquina pública; na hierarquização de
saberes seja no meio educacional, como em escolas e universidades, ou fora dele, alimentando
o ideal de um discurso oficial – erudito e acessível a alguns poucos – e o silenciamento de um
não-oficial – geralmente oriundos do popular ou os chamados saberes tradicionais; na violência
de gênero, na qual a mulher se vê subjugada discursivamente, psicologicamente,
patrimonialmente e/ou fisicamente; dentro da instituição familiar onde hegemonicamente
impera a lógica patriarcal cis heteronormativa pela qual se determinam papeis sociais fixos e
inquestionáveis; a lista é enorme e vale lembrar que não são formas de opressão isoladas, mas
sim, interseccionais, já que pode ocorrer de um mesmo sujeito ser atravessado por todas elas ao
mesmo tempo.
Assim, para cada opressor haverá um oprimido. Essas relações de poder, que se
distinguem de acordo com a estância identitária, são mantidas com o uso desse afeto como
dispositivo de poda e cerceamento da potência da subjetividade de cada um. Isto é, é através da
colonização dos processos de singularização do sujeito que essas estruturas se afirmam sobre a
coletividade na qual ele se integra.
Na micropolítica do desejo, o medo atua como um mecanismo do polo reativo pelo qual
se faz perpetuar um sentimento de fuga ou incapacidade de agir sobre a realidade que incide na
subjetividade. Como foi explicado por Suely Rolnik, nesse polo da reatividade o sujeito irá
processar os atravessamentos que lhe ocorrem pelos encontros que se dão na superfície
33

topológico relacional como “coisa ruim”, pois desestabilizam as formas vigentes que lhe são
familiares e, portanto, ameaçam sua existência 12. Nessa perspectiva em que se dá a supressão
dos efeitos inerentes ao processo de relação entre forças e formas – e, consequentemente, da
potente pulsão vital da qual lhe é prenhe –, a angústia proveniente de tal condição poderá vir a
se manifestar de diferentes maneiras. Partindo do pressuposto que a subjetividade tem de que
tal desassossego é causado por si ou por alguém/algo que lhe é externo, como aponta Rolnik
(2021, p. 71), podemos experienciá-lo pelo isolamento, pela impulsividade e reatividade, pela
comunicação violenta, pela autodepreciação e pela autodestrutibilidade13 para exemplificar
alguns dos cenários.
A psicanalista demonstra que no caso em que a subjetividade atribui a causa da angústia
ao próprio sujeito por uma suposta falha, deficiência ou incapacidade sua, o alívio da
“autodepreciação e da vergonha” inerentes se dará através dos produtos oferecidos pelo próprio
sistema em que se dá tal estado. Sejam eles produtos farmacológicos com fins de nublar,
neutralizar e entorpecer a experiência; sejam produtos discursivos com promessas de um
paraíso ou de ascensão; sejam as performances prêt-à-porter14 embotando e distorcendo os
processos de alteridade. Todos seguem o mesmo objetivo: o de esvaziar os sentidos, obstruir o
saber-do-vivo, anestesiar o desejo e cooptar os processos de subjetivação a fim de uniformizar
a coletividade ao serviço de conservação do status quo. “Como os remédios tarja preta, as
igrejas, as ideologias, os estimuladores de autoestima e os complexos discursos intelectuais,
tais mercadorias são usadas como perfumes para disfarçar o odor infecto de uma vida
estagnada” (ROLNIK, 2021, p. 74).
Já no caso em que o suposto culpado de tal angústia é algo ou alguém que lhe é externo,
a subjetividade canalizará seus esforços em manter o pseudoequilíbrio recém-reestabelecido a
um bode expiatório, nas palavras da autora. Com isso, justificará seu consequente ódio – que
possivelmente realimentará a cadeia de produção reativa – pela estereotipização, deturpação e
redução do outro:

E esse outro demonizado pode ser uma pessoa, um povo, uma cor de pele, uma classe
social, um tipo de sexualidade, uma ideologia, um partido, um chefe de estado etc.
São as xenofobias, as islamofobias, as homofobias, as transfobias e outras tantas

12
Nesse caso, esta se constitui através da via de percepção exclusivamente cognitiva, reduzindo-a à realidade
concreta e imediata.
13
Tendência a atitudes e/ou hábitos que promovam a autodestruição.
14
As performances prêt-à-porter são subjetividades prontas para consumo que geram uma uniformização das
formas de existir e se colocar no mundo. “[...] a subjetividade terá que mimetizar também estilos de vida que lhe
devolvam, como as palavras, a sensação de pertencimento, condição para sentir-se existindo. [...] sedutoramente
veiculados pelos meios de comunicação de massa. Tais produtos consistem em narrativas que transmitem imagens
de mundos” (ROLNIK, 2021, p. 74).
34

fobias, assim como os racismos, os machismos, os chauvinismos, os nacionalismos e


outros ismos. Isto pode levar a ações extremamente agressivas, cujo poder de contágio
tende a criar as condições para o surgimento de uma massa fascista (ROLNIK, 2021,
p. 75).

A drag queen Rita von Hunty do canal de YouTube Tempero Drag15 traz em um de seus
vídeos de 2021 essa abordagem do medo como esse afeto potencialmente político. O contexto
que engatilha a discussão é o da escalada dos atos de ódio da ultradireita bolsonarista em pleno
ano eleitoral. Ela explicita como a partir de um movimento de ódio “do lado de lá” é gerado o
medo “do lado de cá”. O medo, então, se dá como uma estratégia de desmonte de mobilização
democrática e de banalização do “mal”. Ou seja, o medo é instaurado a fim de minar qualquer
vislumbre de contramovimento e de produção de outros mundos, já que esse afeto nos cristaliza
frente à realidade e poda as possibilidades outras de ser, pensar e criar, consolidando um
imaginário de imutabilidade e impotência.
Evocando a teoria dos afetos de Spinoza, a drag queen afirma o medo como esse afeto
triste que nos paralisa e nos tira a capacidade de reagir. É aí que ela ressalta a importância de
esperançarmos, sobretudo coletivamente, como uma forma de fortalecimento e resistência. É
esperançando que acreditamos e investimos energia na construção de mundos até então
utópicos, que rompem com uma lógica hegemônica de ser e estar no mundo, “[...] gerando
desvios em sua arquitetura atual” (ROLNIK, 2021, p. 61).
Para hackear o medo é preciso coragem para desfiar os nós desse telefone sem fio.
Tomar distância, abrir respiros, ver o todo e, então, demorar-se nas fissuras, escutar os muros e
tirar a poeira dos encontros. Se reconhecer e se ancorar também em coletividade para fortalecer
os macros e micro processos que possibilitam esse contramovimento. A vida nos demanda ação
para percorrer as “rotas desviantes” que possibilitam germinar as sementes do desejo.
No que concerne ao amor, falar dele e com ele é uma tarefa difícil. Tanto mais é defini-
lo. Pra mim, o amor já foi muitas coisas, inclusive nada. Talvez por isso seja mais difícil abordá-
lo do que ao medo. O medo, apesar de só o identificar como tal há pouco tempo, sempre esteve
gritantemente presente, com diferentes caras e aparências, em mim ou ao meu redor. Acredito
que o amor também, para não ser injusta, mas como não cresci ouvindo seu nome, foi custoso
reconhece-lo na penumbra. Meio turvo, de difícil acesso ou distorcido pelo espelho abaulado
da disfuncionalidade.
Disfuncionalidade. Me apropriar dessa palavra é uma coisa nova para mim, que não
tenho tantos anos de experiência em externalizar com precisão palavras, gestos, pensamentos e

15
Canal voltado à educação e à emancipação do pensamento e do sujeito pela acessibilização de discussões
voltadas à temas sociais e políticos através do humor e da arte.
35

desejos. Venho compreendendo aos poucos que posso reconhecer as fraturas das relações sem
invalidar o todo, sem passar pano ou virar revoltosamente as costas. Apreender o amor, não
como um mero sentimento, mas como um afeto que faz parte do jogo social estruturado por
marcadores de raça, gênero e classe. Porque o amor é tão distorcido? A quem interessa distorcê-
lo? E ainda, a quem é permitido amar e ser amado? Pode parecer piegas num primeiro momento,
mas quando o encaramos como uma força política potente, percebemos o tamanho do rombo
instaurado historicamente nas relações e na forma como encaramos a vida como um todo.
O amor que nos é apresentado social, histórica e culturalmente configura uma estratégia
política de ação (ou inação) sobre aquilo com o que está relacionado. Os filmes, os livros, a
mídia de massa, as novelas e o circuito “oficial” da indústria cultural nos vendem um discurso
de amor que perpetua valores de um modo de vida voltado à manutenção de estruturas
romantizadas, obsoletas e adoecidas. A ideia de que quem deve sustentar um relacionamento
(romântico) é a mulher, de que o amor é espontâneo e que isso seria suficiente, de que existe
um “felizes para sempre” a ser alcançado, de que a família é como um comercial de margarina,
e por aí vai. “A cultura estabelece prioridades. O contexto cultural em que se forma a
personalidade do indivíduo, implicitamente orienta e às vezes até propõe a maneira por que
devem ser desenvolvidas as modalidades de relacionamento” (OSTROWER, 1986, p. 84).
Nessas tentativas de o compreender e estabelecer uma relação de pertencimento, tive a
experiência de tomá-lo como destinatário de uma carta escrita, a qual fez parte do produto final
do projeto de extensão Cartas para Transversar Paredes16, realizado durante a pandemia em
2021 pelo até então Grupo de Estudos História da Arte e Gênero (HAG). Nela escrevi que:

entendo o amor como algo que me atravessa, mas também como


algo que está em mim [...] o amor costuma ser confundido, distorcido
e corrompido por tantas outras coisas que acabou se perdendo no
turvo do mundo17

16
O projeto tinha como proposta viabilizar, durante o período de isolamento social advindo da pandemia de Covid-
19, processos criativos pela escrita, pela criação visual, pela música, entre outros meios de mobilização do ser
subjetivo. Durante esse ano de projeto, além das próprias discussões do HAG pelas quais movimentamos
pensamento e produção, contamos também com oficinas de desenho de observação, aquarela e colagem, as quais
proporcionaram não só um contato com diferentes meios de expressão, mas também encontros e atravessamentos,
que naquele momento nos eram limitados do corpo a corpo. Seu produto final foi a produção de um e-book no
qual nós, integrantes do grupo, colocamos nossos transversamentos de paredes e muralhas, nossas cartas escritas
e visuais.
17
A carta na íntegra se encontra na seção de anexos ao fim do presente trabalho.
36

Quando redigi essa carta, ainda não tinha tido o prazer de ter minha visão sobre a vida
revirada de ponta cabeça pela conceituação do amor enquanto práxis18, desenvolvida por bell
hooks em seu livro Tudo sobre o amor: novas perspectivas (2022), muito menos que o traria
na escrita do TCC. Ao entrar em contato com o livro, fui arrebatada por uma sensação de
compreensão, acolhimento e pertencimento, como se tivessem tomado minha criança interior
no colo, a abraçado e dito que “está tudo bem. eu entendo o que você sente e vou te ajudar a
cuidar das suas dores”. Nele, a autora fala do entendimento sobre o amor desde a infância até a
vida adulta, nas relações familiar, religiosa e romântica. Ela trata de contextos e noções que
tantas vezes são relativizadas, mas que impactam profundamente na nossa formação subjetiva,
como a violência e o silenciamento na infância, a honestidade, a justiça, a ganância e a
reciprocidade em nossas relações de e com o mundo.
Não por acaso, a primeira vez que ouvi falar do amor como uma ação foi pela boca do
meu namorado, Vini. Não me lembro exatamente qual era o contexto que engatilhou essa
afirmação, mas ele falava sobre como amar não se resume a simplesmente falar que ama, mas
também colocando em prática para com o outro. Mesmo que ele não tivesse expressado com
palavras, sua conduta o faria. Com ele reaprendi a enxergar o amor através da ação, do cuidado,
do respeito, da escuta, da paciência e do empenho em ser o melhor possível para si e para o
outro. Ele me faz lembrar todos os dias que para ser capaz de amar o outro é preciso (aprender)
amar a si. O amor pode ser transformador a ponto de reaprendermos a enxergar a vida e a
ressignificar os encontros que dela decorrem.
A segunda situação em que ouvi falar do amor como uma ação foi na teoria de bell
hooks. E assim ela o afirma ao citar o psiquiatra norte-americano M. Scott Peck: “O desejo de
amar não é amor. O amor se expressa amando. É um ato da vontade – isto é, tanto uma intenção
quanto uma ação. A vontade também implica uma escolha [...]” (PECK, 1978 apud HOOKS,
2022, p. 202). O amor, para além de uma ação – ou antes mesmo de –, pode ser entendido como
uma lente pela qual enxergamos a realidade. Com ela fazemos um balanço do mundo – o
enxergando em sua completude gloriosa e ao mesmo tempo decadente – e da nossa ocupação
nele para, a partir disso, nos direcionarmos às intervenções necessárias. Como podemos agir
num mundo idealizado, distinto da realidade concreta e afetiva, sem o encararmos com atenção
e responsabilidade?
A autora aponta que a dificuldade que temos em nomear e definir o que é o amor está
no cerne da nossa confusão em amar. Se não conhecemos o amor, não o chamamos assim, ou,

18
Concepção freiriana tomada pela autora para se referir à teoria e a prática em consonância na transformação da
realidade.
37

se o conhecemos pelo que ele não é como se assim ele o fosse, então o que ele realmente é não
é considerado digno de ser chamado de amor. “Definições são pontos de partida fundamentais
para a imaginação. O que não podemos imaginar não pode vir a ser” (HOOKS, 2022, p. 55).
Segundo a autora, o amor definido enquanto prática deve ser estruturado por pressupostos que
garantam a efetividade de tal afeto, sendo eles o cuidado, a afeição, a responsabilidade, o
respeito, o compromisso e a confiança. bell hooks ressalta que reafirmar o amor como uma ação
incumbe quem usar tal palavra de responsabilidade e comprometimento, visto que “[...] a
maioria de nós aceita que escolhemos nossas ações, que a intenção e o desejo influenciam o
que fazemos. Também aceitamos que nossas ações têm consequências” (HOOKS, 2022, p. 55).
Quando erigimos o amor sobre tais pilares, a negligência, o descaso, a hierarquização,
a violência e o preconceito são – ou deveriam ser – automaticamente postos para fora “da sala”.
O amor enquanto afeto que acolhe, que cuida, que respeita, que escuta, que busca compreender,
e impulsionar a vida potente, não comporta atos ou condições de repressão, limitação, coação
e aprisionamento do ser. Em seu livro, hooks traz a definição de Peck em que ele o afirma como
“a vontade de se empenhar ao máximo para promover o próprio crescimento espiritual ou o de
outra pessoa” (PECK, 1978 apud HOOKS, 2022, p. 47) e em seguida reitera explicando que
quando se faz referência à um “espiritual” fala-se de:

[...] um princípio que anima o self – uma força vital (alguns de nós a chamamos de
alma) que, quando alimentada, aumenta nossa capacidade de sermos inteiramente
autorrealizados e aptos a nos relacionarmos em comunhão com o mundo ao nosso
redor (HOOKS, 2022, p. 55).

Ou seja, o amor não poderá coexistir com opressões patriarcais – como o machismo, a
misoginia e a LGBTfobia –, racistas ou classistas. Assim, por mais penoso que seja reconhecer
as lacunas do amor em nossa vida, é necessário reafirmá-lo enquanto afeto político, como ação
potente, para confrontarmos a cultura romantizada do que nos apresentam convencional e
covenientemente como amor. Ao alimentarmos o curso de tal transformação poderemos
vislumbrar uma revolução dos afetos, na qual a ordem da casa deixa de ser o desamor, o ódio,
o medo e a conservação de estruturas adoecidas, para ser então o cuidado e o compromisso não
só consigo, mas com o outro, com o mundo ao nosso redor, com o planeta e com a atualização
e proliferação da vida.
Então, como afirmar o amor enquanto uma ética de vida? Relembremos que o filósofo
racionalista Baruch Spinoza reivindica a ética como uma questão de potência e, assim,
questiona o que pode um corpo. Podemos nos perguntar em relação à uma ética de vida “o que
pode (um)a vida?”. Tendo o amor como seu viés de consolidação, essa ética permitirá, ou
38

buscará dar, condições para que tal questionamento seja explorado, experimentado e revirado
do avesso a fim de (re)descobrirmos tal potência. Para tal, a autora estadunidense reafirma a
importância do comprometimento com a mudança e com a práxis dos valores que sustentam
esse afeto, “[...] da necessidade de transformarmos o nosso pensamento para nos vermos como
seres que mudam, ao invés de estarmos entre os que se recusam a fazê-lo” (HOOKS, 2022, p.
126), possibilitando que a utopia deixe de ser utopia e passe a operar na realidade dos nossos
pensamentos, ações e relações que se dão cotidianamente.
hooks alerta para um distanciamento operante na nossa sociedade entre discurso e
atitude e explica que tal incongruência se mantém devido ao “medo de agir de acordo com o
que acreditam porque isso significaria desafiar o status quo conservador” (HOOKS, 2022, p.
126-127)19 e, que, não é conveniente aos que se beneficiam dos privilégios manutenidos por
esse status quo que confrontemos seus modelos de existência e “[...] nosso medo coletivo do
amor. A adoção de uma ética amorosa significaria que todos nós nos oporíamos a muitas das
políticas públicas que os conservadores aceitam e apoiam” (HOOKS, 2022, 127).
Podemos, portanto, compreender esse afeto não só pela esfera psicológica, mas também
pela esfera material da realidade. Enquanto ética de vida seus princípios nos levam à
intervenção e a construção de um mundo de direitos plenos, já que:

A preocupação em relação ao bem coletivo de nosso país, de nossa cidade ou


vizinhança, baseada em valores amorosos, faz com que todos busquemos nutrir e
proteger esse bem. Se todas as políticas públicas fossem criadas no espírito do amor,
não teríamos que nos preocupar com o desemprego, as pessoas em situação de rua, o
fracasso de escolas em ensinar às crianças ou os vícios (HOOKS, 2022, p. 134).

O amor se configura, então, como necessidade básica ao “bom funcionamento” humano


subjetivo e social, construções indissociáveis e concomitantes. A autora nos convoca a
enfrentarmos o medo que nos acua e nos faz agarrar ao comodismo existencial, esperançando
e assumindo o amor como necessidade primordial às relações e à uma sociedade sadia e
sustentável. Para reafirmar essa condição ela traz a explicação do psicanalista alemão Erich
Fromm de que “qualquer sociedade que exclua relativamente o desenvolvimento do amor deve,
no fim das contas, perecer vitimada por sua própria contradição com as necessidades básicas
da natureza humana” (FROMM, 1950 apud HOOKS, 2022, p. 128).
Isso explicita o que Rolnik afirma a respeito da micropolítica ativa do desejo, pois ao
sermos honestos e comprometidos com as demandas e, consequentemente, as mudanças que

19
Conservadorismo esse, próprio de uma política reativa do desejo, que buscará a qualquer custo preservar as
formas que já estão dadas, ainda que estas não sejam mais capazes de dar passagem e comportar os efeitos do
fluxo de forças que mobilizam a vida potente.
39

urgem tanto na esfera privada quanto na esfera social em comunidade, direcionamos o desejo
em seu sentido ético de transformação e expansão da vida.

Regido por essa micropolítica, o desejo cumpre sua função ética de agente ativo da
criação de mundos, próprio de uma subjetividade que busca colocar-se à altura do que
lhe acontece. [...] estamos diante de uma vida, individual ou coletiva, que logra
reapropriar-se de sua potência e, com ela, driblar o poder do inconsciente colonial-
capitalístico que a expropria (ROLNIK, 2021, p. 65).

Vale afirmar que, assim como o afeto medo na qualidade de mecanismo reativo é tóxico
ao sujeito e ao seu entorno tornando-os contagiosos de uma pulsão de morte, o afeto amor
também possui seu potencial de proliferação – de “polinização”20 – de uma pulsão de vida.
Nesse polo ativo da micropolítica, a experiência subjetiva com acesso aos sinais da realidade,
tanto cognitiva (“sujeito”) quanto extra-cognitiva (“fora-do-sujeito”), consegue aumentar seu
raio de alcance, de vislumbrar possibilidades outras de mobilização e ocupação, vias fora da
rota e territórios além das fronteiras. Ao conduzir o desejo, o amor se constitui como uma
estratégia de fortalecimento da subjetividade viabilizando a construção e a ampliação de uma
rede coletiva, política e ética de fundamentação da vida.

2.3 - Arqueologia dos afetos

Coloquemos a atividade arqueológica em pormenores a partir de três fatores: matéria,


memória e tempo. A matéria diz respeito aos resíduos das relações e dos signos construídos e
desconstruídos pelas interações sujeito-mundo/sujeito-sociedade/sujeito-sujeito. A memória é
arquivo subjetivo para compreender tais vestígios na trama relacional e, portanto, aparato de
análise e construção de narrativas. Já o tempo indicaria tanto uma localização cronológica,
quanto uma forma de percepção da realidade, de marcação dos acontecimentos. Memória e
tempo são, então, dimensões concomitantes e intricadas, cocriadoras de si. Cervo (2016b)
descreve o olhar arqueológico da seguinte maneira:

[...] é como andar por uma ruína: “quase tudo está destruído, mas resta algo. O
importante é como o nosso olhar põe esse algo em movimento”21. E são esses restos
capazes de ferir e de mobilizar a memória que podem instaurar uma nova relação com
o tempo. A montagem visibiliza as sobrevivências, evocando profundidade e
configurando-se enquanto escolha (CERVO, 2016b, p. 18).

Uma arqueologia dos afetos seria, portanto, remexer a matéria residual dos afetos –
forças ressonantes que operam nos processos de subjetivação – arquivada na cartografia do

20
Suely Rolnik utiliza o termo polinização em contraposição ao termo contágio, visto que este último remete à
contaminação de doenças. Para maior diferenciação da utilização dos termos cf. ROLNIK, 2021, p. 91.
21
DIDI-HUBERMAN, 2013.
40

tempo. O processo encaminha para um emergir dos atravessamentos e de suas reverberações.


Compreender de onde vem as ramificações que nos mobiliza. Ao arqueólogo afetivo cabe a
interpretação subjetiva, podendo ocasionar no ressignificar dos acontecimentos. Um remodelar
das formas que se cristalizaram no agora de outrora. “Como resultado das próprias distinções
perceptivas há inúmeras possibilidades de leitura de si e do mundo” (OLIVEIRA; SATRIANO,
2018, p. 373). Aqui nesse trabalho, esse movimento de escavação me permite jogar luz àquilo
que opera no funcionamento do meu corpo em seu modo de mover, pensar, criar e existir: o que
tem do outro que diz sobre a forma como ele me afeta? O que tem de mim que diz sobre a forma
como sou afetada? Rastros que mobilizam e se transfiguram em meus processos de criação.
Rastros que conduzem um devir-pensamento, devir-criação, devir-cura22.

2.3.1 - Vestígios23

Quando me pego olhando “para trás” percebo que nunca sou a mesma pessoa que olhou
da última vez. Sou muitas em diferentes circunstâncias e em diferentes tempos. A pessoa que
vive a experiência é uma, a pessoa que relembra o acontecido é outra, a pessoa que escava a
memória é ainda uma terceira e assim por diante... Cada uma delas tem em si um grau de
afetação e processamento dos afetos. Será que aqui agora sou capaz de falar das minhas
memórias como alguém que escava? Ou será que falo como alguém que se ancorou na crueza
dos acontecimentos? Sinto que é mais fácil falar dos bons momentos, das risadas, dos carinhos,
do cuidado. Talvez por isso seja também mais fácil de esquecer. Não nos atemos aos detalhes.
A expressividade fácil nos permite processar essas experiências com leveza e fluidez. Quanto
aos maus momentos não tive muitas oportunidades em verbalizá-los. Ou se as tive, dado meu
descostume, não o soube fazer – era o silêncio ou a cólera. Se pensarmos por um lado, será
ainda um atravessamento algo que estanca e não chega ao outro lado? Afeto encaixotado,
espírito enfraquecido. Palavras ocultas, sentimentos reprimidos, mente vulnerável. Se não me
expresso, ou nem ao menos aprendo a me expressar, não distingo e, portanto, não compreendo.
A mim. Aos outros. Ao mundo ao meu redor. É tudo um borrão. O que sou eu e o que não sou
eu? Fico para lá e para cá, guiada pelo julgamento alheio do que é e o que não é aceito. Estive
confusa. Ainda estou?

22
Trago essa dimensão da cura como um processamento desses afetos, aprofundando a compreensão do que muitas
vezes se mantém oculto em nós ou que nós mesmos soterramos, trazendo à superfície e permitindo olhar para
aquilo ressignificando ou mesmo diminuindo o “poder” que aquilo tem em nos machucar.
23
A escrita desse subtópico procede de forma fragmentada, considerando o modo de operação da memória segundo
os afetos pelos quais seus registros se estabelecem de forma mais ou menos clara. Trata-se, portanto, de vestígios
afetivos.
41

Memórias alheias são frágeis. Elas desmoronam na primeira marola que passa. Cresci
ouvindo histórias. Minha mãe é uma contadora excepcional, com um HD memorial imensurável
e uma oratória singular. Muitas das memórias sobre a família ou mesmo sobre mim me foram
passadas por ela. Castelinho de areia. Não importa quantas vezes ouça, nunca consigo me
lembrar ou transmitir com fidedignidade. Elas não são minhas. Mesmo assim, monto uma
colagem sobre elas. Me aproprio delas como se apropria das imagens sem direitos autorais da
internet. Monto minha história. Preencho as lacunas com o que me apetece. Com os recortes
afetivos que me conectam àquela narrativa. Recorto, colo, construo e fabulo.
Aqui vai um exemplo: fevereiro de 1999. Minha mãe fazia uma vigília de oração em
Dias D’Ávila. E como em qualquer vigília, era madrugada. Meu pai estava internado num dos
muitos centros de recuperação para alcoólatras e drogados24 pelos quais passou. As contrações
começam, a bolsa estoura e minha mãe corre para chegar a Salvador a tempo de parir no hospital
em que minha tia estava dando plantão na época, o Hospital Geral Roberto Santos. Lua
minguante em Escorpião. Ali vinha uma tempestade. Amanhece. Às 10:25 da manhã de um
domingo chego ao mundo com o cordão umbilical dando quatro voltas no pescoço, roxa, com
três quilos e quinhentos. Minha mãe resolve me chamar Victória, de vitoriosa. Como não?
Sobrevivi.

Sou uma acumuladora. Talvez não crônica. Ou assim prefiro acreditar. Acumulo
objetos, embalagens, roupas, sapatos, revistas, livros, fotografias, escritos, cheiros, marcas,
registros, lembranças, sentimentos, sensações... É de família. Minha vó era. Minha mãe é.
Minha tia é. Meus irmãos são. E eu acabo sendo. Não sei se é genética ou influência. Ou os
dois. Cada item acumulado carrega em si uma justificativa afetiva para não ser descartado ou
passado adiante. Às vezes é algo que estava presente em um momento importante. Algo que
traz uma memória à tona. Algo dado por alguém que foi ou que é especial. Algo que tem toda
uma história por trás. Algo que faz eu me sentir segura ou acolhida. Algo que não quero
esquecer. Algo que não quero que os outros esqueçam. Às vezes é só apego. Por que tanta
dificuldade em deixar ir? Em processar e deixar em seu devido tempo-espaço? Objetos
deslocados, sentidos obsoletos. Afetos em suspenso? Como deixar correr a água desse rio para

24
Ainda não chamávamos de dependência química, não entendíamos o vício como uma doença e sim como uma
simples escolha.
42

arrastar consigo o limo encrustado? O que o passado tem de mais promissor que as
possibilidades do agora? Tento superar, me desfazer do que não tem mais lugar, do que não
mobiliza, do que turva as vistas e estanca a existência no inalcançável.

Me agarro aos detalhes. Como negar os pormenores e a intensidade do ordinário a um


espírito faminto? Enquadro a vida em plano fechado. Evoco a intimidade e a sensibilidade do
cotidiano. Me entrego à dramaticidade. Sempre fui assim, demais, transbordante. Nem sempre
me permitiram ser. Sufocada, reprimida, podada, estancada, barrada, limitada. Apática. De
pouquinho em pouquinho aqui e acolá, se definha uma vida. Tá viva? Tá respirando.
Ainda assim, o fluxo que anima a vida e a impulsiona ao movimento não mingua. Persiste.
Persevera. Se agarra ao que pode. E, de pouquinho em pouquinho aqui e acolá, se fortalece.
Encontrando brechas, vias de passagem, de transversamentos. Estrategicamente ramifica-se.

Tenho a impressão de que sempre fui uma pessoa com tendências passionais. Desde
criança. Tenho lembranças de quando menina. Uma ou duas paixonites em cada série escolar
de fazer o coração disparar e a imaginação rolar solta. Nunca correspondidas, claro. Sempre fui
a colega esquisita, alta demais, lerda demais e feia para os padrões alheios. Em paralelo,
seguiam minhas tendências sexuais. Rudimentar a princípio, como sempre ou quase sempre
acontece ou deveria acontecer. Uma vez na alfabetização levei recortes de uma mulher “sexy”
que havia encontrado em alguma revista jogada em casa para entregar a uns meninos da minha
turma. Não me lembro se ela estava nua ou só de biquini, mas achei que estava fazendo um
favor a eles por que tinha escutado uma conversa deles no dia anterior e pareceu que eles
queriam aquele tipo de imagem. Pois bem, a professora descobriu e me puxou pro cantinho para
brigar comigo. Na época eu tinha 5 anos. Talvez seja uma das minhas primeiras lembranças
nesse sentido. Depois, mais velha, descobri que sentia prazer em roçar nas coisas. Aos 12, no
colégio, vazou a conversa de uma menina da minha turma em que ela falava sobre se masturbar.
Foi a primeira vez que ouvia essa palavra. E eu, como pessoa muito curiosa, procurei saber o
que era, no que também descobri como se fazia. Foi quando comecei a explorar o meu corpo.
Não por vias muito saudáveis à uma criança de 12 anos, mas ainda assim, ali um novo mundo
se abria. Com o tempo, a culpa pesou. Não sei de onde vinha, mas sempre prometia a Deus que
ia parar e implorava pelo perdão dele. Me pergunto se esse remorso era reflexo da repressão e
dos julgamentos que a menina da minha turma havia sofrido na época em que descobriram seu
43

segredo ou se era fruto do moralismo da igreja. Aos 13, quando estava na 8ª série, parecia que
todo mundo já havia beijado na boca. Foi quando inventei que também já havia beijado. Aos
15 beijei pela primeira vez, dessa vez de verdade. Aos 16 anos, apaixonada pelo rapaz com
quem estava ficando na época, beijei uma menina para saber como era. Foi quando descobri
que gostava de beijar todo mundo. Aos 17 me apaixonei pela primeira vez por uma garota. Aos
18, minha irmã me perguntou se eu era sapatão. Disse que não, afinal, não era bem uma mentira.
Mas o questionamento dela era até esperado: nessa época, em contato com novas perspectivas,
discussões políticas e em ampliação do meu círculo social, a descoberta e a autoafirmação da
minha sexualidade e orientação sexual se manifestavam, principalmente, de forma estética. Não
através da minha voz, mas da minha postura, minhas roupas, meus gostos e meus contatos
sociais. Foi a forma que eu havia encontrado de não me reprimir e ainda me preservar dos
julgamentos familiares. Aos 20 contei sobre minha bissexualidade pela primeira vez a um
familiar. Meu irmão. Até hoje ele foi a única pessoa da minha família que assumiu pra mim que
sabe, me oferecendo, antes de mais nada, um terreno seguro. Foi também nessa época em que
o amor começou a ganhar contornos distintos. Apesar dos meus receios adquiridos no quesito
relacionamentos, encontrei na relação com meu atual companheiro um espaço de acolhimento,
de compreensão, paciência e, mesmo, de cultivo de sanidade física e mental. Redescobri o amor,
não somente em relação ao outro, mas em relação a mim mesma.

Minha mãe é evangélica. Nem sempre foi. Mas a influência adventista da minha vó e as
dificuldades advindas de ter de criar os filhos e sustentar a casa, apesar da bebedeira do marido,
tornou essa uma de suas rotas de sobrevivência. Com isso, fui criada na igreja. Meu irmão que
é o mais velho dos filhos não alcançou essa influência – sua criação foi banhada em mares mais
alternativos – mas eu e minha irmã mais velha fomos socializadas nesse meio. Pelo menos até
a nossa adolescência. Durante a maior parte da minha permanência, enxerguei aquele lugar
como uma segunda casa.
44

Figura 2 – Sem título, [2005?]

Fonte: Acervo familiar.

Lá aprendi a socializar. Me lembro das brincadeiras com outras crianças, das festas com
suas danças, cantorias e comilanças, da escola dominical, das pessoas acolhedoras que
cuidavam de mim sempre que minha mãe precisava, das pregações que nem sempre entendia
ou prestava atenção, dos louvores e das orações cada uma com uma função. Tenho um misto
de carinho e aversão. Era uma comunidade gentil e receptiva. Até certo ponto. Quando fui
crescendo, meu horizonte se ampliou – a internet nos possibilita acesso à muitas informações e
discussões políticas. Aprendi que “você é perfeita aos olhos do pai”25, mas só se você não
questionar, não duvidar, silenciar seus desejos, estiver dentro da norma cis-hétero e seguir na
linha. Onde era comunidade, passou a ser estranhamento, deslocamento e ressentimento. Fui
deixando aos poucos de ser um receptáculo, as projeções alheias sobre meu corpo não se
encaixavam mais. Meus contornos não tinham mais lugar naquele meio, ainda que eles não
soubessem porquê.

Miçangas e relógios. Objetos que marcaram minha infância. As miçangas tão coloridas
pequenas, brilhantes e infinitas. Os relógios com suas minúsculas pecinhas segredadas no
interior de seu maquinário. As miçangas acompanhadas de um rádio tocando notícias, músicas

Aqui me refiro à música gospel “Aos olhos do Pai” do grupo Diante do Trono a qual, dentre tantas outras
25

músicas, fez parte da minha infância.


45

ou orações; do cheiro de marcela-galega vindo do travesseiro do encosto da cadeira; e do calor


com cheiro sempre fresco de hidratante Nivea que vinha do corpo de minha mãe trabalhando
noite e dia. Os relógios, em geral casa afora, acompanhados das prosas de clientes e transeuntes;
do alvoroço da central de abastecimento; dos utensílios cirúrgicos de um relojoeiro; e do cheiro
de suor, metal, graxa e, às vezes, de ressaca que meu pai e seu local de trabalho exalavam. Em
minha vida uma relação de ausências e presenças. Tantas vezes um suprindo a falta do outro.
Tantas vezes um compensando a omissão do outro. E, apesar dos pesares, tantas vezes um
apoiando o outro. Cada um a seu modo colocando educação, cuidado, comida e afeto na mesa.
Como herança carrego a minuciosidade de cada um. O perfeccionismo, o zelo, e as habilidades
manuais, tão detalhistas e pacientes, em gambiarras, consertos, remendos e criações afora.
Aprendi e levo comigo a habilidade de buscar, ser e fazer o melhor possível.

Figura 3 – ausências e presenças - processos, 2019, colagem digital

Fonte: Acervo pessoal.

É interessante como reproduzimos modos de vida, modelos de afeto e visões de mundo.


Às vezes só nos damos conta quando nos apontam. Se fosse um bicho, mordia. Mas às vezes,
conseguimos as lentes que nos permite enxergar. A miopia é um problema grave e
comodamente incômodo. O que é família? Por que existe casamento? É obrigatório? E filho?
Todo mundo tem que querer ter? Todo relacionamento é pra sempre? Todo relacionamento é
feliz e saudável? Por que eu tenho que obedecer? Por que não posso questionar? Por que a
mulher deixa de ser ela quando passa a ser mãe? Por que é aceitável homens serem omissos?
Por que pra educar precisar gritar ou bater? E ainda, será mesmo que tudo deve ser como é?
Crescemos com certezas pré-estabelecidas e corremos o risco de nos conformar com elas como
se elas existissem desde que o mundo é mundo e não que foram construídas pela humanidade
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ao longo do tempo. É quando as coisas começam a ruir e as relações a mostrarem suas


rachaduras que a realidade quebra e o chão que pisamos deixa de ser tão sólido quanto parecia.
Ficamos atordoados e só depois percebemos de que é feita a fundação que nos sustenta.

Coloquei Marcos Antônio para ouvir depois de quase duas décadas. Pai. Na hora a
sensação de infância me atingiu em cheio. Engraçado como os gatilhos afetivos funcionam, né?
Lá em casa tinha um CD dele e meu pai costumava pedir para tocar quando estava de rebordosa,
bêbado, no bequinho reservado à sua cachaça. “Bota Marcos Antônio aí!!”, ele gritava de lá.
Minha mãe escutava de cá e falava que colocaria se ele se aquietasse. Bêbados são muito
barulhentos e ela precisava trabalhar. Eu sabia, ou tinha a esperança, que quando ele pedia para
ouvir o cantor gospel aquele ciclo de cachaça estava perto do fim. Ou de uma pausa. Pai é uma
canção cheia de arrependimentos e pedidos de renovação do espírito. Parecia realmente acalmar
meu pai. Minha mãe e minha irmã costumam encher a boca para afirmar que peguei a melhor
fase dele. Em relação a elas, de fato. Minha mãe aguentou os vícios e as omissões de meu pai
a vida toda praticamente; e minha irmã só pôde desfrutar de sua sobriedade já no final da
adolescência. Não posso imaginar o que elas sentiram sob essas condições. Mas a experiência
subjetiva não deve ser simplificada e reduzida à relativização. Tive um pai fragmentado.
Bêbado, sóbrio, medicado, drogado. Quando era pequena não pedia a bença a ele. Achava que
ele não merecia por causa dos “vacilos” dele. Uma juíza moral mirim. Era minha forma de puni-
lo secretamente.
Apesar de ele ser a faceta melosa dos meus pais - minha mãe dizia para ele que no final
das contas quem ficaria de bom e amoroso era ele enquanto que ela seria a carrasca –, só me
permiti baixar a guarda a partir da adolescência. Nessa época ele estava bem. Quer dizer,
estável. Sem beber, trabalhando direito, pagando luz e água, levando comida para casa e
fazendo tratamento pelo CAPS. Ele até me dava dinheiro para o lanche da escola, coisa que
meus irmãos nunca tiveram. Apesar de suas omissões e disfuncionalidades, era ele quem dava
apoio para minha mãe trabalhar, ora cozinhando, ora ajudando com as encomendas de bordado,
ora cuidando e dando atenção a mim e à minha irmã. Quando eu queria alugar um ouvido para
devanear sobre vida e filosofias, era ele quem dava atenção e conversava comigo. Aí veio a
droga e foi só ladeira abaixo. Eu já estava na universidade quando começou. Numa novela de
usar e parar, arrependimentos e mentiras, ir e vir para centros de recuperação meu pai foi se
deteriorando. É difícil discernir o que de fato aconteceu. Quem é ele? Quem foi ele? Quando
foi ele? O que o fez chegar até onde ele está hoje? Desistiu? De quê? Queria ter conhecido mais
47

dele, das histórias de sua família, da mãe dele... Da boca dele, por ele, pelas palavras e afetos
dele. Meu pai tá vivo, mas acho que ele se foi já há algum tempo.

Quem bate nunca lembra. Quem apanha nunca esquece. Não me lembro de todas as
surras que levei com detalhes bem definidos. Tenho apenas lampejos de imagens e sensações.
A cara torcida da minha mãe, narinas dilatadas e respiração ofegante que prenunciavam a surra
que estava por vir. Causada por uma resposta, uma pergunta, um feito inadequado. Mas me
lembro de dois eventos específicos. Em um deles, não me lembro quantos anos tinha nem os
detalhes que antecederam a punição, apanhei sem motivo e por isso nunca esqueci. Num mal
entendido de ânimos, fui acuada. Levei umas boas chineladas por supostamente estar fazendo
birra. No outro caso, eu estava na 6ª serie na época e tinha 11 anos. Também não me recordo o
motivo, provavelmente algum tipo de “desrespeito” – afinal, eu era “respondona”, escandalosa,
exagerada, “ozada”. Ganhei marcas roxas, uma mão nas costas e uma lapada no quadril. Dessa
vez minha mãe percebeu que tinha passado do ponto até para o senso dela. Me pediu desculpas,
mas nunca esqueci. Felizmente, essa foi uma das últimas. O que desenvolvi ao longo da minha
infância e adolescência não foi respeito, foi temor. Foi um sentimento claro e distinto já na
infância. Cresci com medo de desagradar, de perguntar, de fazer errado mesmo parecendo que
tudo que eu fazia estava sempre errado, tinha medo de irritar e acabar ouvindo gritos de
repreensão, quando não apanhando. Na adolescência fui aprendendo a mentir para conseguir o
que queria, como ir em festas e sair para beber, sem ser repreendida ou negada. Na verdade, a
mentira também foi uma forma de não me expor aos meus pais, nem ninguém mais da minha
família. Com o tempo fui parando de mentir e hoje em dia me sinto péssima se o fizer. No lugar
da mentira aprendi a omitir, isolar, não dar satisfação do que acho não ser necessário ou do que
percebo que não haverá acolhimento. Defensiva, ainda sinto a necessidade de me preservar. Já
adulta, aprendi a respeitar minha mãe. Discernir o que é dela e o que é maior que ela. O que ela
aprendeu a ser e o que foi imposto a ela. Aprendi a conhecer seus motivos e necessidades.
Reconhecer as surras que ela levou da vida. As experiências dos últimos anos também foram
importantes para baixarmos um pouco a guarda uma com a outra. Ter de lidar com meu pai
afundando na droga nos aproximou, nos tornou cúmplices. Cada uma no seu espaço, detrás do
seu muro. Mas agora temos uma janela.

*
48

Cresci amparada por minha família nuclear. Minha mãe, cuidando para que não nos
faltasse nada. Tendo comida e estudo, tinha tudo. Minha irmã que, apesar da pouca idade na
época em que nasci, cuidou de mim quando minha mãe não podia e meu pai não estava presente,
trocou minhas fraldas e garantiu que eu não me acomodasse nos “privilégios” da caçulisse. Meu
pai que apesar dos pesares, tantas vezes segurou as pontas quando minha mãe precisou, nos
alimentou e cuidou de nós, fosse levando à escola, fosse quando estávamos doentes. Para além,
o amparo de uma família estendida, espalhada pelo Agreste, Litoral e Sertão baianos, também
foi fundamental. Em Alagoinhas, onde fui criada, contava com pessoas da igreja e a própria
igreja como pontos de apoio. Tinha também Bia, que trabalhou lá em casa por alguns anos e
ajudou a cuidar de mim quando eu era pequena. Vezes e vezes testemunhou o suplício de meu
pai e vezes e vezes levou leveza com suas matraquices, risadas fáceis e companheirismo.
Mesmo depois que parou de trabalhar lá em casa, manteve o vínculo e viu a mim e a minha
irmã crescer. Luciana, tiLu, também sempre foi uma pessoa parceira com quem contar. Me
recordo da vez que ela, que é de Feira de Santana, estava indo passar o natal com os filhos no
sítio da família do marido, que ficava na saída da cidade. Eles sempre foram uma família muito
bonita, sempre unida, conciliadora, compartilhadora e acolhedora. Meu pai estava em uma de
suas cachaças e eles apareceram lá em casa como “anjos” para irmos com eles – eu, minha irmã
e minha mãe. Eram todos a família mais próxima que eu tinha na cidade e, por isso, tantas vezes
compartilhamos abrigo, alimento, cuidado, afeto, tempo e acolhimento.
Em Salvador, onde nasci, tinha meus tios (de sangue). Me recordo que até o início da
adolescência todas, ou quase todas, as minhas férias eram passadas viajando. Em geral,
ficávamos pela casa da minha tia que era perto da praia e às vezes íamos para sua casa em
Itaparica. Em diversas ocasiões minha tia esteve presente, fosse abrindo suas portas, fosse
cuidando dos filhos de minha mãe, fosse com recurso financeiro. Tinha também meu irmão,
que depois que foi para a capital graduar e trabalhar não voltou mais. A ele visitávamos mais
de passagem, mas ele também sempre esteve presente. Desde cedo, assim que teve condição,
cuidou da minha formação educacional: a princípio ajudando nas mensalidades do colégio,
depois pagando integralmente e ajudando no que mais precisasse quando podia. Sempre
incentivou os estudos, coisa que pra ele sempre foi “sagrada”, e o buscar além, cultivar a
criticidade e investir no que se acredita. Em Jacobina, tinha em minha vó a imagem da minha
ancestralidade, um firmamento no mundo de onde tinha saído a maior parte da minha família e
no qual tínhamos amparo. Mulher-matriarca, cidade-útero. Apesar da longa distância, a cidade
em si representava origem e retorno, baú de memórias, berço familiar. Acho que é importante
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termos essa dimensão clara e distinta. Se não sabemos de onde viemos e como chegamos onde
estamos, como saberemos para aonde ir?

Figura 4 – Sem título, 1999

Figura 5 – Sem título, [2005?]


50

Figura 6 – Sem título, 2000

Fontes: Acervo familiar.

Com 13 anos tive minha primeira ideação suicida. Uma angústia, até então
desconhecida, tomou conta do meu peito naquele verão. Estava só de passagem. Três anos mais
tarde, após um rompimento, ela achou que seria um bom momento de retorno. Eu precisava
estudar para fazer vestibular e ENEM, mas só conseguia afundar mais e mais em mim, no vazio,
na angústia, na dor e na apatia. O buraco ia crescendo tanto que em algum momento as funções
vitais se desordenaram. A vida tinha desbotado. Nada tinha graça. Congelei num limbo. E na
maior parte do tempo ficava pensando em formas de sair daquele estado, pesquisava na internet
e cobiçava as tarjas preta que meu pai tinha aos montes em cima do armário, mas nunca tive
coragem. Me limitava à tortura dos meus sentimentos e às oportunidades de fuga quando saía.
Ao meu redor parecia não haver ninguém, e ninguém parecia me perceber. Lembrar daquele
período me paralisa. É como se meu corpo, em um instinto de defesa, desse um tranco para me
impedir de acessar aquela experiência. Fora minha maior crise. Na época eu não sabia pedir
ajuda, mas vi um vídeo de Jout Jout no qual ela falava sobre saúde mental, buscar ajuda e
atendimentos em faculdades de psicologia. Foi quando tive meu primeiro contato com a
psicoterapia. Era algo novo, não sabia bem como funcionava e por serem encontros semanais
foi desgastante. Me abrir era uma coisa nova. Apesar de breve – questão de meses – a
experiência me deu acesso à uma nova perspectiva, me permitindo deslocar daquela areia
movediça. Aprendi que se eu não fizer por mim, ninguém fará. Comecei a buscar formas de
51

cuidar de mim. Manter um diário de monitoramento de hábitos me ajudou e me ajuda até hoje.
O misticismo também foi uma rota de auto-observação e autocuidado. Coincidindo com minha
chegada a Cachoeira, conheci novas pessoas, novos mundos, novas formas de se relacionar e
meios de cultivar minha espiritualidade. Não posso dizer que foi da noite pro dia que melhorei.
A sensação que eu tinha, e talvez ainda tenha, é que preciso sempre me manter vigilante. A
angústia é oportunista. Contudo, pra mim, assim como a psicoterapia, uma rede de apoio, de
cuidado, de afeição, de carinho, de compaixão, de incentivo, entre tantos outros aspectos que
elevam o espírito, foi e ainda é fundamental para me manter firme, continuar acreditando na
vida, nas suas possibilidades, nos caminhos que se estendem, na minha potência e na possível
transformação da realidade.

Minha raiva não é de agora. Desde criança tive impulsos e reações exacerbadas,
escandalosas e até violentas. Como me dizer ao outro? Eu não sabia. A forma que eu
encontrava de ser escutada ou de conseguir o que queria parecia ser explodindo – gritando ou
batendo. Pirralha, brigava bastante com minha irmã mais velha, Ba. Era quem passava mais
tempo comigo e parecia ser quem mais me tirava do sério e quem mais era permitido despejar
minhas incivilidades. Parecia, segundo a ótica alheia, que eu era uma desvairada e que “se ela
é assim agora, imagina o que ela não vai fazer quando crescer?”. Tantas reprimendas pareceram
não resolver. Quando você barra um rio, não quer dizer que ele fora domado. Sua vazão, sua
força continuam a fazer pressão nas muralhas erigidas. Quanto elas aguentam? Por quanto
tempo? Uma hora racha. Desmorona. Inunda. Mais velha, meu peito voltou a aguar, aos poucos,
e quando vi já não secava mais. Pelo contrário. Transbordava. Era como andar com uma nuvem
sobre minha cabeça e ter um nó permanente na garganta. Angústia descabida. Incompreendida.
Reprimida. Bomba atômica. No turbilhão, parece ser difícil ser racional. Tudo que você
consegue é sentir. Implodir. Em tentativas falhas de atingir o menos possível o que está ao meu
redor, me faço alvo da minha própria raiva. Sentimento estranho, repudiado, violento e que
deve ser escondido a qualquer custo, sem nem ao menos o olhar na cara. Para onde vai tanta
energia? Não se extingue. Ou somatiza, ou canaliza. Ela vai encontrar alguma forma de ser
externalizada.
Fiz 1 ano e 3 meses de terapia. Durante o processo terapêutico trabalhei questões de
interação social, ansiedade, autossabotagem e, principalmente, comunicação. Esse último ponto
para mim foi chave. Descobri a comunicação assertiva em minha vida como uma lacuna. Uma
cratera preenchida por engasgos, nós, dores e afetos entalados. Para se comunicar bem, é preciso
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saber ler. Ler ao outro. Ler o ambiente. Ler a si. Colocar em perspectiva. Conhecer limites. Vou
percebendo o quanto da comunicação recebida e aprendida na infância ainda reverbera na forma
como me relaciono hoje e na forma como me enxergo. Compreender: o que é do outro? O que
é seu? Precisei aprender a dar passos para frente, mas também passos para trás. Me despi dos
modos alheios. Da repetição. Do eco. Foi fora da rota que me encontrei. Reclusão. Dores em
ilha. Encarar os próprios demônios. Baixar as muralhas. Se reconhecer frágil, falha, orgulhosa,
egoísta, humana e mutável. A distância eventualmente nos faz bem. O mergulho também.
Distância e mergulho, movimentos opostos complementares. Se distanciar da gritaria, do
barulho, do imediatismo, das exigências, do tempo alheio, do caos, do furdunço de fora.
Mergulhar dentro de si. Compaixão. Para acolher. Aqui e o outro. O outro que está aqui. O
movimento de ir e vir da vida, das certezas e incertezas. Olhar para trás. Outros mundos, outras
vidas. Obsolescência e deslocamento. Olhar para o lado. Abraçar. E agora? Escutar.

Revisitar certos momentos da nossa vida não é um movimento fácil. As experiências


entalam no peito e o cérebro se apaga. As palavras resistem a se oferecer ao recordar. Revisitar
o passado há muito esquecido e empoeirado é acessar sentimentos adormecidos. É fazer um
balanço do que foi, do que permanece, do que precisa ir, do que poderia permanecer ou ter
permanecido. Nosso passado não nos determina, tampouco nos deixa incólume. Está sempre
ali – não importa onde formos, o que façamos ou o que nos tornemos – como uma sombra.
Revisando, parece que o peso das experiências toma o protagonismo de grande parte das minhas
memórias, mas como me disse certa vez uma amiga: “é por que a parte ruim é a que a gente
tem que trabalhar. a parte boa já tá boa”.
Não é possível contemplar toda uma vida em apenas alguns poucos fragmentos da
memória. Tampouco é essa a intenção desse trabalho: não caberia em extensão desatar todos os
nós de uma existência em alguns meses de escrutínio. Na verdade, isso é demanda cotidiana.
Todavia, acesso essas memórias, vestígios e afetos, não com ódio, rancor ou mágoa, mas como
uma forma de fazer escutar os ecos da existência. De dar passagem ao que foi retido. De
dissolver o medo em voz, escuta, acolhimento, compreensão e compaixão. De se reapropriar
dos próprios caminhos. De validar a experiência e pontuá-la não como frescura ou casos a parte,
mas, também, como ressonâncias de atravessamentos que se interseccionam e que estão além
do nosso alcance singular, individual e privado. Reafirmar a máxima de que tudo é político.
Compreender os afetos, também, como frutos de uma estrutura de opressão e violência, de uma
lógica de hierarquias e autoritarismos próprios de um sistema patriarcal, colonial, capitalista e,
53

portanto, adoecido. São atravessamentos que impactam nossa construção de ser, de


compreender, de se posicionar e de mobilizar. Nossas crenças, nossas lentes com as quais
focalizamos o mundo ao nosso redor e a nós mesmos são construídas e manutenidas pela
perpetuação ou não desses modos de relação e de existência. A falência do que se tem
atualmente como instituição tradicional/oficial é intrínseca nela mesma. A crença inabalável
em sua estrutura supostamente fixa e perfeita.
Quais os mitos que te contaram você ainda acredita e defende com unhas e dentes? A
lógica de imobilidade das convenções conservadoras é cheia deles, com seu pânico moral,
contos de fadas e terrorismos psicológicos. Até que ponto da sua subjetividade você os carrega
como combustão de vida? Qual o rastro deixado pela falência desses mitos? Onde está
anestesiado o seu desejo? Por onde ele passa? De quais mundos estamos partindo para projetar
caminhos? Como podemos minar um projeto de mortificação? Quais são as vias de acesso a
um viver saudável e fecundo? São inquietações que me rondam e me inquietam. Interrogações
que me mobilizam bem mais que as certezas. Estas, por sua vez, me angustiam pelo marketing
– ilusório, ainda que nos convençamos do contrário – de durabilidade, segurança e estabilidade.
Sem as dúvidas não há desconforto, sem desconforto não há movimento. Sem movimento a
vida estagna, definha, desbota.
Não é fácil encaixar os afetos de uma vida em limites bem delineados. Mas talvez seja
sobre isso. É como o encontro entre um rio e o mar. São águas distintas, com forças distintas e
efeitos diversos, mas que se misturam uma à outra e tudo que podemos ter como prova é o sabor
salobro. Dou passagem a essa vazão. Aqui, acolá. Em corpo e espírito. Em processos e criações.
Palavra e imagem. Imagem-palavra.
54

3. ACOMODANDO OS OSSOS: experiências e processos

Cheguei na universidade sem muitos parâmetros do que seria o mundo da arte. As


referências mais familiares que eu tinha de artista eram minha mãe e artistas que acompanhava
no Instagram, quando a plataforma ainda era mato e eu ainda utilizava a rede, como Aureliano
Medeiros (@oiaure), lovelove6 (@6lovelove6), Éff (@eff.eff.eff), Eve Queiróz
(@evequeirozartist), Lucas Borges (@lucverse), Eloi (@viteloi), Pongo (@pongocomics),
Nath Araújo (@nanaths) e Susano Correia (@susanocorreia) para citar alguns. Contudo, minha
noção do que era ser artista e do que era fazer arte era rudimentar ao ponto de compreender
como verdadeiros e válidos artistas apenas os poucos “gênios” da história da arte do meu
remanescente repertório adquirido na escola, tais como Van Gogh, Salvador Dalí e Gustav
Klimt. Talvez não fosse um caso de completa ignorância, mas de estranhamento e,
consequentemente, de distanciamento.
Essa concepção em torno do entendimento sobre a atividade artística e sobre quem se
ocupa dela pode ser melhor compreendida pela abordagem crítica da historiadora de arte Linda
Nochlin ao cutucar em 1970 com a questão Porque não houve grandes mulheres artistas?
(texto que li nos primórdios do, até então, grupo de estudos História da Arte e Gênero) ao que
ela ressalta um perpetuado vazio – certamente não imparcial – no olhar historiográfico da arte
por meio do mito do Gênio:

De toda forma, esse tipo de mitologia acerca do sucesso artístico e seus concomitantes,
ainda forma o inconsciente e as inquestionáveis suposições dos eruditos, não
importando o quanto se fale de influências sociais, contexto histórico, crises
econômicas, etc. Por trás da maioria das mais sofisticadas pesquisas sobre grandes
artistas, mais especificamente a monografia de história da arte que aceita a ideia do
grande artista em primeiro plano e as estruturas sociais e institucionais nas quais ele
tenha vivido e trabalhado como meras influências secundárias ou apenas pano de
fundo, se esconde a ideia do gênio que possui, em si, todas as condições para o êxito
próprio. Partindo desse princípio, a falta de êxito das mulheres pode ser formulada
como silogismo: se as mulheres possuíssem talento para arte este se revelaria
espontaneamente. Mas este talento nunca se revelou. Portanto, chegamos à conclusão
de que as mulheres não possuem talento para a arte (NOCHLIN, 2016, p. 19).

Assim, conforme fui tendo contato com a amplitude da área, a sensação era de que eu
havia caído de paraquedas no curso. Quer dizer, a princípio não pensava nas artes como uma
possibilidade profissional. Entre os cursos que eu conhecia enquanto profissão válida – vide
aqui as expectativas impostas pela sociedade em relação à medicina, ao direito, à odontologia,
à engenharia e tantos outros mais – a psicologia era a que mais me atraía. Também era um
campo que me despertava interesse e curiosidade. Infelizmente, ou felizmente, minha nota não
fora suficiente para passar. Foi quando meu irmão me perguntou por que eu não tentava o curso
55

de artes. E, na verdade, fazia sentido. Cresci acompanhada das pinturas e dos artesanatos de
minha mãe e eu gostava de desenhar e pintar, então, porque não? Ainda assim, mergulhei nesse
mundo com um certo distanciamento. Com o sentimento de que “esse lugar não é para mim”
em relação ao lugar da artista26. Artista como produtora. Artista como pesquisadora. Artista
como profissão. Esse lugar, esse mundo parece um pouco inalcançável à primeira vista de olhos
leigos.
Me recordo de uma viagem promovida pelo curso no início de 2019. Fomos à São Paulo
visitar museus e como tínhamos um itinerário cheio, a viagem foi bem corrida. Passamos por
instituições como o Museu Afro Brasil – MAB, o Museu de Arte Contemporânea – MAC, o
Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand – MASP, o Instituto Moreira Salles – IMS,
a Pinacoteca e a Pina_Estação. Além das visitas a diversos acervos fixos, pudemos comparecer
a exposições temporárias como A costura da memória de Rosana Paulino, A luta Yanomami
de Claudia Andújar e Ainda assim me levanto de Sônia Gomes, para mencionar algumas.
Atualmente, sinto que poderia ter aproveitado muito mais dessa experiência. Na época ainda
estava me situando tanto na graduação, quanto nesse universo artístico. No entanto, foi uma
oportunidade ímpar. Ali, tentei buscar na memória se já havia entrado em um museu daquelas
proporções antes. Nessa viagem, aquele mundo se tornava um pouco mais palpável. Como se
as imagens dos livros tivessem ganhado vida e tridimensionalidade e estivéssemos recebendo
a narrativa dos artistas em primeira mão.
Ao longo da graduação criei afinidade com o trabalho de alguns professores como
Tonico Portela e Priscila Miraz. Ao meu ver, profissionais exemplares em termos de
responsabilidade e respeito para com a posição que ocupam enquanto educadores e aos
discentes que passam sob suas orientações pedagógicas. Profissionais também inspiradores
tanto pelo compromisso com o desenvolvimento de suas respectivas áreas, quanto pelo estímulo
que dão ao processo de cada estudante, valorizando as potencialidades que se mostram em cada
um. Assim também posso afirmar que foram (e são) dois profissionais que impactaram
significativamente em minha trajetória dentro da Universidade.
Foi em componentes referentes às técnicas e processos artísticos, em sua maioria
ministrados pelo professor Tonico, que amadureci minha compreensão do que é o fazer artístico
e de como eu também posso me colocar nesse lugar de produção. A ideia de um gênio criador

26
Trago aqui uma flexão de gênero para a linguagem e, portanto, para a categoria artista com a intenção de
desapropriá-las desse caráter de universalidade do gênero masculino. Esse posicionamento pode ser reiterado pela
historiadora da arte e educadora Whitney Chadwick (2019, p. 159) quando aponta que “A palavra ‘artista’ se refere
a ‘homem’ a menos que caracterizada pela categoria ‘mulher’. Feminizar o termo ‘antigos mestres’ [...] transforma
um lugar de fala de autoridade em um jogo de palavras envolvendo gênero”.
56

que cria obras excepcionais do nada foi se desmistificando. Aos poucos, ao longo de leituras,
discussões e práticas de ateliê, fui compreendendo que criação artística é tão “difícil” quanto
escrita. Demanda comprometimento e debruçamento. Tentativas e erros. Paciência e
acolhimento. Solidão, mas também coletividade, compartilhamento. É trabalho duro, mas
recompensador se aprendemos a degustar e a valorizar o processo. Foi também nesses
componentes que aprendi que tudo pode ser matéria-prima. Só depende do olhar com que
encaramos a realidade ao nosso redor e em nós mesmos. Olhar esse que pode ser aguçado e
ampliado. Sensibilizado. Assim como ouvir não é escutar, olhar não é ver. Essa compreensão
me instiga ao mesmo tempo em que me deixa aflita.
Sempre, desde que me entendo por gente, desenhei e gostei de pintar, mas ao longo da
minha adolescência conforme fui mergulhando na melancolia, utilizei a arte – a que me era
acessível – como uma válvula de escape. Um meio pelo qual conseguia externalizar meus
anseios, minhas crises e angústias, minha revolta e minha afeição. Bem mais que as palavras –
estas que tanto podemos manipular, calcular e refazer –, no desenho vomitava os afetos em
digestão, assim como as azias e os refluxos. Para mim, era como despejar as minhas vísceras
no papel. Como fazer um registro do meu espírito.
Me recordo de tantas ilustrações de risco rápido e forte, algumas sombrias e remetentes
de um desespero insolúvel. Uma delas, a qual tive um cuidado maior em sua finalização e em
sua preservação, traz um pouco dessa forma. É um autorretrato onde ilustro o estado de
imobilidade e resguardo, quase beirando a impotência, que se apossava de mim ao ser
atravessada por afetos tristes.
57

Figura 7 – sem título, 2018, ilustração em nanquim, grafite e marcador s/ papel, 14,8 cm x 21 cm

Fonte: Acervo pessoal.

É um trabalho de 2018, mas poderia ter sido feito em qualquer ano da minha
adolescência. Essa ilustração, assim como muitas outras, foi uma tentativa de aliviar o peso do
qual havia me encarregado e que parecia não ter previsão de partida. Seu cerne reside na
paisagem melancólica, em torno e dentro da própria figura humana. O azul – cor recorrente em
minhas produções desse tipo – no redemoinho remete a um estado de blues. E ainda que haja
uma profusão de informações em sua composição, como cogumelos, flores e trocadilhos
psicodélicos que marcaram períodos desse meu eu-adolescente, a imagem busca trazer uma
sensação de isolamento, desolamento e austeridade. Ao mesmo tempo ornam esse coração-
útero, que serve de abrigo à um peito aguado, apertado e pesado. Busco conforto e acolhimento.
Nele me refugio e me encolho.
Alguns dos artistas, a maioria na verdade, que eu acompanhava na época eram
ilustradores e quadrinistas que se voltavam para o cotidiano, assim como para questões
existenciais em seus trabalhos como saúde mental, crises e relacionamentos. Neles eu
encontrava ressonância do caos sentimental e psicológico que se abrigava em mim. Tantos
trabalhos pareciam traduzir muito bem o que acontecia em mim, ao passo em que tantas vezes
eu mesma não sabia definir com precisão. Neles, também encontrava inspiração para me
expressar e estímulo para cultivar uma noção de autocuidado e autocompaixão, apesar de o meu
corpo buscar o contrário.
58

O jornalista, ilustrador, cartunista e escritor potiguar Aureliano Medeiros, em seus


cartuns – mais especificamente os da série Oi, Aure a qual durou alguns anos – equilibrados
entre o humor e a melancolia e marcados pelo uso do vermelho, ilustra a si mesmo, seu corpo
desnudo, em relação às expectativas alheias, às expectativas de si para si, assim como batalhas
diárias para lidar com questões de saúde mental, numa corda bamba entre se manter bem e
mergulhar no próprio caos.

Figura 8 – sem título (hoje eu não vou deixar o Figura 9 – sem título (precisei me fazer em pedaços
ódio entrar), Aureliano Medeiros, 2017, cartum para construir o melhor de mim), Aureliano Medeiros,
2018, cartum

Fonte: Instagram do artista @oiaure


Fonte: Instagram do artista @oiaure

Outro artista que trazia a abordagem do cotidiano e conflitos internos – ansiedade,


procrastinação e expectativas futuras – é o designer e ilustrador sergipano Éff. Ele conta que a
arte que ele faz funciona como uma espécie de registro sobre si mesmo de modo que seus
quadrinhos, assim como nos cartuns do artista potiguar acima, são permeados de intimidade e
honestidade (IBAHIA, 2022).
59

Figura 10 – sem título, Éff, 2016, HQ


Figura 11 – sem título, Éff, 2016, HQ

Fonte: Instagram do artista @eff.eff.eff Fonte: Instagram do artista @eff.eff.eff

É interessante notar que eles não são artistas de formação: Aureliano é graduado em
Comunicação e Jornalismo; Éff é graduado em Design Gráfico. Ou seja, não necessariamente
é preciso, atualmente, uma graduação em Artes para aprender a se expressar e ser artista,
colocando em xeque o que é ser artista e quem pode ser artista. Como a artista e pesquisadora
Sandra Rey afirma:

Não que o conhecimento específico da área tenha se tornado inútil, ou que as


especificidades técnicas das categorias tradicionais da arte tenham deixado de ser
relevantes para se fazer arte. Porém, deixaram de ser imprescindíveis.
Paradoxalmente, isso ocorre devido à natureza da própria arte, que é de estar em
consonância com aspectos da cultura e do desenvolvimento científico da sociedade
(REY, 2011, p. 10).

Afinal, são dois artistas nordestinos e LGBT’s que traduzem – transduzem para usar os
termos de Suely Rolnik (2021) – e sintetizam a realidade de suas angústias e anseios através da
ilustração e da escrita, reformulando e recriando suas existências ao abordar de uma forma leve
algo que pesa. São referências que me marcaram por uma identificação e as quais até há pouco
tempo atrás poderia identificar sua influência em meus processos (Figuras 12 e 13).
60

Figura 12 – eterno retorno vazio, 2018, HQ

Fonte: Acervo pessoal.

Figura 13 – estar tão acostumada a sentir peso que não sabe lidar quando a leveza vem, 2020, cartum

Fonte: Acervo pessoal.

Ao longo da graduação fui trabalhando em certos “eixos temáticos” conforme me sentia


atraída e afetada por eles. Ao chegar na Universidade, algumas das minhas composições mais
significativas giravam em torno de sentimentos e sensações que pareciam reger os meus
61

movimentos, quase sempre voltados à um ar melancólico ou mesmo de uma busca por um


distanciamento da realidade. Em 2018 tivemos a mostra de arte Obitus – onde apresentaríamos
nossos trabalhos finais do componente de Sociologia da Arte, conduzido pelo professor Silvio
Benevides – que teve como tema a morte.
Meu trabalho final, uma animação intitulada Morte em Vida (Figura 14), partiu de uma
ilustração realizada com canetinhas hidrográficas e guache sobre tela no encerramento da minha
primeira experiência com a psicoterapia, em 2016. Ela se propunha a transmitir o estado afetivo
no qual me encontrava naquele ano. Atada a pesos, num redemoinho de vazio, apatia, dor e
angústia. Aparentemente normal aos olhos alheios, desesperadamente soterrada por dentro.
Uma sensação de estar morta mesmo estando viva.

Figura 14 – Morte em Vida (frames), 2018, animação digital feita a partir de folioscopia
62

Fonte: Acervo pessoal.

Quando esse trabalho foi feito, esse estado de morbidez havia atenuado, mas realizá-lo
foi importante para externalizar e processar aquele período de crise que, infelizmente, passou
(ou pareceu passar) batido para pessoas ao meu redor que me são importantes. Foi uma forma
de não reduzir essa experiência a um nada, ou tampouco permiti-la se tornar uma sombra maior
que o todo que me compõe. A animação foi produzida inicialmente a mão em folioscópio e, em
seguida, vetorizada e montada digitalmente no Adobe Illustrator.
Em 2019, a mesma tela da qual parti para criar a animação anterior foi base –
literalmente – para uma outra releitura. Sobrepondo-a em ato simbólico no próprio suporte com
tinta de tecido e acrílica, tinha como intenção evocar e registrar um movimento de
transformação e “ressurreição”, de dentro pra fora, do definhar ao expandir. As cores vibrantes,
antes aprisionadas nesse corpo angustiado cheio de pesos, transbordam numa explosão, como
uma explosão de vida, de potência. Nesse caso, apesar de ter tido um desenvolvimento intuitivo,
a obra é resultado de um processo de (re)conhecimento do mundo, de ampliação dos horizontes,
de contato com meios de desenvolvimento espiritual e de autocuidado.
63

Figura 15 – sem título, 2019, tinta de tecido e acrílica s/ tela

Fonte: Acervo pessoal.

Figura 16 – Registros do processo do ato de sobreposição

Fonte: Acervo pessoal.

Outro eixo que começou a aflorar em minha produção foi o corpo, e com o tempo passei
a focar mais especificamente na sexualidade, tanto em seu aspecto de erotismo quanto de
identidade. Durante o primeiro semestre participei de um trabalho para uma mostra na qual o
tema era revolução. Em conjunto com minha amiga e artista Carmen Roberta, trabalhamos
64

fotografias em torno do mote revolução sexual da mulher: O corpo que é meu quer... Uma série
de fotografias que buscava retratar mulheres se apropriando, apreciando e acolhendo o próprio
corpo e seus desejos.

Figura 17 – O corpo que é meu quer... (recorte), 2018, fotografia

Fonte: Acervo pessoal.

Em consonância, vulvas, orgasmos, pêlos e siriricas passaram a fazer parte do


imaginário das minhas produções criativas. Trazia as vulvas por toda a parte: em cadernos, em
softwares, em paredes, em adesivos e até mesmo objeto instalativo (Figura 18).
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Figura 18 – Vulva (registros da mostra de Estudos em Artes Visuais), 2019, objeto instalativo (obra conjunta
com Bianca Brito)

Fonte: Acervo pessoal.

Na época para mim era um tópico intuitivo, curioso e diverso. Mas em retrospectiva
compreendo aquele período de representação obsessiva das vulvas (Figura 19) e do corpo
erótico como um processo de normalização desse toque que nos é tão proibido e repulsado, do
prazer que nos é negado em nome da salvação do pecado, da apropriação consciente do próprio
corpo e, de certa forma, de afirmação da minha orientação sexual.
66

Figura 19

Fonte: Acervo pessoal.

Figura 20 – siririca, 2019, linoleogravura

Fonte: Acervo pessoal.


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Ainda hoje é um tema que me desperta interesse e curiosidade em explorar – apesar de


já não pulsar em mim do mesmo modo – já que ainda hoje a sexualidade de corpos que divergem
de uma maquiagem social conservadora é tratada como um tabu. Se você jogar siririca no
Google as primeiras centenas de resultados serão conteúdos da indústria pornográfica. A
própria palavra masturbação ainda pesa na boca ao ser dita. A HQ Garota Siririca da artista
plástica, ilustradora e quadrinista Gabriela Masson – pseudônimo lovelove6 –, publicada entre
2013 e 2015, foi um grande achado em minha adolescência. Abordando a masturbação feminina
de forma engraçada, saudável, educativa e crítica, os quadrinhos supercoloridos foram como
uma janela iluminada em minha jornada de autodescoberta com dúvidas, medos e prazeres.

Figura 21 – Garota Siririca (p. 6 e 7), 2013, HQ


68

Figura 22 – Especial Ask Garota Siririca, [s.d.], HQ

Fonte: https://cargocollective.com/lovelove6/Garota-Siririca

Sinto que ainda é necessário abordar o tema pois, frente a milênios de desinformação a
respeito, as dúvidas e descobertas do corpo e da sexualidade não findam tão facilmente. A
ordem da casa ainda gira em torno da normatização dos corpos e dos seus desejos. Abordar essa
temática é acessar o próprio corpo e suas possibilidades, é se conhecer, se cuidar e se curar, é
se permitir e descobrir quais os caminhos e escolhas que se apresentam. A escritora, poeta e
ativista Audre Lorde (s.d.) afirma o erótico como poder, uma força inerente em nós que nos
possibilita entrar em contato com o melhor que podemos ser, o melhor que podemos nos dar e
dar ao mundo, assim como “filtrar” o que recebemos e desejamos receber do mundo externo.
Ela coloca o erótico como uma energia vital que anima a vida em direções éticas e potentes:

Essa é uma razão pela qual o erótico é tão temido, e tantas vezes relegado unicamente
ao quarto, isso quando chega a ser reconhecido. Pois logo que começamos a sentir
intensamente todos os aspectos de nossas vidas, começamos a esperar de nós mesmas
e do que desejamos da vida que isso esteja de acordo com aquele prazer de que nos
sabemos capazes. Nossa sabedoria erótica nos empodera, se torna uma lente pela qual
escrutinamos todos os aspectos de nossa existência, nos forçando a examiná-los
honestamente em termos de seus significados relativos em nossas vidas. E essa é uma
grave responsabilidade, projetada desde dentro de cada uma de nós, de não se
conformar com o conveniente, o falseado, o convencionalmente esperado, nem o
meramente seguro (LORDE, s.d., p. 3).

Essa investigação do corpo e da sexualidade foi acompanhada também pela busca de


um autocuidado, autoconhecimento e de cultivo de espaços de saúde que me mantivessem bem,
consciente, viva e conectada aos fluxos da vida. Nessa direção, a espiritualidade foi e ainda é
para mim um forte ponto de apoio. Acredito que crescer em um lar onde a fé –
independentemente da religião – era um forte pilar de sustentação, especialmente para minha
mãe que era quem quase sempre segurava as pontas, tenha me influenciado nessa necessidade
69

de contato com algo maior e mais além que o óbvio da realidade material. O contato com o
misticismo e práticas não-ocidentais como o yoga, a meditação, certos tipos de ritualização e o
compartilhamento de energia e vivências me possibilitou ter outras perspectivas do sagrado e
do Divino, que por sua vez já vinham germinando em minha dissidência à cultura cristã na qual
eu cresci.

Figura 23 – sem título, 2019, nanquim e lápis de cor s/ papel, 10,5 cm x 14,8 cm

Fonte: Acervo pessoal.


70

Figura 24 – dentro aqui todas que me trouxeram, 2021, pintura digital

Fonte: Acervo pessoal.

Durante um certo período na graduação, pelos atravessamentos e redes de contato que


foram se formando e chegando até mim, participei de uma roda de Sagrado Feminino. Era um
espaço intuitivo, acolhedor e fortalecedor onde podíamos ser vulneráveis, à medida em que nos
sentíamos confortáveis a tal, onde compartilhávamos experiências, afetos e feridas. Era um
lugar de troca, escuta e suporte.
Também compunha a egrégora dos encontros a ritualização. Momento de limpeza e
acolhimento; momento de outro tempo, outro ritmo e outros sentidos para comportar e
transbordar o que é embotado pelo caos cotidiano. A obra dentro aqui todas que me
trouxeram (Figura 24) partiu de um insight fruto de uma dessas ocasiões. Ao dançar e permitir
que meu corpo fluísse, vislumbrei um vasto universo, profundamente escuro e infinito, e uma
forte sensação de conexão. dentro aqui todas que me trouxeram traz o reconhecimento de
uma herança ancestral, de uma rede de apoio e de todas (as pessoas) que vieram antes de mim
e cultivaram o mundo do qual também sou cuidadora. É uma obra não só de reconhecimento,
mas também de agradecimento.
Também abordo a espiritualidade em sangue, terra, cura (Figura 25). Na época em que
produzi essa pintura – por pura necessidade e angústia – estava passando por um momento de
incertezas e de medo em relação ao futuro, ao meu corpo e aos meus relacionamentos. Nesse
71

ponto, ritualizar com a terra foi importante para tirar das costas o peso da espera de algo. Um
meio de ancorar e ao mesmo tempo soltar. Encontrei nela um porto seguro, um lugar de abraço
e de cura.

Figura 25 – sangue, terra, cura, 2020, aquarela e nanquim s/ papel, 14,8 cm x 21 cm

Fonte: Acervo pessoal.

Outra pintura que, apesar de separadas por uma certa distância temporal, dialoga
diretamente com esta última é fé cega, faca amolada (Figura 26). Estávamos em pleno início
da pandemia de Covid-19, sem saber direito o que era uma pandemia e sem nem ao menos
termos uma perspectiva real do seu fim. Assim como muitos estudantes fizeram logo que foram
decretadas medidas emergenciais como a quarentena, retornei para a casa que na época ainda
podia chamar de “dos meus pais”.
72

Figura 26 – fé cega, faca amolada, 2020, aquarela, nanquim e lápis de cor s/ papel, 14,8 cm x 21 cm

Fonte: Acervo pessoal.

Quando soube que teria de voltar, chorei. Por que tinha medo de adoecer, tinha medo
de sucumbir e tinha medo de que todos os conflitos em relação à minha família, em especial à
minha mãe, me engolissem e me enterrassem em mim mesma de novo. De fato, não de forma
tão aterrorizante quanto eu imaginei a princípio, meus medos se concretizaram. Foi um retorno
conflituoso, cismado, complexo. E no início, dos dois anos de pandemia que se seguiriam em
quarentena, tive alguns conflitos internos que evocaram a familiar angústia e melancolia que
me acometiam vez em quando.
fé cega, faca amolada é uma obra que aborda as incertezas ansiosas diante das
exigências e expectativas em firmar certezas. Numa espécie de alegoria de crises existenciais
trago símbolos como a roda da vida ou, mais precisamente, roda da Fortuna – a qual faz parte
do Tarot e remete à ideia de destino –, uma roleta sem fim e uma venda aos olhos. Essa pintura
foi feita na tentativa de escoar esse estado de torvelinho que puxa para baixo e ressignificar em
um estado de entrega aos mistérios dos caminhos que se abrem a cada passo dado: “Agora não
pergunto mais pra onde vai a estrada [...] O brilho cego de paixão e fé, faca amolada”27.

27
Trecho da canção Fé Cega, Faca Amolada (1975), de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, a qual foi
inspiração ao título da obra.
73

O período da quarentena também foi um momento no qual, apesar dos (e talvez por isso
mesmo) conflitos familiares, tive a oportunidade de cultivar uma relação de aproximação
compassiva com a minha família – minha base – que vinha tentando já há alguns anos.

Figura 27 – memória familiar - ausências e presenças, 2019, colagem digital

Fonte: Acervo pessoal.

Quando vejo anotações em meus antigos diários de bordo a respeito dessa necessidade
latente e olho para memória familiar - ausências e presenças (Figura 27) e para (e sobre) o
amor (Figura 28) percebo nitidamente uma busca por uma conexão mais próxima e mais
acolhedora com as pessoas que me dão suporte – cada um à sua maneira – desde sempre. Na
primeira obra citada, uma colagem digital, busquei materializar a memória através da percepção
de ausências e presenças, delineadas pelos afetos e cuidados, ora na figura do meu pai, ora na
figura da minha mãe. Esse jogo de simbologias é construído pelo intercâmbio da figura deles
por seus objetos de trabalho e fonte de sustento financeiro – os relógios e as miçangas –, se
constituindo assim numa espécie de alegoria afetiva.
A memória familiar também atravessa o percurso de criação de para (e sobre) o amor,
a qual fez parte do produto final do já mencionado projeto de extensão Cartas para Transversar
Paredes. Nesse caso, a produção foi engatilhada pela carta escrita. Sobre essa parte do processo,
a proposta em si de escrever já era um grande desafio na época em que nos foi posta: “Faz total
74

sentido para mim minha resistência ao ato de escrever, ao compromisso da escrita. Escrever é
confrontar nossos próprios demônios, olhá-los de frente e viver para falar sobre eles”
(ANZALDÚA, 2000, p. 234). Foi um esforço a fim de desenferrujar nossa capacidade criativa
– que se não estava estagnada antes ficou durante o isolamento social sem as partilhas e
encontros do cotidiano – mas também pelo revolvimento emocional que o processo acabou
exigindo. Levei a maior parte do tempo para conseguir vencer o bloqueio, sendo a ideia inicial
escrever uma carta à minha mãe. Nesse processo a professora Priscila, também coordenadora
do HAG e do projeto de extensão, indicou leituras que tinham recortes próximos, como a obra
Cartas para a minha mãe (2006) da cubana Teresa Cárdenas, para tentar encontrar uma pista
de como abrir caminho às palavras.
A tentativa não vingou. Desisti e escolhi endereçar-lhe ao meu pai. Era um tema
delicado, penoso de se trabalhar e na época tinha a sensação de estar no olho de um furacão.
Recorri dessa vez, também, à indicação da leitura de Carta ao pai (1997) do tcheco Franz
Kafka. Cheguei a escrever algumas tantas linhas em alguns guardanapos, aproveitando os
lampejos que me surgiam na meditação das tarefas domésticas. “Esqueça o quarto só para si —
escreva na cozinha, tranque-se no banheiro. [...] Enquanto lava o chão, ou as roupas, escute as
palavras ecoando em seu corpo. Quando estiver deprimida, brava, machucada, quando for
possuída por compaixão e amor” (ANZALDÚA, 2000, p. 233). Contudo, depois de algum
esforço e algumas linhas para abrir a porta às memórias e afetos ligados à nossa relação, percebi
que ainda não era o momento, permiti encarregar ao tempo que me desse distância suficiente
para cicatrizar.
A partir daí, reiniciei minha busca por um destinatário e percebi que havia uma coisa
latente com a qual mantinha uma relação incógnita ao longo da vida. O amor. Como mencionei
anteriormente, escrevi buscando esclarecer seus contornos, sua presença e seus atravessamentos
em mim e nas relações tecidas até então. O processo foi de certa forma terapêutico se pensarmos
na lógica de verbalização dos fantasmas, própria das intervenções psicoterápicas. Escrevendo,
dei forma a esse afeto ao mesmo tempo em que ia lhe ressignificando. Acompanhando a escrita,
veio a carta em sua forma visual. Como numa espécie de remediação do amor e pelo amor, criei
uma fotocolagem de retalhos para lhe dar cores e formas a partir de fotografias analógicas dos
álbuns de família.
75

Figura 28 - para (e sobre) o amor, 2021, colagem digital

Fonte: Acervo pessoal.

Nela, o mosaico de uma rede de apoio, de afeto e cuidado, a qual possibilitou que o
amor não se esmaecesse pelas intempéries do caos cotidiano que pesava sobre a vida de uma
família. A figura central composta pelo céu do Agreste, o mar do Litoral e a seca do Sertão –
marcações geográficas dessa rede – traz a personificação do cuidado, do acolhimento e da
nutrição presentes ao longo da minha vida. Através da carta, escrita e visual, pude reconhecer
o amor em seus vários esconderijos. Reconhecer e fortalecer o sentimento de pertencimento e
comunidade, através dos quais a vida pôde se sustentar e se perpetuar.
76

Figura 29 – fantasmas não derrubam árvores, 2023, aquarela, nanquim e pastel s/ papel, 14,8 cm x 21 cm

Fonte: Acervo pessoal.

Seguindo a confluência de afetos – no sentido de forças, acontecimentos, encontros,


afecções – que me atravessaram ao longo desses últimos cinco, quase seis, anos e encontraram
em meus processos de criação meios concretos de emergirem e reverberarem ao/com o mundo,
não posso deixar de falar do afeto – como afeição, cuidado, carinho, acolhimento e nutrição –
também cultivado em minhas relações de e com o mundo fora do eixo da minha família nuclear.
Cachoeira é uma cidade instigante e, de certa forma, misteriosa. Suas ruas levam a
muitos lugares. Às vezes a um mesmo lugar. “Todos os caminhos levam a Roma”. Quando
cheguei não foi diferente. Ou melhor, foi assim quando cheguei. Quase parecia brincadeira de
criança. A cidade parecia um grande labirinto mágico no qual, uma vez colocados os pés para
fora de casa, não se sabia ao certo quando voltaria, onde passaria a noite ou quem e o que
encontraria no caminho. Foi assim que no início do curso perambulei por suas ruas, praças,
casas e casarões. Ri, chorei, entorpeci, clarifiquei, tropecei, equilibrei, odiei, amei e coletei
memórias que hoje pertencem à uma cidade invisível, com suas fronteiras demarcadas apenas
no espírito de quem viveu. Enfim, foi nessas idas e vindas que em alguns tantos lugares fui
iludida, desencantada, soterrada, reanimada e alimentada. Em Cachoeira, fui acolhida e
apresentada ao mundo. Aos mundos. A passagem por essa cidade representa pra mim um portal
por onde se abriram caminhos. Caminhos que me ensinaram coisas e caminhos que, aprendi, se
77

desejo ou não percorrer. Aqui, me transformei, troquei de pele, ressignifiquei a (minha)


existência várias vezes e fui abençoada.

Figura 30 – território-afeto (díptico), 2018, mobgrafia

Fonte: Acervo pessoal.


78

Semiótica do sensível. território-afeto (Figura 30) é um desses registros


despretensiosos do cotidiano que carrega em si a beleza e a grandeza dos detalhes do ordinário.
Estávamos retornando de uma das aulas no ateliê de São Félix numa dessas tardes quentes tão
próprias daqui. Terceira pessoa do plural por que nunca andávamos sós. Eu – minhas amigas,
os caminhos, a paisagem – e Deus. Nas fotografias contemplação, leveza, riso e captura.
Cachoeira nos esperando com seu abraço enigmático do outro lado do rio Paraguaçu. Do lado
de cá, a surpresa alegre do flagra estampada no rosto maroto de Drica, uma amiga querida que
tantas vezes me acolheu em sua casa, em sua mesa e em seu abraço, tal qual a cidade heroica.
Relação de suporte que se estabeleceu não só para com ela, como também com meus outros
amigos que me acompanham desde o início do curso como Joadson, Carmen, Bianca, Sarah e
Maria, para mencionar alguns.
Assim ocorre também em ser e estar, aqui e agora (Figura 31) onde imprimo no papel
um plantio. O cultivo de um jardim de afeto, adubado com o entrelaçamento da vida em toda
sua complexidade, aspereza e falhas. Sol que nutre semente. Semente plantada em terra de
amor. Abraço que acolhe como estufa. Ser e estar, aqui e agora. Sem disfarces, sem carapaças,
sem barragens ou muralhas, sem espinhos. Vulnerável afeto. Sensível conexão. ser e estar,
aqui e agora é sobre cultivar e germinar. É sobre alimentar raízes profundas que se espalham
em direções organicamente múltiplas. E é, também, sobre a crença no amor como uma força
que alimenta uma energia vital.
79

Figura 31 – ser e estar, aqui e agora, 2019, monotipia

Fonte: Acervo pessoal.

Nesse trabalho em questão exploro a gravura em linóleo e monotipia. Através de


experimentações com folhagens – coletadas pelo chão da área aberta do ateliê –, papel colorido,
papel seda e matriz em linóleo, cheguei ao resultado compositivo em que o papel dourado
representa luz e calor sobre a semente do afeto – figurada por contornos de formas entrelaçadas;
o vermelho, por sua vez, pode ser entendido como toda sorte de atravessamentos que no fim de
tudo aduba a vida, que germina, enraíza e faz crescer.
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Figura 32 – sangria, 2020, colagem digital

Fonte: Acervo pessoal.

Já em sangria (Figura 32), por mais que o ponto de partida dessa colagem tenha sido a
angústia e o peso, nela trago uma perspectiva dessa abordagem que difere da perspectiva de
obras mais antigas com pontos de partida semelhantes. Nessa obra envolvo esse estado em
acolhimento. Nela eu trago compaixão ao evocar a passagem da dor, numa busca por caminhos,
ainda que indistintos, que possibilitem um retorno à fluição da vida. Essa obra é sobre dor, mas
principalmente sobre deixar a dor passar. Uma tentativa de “fazer as pazes” com os próprios
demônios. Assim como ocorre em fé cega, faca amolada, afundar na areia movediça da
angústia não era mais “suficiente”. Nessas produções mais recentes o foco é reajustado. Como
me dizia Vini: “depois do fundo, só sobe”. E assim, passei a fazer. Subi para pegar fôlego.
Reagir. Tomar banho de sol e buscar frestas oxigenadas e iluminadas.
81

Figura 33 – ai de nós se não fosse o amor..., 2020, colagem digital

Fonte: Acervo pessoal.

Em vista disso, em ai de nós se não fosse o amor... (Figura 33) apesar do título
aparentemente piegas, nessa composição reforço a importância do amor como força que acolhe
e que alimenta. Que abraça com sensibilidade o caos de existir que, por vezes, irrompe de nós
como um tornado. Amor que vem de fora. Amor que vem dentro.

A luz do amor está sempre em nós, não importa quão fria esteja a chama. Ele está
sempre presente, esperando uma fagulha que o inflame, esperando que o coração
desperte e nos leve de volta para a primeira lembrança de ser a força da vida dentro
de um lugar escuro esperando para nascer – esperando para ver a luz (HOOKS, 2022,
p. 107).

Essas duas colagens foram experimentações realizadas no software livre Krita, mas vale
dizer que, posteriormente, passei a utilizar os softwares da Adobe – como o Photoshop, o
Illustrator e o Premiere – em minhas produções digitais. Em colagens digitais, como as que eu
apresentei aqui, costumo utilizar materiais diversos, seja imagens coletadas em banco de
imagens gratuitas; seja fotografando objetos, plantas, animais, paisagens ou a mim mesma em
capturas de estados de corpo afetado; seja digitalizando imagens analógicas.
Meu processo criativo parte principalmente dos afetos com os quais sou atravessada e
das perturbações por eles provocadas em meu corpo. É um princípio intuitivo e por algum
tempo parecia ser tudo o que eu precisava para criar. “Uma visão simplificadora do gesto
82

criador mostra um percurso que tem sua origem em um insight arrebatador, que se concretiza
ao longo do processo criativo. Um caminho do caos inicial para a ordem que a obra oferece”
(SALLES, 2011, p. 29). Com o tempo minha produção foi rareando. Talvez não por falta de
potencial criativo, mas, creio eu, por que foi deixando de ser “automático”. Me questionava
constantemente se minha capacidade criativa se restringia a momentos de angústia e desespero.

Figura 34 – Registros em diário de bordo sobre bloqueio criativo

Fonte: Acervo pessoal.

No entanto, fui percebendo e aprendendo com estudos, experiências e amadurecimento,


que processo criativo demanda mais do que apenas a ideia, o insight ou perturbações de mundo.
Demanda, também, experimentação e pesquisa. Processo de criação se constitui, portanto, em
uma espécie de rastreamento, uma busca por modos de manifestação. Nesse sentido, permitir-
se ao “erro” é também fundamental nessa busca. Essa perspectiva foi (e ainda está) se
consolidando e pode ser identificada no percurso de algumas das minhas obras mais recentes
como eco-fragmento I (Figura 35) e corpus affectus (Figura 38).
83

Figura 35 – eco-fragmento I, 2022, gravura expandida

Fonte: Acervo pessoal.

eco-fragmento I foi fruto das experimentações em técnicas de impressão como


monotipia e manchas Rorschach – propostas no componente de Tópicos Especiais em Técnicas
e Processos Artísticos VIII – que, posteriormente, foram expandidas em combinações feitas no
Adobe Photoshop. A intenção inicial era de abordar o corpo em seus estados de afecção,
incorporando elementos de movimento, efemeridade, fragilidade e gestualidade em si dessa
forma. Refletindo de minha perspectiva sobre o que o corpo representa e sobre seus
atravessamentos inevitáveis de movimento no mundo, me deparei com palavras-chave e
encontrei na escrita a passagem para que meus pensamentos e sensações fossem transpostos de
mim para o mundo, do abstrato para o registrado, iluminando caminhos de experimentação e
criação que ressonaram no que viria a ser eco-fragmento.
Como todo processo artístico, nada se torna exatamente o que imaginamos, nos restando
então a abertura para o que vai sendo revelado em cada experimento e fluxo de pensamento.
Tendo isso em vista, tive dificuldade em me conectar com insights iniciais, em me desprender
de uma forma dada que eu nem ao menos sabia o que era ou como era e principalmente, em
visualizar algo que não fosse figurativo, já que eu buscava encontrar resultados mais
espontâneos e de gestualidade marcada. Foi a escrita e a observação atenta do que estava
acontecendo num aqui e agora que auxiliaram num desprendimento do controle e do previsível,
de um "que era pra ser" para um "o que está sendo". Foi nesse reajuste de foco, com o auxílio
de orientações com o professor Tonico Portela, que consegui me permitir ao que está por vir,
84

ao risco e ao caminho aberto pela curiosidade criativa. Esse processo de contato com maneiras
diversas de impressão me permitiu enxergar as possibilidades de criação em um panorama. Me
permitiu um retorno à prática errante, possibilitando testes mais descompromissados, e por isso
mesmo, uma experiência mais receptiva ao além do dado, ao além da forma.
Assim, a composição foi se constituindo a partir da intenção em passar sensações de
peso e leveza, contrapor solidez e fluidez, como aquilo que é e não é o que foi e nem será o que
será depois. Eco como aquilo que reverbera, (re)soa, como aquilo que encontra no oco do corpo
um lugar de amplificação. Fragmento como matéria corpórea, como parte feita de partes, ou
ainda, como partícula de mundo.
Nessa obra, uma referência que me auxiliou em minhas escolhas estéticas foi a artista
visual mineira Efe Godoy, com seus seres híbridos de insetos, plantas e corpos. Além dela e
dos artistas já evocados anteriormente, artistas mais próximos a mim como, por exemplo,
Fernanda Ferreira (@asteracea) – da qual o trabalho foi um dos primeiros que tive contato ao
chegar em Cachoeira –, George Teles, Mari Viana, Maria Struduth, Drica Teles, Carmen
Roberta, Bianca Brito e Sarah Lamille também tiveram certa influência em meu imaginário
estético, tendências conceituais e percursos de processo ao longo dos anos do bacharelado.
Também, como se pode notar em algumas ilustrações minhas, o corpo alongado, delgado e por
vezes contorcido são escolhas estéticas na busca de transmitir sensações tais como peso,
deslocamento e estranheza, assim como refletem também características minhas como o fato
de ser alta, muito magra e, por esses motivos, ter o hábito de me acomodar em posições
aparentemente desconfortáveis.
85

Figura 36 - Se sentia cada vez mais ramificada,


2021, Efe Godoy, aquarela e acrílica dourada s/ Figura 37 – despertar o silêncio para não cair, 2020,
papel asteracea, ilustração

Fonte: Instagram da artista @efegodoy


Fonte: Instagram da artista @asteracea

corpus affectus, como já foi mencionado, também se deu nessa dinâmica de


desconhecimento a priori do que se daria como produto final. A fotoperformance (transformada
posteriormente em imagens GIF a fim de incorporar o movimento) foi realizada para o
componente de performance e instalação – Técnicas e Processos Artísticos IV – o qual foi
orientado pelo professor Ayrson Heráclito. A ação traz em seu cerne manifestações corporais
que partem da ideia de um espectro de afetividade, da repressão à expansão causada pelo
encontro de forças externas e internas que ressoa em um corpo, ora o mobilizando, ora o
paralisando. Nesse caso, apesar de ter tido dificuldade em vislumbrar sua execução por falta de
familiaridade com a linguagem, pode-se dizer que este trabalho se constitui como uma
amálgama da minha trajetória criativa na qual busco compreender o corpo afetivo através de
inquietações e, mais tarde, da investigação28.

28
Nessa época estava finalizando minha iniciação científica, abordada logo mais à frente, com a qual dei início à
investigação do corpo afetivo.
86

Figura 38 – corpus affectus, 2022, fotoperformance

Fonte: Acervo pessoal.


87

Desse modo, com um olhar mais apurado e ampliado, pude correlacionar esse “produto”
com produções minhas, de quando ainda nem estava na graduação, nas quais já abordava esse
corpo como em vazio agudo ando meio cheio de tudo (Figura 39). Apesar de não intencional,
as duas obras, como se pode perceber, se assemelham tanto pela estética quanto pela abordagem
conceitual.
Figura 39 – vazio agudo ando meio cheio de tudo 29, 2017, mobgrafia de longa exposição

Fonte: Acervo pessoal.

29
Poema de Paulo Leminski
88

Esse posicionamento investigativo foi se desenvolvendo ao longo dos anos também com
os grupos de estudos e pesquisa – como o GET30, o HAG31 e o El Mapa32 – e amadureceu,
principalmente, a partir da minha inserção na Iniciação Científica33 em 2021 com a pesquisa
acomodação dos ossos: a construção estética de (e) para um corpo afetivo, orientado pela
professora Priscila Miraz de Freitas Grecco. Assim como ocorreu com o já mencionado projeto
de extensão Cartas para Transversar Paredes – no qual tive a oportunidade de desenvolver a
escrita e através dela me desbloquear criativamente – com a iniciação científica pude
amadurecer criticamente o pensamento e a escrita, bem como me afirmar enquanto artista
pesquisadora. Aqui abro um parêntese para dizer que nesse período, concomitante a um período
extremamente conturbado pelo qual minha família estava passando, também desenvolvi uma
relação afetiva de refúgio com esse espaço da pesquisa.
Nessa IC abordei o corpo afetivo, porém, a partir de uma perspectiva histórica
explorando a série Siluetas (1973-1980) – os earth-body-works34 – da artista cubana Ana
Mendieta. É interessante notar que, apesar de a princípio me parecer uma escolha um tanto
quanto aleatória pela artista, suas produções artísticas perpassam territórios pelos quais o meu
próprio trabalho atravessa – ou são atravessados por eles – como o corpo, a sexualidade e o
ritualístico:

Seus primeiros trabalhos performáticos eram direcionados especificamente às


temáticas de identidade e gênero: questionava padrões estéticos, relações de poder e
violência contra a mulher; a partir de 1972, ela inicia uma transição incorporando o
ritualístico em seus trabalhos (OLIVEIRA, 2022, p. 653).

Foi também por meio dessa inserção nos estudos acadêmicos, na pesquisa e na extensão
que tive oportunidade de participar, e mesmo auxiliar na organização, de eventos e rodas de
conversa com convidados; exposições como a Error 404 (2019), a Desver Devires (2021) e a
Arte em Devir II (2022); e também apresentar em eventos científicos como o XV Encontro

30
Grupo de Estudos em Processos Criativos - TRANSCRIAR, coordenado pelo prof. dr. Antônio Carlos de
Almeida Portela, do qual participei brevemente em 2020.
31
Atualmente institucionalizado como programa de extensão e não mais grupo de estudos.
32
Abreviação para o título do projeto de pesquisa Ahora ponemos el mapa al revés: perspectivas decolonias na
produção artística contemporânea desde a América Latina, do qual participo desde 2021.
33
Iniciação Científica voluntária entre 2021 e 2022.
34
No artigo Caminhos de Ana Mendieta (2022), publicado no Anais do XV Encontro Internacional da
ANPHLAC, explico um pouco a respeito desse importante posicionamento da artista em relação a essa série: “A
artista chamou esse trabalho de earth-body-works: o termo seria uma espécie de classificação própria em
resistência às classificações ‘prontas’, uma vez que o que ela fazia não se encaixava em uma única classificação,
linguagem ou conceito” (OLIVEIRA, 2022, p. 656).
89

Internacional da ANPHLAC35 e o RECONCITEC 2022, assim como publicar trabalhos


referentes à minha pesquisa de iniciação científica em seus respectivos anais.
Assim, toda essa trajetória dentro da universidade contribuiu não só para um
amadurecimento do meu pensamento crítico e para um posicionamento enquanto pesquisadora,
como já foi dito, mas também para o amadurecimento em meus processos artísticos, os
encarando com maior responsabilidade, profundidade, consciência e sensibilidade, para
finalmente conseguir me afirmar artista.

35
Associação Nacional de Pesquisadores e Professores de História das Américas
90

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

De modo geral considerei desenvolver esse trabalho em torno do corpo afetivo por que,
a princípio, (1) desejava compreender os limites dos processos de subjetivação: o quanto do
outro há em mim? E o quanto de mim me constitui? Essa era uma necessidade que me
acompanhava já há alguns anos, conforme fui percebendo e tomando consciência de que (2)
havia uma importante dimensão afetiva na mobilização do meu corpo, do meu pensamento e,
consequentemente, no cerne das minhas produções. Essa constatação se deu ao (3)
constantemente me comparar e me questionar a respeito do valor, do significado e da validade
do meu trabalho artístico.
Desse modo, o ponto de encontro entre a teoria dos afetos de Spinoza e a teoria
micropolítica desenvolvida por Rolnik – a qual tive contato nos estudos do HAG – foi uma luz
para traçar esse trajeto de pesquisa. Da mesma forma, esbarrar com a teoria de hooks sobre o
amor foi o respiro que faltava ao perscrutamento desse atoleiro.
Discernir o medo e afirmar/convocar o amor nos processos de subjetivação do sujeito e
compreender o alcance desses afetos também em uma perspectiva macro, pode nos levar a
questionar mais uma vez o que estão tirando de nós e quais são as estratégias que encontramos
para recuperar esse acesso. A atividade artística concebida de uma forma ramificada e
conectada com o movimento do mundo, como busquei demonstrar no presente trabalho, com
certeza é um desses caminhos possíveis.

Trata-se de uma busca por “curar” a vida o mais possível de sua impotência, sequela
de seu cativeiro na trama relacional do abuso que aliena a subjetividade das demandas
vitais e mantém o desejo refém do regime dominante em sua essência cafetina. E se
tal operação de cura é indissociável da operação artística é porque ela só se completa
com a criação de novos modos de existência que performatizem as demandas vitais,
realizando assim a germinação dos embriões de mundo que pulsam nos corpos
(ROLNIK, 2021, p. 138).

Sendo assim, se constitui como mecanismo de processamento e de cura, através da


rememoração, da ressignificação e da fabulação. É um espaço pelo qual a vida pode retomar o
seu pulso e, através da criação, transbordar nossas inquietações afetivas, nos organizar
subjetivamente e vislumbrar possibilidades de movimento e intervenção na realidade.
Escrever esse TCC foi também um processo de criação que posso considerar como uma
espécie de ritual, um estado de transe e imersão, pelo qual revolvi e acessei territórios e feridas
que me atravessaram ao longo da vida, mas que foram relegados ao esquecimento, ao
comodismo e à paralisia do medo. Durante o desenvolver desse trabalho emergiram percepções
91

das quais não tinha consciência ou que foram deixadas subentendidas em meu subconsciente.
Através desse processo de escrita – que em dado momento percebi estar presente ao longo da
minha vida – e arqueologia, expus coisas que nunca foram ditas a determinadas pessoas ou
mesmo a ninguém. Isso por que – é importante dizer – nesse trabalho encontrei uma fresta pela
qual pude ser honesta comigo mesma. Por isso poderia ousar em classificar esse trabalho como
um memorial-manifesto, memorial terapêutico, ou ainda, arte memorial, se o considerarmos
como produto-processo. “Assim se fazem os objetos-cicatriz, essas configurações semióticas
que são, também, produção de território subjetivo a partir das matérias do mundo. Assim a vida
se torna vivível” (LIMA, 2011, p. 188).
Em última análise, apesar de não me debruçar demoradamente na dimensão
procedimental, acredito que o desenvolvimento desse trabalho contribui para a discussão no
campo dos processos artísticos no que diz respeito à construção poética: além de abordar esse
processo de forma interdisciplinar, também aponta questões fundamentais tanto para a prática,
quanto para a história da arte sobre a realidade angustiante e não linear da atividade artística –
bem como sobre quem se ocupa dela – e dos processos de criação como um todo. Nesse
processo finalmente me reconheci como artista.
Por fim, encerro esse trabalho com o coração ansioso, porém, mais leve. Nele pude
transbordar, vocalizar os nós da garganta e olhar cantos escuros, empoeirados e anestesiados
com uma outra perspectiva, com lentes que estão constantemente em transformação pela busca
por um estar cada vez mais amoroso no mundo.
92

5. REFERÊNCIAS

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Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 8, n. 1, p. 229-236, jan. 2000. DOI:
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https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/9880. Acesso em: 28 jan. 2023.

BONDÍA, J. L. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de


Educação, Rio de Janeiro, n. 19, p.20-28, abr. 2002. DOI: https://doi.org/10.1590/S1413-
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CERVO, J. M. Autobiografia de um outro em mim: uma arqueologia dos afetos no cinema. In:
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gia_dos_afetos_no_cinema/288. Acesso em: 03 nov. 2022.

CERVO, J. M. Autobiografia de um outro em mim: uma arqueologia dos afetos. Orientador:


Prof. Dr. Edson Luiz André de Souza. 2016b. 53 p. Trabalho de Conclusão de Curso
(Graduação) – Psicologia, Instituto de Psicologia, UFRGS, Porto Alegre. 2015. Disponível em:
https://lume.ufrgs.br/handle/10183/138361. Acesso em: 29 nov. 2022.

CHADWICK, W. História da arte e a artista mulher. In: PEDROSA, A; CARNEIRO, A.;


MESQUITA, A. (orgs.) Histórias das mulheres, histórias feministas: vol. 2 antologia. São
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DICIONÁRIO da Língua Portuguesa comentado pelo Professor Pasquale. Barueri: Gold


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SOUZA, A. T. de. Nas encruzilhadas da autohistória: diálogos artísticos com Gloria Anzaldúa
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2022.
95

6. ANEXOS

carta (para e) sobre o amor


setembro de 2021

decidi escrever pra você, não tanto como uma mensagem direta a
um fim, mas talvez mais como uma ode, ou uma espécie de
reparação ou tentativa de alumiar o seu atravessamento em
minha existência. sendo assim, não me restrinjo a me direcionar
a um algo ou um alguém externo a mim, apesar de lhe ter como
destinatário específico.
entendo o amor como algo que me atravessa, mas também como
algo que está em mim. pra mim, o amor é tão intrínseco a vida
que não faz sentido tentar encaixá-lo numa tacanha dicotomia.
na verdade, proponho uma conversa, como aquelas prosas de porta
de rua ao cair da noite. uma partilha com e sobre o amor, tal
qual enquanto força, menos enquanto contingência, apesar de me
amparar em experiências e memórias pessoais.
o amor costuma ser confundido, distorcido e corrompido por
tantas outras coisas que acabou se perdendo no turvo do mundo.
mas aqui não me cabe definir o amor como a + b = c.
cada um enxerga, percebe, acolhe, rejeita, compartilha o amor
como lhe achar mais conveniente ou pertencente. cada um tem
sua própria história, seu constructo enquanto ser vivente e, sendo
assim, cada um é atravessado pelo amor em sua peculiaridade.
é a partir disso que eu quero falar sobre o amor, com o amor.

vejo você em todos os lugares por onde vou, por onde olho, por
onde escuto, por onde sinto... nem sempre estou atenta e sensível
ao seu movimento, mas sei da sua onipresença pelas brechas das
muralhas cotidianas.
arrisco dizer que te vejo em tudo e em todos.

o amor está, mesmo quando não manifesto.


96

mas sei que também existe dor...


será o amor e a dor tão opostos e dissociáveis assim, a ponto de
um só poder se fazer presente na ausência do outro?
um pouco ganancioso demais, não acha? talvez até romantizado.
mas acredito que não se deva confundir uma coisa com a outra,
muito menos como pressupostos mútuos. acho que um e outro são
existências inegáveis no complexo da vida e de sua pulsação voraz
que tanto tentamos domar, muitas vezes ou quase sempre, de
modo falho.
aqui recorro aos registros da minha percepção, gravados no
terreno instável da memória.
durante minha criação, desde pequena fui cercada pelo cuidado
e pelo zelo, vindos em alguma medida das pessoas mais diversas:
minha mãe, minha irmã, meu irmão, do meu pai, das companheiras
de vida da minha mãe, algumas pessoas queridas que fazem
parte da igreja que minha mãe frequenta, dos meus familiares
mais próximos pelo menos naquela época, de pessoas que nem
conhecia ou que pelo menos não me lembro quem eram…
cuidado e zelo vindos de muitos lugares.
hoje, olhando pra essas memórias, percebo que na época eu não
enxergava a presença do amor ali, ou talvez eu só não pensasse
sobre isso.
sempre fui uma criança sonhadora e dengosa que carregava nos
olhos e no sentir uma versão tão idealizada do amor que
dificilmente era avistada em alguém próximo. com isso, em algum
momento da minha construção, fui enrijecendo e demonstrar afeto
direto, vulnerabilidade e expressar amor se tornaram desafios
quase intransponíveis.
no que fui crescendo, me resguardei em minhas barragens e fui
me nutrindo de amor da forma que meu inconsciente sorrateiro
me permitia.
é por isso que acredito que o amor sempre está, ele é uma força
que nunca nos abandona, mesmo quando o inverso não é recíproco.
97

ele é como a ideia, trazida por Rolnik certa vez em um seminário,


do rio soterrado que luta pra encontrar caminhos de perseverar,
se transfigurando em formas que o possibilitem emergir à
superfície e voltar a nos embalar em seu abraço caudaloso.
para além da sobrevivência, acredito que o amor está no
companheirismo, no cuidado e no zelo, no respeito, no silêncio
compartilhado, na natureza, no estar, no ser, na sensibilidade,
na paciência, nas sutilezas, nos gestos...

o amor só muda de nome e de formato.

ele necessita ser cultivado, dia a dia, adubado, receber cuidado


e atenção pra que não cresçam ervas daninhas aqui ou ali, e se
crescerem, tentar entender da onde vieram; e, sempre lembrar
de tomar aquele banho de sol.
e este não é um trabalho solitário, nunca o é.
acredito, sim, que é um movimento de dentro pra fora, mas se
ele tem na gente como o único terreno para germinar, ele definha,
vira outra coisa.
é um movimento, também, de fora pra fora e de fora pra dentro.
nos desafia a enxergar que o jardim vai muito mais que além do
nosso quintal e que estamos todos sob o mesmo teto:
o céu.
apesar disso tudo, o fato de demorar tanto pra perceber o amor
como percebo hoje, me fez desacreditar por muito tempo em sua
existência; me fez entendê-lo através de distorções, me fez
sentir isolada, repelida, autodestrutiva, desconfiada, excessiva,
mal entendida, insegura e muitas vezes silenciada.
nos enfiam a tirania desde que nascemos, talvez até antes, até
que nos tornemos nosso próprio tirano.
há de se resistir.
ninguém te ensina o que é amor, porque cada um entende de uma
forma e por que todos estão muito ocupados, seja vivendo a
98

vertigem das urgências da existência, seja simplesmente sendo


amor, ainda que não chame por esse nome.
talvez seja por essas e outras que ao menor transbordamento,
aumentamos a altura da barragem.
ao menor sinal de broto, saindo de onde não imaginávamos que
pudesse crescer alguma coisa ali, estranhamos e por vezes
podamos, como quem tem dificuldade de distinguir uma erva
daninha de uma potente árvore, como quem morre de medo do
abalo que aquelas raízes poderão causar em uma possibilidade
de futuro e simplesmente retorna ao (des)conforto da
estagnação.
há de se arriscar ao desmoronamento das barragens.
se colocar a navegar.
acreditar na potência, sem medo, sem culpa, sem tiranias.
há de enxergar o amor em tudo que pulsa, que vibra, que
persevera.
tudo que é
vida.

Figura 40 – Registro da mostra Arte da Revolução, 2018

Fonte: Acervo pessoal.


99

Figura 41 – Vulva (processos de construção e objeto), 2019, obra feita com material têxtil, papelão e
dispositivos eletrônicos

Fonte: Acervo pessoal.


100

Figura 42 – Capturas de acomodações corporais


101

Fonte: Acervo pessoal.

Figura 43 – Registros de percurso da fotoperformance corpus affectus


102
103

Fonte: Acervo pessoal.

Figura 44 – Registros de processo da obra eco-fragmento I em diário de bordo

Fonte: Acervo pessoal.

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