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1995
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2012
***
– Ficamos aqui hoje, disse Kassule, amanhã cedo vamos para a Ilha, vais
ver, lá é melhor. Agora vamos cubar.
Se virou para o outro lado. Himba ainda ficou um bocado a pensar. Fui
mesmo burra, de dia podia ter apanhado uns jornais antigos ou uns cartões
num contentor de lixo, devia haver bué de coisas dessas mais ou menos
limpas pela cidade. Estaria mais confortável à noite. Kassule parecia não
precisar de nada, já tinha caído no sono.
Dormiram quando a cidade se aquietou um pouco. Rugia, no entanto,
nunca ficava calada. Ela já tinha aprendido. Talvez na Ilha fosse tudo mais
calmo, podiam descansar sem se sobressaltarem com as aceleradelas de um
carro potente ou uma moto.
Esperanças.
A luz do sol rompendo nuvens despertou a miudagem. Uns resmungavam
e continuavam a dormir. Kassule e Himba se levantaram, esfregaram os
olhos, caminharam para a avenida marginal, tomaram o caminho da Ilha,
rodeando a baía. A água permanecia calma, parada mesmo, exceto quando
um peixe saltava e redemoinhava um pouco. Para as ondinhas pequenas se
esbaterem e voltar de novo o céu a se mirar na água estática. Ela deixava o
kandengue impor o seu rítimo de marcha, ele é que era o deficiente, achava
ela, mas andava rápido. E foi contando o que sabia, distâncias entre um
ponto e outro, explicações sobre a fortaleza, adiantando que começou a ser
construída ainda no século XVI, mas como era possível ele ter a noção de
séculos?, contou do istmo que antes fora uma ponte mas no tempo do
colono resolveram pôr cimento e pedras até ao fundo do mar, cortando a
passagem das águas da barra da Corimba até à baía. A Ilha de facto passou
a ser uma península ou restinga, já ouviste falar da restinga do Lobito?, sim,
ela tinha ouvido, o pai falou. É igual, disse Kassule. Como a do Mussulo, lá
é o princípio. Ou o fim…
– Como sabes todas essas coisas? – perguntou ela.
– Sei muito mais. As pessoas me contam e eu não esqueço – murmurou,
como se fosse só para si: – Nunca esqueço nada, esse é o problema que
estou com ele.
Mas continuou nas explicações, pronto, agora já estamos na Ilha, se nota
logo por causa das casuarinas, já tinhas visto estas árvores? E ela disse não,
pois nunca tinha visto casuarinas, parece só gostam de viver junto da água
do mar, são salgadas, experimenta provar as folhas, que nem parecem
folhas, são fininhas e compridas como pelos de gigante, prova um desses
pelos e vais ver, são salgados. Ela obedeceu e provou, desconfiada.
Engraçado, ele tinha razão, havia um toque de sal para lá do sabor de folha.
Aquelas bolinhas castanhas são os frutos, nunca provei porque picam, mas
aposto são salgados. E se morderes o tronco também deve ser. Andaram
mais, andaram muito. Kassule parecia não se cansar, apesar de ter só uma
perna e também gostava de falar, não parava. Ela tinha fome e sede.
Sobretudo sede. Disse a Kassule.
– Vamos avançar mais um pouco, é onde tem mais casas. Já passámos a
igreja, não falta muito para um sítio com árvores altas, não são casuarinas,
acho aí nos dão água.
Em breve de facto encontraram do lado direito da estrada um conjunto de
casinhas pequenas, com quintal, mas dispostas de maneira a formar um
pequeno largo cheio de sombra. Viram uma senhora sentada num banco,
fora de casa mas perto do muro, se percebia logo qual era a sua habitação,
com uma menina no colo, a quem ela fazia trancinhas. A menina por vezes
queixava com doçura, dói. E a senhora dizia suavemente, sim, às vezes é
preciso doer para se ficar bonita, tens de aprender. Os canucos se
aproximaram da senhora e Kassule fingiu tossir para chamar a atenção e
disse:
– Bom dia, minha senhora. Se não incomodasse muito, podia nos dar
água? Estamos a vir a pé da cidade e temos sede.
A senhora disse logo, claro, água nunca se recusa a ninguém. Mandou a
menina a quem entrançava o cabelo, vai só rápido lá dentro dizer à Luzia
para trazer água. Enquanto esperavam, ela perguntou:
– Vêm da cidade? A vossa família?
Kassule coçou a cabeça, olhou Himba, é uma estória um bocado
comprida. Mas resumindo, eu sou do Kwanza-Sul, vim para Luanda como
deslocado de guerra, caí numa mina e fiquei sem a perna, a minha mãe
morreu. E aqui a Himba chegou ontem do Huambo. Caíram numa
emboscada, se perdeu da família toda, não sabe o que lhes aconteceu. E eu
vou levá-la para um sítio onde se pode dormir melhor do que na Marginal
ou na Mutamba, que foi onde ela estava a dormir. Himba se espantou da
capacidade de síntese do amigo, esse miúdo mais novo que ela, não só
atrevido, dialogando com toda a gente, como sabia falar muito bem para a
idade dele, e sem dizer nenhuma palavra ofensiva, nenhuma asneira…
Entretanto chegou a água, uma cafeteira e dois copos.
– Luzia, então não havia outro jarro para trazer a água? Numa cafeteira.
Espero que não saiba a café.
– Não faz mal, senhora – se antecipou Himba. – Bebemos e agradecemos.
Estamos com muita sede.
– Sede e fome, não?
Olharam um para o outro, as mãos inquietas, sem sítio onde pararem. Não
podiam mentir. Kassule disse, também temos fome, é verdade, mas só
íamos pedir água.
– Luzia, primeiro traz dois bancos. Depois dois pães e chá aqui para as
crianças. O mais rápido que puderes. Acho, a água ainda está quente, não
precisas de aquecer.
E recolheu de novo a menina no colo, voltando a lhe fazer trancinhas
apertadas. Esta se lamuriava, mas mais parecia ser um hábito que
propriamente uma prova de dor.
– É sua filha? – perguntou Kassule.
– Não, é de uma vizinha. Mora ali. A mãe foi trabalhar e achei que podia
ajudar. Estava com o cabelo todo desarrumado. Vá lá que não tens
piolhos…
– Não tenho mesmo – queixou a menina.
– Sei, estou só a brincar. Mas contem-me lá a vossa estória completa, um
de cada vez. São parentes?
Enquanto comiam, contaram as respetivas desventuras, evitando muitos
detalhes, mas explicando de onde vieram e de que tipo de famílias, ele de
uma camponesa, ela de pai professor e mãe enfermeira. É muito triste, disse
a senhora no fim do relato.
Avisou-os de alguns perigos da Ilha, como de qualquer zona urbana,
afinal. Disse que tinha um filho, o mais velho, já a trabalhar, e duas meninas
mais novas, estavam na escola. Não falou do marido, não lhe perguntaram.
Os kandengues tinham descansado, comido, Kassule disse, Himba ainda
temos de andar. Se despediram da senhora, que para eles a partir desse dia
ficou a ser conhecida como a senhora boa das trancinhas, a qual senhora
ainda lhes disse:
– Olhem, vão ter muitas dificuldades. Uns mais outros menos, todos
temos. Mas se estiverem bem mal um dia, com um problema grande ou com
muita fome, venham aqui. Se for coisa mesmo séria, vejam lá.
Prometeram que não a iam incomodar com coisas sem importância,
tinham sido educados como se comportarem, não só nas boas situações,
também nas difíceis. Claro, o orador foi Kassule. Ela apenas agradeceu com
o seu melhor sorriso.
No caminho, já próximos do restaurante que era o alvo do menino, este
disse, vês aquele esporão? Eles chamam aqui aqueles muros de pedras que
vimos no caminho, são muitas pedras para não deixarem o mar levar toda a
areia e invadir a Ilha.
– Não são pedras, são blocos de cimento.
– Sim, no princípio tem algumas pedras depois tem esses blocos. Sabes
quanto pesa cada um? Quinhentos quilos. O mar, mesmo quando está muito
bravo, desconsegue de lhes levar, nem mexer. Os outros dizem, esses blocos
foram postos há muito tempo, nenhum que desapareceu. Ali, no meio, vais
ver, há o buraco de que te falei. Dá para dormirmos muito bem, protegidos
do frio, só com alguns caranguejos às vezes a nos tocar. Não tenhas medo,
não mordem... Claro, se houvesse cobertor era melhor. Mas, paciência,
somos filhos da guerra.
O restaurante ficava a uns vinte metros do princípio do esporão, virado
para a contracosta. Parece, havia também restaurantes do lado da baía, mas
pequenos, não dava para a concorrência com os gatos e cães, piada do
canuco. Este era um restaurante grande, com muita frequência e portanto
restos abundantes no contentor para lixo que tinha por trás da cozinha. No
princípio do esporão havia duas árvores de sombra, bom sítio para se
sentarem e esperarem haver restos do almoço.
Mas quando Kassule queria mostrar o lugar de mais perto, notaram,
alguém dormia no sítio que ele tinha descoberto. E havia três rapazes na
água, nadando, brincando, roupas na areia.
– Não te preocupes, quando lhe cheirar a comida, ele vem para aqui e
depois ocupamos a nossa gruta.
– Aquilo não é gruta nenhuma… Mas ele vai mesmo sair?
– Vai.
Se sentaram em baixo das árvores e Himba não se cansava de olhar o mar.
Não era como do lado da baía, este mar tinha ondas que faziam um barulho
grande, mas hoje até está calmo, disse ele, quando vem a calema, aí é que
ele canta.
A um momento dado, Kassule falou:
– Há vezes que já começo a esquecer a cara do meu pai. Da minha mãe
não, dessa lembro sempre. Ele andava na guerra, muito tempo longe, vinha
por períodos curtos.
Himba só abanou a cabeça em concordância. Para ela estava tudo muito
fresco, lembrava cada traço da cara da mãe, do pai, dos irmãos. Depois se
abriu com Kassule, como se confessasse:
– Não quero culpar o meu pai, é verdade, não quero mesmo. Mas também
estou sempre a pensar que se saíssemos antes tínhamos chegado todos
juntos a Luanda. O meu pai decidiu, hoje não vamos, partimos só amanhã,
vai haver outro camião. O camião do dia anterior passou, o nosso caiu na
emboscada…
– Nem podes pensar assim. Os homens dos bandos às vezes ficam muitos
dias de emboscada na mata, sabem que algum carro vai passar. Tiveram
azar, eles estavam à vossa espera. Na véspera já podiam estar lá e aconteceu
qualquer coisa que impediu o ataque. Na véspera até podia ter sido pior,
com azar.
– Pior?
– Estás viva, sem ferimentos… Uma sortuda.
– E a minha família?
Kassule não respondeu. Haveria mesmo resposta? O que era mais
importante? Entre os dois, ele estava pior, perdera uma perna e também a
família. Mas não disse nada, porque, apesar de ser muito novo, sabia, nada
servia de consolação à desgraça de outra pessoa. Os espíritos rodeavam a
amiga, lhe punham ideias complicadas na cabeça e ele só podia ajudar
estando presente, mesmo se calado, para ameaçar os espíritos com o seu
pau no caso de eles a incomodarem demais. Os espíritos se afastaram,
intimidados, talvez para cima das casuarinas, sítio preferido deles.
Himba tentou um sorriso, aliviando a conversa. Apontou o moço que
ocupava o lugar preferido de Kassule.
– Aquele vai dormir todo o dia?
– Só acorda quando o restaurante começar a mandar o cheiro de comida
para fora. Vais ver, aí ele se agita todo… Por enquanto também não faz mal.
Estamos melhor aqui que nos rochedos.
Não eram rochedos, quis ela dizer, eram blocos de cimento. Mas ficou só
calada, controlando os kazumbis se agitando de novo à volta. Na Gabela
devia haver muitas grutas em rochedos, era terra de montanhas, como lhe
dissera Kassule, igual que na terra dela, só com mais floresta e plantações
de café. Portanto, ele tinha todo o direito de chamar aos blocos o que
quisesse.
Até chamar de seio materno, se lhe desse para aí.
Como estavam encostados a uns restos de parede, à sombra, com o
barulho sossegado do mar, adormeceram. Também era preciso dizer, a areia
era mais mole e cómoda que o cimento onde deitaram de noite. Kassule
nem se preocupava, sabia, acordariam quando o odor a comida os
despertasse.
Despertar de esfomeados.
Assim aconteceu, muito tempo depois. Kassule, mais habituado a essas
lides, lhe tocou no braço, cheira então, já estão a assar carne ou lá o que é.
– Costeletas – murmurou ela. – Costeletas de porco.
– Gostas?
– Muito. O cheiro é esse. Lembro quando a minha mãe fazia. Costeletas.
Repararam, os miúdos que estavam a nadar tinham ido embora enquanto
eles dormiam. Eram mesmo banhistas então, menos concorrência para os
restos, bom sinal, disse o kandengue. A sombra no buraco entre os blocos
mexeu e em breve o rapaz se levantou, bem maior que eles. Devia ter uns
dezoito anos ou mais, calculou Himba. Era pescador ou um refugiado? Não
tardariam em saber, imaginava ela.
– Kassule, aquele ali também vem procurar comida?
– De certeza. Viste que acordou com o cheiro? É porque estava à espera
da hora.
Uma ruga de preocupação vincou o rosto da menina.
– Aqui se luta pela comida?
– Sim, claro. Como em todo o lado.
Himba ia dizer não é verdade, não se luta em todo o lado, mas calou,
porque Kassule só conhecia este mundo dos meninos de rua, dos refugiados
sempre a guerrear pela sobrevivência. Era o mundo a que ela agora
pertencia. E nem lutar sabia. Certamente o grandalhão ia se aproximar, os
enxotar, xê, saiam daí do meu lugar, e apanhar tudo o que caía no contentor.
Só iria embora quando estivesse mesmo farto e eles podiam então
aproveitar. Se houvesse sobras. Num mundo de guerra é assim que
acontece.
Mas, por enquanto, o outro estava mais interessado em tratar da higiene
corporal. Tirou a tichârte, deixou-a ao lado dos chinelos de praia, entrou de
calção na água. Depois de uns mergulhos, sentou no chão molhado e
esfregou todo o corpo com areia. Voltou a mergulhar e permaneceu muito
tempo em baixo de água. Ainda se esfregou um pouco, para perder toda a
areia e então saiu da água, ficando ao sol para secar. Era um tipo habituado
às rotinas, sabia, ia demorar muito até no restaurante começarem a deitar
fora a comida, tinha tempo para secar o corpo e só então voltar a vestir a
tichârte e calçar os chinelos. Era musculado e se alimentava bem, achou
Himba, muito diferente dos outros meninos que vira a dormir nas ruas.
Talvez não fosse refugiado, talvez mesmo pescador ou algum morador da
Ilha que tinha dormido pouco à noite. E Kassule estivesse enganado. Seria
bom.
Porque, com aquele corpo, seria um concorrente perigoso.
Finalmente o rapaz achou era tempo de se vestir. E se aproximou deles.
Nem ligou a Kassule, só mirou Himba. Ela desviou a vista, não devia dar
confiança a estranhos, a mãe lhe ensinara.
O outro se sentou ao lado da menina, sem cumprimentar. Ela agora estava
no meio dos dois. Nem bom dia ou boa tarde, nada, sentou apenas. Um mal-
educado e definitivamente um sem-teto também. Forte concorrência,
portanto. Ela nem ousava comentar mais nada com o amigo, a presença do
grandalhão intimidava.
– Está a cheirar a carne – disse enfim o intruso, metendo conversa. – Ou é
peixe? Estou farto de peixe.
– Deve haver carne e peixe, vários pratos – disse Kassule, como quem
sabe do assunto.
Não acrescentou, a minha amiga acha é costeleta, como ela temia, porque
a obrigaria a falar com o estranho, pelo menos facilitaria alguma pergunta
dele. O outro acenou com a cabeça, concordando. Restaurante é coisa fina,
tem vários pratos, também sabia isso. A pergunta dele tinha sido mesmo
para meter conversa. Não insistiu mais em perguntas, nem do género,
miúda, nunca te vi por aqui na praia, vieste de onde? Himba agradeceu aos
deuses do mar ele não se aproximar mais dela.
Os carros dos clientes chegaram, só dava para os ouvir porque paravam
do outro lado, no parque e ao longo do passeio. As vozes se elevaram no
restaurante e também gritos de ordens para a cozinha. Faltava ainda um
bocado para os pratos serem retirados das mesas e os restos deitados nos
baldes de lixo na cozinha e daí para o contentor. Os dois rapazes conheciam
os rítimos e por isso esperavam com paciência. Himba é que se mexia
muito, afinal nunca mais vem o pitéu? Outro miúdo, um pouco mais velho
que ela, chegou da rua, disse boa tarde, se sentou ao lado de Kassule. A
menina estava quase em pânico. Se aparecerem muitos, como vamos dividir
os poucos restos? Ou haveria o suficiente? Não fazia a menor ideia e era a
incerteza que lhe aumentava a sensação de fome e provocava cãibras na
barriga.
– Ouvi um a pedir café, já não falta muito – disse Kassule.
– Tens bons ouvidos, miúdo – cumprimentou o grandalhão.
Himba lembrou, o pai, lá em casa, também pedia o café no fim do
almoço. E a mãe sempre reclamava, já tomaste café de manhã, uma caneca
cheia, mas o pai insistia, sorrindo, depois de comer se deve tomar um café
pequeno mas mais forte, isso é moda masé dos brancos, ripostava a mãe.
Brincadeira que Himba ouvia desde muito pequena, brincadeira deles os
dois, como todos os casais devem ter, supunha, nunca se cansando de
repetir os mesmos ditos. Há muito tinha aprendido a explicação, de facto
isso era hábito trazido pelos brancos, eles nem costume de tomar café
tinham, só os do Norte ou os da Gabela, e era o café matinal, em grandes
canecas e muito aguado. Mas nas cidades se introduzira o novo hábito em
muitas famílias, não todas, ainda as havia que preferiam a todo o momento
os diferentes chás que se faziam de folhas ou ervas, muitos tendo efeitos
curativos. E para passar o tempo, tentou lembrar os diferentes que bebera
com a mãe, uns só para pretexto de tomarem açúcar, outros para limpar uma
parte do corpo ou tratar uma doença. Nomes familiares que lhe rolavam na
boca, aguardando que esta se enchesse de comida.
Por enquanto, só tinha saliva, abundante.
Mas sempre há resultados das rotinas. A porta de trás se abriu, um rapaz
grande e forte trouxe dois baldes, despejou imediatamente para o contentor.
Olhou os miúdos, disse:
– Lutem então para eu ver.
Os quatro já estavam de pé, hesitando. O grandalhão disse para o
trabalhador do restaurante:
– Tu nos viste à espera. Podias ter deixado a gente catar aí mesmo nos
baldes. Atiraste lá para dentro por maldade.
– Vai bumbar masé, seu inútil…
Kassule não quis saber de mais discussões, se atirou para dentro do
contentor, com o pau de muleta e tudo. Estendeu uns pedaços para Himba.
Enquanto isso, o grandalhão estava mais interessado em enfrentar o
servidor do restaurante, tão forte como ele afinal.
– Vou trabalhar aonde? Me dás o teu lugar aí dentro? Eu aceito.
O outro fez um riso escarninho e entrou, levando os dois baldes vazios.
– Olha, Himba, tinhas razão, é costeleta mesmo. Toma os ossos.
O quarto miúdo também se atirou para dentro do contentor. O mais velho
escolhia coisas de fora, era suficientemente grande para chegar à comida.
Himba esperava que Kassule lhe passasse coisas e ia guardando no vestido,
apanhado em baixo e puxado para cima, formando saco. Vieram ossos e
restos de costeleta, vieram partes de carne assada, uns rabos de peixe, feijão
de óleo de palma, arroz, massa.
– Chega, Kassule, já chega.
– Chega nada – disse ele. – Comida nunca chega.
Mas Himba foi se sentar no sítio onde estava antes, à espera do amigo.
Este comia mesmo lá dentro do contentor malcheiroso e só passado algum
tempo saiu. O matulão escolhia com calma e comia de pé. Tinha pose,
reparou Himba. Ainda mais, refilou com o empregado do restaurante, o
qual tinha sido cruel ao atirar tudo para o contentor sem lhes dar. E o
grandalhão não os empurrou nem exigiu nada. Devia ser boa pessoa, afinal.
Pensamentos que lhe vinham ao mesmo tempo que engolia a comida.
Kassule sentou ao lado, avançou a mão para apanhar uma coxa de frango no
regaço dela.
– Vai sobrar, é muita – disse a menina.
– Come tudo, nunca se sabe o que acontece à noite.
– Não comemos aqui?
O grandalhão falou do sítio onde estava, perto do contentor, com a boca
um pouco cheia.
– O teu amigo tem razão, miúda, come o mais que puderes agora. Nunca
se sabe se à noite há quatro pessoas, como agora, ou quarenta. E tu não
provas nem uma espinha porque haverá lutas. O melhor sítio para guardar
comida é na barriga, mas lá dentro, não como tu tens agora, de fora…
– Depois tens de lavar o vestido – disse Kassule.
O quarto miúdo falou, de dentro do contentor:
– Hoje temos sorte, porque somos poucos. E vai haver mais restos, tem
ainda muitos clientes lá dentro do restaurante. Comer até rebentar, hoje é
hoje.
– O Che Guevara ensinou, quando há come-se tudo – disse o grandalhão.
– Se guardamos comida, o inimigo pode vir e aproveitar. Não, se ela já
estiver na barriga. Quando a comida acaba, sofremos, pronto.
Himba acatou os conselhos, engoliu até lhe doer o ventre, mas deixando
sempre para o amigo se servir à vontade. Quando não havia mais um grão
de arroz nem um osso com um restito de carne, levantaram para beber água
na torneira. Nessa altura o grandalhão parou também de comer, bebeu
água.
– Bom, vou dar o fora. O meu nome é Noé. Toda a gente me conhece aqui
nesta zona, menos esse parvo aí do restaurante, deve ser de um musseque
longe. Se tiverem problemas, me procurem. No que eu puder ajudar…
Eles não replicaram. Então não é um refugiado? Deve se tratar afinal de
algum ilhéu com casa perto e pouco dinheiro. Ou então mesmo um
refugiado mas com conhecimentos locais, um sítio onde viver, também
acontecia, o Kassule devia poder adivinhar. Estava tão preocupada antes
com ele, que lhes ia ficar com toda a comida... Parva!
Noé foi embora. Andava com banga, um pouco de lado, a cabeça também
inclinada. Só lhe faltava um chapéu, pensou Himba, sem poder explicar
porquê.
4
***
Diego olhava para a tela vazia. Gostaria de retomar a ideia várias vezes
perseguida, um ondjiri morto e se despojando do espírito que saltava sobre
o predador, talvez para se vingar. Como muitas vezes acontecia, via melhor
a cena antes de a pintar e depois era incapaz de realizar o imaginado, se
contentava com o pouco conseguido, sempre dá para vender. Por isso
merecia negociar apenas no mercado do artesanato e não em galerias.
Sucedia quando colocava à sua frente telas grandes, assustadoras no seu
enorme vazio. Se já tinha decidido cortar a tela em quatro, resignado na sua
mediocridade, então se tornava expedito, sacava rapidamente uma coleção
de quatro peixes, búzios, mbambis ou rosas de porcelana, tanto fazia, tudo
lhe saía se fosse um poker, dominado pelas cores agressivas da alegria.
Não vivia mal, com a ajuda de Sofia. Ela sempre se encarregou de pagar
o alojamento e tudo ligado a ele, luz, água, etc. Com a venda dos quadros,
comprava a sua roupa e comia nos mercados, por vezes jantava com a irmã,
muito raramente agora que ela ficava pelo restaurante à noite, tenho de
controlar todas as coisas, Dona Ester já não pode ficar até tarde, o coração
está mal e tem de se cuidar, tu levas mesmo a sério tomar conta dela e de
seus mambos, gozava ele escondendo algum ciúme, até do filho maluco,
não, Diego, ele tem uma pancada mas não chega a ser maluco, traumatizado
por causa desconhecida, a mãe nunca lhe bateu, pode ser alguma coisa de
criança ou por ter ficado sem pai muito novo, como vamos saber agora se
ele não lembra, mas fica incapaz de se concentrar, fazer as coisas mais
simples, e se ouve um barulho entra em pânico, então está sempre em
pânico nesta cidade de todos os barulhos, se divertia Diego que detestava o
anormal, da próxima vez levo uma corneta para lhe buzinar nos ouvidos
quando estiver distraído. Porquê dizes isso, Diego, se não és capaz de fazer
mal a ninguém, sempre foste a pessoa mais gentil que conheci?
Fim de conversa sobre Ezequiel.
Hora de entrar noutra. Nos poucos momentos em que estavam juntos,
praticamente só de manhã. Ao pequeno-almoço, encontro sagrado. O que
primeiro chegasse à cozinha preparava a refeição para os dois. Aquecia a
água para o chá, tirava o pão do congelador e metia no forno. Era possível
comprar logo pela manhã pão acabado de fazer mas eles se habituaram a
essa rotina, comer primeiro, sair em seguida. O pão de véspera, congelado
na geleira e depois torrado no forno, ficava como vindo da padaria nesse
momento, mais duro por fora e igualmente mole por dentro. Só à espera de
receber a manteiga no seu seio, a qual derretia e se impregnava por todo o
miolo. O tempo de um preparar o modesto mata-bicho e o outro já estava na
cozinha, bom dia, tudo bem por aí? Sentavam e comiam, conversando sobre
a véspera ou o dia seguinte. Nunca nada de importante.
Falar de coisas pesadas à refeição atrapalha o estômago.
Foi Diego que inventou a cena e tudo o que a acompanhava. Ele inventou,
Sofia aceitou, agradada com rotinas. Ela gostava mesmo de rotinas. Tivera
demasiadas surpresas na infância para as apreciar na idade adulta. Ele
apreciava aquele hábito que inventara mas não era escravo dele ou nenhum
outro, se deixava apanhar por factos ou gestos inesperados, enfrentava-os
sem medo, antes respeito e atenção. Se metia com desconhecidos, trocava
conversas e fazia amizades, era conhecido e apreciado em todos os meios
que frequentava, infelizmente pouco diferenciados, precários sobretudo,
para ser rigoroso. Não era um solitário nem se comprazia no vazio dos
relacionamentos. Língua muito afiada, resposta pronta, por vezes se
colocava em situações difíceis, pois há gente maldosa capaz de se vingar de
uma brincadeira bem-intencionada, sem atingir o significado social dela, a
troca. As zungueiras de rua e as vendedoras de mercado brincavam com ele,
andas sempre com os teus quadros bonitos na mão, não me dás um?, só se
trocares por um beijo e dois montes de batata-doce, xê, que é isso, tenho
marido, haka! Leva lá um montinho de batata-doce.
Brincadeiras inocentes de gente que se gosta.
Era raro ir ao restaurante de Dona Ester, ainda menos depois de terem
comprado telemóveis, o dinheiro ganho já permitia satisfazer várias
necessidades. Quando Sofia começou a trabalhar lá, de vez em quando ele
aparecia por haver assunto urgente, mas depois passou a evitar e se falavam
pelo telefone. Por isso mal conhecia Dona Ester e ainda menos o seu filho
anormal. Teria visto o rapaz talvez duas vezes. De maneira que a piada de
lhe invadir os ouvidos com uma buzina era só a primeira coisa que lhe veio
à cabeça para provocar as fidelidades de Sofia. A sabedoria de uma curta
vida lhe ensinou ser melhor andar por longe dos sítios que a irmã tinha de
frequentar profissionalmente, assim ninguém se metia também na vida dele.
Ele próprio escolhia com quem se ligava, não através de Sofia. Da mesma
maneira, ela desconhecia os companheiros dele que pintavam quadros ou
esculpiam a madeira ou o osso, angolanos ou congoleses, com quem puxava
umas liambadas para afastar maus espíritos, ou derrotava uma garrafa de
uísque barato, quando não era o mortal caporroto. Eram os seus kambas,
não os da irmã. Gente que gostava dele pelas suas próprias qualidades, da
mesma maneira que ela tinha amigos pelas suas capacidades. Talvez fosse o
segredo de tanto gostarem um do outro e nunca terem tido, nunca, mas
mesmo nunca, uma zanga, opiniões diferentes sim, amiúde, nunca uma
zanga. Se perguntou, quem inventou esse truque, eu ou ela? Inexistia autor
reconhecido, sempre foi assim, desde que um teve conhecimento da
existência do outro. E passaram por muita coisa. Sempre juntos.
A irmandade não é uma coisa boa?
Pensamentos de quem tem uma tela à frente e não sabe o que fazer com
ela. Dois anos antes, numa cena de vida selvagem, uma leoa a levar a perna
de um ondjiri que matara e desventrara, enquanto uma hiena e um mabeco
esperavam para se atascarem nos despojos, experimentou fazer sair do
corpo devastado do antílope o seu espírito em perseguição da leoa e se
lembra bem, da primeira vez Sofia observava o ato criativo e já lá não
estava quando ele zangou consigo mesmo, o movimento não era
suficientemente ondulado no espaço como se devia a um kazumbi, arrancou
a tela do cavalete, a cortou em quatro e pintou quatro espécies diferentes de
acácias, algumas que conhecera na infância, outras que viu em Luanda, era
um profundo sabedor de árvores e flores. Durante dois anos voltou a essa
cena que ele via com todos os detalhes, o corpo do antílope acinzentado
voando no espaço, tentou várias vezes captá-lo e sempre desconseguiu. Ou
por isto ou por aquilo. Entretanto, a qualidade constante estava nos outros
animais, bem retratados nos seus instintos básicos, a leoa com a arrogância
elegante da força triunfante, o mabeco e a hiena com fácies de ganância,
covardia e traição. Sentia uma vertigem incontrolável de esconjurar a cena e
acabava sempre da mesma maneira, a tela cortada em quatro para por cima
pintar uma coleção qualquer. Inevitável. Sofia viu a primeira tentativa,
perguntou por ela no dia seguinte, ele disse não deu, ela lamentou, pena, era
uma excelente ideia, ele também achava, mas nunca mais lhe confessou ter
voltado a tentar. Um dia que conseguisse, o quadro seria dela, uma boa
oferta para a sala. Nem por todo o ouro do mundo o venderia.
O seu primeiro quadro com uma estória, não é de desprezar.
Entretanto, Sofia esperava a hora de receber os primeiros clientes para o
jantar. Tinha proposto a Dona Ester uma nova maneira de fazer o arroz de
peixe e marisco, ou melhor, o mesmo prato com um diferente tempero,
baseado em massa de loengos. Ela mesma provara na cozinha o resultado
das primeiras experiências, a senhora seguia as sugestões dela e aguardava
nervosa o veredicto, ainda falta sal ou devíamos acrescentar tomilho ou um
toque de água de coco. A senhora seguia as instruções, pondo
cuidadosamente uma pitada ou uma colherinha do ingrediente sugerido.
Sofia reparou, Dona Ester parecia uma bruxa daquelas das estórias quase
saltitando à volta do caldeirão. No entanto havia diferenças e a primeira ela
não ser má nem ter dentes compridos, não pegava em sapos e a panela era
pequena. Se resultasse, fariam numa panela grande e proporiam como
novidade aos clientes.
Era noite de o grupo de amigos aparecer, embora nada estivesse
combinado. Quinta ou sexta vinham sempre e já era sexta-feira, portanto
apareceriam. Se os outros clientes não quisessem aceitar a sugestão não
haveria prejuízo, vários do grupo provariam, andavam sempre à cata de
novidades, com tendência para comida caseira, segundo diziam. Foi o que
os atraiu naquele pequeno e pobre restaurante, se comparado com os que
estavam habituados a frequentar. Não era requintado, não era frequentado
por gente rica, a comida embora boa evitava grandes artifícios para enganar
os paladares. Mas sempre com um toque à parte, diferente dos outros. E o
atendimento personalizado de Sofia, atenta aos gestos, às faltas.
Hoje ela estava particularmente ansiosa, embora tivesse a certeza da boa
qualidade do peixe, um pungo apanhado nas profundidades, e do marisco,
apenas camarão, lagosta e quitetas. A ansiedade vinha de desconhecer se
alguém já ousara meter loengos, uma fruta amarga e ácida, com uma ponta
de doce, sim, misturando três sabores fundamentais, numa cozinha.
Diferente seria. O tomilho dava gosto forte, mas sem exagerar. Os amantes
de picante, quase todos os clientes do restaurante, acrescentariam jindungo,
mais um sabor especial. Nunca provaram um arroz assim, tinha de dar
certo, pelo menos pela surpresa e a mistura dos perfumes do mar com os da
terra. No entanto, tinha dificuldade em controlar o nervosismo. E não era
devido à quase certa presença de Abdias, achava.
Abdias não lhe interessava mesmo nada.
Dona Ester arriscou provar o arroz ainda no fogo.
– Está divino!
Era quase uma heresia tal frase brotar da boca da senhora. Divino era
reservado a coisas de religião e ela não facilitava na linguagem. Olhou
Sofia com carinho e repetiu a palavra, sem temer o ciúme de deus nenhum.
Naquele momento, o paladar falava mais alto que a crença.
– Vai ser um sucesso – voltou a elogiar a senhora. – Vamos fazer no
maior panelão que temos. Se as pessoas estiverem com receio de provar,
sabes o que tentamos? Além da comida que encomendarem, levamos um
pratinho com o arroz. É só para provarem. Vais ver, muitos vão mudar de
opinião.
– É uma boa ideia – concordou Sofia. – Até podíamos oferecer logo à
entrada um pratinho. Depois escolhem o que quiserem.
– Sim, é isso mesmo.
Dona Ester deu as ordens ao pessoal da cozinha. A Sofia parecia, a voz da
sócia até estava mais forte, segura de si. Foi inspecionar o salão, satisfeita
com o sucesso. Nem sempre as boas ideias conseguem ser postas em
prática. Tinha de inventar outros temperos, misturando sabores de
continentes diferentes. De vez em quando, qualquer restaurante deve
apresentar novidades. E se forem invenções dos próprios, sabores únicos,
usando alguns produtos próprios da terra, ainda melhor. Podia pedir a um
dos amigos para fazer uma referência numa rede social da Internet, isso
espalha a descoberta, publicidade gratuita. O Tiago, que andava sempre a
zongolar cenas no telemóvel de última geração, era a pessoa ideal. Se eles
aparecessem e gostassem do prato, ela pediria ao Tiago. Ou a Salomé. O
melhor é falar aos dois. Com uma fotografia, claro, as fotografias são muito
apelativas. Tinha aprendido qualquer coisa na disciplina de marketing que
estudara há tempos.
Começaram a aparecer alguns clientes e Sofia explicava terem uma
novidade, arroz de peixe e marisco. Provavam do pratinho e muitos
aprovavam, excelente, original, diferente. Alguns aceitavam encomendar
esse prato. Os que preferiam outra coisa, gabavam na mesma o arroz mas
vai ficar para a próxima vez, hoje já vínhamos com a ideia de cair num
muzonguê ou numa saka-saka. Os elogios não pararam. A novidade estava
aprovada. No entanto, ela esperava o grupo, sempre mais atrasado, para
confirmar o conseguimento. Porque, embora mais novos que os outros
comensais, viajavam bué, tinham estado nos melhores restaurantes do
mundo, faziam questão de o mostrar em fotos, nas redes sociais, nas
conversas. Os primeiros elementos do grupo apareceram às vinte e uma
horas, eram Salomé e Alfredo.
– Quantos virão hoje? – perguntou Sofia. – Para mandar preparar a mesa.
– Não faço ideia – disse Salomé. – Mas reserva umas dez cadeiras, depois
veremos.
Foram aparecendo os outros, afinal vieram treze, com a notícia, o Abdias
chega mais tarde. O restaurante não ficava apinhado porque entretanto
alguns já tinham acabado a refeição e ido embora. Com as melhores
referências à experiência, ponham isso no menu e em primeiro lugar. Sofia
sorria, agradecia, vamos tentar introduzir novas coisas de vez em quando.
Os do grupo provaram os pratinhos, encomendaram todos o arroz, não há
qualquer dúvida, trovejou Tiago, isto é comida dos deuses.
– Tira uma foto ao prato e mete na rede social – pediu Sofia, sem
vergonha nenhuma.
Ele obedeceu no tempo de dois cliques. Depois acrescentou umas frases
divertidas a gabar o restaurante e seu arroz de peixe com marisco, por
exemplo, se vocês conhecem esta iguaria de outros sítios, esqueçam, não
conhecem nada enquanto não provarem o do restaurante da Mamã Ester,
nem nas Canárias encontrei melhor e eles lá sabem de peixes e mariscos.
Ou na ilha de Lesbos, Grécia. Instigada por Sofia, Salomé pegou no
telemóvel e respondeu a Tiago, no mesmo teor. Como eles tinham muita
gente com quem se relacionavam, os elogios podiam funcionar para chamar
clientela nova e endinheirada.
Mal é que não fazia.
Solferino mandou calar toda a gente e avisou, na próxima semana os
meus pais viajam. Vamos fazer uma festa lá em casa.
– Sofia, desta vez não podes recusar – acrescentou. – Vou encomendar
duas panelas enormes deste arroz, podes fazer uma etiqueta ou cartaz com
publicidade do restaurante, para que saibam onde podem repetir…
Ela não disse nada, ainda nem sequer estava sentada à mesa, tinha outros
clientes na sala e devia controlar tudo, em particular o pessoal que servia.
Fez um gesto vago com a mão, no género depois falamos, foi à cozinha
convencer a mais-velha para recolher a casa. Não gostava que ela andasse
sozinha à noite, por isso a Rosa, uma ajudante da cozinha, acompanhava-a
habitualmente. Mas Dona Ester não aceitou, hoje vou mais tarde, quero
apreciar bem o que os clientes dizem do nosso novo prato, está mais que
aprovado, disse Sofia, mas a senhora não se contentava com pouco,
desfrutava do contentamento geral. Mesmo o pessoal da cozinha, sempre
reservado com a chefe presente, nessa noite se soltava mais, havia risos e
piadas. Se o restaurante ia bem, tinham esperança de manter o emprego e
até de sonharem com um aumento salarial, prometido há tempos. Todos
ganhavam pois com o sucesso.
Conversa de Sofia nos intervalos, para os motivar.
Depois só ficou o grupo de amigos, já com a presença de Abdias, para o
qual não sobrou o arroz, fica para outra vez, jantei em casa, desconsegui de
me safar. Então, Dona Ester aceitou ir embora. Sofia mandou arrumar a
cozinha e despediu o pessoal. Pôde finalmente sentar ao pé dos amigos,
saboreando a sua vitória. De vez em quando um deles regressava ainda ao
tema, mas por que raio te lembraste de acrescentar loengo, essa é de génio.
– O loengo de facto é que faz toda a diferença – disse Alfredo.
– Esta miúda tem talento – disse Solferino. – Devias lançar-te num
restaurante maior e mais requintado. Não queres um financiamento do meu
pai? Ele é um chato mas tem faro para os negócios. Dás uma quota de vinte
ou trinta por cento nos lucros e pronto, ele avança a bala, eu sirvo de fiador.
– Grande fiador – disse Tiago. – Se ainda fosses filho único…
– Não me referia a esse tipo de fiança. Eu garanto que vai ser um sucesso,
que comemos sempre bem aqui e ela é a alma do restaurante e isso seria
suficiente para o meu pai acreditar que não deita o dinheiro à rua, isso ele
nunca faz…
– Ainda bem que reconheces – disse Salomé. – Não o consegui convencer
de avançar uma verba mínima para apoio a um grupo de mulheres que
tinham uma ideia que entretanto já milhares tiveram. Ir à China comprar
diretamente os produtos que chegavam aqui via Dubai. Era no princípio.
Em duas viagens elas tinham dinheiro para lhe pagar o capital inicial. Ele
não foi nas conversas, nem com números. E eu era a fiadora, ou antes o
meu pai, melhor fiador que eu… Recorri mesmo ao velho, o qual é um
forreta daqueles, vocês sabem. Dessa vez ele cedeu. E sabem o que
aconteceu? O que eu previa. Foi um grupo de cinco mulheres, sem falar
nenhuma língua a não ser português e kimbundo ou português e umbundo
ou português e kikongo. O meu pai avançou o dinheiro para comprarem os
bilhetes de avião e a estadia numa pensão do mais rasca que existe em
Xangai. Com gestos, porque pela língua não podia ser, fizeram as compras
que queriam com o dinheiro delas, já acumulado nas vendas de mercadoria
vinda do Dubai. Em duas viagens pagaram ao meu pai e agora têm um
apartamento em Xangai, alugado pois claro, onde vão aos cachos. Outros
imitaram-nas. Foi um dos meus primeiros projetos.
– Estão ricas – disse Alfredo, comendo a mulher com os olhos.
– Não exageres, ricas não estão. Mas têm dinheiro, vivem bem, negócios
estáveis. Um bando de mulheres tirado à pobreza… O teu pai podia ter
ficado associado a isso, Solferino.
– É, o velho não se comove. Mas acho que se lhe apresentar a Sofia, se
provar do arroz que hoje comemos, mais um paleio meu para ajudar, ele
abre a bolsa. Um restaurante bem situado, moderno, arranjamos um
decorador, temos amigos, e depois garantimos clientela. Só pode dar certo.
– Só pode – apoiou Abdias, saindo da sua reserva.
– Demais para mim – disse Sofia. – Aqui sinto-me bem, é o meu lar, meu
refúgio. Uma pessoa deve saber o tamanho do passo que pode dar. As
minhas pernas são curtas.
– Tens de ter ambição – insistiu Solferino.
– E tenho. Fazer coisas boas aqui, inventar uns sabores novos, sem nunca
pôr um dedo numa panela. Pelo menos aqui, porque em casa por vezes
cozinho.
Travou a confidência, estava a falar demais. O papel dela ali era ouvir. Se
sentia mal estando no palco, para o qual não era chamada. No entanto foi
ela que saltou para a cena? Solferino a pôs lá em cima, mas ela tinha de
retirar imediatamente e retomar o seu estatuto de gestora do restaurante que
acompanha um grupo de amigos nas suas libações, ouvindo os disparates e
as análises, as piadas, as fofocas, mas também explicações sérias, como
quando Tiago expõe teorias e novidades sobre Informática, a sua área de
formação na África do Sul, ou Alfredo desenvolve as informações sobre
técnicas de perfurar poços de petróleo no Atlântico.
– Duvido que o pai do Solferino aceite, não sei como enriqueceu, com a
falta de visão que tem para os negócios – volveu Salomé. – Desculpa, meu,
se trata do teu velho, mas é verdade. No caso do futuro restaurante até
posso estar errada e ele alinhar, mas não interessa… O que me admira é tu,
Sofia, imediatamente rejeitares a ideia, como se perdesses a coragem de
arriscar. Este restaurante é simpático, estás ligada à Dona Ester,
compreendo, mas não queres mais… Tentar a tua própria jogada?
Por um momento as palavras levaram Salomé ao curso que fez e à Teoria
dos Jogos, disciplina que adorou, embora nunca fosse aplicar os
conhecimentos em coisa útil.
– Aqui estou bem. Tranquila, segura. E pode ser melhor. O meu sonho é
ter sempre casa cheia. Mas esta casa, não outra com espelhos e coisas
modernas, mesas baixinhas ou cadeiras desdobráveis…
Calou, atónita pela sua verbosidade, porque hoje desconseguia de se
controlar. Por causa do êxito do arroz? Provavelmente. Tinha de contar ao
Diego, abrir uma garrafa de vinho branco que tinha bem frio na geleira,
festejarem sozinhos. Se ele ainda estivesse acordado…
Resistiu a todos os cantos de sereia, só sorria, dizia sim ou não, mais
nenhuma frase completa. Os outros iam bebendo garrafa sobre garrafa,
saltitando de temas, em toda a fraternidade.
***
Os dias iam passando, parecidos. Havia mais garotos na praia, por vezes
era preciso disputar ferozmente o recanto nos blocos de cimento. Também
os restos do restaurante. Noé, que parecia saber tudo, explicou, a guerra
estava muito quente no Huambo e no Bié, por isso mais crianças tinham
aportado à cidade, milhares cada dia. Se espalhavam pelas ruas, dormiam
nos vãos das portas, quando lhes deixavam, nas arcadas da marginal então
não se fala, estavam cheias, alguns vinham para aqui, a Ilha. Também havia
famílias de Luanda que diziam não aguentar tanto filho com a vida cada vez
mais difícil e lhes mandavam para a rua, vão mendigar ou roubar,
desenrasquem.
E a comida rareava nos contentores.
– Há três tipos de pessoas aqui – disse o Noé. – Os que comem dentro dos
restaurantes e pagam, os balados, só olham para nós com nojo. Para eles
ficam os pratos cheios e bem servidos, já vi mesmo, vocês também podem
verificar se arriscarem espreitar pela porta até vos enxotarem. Do que sobra
das comidas nas panelas e nos grelhadores uma parte pode ser guardada e
servir para o dia seguinte, com um molho diferente, ou misturada com
outras coisas, me explicou o Fausto, ele era ajudante de cozinheiro lá no
fundo da baía…
– Não é mais? – perguntou Kassule.
– Pois, a maka dele foi essa mesma. Levou para casa uns bons nacos de
carne de primeira que tinham sobrado e estavam fora da geleira, já com
moscas a rondarem. Mas foi apanhado pelo dono e lhe puseram na rua.
Bem… esses restos bons continuam portanto no restaurante e a ser do dono.
Mas o que sobra dos tachos e de algumas travessas, o patrão deixa o pessoal
levar para casa, se repartem, mais o pão que não dá para guardar até
amanhã e algumas bebidas que ficam a meio. Portanto, os empregados são
o segundo grupo, os que se safam. Depois vimos nós, os do terceiro grupo.
Para nós é o que sobra dos pratos, ossos, legumes já mastigados, ou
bocados de comida que não ficou bem feita ou a azedar, quer dizer, o que
vai para o lixo. Somos os lixeiros. Lixeiros, empregados e clientes, assim é
sempre a subir. E o dono? O dono é do grupo dos clientes, de vez em
quando vai comer a outros restaurantes para fazer comparações.
Riam todos, menos Himba, sempre fechada dentro dela. Kassule reparava
e calava rápido os risos dele. Himba agora andava descalça, as sandálias
tinham ficado perdidas na floresta. Os pés não estavam habituados ao
cimento quente ou à areia de cima da praia, igualmente a queimar quando o
sol batia furioso. Só mesmo a areia da noite ou a da beira da água eram
suportáveis. Não pensava no que lhe tinha acontecido, varria a memória
com uma mão aberta, como se pudesse. Lamentava a perda das sandálias, a
mãe tinha comprado numa loja do município, eram rasas, cor-de-rosa, boas
para o pé entrar. Como substituir as sandálias? O pensamento fixo nas
sandálias, a sua perda menor, impedia-a de ouvir muito das conversas dos
outros, era frequente terem de lhe repetir qualquer coisa.
Kassule uma vez ganhou coragem para perguntar uma dúvida que lhe
estava a fritar os miolos, como dizia, e que Himba também já se tinha posto.
Porquê Noé tinha de visitar os contentores, então os pais não levavam
comida para casa? O amigo deu uma gargalhada, na altura das farturas eu
não apareço por aqui. Mas julgam é sempre que eles ganham alguma coisa?
Quando não há almoço em casa, venho nas esquebras. A minha mãe é que
me mandou, já faz muito tempo, diz eu sou de muita comida, nasci em mês
de fome, meu nome devia ser Onjala. Claro, prefiro o mufete que ela faz, ou
mesmo o caldo de peixe. Mas nem sempre tem. Vocês pensam toda a gente
da Ilha é rica?
Os meninos se acumulando na porta de trás do restaurante muitas vezes
entravam em lutas. Primeiro se empurravam para ganhar melhor espaço,
depois voavam os insultos aos pais dos outros, finalmente os punhos saíam
da cómoda posição ao longo dos braços, se agitavam em movimentos
rápidos, a pancadaria generalizada. A presença de Noé impunha algum
respeito e o grupo sempre conseguia uns restos. Mas na maior parte dos
casos ele andava por outras bandas, colhendo mujimbos e aventuras, se
sabia agora porquê. Madia tentava substituir o ausente na liderança e defesa
do grupo, mas não era a mesma coisa. Lutava, gritava e rasgava caras
alheias, também apanhava murros e bofetadas. Não impunha o devido
respeito e no fim ficavam sempre muito atrás no contentor, se satisfazendo
com peles e ossos de galinha de aviário, mais fáceis de roer.
Um dia, uma senhora saiu de um carro grande e brilhante, carro de
mijagrosso, e se aproximou deles. Falou alto, queria uma menina para ir na
casa dela trabalhar.
– Tenho um quarto no quintal com uma cama, dou comida e alguma
roupa. De vez em quando posso dar um dinheirito, se se portar bem. Quem
quer?
Havia só quatro mocinhas, Himba, Madia e duas chegadas há pouco do
mato. Os rapazes ficaram parados, logo à partida não era o seu biznisse,
mas estavam prontos para apreciar a cena fora do vulgar. Ia sair pancada
entre as quatro? Espetáculo digno de se ver, sobretudo para quem estava
desocupado à espera dos ossos caírem no contentor. E pancada entre
meninas tinha muito mais piada que entre homens, coisa banal.
Madia foi a primeira a se aproximar da senhora, perguntou logo:
– E o trabalho é o quê?
– Tenho uma filha pequena, três anos. É para tomar conta dela. Quando
ela dorme ou eu estou em casa, ajudas a arrumar as coisas, varrer o quintal,
lavar a louça quando é demais para a minha empregada, esses trabalhos
pequenos…
Himba não mexera do sítio, perto de Kassule. Primeiro estava dentro dos
mambos dela, mas a voz da senhora era autoritária, parecia uma professora,
lembrou do pai, despertou para a cena se passando ali à frente, como de
manhã a acordar com uma voz grossa ou um choque aparatoso de carros.
– E a casa é aonde? – Voltou a perguntar Madia, como sempre desbocada
e sem rodeios.
– É na cidade. Não muito longe.
Madia se virou para trás, fitou Himba e as outras duas.
– Eu acho estou mais capaz de tratar de uma criança, a senhora é que
sabe. Tenho a quarta classe… Bem, a Himba, lá atrás, até tem mais, a sexta,
não é mesmo, Himba? Mas é mais nova… e fraquinha…
– Que idade tens?
– Fiz quinze agora – respondeu Madia, para assombro dos dois amigos
dela que sabiam ainda não ter completado essa idade. Verdade, porém, que
não lhe faltava muito, um ou dois meses, segundo tinha explicado um dia a
eles e a Noé.
– Para ser franca, prefiro aquela lá de trás, Himba, é esse o nome? Cara
triste, sossegada. Mais nova e com mais estudos…
Eram só vantagens a favor de Himba.
Kassule empurrou a amiga mais para a frente, aproveita, vai para uma boa
casa, dormir na cama, sempre é melhor do que aqui. Eram esses os segredos
que o kamba lhe sussurrava, mas não a convenciam muito. De qualquer
modo, deixou ser empurrada, até ficar perto da senhora. Muito bem vestida,
se via mais ao longe, mas agora sentia o perfume dela e admirou o cabelo
comprido e ondulado, como das mulheres brancas que vinham tomar banho
na praia. Extensões, pois claro, mas Himba ainda não conhecia, admirava
mesmo aquele cabelo de branca. Madia muxoxou de despeito, baixinho,
pela escolha da senhora, mas respeitou Himba. Deixou espaço.
– Então, menina, vens comigo? Vou te tratar bem, não sou como algumas
aí que exploram as crianças. Até podes estudar mais, se quiseres. Se fores
boa miúda, posso ajudar.
– O Kassule pode ir comigo?
– Quem é esse?
– É o meu amigo aqui.
A senhora teve um gesto de indignação ou repulsa, não era fácil
distinguir. Os olhos fixos na muleta gritavam.
– Claro que não. Só tenho lugar para uma menina.
– Então não quero.
Kassule insistiu, aproveita, Himba, não sejas parva. Eu cá me viro por
aqui. Ela negou com a cabeça. A senhora disse, trocista:
– A amizade é muito bonita, mas as pessoas espertas agarram bem as
oportunidades.
– Eu não sou esperta mesmo.
E Himba voltou para o sítio em baixo da árvore, desligando do assunto.
Kassule veio ter com ela, pronto a lhe passar um raspanete, do género és
mesmo burra, não queres escapar desta miséria, destes perigos, ainda não
aprendeste?
Mas calou, os olhos inundados de mar.
Madia não deixou escapar o momento de sorte. Disse para a senhora:
– Estas duas mal falam português, são umas matumbas. Eu já vivi muitos
anos numa casa e conheço a cidade. Porque não me experimenta? Se não
servir, me manda para aqui de novo, sem makas nem kijilas.
– És saliente demais, não aprecio o género. Mas, vendo bem, posso tentar.
Se me arrepender ponho-te logo a andar, vê lá. Vamos, entra no carro.
Madia se virou para os dois amigos, primeiro estendeu os dois braços
para o lado, talvez a pedir desculpa, talvez a dizer estão a ver como se faz?,
lançou depois um adeus, venho vos visitar sempre e trago coisas, prometo.
Assim Madia desapareceu da praia e desta estória.
Promessas nem sempre são para cumprir.
Himba no entanto sempre achou que talvez Madia tenha tentado
encontrá-los, sem êxito. Noé também achava isso. Estar no sítio errado ou
no momento errado quando ela vinha procurar os amigos… Ou então era só
o orgulho ferido dele a arranjar desculpas.
Ninguém gosta de ser esquecido.
As pessoas iam e vinham, uns apareciam, outros nunca mais. Para
substituir Madia, surgiu Luemba, uma menina de oito anos, mas tão
pequena e magrinha que parecia ter seis. Com pesadelos nos olhos, cabelo
todo duro de terra misturada na trunfa de muito tempo sem ser
desencarapinhada, fios de remendos como vestuário. Himba lhe viu de
costas, com medo de molhar os pés no mar, o coração bateu, podia ser uma
das suas irmãs. Milagres existem. Saiu da escuridão em que a tinham
mergulhado, correu para a menina, raio de luz, lhe pegou no braço. Ela
virou, mas afinal os milagres só valiam para os sortudos de sempre. Não a
conhecia de lado nenhum. A menina aceitou a mão dela no braço, falou
numa vozinha branda:
– Me ajudas a entrar no mar? Tenho medo.
Nesse dia as ondas estavam maiores que habitualmente. Himba, ela
própria, ainda não banhara e já era quase a hora de se pôr no lugar de
sempre, perto do restaurante, esperando os restos. Não tinha se aventurado,
ao contrário de Kassule, a quem as ondas grandes não atemorizavam,
mesmo sem uma perna. Talvez fosse mesmo o tempo de entrar, para ajudar
a menina, que precisava com urgência de banho. Assim, esperou que
houvesse uma ligeira calmaria e mergulhou com ela no mar, calada, pois
não lhe apetecia o esforço de falar. Bem bastava ter de lutar pela comida,
sem Noé para ajudar. Esfregou um pouco o cabelo da miúda, notando a
água à volta se tornar castanha, tanta era a terra acumulada. Por onde andara
aquela pequena? Bem, um dia iria saber, todos têm uma estória e sentem a
necessidade de a contar. Não era o caso agora, apenas se banharem. A
menina gritou de medo quando viu uma onda maior avançar para a praia,
mas Himba, já com mais treino do que antes, mergulhou com ela no
momento certo e deixou a onda passar. A menina riu para Himba, afinal era
assim fácil?
De repente, se libertou.
Como quando ela dormia em casa e de súbito o despertador dos pais
tocava, acordando toda a gente. Um despertar rápido e uma pessoa,
enroscada num sonho, parece saltar do sítio onde dorme, enfrentando uma
realidade diferente. Isso aconteceu com a miúda, que sabia nadar, mas
estava intimidada pelas ondas. Passaram a zona de arrebentação, não
tinham pé, estavam entregues a si próprias, rindo a menina, ela séria mas
também gozando o momento.
E lhe apeteceu falar.
– Como te chamas?
– Luemba.
– Qual é a tua terra?
– Lépi.
– Haka, perto da minha – disse Himba.
– Hi, perto mesmo?
– Nem tanto. É perto, sim.
Riram as duas. Mal sabiam elas, nem Himba, pois o pai talvez
desconhecesse ou lhe faltou tempo de lhe contar, mas as duas terras tinham
pertencido ao mesmo sobado grande, jagado, reino ou lá o que queiram
chamar àquelas montanhas a furar o céu, os imensos rochedos de centenas
de metros quase impossíveis de escalar, o ar puro e seco, cheirando a flores
e troncos, o verde cobrindo as serras, a combinar com os castanhos e negros
e cinzentos e ocre e todas as cores possíveis daqueles sítios, região antes
conhecida como Tchiaka, a mítica.
As ondas embalavam-nas e elas também as cavalgavam até mais perto da
arrebentação, mas depois se deixavam levar para mais longe, até apanharem
boleia numa maior, regressando onde tinham pé. Kassule gritou da praia, o
pitéu vai sair daqui a pouco, venham.
– Vamos, Luemba, vamos pitar.
Foi um pouco mais difícil sair, pois aí precisavam nadar mesmo,
aproveitando a força de uma onda e fugir logo da ressaca. Riram em terra,
se dando as mãos. A miúda estava um pouco mais limpa, mas devia se
esfregar. Agora não havia tempo, tinham de avançar para a sombra da
árvore, a casuarina velha que sempre os abrigava.
Nesse dia Noé estava presente, arranjavam proteção e puderam apanhar o
suficiente. Para a menina, famélica de muitos dias, foi parecido com um
Natal.
– Temos uma nova amiga? – perguntou Noé, apontando para ela, quando
tinham acabado de comer e estavam encostados no princípio dos blocos de
proteção, ainda à sombra da casuarina velha.
– Apareceu agora – disse Kassule. – A Himba é que a descobriu.
Esta parecia ter finalmente saído do pesadelo. Falou:
– Estava a precisar de banho mas tinha medo das ondas. Eu mergulhei
com ela.
– A Himba agora é uma grande nadadora – disse Kassule. – Antes só
gostava de rio.
– Já me habituei ao sal do mar – respondeu ela.
Kassule e Noé trocaram um olhar. Há tempos que ela não participava de
nenhuma conversa, sempre alheada na sua dor. Foi por causa do
aparecimento de Luemba? Parecia a Kassule, sempre atento à amiga.
– E tu, já tinhas entrado no mar? – perguntou Noé para a menina.
– Aprendi a nadar no rio. No Lépi…
– Onde é que é isso? – perguntou Kassule.
– Na minha região, mas outro município – adiantou Himba.
– Mais a sul.
– Mas em Benguela tomava banho no mar – acrescentou Luemba, para
admiração de todos.
Afinal a miúda era viajada. Todos conheciam de nome essa cidade do Sul
que muitos comparavam a Luanda antiga.
– É verdade, nunca te perguntei – disse Kassule para Noé. – E tu de onde
és? Do Planalto eu sei. Mas de que sítio?
– Andulo. Um kimbo perto de lá. Mas vim na barriga da minha mãe. Não
me perguntem como é, porque não me lembro de nada.
Os quatro eram pois do famoso Planalto Central, embora Kassule fosse da
parte norte, onde já a língua umbundo era menos utilizada tradicionalmente.
Os quatro eram da geração que se comunicava quase exclusivamente em
português, embora percebendo ainda parte das línguas das respetivas
regiões. Com a estadia prolongada em Luanda, era difícil reterem esse
conhecimento, exceto cumprimentos, insultos ou alguma expressão mais
habitual. Até mesmo a nasalização típica do umbundo desapareceria, como
era o caso de Noé, falando já como um kaluanda. Ou Kassule. Ou Himba ou
Luemba que já não a tiveram.
– E a menina tem nome? – perguntou Kassule, imitando as maneiras da
senhora que levara Madia, o que fez Himba sorrir.
– Luemba.
– Bonito nome – aprovou Noé. – Parece já entraste no grupo. Ou
conheces outros?
Ela só abanou a cabeça. Muito tímida para se integrar num grupo por sua
iniciativa. Himba achava, eram parecidas. Tinha de a proteger. Não sabia
era como. E os bandos não escolhiam idades.
Foram andar as duas à beira-mar, olhando os banhistas, cada vez mais
numerosos à medida que a tarde avançava. Havia muitos estrangeiros,
embora, como Himba explicava, os estrangeiros preferissem praias onde
não havia refugiados nem pescadores, sobretudo lá mais para o fundo, onde
predominavam restaurantes com barreiras, guardas, também sombrinhas e
camas.
– Camas?
– É. São assim umas cadeiras que se podem inclinar muito para trás e as
pessoas ficam deitadas. São de alugar, tens de pagar muito. O Kassule é que
sabe essas coisas todas, me mostrou. Mas as pessoas baladas preferem ir
para aí, porque ninguém lhes rouba nada e podem ser servidas de bebidas e
comidas mesmo na praia, um luxo.
Quando achou que já tinham conversado bastante, Himba achou ser o
momento de ir sabendo coisas sobre o passado de Luemba. Fez a pergunta
sacramental, como vieste parar a Luanda, sobretudo como vieste parar à
Ilha de Luanda? E Luemba contou uma estória parecida com muitas que
Himba ouvia ou iria mais tarde ouvir, que os pais a mandaram para
Benguela, cidade mais segura, no litoral onde não havia guerra, viver na
casa de uma tia, irmã mais velha do pai, com família numerosa mas que a
aceitou de bom coração, era mais uma boca, mais preocupações, porém o
sangue conta acima das dificuldades da vida, pôs a menina na escola, ela
estudou dois anos, até que apareceu lá uma prima do marido da tia dela que
disse, posso te levar para Luanda, lá é muito melhor e sempre alivia a carga
familiar. O marido aceitou logo mas a tia não queria, o meu irmão mandou
para eu tratar dela, fica mesmo aqui que está a estudar bem, vida calma, e a
menina concordava com a tia, em Benguela se sentia à vontade e também
era mais perto dos pais, um dia podia voltar lá para lhes visitar, matar as
saudades pesadas, bastava a guerra acalmar um pouco, mas a Dona Fifi era
insistente, vou tratar dela com todos os cuidados e ela pode me ajudar em
muitas coisas, não tenho filhos infelizmente, fica como filha para mim, sou
eu que peço e é um favor que me faz, não sou eu que faço, insistiu um dia,
insistiu no dia seguinte, disse fico mais tempo até convencer a tua tia, enfim
a senhora concordou, pronto, família do marido também era família dela,
devia de confiar, entregou uma chorosa Luemba à prima do marido.
Luemba apanhou grande susto com o avião, no entanto chegaram em
Luanda, Dona Fifi muito contente até lhe comprou roupa para viajar, e
vieste mesmo de avião, perguntou Himba, vim mesmo, cheia de medo o
tempo todo, por sorte não durou muito. Instalada em Luanda, nada de
escola. Falou com Dona Fifi e a escola? Que tinha passado o tempo das
inscrições, só no próximo ano. E começaram os gritos e os maus tratos,
afinal tinha de limpar e varrer a casa toda, passar pano molhado no chão,
lavar roupa para uma mulher engomar tudo uma vez por semana, a comida
a ser dada cada vez com mais dificuldade e recriminações, quem não sabe
bumbar não come, mas ela era uma menina pequena, nunca tinha trabalhado
assim, andava só na escola e em casa ajudava as mais velhas, mas era só
ajudar, não fazer os trabalhos pesados, então lavar lençóis é trabalho de
criança pequena? E a Dona Fifi afinal não tinha um marido, tinha era vários
amantes, um cada dia da semana, nada como tinha contado em Benguela,
um casamento feliz com vestido de noiva e limusina para lhes levar na
igreja, tudo mentira, vivia dos senhores com dinheiro, como tinha explicado
a vizinha do lado e que engraçara com Luemba, até que um dia apareceram
homens de voz grossa em casa, a menina estava a descascar batatas na
cozinha, não viu mas ouviu tudo, eles a ameaçarem, se não pagas o que nos
deves vamos dar uma carga de porrada que nem te vais levantar mais, Fifi,
te partimos mesmo pernas, sua ordinária, ladra, filha da puta e muitos mais
nomes que Luemba nem quer repetir, a mulher só chorava e gritava até eles
irem embora, prometeu pagar tudo no próximo mês, me deixem até ao
próximo mês que eu arranjo o dinheiro, um cliente me está a dever muito de
um negócio, até que eles foram embora sempre nas ameaças e ela se
lamentava a berrar sozinha que era muito dinheiro, onde vou arranjar isso
tudo, já não tenho amigos que me avancem tal soma, era um dinheiro que
pedira emprestado a antigos clientes para comprar um carro mas o carro foi
roubado logo que comprado e ela nem tinha dinheiro para lhes pagar o
kilapi nem carro. O carro ia servir para um negócio de táxi, parecia, um
negócio seguro, até já tinha motorista, um moço conhecido de boa família,
responsável, devia ser dinheiro garantido todos os dias, o correspondente a
quinhentos dólares, o resto ficava para o motorista, mas ele pagava as
reparações, para ter cuidado com o carro e não o javalizar logo no primeiro
mês, mas não houve negócio nenhum, o carro foi logo roubado. Frustrada
por ser obrigada a entregar a casa, ou parte dela, ou então fugir para um
sítio onde não lhe encontrassem, embora acreditasse pouco, eram parte de
uma quadrilha perigosa e com muitos tentáculos pela cidade, também talvez
mantendo alianças com algumas autoridades competentes, acedendo a todos
os dados, percorreu a casa numa cólera misturada ao terror, olhando para
todos os lados como uma fera encurralada, até encontrar Luemba na
cozinha, tremendo pelo futuro. Descarregou todas as fúrias na menina, o
que lhe ameaçaram ela fez na pequena, porrada por tudo e por nada, um dia
lhe arrastou pelos cabelos que a vizinha tinha entrançado muito bem, pois
gostas das tuas tranças, não é, estás vaidosa com as tranças que aquela puta
invejosa te fez, sua matumba e mangonheira, te vou mostrar como se ensina
quem não sabe trabalhar, e lhe enterrou a cabeça num canteiro do quintal,
desfazendo as tranças e esfregando terra de estrume que ia servir para
plantas novas do jardim, tudo com muitas chapadas e pontapés, até que
Luemba fugiu, fugiu, se perdeu por Luanda que mal conhecia, mas também
não queria voltar naquela casa amaldiçoada, antes ficar perdida, andou,
dormiu na rua, andou mais, chegou à Ilha e pronto…
Uma estória como muitas.
– Sabes o endereço dos teus pais? Ou da tua tia de Benguela? Podemos
escrever uma carta…
Luemba muxoxou. Afinal era pequena mas não ingénua.
– Xê, a carta nunca que chega no Lépi, é zona de guerra… São outros que
mandam lá.
– Eu sei, lá não deve dar… mas Benguela… a carta vai de avião…
A esperança entrou afinal no coração da menina. Sabia o endereço da tia,
claro, uma carta podia chegar. Mas como arranjar papel e envelope e
selo…
– O Noé ou o Kassule podem ajudar – disse Himba. – Eles são
despachados.
Voltaram ao ponto de refúgio. Noé já tinha ido embora. Mas Kassule
estava. Onde arranjar papel e envelope? E dinheiro para ir no Correio
postar? Complicado.
– Vamos resolver – disse ele. – Vou pensar como fazer.
Não ganharam jantar e dormiram com fome. O medo crescia pois era já
habitual haver mais de vinte miúdos à espera dos restos, a concorrência se
tornara mais feroz, sobretudo à noite, pois a escuridão conferia seriedade às
ameaças e à violência.
No dia seguinte, Kassule tinha a solução.
– Himba, vamos os três procurar a senhora boa das trancinhas. Este é um
caso importante, ela vai nos aceitar.
A amiga concordou. E os três partiram para casa da senhora. Ainda era
um bocado de caminho, mas se fazia bem de manhã, quando o chão não
estava muito quente. Kassule gozava com Himba, a menina tem os pés
muito fracos, queimam logo, a menina não aguenta o calor. Olhem aqui,
esse meu único pé não precisa de sapato, pode pisar em brasas, nem sinto o
calorzinho… Brincava com a obsessão de Himba, chinelos ou sandálias,
qualquer coisa que pudesse calçar. Sempre atenta no chão e procurava nos
contentores de lixo, com sorte podia encontrar uns sapatos velhos e podres,
para ela seriam de princesa. Nesse aspeto Luemba estava melhor, saiu de
casa como se encontrava vestida e por acaso naquele momento usava
sandálias, não as suas melhores, mas as de andar sempre. Um dia podia
recuperar os tesouros deixados com Dona Fifi? Se a prima do outro não
tinha já vendido tudo…
Encontraram a senhora debaixo da mesma árvore, a figueira grande que
dava muita sombra às casas gémeas e ao espaço vago em frente. Sentada
num banquinho, fazendo tranças a uma das filhas. Himba achou que seria
uma filha, mas não conhecia a família e não era a mesma miúda da primeira
vez, esta era mais velha. A senhora reconheceu os meninos, também era
fácil, quem esquecia Kassule, agarrado à muleta improvisada? Mas foi
Himba que se aproximou mais, vencida a timidez natural, e falou, depois de
cumprimentar.
– Senhora… desculpe, não queríamos incomodar, mas temos um
problema e como disse que se fosse coisa séria podia ajudar…
– Sim, lembro… E trazem uma companheira mais pequena.
– Pois, o problema é esse. Se tem um momento eu posso explicar…
A senhora assentiu, mandou vir bancos, a mesma Luzia apareceu com os
assentos e nem esperou ordens, voltou depois com água numa caneca
grande, toda a gente tem sempre sede. Himba entretanto foi contando a
estória de Luemba. Só foi interrompida uma vez pela senhora, quando lhe
contou que a Dona Fifi insistia em trazer a menina para Luanda…
– Já sei o que vais contar. Tratou-a mal e fez dela uma espécie de escrava.
Conheço o género.
Esse era um episódio mais à frente, Himba ainda estava na parte de
Benguela, já a senhora adiantara toda a novela. Mesmo assim, fez questão
em explicar o já adivinhado. No fim, a senhora disse:
– Essas vadias da cidade fazem sempre isso. Se dão ares de grandes
senhoras, viajadas, casadas com homens poderosos, mas são o lixo do
mundo. Não querem pagar a empregadas para lhes tratarem das casas, então
aproveitam a desgraça dos outros. Umas sanguessugas. Ainda dizem que a
escravatura já acabou. Mentira! Pode ter acabado no mundo, mas aqui
estamos no mundo?
Eram pensamentos demasiado complicados para os meninos manejarem,
mas entendiam perfeitamente o que ela queria dizer. E só agradeciam a
solidariedade da senhora das trancinhas.
– Para nós os dois é mais complicado porque perdemos a família – falou
pela primeira vez Kassule. – Mas a Luemba sabe onde mora a tia dela em
Benguela, estudou lá. Pode lhe escrever uma carta a explicar a situação. E
esperar a ajuda da família…
– Claro, claro – disse a senhora. – Desculpa que te diga, minha filha, mas
foi grande falta de responsabilidade da tua tia. Como é que te entrega a uma
vadia qualquer…
– É prima do marido da tia – disse Luemba.
– E depois? Não é da tua família, ela nunca devia aceitar. Por isso tem
mesmo de te vir buscar. Escreve, é o conselho que te dou, escreve mesmo
uma carta a contar tudo.
– Pois, por isso viemos falar com a senhora – disse Himba. – Não temos
papel nem caneta nem dinheiro para o selo…
– Ah! Fizeram bem. Não custa nada arranjar isso. Mais difícil era arranjar
dinheiro para pagar o carro da Fifi…
Deu uma gargalhada que despertou a canuca que tinha entre os joelhos,
dormitando enquanto ela entrançava o cabelo. Os meninos também riram,
boa piada.
Quem diz que gente generosa não tem humor?
Luzia trouxe pão e chá, depois a senhora foi desencantar papel, caneta e
envelope, acabaram todos à volta da mesa na sala, enquanto Himba, a que
tinha melhor letra e a sexta classe, escrevia a carta mais longa da sua vida.
A senhora ficou com o envelope, eu depois mando o meu filho Mariano
levar no correio, amanhã, pois hoje ele está no serviço e vem tarde. Na
carta, por sugestão da senhora, Himba escreveu que o contacto era a própria
que afinal ficaram sabendo se chamar Isabel Kimba, ou tia Isabel como toda
a gente conhecia no bairro, e bastava pôr assim mesmo no envelope e
remeter para a Ilha de Luanda que a carta chegaria a ela. De vez em quando
passem aqui para ver se vem resposta, mas não vale a pena vir para a
semana, os Correios são muito demorados e também não garanto, muitas
cartas se perdem, toda a gente conhece. E talvez a tua família demore um
bocado até saber o que fazer, como responder… Se daqui a uns tempos não
houver resposta, escrevemos outra vez.
Os meninos explicaram em que praia costumavam estar, embora não
fosse um ponto de encontro muito certo, pois podiam ter de mudar, sabe
como é, explicou Kassule que nessas questões geográficas estava mais à
vontade, a Ilha é longa e os restaurantes também mudam, e há cada vez
mais meninos na rua e na praia, mas passamos daqui a uns tempos, sim.
Duas semanas está bom? Era um tempo um pouco apertado, mas a senhora
sorriu e concordou.
Enquanto voltavam à sua zona, Luemba tinha um sorriso na boca.
Himba, essa, voltava a acreditar em milagres.
6
***
Diego riu muito quando, ao mata-bicho, a irmã lhe contou das conversas
que dominaram a noite anterior no restaurante. Ele tinha ouvido no rádio do
candongueiro a cena do assassinato do ricaço, o brasileiro Noronha. Este
empresário era conhecido e pouco simpático aos pintores amigos dele, pois
tinha organizado uma exposição coletiva de artistas angolanos em Salvador
da Bahia, Brasil, denominada «Regresso às Origens», mas afinal não
ajudara ao regresso do dinheiro arrecadado pela venda dos quadros no país
irmão, exigindo uma comissão por cada transferência, pouco sobrando para
os artistas. Ainda pensei em enviar um poker de catos do deserto do
Namibe, contou Diego, mas desisti, não me cheirou bem, uma intuição. Os
que embarcaram na aventura até hoje se queixam de terem confiado no dito
Noronha, trambiqueiro de primeira. Os que venderam quadros pouco
receberam por eles. Os que não venderam, também não recuperaram as
pinturas. Se pode dizer que foi um atribulado regresso às origens do kilapi.
Já então era rico para burro, nem precisava de meia dúzia de dólares
fanados aos pintores, só mesmo por vício de roubar…
– Mas nunca desejariam a morte dele...
– Claro, os meus amigos são calminhos, tudo peace and love. Com muita
liamba para tranquilizar o ambiente. Os artistas são uns anjos sonhadores,
preferem ficar no sossego deles, vendo cenas e mais cenas, por vezes
conseguindo passá-las para a tela ou o papel, então não sabias disso, minha
irmã? Alguns são mesmo rastafári, o seu profeta é Bob Marley, o rei do
reggae. Gente do bem.
– Sei, sobretudo a avaliar por ti.
Diego lhe deu dois beijos na face. Os momentos de fraternidade eram
cada vez mais raros, afastados um do outro pela cidade e sua vida
subterrânea. Só mesmo o mata-bicho se mantinha como ponto de união. Um
ritual importante, ultrapassando em significado a rotina.
– A propósito, como vai a tua pintura?
– Igual. Nada de anormal. Também nada de merecimento.
– Quando me fazes o grande quadro prometido?
– Não sei. Acho que ainda quando for vivo.
– Brincalhão.
– Sou otimista. Os kazumbis pintam mal.
Ela lhe serviu mais café, mas temeu derramar para fora, porque a mão
tremia com o esforço de controlar as gargalhadas. Diego sempre fora um
brincalhão, provocador. Ele bebeu com golinhos pequenos, como sempre
fazia, a saborear cada trago. Assim bebe quem teve uma infância precária,
em que o café ou o chá eram uma bênção caída do céu. Um maná a mais,
como para outros era um Ferrari ou um Bentley.
Cada bênção nas devidas proporções.
– Tenho de ir – disse Sofia. – Aulas de condução. Devias começar com
elas. O meu carro será também para ti.
– Não. Fico satisfeito por poderes comprar um carro, fico mesmo a torcer
que escolhas bem. Mas não tenho coragem de tirar carta de condução. É
para suicidas. Esse trânsito se tornou uma loucura e os motoristas mais
assassinos que a tua fofoqueira de sociedade.
– Minha fofoqueira… Agora estás a me ofender. Nunca vi a senhora em
vida, nem tinha sequer ouvido falar, sabes, não é o meu meio, o nosso meio
é este. Só ontem aprendi que ela era jurada frequente no concurso de Miss
Angola e estava em todas as festas dos novos-ricos, dos príncipes e dos
duques. Convidada para dar glamour ao ambiente, como eles dizem.
Ficarem extasiados com a presença de uma chupista dessas mostra cabeça
muito oca, não achas? Só há pouco tempo aprendi o que é glamour. Se isso
existe mesmo.
– Se existisse já o tinha pintado.
A gargalhada de Diego era impossível de ser ultrapassada. Ela bem que
tentou. Se separaram com aquela boa disposição.
Sofia foi para a aula de condução. O mais fácil era a parte teórica, onde
aprendia as regras de trânsito. Complicado arrancar com o carro sem ser aos
sacões e conduzir pelo meio dos milhares de veículos que quase não se
deslocavam, por causa dos engarrafamentos.
– Agora imagine – lhe falava o instrutor, enquanto ela tentava se
desembaraçar dos concorrentes e andar mais uns tantos metros. – Você
passa no exame, o que vai acontecer, está bem preparada. Mas só sabe
andar a vinte à hora no máximo. Depois se decide a ir para a estrada livre,
até Malanje ou Benguela. Acelera. Chega aos noventa à hora, mesmo cento
e vinte, é uma tentação, ninguém resiste a provar da velocidade. Como
aguenta o carro se tem uma surpresa qualquer? Um buraco, eles estão
sempre a surgir nas nossas estradas, um camião do outro lado, um
candongueiro fora de mão, uma vaca, outro obstáculo qualquer? Não
aguenta, se espatifa contra essa coisa ou uma árvore. É o que acontece na
maior parte dos casos. Somos o quinto país do mundo com mais acidentes
mortais. Muita sorte não sermos o primeiro, pelos vistos há ainda mais
malucos ou mais nabos. O problema é esse, as pessoas só aprendem a
conduzir muito devagar porque as ruas estão atulhadas, não sabem segurar
um carro com velocidade. Por isso, minha senhora, quando tiver a carta,
conduza à noite por estas ruas que ficam vazias. E acelere. Para ganhar
experiência. Ou então nunca saia dos congestionamentos de Luanda.
Conselho que lhe vale uma vida, a sua, e de outros que poderia atropelar.
Palavras sábias levadas para o restaurante, enquanto escolhia
mentalmente o carro que compraria quando tivesse a carta. Um pequeno e
barato, para começar. Destinado a ser arranhado, amolgado, por culpa dela e
da pressa dos outros. Mais tarde, com mais experiência de condução e mais
dinheiro, compraria o carro da sua vida.
Não tem mal sonhar.
Esquivou as perguntas, cada vez mais insistentes e ansiosas, da sócia
principal sobre os seus amores ou desamores, desviou o fluxo para o
escândalo do ano, o assassinato do empresário, afinal a senhora se interessa
por essas coisas, Dona Ester?, não, é apenas uma prova de que o mundo
caminha para o seu fim, satanás domina, dizem era uma senhora de
respeito, brilhava em todos os sítios onde ia, exageram sempre a falar dos
outros pois no fim de contas… Mas, Dona Ester, ela brilhava quando ia na
igreja ou num templo?, ela por si já fazia milagres, Dona Ester? O que
provocou a zanga da senhora, ela era e é uma ímpia terrível, com vários
maridos e cenas de amantes jovens, merece estar na cadeia pelo que fez e o
que pensou fazer, devia ficar com correntes pesadas nas mãos e nos pés
para toda a eternidade, o que levou Sofia a perguntar só mesmo para lhe
estigar, onde fica então a piedade cristã, a capacidade do perdão, Dona
Ester?
A sócia bufou com a boca, muxoxou, mas se calou. Esta Sofia tem
resposta para tudo, pensou a senhora, ou melhor, não tem nada, nunca
responde às perguntas que interessam, impossível entrar na vida mais
reservada. Nem sobre relações nem sobre o passado. Afinal, o que
realmente sabia sobre ela? O nome, a terra onde nasceu, a data de
nascimento, os nomes de pai e mãe, o que vem no bilhete de identidade. E
sei isso porque foi necessário mostrar o bilhete quando tratámos da entrada
dela para a sociedade, porque sem isso bem podia pensar que ela tinha
nascido em Cabinda. Não me interessava nada essas coisas, mas podia ao
menos contar uma cena com a mãe, ou dizer o que fazia o pai, se são vivos,
ela só disse a guerra separou todas as famílias, o que em parte é verdade,
nunca mais soube nada dos meus irmãos e primos, perdidos pelo Bié em
tempos, sei lá agora onde estão. Certamente mortos, enterrados de qualquer
maneira porque aquela guerra foi a pior de todas as guerras… Enfim, todos
têm os seus dramas que preferem não recordar porque doem. Deve ser isso.
Coitada da minha menina, sofreu muito.
Trataram do almoço.
A surpresa veio ao jantar, pois os amigos apareceram de novo e muito
mais cedo que o habitual. Não era normal virem duas noites seguidas,
haveria novidade, desconfiou. Com efeito, traziam com eles um
desconhecido, logo apresentado a Sofia com certo sigilo. O desconhecido
cumprimentou com voz baixa e os olhos estudando as outras mesas.
– O nosso convidado é o comissário Linha da Frente, um maioral da
polícia de investigação criminal – apresentou Segismundo, se antecipando a
qualquer outro.
– O comissário vem provar o teu arroz – avançou logo Patrício, bem
relacionado com a nomenclatura institucional por parte do pai, mais que no
mundo dos negócios. – Se gostar, fazem uma grande encomenda para uma
festa que projetam, aniversário da santa organização.
Sofia foi logo avisar na cozinha, hoje temos um cliente de luxo,
precisamos agradar, o arroz vai estar pronto a horas? Lhe garantiram que
sim, fosse recebendo as encomendas de aperitivos e entradinhas.
O jantar foi muito concorrido, casa cheia, e não tinham chegado ainda ao
fim de semana. Bom sinal. O grupo hoje era mais numeroso que das outras
vezes, pois até Salomé e Abigail, nos últimos tempos muito ausentes,
tinham comparecido. A mesa foi ocupada por dezanove pessoas, com o
comissário no local mais central. Sofia percebeu, lhe convidaram para sacar
dados confidenciais. Ainda sobre o crime? Só podia. Não lhe interessavam
nada as venturas e desventuras de Dona Jezabel de Anunciação, mas o
restaurante a abarrotar tinha outro encanto. No entanto, como não podia
deixar de notar, Kaleb se destacava pela ausência. Não foi avisado? Talvez.
Ou então nem queria ouvir as fofocas de desocupados. Afinal ele não se
enquadrava totalmente com os príncipes, embora fosse um deles, pelo
menos um duque. Porém não fazia parte do grupo inicial, foi recrutado
apenas na festa do Solferino.
Todos os grupos têm a sua ovelha ranhosa.
Não se atreveu perguntar, qual a razão da ausência de Kaleb? Primeiro,
podia ser considerada demasiada intromissão por parte de quem não
pertencia ao clube, apenas uma convidada para certas ocasiões. Depois,
seria dar combustível às zongolices sobre o presumível relacionamento dos
dois. Ficou assim no escuro. Tinha o número de telemóvel de Kaleb, nunca
lhe ligava, ele sim, às vezes, só para dar a entender sem o afirmar, continuo
a existir e penso em ti. Sofia queria mostrar que não pensava nele, por isso
ignorava o número, não replicava às chamadas. Hoje até havia uma razão
para ligar, está tudo aqui em alegre companhia descobrindo pistas
misteriosas e tu não apareces? Nunca telefonaria, seria dar parte de fraca,
confessar o que não queria, sobretudo encorajar avanços dele para depois o
rejeitar.
Há coisas que não se fazem.
O jantar terminou para muitos comensais e também para o comissário,
amarrado a outro compromisso inadiável, de barriga cheia. Cumprimentou
Sofia no final, gostei muito da vossa comida, são capazes de servir duzentas
pessoas?, ela afirmou claro, podemos, desde que contratados com dois dias
de antecedência, e então ele disse, o meu serviço depois virá contactá-la,
temos o almoço para a próxima semana e pagamos imediatamente, não
fazemos como alguns que ficam a dever, outra coisa não seria de esperar da
polícia nacional, respondeu ela com diplomacia, o que agradou a um dos
principais responsáveis pela segurança e sossego dos cidadãos.
Vazia a sala, ela se sentou no seu canto de mesa, ouvindo os restos de
discussão, a qual afinal não estava no fim, nem no princípio, sempre no
meio, sempre a recomeçar, como são as boas discussões entre amigos,
sobretudo se alimentadas com dados novos, secretos.
Soube então que a ideia insólita de Segismundo se revelava verdadeira, os
poetas são loucos mas também proféticos, como sempre se conheceu, e por
isso muitos não escapavam a fogueiras ou prisões de alta segurança. A
polícia investigava a morte do primeiro marido de Jezabel, por se ter
confirmado ela conhecer a existência de uma segunda mulher do falecido, a
qual escapara antes na Lunda a uma morte encomendada, a ser perpetrada
por dois congoleses que atravessariam a fronteira de caxexe para assassinar
mãe e filhos, todos, sem deixar uma semente, e logo bazarem para a sua
terra sem deixar pistas, mas foram tão incompetentes que não só falharam o
alvo como mataram um pacato cidadão libanês que vendia comida aos
trabalhadores das minas de diamantes e, por uma questão religiosa, não lhes
quis servir bebida alcoólica no almoço. Donde se pode logo concluir que
alguns interditos alimentares, kijilas, às vezes são perigosos. O caso tinha
sido analisado na altura pela polícia local que nunca se lembrou de avisar
Luanda sobre as suspeitas e conclusões. Com dez anos de atraso, chegavam
agora à capital. Este um dado.
O outro, mais importante, era que o falecido brasileiro, o segundo marido
agora assassinado, tinha constituído advogado há um mês para se divorciar
de Jezabel por esta lhe dilapidar parte importante da fortuna com suas
viagens, tratamentos de rejuvenescimento, lipoaspirações, implantes
mamários, de cabelos e de dentes, além de constantes tratamentos de
hormonas para Gidinho se transformar em mulher, dada a sua atração fatal
por homens, de preferência com muito dinheiro. Afinal, se confirmava o
suspeitado há muito, o filho era homossexual e queria impressionar o jet-set
angolano com uma aparição sensacional usando um vestido amarelo de
Madonna utilizado no concerto de Madison Bay, Austrália. Tinha feito
descolorações várias na pele e ainda sonhava em ser mulato claríssimo para
competir com Beyoncé ou mesmo loura, quando na personagem de mulher.
Todos esses tratamentos, feitos na Califórnia, em conhecida clínica para
deuses do cinema, saíam obviamente dos bolsos do Noronha, o qual já tinha
quatro filhos de anterior casamento e era obrigado a pagar pensões
elevadas. O empresário, de visão virada para a frente, achava que o seu
dinheiro seria mais bem empregue na construção de uma refinaria de
petróleo, há muito prometida ao país por todos os governantes e nunca
concretizada, com visíveis prejuízos para toda a África Austral, projeto esse
impedido pelos gastos exorbitantes da mulher e enteado bicha, como dizia
com desprezo o padrasto, voltando pela raiva à sua linguagem de favela.
– Há um claro exagero na comparação – disse Patrício, também formado
em gestão de empresas, o curso mais na moda entre os príncipes. – Todas as
despesas dela e do filho não pagam o preço de uma refinaria, mas percebo a
ideia. Ele tinha razão…
– Pode ser – disse Abigail, uma moça baixinha e quase sempre silenciosa,
com família de muitos dodós, milhões e milhões. – Mas temos de ver do
lado dela. Tinha os seus motivos para gastar dinheiro, afinal não há nada
que pague uma boa aparência…
O olhar mortal que lhe lançou Salomé calou a moça. Fala só quando
souberes o que vais dizer, minha burra. Era esse o recado. Abigail pareceu
ter compreendido, pois baixou a vista, emborcou mais um copo de uísque
velhíssimo, vinte e quatro anos, e mais não falou.
Na realidade, não se perdia muito com o seu silêncio, notou Sofia, que
sempre a achara um zero vazio, apesar dos muitos zeros da sua conta
bancária.
Abdias tinha duas ou três ideias sobre o assunto e fizera perguntas
pertinentes ao comissário. Agora estava calado pela presença da gestora do
restaurante. Segismundo, no entanto, sentia brilhar a sua estrela profética:
– Uma coisa já se sabe. Ela confessou o crime, esfaqueou o marido
porque ele a ia deixar. Perdeu a cabeça quando o Noronha lhe disse, estou
farto das tuas futilidades, desisto, vou viver a minha vida simples, sem
festas de arromba nem fogos de artifício só para embasbacar os outros
inúteis, arranja os jovenzinhos que quiseres, estou-me bem lixando para
isso, quero o meu dinheiro e a minha paz. Por outro lado, o Gidinho nem
estava presente, foi chamado pela mãe para limpar o sangue e se
desembaraçar do corpo. Mas começou a tremer e a dizer não sou capaz, que
faço com um corpo tão grande? Um imprestável, como bem sabemos… só
não percebo porque o prenderam. Nisso o comissário não foi nada claro. O
rapaz é inocente, nem se pode falar de ser cúmplice, apenas andou com a
mãe de pano do chão para a frente e para trás a limpar as pistas,
francamente, é crime proteger a mãe? E Gidinho tinha razão, o padrasto era
muito alimentado, mais de cem quilos de peso e um metro e noventa de
altura.
– Outra coisa se confirma – disse Solferino. – A mãe contou à polícia que
chamou o filho para a ajudar. Raio de mãe! Não podia ocultar esse detalhe
insignificante, só para o proteger? Onde eu estiver o meu filho deve estar. O
eterno egoísmo do amor de mãe, que até o arrasta para a prisão, nunca
longe dela.
Sofia se admirou com as últimas frases de Solferino. Revelaria algo da
sua relação com a própria mãe? Parecia. Do que ia aprendendo, todos os
príncipes tinham afinal vidas familiares atribuladas.
E segredos, pois então.
Segismundo, o poeta, entusiasmado nas suas vestes de investigador
criminal, aproveitou a pausa para perorar:
– O mais interessante da coisa é que nem foram capazes de se desfazer do
corpo. Tanta incompetência! Sentiram receio de chamar mais alguém, os
dois juntos não tinham força para o meter na mala de um carro e lançá-lo
para um mato qualquer... Era preciso uma mala grande, mas eles tinham
escolha em casa, o que não faltavam eram carros com grandes dimensões e
malas fundas. O que fizeram? Ficaram a limpar o sangue e as impressões
digitais na sua própria cozinha. Como se não as houvesse a granel… O
anormal era não haver. Esperaram pelo amanhecer e a Jeza telefonou para a
polícia. Que tinham chegado a casa, vindos de uma festa, e encontraram o
marido naquelas condições. Uma tentativa de roubo, sem dúvida!
Os outros riram. Era mesmo muita estupidez.
– Quem tenha visto um filme policial logo percebia que não tinham álibi,
pois que festa iam inventar? – continuou Segismundo, lançado por uma
ladeira sem travões, encantado com as próprias ideias. – Talvez se
considerassem acima de todas as suspeitas, ninguém iria comprovar o álibi,
acreditavam na versão só porque a senhora Jezabel de Anunciação
afirmava. Brincadeira!
O grupo tinha mudado de opinião numa vertigem em relação à alegada
assassina. Dois dias antes até a convidavam para os acompanhar e podiam
gabar a sua elegância e maneiras de aristocrata inglesa, agora a senhora
servia de escárnio e alimentava gargalhadas. Sofia compreendia, por um
lado, a máscara caíra e a realidade se tornava revoltante. Por outro,
adivinhava o que podia acontecer a qualquer um que andasse com o grupo
mas não fizesse de facto parte dele.
Cuidado, as amizades são instáveis.
Salomé carregava no uísque, aproveitando a ausência do marido, o qual a
moderava. Mandou vir mais uma garrafa de vinte e quatro anos, se ainda
tem stock acabamos com ele. Riram os outros. Sofia fez sinal a um
empregado, o qual foi buscar a nova garrafa, com a chave que ela lhe
passou. O quarto onde se guardavam as bebidas mais caras tinha uma porta
muito resistente com fechadura de trancas e só uma chave, na posse de
Sofia. Todas as semanas se contavam as garrafas e fazia o balanço com as
vendidas. Se alguma bebida faltasse, ela sempre sabia a quem tinha
confiado a chave, das raras vezes que lhe dava a preguiça para ela própria ir
buscar. De facto, sem que ninguém soubesse, nem Dona Ester, ela possuía
uma segunda chave em casa, guardada para caso de emergência. O resto do
restaurante podia ser roubado sem grande perda, com exceção dos
frigoríficos e aparelhos da cozinha. O tesouro estava nas garrafas caras, ela
tinha investido a sério e aos poucos, sempre a melhorar as existências com
novos produtos, alguns raros, de difícil saída. Mais ganharia com eles um
dia.
– Afinal, quando será o julgamento? – se atreveu a perguntar Sofia.
– Oh, ainda falta muito – gritou do outro lado Jared. – Embora pareça um
processo simples, na medida que ela já confessou e todas as provas estão lá
no local do crime… É preciso muita burocracia e também investigação. Os
polícias vão querer apurar a morte do primeiro marido, outros casos cuja
solução nunca foi encontrada e que se podem relacionar, etc. Há para mais
um ano, na melhor das hipóteses.
Tiago acrescentou, bem avisado pelo que estudava nas redes sociais:
– Além de que o Noronha é brasileiro. Portanto comporta também
implicações internacionais, o que atrasa sempre os processos. O Jared tem
razão, no mínimo um ano.
Olharam para Abdias, afinal o único jurista do grupo e com a última
palavra em mambo como este, mas ele matutava no seu canto, caladinho,
como alheado da discussão.
Sabemos todos porquê. Os amigos não.
***
Muita coisa passou naqueles seis meses, desde que Luemba partiu.
Escreveu de Benguela, estava bem e feliz com os tios; alguém tinha
rompido o cerco do Planalto e lhe trouxe boas notícias dos pais, pelo menos
estavam vivos. Luemba teve sorte, se regozijou Himba na altura, escapou,
sabe da família. Boa miúda, merece. Luemba se preocupava com eles, como
estavam, o Tobias e os outros tinham desaparecido sem fazer estragos?
Himba respondeu mais tarde, sempre com a ajuda de Dona Isabel para fazer
a carta chegar ao destino, estavam bem, dentro do normal, mas um pouco
melhor que antes, pelo menos já não tinha muito medo. O Tobias e seu
grupo protegiam-nos e nem precisavam de ir lutar nas bichas, no novo lugar
escolhido, entre dois restaurantes, depois da floresta da Ilha na direção da
ponta, o bando arranjava comida para todos e de vez em quando ela visitava
a senhora boa das trancinhas e lhe dava notícias também. A senhora se
interessava por eles, sempre com cuidados e conselhos. Portanto, tudo
certo.
O que Himba nas cartas não lhe contou foi o conselho sério de Dona
Isabel, pouco tempo depois de Luemba partir, lhe chamando à parte e
falando, minha filha, reparei, te estás a fazer mulher rápido-rápido e talvez a
tua mãe não tenha tido tempo de te explicar umas coisas ou achou eras
muito nova, mas foste obrigada a crescer mais depressa e sei, já tens as
regras, e podes portanto engravidar, o que é a pior coisa para uma criança
de treze anos, sem falar do perigo da sida, já ouviste falar, os rapazes podem
ter a doença sem o saber e passarem-te, por isso tens de usar isto, não tu,
mas ele – e lhe mostrava uma caixa com preservativos, leva contigo e
obriga o teu namorado a usar, tu não precisas porque não andas por aí à toa,
mas ele pode andar e até pode se injetar com seringas de outros já com a
doença, há muitos drogados, outra maneira de ficar infetado.
Himba ia negar, mas eu não tenho namorado, depois calou, a senhora das
trancinhas ouvia as vozes profundas da Ilha, as sibilantes e as silenciosas,
todos os segredos iam parar aos seus ouvidos, como não saberia de Tobias?
Do seu pacto de proteção? Melhor aproveitar sem mentir, a senhora também
não estava a condená-la, antes pelo contrário, só queria ajudar.
Tobias não gostou nada do mambo dos preservativos, mas ela pediu para
ele usar, melhor para todos e ele lhe fez a vontade, de facto era novo demais
para ser pai e que iam fazer ali ao relento com um filho? Dormiam no
acampamento do grupo que se resumia a vários cobertores velhos deitados
na areia, perto de um esporão numa parte mais alargada da Ilha e também
com mais casas perto, além dos dois restaurantes, um de cada lado da
avenida. Tinham quatro paus espetados fundo na areia onde ficavam presos
alguns panos para a sombra. Os panos evitavam também o ligeiro cacimbo
que nas noites mais húmidas caía sobre os corpos. As noites arrefeceram
mesmo e Himba se habituou a sentir o calor de Tobias, que dormia abraçado
às costas dela, lhe acariciando o corpo sempre, até ela cair na
inconsciência.
Era isso, estava habituada a ter um homem. Por vezes ele era um pouco
violento, para marcar a sua autoridade, sem exageros. Acabava por fazer
tudo o que ela queria, com jeitinho o convencia. Das primeiras vezes lhe
doeu quando ele a penetrou, sempre à noite, longe do grupo, só lhe pedindo
para evitar muitos gemidos, ele fazia o mais suavemente que podia. Ela
obedecia, engolia os gemidos, deixava o seu homem exercer o direito de
macho embora se retesasse como uma mabanga. Tempos depois já não
estava aterrorizada com o que iria acontecer quando ele a afastava do grupo
e a levava a deitar na areia e começava a lhe acariciar os mamilos e depois
as coxas. Aprendeu a relaxar o corpo, deixar acontecer com naturalidade.
Doía menos. Até tentar participar e, por vezes, sentir um ligeiro prazer,
nunca o verdadeiro prazer, de que falara Madia. Pelo menos já não tinha
dores e era mais agradável do que entrar na água fria. Tobias não cheirava
mal, não a apertava com brutalidade. Se era isso que tinha de pagar pela
ausência do medo constante, então pagava. Achava, tinha feito a opção
certa.
Foi o que disse um dia a Kassule que lhe perguntou, depois de muitos
rodeios, como se sentia. Bem, disse ela. Quero dizer, quando ele te faz, é
melhor ou pior do que quando aquele bando na floresta… Ela cortou rápido,
não tem comparação, Tobias não é bruto, sempre foi carinhoso, nunca me
violou. Não seria bem verdade, pois no princípio ela não queria, apenas
desconseguia de opor resistência à vontade dele. Sabia, se recusasse, ele
faria na mesma, no entanto com mais brutalidade. Quando ela contestava
diretamente o que ele dizia ou queria, desafiava a sua liderança, sentia o
corpo dele enrijecer e a voz sair cortante, embora contida. Tobias sabia
travar a raiva, coisa rara ali na Ilha. No que Kassule concordou com ela,
somos todos muito violentos, à menor coisa explodimos uns contra os
outros. Nisso Tobias parecia diferente, como se tivesse feito exigente treino
militar, habituado a controlar a situação e as suas próprias reações. Porém,
era tão capaz de violência quanto os outros.
Apenas mais inteligente.
– É o que dizem dele – confessou Kassule.
Tinha havido um momento complicado, uma semana atrás, quando deram
encontro com o grupo do Jonas. Os chefes se evitaram, passaram um pelo
outro, vigilantes, mas fingindo desconhecimento ou desprezo. O grupo do
Jonas era constituído por uns dez rapazes, todos a rondarem a idade dos
amigos de Tobias. O Jonas teria uns dezoito anos, ou mais. O cabelo de
metade da cabeça estava rapado, a outra metade pintada de amarelo,
chamava a atenção, desejo de se exibir, eu sou um muata. Himba
reconheceu Chico no grupo, um dos que a tinham violado. Tremeu mas se
conteve, porque sentiu a mão livre de Kassule no seu braço. Também ele
tinha reconhecido. Passaram uns pelos outros, imitando a indiferença dos
líderes. Kassule, porém, encarou atrevidamente Chico, mostrando saber
quem ele era, tu não te escondes mais, te galei mesmo, um dia vais pagar.
Himba percebeu a cena e os pensamentos do amigo, tremeu durante muito
tempo com o terror vindo das profundezas da memória.
Não pudera evitar de contar a Tobias, quando passaram a dormir juntos.
Ele afirmou, algo desapontado, que afinal ela já não era virgem e perguntou
como tinha acontecido. Ela preferiu engolir a vergonha e contar a verdade
nunca antes revelada. Não falou em nomes, eram uns desconhecidos com
quem nunca mais cruzara. O que era verdade até aquele dia na semana
anterior. À noite, antes de se deitarem todos, Kassule se juntou ao par e
disse:
– Tenho uma coisa para dizer ao Tobias e quero que tu oiças, Himba.
Ela adivinhou e implorou:
– Não digas, Kassule.
– É melhor mesmo ele saber. E explico depois porquê.
Falou então a Tobias, contando a cena da violação, com todos os detalhes,
muito mais pormenorizados que a versão de Himba, culminando com a
afirmação de que hoje tinham cruzado com o Chico, um do bando do
Jonas.
– O Jonas era o chefe desse grupo?
Se notava na voz de Tobias uma raiva fria, não tanto contra Chico mas
contra o líder do bando rival, chegando a pronunciar inadvertidamente o
nome odiado que jurara nunca referir.
– Daquele grupo não. Era um outro. Não era?
– Era outro – concordou a menina, com alívio, pois já sabia que a cólera
de Tobias seria muito maior se tivesse sido o Desperado Kid a desflorá-la.
– Podia ser outro gajo do bando – sugeriu o líder.
– Não – disseram os dois.
– Olhei para todos – continuou Kassule. – O chefe daquele grupo não
estava hoje com o Jonas.
– Pode ser que foi a algum lado, hoje não andou com eles.
– Pode, mas então são assim tantos?
– É um grupo numeroso – concordou Tobias, indiferente, parecia, pelo
menos.
E talvez fosse verdade, o número não contava, o importante era a
qualidade da chefia e a disciplina dos outros. Himba ouvira Tobias dizer
isso várias vezes e devia acreditar no que afirmava. Ela tinha dúvidas. Um
grupo de dez tem vantagem contra um grupo de cinco, alguém é sempre
apanhado pelas costas. Mesmo quando o chefe apresenta mais valor. Se for
numa batalha campal, todos envolvidos, claro que o número conta, Tobias
apenas se tentava convencer de uma certa invulnerabilidade para os outros
acreditarem cegamente nele ou para ele próprio disso se convencer.
– Vou pedir ao Zero para descobrir esse Chico e com quem andava o ano
passado. Minha deusa, te juro, vamos saber. E ele vai pagar pelo que te
fizeram.
Himba não queria vingança, apenas esquecer. No entanto sabia, era uma
ideia que desconseguiria sempre de impor a Tobias. Mais cedo ou mais
tarde, o seu namorado havia de apanhar o tal Chico a jeito para lhe
responder a umas certas perguntas. Em seguida, recebia o castigo. Esperava
que Tobias pudesse se conter e não passar de uma carga de porrada. Era
merecida, de qualquer forma. E os amigalhaços que ele denunciasse
também receberiam o prémio, um a um. Não era assim a justiça dos
grupos?
Kassule não precisou sequer de explicar porquê tinha resolvido contar
tudo ao Tobias. Ninguém lhe perguntou. E era evidente, Tobias precisava
saber que os violadores andavam na zona e podiam ter vontade de repetir a
façanha. Isso daria mais segurança a Himba, mesmo se ela queria esconder
as coisas por vergonha ou medo de consequências imprevisíveis. O pequeno
Kassule se arvorava em irmão protetor, nada a fazer para o persuadir do
contrário.
Zero era kaluanda, ainda por cima nascido na Ilha, o que queria dizer,
numerosos familiares por ali, uma rede que ele alimentava bem com visitas
e algumas brincadeiras. Muitos eram da mesma idade e se davam com
outros de todos os bandos. Nem durou uma semana. Há três dias disse a
Tobias, o qual à noite transmitiu a Himba, o Chico está há pouco no grupo
do Jonas, antes andava com um tal Costa Longa, assim o nome dele, que
fugiu quando o Jonas lhe exigiu dinheiro, uma espécie de renda semanal,
para poder continuar a roubar os banhistas nas praias controladas pelo
Desperado Kid. Ou a renda semanal ou uma carga de porrada que podia ser
fatal. O tal Costa Longa, habilidoso em detetar carteiras em bolsos de
calças, levou tal susto que a esta hora deve andar a fazer descobertas
sensacionais de carteiras enterradas na costa que vai para Cabo Ledo, mais
de cem quilómetros a sul… O Chico, por seu lado, continuava com a
fixação na floresta, ia lá muitas vezes fumar liamba com uns kambas, nem
sempre os mesmos.
O reconhecimento estava feito. Por isso, os cinco saíam da praia sem
dizer nada, voltamos para o almoço, não se aflijam, e os dois amigos
andavam por ali a fazer horas, esperando o resto do grupo. Três dias
seguidos foram à floresta, de manhã e de tarde. Até que vieram de uma
forma diferente, mais barulhentos, e Himba soube, Chico tinha sido
apanhado.
– Pronto, minha deusa, esse já vai mudar de Ilha, nesta não fica mais.
– Que lhe fizeste?
– Nada de especial. Mas tem de procurar um enfermeiro que lhe faça uns
pontos na cara e deve usar gesso num braço. Vai ser difícil rir sem fazer
caretas, aquele sacana da merda. E tenho o nome dos outros dois. O Costa
Longa será o último, anda longe, sumiu, o Chico confirmou e não havia
razão para o esconder. Mas vou encontrá-lo, mais tarde ou mais cedo, podes
ter a certeza.
Ela acreditou.
O Kassule, instruído por ela, foi falar com o Munhango, com quem se
entendia melhor. E veio confirmar a Himba, o Chico levou uma carga de
porrada daquelas... Nem teve tempo de fugir. Uns três que estavam com ele
aproveitaram desaparecer, fiquei sem saber se são do grupo do Jonas. Não
foi preciso muita coisa para o Chico dizer qual era a companhia dele
daquela vez da violação. Deu os nomes. E agora o Zero vai localizá-los. O
Chico agradeceu no fim, lágrimas de gratidão nos olhos inchados, o
conselho de sumir para sempre da Ilha. O Munhango acha que ele já deve
estar bué longe, se tiver forças para isso.
Um a menos.
Uns dias depois, o segundo foi apanhado perto de um restaurante. Cerca
de vinte miúdos assistiram a uma surra que ia ficar na história desses
tempos. O rapaz só gritava e queria saber a razão por que estava a ser tão
furiosamente massacrado, mas só quando jazia no chão, bem abonado,
incapaz de levantar sequer um dedo, é que Tobias lhe segredou porquê tinha
sido castigado e o fim reservado para ele, se algum dia se cruzassem mais
uma vez nesta terra ou na Caxemira ou na Lua, tendo de certeza o muadiê já
embarcado em qualquer meio de afastamento de Luanda.
Ou então era doido.
Depois houve o terceiro, começando por se mijar nas calças quando
percebeu que estava caçado. Se encontravam em sítio reservado, em plena
floresta, por isso Tobias foi mais claro logo no início, lhe dando uma lição
de moral sobre os danos que podia fazer a uma criança, o que era crime em
qualquer tribunal, por isso não tivesse ilusões, ia ser condenado e executada
a sentença imediatamente, começando esta por pontapés nos joelhos para
ele não se levantar mais e depois uns paus serviram de luvas de boxe,
Tobias não queria ferir as mãos como acontecera com os outros, usou só um
pau e depois de este partir, escolheu um maior, até se ouvirem ossos a
fraturar e os gritos do ferido trespassarem as sombras das casuarinas e dos
nimis. Umas boas pisadelas na cara completaram o julgamento sumário.
– O tipo ficou desacordado – disse Kassule a Himba. – O Munhango não
tem a certeza se está vivo. Mas deve estar, esses criminosos são rijos,
satanás faz milagres com eles, acreditas?
– Não.
Também não disse mais nada. Para quê?
Himba, no seu recato solitário, contemplando o mar, evitava pensar no
assunto, tinha medo de o fazer. Talvez porque achava bem a vingança de
Tobias, a envaidecesse tanta devoção. Seria mesmo devoção ou só ciúme?
Talvez porque não o queria julgar. Apenas. A vida é dura e os fortes usam a
força. Até outros mais fortes mostrarem que os fortes são fracos.
Sucessivamente. Uma fileira enorme de fraquezas e forças, ondulando sem
sentido. As formigas eram diferentes, seguiam atrás umas das outras. Se
algo interrompia, elas se desorientavam e espalhavam imediatamente. No
caso das forças e das fraquezas não havia desorientação, corridas para aqui
e para ali, choques cabeça contra cabeça, era tudo mais linear, o mais forte
devorava o mais fraco até ser devorado por um mais forte, numa verdadeira
cadeia alimentar. Ideias que vinham de aulas ou livros ou conversas, não
sabia, mas eram abstratas e ela fazia os possíveis para essas ideias não
pousarem nunca sobre factos concretos ou pessoas reais, eram só ideias
vogando no espaço. Para não analisar os seus sentimentos?
Melhor é ficar na dúvida, no limbo, como os inocentes que morrem sem
batismo.
De Costa Longa nem o rasto. Zero vasculhava em todas as suas relações,
conseguiu até a colaboração de um polícia do Posto da Ilha, um nato dali, o
qual jurou não haver nenhuma informação sobre o paradeiro do foragido.
Mas que Zero não se preocupasse, o tal Costa Longa havia de fosforescer
algum dia e os caíngas saberiam ler a luz emanada, era sua missão
monitorizar a zona, distinguir os bandidos dos não-bandidos, saber onde
cada um dormia, passando muito mujimbo a Zero, que memorizava tudo
para contar ao seu muata, Tobias, essas notícias podiam ser utilizadas algum
dia, era bom saber o que os polícias conheciam e não conheciam, se
moveriam assim melhor naqueles meandros perigosos da Ilha de Luanda,
sempre nas margens da lei, evitando pisar demasiado o risco para não
provocarem rusgas prejudiciais, porém pisando o suficiente para poderem
sobreviver. Tobias tinha noção perfeita do equilíbrio necessário e por isso
era o chefe. Usava moderadamente da violência, só a indispensável para
provocar respeito e medo, mas sem exagerar para não instigar revoltas em
que todos perderiam.
Sobreviver era viver sobre o risco, manter o equilíbrio.
Nunca tinha dito a Zero, mas não precisava, o outro beneficiara de
experiências nos becos escuros do Sambizanga, onde se vive na ponta da
agulha, entre os gangues do mercado Roque Santeiro e os dois postos
policiais que marcavam o limite norte e o sul, com todos os tratos e
negociações e traições que isso implica. Zero sabia de equilíbrios. O chefe
nunca precisaria de lhe explicar para ele adivinhar o seu método. Portanto o
respeitava e confiava nele.
É preciso mais alguma coisa para ser fiel?
Zero lembrava a primeira vez que viu alguém morrer de morte provocada.
No Sambizanga. Tinha sete anos, dois anos depois de mudarem da Ilha para
aquele bairro. A mãe bem tentou pôr a mão nos olhos dele, mas
desconseguiu e ele presenciou tudo. Foi uma facada espetada por marido
ciumento em peito de mulher supostamente infiel. As famílias próximas
dela diziam não havia razão para aquilo, mas o homem tinha bebido ou
inalado, vinha numa fúria a interpretar uma piada que um amigo dissera,
entrou em casa, mastigando suspeitas, o kamba estava mesmo a falar da
mulher dele que foi apanhada a amigar com um comerciante maliano nas
traseiras da loja? Ela assustou quando viu os olhos do marido fixos nela e as
palavras se atropelando na boca a babar de cólera, recuou de casa antes que
houvesse desgraça, o que apareceu aos olhos do homem como uma
confissão de medo por ter sido descoberta, pegando então na primeira faca
que encontrou e saindo também para o beco, onde a mulher se pôs a gritar
por socorro e todos acorreram mas já não houve tempo para intervir, a
punhalada tinha sido rápida e certeira, uma só, mesmo no coração. Todos
viram, também Zero, contra a vontade da mãe dele. É, como dizem os
kotas, nesta terra para morrer basta estar vivo. Frase que corria mundo,
muitos já tinham ouvido, mas para Zero era novidade, dita na noite do
Sambizanga, quando os vizinhos e parentes velavam o corpo da falecida, no
quintal da casa, o marido já na esquadra, sangrando pela boca do primeiro
julgamento feito pelos caíngas, para ele ficar quieto e deixar de alimentar
ilusões, estava mesmo lixado e sem os dentes da frente.
Gesto de misericórdia policial, não permitir desilusões futuras.
Tinha contado essa estória da sua meninice, quando foi admitido no
bando. Podia ter escolhido outro, mas preferiu o de Tobias, atraído pelo
carisma do chefe, embora Zero desconhecesse a palavra carisma ou mesmo
o conceito.
Tobias tinha nascido no Planalto Central, como quase todos eles, mas na
parte do Bié, muito longe do mar. Num kimbo perto de uma missão
evangélica, onde muito cedo aprendeu a ler e escrever. Estudou até aos
quinze anos, passando miraculosamente pelas guerras sem ser recrutado por
um exército ou outro, talvez por efeito dos missionários, respeitados por
ambos os lados, os quais profetizavam grande futuro para ele, pelo seu
feitio calmo mas seguro, inteligência e vontade de aprender. Leu mais que
os colegas de escola, discutiu com os missionários quase como um adulto,
não só as coisas da religião, mas as da terra e do universo. Um dia arrumou
as suas imbambas, despediu da família, está na hora, desapareceu no
caminho. A família e os missionários lamentaram, ficaram convencidos de
que tinha sido o chamado da guerra, mas não, foi o chamado da grande
cidade, a leoa que rugia ao longe, tão fortemente que ele ouviu e veio, entre
perigos e ciladas, respondendo ao apelo da leoa que tinha conhecido nos
livros e estórias. Ao chegar a Luanda, não estranhou o meio, ignorou o
desprezo dos naturais lhe tratando como outro matuense qualquer, se meteu
na Ilha, entrou na água como Jesus no rio Jordão, só lhe faltou mesmo João
Batista para o batizar. O sabor salgado não lhe foi estranho, tudo conhecido,
vinha nos livros, nem o roncar dos carros e a confusão do trânsito, as
correrias dos vendedores nas ruas fugindo dos fiscais querendo se apoderar
dos bens à venda, os ladrões e suas práticas eram sabidos de Tobias, estava
preparado para se adaptar. O que aconteceu com toda a naturalidade.
Caminhou sozinho, percorreu a cidade como se andasse pelo dorso felpudo
da leoa, inspecionou os cantos e becos, até escolher mesmo a Ilha como
morada definitiva. Onde acabou fazendo amizade com Munhango,
primeiro, depois o discreto Matias, o gozador do Insepulto e por fim o
kaluanda Zero. Um grupo capaz de se defender, cada um contribuindo com
as capacidades para a sobrevivência.
Matias tinha o dom da obediência, um perfeito segundo homem ou
adjunto, incapaz de aspirar à chefia, ao mesmo tempo que podia reconhecer
o que passava no esconderijo da mente humana. Difícil de perceber como
fazia, ele sabia sempre se era verdade ou mentira o que alguém dizia.
Munhango era bom na pancada, sem medo, forte e ágil, com certa tendência
para o furto, no entanto, atraído por um brilho dissimulado, como se
cheirasse o valor das coisas, dom abençoado quando a vida estava difícil e
era preciso um objeto qualquer, relógio, gravador, pulseira, para vender.
Insepulto era também bom nas lutas, tinha passado pela morte e portanto
pouco valor dava à própria vida, mas guardava o humor de antes de todas as
desgraças. E Zero tinha a utilidade dos relacionamentos, o jeito para
perguntar coisas e perseguir pistas, além de extremamente hábil com facas e
cartas. Um grupo bom, se bem comandado.
O papel dele, Tobias.
O líder andava um pouco obcecado em encontrar Costa Longa para
terminar a tarefa que prometera a Himba. Ela não mostrava os sentimentos
e ele não sabia se lhe agradava o castigo infligido aos três restantes ou não.
Teve relutância em perguntar diretamente, sempre esperançado numa frase
dela, de agradecimento ou felicitações, ou então o contrário, dizer estão
perdoados, um bom cristão perdoa. Nessa zona do caráter da namorada ele
estava mesmo no escuro, pois lhe parecia Himba não ter fé nenhuma, bem
menos do que ele, que ainda conservava algumas ideias e reflexos da
educação recebida, mas ela se recusava a expressar opinião religiosa, nem
mesmo nas discussões de grupo depois de comerem, parecia assunto tabu.
Lembrava uma conversa com um dos missionários do Bié sobre
delinquência, em que o escocês lhe dizia, por vezes uma pessoa sofre um
trauma grande, qualquer mal acontecido a ela ou à família e, de repente,
deixa de crer, no fundo porque culpa a divindade de indiferença perante o
seu sofrimento. Seria a razão do silêncio de Himba sobre alguns assuntos?
Agora era importante saber a opinião dela, pois um dia iam apanhar o Costa
Longa e ele queria lhe dar o castigo que mais agradasse à namorada, matar
se fosse preciso, ela é que devia decidir. Mataria? Era contra os princípios
dele, embora admitisse lutar até à morte, em situação de defesa. Como
punição de outro, um assassinato a frio seria muito mais difícil de admitir.
Porém, não queria cair no desprezo de Himba, nem foste capaz de o
matar… Seria para mais tarde, Costa Longa ainda andava a fugir de Jonas e
sua ameaça feroz. Um dia perderia o medo ou receberia informações que
Jonas procurara outros ares, qualquer mudança que o levasse a voltar.
Então, tinha de saber a escolha de Himba. Estava disposto a seguir essa
vontade.
Himba, por seu lado, conseguia bloquear o cérebro e não refletir sobre o
assunto, como uma ferida que se tem e é dolorosa, mas preferimos ignorar,
numa tentativa patética de fazer desaparecer a dor. Ensaiara a experiência
com a perda dos pais, por vezes conseguindo passar períodos do dia sem
pensar no que poderia ter acontecido com eles, sem angústia. Horas
benditas, tranquilas. Era mais comum na parte da tarde, olhando o mar,
quando ele estava calmo como agora, embora de cores amortecidas pela
névoa quase permanente a cobrir o horizonte. No entanto, havia abertas no
cacimbo, o sol irrompia dominador e milhares de brilhos surgiam na crista
das ondas, cabritinhos de espuma cintilando. Sem novelos mais escuros,
enrolados uns nos outros. Nesses momentos encontrava paz, como quando
soube que Luemba tinha chegado bem a Benguela, finalmente alguém
conhecido venceu o triste destino provocado pela maldade humana, fica
bem, minha irmãzinha, aproveita do que a vida te quis dar, já viste o outro
lado, o lado onde nos encontramos, perigoso e de sofrimento constante,
aproveita então a bênção de teres passado além do espelho, como todos
deveríamos poder fazer.
E havia Kassule, observando à sua volta, todas as antenas de fora. Entrava
na cabeça da amiga? Sim, por vezes, começava a entender os longos
silêncios, sabia ela estava mergulhada em pensamentos tristes demais,
pensamentos de perda, sonhando com regressos impossíveis ao passado,
regressos que ele já tinha abandonado depois de viver anos a sonhar com a
recuperação das duas pernas para poder correr e jogar futebol. Nada podia
fazer para a ajudar, além de ficar por perto e mostrar com os olhos atentos
que velava por ela. Seria suficiente? Talvez ajudasse. Himba, pelo menos,
parecia notar a constante amizade e atenção, por isso tinha recusado
abandoná-lo para ir com a senhora que levou Madia, renúncia da libertação
apenas por causa dele.
Gesto nunca esquecido por Kassule, era um bem-agradecido.
10
***
***
***
Muitas coisas iam acontecendo na vida de Himba e Kassule, mas eles não
retinham tudo, apenas alguns aspetos mais relevantes. Seriam mesmo
relevantes? Ninguém manda na sua memória portanto é inútil selecionar o
que cada um nela enterra. Embora, muito depois, haja sempre quem diga,
perante uma atitude qualquer do protagonista, isso foi influenciado pelo
trauma que sofreu naquele dia. Os psicólogos clínicos são campeões desse
jogo.
Himba guardou bem no subconsciente o ataque de que foi vítima e do
qual se desembaraçou com uma pedrada fortemente aplicada na cabeça do
agressor? Tinha muitos pesadelos, mas vinham desse ataque, ou de todos os
outros? De um dia em que resvalou quando brincava com os irmãos na
beira do rio, caiu na água e imaginou num relance a mordidela de um
jacaré? Ou na emboscada em que caiu o camião transportando a família
para Luanda? Ou a primeira violação? Ou o pão que um miúdo lhe roubou
na praia? Ou aquela vez em que padre Adão foi duro para ela ao interpretar
mal uma frase inocente? Ou o desprezo na cara das pessoas quando
descobriam que fora uma menina de rua, ou de praia, melhor dizendo?
Tantas razões. Parecidas tinha Kassule, embora nunca revelasse sonhar
pesadelos e fosse alegre por natureza. Perdeu pai, mãe, até uma perna, no
entanto parecia gozar com benevolência a medíocre vida que tinha. Seria
mesmo medíocre? Como a considerava ele? Interrogações e mais
interrogações para o narrador.
Felizmente eles se interrogavam menos.
Himba estava a meio do curso, gostava mesmo dele e ia passando com
distinção. Kassule desenhava e pintava cada vez melhor, brincando sempre
que seria um artista, mas antes haveria de jogar futebol como Maradona, o
seu ídolo. Himba nunca sabia se Kassule falava a sério, se efabulava. Era
alto para os seus quinze anos e uma cara agradável, quase sempre
sorridente. Difícil distinguir nele quando algo lhe corria pior. Ela porém
sabia. Porque o sorriso não era o mesmo, havia um ricto qualquer no canto
da boca, ou então eram os olhos que brilhavam menos que o costume. Os
dois amigos se conheciam muito bem e desconseguiam de se enganar um ao
outro. Uma exceção: Himba conseguiu esconder dele o ataque a que tinha
sido sujeita na estrada para o lar. E até a dúvida morando em si para sempre
desde essa noite, por ter sido descoberto o corpo de um homem já em
decomposição, a pequena distância dali, num ximbeco miserável, três ou
quatro dias depois. O mujimbo chegou ao lar, teria sido assassinato, pelo
menos tinha um osso da cabeça metido para dentro, certamente provocado
por objeto contundente. Podia ser o mesmo tipo, que ainda teve força
suficiente para chegar ao seu refúgio, ou podia ser outro miserável. Havia
uma dúvida razoável, provocando em Himba um baque forte quando lhe
contaram, mas nunca teve certeza. Ou não quis descobrir. Nem perguntou
pormenores. Ela tinha usado o braço esquerdo para desferir a pancada,
acertando portanto no lado direito da cabeça do agressor. Mas nem inquiriu
para saber que parte da cabeça do homem encontrado tinha sido amolgada.
O desgraçado foi logo enterrado, dado o estado do corpo, a polícia
mergulhada em demasiados afazeres para tentar descobrir como morre um
vagabundo com um osso da cabeça metido para dentro. Sem detalhes,
Himba nunca poderia garantir, era aquele mesmo. No entanto, se tratava de
uma coincidência perturbante. Preferiu juntá-lo a Tobias, os dois numa zona
qualquer da sua memória a que preferia não aceder. Embora com Tobias o
feitiço não resultasse tão bem, pois à noite, deitada, muitas vezes sentia o
braço dele por cima do corpo, pensamento fazendo-a dormir em segurança.
Tobias a levava para a areia da praia.
Também escondeu de Kassule uma cena passada no Instituto, essa então
imprópria mesmo de ser contada. Encontrou uma certa dificuldade em
Economia Política, disciplina teórica cujo programa se falava em alterar
totalmente, pois era ainda inspirada no dos países socialistas colapsados
com os escombros do muro de Berlim. O diretor pedagógico do Instituto,
conhecido por tentar seduzir as jovens estudantes e colecionar conquistas
amorosas, era o professor dessa matéria. Usava sempre fato e gravata, com
um lencinho a condizer. Diziam, eram fatos caros, mas os alunos não
sabiam distinguir. E era muito improvável que conseguisse obter fatos
mesmo caros com o salário de professor. Mas se dizia isso e ninguém
negava. Teria outras fontes de rendimento. Devia passar bastante tempo
com o ferro quente a desfrisar o cabelo, mantendo-o em caracóis apertados
que provocavam a inveja dos colegas. Metade das moças estavam
apaixonadas por ele, no que deviam concorrer com algumas professoras
mais novas.
Já tinha lançado algumas piadas indiretas a Himba, com seus
prometedores dezassete anos. A prova final se aproximava e ela sentia estar
mal preparada, a única exceção em todas as disciplinas. Lhe aborrecia
estudar aquela matéria, de forma um pouco inexplicável, porque engolia
outras talvez mais aborrecidas. Seria do professor? O chumbo em Economia
Política era uma possibilidade que a deixava fora de si. Concebeu então um
plano. Começou a procurar os olhos do diretor pedagógico nas aulas, não
desviava os seus, sorria levemente, só então baixava os olhos, como
embaraçada. E debandava logo a seguir à aula. Ele bem a procurava pelos
corredores, mas ela tinha artes de se colar nas paredes. O homem passou a
estar mesmo muito interessado, gostava das moças esquivas. Nas vésperas
dos exames, ela bateu à porta do gabinete do professor. Este autorizou a
entrada e um sorriso rasgado lhe atravessou a face, ao ver quem o visitava.
– Senta-te. A que devo a honra da tua visita?
Himba sentou na cadeira à frente, muito direita. Que é que estou a fazer
aqui?, ainda se perguntou num último arrependimento. Mas precisava de ter
boa nota naquela disciplina e a vida era uma guerra, aprendera desde
sempre.
– Professor, tenho dificuldade na Economia Política e preciso de saber
duas ou três perguntas que vão ser feitas no exame.
Ele olhou-a diretamente, a estudar. Notou, o peito da moça arfava. E
como era pontiagudo aquele peito. Tanta promessa!
– Espera lá. Queres que te diga que perguntas vão sair na prova?
– Só duas ou três.
– Duas ou três ou todas é a mesma coisa. – Tirou um molho de chaves do
bolso e abriu uma gaveta. Mostrou uma folha de papel. – Vês? Está aqui a
prova que fiz. Mas não te digo nem uma das perguntas. Nem te entrego a
folha…
Até aí o plano estava a correr como ela pensara. Ainda melhor, pois não
imaginava que a prova até já estava feita.
– Não quero a folha, professor. Só uma fotocópia.
Ele riu do descaramento. Ela também se espantava com a sua ousadia,
mas manteve a cara fechada.
– E que ganho eu com isso?
– Não sei. O que o professor quer ganhar? Dinheiro não tenho.
Ele olhava para ela cheio de dúvidas. Demasiado direto, podia ser uma
armadilha. Sabia estar em vantagem, era o professor e, ainda mais, o diretor
pedagógico. E era bonito como homem, as mulheres rodopiavam à volta
dele. Já tinha percebido a atração que a moça sentia por ele. Não podia ser
armadilha nenhuma, ainda por cima vinda de uma ingénua como aquela,
nascida de certeza num mato qualquer. Ficou calmo. Voltou a pôr o papel na
gaveta mas sem a fechar.
– Tens alguma coisa para me dar?
– Sou pobre, vivo num lar fora da cidade. Não tenho nada para lhe dar…
Não devia ser ela a tomar a iniciativa, isso sabia. Se corresse mal, ela só
tinha pedido, mais nada, é crime pedir umas perguntas de um exame? É,
claro que é, mas menos grave do que propor o negócio em que os dois
estavam a pensar. Estariam a pensar no mesmo negócio? Subitamente o
diretor se decidiu e levantou da cadeira. Se postou ao lado dela, lhe tocou
na face, depois no pescoço, demorou aí a mão, hesitando. Era o passo
decisivo, a moça sabia, tremendo por dentro, mas aparentando firmeza de
granito preto. Muito lentamente, explorando, a mão deslizou para os seios.
Himba saltou da cadeira, representando muito bem a honra ofendida.
– Que está a fazer, professor? Haka! Não respeita as alunas?
O diretor ficou de braço no ar, parado, estupefacto, perante uma reação
tão inesperada. Não lhe ocorria nenhuma ideia. Respirou fundo, recuou,
com o braço estendido para a frente a pedir tréguas, por favor, ouve.
– Podemos fazer uma troca... Que dizes? Ficas com a prova e eu gozo o
que tens em baixo da saia por uma hora. Tenho o carro ali e podemos sair
sem que ninguém repare.
Ela olhou-o de frente, mantendo a posição de força. Um sorriso de
desprezo nos lábios.
– Por quem me toma? Alguma prostituta? Se volta a me tocar, eu grito. E
bem alto. Não imagina como consigo gritar alto.
O diretor pedagógico recuou para a secretária e as bagas de suor
ininterrupto surgiam na testa, apesar do ar condicionado.
– Que queres, afinal? – suspirou.
– Já lhe disse. Uma fotocópia dessa prova. E não pode mudar as
perguntas à última da hora.
– Se não te der a fotocópia?
– Grito. E tenho as confissões da Ivone, da Luísa, da Olga, e de mais
algumas, que o professor lhes fez coisas e promessas. Vai para a cadeia e
nunca mais pode pôr o pé numa escola.
– É chantagem, é crime.
– Crime já cometeu, apalpou as mamas de uma menor de idade.
Pedófilo!
Encurralado, olhou para a porta fechada, outro erro cometido. Os
professores não deviam receber moças no seu gabinete e manterem a porta
fechada, regra primeira de segurança. Ela percebeu o que estava por trás do
olhar dele.
– E nem pense em abrir a porta porque eu grito. Se sai de onde está, é só
para ir ali à fotocopiadora. Vá, faça a cópia, e o assunto fica resolvido.
Ele não tinha escapatória. Se dirigiu em passo pesado para a máquina, fez
a fotocópia e entregou-lha.
– Prometes ao menos que isto fica entre nós…
– Se não alterar as perguntas…
E ela saiu do gabinete, a tremer de medo, com a fotocópia bem guardada
no saco das aulas. A prova não foi alterada, foram outros os avaliadores,
Himba conseguiu nota elevada. Não o voltaria a ter como professor, por
isso iam ignorar-se até ao fim do curso dela. Não, esse segredo não contava
a Kassule nem a ninguém. O pedófilo continuou a atuar no seu gabinete?
Nunca soube nem lhe interessava. As outras que se safassem, cada um se
defende com as armas que possui, princípio escondido de Himba desde os
tempos da Ilha de Luanda. Só que nem sempre podia usar as armas.
É tudo uma questão de oportunidade.
De vez em quando ia espreitar o retrato dela feito pelo Kassule. Nos olhos
dela estava determinação? Estava, sem dúvida. Tinha também doçura. Ela
fora dura com o professor, nada de doçura, foi aliás isso que o atraiçoou, até
então devia pensar nela como uma aluna meiga, carente, apaixonada pelo
deus que se apresentava à sua frente, falando com palavras difíceis que
parecia dominar como o herói que era. Como poderia ele se imaginar na
posição de alvo? Deve ter sido uma grande deceção, se dizia ela, quando
pensava sobre o assunto. Não sentira remorsos e continuava na mesma.
Tinha de passar no ano e a disciplina era um escolho. Removeu o escolho.
Ainda por cima se tratando de um criminoso, um pedófilo, de que todos
falavam mas sem atuarem contra o prevaricador. Ela fez justiça. E lucrou
com a justiça. Nada tinha de se envergonhar, a vida era uma guerra, como
todos lhe diziam, e ela tinha aprendido nas circunstâncias mais difíceis. Ia
agora ter remorsos?
Remorsos são para os fracos, ela era uma lutadora.
Quanto a Kassule, teve uma boa prenda de Natal. Por insistência do padre
e de Radamel, lhe arranjaram a tão desejada prótese. Não das que eram
fabricadas ou adaptadas no país, pesadas e rígidas, mas uma importada,
moderna, articulável. O tamanho podia ser aumentado ou diminuído e até o
tamanho do pé, para poder calçar sapato esquerdo igual ao direito. Antes
nem pensara na questão do sapato, não o incomodava nada como fazer, pois
usava sempre chinelo. Queria poder andar, mesmo coxeando e com calçado
diferente. Mas agora, com um par de sapatos e calça, podia disfarçar a sua
deficiência. Se conseguisse a adaptação. A grande vantagem desta prótese é
que podia ser alongada para acompanhar o crescimento da perna incólume.
E ele prometia ter ainda muito para crescer. Também era muito leve e um
material de primeira, disse o arquiteto, impossível de quebrar. Ia três vezes
por semana ao Centro de Reabilitação para aprender a usar a perna.
Também a solidariedade entrou em jogo para isso, pois a Reabilitação
ficava no centro da cidade e era preciso pagar os bilhetes de candongueiro.
Usaram o fundo de Himba, pedindo um reforço suplementar, como já o
tinham usado para outras emergências do género. O número de apoiantes
tinha aumentado, o lar gozava de alta reputação e alguns governantes
aproveitavam para melhorar a imagem pessoal com alguma doação especial
e muitos jornalistas a cobrirem o espetáculo da oferta. Kassule acabou,
portanto, por se habituar à prótese. Doía muito de manhã, quando a
colocava, se queixava a Himba, mas só a ela. Depois diminuía.
– A dor vai passar, é o que eles dizem. Também no sovaco me doía muito
a muleta, depois ficou calo e deixou de doer.
Meses, anos? Demoraria. Ia, no entanto, vencer essa batalha, dizia Himba
e ele acreditava.
– Imagina, um dia vou poder correr. Ainda não tento, falta o equilíbrio.
Uns saltinhos só…
Ela batia palmas, animando.
– E até vais jogar futebol… Não é o que dizes sempre?
– Bem, isso é mesmo só no gozo. Sei, nunca poderei jogar futebol…
– Porque não? Explica, Kassule. Porque não?
Uma esperança maluca entrava nele, esperança tão maluca como as ideias
que aquela irmã mais velha por vezes lhe incutia.
– Porque não? – murmurava Kassule. – Podia rematar com a perna boa, a
outra a servir de apoio. Questão de treino.
Já tinha havido milagres maiores.
Demorou meses a se adaptar, porém disfarçava as dores e ia para a escola
com a prótese, calças e sapatos. Já não era um rapazinho, agora mais
parecia um adolescente que coxeava. As pessoas iam deixando de o ver
como uma pessoa a quem faltava um órgão, apenas alguém que, por um
qualquer acidente, ficara com uma lesão um pouco grave, e coxeava. De
sorriso nos lábios.
Estava decidido a não seguir os estudos normais, ficava com a oitava
classe, que tinha completado. Queria ser pintor e portanto prosseguiria
buscas nessa linha, mesmo se de maneira menos formal. Havia cursos
irregulares, encontros de jovens artistas, onde se podia aprender alguma
coisa. Não precisava saber escrever melhor nem conhecer a estrutura da
matéria ou os pensamentos de um rato quando lhe apresentam um pedaço
de queijo. Acreditava serem coisas interessantes para outros, mas não para
ele. Odiava Matemática, tão amada por Job, o qual, infelizmente, nunca
seguiria para um curso superior, casado e com um bebé, o que acarretava
responsabilidades. Estava bem no emprego arranjado pelo senhor David
numa empresa com sede em Benguela e um ramo em Luanda, apoiava o lar
do padre no fim de semana, se sentia feliz com a família em crescimento,
mas seria difícil conseguir manter isso tudo e estudar.
Na vida, tem de se saber deixar alguma coisa para trás.
Ele nunca abandonaria a pintura, nem se voltasse de novo a passar fome.
Admitia que no princípio do próximo ano escolar, percebendo que ele não
se queria matricular, o padre Adão talvez lhe dissesse, está na hora de
arranjares outro alojamento. Pensamento assustador. Tão assustador que
nem a Himba o revelava. Mas depois acalmava, não, o padre os aceitou sem
obrigação de estudarem, enfim, estava pressuposto mas não era
absolutamente obrigatório, eles é que queriam, pois havia outras crianças
que nunca quiseram estudar, sempre a fugirem da escola. Só tinha quinze
anos e o padre não ia pô-lo na rua. Para compensar, trabalharia no lar, havia
sempre muita coisa a fazer e ele tinha jeito para pintar paredes ou consertar
mobílias, com isso justificava a permanência, pelo menos até aos dezoito
anos, a maioridade. Outros tinham medo dessa idade, significava ida
obrigatória para a guerra, muitos amigos dele desapareciam na altura. Ele
não tinha de se preocupar, já tivera o seu ferimento, gozava consigo próprio,
só faltara a medalha. Por vezes gozava também com os amigos, vocês não
sabem o que é guerra, eu sou um antigo combatente e ainda por cima
mutilado de guerra. Os outros faziam uma careta incrédula, não
respondiam, ele trazia no corpo as provas, dizer mais o quê?
A paixão pelo desenho e pintura levava-o a ficar horas a admirar livros de
arte que os kambas emprestavam, ia conhecendo os nomes dos pintores
famosos, estrangeiros e nacionais, estudando as fotografias dos quadros de
diferentes escolas e épocas, se interessava pela história do tema, mas
também apreciava muito a escultura, sobretudo a clássica africana. Radamel
um dia lhe deu uma fotografia de uma máscara tchokuê, uma Muana Puó,
quer dizer a mulher-menina, observa o que é beleza, e ele viu, para lá das
linhas esculpidas da face bela da moça, um mundo inteiro, ovalidades
dentro do oval do rosto, dramas, sonhos, fascínio. Encontrou máscaras
parecidas em feiras de artesanato e em lojas, era um dos ícones maiores da
arte do Leste do país e do vizinho Congo, mas nenhuma tinha o enlevo
daquela fotografada num museu belga, para onde a máscara fora levada há
muitos anos. Nela não havia cor, era negra como o modelo e a cor da
madeira, ébano, mas afinal a cor não era tudo na arte, sem ela se podia
pintar um universo de sensações. Quando Himba lhe perguntou o que via
naquela Muana Puó para ficar horas longe da vida, mirando, ele só disse
beleza, beleza pura, total. Não sei explicar, só sinto, esta máscara faz-me
vibrar, é o mundo, olha, olha para o meu braço, a pele está toda arrepiada,
assim fico quando tenho vontade de chorar, chorar de alegria, de prazer.
Por vezes acontecia a ver o mar calmo da Ilha.
O jovem não desfitava a foto e ela achava estranho, mas ao mesmo tempo
se sentia contente por perceber o embevecimento dele. Uma alma sensível,
procurando, não o sentido da vida em si, mas o sentido da vida na beleza do
mundo. Para lá da desagregação do mundo, ou nessa mesma desagregação,
ele descobria encanto, era um quase milagre.
Tinha mudado muito. Quem hoje estudasse Kassule, não encontraria o
menino astuto e desenrascado da praia, quando ela o conheceu, sabendo
muitas coisas, inventando o que ignorava, sempre porém com uma solução
para um problema. Bem, nem sempre tinha soluções, ninguém as tem, mas
se movimentava na rua com um sentido da oportunidade que era fora do
comum na idade dele. Já era muito curioso, perguntava sobre tudo, olhava e
voltava a olhar algo despertando a sua atenção, sim, essa curiosidade o
perseguia. No entanto, agora se tornara mais pensativo, virado para dentro,
ao mesmo tempo que observava as particularidades das coisas que todos
viam mas nem reparavam. Não só as estudava, como as reproduzia. E o que
ele reproduzia tinha uma ideia, uma mensagem, não eram imagens mudas,
mesmo se belas. Kassule se fartava de falar através das pessoas que
desenhava ou dos bichos que pintava. Tinha acontecido primeiro com o
desenho que fez de Himba. Ela se revia naquele desenho, era sempre ela,
quer estivesse orgulhosa de alguma vitória, quer se sentisse envergonhada
por algum ato menos digno que cometera, o orgulho e o remorso ao mesmo
tempo. Um único retrato, escondido na gaveta de uma cómoda, podia
refletir estados de espírito tão opostos? Sabia, era a sua própria consciência
a se rever no retrato. Mas quantos seriam capazes de criar uma obra que
provocasse tais sentimentos dissonantes? Deviam ser muito bons, muito
verdadeiros. Ideia que por vezes lhe causava algum medo, ao desenhar uma
pessoa ele entrava na alma dessa pessoa, via o modelo tal como era? Ou era
o modelo a se ver apenas como queria, a dado momento? No fundo, voltava
sempre ao tema de ficar sem saber quão bem Kassule a despia ao desenhá-
la. Podia esconder algum segredo, algum defeito, se para ele posasse?
Mesmo sem posar, se ele apenas a imaginasse e a recriasse com o lápis e o
papel?
Jogo muito perigoso para quem oculta a cor da alma.
***O pai de Patrício voltou a ser nomeado ministro. Já tinha sido muitos
anos antes, o que lhe proporcionou a maior parte da sua fortuna, se
fôssemos acreditar nas más-línguas, o que todos na realidade fazemos. Os
amigos de Patrício eram os primeiros a defender essa origem pouco digna
da riqueza paterna, na qual ele se lambuzava com prazer evidente. Desta
vez a situação era complicada, pois mandavam os protocolos que o país
tinha assinado no quadro da região pugnar pela transparência nos negócios
e boa governação. O que implicava uma rápida substituição de nome do
titular nas empresas de alguém que fosse nomeado para o governo. Patrício,
na tarde mesma da nomeação, foi empossado como administrador e sócio
principal de muitos dos negócios paternos, alguns outros passando para um
tio ou irmão. Convidou os amigos para o jantar e até Alfredo, ultimamente
muito arredio, recebeu telefonema dele, sei que estás em Luanda, faz o
favor de vir comemorar comigo a minha ascensão aos cargos de Presidente
do Conselho de Administração de algumas companhias e Diretor-Geral de
outras, o que é uma grande chatice, portanto pelo menos hoje quero ter
todos os amigos comigo para em conjunto solidário chorarmos a perda de
tempo que vou ter a gerir as ditas cujas empresas da túji.
Jantar de trinta pessoas, encomendado às cinco da tarde para começar às
nove da noite. Sofia já tinha treino, não entrou em pânico, reuniu o pessoal,
vamos reservar aquela parte toda da sala, preparem tantas doses disto mais
tantas daquilo, ela conhecia os gostos, preveniu por precaução quarenta
refeições e foi limpar as garrafas correspondentes que seriam derrotadas no
jantar de comemoração. Tinha sentimentos divididos: por um lado, ficava
contente por um amigo ter oportunidade de aplicar ao mais alto nível o
curso e mestrado de gestão de empresas que tinha feito nos Estados Unidos,
sem nunca ter praticado nem como ajudante de um diretor qualquer. Por
outro lado, percebia a injustiça da coisa, pois não seria Patrício a trabalhar,
ele ia se limitar a aparecer de vez em quando na sede do grupo de empresas,
onde ficaria com o gabinete que antes o pai ocupara para se refastelar
nalguma poltrona mais confortável, telefonando aos amigos ou clicando
numa rede social sobre fofocas, enquanto uma série de estrangeiros com
muitos títulos e fraca experiência iam gerindo as empresas, combinando
contratos com o ministério do pai, sem concursos públicos nem
concorrentes, por vezes desviando para as suas próprias contas as comissões
dos negócios, outras pondo nos depósitos offshore do novel ministro ou de
algum familiar muito próximo. Patrício não ia controlar nada, pois era
apenas um bom e simpático rapaz com propensão para despesas luxuosas e
inúteis.
Se esmerou na preparação do jantar, talvez o pai dele aparecesse lá para o
meio, lhe confidenciou ao telefone Patrício, pelo menos ia tentar convencê-
lo, o que seria excelente para ela, nunca nenhum ministro se tinha dignado
entrar no restaurante, por dois minutos que fosse. Já tinha estado perto de
gente importante, os seus amigos de certa forma eram, mas nunca tinha
cheirado diretamente o perfume ligado ao poder. Através de Patrício ia
acontecer.
Os clientes habituais encheram a parte não reservada e outros mais
atrasados já não conseguiam entrar. Ela pedia desculpa, uma reserva de há
uns tempos para um grupo numeroso, institucional, frisava a palavra para
perceberem que ela não poderia recusar, mas contava com os fregueses para
a segunda mesa ou então num dos próximos dias. A notícia correria por
aquela área da cidade, para se ir jantar no restaurante da Mamã Ester agora
era preciso reservar mesa ou ir muito cedo, estava sempre cheio.
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Os do grupo foram chegando e Patrício não foi dos primeiros, nunca era.
A nomeação do pai não o faria mudar os hábitos. Mesmo para um jantar de
sua iniciativa.
Chegou Jared e Abigail, juntos, com ar apaixonado. Depois Salomé,
sozinha, depois Solferino com nova amiga, depois Segismundo e Tiago,
mais tarde ainda Alfredo, o qual ignorou Salomé e se sentou perto de
Abdias, cumprimentando todos em geral e sem olhar para a ex-mulher,
confirmando a separação de forma pública, o que também já deixara de ser
novidade. Havia no grupo umas pessoas desconhecidas de Sofia e os
restantes membros habituais da tribo, sendo o novo grande empresário um
dos últimos a aparecer, mas já com os copos e falando muito alto, arrotando
autoridade emprestada. A mesa foi pequena para os que se juntavam a eles
e Sofia providenciou uma fora de uso por ter uma perna muito insegura,
mas lá veio a mesa e cadeiras diferentes, o que ninguém notou, até porque
estavam mais interessados em esvaziar os copos com os aperitivos e provar
os quitutes que ela mandara preparar durante o fim de tarde, quitutes da
terra com jinguba, mandioca, gengibre, milho, açúcar e jindungo,
misturados com pastéis e salgados de proveniência europeia de muita
variedade, o que por si só seria uma refeição, mas se apresentavam como
entradinhas para puxar as bebidas. De maneira que ninguém notou a
periclitância da mesa acrescentada, tendo no entanto Sofia avisado os que a
ela se sentaram para terem alguma prudência no jogo de cotovelos, pois
uma pressão mais forte podia provocar um desastre. Patrício falou em trinta
pessoas mas apareceram mais e se o senhor ministro viesse com o seu
séquito, claro, ministro nunca anda sozinho, então a situação se tornaria
catastrófica, ou como dizia um antigo combatente, empírica.
Uma conversa muito animada se passava com o agora verboso Abdias,
nas suas vestes de jurista sem casos, o qual se embebedara mais cedo do
que era habitual e insistia com Patrício sobre o que todos suspeitavam mas
não ousavam deitar para fora:
– Não podes fazer essa jogada, meu. Tens mesmo de controlar muito bem
os contratos, sabes que existe um Tribunal de Contas que vai estar atento, é
um conflito de interesses… Como fazer negócios com o ministério do teu
pai? Todo o mundo vai falar.
Perante o desinteresse de Patrício, ele insistia:
– Podes dizer que a empresa do teu grupo tem autonomia e que ninguém
tem culpa que o ministro contratante seja teu pai, mas o que sempre foi feito
agora cai mal na opinião pública…
Grande gargalhada dos amigos a acompanhar a eloquência do
pseudojurista.
– Alguém quer saber da opinião pública? – perguntou Solferino, com
lágrimas nos olhos de tanto rir.
Uma senhora acrescentou:
– Ainda se fosse o Conselho de Segurança…
Mais gargalhadas.
– Qual deles, o da ONU ou o nosso? – perguntou Jared, o homem das
Relações Internacionais.
Novo riso histérico. Depois pouco se entendia, pois falavam e riam todos
ao mesmo tempo, cada um querendo ser mais divertido que o parceiro do
lado. Sofia acompanhava com dificuldade as piadas, estava muito afastada,
embora atenta à mesa em U, não fosse faltar alguma coisa. Começavam a
servir os pratos principais e ela queria ouvir as opiniões, sobretudo das
pessoas que vinham pela primeira vez. Dos outros já conhecia os gostos e
dizeres, variavam pouco.
A ausência de Kaleb lhe chamara a atenção. Por demais evidente aos seus
olhos. Podia estar fora de Luanda, ter surgido algum trabalho, o qual faltava
ultimamente como o próprio lhe tinha dito e repetido várias vezes. Quem
sabe viajou? Não tinham compromisso, mas ele avisaria se se ausentasse
por um período de tempo, achava ela. Afinal havia entre eles um pouco
mais do que amizade, embora sem hipótese de avançar muito, por vontade
dela. Andava chateado com as barreiras impostas ao relacionamento, claro,
mas não lhe faria a ofensa de viajar sem a prevenir, não, isso não era
próprio de Kaleb. Tarde demais, já não viria ao jantar. Dor no peito. Sem
importância, disse a si mesma, já passa. No entanto, não passava. Era
mesmo sentimento de ausência, saudade. Tinha dificuldade em reconhecer,
mas a saudade estava lá incrustada, como sempre, saudade de muita coisa
que devia ter ocorrido e não aconteceu, muita gente que foi e não se sabe
para onde, na voracidade da vida citadina da grande leoa. Gostaria muito de
ter cruzado os olhos com Kaleb, de ver aquele sorriso escondido nos lábios
cuja destinatária só ela reconheceria.
Nem Kaleb apareceu nem o novo ministro. Patrício olhava muitas vezes
para a porta, expectante. Em vão. Ainda não seria hoje que exibiria o pai, o
seu máximo ídolo, à curiosidade dos amigos, embora todos o conhecessem.
Não na intimidade de uma conversa informal, no meio de copos, o velho se
resguardava um pouco das armadilhas sempre preparadas pelas selfies e
respetiva divulgação por tudo que fosse rede social. Macaco velho com
calos no rabo, o seu pai. Teve de responder a nova arremetida de Abdias
sobre o assunto chato da incompatibilidade de uma companhia de um filho
estabelecer contrato com o ministério de que o pai fosse responsável. Ou
vice-versa:
– Não me lixes, meu. Eu ainda nem conheço o nome das empresas, só de
algumas, de ouvir por acaso o velho falar com os amigos… Não faço a
mínima ideia de qual a sua atividade. E já me vens com conselhos e
restrições sobre o que elas devem fazer e evitar. Não achas isso um bocado
boêlo e a despropósito? É mesmo muito. Vá, bebe mais um copo, que
viemos cá para isso.
Recebeu palmas dos ouvintes. Estavam ali todos para festejar novas
oportunidades e pretexto para encontros, farras, bacanais, não para se
enredarem nos meandros dos negócios da velha guarda e suas leis
incompreensíveis, coisas chatas que para poucos eram sagradas.
– Ainda por cima vindo de ti – disse Segismundo. – Já esqueceste de
como o teu papá enriqueceu? Alguns de nós ouviram uns segredos gritados
pelas casas e nem todos esqueceram tudo…
Abdias se virou para o agressor cheio de vontade de responder com
violência. Mas lhe saiu uma voz pouco convincente:
– Não vamos mexer na merda uns dos outros, OK? Eu nem sei dessas
coisas, nem o meu pai me pôs ao corrente dos seus negócios… Até podia,
sou da área do Direito.
– Se é para mostrar que és um brilhante jurista que estás aí a chatear o
Patrício, te saiu o tiro pela culatra – gritou uma dama de vestido amarelo
brilhante, parecido ao das princesas de banda desenhada. Só lhe faltava o
grande medalhão da sorte.
Ainda por cima a frase foi proferida num momento em que Sofia se tinha
aproximado por outra razão da mesa e forçosamente ouviu. A frase
assassina fez Abdias se calar de vez, para sossego de Patrício. Sossego
permanente por esse lado, mas desilusão pela ausência paterna. Também
permanente.
Os outros clientes foram abandonando o restaurante até por fim a sala
ficar só com a grande mesa ocupada, onde se amontoavam as garrafas de
todos os álcoois do planeta. Sofia perguntou a Patrício se algumas garrafas
vazias podiam ser retiradas e ele aquiesceu, era mesmo melhor trazer mais
cheias. Estavam no momento do champanhe para o brinde, quando ele fez
sinal à dona da casa para se aproximar, um brinde primeiro a quem nos
recebe tão bem e com tão boa comida, todos batendo os cálices, também
Sofia. A partir dessa altura ela ficou por ali, mas desta vez de pé, pois a
mesa era grande demais e devia se aproximar de um ponto ou outro para
poder inspecionar o trabalho do pessoal. Lhes tinha prevenido, esta noite
ficam a servir mais tempo, é especial, depois compenso. Dispensou os
trabalhadores da cozinha, havia sobremesas e gelados suficientes para o
resto do jantar, agora só as bebidas contavam e um ou outro café ou chá,
incumbência que o pessoal de sala podia resolver.
Tinha decidido antes, romperia o princípio de fechar a porta à meia-noite,
era uma ocasião especial, não é todos os dias que um dos nossos tem o pai
nomeado ministro.
– Já encomendei um – quase gritou Segismundo, o poeta.
Sofia pensou que ele falava para ela, reclamando de atraso no serviço. Se
aproximou e depois percebeu, falavam entre eles de outro assunto qualquer.
– Um puto é fixe – disse Tiago. – Eu que o diga. Todos os meses brinco
com ele. O azar é a mãe, não escolhi muito bem.
Sofia percebeu o tema. Eram conhecidas as queixas de Tiago em relação
à mãe do filho dele, devia estar com três anos agora. Se lembrava de ele
confessar no ano passado que até teve vergonha de a levar a casa para a
apresentar aos pais. Uma ordinária, tinha sido a sua expressão final. Fora
mesmo obrigado, tinha de mostrar a mãe do primeiro neto dos pais dele e
não podia levar a criança sozinha, como se fosse uma abandonada. Os pais
gostaram muito do mona, lhe descobriam parecenças com ambos, mas
depois lhe ralharam a sós como a uma criança, que raio de mulher
escolheste para lhe fazer um filho, foi a primeira e última vez que essa
senhora entrou aqui em casa, proibição que ele cumpria com prazer. A bem
da verdade, só a via quando ia brincar com o filho durante meia hora, lhe
deixando um bom presente, e depois desaparecia durante um mês. Por
exigência da mãe de Tiago, regularmente ele fazia um depósito bancário
para as despesas da criança. Uma soma a seu ver exagerada com a qual a
«ordinária» vivia na melhor…
– Mas afinal encomendaste com quem, Segismundo? – perguntou uma
senhora.
– Ora, uma por aí. Não interessa, a criança é que conta.
– Deve ser como a mãe do meu canuco – disse Tiago.
– Não é chata, nem interesseira, parece… Só que foi uma relação pouco
séria, de curta duração… Ela ficou grávida… Que se lixe, está
encomendado e pronto!
– Tens a certeza que é teu? – perguntou a senhora.
– Certeza, certeza, alguém a tem? Agora há os testes, é mais seguro. Mas
acho mesmo que é, não é bandida, só que…
– Ao menos é bonita? – perguntou o homem que estava ao lado da
senhora.
– Isso é, sem dúvida – disse Segismundo.
– É o que interessa – voltou a falar o homem, cismando com o copo nas
mãos.
A mulher lhe mandou um olhar rancoroso, então só a beleza conta? A
reação da esposa levou o senhor a pensar baixo, se a mãe é bonita o filho
tem possibilidades de também ser. Desviou o mambo:
– Menino ou menina?
– Ainda não se sabe. Queria que fosse miúdo, mas…
– Já há mulheres a mais nesta terra, não é? – perguntou Jared do outro
lado da mesa.
Todos os próximos riram. Senhoras inclusive.
– Nunca são demais – disse Solferino.
Dada a distância a que Solferino se encontrava, no meio do zoar de tantas
vozes, Sofia se espantou, como pôde ele seguir a conversa? Ouvidos de
tuberculoso, como diziam? Ou entendeu apenas a fala de Jared, mais perto
dele e se intrometeu na conversa, para agrado das damas. Solferino era
muito atencioso para as mulheres e tinha um enxame delas sempre à volta.
Não nessa noite, em que a estrela era Patrício.
Sofia mudou de posição e se aproximou de Salomé. Lhe segredou ao
ouvido:
– Estranho Kaleb não ter aparecido para uma comemoração do amigo do
peito. Sabes dele?
Salomé se virou, os olhos a brilhar de forma anormal, parecia liambada.
– Porque é que haveria de saber, não me dizes?... Já agora, por acaso até
sei. Ele não te disse?... Tem um irmão muito doente, foi visitá-lo à África
do Sul.
Havia muita violência controlada na fala dela. Ele não te disse?
Acusação? Como se Sofia e Kaleb fossem confidentes para tudo, o que era
injusto. Nem sabia existir um irmão na África do Sul.
Sofia percebeu na dureza dela. Salomé a acusava de alguma coisa, fruto
de intriga ou má interpretação, só podia. Sofia tinha o seu orgulho, não ia
perguntar o que lhe mexia com os kalundús, que se lixe, menina mimada!
Percebeu uma coisa porém, isso era certo, tinha perdido Salomé. Antes
perdera Kaleb, também de forma pouco explícita.
As perdas começavam a contar.
O resto da noitada foi um fardo difícil de suportar. Embora tivesse dado
bué de lucro.
No fundo, não era o que importava?
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