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A Arquitetura Do Iluminismo - Destaques
A Arquitetura Do Iluminismo - Destaques
Attilio Pracchi**
tradução:
P remissa
17 1[2013 revista de pesquisa em arquitetura e urbanismo programa de pós-graduação do instituto de arquitetura e urbanismo iau-usp
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A arquitetura do Iluminismo: alguns aspectos da ideologia e da práxis
continuação nota anterior... Funcionalismo, naturalismo, purismo, eloquência ideias devemos remontar (...) mas às suas funções
difusão de seu livro, organi- civil e retórica monumental são alguns aspectos na história»3. Nos Setecentos todas aquelas crises
zado com Mara De Benedetti,
Antologia dell’architettura do clima crítico e experimental da arquitetura do isoladas se unem e se precipitam, separando, não
moderna. Testi, manifesti, Iluminismo (para ficar, mais ou menos, no campo apenas na história dos fatos econômicos e sociais,
utopie, Zanichelli, Bologna
1988. da teoria). Se, então, como foi dito no início, se mas obviamente também naquela das ideias, aquilo
aceita uma definição da arquitetura mais recente que é hoje ainda operante daquilo que desde já
1 PATETTA, Luciano. Differen-
ti definizioni, e differenti ipo-
que dê conta da sua complexidade específica e se decanta na história. Se à montante das Luzes a
tesi di inizio dell’architettura da dificuldade de individuar sistemas estilísticos genealogia do Movimento Moderno se dissipa na
moderna. Fascículo da Facul-
dade de Arquitetura, Istituto
precisos e metodologias estáveis que caracterizam heráldica, à jusante sua historiografia circunscreve
di Umanistica, Milano,1973, o presente, então o Iluminismo irá parecer um e se confunde com a mobilidade e as crises da
p. 4.
precedente histórico se não unívoco, ao menos “crítica operativa”.
2 CASSIRER, Ernst. La filoso- totalmente coerente às suas premissas.
fia dell”Illuminismo. Trad. it.
A ruptura no campo da arquitetura verifica-se em
Firenze, 1936, p. 24.
Dito isto, é evidente que por “arquitetura do todos os níveis, ainda que com tempos e modos
3 VENTURI, Franco. Utopia Iluminismo” não se deve entender o Neoclássico, diferentes. É sabido, por exemplo, como Kaufmann
e riforma dell”Illuminismo.
Torino, 1970, p. 11. mais do que a eloquência civil de Ledoux, ou a a tenha revelado observando de determinado ponto
atenção funcional de Milizia, ou, selecionando os de vista a arquitetura projetada e construída naquele
problemas por escala, as manifestações urbanas da período. O Iluminismo, segundo Kaufmann, critica
arquitetura; mas exatamente seu confronto, ou a e interrompe a história plurissecular do “sistema
simultaneidade, ou o rápido suceder-se e consumar- barroco”, isto é, do “sistema” compositivo comum
se teórico e prático de tudo isto: o privilégio da crítica à arquitetura do primeiro Renascimento ao tardo
e do Movimento sobre exegese e Estilo. Barroco, baseado nos princípios de concatenação,
integração, gradação. De Brunelleschi a Borromini
Nas notas que se seguem procurar-se-á colocar procurou-se em vão a conciliação impossível entre
em realce, de modo assistemático, algumas pistas gradação e integração, entre predomínio da linha
características da ideologia arquitetônica dos horizontal e vertical, entre exigências das partes
Setecentos, selecionadas do ponto de vista da sua em si e do todo: a arquitetura moderna resolve
eficácia na separação do passado e na preparação o problema nos Setecentos liberando as partes
de desenvolvimentos sucessivos. isoladas, rendendo-as autônomas.
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A arquitetura do Iluminismo: alguns aspectos da ideologia e da práxis
de Vitrúvio que, assumido como referência mítica Acontece assim que, nas polêmicas suscitadas pelos
da teoria e da prática, acabou forçado no tempo a primeiros tratados os teóricos encontrem-se muitas
significados claramente mutáveis, mas raramente vezes de frente, como antagonistas, aos arquitetos
desmentido na sua autoridade. Até os Setecentos, praticantes. Frézier, que na metade dos Setecentos
a atividade teórica fora então realizada, em grande era “arquiteto do Rei” em Paris, ele mesmo teórico,
parte, sob a chancela ideológica do comentário: desentende-se com Cordemoy, em seguida com
agora, em poucas décadas, este predomínio se Laugier, de posições conservadoras. Cordemoy,
rompe, e a crítica (a Vitrúvio e a cada aspecto dele que havia escrito um tratado em cuja tripartição da
herdado) suplanta o comentário. Na metade do matéria é ausente o aspecto construtivo, é acusado
século, Carlo Lodoli – o maior teórico do Iluminismo por Frézier de incompetência: defende-se afirmando
arquitetônico italiano – pôde afirmar, segundo não ser de todo estranho à arte, pois que se apraz
o quanto refere Memmo, que «nestes últimos em pintar.
cinquenta anos felizes pelo progresso do espírito
humano, finalmente começando a afirmar-se o modo De resto, os tratadistas da metade dos Setecentos
geométrico de investigar as razões últimas e nuas (dentre os quais, Laugier e Lodoli são provavelmente
das coisas, não causará espanto se estamos a ponto os maiores) pretendem, sobretudo, adequar a
de despojar Vitrúvio daquela grande autoridade arquitetura ao nível racional do século, agindo de fora
derivada do fato de ter sido o único dentre os sobre as definições dos seus princípios mais gerais. As
antigos escritores de arquitetura que chegou até suas obras não contém ilustrações significativas, nem
4 MEMMO, Andrea. Elementi nós quase ileso».4 esses podem ostentar verdadeiros alunos dentre os
d’architettura Lodoliana; os-
arquitetos. Caberá a uma geração sucessiva, no final
sia l’arte del fabbricare con
solidità scientifica e con ele- A segunda novidade da qual se falou – a separação do século, recuperar os seus princípios e colocá-los
ganza non capricciosa. Zara,
entre prática construtiva e teoria – explica-se facilmente em contato com a prática, inaugurando os modos e o
1833, p. 92.
recordando que a crítica não nasce no interior do tom da “crítica operativa” do Movimento Moderno.
ambiente, por assim dizer, “profissional”, mas é O exemplo mais significativo desta operação serão os
fruto do interesse pela arquitetura de uma série “Principj di Architettura Civile” que Milizia publica
de pensadores que aplicam à técnica e à arte os em 1781. Quanto foi dito, redimensiona e justifica
princípios da revisão geral do saber. O que importa as acusações de plágio frequentemente endereçadas
não é tanto a competência específica de quem a esta obra, que é sim recheada de empréstimos de
critica, quanto a sua capacidade de “bem pensar”. Laugier e de Lodoli, mas que coloca essas ideias a
Armados dos instrumentos da razão os “philosophes” serviço de uma estrutura da matéria talvez inédita,
entram em campo para derrotar os erros transmitidos certamente bem diversa daquela em uso trinta
em todos os setores da teoria e da prática. Em 1775, anos antes. O livro de Milizia é um verdadeiro
introduzindo seu próprio tratado fundamental, Laugier texto de “caráteres distributivos” dos edifícios,
escreve «(...) a própria arquitetura foi abandonada no qual a arquitetura é constantemente referida
até hoje ao capricho dos artistas que ditaram seus ao contexto significativo da cidade: é graças a
preceitos sem discernimento algum. Confiando no esta impostação que Milizia, e pelo seu trâmite
5 LAUGIER, Marc-Antoine. acaso, esses fixaram as suas regras baseados apenas os Iluministas ‘plagiados’, constituirão até quase a
Essai sur l’Architecture. 2ed.
no estudo dos antigos. Esses copiaram os seus erros metade dos Oitocentos uma referência operante
Paris, 1755, p. XXXV. [NT:
tradução para o português com o mesmo escrúpulo com o qual copiaram as nas escolas de arquitetura.
feita a partir da tradução
suas belezas: do momento em que faltavam os
italiana realizada por Attilio
Pracchi e reportada em seu princípios para distingui-los, esses se impuseram a A tratadística: a “cabana primitiva”
texto].
obrigação de confundi-los (...)»5. Laugier ainda precisa,
6 LAUGIER, Marc-Antoine.Ob- dez anos depois, que «cabe ao Filósofo carregar a Sem entrar no mérito dos tratados isolados, é
servations sur l’Architecture. tocha da razão na obscuridade dos princípios e das possível explicar sinteticamente algumas questões
La Haye, 1765, parte I, p. 4.
[NT: tradução para o por- regras. A execução é dever do Artista, e é ao Filósofo fundamentais que os percorrem, examinando o papel
tuguês feita a partir da tra- que compete a legislação»6. O mesmo conceito é e a sorte daquele que é um dos lugares comuns
dução italiana realizada por
Pracchi e reportada em seu recorrente em Lodoli que acrescenta, para não permitir mais significativos e constantes da tratadística:
texto]. equívocos: «Mesquinho artista se não é filósofo, o mito da “cabana primitiva”. Esta é o primeiro,
7 MEMMO, Andrea. Op. Cit., e mais mesquinho se não o sendo, não deseja do elementar edifício com o qual o homem primitivo
p. 177. filósofo deixar-se nem mesmo guiar»7. tentou remediar a necessidade de defender-se da
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inconstância dos elementos [da natureza NT] e de teoria e uma crítica racionais têm necessidade de
criar, para si, um clima artificial. Este princípio da se apoiarem sobre elementos objetivos. No caso
arquitetura no tempo é também o princípio mais da arquitetura e da arte, o primeiro obstáculo a
geral, supra-histórico, da sua construção prática e ser superado é aquele do “gosto”: não por acaso,
teórica e, além disso, a pedra-de-toque da crítica. A a polêmica entre gosto (subjetividade) e ânsia de
primeira descrição neste sentido, assim como a mais certeza foi o terreno dos combates teóricos mais
nítida e o modelo daquelas sucessivas, encontra-se significativos do primeiro Iluminismo. Afirmar
no tratado de Laugier. a primazia do gosto na arte significa reduzir
o juízo estético, o consenso sobre o “belo”, a
«Em Arquitetura – ele escreve – como em todas uma convenção mutável no tempo, submeter
as outras artes, os princípios são fundamentados as artes à moda, portanto, ao efêmero. Esta
sobre a simples natureza e, nos procedimentos mesma foi, no final dos Seiscentos, a posição
desta última, acham-se indicadas claramente as de Claude Perrault e seu irmão Charles, contra a
regras daquela. Consideremos o homem na sua qual se levantara Blondel antes, e depois quase
primeira origem, sem outra ajuda, sem outro guia todos os contemporâneos interessados no tema.
que o instinto natural e as suas necessidades. A exigência de certeza própria dos Setecentos
Ocorre-lhe um lugar para repousar (...) quer tenta resolver o problema segundo duas linhas de
construir para si um refúgio que o cubra sem pensamento alternativas: de um lado sujeitando
enterrá-lo. Alguns ramos abatidos na floresta os princípios da construção aos procedimentos
são os materiais aptos ao seu propósito. Ele e às aferições próprias do pensamento científico
escolhe quatro dentre os mais robustos que alça nascente, separando então a arquitetura das artes
verticalmente, formando um quadrado. Em cima e tentando fundá-la como ciência; de outro – é o
deles coloca outros quatro horizontais e acima caso de Laugier e talvez a tendência dominante
desses dispõe outros inclinados, reunindo-os junto dos Setecentos – reconduzindo, no modo que foi
ao vértice. Esta espécie de telhado é coberto de visto, os princípios às suas origens presumidas
folhas muito abundantes para que nem o sol nem naquela Natureza que era agora entendida como
a chuva possam penetrar; e eis que o homem fonte e garantia de todo saber e de cada habilidade
tem uma casa. É verdade que o frio e o calor o prática. Por esta concepção «a arte é imitação, e
incomodarão na sua casa aberta em todos os todas as artes têm um modelo próprio; isto deve
lados, mas então ele vai cobrir os intervalos entre ser natural porque cada saber e operação humana
as pilastras, e ficará protegido. formam-se a partir da natureza. A arquitetura não
pode recorrer a tais matrizes divinas, mas há algo
Este é o método da simples natureza: a arte deve seu que pode socorrê-la (...); a cabana, obra do homem
nascimento à imitação do seu modo de proceder. A primitivo na sua inocência, tem quase a santidade
pequena cabana rústica que acabo de descrever é das coisas naturais, como o primeiro “Contrato”
o modelo a partir do qual foram imaginadas todas possui, em estado nascente, a sociedade».9
as magnificências da arquitetura. É aproximando-se
na execução à simplicidade deste primeiro modelo Deve ser dito, neste momento, que a relação entre
8 LAUGIER, Marc-Antoine.
Essai... cit., p. 8. [NT: tradu-
que se evitam os defeitos essenciais, que se colhem a evocação de uma forma primitiva (então intacta,
ção para o português feita as verdadeiras perfeições. As peças de madeira inalterada) da arquitetura e os propósitos de refundar
a partir da tradução italiana
realizada por Pracchi e repor-
eretas perpendicularmente nos deram a ideia de esta última que movem os teóricos das Luzes é uma
tada em seu texto]. colunas. As peças horizontais que lhes estão acima relação moralista. A autoridade da cabana primitiva
9 NICCO FASOLA, Giusta.
nos deram a ideia das arquitraves. Enfim, as peças é antes de tudo ética, secundariamente estética,
Illuminismo e pensiero archi- inclinadas que formam o telhado nos deram a ideia não lógica ou histórica. A atitude especulativa que
tettonico. In: Ragionamenti
dos frontões: aqui está o que todas as maestrias da está por detrás da imagem descrita por Laugier, e
sull’architettura. Città di Cas-
tello, 1949, p. 177. arte reconheceram».8 por muitos outros, é análoga àquela que percorre
uma grande parte do pensamento Iluminista: os
Para uma grande parte do racionalismo princípios (das instituições, das artes) coincidem
arquitetônico das Luzes esta imagem representa com as origens, portanto, procura-se redescobrir
o ponto arquimédico em relação a toda uma série nas origens os princípios, para além de qualquer
de questões decisivas. Antes de mais nada, uma corrompimento ou desvirtuamento.
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Na metade dos Setecentos, as novas destinações estrutura. É óbvio que esta dupla vocação, crítico-
de uso da vida urbana associada exigem que se teórica e pragmática, reflita-se no campo disciplinar
encontre uma definição técnica e uma representação da arquitetura. Aquelas ideias características da
formal adequadas. O debate Iluminista, que é tratadística vistas anteriormente, valem aqui para
propriamente a premissa ideológica necessária representar o aspecto teórico do século, a aplicação
da evolução seguinte, será resolvido por meio da abstrata dos ‘esclarecimentos filosóficos’ no domínio
força e colocado à parte da concretude dos novos dos princípios. Querendo então buscar a manifestação
problemas. Deste ponto de vista, não é um acaso na arquitetura da vocação à práxis e qual dialética
que caiba a Diderot a intuição mais lúcida do centro esta desenvolva com a teoria, seria provavelmente
da questão: «A Arquitetura é uma arte limitada, pouco vantajoso voltar-se diretamente à prática
se diz; sim, na inteligência dos arquitetos; mas em edilícia dos Setecentos: já foi falado sobre a sua
si própria, eu não conheço nenhuma mais ampla. lenta evolução, de como o Iluminismo coincida
Deixe-se entrar no projeto a atenção ao tempo, apenas em parte com correntes singulares, como
ao lugar, aos povos, à destinação e verificar-se-á o Neoclássico. Também a obra dos chamados
variar ao infinito a proporção dos cheios, dos “arquitetos revolucionários” não representa um
vazios, das formas, dos ornamentos e de tudo exemplo convincente, primeiro pela relação complexa
aquilo que diz respeito à arte. É óbvio que os que seus projetos têm com a prática da construção,
intervalos vazios devam ser desprezíveis em relação e ainda pelo emaranhado dos fermentos históricos
aos intervalos cheios em um edifício destinado à que a eles estão ligados, e que já estão além do
conservação de grãos. O mesmo procedimento limite das definições correntes do Iluminismo, isto
vale no caso de um armazém, de um hospital, de é, preludiam àquilo que virá depois.
um arsenal e de qualquer outro edifício. Para onde
vão então aquelas proporções rigorosas das quais Ao invés disso, o campo característico, novo e típico
a imbecilidade pusilânime dos nossos artistas tem no qual a arquitetura e a teoria dos Setecentos
medo de distanciar-se? Para destruí-las para sempre comparam-se com a prática é aquele da cidade. É
exigiria apenas (e decerto é uma exigência razoável) possível afirmar que a atenção à cidade como lugar
da parte de quem deve construir um edifício, que de conhecimento e ação específica, o concebê-la,
dele se adivinhe a destinação de tão longe quanto antes disso, como contexto necessário e significativo
se possa avistá-lo. O caso da arquitetura é diverso da intervenção isolada, estão dentre as tendências
daquele das outras artes de imitação; essa não tem da arquitetura moderna que com mais clareza
14 DIDEROT, Denis. Le mo- modelos existentes na natureza baseados nos quais remontam, como a primeira manifestação explícita,
nument de la place de Rei-
ajuizar as suas produções. O que devo observar em ao Iluminismo. Foi dito, a este propósito, que
ms. 1760, cit. In: Sur l’art
et les artistes. Paris, 1967, um edifício, quando o vejo, não é a caverna que para os principais teóricos daquele período «(...) o
p. 69. [NT: tradução para o
serviu de refúgio ao homem selvagem, nem a cabana elemento isolado é sempre concebido como parte
português feita a partir da
tradução italiana realizada que construiu para si e a família quando começou a de um sistema, e este sistema é a cidade, ou seja,
por Pracchi e reportada em
civilizar-se, mas a solidez e o uso de hoje. Se o uso é é a cidade que confere critérios de necessidade e
seu texto].
novo, ou o edifício é mal feito, ou se vai distinguir-se de realidade às arquiteturas individualmente»15.
15 ROSSI, Aldo. L’architettura
de todos os outros por qualquer coisa que ainda Ainda que isto não seja verdadeiro em todos os
della città. Padova, 1966,
p. 43. não se tenha visto em outro lugar (...)».14 casos, representa, de qualquer modo, a partir da
segunda metade do século, uma linha de tendência
A cidade autêntica e passível de verificação.
Já se aludiu ao lado empírico, à vocação, à práxis das Se o debate sobre os princípios, na tratadística,
Luzes. A crítica e a especulação filosófica encontram- representava uma aplicação singular e por assim dizer
se com a nova atenção para as ciências sociais “intensiva” de aspectos especulativos, no campo
nascentes e a tecnologia em rápido desenvolvimento, da questão urbana ele atravessa “extensivamente”
assim que os inumeráveis estudos sobre o Estado, múltiplos aspectos das Luzes. Com maior razão,
a agricultura, o comércio representam o próprio portanto, verifica-se em um campo tão complexo
tempo do mesmo modo que o pensamento de o relativo caráter contraditório do tempo. Em
Montesquieu ou D’Alembert: será a Enciclopédia a outros termos, não existe uma imagem única e
reunir os dois aspectos na ordem convencional da sua coerente de “cidade do Iluminismo”: como se
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procurará argumentar, as realizações e as propostas que Lavedan dá a este termo) de Turim e aquela do
mais significativas vão formar, grosso modo, duas século XVIII são as mesmas: ele de fato considera
linhas alternativas, análogas talvez àquelas que substancialmente homogêneo um período da história
contemporaneamente opunham a imagem da cabana urbana que do início dos Seiscentos estende-se e
primitiva a uma noção ‘artificial’ da arquitetura. No compreende os Setecentos Iluminista.
caso da cidade trata-se, de um lado, da tentativa
de traduzir a atitude racionalista em regularidade Esta tese, que se baseia, sobretudo, na constatação
morfológica, junto a uma atenção precisa e até de analogias relevantes entre os arranjos urbanos
então inédita dada aos problemas técnicos; do realizados naquele arco de tempo, necessita
outro lado da teorização, coerente com certa práxis, provavelmente de um esclarecimento. A persistência,
trata-se de uma ideia naturalista e “pitoresca” da em tempos e lugares diversos, da geometria urbana
forma urbana. de Turim – o tabuleiro de xadrez ou “quadrillage”
– não é um elemento suficiente de unidade entre
Regularidade e razão os dois séculos. Na História da Cidade o esquema
em xadrez, por sua constância, “sempre” teve o
A descrição da primeira destas duas atitudes pode papel de timbre recorrente do controle racional
iniciar-se com uma citação e uma imagem. do plano, de quando em quando materializado e
ressignificado – ou negado nos fatos – pelo período
A imagem é aquela de Turim assim como ela se e pelos lugares: nos Setecentos a sua presença vale,
apresentava ao final dos Seiscentos. Havia sido sobretudo, como garantia em escala urbana daquele
concluída, naqueles anos, a ampliação da parte aspecto da racionalidade próprio à “forma urbis”
sudeste da cidade, iniciada por Carlo Emanuele I que é a regularidade. Este termo, que percorre
no início dos Seiscentos e prosseguida por todo o insistentemente as páginas então dedicadas à cidade,
século sob a orientação sucessiva, dentre outros, não é em si suficiente para separar as intenções
de Vittozzi e do Juvarra. Esta ampliação, que dá urbanas dos Setecentos daquelas dos Seiscentos:
continuidade ao sistema romano em xadrez do núcleo mas no período das Luzes a ‘regularidade’ começa
mais antigo, pertence a uma fase decididamente a fazer parte, como será melhor visto mais adiante,
anterior ao Iluminismo, representa um dos fatos de um complexo de noções diversas – técnicas,
exemplares daquela fase que Lavedan define de higiênicas, normativas – sem as quais a imagem da
“urbanisme classique”. «Do ponto de vista da cidade seria considerada somente uma inconsistente
urbanística (urbanisme) o trabalho realizado em Turim cenografia. Em outras palavras, nasce nos Setecentos
é absolutamente clássico, porque não pode haver algo de muito similar àquilo que hoje denominados
nada de mais clássico que um tabuleiro de xadrez, técnica urbanística: dentro desta nova concepção a
no qual todas as ruas retas são cortadas em ângulo ‘regularidade’ faz parte de um complexo de escolhas
reto; o cruzamento romano de ‘cardo’ e ‘decumanus’ e de operações que a preveem, mas estão bem
continua a ser a geratriz de desenvolvimento da distantes de se esgotarem na mesma.
cidade; esta não poderia ser definida barroca, e
são estas qualidades de simetria, de alinhamento A ‘imagem’ da qual se falava no início é, portanto,
e de regularidade que possibilitaram Turim de ser aquela de Turim: assumida, porém, como se viu,
considerada como modelo dos Franceses do século nos seus limites de ‘imagem’. A citação que pode
16 LAVEDAN, Pierre. Histoire XVIII»16. completá-la, para representar o aspecto teórico,
de l’urbanisme. vol. II. Paris,
não coincidirá com aquela que Lavedan reporta
1959, p. 514. [NT: tradução
para o português feita a partir Esta última afirmação é incontestável: Turim é o ao mesmo escopo. Ele, coerentemente com suas
da tradução italiana realizada
modelo urbano mais citado nos Setecentos. Também premissas, cita a conhecida passagem na qual
por Pracchi e reportada em
seu texto]. Rousseau (do qual em verdade se esperava um gosto Cartesio constata a superioridade das cidades
diferente) a confronta favoravelmente com Paris: projetadas unitariamente sobre aquelas crescidas
«A decoração externa que tinha visto em Turim, a no tempo, vale dizer, a superioridade de uma ordem
beleza das vias, a simetria e o alinhamento das casas manifesta sobre qualquer ‘irregularidade’. Para
17 Ibid., p. 199. faziam-me buscar em Paris algo a mais»17. Aquela aquilo que diz respeito aos Setecentos Iluminista,
que, ao invés disso, pode ser colocada em discussão a citação é provavelmente imprópria. A ideia de
é a afirmação de que a “classicidade” (no sentido cidade de Cartesio representa (como no contexto
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do “Discours de la Méthode”, o seu papel de morfologia de Salento não apresenta qualquer valor
exemplificação confirmaria) a manifestação particular simbólico especial, mas mais ‘modestamente’, mira
de um projeto unitário de racionalidade universal: orientar a práxis. O tom pedagógico tem um valor
daquele “esprit de système” dos Seiscentos que, normativo subentendido: por analogia com o caráter
como d’Alembert advertia é, em princípio, antitético de todo o filão literário do qual o “Télémaque” faz
ao “esprit systematique” do pensamento Iluminista. parte, podemos falar, no caso em questão ou em
Na urbanística dos Setecentos a mesma geometria, outros análogos, de “cidade pedagógica”.
as mesmas exigências de regularidade morfológica
e de repetição tipológica expressas por Cartesio A passagem acima reportada confirma a uma leitura
não descendem de considerações filosóficas gerais, atenta o quanto foi dito, a propósito de Turim,
mas realizam, deveras, uma racionalidade setorial, sobre a noção de ‘regularidade’. Os conceitos de
técnica, motivada não por um sistema especulativo, beleza, regularidade, comodidade e funcionalidade
mas por uma atitude racional dominante. Parece, por higiênica podem fazer referência a uma transcrição
consequência, mais significativo citar, por exemplo, em escala urbana da tríade de Vitrúvio, mas a
a descrição que Fénélon, no limiar do século XVIII, “utilitas” Iluminista é, neste caso, muito mais próxima
faz de uma imaginária cidade de Salento. O seu ao nosso conceito de higiene urbana e edilícia. A
construtor – ele escreve - «(...) não permitiu que “regularidade”, que se não equivale à beleza ao
para os templos grandes ornamentos da arquitetura, menos a garante, é o resultado formal da adequação
como as colunas, os frontões, os porticados. Ele deu geral, técnica e morfológica, da cidade à vida que
os modelos de uma arquitetura simples e graciosa ali se desenvolve. Um termo não é dado sem os
para realizar, em pouco espaço, uma casa cômoda outros: «(...) são necessários mercados, fontes que
e agradável para uma família numerosa; para que realmente jorrem água, cruzamentos regulares, salas
a cidade adquirisse um aspecto são, as habitações de espetáculo; é preciso alargar as vias estreitas e
fossem espaçadas entre si, a ordem e a limpeza infectas, descobrir os monumentos que não são vistos
18 FÉNÉLON, François. Té- pudessem ser mantidas facilmente e a manutenção e construí-los visíveis»19. A desordem característica
lémaque. Paris, 1699, livre
fosse pouco dispendiosa (...) ele proibiu muito desta passagem de Voltaire é significativa da unidade
XII. [NT: tradução para o
português feita a partir da severamente o número excessivo e a magnificência na qual se observam os aspectos do problema
tradução italiana realizada
das habitações. Estes diversos modelos de casa, urbano há pouco ‘descobertos’. O rigor morfológico
por Pracchi e reportada em
seu texto]. adequados às dimensões das famílias, serviram do tabuleiro de xadrez do qual Turim é o modelo,
19 VOLTAIRE. Des embellis-
para embelezar com pouca despesa uma parte da responde a intenções práticas, é, por conseguinte,
sements de Paris, 1719. In: cidade e torná-la regular; enquanto a outra parte, privado de particulares significados iconográficos. Por
Oeuvres Complètes. Paris, já completada seguindo o capricho e o fausto dos quanto possa parecer paradoxal, rigor racionalista
1896, vol. XXIV, p. 181. [NT:
tradução para o português particulares, não obstante a sua magnificência, e empirismo são dois aspectos da mesma atitude
feita a partir da tradução ita- tinha uma disposição menos agradável e menos ideológica. Demonstra-o de modo exemplar a
liana realizada por Pracchi e
reportada em seu texto]. cômoda».18 reconstrução de Lisboa, que é talvez a realização
mais significativa daquele filão racionalista e
Este segmento faz parte do “Télémaque”, um “geometrizante” do qual nos estamos ocupando.
romance pedagógico publicado em 1699. Nas
páginas que se seguem à passagem citada, são Em 1755, a cidade, capital de um país à margem
descritos com minúcia até os ordenamentos e os do movimento das Luzes, foi arrasada quase que
costumes desta cidade que, no entanto, apesar da completamente por um terremoto. A escolha de
referência fácil, faz parte de toda uma outra categoria reconstruí-la segundo um único plano pré-estabelecido
ideal que não a Amaurota de Thomas More, ou foi uma das primeiras e mais significativas decisões
as outras tantas cidades imaginadas pelas utopias do Marquês de Pombal, pouco após tornar-se o
literárias dos séculos precedentes. Na Salento de secretário de estado de Portugal, cuja figura política
Fénélon agem sob o disfarce narrativo as ideias que exemplifica, com grande proximidade, os traços do
teriam animado o século que então se abria. Essas, “déspota esclarecido” característico da ideologia
mais que descender da Utopia parecem prenunciar dos Setecentos. A decisão, não obstante referida a
o espírito reformista do Iluminismo amadurecido, toda a cidade, concretizou-se plenamente apenas
antecipar uma linha de pensamento que tende a se na parte central e mais antiga, a “Baixa”: em menos
tornar uma ação prática a incidir no corpo social. A de um ano do terremoto foram apresentados seis
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A arquitetura do Iluminismo: alguns aspectos da ideologia e da práxis
projetos, apenas parcialmente alternativos entre também lá onde a estagnação das ideias e a vontade
si, para a reconstrução daquela zona. Do ponto explícita do poder bloqueavam o caminho às
de vista formal, eles apresentam diferentes graus manifestações filosóficas mais “escandalosas” dos
de compromisso entre duas alternativas: de um novos tempos. Não é, portanto, incompreensível
lado a permanência dos pilares do sistema urbano que Lisboa constitua assim uma ilustração precisa
precedente – as praças, as igrejas, alguns eixos dos princípios expressos pela Enciclopédia. No
viários – de outro a superposição e o domínio de confronto, os dois fatos arriscaram reciprocamente
um princípio abstrato de construção urbana – o o próprio sentido e o próprio valor: o texto teórico,
‘quadrillage’ para todos os projetos – mais ou esquemático e aparentemente aterrador em seu
menos deformado do contexto sobre o qual se caráter abstrato, adquire consistência de guia prático
assentava. das ações, o seu tom torna-se aquele da certeza
normativa; simetricamente, a cidade construída
O desenho adotado e realizado é, dentre todos, esclarece a própria exemplaridade e generalidade
aquele de mais rígida impostação: não busca uma no quadro urbanístico de seu próprio tempo.
solução de compromisso com as memórias da
cidade destruída, mas sobrepõe a elas a própria É fácil objetar a este ponto que o tabuleiro de xadrez
lógica autônoma compositiva. Uma vontade de de Lisboa, enquanto enésima reproposição ‘técnica’
projeto unitária controla cada aspecto da parte de um esquema morfológico permanente poderia
da cidade a reconstruir, da malha viária aos tipos coincidir apenas casual e superficialmente com alguns
edilícios uniformes, até à repetição dos detalhes princípios de construção urbana característicos dos
decorativos. Este projeto, como foi dito, é de 1756. Setecentos. Já foi dito como cada época se reaproprie
É interessante confrontá-lo com o verbete “cidade” dos princípios gerais da arquitetura; no caso em
da Enciclopédia, escrita poucos anos antes, que questão, a objeção é desmentida pelo significado
descreve um modelo urbano quase idêntico a Lisboa: que se quer explicitamente dar à empreitada e, sobre
«Para que uma cidade seja bela, é necessário que outro plano de considerações, pelas modalidades
as vias principais (...), na medida do possível sejam particulares da sua realização.
perpendiculares umas às outras, a fim de que os
cantos das casas sejam em ângulo reto; que sejam A decisão de reconstruir ao menos a parte central
largas oito toesas, e quatro toesas as vias pequenas. e representativa da cidade destruída, segundo
É ainda necessário que a distância entre uma via e um plano unitário, não era certamente a mais
aquela que corre paralela seja tal que entre uma fácil, dificultada pela oposição dos proprietários
e outra caibam duas casas de burgueses, uma do solo, temerosos pelos seus próprios interesses.
20 de JAUCOURT, Louis. voltada para uma via e a outra para a via paralela Impondo-a, Pombal assumiu conscientemente o
Verbete “cidade”, na Encyclo-
pédie .... Paris, 1751. [NT:
(...) Lá onde as estradas se intersecionam se abram papel do “déspota esclarecido”: num decreto de
tradução para o português praças, entre as quais a principal é aquela na qual 1758 ele detecta com orgulho, usando uma fórmula
feita a partir da tradução ita-
liana realizada por Pracchi e
desembocam as grandes vias; e se decorem estas muito característica, como em Lisboa se tenha
reportada em seu texto]. praças mantendo a uniformidade das fachadas preferido «a utilidade pública da racionalidade e
21 cit. In: FRANÇA, José
dos edifícios ou das casas que as circundam e com da estética da capital» aos «interesses privados»21.
Augusto. Una città estátuas e fontes. Se então as casas forem bem O esquema morfológico usado torna-se assim o
dell’Illuminismo. La Lisbona
construídas, com fachadas adornadas, restará bem símbolo dos tempos, o lugar destinado pela “clarté”
del marchese di Pombal. trad.
it. Roma, 1972, p. 134. pouco a desejar-se.” 20 das Luzes que sucede à obscuridade e à desordem
da cidade medieval desaparecida. A confirmação
É improvável que os construtores de Lisboa jamais do espírito decididamente antifeudal, se não já
tenham visto um volume da Enciclopédia. Engenheiros burguês, com o qual foi conduzida a empreitada é
militares em um país distante dos centros da nova o nome de “Praça do Comércio” atribuído à praça
cultura estavam bem longe daquele ideal de arquiteto- principal da nova cidade, que é uma denominação
filósofo caro aos teóricos iluministas; participavam, absolutamente inédita, mas perfeitamente coerente
ao invés disso, nos fatos, à ideologia geral, prática com o espírito geral da reconstrução. Esta favorece-se
e reformista, que na metade dos Setecentos era também das técnicas mais avançadas então em uso:
naquele ponto difusa até nas províncias da Europa sistema de esgotos, pavimentação de vias, e até uma
culturalmente mais descentralizadas, penetrando estrutura antissísmica para todos os edifícios. Outro
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A arquitetura do Iluminismo: alguns aspectos da ideologia e da práxis
fato novo e significativo é a adoção de uma espécie urbanística. É necessário recorrer novamente ao
de pré-fabricação de toda uma série de elementos tratado de Laugier para encontrá-la teorizada talvez
(portas, janelas, molduras, etc.) possibilitada pela pela primeira vez, certamente em uma formulação
normatização tipológica e decorativa dos edifícios extremamente precisa. «É necessário considerar uma
residenciais: a divisão do trabalho que então estava cidade como uma floresta. As ruas da primeira são
se manifestando nas primeiras manufaturas, entra como os caminhos da segunda, e devem ser abertas
assim no canteiro, religando simbolicamente Lisboa do mesmo modo. O que faz a beleza essencial de
às raízes econômicas e sociais de todo o século um parque é a multidão de vias; as suas larguras,
XVIII. seus alinhamentos; mas isto não basta: é preciso que
um Le Notre desenhe seu plano, que insira o gosto
Parque e floresta e o engenho, que ali se encontrem todos juntos a
ordem e a extravagância, simetria e variedade; (...)
Este ramo da urbanística dos Setecentos definido Quanto mais houver escolha, abundância, contraste,
acima não se exaure decerto com Lisboa; ela é apenas até mesmo desordem nesta composição, mais o
o exemplo mais significativo, mais linearmente parque terá as belezas estimulantes e aprazíveis (...)
coerente com as premissas ideológicas gerais. O O pitoresco pode ser encontrado no tapete de um
outro aspecto do racionalismo no campo urbano, ao prado, como na composição de um quadro.
qual se havia aludido no início, é o desenvolvimento
lógico daquele novo gosto e sensibilidade em relação Coloquemos em prática esta ideia, e que o desenho
à natureza, manifesto ao final do século precedente, dos nossos parques sirva de plano para a cidade.
que nas suas expressões mais amadurecidas segue Trata-se apenas de aplainar o terreno, e de imaginá-
sob o nome de “pitoresco”. los com o mesmo gosto dos caminhos que se
tornarão ruas, e das encruzilhadas que serão as
«Quase ao final dos Seiscentos a natureza, como praças. Temos cidades cujas vias são perfeitamente
contexto animado por águas, árvores, céu, torna- alinhadas: mas como o desenho foi elaborado por
se um componente urbanístico essencial. Para pessoas de pouco espírito, ali reina uma precisão
Carlo Fontana, o Tevere é a geratriz da paisagem insípida e uma fria uniformidade que faz recordar
urbana, assim como São Pedro é o núcleo histórico- com nostalgia da desordem das cidades que não
monumental de Roma. Os arquitetos que vêm têm nenhum tipo de alinhamento. Tudo ali se
depois dele inventam arquiteturas abertas, com refere a uma única figura: trata-se de um grande
corpos e alas variadamente articuladas, e galerias, paralelogramo atravessado no comprimento e
porticados, escadarias, terraços, parques habitados na largura por linhas em ângulo reto. Vê-se em
22 ARGAN, Giulio Carlo. por arquiteturas e por estátuas “de jardim” (...) a toda parte apenas uma enfadonha repetição dos
L’Europa delle capitali. 1965, mesmos objetos; e todos os bairros se assemelham
p. 106.
arquitetura, enfim, é uma segunda natureza, que
se enxerta sobre a primeira e a amplia com a obra a tal ponto que neles se se engana e se perde.
23 LAUGIER, Marc-Antoine.
da imaginação humana: a natureza criada é o Sobretudo, evitemos os excessos de regularidade
Essai... cit., p. 222. [NT: tra-
dução para o português feita ambiente originário do homem; a arquitetura, cuja e de simetria».23
a partir da tradução italiana
forma última é a cidade capital, é o ambiente da
realizada por Pracchi e repor-
tada em seu texto]. sociedade civil».22 Parque e floresta são os termos chave desta visão.
O parque, obviamente na sua versão “pitoresca”,
A idade do Barroco entre os Seiscentos e os Setecentos é a cidade como deveria ser; a floresta, a cidade
e, portanto, contemporânea ao estabelecimento e à existente: a saber, no tempo de Laugier a cidade
difusão do Iluminismo, já se presta à leitura da cidade de características medievais, cuja morfologia foi
como análogo social da natureza, vale dizer, do ponto de modo geral pouco marcada pelas intervenções
de vista da vida que ali se desenvolve, como segunda renascentistas e barrocas. A ‘floresta urbana’, a
natureza. Nos fatos arquitetônicos aos quais acena segunda natureza da sociedade civil, não é análoga
Argan, esta ideia está implicitamente contida; mas qualitativamente à primeira e verdadeira: esta é
na metade dos Setecentos ela aflora à consciência, princípio e referência de todo saber, enquanto a
torna-se explícita e antes, sentida como verdadeira na outra, a cidade medieval, é pouco mais de um
sua dimensão literal de imagem, portanto, teorizada parêntesis obscuro na história humana. A abertura
e proposta como premissa conceitual da práxis das vias no seu corpo é o equivalente urbanístico
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A arquitetura do Iluminismo: alguns aspectos da ideologia e da práxis
da luta entre tradição e progresso; o existente não dos instrumentos de controle do crescimento
constitui um obstáculo teórico: «(...) Paris é, em urbano: «A cidade burguesa está (se realiza e se
seu conjunto, tudo menos uma bela cidade (...) As exprime) na continuidade viária, como elemento
avenidas são miseráveis, as ruas mal talhadas e muito funcional e representativo e como instrumento
estreitas, as casas construídas de modo elementar e para “ignorar” as zonas subalternas que daquela
trivial, as praças poucas e em si pouco significativas, continuidade são investidas. Tal operação garante
24 Ibid., p. 210. os edifícios quase todos mal dispostos (...)».24 a ruptura da autossuficiência da estrutura urbana
de origem agrícola desenvolvendo as sugestões
A imagem da cidade-floresta encontra uma notável e as inovações daquela mercantil, acentua o
fortuna na segunda metade do século, e chega até contraste entre cidade e campo até ignorar o
aos Oitocentos, sendo englobada no Dicionário segundo termo e sanciona uma diferenciação
de Quatremère de Quincy: este retoma quase tipológica (nos edifícios) e de posição (nas zonas)
textualmente os argumentos de Laugier. A Turim, que corresponde à acentuada divisão do trabalho
modelo urbano do primeiro Setecentos, o Dicionário dentro do assentamento urbano».26
contrapõe agora Gênova, “composição pitoresca
25 QUATREMÈRE DE QUINCY, ideal”25. A imagem que Quatremère de Quincy Se, portanto, até os Oitocentos reunir-se-ão
Antoine-Chrysostome. Dizio-
propõe é, na realidade, coerente aos resultados sistemas viários análogos àqueles observados até
nario storico dell’architettura.
Paris, 1832, verbete “cida- “naturais” da primeira cidade especulativa (sem aqui, é claro que o seu sentido será agora muito
de”. [NT: tradução para o
que esta autorize obviamente a inferir relações diferente. A noção de cidade-floresta, considerada
português feita a partir da
tradução italiana realizada mecânicas de causa-efeito): objetivamente, no do ponto de vista da transição da cidade mercantil
por Pracchi e reportada em
entanto, aceita e sanciona a redução em curso à cidade burguesa conquista, frente aos sucessivos
seu texto].
dos instrumentos de controle da forma urbana; desenvolvimentos, um duplo significado ideológico:
26 AYMONINO, Carlo. Origini
não por acaso conclui o “verbete” exorcizando o de um lado sanciona a incompreensão pela cidade
e sviluppo della città moder-
na. II ed. Padova, 1971, p. improvável fantasma de uma normativa urbanística pré-existente, vista como material indiferente sobre
31. que, como também ressalta, seria o único meio o qual operar; de outro oferece o instrumento
27 TAFURI, Manfredo. Pro- para realizar em modo não parodístico a ideia de teórico para sustentar e sancionar “a inerência
getto e utopia. Bari, 1973, cidade que apoia. da ambiguidade e da desordem” 27 à cidade
p. 22.
burguesa.
Mas o futuro pertence àquilo que a imagem de
Laugier exprime para além do disfarce ideológico. «O que significa, no plano ideológico, assimilar a
A teoria e a práxis da “cidade geométrica” eram, cidade a um objeto ‘natural’? De um lado, em tal
já na segunda metade dos Setecentos, condenadas assunto transparece uma sublimação das teorias
à inatualidade e à extinção. Intervenções como fisiocratas: a cidade não é lida como estrutura
aquela de Lisboa (mas muitas outras poderiam que determina, com os próprios mecanismos de
ser citadas, de Berlim a Edimburgo, até ao bairro acumulação, a transformação dos processos de
teresiano de Trieste) representam tentativas, desfrute do solo e das rendas agrícolas e fundiárias.
mais ou menos plenamente bem sucedidas de Enquanto fenômeno assimilável a um processo
exercer um controle unitário sobre uma parte “natural”, a-histórico porque universal, vem
consistente da cidade, compreendendo em tal desvinculada de toda consideração de natureza
controle não apenas os edifícios representativos, estrutural. O “naturalismo” formal serve em
mas ainda o ‘montante’ residencial. É óbvio que a um primeiro momento para persuadir acerca da
tais intervenções corresponda também um controle necessidade ‘objetiva’ dos processos postos em
político unitário sobre a propriedade, o uso e andamento pela burguesia pré-revolucionária; num
a destinação do solo. Nos Setecentos a global segundo momento, para consolidar e proteger
reviravolta econômica e social manifesta-se também de toda ulterior transformação as conquistas
28 Ibid., p. 10. sob um novo arranjo do regime de propriedade e alcançadas».28
de uso do solo urbano. Sem entrar no mérito dos
tempos e dos modos de tal transição, permanecendo É claro, portanto, como prosseguindo por este
no nível do seu manifestar-se na arquitetura da caminho se ultrapasse o Iluminismo como idade
cidade, será possível constatar nos Oitocentos uma de transição e se entre na época do poder burguês
progressiva contração na importância e na eficácia constituído.
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