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Ficha Técnica

Título original: Se o Passado não Tivesse Asas


Autor: Pepetela
Edição: Cecília Andrade
Revisão: Clara Boléo
Capa: Maria Manuel Lacerda
Fotografia do autor: © Jorge Nogueira
ISBN: 9789722060165

Publicações Dom Quixote


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Este livro segue o Novo Acordo Ortográfico de 1990.


O país é de todos e não deve ser culpado
pelos erros dos seus filhos.
(fala de um artista naif dos
mercados de Luanda)

As terras exigem muito das pessoas.


Mais do que elas podem dar.
Quando as pessoas falham, as terras nunca
se sentem culpadas.
Talvez tenham razão.
Mas como se devem as pessoas sentir?
(dúvida de um cágado velho,
sussurrada a um milenar muxixi)
1

1995

A menina se deslumbrava com a beleza da paisagem.


Vinha, mais a família e outras pessoas, vinte ao todo, no alto de uma
camioneta carregada de imbambas. Parecia estava no cume do mundo. A
camioneta tinha pedaços de toldo cobrindo a carga, onde todos sentavam,
mas aqui e ali despontavam sacos, talvez de milho, noutro lado espreitavam
peles inteiras de boi, que cheiravam mal, num canto haveria galinhas
protegidas por bidões vazios, pois se ouvia o doce cacarejar. O camião ia
bem carregado e foi uma sorte lhes terem aceitado, dissera o pai, quando
saíam da terra onde sempre viveu, no Planalto Central. Era lindo o Planalto,
com enormes rochedos cinzentos e negros emergindo como sentinelas
gigantescas do verde familiar do capim, das nakas abandonadas à beira dos
rios, do mato rasteiro avançando por entre as cubatas vazias das aldeias.
Abandonavam tudo porque mais uma vez a guerra chegou na terra deles. Já
tinham tido muitos azares antes, com ataques e ocupações acompanhadas de
mortes, violações, raptos, saques. A calma se instalava e depois aparecia
outro bando e as mesmas cenas se repetiam. Desta vez o pai disse chega,
não aguento mais, vamos para a capital, lá temos família que vai nos ajudar
no princípio, prometeram mesmo. Arranjo trabalho, um qualquer se não me
aceitarem na profissão, vivemos como pudermos, alugamos a mais modesta
das casas e as crianças retomam a escola, mas tudo é melhor que isto.
Andavam aterrorizados, por isso Himba rezou calada para que o pai não
mudasse de opinião.
Ele a manteve, com hesitações. E um atraso.
Agora estavam em cima da camioneta, a caminho da cidade grande, que
sempre preenchera sonhos e temores, Luanda. Desfrutando da paisagem.
No princípio ela teve receio, nunca tinha viajado em cima de uma lona mal
cobrindo a mercadoria, sem sítios onde se agarrar quando o veículo caía
num buraco. E como tinha buracos aquela estrada! Mas havia expectativa
em conhecer a mítica capital onde tudo acontecia, como o pai contava, pois
tinha estado lá há anos para um estágio de reciclagem de professores e
trouxe presentes, notícias espantosas, provocando haka! em todas as bocas.
Luanda estava longe, ainda não dava para sentir o cheiro quente dela.
Himba bem tentava, aspirando com força o vento frio do Planalto.
Só cheiro do pó.
Foi três horas depois de saírem da terra, ainda os matacos não
reclamavam das dores pela posição incómoda.
Uma explosão, tiros.
O camião rebolou para um dos lados da estrada, originou gritos e mais
pó. Himba foi imediatamente projetada para o capim, sem ferimentos.
Pensou nos irmãos, nos pais, quis procurar na confusão de corpos e
mercadorias saltando e rolando, galinhas voando no meio de penas soltas,
gemidos, pedidos de socorro, pânico, mas uma voz forte gritou, julgou ser
para ela, corre, corre, depressa, depressa. Achou ser a voz assustada mas
imperiosa do pai e obedeceu, atordoada. Entre o fumo e a balbúrdia dos
tiros, Himba correu pelo mato, correu, e só parou quando deixou de ouvir
qualquer som.
Estava sozinha.
Olhou para trás, de onde vinha. Tinha vindo mesmo dali, de certeza? Sim,
refletiu com muita confusão nos olhos e ouvidos, mais ainda no cérebro,
sentira sempre o sol nas costas. Medo e o calor do sol, no ar fresco e puro
do Planalto. Himba tinha treze anos acabados de fazer, com a sexta classe
concluída também há pouco. Respirava com dificuldade por causa da
corrida e não fazia ideia de quanto tempo passara. Mas enquanto
descansava decidiu, tenho de ir procurar os pais. O terror já não a
dominava, embora continuasse nela. Já tinha antes sentido o medo, todos
sabiam o horror da guerra e falavam disso. Ter medo não é o problema,
ensinara o pai, até é bom porque nos torna prudentes, o problema é ser
escravizado pelo pânico, deixar de pensar com calma. Por isso tentou
regular a respiração e refletir.
Tinha vindo daquele lado e para lá devia voltar, com cuidado, até
encontrar os outros. Evitando os guerreiros que a esta hora deviam estar a
procurar nas mercadorias as coisas úteis para levarem. E entretidos a matar
feridos e prisioneiros, o que sempre faziam. A ideia súbita e cruel
aterrorizou-a e tremeu ainda mais forte. Deixou de respirar calmamente, de
novo esbaforida pela corrida e a ideia, o coração aos saltos. Puderam
escapar? Ou morreram com o acidente ou os tiros? Quatro irmãos mais
pequenos do que ela, dois rapazes e duas meninas. E os pais.
O pai era professor e a mãe enfermeira, não eram agricultores, um da
Ganda, província de Benguela, a outra do Chinguar, província do Bié. Se
conheceram ali mesmo no município, quando a mãe foi transferida e se
estabeleceu naquela terra boa para a agricultura. Gostavam de lhes contar a
estória de como se conheceram, porque o pai foi ao posto para tratar a mão
que ferira ao martelar um prego. O pai sempre foi um homem sem jeito para
trabalhos manuais, gostava só de ler e ensinar. Também jogar futebol com
os alunos. Por isso quase esmagou dois dedos ao consertar uma gaveta da
cómoda, azarado. A mãe tinha começado o seu primeiro dia de trabalho na
terra, chegara dois dias antes. E o primeiro paciente dela foi o pai. Os dois
solteiros, num sítio novo, a inaugurarem a profissão.
Destinos.
Agora, onde estavam e como? Foi acalmando de novo, controlando a
respiração. Isso foi ensino da mãe. Lhe explicou quando ela estava com
muito medo do seu primeiro exame na escola. Respira fundo e devagar, o
medo passa. E quando estiveres sentada, antes de começares a ler a prova,
faz o mesmo várias vezes. Vais ver, a cabeça fica limpa, sabes responder a
tudo. Aconteceu com sucesso no primeiro exame. Aconteceu depois. E ela
ganhou o hábito. Quando um irmão a chateava e ela tinha vontade de lhe
surrar, respirava fundo e a raiva ia desaparecendo, pensava melhor, ralhava
só, sem violência. Simples. Nas coisas simples está a solução das coisas
complicadas, dizia a mãe. E o pai também concordava, embora por vezes
perdesse um cochito a cabeça com um aluno mais distraído ou pouco
inteligente, ele mesmo reconhecia em casa, algo arrependido e
envergonhado perante a mãe. Mas nunca recorria a castigos físicos, para
além de proibidos pelo ministério eram contraproducentes, segundo
explicava. Ela era pequena mas percebia essas conversas dos adultos.
Talvez fosse demasiado adulta, tinha muito sentido da responsabilidade e só
tentava uma coisa se sabia que a conseguia fazer com perfeição.
Sentada ao sol no mato, lembrou a conversa que ouviu por acaso sobre
isso mesmo. Dizia o pai que ficava um bocado preocupado com a falta de
gosto de Himba pelas brincadeiras e correrias, sempre ocupada a tomar
conta dos irmãos e a aprender a lida da casa com a mãe ou os deveres da
escola.
– É demasiado adulta, uma criança deve brincar, haka!
– São os tempos – disse a mãe. – Uma situação de guerra afeta as crianças
tanto ou mais que os adultos. Percebe que andamos sempre com medo,
preocupados… não lhe apetece brincar, rir, contar piadas.
– Mas os outros cantam e dançam, jogam futebol. E têm a mesma idade.
Só a Himba…
– Não é só ela. Outras mães se queixam do mesmo. Aqui no posto, onde
nem médico há, a enfermeira é tudo, até psiquiatra e padre… Ou madre. E
por isso me vêm pedir conselhos. E eu digo a mesma coisa, com esta
guerra, o perigo constante de um ataque, as crianças são muito atingidas
pelo clima de tensão. Uns são mais sensíveis que outros, uns mais virados
para dentro. Mas no fundo todos ficam marcados…
– Com o cacimbo a entrar nas cabeças.
– Sim, todos cacimbados, como se diz.
Himba tinha de os procurar. Levantou, olhou para todos os lados,
perscrutando algum perigo, tentou voltar para o sítio do ataque. Deviam ter
queimado a camioneta, era o costume, destrói-se o que não dá para levar. O
fumo ia orientá-la, quando estivesse mais perto. Andou, andou. O dia
inteiro passou e ela sempre a caminhar no meio do mato, no princípio com
esperança e depois já sem pensar em nada, era melhor sentir a cabeça vazia
de ideias ou recordações ou sentimentos, só andar naquela direção onde eles
deviam estar.
Que era a direção errada.
À noite soube que estava perdida e se deitou no chão, a chorar. O frio do
Planalto lhe entrou no corpo e não adiantava muito ficar toda recurvada em
posição fetal. Cansada, acabou por adormecer. Para acordar com o uivo de
um animal que não soube identificar. Um mabeco, uma hiena? Uivos
terrificantes, em seguida o barulho da solidão. Houve logo depois outros
uivos e ruídos de patas a arrastar no chão, silvos estranhos, talvez de cobras,
e pios de corujas. O mato se encheu de rumores, sombras, fulgores, e ela
não conseguiu mais adormecer, abraçada ao seu medo. Estava perdida, sem
a família, a bater os dentes de frio. E de desespero.
Uma criança no meio do nada.
Ou no inferno.
Foi com alívio que assistiu enfim ao amanhecer, as cores amarelas, rubras
e violetas se misturando com as trevas da noite, se afirmando aos poucos,
apagando as estrelas. Sentou, os braços rodeando as pernas magras. Era
bom ver o dia. O sol despertara a terra, o céu ficava azul e a anhara verde.
Outros ruídos se substituíam aos apavorantes da noite. Uns pareciam
bichinhos a se coçarem, outros eram claramente dos pássaros a acordarem,
outros, roçando o capim, eram antílopes a se esconderem para dormir. E
lembrou então, não ouviu urros de leão.
Ainda bem.
Quando os urros do leão chegavam ao município, vindos de muito longe,
quilómetros e quilómetros que desconseguiam de os abafar, os homens iam
buscar as armas de guerra ou os canhangulos antigos, faziam batidas para
caçar o bicho. Não era seguro conviver com um leão perto, sobretudo com
as agressivas leoas, as vidas das crianças ficavam em perigo e as suas, as
dos seus bois e cabras.
Levantou e esticou os braços. Estava frio, mas o sol em breve faria o seu
trabalho. Não havia uma nuvem no céu, bom augúrio. A chuva, tão
frequente no Planalto, que ela adorava quando permanecia em baixo do teto
de zinco, gozando a sinfonia das gotas contra o metal, na situação presente
seria muito incómoda e, ao fim de algum tempo, um tormento. Sofrera uma
vez que foi no rio e caiu um aguaceiro repentino. Correu para casa mas mal
via o caminho com as faíscas e a cortina de água. A dado momento, já não
sabia onde se encontrava. Ficou parada, como lhe ensinaram, à espera que a
tempestade abrandasse. No princípio só sentia o habitual frio e sensação de
molha. Não durou muito até as gotas baterem sem piedade no corpo e
parecerem que a perfuravam, mil pregos contra a pele. Doía mesmo, uma
dor crescentemente forte.
A chuva seria mal vinda e deve ter adivinhado.
Himba olhou para todos os lados, indecisa. Na manhã da véspera, correu
com o sol nas costas quando fugia aos tiros. A estrada tinha de estar
portanto na direção do sol. Era um bom ponto de referência enquanto ele
não subisse muito no firmamento. Caminhou portanto para oriente, a estrela
nos olhos.
A sua salvação estava na estrada.
Tinha fome, sede, cansaço, dores por todo o corpo. Mas avançou para
oriente. Sempre. Até o sol estar no meio-dia e não lhe servir mais de
bússola. Resolveu parar e se resguardar na sombra de uma mangueira. Era a
melhor sombra, tão escura que no chão nem o capim nasce. Infelizmente
despida de frutos, não era a época. Se deitou encostada ao tronco,
descansando e esperando a marcha do sol. Lutava para não adormecer,
porque podia então perder muito tempo. Pensou nos pais, nos irmãos, na
mangueira. Devia ter havido um kimbo muito tempo atrás para ali estar uma
mangueira. Mas só uma? Se fosse um kimbo antigo, mais árvores estariam
ali a marcar a história. Só uma? Não, foi algum caçador que comia uma
manga quando andava por ali e atirou o caroço que, milagrosamente, caiu
numa poçazita onde se acumulava a água da chuva. E assim nasceu a
árvore. Tentou imaginar o caçador. Em que época foi? Antes da guerra.
Antes de qual guerra?
Houve tantas.
O pai explicou algumas delas, também não conhecia todas. Ia adormecer
mas despertou num repente e se pôs de pé, sacudindo a cabeça. Se fico aqui
não resisto, adormeço e acordo só à noite. Sentia muita fome. Ainda olhou
para cima, para a folhagem acolhedora. Se adormecesse, depois podia
passar a noite num ramo da mangueira, estaria abrigada. Disparate,
qualquer cobra chega lá ou uma onça. Tinha de andar.
Saiu da sombra, imaginou pela posição do astro-guia onde seria o leste e
continuou a marcha. A meio da tarde, ouviu um barulho de motor. Acelerou
o passo, não tinha forças para correr. O barulho foi esmorecendo até
desaparecer. Mas andou nessa direção e encontrou a estrada. Seria a sua
estrada, a de Luanda? Devia ser. Embora achasse, todas as estradas eram
parecidas, terra com poeira e buracos, carcaças de carros destruídos pela
guerra. Entrou na estrada e andou para norte.
Era a norte que ficava a grande cidade.
E a família? Como procurar naquela imensidão toda? Talvez tiveram
sorte e já estão em Luanda a chorar por mim.
Andou, antes que chegasse a noite. Tropeçava de vez em quando, de
fraqueza e cansaço. Mas o pior era a sede. Olhava ocasionalmente para os
lados, podia estar a passar perto de um rio e nem dava conta. Não. Tinha a
experiência, um rio se dá a conhecer muito antes de a ele se chegar.
Sobretudo esses rios do Planalto, que correm em anharas de capim. Quando
tudo fica mais verde e os arbustos se transformam em árvores, se ouve ao
longe o rumorejar da água. Ia perdida nesses pensamentos quando
pressentiu um motor atrás de si. Olhou e não viu o carro, mas sim uma
coluna de poeira. Parou, no meio da estrada, para ser notada e que
travassem. Se fossem dos que atacaram a camioneta? Era um grande risco,
mas tinha de o correr, aqueles preferem andar a pé, não arriscam muito nos
carros, pelo menos nestes sítios, se tranquilizou.
Ou tentou, pelo menos.
Estava certa. O camião era militar, se via pelo verde da pintura. E parou
quando ela não arredou pé do meio da estrada. Dois soldados saltaram da
parte de trás e perguntaram, o que fazes aqui? E ela contou o essencial, ia
para Luanda com os meus pais mas houve um ataque e eu fugi e depois me
perdi. Içaram-na para o carro, deram água, abriram uma lata de ração de
combate e forneceram a comida, mais água. Ela devorava tudo sem hesitar,
enquanto os observava. Havia uns dez soldados apertando com força as
armas. Nas caras se notava a tensão de andarem na picada, sujeitos a
pisarem uma mina anticarro e irem pelos ares. Himba já sabia desses
mambos de tanto ouvir falar no município, o grande inimigo dos carros era
o mais oculto, sepultado com terra como um morto mas sempre atento,
pronto a atacar. Apesar de estarem sérios e olharem para ela sem um
sorriso, os soldados pareciam bons, pelo menos para ela foram.
Pararam enfim num quartel estabelecido em antiga fazenda, perto da
estrada principal. Saíram todos do camião, Himba com eles. Depois o
graduado entrou num gabinete do comando, enquanto o resto do grupo
aguardava, descontraidamente, uns sentados, outros encostados à parede.
Começava a arrefecer. Havia soldados a jogar futebol no centro do quartel,
enquanto outros andavam a fumar e a conversar, dois a experimentarem os
sons de uma viola de tinta desbotada. A menina olhava para tudo, curiosa,
pois nunca tinha entrado num quartel. E aquele parecia grande, mas ela não
podia comparar, era de certeza o maior que vira, o único. O graduado saiu
do gabinete e com ele veio um mais velho e a caminhar para gordo. Devia
ser o chefe. Pediu a Himba para explicar o que acontecera na véspera. Ela
repetiu.
– Sei desse ataque – disse o oficial. – Não foi perto daqui. Houve algumas
vítimas.
– Os meus pais… os meus irmãos? Crianças pequenas…
O oficial abanou a cabeça.
– Não sabemos detalhes. Ali não é a nossa zona e este camião veio de
outro sítio. Até acho que nem foi na estrada onde te encontraram, foi
noutra. Sei que houve vítimas, mas não sei quem, nem quantos. Nada mais.
Tenho pena, lamento mesmo. O sargento disse que iam para Luanda.
Queres ir para Luanda?
Himba hesitou. Se os pais estavam à espera dela na capital, para lá devia
ir. Mas, se andassem também pelo mato, não podiam aparecer no quartel?
Questão sem resposta possível.
– Se queres ir para Luanda, podes dormir hoje aqui e amanhã tens boleia
num camião que sai às seis da manhã. A estrada daqui até Luanda está
segura neste momento… Enfim, parece… Se não quiseres ir, diz e tentamos
pôr-te no sítio que escolheres. Pode demorar, mas é possível.
Para a terra dela não podia voltar. Se tinham fugido de lá, alguma razão
havia. Não conhecia outra. Tinha opção?
– Vou para Luanda.
– Muito bem. O sargento vai tratar de ti e arranjar banho, comida e lugar
tranquilo para dormir.
O que aconteceu. Deitada num catre confortável, depois do banho e muita
comida, Himba descontraiu. Só teve pena de não ter roupa limpa para
mudar no dia seguinte.
Adormeceu, finalmente.
Acordou com barulhos de gente a gritar e a correr. O coração ficou assim,
pequenino. Depois lembrou, estou no quartel e vou para Luanda. Acalmou.
Veio a dor de nada saber da família. Era um vazio constante que só se
esvaneceu enquanto dormiu. Mas já não chorava, jurou baixinho, nunca
mais ia chorar. Tinha dormido com a roupa, a qual estava cada vez mais
amarrotada e suja, mas não se importou, em Luanda limpava.
Encontrou cá fora uma torneira onde lavou a boca e a cara, bebeu água. O
dia nascia.
O sargento apareceu com uma caneca de café e pão com ovo. Lhe deu
também um pequeno embrulho, come durante a viagem, ainda é longe. Lhe
deu também um pau de uns dez centímetros, escuro por fora, amarelo por
dentro, um pau de limpar dentes, para os teres sempre branquinhos. Ela
agradeceu e teve vontade de deixar cair uma lágrima pela bondade, mas
resistiu, tinha jurado. O sargento sorriu para ela e apontou o camião.
– Vais à frente, é mais cómodo.
E ela entrou no veículo, cumprimentou o cabo Trindade, cuidado, não
fales muito com ele, pois se distrai e ainda provoca acidente, mas o cabo
riu, meu sargento, não meta medo na miúda, sou um grande condutor.
Entrou também uma senhora mais velha, Dona Clara, assim se apresentou,
de cara amarrada. Himba portanto ficou no meio, ao lado do manípulo das
mudanças, objeto que a fascinava. Alguns soldados fardados e com armas
subiram para a carroçaria tapada pelo toldo. Em seguida, mais alguns
homens jovens à civil, deviam ser soldados em visita à família, imaginou
ela.
– Se os meus pais aparecerem, diz que fui para Luanda? – Pediu ao
sargento. – O meu nome é Himba.
O militar prometeu, ia mesmo escrever um aviso no quadro de
informações. O camião partiu e a menina fez adeus grato ao sargento e ao
quartel e ao passado, sem querer pensar realmente nisso, ia só procurar os
pais e irmãos lá à frente.
Nem fazia ideia do que ia encontrar.
O motorista afinal não era nada tagarela, pois só tentou duas vezes
provocar conversa, mas ela respondeu brevemente, pouco tinha para dizer, e
Dona Clara nem suspirou, a cabeça encostada à porta, os olhos fechados.
De vez em quando os lábios mexiam, Himba reparou. Devia estar a rezar.
Ou mesmo a dormir. A velha não disse uma palavra desde que entraram no
camião. E parecia não notava as sacudidelas, a cabeça sempre encostada à
porta. Um pouco estranha, pensou a menina. A um dado momento, já
andavam há muitas horas na viagem, olhou para a senhora de forma mais
demorada, tentando perceber se dormia mesmo e depois, ao virar a cabeça,
reparou no sorriso zombeteiro do cabo Trindade. Ele piscou o olho,
apontando com a cabeça para Dona Clara. Estava a gozar, claro. Himba
mudou o olhar para a estrada, não queria conversa de falta de respeito pelos
mais velhos, coisa que o motorista parecia se preparar para iniciar.
Cerca do meio-dia, o cabo encostou o camião numa berma com sombra e
anunciou:
– A partir daqui é asfalto e vamos melhor. Já faltam poucas horas.
Paramos para fazer necessidades. E quem quiser comer que aproveite.
Se Dona Clara estava a dormir, então acordou muito rápido, porque logo
abriu a porta e saiu. Himba aproveitou e saiu também, levando o embrulho
que o sargento lhe tinha dado. Os soldados se espalharam alegremente pelo
sítio, cada um atrás de uma árvore ou arbusto. Dona Clara imitou-os. Himba
ficou hesitante, era melhor esperar que voltassem, pois todos os sítios bons
para mijar à vontade já deviam estar ocupados. Aproveitou para abrir o
embrulho e ver uma maçã, um pão com ovo igual ao que tinha comido e
uma banana. Até uma garrafinha de água. Um bom almoço. Obrigada,
sargento, de quem não sei o nome, tenho de perguntar ao motorista, porque
ele merece que reze para que se salve da guerra, boa pessoa. E ficou
surpreendida porque a sandula lhe desapareceu da mão, direta para o
estômago. O mesmo aconteceu com a banana. Os outros já tinham
regressado e ela bebeu a água toda e foi se agachar atrás dumas vissapas, se
aliviando, a maçã na mão.
Retomaram caminho. Aparentemente, só ela comeu na paragem. Os
soldados lá atrás podiam ter pancado antes, não dava para saber, mas o cabo
nem provou uma bolacha. Ela perguntou, mostrando a maçã:
– Quer?
– Não, obrigado. Guarda para ti. Eu tenho um almoço prometido pela
minha mulher que já deve estar à espera. Vai ser almoço à hora do lanche,
não importa…
– É verdade, cabo Trindade… Como se chama o sargento que estava lá no
quartel. E no camião que me encontrou?
– O sargento Dúvidas. É esse, o que te trouxe para este camião.
– Dúvidas?
– E é mesmo muito duvidoso.
Riram os dois, pois se tratava de uma brincadeira da moda. Dona Clara
não percebeu ou fingiu. Ficou calada. Mas estendia a mão para a maçã,
como a dizer, se não queres comer eu posso aceitar. Himba ficou muito
admirada e deixou que a velha lhe tirasse a fruta da mão. Ela tinha
oferecido ao motorista que estava a cumprir a tarefa toda, era apenas uma
delicadeza. Mas que fazer? Não estava educada para chocar contra a
vontade de um mais-velho. O cabo Trindade percebeu, mexeu a cabeça e
cantarolou numa voz disfarçada de mulher, olhando firmemente para a
frente: oportunismos, oportunismos, oh, oh, os oportunismos desta terra são
mais fortes que a guerra. Himba percebeu a piada em rima mas não se
permitiu mostrar. A velha talvez tenha percebido, porém deu uma grande
mordida na maçã, a primeira de quatro dentadas.
Os velhos podem ser oportunistas?
Horas passadas em silêncio, já se percebia que entravam em Luanda e
Himba esqueceu a velha, a maçã, o ataque, admirada a olhar para o que era
novo para ela, um mundo de cimento e gente, carros e grande barulheira.
Durante um tempão.
Sensação de hostilidade.
Depois de muitas ruas e buzinadelas, o camião estacionou à porta de um
quartel.
– Vou meter o carro lá dentro, é obrigatório – disse o motorista. – Os civis
têm de sair, não podem entrar no quartel. Cada um à sua vida. Gostei muito
da companhia.
Dona Clara saiu e Himba seguiu-a, mas antes agradeceu ao motorista a
simpatia. Viu os civis saltarem lá de cima e cada um partir para o seu
destino. Os soldados permaneceram no veículo que entrou pelo portão.
Dona Clara nem despediu, nem agradeceu a maçã, se desenfiou nos seus
passinhos de velha por uma rua.
Himba ficou sozinha. E agora? Os pais é que sabiam onde morava o tio
dela.
Perdida na grande cidade.
Olhou para todos os lados, ponderou esperar pelo cabo Trindade, era
simpático, talvez lhe ajudasse com alguma orientação. Mas teve a mesma
visão de quando estava sozinha no mato, depois do ataque. Uma voz lhe
dizia, fecha os olhos e salta. Era a voz do pai, quando ela tinha medo de
fazer uma coisa e ele a incentivava assim, é o que se deve fazer quando o
risco é real mas a ação necessária.
Ia avançar, à procura da família, Deus ajudaria.

***
2012

Sofia Moreira levantou a voz, irritada com o jovem parecendo molengão,


estás a demorar demais, tenho trabalho.
Ela era normalmente paciente, uma das suas qualidades. Tivera de esperar
muito por uma oportunidade, mais que o cão pelo dono. O tempo passou e
passou, nada de relevante acontecia nos últimos anos, depois de uma
infância demasiado agitada e uma adolescência mais calma. Estudou um
curso médio, experimentou alguns empregos, onde aprendia sempre um
pouco, mas não se entusiasmava, arranjava o primeiro pretexto para o
abandonar. Nada sucedia de interessante, nem no trabalho nem na vida, mas
não se incomodava muito com o tédio, as mudanças por vezes tinham sido
perigosas demais, ao menos agora havia sossego. E ela aguardava, sem
grandes sonhos, mantendo no entanto uma ponta de esperança, algo há de
mudar para melhor.
De repente aconteceu, uma espécie de aposta arriscada, porque não tento
fazer aquilo de que gosto afinal? Os conhecimentos adquiridos até podem
ajudar, mesmo se de forma indireta. Acertou na aposta, mudando de ramo.
Hoje, beirando os trinta anos, tudo se afigurava diferente. A inauguração de
um apartamento novo poderia parecer pouca coisa. Era, porém, a primeira
vez na vida. Embora o apartamento de facto não lhe pertencesse, apenas
alugado numa urbanização acabada de construir. E constituído por dois
quartos, sala modesta, casa de banho, cozinha e arrumo pequeno, um T2.
Podia lhe chamar de seu, mesmo se havia outro dono, o verdadeiro,
empresa de alguém invisível. Era a primeira pessoa a usá-lo, tinha por isso
muito significado, os outros kubikos sempre foram velhos, gastos,
miseráveis, passando de mão em mão, cada vez mais velhos e sujos.
Fosse o rapaz mais expedito.
O jovem demorava a montagem do aparelho de ar condicionado no quarto
que viria a ser de Diego. Era surpresa e ela queria o quarto pronto antes que
o irmão chegasse. Só faltava o ar condicionado, um luxo. Tinha comprado
tapetes, a cama estava feita e até ostentava uma colcha azul por cima, a cor
preferida de Diego. Mesa grande para as pinturas. E muita parede para ele
pendurar os seus quadros, se para aí estivesse virado. Sofia tinha reservado
o maior compartimento para ele, trabalharia lá, o desejo de uma vida. Tinha
outro tesouro, o que se via pela janela. O mar da península do Mussulo, do
qual se vislumbrava uma parte. Não havia janela para tanto Mussulo, afinal
eram quarenta quilómetros de areia e coqueiros, ilhas no meio, mar de baía
do lado mais próximo, mar batido, o oceano, do lado de lá. Só dava para
descortinar a mais pequena das ilhas, a chamada Ilha dos Pássaros por
alguns. A da Cazanga, a maior, por outros designada Ilha dos Padres, pois
ali tinha existido um convento, ficava mais a sul, não aparecia para lá da
janela. Mesmo se inclinando para fora da janela não a poderia avistar. Tinha
tentado na última vez, mas sem grande insistência, lhe tomava o medo das
alturas. Estava no segundo andar e sempre habitou ximbecos térreos. Ela
ainda não tinha assistido, talvez amanhã fosse possível, pois todos diziam
era um espetáculo soberbo apreciar o pôr do sol no mar do Mussulo. O
artista que havia em Diego ia se regalar. Até ao dia em que resolvessem
construir um prédio à frente da janela dele, também era muito frequente
naquela Luanda onde só o dinheiro era dono e senhor.
No outro quarto, o seu, um pouco mais pequeno, havia de colocar uma
pintura de Diego, mas esperaria o tempo necessário até ele decidir qual lhe
oferecia. O irmão era muito meticuloso no trabalho e mais ainda nas raras
prendas que escolhia. Particularmente para ela. Sofia na véspera tinha dito,
vou pôr um dos quadros que me ofereceste no meu quarto e outro na sala. E
ele dissera, na sala podes pôr um qualquer, para o teu quarto arranjo um
novo. Devia ser ao contrário, na sua maneira de pensar, a sala é que
mereceria o último, feito especialmente. Mas Diego lá sabia dos seus
kalundús e a pintura dele estava muito misturada com sonhos, cultos,
magias…
Não era a arte uma magia?
Depois de quase desfazer o aparelho e o remontar, porque uma peça
aparentava afinal estar mal colocada, o rapaz carregou no botão do
comando e o dispositivo de ar condicionado começou a ronronar, muito
suave. O trabalhador olhou para Sofia com ar satisfeito e meio desafiador,
julgavas que nunca mais ficava pronto e deste um grito a apressar? Mas não
disse nada, pois sabia, ela tinha sempre resposta para todos os desafios, e
muitas vezes afiada. Além do mais, o restaurante era um ótimo cliente,
sempre com avarias num ou outro lado, todas as semanas o chamavam para
algum conserto. A senhora jovem era uma freguesa daquelas que se deve
conservar com paciência e alguma diplomacia.
Até sabia ser simpática.
– Tudo pronto, merecemos uma cerveja – disse Sofia, lhe dando um toque
no ombro.
Foram para a cozinha, onde sentaram à mesa, enquanto ela tirava duas
garrafas da geleira, comprada há dois dias. As mobílias tinham sido
adquiridas uma semana antes e os aparelhos eram na totalidade novos. Ia
deixar o antigo kubiko com a mobília velha lá dentro, o dono achara bom
negócio. Vida nova, casa nova, tudo novo. Cabeça nova? Isso já era mais
difícil. Passou uma garrafa para o rapaz e bebeu da sua. Cerveja gelada
numa casa nova.
Um luxo.
Dissera o mesmo na véspera, quando com Diego tomara umas birras.
Beberam a festejar, arrumaram o que puderam, mas ainda foram dormir no
antigo ximbeco. Só hoje se mudariam oficialmente, com tudo pronto.
Terminaram a cerveja, ela pagou o trabalho e deixou o moço seguir para
outras tarefas. Sofia tinha de ir para o restaurante, já estava atrasada. Mas
havia uma boa razão e todos compreenderiam. Aliás, só uma pessoa
interessava nesse mambo, a patroa, Dona Ester. Estava prevenida, Sofia
avisara e ela disse, demora o que for preciso, cá nos arranjaremos até
chegares. Dona Ester abençoava o dia em que Sofia parou lá na primeira
vez.
Como um raio de sol entre nuvens de tempestade.
O restaurante ficava perto, por isso tinha escolhido aquela urbanização,
um dos resultados da explosão imobiliária em Luanda. Se viam gruas
gigantescas e a cidade velha, como chamavam alguns ao centro tradicional
e seus musseques, se ia envaidecendo de prédios de trinta andares, alguns
espelhados em várias cores. Ao mesmo tempo, para os três pontos cardeais,
norte, este e sul, se multiplicavam condomínios para ricos e urbanizações
para a classe média, enquanto muitos moradores dos musseques eram
atirados para o Zango e outros bairros de casas económicas, melhores que
as suas anteriores, mas demasiado longe do centro, onde permanecia o
trabalho e a clientela. Mesmo para oeste se construía, com aterros na orla
marítima, um ponto muito controverso no crescimento da cidade. Demorou
dez minutos até ao serviço, uma raridade naquela metrópole imensa de seis
milhões de habitantes. Luanda era de facto bué grande.
Os amantes da vida noturna também diziam, bué faine.
Dona Ester olhou o relógio, estavas a fazer falta.
– O Ananias não dava com o bilo a montar o último aparelho de ar
condicionado. Espero que não pare a meio da noite, é chato.
– Tenho de ir ver o que se passa com o Ezequiel – disse Dona Ester. –
Telefonou muito assustado, quer falar comigo. Estava à espera que
chegasses para poder ir a casa. Deve ser grave…
Não devia ser nada grave, pensou Sofia, mas calou.
Ezequiel era o filho desgovernado da dona do restaurante, o único que
conhecia. Com trinta anos, mais ou menos a idade de Sofia, não era
autossuficiente. Desconseguiu na escola, pouco aprendeu, a escrever o
nome apenas, mas com o tempo até isso parecia ter esquecido.
Desconseguia em qualquer emprego. No restaurante nem durou uma
semana, chorava com medo do fogo e da barafunda na cozinha, só
atrapalhava. Nunca ousaram pô-lo a servir uma mesa, ainda derramava a
sopa sobre o cliente. Os médicos disseram, ele tem um trauma qualquer, não
deve ter sido de nascença nem é nada genético, o cérebro ficou afetado.
Mas Dona Ester há muito deixara de acreditar na capacidade dos médicos
em entenderem o filho ou seus mecanismos secretos. Acreditava muito mais
no pastor da igreja dela, que dizia, são demónios, só com muitas rezas e
cultos aqui na igreja pode melhorar, se deus quiser. E lhe cobravam dízimos
pesados, mas o filho não melhorava, os demónios chatos não desandavam.
Na igreja ficava calmo, olhando com curiosidade para tudo, enquanto
cantassem os hinos e o pastor pregasse com frases bonitas. Mas quando
começavam os xinguilamentos e os uivos e gritos de hossana, fugia do
templo de colunas douradas. A mãe ia encontrá-lo na cama, já acabaram de
chorar pelos mortos? Ela tentava explicar que eram os espíritos a entrar na
alma das pessoas, não tinha perigo nenhum, os mortos estavam longe em
baixo da terra e ninguém chorava por eles, só orava, mas Ezequiel se
encolhia na cama, os espíritos entram sempre na minha cabeça quando as
pessoas começam a gritar, estão a gritar para mim e os espíritos acordam.
Disparate, tens de acreditar em mim, as orações e as idas à igreja te vão
curar, mas quanto tempo, mãe?, e Dona Ester tinha de lhe dar razão, há
muito tempo faziam a terapia religiosa sem resultados visíveis, embora ela
não fizesse contas ao dinheiro inutilmente investido. Tens de ter paciência,
são tratamentos demorados, questão de fé e tu tens pouca fé, foi o que o
pastor disse, a falta de fé é que dificulta a cura. Se acreditasses… Eu faço
força para acreditar, mãe, faço muita força… Até me cago. Resposta que
Dona Ester fingia não ouvir, podia parecer ofensa às crenças do grupo.
– Vá então para casa, eu aguento com isto tudo – disse Sofia à
preocupada mãe.
Ezequiel, apesar do seu estado mental, ficava sozinho em casa, da qual só
saía com Dona Ester. Tinha medo da rua. Só quando as pessoas começavam
a gritar na igreja o medo da rua era vencido pelo medo dos gritos e fugia
para casa. Sofia achava, devia haver alguém em permanência a tomar conta
dele, mas a experiência foi negativa, quando a senhora resolveu arranjar
uma pessoa para lhe fazer companhia. A mãe ia e vinha de casa para o
restaurante, tinha de orientar a feitura do almoço e do jantar, largos períodos
longe do filho, portanto. Um dia chegou a casa e apanhou a mulher que
tomava conta dele montada em cima de Ezequiel, na cama, talvez numa
nova espécie de terapia religiosa. Despediu-a à chapada. Nunca mais quis
ninguém para tomar conta de Ezequiel, podia se viciar nesse tipo de
tratamentos ímpios. Ele passou a ficar entretido sempre com o mesmo canal
de televisão. Comprou um telemóvel barato, ensinou o filho a carregar num
botão e depois no outro, pronto, ele liga para mim. Isso ele podia aprender e
quando precisava conseguia comunicar com ela, falar dos seus terrores.
Longe das tentações libidinosas.
A senhora saiu e pareceu imediatamente que a sala aumentou. Dona Ester
exagerava na gordura, pesava cento e vinte quilos, sendo baixa. Baixa e
redonda. Gostava de comer, o que não era proibido pela religião, sobretudo
molhos com muito óleo de palma e bolos de toda a espécie. Só bebia água,
kijila da igreja. Tinha sido um assunto discutido com Sofia um dia, quando
esta informou a patroa que encontrara o pastor da igreja num bar daquela
zona de Talatona, bebendo uísque com amigos. Dona Ester se zangou, estás
a mentir ou então te enganaste, ele não pode nos impedir o álcool e depois
bebê-lo nos bares, devia ser chá, gosta muito de chá e é da mesma cor. Eu
não minto, senhora, Sofia se enfurecendo. Te enganaste, era chá. O chá não
vem em garrafas de uísque, disse a jovem, pode vir de muita maneira, em
saquinhos por exemplo, ou em latas coloridas, nunca em garrafas. A
proprietária do restaurante tinha muito apreço por ela, uma verdadeira graça
para o negócio, pois fazia as contas todas e as compras e, além de gerir a
administração, tinha um sentido muito apurado do gosto, provando sempre
a comida antes de servida, quando havia alguma dúvida sobre o tempero. A
qualidade tinha melhorado desde que Sofia foi trabalhar com ela, e a
clientela triplicou, tornando em poucos anos uma espécie de cantina de
trabalhadores das obras no Morro Bento num restaurante renomado nas
urbanizações mais próximas. Uma das últimas aquisições em termos de
clientela era a juventude de um condomínio muito reservado e resguardado
que apreciava os jantares mais caros da casa. Por isso não insistiu com a
empregada, embora desacreditasse totalmente no que ela dizia, devia ter
confundido o venerando pastor com outra pessoa qualquer.
O destino tinha atuado com face de mero acaso.
Um dia, na época em que Sofia não se fixava num emprego, teve de tratar
um assunto burocrático e passou naquela rua durante a hora do almoço, em
plena época da explosão do imobiliário, com prédios inteiros comprados
antes mesmo de saírem do papel e gente a enriquecer da noite para o dia por
causa de negócios mais ou menos legais, sobretudo muito kilapi. Tinha
fome, viu a cantina e decidiu, por um dia também posso comer aqui, deve
ser barato, estou cansada de cozinhar sempre para dois. Depois levo
qualquer coisa para o Diego. Havia lugar numa mesa, Dona Ester fazia a
comida com uma auxiliar e ela própria servia. Depois de comer, Sofia falou
com ela, enquanto pagava.
– Sabe, gostei da comida, mas devia ter posto um pouco de pimenta, só
um pouco, e umas lascas de gengibre para condimentar o gosto. Ficaria
ótimo. Se acrescentasse umas poucas folhas de coentros ainda melhor…
– E onde encontro coentros, minha filha? Mais pimenta? O preço tinha de
subir.
– Experimente um dia, mesmo sem coentros. Pimenta em pó, uma
qualquer, e gengibre. Vai ver como os clientes apreciam a sua caldeirada,
mesmo se o preço subir um pouco.
Na semana seguinte aconteceu de novo passar lá. E se lembrou do
conselho dado. Já agora volto a comer aqui, a qualidade até era boa em
relação ao preço. Entretanto, a senhora não tinha esquecido aquela cliente
jovem que lhe elogiara a caldeirada de peixe. Fez um grande sorriso,
mostrou um lugar e veio lhe dizer:
– Temos o seu prato, como me disse para fazer. Sem coentros, que não
encontrei. Quer provar? Os clientes estão a gostar.
Estava mesmo bom e Sofia elogiou, sim, senhora, aposto que em Luanda
não há caldeirada de peixe como esta. Dona Ester não lhe cobrou o almoço,
oferta da casa. Perguntou o que ela fazia e ao ouvir falar de contabilidade
fez uma careta, que pena, tinha esperança que quisesse trabalhar comigo.
Com liberdade de mudar os temperos como quiser. Foi a epifania. Porque
não? Loucura?
Sempre gostara de cozinha.
Os temperos melhoraram, mas muita coisa tinha de ser mudada, as
compras começaram a ser feitas com mais racionalidade, as paredes foram
pintadas, o número de pratos aumentou e mais uma pessoa foi contratada
para servir. Dona Ester deitava as mãos à cabeça, estou velha, não tenho
dinheiro para tanta despesa, que loucuras me metes na cabeça. Sofia ria, vai
ver, vamos atrair muitos clientes, teremos de aumentar a sala em breve. E
fazer sobremesas a sério, as pessoas gostam e o lucro é maior.
O que se revelou verdadeiro. Um sucesso. Em quatro anos, a senhora
comprou o casinhoto ao lado, que mandou deitar abaixo para esticar a sala e
a cozinha, acrescentar um pequeno bar, mobília nova foi adquirida, mais
pessoal recrutado e treinado por Sofia. Dona Ester deixou de servir, ficou só
a comandar os cozinheiros e Sofia se ocupava de toda a parte financeira e
burocrática além de orientar o salão. Nunca cozinhou nem serviu a uma
mesa. Punha a máquina a funcionar sobre rodas de ouro, como dizia a
Diego. O salário dela também subiu, claro. Embora fosse modesto para o
nível de vida de Luanda, considerada uma das cidades mais caras do
mundo. Não se queixava, porém.
A cidade crescia, havia ansiedade e expectativas no ar, de novas obras,
empreendimentos grandiosos, muito dinheiro a jorrar do petróleo, compras
exuberantes, luxos ostentados por garotos, ganância e contratos duvidosos.
Aproveitaria a sua oportunidade de ouro.
Ela surgiu afinal em forma de caldeirada de peixe.
– Estive a pensar muito – lhe disse um dia Dona Ester. – Tu trouxeste
muita sorte a este restaurante. Sorte? Bem, chamemos assim… Acho que
mereces. Deixas de ser minha empregada, és minha sócia…
– Sócia?
– Sim. Não te quero perder. Te ofereço um quinto, vinte por cento do
restaurante. E portanto vinte por cento dos lucros. Tu sabes quanto é, fazes
as contas. Aceitas?
Ela respirou fundo para não denunciar o anseio que a acometia. Vinte por
cento do lucro, se as coisas continuassem como estavam, era uma boa
maquia. Não para ficar rica, mas, mesmo assim, para quem tinha vivido em
esgotos…
– Não sei como lhe agradecer, a senhora caiu do céu – e lhe pegou sem
subentendidos nas mãos papudas e gordurentas. – Mas… basta a
participação nos lucros… Sócia?
– Sim, sócia. A participação não chega. Quero que mudemos os papéis
para a tua parte ficar registada, assim percebes que não estou a prometer à
toa, como há muita gente que faz, promete e não cumpre, mesmo gente de
igreja às vezes também, para nossa vergonha. Sabes melhor disso que eu,
trata da papelada, há o guichê que resolve rápido as coisas das empresas,
nem é longe, trata de tudo, eu depois assino os documentos.
Sofia ainda reclamou, toma-me por alguma ingrata, não é preciso papel
para eu saber que a senhora cumpre, mais honesta que Dona Ester não
existe nesta cidade de Luanda, quem não reconhece?
– Está bem, está bem, mas trata dos papéis, OK? Fica tudo mais faine
assim.
Sofia tratou da mudança do alvará e do resto, se tornara proprietária de
um quinto do restaurante. Agora lhe doía mais se não tivessem lucro. Abriu
uma conta num banco, as agências se desdobravam em Luanda-Sul como os
cacussos se multiplicavam nos lagos. Mostrou com orgulho o cartão
associado à conta, podia levantar o dinheiro com ele numa das caixas que o
irmão sempre admirava, quando passeavam pelas avenidas novas da
centralidade, nome politicamente correto para definir bairros de casas altas,
todas iguais e algumas quadras de vivendas para os privilegiados.
Tinha sido o ano passado.
O restaurante continuava a prosperar, pois, a conselho dos clientes jovens
e ricos, investiram em vinhos e uísques de maior qualidade, os quais eram
consumidos em quantidades invulgares pelos próprios filhos de boas
famílias, que iam jantar e ficavam até à meia-noite a beber, se mantendo
firmemente Sofia a acompanhá-los, não na bebida, mas na audição de
conversas, para depois poder fechar o restaurante, porque todo o pessoal era
dispensado às dez horas. Essas conversas depois do jantar traziam muito
dinheiro, porque as bebidas eram vendidas a mais do triplo do preço de
custo. O sacrifício dela era reconhecido por Dona Ester, só o lucro dessas
tagarelices dava para pagar várias vezes o que Sofia ganhava. E a senhora
se benzia, que Deus a guarde connosco durante muitos anos. Repetia o dito
na igreja ao pastor, na esperança de obter uma oração para Sofia.
Ele não ia em fitas, sem paga adicional não havia rezas.
2

Era o meio da tarde e havia muito movimento nas ruas. No município


onde nascera era fácil atravessá-las, mas na grande cidade constituía grave
complicação. Primeiro, a menina estudou os gestos dos outros transeuntes.
E depois começou a imitá-los. Se a rua era larga, com várias filas de carros,
tinha de esperar que ficassem todos parados no engarrafamento. Então se
tornava fácil passar entre eles para o outro lado. Se era rua estreita, tinha de
esperar uma aberta de um lado e outro, depois correr. Em algumas estradas
havia passagens para peões, mas ela não sabia para que serviam e também
ninguém as utilizava. Sorte deles, pois quem fosse devagar por cima de uma
passagem tinha muitas possibilidades de ser atropelado por um motorista
mais acelerado. Os passeios também estavam todos cheios de carros
estacionados e era complicado andar neles. Alguns com grandes lagoas
provocadas pelos miúdos que lavavam os automóveis por uns kwanzas de
pagamento ou porque um tubo de água ou de esgoto se rompera. Obstáculo
suplementar, porque tinha de rodear os charcos, operação nem sempre
possível por causa dos veículos estacionados de qualquer maneira.
Afinal Luanda era assim, fumo, confusão e mau cheiro?
Outra coisa que a confundiu, as centenas de jovens a venderem as mais
disparatadas coisas no meio das ruas aos automobilistas, os quais baixavam
os vidros e perguntavam quanto era e depois começavam a regatear o preço,
com o vendedor a correr ao lado, se o trânsito abria, o motorista já com o
objeto na mão. O trânsito parava à frente e o objeto regressava à mão do
vendedor, o preço não agradava ao cliente. Alguns subiam o vidro e
arrancavam sem pagar a mercadoria. Coitados dos rapazes, pensou Himba,
estão todo o dia ali de pé a andar entre os carros e de vez em quando a
correr, para não venderem nada ou serem roubados? Mas os jovens também
provocavam confusão, dificultando a caminhada dos peões que tinham de
fugir dos passeios e andar no mesmo sentido dos carros, os vendedores lhes
empurrando sem maneiras. Hi, gente da cidade, é? Haka!
Cheios de pressa a fazerem nada. Ou faziam?
Foi andando sem destino. Por vezes parava para ver uma montra, coisas
boas lá dentro, comidas ou roupas ou objetos, alguns conhecidos, outros
novos para ela. Tinha consciência de estar suja, talvez a cheirar mal, por
isso nem ousava entrar na loja. Bem, quanto ao odor, talvez não fosse grave,
cheirava à cidade, por isso ninguém notaria. Entrou então numa avenida
larga que desembocou num largo com um blindado em cima de um grande
pedestal de cimento, com figuras de pessoas em relevo. Como tinha ido
parar o blindado lá em cima? Eh, a cidade tinha mistérios. Desceu por ali,
fugindo sempre dos carros e caiu noutro largo supermovimentado, onde
havia muitas crianças sentadas no chão ou procurando comida nos
contentores do lixo. Um prédio amarelo à frente tinha arcadas e em baixo
delas havia outras crianças. Não sabia na altura, mas tinha chegado à
célebre Mutamba, onde aparecia um ou outro machimbombo em que as
pessoas se apertavam até transbordar e depois partir, deitando fumo. Por
sorte ou azar, tinha entrado no centro do mundo, segundo a mitologia
kaluanda.
O olho do furacão, diriam os mais versados em meteorologia.
Se encostou a um poste no que era uma paragem de autocarros,
contemplando a praça, descansando também. Porque não fazia como as
outras crianças e sentava no chão? Já não havia sombra, porque o sol estava
cansado do seu percurso e se escondera, mas ainda tinha luz. Sentar no
chão? Mais suja não ia ficar. Se encostou a um muro baixo, que marcava o
começo do jardim do palácio do governo provincial, e se deixou escorregar
até no chão. Um alívio, tinha andado muito, praticamente toda a tarde.
Pensou, em termos de caminhada já começava a se habituar, nos últimos
dias não tinha feito outra coisa, exceto quando dormia ou quando andou de
camião. E a fome veio com a consciência do cansaço. E sede. De facto, só
tinha bebido a garrafita à hora do almoço. Olhou em volta, onde podia
beber água?
Himba lembrou de repente, nas suas costas estava um jardim em declive,
com relva e plantas. Elas tinham de ser regadas. No jardim devia existir
uma torneira. Descansou um pouco mais, depois levantou e saltou o muro.
Avançou pela relva até lá cima, onde viu uma mangueira ligada a uma
torneira. Ninguém parecia estar de guarda ao jardim. As pessoas passavam
nas ruas, cada um com seus pensamentos. Abriu a torneira e foi para a
ponta da mangueira, onde bebeu. Só depois de engolir avidamente uma boa
quantidade reparou no jovem polícia, a uns vinte metros e a olhar para ela
com cara fechada. Himba encolheu os ombros e estendeu os braços para o
lado, as mãos para cima, em pedido de desculpa. O polícia só lhe fez um
sinal com a cabeça, põe-te a andar. O que ela fez, regressando ao mesmo
lugar na praça. Pelo menos sede já não tinha, apenas fome. Estava muito
perto do mar, que não conhecia, talvez a trezentos metros da baía. Mas nem
se tinha lembrado do mar, queria descansar, não se mexer durante muito
tempo. Como ia arranjar comida? Nos contentores do lixo, como vira outros
fazerem? Sentia repugnância. Antes dormir com a fome, não seria a
primeira vez.
Escureceu completamente. Alguns miúdos desenrolavam cartões que
tinham escondido algures e se deitavam neles. Iam dormir ali? Depressa se
convenceu, estavam tão perdidos quanto ela, ficavam pelas ruas, sem casa
nem família, talvez também fugindo da guerra. E ela? Onde estava não seria
bom, sem nenhum teto por cima. Mas tinha medo de se aproximar dos que
estavam no prédio com as arcadas, o melhor sítio para se acolher. Iam
aceitá-la perto deles? Que remédio senão tentar? Era mais uma perdida,
pois nem o nome do tio sabia para perguntar às pessoas, onde mora fulano
de tal? Numa cidade daquelas, quem conhecia o nome do tio? Se nem ela
conhecia… Deixou acalmar o movimento de pedestres e machimbombos.
Os carros continuavam a passar mas eram menos. Atravessou com todos os
medos a praça, atenta aos automóveis descorteses, passou para o edifício
que mais tarde viria a conhecer como o Ministério das Finanças. Os outros
miúdos, uns sentados, outros deitados, nem olharam para ela quando se
sentou num sítio mais isolado. Havia duas ou três meninas, apenas. Alguns
rapazes fumavam, tabaco ou liamba, ela sabia distinguir os odores. Outros
dormiam. E havia também os que cheiravam panos. Viria a saber que eram
panos embebidos em gasolina, droga mais comum para menores de catorze
anos.
O cansaço venceu e ela dormiu mesmo no cimento.
Não ouviu canto de galo, como acontecia na casa materna pela
madrugada. Só o barulho crescente de vozes e carros. Os restantes miúdos
também acordavam. Olhavam uns para os outros, alguns se acenando bons-
dias. Foi o que ela fez para os mais próximos. Houve quem correspondesse,
outros não estavam nem aí. Mal-educados, pensou Himba, num primeiro
impulso. Ou apenas cacimbados, assumiu depois. Que devia fazer? Procurar
comida. Pedir nas casas? Podia ser, a fome vence a vergonha. Assim
decidiu. Foi para baixo, por uma rua nova e viu uma extensão azul à sua
frente. Dos dois lados da rua não via casas onde pedir, lhe parecia serem
lojas ainda fechadas ou edifícios para serviços. Avançou mais e a extensão
azul, que ela reconhecia, se alargou. Desembocou em plena Avenida
Marginal, rodeando a apertada baía, até parecia era lago muito grande. Se
maravilhou, nunca tinha visto coisa mais linda. Tinha estudado nos livros
da escola e o pai também contou, por isso sabia de que se tratava. Mas era
mais bonita na realidade que nas fotografias que vinham nos compêndios
escolares. Lá do lado esquerdo devia ser a Ilha com suas palmeiras e
casuarinas. Esqueceu a fome e a vontade de urinar. Ficou só contemplando
a baía, os prédios à volta, a Fortaleza de S. Miguel, que ela sabia ser muito
antiga, ascendendo à época da conquista colonial. Viu muitos barcos
ancorados e um objeto enorme e muito estranho no meio da baía, que mais
tarde lhe explicaram ser uma plataforma de petróleo que vinha para
manutenção em Luanda.
O sol começou a aquecer e ela regressou ao outro lado, onde havia
prédios, procurando sombras. Muitos edifícios tinham arcadas e ainda havia
pessoas dormindo debaixo delas. Adultos e crianças. Sobretudo crianças.
Foi andando pela sombra, estudando as casas. Mas não eram de viver, se
tratava de bancos, companhias, serviços. Os prédios de apartamentos
tinham as entradas fechadas, nenhuma janela onde bater e pedir comida. Ou
sítio onde urinar. Como vou fazer para mijar? Atrás de algum contentor de
lixo? Seria visível de algum lado. Andou, viu um grande edifício azul onde
estavam polícias à porta, preferiu evitar e atravessou a estrada, agora já com
movimento assustador de carros, ultrapassou a esquadra ou lá o que era e
voltou a atravessar para o lado dos prédios, deixando a borda do mar. Se
aproximava do morro onde estava a fortaleza. No morro havia muitos
arbustos e mato, bom sítio para se esconder e fazer as necessidades.
Atravessou mais um largo e se embrenhou na vegetação.
Saiu dela mais ligeira, mas com nojo, pois servia para todo o tipo de
despejos. Teve de ter muito cuidado ao pôr os pés para não pisar os
excrementos depositados na véspera. Encontrou as quase ruínas da antiga
fábrica de sabão, imaginou ser um local possível de refúgio. Mas não era ali
que encontraria comida. Entrou no Bairro dos Coqueiros, com muitas casas
velhas e baixas, sítio dos começos da colonização, conforme aprendera nas
aulas de História. A primeira construção foi uma capela no sítio onde hoje é
a fortaleza, que sofreu melhoramentos durante séculos, sobretudo quando os
holandeses ocuparam Luanda e deram ao forte a estrutura pentagonal. Na
parte adjacente à fortaleza se estabeleceram várias igrejas e o palácio dos
governadores e os tribunais, cadeias, enfim, o centro do poder político e
religioso, a chamada Cidade Alta. Ao mesmo tempo, em baixo da barroca,
próximo do mar, onde atracavam os barcos, se estabeleceram os
comerciantes, criando o Bairro dos Coqueiros, a dita Cidade Baixa. Ainda
há tempos o pai insistira na lição de história de Luanda, quando à capital
tinha vindo refrescar os conhecimentos. Por isso ela sabia que estava nos
Coqueiros. E que havia muita gente humilde habitando ali, onde alguém
poderia lhe dar um pedaço de pão. A fome gania na barriga, mas sobretudo
na boca. Bateu a uma primeira porta na Rua das Flores com seu letreiro
envelhecido. Ninguém atendeu. Experimentou a janela. Nada. Uma senhora
estava a varrer o passeio à frente, lhe disse, já saíram, não está ninguém,
quem és tu? Himba explicou que só queria um pouco de comida, tinha
chegado na véspera sozinha do mato.
– Hum! – Fungou a senhora, parando de varrer e contemplando-a. –
Todos dizem a mesma coisa, todos dizem estão a fugir da guerra… Afinal
fugiram de casa mesmo ali no Prenda ou no Cazenga. E fugiram porque não
querem ouvir os conselhos dos pais ou ir na escola.
– Vim mesmo do município, juro…
– Xê, não jura! Não sabes é pecado jurar em vão?
Himba não queria discutir nada, só um pedaço de pão. Por isso avançou
pelo passeio sem responder, em busca de uma casa com gente. Ouviu a voz
da senhora:
– Xê, tu aí, matuense, estás a ir aonde? Eu acabei de falar?
A menina se virou de novo para a senhora, mas sem lhe olhar de frente,
com vergonha. Dera um passo muito grande, nunca na vida pedira algo a
estranhos. E ainda por cima estranhos que não acreditavam nela. Mas os
pais lhe ensinaram bem, se respeita um mais-velho, não se pode ignorar
alguém que nos fala, mesmo se mal. Ficou calada, mirando os pés, à espera
do que tinha a outra para lhe dizer.
– Vem aqui deste lado, te vou dar pão e leite. Mas não julga que me
enganaste, sei que andas a fugir da família.
Himba avançou para ela e esperou ao lado da porta de madeira já sem
pintura, enquanto a senhora foi dentro de casa. Reparou na janela, antiga, a
pedir lixa e tinta. A casa era muito pobre mesmo, se não visse uma pessoa
até julgaria estar abandonada. A senhora apareceu com um pão e uma
caneca de leite. Himba agradeceu e comeu avidamente. Quando entregou a
caneca vazia e ousou fitar de frente a outra, esta disse:
– Volta para casa dos teus pais. E não fujas da escola.
Himba negou com a cabeça.
– A senhora desculpe. Agradeço o que me deu. Mas eu disse a verdade.
Vinha com os meus pais a fugir da guerra, o camião foi atacado, muitos
tiros e explosões, fugi com medo, fiquei sozinha, depois apanhei boleia com
uns soldados que me trouxeram a Luanda, ontem. O meu pai é que sabia
onde mora a minha família aqui, mas nem sei se ele está vivo… Bom dia.
Tinha lágrimas nos olhos, o que amoleceu a mulher, mas esta nem teve
tempo de reagir, porque Himba já se afastava com um muito obrigado.
Estendeu a vassoura para as costas da miúda, como em chamamento mudo,
mas nada lhe saía da garganta. Envergonhada, arrependida? Sim, devia ser
isso. Ao menos lhe tinha dado alguma coisa de comer, não se portara tão
mal assim. Continuou a varrer o passeio, resmungando para si, crianças de
hoje, uma pessoa nunca que podia adivinhar, mas talvez ela falou a verdade,
coitada, que vai ser dessa criança?
Himba seguiu pelos Coqueiros e parou na sombra de um enorme
jacarandá, contemplando a subida íngreme da Calçada dos Enforcados, elo
antigo de ligação entre a parte alta, do poder, e a baixa da cidade. Já tinha
gente a subir e a descer, com dificuldade, dada a inclinação e o piso pouco
cuidado. Que haveria lá em cima? Não teve coragem de inspecionar, ficou
sentada a digerir a comida, pensando nas palavras da senhora. Um dia
talvez voltasse para a encarar e ver se acreditava que afinal só falara a
verdade. Essa gente de Luanda era sempre assim, desconfiada? Até podia
ter dito, nunca fugi à escola, tenho a sexta classe feita, segundo o pai já
pertencia a uma elite, atendendo a que mais de metade da população era
analfabeta e ela percebia um pouco o que o pai queria dizer, embora a
palavra elite lhe fosse totalmente estranha. Aquela senhora seria
alfabetizada? Pouco importava, tinha uma casa mesmo se velha e decrépita,
pão e leite, o suficiente para ela e para dar. Até podia ser analfabeta, o que
era uma pena mas pecado nenhum, só lhe merecia gratidão por no fundo ter
sido generosa. E algum pesar pela incompreensão. Ela, Himba, também
podia ser mais persuasiva, insistir na verdade. Mas para quê? Era assim tão
importante um adulto acreditar numa criança mal vestida?
Tinha de pensar masé na vida. Que fazer? Sozinha numa enorme cidade,
sem conhecer ninguém. Como procurar os pais? Depois lembrou,
inconscientemente evitara o amontoado de polícias, os únicos que a podiam
ajudar a encontrar a família. Sim, devia explicar aos polícias quem era, o
que acontecera, eles até podiam pedir informações aos soldados que a
ajudaram, procurarem os pais, os nomes e profissões ela sabia, talvez nem
fosse preciso dar o nome dos irmãos, mas também podia fazer. Passada a
fase da fome, devia tratar de saber da família.
Decidida, avançou para a marginal, refez o caminho e informou o polícia
da entrada que perdera os pais. O polícia mandou-a ir para o serviço de
receção, onde contou a sua estória a um homem com cara de sono que a
interrompeu a meio e gritou, chamem a camarada Aurora. Enquanto a
citada não veio, percebeu que estava num comando policial importante,
muita gente andava a subir e descer escadas, alguns com fardas
impressionantes. O homem da receção deixou-a observar tudo com
curiosidade de menina, depois lhe mandou sentar numa cadeira e esperar. A
camarada Aurora, também fardada de polícia, gorda e bem-disposta, um
sorriso que lhe cortava a cara ao meio, acabou por aparecer, ouviu a estória
dela, franziu os lábios, resmungou para o polícia da receção, não sei se os
Assuntos Sociais lhe vão aceitar, estão cheios de crianças abandonadas e
perdidas, mas vale a pena tentar, disse o outro. Coçando antes a cabeça, a
camarada Aurora pegou numa caneta e escreveu num papel que entregou a
Himba.
– Vai aqui nesta direção, é o Ministério dos Assuntos Sociais, está aqui o
nome da diretora Anacleta Dias, ela é que se ocupa dessas coisas, pode ser
te ajudam. Nós somos polícia, temos outra missão.
– Esta camarada Anacleta pode procurar os meus pais? Então não é a
polícia?
– Não temos meios. Ela pode. Pelo menos pode te pôr numa família ou
num lar, coisa assim, enquanto esperam resposta ao aviso.
– Aviso?
– Costumam pôr avisos no jornal para ver se a família aparece.
Era coisa nova para Himba, lá no município não tinha jornal e ninguém
punha avisos fora da administração.
– É longe?
– Um bocado. Não temos carro para te levar, é mesmo melhor ires a pé.
Mas com esse papel podes perguntar às pessoas, toda a gente conhece.
Saiu pouco convencida. Também não tinha alternativa. Andou e
perguntou. De facto, rara era a pessoa que não lhe indicava, ainda é longe,
vai por ali e depois vira à esquerda, etc. Bem mais lá à frente, voltava a
perguntar e lhe indicavam. O sol estava alto e a arder, quando chegou. O
porteiro não queria lhe deixar entrar, porque estava mal vestida e suja. A
sorte foi o papel escrito pela camarada Aurora ter dizeres da polícia e o
próprio logótipo em azul-escuro. Quem gosta de barrar uma pessoa que
anda com um papel da polícia a dizer o nome da camarada Diretora?
Carrancudo mas obediente, o porteiro disse o sítio. Himba subiu dois
andares. Mas a camarada Diretora não era tão acessível assim, primeiro teve
de esperar outras pessoas a serem atendidas, depois mostrar o papel numa
secretária, que a enviou para a colega do lado, o tempo passando. E as
secretárias ou lá o que eram liam atentamente o papel que só tinha o nome
da Diretora e o nome do serviço. Mas parecia um código muito secreto, pois
elas mexiam os lábios a ler com toda a atenção e depois deviam ler mais
três vezes, dado o tempo do exame. Finalmente, uma disse, aliviada, afinal
isso é com a chefe do Departamento de Apoio ao Menor e Himba foi
mandada descer um andar para entregar o papel a outra secretária, esta de
óculos e por isso lendo mais depressa, a qual lhe disse logo, estamos
fechados para o almoço, volta às três da tarde. Almoço?
Era bom que ela tivesse.
Esperou fora, numa sombra. Não lhe parecia que aquelas secretárias
fossem capazes de descobrir a família dela ou lhe darem um refúgio. Só
sabiam mexer em papéis e dizer não às pessoas, conversarem uma com a
outra, ignorando desdenhosamente quem esperava por elas. Mas, já que
estava ali, ia experimentar a tal chefe de departamento.
A qual, ainda brilhante do que comera e bebera, palitando os dentes sem
pôr a mão à frente como a mãe de Himba lhe ensinara nas lições de etiqueta
e boa educação, foi logo dizendo que procurar família não era trabalho do
departamento nem do ministério e os poucos lares estavam cheios a atirar
crianças pela janela. Era alta e com cara de cavalo, parecia o Trovão que ela
conhecera numa quinta do município natal.
Tinha só perdido o seu tempo.
Foi marchando pelas ruas, empurrada por pessoas correndo para apanhar
os candongueiros, ignorada pelas demais. Não sabia onde ir e a fome tinha
voltado. Felizmente encontrara uma mangueira de jardim no largo do
ministério, por isso bebera água que dava já para muito tempo. Não tinha
vontade e se forçou a beber, quem sabe quando teria acesso a outra
mangueira? Decidiu voltar ao sítio onde tinha dormido, se a sorte lhe
levasse lá. Alguns edifícios serviam de referência e conseguiu chegar à
baixa, com a tarde muito avançada. Devia bater a uma porta e pedir
comida? A experiência da manhã ainda estava presente, desconseguia de
enfrentar outra senhora desconfiada. Ou o destino lhe levava comida às
mãos ou dormia mesmo assim, decidiu. E desceu a avenida Amílcar Cabral,
a caminho do mar. Antes chegando à Mutamba. Tinha explorado uma parte
importante do casco urbano, atravessara muitas ruas, só não sabia os
nomes.
Havia alguém que soubesse nomes de ruas em Luanda?
Nomes não fazem falta, interessa a memória dos lugares. E ela tinha uma
excelente memória. Um recurso indispensável numa cidade onde os mapas
eram raros e desatualizados e faltavam nomes de ruas e números de casas.
Os carteiros lá se safavam em alguns bairros, mas era um saber muito
antigo e transmitido pela tradição oral.
Nos outros bairros nem carteiro havia.
Chegou à Mutamba na hora em que ela começa a esvaziar lentamente e os
miúdos se aproximam dos locais de repouso. Alguns andavam pelos
contentores, dois até lutaram por causa de qualquer pacote lá encontrado,
talvez com restos de bolacha, parecia. Um mais velho foi separá-los, o mais
pequeno refilou porque ficara sem o pacote, o mais velho lhe deu um
empurrão, desaparece. E dividiu o pacote com o que o apanhara. O mais
pequeno se afastou, limpando as lágrimas dos olhos.
Foi nesse momento que ela reparou no rapazinho, franzino e mais
pequeno que ela, só com uma perna, saltitando apoiado num pau. O toco da
outra perna desaparecia nos calções. Ele vinha da marginal e parecia
decidido. O pau não era uma muleta, antes uma parte de vassoura, numa das
pontas da qual estava incrustado um bocado de madeira enrolado em panos
para suavizar o uso. Nesse bocado de madeira ele assentava o sovaco. Dava
para andar, mas devia cansar muito, pensou Himba. E, apesar dos panos,
devia magoar. Nem precisaria de perguntar, a criança tinha pisado uma
mina, havia gente assim por todo o país. O pequeno veio na sua direção,
como se de longe tivesse reparado nela. Já perto parou, olhou atentamente,
depois disse com descrença:
– Não, não és a Sofia.
Ela negou com a cabeça.
– O meu nome é Himba. Quem é a Sofia?
– Ao longe parecias… É a minha irmã.
Outro procurando família. Mas pela desenvoltura dava para ver ele estava
familiarizado com a cidade. De facto, se encostou a um dos pilares do
edifício das Finanças, perguntou, vais dormir aqui? Ela concordou, já ontem
o fiz. Ele fez sinal para a parede, ficamos ali.
E se sentaram debaixo da cobertura, perto do canto onde Himba estivera
na véspera.
– Ontem fui fazer mais um reconhecimento à Ilha. Dormi lá. Muito
melhor que aqui ou na marginal. Tem alguns restaurantes, dá para apanhar
comida que sobra e eles deitam no contentor do lixo. Até cães e gatos
vivem por ali, à espera das esquebra dos restaurantes. E se dorme melhor na
areia. Amanhã vou passar a viver lá. Antes estava na marginal, umas vezes
dormia aqui, mas fica frio à noite, vem vento do mar. Na Ilha tem vento,
mas bocados muito grandes de cimento onde se pode arranjar proteção,
assim como uma coisa, esqueço o nome, que se cava na rocha, um
buraco…
– Uma gruta?
– É isso. Claro, uma gruta é maior, mas mesmo assim… conheci umas no
Kwanza-Sul, minha terra. Quando era pequeno.
Himba riu, até parece que és muito grande.
– Me chamo Kassule.
– Cheguei ontem do Huambo.
A pedido dele, ela contou resumidamente a sua trágica aventura. Ele
mexia a cabeça, indicando compreensão. Não disse uma palavra de pena, só
os gestos da cabeça.
– Eu pisei uma mina lá na terra, perdi a perna. Me mandaram para
Luanda, cortaram mais um bocado da perna porque estava mal, disseram,
ficou só um restito. Um dia vão me pôr uma perna de metal e madeira, mas
ainda falta. Dizem, há uma lista grande, é preciso esperar a vez. E crescer.
Se me põem agora, vou crescer e depois ela já não serve, fica pequena
demais, têm de me pôr outra. Assim estou à espera de crescer depressa para
ter uma pótese, não, prótese, me ensinaram mesmo. E saltou de seguida
para o assunto que lhe interessava, a minha irmã mais velha veio me visitar
onde eu estava, mas houve um incêndio no bairro, a família onde vivíamos,
nossos parentes, uma parte morreu no incêndio, o barraco desapareceu,
ficou só cinza. Tivemos de abandonar o bairro… Os parentes foram
recolhidos pelos deles, já não havia lugar para nós. Dormíamos por aqui ou
na marginal. Um dia, um carro parou, um homem falou na minha irmã. Ela
me disse, espera aqui, vou ganhar comida e talvez dinheiro. Esperei. Não
voltou. Dias passaram e eu à espera, nunca voltou. Costumo vir aqui
algumas tardes, três vezes por semana, pode ser ela volta.
– Há quanto tempo ela foi no carro?
– Muito. No ano passado. Mas agora ela já tem de ser maior do que tu,
não sei porquê te confundi… Parecias ela. Assim bonita…
– Às vezes é a vontade de ver que nos engana.
– Achas ela está viva?
Muita ansiedade na voz do menino, quase uma prece tímida. Quantas
vezes se fizera essa pergunta e a outros? Teria ouvido muitas respostas?
– Gostava de te responder, mas que sei eu? Vim ontem do mato, ainda
hoje uma senhora me chamou de matuense… Ela tinha razão. Não sei nada
da grande cidade.
Kassule bateu com a mão na perna boa, num gesto de ânimo.
– Ela está bem e vai voltar. Eu sei vai voltar, a Sofia não me ia abandonar.
Já me falaram, muitas moças vão com tipos nos carros e desaparecem, lhes
mandam para o estrangeiro, nem sei bem o que isso de estrangeiro é. Mas a
minha irmã Sofia? Não. Ela vai voltar, eu sei, sinto…
E batia com a mão no sítio do coração.
– Mas porquê foi com o homem no carro?
– Então não te disse? Para ganhar comida e talvez dinheiro, o homem lhe
prometeu.
Himba não percebeu todo o sentido, mas preferiu não insistir numa coisa
que incomodava o menino.
– E os teus pais?
– O meu pai era soldado, morreu na guerra, primeiro. A mãe ia comigo na
picada, pisou a mina. De facto foi ela que pisou a mina, por isso fiquei vivo.
Muitas vezes pergunto para quê…
– Não digas isso, Kassule… Deus lá sabe porque nos faz viver.
– Nunca lhe vi, esse teu deus.
– Nem eu, mas acredito.
Kassule não disse nada, respeitou. Tinha dez anos. Foi assim que se
tornaram amigos.

***

Diego Moreira estudou o quadro que pintava, de animais selvagens numa


savana. Há pouco tempo comprou um cavalete, mas era apenas pretensão.
As telas grandes, como as que via nas exposições dos pintores, os mais e os
menos conhecidos da terra, sempre o assustaram. Tentou misturar tintas
diretamente numa delas, para ver o que saía. Sempre podia experimentar o
abstracionismo, ainda atual. Mas a mistura lhe repugnava, não acertava em
combinações interessantes e acabava por retirar a tela do cavalete, cortá-la
em quatro pedaços, o que dava origem a quatro quadros diferentes, embora
de uma mesma linha narrativa, instrumentos tradicionais de música, kakoxi,
reco-reco, kissanje, tambores, puíta, címbalos, etc., organizados como uma
natureza morta dos pintores europeus. Em vez de elementos culinários,
instrumentos musicais. E mudava posições, introduzia ou retirava um deles,
diferenciando portanto os quadros. De outras vezes pintava mercados ao ar
livre, como as centenas que existiam em ruas ou antigas praças de Luanda.
Ou tipos de árvores, mussivi, acácia amarela ou rubra, imbondeiro,
mafumeira, mulemba, muxixi, em conjuntos ou com um exemplar isolado.
Ainda usava cenas de mar, pescadores a puxar redes para uma canoa,
traineiras, calema, calmaria. Fazia questão em que, embora tratando do
mesmo assunto, estes tipos de conjuntos nunca fossem iguais, senão, como
supunha, seria um artesão e não um pintor, pois o artesão faz sempre os
mesmos objetos, maiores ou mais pequenos, em madeira mais escura ou
clara, se repetindo e ganhando eficácia, produzindo rapidamente. Alguns
amigos contestavam, talvez não fosse a distinção, mas ele de qualquer
modo se sentia mais confortável fazendo cada mercado diferente do outro,
ou cada imbondeiro com um tronco menos gordo que outro. Sempre
quadros com cores vivas, predominância do ocre quase vermelho da terra
angolana, o verde muito verde das serras da Gabela, o azul muito azul do
céu e do mar, saudade de um tempo sem poluição. Podia ser chamado de
um pintor naif, como os franceses diziam dos congoleses, uns ingénuos, não
se importava, devemos ser diferentes e se a ingenuidade da nossa arte choca
o gosto europeu, tudo bem, passemos. E até nem chegava a ser verdade,
uma boa parte dos compradores dos seus quadros, se não a maioria, eram
europeus. Um dia Sofia perguntou, achas que compram porque gostam
mesmo ou apenas querem ser simpáticos, algum paternalismo à mistura? E
ele respondeu, nunca vi ninguém perder dinheiro para ser simpático, mas se
conheces alguém assim, mostra-me que lhe vendo uma carrada de quadros
pendurados por aí há um tempão, não te ofendas, se defendeu ela, apenas te
transmiti o que alguns dizem dos quadros comerciados na rua e não nas
galerias ou exposições.
Como se só os das galerias fossem sérios.
– Nunca haveremos de sair da rua, não é mesmo? – disse ele.
– Condenados à partida, como os cristãos com o seu pecado original. O
nosso pecado é o da rua, vendedores ambulantes…
Ela pediu mais uma vez desculpa.
Diego era muito sensível a certas posições. Sempre que conseguia ter
acesso, devorava as revistas sobre arte e passava horas a folhear livros com
reproduções dos grandes mestres, desde os medievais europeus aos
cubistas, também europeus, era já uma sina. Também seguia as discussões
sobre escolas e estilos. Nem sempre se podia aceder à bibliografia e mesmo
a Internet não era totalmente fiável. De qualquer modo, em muitas críticas
ou observações feitas aos artistas africanos, notava, por parte de
estrangeiros ou mesmo continentais, complexos quer de superioridade
balofa quer de inferioridade bacoca. Havia preconceitos em todo o lado e a
simples suavização do colonialismo operada no século anterior se revelava
insuficiente para colocar as coisas em pratos equilibrados. Nem tudo era
mau, infantil, grotesco, tosco, como advogavam críticos geralmente
ocidentais, nem eram obras-primas feitas a um rítimo de dez por dia por
iluminados pintores repetindo paisagens de rios e crocodilos ou escultores
trabalhando sobre peles de zebra ou chifres de olongo. Tudo devia ser
medido segundo critérios rigorosos e frios, imparciais. Se uma obra lhe
tocava as mais profundas fibras da imaginação, pouco importava se
provinha de um Rembrandt ou um habitante de um musseque de Luanda,
comovia na mesma. O espírito humano não tinha fronteiras e os que lhe
criavam as barreiras do preconceito mereciam ser lançados do alto do
Kilimanjaro para caírem no vulcão do monte Fuji, se é que ainda estava
ativo. Longas conversas contra si próprio, olhando uma tela vazia, sentindo
não ser capaz de dar a volta e colocar o fiel parado na balança. Com ele o
fiel balançava mais que a balança, indeciso, sem ver para lá dos olhos.
Tinha conseguido algumas vezes e então sabia, o trabalho estava excelente.
Raras vezes.
Mais raras do que gostaria. Claro, almejava sempre ficar contente consigo
e em cada obra no começo lhe parecia, agora é que vai ser, esta arrancou
muito bem, há aqui uma sólida base para avançar. Mas como o general que
dá a ordem de ataque e só depois descobre ter faltado reconhecimento
suficiente do terreno ou do inimigo, e vê o seu exército se esboroar em
armadilhas, se adivinhando impotente para evitar a vergonhosa derrota,
também com ele acontecia ir progredindo e percebendo que a ideia inicial e
fulgurante lhe fugira, afinal era uma quimera impossível de atingir, tinha de
se contentar com a mediocridade de sempre, o quadro bem executado e sem
chama. Talvez fosse demasiado exigente, pelo menos os amigos criticavam
esse aspeto dele, a procura da perfeição. Mas então o que será a arte senão a
procura da perfeição? É mesmo da procura que se trata. No fundo, tudo na
vida. Até o da prostituta consciente que tenta satisfazer ao máximo o cliente
que lhe causa repugnância. O que conta verdadeiramente é o caminho da
busca, não o que se atinge. Acertar no alvo é apenas uma consequência,
sabedoria budista. A procura é o processo, o conjunto de vitórias e reveses,
dores e sonhos, avançando aos tropeções, uma luz pálida na linha do
horizonte. Para se extinguir no quase lhe tocar.
Os artistas são mesmo complicados.
Desta vez era uma experiência como das outras, parecia ter arrancado
bem, o sorriso sarcástico da hiena estava perfeito, o olhar assustado do
mabeco dando já o flanco para recuar perante forças mais poderosas, a
carcaça do grande antílope no chão à disposição do primeiro bicho, a leoa
se afastando com uma perna do ondjiri caçado, o capim ondulando com o
vento, e ele conseguia ouvir a canção do vento no capim ondulando,
luíniiiiiiii, tudo se apresentava certo e consistente, tinha de ganhar a
confiança necessária para não se interromper com dúvidas, sim, o capim em
cima ainda apresentava manchas verdes mas em baixo já estava amarelo,
pois se entrava na estação do cacimbo, o mundo da anhara ia em breve
secar, a enorme perna do antílope pingava sangue para a boca da leoa e
havia gotinhas num arbusto por onde passou o felino com a presa, tudo
certo, milhões de vezes acontecido, mas o que faltava? De repente a mesma
sensação horrível de tentativas anteriores. Os elementos se apresentavam
pintados com realismo, o conjunto equilibrado, as cores corretas como
lembrava de vidas anteriores ou tinha visto em livros e em filmes, os
movimentos bem delineados, mas faltava a alma, o estilo único de uma
pintura. Qualquer um faria aquilo. E ele não era qualquer um.
Atirou com raiva o pincel contra a parede.
A parede nova do apartamento novo na urbanização nova. Com um
borrão de tinta. O chão também com pintas vermelhas. Que diria Sofia?
Ficou a olhar para a parede, consternado. Suspirou de alívio por fim, para
quê era pintor? Devia deixar a tinta secar na parede, depois disfarçava com
um pouco de branco, ninguém ia notar. Se nem isso fosse capaz de fazer,
então…
Se deitou na cama, desolado com as suas malambas. Dali podia ver o
cavalete e o quadro, bem maior que o habitual. Vulgar, um quadro africano,
como esperavam os turistas… A paisagem era inconfundível, podia ser no
Quénia ou Tanzânia, ou mesmo Angola, os bichos, os que habitualmente se
veem na televisão e as crianças europeias reconhecem aos quatro anos, a
cena banal, uma leoa que caçou um grande antílope e os necrófagos depois
aproveitam os restos. Como ele aproveitava os restos que sobravam da arte
dos grandes pintores. Antes pintar imbondeiros de todos os tamanhos, com
múkua ou sem múkua, de preferência com as múkuas penduradas, parecem
mamas de velha embora menos ressequidas.
Amargo, o seu estado de espírito.
Tentou dormir. Ficava um momento de olhos fechados, mas logo os abria.
O quadro atraía-o. Parecia um desafio. Ele estava ali na tela a chamar por
ele, vem jogar comigo, não queres fazer uma aposta e jogar comigo? Era o
espírito do quadro, a alma que ele procurava? Haveria mesmo uma voz
interior de todos os quadros que por vezes ele conseguia ouvir? Histeria,
toque de marketing? Magia inexplicável que rodeia qualquer obra de arte
quando executada sob o efeito de drogas ou sentimentos indomáveis? Ou
apenas uma aglomeração de disparates que os artistas inventam para rodear
a sua obra de mistérios insondáveis, forças ocultas arrebatadoras,
misturadas com a obsessão do sublime, o tal elo perdido? Artistas e
escritores têm estas confidências bem estudadas, sobretudo para entrevistas
de televisão, pensadas com tempo. De preferência, referências
acompanhadas de uma voz profunda e baixa, a mão a sustentar vagamente o
queixo, o olhar perdido no vácuo, fingindo inteligência e sentido de
comunicação com outros universos, inacessíveis ao comum dos mortais.
Sucesso garantido neste mundo de aparências e futilidades. Sobretudo para
jovens sonhando com aventuras românticas, mesmo se rodeados de um
cinturão de explosivos.
Mas… E o quadro?
Estava ali a desafiá-lo. Que mais pode fazer um quadro inacabado do que
desafiar o seu autor? A tentar terminá-lo ou a destruí-lo à facada, não, isso
não, que a tela é cara e difícil de encontrar, sem esquecer a eterna falta de
capitais. Um facto era certo, o quadro comunicava com ele, ou a alma da
pintura, como se queira. Não entendia o que dizia ou gemia, gemendo ele
também.
Foi assim que Sofia o encontrou, entrando sem bater, como era hábito na
casa, entre eles não havia privacidades.
Diego saltou da cama e então ela viu a mancha na parede, uma mancha
insignificante.
– Aconteceu um acidente… – Se apressou a justificar. – Mas vou
disfarçar isso, não te preocupes.
– Atiraste com o pincel à parede?
Era muito comum, embora para ele parecesse sempre a primeira vez. Ela
apreciava bué a atrapalhação dele, como uma criança apanhada em falta.
Fingia não gozar, ria para dentro. Diego era previsível, todos os próximos
sabiam as suas reações, mas fingiam ser apanhados pelos sustos ou
ameaças. Ele adorava provocar admirações e o seu medo ficava amainado
quando acreditava ter conseguido esses efeitos. Um teatro para todos,
menos para ele.
– Quer dizer que não estás muito satisfeito com o teu trabalho. Olha que
não está nada mau, tem movimento, há uma estória por trás, se percebe, a
hiena e o mabeco são símbolos fortes dos aproveitadores, a leoa faz o que a
sua natureza manda fazer, alimentar a família, acho está quase pronto,
porque te chateaste?
– Qualquer mau pintor é capaz de fazer aquilo.
– Aquilo? Bem, eu nem má pintora chego a ser, não posso falar sobre o
assunto, mas conheço uns quantos pintores reconhecidos que não se
importariam de assinar por baixo… quando estiver concluído, claro.
– Achas mesmo? Falta-lhe alma.
Sofia deu uma gargalhada.
– O sopro divino? Vai lá assoprar e devolve-lhe a alma que lhe roubaste.
– Estás a gozar.
– Estou.
– No entanto, tem algum sentido. Dei-lhe corpo e lhe tirei a alma, é isso?
O sopro divino…
– Deixa de feitiçarias! Muito gostas tu de ir buscar sortilégios para
explicar o que crias. Pensava que já tinhas abandonado essas partes de
animismo pictural, enganei-me, passaste apenas a esconder de mim. De
facto, não sinto cheiro a fumos de ervas estranhas. Antes usavas. Até
mesmo fumavas as liambas fundamentais para a criação, conforme dizem
os consagrados… Aqui não, aposto por ser um apartamento novo e andas
com cautelas. Podes fazer os teus feitiços à vontade, o quarto é teu. Quando
abandonarmos este, mandamos pintar tudo para entregar ao dono em
condições decentes… Devias ter mesmo um estúdio só para pintares,
isolado, com todos os fumos, sujando todas as paredes, escrevendo mesmo
nelas se necessitasses. Mais um tempo e poderemos arranjar o estúdio, te
prometo. Então, sim, vais sentir o sopro divino que emana das tuas obras.
– Andas a falar muito caro. Emana? Quer dizer o quê?
– Não me gozes… Te agrada a ideia de um estúdio?
– Por enquanto aqui estou bem. E os fumos e as drogas já passaram de
moda, não uso mais. Nem os colares de conchas ou de unhas de onça.
Ainda menos a liamba… Nem trabalhar todo nu, só com um sapato
calçado…
– Já houve um escritor que escreveu isso, lembras?
Sofia não queria ir por aquele caminho, sabia ele estar chateado e faria
tudo para lhe mudar o humor. Mudou o foco da conversa, insistiu:
– Um estúdio, pois claro. Se as coisas continuarem assim com o
restaurante, vamos conseguir depressa.
– Agora és sócia… Uma mijagrosso…
– Ainda. Mas vou chegar. Que dizes, um estúdio?
Diego riu. Depois falou e a voz era sentida:
– Não percebes o disparate? Um tipo com um estúdio e tem de vender
quadrinhos nas kitandas e na rua?
– Há quem venda nos hotéis e com sucesso. Devias procurar colocar
alguns quadros. Os hotéis não se importam, muitas vezes nem cobram
comissão, porque os turistas gostam de ver arte e dá vivacidade ao sítio. E
se cobrarem comissão também não faz mal, porque os preços se tornariam
mais altos. Mas tens de te mexer, ir lá, falar com alguém, tentar vários
sítios, com uma amostra, pedindo um espaço de parede num bar, nas
escadas, numa sala de passagem, num corredor, sei lá, onde muita gente
visse. Se eu tivesse tempo te ajudava, ia convencer os tipos, mas tens de te
desenvencilhar sozinho, já és grandinho...
– Já falámos disso. Sim, tens razão. É o género de pintura que tem nos
hotéis.
Ela notou a amargura dele, relegado para mercados e sonhando com vãos
de escada num hotel, enquanto os outros conseguem fazer exposições em
salões importantes.
De repente, Diego olhou o quadro e saltou da cama. Foi buscar o pincel
abandonado no chão e começou furiosamente a misturar tintas na paleta.
Frenético, os olhos esgazeados, com medo de deixar fugir a ideia. A
presença da irmã não o incomodava. E ela nem se mexia, percebendo o
êxtase que o atingira. Só pensava, acendo uma vela se der certo, se ele ficar
feliz no fim, mesmo se não acredito na força das velas e no que
representam.
Diego encontrou a combinação de cores pretendida e começou a pintar.
Era um tom acinzentado com um toque de vermelho sanguíneo muito
ligeiro e ela não entendia as formas que se iam desenhando por cima da
imagem da carcaça do antílope. Depois ele passou para outro tom, mais
escuro, para em seguida voltar ao cinza inicial, pintando com fúria, em
largas pinceladas. Sofia compreendeu então, o tom mais escuro eram os
cascos e o resto, espectral, era o corpo de um belo ondjiri, de cornos
enormes e retorcidos, em três volutas, fugindo dele. O espírito saindo do
cadáver esfacelado, voando em direção de onde estava a leoa com a perna
do antílope. E o espectro com efeito só mostrava três pernas, a quarta podia
estar escondida pelo resto do corpo ou simplesmente não existir no espírito
por ser levada na realidade pela leoa. Tinha estória, talvez a alma que ele
procurava. Muito lentamente, sem um ruído, saiu e fechou a porta do
quarto.
Os artistas precisam de solidão, mesmo se não o reclamam.
3

O grupo de jovens continuava a frequentar o restaurante, pelo menos duas


vezes por semana. Agora o grupo agregara outros que tinham acabado
cursos no estrangeiro e também habitavam os condomínios novos e de luxo
de Luanda-Sul ou Luanda-Sudeste. Amigos de escola ou de infância,
levavam namorados e namoradas, maridos ou esposas raramente, jantavam
e depois ficavam na conversa e a beber os mais caros digestivos. Era nessa
altura que Sofia dispensava o pessoal e se reunia ao grupo, puxando uma
cadeira e bebendo água mineral gaseificada ou uma cerveja. Eles bem
insistiam com ela, gin com pimenta e framboesas ou com maçã verde e
zimbro ou alecrim e azeitona verde ou apenas com pepino, todas as
variedades de gin, a moda do momento e a moda que nunca deixava de o
ser, o uísque de malte de 15 anos, uísque escocês de 24 anos, uísque sem
cor de 48 anos, mas ela não passava da cerveja, já com álcool a mais para o
seu gosto. Por ter a certeza de que tudo se ingeria, ela encomendava para o
restaurante essas bebidas caras, que davam o maior lucro. Não foi sempre
assim. No princípio, tinha medo de investir em mercadoria que não tivesse
consumo. Mas os rapazes (primeiro eram de facto só rapazes, quatro, seis,
mais tarde começaram a vir acompanhados de moças) exigiam, comida tão
boa merece acompanhamento melhor. Ela arriscou comprar alguns vinhos
de mesa de qualidade, contrariando a vontade de Dona Ester, condicionada
só a cerveja e bebidas baratas que os clientes habituais preferiam. Os jovens
apareceram mais vezes e consumiam todas as garrafas. Parecia, quanto mais
caro era o vinho, mais eles bebiam. E pagavam com cartões de crédito de
platina. Por vezes ela levava os cartões para o pagamento e os nomes
raramente correspondiam. Não interessava, ou eram dos pais ou nomes
fantãs mas de empresas sediadas em ilhas estranhas, ela não estava ali para
investigar, apenas receber os pagamentos.
Depois foi a luta pelos digestivos. Esse uísque é reles demais, comprem
esta marca e aquela. Já mais confiante, ela comprava os destilados caros,
toda arrepiada só de ver os preços no grossista. E mais arrepiada ficava
quando multiplicava por três o preço para venda e os moços acabavam com
o stock, pagando sem sequer fazer contas. Dona Ester aos poucos foi
acalmando com as explicações dela, veja, isto é lucro proveniente desse
grupo e isto é o lucro geral do restaurante, veja a importância destes
clientes. Não havia dúvidas, aqueles moços eram uma galinha de ovos de
ouro.
Deviam ser acarinhados, satisfeitos em tudo.
Por vezes vinham doze, geralmente mais, nunca chegando aos vinte. Para
festas, iam a outros sítios, ela ouvia-os conversar. Mas para um grupo de
clientes de quatro no princípio já era ótimo que aparecessem doze agora.
Todos eles esfomeados, embora isso pouco contasse, mas com vontade
tremenda de beber e o mais caro que existisse. Além disso, as contas eram
sempre muito fáceis de fazer, não era ao copo que se cobrava, era à garrafa.
Ela de vez em quando aliviava um pouco a mesa, juntando as garrafas
vazias num canto para no fim as contar. Em três horas, podiam derrotar três
garrafas de gin e oito de uísque, dependendo do número deles. Havia
ocasiões em que reclamavam, está tão boa a discussão, deixa-nos ficar mais
tempo, mas Sofia era inflexível, à meia-noite fechamos, é um trato com a
vizinhança e mesmo assim são muito compreensivos, muitos se levantam às
cinco da manhã para levar os filhos à escola e estarem nos empregos às
oito. Claro, os jovens não sabiam o que era isso, o mundo do trabalho lhes
era absolutamente estranho, viviam na casa dos pais ou na casa que os pais
compraram para eles, trabalhavam em empregos fictícios ou então
familiares, sem obrigações de horário nem produtividade, formatados só
para gastar o dinheiro fácil de ganhar. Horários?
– Deixa lá os vizinhos, hoje dormem um pouco pior, Sofia, não queremos
sair.
Mas ela conseguia pô-los na rua, depois de feitas as contas e pagarem, à
meia-noite em ponto.
Também acontecia as conversas derivarem para assuntos mais íntimos. E
um ou outro olhar para ela em atitude menos convencional. Ela se mantinha
distante, nada interessada na conversa, menos ainda nos olhares
convidativos.
Abdias, sentado ao lado dela, uma noite lhe segredou, não queres ir a uma
festa que vamos dar na casa do Solferino? Vais gostar, tem uma boa piscina,
todo o dia a apanhar sol e portanto com a água tépida, muita bebida, gente
bonita, algumas pessoas que costumas ver nas revistas de fofocas, até na
televisão em anúncios e a fazerem de atrizes de novela… Nem precisas de
fato de banho, cueca serve. Às quatro da manhã nem de cueca precisas para
entrar na piscina, está todo o mundo bêbedo, muito pedrado, há cada
ganza… Ela declinou o convite, um pouco escandalizada. Abdias encolheu
os ombros, nem sabes o que perdes, são grandes farras, as melhores. A casa
é dos pais do Solferino, por isso só dá para fazer trumunos quando eles
estão no estrangeiro, o que é o caso agora. Haverá outras oportunidades,
mas quem adivinha quando? Por isso hoje a malta até vai sair mais cedo. Se
quiseres levo-te no meu ruca, um novo que me ofereceram porque o paizão
fez um grande negócio na China e então, na passagem pelo Dubai, se
lembrou do filhinho que andava numa sucata velha e me fez o carinho.
Abdias estava em veia de confidências, talvez porque seria a primeira vez
que ficava naquele canto da mesa onde ela encostava sempre a cadeira,
lugar de eleição para controlar o grupo e o resto das mesas, bem como a
porta de entrada. Ela ouvia só, sem repetir a negativa, sentindo no entanto a
coxa dele em contacto com a sua. Mantinha a posição, não retirava a sua,
por medo de poder parecer demasiado grosseira, embora não a excitasse o
contacto físico. Abdias até era interessante e um dos menos excessivos do
grupo. A coxa dele procurou a sua, disso estava certa, não era um acaso que
acontecia nessas mesas com muita gente, uma pessoa tocava na perna da
outra sem querer e retirava. Só mantinha o contacto quem queria mesmo.
Sofia falava sobretudo com outros, Abdias era mais discreto, talvez tímido.
Nessa noite se desforrava de toda a timidez, pensou. E lhe deu vontade de
sorrir, vontade que não se materializou ao sentir a mão dele pousar no seu
joelho. Ela empurrou levemente o braço e ele retirou. Desculpa, disse, e pôs
a mão em cima da mesa.
Não era o primeiro que tentava.
– Deixa lá, só estás um bocado bêbedo.
Então, tinha de manter a freguesia, não?
Abdias não voltou a abordá-la, nem falou mais, parecia ter perdido a
língua. Nunca era muito loquaz, deixava as grandes discussões para os
outros, por vezes tentava extrair uma conclusão de uma conversa, uma frase
breve, concisa, nunca deslocada. Seria dos mais inteligentes do grupo,
achava. Tinha pena que ele se tivesse excedido, talvez contagiado pelo
espírito dela, se concentrando no contacto da perna masculina, embora sem
prazer. No entanto era verdade, sentia mesmo a coxa dele, quente, houve
transmissão de pensamento e o jovem perdeu a timidez, tentou. Pode ter
sido ela a razão da atitude. Mas como foi parar ali a perna dele? Ela não
tinha feito nenhuma aproximação, estava segura disso. De facto, a iniciativa
partiu de Abdias, começada com o convite para os acompanhar, a alusão à
piscina e à nudez dos corpos, para, Sofia, para de te recriminares, agiste
bem em afastar a mão e mostrar que não estavas interessada em
brincadeiras.
Iria contar a Diego?
Obviamente, não. Ele já tinha perguntado várias vezes, mas esses rapazes
não se atiram a ti? Nunca te convidam para saíres com eles? E ela dizia,
nunca, mas também recusaria, se algum o fizesse. Acho que eles adivinham.
E que interesse posso suscitar em gente tão rica que vê tudo no mundo e
convive com mulheres belíssimas? Nunca se sabe, dizia Diego. Podia ao
menos ser simpático, dizer mas tu és linda, minha irmã, são cegos ou quê?
Preconceito de classe? Mas Diego nunca ripostava assim, o que teria valor
pois vinha de um artista, conhecedor do belo, opinião abalizada, portanto.
Depois de ela responder com seu jeito de boca descaída, em desdém, ele
mudava a conversa e não lhe fazia o cumprimento que lhe agradaria ouvir.
Talvez fosse o problema dele, que se queixava às vezes de não provocar o
interesse das mulheres, embora as estrangeiras, sobretudo francesas, lhe
fizessem muitas perguntas sobre a sua arte, a técnica utilizada, de que forma
era influenciado pela pintura da África Central, perguntas bué, para
deixarem os quadros todos sem comprar e franzirem os lábios daquela
maneira própria que têm as francesas de nariz empinado como evitando
cheirar os maus odores dos corpos e do lixo empilhado perto das bancas dos
vendedores. Teria mais sorte se fizesse um reparo sobre o cabelo bem
penteado, ou a curva das sobrancelhas, coisas que as mulheres gostam de
ouvir. Ele era incapaz. E depois se queixava da falta de clientes e também
de amantes.
Fora o próprio Diego que lhe contara a estória de Eneias, pseudónimo
mítico de um pintor como ele, de sereias e hipopótamos em todas as lagoas
à volta de Luanda, o qual conseguira interessar na sua arte muito rústica, no
parecer do irmão, uma francesa casada com um tipo dos petróleos, a qual
frequentava com regularidade a feira de artesanato no caminho do Sul, se
perdendo em reflexões e palpites pelas bancas dos pintores. Não se
interessava pelas esculturas ou os trabalhos sobre osso e marfim, na altura
em que o marfim tinha tráfego legal, antes das campanhas contra o abate
indiscriminado de elefantes levadas a cabo por algumas oénegês. Ela só
queria os quadros. E quantos mais rios e lianas de árvores tivessem, melhor.
Por isso se enamorou de Eneias, um tipo que apesar do nome mais parecia
ser do Congo ou ter vindo de lá. Ele tinha a paciência de lhe explicar todos
os detalhes e inventar situações complicadas em que estivera envolvido
com cobras nas matas ou com todo o tipo de bichos nos rios do Norte do
país. Tinha lábia, o Eneias. Daí que ia a casa dela lhe levar quadros e mais
quadros. Até o marido lhes apanhar pintando de outra forma na cama. A
francesa levou um visto de saída em vinte e quatro horas e o Eneias perdeu
uma boa fonte de receitas. E de prazeres, segundo contava a Diego, coisas
que ele nem imaginava poderem ser feitas numa cama ou numa mesa de
cozinha. Eneias ficou mais pobre com a partida abrupta da francesa, mas
manteve a ginástica e sempre conseguia convencer algumas clientes
europeias do bem fundado da arte pictórica africana, fazendo mesmo
filosofia sobre o que pintava, misturando fabulário com mitos mal
apreendidos, sempre na ótica de Diego, e com listas de reis do Kongo
ancestral, a começar por Nimi-a-Lukeni, os quais na realidade não tinham
nada a ver com os quadros que ele pintava, mas serviam para criar uma aura
de credibilidade histórica às paisagens ou cenas representadas. E elas, as
babacas, loiras em geral ou de cabelo pintado, se rendiam aos seus
encantos, como aconteceu com uma holandesa que mal entendia o
português já por si difícil dele, mas deixava as palavras do artista
escorrerem pela pele sardenta e suada, escolhendo quadros, tocando
inadvertidamente a mão do pintor, até ele estar certo de que a presa ficara
fisgada e combinar ir lhe levar quadros em casa. Até o marido descobrir e o
visto dela caducar de um dia para o outro… Eneias tinha herdado
certamente alguma coisa do nome, habilidade talvez para enganar pessoas.
Não foi o Eneias da lenda que aprendeu comércio em Cartago com Dido e
depois a largou em lágrimas para montar uma banca no sítio que um dia
seria Roma? Ou estava a confundir nomes?
Sofia ria, tenho de conhecer esse Eneias, é um personagem, podes crer,
minha irmã, que personagem! Pinta mal que chega, mas vende mais que
uma zungueira vende tomate…
– No outro dia veio ter comigo – continuou Diego. – Um grande negócio.
Sentia não ser capaz de uma encomenda. Uma alemã qualquer, ou era
norueguesa, não sei, queria um quadro de um elefante a trepar numa árvore.
Irreal, claro. Pagava bem. O Eneias então me propôs para eu pintar aquilo e
depois dividirmos a meias, imagina.
– Não aceitaste porquê? Por dividir a meias ou por não gostares de pôr
um elefante a subir uma árvore?
– Até era muito fácil fazer um quadro desses. Demasiado imbecil para o
meu gosto. Ainda por cima de encomenda, nunca gostei de encomendas
dessas. A cliente decidia tudo, só faltavam as cores, até lhe podia exigir um
elefante cor-de-rosa ou verde-marinho, um capricho, e o artista que o faça,
pois ela paga. Só perguntei, como quer ela, as orelhas caídas para o chão,
porque o elefante está a subir e as orelhas sofrem os efeitos da gravidade,
ou ficam direitas como normalmente têm os elefantes de pé? Não lhe
perguntei, disse ele. Mandei-o perguntar antes de decidir.
– Mas já tinhas decidido…
– Claro.
– E ele trouxe a resposta?
– Ela hesitou muito, parece, nem sei se compreenderam o que eu tinha
perguntado, um e outro. Então, a senhora mudou de opinião e já não era
elefante, queria uma girafa a descer os rápidos do Kwanza, ali onde vão
fazer a nova barragem e dar cabo de toda a paisagem. Para ela era histórico,
uma agressão ao coração de África, um crime ecológico…
– Até pode ser.
– As barragens sempre dão cabo das cataratas e rápidos, li isso algures.
Ficamos sempre a usar candeeiros a petróleo só para não dar cabo das
cataratas? Eles nos países deles já acabaram com as cataratas todas para
terem progresso, porquê vêm cá exigir que mantenhamos as nossas e
tenhamos de voltar às fogueiras?
– Calma, calma, estamos a falar do Eneias.
Diego sempre reagia violentamente quando supunha ou pressentia que um
estrangeiro estava a expressar alguma opinião, certa ou errada, sobre o país.
Nem precisava de falar. Ele imaginava o que o outro ia dizer e passava logo
ao ataque. Muangolê a valer!
– Portanto, ela queria os rápidos como ainda estão e a girafa a passar por
eles… Maluca! Porquê uma girafa?
– Resumindo, não ganhaste nada no negócio – disse Sofia.
– Nem o Eneias. Ele não seria capaz de fazer o quadro. Só sabe pintar
lagos ou rios, árvores com lianas e canoas.
– Mas vende bem.
– Mais que eu, oh, muito mais. É a lábia dele… Um verdadeiro artista!
Pois, os artistas usam de muitas artes.
Sofia não contou nada ao irmão, mas ficou tocada pelo interesse de
Abdias naquele jantar. Sobretudo pela vergonha que tolheu a fala dele, a
partir daquela altura. Tinham passado duas semanas, pelo menos quatro
refeições, e ele sentava propositadamente do lado oposto ao que ela iria
ocupar, para não ficarem mais juntos. E, se estava a falar quando ela
encostava a cadeira, permanecia mudo. Comprometido. Exagerava, achava
ela, também não era causa para tanto. A algazarra daquele bando de amigos
impedia os outros de repararem no súbito silêncio dele a meio de uma frase.
Logo dois ou três pegavam nesse ou outro assunto, depois discutiam a dois
e dois, até algum dar um berro, esperem aí, e debitar a sua verdade urgente
de ser vertida sobre a mesa. Os outros não notavam, entendia ela. E ficava
também perturbada, não sabendo o que pensar da situação e muito menos
como lidar com ela. Ignorar? Seria o mais sábio. Abdias desaparecia e ela
fingia não reparar. Abdias entrava com o bando e ela cumprimentava todos
por igual, com alguma piada de boas-vindas, sem o encarar para ele não ter
de baixar os olhos.
Parecia um pacto não combinado.
Mais cedo ou mais tarde o pacto seria rompido, como todos os pactos,
afinal. Estava inscrito algures entre a constelação do Touro e a de Aquário.
Ela sabia. Saberia ele?
***

– Ficamos aqui hoje, disse Kassule, amanhã cedo vamos para a Ilha, vais
ver, lá é melhor. Agora vamos cubar.
Se virou para o outro lado. Himba ainda ficou um bocado a pensar. Fui
mesmo burra, de dia podia ter apanhado uns jornais antigos ou uns cartões
num contentor de lixo, devia haver bué de coisas dessas mais ou menos
limpas pela cidade. Estaria mais confortável à noite. Kassule parecia não
precisar de nada, já tinha caído no sono.
Dormiram quando a cidade se aquietou um pouco. Rugia, no entanto,
nunca ficava calada. Ela já tinha aprendido. Talvez na Ilha fosse tudo mais
calmo, podiam descansar sem se sobressaltarem com as aceleradelas de um
carro potente ou uma moto.
Esperanças.
A luz do sol rompendo nuvens despertou a miudagem. Uns resmungavam
e continuavam a dormir. Kassule e Himba se levantaram, esfregaram os
olhos, caminharam para a avenida marginal, tomaram o caminho da Ilha,
rodeando a baía. A água permanecia calma, parada mesmo, exceto quando
um peixe saltava e redemoinhava um pouco. Para as ondinhas pequenas se
esbaterem e voltar de novo o céu a se mirar na água estática. Ela deixava o
kandengue impor o seu rítimo de marcha, ele é que era o deficiente, achava
ela, mas andava rápido. E foi contando o que sabia, distâncias entre um
ponto e outro, explicações sobre a fortaleza, adiantando que começou a ser
construída ainda no século XVI, mas como era possível ele ter a noção de
séculos?, contou do istmo que antes fora uma ponte mas no tempo do
colono resolveram pôr cimento e pedras até ao fundo do mar, cortando a
passagem das águas da barra da Corimba até à baía. A Ilha de facto passou
a ser uma península ou restinga, já ouviste falar da restinga do Lobito?, sim,
ela tinha ouvido, o pai falou. É igual, disse Kassule. Como a do Mussulo, lá
é o princípio. Ou o fim…
– Como sabes todas essas coisas? – perguntou ela.
– Sei muito mais. As pessoas me contam e eu não esqueço – murmurou,
como se fosse só para si: – Nunca esqueço nada, esse é o problema que
estou com ele.
Mas continuou nas explicações, pronto, agora já estamos na Ilha, se nota
logo por causa das casuarinas, já tinhas visto estas árvores? E ela disse não,
pois nunca tinha visto casuarinas, parece só gostam de viver junto da água
do mar, são salgadas, experimenta provar as folhas, que nem parecem
folhas, são fininhas e compridas como pelos de gigante, prova um desses
pelos e vais ver, são salgados. Ela obedeceu e provou, desconfiada.
Engraçado, ele tinha razão, havia um toque de sal para lá do sabor de folha.
Aquelas bolinhas castanhas são os frutos, nunca provei porque picam, mas
aposto são salgados. E se morderes o tronco também deve ser. Andaram
mais, andaram muito. Kassule parecia não se cansar, apesar de ter só uma
perna e também gostava de falar, não parava. Ela tinha fome e sede.
Sobretudo sede. Disse a Kassule.
– Vamos avançar mais um pouco, é onde tem mais casas. Já passámos a
igreja, não falta muito para um sítio com árvores altas, não são casuarinas,
acho aí nos dão água.
Em breve de facto encontraram do lado direito da estrada um conjunto de
casinhas pequenas, com quintal, mas dispostas de maneira a formar um
pequeno largo cheio de sombra. Viram uma senhora sentada num banco,
fora de casa mas perto do muro, se percebia logo qual era a sua habitação,
com uma menina no colo, a quem ela fazia trancinhas. A menina por vezes
queixava com doçura, dói. E a senhora dizia suavemente, sim, às vezes é
preciso doer para se ficar bonita, tens de aprender. Os canucos se
aproximaram da senhora e Kassule fingiu tossir para chamar a atenção e
disse:
– Bom dia, minha senhora. Se não incomodasse muito, podia nos dar
água? Estamos a vir a pé da cidade e temos sede.
A senhora disse logo, claro, água nunca se recusa a ninguém. Mandou a
menina a quem entrançava o cabelo, vai só rápido lá dentro dizer à Luzia
para trazer água. Enquanto esperavam, ela perguntou:
– Vêm da cidade? A vossa família?
Kassule coçou a cabeça, olhou Himba, é uma estória um bocado
comprida. Mas resumindo, eu sou do Kwanza-Sul, vim para Luanda como
deslocado de guerra, caí numa mina e fiquei sem a perna, a minha mãe
morreu. E aqui a Himba chegou ontem do Huambo. Caíram numa
emboscada, se perdeu da família toda, não sabe o que lhes aconteceu. E eu
vou levá-la para um sítio onde se pode dormir melhor do que na Marginal
ou na Mutamba, que foi onde ela estava a dormir. Himba se espantou da
capacidade de síntese do amigo, esse miúdo mais novo que ela, não só
atrevido, dialogando com toda a gente, como sabia falar muito bem para a
idade dele, e sem dizer nenhuma palavra ofensiva, nenhuma asneira…
Entretanto chegou a água, uma cafeteira e dois copos.
– Luzia, então não havia outro jarro para trazer a água? Numa cafeteira.
Espero que não saiba a café.
– Não faz mal, senhora – se antecipou Himba. – Bebemos e agradecemos.
Estamos com muita sede.
– Sede e fome, não?
Olharam um para o outro, as mãos inquietas, sem sítio onde pararem. Não
podiam mentir. Kassule disse, também temos fome, é verdade, mas só
íamos pedir água.
– Luzia, primeiro traz dois bancos. Depois dois pães e chá aqui para as
crianças. O mais rápido que puderes. Acho, a água ainda está quente, não
precisas de aquecer.
E recolheu de novo a menina no colo, voltando a lhe fazer trancinhas
apertadas. Esta se lamuriava, mas mais parecia ser um hábito que
propriamente uma prova de dor.
– É sua filha? – perguntou Kassule.
– Não, é de uma vizinha. Mora ali. A mãe foi trabalhar e achei que podia
ajudar. Estava com o cabelo todo desarrumado. Vá lá que não tens
piolhos…
– Não tenho mesmo – queixou a menina.
– Sei, estou só a brincar. Mas contem-me lá a vossa estória completa, um
de cada vez. São parentes?
Enquanto comiam, contaram as respetivas desventuras, evitando muitos
detalhes, mas explicando de onde vieram e de que tipo de famílias, ele de
uma camponesa, ela de pai professor e mãe enfermeira. É muito triste, disse
a senhora no fim do relato.
Avisou-os de alguns perigos da Ilha, como de qualquer zona urbana,
afinal. Disse que tinha um filho, o mais velho, já a trabalhar, e duas meninas
mais novas, estavam na escola. Não falou do marido, não lhe perguntaram.
Os kandengues tinham descansado, comido, Kassule disse, Himba ainda
temos de andar. Se despediram da senhora, que para eles a partir desse dia
ficou a ser conhecida como a senhora boa das trancinhas, a qual senhora
ainda lhes disse:
– Olhem, vão ter muitas dificuldades. Uns mais outros menos, todos
temos. Mas se estiverem bem mal um dia, com um problema grande ou com
muita fome, venham aqui. Se for coisa mesmo séria, vejam lá.
Prometeram que não a iam incomodar com coisas sem importância,
tinham sido educados como se comportarem, não só nas boas situações,
também nas difíceis. Claro, o orador foi Kassule. Ela apenas agradeceu com
o seu melhor sorriso.
No caminho, já próximos do restaurante que era o alvo do menino, este
disse, vês aquele esporão? Eles chamam aqui aqueles muros de pedras que
vimos no caminho, são muitas pedras para não deixarem o mar levar toda a
areia e invadir a Ilha.
– Não são pedras, são blocos de cimento.
– Sim, no princípio tem algumas pedras depois tem esses blocos. Sabes
quanto pesa cada um? Quinhentos quilos. O mar, mesmo quando está muito
bravo, desconsegue de lhes levar, nem mexer. Os outros dizem, esses blocos
foram postos há muito tempo, nenhum que desapareceu. Ali, no meio, vais
ver, há o buraco de que te falei. Dá para dormirmos muito bem, protegidos
do frio, só com alguns caranguejos às vezes a nos tocar. Não tenhas medo,
não mordem... Claro, se houvesse cobertor era melhor. Mas, paciência,
somos filhos da guerra.
O restaurante ficava a uns vinte metros do princípio do esporão, virado
para a contracosta. Parece, havia também restaurantes do lado da baía, mas
pequenos, não dava para a concorrência com os gatos e cães, piada do
canuco. Este era um restaurante grande, com muita frequência e portanto
restos abundantes no contentor para lixo que tinha por trás da cozinha. No
princípio do esporão havia duas árvores de sombra, bom sítio para se
sentarem e esperarem haver restos do almoço.
Mas quando Kassule queria mostrar o lugar de mais perto, notaram,
alguém dormia no sítio que ele tinha descoberto. E havia três rapazes na
água, nadando, brincando, roupas na areia.
– Não te preocupes, quando lhe cheirar a comida, ele vem para aqui e
depois ocupamos a nossa gruta.
– Aquilo não é gruta nenhuma… Mas ele vai mesmo sair?
– Vai.
Se sentaram em baixo das árvores e Himba não se cansava de olhar o mar.
Não era como do lado da baía, este mar tinha ondas que faziam um barulho
grande, mas hoje até está calmo, disse ele, quando vem a calema, aí é que
ele canta.
A um momento dado, Kassule falou:
– Há vezes que já começo a esquecer a cara do meu pai. Da minha mãe
não, dessa lembro sempre. Ele andava na guerra, muito tempo longe, vinha
por períodos curtos.
Himba só abanou a cabeça em concordância. Para ela estava tudo muito
fresco, lembrava cada traço da cara da mãe, do pai, dos irmãos. Depois se
abriu com Kassule, como se confessasse:
– Não quero culpar o meu pai, é verdade, não quero mesmo. Mas também
estou sempre a pensar que se saíssemos antes tínhamos chegado todos
juntos a Luanda. O meu pai decidiu, hoje não vamos, partimos só amanhã,
vai haver outro camião. O camião do dia anterior passou, o nosso caiu na
emboscada…
– Nem podes pensar assim. Os homens dos bandos às vezes ficam muitos
dias de emboscada na mata, sabem que algum carro vai passar. Tiveram
azar, eles estavam à vossa espera. Na véspera já podiam estar lá e aconteceu
qualquer coisa que impediu o ataque. Na véspera até podia ter sido pior,
com azar.
– Pior?
– Estás viva, sem ferimentos… Uma sortuda.
– E a minha família?
Kassule não respondeu. Haveria mesmo resposta? O que era mais
importante? Entre os dois, ele estava pior, perdera uma perna e também a
família. Mas não disse nada, porque, apesar de ser muito novo, sabia, nada
servia de consolação à desgraça de outra pessoa. Os espíritos rodeavam a
amiga, lhe punham ideias complicadas na cabeça e ele só podia ajudar
estando presente, mesmo se calado, para ameaçar os espíritos com o seu
pau no caso de eles a incomodarem demais. Os espíritos se afastaram,
intimidados, talvez para cima das casuarinas, sítio preferido deles.
Himba tentou um sorriso, aliviando a conversa. Apontou o moço que
ocupava o lugar preferido de Kassule.
– Aquele vai dormir todo o dia?
– Só acorda quando o restaurante começar a mandar o cheiro de comida
para fora. Vais ver, aí ele se agita todo… Por enquanto também não faz mal.
Estamos melhor aqui que nos rochedos.
Não eram rochedos, quis ela dizer, eram blocos de cimento. Mas ficou só
calada, controlando os kazumbis se agitando de novo à volta. Na Gabela
devia haver muitas grutas em rochedos, era terra de montanhas, como lhe
dissera Kassule, igual que na terra dela, só com mais floresta e plantações
de café. Portanto, ele tinha todo o direito de chamar aos blocos o que
quisesse.
Até chamar de seio materno, se lhe desse para aí.
Como estavam encostados a uns restos de parede, à sombra, com o
barulho sossegado do mar, adormeceram. Também era preciso dizer, a areia
era mais mole e cómoda que o cimento onde deitaram de noite. Kassule
nem se preocupava, sabia, acordariam quando o odor a comida os
despertasse.
Despertar de esfomeados.
Assim aconteceu, muito tempo depois. Kassule, mais habituado a essas
lides, lhe tocou no braço, cheira então, já estão a assar carne ou lá o que é.
– Costeletas – murmurou ela. – Costeletas de porco.
– Gostas?
– Muito. O cheiro é esse. Lembro quando a minha mãe fazia. Costeletas.
Repararam, os miúdos que estavam a nadar tinham ido embora enquanto
eles dormiam. Eram mesmo banhistas então, menos concorrência para os
restos, bom sinal, disse o kandengue. A sombra no buraco entre os blocos
mexeu e em breve o rapaz se levantou, bem maior que eles. Devia ter uns
dezoito anos ou mais, calculou Himba. Era pescador ou um refugiado? Não
tardariam em saber, imaginava ela.
– Kassule, aquele ali também vem procurar comida?
– De certeza. Viste que acordou com o cheiro? É porque estava à espera
da hora.
Uma ruga de preocupação vincou o rosto da menina.
– Aqui se luta pela comida?
– Sim, claro. Como em todo o lado.
Himba ia dizer não é verdade, não se luta em todo o lado, mas calou,
porque Kassule só conhecia este mundo dos meninos de rua, dos refugiados
sempre a guerrear pela sobrevivência. Era o mundo a que ela agora
pertencia. E nem lutar sabia. Certamente o grandalhão ia se aproximar, os
enxotar, xê, saiam daí do meu lugar, e apanhar tudo o que caía no contentor.
Só iria embora quando estivesse mesmo farto e eles podiam então
aproveitar. Se houvesse sobras. Num mundo de guerra é assim que
acontece.
Mas, por enquanto, o outro estava mais interessado em tratar da higiene
corporal. Tirou a tichârte, deixou-a ao lado dos chinelos de praia, entrou de
calção na água. Depois de uns mergulhos, sentou no chão molhado e
esfregou todo o corpo com areia. Voltou a mergulhar e permaneceu muito
tempo em baixo de água. Ainda se esfregou um pouco, para perder toda a
areia e então saiu da água, ficando ao sol para secar. Era um tipo habituado
às rotinas, sabia, ia demorar muito até no restaurante começarem a deitar
fora a comida, tinha tempo para secar o corpo e só então voltar a vestir a
tichârte e calçar os chinelos. Era musculado e se alimentava bem, achou
Himba, muito diferente dos outros meninos que vira a dormir nas ruas.
Talvez não fosse refugiado, talvez mesmo pescador ou algum morador da
Ilha que tinha dormido pouco à noite. E Kassule estivesse enganado. Seria
bom.
Porque, com aquele corpo, seria um concorrente perigoso.
Finalmente o rapaz achou era tempo de se vestir. E se aproximou deles.
Nem ligou a Kassule, só mirou Himba. Ela desviou a vista, não devia dar
confiança a estranhos, a mãe lhe ensinara.
O outro se sentou ao lado da menina, sem cumprimentar. Ela agora estava
no meio dos dois. Nem bom dia ou boa tarde, nada, sentou apenas. Um mal-
educado e definitivamente um sem-teto também. Forte concorrência,
portanto. Ela nem ousava comentar mais nada com o amigo, a presença do
grandalhão intimidava.
– Está a cheirar a carne – disse enfim o intruso, metendo conversa. – Ou é
peixe? Estou farto de peixe.
– Deve haver carne e peixe, vários pratos – disse Kassule, como quem
sabe do assunto.
Não acrescentou, a minha amiga acha é costeleta, como ela temia, porque
a obrigaria a falar com o estranho, pelo menos facilitaria alguma pergunta
dele. O outro acenou com a cabeça, concordando. Restaurante é coisa fina,
tem vários pratos, também sabia isso. A pergunta dele tinha sido mesmo
para meter conversa. Não insistiu mais em perguntas, nem do género,
miúda, nunca te vi por aqui na praia, vieste de onde? Himba agradeceu aos
deuses do mar ele não se aproximar mais dela.
Os carros dos clientes chegaram, só dava para os ouvir porque paravam
do outro lado, no parque e ao longo do passeio. As vozes se elevaram no
restaurante e também gritos de ordens para a cozinha. Faltava ainda um
bocado para os pratos serem retirados das mesas e os restos deitados nos
baldes de lixo na cozinha e daí para o contentor. Os dois rapazes conheciam
os rítimos e por isso esperavam com paciência. Himba é que se mexia
muito, afinal nunca mais vem o pitéu? Outro miúdo, um pouco mais velho
que ela, chegou da rua, disse boa tarde, se sentou ao lado de Kassule. A
menina estava quase em pânico. Se aparecerem muitos, como vamos dividir
os poucos restos? Ou haveria o suficiente? Não fazia a menor ideia e era a
incerteza que lhe aumentava a sensação de fome e provocava cãibras na
barriga.
– Ouvi um a pedir café, já não falta muito – disse Kassule.
– Tens bons ouvidos, miúdo – cumprimentou o grandalhão.
Himba lembrou, o pai, lá em casa, também pedia o café no fim do
almoço. E a mãe sempre reclamava, já tomaste café de manhã, uma caneca
cheia, mas o pai insistia, sorrindo, depois de comer se deve tomar um café
pequeno mas mais forte, isso é moda masé dos brancos, ripostava a mãe.
Brincadeira que Himba ouvia desde muito pequena, brincadeira deles os
dois, como todos os casais devem ter, supunha, nunca se cansando de
repetir os mesmos ditos. Há muito tinha aprendido a explicação, de facto
isso era hábito trazido pelos brancos, eles nem costume de tomar café
tinham, só os do Norte ou os da Gabela, e era o café matinal, em grandes
canecas e muito aguado. Mas nas cidades se introduzira o novo hábito em
muitas famílias, não todas, ainda as havia que preferiam a todo o momento
os diferentes chás que se faziam de folhas ou ervas, muitos tendo efeitos
curativos. E para passar o tempo, tentou lembrar os diferentes que bebera
com a mãe, uns só para pretexto de tomarem açúcar, outros para limpar uma
parte do corpo ou tratar uma doença. Nomes familiares que lhe rolavam na
boca, aguardando que esta se enchesse de comida.
Por enquanto, só tinha saliva, abundante.
Mas sempre há resultados das rotinas. A porta de trás se abriu, um rapaz
grande e forte trouxe dois baldes, despejou imediatamente para o contentor.
Olhou os miúdos, disse:
– Lutem então para eu ver.
Os quatro já estavam de pé, hesitando. O grandalhão disse para o
trabalhador do restaurante:
– Tu nos viste à espera. Podias ter deixado a gente catar aí mesmo nos
baldes. Atiraste lá para dentro por maldade.
– Vai bumbar masé, seu inútil…
Kassule não quis saber de mais discussões, se atirou para dentro do
contentor, com o pau de muleta e tudo. Estendeu uns pedaços para Himba.
Enquanto isso, o grandalhão estava mais interessado em enfrentar o
servidor do restaurante, tão forte como ele afinal.
– Vou trabalhar aonde? Me dás o teu lugar aí dentro? Eu aceito.
O outro fez um riso escarninho e entrou, levando os dois baldes vazios.
– Olha, Himba, tinhas razão, é costeleta mesmo. Toma os ossos.
O quarto miúdo também se atirou para dentro do contentor. O mais velho
escolhia coisas de fora, era suficientemente grande para chegar à comida.
Himba esperava que Kassule lhe passasse coisas e ia guardando no vestido,
apanhado em baixo e puxado para cima, formando saco. Vieram ossos e
restos de costeleta, vieram partes de carne assada, uns rabos de peixe, feijão
de óleo de palma, arroz, massa.
– Chega, Kassule, já chega.
– Chega nada – disse ele. – Comida nunca chega.
Mas Himba foi se sentar no sítio onde estava antes, à espera do amigo.
Este comia mesmo lá dentro do contentor malcheiroso e só passado algum
tempo saiu. O matulão escolhia com calma e comia de pé. Tinha pose,
reparou Himba. Ainda mais, refilou com o empregado do restaurante, o
qual tinha sido cruel ao atirar tudo para o contentor sem lhes dar. E o
grandalhão não os empurrou nem exigiu nada. Devia ser boa pessoa, afinal.
Pensamentos que lhe vinham ao mesmo tempo que engolia a comida.
Kassule sentou ao lado, avançou a mão para apanhar uma coxa de frango no
regaço dela.
– Vai sobrar, é muita – disse a menina.
– Come tudo, nunca se sabe o que acontece à noite.
– Não comemos aqui?
O grandalhão falou do sítio onde estava, perto do contentor, com a boca
um pouco cheia.
– O teu amigo tem razão, miúda, come o mais que puderes agora. Nunca
se sabe se à noite há quatro pessoas, como agora, ou quarenta. E tu não
provas nem uma espinha porque haverá lutas. O melhor sítio para guardar
comida é na barriga, mas lá dentro, não como tu tens agora, de fora…
– Depois tens de lavar o vestido – disse Kassule.
O quarto miúdo falou, de dentro do contentor:
– Hoje temos sorte, porque somos poucos. E vai haver mais restos, tem
ainda muitos clientes lá dentro do restaurante. Comer até rebentar, hoje é
hoje.
– O Che Guevara ensinou, quando há come-se tudo – disse o grandalhão.
– Se guardamos comida, o inimigo pode vir e aproveitar. Não, se ela já
estiver na barriga. Quando a comida acaba, sofremos, pronto.
Himba acatou os conselhos, engoliu até lhe doer o ventre, mas deixando
sempre para o amigo se servir à vontade. Quando não havia mais um grão
de arroz nem um osso com um restito de carne, levantaram para beber água
na torneira. Nessa altura o grandalhão parou também de comer, bebeu
água.
– Bom, vou dar o fora. O meu nome é Noé. Toda a gente me conhece aqui
nesta zona, menos esse parvo aí do restaurante, deve ser de um musseque
longe. Se tiverem problemas, me procurem. No que eu puder ajudar…
Eles não replicaram. Então não é um refugiado? Deve se tratar afinal de
algum ilhéu com casa perto e pouco dinheiro. Ou então mesmo um
refugiado mas com conhecimentos locais, um sítio onde viver, também
acontecia, o Kassule devia poder adivinhar. Estava tão preocupada antes
com ele, que lhes ia ficar com toda a comida... Parva!
Noé foi embora. Andava com banga, um pouco de lado, a cabeça também
inclinada. Só lhe faltava um chapéu, pensou Himba, sem poder explicar
porquê.
4

A sócia principal entrou no restaurante de manhã com muita dificuldade a


andar e arfando ruidosamente. Balançava toda e mostrava dificuldade em se
equilibrar, dado o peso descomunal. Sofia se dirigiu logo a ela, semblante
preocupado.
– Que tem, Dona Ester? Está a se sentir mal?
– O meu coração, filha, o meu coração – batia com raiva no peito
avantajado. – O médico já disse, quando estou assim cansada e sem poder
respirar à vontade é do coração.
– E veio a pé de casa?
– Que remédio! O Ezequiel foi ao tratamento, foi num táxi. E eu depois
vinha de táxi para aqui? Que luxo!
– Claro, porque não? Luxo coisa nenhuma. Parece que não tem dinheiro
para isso…
– A vida não está fácil. Devemos poupar o máximo.
– Disparate. A senhora tem dinheiro para gastar e ainda poupar. Devia vir
de táxi, sim.
Sofia ajudou a senhora a sentar numa das cadeiras do salão. Estavam
todas vazias, ainda era muito cedo para abrirem o restaurante ao público. Os
cozinheiros esperavam ordens de Dona Ester, só em caso de força maior
Sofia se metia na cozinha e comandava o trabalho. Ainda tinham muito
tempo, o que devia ser demolhado já estava desde a véspera e todos os
preparos em ordem para se acenderem os fogões, todos a gás ou elétricos,
finda a época dos fogareiros a carvão, exceção feita para alguns assados,
por causa do gosto. Panelas e pratos lavados, sala arrumada, cozinha
impecável. Só faltava a chefe para tudo arrancar. A jovem se sentou
também à mesa, poisando o copo de água. Andava sempre com um copo de
água, mania que lhe vinha não sabia de quando, relativamente recente, foi
ali no restaurante que iniciou isso, sim, talvez para evitar a tentação do
álcool.
– Dona Ester, sei que me estou a meter na sua vida, mas é por carinho.
Tenho andado a pensar na sua situação, do seu filho… Já é altura de a
senhora comprar um carro e arranjar motorista. É mais cómodo e seguro
para o Ezequiel e também para si. Não faz sentido nenhum vir a pé com
este calor. A sua casa não é tão perto assim, a minha é mais e custa-me, a
sério, custa-me, sobretudo por causa deste sol assassino daqui de Luanda…
– Deixa lá o sol, que é uma obra de Deus.
– Se não tivesse dinheiro, tudo bem, eu compreendia o sacrifício. Mas
tem mais que o suficiente.
– Devo guardar o máximo para o Ezequiel. É verdade, agora tenho
dinheiro, acabou a aflição de todas as noites sem saber se no dia seguinte o
meu filho estava pior e não descobrir como me desenrascar, a quem pedir
ajuda para os tratamentos, quem encontrar para ficar com ele enquanto eu
vinha trabalhar. Agora estou bem de finanças e tenho-te a ti, que me tiras
muitas tarefas do restaurante e até me dás conselhos sobre outras coisas. Às
vezes exageras, tudo bem… Mas não devo gastar se posso poupar. Se me dá
alguma camoeca, e um dia vai dar… O coração está fraco…
– Dieta, Dona Ester, dieta. Come tudo e mais alguma coisa, faz mal ao
coração…
– Lá estás tu nos exageros, és médica ou quê?
– É o que o seu médico lhe diz, ele até me pediu para lhe cortar nalgumas
gorduras e doces, mas a senhora é teimosa.
– Mudaste a conversa com essa coisa da dieta, é a tua habilidade. Eu dizia
que se me dá alguma coisa, o Ezequiel fica sozinho e só a viver daquilo que
tiver no banco. Não precisamos de carro mas de dinheiro no banco. Porque
o imprestável do irmão nunca lhe dará uma mãozinha. Nem sequer vai
saber que eu morri.
O outro filho dela fugiu para o Canadá no tempo da guerra, quando se
aproximava a idade de ir para a tropa. O Canadá não regateava nos vistos de
entrada, bastava arranjar dinheiro para o avião. E havia sempre trabalho,
país bom, embora gelado. Vítor partiu e nunca mais disse nada. Dona Ester
sabia, ele primeiro foi para uma cidade chamada Vancouver, depois apagou
o rasto, cortou comunicações com a família e os amigos da terra e até com
os patrícios muangolês que estavam no Canadá. Por muitas insistências que
tivesse feito, a senhora nunca mais soube de Vítor, até pode estar no Canadá
ou no Camboja ou nos Emiratos Árabes. Ou na Lua. Não podia mesmo
contar com ele para ajudar o irmão mais novo e problemático, se algo
acontecesse à mãe.
Haveria de acontecer.
– Vai beber um copo de água, pelo menos faça-me esse favor.
– Está bem, filha, faço-te o favor.
Sofia foi buscar o copo. A senhora sorriu, se reconfortando. Perdeu um
filho para o Canadá mas arranjou uma filha, que a ajudava no restaurante e
de que maneira, além do mais se preocupava com ela e com Ezequiel.
Quando um dia eu desaparecer, a Sofia vai tomar conta do meu filho, valha-
me Deus. E o pessoal da Igreja também, claro.
Veio o copo e ela bebeu, mais para fazer a vontade à sócia, pois não tinha
sede. Era outra coisa que o médico lhe repreendia, tem de beber muita água
e não o faz, eu sei. Julga que me escapa alguma coisa? Basta olhar para as
análises. A senhora desconfiava, nas análises pode se saber se uma pessoa
bebe água ou não? Sei lá, são uns cuscos, andam sempre a inventar coisas
para espiar na gente! Talvez que descobrem, os grandes feiticeiros. Acabava
por ir ao médico se se sentia pior, mas acreditava muito mais no pastor da
Igreja, esse é que era um verdadeiro curandeiro, todos os domingos
presenciava os milagres feitos por ele. Punha paralíticos a andar e cegos a
ver. Bem, quando Sofia a interrogava muito a sério, ela reconhecia, não
sabia se antes eram mesmo paralíticos ou cegos, o certo é que passavam a
andar e passavam a ver. Só era preciso fé. Nessa coisa da água, porém, o
pastor coincidia com o médico, pois mandava beber muita, a água limpa
tudo, purifica a alma e o corpo, o que aliás não deve ser tomado à letra, a
água sozinha não limpa grande coisa, nem cano entupido, fará um corpo
inteiro.
– Há carros muito baratos – voltou a insistir Sofia. – Mas no nosso caso,
pensando a sério, era melhor uma carrinha, escusávamos de carregar os
grandes pesos das compras para o restaurante e podia dar ainda outro apoio,
quando temos de tratar de assuntos burocráticos, além de que a levava e ao
Ezequiel a casa ou a outro sítio qualquer. É um bom investimento,
sobretudo se for uma carrinha. Os motoristas não exigem grandes salários,
menos que um cozinheiro. Pense nisso, Dona Ester. Mas, mais cedo ou mais
tarde, temos de comprar mesmo uma carrinha. Já viu quando vou com
algum ajudante comprar bebidas, por exemplo? Temos de alugar um
candongueiro, o carro todo para as garrafas e latas. Ir e vir, o carro inteiro
alugado. E pesa-nos no corpo, causa doenças. Todos os dias temos de ir ao
mercado, para os legumes, e aos talhos, para as carnes. O peixe vá lá, que as
senhoras nos trazem aqui. Mas tudo o resto tem de ser buscado. Com uma
carrinha é mais rápido e outro conforto. Tenho de fazer as contas, vou lhe
apresentar, o preço de uma carrinha barata, o salário do motorista e o
combustível. Isto de um lado. Do outro, o preço dos candongueiros e as
doenças que podemos apanhar, com respetivos tratamentos. Faço as
contas?
A senhora suspirou. Era demais para o seu conhecimento de deves e
haveres.
– Tenho de pensar.
Mas se Sofia dizia, ela tinha mesmo de pensar. Se tratava de assunto
sério. Tudo menos contrariar a sócia minoritária, o anjo que tinha caído do
céu para velar por ela. É o meu santo da guarda, confidenciava ao pastor, o
qual muxoxava sem vergonha, não abuse, Dona Ester, anjos são outro
elemento e gostam de igreja, devendo pensar que ele próprio devia ser
tratado por arcanjo, por quase habitar no templo. Um dia seria, um dia,
depois de chegar a bispo. Por enquanto tinha de cuidar da senhora com
muito desvelo, como aos outros fiéis que tinham proventos mais chorudos
que a vizinhança desgraçada dos bairros à volta, pois os dízimos eram
importantes para poder levar a palavra divina cada vez mais longe. Sem
dízimos os deuses emudeciam, ou as pessoas ficavam surdas para as preces
dos sacerdotes.
E não seria fácil comprar cumplicidades para os milagres de domingo.
Dona Ester se levantou com dificuldade, avançou para a cozinha, bom
dia, meninos, bom dia, meninas, vamos começar a fazer o almoço?
Sofia continuou sentada à mesa, o copo de água na mão. Meditando em
cenas passadas ou mais atuais.
No grupo do Abdias havia um casal especial. Ela tinha mais intimidade
com Salomé, a mulher, o que não era de espantar, uma economista formada
nos Estados Unidos, numa Universidade perto de Nova Orleães. Para o
dinheiro que o pai tinha, podia ter ido para universidade mais famosa, mas
ela se encantou pelo sítio e escolheu-a. O marido se chamava Alfredo e era
engenheiro de petróleos, formado em Houston, Estados Unidos. Era o único
casal legítimo, ou, se quisermos, com casamento oficial. Se conheceram na
América, quando ele foi passar o carnaval em Nova Orleães. Numa rua do
Bairro Francês, ainda sem a animação que teria horas depois. A animação
começava quando aparecessem os músicos e toda a gente fosse para as ruas
e as varandas apreciando o corso e caindo na dança. Por causa da hora da
manhã, antes de arrancar o carnaval, foi possível reconhecerem-se. Salomé
estava na rua e gritou qualquer coisa para um homem na porta de um bar,
ainda fechado. Ele respondeu em português, está tudo a dormir ou a se
preparar, impossível encontrar pequeno-almoço. Alfredo ia a passar, ouviu a
fala em português com o sotaque igual ao seu, eram escuros, difícil não
adivinhar a proveniência. Se virou para a moça, disse, xê, vocês são
muangolês mesmo? Ela riu, como nos descobriste? Ele riu, rendido com o
riso dela, contagioso.
Andaram os três juntos durante todo o carnaval, embora estivessem em
hotéis diferentes. Alfredo e Salomé não se largavam e ele nem perguntou
que relação havia ou tinha havido com o outro homem do trio. Se houve,
deixou de ter interesse. E o tipo também não se importou, parecia era
apenas amigo dela, ou parente. Quando Alfredo a levou para o seu hotel, na
segunda noite desde a altura que se encontraram, o outro gritou boa sorte e
até amanhã. Apenas na madrugada seguinte Alfredo perguntou a Salomé,
afinal eras namorada dele? Ela riu, não voltes a fazer perguntas dessas, seu
zongola. Ele riu com o riso dela, ficou sem saber, mas também não lhe
interessava. Foram ter com o amigo para passarem o último dia juntos, pois
Alfredo tinha de voltar a Houston. À despedida, trocaram carícias e a
promessa de se encontrarem em breve. O que aconteceu com frequência
enquanto os dois viveram nos Estados Unidos.
Ela acabou o curso, voltou a Luanda, ele ainda ficou um ano mais.
Casaram quando Alfredo começou a trabalhar numa petrolífera importante.
Salomé nunca bumbou, o dinheiro dos pais permitia viver e fazer projetos,
realizar alguns deles, sem entrar numa empresa ou organismo público. Se
ocupava com a melhor maneira de organizar mulheres para obterem
créditos de bancos, ou montarem pequenos negócios, o que não era nada
fácil pois os bancos adoram receber os depósitos dos clientes mas não
gostam nada de emprestar, ou então aplicam juros proibitivos, porque o
crédito mal parado é muito grande e os angolanos gostam demais de kilapis
sem retorno. Desculpas de sempre. Salomé criava as empresas delas, as
organizava em associações para em conjunto discutirem com os bancos,
muitas vezes ia com elas e tomava a palavra, argumentava melhor do que
ninguém porque conhecia todo aquele jargão de palavras inglesas tão
apetecíveis aos ouvidos dos economistas subdesenvolvidos que infestam os
bancos, conseguia melhores condições e por vezes abria portas que
pareciam fechadas com ferrolhos de titânio. Pequenas vitórias, mas não era
grande habilidade, confidenciava ao jantar quando a sua vez chegava de se
fazer ouvir. Explicava com modéstia, ela se apresentava na mesa de
reuniões antes de falar e os bancários ouviam o apelido, começavam a suar
e a ter comichões estranhas, será mesmo filha de quem estou a pensar?, e o
curioso é que era mesmo, o pai era o mijagrosso que temiam, mas ninguém
lhe fazia a pergunta nem ela confirmava, não era necessário nem ela teria
apetência para usar o apelido, apresentava apenas os projetos e os desejos
das empresárias de rua, enquanto os interlocutores se babavam e acabavam
por conceder o pouco que as mulheres pediam.
Na guerra, cada um usa as armas que por sorte arranjou.
– Uso o meu apelido para causas nobres – ria ela.
Se confessou a Sofia mais tarde, quando já mantinham alguma
intimidade.
– O Alfredo, quando suspeitou das minhas origens, quis se afastar.
Verdade mesmo. Ainda vivíamos os dois nos States. Mas estava demasiado
preso a mim, desconseguiu. Um dia contou, hesitei muito. Não era por
qualquer razão, apenas queria ser independente e criar a sua carreira por
mérito próprio, sem usar a influência da família ou da minha. A dele até é
modesta. Conseguiu uma bolsa dos petróleos por ser bom estudante, de
outra maneira nunca tiraria um curso superior. Quer dizer… acabava por
tirar, à noite, trabalhando de dia, é superinteligente e voluntarioso. Mas lhe
deram a bolsa e assim foi melhor, é curso reconhecido, fez um ótimo
estágio e tem um bom emprego. A casa onde vivemos foi conseguida por
ele, a empresa serviu de fiadora porque o quer manter, etc., vês o mambo.
– Mas és tão inteligente e preparada, porque não te empregas?
– Para quê? Assim divirto-me, desenho planos… Alguns levo para a
frente, outros não. Ah, o que te preocupa é se vivo à custa do Alfredo…
Não, de facto não. O meu pai dá-me a mesma mesada de quando eu era
estudante, ou antes, quando fiz dezasseis anos, o agiota nunca me
aumentou. Apenas ajusta à medida da inflação… Mas chega e sobra…
Deu uma gargalhada e Sofia foi forçada a imitá-la. Decididamente,
ninguém ficava indiferente ao riso de Salomé.
– Portanto, amiga, contribuo para as despesas da casa. E dedico-me a
ajudar a igualdade de género, pois só apoio mulheres. Os homens nem
precisam deste tipo de apoios, querem logo um Ferrari para começar um
negócio.
– E porque não crias o teu próprio negócio? Uma empresa inovadora,
algo assim que o país não tenha, que sirva de exemplo… Uma coisa a fazer
a diferença para condizer contigo…
– Nem morta! Ter empregados, ser responsável por pessoas, cumprir
horários para levar o pessoal a cumprir, esses bilos? Não. Os meus projetos
são concebidos de maneira a serem doados imediatamente aos outros, não
para continuarem no tempo.
– Considero um desperdício…
– Ajudar as mulheres?
– Não. Evitares explorar a capacidade que tens. Serias um exemplo de
como as mulheres podem triunfar em qualquer assunto, derrotar o
machismo condescendente...
– Nunca criando uma empresa. Estou farta desse meio e de sentir as
responsabilidades dos outros.
– E filhos?
– Hão de vir. A seu tempo. Ainda somos novos. Mas não te contei do meu
casamento. Foi uma tragédia.
Sofia se preparava para rir, porque tragédia na boca de Salomé só podia
ser risível, uma brincadeira. Nasceu em berço de ouro, como se costuma
dizer, e bastava estalar os dedos para tudo de bom lhe ser trazido.
– O Alfredo não tinha dinheiro para estoirar à toa, como dizia, e não
queria o meu dinheiro envolvido na cena. O meu pai queria pagar tudo,
helicópteros se fosse preciso, e o Alfredo queria um casamento com dez
pessoas, os meus pais, os pais dele, irmãos dos dois e os padrinhos. Um
pouco mais de dez pessoas, fazendo bem as contas.
– E o teu pai queria mil.
– Mais ou menos.
– Qual foi o compromisso?
– Não houve. Casámos nos Estados Unidos, com duas testemunhas entre
os amigos e depois o casamento foi registado na nossa embaixada. Acabou.
Ah, teve um jantar especial para os noivos a sós. Compromissos com o
Alfredo? É difícil.
Não seria uma tragédia, mas era mais para o triste que para o risível. De
novo Salomé a surpreendia.
– O teu pai?
– Até hoje não perdoa ao Alfredo. Fala com ele, mas o mínimo possível.
Diz que desonrou a família, uma desfeita.
– Acho que desonrar é outra coisa.
– Também acho. Mas esses mais-velhos têm a língua descontrolada. Uma
coisa é preciso dizer, já o ouvi gabar as qualidades de trabalho e inteligência
do Alfredo. Nunca à frente dele, claro. Um cumprimento, vindo de quem
vem, é importante para firmar o prestígio profissional do meu marido, como
deves imaginar. Nem lhe contei. Achas, o Alfredo ia gostar de saber que o
sogro uma vez falou bem dele? Publicava um comunicado com um
desmentido…
Outra gargalhada de fazer desabar a casa. Felizmente era rés do chão, o
perigo era grande de o teto cair, mas não fatal.
Esta conversa aconteceu na mesa onde estavam umas quinze pessoas.
Salomé nem queria saber se mais alguém ouvia, o que não parecia ser o
caso, estando a discussão geral centrada num jogo do Real Madrid que
alguns dos amigos prometiam ir ver a Espanha. Outros desdenhavam, eram
do Barcelona ou do Manchester United, vários dos que tinham estudado no
Reino Unido, poucos do Chelsea, o clube dos novos-ricos, dizia a maioria.
Sofia não percebia nem se interessava por futebol, se admirava que aquela
rapaziada, todos filhos de novos-ricos, tivessem a lata de atribuir essa
vergonha a um clube de futebol, com o maior desprezo. Curioso grupo.
Ela gostava de ouvir as conversas e as confidências picantes de Salomé.
Alfredo não estava com eles, como acontecia frequentemente. Passava
períodos nas sondas de petróleo no mar, por vezes a mais de cem
quilómetros da costa, indo de helicóptero. Muitos engenheiros e
trabalhadores estavam fixos numa sonda e passavam lá três semanas, tendo
depois férias de duas semanas no país de origem. Havia empresas que
tinham outras regras, mas isto era o mais comum. Alfredo nunca chegou a
essa fase. Tinha sob sua responsabilidade várias sondas e também trabalho
de escritório na sede, por isso ficava três ou quatro dias numa sonda,
regressava a Luanda, ia por dois dias para outra, etc. Menos rotineiro mas
mais complicado de gerir, salário acrescido. Salomé não se queixava,
estamos sempre a reencontrar-nos, é uma maneira de refrescar o casamento,
que achas?
Sofia não achava nada, nunca casara nem pensava fazê-lo.

***

Passaram uns dias. Se tinham apoderado da reentrância para dormir, sem


mais concorrentes. Apanharam cartões que puseram na areia, serviam de
colchão ou até como para-vento. Para cobertura, folhas de jornal, as quais
guardavam entre os blocos quando saíam do refúgio. Mesmo com a maré
cheia, a água não chegava ao sítio, por isso a areia estava seca.
– Quando vier a calema, temos de recuar até às árvores, lá não costuma
chegar a água – avisou Kassule. – Mas me contaram, às vezes a calema
chega à rua, não é todos os anos, calma aí.
– Como se sabe que vem a calema?
– Ela vem sem avisar, primeiro ondas um pouco maiores, depois começa.
Mas tem meses mais ou menos certos. Fevereiro e abril de certeza. Nos
outros meses, pode acontecer.
– Uma pessoa está a dormir muito bem e acorda com uma onda fria?
Deve ser muito mau.
– Que queres? Nem tudo pode ser bom.
Himba pensou, a onda pode puxar uma pessoa para o mar. Seria
perigoso? Ela nadava mal, o pai lhe ensinou um pouco no rio, mas tinham
medo de praticar muito no rio por causa dos jacarés. Tinha de aprender mais
antes que viesse o tempo das calemas.
– O povo aqui da Ilha costuma fazer umas coisas para Kianda, que é
como um deus do mar. Ou espírito ou o quê, ainda não percebi bem, os
velhos é que sabem. Dão comida e vinho antes da altura das calemas para
ela se acalmar e não provocar ondas muito grandes.
– Funciona?
– Sei lá! Dizem que sim. Quando há azares e calemas muito fortes, então
é porque não deram o suficiente ou não dançaram ou cantaram bem para
ela, há sempre um erro… Os padres também aproveitam para fazer uma
missa e uma marcha a sair da igreja de Nossa Senhora do Cabo, é assim que
se chama a igreja aqui da Ilha, passámos perto…
– Uma procissão.
– Isso. Conheces coisas da religião.
– Sou batizada.
Era nas conversas entre eles. Outros garotos dormiam por ali, procurando
aconchego nos blocos ou no muro perto do restaurante. Não era um mundo
tranquilo, porém. Havia lutas por ocupação do território. Kassule recolheu
testemunhos de duras lutas que passaram no ano anterior, algumas metendo
mais que paus e pedras. Facas… Sobretudo garrafas partidas que podem
cortar a garganta de um desgraçado. E o que havia mais na Ilha eram
garrafas, inteiras ou partidas.
Por enquanto nada indicava a continuação dessas lutas, Himba perguntou
ao amigo porquê, mas ele tinha de encontrar alguém conhecedor dos factos
e que estivesse disposto a contar. Não era assim tão fácil, o silêncio é muito
prezado pelos fracos, teoria de Kassule. Um dia veio com a novidade.
– Viste aquele muadiê com quem estava a falar? – Himba de facto
reparara, parecia mais velho que os outros. – Ele contou, o bando do Jonas
expulsou o bando do Austrália desta zona para a Chicala, aquele resto da
Ilha para lá da passagem… Não me perguntes porquê esses nomes porque
eu também não perguntei. Agora o Jonas anda a explorar a zona na ponta da
Ilha, onde tem melhores restaurantes e clientes finos, bem balados. Por isso
tem desprezado isto. Ainda bem. Dizem, esse Jonas é um desperado kid…
– Um quê?
– Desperado kid. Disseram assim. Deve ser alguma coisa muito má, não
achas? Parece que é forte, luta bem, bassulas, aqui na Ilha sempre foram
bons em bassulas e ele aprendeu com os mais velhos. Mas também usa faca
ou garrafa, se estiver a perder a luta.
Ficaram apreensivos. Quem diria? Os últimos dias têm sido muito
calmos, quase sem vento nem ondas, comida suficiente, poucos comensais
nos contentores, ninguém a disputar o sítio de dormir. E se vem um desses
bandos? Bué chato! Talvez o Austrália não ouse e se mantenha só na
Chicala, borrado de medo. Bando é sempre mau, pensou Himba, bando com
arma ou sem arma, bando é bando, as pessoas funcionam de outra maneira,
imprevisíveis.
Foi quando apareceu Madia.
Era um pouco maior que Himba, mais forte de ossos, com carnes. Nadava
bem, mergulhava como os rapazes, fumava os restos de beatas que
encontrava. E ria com voz forte. A voz um pouco rouca também se fazia
ouvir a muitos metros de distância, sobretudo se contava uma estória que a
entusiasmava. Sem querer, estava a gritar. Retirou da ponta da Ilha, contou
aos dois, se juntando à noite no muro perto do restaurante, esperando o
pitéu, estava farta de ser fodida pelos outros, aos três de cada vez, os tipos
do bando do Jonas. E se ficasse grávida, já viram a cena? Por isso se
aproximou da cidade, embora houvesse menos comida.
– Te faziam o quê? – perguntou Himba.
– Ué. Me fodiam. Não sabes o que é, sukua?
Kassule disse, não sabe mesmo, ela veio do mato há pouco, sem mal na
cabeça, mas Himba conhecia a palavra, tão utilizada na vida de todos os
dias, desconhecia era o ato em si ou apenas suspeitava. Madia olhou para
ela com espanto, o branco dos olhos luzindo com as estrelas. Primeiro foi
assombro, pena em seguida.
– Deixa só quando um dos bandos vier aqui… Coitada, vais aprender à
tua custa e bem rápido. O do Jonas então… São muitos, ninguém segura
eles, e gostam de foder miúdas, três de cada vez. O Jonas tem uma só para
ele, por isso os do bando é que atacam as outras.
Himba estava mesmo pouco tranquila antes, ainda ficou pior depois. Não
queria ouvir falar de bandos, deles fugiram no município e caíram numa
emboscada de um qualquer. Bandos de praia talvez não fossem piores que
os do mato, pelo menos não tinham aquelas armas barulhentas e mortíferas.
Bandos na mesma.
Arranjaram espaço no recanto deles para Madia. Ficavam um bocado
apertados, mas ainda dava. Kassule, o mais pequeno, dormia no meio. Feliz
da vida, tinha calor emanando dos corpos delas. E o cheiro bom,
repousante, da pele de Himba. Madia não tinha muito cheiro bom, mais
salgado talvez por viver sempre por ali, mas se sentia menos porque ele lhe
dava as costas. Não que fosse mau cheiro, ele já não tinha pruridos de
distinguir os maus cheiros, todos os dias se atirando para um contentor de
lixo, mas havia diferenças. Himba tinha um particularmente fresco, de flor.
No meio do fumo mais espesso poderia adivinhar a presença dela, só pelo
olfato.
– Esse teu nome – perguntou um dia Kassule – é mesmo Madia ou é
Maria?
– É a mesma coisa – disse ela. – Na minha terra, Malanje, muitos não
distinguem. Então prefiro Madia, gosto mais, ninguém tem assim. Marias
há muitas.
– Isso é verdade, há muitas Marias – disse Himba. – Mas tens a certeza
que é a mesma coisa?
– A minha mãe disse que sim.
– Onde está ela? – perguntou Kassule.
– Na cidade. Antes andava no bairro Prenda, dormia na casa de um
homem. Agora não sei, muito tempo que não lhe vejo.
Himba não gostava de fazer muitas perguntas às pessoas, parecia era má
educação entrar sem autorização na zona proibida ou reservada de cada
uma. Mas já tinham alguma familiaridade, afinal andavam os três sempre
juntos. Perguntou:
– Tu é que vieste para aqui e lhe deixaste? Ou foi ela que te deixou ou te
mandou embora?
Madia sentou, as mãos se apertando entre os joelhos fletidos. Olhou o
mar, concentrada, demorou a responder. Quando Himba achava ela tinha
amuado com a pergunta tão íntima e ia ficar calada, marcando o seu espaço,
a amiga falou:
– Eu é que vim embora. Disse mesmo, vou arranjar outro sítio. Ela disse
está bem, vai então.
– Mas porquê disseste?
– Porque ele não me largava. O homem dela. Sempre a me apanhar a
dormir e me foder. À frente da minha mãe. Sukuama! Ela reclamava, lhe
dava socos com cuidado para não o irritar demais, deixa a minha menina
em paz e ele dizia menina o quê, está bem larga já.
Himba teve noção do que acontecia. Pela primeira vez ligava
completamente as pontas, as quais se mostravam às vezes para depois se
esconderem e não revelarem toda a verdade. Na terra dela, mesmo na
escola, entre meninas, havia conceitos que não se pronunciavam, pelo
menos em voz alta. As ideias sim, se transmitiam. Com risinhos tímidos,
sem total noção dos factos, na ingenuidade dos matuenses. Agora percebia
também os acontecimentos na ponta da Ilha, que a fizeram procurar aquele
abrigo ali.
– Dói, não é? – perguntou ela.
– Só no princípio. Depois não dói. Mas aquele homem era horrível e
cheirava mal e bebia muito e sempre a me acordar.
– E lá no fundo da Ilha…
– Esses miúdos… Se fosse um só, tudo bem, podia aceitar e até gostar,
aconteceu. Mas três ao mesmo tempo, ainda com chapadas e empurrões no
meio, é só para magoar, não é outra coisa. Se chama violação, violência
doméstica ou quê... Tu vais ver, quando te apanharem…
– Xê, não fala isso – disse Kassule. – Parece queres trazer azar. Não vai
acontecer, porque nós não vamos deixar. E tu também não.
Madia encolheu os ombros. Riu alto.
– Se acreditas… Por mim tudo bem, não quero que aconteça nada mau…
não quero trazer azar. O problema é que o azar se adianta, mesmo se não o
queremos. E esses rapazes andam bué. Já dormi em muitos sítios por aqui,
conheço. Nenhum é seguro.
Madia parecia mais velha, talvez por causa do vinco permanente na testa
alta. E era mesmo, acabou por lhes dizer que ia fazer quinze anos daí a
pouco tempo. Baixinha para a idade, mas forte pelas lutas. Contou a sua
infância na província de Malanje, no Kela, sítio muito bom, até ficar um dia
isolado, guerra por todos os lados, o pai no exército, a mãe dada a esquecer
sofrimento na bebida. Um dia a mãe disse vamos para Luanda onde a vida é
melhor, tenho lá um irmão. Mas afinal o irmão tinha sido transferido para o
Lubango, longe, longe, não tinham família na grande cidade, ficaram sem
pé. Transferido como, se perguntava a mãe, inconsolável. Aquele
imbumbável arranjou trabalho de lhe transferirem? Nem sequer souberam
qual era esse trabalho que o mandara para o Lubango mais a mulher, a tia
velha da mulher e quatro filhos. Madia acrescentou, não acredito muito
nessa estória de irmão, com certeza nem existia, pelo menos nunca tinha
ouvido antes e a mãe depois desviava a conversa quando eu perguntava. Riu
alto, mais uma vez. Deve ter sido algum tipo que apareceu lá no Kela,
trepou na minha mãe como tantos outros, contou cenas sobre a família dele
e ela acreditou no meio dos copos ser um irmão dela. Ou sonhou. Com
aquela senhora nunca se sabe. Mentirosa, maluca ou bêbeda, escolham lá o
que quiserem, mas sem ofender, porque é minha mãe.
Himba estava um pouco escandalizada, uma filha falar assim da própria
mãe? Talvez o homem fosse mesmo mau, mas tinha sido escolhido. Ou não
tinha havido opção? A culpa era de Madia ou da mãe? E se a filha falava
mal da mãe, de quem era a culpa? Da filha não devia ser. O pai tinha
desaparecido no exército, segundo Madia foi com as Fapla e nunca mais
voltou, mesmo quando as Fapla já tinham outro nome… Pode ter morrido
na guerra, ou ter desertado, ou até pode ter sido desmobilizado com uma
reforma e outro nome, havia casos. Quem sabe, aproveitou a situação de
caos permanente que a guerra sempre provoca para fugir da mãe dela e suas
bebedeiras e mentiras, para sempre. O certo é que Madia só tem lembrança
dele de há mais de dez anos, quer dizer, nem o reconhece se o vir. Coitada
da amiga, tem passado grandes cenas.
Um dia desses o Noé voltou a aparecer. Himba gostou de o ver,
cumprimentou muito bem, um rapaz forte que não pretendeu abusar do
físico, até lhes deu conselhos e promessas de apoio.
– Cresceste, Himba, desde a última vez. Tem havido pitéu por aqui,
portanto. E esta, como se chama?
– Madia.
Himba ficou contente porque ele afirmou ela tinha crescido, mas não
dava tempo para tanto, estava só a ser simpático, todas as crianças gostam
da ideia, estás mais crescida, quase uma mulher, como se o ideal das
crianças fosse se transformarem em mulheres, apressando a decadência.
Mas não gostou dos olhares dos dois, um para o outro, os quais nem
disseram nada, se separaram deles até desaparecerem lá à frente, na floresta
da Ilha.
– Que foi isso? – perguntou ela a Kassule. – Onde foram sem avisar?
– Ao sítio onde se pode estar tranquilo de dia. À noite qualquer areia
serve. De dia é mais difícil encontrar esconderijos para fazer essas coisas.
Ela percebeu o mambo, os olhos eram forçados a se abrir aos
acontecimentos da vida, tão claros para aquele menino de dez anos.
Qualquer coisa partiu dentro dela.
Noé deixara de parecer tão simpático.
– Eles já se deviam conhecer, disfarçaram só… – disse Kassule, em suas
artes de adivinho.
Foi uma tarde e uma noite sem a companhia de Madia. Himba se tentou
convencer, também não perdiam nada. Mas sabia não ser verdade, se
tinham habituado ao riso franco dela, a dizer o que eles pensavam sem
ousar expressar, a maneira como desafiava mais velhos, pelo prazer da
competição… Madia animava as conversas, sabia muitas coisas da grande
cidade, aquela leoa que ficava lá atrás, ameaçadora. Quando não havia
gritos nem barulho de carros na avenida da Ilha, se ouvia sempre um
trovejar constante, por vezes vinha do Sul, por vezes da frente, do outro
lado da baía. Era o rugido da leoa, marcando o território, ninguém põe o pé
perto dos meus filhos, eu ataco para os defender. Implacável. Quem seriam
os filhos da grande cidade que ela protegia? Teria realmente filhos ou era
uma leoa estéril? E os filhos consideravam-na mãe e a respeitavam, sabiam
ao menos que ela os defendia?
Defenderia mesmo alguém ou se alimentava de todos?
Perguntas que Himba gostaria de pôr a Kassule, quando estavam sozinhos
olhando para a imensidão azul. Guardava as questões no entanto dentro de
si, porque o menino ia encolher os ombros, que coisa mais disparatada, é
isso mesmo que andas sempre a pensar, calada? Sim, porque Himba
matutava muito, em mambos por vezes quase estranhos, outros que lhe
pareciam o mais normal que havia. Até Madia por vezes dizia, esta Himba é
mesmo esquisita, fica um dia sem dizer nada, depois fala uma frase
daquelas, complicada como as tiradas dos livros, uma frase que ninguém
entende. És mesmo marada, boêla, sua matuense. Himba não zangava, os
amigos não se devem chatear quando os outros lhes dizem verdades.
Compreendia, aos olhos dos urbanos devia parecer uma estrangeira,
ignorante das coisas da cidade, matumba.
Porém, o facto de Madia ter desaparecido com Noé e depois voltar como
se nada tivesse passado despertou em Himba uma certa desconfiança. Essa
moça vivida não tem os melhores princípios de educação, como falaria o
pai. E logo a mãe responderia, que queres, com uma família pouco
adequada ao preparo de uma menina… Várias vezes tiveram conversas
dessas à frente dela, analisando atitudes de uma ou outra moça do
município. Com uma linguagem profissional, mais fechada que a falada
pelas outras pessoas da terra, menos instruídos que o casal, mas à qual a
filha estava habituada.
Até tinham comentado, com algum recato de expressão por causa da
presença dela, acerca da sobrinha do padre Gonçalves, aparecida grávida
aos dezasseis anos, vinda de Benguela para passar uns tempos, na realidade
para ter o filho longe do conhecimento do resto da família, o que provocou
problemas graves no pobre padre, que só tinha albergado a sobrinha por
solidariedade familiar mas que foi pasto de todos os mujimbos quando a
barriga dela já não dava para esconder. Finalmente apareceu a mãe dela,
irmã do padre, a qual senhora, a pedido do administrador do município, um
homem ainda novo mas cioso de paz e concórdia sociais no seu feudo e
preocupado pelo prestígio ferido da igreja, ou talvez por alvitre aflito do
sacerdote, apontado a dedo pelos fiéis, explicou à saída da missa de
domingo e em voz bem audível para muitos, que vinha ajudar o parto da
filha, presa fácil de um ricaço de Benguela, com muito tesão mas nenhum
escrúpulo, que agora negava a paternidade, dizia nem conheço essa menina,
quando ela era a melhor amiga e colega de escola da filha mais nova do
próprio ricaço. Esclareceu com nome e tudo, para não haver dúvidas e
provocar muitos sinais da cruz de benzimento por parte das beatas
indignadas. Como o ricaço tinha, entre muitos empreendimentos, uma
fazenda de fruta no município e aparecia de vez em quando para as devidas
vistorias, o alvoroço não podia ser maior. Com escândalo ou sem ele, o
certo é que o padre foi ilibado, até porque nem cinco meses tinham passado
desde a chegada da moça já esta paria um rapaz. Segundo as senhoras muito
zongolas do sítio que foram logo inspecionar parecenças, o recém-nascido
já apresentava a bocarra e os lábios inconfundivelmente grossos do
mijagrosso, como é conhecido qualquer ricaço que se preze.
Haveria maior prova de que o padre era inocente?
Acontecia muitas vezes com Himba: um voo de pássaro, uma rabanada de
vento, uma frase apanhada da rua, qualquer coisa, por mais insignificante,
evocava os pais, a vida anterior, os irmãos mais novos, a casa perdida na
voragem da guerra. Esses pequenos episódios tão importantes hoje quase
não tinham significado na altura em que ocorreram. Os eruditos chamariam
marcas da sua identidade. Claro, a menina não perceberia sequer a frase.
Pouco interessa a designação, os episódios do passado viviam com ela,
viviam nela. Também Kassule os teria e também ele os não exprimia, ou
por não saber, ou por não lhes dar ainda a importância que mereciam. Um
dia haveria de conversar com o amigo sobre isso. Sabia, ia ser uma
conversa muito séria e muito relevante. Daquelas que começavam: «Olha,
tenho uma coisa para te dizer, ouve com atenção…», não era assim que o
pai lhe falava para transmitir um conhecimento ou um conselho que ele
achava fundamental?
Marcas de uma infância normal, no meio da guerra.
Noé aparecia mais vezes desde que Madia andava com eles. Ficava a
conversar, a explicar coisas, esperando a hora da comida e dividia o
resultado da busca no contentor. Quando ele estava, se integrava no grupo.
Pois formavam de facto um grupo que recolhia alimentos em conjunto e
depois repartia. Outras vezes, Noé aparecia só mesmo para apanhar Madia e
a levar a desaparecer por horas ou dias. Dizia que desconseguia de arranjar
trabalho, só por acaso o aceitavam num barco para ajudar na pesca, mas não
apreciava o salo, a faina não era a sua vocação, nem da sua família aliás,
camponeses deslocados do Planalto Central antes mesmo de ele nascer. O
pai trabalhava para um pescador, dono de uma chata, a mãe vendia peixe
pela cidade. Viviam numa barraca perto da Marinha de Guerra. Conhecia
desde sempre a Ilha e muitos lhe sabiam o nome, se dava bem com todos, já
tinha sido adotado como um ilhéu. Evitava os bandos de rapazes que
proliferavam nas areias, grande preocupação dos habitantes, desconfiados
por dever de História. Ele explicava aos mais-velhos, nem todos os miúdos
são bandidos, a maior parte até não é, não têm só onde ir, mas havia uns que
compreendiam e aceitavam, outros não. Ouvia muitas vezes os ilhéus
reclamarem com a polícia, ponham mais agentes para os controlar, mandem
todos para os musseques, a Ilha é boa demais para eles, façam uns cercados
com arame farpado no mato e ponham todos lá dentro. Himba ficava muito
admirada e ofendida com essas afirmações transmitidas pelo Noé, podia ser
que as pessoas dissessem coisas tão feias e sérias? No pouco tempo que
passava ali, não tinha assistido a grandes cenas que assustassem os
habitantes, porquê não lhes queriam então? A senhora boa das trancinhas
não tinha tido essa reação de medo ou rejeição em relação aos meninos, até
lhes disse, venham cá se precisarem muito, felizmente que não estavam a
precisar. E a cena fê-la pensar que as crianças ali eram bem recebidas.
Afinal, havia receios e desconfianças, alguns até a quererem lhes expulsar
para o musseque ou para campos de concentração? Esses bandos eram
assim tão perigosos?
Começou a ter a resposta uns dias mais tarde.
Foi assim.
Kassule lhe convidou, vamos até à floresta, lá por vezes tem tesouros
escondidos. Ela riu, tesouros escondidos? Tinha lido um livro antigo sobre
piratas das Caraíbas e seus tesouros. Ou pelo menos a procura de um
tesouro, o qual, aliás, acabava por ser encontrado. Ali também era perto do
mar e tinha havido barcos antigos, quem sabe? Pelo menos, do lado da baía,
havia carcaças de barcos, uma parte dentro da água, enterrados na areia,
outra parte de fora, a enferrujarem. Um parecia ter sido barco de guerra,
segundo opinião sempre avisada de Kassule. Para falar verdade, percebia
ser brincadeira do amigo, só uma forma de a atrair para mundos novos. No
tempo todo que tinha vivido na Ilha, percorrera a praia inteira desde a ponta
até à Chicala e também a do lado da baía, se admirando com a beleza da
cidade quando o sol se punha por trás da fortaleza. Porém, nunca tinha
entrado na floresta, um conjunto de árvores pouco diversificadas, pois às
originais palmeiras e acácias bravas lhes tinham juntado casuarinas,
coqueiros e os recentes nimis, uma acácia nova na região, parecia ter sido
trazida da América e que crescia muito mais depressa que qualquer outra,
dois anos para atingir os cinco ou seis metros de altura, invadindo todos os
espaços, sombra cerrada. Do sítio onde havia o restaurante até ao princípio
da floresta eram duzentos metros, mas com a avenida no meio. Talvez por
isso nunca tinha passado para o lado de lá, evitava cruzar a avenida. Esse
afastamento da floresta podia ser considerado estranho, dado o hábito que
ela tinha de árvores e outras plantas, todas as plantas, a profusão de espécies
do Planalto Central.
Pressentimento?
Era mais fresco que na praia, pois estavam à sombra e tinham mar dos
dois lados, havendo sempre uma brisa, ou de um lado ou do outro. Achou
ela. Na ponta mais próxima deles pessoas trabalhavam num terreno com
flores, um negócio de reprodução e venda de plantas. Não se meteram por
aí, também por ser o refúgio de gente, a avaliar pela dezena de casebres que
se escondiam entre o arvoredo até ao mar. Foram para mais longe, no
sentido do fim da Ilha. A floresta afinal era um mundo em si, pensou
Himba, pois mal se ouvia o barulho dos carros, se viam masé grandes
barcos a fundear na baía, à frente o porto com a cidade e seus prédios altos.
Insetos e pássaros. Poucas pessoas. Uma velha ao fundo a apanhar paus
secos para a fogueira da noite. Miúdos a banharem na água muito calma da
baía. Galinhas e cães. Barulhos abafados. A leoa ao longe a rugir, arfando.
Avançaram mais um pouco, olhando para os lados. Estudando os
detalhes. Sobretudo ela, para quem tudo era novo, pois Kassule já conhecia
a floresta, mesmo antes de pensar em morar na Ilha. Ele confessou ter um
dia pensado em assentar acampamento ali, mas achou depois ser má ideia,
ficava muito escuro à noite, não se viam estrelas. Ele ia ter medo.
De repente, chocaram com um grupo de rapazes, sentados no chão, a
fumarem. Cheiro de liamba. No município, os mais-velhos usavam os seus
cachimbos muito antigos e feitos por eles, quando se juntavam ao fim da
tarde para conversarem no njango, mas o pai prevenira, não se aproximem
disso, a liamba faz mal aos mais novos, é só para os sekulos. O cheiro da
folha era inconfundível, Himba percebeu logo o consumo pelo cheiro antes
de ver os demónios nos olhos dos rapazes. Eram quatro. Se levantaram
quando os viram. O que estava com o cigarro na mão avançou rapidamente
o braço para Himba, queres?
Ela negou com a cabeça. E se virou na direção da praia, tocando no braço
de Kassule, indicando a retirada.
– Pronto, não querem fumar – disse o do charro. – Mas podem sentar
connosco… dizer boa tarde pelo menos.
– É verdade, não vos ensinaram a cumprimentar? – disse outro, mais
ameaçador.
– De facto foi nossa falta – disse Kassule, se virando para eles com toda a
tranquilidade. – Não foi má educação, foi do susto de encontrar alguém.
– Susto? Estavam à procura de um sítio onde se deitarem sozinhos,
afinal?
Os outros riram à insinuação. Himba recordava as palavras do pai e via a
razão nos olhos deles, contemplando-a fixamente. Não sabia o que dizer, só
queria fugir. Mas o medo entrara sorrateiramente e levou-a a ficar sem
ideias, sem vontade. Kassule também se calou, lhe escapando a resposta.
Teria o menino percebido o segundo sentido? Certamente que sim, mais
novo mas mais vivido naqueles ambientes. O do charro passou-o a um outro
e falou para Himba:
– Senta aqui ao pé de mim, beleza.
Ele fez primeiro o que disse e bateu em seguida com a mão no chão, ao
seu lado, a indicar o sítio. Ela ficou parada, uma voz lhe segredando corre,
corre. Faltava a coragem de obedecer à voz prevenida.
– Vá lá, senta ao pé de nós – disse um outro, parecia o mais velho de
todos. – O aleijado pode ir embora, queremos só a companhia aqui da
pequena. Mas não sentas nada ao pé do Chico, vem para aqui – e bateu
também no chão, com gesto imperativo, de mandão.
Kassule se endireitou na muleta improvisada, falou com orgulho:
– Não sou aleijado, não nasci assim. Caí na mina.
Todos riram. Menos Himba, claro.
– Não é a mesma coisa? – perguntou o que parecia mais velho.
– Não, não é a mesma coisa – disse Kassule.
– Olha, que se foda! – disse o que primeiro estava com o cigarro. –
Aleijado ou minado, desaparece. A miúda fica.
Kassule não se mexeu. Dois rapazes ainda estavam de pé, sempre
calados. Empurraram de repente Kassule que se desequilibrou e caiu,
desamparado.
– Não façam isso, por favor – pediu Himba, se inclinando para ajudar o
amigo.
Um dos dois empurrou-a também. Caiu perto do mais forte, que logo a
agarrou, é isso mesmo, minha menina linda, fica só ao pé de mim. Himba
tentou se debater mas ele abraçava-a por trás firmemente. Kassule se atirou
para a frente contra o que segurava Himba, mas levou um murro de um
deles e foi contra uma árvore.
– Foge, Kassule, foge – gritou Himba.
Mas o menino se levantou sobre uma perna, com a muleta erguida como
arma de combate. O nomeado Chico lhe deu um pontapé na perna e ele caiu
mais uma vez. Do chão tentou responder com a muleta mas esta foi-lhe
arrancada das mãos e atirada para longe. Foi a vez de se virarem todos para
Himba.
– Segurem só as pernas dela – mandou o mais forte, o que a abraçava.
Dois seguraram com força as pernas que se debatiam, mas foram
afastadas. O terceiro ficou a observar divertido os esforços de Kassule, se
arrastando pelo chão, para chegar à muleta.
O maior se deitou por cima da menina e violou-a.
Os gritos dela se confundiram com os de Kassule. Depois se revezaram
os quatro, seguindo uma hierarquia de grupo, e ela já não gritava, só
chorava. Também Kassule, deitado no chão em posição fetal, virado para
não ver.
Os quatro deixaram os dois com seus soluços e foram embora, a contar
vitórias e heroísmos.
Muito tempo depois, Kassule se levantou e foi ter com ela. Havia sangue
no chão e ele notou, mas não falou disso, vamos, vamos para a nossa praia.
Ela ainda demorou a parar de chorar mas acabou por ganhar forças e,
apoiada pelo amigo, caminhou para fora da floresta e dos seus monstros
gargalhando entre os ramos e as folhagens. Tudo lhe doía mas o pior não
era a dor física. Se sentia roubada, violentada no mais íntimo, como se
deixasse de haver qualquer tipo de segurança no mundo. Ao mesmo tempo,
uma tremenda vergonha. De não ter podido lutar? Fez o que as forças
permitiam, tinha sido pouco. Vergonha, medo, e lá no fundo, uma tremenda
revolta, inconfessável. Desânimo também.
Derrota.
As lágrimas eram teimosas e não paravam de correr.
Só queria voltar para a praia, o refúgio entre os blocos de cimento. Era o
seu lar. A ideia de o alcançar diminuía o fluxo das lágrimas, embora não as
expulsasse de todo.
Madia adivinhou logo o que aconteceu. Pediu nomes a Kassule, só
falaram num, Chico.
– Isso não ajuda, há muitos Chicos. Vou masé tratar dela.
Com imensa ternura, levou Himba até ao mar, lhe tirou o vestido que
ficou na areia, entra na água, entra, fica o tempo que quiseres, a água do
mar lava tudo.
Mas sabia estar a mentir, a água do mar só lavava o corpo.
5

Diego olhava para a tela vazia. Gostaria de retomar a ideia várias vezes
perseguida, um ondjiri morto e se despojando do espírito que saltava sobre
o predador, talvez para se vingar. Como muitas vezes acontecia, via melhor
a cena antes de a pintar e depois era incapaz de realizar o imaginado, se
contentava com o pouco conseguido, sempre dá para vender. Por isso
merecia negociar apenas no mercado do artesanato e não em galerias.
Sucedia quando colocava à sua frente telas grandes, assustadoras no seu
enorme vazio. Se já tinha decidido cortar a tela em quatro, resignado na sua
mediocridade, então se tornava expedito, sacava rapidamente uma coleção
de quatro peixes, búzios, mbambis ou rosas de porcelana, tanto fazia, tudo
lhe saía se fosse um poker, dominado pelas cores agressivas da alegria.
Não vivia mal, com a ajuda de Sofia. Ela sempre se encarregou de pagar
o alojamento e tudo ligado a ele, luz, água, etc. Com a venda dos quadros,
comprava a sua roupa e comia nos mercados, por vezes jantava com a irmã,
muito raramente agora que ela ficava pelo restaurante à noite, tenho de
controlar todas as coisas, Dona Ester já não pode ficar até tarde, o coração
está mal e tem de se cuidar, tu levas mesmo a sério tomar conta dela e de
seus mambos, gozava ele escondendo algum ciúme, até do filho maluco,
não, Diego, ele tem uma pancada mas não chega a ser maluco, traumatizado
por causa desconhecida, a mãe nunca lhe bateu, pode ser alguma coisa de
criança ou por ter ficado sem pai muito novo, como vamos saber agora se
ele não lembra, mas fica incapaz de se concentrar, fazer as coisas mais
simples, e se ouve um barulho entra em pânico, então está sempre em
pânico nesta cidade de todos os barulhos, se divertia Diego que detestava o
anormal, da próxima vez levo uma corneta para lhe buzinar nos ouvidos
quando estiver distraído. Porquê dizes isso, Diego, se não és capaz de fazer
mal a ninguém, sempre foste a pessoa mais gentil que conheci?
Fim de conversa sobre Ezequiel.
Hora de entrar noutra. Nos poucos momentos em que estavam juntos,
praticamente só de manhã. Ao pequeno-almoço, encontro sagrado. O que
primeiro chegasse à cozinha preparava a refeição para os dois. Aquecia a
água para o chá, tirava o pão do congelador e metia no forno. Era possível
comprar logo pela manhã pão acabado de fazer mas eles se habituaram a
essa rotina, comer primeiro, sair em seguida. O pão de véspera, congelado
na geleira e depois torrado no forno, ficava como vindo da padaria nesse
momento, mais duro por fora e igualmente mole por dentro. Só à espera de
receber a manteiga no seu seio, a qual derretia e se impregnava por todo o
miolo. O tempo de um preparar o modesto mata-bicho e o outro já estava na
cozinha, bom dia, tudo bem por aí? Sentavam e comiam, conversando sobre
a véspera ou o dia seguinte. Nunca nada de importante.
Falar de coisas pesadas à refeição atrapalha o estômago.
Foi Diego que inventou a cena e tudo o que a acompanhava. Ele inventou,
Sofia aceitou, agradada com rotinas. Ela gostava mesmo de rotinas. Tivera
demasiadas surpresas na infância para as apreciar na idade adulta. Ele
apreciava aquele hábito que inventara mas não era escravo dele ou nenhum
outro, se deixava apanhar por factos ou gestos inesperados, enfrentava-os
sem medo, antes respeito e atenção. Se metia com desconhecidos, trocava
conversas e fazia amizades, era conhecido e apreciado em todos os meios
que frequentava, infelizmente pouco diferenciados, precários sobretudo,
para ser rigoroso. Não era um solitário nem se comprazia no vazio dos
relacionamentos. Língua muito afiada, resposta pronta, por vezes se
colocava em situações difíceis, pois há gente maldosa capaz de se vingar de
uma brincadeira bem-intencionada, sem atingir o significado social dela, a
troca. As zungueiras de rua e as vendedoras de mercado brincavam com ele,
andas sempre com os teus quadros bonitos na mão, não me dás um?, só se
trocares por um beijo e dois montes de batata-doce, xê, que é isso, tenho
marido, haka! Leva lá um montinho de batata-doce.
Brincadeiras inocentes de gente que se gosta.
Era raro ir ao restaurante de Dona Ester, ainda menos depois de terem
comprado telemóveis, o dinheiro ganho já permitia satisfazer várias
necessidades. Quando Sofia começou a trabalhar lá, de vez em quando ele
aparecia por haver assunto urgente, mas depois passou a evitar e se falavam
pelo telefone. Por isso mal conhecia Dona Ester e ainda menos o seu filho
anormal. Teria visto o rapaz talvez duas vezes. De maneira que a piada de
lhe invadir os ouvidos com uma buzina era só a primeira coisa que lhe veio
à cabeça para provocar as fidelidades de Sofia. A sabedoria de uma curta
vida lhe ensinou ser melhor andar por longe dos sítios que a irmã tinha de
frequentar profissionalmente, assim ninguém se metia também na vida dele.
Ele próprio escolhia com quem se ligava, não através de Sofia. Da mesma
maneira, ela desconhecia os companheiros dele que pintavam quadros ou
esculpiam a madeira ou o osso, angolanos ou congoleses, com quem puxava
umas liambadas para afastar maus espíritos, ou derrotava uma garrafa de
uísque barato, quando não era o mortal caporroto. Eram os seus kambas,
não os da irmã. Gente que gostava dele pelas suas próprias qualidades, da
mesma maneira que ela tinha amigos pelas suas capacidades. Talvez fosse o
segredo de tanto gostarem um do outro e nunca terem tido, nunca, mas
mesmo nunca, uma zanga, opiniões diferentes sim, amiúde, nunca uma
zanga. Se perguntou, quem inventou esse truque, eu ou ela? Inexistia autor
reconhecido, sempre foi assim, desde que um teve conhecimento da
existência do outro. E passaram por muita coisa. Sempre juntos.
A irmandade não é uma coisa boa?
Pensamentos de quem tem uma tela à frente e não sabe o que fazer com
ela. Dois anos antes, numa cena de vida selvagem, uma leoa a levar a perna
de um ondjiri que matara e desventrara, enquanto uma hiena e um mabeco
esperavam para se atascarem nos despojos, experimentou fazer sair do
corpo devastado do antílope o seu espírito em perseguição da leoa e se
lembra bem, da primeira vez Sofia observava o ato criativo e já lá não
estava quando ele zangou consigo mesmo, o movimento não era
suficientemente ondulado no espaço como se devia a um kazumbi, arrancou
a tela do cavalete, a cortou em quatro e pintou quatro espécies diferentes de
acácias, algumas que conhecera na infância, outras que viu em Luanda, era
um profundo sabedor de árvores e flores. Durante dois anos voltou a essa
cena que ele via com todos os detalhes, o corpo do antílope acinzentado
voando no espaço, tentou várias vezes captá-lo e sempre desconseguiu. Ou
por isto ou por aquilo. Entretanto, a qualidade constante estava nos outros
animais, bem retratados nos seus instintos básicos, a leoa com a arrogância
elegante da força triunfante, o mabeco e a hiena com fácies de ganância,
covardia e traição. Sentia uma vertigem incontrolável de esconjurar a cena e
acabava sempre da mesma maneira, a tela cortada em quatro para por cima
pintar uma coleção qualquer. Inevitável. Sofia viu a primeira tentativa,
perguntou por ela no dia seguinte, ele disse não deu, ela lamentou, pena, era
uma excelente ideia, ele também achava, mas nunca mais lhe confessou ter
voltado a tentar. Um dia que conseguisse, o quadro seria dela, uma boa
oferta para a sala. Nem por todo o ouro do mundo o venderia.
O seu primeiro quadro com uma estória, não é de desprezar.
Entretanto, Sofia esperava a hora de receber os primeiros clientes para o
jantar. Tinha proposto a Dona Ester uma nova maneira de fazer o arroz de
peixe e marisco, ou melhor, o mesmo prato com um diferente tempero,
baseado em massa de loengos. Ela mesma provara na cozinha o resultado
das primeiras experiências, a senhora seguia as sugestões dela e aguardava
nervosa o veredicto, ainda falta sal ou devíamos acrescentar tomilho ou um
toque de água de coco. A senhora seguia as instruções, pondo
cuidadosamente uma pitada ou uma colherinha do ingrediente sugerido.
Sofia reparou, Dona Ester parecia uma bruxa daquelas das estórias quase
saltitando à volta do caldeirão. No entanto havia diferenças e a primeira ela
não ser má nem ter dentes compridos, não pegava em sapos e a panela era
pequena. Se resultasse, fariam numa panela grande e proporiam como
novidade aos clientes.
Era noite de o grupo de amigos aparecer, embora nada estivesse
combinado. Quinta ou sexta vinham sempre e já era sexta-feira, portanto
apareceriam. Se os outros clientes não quisessem aceitar a sugestão não
haveria prejuízo, vários do grupo provariam, andavam sempre à cata de
novidades, com tendência para comida caseira, segundo diziam. Foi o que
os atraiu naquele pequeno e pobre restaurante, se comparado com os que
estavam habituados a frequentar. Não era requintado, não era frequentado
por gente rica, a comida embora boa evitava grandes artifícios para enganar
os paladares. Mas sempre com um toque à parte, diferente dos outros. E o
atendimento personalizado de Sofia, atenta aos gestos, às faltas.
Hoje ela estava particularmente ansiosa, embora tivesse a certeza da boa
qualidade do peixe, um pungo apanhado nas profundidades, e do marisco,
apenas camarão, lagosta e quitetas. A ansiedade vinha de desconhecer se
alguém já ousara meter loengos, uma fruta amarga e ácida, com uma ponta
de doce, sim, misturando três sabores fundamentais, numa cozinha.
Diferente seria. O tomilho dava gosto forte, mas sem exagerar. Os amantes
de picante, quase todos os clientes do restaurante, acrescentariam jindungo,
mais um sabor especial. Nunca provaram um arroz assim, tinha de dar
certo, pelo menos pela surpresa e a mistura dos perfumes do mar com os da
terra. No entanto, tinha dificuldade em controlar o nervosismo. E não era
devido à quase certa presença de Abdias, achava.
Abdias não lhe interessava mesmo nada.
Dona Ester arriscou provar o arroz ainda no fogo.
– Está divino!
Era quase uma heresia tal frase brotar da boca da senhora. Divino era
reservado a coisas de religião e ela não facilitava na linguagem. Olhou
Sofia com carinho e repetiu a palavra, sem temer o ciúme de deus nenhum.
Naquele momento, o paladar falava mais alto que a crença.
– Vai ser um sucesso – voltou a elogiar a senhora. – Vamos fazer no
maior panelão que temos. Se as pessoas estiverem com receio de provar,
sabes o que tentamos? Além da comida que encomendarem, levamos um
pratinho com o arroz. É só para provarem. Vais ver, muitos vão mudar de
opinião.
– É uma boa ideia – concordou Sofia. – Até podíamos oferecer logo à
entrada um pratinho. Depois escolhem o que quiserem.
– Sim, é isso mesmo.
Dona Ester deu as ordens ao pessoal da cozinha. A Sofia parecia, a voz da
sócia até estava mais forte, segura de si. Foi inspecionar o salão, satisfeita
com o sucesso. Nem sempre as boas ideias conseguem ser postas em
prática. Tinha de inventar outros temperos, misturando sabores de
continentes diferentes. De vez em quando, qualquer restaurante deve
apresentar novidades. E se forem invenções dos próprios, sabores únicos,
usando alguns produtos próprios da terra, ainda melhor. Podia pedir a um
dos amigos para fazer uma referência numa rede social da Internet, isso
espalha a descoberta, publicidade gratuita. O Tiago, que andava sempre a
zongolar cenas no telemóvel de última geração, era a pessoa ideal. Se eles
aparecessem e gostassem do prato, ela pediria ao Tiago. Ou a Salomé. O
melhor é falar aos dois. Com uma fotografia, claro, as fotografias são muito
apelativas. Tinha aprendido qualquer coisa na disciplina de marketing que
estudara há tempos.
Começaram a aparecer alguns clientes e Sofia explicava terem uma
novidade, arroz de peixe e marisco. Provavam do pratinho e muitos
aprovavam, excelente, original, diferente. Alguns aceitavam encomendar
esse prato. Os que preferiam outra coisa, gabavam na mesma o arroz mas
vai ficar para a próxima vez, hoje já vínhamos com a ideia de cair num
muzonguê ou numa saka-saka. Os elogios não pararam. A novidade estava
aprovada. No entanto, ela esperava o grupo, sempre mais atrasado, para
confirmar o conseguimento. Porque, embora mais novos que os outros
comensais, viajavam bué, tinham estado nos melhores restaurantes do
mundo, faziam questão de o mostrar em fotos, nas redes sociais, nas
conversas. Os primeiros elementos do grupo apareceram às vinte e uma
horas, eram Salomé e Alfredo.
– Quantos virão hoje? – perguntou Sofia. – Para mandar preparar a mesa.
– Não faço ideia – disse Salomé. – Mas reserva umas dez cadeiras, depois
veremos.
Foram aparecendo os outros, afinal vieram treze, com a notícia, o Abdias
chega mais tarde. O restaurante não ficava apinhado porque entretanto
alguns já tinham acabado a refeição e ido embora. Com as melhores
referências à experiência, ponham isso no menu e em primeiro lugar. Sofia
sorria, agradecia, vamos tentar introduzir novas coisas de vez em quando.
Os do grupo provaram os pratinhos, encomendaram todos o arroz, não há
qualquer dúvida, trovejou Tiago, isto é comida dos deuses.
– Tira uma foto ao prato e mete na rede social – pediu Sofia, sem
vergonha nenhuma.
Ele obedeceu no tempo de dois cliques. Depois acrescentou umas frases
divertidas a gabar o restaurante e seu arroz de peixe com marisco, por
exemplo, se vocês conhecem esta iguaria de outros sítios, esqueçam, não
conhecem nada enquanto não provarem o do restaurante da Mamã Ester,
nem nas Canárias encontrei melhor e eles lá sabem de peixes e mariscos.
Ou na ilha de Lesbos, Grécia. Instigada por Sofia, Salomé pegou no
telemóvel e respondeu a Tiago, no mesmo teor. Como eles tinham muita
gente com quem se relacionavam, os elogios podiam funcionar para chamar
clientela nova e endinheirada.
Mal é que não fazia.
Solferino mandou calar toda a gente e avisou, na próxima semana os
meus pais viajam. Vamos fazer uma festa lá em casa.
– Sofia, desta vez não podes recusar – acrescentou. – Vou encomendar
duas panelas enormes deste arroz, podes fazer uma etiqueta ou cartaz com
publicidade do restaurante, para que saibam onde podem repetir…
Ela não disse nada, ainda nem sequer estava sentada à mesa, tinha outros
clientes na sala e devia controlar tudo, em particular o pessoal que servia.
Fez um gesto vago com a mão, no género depois falamos, foi à cozinha
convencer a mais-velha para recolher a casa. Não gostava que ela andasse
sozinha à noite, por isso a Rosa, uma ajudante da cozinha, acompanhava-a
habitualmente. Mas Dona Ester não aceitou, hoje vou mais tarde, quero
apreciar bem o que os clientes dizem do nosso novo prato, está mais que
aprovado, disse Sofia, mas a senhora não se contentava com pouco,
desfrutava do contentamento geral. Mesmo o pessoal da cozinha, sempre
reservado com a chefe presente, nessa noite se soltava mais, havia risos e
piadas. Se o restaurante ia bem, tinham esperança de manter o emprego e
até de sonharem com um aumento salarial, prometido há tempos. Todos
ganhavam pois com o sucesso.
Conversa de Sofia nos intervalos, para os motivar.
Depois só ficou o grupo de amigos, já com a presença de Abdias, para o
qual não sobrou o arroz, fica para outra vez, jantei em casa, desconsegui de
me safar. Então, Dona Ester aceitou ir embora. Sofia mandou arrumar a
cozinha e despediu o pessoal. Pôde finalmente sentar ao pé dos amigos,
saboreando a sua vitória. De vez em quando um deles regressava ainda ao
tema, mas por que raio te lembraste de acrescentar loengo, essa é de génio.
– O loengo de facto é que faz toda a diferença – disse Alfredo.
– Esta miúda tem talento – disse Solferino. – Devias lançar-te num
restaurante maior e mais requintado. Não queres um financiamento do meu
pai? Ele é um chato mas tem faro para os negócios. Dás uma quota de vinte
ou trinta por cento nos lucros e pronto, ele avança a bala, eu sirvo de fiador.
– Grande fiador – disse Tiago. – Se ainda fosses filho único…
– Não me referia a esse tipo de fiança. Eu garanto que vai ser um sucesso,
que comemos sempre bem aqui e ela é a alma do restaurante e isso seria
suficiente para o meu pai acreditar que não deita o dinheiro à rua, isso ele
nunca faz…
– Ainda bem que reconheces – disse Salomé. – Não o consegui convencer
de avançar uma verba mínima para apoio a um grupo de mulheres que
tinham uma ideia que entretanto já milhares tiveram. Ir à China comprar
diretamente os produtos que chegavam aqui via Dubai. Era no princípio.
Em duas viagens elas tinham dinheiro para lhe pagar o capital inicial. Ele
não foi nas conversas, nem com números. E eu era a fiadora, ou antes o
meu pai, melhor fiador que eu… Recorri mesmo ao velho, o qual é um
forreta daqueles, vocês sabem. Dessa vez ele cedeu. E sabem o que
aconteceu? O que eu previa. Foi um grupo de cinco mulheres, sem falar
nenhuma língua a não ser português e kimbundo ou português e umbundo
ou português e kikongo. O meu pai avançou o dinheiro para comprarem os
bilhetes de avião e a estadia numa pensão do mais rasca que existe em
Xangai. Com gestos, porque pela língua não podia ser, fizeram as compras
que queriam com o dinheiro delas, já acumulado nas vendas de mercadoria
vinda do Dubai. Em duas viagens pagaram ao meu pai e agora têm um
apartamento em Xangai, alugado pois claro, onde vão aos cachos. Outros
imitaram-nas. Foi um dos meus primeiros projetos.
– Estão ricas – disse Alfredo, comendo a mulher com os olhos.
– Não exageres, ricas não estão. Mas têm dinheiro, vivem bem, negócios
estáveis. Um bando de mulheres tirado à pobreza… O teu pai podia ter
ficado associado a isso, Solferino.
– É, o velho não se comove. Mas acho que se lhe apresentar a Sofia, se
provar do arroz que hoje comemos, mais um paleio meu para ajudar, ele
abre a bolsa. Um restaurante bem situado, moderno, arranjamos um
decorador, temos amigos, e depois garantimos clientela. Só pode dar certo.
– Só pode – apoiou Abdias, saindo da sua reserva.
– Demais para mim – disse Sofia. – Aqui sinto-me bem, é o meu lar, meu
refúgio. Uma pessoa deve saber o tamanho do passo que pode dar. As
minhas pernas são curtas.
– Tens de ter ambição – insistiu Solferino.
– E tenho. Fazer coisas boas aqui, inventar uns sabores novos, sem nunca
pôr um dedo numa panela. Pelo menos aqui, porque em casa por vezes
cozinho.
Travou a confidência, estava a falar demais. O papel dela ali era ouvir. Se
sentia mal estando no palco, para o qual não era chamada. No entanto foi
ela que saltou para a cena? Solferino a pôs lá em cima, mas ela tinha de
retirar imediatamente e retomar o seu estatuto de gestora do restaurante que
acompanha um grupo de amigos nas suas libações, ouvindo os disparates e
as análises, as piadas, as fofocas, mas também explicações sérias, como
quando Tiago expõe teorias e novidades sobre Informática, a sua área de
formação na África do Sul, ou Alfredo desenvolve as informações sobre
técnicas de perfurar poços de petróleo no Atlântico.
– Duvido que o pai do Solferino aceite, não sei como enriqueceu, com a
falta de visão que tem para os negócios – volveu Salomé. – Desculpa, meu,
se trata do teu velho, mas é verdade. No caso do futuro restaurante até
posso estar errada e ele alinhar, mas não interessa… O que me admira é tu,
Sofia, imediatamente rejeitares a ideia, como se perdesses a coragem de
arriscar. Este restaurante é simpático, estás ligada à Dona Ester,
compreendo, mas não queres mais… Tentar a tua própria jogada?
Por um momento as palavras levaram Salomé ao curso que fez e à Teoria
dos Jogos, disciplina que adorou, embora nunca fosse aplicar os
conhecimentos em coisa útil.
– Aqui estou bem. Tranquila, segura. E pode ser melhor. O meu sonho é
ter sempre casa cheia. Mas esta casa, não outra com espelhos e coisas
modernas, mesas baixinhas ou cadeiras desdobráveis…
Calou, atónita pela sua verbosidade, porque hoje desconseguia de se
controlar. Por causa do êxito do arroz? Provavelmente. Tinha de contar ao
Diego, abrir uma garrafa de vinho branco que tinha bem frio na geleira,
festejarem sozinhos. Se ele ainda estivesse acordado…
Resistiu a todos os cantos de sereia, só sorria, dizia sim ou não, mais
nenhuma frase completa. Os outros iam bebendo garrafa sobre garrafa,
saltitando de temas, em toda a fraternidade.
***
Os dias iam passando, parecidos. Havia mais garotos na praia, por vezes
era preciso disputar ferozmente o recanto nos blocos de cimento. Também
os restos do restaurante. Noé, que parecia saber tudo, explicou, a guerra
estava muito quente no Huambo e no Bié, por isso mais crianças tinham
aportado à cidade, milhares cada dia. Se espalhavam pelas ruas, dormiam
nos vãos das portas, quando lhes deixavam, nas arcadas da marginal então
não se fala, estavam cheias, alguns vinham para aqui, a Ilha. Também havia
famílias de Luanda que diziam não aguentar tanto filho com a vida cada vez
mais difícil e lhes mandavam para a rua, vão mendigar ou roubar,
desenrasquem.
E a comida rareava nos contentores.
– Há três tipos de pessoas aqui – disse o Noé. – Os que comem dentro dos
restaurantes e pagam, os balados, só olham para nós com nojo. Para eles
ficam os pratos cheios e bem servidos, já vi mesmo, vocês também podem
verificar se arriscarem espreitar pela porta até vos enxotarem. Do que sobra
das comidas nas panelas e nos grelhadores uma parte pode ser guardada e
servir para o dia seguinte, com um molho diferente, ou misturada com
outras coisas, me explicou o Fausto, ele era ajudante de cozinheiro lá no
fundo da baía…
– Não é mais? – perguntou Kassule.
– Pois, a maka dele foi essa mesma. Levou para casa uns bons nacos de
carne de primeira que tinham sobrado e estavam fora da geleira, já com
moscas a rondarem. Mas foi apanhado pelo dono e lhe puseram na rua.
Bem… esses restos bons continuam portanto no restaurante e a ser do dono.
Mas o que sobra dos tachos e de algumas travessas, o patrão deixa o pessoal
levar para casa, se repartem, mais o pão que não dá para guardar até
amanhã e algumas bebidas que ficam a meio. Portanto, os empregados são
o segundo grupo, os que se safam. Depois vimos nós, os do terceiro grupo.
Para nós é o que sobra dos pratos, ossos, legumes já mastigados, ou
bocados de comida que não ficou bem feita ou a azedar, quer dizer, o que
vai para o lixo. Somos os lixeiros. Lixeiros, empregados e clientes, assim é
sempre a subir. E o dono? O dono é do grupo dos clientes, de vez em
quando vai comer a outros restaurantes para fazer comparações.
Riam todos, menos Himba, sempre fechada dentro dela. Kassule reparava
e calava rápido os risos dele. Himba agora andava descalça, as sandálias
tinham ficado perdidas na floresta. Os pés não estavam habituados ao
cimento quente ou à areia de cima da praia, igualmente a queimar quando o
sol batia furioso. Só mesmo a areia da noite ou a da beira da água eram
suportáveis. Não pensava no que lhe tinha acontecido, varria a memória
com uma mão aberta, como se pudesse. Lamentava a perda das sandálias, a
mãe tinha comprado numa loja do município, eram rasas, cor-de-rosa, boas
para o pé entrar. Como substituir as sandálias? O pensamento fixo nas
sandálias, a sua perda menor, impedia-a de ouvir muito das conversas dos
outros, era frequente terem de lhe repetir qualquer coisa.
Kassule uma vez ganhou coragem para perguntar uma dúvida que lhe
estava a fritar os miolos, como dizia, e que Himba também já se tinha posto.
Porquê Noé tinha de visitar os contentores, então os pais não levavam
comida para casa? O amigo deu uma gargalhada, na altura das farturas eu
não apareço por aqui. Mas julgam é sempre que eles ganham alguma coisa?
Quando não há almoço em casa, venho nas esquebras. A minha mãe é que
me mandou, já faz muito tempo, diz eu sou de muita comida, nasci em mês
de fome, meu nome devia ser Onjala. Claro, prefiro o mufete que ela faz, ou
mesmo o caldo de peixe. Mas nem sempre tem. Vocês pensam toda a gente
da Ilha é rica?
Os meninos se acumulando na porta de trás do restaurante muitas vezes
entravam em lutas. Primeiro se empurravam para ganhar melhor espaço,
depois voavam os insultos aos pais dos outros, finalmente os punhos saíam
da cómoda posição ao longo dos braços, se agitavam em movimentos
rápidos, a pancadaria generalizada. A presença de Noé impunha algum
respeito e o grupo sempre conseguia uns restos. Mas na maior parte dos
casos ele andava por outras bandas, colhendo mujimbos e aventuras, se
sabia agora porquê. Madia tentava substituir o ausente na liderança e defesa
do grupo, mas não era a mesma coisa. Lutava, gritava e rasgava caras
alheias, também apanhava murros e bofetadas. Não impunha o devido
respeito e no fim ficavam sempre muito atrás no contentor, se satisfazendo
com peles e ossos de galinha de aviário, mais fáceis de roer.
Um dia, uma senhora saiu de um carro grande e brilhante, carro de
mijagrosso, e se aproximou deles. Falou alto, queria uma menina para ir na
casa dela trabalhar.
– Tenho um quarto no quintal com uma cama, dou comida e alguma
roupa. De vez em quando posso dar um dinheirito, se se portar bem. Quem
quer?
Havia só quatro mocinhas, Himba, Madia e duas chegadas há pouco do
mato. Os rapazes ficaram parados, logo à partida não era o seu biznisse,
mas estavam prontos para apreciar a cena fora do vulgar. Ia sair pancada
entre as quatro? Espetáculo digno de se ver, sobretudo para quem estava
desocupado à espera dos ossos caírem no contentor. E pancada entre
meninas tinha muito mais piada que entre homens, coisa banal.
Madia foi a primeira a se aproximar da senhora, perguntou logo:
– E o trabalho é o quê?
– Tenho uma filha pequena, três anos. É para tomar conta dela. Quando
ela dorme ou eu estou em casa, ajudas a arrumar as coisas, varrer o quintal,
lavar a louça quando é demais para a minha empregada, esses trabalhos
pequenos…
Himba não mexera do sítio, perto de Kassule. Primeiro estava dentro dos
mambos dela, mas a voz da senhora era autoritária, parecia uma professora,
lembrou do pai, despertou para a cena se passando ali à frente, como de
manhã a acordar com uma voz grossa ou um choque aparatoso de carros.
– E a casa é aonde? – Voltou a perguntar Madia, como sempre desbocada
e sem rodeios.
– É na cidade. Não muito longe.
Madia se virou para trás, fitou Himba e as outras duas.
– Eu acho estou mais capaz de tratar de uma criança, a senhora é que
sabe. Tenho a quarta classe… Bem, a Himba, lá atrás, até tem mais, a sexta,
não é mesmo, Himba? Mas é mais nova… e fraquinha…
– Que idade tens?
– Fiz quinze agora – respondeu Madia, para assombro dos dois amigos
dela que sabiam ainda não ter completado essa idade. Verdade, porém, que
não lhe faltava muito, um ou dois meses, segundo tinha explicado um dia a
eles e a Noé.
– Para ser franca, prefiro aquela lá de trás, Himba, é esse o nome? Cara
triste, sossegada. Mais nova e com mais estudos…
Eram só vantagens a favor de Himba.
Kassule empurrou a amiga mais para a frente, aproveita, vai para uma boa
casa, dormir na cama, sempre é melhor do que aqui. Eram esses os segredos
que o kamba lhe sussurrava, mas não a convenciam muito. De qualquer
modo, deixou ser empurrada, até ficar perto da senhora. Muito bem vestida,
se via mais ao longe, mas agora sentia o perfume dela e admirou o cabelo
comprido e ondulado, como das mulheres brancas que vinham tomar banho
na praia. Extensões, pois claro, mas Himba ainda não conhecia, admirava
mesmo aquele cabelo de branca. Madia muxoxou de despeito, baixinho,
pela escolha da senhora, mas respeitou Himba. Deixou espaço.
– Então, menina, vens comigo? Vou te tratar bem, não sou como algumas
aí que exploram as crianças. Até podes estudar mais, se quiseres. Se fores
boa miúda, posso ajudar.
– O Kassule pode ir comigo?
– Quem é esse?
– É o meu amigo aqui.
A senhora teve um gesto de indignação ou repulsa, não era fácil
distinguir. Os olhos fixos na muleta gritavam.
– Claro que não. Só tenho lugar para uma menina.
– Então não quero.
Kassule insistiu, aproveita, Himba, não sejas parva. Eu cá me viro por
aqui. Ela negou com a cabeça. A senhora disse, trocista:
– A amizade é muito bonita, mas as pessoas espertas agarram bem as
oportunidades.
– Eu não sou esperta mesmo.
E Himba voltou para o sítio em baixo da árvore, desligando do assunto.
Kassule veio ter com ela, pronto a lhe passar um raspanete, do género és
mesmo burra, não queres escapar desta miséria, destes perigos, ainda não
aprendeste?
Mas calou, os olhos inundados de mar.
Madia não deixou escapar o momento de sorte. Disse para a senhora:
– Estas duas mal falam português, são umas matumbas. Eu já vivi muitos
anos numa casa e conheço a cidade. Porque não me experimenta? Se não
servir, me manda para aqui de novo, sem makas nem kijilas.
– És saliente demais, não aprecio o género. Mas, vendo bem, posso tentar.
Se me arrepender ponho-te logo a andar, vê lá. Vamos, entra no carro.
Madia se virou para os dois amigos, primeiro estendeu os dois braços
para o lado, talvez a pedir desculpa, talvez a dizer estão a ver como se faz?,
lançou depois um adeus, venho vos visitar sempre e trago coisas, prometo.
Assim Madia desapareceu da praia e desta estória.
Promessas nem sempre são para cumprir.
Himba no entanto sempre achou que talvez Madia tenha tentado
encontrá-los, sem êxito. Noé também achava isso. Estar no sítio errado ou
no momento errado quando ela vinha procurar os amigos… Ou então era só
o orgulho ferido dele a arranjar desculpas.
Ninguém gosta de ser esquecido.
As pessoas iam e vinham, uns apareciam, outros nunca mais. Para
substituir Madia, surgiu Luemba, uma menina de oito anos, mas tão
pequena e magrinha que parecia ter seis. Com pesadelos nos olhos, cabelo
todo duro de terra misturada na trunfa de muito tempo sem ser
desencarapinhada, fios de remendos como vestuário. Himba lhe viu de
costas, com medo de molhar os pés no mar, o coração bateu, podia ser uma
das suas irmãs. Milagres existem. Saiu da escuridão em que a tinham
mergulhado, correu para a menina, raio de luz, lhe pegou no braço. Ela
virou, mas afinal os milagres só valiam para os sortudos de sempre. Não a
conhecia de lado nenhum. A menina aceitou a mão dela no braço, falou
numa vozinha branda:
– Me ajudas a entrar no mar? Tenho medo.
Nesse dia as ondas estavam maiores que habitualmente. Himba, ela
própria, ainda não banhara e já era quase a hora de se pôr no lugar de
sempre, perto do restaurante, esperando os restos. Não tinha se aventurado,
ao contrário de Kassule, a quem as ondas grandes não atemorizavam,
mesmo sem uma perna. Talvez fosse mesmo o tempo de entrar, para ajudar
a menina, que precisava com urgência de banho. Assim, esperou que
houvesse uma ligeira calmaria e mergulhou com ela no mar, calada, pois
não lhe apetecia o esforço de falar. Bem bastava ter de lutar pela comida,
sem Noé para ajudar. Esfregou um pouco o cabelo da miúda, notando a
água à volta se tornar castanha, tanta era a terra acumulada. Por onde andara
aquela pequena? Bem, um dia iria saber, todos têm uma estória e sentem a
necessidade de a contar. Não era o caso agora, apenas se banharem. A
menina gritou de medo quando viu uma onda maior avançar para a praia,
mas Himba, já com mais treino do que antes, mergulhou com ela no
momento certo e deixou a onda passar. A menina riu para Himba, afinal era
assim fácil?
De repente, se libertou.
Como quando ela dormia em casa e de súbito o despertador dos pais
tocava, acordando toda a gente. Um despertar rápido e uma pessoa,
enroscada num sonho, parece saltar do sítio onde dorme, enfrentando uma
realidade diferente. Isso aconteceu com a miúda, que sabia nadar, mas
estava intimidada pelas ondas. Passaram a zona de arrebentação, não
tinham pé, estavam entregues a si próprias, rindo a menina, ela séria mas
também gozando o momento.
E lhe apeteceu falar.
– Como te chamas?
– Luemba.
– Qual é a tua terra?
– Lépi.
– Haka, perto da minha – disse Himba.
– Hi, perto mesmo?
– Nem tanto. É perto, sim.
Riram as duas. Mal sabiam elas, nem Himba, pois o pai talvez
desconhecesse ou lhe faltou tempo de lhe contar, mas as duas terras tinham
pertencido ao mesmo sobado grande, jagado, reino ou lá o que queiram
chamar àquelas montanhas a furar o céu, os imensos rochedos de centenas
de metros quase impossíveis de escalar, o ar puro e seco, cheirando a flores
e troncos, o verde cobrindo as serras, a combinar com os castanhos e negros
e cinzentos e ocre e todas as cores possíveis daqueles sítios, região antes
conhecida como Tchiaka, a mítica.
As ondas embalavam-nas e elas também as cavalgavam até mais perto da
arrebentação, mas depois se deixavam levar para mais longe, até apanharem
boleia numa maior, regressando onde tinham pé. Kassule gritou da praia, o
pitéu vai sair daqui a pouco, venham.
– Vamos, Luemba, vamos pitar.
Foi um pouco mais difícil sair, pois aí precisavam nadar mesmo,
aproveitando a força de uma onda e fugir logo da ressaca. Riram em terra,
se dando as mãos. A miúda estava um pouco mais limpa, mas devia se
esfregar. Agora não havia tempo, tinham de avançar para a sombra da
árvore, a casuarina velha que sempre os abrigava.
Nesse dia Noé estava presente, arranjavam proteção e puderam apanhar o
suficiente. Para a menina, famélica de muitos dias, foi parecido com um
Natal.
– Temos uma nova amiga? – perguntou Noé, apontando para ela, quando
tinham acabado de comer e estavam encostados no princípio dos blocos de
proteção, ainda à sombra da casuarina velha.
– Apareceu agora – disse Kassule. – A Himba é que a descobriu.
Esta parecia ter finalmente saído do pesadelo. Falou:
– Estava a precisar de banho mas tinha medo das ondas. Eu mergulhei
com ela.
– A Himba agora é uma grande nadadora – disse Kassule. – Antes só
gostava de rio.
– Já me habituei ao sal do mar – respondeu ela.
Kassule e Noé trocaram um olhar. Há tempos que ela não participava de
nenhuma conversa, sempre alheada na sua dor. Foi por causa do
aparecimento de Luemba? Parecia a Kassule, sempre atento à amiga.
– E tu, já tinhas entrado no mar? – perguntou Noé para a menina.
– Aprendi a nadar no rio. No Lépi…
– Onde é que é isso? – perguntou Kassule.
– Na minha região, mas outro município – adiantou Himba.
– Mais a sul.
– Mas em Benguela tomava banho no mar – acrescentou Luemba, para
admiração de todos.
Afinal a miúda era viajada. Todos conheciam de nome essa cidade do Sul
que muitos comparavam a Luanda antiga.
– É verdade, nunca te perguntei – disse Kassule para Noé. – E tu de onde
és? Do Planalto eu sei. Mas de que sítio?
– Andulo. Um kimbo perto de lá. Mas vim na barriga da minha mãe. Não
me perguntem como é, porque não me lembro de nada.
Os quatro eram pois do famoso Planalto Central, embora Kassule fosse da
parte norte, onde já a língua umbundo era menos utilizada tradicionalmente.
Os quatro eram da geração que se comunicava quase exclusivamente em
português, embora percebendo ainda parte das línguas das respetivas
regiões. Com a estadia prolongada em Luanda, era difícil reterem esse
conhecimento, exceto cumprimentos, insultos ou alguma expressão mais
habitual. Até mesmo a nasalização típica do umbundo desapareceria, como
era o caso de Noé, falando já como um kaluanda. Ou Kassule. Ou Himba ou
Luemba que já não a tiveram.
– E a menina tem nome? – perguntou Kassule, imitando as maneiras da
senhora que levara Madia, o que fez Himba sorrir.
– Luemba.
– Bonito nome – aprovou Noé. – Parece já entraste no grupo. Ou
conheces outros?
Ela só abanou a cabeça. Muito tímida para se integrar num grupo por sua
iniciativa. Himba achava, eram parecidas. Tinha de a proteger. Não sabia
era como. E os bandos não escolhiam idades.
Foram andar as duas à beira-mar, olhando os banhistas, cada vez mais
numerosos à medida que a tarde avançava. Havia muitos estrangeiros,
embora, como Himba explicava, os estrangeiros preferissem praias onde
não havia refugiados nem pescadores, sobretudo lá mais para o fundo, onde
predominavam restaurantes com barreiras, guardas, também sombrinhas e
camas.
– Camas?
– É. São assim umas cadeiras que se podem inclinar muito para trás e as
pessoas ficam deitadas. São de alugar, tens de pagar muito. O Kassule é que
sabe essas coisas todas, me mostrou. Mas as pessoas baladas preferem ir
para aí, porque ninguém lhes rouba nada e podem ser servidas de bebidas e
comidas mesmo na praia, um luxo.
Quando achou que já tinham conversado bastante, Himba achou ser o
momento de ir sabendo coisas sobre o passado de Luemba. Fez a pergunta
sacramental, como vieste parar a Luanda, sobretudo como vieste parar à
Ilha de Luanda? E Luemba contou uma estória parecida com muitas que
Himba ouvia ou iria mais tarde ouvir, que os pais a mandaram para
Benguela, cidade mais segura, no litoral onde não havia guerra, viver na
casa de uma tia, irmã mais velha do pai, com família numerosa mas que a
aceitou de bom coração, era mais uma boca, mais preocupações, porém o
sangue conta acima das dificuldades da vida, pôs a menina na escola, ela
estudou dois anos, até que apareceu lá uma prima do marido da tia dela que
disse, posso te levar para Luanda, lá é muito melhor e sempre alivia a carga
familiar. O marido aceitou logo mas a tia não queria, o meu irmão mandou
para eu tratar dela, fica mesmo aqui que está a estudar bem, vida calma, e a
menina concordava com a tia, em Benguela se sentia à vontade e também
era mais perto dos pais, um dia podia voltar lá para lhes visitar, matar as
saudades pesadas, bastava a guerra acalmar um pouco, mas a Dona Fifi era
insistente, vou tratar dela com todos os cuidados e ela pode me ajudar em
muitas coisas, não tenho filhos infelizmente, fica como filha para mim, sou
eu que peço e é um favor que me faz, não sou eu que faço, insistiu um dia,
insistiu no dia seguinte, disse fico mais tempo até convencer a tua tia, enfim
a senhora concordou, pronto, família do marido também era família dela,
devia de confiar, entregou uma chorosa Luemba à prima do marido.
Luemba apanhou grande susto com o avião, no entanto chegaram em
Luanda, Dona Fifi muito contente até lhe comprou roupa para viajar, e
vieste mesmo de avião, perguntou Himba, vim mesmo, cheia de medo o
tempo todo, por sorte não durou muito. Instalada em Luanda, nada de
escola. Falou com Dona Fifi e a escola? Que tinha passado o tempo das
inscrições, só no próximo ano. E começaram os gritos e os maus tratos,
afinal tinha de limpar e varrer a casa toda, passar pano molhado no chão,
lavar roupa para uma mulher engomar tudo uma vez por semana, a comida
a ser dada cada vez com mais dificuldade e recriminações, quem não sabe
bumbar não come, mas ela era uma menina pequena, nunca tinha trabalhado
assim, andava só na escola e em casa ajudava as mais velhas, mas era só
ajudar, não fazer os trabalhos pesados, então lavar lençóis é trabalho de
criança pequena? E a Dona Fifi afinal não tinha um marido, tinha era vários
amantes, um cada dia da semana, nada como tinha contado em Benguela,
um casamento feliz com vestido de noiva e limusina para lhes levar na
igreja, tudo mentira, vivia dos senhores com dinheiro, como tinha explicado
a vizinha do lado e que engraçara com Luemba, até que um dia apareceram
homens de voz grossa em casa, a menina estava a descascar batatas na
cozinha, não viu mas ouviu tudo, eles a ameaçarem, se não pagas o que nos
deves vamos dar uma carga de porrada que nem te vais levantar mais, Fifi,
te partimos mesmo pernas, sua ordinária, ladra, filha da puta e muitos mais
nomes que Luemba nem quer repetir, a mulher só chorava e gritava até eles
irem embora, prometeu pagar tudo no próximo mês, me deixem até ao
próximo mês que eu arranjo o dinheiro, um cliente me está a dever muito de
um negócio, até que eles foram embora sempre nas ameaças e ela se
lamentava a berrar sozinha que era muito dinheiro, onde vou arranjar isso
tudo, já não tenho amigos que me avancem tal soma, era um dinheiro que
pedira emprestado a antigos clientes para comprar um carro mas o carro foi
roubado logo que comprado e ela nem tinha dinheiro para lhes pagar o
kilapi nem carro. O carro ia servir para um negócio de táxi, parecia, um
negócio seguro, até já tinha motorista, um moço conhecido de boa família,
responsável, devia ser dinheiro garantido todos os dias, o correspondente a
quinhentos dólares, o resto ficava para o motorista, mas ele pagava as
reparações, para ter cuidado com o carro e não o javalizar logo no primeiro
mês, mas não houve negócio nenhum, o carro foi logo roubado. Frustrada
por ser obrigada a entregar a casa, ou parte dela, ou então fugir para um
sítio onde não lhe encontrassem, embora acreditasse pouco, eram parte de
uma quadrilha perigosa e com muitos tentáculos pela cidade, também talvez
mantendo alianças com algumas autoridades competentes, acedendo a todos
os dados, percorreu a casa numa cólera misturada ao terror, olhando para
todos os lados como uma fera encurralada, até encontrar Luemba na
cozinha, tremendo pelo futuro. Descarregou todas as fúrias na menina, o
que lhe ameaçaram ela fez na pequena, porrada por tudo e por nada, um dia
lhe arrastou pelos cabelos que a vizinha tinha entrançado muito bem, pois
gostas das tuas tranças, não é, estás vaidosa com as tranças que aquela puta
invejosa te fez, sua matumba e mangonheira, te vou mostrar como se ensina
quem não sabe trabalhar, e lhe enterrou a cabeça num canteiro do quintal,
desfazendo as tranças e esfregando terra de estrume que ia servir para
plantas novas do jardim, tudo com muitas chapadas e pontapés, até que
Luemba fugiu, fugiu, se perdeu por Luanda que mal conhecia, mas também
não queria voltar naquela casa amaldiçoada, antes ficar perdida, andou,
dormiu na rua, andou mais, chegou à Ilha e pronto…
Uma estória como muitas.
– Sabes o endereço dos teus pais? Ou da tua tia de Benguela? Podemos
escrever uma carta…
Luemba muxoxou. Afinal era pequena mas não ingénua.
– Xê, a carta nunca que chega no Lépi, é zona de guerra… São outros que
mandam lá.
– Eu sei, lá não deve dar… mas Benguela… a carta vai de avião…
A esperança entrou afinal no coração da menina. Sabia o endereço da tia,
claro, uma carta podia chegar. Mas como arranjar papel e envelope e
selo…
– O Noé ou o Kassule podem ajudar – disse Himba. – Eles são
despachados.
Voltaram ao ponto de refúgio. Noé já tinha ido embora. Mas Kassule
estava. Onde arranjar papel e envelope? E dinheiro para ir no Correio
postar? Complicado.
– Vamos resolver – disse ele. – Vou pensar como fazer.
Não ganharam jantar e dormiram com fome. O medo crescia pois era já
habitual haver mais de vinte miúdos à espera dos restos, a concorrência se
tornara mais feroz, sobretudo à noite, pois a escuridão conferia seriedade às
ameaças e à violência.
No dia seguinte, Kassule tinha a solução.
– Himba, vamos os três procurar a senhora boa das trancinhas. Este é um
caso importante, ela vai nos aceitar.
A amiga concordou. E os três partiram para casa da senhora. Ainda era
um bocado de caminho, mas se fazia bem de manhã, quando o chão não
estava muito quente. Kassule gozava com Himba, a menina tem os pés
muito fracos, queimam logo, a menina não aguenta o calor. Olhem aqui,
esse meu único pé não precisa de sapato, pode pisar em brasas, nem sinto o
calorzinho… Brincava com a obsessão de Himba, chinelos ou sandálias,
qualquer coisa que pudesse calçar. Sempre atenta no chão e procurava nos
contentores de lixo, com sorte podia encontrar uns sapatos velhos e podres,
para ela seriam de princesa. Nesse aspeto Luemba estava melhor, saiu de
casa como se encontrava vestida e por acaso naquele momento usava
sandálias, não as suas melhores, mas as de andar sempre. Um dia podia
recuperar os tesouros deixados com Dona Fifi? Se a prima do outro não
tinha já vendido tudo…
Encontraram a senhora debaixo da mesma árvore, a figueira grande que
dava muita sombra às casas gémeas e ao espaço vago em frente. Sentada
num banquinho, fazendo tranças a uma das filhas. Himba achou que seria
uma filha, mas não conhecia a família e não era a mesma miúda da primeira
vez, esta era mais velha. A senhora reconheceu os meninos, também era
fácil, quem esquecia Kassule, agarrado à muleta improvisada? Mas foi
Himba que se aproximou mais, vencida a timidez natural, e falou, depois de
cumprimentar.
– Senhora… desculpe, não queríamos incomodar, mas temos um
problema e como disse que se fosse coisa séria podia ajudar…
– Sim, lembro… E trazem uma companheira mais pequena.
– Pois, o problema é esse. Se tem um momento eu posso explicar…
A senhora assentiu, mandou vir bancos, a mesma Luzia apareceu com os
assentos e nem esperou ordens, voltou depois com água numa caneca
grande, toda a gente tem sempre sede. Himba entretanto foi contando a
estória de Luemba. Só foi interrompida uma vez pela senhora, quando lhe
contou que a Dona Fifi insistia em trazer a menina para Luanda…
– Já sei o que vais contar. Tratou-a mal e fez dela uma espécie de escrava.
Conheço o género.
Esse era um episódio mais à frente, Himba ainda estava na parte de
Benguela, já a senhora adiantara toda a novela. Mesmo assim, fez questão
em explicar o já adivinhado. No fim, a senhora disse:
– Essas vadias da cidade fazem sempre isso. Se dão ares de grandes
senhoras, viajadas, casadas com homens poderosos, mas são o lixo do
mundo. Não querem pagar a empregadas para lhes tratarem das casas, então
aproveitam a desgraça dos outros. Umas sanguessugas. Ainda dizem que a
escravatura já acabou. Mentira! Pode ter acabado no mundo, mas aqui
estamos no mundo?
Eram pensamentos demasiado complicados para os meninos manejarem,
mas entendiam perfeitamente o que ela queria dizer. E só agradeciam a
solidariedade da senhora das trancinhas.
– Para nós os dois é mais complicado porque perdemos a família – falou
pela primeira vez Kassule. – Mas a Luemba sabe onde mora a tia dela em
Benguela, estudou lá. Pode lhe escrever uma carta a explicar a situação. E
esperar a ajuda da família…
– Claro, claro – disse a senhora. – Desculpa que te diga, minha filha, mas
foi grande falta de responsabilidade da tua tia. Como é que te entrega a uma
vadia qualquer…
– É prima do marido da tia – disse Luemba.
– E depois? Não é da tua família, ela nunca devia aceitar. Por isso tem
mesmo de te vir buscar. Escreve, é o conselho que te dou, escreve mesmo
uma carta a contar tudo.
– Pois, por isso viemos falar com a senhora – disse Himba. – Não temos
papel nem caneta nem dinheiro para o selo…
– Ah! Fizeram bem. Não custa nada arranjar isso. Mais difícil era arranjar
dinheiro para pagar o carro da Fifi…
Deu uma gargalhada que despertou a canuca que tinha entre os joelhos,
dormitando enquanto ela entrançava o cabelo. Os meninos também riram,
boa piada.
Quem diz que gente generosa não tem humor?
Luzia trouxe pão e chá, depois a senhora foi desencantar papel, caneta e
envelope, acabaram todos à volta da mesa na sala, enquanto Himba, a que
tinha melhor letra e a sexta classe, escrevia a carta mais longa da sua vida.
A senhora ficou com o envelope, eu depois mando o meu filho Mariano
levar no correio, amanhã, pois hoje ele está no serviço e vem tarde. Na
carta, por sugestão da senhora, Himba escreveu que o contacto era a própria
que afinal ficaram sabendo se chamar Isabel Kimba, ou tia Isabel como toda
a gente conhecia no bairro, e bastava pôr assim mesmo no envelope e
remeter para a Ilha de Luanda que a carta chegaria a ela. De vez em quando
passem aqui para ver se vem resposta, mas não vale a pena vir para a
semana, os Correios são muito demorados e também não garanto, muitas
cartas se perdem, toda a gente conhece. E talvez a tua família demore um
bocado até saber o que fazer, como responder… Se daqui a uns tempos não
houver resposta, escrevemos outra vez.
Os meninos explicaram em que praia costumavam estar, embora não
fosse um ponto de encontro muito certo, pois podiam ter de mudar, sabe
como é, explicou Kassule que nessas questões geográficas estava mais à
vontade, a Ilha é longa e os restaurantes também mudam, e há cada vez
mais meninos na rua e na praia, mas passamos daqui a uns tempos, sim.
Duas semanas está bom? Era um tempo um pouco apertado, mas a senhora
sorriu e concordou.
Enquanto voltavam à sua zona, Luemba tinha um sorriso na boca.
Himba, essa, voltava a acreditar em milagres.
6

Veio o dia do jantar na casa dos pais de Solferino.


Como este prometera, encomendou enormes doses do arroz de peixe e
marisco com toque de loengos. Nessa tarde, a cozinha do restaurante
trabalhou como nunca, porém Sofia prometeu uma compensação monetária
ao pessoal, mesmo sem o consentimento da sócia principal, sabia ser justo e
Dona Ester aceitaria de bom grado. A encomenda era tão grande que
mesmo se o restaurante fechasse nessa noite o lucro seria o de três dias. E o
restaurante não ficaria vazio, a clientela tinha aumentado ultimamente,
talvez por causa do arroz ou por o restaurante ter sido referido nas redes
sociais. Vinha gente até da parte tradicional de Luanda para experimentar o
afamado restaurante caseiro que servia bem. Salomé e Tiago tinham uma
rede muito grande de amigos e admiradores, os quais partilharam as
informações com outros, que as replicavam para mais alguns, tendo
certamente a notícia chegado a sítios tão improváveis como o Japão,
Jutlândia ou Sopracá, no Brasil. Veio um carro da casa de Solferino no
princípio da noite recolher os panelões de arroz, o qual se manteria quente
no bufete, prometeram a Sofia. Ela tinha tempo de gerir o serviço de jantar
e mudar de roupa na casa de arrumos para aproveitar a boleia de Salomé,
para isso já tinha trazido consigo o vestido e sapatos adequados. Alfredo
estaria ausente, voltara para uma das sondas. Condição de Sofia, às duas da
manhã levavam-na a casa. Condição de bom grado aceite, eu mesma te levo
e depois bazo, não posso ficar toda a noite como os outros, primeiro porque
o Alfredo não está, depois porque… Hesitou e Sofia não dizia nada, à
espera da conclusão.
– Sabes? Estou grávida.
– Uau! Parabéns.
Sofia lhe abraçou instintivamente, mas a outra se afastou um pouco,
relutante.
– Que se passa? Não estás contente?
– Acho que sou nova demais, preciso de crescer. Devíamos viver ainda
um pouco, aproveitar a juventude. Depois vêm os filhos e ficamos
limitados. Melhor, eu fico limitada…
– Ora, há sempre soluções…
– Nem sempre. Ainda são poucas semanas, se quiser posso abortar. Mas
acho, vou guardá-lo. Não por razões religiosas ou morais, não, mas já que
me faltou o juízo…
Sofia não tinha experiência de vida, comparada com a outra, apesar de ser
mais velha que Salomé, já ultrapassara os trinta anos há uns tempos. Por
isso lhe faltavam palavras, conselhos ou perguntas. Embora notasse uma
falha da argumentação da amiga, então não era mesmo por causas morais,
castigo por uma falta qualquer? Preferiu desistir desse caminho e arriscou:
– Não tomavas precauções?
– Deixei de o fazer há tempos. Controlávamos… Era uma brincadeira
nossa, arriscar. Tenho em casa a pílula do dia seguinte. Houve uma noite de
bebedeira, descontrole… No dia seguinte também não tomei a pílula, disse
ontem não aconteceu nada demais. Uma estupidez, sei, nem precisas de
dizer. Afinal aconteceu. Por isso agora fica mesmo assim, bem feito!
Algo não batia certo, continuava a achar Sofia. Uma quantidade incrível
de erros que aqueles dois eram demasiado informados para não terem
cometido. Mas que sabia ela da vida dos outros? Só os conhecia das
conversas no restaurante, muitas vezes gritadas e aos arrancos,
constantemente interrompidas. Dava mesmo para avaliar a dose de loucura
das pessoas em noite de bebida e droga? Sim, não dava para ignorar, eles
consumiam de vez em quando algum desses venenos, havia alusões em
certas frases. Nem queria imaginar como acordavam.
– E Alfredo?
– Está satisfeito. Não vai sobrar muito para ele… Não afeta a sua
brilhante carreira profissional.
Sofia achava que tinha de dizer alguma coisa de inteligente, dever de
amizade, pois notava a amargura na voz da amiga.
– Olha, se me permites uma opinião… – foi encorajada por um gesto da
outra, avança. – Eu não tenho grande conhecimento dessas coisas, mas
penso… se não tens vontade de ter um filho é melhor cortar desde já. Se o
tens para te castigares por um erro, vais pagar mais tarde dez vezes pelo
erro, mas o teu filho vai pagar mais. Vi muita criança abandonada ou
detestada pelos pais. Às vezes sem eles saberem a verdadeira razão…
Talvez porque não foram desejadas naquele momento ou vieram mesmo
contra a vontade dos pais. Se vingam nas crianças que não têm culpa
nenhuma…
– Eu nunca trataria mal o meu filho só porque não o planeei…
O tom tinha sido duro, cortante, insólito na doce Salomé.
– Pronto, desculpa… Foi só… uma ideia estúpida.
No carro, na noite do jantar, enquanto conduzia para casa de Solferino,
Salomé voltou às confidências.
– Se ficasses até às quatro da manhã hoje ias perceber melhor porque
algumas coisas que não são planeadas acontecem. Como te prometi, vamos
sair cedo. Mesmo assim dará para teres ideia. A partir de certa altura
ninguém sabe muito bem o que faz, há muita adrenalina no ar e outras
hormonas, percebes? Sobretudo dopamina…
Sofia confirmou com a cabeça, embora não soubesse o que era dopamina,
percebendo no entanto a ideia geral. Depois disse:
– Imagino.
– Pois, muita carga no ar. Só gente de ferro resiste…
Queria contar mais, se entendia. Mas também hesitava, como pôr os seus
segredos nas mãos de uma quase estranha, ainda por cima desconhecedora
do seu meio social? Talvez por isso mesmo, é mais fácil confessar
vergonhas a quem não se conhece bem, melhor ainda se for um
desconhecido de todo, um padre escondido no escuro de um confessionário,
uma pessoa qualquer que se não identifica ao cruzar numa rua, alguém que
nunca mexeu num computador ou tirou uma selfie. Sofia não perguntou
nada, não pressionou. Se ela quisesse falar, não a impediria, ouviria com
toda a atenção e boa vontade, mas nunca podia arrancar segredos.
Bem lhe bastavam os seus, pesados.
Tinham chegado, já havia carros estacionados à frente e na rua, tiveram
de procurar um bom sítio, perto da mansão, pois de facto era disso mesmo
que se tratava. Sofia nunca imaginou que podia ser uma casa tão grande,
rodeada por um jardim com tamanho de campo de futebol na parte visível
pois devia continuar lá para trás, piscina potentemente iluminada mas só
vista depois de penetrarem nos enormes portões onde se postavam dois
seguranças amadores de halteres e luta livre, caras fechadas, olhos
inquisitivos, desconfiando da própria mãe. Salomé era conhecida,
deixaram-nas entrar sem perguntas. Andaram entre duas filas de arbustos
bem cortados e à direita chocaram com as luzes potentes que iluminavam a
piscina enorme, com repuxos num dos lados. A água saía com várias cores.
Efeitos de ótica ou corantes? Preferiu não perguntar, fingiu achar natural
água colorida em repuxos. Muita gente elegante à volta da piscina, uns
sentados, outros ainda de pé, copo na mão. Predominava a roupa branca,
como num culto. A vivenda, do lado esquerdo, brilhava com centenas de
espelhos e mobílias de cristal junto de metal prateado. Sofia treinara antes
ao espelho, por isso conseguiu compor um sorriso bem curto de espanto,
nada que desse a perceber o seu deslumbramento de menina crescida pobre
pela primeira vez entrando num palácio de fadas.
Foram saudadas pelo dono da casa, Solferino, todo trajado de branco,
sapatos inclusive, sem meias. A camisa estava ligeiramente aberta por baixo
do casaco leve, o que lhe dava um ar de estudada negligência. Como eles
apareciam nas televisões e nas revistas de fofocas, pensou a visitante.
– Salomé, estás em casa. Guia a Sofia, por favor. Depois vou fazer
algumas apresentações, a grande maioria desta gente não conhece o teu
restaurante. Mas só depois de comermos.
Sofia intuiu porquê. Será que ele vai mesmo pôr o arroz em destaque? E
depois mostrá-la a algumas pessoas, se querem comer bem, façam como
nós que todas as semanas vamos ao restaurante dela. Seria bom, aumentava
a clientela. Mas esqueceu logo o assunto, inebriada com os rostos
conhecidos que encontrava, cantores, atores de telenovela, misses e
modelos, desportistas, tudo gente mostrando diamantes e ouros, vestidos
compridos muito caros, fatos masculinos de marca, sorrisos e beijinhos,
conversa ligeira como convém nesses ambientes. Um ou outro parzinho de
mãos dadas bordejando a piscina. Lhes serviram champanhe francês, é bom
não abusares, aconselhou Salomé, o mesmo para ti, replicou Sofia.
Sorriram, brindaram.
Cada uma com sua alusão.
O jardim estava tão bem tratado que nem uma palmeira tinha uma folha
um pouco acastanhada ou nenhum canteiro tinha um fino capim a brotar
junto das plantas. Quantos jardineiros devem ter para tratar destas plantas?,
se interrogou Sofia, sem ousar fazer a pergunta em voz alta. Sabia, havia
coisas que se não diziam junto daquele tipo de gente, muito simpáticos mas
sempre à espera para ostentarem a sua superioridade. Salomé era bruxa, ou
os olhos da outra falavam demais, pois pareceu adivinhar pensamentos.
– Não te deixes enganar pelas aparências. Há aqui de tudo, gente adulta
jovem que merece estar onde está, uns que estudaram e com valor mesmo,
outros têm apenas pais com dinheiro e há uns tantos que estão na escada
procurando subir, talvez a maioria. Os atores que andam por aí não têm
onde cair mortos, salvo um ou outro que consegue ganhar dinheiro com uns
vídeos de publicidade num jornal ou televisão, o que pode durar pouco. O
cinema ou as novelas não dão para muito. As misses andam à procura de
alguém que as sustente, mas sabem, não encontram aqui. Vais ver, ficam um
pouco pelo divertimento e vão embora. Precisam de homens mais velhos,
que já controlam as fortunas. Os desportistas são famosos, relativamente,
mas é só na rua e nos musseques. Ganham bem mas não têm fortuna. Nem a
sorte de serem contratados para o estrangeiro. Dão um certo brilho popular
à festa, por isso são convidados, até se lesionarem ou passarem de moda.
Aquele apresentador ali é conhecido porque trabalha na televisão. É
conhecido, parado na rua para assinar um autógrafo num papel ou caderno,
mas não pesa nada aqui. Etc. E muita desta malta sabe cumprimentar e fazer
ares amáveis e sofisticados mas se começares uma conversa vais logo ver
que não passam de banalidades, falhos de cultura e curiosidade de aprender.
Só sorrisos treinados. Boa, gostei desta, sem vaidade, gente de sorrisos
treinados…
– Também treinei um sorriso para hoje. Notas?
– Sim – lançou uma gargalhada que fez algumas cabeças rodarem na
direção delas. – Estás diferente. Mas és tu. Não tens dinheiro para gastar à
toa e por isso o teu vestido é bonito mas simples. Passa muito bem nesta
situação, foi escolhido com gosto, escusas de te preocupar. E estás bem
arranjada sem ser pretensiosa. Aposto que vais atrair muitas atenções de
homens. Até de algumas mulheres, cuidado com elas, são mais
competitivas…
Andaram por ali, Salomé cumprimentando algumas pessoas com a
cabeça, sem nunca apertar a mão ou dar um beijo. Sofia estranhou, pois via
toda a gente a se abraçar e beijar como velhos amigos.
É alguma mensagem que passas, a princesa que se digna apenas fazer uma
ligeira vénia aos seus vassalos babados?
– Sofia, que pergunta de filme antigo… E linguagem de livro de
raparigas, como a minha mãe lia… Estou a fazer um papel de mulher
madura junto de um bando de miúdos alienados. Apesar de ser mais nova
que a maior parte desta gente, sou das poucas casadas e grávida. Ninguém
sabe nem tem de saber. Mas ando por aqui como uma rainha no seu jardim,
sim, é verdade, pose estudada para épater le bourgeois, como dizem os
franceses.
– É isso mesmo que parece.
– Pois, ensaiaste um sorriso. Eu ensaiei esta pose. Que tal?
Desataram a rir e acabaram com o líquido das taças. Mas Salomé não se
safaria de companhia por muito tempo. Primeiro foi Segismundo que se
juntou a elas. Segismundo era frequentador do restaurante, muito versado
em poesia, ele próprio se apresentava como poeta. Numa das últimas
reuniões serviu de alvo para a estiga dos amigos, porque só publicaria um
livro se o pai desse dinheiro a uma editora, o que o grupo sabia ser prática
cada vez mais comum entre os ricaços procurando afirmação intelectual.
Ele aceitou com bonomia a brincadeira, pronto, vou dizer mais o quê?, sou
mesmo poeta, embora tenha escrito só quatro poemas, os quatro recusados
pelas donas a quem os dediquei. Não tenho culpa de me apaixonar por
gente inculta, ignorante da grande poesia, só conhecem a do kuduro. O papá
pode ainda guardar o dinheiro, não preciso de comprar um editor. Mas
querem que me apresente como doutor? Sim, sou. Licenciado, aqui vale
como doutor. Licenciado em letras. Não é mesmo melhor dizer logo, sou
poeta? Ainda iam perguntar o que faz um doutor em letras e não vou
aldrabar dizendo que dou aulas, tarefa demasiado aborrecida e seria falso,
aliás. Assim, ninguém pergunta mais nada, ando entre árvores ou entre
carros compondo poemas, tenho um caderninho onde aponto ideias e
palavras. Qual a maka? As pessoas gostam de saber. Devem pensar, eis um
tipo original, olham para mim e imaginam um gajo a saltar para uma
cadeira e fazer gestos largos, declamando versos.
Sofia achava graça a Segismundo. Seria talvez o mais simples entre o
grupo de amigos, apesar da apresentação pretensiosa, sou poeta,
apresentação que miúdos de dezoito anos não tinham vergonha de fazer.
Tinha graça porque viviam o tempo em que tentavam matar a poesia
existente na vida. Só isso.
Segismundo lhe tomou o braço e depois apareceu um outro rapaz, que
Salomé apresentou como Kaleb, o qual se virou para Sofia e disse, antes
que pense que sou árabe ou maliano, esclareço desde já que vim de Malanje
e o meu pai foi à Bíblia procurar um nome quando nasci e escolheu esse,
sabe porquê?, porque em hebreu significa cachorro, o que me leva hoje a
perguntar que raiva me tinha ele para me presentear com tal nome bíblico.
– Felizmente ninguém sabe o significado – acrescentou com uma
gargalhada.
– Agora vão sabendo porque contas sempre essa estória – disse
Segismundo.
– Verdadeira. O meu pai nunca explicou a razão da escolha além de dizer,
li e gostei do som. Mas adivinho outras intenções. Devia estar muito
raivoso por eu ter nascido. Serei um bastardo?
Sofia percebeu o gesto de defesa instintivo de Salomé. Mas esta
continuou calada, contemplando o vazio da frente.
– É um nome muito bonito – disse Sofia. Estava a ser absolutamente
sincera, se percebia.
– Não sei se o kota teve algum remorso, porque quis mudar-mo, já eu
tinha alguma idade, no tempo era fácil mudar, se queria um nome bíblico
punha Samuel ou Golias ou Ismael. Mas eu já estava habituado a este e não
aceitei, fui eu mesmo que quis manter o nome. Um dia li não lembro onde,
podia significar fiel como um cão. Fiel não é mau para identidade, mas
sempre aparece o cão ou cachorro. Eu quis manter o nome. Assim lhe
lembro sempre que em algum momento ele me teve raiva.
– Nunca insististe com ele para se explicar a sério? – perguntou Sofia,
evitando olhar para a amiga.
– Para quê? Obrigá-lo a mentir ainda mais? Tudo bem, já lhe perdoei.
Os outros riram, era mais fácil para evitar veredas perigosas, por isso
Sofia também riu. Só Salomé se manteve retraída, interessada no que ia
acontecendo à sua volta ou a fingir desprendimento com conversas já
conhecidas. Passou um empregado com taças borbulhantes e todos se
serviram.
– Mas o Solferino quer embebedar-nos com champanhe? – perguntou
Segismundo. – Bebo mais um e depois passo para outras coisas mais sérias,
isto dá uma ressaca daquelas.
– Tudo dá ressaca – disse Salomé.
– Isto dá tanta ressaca como a poesia – disse Segismundo, provocando a
sorte.
– Vodca não dá ressaca – disse Kaleb.
– Os novos gins também não, segundo dizem, não sou muito entendida –
continuou Sofia.
– Estão a falar com uma perita em bebidas e comidas, embora modesta –
disse Segismundo. – Kaleb, aqui a Sofia dirige o melhor restaurante da
cidade de cá. Talvez no lado tradicional haja melhores, há por lá uns bons,
mas deste lado…
Procurando mudar rapidamente a conversa, nem percebeu porquê, Sofia
perguntou ao parceiro novo:
– O que é que fazes na vida, Kaleb? Se me permites perguntar…
– Trabalho. Neste grupo todo sou dos poucos que pode dizer, trabalho.
Verdade ou mentira, reconheçam vocês aí – e se virou para os amigos, os
quais aquiesceram com a cabeça. – Sou biólogo e ando metido em estudos
de impacto ambiental para uma empresa estrangeira. Só para o meu pai não
me sustentar e ter debaixo da asa, como ele gostaria. Bati asas masé,
arranjei o meu emprego, o meu apartamento, e nem o vejo. Ele que se dane
com a sua nova mulher, uma miúda muito mais nova que eu. Ainda nem
tem vinte anos.
– Isso é novidade – disse Segismundo. – Quem diria que o kota… Bom,
se conhece algumas cenas dele, mas uma miúda de menos de vinte, quase
uma catorzinha?
– Resta saber se já não andava com ela há anos, quando era mesmo uma
catorzinha… Desinteressa. Pois, como ia dizer, largou a antiga mulher com
dois filhos pequenos, está bem, devo reconhecer a verdade, lhe deu uma boa
casa em Miami, ela vive feliz da vida naquele mundo e diz que nem volta a
pôr os pés aqui, tem uma mesada importante e lá arranja uns latinos jeitosos
com quem namorar.
Sofia ia dizer, não fales assim da tua mãe, mas se refreou e fez bem,
porque Salomé adiantou perguntando nunca mais soube da tua velha, como
é que ela está, ao que Kaleb respondeu, mudou para Malanje há anos,
aguenta bem as malambas, a minha irmã mais velha casou e vivem todos
juntos, o casarão dá para um regimento. O kota não teve coragem de lhe
negar a propriedade do casarão, deve ter pesadelos quando pensa no castigo
que há de ter na próxima reencarnação, largar uma malanjina daquela
maneira? Hum! Velho maluco!
Foram andando e bebendo, agora Sofia com Segismundo lhe segurando
um braço e Kaleb o outro. Salomé observava, divertida. Não havia dúvidas,
a amiga atraía os homens. E dois pesos pesados em termos de finanças, pelo
menos no futuro, com ideias, cultos. Conhecendo-os desde sempre, como
depois contou à outra, não podia haver dois amigos mais diferentes.
Segismundo era de facto um poeta no sentido passado do termo, um
sonhador, indiferente à vida que não fosse a sua interior e os seus
sentimentos em relação aos outros. Kaleb, pelo contrário, era prático,
batalhador, sério e exigente no seu trabalho. Tinha já causado problemas a
uma série de amigalhaços do pai, dando pareceres negativos sobre projetos
de investimento, defendendo com unhas e dentes o meio ambiente e os
interesses do país, posição difícil no contexto atual da terra e até do mundo,
regido pela ganância dos mais poderosos. Claro, as pessoas respeitavam as
suas conclusões também por ser filho de quem era, com acesso aos altos
responsáveis. Mas ele se marimbava para as influências e também não era
vulnerável a pressões. O pai dela já se tinha queixado, esse teu amigo se vê
logo que é malanjino, teimoso como um burro… Ela contou a Kaleb e ele
riu, o teu pai ficou bravo, já contava com o maná que lhe ia cair do céu sem
mexer uma palha, rebentavam com uma parte da floresta e ele recebia um
balúrdio de avanço dos dois lados que faziam negócio, sem se molhar.
Jogada de mestre, aqui para nós, o kota é malandro, parece macaco velho.
Não lhe digas que te contei, os pais não gostam que os filhos conheçam os
seus jogos sujos, mas no fundo nem entrei em detalhes. E respeito a astúcia
do kota, consegue enganar os mais espertos…
Salomé ia ao lado dos três, os dois homens falando ao mesmo tempo para
Sofia, a qual mantinha um sorriso reservado. Conseguia perceber a
conversa simultânea dos dois? Entretanto, nenhum dos quatro recusava as
bebidas que lhes iam servindo.
Chegou a altura da refeição e Solferino reuniu os convidados ao pé do
bufete e falou:
– Sirvam-se à vontade. Só queria chamar a vossa atenção para o prato em
destaque, um arroz de marisco e peixe de morrer de prazer. Alguns de nós
todas as semanas nos regalamos com ele. É obra do restaurante que está aí
apontado nesses papelinhos. Obrigado por terem vindo e bom apetite.
Mais não disse. Nem era preciso. As pessoas pegavam nos papelinhos,
liam e guardavam. Sofia, incitada por Salomé, fez o mesmo. Lá estava o
nome do restaurante com um mapa e o endereço. Bom trabalho de
publicidade. Ela agradeceu e Solferino disse, não fiz mais do que a minha
obrigação, vale a pena divulgar as nossas coisas boas. Eu é que agradeço o
teu talento.
Nem todos os filhos de rico são meninos mimados e sem coração.
Sentaram os quatro juntos. Havia outras pessoas na mesma mesa. Sofia
provou iguarias diferentes, não ia ali comer o seu arroz, mais lhe faltava.
Mas Kaleb não hesitou em se servir e revirava os olhos, acrescentando mais
e mais jindungo. Um basquetebolista enorme, sentado do outro lado da
mesa, disse, meu, como consegues pôr tanto jindungo na comida?
– Pôr é fácil, meu, basta haver jindungo, difícil é aguentar comer! Não te
aflijas, estou habituado.
Se virou para Sofia, ouviste aquela pergunta, coisa mais parva? Ele que
meta muitas vezes a bola no cesto e não abra masé a boca. Está divinal, este
arroz é uma maravilha. Ela agradeceu. Gostava da conversa de Kaleb. Mais
do que a de Segismundo, do seu lado direito, tentando lhe explicar porquê a
poesia moderna angolana não chegava aos pés da do século XX. Ela fingia
ouvir, acenava com a cabeça e esperava que lhe voltassem a encher o copo
de vinho tinto. Reparou na garrafa, era um italiano de muita reputação. Se
bebia bem na casa de Solferino. Mas não devia ficar bêbeda, amanhã tinha
trabalho e assim não desfrutaria das piadas com estilo de Kaleb.
Aí estava um tipo interessante.
Abdias, do outro lado da sala, mantinha um ar sofredor. Devia ser outro
poeta, sem capacidade de escrever um só verso.
Muitos dos convidados acompanhavam a comida com uísque ou outras
bebidas destiladas. As senhoras se inclinavam para o champanhe. Podia
passar por vinho branco mas não era, ela distinguia o pedaço de garrafa que
se deixava mostrar mesmo com guardanapo envolvente, se tornara uma
perita.
Logo a seguir ao começo das sobremesas, uma modelo anorética que
Sofia tinha visto numa entrevista de televisão deu o exemplo, se levantando
primeiro que todos e atirando os sapatos para o lado. Gritou, daqui a pouco
me lanço na piscina, e muitos riram. Ela lá foi, descalça, copo na mão, aos
ziguezagues, se deixando cair numa cadeira de jardim. De certeza não tinha
comido nada para não engordar, mas bebia, talvez pouco mas o suficiente
para lhe cair o álcool na fraqueza e a pôr num estado lastimável. Foi a
primeira pessoa bêbeda da festa, já se tinha destacado nalguma coisa. De
seguida um tipo branco se levantou e foi ter com ela, conversando como a
lhe dar uma lição de moral. O mais provável seria uma tentativa de engate.
Há quem goste de ossos e não é cão.

***

As duas semanas passaram.


Entretanto, Himba escapou de cometer um crime.
Estava numa praia, ela e Kassule. Havia uma rapariga jovem na água com
a mãe. Deveria ser um pouco mais velha que Himba. Esta viu na areia as
toalhas e um saco. Roupas, documentos e dinheiro, certamente,
preciosidades. Mas não foi isso que a atraiu. Foram os chinelos da menina,
junto dos maiores, da mãe. Era muito fácil, tinha pensado e repensado a
técnica. Passavam ao lado das coisas, nem olhava nem se baixava. Punha
simplesmente os pés dentro dos chinelos. E continuava a andar, já calçada.
Quem estivesse na água nem podia reparar.
Kassule adivinhou o pensamento, porque viu o olhar famélico de Himba.
Ela se encaminhava para as roupas, quando ele disse baixo, de modo que a
arrebentação e a distância cobrissem a voz:
– Como vou fugir, se elas virem? E quantos miúdos pernetas há na Ilha?
Fácil de identificar. Himba se desviou logo das coisas, continuou a
caminhar. Ela não falou, ele não perguntou. Mas sabia, a amiga ia mesmo
cometer, os olhos não enganam. Ficou calado, evitou a vergonha dela ter de
confessar. Mas Himba ficou na mesma com vergonha, como pôde ter
esquecido Kassule e a sua incapacidade? Ia colocá-lo em risco, não se faz.
Os pés descalços estavam a lhe causar muito mal, a pôr a cabeça a fazer
disparates de que podia se arrepender. Procurou a partir daí com mais
frenesim nos contentores.
Mas continuava sem calçado.
Quando voltaram a se reunir com Luemba, esta estava a conversar com
Noé. O amigo tinha sido informado da iniciativa deles e achou bem, claro,
era mesmo a solução.
– Duas semanas não é muito tempo para haver resposta. Mas podem
voltar lá, a saber. Ainda ganham um mata-bicho, sempre é um pão com
chá...
– Ora, não é por isso – falou Himba, incomodada.
– Eu sei. Mas também ajuda.
– Ficas connosco para o almoço?
Noé percebeu a ansiedade na voz de Himba. Sabia, era a oportunidade
para terem de facto alguma comida. A ele tanto fazia, em qualquer
restaurante conseguia arranjar os restos, sabia lutar por eles. Era forte e bom
em lutas de praia, lhe tinham dito uns brasileiros que ele devia ser bom na
dança de capoeira. Mas os amigos eram fracos demais, pequenos demais.
Que mal fazia ficar e ajudá-los? Não perdia nada com essa refeição
conjunta.
– Fico. Vamos ver se servem bem a freguesia hoje.
Os outros riram da piada. Sobretudo, riram confortados por ele ficar,
dando a garantia de alguma comida. Que seria deles sem o Noé?
No dia seguinte foram à senhora Isabel Kimba, a qual não estava na
residência, mas Luzia, sempre ao corrente de tudo que se passava na casa da
madrinha, lhes disse logo, ainda não chegou resposta de Benguela. Dona
Isabel estava numa sentada, reunião de família por causa de uma sobrinha
que lhe engravidaram e agora o rapaz queria fugir ao dever de casar e
assumir a criança, conforme explicou em breves frases, devia ser difícil de
acertar as partes porque desde ontem que a madrinha Isabel não voltou,
dormiu mesmo na sentada, só veio o aviso.
Regressaram para a praia sem mata-bicho, não ousaram pedir nada a
Luzia.
Noé não apareceu para o almoço e desconseguiram de chegar ao
contentor, tal era a afluência. Havia cada vez mais refugiados do interior,
eram notícias que nasciam nos rádios e lhes chegavam aos ouvidos através
dos outros. Também crianças nas praias. Falavam de uns lares acolhendo
meninos na cidade, mas sem pormenores. Alguns eram de igrejas, outros de
iniciativas particulares. Nada de muito concreto, mas dava para sonhar,
sobretudo nas noites de estômago vazio, quem sabe, um dia, um carro
chegava, quem quer ir num lar?
Noé não apareceu nos dias seguintes.
Voltaram a casa de Dona Isabel, ela os recebeu muito bem, mas não havia
novidades, porém não se desencorajassem, as comunicações eram péssimas,
já se sabia, e também as pessoas ficam sem saber as decisões a tomar,
quando se trata de assuntos tão graves. Embora, pensava Dona Isabel só
para si, a tia nem devia hesitar, apanhava o primeiro transporte para resgatar
a criança, culpada como era do drama por que passava a sobrinha.
Eles estavam nitidamente mais esfarrapados e fracos, a senhora notou.
– Hoje vão almoçar comigo. A Luzia está a preparar um funje de uma
fuba de bombó que me mandaram da terra. Dá para todos.
A senhora lhes explicou que era de família do interior, do Golungo,
porém ela já tinha nascido na Ilha. Não naquela casa moderna, mas num
ximbeco de pau a pique construído pelo pai. Esta casa, de alvenaria, fora do
marido dela, morto na guerra de 92. Era funcionário da alfândega, bom
salário, viviam bem, a casa e um subsídio modesto ficaram para ela e filhos.
Tinha quatro, um no exército, não sabia bem onde andava, outro a trabalhar,
o Mariano, que tinha levado a carta de Luemba no correio, e duas meninas
mais novas, a estudarem na escola da Ilha. Uma teria a idade de Himba,
pois andava na 6.ª classe. A pergunta em que todos matutavam acabou por
sair da boca de Himba, estranhamente à vontade com a Tia Isabel, como já
lhe chamava.
– Afinal o seu marido como morreu? Se trabalhava na alfândega…
A senhora suspirou. Se via, a ferida ainda estava mal cicatrizada. Estaria
algum dia?
– Foi no sábado de manhã. Ele trabalhava na alfândega dos correios
centrais. Como sabem, o correio fica entre o comando da polícia e o hotel
que está todo esburacado de balas agora, ao pé da igreja da Conceição.
Quase nenhum colega foi trabalhar, se sabia a guerra rebentava nesse dia ou
no seguinte. Mas ele nunca faltava no serviço, ia e vinha a pé, ainda é um
bocado longe. Ao sábado fechavam ao meio-dia, mas aquele era um sábado
fatídico. Quando saiu do trabalho com um companheiro, disse, vou apreciar
bem esse hotel que virou quartel da oposição armada, assim ele chamava,
nunca os nomes dos partidos, dizia dava azar. Nomeava o partido do
governo e o partido da oposição armada. Para ele chegava, os outros
partidos não contavam. E toda a gente percebia, claro. O colega disse,
vamos masé embora para casa, no entanto ele estava com grande
curiosidade, não sei também porquê, disse, está a haver preparação de
qualquer coisa e quero saber o que é. Avançou um pouco e estava perto da
igreja quando percebeu muitas movimentações de tropas, uns a sair do hotel
e a tomar posições, outros a sair do comando, fardados de polícias, que
eram os únicos do governo que tinham armas na altura. De repente estava
cercado. Não tentou vir para casa, o caminho devia estar fechado. Ficou à
frente da igreja, pessoas lhe viram e contaram depois no colega dele. Não
sei mesmo o que passou na cabeça dele, penso nisso e não posso encontrar
explicação, ele sempre tão certo, tão pontual, calmo e prudente… Quando
começaram os tiros, queria se refugiar dentro mas a porta da igreja estava
fechada. Foi então morto. Por quem? Vá-se lá saber… Também não
interessa, foi morto pela guerra, chega! Então, quando o Mariano acabou o
curso médio de administração, eu fui falar com o chefe do meu marido na
alfândega e ele arranjou o lugar lá, disse o seu marido, tão bom trabalhador,
merece o filho a substituí-lo. Ainda não terá o mesmo lugar, claro, é novo e
sem experiência, mas vai ficar nesse posto, o pai era amigo de todos,
porquê então o filho não vai ser?, foi assim que falou o responsável. E
Mariano trabalha lá, gosta do serviço e parece todos gostam dele, ainda
bem.
Nessa altura Luzia anunciou, o funje de peixe está pronto. Comeram na
sombra, mas no quintal da casa, não no exterior onde habitualmente Dona
Isabel ficava a trançar o cabelo das filhas e das meninas da vizinhança. Era
ali fora, intuiu Himba então, que ela esperava o marido na volta do trabalho.
Todos os dias. E continuava, apesar de ter acontecido aquele sábado.
Ainda à espera do milagre?
A senhora lhes deu muitos conselhos, nunca aceitem experimentar fumar
liamba, nem cheirar gasolina. São drogas comuns e a gasolina é fácil de
obter, algumas gotas já põem a cabeça à roda e a vida mais alegre. Mas é só
por uns momentos, depois vêm as dores de cabeça. E as meninas deviam ter
cuidado com os rapazes, brincam com eles e depois podem ficar grávidas,
Luemba ainda não mas a Himba tem idade, já pode ficar, sabes como isso
é? Muito envergonhada e sem coragem de mirar Kassule, testemunha do
seu drama na floresta, ela confirmou, sim, sabia dessas coisas, pensando só
para si, talvez ainda não pudesse porque não tinha chegado à idade das
regras. Madia era diferente, talvez dissesse o mesmo a Dona Isabel mas
com o orgulho de ser uma veterana e não só conhecer na teoria como ter
mesmo provado dessas coisas, mas a tia tinha razão, era de evitar enquanto
fosse possível, embora naquele meio fosse difícil fugir ao destino. Isto era
apenas Himba a imaginar o que poderia falar Madia, a desaparecida. Os
conselhos eram bons, assim como a comida, por isso agradeceram muito,
prometendo voltar na semana seguinte, na certeza de encontrarem a
resposta à carta de Luemba.
Antes de partirem, as meninas foram presenteadas com roupa usada,
talvez das filhas de tia Isabel. E Himba recebeu o seu par de chinelos de
praia, aquilo por que mais ansiava. Afinal não precisara de roubar, nem
mesmo pedir. Kassule recebeu um boné pequeno, ficou todo satisfeito.
Ao regressarem ao seu quartel-general, como chamava Kassule à árvore e
ao abrigo no meio dos blocos, tiveram notícias de Noé. Houve uma rusga
duas noites antes e vários jovens, com a aparência de terem mais de dezoito
anos, foram levados pelos militares vindos em jipes e camiões. Com
documentos ou sem eles. Mobilização obrigatória. Outros escaparam, ou
por serem avisados a tempo ou por parecerem mais novos. Lamentaram a
perda de Noé, agora é que estavam mesmo mal. Lhes contaram, os que
assim são apanhados nunca ficam na cidade. São levados para quartéis fora,
onde fazem treino militar e depois vão para a guerra. Com muita sorte, ao
fim de um ano conseguem arranjar uma licença para visitarem a família.
Mesmo os sem família logo inventam uma para poderem rever a cidade.
Luanda é dura de viver, Nguimbi sem alma, como se diz, mas tem um íman
poderoso que suga as pessoas para si e dela não deixa escapar.
Só os muito fortes resistem.
Os três miúdos por vezes pediam esmola. Nos cruzamentos da Ilha
estendiam a mão, mas raro era o carro que abrandava, raro era o peão que
lhes dava qualquer coisa. Um dia resolveram mendigar aos clientes do
restaurante a cujos restos de lixo tinham cada vez mais difícil acesso. O
restaurante era todo aberto do lado do mar, apenas um murozinho o
separava da areia. Sabiam, as coisas podiam correr mal, já acontecera com
anteriores crianças. Mas a fome era demais. Ficaram parados, a olhar para
os comensais. Himba de cabeça inclinada, naquele jeito de pedir com os
olhos que aprendeu com a vida a ver os outros na Mutamba, no pouco
tempo que lá pernoitou, Luemba de mão agressivamente estendida para as
pessoas, Kassule imóvel e digno, encostado à sua muleta, uma marca de
sacrifício.
Um homem forte, de barriga a sair do casaco escuro, estava numa mesa
de dois casais, a mesa mais próxima. A gravata berrante não ajudava a
esconder o ventre regozijado. Fez porém um gesto para os miúdos, no
género vão embora, desapareçam, ainda me podem provocar uma
congestão. As crianças não obedeceram ao gesto, antes ignoraram. Ele
chamou o empregado e Kassule, sempre o mais atento, percebeu nos lábios
do outro que a presença deles o incomodava, lhe tirava apetite, ponham
aquelas crianças a correr dali. O empregado olhou para os miúdos, foi falar
com o segurança, que logo apareceu, fardado, cassetete na mão.
– Vão para longe. Não sabem não podem estar aqui?
– Estamos na praia. É mal?
Himba reforçou a fala de Kassule:
– A praia não tem dono, é de todos. Ficamos onde queremos.
– Estão a chatear os clientes – roncou o guarda. – Eles reclamam, não
podem comer bem se vos estão a ver.
Clientes bem nutridos não podem ver crianças miseráveis e com fome,
isso incomoda. Ela até compreendia. Mas voltou à carga:
– Não eram os clientes. É esse gordo aí. Nós vimos ele chamar o
empregado que depois falou com você. Os outros nem nos olharam, atentos
à comida e às companhias.
Himba até se admirou por ter falado tanto. Agora era muito frequente ela
dizer o que antes reprimira e durante semanas calou mesmo totalmente.
Libertada pela presença de Luemba, da idade da sua irmã do meio?
O segurança não se sentia à vontade. Por um lado, cumpria ordens. Por
outro, compreendia a posição dos meninos, os quais até conhecia de os ver
todos os dias lá atrás da cozinha. E tinha filhos. E o salário era miserável,
ouvira um dia um dos chefes da empresa a que pertencia, uma privada, a
falar com um possível futuro sócio, olha, pagamos de salário a um
segurança quatrocentos dólares por mês para ele proteger um indivíduo ou
uma casa e ao cliente cobramos três mil. E muitas vezes esquecemos de
levar comida para o guarda, ele que se vire. Com transportes e fardas,
amortizadas rapidamente, metemos dois mil ao bolso por cada guarda, é um
bom lucro. O segurança ouviu essa conversa e tinha vontade de vomitar. Só
faltou dizer que não era apenas a comida que esqueciam de levar, muitas
vezes não havia renda e um guarda podia ficar vinte e quatro horas no
posto, sem horas extraordinárias nem descanso nem água, lutando para ficar
acordado porque o empregado apanhado a dormir no posto iria para a rua.
Mas calou, ia comentar com alguém? Ia refilar, fazer greve, meter sindicato
que não existia sequer? Perdia o emprego e ainda ficava pior. Além disso,
ninguém lhe deu a ordem, foi um criado que lhe chamou a atenção para os
miúdos que estavam perto demais do restaurante, tinham mau cheiro,
dissera o cliente. Batia o cassetete na mão, parecia gesto intimidatório mas
de facto era de dúvida, que fazer?
– Se vocês afastassem um pouco…
– Se afastássemos um pouco, nenhum cliente reparava em nós – disse
Kassule, mais confiante. Luemba estava calada, teimosamente de braço
estendido para a frente.
– Só reparam os que vos querem longe.
– Que fiquem a conhecer a nossa fome, esses… – disse Himba.
– Vão só para trás e eu levo comida para os três. Prometo. Também tenho
filhos.
Hesitaram, se entreolhando. Himba tomou a iniciativa e disse:
– Está bem, acreditamos. Vamos, malta.
Kassule iniciou o movimento de retirada. A última foi Luemba, parecia
uma estátua de areia, imóvel.
– Vamos, Luemba, vamos.
O guarda cumpriu o prometido. Foi à cozinha e trouxe, dez minutos
depois, um saco de papel cheio de comida. Da que não cheirava a lixo, nem
a bocas alheias. Ainda era cedo para os outros miúdos se aproximarem do
contentor, de modo que o saco foi mesmo para eles.
– Posso saber o seu nome? – disse Himba para o segurança.
– Kassanje.
– É boa pessoa, senhor Kassanje, não vou esquecer o seu nome. Nunca
esqueço o nome de quem me ajuda. Só esqueço os outros. É pena esses
serem de mais.
Os miúdos sentaram na sombra da casuarina, se dividiram a comida,
escondendo a ansiedade de engolir tudo de uma vez. Afinal, eles tinham
tido educação, uma casa, não eram animais.
– O gordo que nos queixou – disse Himba. – Vocês viram como pegava
no garfo? Em baixo, nos dentes, com a mão toda. Muito bem vestido, cheio
de importância, mas nem sabe comer a uma mesa…
Os outros dois confessaram, não tinham reparado. Kassule engoliu o que
tinha na boca e retrucou:
– Não sabemos o nome dele. Dá para ir perguntar no segurança?
– Ele também não sabe – disse Himba. – E nem quer saber disso, pode
ficar mal.
– Se soubéssemos o nome, íamos para a frente do restaurante – disse
Kassule. – Quando ele saía com os amigos, gritávamos, senhor tal, não sabe
comer, a mão estava a rapar o prato… Não sabe uê, não sabe uê, não sabe
comerê…
Riram. Era um impossível. Mas fazia bem imaginar um impossível
daqueles.
– Melhor não – disse Luemba. – Afinal pode ser ministro…
Os outros concordaram. O impossível era só bonito de imaginar.
Nem todos os sonhos se realizam, afinal.
Estavam bem refastelados na areia, a barriga cheia. Conversavam de
coisas à toa. Riam com mais frequência do que era habitual. Apareceu um
grupo de miúdos, por volta de quinze anos, liderados por um mais velho,
talvez dezoito. Este escapou da tropa, pensou Himba, ou não estava aqui
quando canzaram o Noé.
– A laifar bué, não? Estão a rir de quê?
Himba se encolheu toda ao ouvir a voz grossa. Era nova para ela, mas não
de bom agouro. O medo paralisou-a. Kassule, mais desprendido ou astuto,
respondeu sorrindo:
– A rir mesmo dos nossos mambos…
– Não nos querem contar?
– Ora, que vos interessa? Deve estar a sair comida do restaurante, ali onde
tem o grupo, isso é que vos interessa.
Kassule tinha apontado para a pequena aglomeração ao pé do contentor
do lixo, por trás do restaurante. Desviava assim a atenção dos intrusos,
certamente catadores de comida como todos.
– E quem te disse que precisamos ir catar no contentor?
– Ninguém mesmo. Adivinhei?
Kassule estava a ser muito atrevido, pensou Himba. Uma coisa ela já
tinha aprendido, não se deve chamar a atenção do perigo. No entanto, com a
conversa o amigo acalmava alguma má intenção dos outros, maiores e de
atitude rufiona. Nem sempre as fintas saíam bem. O chefe do bando deu um
ligeiro pontapé na muleta, em aviso. A sorte do miúdo era estar sentado,
senão já tinha caído. Largou a muleta que ficou esquecida na areia.
– És um bocado atrevido, garoto. Mas as meninas estão caladas, não
falam?
As duas encolheram os ombros, gesto típico de quem nada tem para dizer.
Ou acha mais prudente.
– Essa aí até que é bonitinha – disse um deles, apontando Himba.
O chefe concordou, até que é.
– Tens marido?
Himba se encolheu mais ainda. Mas tinha de responder, tudo devia ser
feito para evitar violência.
– Eu sou pequena demais para ter marido.
– Ah, afinal ela fala… E solteira, ainda por cima. Não queres te casar
comigo?
Himba não podia evitar, tinha de enfrentar o mais velho com astúcia.
Talvez parasse a conversa sem sentido.
– Sou muito pequena para casar. O meu pai, que está ali ao lado, não ia
gostar desta conversa… Eh, vamos embora, vamos ter com os pais.
Himba levantou, entregou a muleta a Kassule, puxou Luemba,
aparvalhada a olhar para ela.
– Vamos então, os pais disseram para não falarmos com estranhos, vocês
não ouviram?
Não sabia onde tinha encontrado a força para fazer de irmã mais velha,
saiu assim de repente sem pensar, mas resultou. Começaram a andar para o
sítio indicado onde estariam os pais e o grupo ficou só a observar, não os
seguiu. Kassule olhou para trás, sibilou:
– Sacanas, escapámos. Eles agora vão se juntar aos outros à espera da
comida. A armarem em finos, como se não fossem catadores como todos
nós…
Luemba não tinha percebido bem a cena, mas a palavra lançada entrou no
ouvido dela. Perguntou:
– Escapámos? De quê? Eles queriam nos fazer mal?
– Queriam fazer mal à Himba. Depois te explicamos, ainda és muito
miúda para perceber.
Andaram no sentido do princípio da Ilha, para despistarem. Como tinham
comido bem, servia de passeio.
– O problema é quando voltarmos – disse Kassule. – Aí vão perceber que
não temos pais à espera e que lhes mentimos. Vão se vingar.
– Só voltamos quando eles tiverem ido embora – disse Himba.
– Oremos, irmãos, oremos – disse Kassule.
As duas meninas riram. Andaram mais, ultrapassaram o sítio onde
morava Dona Isabel, do outro lado da estrada. Não saltaram, ainda era cedo
para maçarem com a resposta esperada de Benguela. Por pensar em
família…
– É verdade, Kassule, nunca mais fomos à Mutamba procurar a tua irmã.
– O Kassule afinal tem uma irmã? – perguntou Luemba.
– Sofia. Se perderam.
Luemba mexeu a cabeça para cima e para baixo, assimilando a resposta
de Himba. O menino ficou calado, manquejando com a sua muleta. Mas a
amiga não ia esquecer mais.
– Vamos então hoje mesmo, Kassule. Tu ias três vezes por semana
procurá-la, foi o que me disseste quando nos conhecemos, lembras? Depois
viemos para a Ilha, nunca mais foste… Hoje vamos lá e dormimos nas
Finanças.
– Com aquele dinheiro todo em cima – troçou Kassule. – Por isso
acordamos de manhã com dores de cabeça, é muito peso, o dinheiro é bué
pesado.
Riram os três.
– Só é pesado para quem não tem – respondeu Himba. – Para os ricos não
deve ser, o meu pai dizia que os ricos nem sentem o cheiro do dinheiro,
nunca tocam nele.
– E como fazem então? – perguntou Luemba.
– Usam papel, cheque. Ou têm um caxico atrás que leva a pasta deles
com as notas.
– Hum, também não acredito – disse Kassule. – Já vi ricos a puxarem de
umas notas para darem nos outros. Ou nas mulheres…
– Então vamos ou não dormir na Mutamba? – Insistiu Himba. – Tu é que
mandas.
– Quem manda és mesmo tu, a mais velha. E foste esperta, te safaste
muito bem. Como é que aqueles tipos acreditaram tínhamos os pais à
espera, assim vestidos de pedintes?
– Roupa da Dona Isabel, não é tão de pedinte assim. Vamos ou não vamos
na Mutamba?
– Tão longe… Para nada.
– Nunca se sabe, Sofia pode aparecer. Vamos.
– Nem dinheiro temos para apanhar um candongueiro – disse Kassule. –
Isso é que era uma grande ideia.
– Paramos a meio do caminho para descansar, temos muito tempo.
Amanhã voltamos à Ilha. Pode ser, aquele bando já mudou para outro sítio.
Um lampejo súbito nos olhos do menino. Deu um ligeiro empurrão com o
braço livre no ombro de Himba.
– Então é isso? A ida à Mutamba, ficar lá… Estás só a ganhar tempo, a
fugir deles…
– Não, é a sério. Lembrei da tua irmã. Nunca mais falaste nela. Tens de
continuar a procurar… a acreditar…
Ele ficou em silêncio. Percorria com o cérebro o tanto caminho ainda a
percorrer, as dores no sovaco, na única perna útil, o cansaço e a sede antes
da chegada. Mas a amiga tinha razão, devia continuar a acreditar.
– Está bem, ganhaste – disse Kassule.
De todas as maneiras, a Ilha hoje era perigosa para Himba, pensou o
miúdo. E, quem sabe, talvez a intuição dela estivesse certa e Sofia voltasse
do nada enevoado em que sumira.
Chegaram já com a noite e a barriga a exigir comida. Era mais o tempo
em que sentiam fome do que o tempo em que a esqueciam. Fome de pobre
é a única constante desta vida, pensou, muito filosoficamente, Himba,
embora não partilhasse a ideia com os outros.
Sofia não apareceu.
O chão era muito duro em comparação com a areia fofa da Ilha, fazia
doer os ossos das ancas. Ainda por cima, os esquadrões de mosquitos eram
demais nessa noite. Faltou-lhes também o barulho embalador das ondas.
Pouco dormiram, mas em tranquilidade. Já não era nada mau.
7

Estava terminado o jantar formal.


Eles ainda ficaram na mesa, conversando e bebendo, sempre a provar
sobremesas. Se juntou a eles Solferino por uns momentos e mais tarde
Abdias, recuperado do seu desterro no fundo da sala. Sofia evitava mirá-lo,
sabia, estaria a comê-la com os olhos, arrependido de uma ousadia passada
e sem coragem de retomar a conversa interrompida há semanas. Salomé
fazia sinais, sem parar de beber, ela fingia não perceber. Salomé já lhe tinha
dado a entender que veria com bons olhos um relacionamento de Sofia com
Abdias, vocês foram feitos um para o outro, o que era um perfeito disparate,
Salomé talvez conhecesse Abdias mas desconhecia como ela era e muito
menos os dois em conjunto. No entanto o ambiente não estava pesado.
Solferino acendeu um charro, aqui é zona libertada, usar disto nesta casa
não é crime nem pecado, pelo menos enquanto os velhos estiverem fora,
quem aceita uma passa? Há muito mais lá em cima, estrategicamente
escondido. Para quem desejar, outras coisas também se encontram… Só
Abdias aceitou dar duas passas, logo entregou o charro ao dono. O qual se
levantou, foi atender outros convidados, o dever de anfitrião obrigava.
– Explica então qual é o segredo do teu arroz – pediu Kaleb.
– Comi não sei quantas vezes. É prato muito conhecido nos países com mar,
pelo menos na Europa. Só que este tem um sabor diferente, nada de
semelhante com os outros que provei.
– O segredo está nos loengos, massa de loengos – respondeu Salomé. –
Penso que a Sofia já está arrependida de nos ter revelado, devia guardar
melhor o mistério. Tem outros produtos, tomilho, pimenta. Mas o valor está
no loengo. Sabes o que é? Também não conhecia até aquela noite.
– É uma fruta do Planalto Central – disse Sofia, hesitando. – Acho, só ali
é que cresce.
– Tem de haver em Malanje – disse Kaleb. – Tudo o que é bom tem em
Malanje. Ou não fosse o meu berço.
– Deve haver – disse Sofia. – Até em Luanda. Eu compro na rua. Mas
vem do Planalto Central.
– Estás a ver? – Kaleb não percebeu a ironia ou fingiu. – Eu admiro a
gente que consegue descobrir coisas novas. Porque uma combinação
diferente de sabores é uma arte.
Todos concordaram com o biólogo, menos Sofia, claro, o recato ficava
bem, sobretudo naquele meio de gente sofisticada, ou achando ser. Kaleb
prometeu estudar a planta maravilhosa que produzia o loengo, vou divulgar
os seus poderes afrodisíacos, alucinogénios, embriagadores, reforçadores da
inteligência e sensibilidade. E já agora com antioxidantes, evitando vários
cancros temíveis.
– Tudo isso? – riu Sofia. – Ainda dás ideia à polícia para perseguir os que
apanham os frutos no mato. Porque, a menos que esteja errada, ninguém
planta loengos, eles nascem selvagens. Mas se começas a dizer que tem
tantas qualidades, ainda por cima algumas perigosas para a juventude,
provocas umas rusgas no Planalto. E as zungueiras que vendem os frutos
nas ruas de Luanda vão ser condenadas sem culpa. É bom refletir antes de
fazer elogios fáceis.
Kaleb não replicou, deve ter pensado era uma mensagem codificada.
Aliás, bem explícita. Sofia esperava réplica, não houve. Terá ficado um
pouco dececionada? Salomé suspeitou esse sentimento nos olhos da amiga.
Mas nada disse.
Da mesa apreciavam parte considerável da piscina e as cenas cada vez
mais carregadas de tensão que se adivinhavam. Os charros de liamba
passavam de mão em mão. Ou Solferino não andasse por ali, pródigo e
solícito. Uma moça muito bonita se lançou para a piscina toda vestida,
tendo antes, num rasgo de lucidez, atirado a bolsa para uma cadeira, os
documentos se salvavam. Era já muito álcool misturado com liamba, nem
todos aguentavam como deve ser. Ninguém lhe deu a mão, ela se agarrou ao
varão lateral e conseguiu sair da água. Sentada no bordo, olhava à volta, em
total paz de espírito, lavada pela água límpida e com o cloro escondido atrás
de perfumes discretos, acalentado pelo fumo dos kotas, agora proibido na
rua e nos kimbos, não em casa de ricaços, onde nada é de facto proibido.
Um tipo com ar atlético, de jeans e casaco azul, tirou os sapatos e pôs os
pés na água. Batia com as pernas, olhando a moça de vestido colado ao
corpo. Ela percebeu o olhar e voltou a se meter na piscina. Ele atirou calças
e casaco para a relva, imitou-a. Ficaram abraçados na água morna, alheios
aos outros. Solferino fez sinal a um empregado que estendeu para o par a
bandeja com bebidas. Cada um tirou uma taça de champanhe, brindaram,
deixaram os copos na borda e submergiram as cabeças. Parecia, embora
fosse difícil distinguir a partir da mesa, que se beijavam debaixo de água.
Seria o mais comum. Logo outros pares se formaram para os acompanhar.
Tinha começado a verdadeira farra.
As roupas começaram a ser atiradas para a relva, os sapatos idem, um ou
outro sutiã. A relva à volta parecia uma exposição pós-moderna de roupa
em jardim, talvez uma instalação artística de escultor com falta de
inspiração para a pedra ou a madeira. Havia sobretudo vestidos de marca
reconhecida, com os signos ou as iniciais famosas em destaque, pelas quais
muita gente se suicidava. E matava aos cachos. Também calças, desde as
clássicas de linho branco aos jeans que só podiam ser comprados na Union
Square de S. Francisco ou nos Campos Elísios. Os sapatos desirmanados
procuravam outros pés.
Em breve a piscina tinha umas vinte pessoas de ambos os sexos, nadando
ou bebendo, seminus, alguns se tocando e beijando. Uns tantos convidados
olhavam a cena com expressões de espanto, alguns com rictos de
incomodidade. De todas as reações se constituía o público num bacanal
programado pelos príncipes, escandalizando parte da corte ainda inibida por
morais consideradas vetustas. Assim são as verdadeiras cortes, mas uma
parte da humanidade delas sempre esteve arredada, confinada em aldeias
empobrecidas.
Foi na altura que Kaleb disse, aquilo está a animar lá fora, vamos nos
sentar na relva? Pelo menos para apreciar as cenas. Segismundo aprovou
com entusiasmo, Abdias se levantou automaticamente, elas encolheram os
ombros com indiferença. Seguiram-nos. Salomé conseguiu uma cadeira, os
outros ficaram mesmo na relva bem aparada, continuando a conversa um
pouco descosida mas interessante, sobretudo pela espécie de duelo
camuflado entre Kaleb e Segismundo, tendo por objeto a atenção de Sofia.
Tiago e Patrício, que tinham estado na prosa com alguns dos artistas
colunáveis e com aparência de se incomodarem com a mudança quase
brusca de ambiente, se juntaram ao grupo, o que é que os desocupados estão
a conspirar? Em breve riam e bebiam, sem atentar muito no que ia
acontecendo à sua volta. Só houve tempo para Tiago explicar o que
conversava com os jovens convidados e como eles pareciam caídos de
paraquedas ali na festa. Kaleb começou a rivalizar com ele nas piadas,
algumas visando os colunáveis presentes. Colunáveis-não-príncipes, como
eles se distinguiam dos outros, vindos de meios mais modestos mas lutando
por se afirmarem e conseguirem adquirir alguma atenção dos media ou pelo
desporto ou por entrarem em alguma telenovela. Havia um, muito
referenciado pelo grupo, embora com sarcasmo, que se tornou conhecido
pela maneira mais moderna que a terra oferecia, fazendo comentários
políticos numa televisão independente, forma mais recente de se destacar e
se colunizar.
Sofia tinha sido aceite pelo grupo e esqueciam que ela afinal também não
era herdeira de coisa nenhuma, nem princesa nem sequer colunável. Ela
percebeu ser de outro mundo, mas por momentos tentou ignorar e se sentir
também nascida em família rica, desconhecendo de onde tinha vindo o
dinheiro. Não durou muito o faz-de-conta, caiu na realidade. Salomé
pareceu não reparar e Sofia agradeceu mentalmente. Depois refletiu, como
Salomé podia saber o que lhe tinha passado pela cabeça, era alguma bruxa?
As mulheres grávidas tinham certos poderes, se dizia nos meios populares,
da mesma maneira que os albinos atraíam certas forças ou os gatos pretos
azares mil. Ela aprendera a não acreditar nessas superstições. Salomé estava
para lá de Marraquexe, como se dizia, sem parecer atentar no que fosse.
Não devia beber tanto e se ela, Sofia, era amiga, devia preveni-la. Porém
não o fez. Salomé já era adulta e casada, como dissera, tinha obrigação de
saber o que tomar e em que doses. Que direito tinha ela de lhe chamar a
atenção? Até podia entrar em manobras com um tipo qualquer, como
parecia que aconteceria com outras em breve, ela não estava ali para julgar
nem para interferir. Fora convidada apenas por causa do seu arroz ou por os
ouvir conversar no restaurante com regularidade e a isso se devia limitar.
Até aparecer algum príncipe encantado…
Príncipes encantados só existiam nas estórias do Norte, já devia saber.
Solferino foi se abastecer lá acima e vieram mais charros e pó branco que
as pessoas eram convidadas a ir snifar numa mesa de canto. Como fazia
para que o pessoal da casa, vendo aquilo tudo, não contasse aos pais dele no
regresso? Pergunta que até era muito pertinente mas ela nunca faria. Quero
lá saber, uns dólares fecham bocas. No entanto, começou a achar que era o
momento de desaparecerem dali antes que a festa desse para o torto. O
mesmo raciocínio deve ter batido na cabeça de um casal, um pouco à
margem da festa, pois se retiraram sem despedidas. Sofia bateu
discretamente na perna de Salomé, apontou para o casal saindo da zona de
visão. A outra assentiu com a cabeça.
Salomé devia ter a iniciativa da retirada, não ela que estava ali a mais.
A amiga ingeriu o resto da bebida, disse para os outros, isto está muito
bom mas a Sofia e eu temos trabalho cedo amanhã, vamos embora. Se
levantaram afrontando os protestos dos membros do grupo, agora é que isto
vai aquecer, não nos podem deixar sós no momento mais interessante, vão
perder o melhor. Salomé foi inflexível, deu o braço a Sofia, vamos embora
que ninguém se despede aqui.
– Posso ao menos ficar com o nome e endereço do restaurante? –
perguntou Kaleb, fingindo desespero na voz. – Ou nem isso me é concedido
pelas deusas?
– Em todas as mesas há papelinhos com esse dados, tu sabes – disse
Salomé, comboiando a amiga.
Alguém aumentou o som da música, até aí discreta. Parecia, era para as
acompanhar na saída.
– Agora já viste como são as noites de farra desta malta.
– Tinha uma ideia – disse Sofia. – Mas não tanto.
Se dirigiram para o carro e então Sofia reparou nas marcas dos outros
automóveis parqueados no estacionamento à frente da vivenda, eram só
aquelas conhecidas como custando muito dinheiro. Alguns carros
desportivos ou com aparência, outros mais recatados, mas todos de bué de
números, pagando em dólares.
Salomé perguntou, viste aquelas cenas que aconteciam um pouco no
escuro, pela relva à volta da piscina?
– Sim, vi. Havia também vultos dentro de casa…
– Em todos os quartos, aposto. Menos no quarto principal, o dos pais.
Fica fechado e a mãe leva a chave.
– A sério?
– É verdade. Podes perguntar ao Solferino. Ele conta sempre e ri, eles
sabem o filho que têm, confessa sem problemas. Agora, que viste umas
coisas, imagina daqui a duas horas, quando começarem a snifar a sério e a
fumarem cachimbos de liamba especial, produzida com todos os cuidados
numa roça da Lunda. É o caos total. Caos não será, mas… quase. Muitas
bebidas, misturas de vodcas e gins e uísques com champanhe, e mais fumo
e mais coca… Vá lá, nunca vi que se injetassem ou consumo de coisa pior
que coca. Bem, uma pessoa fica fora de si…
Salomé fez o carro sair do estacionamento quando Sofia disparou, quase
de instinto:
– Foi assim que fizeste o teu filho?
Salomé reduziu, esperou que outro carro atravessasse primeiro uma
avenida. Arrancou com cautela.
– Não foi nesta casa. Mas numa festa parecida. Sim, resultado de um
tremendo bacanal.
– Acontece com frequência no vosso meio.
Salomé não replicou. Como se falasse para si mesma, reflexiva:
– O problema é que não me lembro de tudo ou de muito pouco mesmo.
Estava desvairada, o Alfredo por seu lado também estava. Imagino o que
ele sonha quando está no meio do mar… Numa festa destas, às tantas ele
solta as amarras. Foi o que aconteceu, ele deve ter-se metido nalgum quarto
ou por trás duns arbustos, tenho uma vaga ideia de o procurar, não sei se o
encontrei, não sei se era ele, mas que estive com um homem, isso de
certeza. Espero que tenha sido ele.
Sofia ouvia e não queria acreditar, isso era possível com aquela jovem
senhora muito bem-falante e comportada, sempre a expressar as suas ideias
com suavidade, contando dos projetos fantásticos que tem com mulheres de
classes pobres, dando o melhor que sabe, ajudando sem interesse que não
seja o de perseguir o bater do seu coração generoso? Podia se passar
daquela maneira?
– Queres dizer que não sabes se o teu filho é do Alfredo?
– Exatamente! Foi a única vez em que não controlei as coisas. Pronto,
agora já conheces a estória completa.
De repente, uma ideia maluca entrou na cabeça de Sofia.
– Diz-me uma coisa. Nessa festa, todos os homens eram negros?
Salomé deu uma gargalhada.
– Hi! Viste hoje. Há alguma festa destas em que todos os homens são
negros? Há sempre de todas as cores, estamos em Luanda, mulher.
– Pode ter acontecido com um branco ou mestiço?
– Devia lá haver vários bem interessantes. Não faço ideia.
– Outra pergunta disparatada, já agora, se permites… É possível que um
filho teu e do Alfredo saia mais claro? Há misturas de cor na tua família ou
na do teu marido?
– Não conheço mistura nenhuma. Sei o que estás a pensar, já me veio a
dúvida. O ndengue pode sair mais claro, sim.
– Estás a arriscar muito. Porquê não usam camisinha?
– A um momento dado ninguém quer saber disso.
– E o perigo da sida?
– Sim, sempre existe. Embora no nosso meio seja raro. Hoje em dia
conseguimos controlar a sida.
– Controlar uma merda! O vosso meio é como outro qualquer. Sabes
quantas pessoas do teu meio vão procurar prostitutas nas ruas, catorzinhas?
E quantas estão contaminadas? O vosso meio… como se os privilegiados
estivessem imunes. Vai-te lixar! Têm dinheiro para pagar os tratamentos, é
a única diferença.
– Hei, minha! Porque falas assim? Não me agridas…
Sofia se conteve, respirou fundo, respirou fundo. Acalmou.
– Desculpa, passei-me, também tenho o direito. Porque me contaste isto
tudo? Preferia ficar na ignorância.
– É verdade que bebi uns copos a mais e tinha prometido não beber. Foi a
última vez, juro. No que acabas de dizer tens razão, não devia ter
confessado isto tudo, é como se tivesse cometido um crime e fizesse de ti
minha cúmplice. Mas senti que precisava de um ombro amigo, diferente dos
que tenho à minha volta. Talvez tenha sido um erro. Deixei falar o coração,
precisava de desabafar, ninguém sabe destes meus mambos. Muito menos o
Alfredo…
Sofia estava com muito má disposição, talvez pelo desencanto. Contou a
mim como poderia ter contado ao seu cão, alguém que não é e nunca será
do seu meio, sempre a regra da exclusão, até mesmo nos melhores que
parecem não ter preconceitos. Mas preferiu não entrar em discussões de
classes e de privilegiados. Os príncipes e duques que ficassem com o seu
dilema, mas não deveriam passar os dramas para os populares.
– O Alfredo sabe que podes ter-te enrolado com outro tipo?
– Não. Se nem eu tenho a certeza… Pode ter sido ele. Se soubesse,
também não tinha importância, ele foi com outra. Nestas festas há menos
compromissos, uma cambalhota não é considerada adultério.
– A sério?
– Sim, a sério, pelo menos no caso de pessoas mais avançadas, com
outras vivências. Ele compreenderia. Se o mona sair mais claro, bem,
teremos uma crise, mas superável. O pior vai ser a família dele, é de mais
tradicionalistas que a minha. Não dará para esconder… Suponho que o
Alfredo me ajude a diminuir o drama em relação à família dele, mas será
sempre uma grande confusão. E cai na minha família também.
– Haka! Rezemos para que saia bem escurinho… Falando a sério, não
devias arriscar. Faz um aborto, podes arranjar um pretexto qualquer e ir
tratar disso no estrangeiro. Arriscar assim é quase suicídio…
Salomé estava bastante toldada pelo álcool e conduzia com prudência.
Demasiada para os parâmetros de Luanda. Àquela hora, em ruas sem outros
veículos, ia muito lentamente mesmo. Por norma, não só luandense, quem
está muito pedrado abusa da velocidade e esse tinha sido um dos medos de
Sofia, um risco a correr ao aceitar voltar com ela. Afinal, o único risco era o
de adormecer ao volante pelo vagar da condução. Salomé, porém, estava
concentrada no que fazia, muito mais do que quando foram para a festa.
Há atitudes assim, imprevisíveis.
– Suicídio? Talvez. Quem sabe, todos nós temos propensão para ele.
– Eu não tenho. Podes ter a certeza.
Salomé riu, sem tirar os olhos da estrada.
– Deves pensar que sou mesmo louca!
– Neste caso pareces.
– Deves ter razão. E sabes que mais? Nem me importo nada. O que me
chateia é não me lembrar de quem terá sido o homem. E se valeu a pena.
– Não valeu. Se não te lembras…
Ela moveu a cabeça para cima e para baixo. Em silêncio. Depois disse:
– De facto, não tens propensão para o suicídio, Sofia. Ainda tens
ambições na vida. O que é bom. Se não forem demasiado desmedidas, se
não te levarem a ultrapassar algumas barreiras…
Chegaram sãs e salvas aos respetivos kubickos.
Nunca voltaram mais a falar do assunto. Confidências enterradas? Nunca
o são totalmente.
***
Apesar de ser manhã cedo e por isso o calor ainda estar escondido, o
regresso à Ilha se revelava penoso. Não se podiam queixar do sol, nem do
fumo dos carros, mas havia cansaço de noite mal dormida. E a eterna fome.
Discutiram se deveriam ir saber da resposta à carta de Luemba, maneira
manhosa de obterem um pão e chá. Mas Himba negou a proposta de
Kassule.
– A senhora vai perceber que não estamos a procurar resposta mas mata-
bicho. É feio. Eu, pelo menos, tenho vergonha.
Kassule não replicou, embora tivesse menos pruridos, a vida não estava
para gente envergonhada. Assim, havia que esperar pela hora do almoço e
lutar pelos restos. Se tivessem alguma sorte…
Parecia tudo na mesma no refúgio deles. O grupo que os assustara na
véspera não estava. Também não tinha mais ninguém, era muito cedo.
Andaram por ali. O mar numa calmaria, nem pequenos novelos de espuma
apareciam em cristas de ondas, que não as havia na imensidão azul.
Luemba não resistiu, deu uns pinos alegres na água, sem companhia dos
outros, preferindo a areia ainda fresca. De repente, surgiu do nada uma
avalanche de gente. Nunca tinham visto tantos candidatos aos restos do
restaurante e tão cedo. Não eram só miúdos, havia gente grande, uns
matulões de mais de dezoito anos, escapados da tropa. A esses não
cangaram eles, só levaram o Noé, lamentou Himba. É, disse Kassule, o Noé
faz falta. Ainda era muito cedo para começarem a sair tesouros da cozinha
mas já se formava uma fila para apanhar a comida. Iam ficar bué de horas à
espera, que é que eles imaginam?, pensamento de Himba. Além do insólito,
se tratava de fila conflituosa, pois havia ameaças, empurrões, insultos, entre
os integrantes. Está-se mal, pensou Kassule, hoje nem vale a pena tentar,
somos esmagados se nos atirarmos para os contentores. A menina estava de
acordo e também Luemba que, entretanto, viera do mar, toda molhada mas
feliz.
Afastaram dali, ficaram perto do sítio onde dormiam. Porém, não podiam
evitar olhar para a confusão que se ia tornando cada vez mais ruidosa e
violenta. Apareceu um empregado do restaurante, deu mesmo uns berros,
arrecuem daqui, senão guardamos os restos dentro e só à noite atiramos
fora, para o mar. A ameaça inusitada resultou por momentos, pois a bicha
desorganizada recuou um pouco. No entanto, minutos depois já se
aproximava de novo dos contentores, cada um lutando por uma posição.
O segurança Kassanje tentou pôr calma nos esfomeados.
– Ainda não se está a cozinhar, é hora de lavar e arrumar o restaurante.
Porque não vão dar uma volta?
Apupos e assobios, Kassanje recuou para o seu posto de observação.
Primeiro um, depois outro, se foram aproximando de novo dos contentores.
Os de trás fizeram pressão, os da frente protestaram, voaram insultos,
empurrões, luta mesmo de socos entre grupos.
Foi então que Himba viu, por entre uma batalha de corpos se atirando uns
aos outros, um brilho de lâmina, um pescoço sangrando, um miúdo caindo
na areia. Himba viu a cara do agressor, conhecia já aqueles olhos maus, de
outras alturas, olhos ameaçadores embora não soubesse o nome do dono
deles. Kassule também viu, segredou:
– Amaro, foi ele. Mas não fales nada, vamos dar uma volta.
Aumentou a barafunda, pois alguns tinham gritado ao notar a agressão e
apareceram também pessoas do restaurante, chamadas pela barulheira.
– Vamos dar uma volta, vamos já – disse Kassule.
As duas meninas saíram do torpor aterrorizado e seguiram-no.
Caminharam até ao esporão seguinte, sem olharem para trás. Ficaram assim
mais longe do local do crime e pareciam estar apenas a gozar a bela vista do
mar azul se espraiando ligeiro pela areia. No entanto, dava para observar
tudo o que passava.
Em breve apareceu um carro da polícia e uma ambulância. Se via bem,
mesmo à distância, meteram o miúdo esfaqueado na ambulância mas sem
grande pressa nem cuidados particulares, o que significava ele estava
morto. O Amaro devia ter desaparecido no meio da confusão com a arma, a
polícia andava de um lado para o outro, perguntando coisas. Outro carro
chegou e mais caíngas se metiam nos grupos, querendo saber como tinha
começado a briga.
Se briga séria houve.
Porque Himba e Kassule, para além de murros e bassulas, o habitual
nessas desavenças, só viram o gesto fatal, não os antecedentes precisos,
pois eram grupos a discutir e depois a lutar uns com os outros, se
empurrando para ficarem mais perto do contentor, um a ser projetado para
cair na areia, até aquele brilho aparecer porque
o sol bateu em cheio na lâmina da faca, sim, devia ser uma faca, disse
Himba, talvez uma navalha de ponta e mola, avançou Kassule, o que é
isso?, perguntou Luemba, mas o menino nem explicou, esse Amaro é
bandido, conheço estórias dele, já andava a roubar aí na praia, um dia
apanhou um rádio de um senhor que estava deitado na areia, mas escapou,
outro foi acusado e preso, desta vez também vai escapar. Os que viram que
foi ele se vão calar, ninguém denuncia os kambas aos caíngas.
– E nós? – perguntou Himba.
– Estás louca ou quê, mana? Boca fechada, para não sair asneira.
Os polícias tinham de mostrar serviço, que não saíam das esquadras só
para passear as fardas. Apanharam uns tantos miúdos inocentes e ingénuos,
logo considerados suspeitos. Os mais atentos ou experientes ou mais
implicados previram a situação, já tinham fugido. Os prisioneiros foram
levados, protestando fraca e timidamente, numa carrinha que chegou
entretanto.
Tinha sucedido antes da hora de abertura do restaurante e o tempo passou
nessas idas e vindas, interrogatórios e investigações, o que afastou a
clientela. Os candidatos a comensais nem saíram dos carros, foram procurar
refeição noutro sítio. Quando tudo estava calmo, já era tarde, só dois
clientes tinham se sentado, meio distraídos, no restaurante. Os últimos
polícias foram embora e Himba comandou, já está tudo sossegado,
regressamos ao nosso sítio.
– Com essa maka toda, hoje não aproveitamos restos – disse Luemba.
Não tinham concorrência, eram os únicos que ali estavam. Mas também
não haveria grandes sobras. De certeza iam guardar a comida já feita para o
jantar. Bem, aguardariam o jantar, nada a fazer. Os outros miúdos teriam
medo de se aproximar hoje da cozinha, imaginavam que a polícia ainda
rondava.
No entanto foram bafejados pela sorte, porque apareceu na porta das
traseiras o guarda de serviço, o Kassanje, que da outra vez lhes tinha
arranjado bom pitéu. Ele olhou para todos os lados, como garantindo
anonimato. Se aproximou deles e perguntou:
– Sabem do que aconteceu?
– Chegámos agora – se antecipou Kassule, temendo a boa-fé de Himba,
por vezes perigosa. – Aconteceu alguma coisa?
– Um vosso colega morreu. Lhe cortaram a garganta.
– Haka! – disse Himba, seguindo na onda de Kassule. – Porquê lhe
cortaram a garganta? Quem foi?
– A polícia levou uma carrada. Suspeitos. Mas ninguém viu nada e quem
viu deve ter fugido também. Amanhã os que foram apanhados voltam livres
para aqui. Hoje não sei o que sucedeu, havia muitos, mesmo muitos, nunca
tinha visto tantos. Então deu confusão, uns a querer ficar à frente dos
outros. Lutas, bassulas, até que alguém pegou numa navalha…
– De ponta e mola? – perguntou Kassule.
Himba temeu que o normalmente prudente amigo, levado pelo
entusiasmo do espetáculo a que assistira, escorregasse e contasse detalhes
que só quem assistira podia saber. Lhe lançou uma rápida mirada de
advertência. Mas viu nos olhos de Kassule que este não avançaria mais que
o conveniente.
– Não sei – disse o guarda. – Não vi, estava do outro lado, à entrada, para
tomar conta dos carros que iam chegar. Falavam de faca, uns, outros de
navalha… Porquê? Conheces alguém que tenha uma de ponta e mola?
– Eu é? – disse Kassule. – Não conheço. Mas costumo ouvir quando a
malta fala, diz navalha de ponta e mola, como se fosse o máximo. Qual é a
diferença? É só banga?
– Navalha é navalha, sei lá, é punhal, tudo igual. Só conheço baioneta e
arma de fogo. Mambos de guerra.
Himba admirou, esse guarda vinha lhes fazer essas perguntas porquê?
Também era da polícia? Ou só porque não tinha clientes e se aborrecia na
porta da frente? Nunca saberia. O certo é que o Kassanje lhes disse, ao
caminhar para o restaurante:
– Esperem um coche, depois vos trago o que sobrar. Hoje isto está vazio e
já ouvi o chefe dizer que fecham mais cedo.
Aconteceu. Um tempo depois ele apareceu com um embrulho, tinha uns
bons restos da comida destinada ao pessoal.
Estavam a comer no alto das pedras, quando Kassule comentou, depois
de uma gargalhada:
– O mal de uns é o bem de outros, como já dizia não sei mais quem… Já
viram? Um tipo que desconheço o nome dele morreu e por causa disso nós
temos uma refeição especial.
– Não fales assim que me cai mal – disse Himba.
– Não sei porquê – replicou o miúdo. – Então o komba não é isso
mesmo? Se come porque alguém morreu? É o nosso komba desse camarada
que ficou de garganta cortada.
– Cala, Kassule – gritou Luemba, tiritando de medo. – Não são conversas
boas. De morte…
O garoto encolheu os ombros e meteu mais um pedaço de carne na boca.
Mastigou, satisfeito, olhando o mar. Miúda pequena demais, pensou, não
conhece o mundo, parece há conversas más e conversas boas. São apenas
conversas. Como as que temos às vezes e procuramos explicar a nós
próprios como perdemos a família. Mas preferiu calar, saboreando a
comida, e a brisa fresca que lhe batia na cara. Já tinha visto muita coisa,
certamente demais para a sua idade.
O mar estava muito mais picado. As ondas se sucediam, embora não
fossem grandes demais, como numa calema. Os riscos de espuma no cimo
das ondas se juntavam, formando figuras.
– O mar tem tranças – disse Himba.
Kassule estranhou, tranças?
– Não vês? Essas ondas que se seguem umas nas outras, de vez em
quando uma vem e outra vai, ao chocar na arrebentação. Se trançam umas
nas outras, fazem novelos. Não parece mesmo, com a espuma por cima? É
como as vidas das pessoas.
Essa é boa, agora o mar tem tranças ou novelos, pensou o kandengue.
Mas ficou a meditar, a seguir as linhas de espuma que se ligavam, se
entrançavam. E viu as imagens de fitas como algas se enrolando, tal como
Himba tinha dito. Era só uma questão de olhar bem. O mar tinha novelos,
novelos de mar.
Aquela miúda mandava ideias!
Dois dias depois apareceram alguns dos presos. Entre eles o Jesse, um
miúdo dos primeiros que conheceram a catar comida nos contentores do
restaurante. Vinha com a cara inchada, lábios fendidos, inchaços nos olhos
quase fechados.
– Te deram, meu – disse Kassule.
– Muita porrada – disse Jesse. – Para contar quem cortou o pescoço do
Jiki. Eu só dizia, não vi nada, sou pequeno, até estava no chão, empurrado,
gente em cima de mim. Não interessa, porque tu viste e fala já, e era murros
e pontapés, chicotadas com cinturão, tudo a arder. No outro dia, um falou,
não sei mesmo quem foi, o culpado era o Malaquias, um miúdo calado que
também estava connosco. Nos soltaram a todos, menos ao Malaquias. Não
foi ele, estava ao pé de mim, empurrado também pelos grandes, lhe vi a
cara enterrada na areia com o peso dos outros. Lembro, naqueles momentos
de medo uma pessoa tem ideias malucas e eu pensei, esse miúdo não vai
poder respirar, morre aí mesmo, lhe sufocam com areia. Nem o Malaquias
tem faca nenhuma, lhe viram com alguma?
Os miúdos negaram, o Malaquias era um miúdo de uns treze anos,
magrinho como todos, quieto, calado, nunca teve arma nem ameaçou
ninguém.
– Haka! Então porquê disseram foi ele? – perguntou Himba.
– Só quem lhe acusou é que sabe o porquê. E não sei quem foi o filho da
puta.
Os outros recém-libertados concordaram com a cabeça. No entanto,
talvez o culpado estivesse entre eles, tendo denunciado um mais fraco para
se safar, agora se fazendo de compadecido, cheio de pena do companheiro
preso e inocente.
– Coitado do Malaquias – disse Kassule. – Tens razão, grande filho da
puta quem lhe acusou. – Olhou todos, que baixaram os olhos, menos Jesse.
Se os baixasse, também não se notaria muito, tão inchados estavam.
Durante aqueles dias seguintes ao assassinato do Jiki, havia muito pouca
frequência na zona do restaurante. Os miúdos desconfiavam da
possibilidade de uma rusga inesperada e os maiores seriam apanhados para
a tropa, aquele sítio estava marcado, um ponto de encontro com a guerra.
Como se não bastasse estarem em luta constante com a fome, a falta de um
teto, uma família. Só apareciam de facto os mais novos, sem idade para
serem mobilizados. Como ninguém tinha documentos, só o aspeto físico e a
aparência contavam. Tu já tens barba, pelo menos dezoito anos fizeste, toca
a ir para as forças armadas, tu és menina, ficas de fora, tu pareces um
kandengue de catorze anos, vai para casa, não te queremos só a atrapalhar.
Himba sempre ouvira dizer idade não era problema para os bandos
armados que atacavam os municípios, esses levavam as crianças, quanto
mais pequenas melhor, para as educarem na arte de matar sem hesitar nem
tremer e venerarem só o chefe. Ela até era uma exceção, pois tinha bilhete
de identidade, infelizmente tendo permanecido com o pai, o qual
transportava os documentos de toda a família, com ele ficariam mais
seguros. Neste caso, teria sido melhor para ela se guardasse o documento.
Mas logo a dúvida surgiu, adiantava? Teria posto o bilhete de identidade na
carteira, que largou quando o camião saiu da estrada. Perderia na mesma.
De facto, o pai não tinha culpa, ninguém a tinha. Só quem atacou o camião
de civis inocentes a fugirem de uma possível guerra. Ou eram culpados de
sentirem medo e recuarem para a capital? Sentir medo pode ser crime?
Deus castiga assim o crime do medo?
Ela tinha medo permanente dos rapazes mais velhos, capazes de a
violarem de novo, e isso era pecado? Deus é Deus, não tem medo, sabe
ninguém lhe pode tocar que fica logo queimado, ele próprio criou o medo
do fogo eterno. Assim é fácil, até eu não me importava com a guerra.
Reparou, pois tinha andado na catequese, que estava a cometer uma falha
grave, duvidando da bondade de Deus. Se é o criador de todas as coisas,
também o é do mal. Quem cria o mal não pode ser bom. Himba percebeu,
tinha perdido a fé. Já há muito tempo que não rezava, nem se lembrava
disso. E as ideias heréticas não a assustavam, antes lhe davam agora prazer.
Preferia olhar o mar, procurar Kianda. Esse ser ao menos agia com lógica,
segundo aprendera com os outros. Se ficava zangada porque não lhe
prestavam atenção, não atiravam umas oferendas para o mar, a vingança era
certa, fustigava os barcos e as praias com as ondas implacáveis que, mesmo
se não feriam ninguém, pelo menos impediam as pessoas de pescar e estas
sofriam da fome. Se os ilhéus lhe dessem prendas de vez em quando, em
sinal de veneração e respeito, as águas eram benignas e o peixe procurava
as redes e os anzóis. Kianda sim, merecia estima, era um deus a sério, com
ações que todos podiam entender. E se contentava com pouco, apenas uns
presentes modestos, não era como o da Bíblia, ciumento e vingativo, que
exigia adoração constante, e de castigos implacáveis.
Um dia falaria a Kassule destes pensamentos, quando ele fosse maior. Os
pensamentos devem ser partilhados, se têm valor. Ela sabia, esses seus
pensamentos eram sérios, difíceis de rebater, por isso mereciam ser
explicados. No entanto, ela própria partilhava sempre pouco as suas ideias
mais íntimas, mesmo com os irmãos, todos mais novos que ela. Devia ser a
guia, a orientadora dos irmãos, lhe dizia a mãe. Não só pelas palavras como
pelo exemplo. O problema era a sua timidez, a sua falta de confiança. Não
tinha nada para dizer, achava. Afinal não era verdade. Um miúdo como
Kassule estava sempre a esclarecer coisas que ele sabia, outras que até nem
sabia, mas falava, estabelecia relações, se aventurava no conhecimento do
outro. Realmente era um disparate manter o pensamento, vou deixar que ele
cresça para lhe falar das minhas dúvidas e certezas, ele estava mais que
crescido, ela é que precisava de crescer. Voltou de novo a ficar triste e
aquele dia, nascido limpo e fresco, parecia se tornar em pesado e opressivo,
como os outros. Sentia falta da mãe, com suas advertências calmas, e do
rigor do pai, sempre focado na sua missão de educar. Se completavam para
ela, só o percebia porque os perdera. Pôs a cara entre os joelhos para os
outros não repararem nas lágrimas rebeldes.
A dor da ausência exige recato.
Porém, Kassule estava sempre atento, mesmo quando dormia. Tinha já
muito tempo de viver sozinho e sem poder correr. A vigilância constante era
a sua possibilidade única de sobrevivência. Ninguém que lhe ensinou,
aprendeu com a vida, como os bichos a têm nos instintos. Por isso ele viu a
posição de Himba e adivinhou o ligeiríssimo tremor dos seus ombros.
Sentado na areia, fez deslizar a bunda pelo esforço da perna válida e se
juntou à menina.
– Deixa, a vida há de melhorar.
Ela não conteve então os soluços. Luemba dormia no seu sorriso de
menina e não acordou.
– Sinto falta dos meus pais… E não sei, não… esta vida vai melhorar?
Viste o que fizeram ao Malaquias? Devíamos ir à polícia, explicar quem
deu a facada…
– Xê, não fala isso. Depois, tínhamos de fugir da Ilha, os grandes nos iam
perseguir, até podiam matar. Íamos para onde? Nas arcadas da marginal ou
nas Finanças, eles iam nos descobrir. Mesmo os que não são amigos do
Amaro. Só porque falámos na polícia. Um bufo nunca é de confiança. Um
bufo deve ser castigado, é a lei das ruas.
– Mesmo se for para ajudar um inocente preso?
– Nunca se conta nada na polícia, nem num segurança, nunca… Viste o
guarda Kassanje a querer saber coisas só porque foi bom para nós duas
vezes? Para quê queria saber, o que lhe interessava? Também deve ter uma
missão que não conhecemos, todos têm. Às vez, me disseram, uma
informação dessas dá dinheiro.
– Dinheiro de quem?
– Alguém paga, também não sei.
Himba não estava convencida, embora reconhecesse em Kassule a
prudência do cágado, de cuja sabedoria estavam cheias as estórias contadas
na meninice. Insistiu de outra forma:
– Podíamos escrever num papel e deixar na polícia.
– Deixar como? Alguém te via levares lá. E depois tinhas de aparecer no
julgamento… Servir do… quê? De destemunha, não é?
– Testemunha, assim é que se diz.
– Está bem, testemunha… Se por acaso conseguisses fazer o papel chegar
sem ninguém saber, achas a polícia ia ligar? Deitavam fora. Devem estar
sempre a receber queixas de quem não se quer mostrar. Não adianta,
Himba, é melhor esquecer…
– Esquecer o Malaquias? E o Amaro?
– O Malaquias vai levar muita porrada, mas depois vão soltar ele, só
podem. E o Amaro um dia encontra um gajo que lhe põe as tripas de fora.
Tipos como o Amaro não duram muito. Basta o chefe do bando dele se
chatear um dia.
– Fraca consolação, haka!
– Já é alguma. Se não tens melhor…
Himba pensou, ela era a mais velha e instruída, como o próprio Kassule
reconhecia. Porém, nas coisas da luta pela vida ele parecia um ancião, lhe
dava conselhos, fazia de pai ou avô. Até podia estar errado, mas
apresentava argumentos mais fortes que os dela. A senhora boa das
trancinhas podia talvez orientar melhor, mandar o filho denunciar o caso na
polícia. Instintivamente, no entanto, Himba afastou logo a ideia. Ela e
Kassule eram as testemunhas. A senhora ia dizer, vocês têm de se
apresentar, não podem ficar escondidos e a esconder a verdade. E voltavam
à situação que Kassule descrevera. De terem de abandonar a Ilha. Se tivesse
outro sítio onde se refugiar, ela nem se importava, a zona tinha se tornado
hostil depois da violação, estava sempre a acordar aterrorizada com
pesadelos de rapazes grandes a quererem repetir a violência. Acordada,
evitava os matulões e fazia de morta se algum para ela olhasse com apetites
evidentes. Deixara de ser uma vida, mas era a que tinha, sina de viver com
medo. Madia afirmara, o sexo depois deixa de doer e uma pessoa se
habitua. Himba não acreditava. E o terror morava nela.
Sempre.
Os dias passaram e nem sinal do Malaquias. Pouco a pouco, os bandos
iam regressando às traseiras do restaurante.
– Acabou o que era bom – disse Kassule, apontando para o grupo de uns
vinte miúdos, todos pequenos, duas meninas no meio. E um matulão
armado em organizador de bichas. Tão bem organizou que ficou em
primeiro lugar. Os três amigos, porque viviam mesmo ali no refúgio,
estavam atrás dele, suportando os empurrões, sobretudo quando vieram os
baldes com os restos. Deu para comer algum coisa e enganar a fome
permanente.
Depois do almoço, Himba recordou, já passou tempo suficiente,
devíamos ir a casa da senhora boa das trancinhas para saber se chegou
resposta à carta. Luemba achou bem. Kassule encolheu os ombros,
podemos ir amanhã de manhã. Para parecer que vamos ao mata-bicho,
reclamou Himba, não, vamos agora e dizemos já comemos, o que é
verdade. O miúdo se conformou, meteu a muleta no sovaco, partiu à frente,
sem uma palavra.
Amuado.
A meio do trajeto, Himba lhe deu razão. De manhã era melhor, por causa
do calor da tarde. Havia árvores de vez em quando e o sol, declinando para
ocidente, provocava algumas sombras das casuarinas. Mas não chegava
para refrescar.
Dona Isabel estava em casa, ou melhor, fora de casa, debaixo da árvore
habitual. Só que, desta vez, estava sozinha, a escolher feijão. Nas lojas do
bairro, muitas vezes os comerciantes misturavam pedrinhas e areia no
feijão, para enganarem no peso. Então era preciso separar o feijão do lixo.
Se cumprimentaram e os meninos ficaram a ver a senhora no seu trabalho,
concentrada.
– Também aqui enganam os compradores? – Foi logo perguntando
Kassule, o conversador.
– É verdade. Desde que fecharam o mercado lá mais à frente, ainda não
percebi bem porquê, agora estamos entregues a esses aldrabões das
cantinas. Aprenderam com o colono, não esqueceram. Há muito tempo já
não acontecia estas vigarices, porque se comprava o feijão em sacos nas
lojas grandes ou às senhoras no mercado, nossas vizinhas aqui da Ilha.
Senhoras honestas, bessanganas. Agora estamos entregues a esses
cantineiros que ressuscitaram o que tinham aprendido com os fubeiros do
tempo colonial. Nem sempre dá jeito fazer compras longe, ir às lojas. E eles
aproveitam, os oportunistas.
O silêncio se instalou e Himba intuiu que não tinha chegado resposta
nenhuma, porque seria logo a primeira notícia a saltar da boca de Dona
Isabel. Ou então ela estava muito esquecida.
– Viemos saber se a minha tia respondeu – disse Luemba, com muita
vergonha.
A senhora olhou para ela com pena, só abanou a cabeça.
– Mas é normal. Devem estar a pensar como resolver o problema, pode
ser complicado virem cá, tem de ser de avião. Vamos esperar mais uns dias.
Se não houver resposta, escrevemos outra vez. As cartas se perdem muito,
sabias? Deve ser isso, pode se ter perdido. O meu falecido marido, que
trabalhava lá no edifício, na área da alfândega, vocês sabem, já vos contei
no outro dia, ele dizia que muitas cartas ou encomendas demoravam anos a
chegar ou nem chegavam mesmo. Ficavam esquecidas num sítio qualquer e
como ninguém reclamava, elas não iam para o destino.
Luemba, coitada, só torceu a boca, despeitada e pouco convencida com a
longa explicação. Ia chorar?, se perguntou Himba. A desilusão é a pior
coisa para uma criança e ela era ainda uma criança. Himba já não se
considerava como tal, mas Luemba era mesmo, pela idade e pela
experiência de vida. Luemba resistiu no entanto com sucesso à vontade de
chorar, acabou por concordar com a cabeça. Sem emitir um som.
Quem disse todas as crianças são choronas?
Dona Isabel pousou a quinda com o feijão, puxou Luemba pelo braço e a
pôs no seu colo. A menina se aninhou, como um passarinho junto da mãe. E
Himba teve saudades de outros tempos, em que tinha sempre um colo à sua
disposição, mesmo quando era maior. Sentou no chão, logo imitada por
Kassule.
– Oh, desculpem, distração minha, não sentem no chão, vou mandar vir
bancos…
Os dois pareciam teleguiados, ao mesmo tempo disseram, não vale a
pena, estamos bem no chão. Depois Himba acrescentou está bem limpo, foi
varrido hoje, se vê…
– Hoje ando distraída, desculpem. Cabeça de velha é assim.
– A senhora não é velha – disse Kassule. – Algum problema?
– Problemas há sempre, não é mesmo? Coisas minhas, nada de grave,
mas dá para distrair. Mas digam lá, não foi no vosso sítio em que houve
uma morte?
– Foi lá mesmo – disse Kassule. – A senhora já sabe?
– Toda a Ilha sabe. Se conhece sempre tudo, no fundo é um meio
pequeno. Até soube que não vos aconteceu nada. Uns foram presos mas não
vocês. Tenho os meus informadores secretos…
Os dois riram. Luemba estava alheada da conversa, talvez absorvida pela
falta de resposta da tia. Achava com algum terror, a tia se tinha livrado dela,
agora não sabia como explicar aos pais o que lhe acontecera, por isso nem
ia responder, fazia de morta. Por enquanto estava bem ali, no colo da
senhora das trancinhas, com vontade de chorar mas também a apreciar o
carinho.
– Um continua preso – disse Himba.
Kassule lhe mandou um aviso com os olhos. Mas Himba não ia avançar
mais, embora tivesse vontade de se abrir com Dona Isabel.
– Estão a ver? Isso eu não sabia… Ainda! Quem ficou preso?
– O Malaquias – disse Kassule. – Eu conheço ele, muito calmo, quieto
mesmo… A Himba também conhece…
– Queres dizer… Achas que não foi ele.
Kassule aprovou com a cabeça. Ela olhou para um e para o outro.
– Onde estavam vocês quando houve a confusão? Não estavam lá à
espera da comida?
Desconfiada, a senhora. Himba se antecipou a Kassule.
– Estávamos num esporão para lá, um pouco longe. Havia muita gente e
muita confusão, sabíamos que não tínhamos possibilidade de chegar à
comida, desistimos antes e nos afastámos para evitar problemas. Não vimos
nada, só ouvíamos gritos de lutas.
– Fizeram bem em não se meterem. Então passaram fome, coitados.
– Já estamos habituados à fome, Dona Isabel – disse Himba, suavemente.
– Antes passarem fome que arranjarem problemas. E como estão as
coisas por lá?
– Depois daquilo, os miúdos foram para outros sítios, tinham medo que a
polícia voltasse – disse Kassule. – Para nós até era bom, havia calma e mais
comida. Agora estão a regressar aos poucos, hoje já havia uns vinte.
– Então não comeram nada.
– Comemos, sim. Como ficamos sempre ali perto, somos dos primeiros a
nos posicionar na bicha. Quando não há os grandalhões. Quando eles estão,
aí ficamos mal, ele nos empurram para fora. Nenhum mais pequeno
consegue se safar.
– Hoje almoçámos – reforçou Himba, com um sorriso. – Verdade mesmo,
comemos bem.
Para que a senhora não pensasse, estamos aqui para pedir alguma coisa,
afinal viemos só por causa da carta.
– Não, já comeram mas eu vou chamar a Luzia para trazer uns
banquinhos. Almoçaram no melhor restaurante do mundo, não foi? Mas
podem ainda comer um lanche leve. Chá com pão. Pode ser?
Olharam uns para os outros, concordaram, ainda há lugar para isso. Com
a fome com que andavam, até podiam ter sido os únicos a ficar com o
contentor inteiro, aceitariam na mesma o lanche.
Reservas para a noite.
8

Daquela festa houve uma consequência, Kaleb passou a se juntar ao


grupo nas jantaradas. Na hora da despedida, porém, não seguia com os
outros que muitas vezes iam ainda para um bar novo ou uma festa.
Passavam a vida em farras, os privilegiados. Ele tinha trabalho, não era um
desocupado como os amigos, dizia Kaleb para Sofia. E ela pensava, devias
dizer não sou um príncipe desocupado. Príncipe sempre seria, não havia
maneira de evitar.
Salomé apareceu com o marido na ocasião seguinte e depois ficou sem
comparecer durante duas semanas. Voltou, sozinha, com aspeto mais calmo
e participativo nas discussões. Sofia olhava com frequência para a barriga
da outra, plana. Ainda seria muito cedo para a gravidez se manifestar ou
teria ela resolvido o problema? Bebia como antes, sem restrições. Acabou
por concluir que tinha mesmo tomado uma decisão radical, a única com
lógica. Arriscar por um objetivo é meritório mas arriscar apenas para se
castigar de uma falta inexpressiva é um disparate. E Salomé não era
estúpida, embora com os copos a mais tivesse feito afirmações
melodramáticas e disparatadas, pondo em causa o bom senso. Seria apenas
o sofrimento a falar.
Kaleb saía sempre em último, lhe perguntando quando a levava a passear
pelas noites cálidas de Luanda. A estas horas?, deves estar a gozar comigo.
Daqui vou dormir que amanhã pego no serviço cedo, como tu, suponho,
pelo menos é o que dizes… ou também és um imbumbável como os
outros?
– Uma vez não são vezes e amanhã é sábado, fico na cama até mais tarde.
Está bem, já sei que não gostas de convites para passeios noturnos.
– Sabes como?
– Alguém me disse, não interessa.
E ela pensou, só Abdias uma vez a convidou e levou tampa. Seria ele
capaz de confessar o seu insucesso a Kaleb? Abdias não lhe parecia ter
coragem para reconhecer uma derrota, pela qual poderia ser estigado. Kaleb
estava apenas a especular, decidiu.
– Mas um copo para despedida? Há um bar aqui perto, depois da
esquina.
– Conheço. Vou passar por lá quando for para casa. Mas já bebi o meu
último copo de água.
– Então te dou boleia. Juro que não te perturbo o sono, só uma boleia.
Sofia aceitou então. E se tornou hábito.
Os outros acabaram por perceber as manobras de saída do restaurante.
Não da primeira vez e da segunda, pois quando ela fechava as portas do
negócio e dizia boa noite ao guarda, já eles todos tinham partido nos seus
carros topo de gama. Mas uma vez Segismundo ficou mais tempo a digerir
o jantar no carro, olhando as estrelas e a lutar contra um poema demasiado
esquivo. Viu, portanto, quando os dois entraram no automóvel do biólogo e
sentiu um soluço no coração. Despeitado, esqueceu o poema, no entanto
ligou para os amigos pela Internet, afinal sabem o que eu vi?
Quem disse os poetas são discretos e só comunicam por verso?
Nada acontecia para lá da boleia e se despediam com um aperto de mão,
no carro não era prático dar beijinhos, conforme o hábito entre eles. Porém,
os amigos admitiram haver uma relação muito bem escondida entre os dois,
faziam ares sérios à sua frente e diziam piadas pelas costas, que tal o
parzinho clandestino?
Salomé tinha porém algumas dúvidas. Da mesma maneira que não contou
como tinha resolvido o mambo da gravidez, nem Sofia a questionara,
também não perguntou o que acontecia com Kaleb, seria uma atitude baixa
demais para ela. Todos falavam do mambo e ela não estava convencida.
Claro, tantas boleias se repetiram e de uma vez à frente do apartamento a
conversa estava tão boa que Kaleb não resistiu e aflorou os lábios dela com
os seus. Ela não recuou a cabeça, o beijo rápido aconteceu, ela abriu a
porta, já estás despedido, deu uma gargalhada e entrou no prédio. Da vez
seguinte Sofia aceitou com naturalidade a boleia, deixou que ele lhe
segurasse o ombro e a beijasse na despedida, beijo um pouco mais longo.
Saiu do carro e disse, não tenhas ilusões, não passamos daqui. Desapareceu
no prédio e Kaleb pela primeira vez se perguntou mas que raio está a
acontecer connosco? Ele se apaixonara, era evidente. E ela? Tinha sido bem
cristalina, não passariam daquela amizade que se resumia em boas
conversas e um beijo de despedida. Em que século estaria ela? Naquele
milénio antigo em que havia namoros com um muro pelo meio, como os
pais contavam ter conhecido? Kaleb manteve o hábito das boleias e do beijo
breve, sem insistir em mais intimidade. No entanto, não achava muito
normal para pessoas adultas. Três meses passaram assim, o que era uma
eternidade naquela cidade de mudanças constantes, não só na cidade ela
própria com novos bairros e condomínios, como nas relações entre os seus
habitantes.
Dona Ester, senhora de poucas confidências mas pressentimentos severos,
também se preocupava com o aparente desprendimento de Sofia em relação
aos homens.
– Nem um namorado, minha filha? Na tua idade, eu já tinha tido todos os
filhos, os dois vivos e as duas falecidas. E tive ninhada pequena,
comparando com todas as minhas familiares e amigas, um mínimo de nove
por casal. Quando casas afinal? Ou não tens intenção de casar? Vais fazer
trinta e três anos, não é mesmo? Com essa idade Cristo caminhou para a
morte e tu ainda solteira…
Sofia deu uma gargalhada. Era boa essa ligação de idades, a senhora na
sua crença conseguira uma piada. Devota como era, não se podia admitir
que tivesse sido humor propositado, aliás Dona Ester não fazia brincadeiras,
falava sempre a sério e pouco, religiosa radical. Um dia chegou a admoestar
um cozinheiro que devia ter bebido demais antes do jantar e a língua se
soltou numa menção à bunda de uma assistente, não por ele se meter com a
bunda da outra, mas por procurar fazer uma graça. Só satanás fala através
de gargalhadas, disse ela, provavelmente lição aprendida na igreja. O
cozinheiro baixou a cabeça, procurou um canto para se esconder e a
conversa morreu ali. Portanto, Sofia sabia, não fora de propósito, mas
mesmo assim tivera piada.
Experimentou maneira de desviar a conversa incómoda para paisagens
diversas:
– Dona Ester, quem sabe com que idade morreu Cristo? Naquele tempo
não havia registo nem bilhete de identidade…
A senhora bravou. Mas só fez um muxoxo, desculpava tudo ao seu anjo
da guarda. Sofia era a única pessoa no restaurante a quem se admitia dizer o
que quisesse, da maneira que lhe saía, com humor ou com raiva.
A inquirição, essa, tinha ido para o balde do lixo.
Não impedia que Dona Ester esperasse outra ocasião para voltar à carga,
pois estava consumida com a falta de apetência da sócia por relações com
homens, a menos que fosse tão dissimulada que o conseguia esconder de
todos. Já havia muita gente a conhecer a amizade entre as duas, portanto ela
acabaria por receber o mujimbo se Sofia cultivasse alguma relação
clandestina. Já eram vários anos de convivência diária e nunca descobrira o
menor indício nem uma fofoca lhe chegara. Tinha pouca intimidade com o
irmão dela, um tipo reservado e que pouco aparecia por ali, senão iria
abordá-lo para pôr as coisas a limpo. Sem vergonha de ser considerada
zongola, a amizade tem certos direitos quando se trata do bem de outrem.
Porém, Diego era praticamente inacessível e não lhe parecia correto se
plantar na casa do outro para fazer perguntas íntimas sobre a irmã. Quem
dera que ele surgisse um dia por ali, ia mesmo esclarecer o assunto.
Entretanto, como não tinha relações com o grupo de amigos de Sofia, o
mujimbo de suas saídas com Kaleb nunca lhe chegaria aos ouvidos. Seria
uma preocupação a menos mas razão para um xingamento, tens um
namorado e andas a esconder de mim, que já perguntei? E te portas bem
com ele, mantendo todo o recato antes do casamento ou já perdeste a
honra?
De repente, na sua ignorância da vida da sócia, uma ideia perversa lhe
pregou um susto. Podia Sofia preferir mulheres? Seria uma vergonha,
pecado do tamanho de uma catedral. Não, desconseguia de imaginar uma
aberração dessas.
As mulheres com formação católica ficavam por vezes inibidas, por
considerarem as práticas sexuais pecaminosas por natureza, sobretudo antes
do casamento, conduta aliás comum no cristianismo em geral e rara nas
sociedades africanas tradicionais, onde desexistia muitas vezes o culto da
virgindade. Sofia tinha tido educação católica, conforme Dona Ester se
apercebera de algumas conversas. Mas estava completamente cortada de
qualquer prática religiosa, isso ela conhecia. Seria o caso de, apesar de já
não seguir os rituais, ter ficado marcada pelo estigma da pureza e renunciar
voluntariamente ao sexo? Como uma madre? Uma espécie de kijila da
juventude? Podia acontecer. Isso lhe dizia a sua pequena experiência desses
mambos, pois sempre fora uma devota de moral rígida e admitindo pouco
conversas sobre tais assuntos, mesmo com o pai dos seus filhos, mas os
ouvidos não estão na cabeça para permanecerem tapados.
Dona Ester se admirava do caminho dos seus pensamentos, nadando em
águas quase heréticas. Mas era por amor, tudo seria perdoado quando se
trata de amor.
Foi por essa altura que aconteceu o escândalo que abalou a sociedade dos
príncipes, duques e seus vassalos das revistas de modas e fofocas: Dona
Jezabel de Anunciação Noronha foi detida por acusação de assassinato.
Logo lhe fez companhia o filho, Gedeão de Anunciação Gomes Lukunga,
conhecido nos meios da noite e da moda por Gidinho. A vítima foi o marido
dela, um conhecido empresário brasileiro, encontrado com vários
ferimentos de faca, dois deles mortais. A primeira notícia, a da morte do
empresário Noronha, foi divulgada pelas rádios de manhã, e à noite já se
informava da prisão da suspeita. No dia seguinte, presume-se que depois de
interrogatório à assassina, foi preso o filho dela, cúmplice provável do
crime.
A prisão coincidiu com a ida do grupo de amigos ao restaurante na noite
seguinte, quando já se sabia da prisão de mãe e filho. Como a acusada era
senhora relacionada com o meio deles e famílias, partícipe constante dos
encontros do jet-set local, a conversa não podia fugir ao assunto, cada um
procurando nos telemóveis detalhes e suposições que contava aos outros,
animando assim a especulação sobre os motivos, modos de conduzir o
inquérito policial, consequências e mais veredas desbravadas pela conversa.
Ainda estavam a comer e havia mais clientes no restaurante mas chamavam
constantemente Sofia para a mesa, lhe explicando as causas da sua
excitação. Salomé não aparecera desta vez, Alfredo devia estar numa sonda
em pleno Oceano Atlântico. Também lá chegavam as notícias e estaria
informado da coisa mais importante que os príncipes tinham para debater
numa semana fraca em escândalos. Alguém até talvez ligasse para ele da
mesa, trocando opiniões, se houvesse lembrança. Sofia nem quis sugerir tal
coisa, pois para ela o mambo desinteressava totalmente, não fazia ideia de
quem fosse a senhora presa e muito menos a vítima e o filho da assassina, o
Gidinho. Fugia depressa da malta com uma desculpa, enquanto os outros
comensais não fossem embora ela cumpria o seu dever de gestora, sem se
sentar a nenhuma mesa nem beneficiar com a sua presença um grupo ou
uma pessoa em particular. Kaleb percebeu a pouca importância que ela dava
ao assunto, sorriu para dentro, pois também ele considerava esta uma
conversa de desocupados, mas tinha de fazer parte do coletivo, eram seus
amigos e os amigos são também para fofocas sem interesse. Não era amigo
de Jezabel, a cinquentona que parecia da idade de Sofia, tantas as plásticas e
lipoaspirações feitas para conservar a juventude e a beleza. Quanto a beleza,
ele poria entre aspas, porque as operações lhe fixaram os lábios num sorriso
permanente, soando a falso por todos os lados que se contemplasse o rosto
liso. O inútil do filho, como contaria mais tarde Kaleb a Sofia, era resultado
de um casamento anterior com um ricaço chamado Gomes Lukunga,
empresário legalizado de diamantes depois de uma vida arriscada de
contrabando de kamanga, o qual morreu de doença difícil de identificar,
súbita como um ataque cardíaco.
Segundo diziam as más-línguas, o Lukunga fizera um testamento secreto
que passava toda a riqueza para outra mulher e filhos que tinha na região da
Lunda, onde possuía minas e fazendas, a sua morte pouco beneficiando
portanto Jezabel e Gidinho, os quais não ficaram propriamente na miséria
mas com bastantes dificuldades para o seu estilo perdulário de vida. Talvez
o dinheiro nas contas chegasse para uma situação desafogada, se tratando
de outra gente. No entanto, Jezabel e o filho estavam habituados a altos
voos, como explicou Kaleb, com férias de três em três meses para todos os
recantos paradisíacos do mundo e consequentes internamentos em clínicas
para remoçar o corpo da mãe, clarear o do filho, que tinha a estúpida
pretensão de um dia passar por sueco, e muito mais razões para viagens e
gastos faraónicos. No entanto, não foi Kaleb que fez o relacionamento de
factos que ia ocupar inteiramente a atenção dos amigos. Foi o mais
improvável dos investigadores, o poeta Segismundo, nem sempre a olhar
para a Lua e a contar sílabas. No meio da animadíssima conversa, permeada
por discussões paralelas, disse ele:
– Se a nossa amiga tem instintos assassinos, então a morte suspeita do
anterior marido pode ter sido um bocado forçada. Sabem se foi feita
autópsia, coisas assim?
– Achas? – disse Solferino, com uma gargalhada. – A morte foi estranha,
lembro-me que não foi encontrada a doença, mas e depois? Pensaram, é
ataque cardíaco, morte natural… Ninguém investigou nada. Que eu saiba e
também não sei muito.
– Se tivesse havido suspeitas, todos estávamos informados – reforçou
Tiago. – Uma investigação dessas à morte de um tipo como o Gomes
Lukunga, com minas de diamantes e frotas de camionagem que davam a
volta ao mundo ou quase, nunca ia ficar no segredo dos deuses. Nós
sabíamos.
Tiago batia levemente no telemóvel, a indicar que as redes sociais se
mexeriam imediatamente e todos ficavam ao corrente, no que tinha toda a
razão, como concordaram os outros.
– Ninguém deve ter mexido uma palha, a malta come demais e bebe
demais, os corações são fracos para tanta coisa, uma morte é sempre natural
– disse Segismundo. – Agora sim, podem começar a conectar as coisas,
como eu fiz. Aposte comigo quem quiser, hoje mesmo lhe estão a fazer
perguntas sobre a morte do marido anterior, o qual tinha outra família e
deixou tudo para eles. Jeza pode ter descoberto a verdade e se vingou com
veneno ou outra maneira sofisticada de fazer um homem saudável virar
cadáver, picada de surucucu, feitiço do Uíje...
– Já agora porque não de Malanje? – disse Kaleb no gozo.
– Não sei se vocês em Malanje têm bons feitiços, no Uíje sei que têm.
– Falando sério – disse Abdias, à vontade por Sofia estar longe dali. – O
modus operandi é completamente diferente. No primeiro caso, a polícia
nem se apercebeu de ser assassinato. Agora foi um festival de sangue e
facadas… Ou o primeiro de facto não foi crime ou é outro criminoso…
– Vês muitas séries – disse Kaleb. – Essa coisa que um assassino atua
sempre da mesma maneira é por economia criativa, o episódio só pode
durar cinquenta minutos…
– Esqueces que sou formado em Direito? – disse Abdias.
– E depois? – replicou Kaleb, encolhendo os ombros. – Sabes tanto de
criminologia como eu. Mesmo se fizeste alguma cadeira teórica.
– Até fiz duas ou três. E aprendi alguma coisa, apesar de não praticar.
Kaleb se arrependeu de ter levado a conversa para aquele tabu, o de os
príncipes não trabalharem senão fingindo roçar a bunda nos cadeirões das
empresas paternas. Podia dizer, como fizera quando foi apresentado a Sofia,
que era o único com um emprego, isso não ofendia. Era diferente de dizer,
vocês não aprenderam nada só com aulas teóricas. Lógica deles, orgulho
ferido deles, muito ciosos dos seus diplomas ingleses ou americanos. Fez
um gesto de desculpa com o braço, passemos para outro ponto.
– Acho que Abdias viu bem a coisa – disse Segismundo. – Parece ser
uma maneira completamente diferente de se livrar do marido. O que não
afasta a suspeita de ter liquidado também o anterior. Desta vez pode ter sido
de raiva, com a ajuda do Gidinho… Ou ter sido o Gidinho que começou a
maka e ela ajudou o filho. Enfim, isso ainda não se sabe. Mas juro pelo
sangue de Cristo, esse julgamento não falho, nem que haja uma festa de
arromba no Rio de Janeiro ou em Calcutá.
– Toda Luanda vai assistir, podes crer – disse Abdias.
Ou a única Luanda que lhes interessa, pensou Kaleb, puxando pela sua
veia ecoanarquista. Ainda bem que Sofia não estava ali, não se sentia bem
com a atitude tida em relação a Abdias. Mas o pretenso jurista lhe metia
raiva, sempre a comer a sua apaixonada com os olhos, parecia um rafeiro
galando uma cadela de raça. Abdias merecia mudar de nome e se chamar
Kaleb ou outra palavra relacionada com cão.
Veio mais comida e sobretudo duas garrafas de vinho para matar a muita
sede provocada pela conversa entusiasmada.
– Uma coisa interessante foi a ordem das prisões. Primeiro a mãe e umas
horas depois vai o filho. A Jeza denunciou o Gidinho?
A pergunta de Solferino criou um silêncio momentâneo no grupo. Todos
meditavam. A razão da prisão do filho podia ser outra, mas até parecia
mesmo que a mãe não se preocupara muito em protegê-lo, o que os
escandalizava, onde já se viu mãe a incriminar o mona?
– De facto, é o que parece – disse Abdias. – Claro, foram investigar em
casa e podem ter encontrado outras provas. Mas porquê prenderem primeiro
a Jeza, à noite, e só no dia seguinte o Gidinho? O crime foi descoberto de
manhã, a polícia investigou todo o dia, prendeu a Jeza e se tinham
encontrado provas incriminatórias contra ela, também deveriam ter contra o
filho. Uma noite inteira de interrogatório e ela abriu o jogo, vou kuzuo mas
o Gidinho vai me fazer companhia.
– Achas que ela tem tanta maldade? – perguntou Patrício, outro do
grupo.
– Bem, agora já acho tudo – disse Abdias, muito feliz por ser o animador
da conversa, já não acontecia há uns tempos. – Tinha realmente muito
carinho pela Jeza…
– Sempre há a presunção de inocência… – não resistiu Kaleb em falar,
embora usando um tom neutro. O pretenso jurista que desse o exemplo de
defender o bom nome das pessoas até serem julgadas culpadas por tribunal
idóneo. Nem isso sabia? Ora porra!
Silêncio de novo na mesa e um olhar hostil de Abdias, posto
profissionalmente em cheque e de maneira elegante, inatacável.
Sofia apareceu no momento, está tudo bem por aqui, continua a
animação? Mais vinho? Eles mostraram, ainda havia vinho nas garrafas,
incomodados com a tensão estabelecida pelo remoque de Kaleb. Ela
também se apercebeu de alguma coisa.
– A comida não vos agradou, falta alguma coisa?
Jared de Oliveira foi o primeiro a reagir:
– Não, tudo está perfeito, Sofia. É só aqui este mambo que estamos com
ele.
– Ainda?
– Vai durar muitos jantares – disse Solferino. – Esperem pelos jornais de
fim de semana, a coisa anima ainda mais, há sempre uns agentes bem
informados que dão dicas aos escribas. Se diz nalguns casos a troco de
umas gasosas pesadonas…
– Xê, nada de política! – avisou Tiago.
– Está na hora de passarmos às sobremesas – disse Patrício.
– Ya! O que tem de bom para nós, patroa?
Foi Jared quem perguntou mas ela respondeu para todos, recitando os
doces e frutas existentes. Falava sempre nas frutas, sabendo perfeitamente
que nenhum queria. Iam todos para os bolos e doces, de preferência com
natas e recheios mais sofisticados. Tinha apostado nos últimos tempos
também na melhoria dessa parte da ementa e se revelava rentável. Sofia, no
entanto, insistia nas frutas porque podiam comer uma delas e depois uma
doçaria, fazia menos mal e era na mesma rentável.
Com os príncipes, o dinheiro do petróleo jorrava.
***
O mar estava bravo quando Tobias entrou na sua vida.
Ao acordar com o bramido das ondas avançando como um esquadrão de
conquista para depois se espalmarem na praia e avançarem pela areia quase
até ao sítio onde os miúdos estavam deitados, Himba antecipou um dia
difícil, adivinhado na cor do mar, estranhamente escuro, misturado com a
espuma branca suja que, pelo contraste, reforçava a impressão de fúria. Os
novelos sujos e desmanchados. Kianda se zangara? Cólera repentina, pois,
na hora de adormecer, as ondinhas arrulhavam nos seus ouvidos,
convidando ao sono tranquilo. A noite enfureceu Kianda ou foi Kianda a
enfurecer a noite e o mar? Os pescadores lá saberiam, sobretudo o Kilamba
que era profissional de tratar esses assuntos de espíritos e seres marinhos,
não ela, menina e quase acabada de chegar àquela Ilha, ainda menos de um
ano, sem nunca antes ter visto uma praia. No entanto, na sua ignorância das
coisas do mundo e do mar, conseguia pressentir a maldição daquele dia,
antes mesmo de ele se desvendar. Com apreensão, despertou os outros,
acordem, vamos recuar, o mar está bravo e a se aproximar.
Foi nesse dia que Tobias voltou a aparecer.
Ela compreendeu o inevitável ia acontecer, ao ver o bando de cinco
rapazes a avançar para as últimas pedras do esporão onde se tinham
refugiado da água fria, quase na estrada. Da primeira vez conseguiu lhe
fintar com aquele truque do pai ali próximo, agora não tinha hipótese, ele já
estava avisado. O grupo se encostou às pedras e o mais velho, aparentando
uns dezoito anos, logo disparou, mordaz:
– Então, filhinhos do papá, dormiram bem com essa calema? Não foram
para as vossas boas caminhas na casa dos velhos, preferiram ficar nas
pedras? E o papá deixa?
Eles calaram. Iam dizer mais quê?
– O meu nome é Tobias. Sou o chefe deste grupo. E tu, espertinha, vais
ser minha mulher. Te disse no outro dia.
Himba não precisou levantar os olhos para saber que se referia a ela. Os
amigos de Tobias riram mas não acrescentaram palavras. O mar parecia
fazer eco da ameaça tranquila do rapaz. Ele continuou num tom sem
qualquer animosidade, antes divertimento:
– Julgas foste muito esperta no outro dia, que nos enganaste. Vimos muito
bem não havia pai nenhum, vocês são kandengues de rua como nós… aqui
até nem são, só kandengues de areia… Eu deixei-te ir, sabia íamos se
encontrar de novo. Demorei uns dias porque teve confusão nesta praia, tu
conheces. E onde está polícia eu não gosto de estacionar. Agora acalmou,
apanharam um miúdo, ficam todos satisfeitos, missão cumprida. Por isso
voltámos. E te pergunto já, como vai ser? Vens connosco para a nossa zona
ou mudamos nós para aqui?
A menina se sentia encurralada. O que era melhor? Kassule não tinha
uma ideia, uma finta suplementar? Parecia tão cercado quanto ela, embora
não fizesse parte da equação. No entanto, no seu íntimo, o rapaz se sentia
também ameaçado. Sobretudo se Himba reagisse mal e a violência podia se
virar contra todos. Tobias parecia muito senhor de si, os seus desejos eram
ordens, falava até com calma e uma certa indulgência. Talvez não fosse pior
que outro qualquer, mas havia uma ameaça, sim, não só nas palavras,
sobretudo na presença. Sempre podia ensaiar uma diversão.
– Falaste do assassinato aqui – disse Kassule. – Sabes de tudo que passou,
Tobias?
O matulão se virou, admirado, para o miúdo, como ofendido por aquela
migalha de gente, um sub-humano, ousar lhe dirigir a palavra. Logo, porém,
mudou de atitude, um sorriso breve perpassou pelos lábios.
Condescendente.
– Sei o que todos sabem. Alguém passou uma faca no pescoço de alguém,
nem interessa o nome, e um kandengue foi apanhado pela polícia. Foram
vários, mas depois de surrados, guardaram um só lá na kionga.
– Foi o que passou a faca no pescoço do falecido?
– Canuco, fazes muitas perguntas. Mas vou te responder. Pode ser que
sim, pode ser que não. Interessa?
– Se eu dissesse que não foi o Malaquias, o que está preso?
O terreno era perigoso e Himba estava assustada. Percebia, Kassule
tentava desviar a atenção dos outros, interessá-los noutra coisa que não ela,
mas pouco adiantava ganhar alguns minutos. E se expunha sem sucesso. A
amizade forçando um milagre.
– Se me dissesses que não foi esse, é porque sabias quem foi de
verdade… – se adivinhava um laivo de falsidade na voz suave de Tobias,
Kassule que se cuidasse.
– Pois, se te dissesse que não foi ele…
– Mas não disseste.
– Pois não.
– E eu volto a repetir, não interessa. – Tobias mudou de tom, mais
assertivo, forte. – Esse Malaquias vai ser solto, é um kandengue da tua
idade ou pouco mais velho. Alguém lhe denunciou, talvez para se livrar. E o
assassino verdadeiro anda por aí. Pode muito bem ser o que aconteceu,
imaginar as diferentes possibilidades não é crime nenhum, mas isso não
muda nada. O mambo é que nós não somos nada, não valemos nada. Nós
todos. Olha, olha para ele.
Apontou para o mar, cada vez mais bravo, rugindo ventos, que quase
obrigava a levantarem as vozes por momentos para poderem ser ouvidos
pelos outros.
– Aquele sim, aquele tem força, quando se zanga derruba tudo. Aquele é
poderoso. E tu? Achas que vais poder tirar o teu amigo da cadeia, desafiar a
polícia, mostrar que são incompetentes, e avisar portanto o verdadeiro
assassino que o conheces? Que é, meu, pensas és capaz de lutar contra o
que está errado, mudar o mundo? Nem tu nem eu, nem ninguém aqui nesta
Ilha. Somos todos merda no mundo. Se o mudarmos, ainda fica uma merda
maior.
Tobias pelos vistos era filósofo. Estudou alguma coisa, julgou Himba, não
era um analfabeto ignorante. Pelo menos falava melhor que os outros
jovens e miúdos da praia. Perante o inevitável, o encontro com ele talvez
fosse o mal menor. Não tinha tido consciência, mas já estava vencida por
antecipação, aceitando a fatalidade. O que Madia tinha previsto, essa Madia
que tão bem conhecia o mundo, seus demónios, e tanta falta lhes fazia.
– Deixa, canuco, não vamos falar mais dessa confusão que passou aqui, o
passado deve ir para o sítio dele, o passado. O Malaquias é vosso amigo, é
chato, mas a dor da porrada acaba um dia e ele vai voltar. Mudamos de
assunto – se virou para o centro óbvio do seu interesse. – Minha garina
linda, afinal qual é o teu nome?
– Himba – foi um sussurro mas ele ouviu por cima do bramido da
calema.
– Himba – acariciou a palavra com a boca, criando a ilusão de conseguir
enrolar uma só palavra na língua. – Bonito. Simples. Suave. Como tu…
Ela estava semiparalisada, parecia a vontade lhe tinha sido sugada, os
pensamentos revoluteavam incapazes de se fixarem, procurando uma saída
que sabia inexistente. Magia de Kianda? Ou apenas medo daquela voz forte
que já da primeira vez lhe fizera estremecer? Se ouvia apenas o rugir do
mar, enquanto Tobias fitava a menina e esta escondia os olhos na areia. Ele
lhe tomou a mãozinha, a comparou com as suas, a dela por cima.
– Mão delicada, parece uma flor. Não foi feita para estar aqui nesta
miséria. Devias viver numa verdadeira casa.
– Vivi…
– Eu sei. Todos nós, nalgum momento das nossas vidas. Mas tu e essa
pequenina, como é o nome dela?
– Luemba – voltou a sussurrar muito baixo, mas ele ouvia.
Ou adivinhava no mover dos lábios.
– Vocês as duas não deviam estar aqui. Isto é só para homens fortes –
voltou a fazer mudar o tom de voz, autoritário. – A partir de agora, estão
protegidas, uma é a minha mulher, outra é minha cunhada. Tu também,
cunhado, sei o teu nome, Kassule, não é? A gente da Ilha te conhece, um
gajo famoso...
Não precisou de dizer, fazes-te notar com a tua perna teimosa e a muleta
improvisada. Embora na cidade haja muitos, pequenos ou grandes, mas não
estamos na cidade, estamos na Ilha, aqui és único, meu cunhado. Kassule e
Himba perceberam, ele teve o cuidado ou a delicadeza de fingir não reparar
na deficiência do miúdo, pelo menos não a invocou. Depois de algum
tempo de silêncio, o chefe do bando se afastou das pedras, ficou de braços
abertos, virado para todos eles, os seus companheiros e os três amigos.
– Só eu é que falo? Afinal? Matias, diz alguma coisa. Ou tu, Munhango…
Zero? Bom, depois dizem que sou um mau chefe, um tirano. Até parece têm
medo de mim.
Os do bando riram. Calados. Submissos? Himba se desapoiou das pedras,
sem saber o que faria a seguir, empurrada por um impulso, ficou de frente
para ele.
– Quem é mais forte, tu ou o Jonas, o Desperado Kid?
A cara de Tobias se modificou num segundo. Cerrou os maxilares, os
olhos se fecharam, sacudiu a cabeça. A fera escondida se tinha soltado,
mostrou o ódio. Falou rispidamente, embora não tão alto quanto seria de
prever, para quem conhecia os mambos da Ilha:
– Não me fales nesse nome da túji. Nunca me fales nele.
– Quero saber quem é mais forte. Me contaram, aqui havia o Austrália e
seu bando, mas veio o Jonas e lhes deu uma carga de porrada, uma carga
mesmo. O Austrália fugiu para a Chicala, já não arrisca vir deste lado. É
verdade?
– O Austrália é um cobardolas e um fraco, é isso.
– E tu és mais forte que o Jonas? Ou ele também te vai mandar para a
Chicala?
Tobias tremia de raiva, porém contida. Mais ou menos. Himba sabia estar
a arriscar uma surra, pelo menos muitos berros e insultos. Porém, lhe sabia
bem desafiá-lo, o impulso impensado a levara a sair do transe de medo
paralisante. Foi a figura dele, de braços abertos, armado em líder,
consolidando a posição em relação aos outros, obtenho tudo o que quero e
vocês só me ouvem, ficam calados, borrados de medo, foi essa figura que
lhe deu a entender ela tinha de o enfrentar, agora, não saberia explicar
porquê, só sentia, agia por instinto. A partir deste momento nada a deteria,
porque tinha a última palavra. Guardava a frase para o fim, como uma arma
secreta. A frase que surgiu do nada, da própria discussão entre os dois.
– Miúda, te respeitei, te falei bem, à frente de todos – voltava o tom
suave, insinuante. – És minha mulher, te escolhi entre todas. E pode haver
muitas por entre essas areias. Me respeita também, mereço. Te fiz mal? Te
insultei? Nada. Só palavras boas. E me ofendes assim?
Himba olhou para ele de frente, com o seu ar calmo e comedido, parecia
mesmo não estar a desafiar. Estava e não estava, era um teste, embora
desconhecesse a palavra. Lançou a estocada final, a frase que lhe tinha
surgido da disputa.
– Te pergunto de novo, és tão forte como ele? Porque disseste que me ias
proteger, a mim e à minha família. Preciso de saber se é verdade, nos
proteges do Jonas?
Os maxilares dele subitamente descerraram, os olhos abriram no que
parecia um maravilhamento, sorriu um sorriso aberto, que lhe cobriu a cara
toda. Como um pedaço súbito de calmaria no mar furibundo.
– Afinal é isso? Porquê não disseste logo?
– Eu perguntei logo. Tu é que ficaste zangado, parecia a calema te entrou
na cabeça, não respondeste. Levaste para o mal. Querias me meter medo?
Não tenho medo nem de ti nem do Jonas. Deixei de ter medo da própria
vida.
Ninguém replicou a tal afirmação vinda de uma miúda magrinha e fraca,
com os mamilos se escondendo ainda no vestido. Tobias voltou a lhe pegar
na mão com cuidado, falou mais alto para todos ouvirem sem qualquer
dúvida:
– Te juro, minha deusa linda, vou te proteger de todos os perigos. À tua
família também, passa a ser minha família. Um dia te mostro sou mais forte
que esse nome que falaste, nem sujo a minha boca com essa palavra
merdosa.
Os companheiros dele bateram palmas e se davam agora grandes
palmadas nos ombros uns dos outros, aliviados pelo desaparecimento da
tensão. Kassule observava o espetáculo como alheado, embora percebendo
o ardil da amiga, a qual tinha jogado os trunfos e ganhado o que podia.
Depois deveria ceder muito, mas não contava, a vida se vive minuto a
minuto, nunca se sabe o que vem a seguir. Kassule percebeu ainda que
Himba aprendia depressa a arte de se defender, e sobreviveria, mesmo
rodeada de hienas. Luemba parecia nem notar o acontecido, fitando apenas
o mar, se lembrando das calemas de Benguela, mais fortes ainda que essa
que estavam com ela.
Tobias ficou com a mão de Himba entre as suas e todos voltaram a se
encostar às últimas pedras, o mais longe possível da arrebentação. Mesmo
assim, a água por vezes chegava a lhes lamber os pés.
– Hoje o mar vai chegar à estrada – disse Munhango.
– Pode – concordou Insepulto, o quinto, até então calado.
Este miúdo, como Himba e Kassule viriam a saber mais tarde pela boca
do próprio, tinha a história de vida mais estranha. A aldeia onde ele vivia
foi atacada, muito tiroteio, três mortes entre os habitantes. Ele apanhou um
tiro na coxa, cuja cicatriz era visível quando levantava os calções. Com o
impacto ou o susto, desmaiou por cima de um dos mortos, seu tio materno.
O resto dos moradores fugiu ou foi feito prisioneiro, entre os quais os pais
de Insepulto, então chamado Kembua. Os atacantes obrigaram os
prisioneiros a abrir um buraco, para lá atiraram os quatro corpos sem
comprovarem que estavam todos mortos. Tiveram entretanto de fugir
porque se aproximavam soldados. Por isso não deitaram terra para cima dos
cadáveres. Insepulto acordou no meio dos mortos, se içou para fora do
buraco, com poucas forças pela perda de sangue. Um soldado viu-o sair do
buraco, entrou em pânico, um morto-vivo era uma ameaça terrível, um
kazumbi, como explicou mais tarde. Levantou a arma para disparar, porém
foi travado pelo oficial ao lado, espera, não faças fogo, é uma criança. Lhe
aplicaram um garrote no alto da coxa para estancar a hemorragia e depois
enviaram-no para o primeiro posto médico da área, onde lhe foi extraída a
bala. A história do soldado com medo de kazumbi foi motivo de muito gozo
entre os militares seus companheiros e a Kembua deram então o nome de
Insepulto. Era uma nova vida, vida de órfão com pais talvez vivos, atirado
para as ruas de cidades menores até chegar a Luanda. Adotou o novo nome
para essa nova vida. Até se ligar pouco tempo antes ao grupo de Tobias,
com quinze anos de idade. Nunca mais soube dos pais, andam pelos matos
ou estão numa base, dizia para os amigos.
– Vai ficar bravo durante quatro ou cinco dias – disse Zero.
– Afinal? Sabes muito sobre calema – disse Kassule, sem disfarçar a
ironia.
– Sei alguma coisa… Também tenho obrigação, não é?
– O Zero nasceu aqui na Ilha – disse Matias, olhando com gozo para o
pequeno Kassule, o qual tentava disfarçar a vergonha, grande boêlo que eu
sou, devia ficar masé calado.
– Porquê não estás em casa, então? – perguntou Himba.
– Os meus pais saíram da Ilha pouco tempo depois de eu nascer. Moram
no Sambizanga. O ano passado vim para aqui.
– Porquê?
– Sempre a me controlarem. A obrigarem a ir na escola. Escola chata…
Não gostei, preferi fugir.
– E nunca mais lhes foste ver? – Himba insistia no interrogatório. O
ponto era muito sensível para ela.
– Não. Um dia vou lá ir. Mas quando tiver dinheiro, apareço bem vestido,
presentes para eles. Aí já não vão mais me estigar, vão mesmo respeitar.
Ficaram calados por instantes. Matias deu um empurrão no Zero, riu para
os outros:
– Já lhe dissemos muitas vezes, essa estória não é assim… Hum, hum!
Foram os próprios pais que lhe puseram fora, porque ele vinha sempre tonto
de cheirar gasolina, disseram vai viver então na rua no meio dos cheiradores
de gasolina e pede esmola. Quando a esmola for bem grande, então volta
aqui para te darmos comida. Não foi assim mesmo que passou?
Zero riu.
– Nada. Eu é que fugi.
– Mas há uns que andam por aí, sobretudo na marginal, e foram
mandados para a rua pelos pais – disse Tobias. – Alguns reconhecem
mesmo. Falta dinheiro em casa, não tem comida, então os muadiês
preferem…
– Os pais fazem isso? – perguntou Himba.
– Ya, minha. Tem pais que fazem.
– Haka!
A menina estava escandalizada. Foi preciso Kassule lhe dizer que tinha
conhecido um kandengue em situação semelhante para ela acreditar. Vida
dura leva a decisões duras.
– Não é só aqui que isso acontece – disse Tobias, sempre segurando
delicadamente na mão da menina. – Sei de casos, até na Europa.
– Que é que conheces da Europa, hem, Tobias? – perguntou Himba, agora
abertamente desafiadora. – Estiveste lá?
– E é preciso ter estado para saber coisas de lá? Em todo o mundo
acontece os pais largarem filhos, alguns no contentor do lixo, um dia ainda
vamos procurar comida e encontramos um bebé…
– Não têm outra conversa? – gritou Luemba por cima do barulho da
calema.
– Oh, oh, ela fala! – disse Tobias.
Todos ficaram a olhar para a canuca, a qual se enfiou de novo na concha,
assustada por ser o foco de tanta atenção. Himba lhe abraçou, fica só calma,
está tudo bem.
– Que idade tem a miúda? – perguntou Matias.
– Oito anos, fez há pouco – disse Himba.
– E tu, Kassule?
– Tenho onze.
Tobias recuperou de novo a mão de Himba, que se tinha libertado para
confortar Luemba.
– E a minha princesa que idade tem?
– Tenho treze anos.
– Eu tenho dezassete – disse Tobias. – E os outros todos são de quinze,
não é, meus?
Os outros concordaram.
– Podíamos nos chamar o grupo dos quinze, mais um, que sou eu – disse
o chefe. – E estão feitas todas as apresentações.
Não era verdade, muita coisa ficou escondida nas memórias. Haveriam de
ser reveladas aos poucos, pensou Himba. O sol tinha levantado muito e
fustigava as ondas, provocando reflexos brilhantes, revelando seres
desconhecidos nas entranhas do oceano, uns reais, outros nascendo na
imaginação de cada um, conforme o estado de espírito como se olhava o
mar. Cabelos dos seres imaginários, transformados em algas, eram atirados
para a areia. Com elas vinha muito lixo, garrafas e sacos de plástico, paus,
folhas secas de palmeira ou bananeira, um búzio. Tobias foi recuperar o
búzio, cada vez mais raro de encontrar nas praias de Luanda pelo
sobrepovoamento que fazia desaparecer as quitetas, os caranguejos, as lapas
e mexilhões dos rochedos, enfim, toda a vida marinha.
Tobias entregou o búzio a Himba, que pelo seu estranhamento mostrava
que nunca tinha visto um.
– Junta na orelha, vais ouvir o mar. Minha primeira prenda para ti, a voz
do mar.
Ela obedeceu e sorriu, de facto ouvia o vento que vinha do mar.
Há dias assim, começam com maus pressentimentos que de facto se
realizam, depois acontece uma coisa que pode ser boa. De repente, tudo
muda. Apareceu da estrada um miúdo com uma carta na mão. Se dirigiu
sem hesitação para Kassule.
– Toma, Dona Isabel mandou entregar.
Kassule ficou espantado, estático, o outro teve de lhe enfiar o envelope na
mão.
– Para mim? Quem é que ia me escrever uma carta?
Himba já tinha percebido. Gritou:
– É a carta, Kassule. É a carta para a Luemba. Dá cá para eu ler.
Com efeito o nome escrito era o de Luemba, ao cuidado de Dona Isabel
Kimba, Ilha de Luanda.
Luemba despertou de novo, olhou para o envelope a ser rasgado pelas
mãos nervosas da amiga, mostrou alguma curiosidade, mas nenhuma
excitação, como se não tivesse percebido a importância do acontecimento.
– Mas porquê Dona Isabel mandou entregar a mim? – perguntava Kassule
ao miúdo, o qual repetiu ela só mandou te entregar. Encolheu os ombros e
foi embora.
– Não te disse que toda a Ilha te conhece? – perguntou Tobias.
Himba estava muito nervosa a tentar ler tudo de uma vez, senão tinha
respondido a Kassule, eras o mais fácil de identificar, a senhora disse ao
miúdo vai àquele restaurante assim e assim e procura o Kassule, o que não
tem uma perna, mas isto ela por delicadeza não diria, Dona Isabel nem
abriu a carta, podia ler por precaução, não fosse o miúdo confundir e não
entregar à pessoa certa, mas tal era a certeza de Kassule ser encontrado que
nem se deu ao trabalho de conferir, os kandengues iriam logo falar com ela,
tinha a certeza.
Depois de ler duas vezes, Himba informou Luemba:
– É carta da tua tia, é carta da tua tia. Diz que vem um senhor buscar-te
para te levar para Benguela, devemos ir a casa da senhora boa das
trancinhas, porque ela é que ia combinar com o senhor que trouxe esta carta
como fazer para te encontrar. Podes ler, tu sabes ler. Vais para Benguela,
Luemba, a tua família te encontrou.
A alegria de dar a boa notícia e a tristeza simultânea de perder a amiga e
protegida. O importante era a Luemba reencontrar a família, o resto não
contava, eram só mágoas que se guardavam. Kassule também sentiu o
mesmo e deu saltos sobre a perna, para gáudio dos mais velhos, sempre
ávidos de espetáculo que os retirasse da monotonia. Luemba só tinha
captado a mensagem principal, porque realmente Himba, com a excitação,
tinha lançado frases muito enoveladas, como as linhas do mar em calema.
Lia agora com muita atenção a carta da tia, viu mesmo o nome dela e era a
letra da tia e a assinatura da tia que lhe pedia muitas desculpas, nunca podia
se perdoar o que lhe fez, confiar naquela bandida da prima Fifi, a
oportunista, mas que ela fizera muito bem em lhe escrever, falou com um
amigo ainda parente que ia a Luanda e ele prometeu levar esta carta e te
trazer para Benguela de avião, em breve estaremos juntas e te pedirei
perdão, e depois vamos à igreja juntas agradecer a Nossa Senhora do
Pópulo, padroeira de Benguela, porque rezei muitos Padre-Nossos por ti
quando percebi que a Fifi não sabia onde estavas, ela disse tu fugiste de
casa, não percebia a razão da fuga, mas foste muito clara na tua carta e
acredito em ti, meu anjinho, aquela prima do meu marido não presta mesmo
e perdoa esta velha estúpida que acreditou na família alheia, erro que nunca
mais cometerei.
– Temos de ir a casa de Dona Isabel – disse Himba. – O senhor que
trouxe a carta pode estar ainda lá.
Tobias estava mesmo desconfiado. Não seria enganado segunda vez, era
mesmo certo. Pediu para ler a carta, posso? Luemba lhe entregou a carta da
tia e ele leu. Percebeu que a desconfiança era desnecessária. Suspirou ao
entregar de novo o papel.
– Pode estar mesmo à espera – concordou.
– Vamos então – disse Kassule, adivinhando a suspeita do chefe do bando
e ao mesmo tempo vislumbrando uma possibilidade de fuga para Himba. –
Vamos, estão à espera do quê? Luemba, tunda!
Quando os meninos se preparavam para partir, Tobias segurou a mão de
Himba e deu uns passos com ela.
– Vais voltar, não é? Espero aqui, depois te vou mostrar o sítio onde
vivemos, melhor que este. Não vais fugir…
– Eu volto. Não tenho mais para onde ir. Vou levar a Luemba e volto.
Podes ficar à espera. Prometeste me proteger.
Ele soltou a mão dela e Himba seguiu os outros dois, apressados. Levava
o búzio bem seguro, seu único tesouro.
Todas as praias ao longo da Ilha eram atacadas pelas águas furiosas, era
sempre preciso dar escapadelas para as evitar. Até ao sítio onde deviam
atravessar a estrada e se internarem na parte mais larga da Ilha, onde havia
o povoado original. O lugar de Dona Isabel Kimba.
A qual se encontrava sentada no seu banquinho à sombra, trançando o
cabelo da filha mais nova, acompanhada de um senhor de meia-idade e um
pouco gordo, também num banco.
– Ah, chegaram! O Xandu ainda não veio, deve se ter enfiado por aí,
distraído como sempre. Lhe disse para me avisar se vos encontrava. Fico a
saber que encontrou.
– Viemos logo – disse Kassule, um pouco ofegante pela rapidez da
caminhada.
– Aqui o senhor Faustino veio buscar a Luemba… Luemba, minha filha,
vem cá, te apresento, este senhor é que a tua tia mandou…
Himba empurrou Luemba que hesitava em se aproximar, vai então
cumprimentar o senhor, ainda é teu parente. Luemba de facto se lembrava
da cara dele, já o tinha visto na casa da tia. Cumprimentou como deve ser.
O Sr. Faustino disse:
– Leste a carta, sabes portanto que prometi à tua tia entrar em contacto e
levar-te comigo. Vim tratar de um assunto de serviço e volto amanhã para
Benguela. Tenho também um bilhete de avião para ti, a tua tia deu-me o
dinheiro para o comprar. E agora como fazemos?
– O Sr. Faustino está num hotel – disse a senhora boa das trancinhas. –
Mas tu estás muito suja para ir assim para um hotel.
Nem Luemba nem nenhum dos amigos tinha entrado num hotel, portanto
não perceberam a alusão. Luemba estava suja? Como em todos os dias
antes de entrar no mar. Hoje não dava para entrar, muita agitação nas águas.
Isso queria Himba explicar, ainda bem ficou calada, porque a intenção de D.
Isabel já tinha sido expressa antes ao senhor.
– Vais com a Himba se quiseres, para te ajudar. Tomar um banho. Está
roupa limpa com a Luzia para vestires. É um pouco usada mas serve para
não envergonhares ninguém no hotel. Vá, despacha-te… Ou não queres ir?
Himba mais uma vez incitou a pequena a avançar. As duas entraram na
casa da senhora, onde Luzia lhes mostrou a selha com água limpa e um
sabonete. No pequeno quintal de trás, protegido dos ventos e dos olhares
indiscretos. Luemba não precisava de ajuda, mas ficava mais tranquila com
a presença da amiga mais velha.
– A calema está aí – disse Luzia. – Vão dormir onde… vocês, os que
ficam?
– No mesmo sítio de sempre – respondeu Himba.
– A água não chega lá?
– Está a chegar.
– E então?
– Havemos de arranjar maneira.
Himba não disse que tinha uma proposta de Tobias para mudarem para o
sítio deles, provavelmente melhor. Não disse nem tinha de dizer, como ia
explicar Tobias à outra?
Aliás, como explicava Tobias a si própria?
As despedidas foram difíceis. Luemba queria ir para Benguela mas
também não os queria perder. Eles na mesma. Dona Isabel contemplava a
cena, com pena dos que ficavam. Se ela pudesse fazer mais. Ainda bem que
a pequenita voltava ao ninho, ao menos isso.
De regresso à praia, Kassule disse:
– Não temos de voltar lá. Hoje a Mutamba e a marginal estão cheias, com
os que recuaram das praias. Podemos procurar outros sítios fora da Ilha.
– Não, vamos onde o grupo está.
– Queres mesmo ir? Sabes muito bem o que ele quer.
– Não vou passar a vida a fugir. Cansa.
Apertou o búzio com força. As últimas prendas que recebera tinha sido no
Natal. Há tanto tempo já. Outro Natal, bem diferente, se aproximava,
dezembro já entrara. Kassule devia ter um sexto sentido, pois parecia
adivinhar o pensamento dela. Disse, como se tivesse pegado na recordação
dela e isso lhe tivesse feito nascer uma ideia:
– Esta calema veio em época errada. Me contaram e confirmei, costumam
ser em fevereiro ou abril, os meses das grandes chuvadas. Mas dezembro, o
mês do Natal? Devia ter perguntado à senhora boa das trancinhas se é
mesmo normal ou se anda alguém a brincar com as águas.
9

Diego riu muito quando, ao mata-bicho, a irmã lhe contou das conversas
que dominaram a noite anterior no restaurante. Ele tinha ouvido no rádio do
candongueiro a cena do assassinato do ricaço, o brasileiro Noronha. Este
empresário era conhecido e pouco simpático aos pintores amigos dele, pois
tinha organizado uma exposição coletiva de artistas angolanos em Salvador
da Bahia, Brasil, denominada «Regresso às Origens», mas afinal não
ajudara ao regresso do dinheiro arrecadado pela venda dos quadros no país
irmão, exigindo uma comissão por cada transferência, pouco sobrando para
os artistas. Ainda pensei em enviar um poker de catos do deserto do
Namibe, contou Diego, mas desisti, não me cheirou bem, uma intuição. Os
que embarcaram na aventura até hoje se queixam de terem confiado no dito
Noronha, trambiqueiro de primeira. Os que venderam quadros pouco
receberam por eles. Os que não venderam, também não recuperaram as
pinturas. Se pode dizer que foi um atribulado regresso às origens do kilapi.
Já então era rico para burro, nem precisava de meia dúzia de dólares
fanados aos pintores, só mesmo por vício de roubar…
– Mas nunca desejariam a morte dele...
– Claro, os meus amigos são calminhos, tudo peace and love. Com muita
liamba para tranquilizar o ambiente. Os artistas são uns anjos sonhadores,
preferem ficar no sossego deles, vendo cenas e mais cenas, por vezes
conseguindo passá-las para a tela ou o papel, então não sabias disso, minha
irmã? Alguns são mesmo rastafári, o seu profeta é Bob Marley, o rei do
reggae. Gente do bem.
– Sei, sobretudo a avaliar por ti.
Diego lhe deu dois beijos na face. Os momentos de fraternidade eram
cada vez mais raros, afastados um do outro pela cidade e sua vida
subterrânea. Só mesmo o mata-bicho se mantinha como ponto de união. Um
ritual importante, ultrapassando em significado a rotina.
– A propósito, como vai a tua pintura?
– Igual. Nada de anormal. Também nada de merecimento.
– Quando me fazes o grande quadro prometido?
– Não sei. Acho que ainda quando for vivo.
– Brincalhão.
– Sou otimista. Os kazumbis pintam mal.
Ela lhe serviu mais café, mas temeu derramar para fora, porque a mão
tremia com o esforço de controlar as gargalhadas. Diego sempre fora um
brincalhão, provocador. Ele bebeu com golinhos pequenos, como sempre
fazia, a saborear cada trago. Assim bebe quem teve uma infância precária,
em que o café ou o chá eram uma bênção caída do céu. Um maná a mais,
como para outros era um Ferrari ou um Bentley.
Cada bênção nas devidas proporções.
– Tenho de ir – disse Sofia. – Aulas de condução. Devias começar com
elas. O meu carro será também para ti.
– Não. Fico satisfeito por poderes comprar um carro, fico mesmo a torcer
que escolhas bem. Mas não tenho coragem de tirar carta de condução. É
para suicidas. Esse trânsito se tornou uma loucura e os motoristas mais
assassinos que a tua fofoqueira de sociedade.
– Minha fofoqueira… Agora estás a me ofender. Nunca vi a senhora em
vida, nem tinha sequer ouvido falar, sabes, não é o meu meio, o nosso meio
é este. Só ontem aprendi que ela era jurada frequente no concurso de Miss
Angola e estava em todas as festas dos novos-ricos, dos príncipes e dos
duques. Convidada para dar glamour ao ambiente, como eles dizem.
Ficarem extasiados com a presença de uma chupista dessas mostra cabeça
muito oca, não achas? Só há pouco tempo aprendi o que é glamour. Se isso
existe mesmo.
– Se existisse já o tinha pintado.
A gargalhada de Diego era impossível de ser ultrapassada. Ela bem que
tentou. Se separaram com aquela boa disposição.
Sofia foi para a aula de condução. O mais fácil era a parte teórica, onde
aprendia as regras de trânsito. Complicado arrancar com o carro sem ser aos
sacões e conduzir pelo meio dos milhares de veículos que quase não se
deslocavam, por causa dos engarrafamentos.
– Agora imagine – lhe falava o instrutor, enquanto ela tentava se
desembaraçar dos concorrentes e andar mais uns tantos metros. – Você
passa no exame, o que vai acontecer, está bem preparada. Mas só sabe
andar a vinte à hora no máximo. Depois se decide a ir para a estrada livre,
até Malanje ou Benguela. Acelera. Chega aos noventa à hora, mesmo cento
e vinte, é uma tentação, ninguém resiste a provar da velocidade. Como
aguenta o carro se tem uma surpresa qualquer? Um buraco, eles estão
sempre a surgir nas nossas estradas, um camião do outro lado, um
candongueiro fora de mão, uma vaca, outro obstáculo qualquer? Não
aguenta, se espatifa contra essa coisa ou uma árvore. É o que acontece na
maior parte dos casos. Somos o quinto país do mundo com mais acidentes
mortais. Muita sorte não sermos o primeiro, pelos vistos há ainda mais
malucos ou mais nabos. O problema é esse, as pessoas só aprendem a
conduzir muito devagar porque as ruas estão atulhadas, não sabem segurar
um carro com velocidade. Por isso, minha senhora, quando tiver a carta,
conduza à noite por estas ruas que ficam vazias. E acelere. Para ganhar
experiência. Ou então nunca saia dos congestionamentos de Luanda.
Conselho que lhe vale uma vida, a sua, e de outros que poderia atropelar.
Palavras sábias levadas para o restaurante, enquanto escolhia
mentalmente o carro que compraria quando tivesse a carta. Um pequeno e
barato, para começar. Destinado a ser arranhado, amolgado, por culpa dela e
da pressa dos outros. Mais tarde, com mais experiência de condução e mais
dinheiro, compraria o carro da sua vida.
Não tem mal sonhar.
Esquivou as perguntas, cada vez mais insistentes e ansiosas, da sócia
principal sobre os seus amores ou desamores, desviou o fluxo para o
escândalo do ano, o assassinato do empresário, afinal a senhora se interessa
por essas coisas, Dona Ester?, não, é apenas uma prova de que o mundo
caminha para o seu fim, satanás domina, dizem era uma senhora de
respeito, brilhava em todos os sítios onde ia, exageram sempre a falar dos
outros pois no fim de contas… Mas, Dona Ester, ela brilhava quando ia na
igreja ou num templo?, ela por si já fazia milagres, Dona Ester? O que
provocou a zanga da senhora, ela era e é uma ímpia terrível, com vários
maridos e cenas de amantes jovens, merece estar na cadeia pelo que fez e o
que pensou fazer, devia ficar com correntes pesadas nas mãos e nos pés
para toda a eternidade, o que levou Sofia a perguntar só mesmo para lhe
estigar, onde fica então a piedade cristã, a capacidade do perdão, Dona
Ester?
A sócia bufou com a boca, muxoxou, mas se calou. Esta Sofia tem
resposta para tudo, pensou a senhora, ou melhor, não tem nada, nunca
responde às perguntas que interessam, impossível entrar na vida mais
reservada. Nem sobre relações nem sobre o passado. Afinal, o que
realmente sabia sobre ela? O nome, a terra onde nasceu, a data de
nascimento, os nomes de pai e mãe, o que vem no bilhete de identidade. E
sei isso porque foi necessário mostrar o bilhete quando tratámos da entrada
dela para a sociedade, porque sem isso bem podia pensar que ela tinha
nascido em Cabinda. Não me interessava nada essas coisas, mas podia ao
menos contar uma cena com a mãe, ou dizer o que fazia o pai, se são vivos,
ela só disse a guerra separou todas as famílias, o que em parte é verdade,
nunca mais soube nada dos meus irmãos e primos, perdidos pelo Bié em
tempos, sei lá agora onde estão. Certamente mortos, enterrados de qualquer
maneira porque aquela guerra foi a pior de todas as guerras… Enfim, todos
têm os seus dramas que preferem não recordar porque doem. Deve ser isso.
Coitada da minha menina, sofreu muito.
Trataram do almoço.
A surpresa veio ao jantar, pois os amigos apareceram de novo e muito
mais cedo que o habitual. Não era normal virem duas noites seguidas,
haveria novidade, desconfiou. Com efeito, traziam com eles um
desconhecido, logo apresentado a Sofia com certo sigilo. O desconhecido
cumprimentou com voz baixa e os olhos estudando as outras mesas.
– O nosso convidado é o comissário Linha da Frente, um maioral da
polícia de investigação criminal – apresentou Segismundo, se antecipando a
qualquer outro.
– O comissário vem provar o teu arroz – avançou logo Patrício, bem
relacionado com a nomenclatura institucional por parte do pai, mais que no
mundo dos negócios. – Se gostar, fazem uma grande encomenda para uma
festa que projetam, aniversário da santa organização.
Sofia foi logo avisar na cozinha, hoje temos um cliente de luxo,
precisamos agradar, o arroz vai estar pronto a horas? Lhe garantiram que
sim, fosse recebendo as encomendas de aperitivos e entradinhas.
O jantar foi muito concorrido, casa cheia, e não tinham chegado ainda ao
fim de semana. Bom sinal. O grupo hoje era mais numeroso que das outras
vezes, pois até Salomé e Abigail, nos últimos tempos muito ausentes,
tinham comparecido. A mesa foi ocupada por dezanove pessoas, com o
comissário no local mais central. Sofia percebeu, lhe convidaram para sacar
dados confidenciais. Ainda sobre o crime? Só podia. Não lhe interessavam
nada as venturas e desventuras de Dona Jezabel de Anunciação, mas o
restaurante a abarrotar tinha outro encanto. No entanto, como não podia
deixar de notar, Kaleb se destacava pela ausência. Não foi avisado? Talvez.
Ou então nem queria ouvir as fofocas de desocupados. Afinal ele não se
enquadrava totalmente com os príncipes, embora fosse um deles, pelo
menos um duque. Porém não fazia parte do grupo inicial, foi recrutado
apenas na festa do Solferino.
Todos os grupos têm a sua ovelha ranhosa.
Não se atreveu perguntar, qual a razão da ausência de Kaleb? Primeiro,
podia ser considerada demasiada intromissão por parte de quem não
pertencia ao clube, apenas uma convidada para certas ocasiões. Depois,
seria dar combustível às zongolices sobre o presumível relacionamento dos
dois. Ficou assim no escuro. Tinha o número de telemóvel de Kaleb, nunca
lhe ligava, ele sim, às vezes, só para dar a entender sem o afirmar, continuo
a existir e penso em ti. Sofia queria mostrar que não pensava nele, por isso
ignorava o número, não replicava às chamadas. Hoje até havia uma razão
para ligar, está tudo aqui em alegre companhia descobrindo pistas
misteriosas e tu não apareces? Nunca telefonaria, seria dar parte de fraca,
confessar o que não queria, sobretudo encorajar avanços dele para depois o
rejeitar.
Há coisas que não se fazem.
O jantar terminou para muitos comensais e também para o comissário,
amarrado a outro compromisso inadiável, de barriga cheia. Cumprimentou
Sofia no final, gostei muito da vossa comida, são capazes de servir duzentas
pessoas?, ela afirmou claro, podemos, desde que contratados com dois dias
de antecedência, e então ele disse, o meu serviço depois virá contactá-la,
temos o almoço para a próxima semana e pagamos imediatamente, não
fazemos como alguns que ficam a dever, outra coisa não seria de esperar da
polícia nacional, respondeu ela com diplomacia, o que agradou a um dos
principais responsáveis pela segurança e sossego dos cidadãos.
Vazia a sala, ela se sentou no seu canto de mesa, ouvindo os restos de
discussão, a qual afinal não estava no fim, nem no princípio, sempre no
meio, sempre a recomeçar, como são as boas discussões entre amigos,
sobretudo se alimentadas com dados novos, secretos.
Soube então que a ideia insólita de Segismundo se revelava verdadeira, os
poetas são loucos mas também proféticos, como sempre se conheceu, e por
isso muitos não escapavam a fogueiras ou prisões de alta segurança. A
polícia investigava a morte do primeiro marido de Jezabel, por se ter
confirmado ela conhecer a existência de uma segunda mulher do falecido, a
qual escapara antes na Lunda a uma morte encomendada, a ser perpetrada
por dois congoleses que atravessariam a fronteira de caxexe para assassinar
mãe e filhos, todos, sem deixar uma semente, e logo bazarem para a sua
terra sem deixar pistas, mas foram tão incompetentes que não só falharam o
alvo como mataram um pacato cidadão libanês que vendia comida aos
trabalhadores das minas de diamantes e, por uma questão religiosa, não lhes
quis servir bebida alcoólica no almoço. Donde se pode logo concluir que
alguns interditos alimentares, kijilas, às vezes são perigosos. O caso tinha
sido analisado na altura pela polícia local que nunca se lembrou de avisar
Luanda sobre as suspeitas e conclusões. Com dez anos de atraso, chegavam
agora à capital. Este um dado.
O outro, mais importante, era que o falecido brasileiro, o segundo marido
agora assassinado, tinha constituído advogado há um mês para se divorciar
de Jezabel por esta lhe dilapidar parte importante da fortuna com suas
viagens, tratamentos de rejuvenescimento, lipoaspirações, implantes
mamários, de cabelos e de dentes, além de constantes tratamentos de
hormonas para Gidinho se transformar em mulher, dada a sua atração fatal
por homens, de preferência com muito dinheiro. Afinal, se confirmava o
suspeitado há muito, o filho era homossexual e queria impressionar o jet-set
angolano com uma aparição sensacional usando um vestido amarelo de
Madonna utilizado no concerto de Madison Bay, Austrália. Tinha feito
descolorações várias na pele e ainda sonhava em ser mulato claríssimo para
competir com Beyoncé ou mesmo loura, quando na personagem de mulher.
Todos esses tratamentos, feitos na Califórnia, em conhecida clínica para
deuses do cinema, saíam obviamente dos bolsos do Noronha, o qual já tinha
quatro filhos de anterior casamento e era obrigado a pagar pensões
elevadas. O empresário, de visão virada para a frente, achava que o seu
dinheiro seria mais bem empregue na construção de uma refinaria de
petróleo, há muito prometida ao país por todos os governantes e nunca
concretizada, com visíveis prejuízos para toda a África Austral, projeto esse
impedido pelos gastos exorbitantes da mulher e enteado bicha, como dizia
com desprezo o padrasto, voltando pela raiva à sua linguagem de favela.
– Há um claro exagero na comparação – disse Patrício, também formado
em gestão de empresas, o curso mais na moda entre os príncipes. – Todas as
despesas dela e do filho não pagam o preço de uma refinaria, mas percebo a
ideia. Ele tinha razão…
– Pode ser – disse Abigail, uma moça baixinha e quase sempre silenciosa,
com família de muitos dodós, milhões e milhões. – Mas temos de ver do
lado dela. Tinha os seus motivos para gastar dinheiro, afinal não há nada
que pague uma boa aparência…
O olhar mortal que lhe lançou Salomé calou a moça. Fala só quando
souberes o que vais dizer, minha burra. Era esse o recado. Abigail pareceu
ter compreendido, pois baixou a vista, emborcou mais um copo de uísque
velhíssimo, vinte e quatro anos, e mais não falou.
Na realidade, não se perdia muito com o seu silêncio, notou Sofia, que
sempre a achara um zero vazio, apesar dos muitos zeros da sua conta
bancária.
Abdias tinha duas ou três ideias sobre o assunto e fizera perguntas
pertinentes ao comissário. Agora estava calado pela presença da gestora do
restaurante. Segismundo, no entanto, sentia brilhar a sua estrela profética:
– Uma coisa já se sabe. Ela confessou o crime, esfaqueou o marido
porque ele a ia deixar. Perdeu a cabeça quando o Noronha lhe disse, estou
farto das tuas futilidades, desisto, vou viver a minha vida simples, sem
festas de arromba nem fogos de artifício só para embasbacar os outros
inúteis, arranja os jovenzinhos que quiseres, estou-me bem lixando para
isso, quero o meu dinheiro e a minha paz. Por outro lado, o Gidinho nem
estava presente, foi chamado pela mãe para limpar o sangue e se
desembaraçar do corpo. Mas começou a tremer e a dizer não sou capaz, que
faço com um corpo tão grande? Um imprestável, como bem sabemos… só
não percebo porque o prenderam. Nisso o comissário não foi nada claro. O
rapaz é inocente, nem se pode falar de ser cúmplice, apenas andou com a
mãe de pano do chão para a frente e para trás a limpar as pistas,
francamente, é crime proteger a mãe? E Gidinho tinha razão, o padrasto era
muito alimentado, mais de cem quilos de peso e um metro e noventa de
altura.
– Outra coisa se confirma – disse Solferino. – A mãe contou à polícia que
chamou o filho para a ajudar. Raio de mãe! Não podia ocultar esse detalhe
insignificante, só para o proteger? Onde eu estiver o meu filho deve estar. O
eterno egoísmo do amor de mãe, que até o arrasta para a prisão, nunca
longe dela.
Sofia se admirou com as últimas frases de Solferino. Revelaria algo da
sua relação com a própria mãe? Parecia. Do que ia aprendendo, todos os
príncipes tinham afinal vidas familiares atribuladas.
E segredos, pois então.
Segismundo, o poeta, entusiasmado nas suas vestes de investigador
criminal, aproveitou a pausa para perorar:
– O mais interessante da coisa é que nem foram capazes de se desfazer do
corpo. Tanta incompetência! Sentiram receio de chamar mais alguém, os
dois juntos não tinham força para o meter na mala de um carro e lançá-lo
para um mato qualquer... Era preciso uma mala grande, mas eles tinham
escolha em casa, o que não faltavam eram carros com grandes dimensões e
malas fundas. O que fizeram? Ficaram a limpar o sangue e as impressões
digitais na sua própria cozinha. Como se não as houvesse a granel… O
anormal era não haver. Esperaram pelo amanhecer e a Jeza telefonou para a
polícia. Que tinham chegado a casa, vindos de uma festa, e encontraram o
marido naquelas condições. Uma tentativa de roubo, sem dúvida!
Os outros riram. Era mesmo muita estupidez.
– Quem tenha visto um filme policial logo percebia que não tinham álibi,
pois que festa iam inventar? – continuou Segismundo, lançado por uma
ladeira sem travões, encantado com as próprias ideias. – Talvez se
considerassem acima de todas as suspeitas, ninguém iria comprovar o álibi,
acreditavam na versão só porque a senhora Jezabel de Anunciação
afirmava. Brincadeira!
O grupo tinha mudado de opinião numa vertigem em relação à alegada
assassina. Dois dias antes até a convidavam para os acompanhar e podiam
gabar a sua elegância e maneiras de aristocrata inglesa, agora a senhora
servia de escárnio e alimentava gargalhadas. Sofia compreendia, por um
lado, a máscara caíra e a realidade se tornava revoltante. Por outro,
adivinhava o que podia acontecer a qualquer um que andasse com o grupo
mas não fizesse de facto parte dele.
Cuidado, as amizades são instáveis.
Salomé carregava no uísque, aproveitando a ausência do marido, o qual a
moderava. Mandou vir mais uma garrafa de vinte e quatro anos, se ainda
tem stock acabamos com ele. Riram os outros. Sofia fez sinal a um
empregado, o qual foi buscar a nova garrafa, com a chave que ela lhe
passou. O quarto onde se guardavam as bebidas mais caras tinha uma porta
muito resistente com fechadura de trancas e só uma chave, na posse de
Sofia. Todas as semanas se contavam as garrafas e fazia o balanço com as
vendidas. Se alguma bebida faltasse, ela sempre sabia a quem tinha
confiado a chave, das raras vezes que lhe dava a preguiça para ela própria ir
buscar. De facto, sem que ninguém soubesse, nem Dona Ester, ela possuía
uma segunda chave em casa, guardada para caso de emergência. O resto do
restaurante podia ser roubado sem grande perda, com exceção dos
frigoríficos e aparelhos da cozinha. O tesouro estava nas garrafas caras, ela
tinha investido a sério e aos poucos, sempre a melhorar as existências com
novos produtos, alguns raros, de difícil saída. Mais ganharia com eles um
dia.
– Afinal, quando será o julgamento? – se atreveu a perguntar Sofia.
– Oh, ainda falta muito – gritou do outro lado Jared. – Embora pareça um
processo simples, na medida que ela já confessou e todas as provas estão lá
no local do crime… É preciso muita burocracia e também investigação. Os
polícias vão querer apurar a morte do primeiro marido, outros casos cuja
solução nunca foi encontrada e que se podem relacionar, etc. Há para mais
um ano, na melhor das hipóteses.
Tiago acrescentou, bem avisado pelo que estudava nas redes sociais:
– Além de que o Noronha é brasileiro. Portanto comporta também
implicações internacionais, o que atrasa sempre os processos. O Jared tem
razão, no mínimo um ano.
Olharam para Abdias, afinal o único jurista do grupo e com a última
palavra em mambo como este, mas ele matutava no seu canto, caladinho,
como alheado da discussão.
Sabemos todos porquê. Os amigos não.
***
Muita coisa passou naqueles seis meses, desde que Luemba partiu.
Escreveu de Benguela, estava bem e feliz com os tios; alguém tinha
rompido o cerco do Planalto e lhe trouxe boas notícias dos pais, pelo menos
estavam vivos. Luemba teve sorte, se regozijou Himba na altura, escapou,
sabe da família. Boa miúda, merece. Luemba se preocupava com eles, como
estavam, o Tobias e os outros tinham desaparecido sem fazer estragos?
Himba respondeu mais tarde, sempre com a ajuda de Dona Isabel para fazer
a carta chegar ao destino, estavam bem, dentro do normal, mas um pouco
melhor que antes, pelo menos já não tinha muito medo. O Tobias e seu
grupo protegiam-nos e nem precisavam de ir lutar nas bichas, no novo lugar
escolhido, entre dois restaurantes, depois da floresta da Ilha na direção da
ponta, o bando arranjava comida para todos e de vez em quando ela visitava
a senhora boa das trancinhas e lhe dava notícias também. A senhora se
interessava por eles, sempre com cuidados e conselhos. Portanto, tudo
certo.
O que Himba nas cartas não lhe contou foi o conselho sério de Dona
Isabel, pouco tempo depois de Luemba partir, lhe chamando à parte e
falando, minha filha, reparei, te estás a fazer mulher rápido-rápido e talvez a
tua mãe não tenha tido tempo de te explicar umas coisas ou achou eras
muito nova, mas foste obrigada a crescer mais depressa e sei, já tens as
regras, e podes portanto engravidar, o que é a pior coisa para uma criança
de treze anos, sem falar do perigo da sida, já ouviste falar, os rapazes podem
ter a doença sem o saber e passarem-te, por isso tens de usar isto, não tu,
mas ele – e lhe mostrava uma caixa com preservativos, leva contigo e
obriga o teu namorado a usar, tu não precisas porque não andas por aí à toa,
mas ele pode andar e até pode se injetar com seringas de outros já com a
doença, há muitos drogados, outra maneira de ficar infetado.
Himba ia negar, mas eu não tenho namorado, depois calou, a senhora das
trancinhas ouvia as vozes profundas da Ilha, as sibilantes e as silenciosas,
todos os segredos iam parar aos seus ouvidos, como não saberia de Tobias?
Do seu pacto de proteção? Melhor aproveitar sem mentir, a senhora também
não estava a condená-la, antes pelo contrário, só queria ajudar.
Tobias não gostou nada do mambo dos preservativos, mas ela pediu para
ele usar, melhor para todos e ele lhe fez a vontade, de facto era novo demais
para ser pai e que iam fazer ali ao relento com um filho? Dormiam no
acampamento do grupo que se resumia a vários cobertores velhos deitados
na areia, perto de um esporão numa parte mais alargada da Ilha e também
com mais casas perto, além dos dois restaurantes, um de cada lado da
avenida. Tinham quatro paus espetados fundo na areia onde ficavam presos
alguns panos para a sombra. Os panos evitavam também o ligeiro cacimbo
que nas noites mais húmidas caía sobre os corpos. As noites arrefeceram
mesmo e Himba se habituou a sentir o calor de Tobias, que dormia abraçado
às costas dela, lhe acariciando o corpo sempre, até ela cair na
inconsciência.
Era isso, estava habituada a ter um homem. Por vezes ele era um pouco
violento, para marcar a sua autoridade, sem exageros. Acabava por fazer
tudo o que ela queria, com jeitinho o convencia. Das primeiras vezes lhe
doeu quando ele a penetrou, sempre à noite, longe do grupo, só lhe pedindo
para evitar muitos gemidos, ele fazia o mais suavemente que podia. Ela
obedecia, engolia os gemidos, deixava o seu homem exercer o direito de
macho embora se retesasse como uma mabanga. Tempos depois já não
estava aterrorizada com o que iria acontecer quando ele a afastava do grupo
e a levava a deitar na areia e começava a lhe acariciar os mamilos e depois
as coxas. Aprendeu a relaxar o corpo, deixar acontecer com naturalidade.
Doía menos. Até tentar participar e, por vezes, sentir um ligeiro prazer,
nunca o verdadeiro prazer, de que falara Madia. Pelo menos já não tinha
dores e era mais agradável do que entrar na água fria. Tobias não cheirava
mal, não a apertava com brutalidade. Se era isso que tinha de pagar pela
ausência do medo constante, então pagava. Achava, tinha feito a opção
certa.
Foi o que disse um dia a Kassule que lhe perguntou, depois de muitos
rodeios, como se sentia. Bem, disse ela. Quero dizer, quando ele te faz, é
melhor ou pior do que quando aquele bando na floresta… Ela cortou rápido,
não tem comparação, Tobias não é bruto, sempre foi carinhoso, nunca me
violou. Não seria bem verdade, pois no princípio ela não queria, apenas
desconseguia de opor resistência à vontade dele. Sabia, se recusasse, ele
faria na mesma, no entanto com mais brutalidade. Quando ela contestava
diretamente o que ele dizia ou queria, desafiava a sua liderança, sentia o
corpo dele enrijecer e a voz sair cortante, embora contida. Tobias sabia
travar a raiva, coisa rara ali na Ilha. No que Kassule concordou com ela,
somos todos muito violentos, à menor coisa explodimos uns contra os
outros. Nisso Tobias parecia diferente, como se tivesse feito exigente treino
militar, habituado a controlar a situação e as suas próprias reações. Porém,
era tão capaz de violência quanto os outros.
Apenas mais inteligente.
– É o que dizem dele – confessou Kassule.
Tinha havido um momento complicado, uma semana atrás, quando deram
encontro com o grupo do Jonas. Os chefes se evitaram, passaram um pelo
outro, vigilantes, mas fingindo desconhecimento ou desprezo. O grupo do
Jonas era constituído por uns dez rapazes, todos a rondarem a idade dos
amigos de Tobias. O Jonas teria uns dezoito anos, ou mais. O cabelo de
metade da cabeça estava rapado, a outra metade pintada de amarelo,
chamava a atenção, desejo de se exibir, eu sou um muata. Himba
reconheceu Chico no grupo, um dos que a tinham violado. Tremeu mas se
conteve, porque sentiu a mão livre de Kassule no seu braço. Também ele
tinha reconhecido. Passaram uns pelos outros, imitando a indiferença dos
líderes. Kassule, porém, encarou atrevidamente Chico, mostrando saber
quem ele era, tu não te escondes mais, te galei mesmo, um dia vais pagar.
Himba percebeu a cena e os pensamentos do amigo, tremeu durante muito
tempo com o terror vindo das profundezas da memória.
Não pudera evitar de contar a Tobias, quando passaram a dormir juntos.
Ele afirmou, algo desapontado, que afinal ela já não era virgem e perguntou
como tinha acontecido. Ela preferiu engolir a vergonha e contar a verdade
nunca antes revelada. Não falou em nomes, eram uns desconhecidos com
quem nunca mais cruzara. O que era verdade até aquele dia na semana
anterior. À noite, antes de se deitarem todos, Kassule se juntou ao par e
disse:
– Tenho uma coisa para dizer ao Tobias e quero que tu oiças, Himba.
Ela adivinhou e implorou:
– Não digas, Kassule.
– É melhor mesmo ele saber. E explico depois porquê.
Falou então a Tobias, contando a cena da violação, com todos os detalhes,
muito mais pormenorizados que a versão de Himba, culminando com a
afirmação de que hoje tinham cruzado com o Chico, um do bando do
Jonas.
– O Jonas era o chefe desse grupo?
Se notava na voz de Tobias uma raiva fria, não tanto contra Chico mas
contra o líder do bando rival, chegando a pronunciar inadvertidamente o
nome odiado que jurara nunca referir.
– Daquele grupo não. Era um outro. Não era?
– Era outro – concordou a menina, com alívio, pois já sabia que a cólera
de Tobias seria muito maior se tivesse sido o Desperado Kid a desflorá-la.
– Podia ser outro gajo do bando – sugeriu o líder.
– Não – disseram os dois.
– Olhei para todos – continuou Kassule. – O chefe daquele grupo não
estava hoje com o Jonas.
– Pode ser que foi a algum lado, hoje não andou com eles.
– Pode, mas então são assim tantos?
– É um grupo numeroso – concordou Tobias, indiferente, parecia, pelo
menos.
E talvez fosse verdade, o número não contava, o importante era a
qualidade da chefia e a disciplina dos outros. Himba ouvira Tobias dizer
isso várias vezes e devia acreditar no que afirmava. Ela tinha dúvidas. Um
grupo de dez tem vantagem contra um grupo de cinco, alguém é sempre
apanhado pelas costas. Mesmo quando o chefe apresenta mais valor. Se for
numa batalha campal, todos envolvidos, claro que o número conta, Tobias
apenas se tentava convencer de uma certa invulnerabilidade para os outros
acreditarem cegamente nele ou para ele próprio disso se convencer.
– Vou pedir ao Zero para descobrir esse Chico e com quem andava o ano
passado. Minha deusa, te juro, vamos saber. E ele vai pagar pelo que te
fizeram.
Himba não queria vingança, apenas esquecer. No entanto sabia, era uma
ideia que desconseguiria sempre de impor a Tobias. Mais cedo ou mais
tarde, o seu namorado havia de apanhar o tal Chico a jeito para lhe
responder a umas certas perguntas. Em seguida, recebia o castigo. Esperava
que Tobias pudesse se conter e não passar de uma carga de porrada. Era
merecida, de qualquer forma. E os amigalhaços que ele denunciasse
também receberiam o prémio, um a um. Não era assim a justiça dos
grupos?
Kassule não precisou sequer de explicar porquê tinha resolvido contar
tudo ao Tobias. Ninguém lhe perguntou. E era evidente, Tobias precisava
saber que os violadores andavam na zona e podiam ter vontade de repetir a
façanha. Isso daria mais segurança a Himba, mesmo se ela queria esconder
as coisas por vergonha ou medo de consequências imprevisíveis. O pequeno
Kassule se arvorava em irmão protetor, nada a fazer para o persuadir do
contrário.
Zero era kaluanda, ainda por cima nascido na Ilha, o que queria dizer,
numerosos familiares por ali, uma rede que ele alimentava bem com visitas
e algumas brincadeiras. Muitos eram da mesma idade e se davam com
outros de todos os bandos. Nem durou uma semana. Há três dias disse a
Tobias, o qual à noite transmitiu a Himba, o Chico está há pouco no grupo
do Jonas, antes andava com um tal Costa Longa, assim o nome dele, que
fugiu quando o Jonas lhe exigiu dinheiro, uma espécie de renda semanal,
para poder continuar a roubar os banhistas nas praias controladas pelo
Desperado Kid. Ou a renda semanal ou uma carga de porrada que podia ser
fatal. O tal Costa Longa, habilidoso em detetar carteiras em bolsos de
calças, levou tal susto que a esta hora deve andar a fazer descobertas
sensacionais de carteiras enterradas na costa que vai para Cabo Ledo, mais
de cem quilómetros a sul… O Chico, por seu lado, continuava com a
fixação na floresta, ia lá muitas vezes fumar liamba com uns kambas, nem
sempre os mesmos.
O reconhecimento estava feito. Por isso, os cinco saíam da praia sem
dizer nada, voltamos para o almoço, não se aflijam, e os dois amigos
andavam por ali a fazer horas, esperando o resto do grupo. Três dias
seguidos foram à floresta, de manhã e de tarde. Até que vieram de uma
forma diferente, mais barulhentos, e Himba soube, Chico tinha sido
apanhado.
– Pronto, minha deusa, esse já vai mudar de Ilha, nesta não fica mais.
– Que lhe fizeste?
– Nada de especial. Mas tem de procurar um enfermeiro que lhe faça uns
pontos na cara e deve usar gesso num braço. Vai ser difícil rir sem fazer
caretas, aquele sacana da merda. E tenho o nome dos outros dois. O Costa
Longa será o último, anda longe, sumiu, o Chico confirmou e não havia
razão para o esconder. Mas vou encontrá-lo, mais tarde ou mais cedo, podes
ter a certeza.
Ela acreditou.
O Kassule, instruído por ela, foi falar com o Munhango, com quem se
entendia melhor. E veio confirmar a Himba, o Chico levou uma carga de
porrada daquelas... Nem teve tempo de fugir. Uns três que estavam com ele
aproveitaram desaparecer, fiquei sem saber se são do grupo do Jonas. Não
foi preciso muita coisa para o Chico dizer qual era a companhia dele
daquela vez da violação. Deu os nomes. E agora o Zero vai localizá-los. O
Chico agradeceu no fim, lágrimas de gratidão nos olhos inchados, o
conselho de sumir para sempre da Ilha. O Munhango acha que ele já deve
estar bué longe, se tiver forças para isso.
Um a menos.
Uns dias depois, o segundo foi apanhado perto de um restaurante. Cerca
de vinte miúdos assistiram a uma surra que ia ficar na história desses
tempos. O rapaz só gritava e queria saber a razão por que estava a ser tão
furiosamente massacrado, mas só quando jazia no chão, bem abonado,
incapaz de levantar sequer um dedo, é que Tobias lhe segredou porquê tinha
sido castigado e o fim reservado para ele, se algum dia se cruzassem mais
uma vez nesta terra ou na Caxemira ou na Lua, tendo de certeza o muadiê já
embarcado em qualquer meio de afastamento de Luanda.
Ou então era doido.
Depois houve o terceiro, começando por se mijar nas calças quando
percebeu que estava caçado. Se encontravam em sítio reservado, em plena
floresta, por isso Tobias foi mais claro logo no início, lhe dando uma lição
de moral sobre os danos que podia fazer a uma criança, o que era crime em
qualquer tribunal, por isso não tivesse ilusões, ia ser condenado e executada
a sentença imediatamente, começando esta por pontapés nos joelhos para
ele não se levantar mais e depois uns paus serviram de luvas de boxe,
Tobias não queria ferir as mãos como acontecera com os outros, usou só um
pau e depois de este partir, escolheu um maior, até se ouvirem ossos a
fraturar e os gritos do ferido trespassarem as sombras das casuarinas e dos
nimis. Umas boas pisadelas na cara completaram o julgamento sumário.
– O tipo ficou desacordado – disse Kassule a Himba. – O Munhango não
tem a certeza se está vivo. Mas deve estar, esses criminosos são rijos,
satanás faz milagres com eles, acreditas?
– Não.
Também não disse mais nada. Para quê?
Himba, no seu recato solitário, contemplando o mar, evitava pensar no
assunto, tinha medo de o fazer. Talvez porque achava bem a vingança de
Tobias, a envaidecesse tanta devoção. Seria mesmo devoção ou só ciúme?
Talvez porque não o queria julgar. Apenas. A vida é dura e os fortes usam a
força. Até outros mais fortes mostrarem que os fortes são fracos.
Sucessivamente. Uma fileira enorme de fraquezas e forças, ondulando sem
sentido. As formigas eram diferentes, seguiam atrás umas das outras. Se
algo interrompia, elas se desorientavam e espalhavam imediatamente. No
caso das forças e das fraquezas não havia desorientação, corridas para aqui
e para ali, choques cabeça contra cabeça, era tudo mais linear, o mais forte
devorava o mais fraco até ser devorado por um mais forte, numa verdadeira
cadeia alimentar. Ideias que vinham de aulas ou livros ou conversas, não
sabia, mas eram abstratas e ela fazia os possíveis para essas ideias não
pousarem nunca sobre factos concretos ou pessoas reais, eram só ideias
vogando no espaço. Para não analisar os seus sentimentos?
Melhor é ficar na dúvida, no limbo, como os inocentes que morrem sem
batismo.
De Costa Longa nem o rasto. Zero vasculhava em todas as suas relações,
conseguiu até a colaboração de um polícia do Posto da Ilha, um nato dali, o
qual jurou não haver nenhuma informação sobre o paradeiro do foragido.
Mas que Zero não se preocupasse, o tal Costa Longa havia de fosforescer
algum dia e os caíngas saberiam ler a luz emanada, era sua missão
monitorizar a zona, distinguir os bandidos dos não-bandidos, saber onde
cada um dormia, passando muito mujimbo a Zero, que memorizava tudo
para contar ao seu muata, Tobias, essas notícias podiam ser utilizadas algum
dia, era bom saber o que os polícias conheciam e não conheciam, se
moveriam assim melhor naqueles meandros perigosos da Ilha de Luanda,
sempre nas margens da lei, evitando pisar demasiado o risco para não
provocarem rusgas prejudiciais, porém pisando o suficiente para poderem
sobreviver. Tobias tinha noção perfeita do equilíbrio necessário e por isso
era o chefe. Usava moderadamente da violência, só a indispensável para
provocar respeito e medo, mas sem exagerar para não instigar revoltas em
que todos perderiam.
Sobreviver era viver sobre o risco, manter o equilíbrio.
Nunca tinha dito a Zero, mas não precisava, o outro beneficiara de
experiências nos becos escuros do Sambizanga, onde se vive na ponta da
agulha, entre os gangues do mercado Roque Santeiro e os dois postos
policiais que marcavam o limite norte e o sul, com todos os tratos e
negociações e traições que isso implica. Zero sabia de equilíbrios. O chefe
nunca precisaria de lhe explicar para ele adivinhar o seu método. Portanto o
respeitava e confiava nele.
É preciso mais alguma coisa para ser fiel?
Zero lembrava a primeira vez que viu alguém morrer de morte provocada.
No Sambizanga. Tinha sete anos, dois anos depois de mudarem da Ilha para
aquele bairro. A mãe bem tentou pôr a mão nos olhos dele, mas
desconseguiu e ele presenciou tudo. Foi uma facada espetada por marido
ciumento em peito de mulher supostamente infiel. As famílias próximas
dela diziam não havia razão para aquilo, mas o homem tinha bebido ou
inalado, vinha numa fúria a interpretar uma piada que um amigo dissera,
entrou em casa, mastigando suspeitas, o kamba estava mesmo a falar da
mulher dele que foi apanhada a amigar com um comerciante maliano nas
traseiras da loja? Ela assustou quando viu os olhos do marido fixos nela e as
palavras se atropelando na boca a babar de cólera, recuou de casa antes que
houvesse desgraça, o que apareceu aos olhos do homem como uma
confissão de medo por ter sido descoberta, pegando então na primeira faca
que encontrou e saindo também para o beco, onde a mulher se pôs a gritar
por socorro e todos acorreram mas já não houve tempo para intervir, a
punhalada tinha sido rápida e certeira, uma só, mesmo no coração. Todos
viram, também Zero, contra a vontade da mãe dele. É, como dizem os
kotas, nesta terra para morrer basta estar vivo. Frase que corria mundo,
muitos já tinham ouvido, mas para Zero era novidade, dita na noite do
Sambizanga, quando os vizinhos e parentes velavam o corpo da falecida, no
quintal da casa, o marido já na esquadra, sangrando pela boca do primeiro
julgamento feito pelos caíngas, para ele ficar quieto e deixar de alimentar
ilusões, estava mesmo lixado e sem os dentes da frente.
Gesto de misericórdia policial, não permitir desilusões futuras.
Tinha contado essa estória da sua meninice, quando foi admitido no
bando. Podia ter escolhido outro, mas preferiu o de Tobias, atraído pelo
carisma do chefe, embora Zero desconhecesse a palavra carisma ou mesmo
o conceito.
Tobias tinha nascido no Planalto Central, como quase todos eles, mas na
parte do Bié, muito longe do mar. Num kimbo perto de uma missão
evangélica, onde muito cedo aprendeu a ler e escrever. Estudou até aos
quinze anos, passando miraculosamente pelas guerras sem ser recrutado por
um exército ou outro, talvez por efeito dos missionários, respeitados por
ambos os lados, os quais profetizavam grande futuro para ele, pelo seu
feitio calmo mas seguro, inteligência e vontade de aprender. Leu mais que
os colegas de escola, discutiu com os missionários quase como um adulto,
não só as coisas da religião, mas as da terra e do universo. Um dia arrumou
as suas imbambas, despediu da família, está na hora, desapareceu no
caminho. A família e os missionários lamentaram, ficaram convencidos de
que tinha sido o chamado da guerra, mas não, foi o chamado da grande
cidade, a leoa que rugia ao longe, tão fortemente que ele ouviu e veio, entre
perigos e ciladas, respondendo ao apelo da leoa que tinha conhecido nos
livros e estórias. Ao chegar a Luanda, não estranhou o meio, ignorou o
desprezo dos naturais lhe tratando como outro matuense qualquer, se meteu
na Ilha, entrou na água como Jesus no rio Jordão, só lhe faltou mesmo João
Batista para o batizar. O sabor salgado não lhe foi estranho, tudo conhecido,
vinha nos livros, nem o roncar dos carros e a confusão do trânsito, as
correrias dos vendedores nas ruas fugindo dos fiscais querendo se apoderar
dos bens à venda, os ladrões e suas práticas eram sabidos de Tobias, estava
preparado para se adaptar. O que aconteceu com toda a naturalidade.
Caminhou sozinho, percorreu a cidade como se andasse pelo dorso felpudo
da leoa, inspecionou os cantos e becos, até escolher mesmo a Ilha como
morada definitiva. Onde acabou fazendo amizade com Munhango,
primeiro, depois o discreto Matias, o gozador do Insepulto e por fim o
kaluanda Zero. Um grupo capaz de se defender, cada um contribuindo com
as capacidades para a sobrevivência.
Matias tinha o dom da obediência, um perfeito segundo homem ou
adjunto, incapaz de aspirar à chefia, ao mesmo tempo que podia reconhecer
o que passava no esconderijo da mente humana. Difícil de perceber como
fazia, ele sabia sempre se era verdade ou mentira o que alguém dizia.
Munhango era bom na pancada, sem medo, forte e ágil, com certa tendência
para o furto, no entanto, atraído por um brilho dissimulado, como se
cheirasse o valor das coisas, dom abençoado quando a vida estava difícil e
era preciso um objeto qualquer, relógio, gravador, pulseira, para vender.
Insepulto era também bom nas lutas, tinha passado pela morte e portanto
pouco valor dava à própria vida, mas guardava o humor de antes de todas as
desgraças. E Zero tinha a utilidade dos relacionamentos, o jeito para
perguntar coisas e perseguir pistas, além de extremamente hábil com facas e
cartas. Um grupo bom, se bem comandado.
O papel dele, Tobias.
O líder andava um pouco obcecado em encontrar Costa Longa para
terminar a tarefa que prometera a Himba. Ela não mostrava os sentimentos
e ele não sabia se lhe agradava o castigo infligido aos três restantes ou não.
Teve relutância em perguntar diretamente, sempre esperançado numa frase
dela, de agradecimento ou felicitações, ou então o contrário, dizer estão
perdoados, um bom cristão perdoa. Nessa zona do caráter da namorada ele
estava mesmo no escuro, pois lhe parecia Himba não ter fé nenhuma, bem
menos do que ele, que ainda conservava algumas ideias e reflexos da
educação recebida, mas ela se recusava a expressar opinião religiosa, nem
mesmo nas discussões de grupo depois de comerem, parecia assunto tabu.
Lembrava uma conversa com um dos missionários do Bié sobre
delinquência, em que o escocês lhe dizia, por vezes uma pessoa sofre um
trauma grande, qualquer mal acontecido a ela ou à família e, de repente,
deixa de crer, no fundo porque culpa a divindade de indiferença perante o
seu sofrimento. Seria a razão do silêncio de Himba sobre alguns assuntos?
Agora era importante saber a opinião dela, pois um dia iam apanhar o Costa
Longa e ele queria lhe dar o castigo que mais agradasse à namorada, matar
se fosse preciso, ela é que devia decidir. Mataria? Era contra os princípios
dele, embora admitisse lutar até à morte, em situação de defesa. Como
punição de outro, um assassinato a frio seria muito mais difícil de admitir.
Porém, não queria cair no desprezo de Himba, nem foste capaz de o
matar… Seria para mais tarde, Costa Longa ainda andava a fugir de Jonas e
sua ameaça feroz. Um dia perderia o medo ou receberia informações que
Jonas procurara outros ares, qualquer mudança que o levasse a voltar.
Então, tinha de saber a escolha de Himba. Estava disposto a seguir essa
vontade.
Himba, por seu lado, conseguia bloquear o cérebro e não refletir sobre o
assunto, como uma ferida que se tem e é dolorosa, mas preferimos ignorar,
numa tentativa patética de fazer desaparecer a dor. Ensaiara a experiência
com a perda dos pais, por vezes conseguindo passar períodos do dia sem
pensar no que poderia ter acontecido com eles, sem angústia. Horas
benditas, tranquilas. Era mais comum na parte da tarde, olhando o mar,
quando ele estava calmo como agora, embora de cores amortecidas pela
névoa quase permanente a cobrir o horizonte. No entanto, havia abertas no
cacimbo, o sol irrompia dominador e milhares de brilhos surgiam na crista
das ondas, cabritinhos de espuma cintilando. Sem novelos mais escuros,
enrolados uns nos outros. Nesses momentos encontrava paz, como quando
soube que Luemba tinha chegado bem a Benguela, finalmente alguém
conhecido venceu o triste destino provocado pela maldade humana, fica
bem, minha irmãzinha, aproveita do que a vida te quis dar, já viste o outro
lado, o lado onde nos encontramos, perigoso e de sofrimento constante,
aproveita então a bênção de teres passado além do espelho, como todos
deveríamos poder fazer.
E havia Kassule, observando à sua volta, todas as antenas de fora. Entrava
na cabeça da amiga? Sim, por vezes, começava a entender os longos
silêncios, sabia ela estava mergulhada em pensamentos tristes demais,
pensamentos de perda, sonhando com regressos impossíveis ao passado,
regressos que ele já tinha abandonado depois de viver anos a sonhar com a
recuperação das duas pernas para poder correr e jogar futebol. Nada podia
fazer para a ajudar, além de ficar por perto e mostrar com os olhos atentos
que velava por ela. Seria suficiente? Talvez ajudasse. Himba, pelo menos,
parecia notar a constante amizade e atenção, por isso tinha recusado
abandoná-lo para ir com a senhora que levou Madia, renúncia da libertação
apenas por causa dele.
Gesto nunca esquecido por Kassule, era um bem-agradecido.
10

Quando Dona Ester morreu, o crime de Jezabel de Anunciação tinha


deixado as primeiras páginas dos jornais. Se tornara também tema
secundário nas conversas da gente elegante, habituada à fugacidade do
interesse. As futilidades têm vida curta.
A senhora caiu de forma fulminante na cozinha. Largou a colher com que
provava um tempero, a colher caiu primeiro, depois ela se abateu com todo
o peso. O seu primeiro adjunto, o cozinheiro Tadeu, nem teve tempo de lhe
deitar a mão para aparar a queda. Ficou de boca aberta, olhos arregalados,
um arranhar estranho na garganta, gorjeios de pássaro. Kiaxi, uma das
auxiliares, soltou o grito que iria despertar os demais, entretidos na
preparação do almoço. Alguém se lembrou de berrar em seguida mais forte
e foi esse segundo brado que chamou Sofia da adega, como ela chamava no
gozo ao quarto das garrafas, onde verificava os stocks.
Tadeu já lhe tinha tocado no pulso gordo à procura de batimentos.
Constatou a morte. Abanou apenas a cabeça, informando os outros. Foi
então que apareceu Sofia, uma mão no pescoço, contendo sustos. Viu o
gesto de Tadeu, debruçado sobre a senhora, percebeu o acontecido. As
lágrimas ocuparam os olhos, se inclinou também para ela, apalpou o
coração, depois procurou o pulso, inútil, o cozinheiro tinha razão, a vida
partiu sem avisar. Encorajados pelas lágrimas de Sofia, os presentes deram
largas ao seu sofrimento, mais as mulheres que os homens. Ululavam e
xinguilavam, aiué, mamaué, nossa mãe, aiué, não despediu, foi, aiué, sem
mesmo despedir, ué. Os homens calados, apertando as mãos impotentes.
Sem saber o que fazer, Sofia segurava o telemóvel, tudo passaria por aí,
mas desconhecia os procedimentos e nem tinha números de bombeiros, de
emergência ou da polícia. Quem chamar? E ela era obrigada a liderar o
pessoal, a tomar iniciativas, então não chegara a segunda chefe do
restaurante, a primeira desde há momentos, embora sem ter tomado posse?
Desnecessária.
Levar a senhora para o hospital mais próximo, sim, havia um posto
médico na área, por vezes quem parece morto não o está realmente, só os
médicos podem saber. Pediu ajuda, dois dos homens seguraram no pesado
corpo de Dona Ester, duas mulheres se calaram e pegaram nas pernas,
levaram-na para a carrinha de serviço e deitaram-na no banco de trás. Sofia
se sentou ao lado do condutor.
No posto confirmaram o óbito. Um médico veio falar com Sofia, a qual
explicou como se tinha passado a morte e ele disse ser ataque cardíaco
instantâneo, não sentiu nada. Nem teve tempo de pedir perdão a deus por
algum pecado?, se perguntou Sofia, sabendo da religiosidade da sócia.
Pouco importava agora. O médico trazia um formulário que ela preencheu
com os dados da senhora, pelo menos nome e idade e naturalidade, os
outros seriam para depois, precisava encontrar o bilhete de identidade dela.
Deixou o seu contacto e saiu dali o mais depressa que podia.
Havia medidas a tomar.
Uma delas era fechar o restaurante, não haveria almoço nem jantar para
servir, o pessoal seria dispensado depois de terminar o trabalho que tinha
começado, comida só para os da casa, no dia seguinte deviam todos
aparecer para saber no que poderiam ajudar, pois teriam certamente tarefas
relacionadas com o óbito. Não dispensou Kiaxi, a mais nova trabalhadora,
que deveria ir com ela a casa de Dona Ester para avisar Ezequiel da morte
da mãe. Kiaxi ficaria com ele, a fazer companhia, enquanto Sofia daria as
voltas que se impunham. Talvez o motorista soubesse o que fazer, os
motoristas sabem sempre imensas coisas e conhecem a cidade como
ninguém. Teria de tratar do velório e do funeral, isso parecia ser o mais
urgente. Ah, e um anúncio no jornal para avisar amigos e conhecidos.
Familiares não tinha em Luanda, além do filho. O outro, que desaparecera
no Canadá, não contava, nem se daria ao incómodo de o informar. E como,
se pode saber?
O motorista explicou que havia uma funerária no bairro, podia não ser
muito boa, mas também para enterrar uma pessoa desnecessitavam de
luxos, no que ela concordou. Ficava bem avisar a gente da igreja dela,
alguns gostariam de estar presentes nas exéquias. Mas deixaria para o fim,
adivinhava futuras dificuldades com o pastor, um aldrabão e vigarista, que
ainda ia tentar ganhar alguma esmola de última hora, necessidade de fazer
umas orações especiais ou pregação inevitável no funeral. Com ela estava o
pastor mal, não levava nada para compensar a perda do dízimo pesado,
apenas a paga pelo serviço religioso do enterro, indispensável para ela,
Sofia, não cair na boca do mundo, como ingrata e avarenta, que nem elogio
encomendava para a sócia defunta.
Ezequiel não reagiu à notícia, como se não tivesse percebido. Ela repetiu
e ele só inclinou a cabeça de lado e deitou a língua de fora, processando a
informação. Estava cada vez pior desde a última vez que o vira, um ano
antes talvez. Se deu então conta de que nunca mais tinha visitado Dona
Ester em casa, quanto mais não fosse para saber se estava tudo bem. Via-a
todos os dias no restaurante, esquecera que a senhora tinha uma vida fora, e
um filho. Os familiares, se ainda estavam vivos, andariam pelo Bié,
segundo informações da sócia, pois ela tinha vindo de lá muito nova.
Perdera o rasto da família, com tanta guerra que houve por toda a parte.
Não seria Sofia a se preocupar com eles também. A família era Ezequiel,
precisando urgentemente de cuidados. Para já estava Kiaxi, depois veria o
que fazer. Era urgente tratar de Ezequiel mas tudo era urgente.
Foram à funerária, não só para contratar os serviços como para pedir
informações sobre os passos a dar, pois haveria burocracias com que ela
nem sonhava. O homem que a atendeu, se apresentando como um dos
donos da empresa, já de certa idade, para lá dos cinquenta, trajando fato
escuro como convinha à profissão, baixinho, não chegava a um metro e
meio, com voz fraca mas modos cerimoniosos e gentis, habituado a lidar
com pessoas em dificuldades, foi logo dizendo:
– Não poderá ser para amanhã, já é quase meio-dia.
Sofia tinha esperanças de resolver o assunto nesse dia mesmo e no
seguinte seria só o funeral, mas o senhor Gomes foi perentório, o corpo
ainda está no hospital e não o libertam logo. Se a polícia não complicar
essas coisas.
– Polícia? – estranhou Sofia.
Logo se lembrou da morte do brasileiro e das peripécias do caso. Também
ia haver averiguações e interrogatórios? Ela caiu à frente de muita gente
sem que lhe tocassem mas mentes retorcidas podiam pensar em efeitos de
veneno, nunca se sabe o que alguns interesses podem provocar. Até
suspeitas de feitiço poderiam ser levantadas, se algum interesse fosse
despertado.
– Sim. A polícia local tem de ser informada. Mas o hospital encarrega-se
de fazer essas coisas. A senhora deve me dizer como quer o velório, o tipo
de caixão, o funeral, as flores, essas coisas. Eu trato de tudo, o contacto com
o cemitério, o terreno para a sepultura, essas coisas. Se quiser poupar no
dinheiro, arranjo o caixão e alugo o carro, o resto trata a senhora. Mas olhe
que vai ficar com muita sarna e nervos em pé, essas coisas… É tudo muito
complicado com a papelada, se não é alguém do meio a resolver…
– Faça o orçamento para tudo, todo o serviço. Não sei nem tenho tempo
para resolver as burocracias.
– Uma jovem senhora com muita sabedoria. Não imagina a complicação
que são essas coisas. Uma pessoa morre e fica com os problemas
resolvidos, por muito grandes que fossem. Os que sobrevivem é que têm o
trabalho, essas coisas... Vamos então especificar essas coisas, como quer o
caixão, onde fazer o velório… Há uma sala aqui no bairro que tem sido
utilizada, alugada, claro, mas não é cara. Posso tratar do assunto.
– Sim, sim, trate, por favor. Faça o orçamento.
Queria se livrar com rapidez dessas coisas, termo recorrente na boca do
cangalheiro, porém não teve muita sorte. Ele exigia precisão com todos os
detalhes, quero que a jovem senhora concorde com o processo completo
para depois não falar mal da nossa empresa aos seus amigos, a publicidade
aqui no bairro é feita apenas pelo exemplo, todos me conhecem como uma
pessoa competente e honesta, quero do melhor para os nossos clientes, por
isso vamos conversar e pôr tudo no papel, essas coisas. E o senhor Gomes
passava à prática, pois escrevia com pormenor o que eles iam combinando,
de facto sempre seguindo as sugestões do cangalheiro, era ele o
profissional.
Todas as contas feitas, Sofia perguntou como queria o pagamento.
Descobriu, o orçamento se apresentava menos caro que o previsto, afinal a
funerária era modesta e com dificuldades em se implantar num bairro em
que a maior parte das pessoas ia morrer no estrangeiro ou na parte
tradicional da cidade, onde estavam os hospitais importantes. Os pobres do
bairro, que os havia ainda nos ximbecos destinados a serem derrubados,
gastavam o essencial. Por isso, o material seria do mais barato mas pouco
interessava, Dona Ester não era de luxos e lhe parecia um desperdício gastar
bué de kumbú em cetins e madeiras caras para ir tudo para baixo de terra.
Só se fosse para armar em fina. E o pessoal que apareceria no velório e no
funeral não era do que reparava em aparências, umas flores bastavam para
compor a cerimónia e uns tantos prantos e xinguilamentos para a senhora
não se sentir abandonada nos últimos momentos que passava ao ar livre.
Para o resto, já que ela acreditava nisso em vida, tinha a companhia dos
anjos que tocavam harpa e lira muito bem. Avançou um adiantamento em
notas que por acaso levava na carteira e depois levantaria dinheiro num
multicaixa para pagar o resto, pois a funerária ainda não aceitava a
modernice dos cartões de débito ou crédito.
Quando ela perguntou se aceitava cartão, o senhor Gomes sorriu meio
encabulado:
– Ó minha jovem senhora…
Ela percebeu e puxou das notas.
– Chega, chega muito bem como avanço de primeiras despesas – disse
ele, perante o ar interrogativo de Sofia.
Tudo como os clientes gostam, raciocínio do senhor Gomes, sem saber
que ela tinha estudado marketing e se socorria disso por vezes.
No carro para o regresso, ligou para o irmão, informando-o da morte da
sócia e que não fazia ideia das voltas a dar. Ele se ofereceu, estou na zona
do mercado do artesanato com os meus avilos mas vou para aí, posso apoiar
nalguma coisa. É só o tempo de apanhar um candongueiro, não é longe. De
facto não era. Ela a chegar ao restaurante fechado, abrir a porta e Diego a
aparecer, como te sentes? Destroçada, coitada da Dona Ester.
O motorista também não sabia como se fazia para ter aviso no obituário
do diário, Sofia já tinha perguntado. Muito menos Diego, desligado de
problemas do dia a dia, bem lhe bastava resolver os seus. Mas este lembrou,
escreve num papel, manda o motorista com algum dinheiro, ele pode perder
todo o tempo até chegar à sede do jornal, outras horas para voltar aqui, mas
trata do assunto. Assim fizeram, o motorista conhecia a sede do único diário
do país, toda a gente em Luanda conhecia, lá podiam indicar como
proceder. Se tivesse dúvidas, ligava para Sofia.
A gestora do restaurante se sentou a uma mesa, um pedaço de papel e
uma caneta, tenho de fazer uma lista das tarefas, aquilo que aprendi com o
cangalheiro.
– Posso beber uma cerveja? – perguntou Diego.
Ela apontou o frigorífico maior no bar, traz uma também para mim, os
copos estão por baixo do balcão. Era a primeira vez que estavam os dois
sozinhos no restaurante. Das poucas vezes que ele fora lá para tratar de
algum assunto, havia sempre gente, trabalhadores e clientes. Fazia
impressão olhar o restaurante a partir do balcão do bar.
Impressão estranha.
Sacou as caricas, respirou o ambiente, olhando em volta com a visão de
artista, e sentiu como compreendia tão bem Toulouse-Lautrec e seus
fascínios. Talvez fosse uma boa ocupação, embora não percebesse grande
coisa de bebidas. Pelo menos tinha uma perspetiva privilegiada dos clientes,
tipos humanos, comportamentos, dissimulações. Seria capaz de pintar uma
cena como a via agora, numa mesa a irmã inclinada sobre uma folha de
papel, a janela deixando coar a luz de fora, a penumbra do bar, o balcão em
grande plano, duas garrafas de cerveja no tampo, os copos…
– A cerveja vem ou não? – Depois de falar, Sofia levantou a cabeça para
ele e percebeu, pelo ar alheado, que o irmão imaginava uma cena, talvez um
quadro. Que nunca pintaria. Melhor não perguntar pois a invasão só o
perturbava, ele se quisesse podia contar. Diego sacudiu a cabeça, voltou à
realidade, sorriu, pegou nas cervejas e copos, trouxe para a mesa, arrastando
ligeiramente a perna esquerda.
Serviu as cervejas com cuidado.
– Muito me admira quereres beber – disse ele. – Agora é só água.
– Às vezes acontece beber uma cerveja, é muito raro um uísque ou um
gin. Hoje até devia ser uma coisa mais forte que cerveja.
– Pois, gin, bebida de rico. Nunca achei graça, antes caporroto.
– Deixa disso! Já comeste?
– Sim, uma sandula. E tu?
– Não tive tempo. Vou fazer esta lista e depois como. Se quiseres me
acompanhar, até podemos abrir uma garrafa de vinho. O pessoal guardou o
almoço para mim, dá para dois e sobra.
– Pode ser. Mas primeiro a cerveja.
Beberam em silêncio. Ela olhava para o papel, mordia a ponta da caneta
ao de leve, pensativa. Estariam inscritos todos os passos a dar? De certeza
faltaria algum, mais tarde haveria de lembrar. Dobrou o papel. Levou o
copo finalmente aos lábios, bebeu dois tragos com prazer evidente.
– Sabes, eu estava ali no balcão… Nunca tinha estado do lado de lá de um
balcão de bar… Acontece a muita gente? Nunca ter estado desse lado?
– Acontece, de certeza. Muita gente nunca pôs sequer um pé num bar ou
num restaurante.
– Claro. Não falo dessas pessoas, coitadas. Ou por dificuldades de kumbú
ou por religião ou apenas por falta de gosto. Falo das que frequentam bares
e cabarés, mas ficam sempre do lado dos clientes… A perspetiva é
completamente diferente.
– Qual é a mais bonita?
– De certeza a do lado de lá, como eu estive.
– Depende dos bares…
– E das pessoas também, eu sei… Estava a me lembrar de uma série de
quadros do Toulouse-Lautrec, conheces? Um pintor francês do século
dezanove, o artista dos cabarés de Paris, o melhor.
– Bem me parecia que estavas a imaginar coisas. Só podia ser um
quadro.
– Ele pintou muitos. Não só de gente a beber mas também dos bailarinos
e tipos de pessoas da época. O ambiente… Acho, ele via do lado de lá,
embora muitas vezes a perspetiva pintada pudesse ser outra. Mas a
capacidade de captar as luzes, a alegria, o cansaço, as maquilhagens, o
vício… Isso só se deve apanhar pelo olhar do barman, o único lúcido,
distanciado.
Ela aprovou com a cabeça.
– Não faço a mínima ideia, mas acredito em ti.
Como ele fez cara de desconfiança, está a gozar comigo?, ela sorriu,
apaziguadora, lhe pegou na mão.
– Falo sério. Acredito que devia ser assim como dizes. Tu sentes os
quadros, melhor, sentes a vida que a pintura transmite. Ou um simples
desenho. Falo sério, és um verdadeiro artista. Tenho muito orgulho em ti,
acredita.
Ele lhe acariciou a mão, em agradecimento.
– Eu podia trabalhar aqui como barman. Só para sentir a casa, quando
estivesse cheia. Aceitas-me como empregado? Mesmo de borla.
– De facto não temos ninguém. Esse bar é mais para fazer estilo, vês
como é pequeno? Tem três bancos altos, próprios de bar. Se algum cliente
quer beber um aperitivo antes de comer, pode ir se sentar. E um dos
empregados de mesa serve-lhe a bebida. É bonito ter uma estante com
garrafas de muitas marcas, garrafas bonitas, a máquina de café, um relógio
em cima. Só para decoração… se queres experimentar a sensação, podes vir
numa noite e fazer de barman. Vens bem vestido, não é preciso fato nem
gravata, claro. Uma camisa branca de manga comprida. Mas tenho de te
ensinar a servir um gin ou um uísque com gelo, isso sabes… se alguém
pedir um cocktail, temos o Armando, ele é o mais conhecedor. Podes vir e
sentir o ambiente, quantas vezes quiseres. E quando estiveres chateado,
podes bazar, ninguém te cobra nada. Pelo meio, às escondidas, bebes
qualquer coisa. Mas às escondidas, um barman nunca consome à frente dos
clientes.
– Ofereço-te o quadro que fizer. Ficava bem ali naquela parede.
Apontou para a principal, de frente para o bar, vazia de enfeites. As outras
tinham uns panos coloridos e umas máscaras, colares e búzios, desenhos
feitos de missangas. Não a principal, Sofia não sabia porquê tinha ficado
assim, já a encontrou na versão antiga e manteve, quando aumentaram e
remodelaram a sala. Só disse, esse quadro ficava bem naquela parede, sem
dúvida. Sabendo que era mais uma promessa, como as que regularmente ele
lhe fazia, sem nunca concretizar. Ele pensou no mesmo, disfarçando uma
careta.
O silêncio caiu sobre eles e lembraram da morta.
A empresa funerária já teria obtido o corpo para o preparar? Quando disse
o peso da falecida ao senhor Gomes, ele teve um baque, pensando no
trabalhão de a meter num caixão e depois na cova. Não é todos os dias que
se enterra uma pessoa de cento e vinte quilos. Quatro homens chegariam?
Bem, o problema era dele, se cobrou mais, tudo bem, estava no orçamento.
Ela tinha de ir a casa de Dona Ester, escolher o melhor vestido para levar à
agência. O cangalheiro tinha dispensado brincos e outras joias, é uma
atração para os ladrões, desenterram os caixões à noite para levarem o que
tem um mínimo de valor, traga só o vestido e a roupa interior. Ela tinha
ouvido falar do vandalismo nos cemitérios, houve uma altura em que todos
os caixões eram partidos pela família do falecido antes de lhe deitarem terra
em cima.
Pelo menos o caixão não seria aproveitado para outro funeral.

***

Naquele dia, foram visitar Dona Isabel.


Antes Himba insistiu com Tobias. Foi durante o banho matinal, hábito de
Tobias, sem medo do frio da água, bem quente quando comparada com a de
qualquer rio ou torneira do Planalto onde crescera. Também Himba
recordava a temperatura com que sempre tomara banho em casa, embora
tivesse de reconhecer, sabia bem entrar no mar durante os meses quentes.
Nessa altura então a menina repetiu, Tobias, devias conhecer a senhora, é
muito boa.
– Ora, não quero saber de senhoras. Mais que fazer…
Kassule, da praia, ouviu a resposta despreziva de Tobias, fez um gesto a
Himba, deixa andar, qual é, minha?
Pelo caminho, o kandengue admoestou-a, às vezes pareces muito burra,
então agora vais aparecer lá em casa com o bando completo e depois dizes
o quê?... Este é o meu namorado e seu bando. Achas a senhora vai apreciar?
Ainda bem o Tobias recusou, era uma grande bandeira que davas. Dona
Isabel ia estigar o Tobias, tão grande e não trabalhas, passas o tempo com os
outros rapazes apenas em conversas e brincadeiras, passeios e talvez coisas
que não possas contar, e o que andas a fazer com essa menina, mais isto
mais aquilo, ele podia se enfurecer e responder à maneira dos matulões da
Ilha, embora que não parece mal educado, mas nunca se sabe. Acabavas a
relação com a senhora que nos tem ajudado. És mesmo mais velha que eu,
mais esperta? Mete juízo masé nessa cabeça.
Felizmente chegaram, porque Himba já não aguentava tanta
recriminação, às vezes Kassule sabia ser chato que nem mosquito, a
rezingar, zin, zin, zin.
Como habitualmente, a senhora recebeu-os fora de casa, na sombra da
árvore centenária, a qual choraria saudades se um dia ela não sentasse ali.
Estava sozinha e sem fazer nada. Olhava apenas para as sombras e as luzes,
pensativa. Contemplava o passar dos anos, o marido falecido, quem sabe?
Os meninos romperam a placidez dela, logo se pôs a gritar pela Luzia,
banquinhos, chá e pão, temos visitas. Himba e Kassule tinham falado
muitas vezes do prazer que dava serem recebidos como visitas crescidas e
apreciadas, não um par de crianças miseráveis mal vestidas e sem futuro
que todos teriam desgosto em atender.
Feitos os cumprimentos e as perguntas sobre a saúde respetiva, Himba
informou o conteúdo da última carta de Luemba, recebida na véspera pelo
procedimento habitual, a qual menina continuava bem e mais uma vez lhe
pedira para agradecer a Dona Isabel a ajuda prestada, inestimável. A
senhora ficou satisfeita, desta vez tivemos sorte, correu tudo bem e custou
tão pouco afinal, foi o que respondeu. Pela rapidez com que entrou num
assunto novo de conversa, se percebia ser mambo que ela levava muito a
sério, lhe martelando a cabeça há certo tempo:
– Vocês sabem uma coisa? Começaram a criar lares para crianças que
estão como vocês, abandonadas, a viverem nas ruas… Algumas
instituições, quer dizer, serviços e pessoas contribuíram, o governo também,
parece… Não sei bem de todas. Mas conheço um padre que encontrei por
acaso na igreja de Nossa Senhora do Cabo no domingo, ele foi visitar o
colega e ficou para ajudar na missa, depois almoçavam juntos. À saída da
missa conversei com ele. O nome é Adão. O padre Adão criou um lar para
meninos de rua. Rapazes e raparigas. Dormem em camas, não em esteiras
como noutros sítios, comem todas as refeições. E vão à escola. Esteve a
falar que tem dificuldades com algumas crianças, estão tão mal educadas,
futuros delinquentes, que lutam lá dentro, levam gasolina e cola para
cheirar, recusam estudar, o pessoal dele até sente medo de se meter nas lutas
entre eles. Esses ficam pouco tempo, logo desaparecem por causa da
disciplina. Mas diz que vai conseguindo acalmar as coisas, ensinar boas
maneiras aos outros, com a ajuda de mais pessoas, formadas mesmo, que
aparecem no lar de vez em quando. Tem a maior parte das crianças
controladas, se comportam bem, porque tiveram educação um dia, mas
algumas… Perguntei se não arranjava lugar para dois, uma menina e um
rapaz, calmos, bem-educados, com estudos… Ele disse que ainda arranja
sítio para dormirem, lhe prometeram dar mais umas camas. Uma rádio local
está também a fazer campanha, convencendo pessoas a doações, quer dizer,
a darem dinheiro ou comida ou coisas… Bem, pensei em vocês os dois…
Os olhos de Kassule brilharam, Himba não reagiu. Desentendeu?, se
perguntou o amigo.
– Que é que dizem? Querem ir para lá?
Kassule agradeceu o lanche que lhe entregava Luzia, esperou alguma
reação da passiva Himba, a receber indiferentemente o lanche, decidiu
desviar a atenção da má educação da amiga e ser portanto ele a responder.
Aclarou a garganta com uma tossidela como vira algum dia os adultos
fazerem, disse:
– Gostava de experimentar… Se não for bom, podemos vir embora,
voltar para a Ilha?
– Não precisam de fugir, seria feio. E eu dei a minha palavra que vocês
são bem-educados, ia parecer uma mentirosa ou uma maluca. Se não se
derem bem lá, claro, podem explicar ao padre Adão o que não vos agrada, e
vir embora.
– E me arranjam a pótese?
– Prótese – corrigiu Himba. Afinal ela não estava alheada, apenas
apática.
– Isso não sei – disse a senhora. – Mas certamente é mais fácil lá do que
aqui. Sobretudo com o apoio da rádio. Ouvi mesmo aí no aparelho do
falecido meu marido, o coitado estava sempre com o ouvido colado ao
aparelho, essa emissora fala muitas vezes do apoio que o lar do padre Adão
precisa, acho vai resultar para ele melhorar as condições, ainda há gente boa
nesta terra.
– Quando eu era miúdo, me disseram primeiro tinha de crescer, só depois
me punham a pó... A prótese – uma careta para Himba.
– Porque a outra perna ia aumentar e podia ficar todo torto, era pior.
– Deve haver uma solução, mas não falámos disso. Porque não vais lá
perguntar?
– Onde é o tal lar?
– No Morro Bento.
– Haka! Bué longe.
Uma ponta de desconsolo na voz de Kassule. Morro Bento, no caminho
para sul, depois da Corimba, era a zona onde se construía uma espécie de
nova cidade, ao que diziam, fora de portas. Anarquicamente. Como havia
falta de terrenos em Luanda, as pessoas iam ocupando o que antes eram
quintas, abandonadas na altura da Independência, e erguiam os seus
kubikos, uns parecendo pardieiros ou cubatas, outros casas de blocos de
cimento ou tijolos, coisa fina. Sem um plano e sem autorização do Estado.
Também se instalavam aí algumas empresas necessitando de espaço. Os
restos das matas de caju, outrora donas preciosas do sítio, iam sendo
devastadas para aparecerem habitações. Um dia constituiria um problema
sem solução aparente. Por enquanto era o regabofe habitual, salve-se quem
puder, as autoridades clementes fecham os olhos.
– Sim, é longe – concordou Dona Isabel. – Ele explicou, foi o único lugar
onde encontrou um terreno grande, pois dá para uma futura escola e um
campo de futebol, além de poder acrescentar pavilhões para o internato.
Felizmente há transporte para lá, candongueiros… E tu, Himba, não dizes
nada?
– Não sei onde é o Morro Bento… Só conheço esta parte de Luanda até
aos Assuntos Sociais, fui lá quando cheguei…
– Não interessa onde é. Quero saber é se estás interessada. Se queres ir,
posso combinar com o meu filho, ele vos leva de candongueiro. Também
não têm muitas imbambas para transportar. Ou já têm casa montada?
Riu a senhora, malandramente, riu Kassule. Himba ficou parada, calada,
sem reação aparente. Nem respondeu à pergunta direta. De facto não sabia o
que dizer, obcecada com a dúvida, como reagiria Tobias? Ele não tinha
idade para ir num lar, já era grande. Nem queria, de certeza, perder a sua
liberdade. Era sempre a conversa entre os membros do grupo, aqui não
temos casa mas não precisamos, temos o mar e a nossa liberdade.
– Kassule, afinal também não respondeste, disseste só que era longe –
insistiu a senhora.
– Eu gostava de viver com um teto por cima, dormir numa cama, ter
comida, estudar. Gostava. Mesmo se é longe. Mas a Himba não disse
nada… Ela é a minha irmã mais velha…
A senhora voltou a perguntar à menina, que ficou calada, abanando a
cabeça. Por fim, com voz cansada, resultado evidente de forte combate
interior, lá respondeu com uma pergunta:
– Posso pensar? – ia dizer, preciso de perguntar a opinião de alguém mas
se conteve. Kassule, adivinhando, suspirou de alívio por ela não ter
continuado a fala. Ao mesmo tempo desiludido pela indecisão da amiga,
percebendo ser de facto preocupante a dependência dela em relação a
Tobias.
– Não precisas de responder hoje. Mas não demorem muito tempo a se
decidir, porque, segundo o padre, por vezes a polícia leva para lá uma
carrinha com crianças. Se forem muitas, depois vocês não têm lugar. E terão
de esperar muito tempo por vagas.
Ambos concordaram, decidiriam depressa. Comeram, a senhora deixou-
os fazer isso em silêncio. Quando terminaram e Luzia levou as canecas e
pratos, Dona Isabel pigarreou. Era outro assunto sério, pensou Kassule, hoje
é hoje.
– Ouvi dizer, tem havido umas cenas de pancadaria nos vossos lados.
Pode não ser ali, mas com gente que vocês conhecem. Uns miúdos levaram
pancada. Desapareceram.
– Estão sempre a desaparecer – o kandengue antecipou, adivinhando onde
Dona Isabel queria chegar. – E aparecem outros, estão sempre a chegar
novos… A guerra está brava no interior.
– Isso é verdade, Kassule. Só que têm desaparecido uns muito estropiados
depois de grandes surras. Ninguém sabe porquê são castigados, mas parece
um ajuste de contas. E quem dirige as coisas é o Tobias, vocês sabem quem
é.
Himba levantou os olhos para ela. Assustada. Como podia a senhora
conhecer o nome do chefe do bando? E o que andavam a fazer na sua
missão de vingança? Quem mais saberia? A polícia ia descobrir em breve,
se já não estava informada. Tinha de arranjar maneira de desviar o
pensamento da senhora, pôr dúvidas na cabeça dela, defender o seu
protetor.
– São cenas… são lutas entre eles… nada mais.
– Deixa-te de defender o Tobias, Himba. Eu sei, ele tem fama de violento.
Não me interessa nada o que ele faça, tu é que me preocupas. Andas com
ele e isso nunca pode ser bom para ti.
– Ele nos protege… Não é verdade mesmo, Kassule?
– Sim, é verdade. Ele nos protege e arranja comida. Nunca mais andámos
a catar nos contentores. Estamos mesmo mais gordos, então não estamos?
A senhora abanou a cabeça, mostrando pena. Demorou um bocado a
retomar a fala, como se estivesse discutindo com as malambas os seus
direitos de interferência em vida alheia.
– Compreendo, ele protege-vos e vocês defendem-no. Mas a polícia já
está ao corrente de que estão a acontecer coisas. Talvez não sabe ainda o
nome dele, mas eu já sei. Tudo acaba por se saber. Qualquer dia vocês,
inocentes, podem pagar por uma coisa que não fizeram. Lembram o
Malaquias?
Claro que lembravam, como podiam esquecer o coitado do Malaquias,
dois meses detido na cadeia, apanhando com frequência de qualquer guarda
que passasse ao pé, assassino, tão pequeno e já matador, nem vergonha tens,
filho da puta. Até que de repentemente foi solto. Por enquanto anda à volta
do restaurante durante todo o dia, falando sozinho, mal conseguindo comer,
a se mover às voltas até à exaustão, cacimbado no absoluto, o Malaquias,
pagando por um crime que o Amaro cometeu, um Amaro que aparece todo
vaidoso com roupa nova e limpa, todos desconhecem como arranjou. É
claro, roubou. Agora até parece um boss, enquanto o inocente apagou de
vez o cérebro, não quer mais saber de nada, a não ser as suas conversas com
algum ser imaginário, quem sabe, talvez JC ou seu pai.
– Por isso é que eu acho, deviam ir para o lar do padre Adão. Vocês
estudavam. Podiam vir me visitar aos domingos, contar como são as coisas
por lá e o que estão a aprender. Eu ficava tranquila.
– Vamos mesmo pensar – garantiu Kassule.
Pronto, a conversa tomou outras direções mais tranquilas, o kandengue e
a senhora alimentavam o encontro com recordações de outros tempos,
enquanto Himba ia descontraindo, descontraindo, até finalmente entrar
também na cavaqueira sem recriminações nem promessas.
No caminho de regresso para o abrigo do grupo, Himba garantiu a
Kassule, vou conversar muito bem com o Tobias esta noite, podemos ir os
dois para o lar e aos domingos venho ter com ele aqui na Ilha. Acredita, ele
vai aceitar.
Coisa que não estava mesmo nas intenções de Tobias.
A voz não só ficou mais funda e grossa, ameaçadora, também os olhos
faiscavam de raiva, quando ela lhe falou. Embora afastados dos outros,
todos perceberam, era evidente haver maka no ar, espadas de fogo
esgrimidas se chocando, vontades a se enfrentarem. Só Kassule sabia do
motivo e teve medo, agora é que tudo estava estragado, mania da Himba,
deviam bazar sem dizer nada, deixar os outros do grupo viverem a vida
deles, mas ela tinha mesmo de explicar, deixar todos os mambos arranjados,
para sempre amigos e o seu namorado bem-disposto.
De meninas ingénuas estavam as ruas cheias.
Segundo Himba contou a Kassule no dia seguinte, contendo soluços,
Tobias foi inflexível. Considerava-a mesmo sua mulher e a mulher não
abandona o marido para ir num internato.
– O gajo está maluco ou quê? Como se vocês fossem casados, deixa-me
rir…
– Ele acha que sim, estamos casados. Casados pelo mar. Falou mesmo no
rio Jordão, era a mesma coisa, só que era o mar.
– Nem idade tens!
– Ontem só faltou me dar porrada. Vi vontade nos olhos dele, na fala dele,
tremia mesmo de raiva. Tive de calar, fazer de conta o assunto estava
passado, uma conversa apenas. Se voltar a falar no assunto, ele vai me
abonar, tenho a certeza.
– Vamos bazar. Lá no lar ele não te faz nada, o padre não deixa. E eu falo
logo a explicar o mambo, para prevenir o padre.
– Não. Não quero acabar assim, a fugir de novo.
– E que vais fazer? Até tens medo de lhe falar outra vez, disseste mesmo,
ele te vai dar porrada.
– Talvez. Ou talvez não. Se usar o meu jeitinho…
– Deixa disso! Não tem jeitinho nenhum, ele nunca que vai aceitar, é
maluco, até acha vocês estão casados, coisa mais sem pés nem cabeça, casar
na areia sem padre nem nada, talvez casamento de kimbundo com Kianda a
servir de testemunha... Brincadeira! Lhe prometeste algum dia isso, mesmo
se foi só para o acalmar?
– Não, nunca, até ontem eu achava que quando ele falava era só
divertimento, uma maneira carinhosa de me tratar, minha mulher, minha
deusa, minha flor… Afinal parece é a sério.
– Cacimbou, também ele. Afinal, com a vida que levamos… quem não
queima os fusíveis? No fim de semana… Estás ouvir, Himba? No fim de
semana vamos na senhora boa das trancinhas e dizemos, Dona Isabel, o seu
filho pode nos levar no lar do padre, estamos prontos. No fim de semana,
nem mais um dia.
Ela hesitou, depois assentiu com a cabeça. Também estava a tentar ganhar
tempo, claro. No entanto, acreditava poder convencer o Tobias a mudar de
atitude, aceitar numa boa apenas encontros de domingo ou de sábado. Dois
dias, três dias para o amansar. Ia ser tarefa complicada. Mas sabia ser
persuasiva, descobrira os pontos fracos dele, ontem nem teve possibilidade
de usar qualquer estratégia, ficou só assustada com o vulcão subitamente a
cuspir fogo. Culpa dela, devia ter pensado bem as palavras antes, preparado
o discurso, mostrando vantagens, mas entrou a direito, como se tivesse todo
o poder sobre Tobias, o eterno rebelde. Foi estúpida e pagou, devia
reconhecer.
Já o resto da conversa de Dona Isabel tinha sido deveras preocupante, a
polícia começava a se interrogar sobre as surras, talvez algum bufo
estivesse destacado para os vigiar, impossível descobrir, só com muito
tempo. Ela não tinha dito nada dessa conversa a Tobias, as relações ficaram
muito tensas logo no princípio da discussão e ela esqueceu a segunda parte
das preocupações de Dona Isabel. Mas agora lembrava, com todos os
detalhes. Tinha de o avisar, podia mesmo dizer quem tinha falado e o que
contara. Seria uma maneira de tentar nova aproximação, de mostrar também
se interessava pela segurança de todos, o que aliás era verdade.
Tobias mostrava cara fechada naquela manhã, nem a cumprimentou como
sempre fazia, foi logo mergulhar na água fria. Himba falou com Kassule,
recebeu o ultimato, até ao fim de semana, decidiu aproveitar o momento
para conversar a sós com o namorado. Entrou na água, onde ele ainda se
encontrava, se chegou, falou baixo, esfregando o corpo com areia para se
limpar e aquecer.
O rapaz ouviu, calado, sem resmungar. A testa estava franzida. Não disse
nada. Saiu da água, deixou-a lá, para mostrar ainda estava chateado, nem as
informações passadas por ela podiam acalmar a sua raiva por aquela ideia
maluca de ir num lar de órfãos ou abandonados. Himba viu-o se dirigir na
direção de Zero e falar com ele. Zero aprovou com a cabeça, saiu quase a
correr no sentido da entrada da Ilha. Para o posto da polícia, adivinhou
Himba. Falar com o parente ou conhecido dele, saber quão perto estavam os
caíngas da verdade. Intuiu apenas, de forma distante, como se nada fosse
com ela. A tal defesa que de forma inconsciente usava para não ter de tomar
posição sobre as makas perturbantes dos últimos dias. Lealdade para com o
homem que decidira ser o escudo de proteção dos dois, três, quando
Luemba ainda vivia com eles. Três pequenos eram um peso grande para o
bando naquela altura, exigira trabalho dos mais crescidos, devia estar
sempre grata. No entanto, outros sentimentos se misturavam, submissão
com instinto de libertação, mágoa por se sentir usada, abusada, subjugada.
Vergonha de se deixar dominar, também muita vergonha.
Veio o almoço e os quatro membros do grupo presentes na praia
apanharam uma boa porção de comida. Trouxeram para o abrigo.
– Temos de deixar a parte do Zero – disse Matias. – Foi cumprir missão.
Kassule, que já tinha recebido as queixas de Himba sobre o facto de
Tobias não lhe falar, mesmo depois de ela o avisar sobre as desconfianças
da polícia, percebeu também qual seria a missão de Zero. E comeram, os
dois ansiosos pela chegada do outro membro, certamente com dados
importantes para a vida futura.
Só ao fim da tarde apareceu. Fez um gesto para Tobias, no género tudo
bem, não há crise. Entretanto foi cochichar com ele. Souberam depois, Zero
explicou a Tobias, o polícia seu parente andava por outros sítios em
patrulhamento de rotina, não estava na esquadra, Zero teve de esperar mas
valeu a pena, perguntou mesmo diretamente, é verdade que vocês estão a
suspeitar, nós andámos a maltratar aí uns muadiês, o caínga lhe garantiu,
sim, os nomes deles apareceram, mas também os do Jonas e de tantos
outros, inexistiam elementos para qualquer ação repressiva. Se de facto as
provas ficassem muito claras, apontando para eles, o parente avisava a
tempo o Zero para voltar logo-logo no Sambizanga, naqueles becos
ninguém encontra ninguém, se alguém quiser mesmo desaparecer. E não é a
polícia que lá vai inquietar os ratos abundantes. Tobias ficou mais tranquilo,
nessa noite voltou a conversar com Himba e lhe contou essa cena que ela já
tinha adivinhado. A menina, ficando cada vez mais esperta, não disse a
descoberta de Zero apenas confirma o que eu supus, ficou calada, falou de
outras coisas de quando era pequena, das montanhas e do Planalto, do frio à
noite, valia a pena acender fogueira no quintal, eles não o faziam para não
gastarem lenha, nunca se sabia quando iam precisar dela para assuntos mais
sérios, se embrulhavam em mantas até irem para a cama, no entanto Tobias
também era do Planalto e sabia muito bem como o frio fazia doer o corpo
todo, sobretudo quando o vento vinha do sul, se riram os dois, cúmplices, e
depois brincaram de marido e mulher. Adormeceram reconciliados, ela com
as suas dúvidas, ele escondendo ameaças.
Continuavam premonições, ninguém as decifrava.
Na manhã seguinte apareceu o maluco nu, o Louco de Deus, como lhe
chamara uma vez o padre da igreja e o nome correu desde então pela Ilha,
com fortes discussões entre os fiéis, pois o padre quase cometia sacrilégio,
na opinião dos mais tradicionalistas, louco de deus era termo para os santos
e mártires dos primeiros tempos do cristianismo, vivendo no deserto como
eremitas, sem beber e sem comer quase nada, esperando conversar com
Deus, como Moisés muito antes tinha feito. Alguns voltavam ao convívio
social, dizendo ter recebido uma incumbência divina, sendo então tratados
como profetas. A maior parte morria dos males do deserto, sol, fome e sede.
Não se aplicava a este maluco, de cabelo com melenas de rasta
emaranhadas, compridas até à cintura, sem no entanto lhe cobrirem o sexo,
cheirando a esgoto do mais fétido e gritando impropérios e frases
incompreensíveis. Era alto, delgado, andava com grandes passadas, com
alguma elegância, era preciso reconhecer. Mas ao ver o grupo sentado nos
pedregulhos, parou sua caminhada sem destino pela avenida. Apontando
para o grupo o braço esquálido, proferiu em altos berros, de voz forte, boa
para comício ou comando de um combate, furibundo:
– Que é que estão a fazer no meu reino, ratazanas? Quem vos deixou
penetrar ou onde roubaram a chave do portão dourado? Pois em verdade
verdade vos digo, criaturas do demónio, do meu reino não fazem parte,
imundos pecadores, fornicadores, ladrões, delatores, adúlteros, criminosos,
abutres, venais, assassinos, beijoqueiros, osgas, bajuladores, corruptos,
louvaminhas, pedintes, papa-rezas, pelintras, batoteiros, vigaristas,
gabarolas, mangonheiros, lagartos, mentirosos, usurários, e muito mais
pecados que não me ocorrem de momento, mas que mostram, são uns
merdas, intrometidos, fora do meu reino.
– Pelas palavras, pode ser maluco mas é com instrução – segredou
Munhango, impressionado pela verborreia.
O maluco começou a proferir um discurso desconexo, mas não falava
para os garotos, virado agora para a estrada. Qualquer coisa sobre caminhos
e encruzilhadas. Se voltou de novo para eles e os berros ganharam sentido:
– … sim, os espíritos dos cruzamentos de caminhos que chocam contra os
dos postes de eletricidade, tudo por graça do careca que fez a arca e lá
meteu um monte de lixo, o que pôde apanhar na Ingombota, na Baixa, até
mesmo no Kinaxixi, lixo e pulgas, ratos, cães, formigas, lacraus, serpentes,
uma data de bicharada e latas amolgadas e papéis de limpar o cu, para
vocês, meus caras do próprio cu, impotentes, enraivecidos, intriguistas,
matadores, hereges, descrentes, que não respeitam o lixo dos outros, lhes
dão pontapés, como aquela mulher ali – apontava para o mar – julga que
escapa do meu olhar mas lhe vejo muito bem, estropiada do amor,
incoerente, fragilizada, viúva da morte, pois ela a morte matou, não foi a
morte que lhe matou, estão a fazer o quê no meu reino? Vão para as vossas
repartições apertadas, armados em sabichões, vão para os bares e os
hospitais, apanhadores de injeções e clisteres, vermes nojentos, batráquios
tosquiadores, bitacaias imundas, desapareçam, deixem o ar mais saudável,
porque o filho do outro se foi pendurar numa cruz e disse sou deus, depois
reclamou com o pai que mandou vergastá-lo, como qualquer criança faz
quando tem medo e o pai vem logo castigar, olha a mulher a sair da água –
apontou de novo para o mar –
agora vai foder com o pendurado, já se sabe, elas gostam das posições
difíceis, andaram a estudar o Kamasutra, enquanto os maridos vão para os
escritórios fingir que trabalham, adúlteras, marafonas, sectárias, porquê ela
me fez isto – passou as mãos pelo corpo violentamente – se eu nem sei o
nome dela, pois o pai era um passarão da túji, um desembargador do vício,
uma luminária esdrúxula, fanático de acordos diplomáticos, filho da puta,
chulo, patranheiro, pirata das Caraíbas, dromedário animalesco, Lúcifer,
LÚCIFER, onde está ele para o mumificar, eu sou o homem que torna
Lúcifer numa múmia e todos eles, os belzebus chifrudos, os banqueiros, os
cobradores, polícias e juízes, abocanhadores da comida de criancinhas,
ainda não se piraram, ainda não bazaram, fora do meu reino, canalha, a
revolução francesa ainda não chegou aqui…
Foi andando ao longo da estrada, gritando por Danton e Robespierre,
fazendo as pessoas pararem ou se afastarem, assustadas, pois além da voz
poderosa, ele tinha uma figura de meter medo, com o sexo a badalar entre
as melenas ensebadas.
– Coitado – disse Himba.
– Pode ser perigoso – disse Zero. – Um dia vi-o puxar de uma faca, nessa
altura ainda usava calças e a faca no bolso…
– Feriu alguém? – perguntou Matias.
– Não, só ameaçou. O outro foi muito rápido e fugiu. Não sei o que
aconteceria, se o Louco de Deus chegasse perto. Talvez espetasse mesmo a
faca, não sabe o que faz.
– Ouvi uma vez uma estória dessas – disse Tobias. – Conhecem S.
Serapião?
Ninguém fez sinal positivo. Era mesmo a primeira vez que ouviam aquele
nome estranho. Ele repetiu e todos abanaram a cabeça, negando. Tobias
voltou a pegar na palavra.
– Um missionário me contou no Bié, nos tempos em que eu estudava com
eles. O missionário branco estava mesmo a falar dos tipos que andavam
pelo deserto, os tais loucos de deus… Serapião e não S. Serapião, acho que
nunca foi considerado santo, pouco interessa. Andava com uma camisa
longa, de linho, creio. Apenas. Um dia um tipo nu abordou-o, tenho frio,
ajuda-me. O Serapião tirou a camisa e lhe deu. Passou a andar
completamente nu, como este nosso maluco. Alguém passou por ele e
perguntou, mas afinal quem te fez isso, te pôs assim nu? Ele não respondeu,
apontou apenas para o Evangelho, com que andava sempre na mão. Chegou
nesse momento um grupo de soldados que levavam um tipo para a prisão,
condenado por dívidas. Para onde o levam?, perguntou Serapião. Os
guardas explicaram tudo. E quanto deve ele?, voltou a perguntar. É tanto.
Serapião entregou o Evangelho, isto vale muito mais, soltem o homem.
Confusos, os guardas soltaram o preso e levaram o Evangelho.
– Isso não pode ser verdade, não é assim que funciona – duvidou Zero.
– Ouve, ainda não acabou. Foi assim que me contaram, deve estar nalgum
livro, o missionário não ia inventar… Então, indo encontrar os seus
discípulos, sabem como é, na Bíblia explica, essa malta dos profetas, um
tinha sempre seguidores a quem ia ensinando as coisas…
– Eram as escolas daquele tempo – disse Himba.
– Certo! Pois então… O Serapião foi ter com os seus discípulos e um
notou logo, ele não trazia o Evangelho. E perguntou onde estava o livro
sagrado. Então o homem nu disse, o Evangelho anda sempre a ensinar para
vendermos todos os nossos bens e darmos aos pobres, escutei-o. Dei toda a
minha riqueza para o outro ficar livre. Não queiras saber, me sinto mais
leve.
Ficaram todos em silêncio. Munhango disse, então esses são os loucos de
deus?
– O nosso maluco foi perdendo as coisas uma a uma – disse Zero. – Ou
então deixou-se roubar. Ou ofereceu tudo para se sentir mais leve, mais nu.
– Fala, fala sozinho e nem repara que lhe estão a roubar as roupas, os
sapatos, tudo, completamente para lá – disse Kassule. – Se lhe falássemos,
acham ele ia ouvir?
– Só ouve a voz que fala na cabeça dele – disse Tobias. – E pensa ser a de
Deus. Assim se fazem profetas. Só que a nossa terra é tão desgraçada e
desconfiada, nunca acreditamos que Deus está a falar pela cabeça de um
maluco. Por isso temos poucos profetas. E os que há são masé uns
aldrabões… Falta um a sério.
Zero se mexeu. Se notava, não concordava com o chefe. Tossiu um
pouco, preparou a voz.
– Têm aparecido uns que dizem são profetas. Acho bom que haja poucos.
As religiões são perigosas. E essas com profetas vivos então são piores.
Não houve uns que andaram a vender os terrenos do Céu para depois da
morte os crentes terem o seu sítio no Paraíso? Porra!
Alguns riram. Olharam para Tobias, tentando adivinhar a reação. O chefe,
porém, se deslocara do assunto, segurando na mão de Himba, soletrando
pensamentos longínquos, tão nebulosos que a própria Himba desconseguia
de entrar neles. E não interpretou a fala de Zero como uma contestação.
Seria?
– Os burros compraram mesmo os terrenos do Céu? Pagaram? –
perguntou Matias.
– Juro – e Zero passou a mão pela garganta, reforçando o juramento.
– Cambada de matumbos! – explodiu Munhango. – Mereceram mesmo
ser enganados.
– Alguém foi para a cadeia? – perguntou Insepulto. – Isso tem um nome
que até eu sei, se chama fraude. Alguém pagou pela fraude?
– Achas? – respondeu Zero.
Bateram palmas e riram, alguns dando murros amigáveis nos ombros dos
outros. Kassule se rebolou na areia, com largas gargalhadas, porque era tão
absurdo comprar terrenos no Céu que só dava para rir. E descrer. O grupo se
sentia unido em afetos, a olhar o mar e a brincar, como se fosse a última
tarde de alegria despreocupada.
11

Afinal, havia o fim de tarde. E a noite.


Quando se acenderam as luzes da rua e no restaurante ali perto aumentou
a agitação, os miúdos e os mais graúdos se posicionaram para receber os
restos. Nessa noite havia muitos pretendentes, uns trinta ou quarenta,
ninguém se preocupava em contar, bastava um olhar para sentir a afluência.
Haveria uns desgraçados que se contentariam com uma espinha de peixe ou
as cascas dos caranguejos e lagostas que lá dentro comiam. Tobias e os
outros quatro conseguiram impor a sua força ou autoridade e se colocaram
mesmo à frente do contentor. Himba e Kassule ficaram afastados da
confusão, encostados aos rochedos do princípio do esporão, uns felizardos.
Ainda faltava tempo para a porta mágica da cozinha se abrir e os sacos e
baldes de restos aparecerem em mãos sarcásticas, tomem lá os ossos, seus
porcos inúteis. Humilhação que todos estavam dispostos a aceitar em troca
de menos fome.
Nessa altura apareceu o grupo do Jonas completo, uns doze rapazes de ar
feroz, gingando o corpo, os cintos das calças muito para cima, como fora
moda no tempo em Kinshasa. Parecia, não estavam interessados no panquê,
porque ficaram a ver o jogo de empurrões, um pouco distantes. Passaram
assim alguns momentos, até Himba reparar neles e tocar no braço de
Kassule, olha. Não era boa coisa, esse grupo raramente era visto por ali, em
princípio estava fora do seu território. Jonas fez sinal com a mão e se
aproximaram em meio círculo, rodeando os que estavam na tosca fila de
espera.
– Então, Tobias, diz. Onde está o meu amigo Chico? Me disseram lhe
partiste um braço e esmagaste a cara dele. É verdade?
O Jonas, depois de falar, avançou, afastando alguns miúdos da fila, para
se colocar perto de Tobias. Himba sentiu um baque no peito, um suspiro
assustado se libertou. Tobias virou o corpo para trás, enfrentou o outro.
Respondeu com voz calma:
– Não sei de que estás a falar. Quem é o Chico?
– Já disse, o meu amigo que tu e o teu bando abonaram, cinco contra um.
Tobias ia dizer, não foram cinco contra um, fui eu sozinho, mas estacou,
isso seria reconhecer a suspeita como verdadeira. E havia certamente algum
informador da polícia infiltrado entre os miúdos, a proteção servia de
moeda de troca com os indícios.
– Já te disse, não sei do que estás a falar.
Tinha havido hesitações involuntárias na sua voz desta vez, os outros
pensariam que ele estava com medo, se apercebeu ou imaginou Tobias. De
qualquer modo, tinha escorregado, ficado vulnerável. Do Jonas não tinha
medo, mas era o que podia aparecer aos olhos dos assistentes, uma desonra.
E isso irritou-o, fez saltar para fora o animal feroz enjaulado no seu cérebro.
Encostou o peito ao do outro, um pouco mais alto.
– Não repitas essas merdas, ouviste?
– Porquê? O que é que acontece se eu repetir estas merdas? – Jonas fazia
força, empurrando o outro com o peito, os olhos nos olhos, lançando
estrelas para todos os lados.
– Rebento-te o focinho.
Jonas então abriu os braços, deu uma meia-volta para que todos lhe
vissem as mãos, falou para os presentes:
– Estou eu a perguntar pelo meu amigo Chico e a resposta é uma ameaça.
Que vou fazer? Digam, que vou fazer?
Rodou de repente da posição em que estava para enfiar um murro
poderoso no estômago de Tobias, o qual foi projetado contra o contentor. Os
amigos de Jonas encurralaram os de Tobias, quatro no meio de doze, mas
sem fazerem mais nada, apenas se aproximaram e os fecharam, como a
dizer, isto é um combate de chefes, ninguém se mete. Tobias respirou fundo
e ripostou e os dois começaram a esgrimir murros e pontapés. Jonas era
grande mas o outro era mais ágil, por isso o combate estava equilibrado.
Kassule segurou a mão de Himba para a encorajar. Ou se convencer a si
próprio. Só os chefes lutavam e assim estava bem, o derrotado arrastava o
seu grupo na vergonha e o vencedor repartia o triunfo com os seus
companheiros, código das ruas, dos becos do musseque, também ali da
areia. Para quê querer ser chefe então, se não era para arriscar o corpo e a
alma pelo grupo?
Ali os chefes deviam ter honra.
Entretanto Jonas, depois de levar três murros bem direcionados que o
fizeram recuar e cambalear, perdeu a compostura e rasgou os códigos. Com
um esgar de ódio na cara, agarrou uma garrafa de cerveja, das muitas que
eram atiradas para o chão, bateu com ela numa pedra para fazer saltar o
fundo e apontou a arma afiada para a cara de Tobias. Este deu um salto para
trás, apanhou por sua vez uma garrafa, partiu o fundo e se posicionou para
uma luta muito mais arriscada. Porém, Jonas tinha experiência e foi esperto
como uma serpente. Virou um pouco a cabeça num relance para o seu lado
esquerdo e Tobias instintivamente também virou a sua para ver o que
chamara a atenção do outro. Ficou com o pescoço vulnerável e foi aí que o
Jonas espetou num bote fulminante a garrafa, lhe cortando em
profundidade. Himba deu um grito antes mesmo de ver o sangue espichar
da garganta de Tobias. Jonas se afastou um pouco, assistindo ao espetáculo,
um sorriso de troça lhe arrepanhando os lábios grossos. Tobias largou a
garrafa, tentou segurar com as duas mãos o pescoço que perdia golfadas de
sangue, mas logo desistiu de pressionar, caiu de joelhos e depois para o
lado. Alguém da cozinha do restaurante afastou os assistentes, ficou a olhar
os últimos estertores do rapaz.
A morte foi rápida, discreta.
O grupo de Tobias conseguiu se desembaraçar com empurrões dos seus
adversários, agora assustados, e se aproximou do chefe. Sabiam, nada a
fazer. Num instante Jonas se desvaneceu na escuridão, depois o seu bando.
Os que esperavam comida também bazaram, antes que chegasse a polícia.
Ficou só o grupo de quatro, agora sem líder, e os dois meninos, um pouco
afastados.
– Vamos embora – disse Kassule.
Zero deu dois passos para eles, vão para o nosso sítio, é melhor.
Himba estava atordoada, a contemplar o corpo de Tobias inerte, o sangue
parecendo negro na areia mal iluminada. Tinha vontade de correr para ele,
lhe tocar, não para o acarinhar, apenas constatar que não mexia. Por outro
lado, os pés estavam colados na areia, impossível de os mover. Não queria
pensar, mas estava a sentir coisas contraditórias, horror e medo, também o
sentido de libertação, já não havia Tobias para a reter. Mas o horror se
sobrepunha e também vergonha pela sua imensa ingratidão. Começou a
chorar. Em silêncio.
Por ela.
Lembrou uma conversa tida naquele isolamento da noite, em que ficavam
deitados, sozinhos, sentindo o corpo do outro, e ela perguntou se ele,
Tobias, era um bandido e ele disse não, apenas temos de sobreviver, o nosso
grupo não é um bando, não roubamos, catamos o que comemos, não
andamos por aí a matar pessoas, mas gostamos uns dos outros, confiamos
entre nós e é essa confiança entre nós que mantém o grupo unido e nos
permite sobreviver. Ela falou no Desperado Kid e ele disse, aí tens um
bandido, eles vivem de roubar, por isso não os vês muito nas bichas de catar
comida, não precisam, arranjam dinheiro noutro sítio, assaltando casas, ou
roubando as carteiras e roupas dos turistas que vêm tomar banho na praia.
Nunca confundas o nosso grupo com o bando desse merdas, porra.
E o bandido venceu a luta, por traição, ela viu, na névoa em que se
tornava a sua vida. Talvez Tobias dissesse a verdade. Talvez não toda a
verdade. Não queria saber.
Munhango gritou então para eles:
– Zero falou. Vão para o nosso sítio.
Kassule puxou pelo braço da menina. Esta resistiu, ele insistiu, Zero
voltou a gritar, já se ouvia movimentação de carros chegando, ela se deixou
quase arrastar. Os outros ficariam como testemunhas para a polícia. Zero
esperava que o parente estivesse entre os caíngas, senão lhes aconteceriam
coisas más, até talvez fossem acusados de causadores da morte do amigo.
Até porque o empregado da cozinha, adivinhando interrogatórios chatos,
tinha já desaparecido dentro do restaurante, onde estava resguardado. Esse
seria uma testemunha credível para a polícia, já adulto e com um trabalho,
não aquele grupo de quatro rapazes com as trunfas mal aparadas, já sem
memória de uma escova ou um banho de água natural, apenas cheiro de
mar. Mas era seu dever ficar ali com o companheiro, explicar aos bófias o
que passara, com todos os nomes, arriscando futuros e vinganças de sangue.
O chefe merecia que, no momento da sua morte, a verdade fosse contada.
Não eram bandidos, mesmo, só um grupo de kambas.
Ao mesmo tempo que chegava a polícia, os dois amigos se aproximavam
do refúgio de Tobias. Kassule viu sombras e segurou Himba. Estacaram de
súbito.
Tarde demais.
A voz do Jonas se fez ouvir, acompanhada de gargalhadas dos
companheiros:
– Olhem quem vem aí. A causadora disto tudo.
Dois deles saíram do círculo de luz dando sobre os panos e agarraram em
Himba, a qual nem teve tempo de se defender. Foi levada ao chefe. Todos
olharam para a menina, ignorando Kassule.
– Então, esta é a canuca que provocou a maka toda – disse Jonas. –
Sabemos o mambo completo. Tu é que disseste ao Tobias, o teu namorado
Tobias, que o Chico te fez mal. Mentira, sabemos tudo. E o Tobias quis se
vingar nele, estava muito ofendido, o coitado. Não sabia a lei da Ilha?
Ninguém toca nos meus amigos.
Jonas olhou os seus companheiros, um a um. Tentando adivinhar
intenções escondidas? Continuou:
– Alguns aqui podem pensar, esse Chico estava connosco há pouco
tempo. É verdade. Mas basta um dia ser nosso companheiro que passa a ser
um mano. O Tobias esqueceu a regra, porra… Ou nunca a conheceu.
Acreditou em ti, canuca intriguista, queria mesmo cumprir a tua vingança.
Agora tens o resultado da tua mentira, o namorado já era… E tu vais pagar
também.
Kassule fez as contas e agiu rápido. Ali não podia fazer nada. No entanto,
os polícias estavam perto, no outro restaurante. Era só o tempo de correr
para lá. E correu mesmo, parecia não usava muleta mas já a prótese própria.
Chegou a arquejar, o exercício fora intenso. Não esperou retomar a
respiração, se meteu mesmo no meio da confusão dos caíngas. Foi difícil
atrair a atenção do chefe da patrulha policial mas conseguiu se fazer ouvir,
depois de alguma insistência:
– Ajudem, os que mataram este aqui estão a violar uma menina ali à
frente, por favor, venham rápido, ainda lhe vão matar, são muitos, o chefe é
o Jonas, foi ele que matou…
– Já sabemos que foi o Jonas, estes aqui contaram – disse o que parecia
ser o chefe dos polícias.
– E estão a continuar ali, a violar a namorada do Tobias – insistiu
Kassule.
Com ar de enfado, o chefe disse para um dos companheiros, Tiago, vai lá
com o Trindade, tendo os dois polícias puxado primeiro o cinto das calças
para cima da barriga volumosa, antes de enfrentarem a areia. No entanto,
foram com Kassule, este correndo à frente e depois parando, à espera que
eles se aproximassem. Não tinham pressa, devia ser uma manobra de
diversão, pensavam os caíngas, do alto da sua autoridade, esse miúdo julga
que aldraba o chefe, mas vão ser todos cangados para aprenderem a não
andar por aqui a sujar a Ilha, boa para os turistas. No entanto, esqueceram
as suspeitas, porque em breve viram sombras agitadas e gritos. Começaram
então a gritar e a correr, polícia, polícia, fazendo o bando do Jonas dispersar
em debandada.
Como iria saber nessa mesma noite Kassule, dois ou três ainda tiveram
tempo de a violar, mas aproveitaram também para lhe avançar com umas
chapadas. Himba chorava suavemente e sangrava do nariz.
– Tão pequena, porra! – disse o Trindade.
– Deve ir no posto médico – disse o Tiago, querendo fazer-se passar por
responsável da operação.
– Está fechado – replicou o Trindade. – Só está aberta a clínica do fundo
da Ilha. Mas não é para estes casos.
– Sim. Só clientes fixos. E os bem balados.
Kassule se debruçou sobre Himba, deitada na areia, chorando e tremendo,
a inquirir como se sentia. Ela só disse, quero ir na água. Estava noite fria e a
água ainda piorava a situação dela. Kassule disse, não vais nada, ainda ficas
doente.
O polícia Tiago disse para Himba:
– Olha, menina, tenho de relatar a ocorrência ao nosso chefe. Podes
andar? Vens connosco. Afinal o morto era teu namorado…
Kassule se intrometeu.
– Ela não pode andar. Não está a ver? Vão buscar o carro, nos deixam
numa casa que eu conheço aqui mesmo na Ilha, sei quem pode tratar dela.
Tiago tirou o boné, coçou a cabeça, isso o chefe é que pode decidir, mas
vai ser preciso um depoimento, se trata de crime grave e violento,
homicídio, sabem o que é? E se houve violação, é preciso ser confirmada
por um médico…
Trindade disse então:
– Se ela não pode andar, vamos então falar com o chefe. Vocês fiquem
aqui, talvez o boss nos manda lhe levar na clínica, para as provas do
crime… Mesmo essa aí bem cara, o Estado paga. Achas, Tiago?
– Está bem, está bem, esperamos – disse Kassule, apressando os
hesitantes agentes.
Quando os dois polícias se afastaram, no seu passo lento derivado do
peso da autoridade atascada nas costas redondas, o kandengue segredou
para Himba:
– Consegues andar? Ou precisas mesmo de ir à clínica?
– Posso andar. E não quero ir à clínica, fazer o quê?
Contou então o que lhe sucedeu de forma resumida, os detalhes guardaria
por pudor ou seriam relatados para se livrar desse fardo, um dia. Agora só
queria entrar na água para se lavar.
– Está muito frio e vais ficar doente. Se podes mesmo andar, não vamos
nada esperar pelos polícias, não adiantam nada, passamos para o lado de lá
da avenida e nas barbas deles. Vamos masé a casa de Dona Isabel. Ainda é
cedo, está acordada. Te limpas lá e pedimos para nos deixar dormir no
quintal de trás, estamos habituados. Amanhã vamos para o lar.
Himba concordou, na praia não podiam ficar. Ela seria alvo do bando do
Jonas e de outros gangues, as violações se sucederiam. Mesmo se naquele
momento havia muitos miúdos que estavam furiosos com o Jonas e
sobretudo com a violação de uma menina tão nova, no dia seguinte
começariam a pensar, porquê só eles e não eu? E agora já está carimbada,
tanto faz uma vez ou vinte, como diria Madia. Também não haveria Tobias,
nem para a proteger, nem para a subjugar. Tinha de aproveitar a liberdade.
No caminho até à casa de refúgio, amparada pelo amigo, Himba percorria
mentalmente os passos da sua vida, tão curta e cheia de tristezas, terror,
sofrimento. É assim mesmo a vida das pessoas normais? Não lhe parecia.
Primeiro foi tudo bem, o tempo da descoberta e das brincadeiras e do amor.
Depois o mundo caiu com a fuga do município, a sua vida se virou de pés
para cima, tudo foi acontecendo, cada vez pior. Afinal só tinha passado um
ano completo sobre o recuo da terra natal. No entanto, valia por todos os
anos anteriores. Um ano de perda constante. Só tinha Kassule, a única
presença boa e fiel em todos os momentos. A sua vida, no meio do caos, lhe
tinha dado um irmão para substituir todos os outros perdidos. Se agarrava a
esse irmão, até para caminhar. E quem fazia o maior esforço era o irmão
corajoso e incansável, o qual nem tinha uma perna.
Não sentia dores, mesmo se o sangue não parava de sair do nariz por
causa das chapadas. O corpo estava feito para ser torturado, por isso era
indiferente doer ou não doer, qual era a diferença? Quando a dor é
constante, deixa de ser sentida. E assim queria ficar, imune à dor, à física e
à outra, a da perda. Já tinha perdido tudo ou quase, pois lhe restava Kassule.
Era pouco?
Era imenso.
Mas também queria mais. Mentira. Agora já não desejava mais nada,
ficava satisfeita com o que tivesse, só tinha de andar, andar, evitar pensar,
evitar fazer comparações com outras vidas, o passado se enterrava
automaticamente, inútil fazê-lo ressuscitar, pois só trazia sofrimento,
saudade, angústia. Devia agradecer cada minuto de vida e viver assim, cada
minuto de sua vez.
O futuro não existe para gente como nós, só o minuto em que ainda cá
estamos.
Chegaram a casa de Dona Isabel e nem seria preciso falar para a senhora
compreender a gravidade da situação. Desta vez, porém, Kassule pôde se
adiantar para contar o mujimbo que ainda não chegara ali àquele sítio
sempre bem informado sobre o que passava na Ilha. A senhora boa das
trancinhas, que os fez entrar na casa, onde estavam os três filhos e Luzia, só
abanava a cabeça e resmungava, eu sabia ia acontecer coisa má, eu sabia, e
não foi nenhum pássaro que veio contar, eu sabia apenas na minha cabeça,
até disse no domingo ao padre, isto tudo vai acabar mal, é como um
perfume mau, daqueles tão fortes que não se pode desprezar, temos mesmo
de o cheirar e nele entender a revelação de um segredo do futuro, não o
trazido pelos pássaros.
Viam pela primeira vez Mariano Kimba, o filho da senhora, trabalhador
da Alfândega dos Correios centrais. Um rapaz novo, ar de sossegado,
sentado numa cadeira, o jornal à sua frente, mas agora deixara de ler para
observar os dois meninos, conhecia-os pelas conversas da mãe, sabia
mesmo os nomes, só que nunca se tinham cruzado de olhos. Dos chegados,
apenas Kassule estava atento ao que passava na sala, Himba repousava
dentro dela e não reparou em Mariano, nem nas duas irmãs já crescidas,
embora ainda andassem na escola, nem em Luzia. Tinha uma vaga ideia de
Kassule falar para a senhora, ainda na porta, quando ela os mandou entrar.
Mas o mundo era uma névoa à frente dos olhos de Himba, névoa ainda mais
realçada porque de repente tinham entrado numa sala com lâmpadas
elétricas, luz que ela tinha esquecido, mais habituada à da Lua e à que vinha
tamisada pelo cacimbo dos candeeiros da rua ou dos faróis dos carros.
Kassule sentou numa cadeira porque lhe mandaram. A família já tinha
comido, mas Luzia recebeu instruções para lhes preparar qualquer coisa. E
Dona Isabel levou Himba à casa de banho, para a tratar e observar e talvez
consolar. Dali só sairiam quando a menina estivesse com o sangue
estancado no nariz, toda limpa e com roupa nova tirada de um armário. A
conversa, necessária, ficaria para depois. Se fosse mesmo preciso, Dona
Isabel tinha o colo bom, onde se aquietara Luemba, dava para mais
alguém.
Depois de comerem, debaixo dos olhos dos outros, Dona Isabel deu mais
instruções a Luzia para preparar as camas. Himba dormiria com uma das
irmãs e Kassule no sofá da sala. Quando ele disse, desnecessita, dormimos
no quintal de trás, estamos habituados, a senhora cortou:
– Pois desabitua-te de dormir ao relento e é já. Nunca mais vais dormir
com as estrelas em cima, só se quiseres passear um dia, fazer de viajante.
Agora deitas em baixo de teto e acabou. Amanhã ainda ficam cá em casa,
no dia seguinte é sábado e, como combinado, o Mariano vos leva ao lar.
Não foi isso que combinámos, Mariano?
– Foi, sim, mãe. Depois de amanhã levo.
Kassule encolheu os ombros, um pouco cético. Até gostava de dormir no
sofá da sala, devia ser fixe. E o lar também? Mas quem pode fazer
previsões para tão longe como a senhora estava fazer, que se devia
desabituar de dormir ao relento? A vida dá tantas cambalhotas… Tinha,
porém, uma preocupação.
– Dona Isabel, agradecemos muito. E agradecemos ficar cá amanhã. Mas
a polícia vai estar agitada, querem falar connosco, sobretudo com a Himba.
Era bom ninguém dizer nada que estamos aqui. Eles podem nos levar para
averiguações…
– Já percebi. E vocês todos não sabem o que se passa, mas perceberam
que não abrem a boca sobre isto, não é? Não temos duas pessoas a mais em
casa, entenderam?
Os filhos e afilhada concordaram com a cabeça. Não foram obrigados a
jurar, o respeito era grande. A senhora boa das trancinhas continuou:
– É melhor saberem uma coisa, já, pois vão acabar por ouvir amanhã.
Houve uma luta na praia e um amigo deles, o Tobias, foi morto. Por isso é
questão de polícia. Eles devem ir para o lar no sábado e se a polícia os
descobre vai só atrasar a ida deles para interrogatórios que não vão dar em
nada, todos sabem o nome do matador, outros ficaram como testemunhas. É
só isso. Está claro?
Mais que suficiente para os jovens. Nessa altura Dona Isabel ainda não
sabia da violação. Apenas que bateram também em Himba, não dava para
esconder o nariz sangrento e inchado. Se soubesse, contava aos filhos e à
afilhada? Uma dúvida que Himba e Kassule levariam para a cama. A
menina achava a senhora não ia contar, mas quem adivinha o que passa na
cabeça de uma pessoa cheia de boas intenções?
Custou a adormecer, muitas vozes falando na sua cabeça.
Vozes desencontradas, algumas augurando mais desgraças, outras
compassivas, soando do longe. Vozes de mortos e de vivos, vozes de quem
não sabia se estavam mortos ou vivos, mas também vozes diretamente do
futuro, destapando segredos que se revelariam falsos mais tarde, enquanto
alguns acertariam em cheio nas previsões, mas as vozes se encavalitavam
umas nas outras e era apenas um zoar de onde se escapava por vezes uma
palavra, uma frase incompleta, na maior parte dos casos nem podia perceber
o significado, só o adivinhava. Porque esse tipo de vozes não chega nos
ouvidos, só no coração.
Estou a ficar maluca. Quem não ficaria?
A madrugada chegou. Os sons eram outros, de gente a passar, crianças a
rir, carros, pássaros. A filha de Dona Isabel gemeu, se sentou na cama,
olhou para Himba, disse bom dia. Custou levantar, queixou de novo, depois
se decidiu de repente e saiu do quarto. Para a casa de banho, imaginou
Himba. Se vestiu com a roupa nova, a sua tinha sido atirada para o cesto da
roupa suja e dali talvez fosse para o lixo, embora lhe parecesse que a
senhora não era muito adepta de deitar coisas fora, tudo podia ter a sua
utilidade. A prova estava nas calças e blusa que lhe deu, não servindo a
ninguém da casa. Ousou meter um pé fora do quarto, lembrou o Kassule,
foi acordá-lo na sala. Deu encontro com Mariano, já pronto. E percebeu que
Dona Isabel andava pelo quintal. As pessoas se levantam cedo na Ilha,
todas têm a sua função, não eram como eles, sem horário, acordando a
rítimos próprios, cada um na sua hora, porque o resto do dia era vazio.
Mariano lhe perguntou se queria comer e ela perguntou, e os outros? Cada
um ia à cozinha e preparava o seu pão e chá, ele ia agora, se ela quisesse…
E Himba deixou Kassule continuar a dormir, foi com Mariano.
Este lhe explicou, o serviço abria às oito horas, como toda ou quase toda
a função pública, mas ele gostava de chegar um pouco antes, dali apreciava
a baía, tão calma de manhã cedo, cumprimentando os colegas que iam
aparecendo.
– Sou sempre o primeiro a chegar. Faço de porteiro…
E riu, enquanto abria com a faca os dois pãezinhos. Sempre que podia,
mirava Himba. Ela notou. Olhar bom, não tinha o jeito manhoso do Zero ou
a raiva controlada do Tobias. Como o do Kassule, quando estava bem-
disposto. Parecido ao da mãe dele, diferente das irmãs. As jovens pareciam
alheadas dos outros, como se não existissem, deve ser o que aprendem na
escola, pensou Himba. Ninguém se tinha lembrado de lhes ensinar o nome
delas, por isso eram apenas as irmãs. Luzia não olhava as pessoas de frente,
baixava sempre a cabeça. Submissa? Foi apresentada como afilhada e era
claramente bem tratada, embora fizesse o trabalho de criada, com um quarto
próprio. Habituada à casa onde nascera, Himba se espantara já da primeira
vez e agora de novo. Como era possível aquela casa, que não era maior que
a do município, ter sala de estar, quatro quartos pequenos, um sendo no
quintal, onde dormia Luzia, cozinha e duas casas de banho? Uma das casas
de banho ficava ao lado do quarto de Luzia, no quintal. Bom
aproveitamento do espaço. Por causa de duas grandes árvores que lhe
davam sombra todo o dia, era bastante fresca. A árvore da frente era o
escritório de Dona Isabel, como ela própria dizia, no gozo. A de trás
sombreava a casa da parte da tarde. Muito agradável de viver, pensou
Himba.
Mariano barrou o pão com goiabada feita em casa e lhe serviu o chá.
– Isso é só hoje para ver como fazemos – brincou ele. – Amanhã és tu que
me serves.
Himba sorriu pela primeira vez. Ele ficou encantado com o sorriso, não
podia evitar olhar para ela, como hipnotizado. Se sentaram em bancos e
comeram calados, apreciando a companhia.
– Como é, Himba, dormiste bem? – perguntou Dona Isabel, do lado de
fora, pela janela. – Já vi que se entenderam para comerem.
– Fomos feitos para nos entendermos – disse Mariano, um toque
enigmático na voz.
E pela segunda vez Himba sorriu, achava graça à maneira dele. Até se
sentia envaidecida pela insistência do seu olhar apreciador, diferente de
todos os que sentira poisados na cara dela.
A mãe entrou pela porta de trás diretamente para a cozinha e ajudou o
filho a preparar o taparuere onde levava o almoço. Era longe para vir comer
a casa no meio do trabalho. O falecido sempre fizera o mesmo. A pé ainda
era uma caminhada, por isso Mariano, como o pai antes, saía cedo de casa,
um passeio saboroso e higiénico, dizia ele, nem toda a gente tem esta sorte
de habitar na Ilha de Luanda, uns felizardos. O que era verdade para quem
desfrutava de uma boa casa e uma família, reconheceu facilmente Himba. A
Ilha era dura para quem tinha de sobreviver na areia.
Se despedia dela sem particular saudade.

***

O cangalheiro Gomes tinha razão, o corpo não foi entregue no dia da


morte à funerária, só no seguinte de manhã. Por isso à noite não houve
velório, fica mal fazer velório sem corpo. Sofia e o irmão, mais alguns
trabalhadores do restaurante, os que puderam ser avisados, foram passar um
tempo na casa da falecida, para reconfortarem o estranho Ezequiel, uma
espécie de noite improvisada de óbito. Sofia carregou a carrinha com
cerveja e refrigerantes, foi ao mercado de rua comprar o mais que havia de
paracuca, kitaba, gengibre, cola, múkua, pé de moleque e outras guloseimas
para acompanhar bebida, levou tudo para casa da sócia. Não tinham o corpo
para chorar sobre ele mas sempre podiam ir conversando e contando
estórias, recordando as melhores cenas de Dona Ester, até mesmo ensaiarem
uns jogos de cartas, enquanto consumiam os quitutes da terra e as birras e
gasosas. Não havia mais família, desconheciam se os vizinhos se davam
com ela, preferiu não avisar. Os que liam jornais podiam ver o anúncio sem
fotografia no dia seguinte de manhã, a necrologia era das páginas com mais
adeptos no único diário, rivalizando com o futebol, sendo o resto utilizado
para embrulhar coisas e limpar vidros.
O motorista despendeu esforço em ganhar um espaço na célebre página,
depois de algumas tentativas infrutíferas. Tive de pagar mais um cochito ao
camarada de serviço, além da taxa de urgência, para passar à frente de
outros anúncios menos necessários, está tudo aí no papel das contas, disse
ele a Sofia, apresentando o troco e o que gastara no anúncio. Podia ser uma
maneira de aumentar um pouco o salário, ficando com umas notas, mas
também podia muito bem ser verdade, se tornara comum a exigência de
gasosa para qualquer favor ou cumprimento mais escrupuloso do dever de
trabalhar, por isso ela aceitou, fez só que sim com a cabeça, até no jornal
governamental é preciso pagar gasosa, admirou.
Estavam na casa da sócia, sala pequena demais para a dezena e meia de
pessoas. As mulheres no princípio iam ensaiar uns choros e lamentações,
mas o cozinheiro Tadeu, investido em segundo chefe da empresa por ser o
responsável pela cozinha até novas ordens, falou logo, nada de komba aqui,
respeitem a falta de corpo. E ninguém mais ousou fungar, mesmo quando se
contavam as estórias sobre a bondade da finada. Ezequiel não parecia reagir
a nada. Bebeu o refrigerante que lhe deram, mastigava as paracucas ou
kitaba que Kiaxi de vez em quando lhe passava para a mão, mas nada dizia,
nem parecia se condoer em particular. Saberia porque estavam ali? Sofia
não tinha a certeza de quanto ele compreendia sobre os factos comuns que
lhe iam acontecendo. Era frequente acordar com pesadelos, sobre mortos e
espíritos, segundo contava a mãe. Também havia as cenas dos gritos na
igreja, quando os crentes berravam hossanas e xinguilavam. Mas pouco
mais sabia do que acontecia no seu cérebro. Talvez não tivesse mesmo
noção do que existia, embora conseguisse, se espicaçado, responder a
perguntas com certa lógica.
Ezequiel era mesmo o problema que estava com ele.
Hoje companhia não faltava, o pessoal só ia desgrudar quando acabasse a
bebida e ela carregara bastantes grades. Se fosse preciso, ia buscar mais,
que não a acusassem de diminuir o brilho do óbito de Dona Ester. Embora
não tivesse ainda a carta de condução, conseguia guiar a carrinha, por isso
dispensaria o motorista se ele quisesse ir embora. Além disso, àquela hora,
se fosse obrigada a dirigir o veículo, não havia perigo nenhum de encontrar
um zeloso polícia a pedir os documentos do carro e a carta de condução.
O senhor Gomes tinha ligado às cinco da tarde, só agora consegui a
certeza de que me deixam ir buscar o corpo às oito da manhã, portanto vou
marcar o funeral para as quatro da tarde, não pode ser antes e isto se houver
vaga no cemitério, sabe como são essas coisas, às vezes o pessoal faz greve
de zelo para reclamar dos salários baixos, que até são, devemos reconhecer,
mas o administrador municipal não vai em cantigas, diz que não tem
dinheiro para mais e há gente a morrer à toa, muitos acidentes, sobretudo de
moto e de carro, doenças de todos os cantos do mundo, desculpas, essas
coisas… A segunda notícia é que ia cancelar o aluguer do recinto para o
velório, reservado para todo o dia, porque não se justifica, o corpo pode sair
da funerária, onde o preparo e ao caixão, essas coisas, diretamente para o
cemitério. Ao que Sofia se opôs, não faça isso, senhor Gomes, mantenha a
reserva do sítio, mesmo que seja uma hora, devemos deixar os amigos se
despedirem com decência da Dona Ester, dali partimos para o funeral. A
jovem senhora é que sabe, tentava lhe poupar algum dinheiro mas se acha
bem reservarmos o espaço para todo o dia, tudo certo, não telefono a
cancelar o aluguer, essas coisas. Fico satisfeito por saber que estou a lidar
com alguém a quem não importa gastar mais algum dinheiro só para honrar
uma amiga falecida, cai sempre bem na juventude de hoje.
Sofia só avisaria o pastor da igreja de Dona Ester de manhã, antes que ele
lesse o jornal ou alguém o avisasse do infeliz acontecimento. Assim, teria
tempo de mobilizar algumas carpideiras para se postarem no local do
velório, até mesmo o coro de gospel se para aí lhe desse, e depois seguirem
num camião da igreja para o cemitério, como sucedera de outras vezes,
conhecimento sobre os procedimentos fúnebres obtido nas conversas da
sócia, sempre muito orgulhosa da maneira como a sua religião se
preocupava com os rituais. Da vida ou da morte.
Talvez para a convencer a aderir a algo tão perfeito.
Parecia tudo tratado, a polícia afinal aceitou os documentos e as
conclusões do hospital, não exigiu perícias nem interrogatórios, nem quis
saber da existência do filho, havia muito bandido a perseguir e motoristas a
quem extorquir dinheiro, seria tempo perdido se ocuparem mais que o
devido de um caso límpido de morte por doença grave.
Ainda bem, chatice a menos.
Morta Dona Ester, ninguém ia pensar mais no Ezequiel, só mesmo ela.
Como fazer? Não podia viver sozinho. Tinha de arranjar alguém para se
ocupar dele, pagava o salário dessa pessoa com o rendimento do
restaurante. Descontava do lucro dele, claro. Mas tinha de ser uma pessoa
cuidadosa e de confiança, de preferência de certa idade, que lhe limpasse a
casa e o obrigasse a se lavar e vestir decentemente. Aí começavam os
problemas, pois poucas pessoas estariam dispostas a servi-lo, há sempre
muito receio de malucos. E isso é o que ele era, maluco. Bastava ver a
maneira como se agarrava agora a Kiaxi.
Fixação perigosa.
A moça era muito nova, órfã de pai, vivendo com a mãe e irmãos num
ximbeco qualquer lá para o mabululo. Segundo lhe constava, pertencia a
uma família expulsa para a área rural quando começaram a construir em
Talatona, considerada a Luanda do futuro. Kiaxi era nova mas poderia
começar a ter ideias, por exemplo deixar que ele se apegasse a ela e ainda
convencê-lo a viverem juntos. Ele era maluco mas tinha devaneios e
apetites sexuais, Sofia não esquecia porquê tinha sido expulsa a chapadas a
mulher que há anos atrás exercia a mesma função. Portanto, não seria difícil
uma rapariga esperta amarrá-lo. As contas seriam feitas rapidamente, aos
olhos dela Ezequiel era muito rico, herdeiro do restaurante, um bom partido
portanto, longe dos seus sonhos. Ninguém sabia, para além do círculo
restrito de Dona Ester, Sofia e Diego, talvez o pastor da igreja, quantos
sócios havia e quais as quotas na sociedade. Portanto, Kiaxi ou outra
qualquer pensaria, ele tem pelo menos metade, o que era uma fortuna para
gente despossuída de quase tudo. Uma tentação a que era preciso cortar já
as pernas. Foi um disparate levar Kiaxi com ela lá a casa, uma coisa mal
pensada, mas a primeira que lhe ocorreu, não podia estar atenta a tudo,
muita pressão e deveres imediatos a fazer, era humana, alguma coisa
correria mal.
Os erros só o são se não forem corrigidos.
Chamou Kiaxi de parte, podes ir para casa, devem estar preocupados
contigo, afinal ainda és muito nova para estares fora à noite, mas como
assim, Dona Sofia, todas as noites trabalho no restaurante, chego a casa
muito mais tarde que a hora que é agora. Tinha razão, estava mesmo
esgotada, a começar a fazer asneiras para corrigir um erro.
– Era só para te dizer que quando quiseres ir, podes bazar. Pedi para
ficares com o menino Ezequiel para ele não ficar sozinho. Agora já estamos
aqui, vou tentar pô-lo a dormir.
Se ele aceitar, pensou. Não aceitaria enquanto houvesse animação em
casa, para ele devia ser novidade. Ou as amigas da igreja costumavam fazer
serões lá em casa? Nunca pensara no assunto. Mesmo fora da religião,
Dona Ester devia ter pessoas conhecidas, visitas. Se as tivesse, saberiam
pelo jornal, talvez não a tempo de irem ao funeral, mas para depois
aparecerem a perguntar como estava Ezequiel. De facto, tinha de arranjar
alguém de confiança que tratasse dele.
Diego tinha feito amigos. Mudou o sentido da conversa, agora falavam de
monstros marinhos, de lendas e realidades em outra dimensão, como ele
dizia. Havia uma das ajudantes de cozinha que nascera na Ilha de Luanda,
comunicava mais com ele, contando o que tinha ouvido quando era
kandengue.
Assim passava o serão do óbito, quase como o tradicional.
Mas não passavam as preocupações de Sofia. E a mais urgente se
chamava Kiaxi. Instado a ir para a cama, Ezequiel disse na maior candura
que só ia se Kiaxi também fosse. E lhe estendia a mão, que a moça apertou,
uma ponta de vaidade na cara, dava para perceber. Podia ser tudo muito
inocente, sobretudo por parte da rapariga, mas Sofia desconfiava. Que
teriam andado a fazer enquanto ela tratava do funeral e ficaram os dois
sozinhos em casa? Ezequiel não tinha inibições, se simpatizava com uma
pessoa pedia logo para abraçar, tocar, coisa que nunca acontecera com
Sofia, com quem ele sempre manteve um relacionamento distante. Ela
nunca tinha tentado uma aproximação e há muito tempo não o via. De
certeza Ezequiel não guardava a mínima ideia dela. Com Kiaxi a empatia
foi imediata. Sofia tentou lhe explicar o que significava a morte da mãe, ele
praticamente não reagiu, mas quando apresentou Kiaxi e disse, ela vai ficar
um bocado contigo enquanto vou tratar de uns assuntos, ele se animou, não
olhou mais para Sofia, todo sorrisos para a moça. Devia ter trazido uma
senhora casada da cozinha ou da limpeza, burra que sou! Teve o raciocínio
contrário, ao trazer uma jovem e simpática, ele se sentiria mais à vontade. O
problema foi mesmo esse, ele se sentiu à vontade demais.
Agora tinha de limpar a merda que espalhara.
Diego animava a festa. Todos riam, alguns batiam palmas quando a tirada
tinha mesmo piada. Esqueceram as cartas, não tentaram cantar, antes
ouviam aquele artista que tinha muitas estórias para contar, sobretudo dos
seus amigos pintores e escultores, alguns congoleses, outros do Leste do
país, menos do Sul. Estórias de feitiços mortais, de encantamentos
amorosos, de como em Kinshasa as mulheres são cada vez mais claras por
causa dos produtos que usam, alguns com consequências perigosas, dos
pregadores de ilusões que começaram por criar partidos políticos e quase
todos descobriram o filão das igrejas, dava muito mais dinheiro ser dono de
igreja que de partido político. Saltava de assunto para assunto, gozando com
todas as situações. Sofia ouvia e se admirava, quase tinha esquecido essa
faceta do irmão. E, no entanto, era a faceta mais marcante, sempre fora um
gozador, por vezes escapando a grandes surras pelos que se sentiam
zombados. Metida com outras tarefas, se tinha afastado de Diego. Ou foi ele
que se afastou? Afastamento temporário, ia já corrigir, puxando-o de novo
para si. Foi preciso morrer a sócia para ela descobrir as mudanças negativas
da sua vida. Porque Diego era importante, era a pessoa mais importante. De
repente sentiu ciúme. Ele contava as cenas para os outros, se divertia
fazendo-os rir, cozinheiros, senhoras da limpeza, ajudantes, pessoas com
quem estava habituado a lidar, do mesmo meio. Nunca contara aquelas
cenas à irmã. E agora, nem olhava para ela, procurando o seu aplauso. O
seu público estava ali, era indiferente se ela fazia parte do público ou não.
Grande vazio no coração de Sofia.
Diego já lhe tinha lançado umas farpas, de vez em quando. Por achar que
ela se deslumbrava apenas por ser aceite pelo grupo de amigos, os
príncipes? Da primeira vez que ela lhe tinha falado sobre eles, o que bebiam
e quanto gastavam num jantar, ele usou o termo, são os nossos príncipes de
musseque, a nossa realeza subdesenvolvida. Quando mais tarde ela falava
deles, usando a terminologia de príncipes e duques, com ironia, Diego
fingia não ouvir, mudava de conversa, exceção feita ao caso de Jezabel de
Anunciação, que o interessara deveras. Seria possível Diego pensar que ela
se orgulhava de participar das conversas deles, acreditar pertencer ao
grupo? Podia Diego interpretá-la tão mal? Ele contava estórias ao seu
público, não procurava a aprovação dela e Sofia se sentia infeliz.
Pior ainda quando olhou para o lado e viu Ezequiel e Kiaxi de mãos
dadas e olhos líquidos.
Finalmente a conversa esmoreceu. A cerveja tinha acabado mas ela
decidiu não ir buscar mais. A sentada acabava ali, queria pôr toda a gente
na rua. Pediu o telemóvel de Ezequiel, apagou o número da mãe, pôs o seu,
quando precisares de mim, carregas aqui e aqui, como Dona Ester lhe
ensinara. Não havia perigo de errar.
Todos começaram a se despedir e Kiaxi ia ficando para trás, as mãos
dadas com o órfão. Foi preciso Sofia lhe segurar no braço, até amanhã no
funeral, vai bem e obrigada apanha a companhia de alguém, Ezequiel ainda
tentou segurar Kiaxi, mas Sofia tinha pensado bem no assunto, interpôs o
corpo, empurrou a rapariga no meio dos outros, fechou a porta com
brusquidão.
Ezequiel queixou, eu quero a Kiaxi comigo.
– Vais masé para a cama. E já.
Ele era muito obediente, sempre lhe dissera Dona Ester. À voz de
comando, o coitado se enfiou no quarto, sem uma palavra audível mas se
percebia, queixava baixinho, eu quero a Kiaxi. Diego assistia à cena, sem
interferir. Ajudou a irmã a arrumar a sala, despachando as garrafas vazias e
os copos para a cozinha.
– Ele fica bem sozinho?
– Fica – respondeu Sofia. – Vamos só esperar um pouco para ver se
adormece.
– Não foste um pouco dura para o coitado?
– Fui. Mas tinha de ser.
Ficaram um bom bocado de tempo calados. Passava da meia-noite e
Diego pensava, ainda temos de andar. Quando manifestou essa preocupação
ela disse:
– Te dou boleia – riu por causa do espanto dele. – Fiquei com a chave da
carrinha. Vou te levar a casa com toda a segurança. Já sei, não tenho carta
de condução ainda, mas achas que vai aparecer algum caínga a me pedir?
Ele encolheu os ombros. Já tinha passado por aventuras muito mais
perigosas. Sofia foi espreitar no quarto de Ezequiel. Ouviu a respiração
regular de quem dorme. O homem estava habituado a adormecer cedo, logo
que a mãe chegasse. Uma sentada como a desta noite despertou-o, mas logo
que as pessoas bazaram, o sono veio. Amanhã já nem lembrava de Kiaxi,
esperava Sofia. Ia encontrá-la no funeral, talvez lhe despertasse desejos,
mas ela depois arranjaria maneira de os afastar de vez. Ezequiel não tinha
autonomia. A menos que Kiaxi tomasse alguma iniciativa. Amanhã mesmo
tenho de falar com ela, dizer que o que fizera era muito perigoso, deu
esperanças ao homem lhe segurando a mão, sabia que ele não era normal, a
polícia podia achar que ela queria aproveitar da maluquice dele, qualquer
ameaça velada no género seria suficiente. Toda a gente tem medo da
polícia, com culpa ou sem ela.
Voltou para a sala.
– Podemos ir. Amanhã tenho de vir cá cedo para lhe dar de comer e
ordens. Para se vestir, para ver televisão, etc. É essa a vida dele, fica a olhar
para a televisão. Será que entende alguma coisa?
– Deve entender. Não sabemos é se da mesma maneira que nós…
Não fosse a presença de Ezequiel no quarto ao lado, a frase merecia uma
sonora gargalhada. Os dois se contiveram. Sofia fechou a porta, levou as
chaves. Ezequiel nunca saía de casa por sua iniciativa, mas podia alguém
bater à porta e ele abrir. Todo o cuidado é pouco, esse país tem muito
maluco perigoso.
– Como é que vais fazer com o restaurante? – perguntou Diego, já na
carrinha, com ela a conduzir com todo o cuidado para não ter um acidente
logo da primeira vez que infringia o código.
– Vou tomar conta dele, como sempre fiz desde que lá estou. O meu
problema é a cozinha. Será o Tadeu capaz de tomar conta dela? Essa é a
maka. Não me convinha ainda contratar um cozinheiro já feito. Salário
pesado.
– Podes orientar o Tadeu. Ou não?
– Posso. Ultimamente a Dona Ester já pouco fazia… Estava pior do que
eu pensava, a arfar, a arfar… Porque não dei conta?
– Não te culpes disso. Ela era gorda demais, sempre disseste que não se
cuidava na comida, nos doces e gorduras… Até eu sei que faz mal ao
coração, o coleste... quê? Isso.
– O colesterol, assim se chama… Era difícil convencê-la de qualquer
coisa. Confiava mais no aldrabão do pastor que em qualquer médico…
Esses, nem vê-los… Sim, perguntaste se posso orientar a cozinha? Posso,
claro. Mas antes éramos duas cabeças, experimentávamos juntas. As ideias
podiam ser minhas, mas fazíamos as experiências juntas. Sentia-me mais
segura. E quando tinha de ir a uma repartição ou fazer compras, sabia que a
cozinha estava em boas mãos, mesmo se afinal ela já andava debilitada.
Agora vou ter de estudar os horários, controlar mais os tempos, melhor
organização…
– Bumbar mais!
– Sim, bumbar mais. Mas se mantém a oferta de trabalhares no bar
quando quiseres, nada disso muda.
Ele sorriu. Eu sei, eu sei, disse para si próprio.
12

No sábado, Mariano levou Himba e Kassule para o lar do padre Adão.


Apanharam um candongueiro até à Samba e depois outro até ao Morro
Bento. Longe, fora do que na época se considerava Luanda, razão pela qual
se chamava Luanda-Sul, por ter começado sendo no caminho para a barra
do Kwanza, para lá dos limites da cidade. Se não fosse com Mariano,
Himba teria medo, dos bairros e da viagem. Era a primeira vez que andava
de candongueiro e não tinha passado naqueles sítios quando entrara na
capital. Assustava-a o barulho das conversas, gritos e risadas no meio, as
acelerações e ultrapassagens apertadas do carro, seguidas de travagens
repentinas. Os outros passageiros pareciam não notar, iam todos em festa,
exceto uma senhora mais velha num canto, calada, com cara triste. Talvez
se dirigindo para um óbito ou tivesse algum problema grave. Kassule
também nunca tinha tido dinheiro para entrar num candongueiro. Olhava
para todos os lados com sofreguidão, como se quisesse tudo apreender, em
particular a maneira como o motorista conduzia. Mariano ia como ele
mesmo era, tranquilo, sem dar corda às conversas dos outros, de vez em
quando a observar os meninos para comprovar que os dois se sentiam bem.
O olhar dele atento acalmava um pouco Himba, mas logo estoirava grande
discussão a propósito do jogo que haveria à tarde, decisivo para o
campeonato, entre duas equipas rivais da capital, e ela se assustava. Lhe
dava a impressão que essas berrarias e conversas animadas podiam distrair
o motorista, o qual participava delas com todo o interesse, guiando
mecanicamente o Hiace, rasando os outros carros e os passeios sem mirar,
se virando muitas vezes para trás, onde estavam os adeptos de uma e outra
equipa. Só faltava puxar de uma garrafa de cerveja e beber enquanto
conduzia, contra todas as palavras de ordem da polícia e de responsáveis
pela sociedade.
No entanto, chegaram a salvo.
Ainda foi preciso percorrer a pé uma rua empoeirada, porque sem asfalto,
de uns quatrocentos metros. Porém, não sabia mal andar assim, depois
daquela viagem iniciática e assustadora. Os muros das residências quase
iguais e com o cimento à vista, sem pintura, indicavam bairro novo,
construído como calhava, sem plano nem fiscalização. Himba reparou, a rua
não era direita, era aos ésses, contornando os muros desalinhados. E não
tinha postes de iluminação.
Entraram por um portão avermelhado, num muro como os outros, mas
viram logo dois barracões grandes, construídos de blocos de cimento e teto
com chapas vermelhas. As paredes estavam pintadas de verde-claro e
tinham janelas com persianas e vidro. Mais adiante, um espaço coberto,
grande, com mesas e bancos compridos de cimento, sem paredes, apenas o
mesmo teto de chapas vermelhas, que Himba mais tarde saberia serem de
fabrico chinês. Os dois pavilhões de entrada eram dormitórios, um para
rapazes, outro para raparigas, e o espaço tapado e sem paredes o refeitório.
Ao lado deste um pequeno edifício que devia ser a cozinha e respetivo
armazém de víveres. Passavam pessoas de um lado para o outro, alguns
adultos, outros crianças e jovens. Sem gritarias nem corridas, tudo muito
calmo. A disciplina deve ser rigorosa, pensou Kassule, aqui não dá para
armar em esperto, te estigam logo ou te dão porrada, para aprenderes boas
maneiras.
Um homem de meia-idade, baixinho, veio ter com eles, se apresentando
logo como Adão. Mariano cumprimentou-o e falou:
– Sou Mariano Kimba, filho de Dona Isabel da Ilha, com quem o senhor
padre conversou no outro dia. E estes são os meninos que ela mandou.
O padre apertou a mão de todos. Coçou a cabeça, fazendo contas talvez.
Era careca ou então rapava os cabelos com navalha, moda adotada primeiro
pelos rapazes da cidade, imitando os manos norte-americanos do
basquetebol e que mais tarde os adultos masculinos também seguiriam. Ao
menos não apanhavam piolhos, agradeciam as mães. Algumas cabeças eram
regulares e a falta de cabelo até calhava bem, no entender de Himba,
sempre muito atenta à aparência das pessoas, mas alguns homens ficavam
uma desgraça, com crânios disformes ou com cicatrizes e amolgadelas
vindas de passados difíceis. A esses dava mesmo jeito um bocado de
cabelo, mas teimavam em seguir a moda.
– Bem, de facto prometi. Chegaram entretanto alguns rapazes a mais e
vou ter dificuldade em acomodar o kandengue. Quanto à menina, não há
problema, temos lugar.
– Não fico sem o Kassule, é meu irmão – disse logo Himba, com voz
fraca e chorosa.
– Calma – disse o padre. – Falei de alguma dificuldade, não de
impossibilidade. Percebes a diferença, pequena? Como é mesmo o teu
nome?
– Himba.
– Pois, Himba, é verdade. Vamos também arranjar lugar para o teu irmão,
só que tenho de puxar pela sapiência – e deu uma chapada na nuca – para
encontrar solução. Não te preocupes, deve sobrar uma cama… Ah, já sei,
temos um catre guardado nos arrumos, é dos primeiros tempos, não está
muito bom, mas o menino é leve, não vai cair com o peso. Mais tarde
haveremos de receber uma cama nova e fica com primeira prioridade para
essa.
Os meninos sorriram um para o outro. Também para os adultos. O padre
convidou-os a visitar o recinto, que tinha mais atrás um grande terreno com
balizas de um lado e outro, miúdos a jogar. Logo Kassule falou:
– Fixe, o famoso estádio. Já posso voltar a jogar futebol, na praia não
dava muito jeito.
O padre pelos vistos levava tudo muito a sério, pois se virou, admirado,
para o menino.
– Jogas mesmo futebol?
– Só sem a muleta, a muleta atrapalha-me para as fintas de corpo.
Riu Himba, esse Kassule sempre com as dele, riu Mariano e o padre Adão
finalmente percebeu o gozo. Fez um sorriso contrafeito. Na religião dele
talvez não fosse muito aceite gozar com a própria desgraça, pensou Himba.
Não era nada disso, todos faziam parte da mesma religião, a católica. E no
catecismo nunca aprendera assim. Gozar com a deficiência de outro é que
era pecado, não com a sua própria, sinal de coragem, pelo menos ela assim
o entendia. Entretanto, já o padre mudara a conversa, mostrando as plantas
pequenas que cresciam em todo o terreno, entre as casas.
– Fizemos há pouco tempo um grande trabalho de plantação de árvores.
Um grupo de voluntários trouxe mudas de Viana, de uns viveiros, foi muito
divertido, todos a cavarem os buracos e a discutirem em que sequência
punham, pois tem muita variedade e havia uns que achavam, cada qualidade
num sítio próprio, outros achavam que devia ser tudo misturado…
– E o que decidiram? – perguntou Himba, muito interessada. Tinha
ganhado vivacidade, notaram Mariano e Kassule, satisfeitos.
– Ficou por alas. Há a ala dos nimis, a ala das mangueiras, a ala das
palmeiras, a ala dos coqueiros e a dos abacateiros. Acho que não esqueci
nenhuma, pois a desprezada vai ficar zangada comigo. Ah, também
mamoeiros, desculpem, mamoeiros queridos. Bem… Daqui a uns anos
vamos ter muita sombra e flores, vai ficar um sítio bonito. E estamos a
preparar também canteiros, veem aquelas pedras brancas todas alinhadas lá
e ali e ali, por todo o lado? Pois, vamos pôr crótalos, girassóis, rosas de
porcelana, gerberas, todas as flores que conseguirmos arranjar. E vamos ter
mesmo, pois a malta da rádio diz que está a juntar uma coleção completa
para trazer.
– Gosto muito de tomar conta das plantas e flores. Lá em casa era eu que
tratava disso…
Logo se interrompeu, pois estava a trazer para a conversa confidências
sobre a vida passada, coisas que ela nunca contava perante estranhos. Só
Kassule não o era e já tinha ouvido essas estórias das experiências que ela
fazia em vasinhos, imitando os japoneses, criando árvores em recipientes
pequenos e cortando sempre os raminhos para que ficassem árvores em
ponto pequeno, os célebres bonsais. E dos seus fracassos, pois não teve
tempo de aperfeiçoar o método. Talvez ali lhe deixassem experimentar, não
era muito caro e uma coisa bonita.
– Pois te ocuparás também das plantas, se quiseres. Aqui toda a gente
trabalha para limpar e arrumar os dormitórios, o refeitório, fazer comida,
varrer o terreno, tratar dos lixos, etc. Por isso, uns tantos, que julgam que
vêm passar férias, fogem ao fim de uns dias…
– Estou habituada a ajudar na casa. E o Kassule também, não é?
– Bem, isso já foi há muito tempo… ajudava na lavra, lembro, o resto…
Também não gostava de abrir o livro do passado diante de estranhos.
Devia ser uma atitude normal, pensou Himba, mas ela sabia mais do que o
amigo tinha admitido, ele ajudava mesmo a mãe em casa, só que a
lembrança da mãe era sempre dolorosa e ele evitava falar muito sobre isso.
– Ajudavas mesmo, sei – disse Himba. – Nós não vamos fugir, senhor
padre, e o trabalho não nos mete medo. Também queremos estudar, claro.
O padre acenou com a cabeça, mostrando agrado. Mariano estava sempre
calado, deixando que os meninos estabelecessem conhecimento maior com
o sacerdote, embora Himba sentisse os olhos dele na cara dela, sobretudo
quando falava.
– Temos acordo com duas escolas aqui da zona. São do Estado e portanto
gratuitas. Senão ia ser complicado, as privadas exigem propinas que só
ricos podem pagar, nunca me hei de conformar com isso, é uma vergonha,
tanta ganância, como é que as pessoas de repente aprenderam a só dar valor
ao dinheiro?… Mas temos de ver se nesta altura do ano podemos
matricular-vos. Acho que já é tarde, têm talvez de esperar até ao próximo
ano.
Ainda faltava muito tempo, pensou Himba. Estavam a entrar no tempo do
cacimbo e as aulas recomeçavam só no pico da estação quente. Uns sete ou
oito meses de espera. Havia que procurar alternativas.
– Como estivemos algum tempo sem estudar, talvez nestes meses que
faltam até ao próximo ano letivo pudéssemos fazer revisões, porque
esquecemos algumas matérias… Não sei se é possível, se há livros…
O padre Adão bateu-lhe no ombro, sorridente.
– Vejo que és uma menina com a cabeça no lugar. Vamos arranjar alguém
para dar explicações ou, como é que chamam agora com as modernices,
estudo orientado?
Só então Mariano se manifestou, é isso, estudo orientado. Riram todos. E
Mariano se despediu, estão entregues, vou regressar à Ilha, demora bastante
lá chegar e a mãe não serve o almoço sem mim presente. O padre enviou
cumprimentos para a Dona Isabel e para o padre da Igreja do Cabo, se o
encontrar, por acaso, na esperança que Mariano dissesse, com certeza, vejo-
o amanhã na missa, lhe dou os cumprimentos, mas o jovem ficou calado,
era evidente nunca ia à igreja, só a mãe por ele.
Não é também para isso que servem as mães?
O sacerdote foi com eles para os alojamentos. Primeiro Himba, que
escolheu uma cama vaga perto de uma janela. A janela tinha rede contra os
mosquitos, um luxo. E um pequeno armário ao lado com gavetas. A parte
de cima podia servir de mesa de cabeceira e as gavetas para guardar roupa.
Ela não tinha, por enquanto dispensava as gavetas. Reparou, as camas
estavam alinhadas em duas filas. E todas se encontravam impecavelmente
feitas, com uma colcha fina por cima. Passou a mão por ela, para sentir a
espessura.
– Cada cama tem dois lençóis e essa colcha. No tempo mais fresco, a
colcha sabe bem. Na maior parte do ano todos dormem só com o lençol por
cima e janelas abertas. Corre o ar, porque tem muitas janelas. Tenho muito
orgulho nestes dormitórios porque foi um amigo meu que os desenhou, um
arquiteto argentino, vocês vão conhecer. Primeiro estudou num seminário
mas não tinha vocação para o sacerdócio, mais tarde se formou em
arquitetura. É adepto de construções adaptadas ao clima, estão a perceber?
Por exemplo, orientou as janelas para o vento e por isso no tempo do calor
vem a brisa do mar e refresca. Nunca faz de facto calor, tudo muito pensado
para ser barato e confortável. Vai além disso melhorar bastante quando as
árvores crescerem, foram dispostas em função da sombra para as camaratas.
Ele tem umas ideias que aqui as pessoas não apreciam muito, queria
construir as paredes de adobe prensado, que ele diz ser melhor para o calor.
Mas os financiadores ficaram ofendidos, então iam patrocinar uma obra de
adobe, como as do mato, ou do musseque? Queriam de certeza tijolos
envernizados e só haveria um dormitório e não dois, com o pouco dinheiro
que avançaram. Bem, eles que perdoem esta boca cansada e pecadora, não
tenho o direito de estar a criticar quem nos ajudou com generosidade, logo
vou me arrepender junto de Cristo… Devia estar a dar-vos bons conselhos e
exemplos, afinal estou a ensinar-vos o pecado da ingratidão. Desculpem-
me, é da velhice...
Os meninos não sabiam o que dizer, esse mais-velho está mesmo bem?,
se interrogou Kassule, é bué engraçado, embora não tenha ousado rir ou
lançar uma das brincadeiras dele.
– Asseguro-vos, dorme-se bem. Pronto, Himba, já escolheste a tua cama,
vamos tratar do Kassule então.
Entraram na outra camarata e o padre indicou uma cama numa ponta, ali
é onde eu durmo. Chamou um rapaz que por ali andava em arrumações e
explicou onde devia ir buscar o catre para Kassule. Indicou o canto vago,
mesmo à frente da sua cama, na fila do outro lado, ali ficas bem. Kassule
concordou, até podia dormir no chão, desde que tivesse teto por cima…
A adaptação não foi difícil.
Com o decorrer do tempo foram conhecendo as regras e as pessoas que
tentavam fazê-las cumprir. Tudo com a tranquilidade do padre Adão, por
vezes provocando sorrisos com suas distrações. Ele era o único religioso e
trajava sempre de civil, uma camisa, calças de tropa e sandálias. Havia uma
aspirante a madre, Débora, filha de italiano com angolana, de uns vinte e
cinco anos, a qual se tornara aos poucos numa espécie de subdiretora e a
responsável pela camarata das raparigas, onde ela própria dormia, num
canto, como o padre fazia na dos rapazes. E Débora estava sempre atenta,
pois num sítio onde dormem rapazes de um lado e donzelas do outro, há
tendência a cruzamentos de fronteiras. Não poderia impedir encontros
furtivos nos bancos do refeitório, altas horas da noite, quando ela ressonava
levemente, ou combinas para os casais irem passear fora do lar e depois se
enrolarem no capim ou nalgum princípio de construção abandonado, lugar
ideal para todas as necessidades fisiológicas, longe de olhares alheios, mas
no seu dormitório os abusos e más-criações estavam mesmo proibidos,
exigia, quase a bater o pé no chão. Ao conhecer melhor Débora, Himba não
se admiraria que o romper dessa regra levaria a mulher a um ataque de
histeria que nem o padre conseguiria controlar. Felizmente nunca aconteceu
para a boa saúde da jovem candidata a madre, bonita, por sinal. Kassule,
que começava a apreciar esses mambos, confessou paixão secreta por
Débora, ela é um avião, uma para-fogo, olha só como tem curvas, carnes e
aquela cara… Beleza provavelmente desaproveitada, se ela cumprisse o
sonho de entrar nalgum convento, mosteiro ou coisa parecida. Um
desperdício, segredou um dia Kassule e Himba riu, não sabia que tinhas
inclinação por latonas, mano, mas o menino ficou uma fera, não gosto que
lhe chames esse nome, agora viraste racista? Himba, da primeira e única
vez que usou a palavra, não o fez para depreciar, apenas porque a diziam
correntemente os meninos da areia, olha os dois latões a se esfregarem na
água, por exemplo, se um par de namorados mulatos tomavam banho
juntos. Pediu muita desculpa, não quis ofender a tua namorada, juro, saiu
sem mal. Estás perdoada e não repitas. Suspirou ele em seguida, não é
minha namorada, nem me declarei, achas mesmo uma futura madre vai
aceitar um tipo como eu, metade da idade dela? Só posso segredar a mim
próprio, olha mesmo para a beleza, sonha, aproveita, Kassule, não faz mal
sonhar.
Essa era Débora, rígida e severa na sua formosura.
Outro elemento importante do lar se chamava Job, como o abençoado da
Bíblia. «Pobre que nem Job» era uma frase que ela aprendera em pequena,
muito antes de conhecer a história. Formado em contabilidade, com o apoio
do padre Adão, numa altura em que este dirigia um Instituto Médio da
igreja, nunca mais a partir de então o abandonou. Combinaram em conjunto
a criação de um lar onde albergariam os meninos de rua, fenómeno
provocado por aquela guerra inesperada. Inesperada? Na cabeça de alguns
otimistas ingénuos, sim. Job foi nomeado desde o começo do lar como
responsável pelas contas, compras e refeitório. Bem antes de terem
refeitório e compras a fazer. Números eram com ele. E gostava de fazer
perguntas às crianças, quanto é o diâmetro da Terra, quantos hectares tem
um campo de futebol, quantos centímetros são dez polegadas, etc. Job
nunca viveu no internato, estava na casa dos pais, na Corimba,
relativamente perto dali, sendo essa a verdadeira razão da colocação do lar
no Morro Bento, num terreno baldio que David, o pai de Job, tinha
aconselhado. Além de contabilista, Job era grande pescador. Todos os
tempos livres aproveitava para lançar a linha. Tinha a vantagem de morar
mesmo na costa, numa casa que o pai tinha aproveitado de um colono
bazante, na altura da Independência. Foi negócio lícito e honesto, dizia Job,
não como aquelas ocupações de casas abandonadas onde o mais forte ou o
melhor encostado ganhava o pleito. Com escritura passada e tudo. O padre
Adão não pagava nada pelo serviço dele, além das refeições feitas com
todos. Nem poderia. O dinheiro era coisa que só existia para a comida e
equipamento do lar, por vezes para alguma roupa muito especial de um
internado. Tinham contactado algumas organizações e de vez em quando
traziam roupa usada ou alguma comida. Salário era coisa desconhecida na
banda. O que irritava solenemente David, não por estar cansado de albergar
ainda o filho em casa, só tinha um casal de filhos vivos e a menina morava
longe, amigada com um caçador de pacaças, desconfiando o sogro que as
pacaças eram masé pedras brilhantes que noutros sítios se chamariam
diamantes, pois para caçar pacaças em tempos de guerra não se ia para a
Lunda ou Malanje e não se vinha passar uns tempos em Luanda, nadando
em dinheiro. Onde é que carne de pacaça dava tanto kumbú? Ainda por
cima, duvidava muito que sobrasse uma só pacaça em todo o território
nacional, com mais armas que habitantes, segundo os cálculos imperfeitos
das oénegês, ONU e outros FMI’s, sempre exagerados para mais ou para
menos, conforme os interesses em questão, o que se verificava também em
relação às minas terrestres, a sua contabilidade subindo todos os anos para
se obterem verbas cada vez maiores dos doadores internacionais, pois
segundo as oénegês interessadas se chegava ao absurdo de haver mais
minas que habitantes, gozava o senhor David. O certo é que o único
restaurante que ele conhecia onde se comia funji de carne seca,
normalmente pacaça, tinha fechado, alegando o dono falta de matéria-
prima. Portanto… Mas ainda voltando ao Job e seu pai, era motivo de fértil
discussão, os dois na areia com as linhas na água, o facto de o filho
trabalhar sem receber um kwanza que fosse, já tinha idade para ter um
salário, descontar para a reforma, pois não se é jovem toda a vida, um dia
queria casar e qual era a moça com juízo que ia aceitar se unir a um
desassalariado, só por boa vontade de ser trabalhador à borla numa obra
sem dúvida meritória mas que nunca poderia encher a barriga de uma
família? Em suma, Job podia ajudar na contabilidade, no fim de semana,
mas devia arranjar um emprego bué remunerado, que os contabilistas até se
safam bem nesta terra desgraçada com tanta falta de propensão para
números e contas certas.
Conselhos avisados de pai.
Job fintava as discussões com o progenitor, olhe, está a picar pouco hoje,
qual é a razão?
– Poluição, só pode. Vês o lixo todo que se acumula nas praias, trazido
pelas marés e correntes? Porcaria e plástico. E esta arrebentação da
Corimba sofre ainda mais, pois apanha toda a porcaria que é deitada na baía
do Mussulo, pelos habitantes, pelos visitantes e turistas e, sobretudo, porque
todos os esgotos dos novos bairros vão dar à baía. A maré baixa trá-los para
aqui. E a maré alta já não leva todos. Então se vão acumulando.
– Sim, a acumulação de lixo eu vejo. De ano para ano. Mas que tem a ver
com o peixe?
– Vai para outras paragens, baza. Julgas que o peixe gosta de nadar no
meio da porcaria? Experimenta mergulhar com óculos aqui no mar ou na
baía do Mussulo. Ou ao longo da Ilha de Luanda. Observa o fundo do mar.
Só plástico, já quase nem se vê a areia.
David tinha sido grande caçador de peixes, um dia apanhou com o arpão
um espadarte de duzentos e seis quilos, foi mesmo pesado por fiscais
neutros. Claro, desconseguiu de o puxar sozinho para a praia. Pediu ajuda a
um barco de pescadores de fim de semana e eles rebocaram o peixe.
Duzentos e seis quilos. Não era nenhum record, nem mundial nem nacional,
o que é a mesma coisa, rondando a tonelada, mas de qualquer modo
mostrava a qualidade e persistência do caçador. Os outros conseguiam
capturar monstros mas pescando em barcos apetrechados com todas as
tecnologias modernas; ele ficava dentro da água levando uma arma fraca e
um arpãozito de meio metro, para isso era preciso ter outros atributos.
Deixou essas lides quando descobriu o nojo que era o fundo do mar em toda
aquela costa da cidade da porcaria, como David, nascido namibense,
chamava a Luanda.
Job gostava de pescar à linha, não se aventurando pelas proezas aquáticas
do pai. Apreciava também esses momentos de intimidade com o senhor
David, em que conversavam sobre a maior variedade dos mambos,
enquanto o peixe não picava. Mas gostava também de passar o dia no lar,
tratando de tudo que dissesse respeito a números, se interrogando por vezes
se não deveria fazer um curso superior de matemática, a ciência que de
facto o fascinava. O pai não se oporia e até podia ajudar. Apreciaria
certamente ter um filho doutor. Porém, não eram os títulos a atrair Job,
apenas a elegância do raciocínio matemático, a música que ele conseguia
adivinhar nas fórmulas e nas séries da ciência.
Também, desejo escondido, era atraído por Débora.
Julgava poder dissimular de todos, sobretudo da própria, tão entusiasta,
diria mesmo fanática, da pureza e castidade nos atos e nos pensamentos. Ele
nunca poderia conspurcar uma santa daquelas. E baixavam os olhos um
para o outro. Um para esconder a paixão considerada pecaminosa. A outra
para não ser contaminada pelo desejo alheio. No entanto, o padre Adão há
muito tinha descoberto as tendências do jovem e andava ultimamente
desconfiado da vocação de Débora. Já tinha sido mais forte. A prova disso é
que há mais de três meses conseguira uma entrevista com a madre superiora
de um convento escondido para os lados de Belas, muito perto dali
portanto, e até então a futura noviça não tinha dado um passo para
conversar com a madre. Alegava muito trabalho, necessidade de presença
constante para evitar males maiores, tentações nas raparigas instigadas pela
sua ausência, mesmo se breve, o que eram justificações a ponderar, mas a
dúvida se instalara na cabeça do padre e o presente não o confortava. E
depois se punha a avaliar, se eu for egoísta, até é bom que ela se mantenha
aqui e não vá para o convento, como vou substituir pessoa tão
insubstituível? Bem, o papa também é insubstituível enquanto está vivo,
mas depois de morto sempre se encontra alguém, o que não é a mesma
situação, convenhamos, há mais de cem cardeais para se tornarem papas de
um momento para o outro, enquanto aqui duvido poder encontrar uma nova
Débora. Pensamentos complicados.
E elevados à dimensão da teologia.
Os dois meninos estavam alheios a estes dramas e problemas, gozavam a
paz e segurança, esperando o princípio das aulas. O padre Adão tinha sido
picado pela pergunta de Himba e organizou as sessões de recuperação,
como ele chamou, evitando o cliché do estudo orientado. Ele próprio, forte
na língua, ensinaria Português, lamentando ser uma sobrecarga para as
crianças ensinar-lhes também Latim. Job, contactado, conseguia tirar algum
tempo às suas ocupações para trabalhar com eles a Matemática e ciências
relacionadas. Convenceram Débora a dar Geografia e História. O benévolo
arquiteto argentino se encarregou de Desenho e de línguas estrangeiras.
Arrebanharam mais voluntários para outras matérias. Só que não foram
apenas dois os alunos. Em breve havia mais de trinta estudantes, em
diferentes fases de aprendizagem, contando também com o pessoal da
cozinha, alfabetizados mas com pouco mais instrução. Aí está uma boa
coisa, pensava Adão, não será apenas até começarem as aulas, montamos
um sistema permanente e os alunos mais avançados vão ajudar os outros,
mas porque é que não me lembrei mais cedo disto? Era muita preocupação,
necessidade de organizar as coisas, dar comida e um teto a crianças
desprotegidas, uma coisa tão importante ficara para trás, também não podia
inventar mais culpas que os seus pecados já comportavam.
Com as aulas de recuperação, o lar ganhou maior dinâmica, começou a
ser mais falado, com a rádio amiga sempre a publicitar as realizações e as
dificuldades, o que fez afluir visitantes e doadores. Até a vice-governadora
da província para a área social marcou previamente uma visita, levando
jornalistas, pois qual é o político que vai a algum lado e não convoca
jornalistas para fazerem cobertura? Até na televisão passou. Houve alguns
planos gerais, onde tinha de surgir sempre a cara da vice-governadora,
aspirante a um cargo de deputada, e uma rapidíssima entrevista ao padre
Adão, o qual nem queria aparecer, mas a vice insistiu, o anfitrião devia
explicar brevemente o projeto e ela depois se apoderou do microfone e
repetiu o que tinha ouvido do padre, mas acrescentando despudoradamente
o apoio do governo central e provincial, coisa que ninguém poderia
contestar em público, só em surdina, nem um kwanza, nunca, protestou Job
ao ouvido de Débora, e não foi por falta de pedidos, mas agora fica bem
aparecer como benemérita, ela e os seus diretores… Sem querer saber nada
de política, mas regida pelo bom senso, Débora respondeu também em
murmúrios, mas agora ela não vai poder negar algum apoio se lhe pedirmos
e já que está ali mesmo o diretor de educação da província, vamos
encomendar material, livros, cadernos, quadro preto, para as nossas lições.
O que foi de imediato concedido em frente das câmaras e microfones, com
certeza que o governo daria todo o material didático necessário para tão
importante projeto. Rezemos para que não esqueçam amanhã as promessas,
desligadas as câmaras, se benzeu discretamente o padre Adão, cético em
relação às coisas terrenas.
A televisão mostrou os dormitórios com as camas todas feitas na
perfeição, como era de hábito, e o refeitório limpo, com algumas crianças
sentadas disciplinadamente nos bancos de cimento. E passou também
imagens de um trumuno de futebol improvisado. Nem Himba nem Kassule
se mostraram no pequeno ecrã, estavam escondidos atrás do grupo dos
maiores, por modéstia ou medo de aparecer. O padre tinha feito questão de
mostrar a realidade do lar tal como ele era, nada foi arrumado ou destacado
para dar melhor aspeto, era a sua filosofia, ser e não parecer. E apontou
mesmo o pequeno monte de lixo que se ia formando num terreno ao lado,
dizendo à vice-governadora que ela devia usar da sua influência e impedir
que aquele monte crescesse e se mantivesse ali, um verdadeiro atentado à
saúde pública. Imagens que foram cortadas pelos responsáveis da televisão,
pouco recetivos a mostrar cenas menos reconfortantes aos espectadores,
vivendo nesta terra das mil maravilhas e de todos os sucessos garantidos
para a eternidade. Os responsáveis da televisão sabiam, só podiam revelar o
que agradava ao poder político, senão arriscavam, talvez não o pescoço,
mas o posto.
Também o padre Adão sabia, mas calava, não era sua função entrar em
makas políticas.
O lar passou a receber apoios consistentes e alguns vinham falar de
ampliação, pois havia cada vez mais crianças nas ruas. O padre dizia,
estamos a crescer ao nosso rítimo, não vamos ampliar só por ampliar,
precisamos de consolidar. A prática ainda não é grande e falta pessoal de
confiança. Há mais crianças na rua? Pois há. Construam outros lares,
apoiem os que existem, escolas com internatos, distribuição de comida
pelas existentes, o que é um bom chamariz para os que fogem do estudo,
muitas medidas que podem tomar. Nós vamos andar conforme o tamanho
das nossas pernas. E já agora não esqueçam: as famílias são o melhor meio
para as crianças viverem e se educarem, não destruam as famílias nem o
permitam.
Conselhos sensatos mas pouco seguidos.
Podia haver pessoas bem-intencionadas a defender o crescimento do lar.
Mas a maior parte eram responsáveis por este pelouro administrativo ou
outro, com vontade de se apoderarem do prestígio que o trabalho do padre e
seus ajudantes proporcionava. Cambada de oportunistas, resmungava ele.
Nunca falava assim tão cruamente, nem com Job ou Débora. A sua missão
era missionária, não política. Conseguia separar as coisas. Pelo menos
parecia. Só se abria mais com o arquiteto argentino, que já conhecia há
muito tempo.
O arquiteto apareceu em Angola quase na juventude, uns anos depois da
Independência. Se chamava Radamel e queria estudar a forma tradicional
de fazer casas em vários países africanos, pressentia métodos capazes de
revolucionar a construção de habitação barata e autossustentável. Para além
de servir para uma tese de pós-graduação, sonhava em aperfeiçoar essas
técnicas, de maneira que a utilização de materiais como os caniços, capim,
terra vermelha, folhas de palmeira, permitisse a construção de casas
económicas, sem necessidade de importação de materiais, e fossem casas
adequadas ao clima e à cultura popular. Tinha visto desenhos de residências
da Lunda, com os famosos desenhos tchokuê e as cores vivas das paredes,
os jangos, as cubatas circulares ou as casas de pau a pique e retangulares do
Norte. Procurava criar com os habitantes máquinas simples que
misturassem a terra molhada com capim e prensassem o produto, de modo a
fazer paredes sólidas, mais frescas, e afastando mosquitos. Devia haver
plantas que atraíam os mosquitos e outras que os afastavam. Incluir estas
nas paredes seria uma grande medida contra a malária. Perguntava aos
mais-velhos mas ninguém conhecia essas plantas. Ele porém persistia na
sua crença, devia haver. Tinha também ideias para fazer o ar circular dentro
das habitações sem deixar espaços para os insetos penetrarem, e estudou os
ventos dominantes e suas direções para escolher os sítios de abertura para
portas e janelas. Enfim, pesquisava.
Foi nessa altura que conheceu Adão, jovem padre no Bom Jesus,
sonhando em ser transferido para a igreja de Nossa Senhora da Muxima, do
outro lado do rio Kwanza, lugar consagrado por muitos milagres. E outros
mistérios menos católicos. Adão lhe contou que em livros antigos tinha
suspeitado existirem forças especiais na Muxima, legados de antigos
senhores, muenes e makotas habitando a região, que enraizavam no rio
figurinhas de pedra ou madeira, chamadas malunga, para defenderem as
terras e as famílias, influenciando o clima, provocando chuva quando havia
falta ou o contrário. Mergulhavam no rio, desafiando jacarés e serpentes
venenosas, para incrustarem as figuras em rochedos ou troncos muito
grossos. Talvez daí viesse a devoção do povo ao lugar, dando poder aos
detentores de malunga, muito antes de a colonização chegar e construir o
primeiro forte e a capela adjacente, hoje tão venerada. Estas alusões a um
passado mítico e profético com figuras representando forças da natureza e
da história faziam aparecer o padre aos olhos de Radamel como um
candidato a dissidente, um herético em potência, um ser capaz de cavalgar a
liberdade de pensamento, mesmo se fosse contra a visão tradicional e
dogmática da sua igreja. O padre também comungava do sonho de Radamel
de serem feitas habitações sociais, com produtos locais, capazes de resolver
a gravíssima falta de alojamento da população. No entanto, rezava a um
deus que o argentino preferia ignorar e por isso tinha abandonado o
seminário, na sua tenra juventude. As ideias de um se conjugavam com as
do outro nalgum ponto nebuloso. Se tornaram amigos, embora divergissem
mais nas discussões do que convergissem, sobretudo sobre questões de fé,
sendo o argentino um seguidor de seu compatriota Ernesto Che Guevara,
revolucionário e ateu. Divergiam talvez apenas nas discussões, admitia
Radamel. O padre, por seu lado, não tinha a pretensão de convencer o
argentino a regressar ao catolicismo da infância e juventude, antes lhe
apresentando obra em prol dos mais novos e da instrução.
Almas próximas, em suma.
Radamel tinha tido um começo de vida bastante burguês, na sua cidade de
Buenos Aires, com a frequência da escola católica e o seminário, até entrar
na universidade, onde se aproximou de um grupo de reflexão, animado por
um professor de origem catalã. Ouviu falar dos republicanos centrados em
Barcelona e sua luta contra Franco. Da guerra civil de Espanha e dos
entusiasmos e desilusões que provocou, com a vitória dos fascistas,
apoiados por Mussolini e Hitler, perante um Ocidente a fazer contas às
moedas que ia juntando. De como figuras tão importantes como o francês
André Malraux ou o americano Ernest Hemingway tinham participado
nessa luta e sobre ela escreveram romances imortais. [Radamel haveria de
saber mais tarde em Angola que nessa guerra civil de Espanha também
combateu bravamente um angolano ilustre, chamado Inocêncio da Câmara
Pires, tendo chegado a subsecretário de estado do governo republicano e,
depois da derrota dos governamentais, a primeiro representante do
movimento de libertação de Angola em Paris. Estórias que a História tece.]
Voltando a Buenos Aires, Radamel aprendeu a saga do seu conterrâneo Che
Guevara e da Revolução Cubana. E, de repente, se viu sonhando com
cavalgadas por países longínquos, descobrindo povos, com eles construindo
futuros. Veio parar a Angola depois de se formar. Porquê este e não outro
país? Atraído pelos cubanos que apoiaram os angolanos, na esteira da
operação Carlota. No fundo foi isso, veio atrás da obra dos cubanos, talvez
no caminho imaginário do Che. Se apaixonou pela terra. Mais tarde por
uma angolana, Sara da Conceição, membro de família considerada, também
com passado de luta emancipadora. Sara, porém, não quis um filho dele.
Viveram juntos dois felizes anos. Depois ela partiu para os Estados Unidos,
com uma bolsa de uma igreja, estudar teologia. Imaginava vê-la aparecer
nas suas vestes de sacerdotisa, mas nunca aconteceu. Se perdeu por algum
canto de Nova Orleães, cantando soul, ou andava pelo Harlem, escrevendo
num jornal alternativo a troco de uma miséria. Em suma, não sabia dela. E a
família também não. Particularmente uma sobrinha, jovem muito
despachada, que lhe disse, a tia Sara sumiu de vez, já nem tentamos
procurar por ela, só sabemos que se formou, talvez ande pelo Tibete ou o
Nepal, sabes, Radamel, os angolanos usam caminhar, como canta o nosso
Carlos Burity.
O argentino nunca esqueceu Sara. Teve relacionamentos com outras
mulheres, mas sem lhes dar a espessura suficiente para atravessarem com
sucesso a primeira crise. Como dizia ao padre, os meus amores morrem na
areia.
– Estás como eu destinado ao celibato – dizia Adão.
– Com uma diferença – frisava Radamel. – O meu celibato não tem nada
a ver com castidade. Sempre que posso…
– Para, para, poupa-me os detalhes – apostrofava o outro.
– Então não estamos num confessionário? – gozava o ímpio.
Os amigos se permitem conversas com um toque de sal. Sem nunca
ultrapassar as margens, por respeito à sensibilidade alheia. Por vezes, no
entanto, Radamel, tentava provocar o padre:
– Diz-me com sinceridade, Adão. Ou não respondas. Mas, se responderes,
é com a verdade… Bem, quando vês uma beldade como a Débora, não
sentes nada, um calor, uma certa falta de ar, um…
– Xê, não faz isso.
– Responde então. E não me venhas com essas tretas que estás casado
com a Virgem Maria… Com ela esteve casado o José e mais ninguém, que
me conste...
– Estou casado com a Igreja, é o que responderia.
– Brilhante! Muito conveniente, casado com uma instituição, por isso não
te sentes atraído por nenhuma mulher, dormes sozinho que nem um justo,
abraçado a montes de pedra e cal. Digo-te que essa Débora vale por uma
instituição…
O padre sorria, não ficava ofendido, embora compreendesse a curiosidade
do outro. Mas cortava qualquer continuação de conversas como esta.
Mudava a direção da discussão. Ou então entrava na brincadeira, virando o
foco para o amigo, fica sabendo que de Débora nada beberás, ela vai casar
com uma instituição, a Igreja, mais cedo ou mais tarde entra num
convento… Adão sabia, por outro lado, que Radamel nunca tentaria
qualquer aproximação maior com a rapariga, por respeito para com ele, por
esse lado estava tranquilo. Já o caso seria diferente em relação a Job, um
jovem inquieto.
Ainda à procura de um destino.
***
O funeral correu como previsto.
Houve ameaças de perturbação antes, mas Sofia tinha antecipado e logo
às sete da manhã estava em casa de Ezequiel para saber como tinha passado
a noite e escolher a roupa que ele devia usar. Ele se aprontava e ela
preparava o mata-bicho para os dois, quando tocou a campainha. Era Kiaxi
a oferecer os seus préstimos. Sofia entreabriu a porta, para não a deixar
entrar.
– Podes ir de onde vieste. O funeral é só à tarde. Vai.
– Vinha ajudar.
– Não ajudas. Só atrapalhas.
Fechou logo a porta na cara da moça. Ezequiel, no entanto, tinha
reconhecido a voz de Kiaxi, não a esquecera como Sofia desejava. Veio aos
tropeções, com as calças meio enfiadas nas pernas, os olhos esgazeados, a
boca ligeiramente torta, eu ouvi mesmo, alguém tocou na porta e depois
falou com a senhora, é a Kiaxi?
– Já foi embora. Vem acabar de te vestir.
E Sofia puxou-o para o quarto, depois foi acabar o mata-bicho. A moça
estava de facto a abusar, tinha de ter uma conversa séria com ela. Deu de
comer a Ezequiel e esperou que ele acabasse, enquanto petiscou qualquer
coisa, embora sem apetite. Depois disse, venho à hora do almoço, entretanto
fica a ver televisão, está bem? Ele concordou, foi logo segurar no comando.
Sabia ligar e desligar o televisor, conhecia alguns números de canais que
mais lhe interessavam. Só não ficava claro se entendia tudo o que via e
ouvia.
Sofia abriu a porta para sair e deu de caras com Kiaxi, sentada à entrada
do apartamento. Afastou com a perna o corpo dela e fechou a porta com a
chave.
– Tu agora vem comigo, vamos falar.
Na rua, longe dos ouvidos de Ezequiel, Sofia apostrofou:
– Ontem eu não fui clara? Não te despedi até ao funeral? Que vens aqui
fazer tão cedo?
– Ajudar… – a voz era um lamento, só faltavam lágrimas.
– Já não precisamos da tua ajuda, ouviste? Pensava que tinhas
compreendido, foi só para ontem. O teu lugar é na cozinha do restaurante e
hoje está encerrado.
– O coitado fica ali fechado.
– Está como sempre ficou quando a mãe ia trabalhar. A ver televisão. É
assim que ele gosta. Porquê? Queres ficar de mãos dadas com ele? Ainda
não te perguntei, o que fizeram mais quando ficaram sozinhos? Aconteceu
alguma coisa que não contaste?
– Só foi isso. Ele me deu a mão, eu deixei. Ficámos assim. Ele nunca
queria largar a minha mão, se sente seguro. Acho.
– Eu posso pensar que queres fazer mais coisas com ele. Criar uma ideia
nele, te aproveitares, abusares da sua inocência. Toda a gente sabe que o
Ezequiel, coitado, não é normal. Se nunca ligaste ao que a mãe dele dizia
muitas vezes no restaurante, pelo menos ontem percebeste. Ou não
percebeste?
– Coitado, é muito meigo, só me fez festinhas na mão, todo satisfeito a
ver televisão.
– Agora já sabes do que desconfio. Mas tenho pressa, muitas coisas a
tratar. Vai para casa e logo ao restaurante, onde todos se encontram para
partirem para o cemitério.
– Já tinha sido avisada.
– Então vai.
Se certificou que a moça partia mesmo para os lados do mabululo onde
morava, só então subiu para a carrinha. Tinha de a levar até ao restaurante,
onde estaria o motorista. Havia várias voltas a dar. Um enterro é coisa
complicada, exigia por exemplo ir comunicar na igreja a triste notícia.
Todas as formalidades foram tratadas, o senhor Gomes preparou o corpo
e sobretudo a cara de Dona Ester, a vestiu com as roupas levadas por Sofia,
tendo precisado da ajuda dos seus dois auxiliares para as manobras com a
volumosa senhora. Devia estar arrependido de não ter cobrado taxa
suplementar de peso, como fazem as companhias aéreas para as bagagens,
porém já era tarde, a lição serviria para próximos orçamentos, pois havia
cada vez mais gente a morrer com peso excessivo, derivado das maioneses,
doçarias, essas coisas da nova alimentação trazida pela civilização ocidental
que estamos com ela.
Os fiéis da igreja foram no camião com bancos corridos e num autocarro
fretado. O pastor disse antes a Sofia, as despesas do enterro não podiam ser
por conta da igreja, tão pobrezinha, e ela disse, claro, não se apoquente,
Dona Ester gostaria de companhia, ela sempre falava da beleza dos funerais
com cânticos e uma bela pregação para arrematar os xinguilamentos e
lamentos. Que lhe dissesse o montante das despesas. Pagou em antecipação
a soma que ele deu, achando ser um roubo, mas não ia fazer cena, regatear
antes do velório. Entraria nas despesas do restaurante, quando fizesse o
balancete do mês. Verdade seja dita, a falecida pagava as despesas do seu
próprio funeral. E nunca poderiam acusá-la de não ter tratado bem a sócia e
amiga até ao fim.
Mal chegou ao cemitério, Ezequiel avistou Kiaxi. Logo lhe abriu um
sorriso largo e a abraçou, mantendo tempo demais o abraço. Foi Kiaxi quem
o afastou e depois fez tudo por desaparecer da vista dele, embora
inutilmente. Tinha tido nova conversa com Dona Sofia no restaurante, a
qual lhe ameaçara com o inferno da terra e do mar, se julgava que ela não
reparara nos olhares lambezudos… que tirasse daí a ideia, era crime abusar
de uma pessoa com mentalidade de criança, mesma coisa que abusar de
criança, e a polícia estava atenta e cada vez mais implacável. A moça não
tinha medo da polícia, sabia não ter cometido crime nenhum e se avançasse
mais no relacionamento também crime não seria, eram ambos maiores de
idade, mesmo se ele tinha cérebro de menino, o corpo até era muito
desenvolvido e nesses mambos o corpo é que conta. Tinha alguns estudos,
não era nenhuma matumba, se tentava moralizar. Mas reconhecia, podia
perder o emprego, os colegas falavam nas costas das patroas, Dona Sofia
não era para brincadeiras, pior que Dona Ester, uma senhora de virtude e
caridade, sem ver o mal escondido nos outros. E agora Dona Sofia era a
chefe única. Kiaxi não podia dizer ser o trabalho dos seus sonhos, mas era o
possível, relativamente perto da casa dos pais. Pô-lo em risco só para
acarinhar um pouco um homem grande mas carente como um kandengue?
Jovem, mas nada parva. Se afastou de Ezequiel, embora tivesse pena, o
homem ficava tranquilo e feliz com ela por perto, sofria menos.
No fim do funeral e nas despedidas, Sofia avisou o pessoal, amanhã há
trabalho, ao sétimo dia vamos fazer uma sentada em vez de missa para
lamentar a morte da senhora e é tudo, não há mais komba, a igreja dela não
permite nem os tempos estão para grandes festas. O pessoal dispersou,
comentando, até parece houve grandes festas, uma sentada com umas
cervejas e refrigerantes, mais umas coisitas de petiscar, nem um caldo como
manda a tradição dos Axiluanda… Hum!
Diego foi solidário nesses dias, andou sempre com a irmã, embora só para
acompanhar, as decisões eram dela, o dinheiro também. Mas a presença
representava muito, o ombro estaria ali, como sempre, se lhe apetecesse
chorar. Além das pessoas do restaurante e da igreja, só um vizinho
aparecera em casa de manhã e depois no funeral. Disse ser amigo da
falecida, embora não muito íntimo, aconteceu trocarem pequenos favores de
vez em quando. Um viúvo como ela, os viúvos se compreendem melhor,
sabe como é, confessou ele para Sofia, a qual não sabia mesmo nem
percebeu até onde ia a amizade e o conhecimento mútuo. O vizinho se
afastou no fim do funeral, não perguntou, não prometeu nem pediu nada.
Um bom vizinho, afinal.
Não se encontravam vizinhos desinteressados todos os dias.
Nos dias seguintes teve de tratar um pouco de Ezequiel, sempre com a
ajuda do irmão. Por vezes Diego ia sozinho fazer companhia ao órfão
recente, ajudando-o a comer e a resolver pequenos assuntos em casa.
Entretanto, Sofia ia procurando uma solução definitiva. Depois de muitas
perguntas e candidaturas rejeitadas, desistiu de encontrar alguém que
reunisse todas as condições para tomar conta dele sem tentar se aproveitar
das fraquezas óbvias, mas ouviu falar de instituições que aceitavam
pacientes com alguma deficiência mental ou física, não serviços públicos,
que esses eram gratuitos mas tinham outras prioridades, insondáveis.
Visitou dois ou três lares privados, escolheu o mais perto do bairro, que
também tinha melhor aparência.
Abrira uma conta conjunta no banco em nome de Ezequiel e dela,
preencheu os papéis e fê-lo imitar a assinatura que um dia escrevera no
bilhete de identidade. Foi uma operação complicada, pois Ezequiel já não
sabia escrever nada, se alguma vez aprendeu mais que o nome. Treinou
durante duas tardes mortas até ele conseguir fazer uns rabiscos parecidos
com o que fora a sua assinatura dez anos antes. Com isso conseguiu abrir a
conta. Transferiu para ela o correspondente a uma parte dos lucros
prováveis do restaurante dos dois últimos meses, um quinto para maior
precisão, o que garantia o pagamento de um ano do lar, pelo menos. E foi
ao banco entregar uma ordem de transferência mensal para o lar de
acolhimento. Era caro, dadas as condições da instituição, as mínimas
aceitáveis. Mas garantiam atendimento permanente, inspeção médica todos
os meses, comida decente e um quarto privativo com televisão, ela
comprovou tudo. Ezequiel não precisava de mais, só da presença de Kiaxi,
no entanto essa não teria. No lar ficaram com o número de telemóvel dela e
de Diego, para alguma emergência. E recomendação de não aceitarem
visitas para Ezequiel de mais ninguém senão os dois, para despistar alguma
tentativa da moça ou algum familiar ressuscitado das cinzas. Levaram o
homem com duas malas de roupa e objetos indispensáveis. Ezequiel nem
deve ter percebido que mudava de casa, como aparentava não sentir a falta
da mãe, só queixava levemente quero a Kiaxi, nunca mais vi a Kiaxi. Essa
era a parte que maior confusão fazia a Sofia. Uma pessoa pode ter forte
pancada mas há presenças que não dispensa, como a da mãe, que o
acompanhou toda a vida. O tipo reagia à sua maneira, sentia a falta da
paixão súbita. Um dia talvez se pusesse a soluçar, exigindo a presença
materna, reentrava nos eixos.
Esperava não estar por perto nessa altura.
O apartamento foi remetido ao proprietário, fechado o arrendamento, as
mobílias oferecidas à igreja, exceto o televisor que passaria para o quarto de
Diego. As mobílias foram recebidas com alegria pelo pastor, embora não
valessem nada, quase todas velhas e estropiadas. Quem é pobre sempre
agradece. Nesse aspeto, o vigarista do pastor, como lhe chamava Sofia, não
se mostrou esquisito, até tentou convencê-la a aderir à seita, seria uma
satisfação para a sua tia, que está lá no paraíso a olhar para nós e vai velar
por si. E uma pessoa inteligente e sensível como a senhora era, não vou
negar, uma mais-valia para a nossa instituição, quem sabe um dia chegaria a
diaconisa ou mesmo bispa, as mulheres com capacidades se empoderavam
cada vez mais, usando uma palavra muito em voga no meio empresarial
africano. Sofia agradeceu mas se desmarcou, apenas vinha trazer as
mobílias, não era de igrejas nem cultos.
Assim se encerrou aquele capítulo da vida de Sofia.
Tinha de pensar em coisas novas para o restaurante, dar uma guinada,
mostrar a sua verdadeira face. Até então o negócio era de Dona Ester,
combinando com ela, até no nome. Para o futuro devia aparentar o caráter
da nova proprietária, pois de facto ela se tornara a verdadeira dona,
Ezequiel não contava. Quem poderia contestar? Não seria certamente o
canadiano desaparecido!
Telefonou a Solferino no dia a seguir ao funeral, explicou a razão dos dias
de fecho, mas o grupo nem reparou, tinham andado por outros sítios. Ela
avisava que estavam abertos, aparecessem quando quisessem, a morte de
Dona Ester não implicava mudanças, apenas mais trabalho para ela.
Solferino prometeu avisar os outros. Em breve apareceram.
Para um certo incómodo de Sofia, quando se sentou com eles à mesa, as
perguntas choveram. Queriam todos saber como ficavam resolvidas as
questões legais. Ela dizia, nada muda, Dona Ester tem um herdeiro, o seu
filho Ezequiel. Ela própria tinha uma parte da sociedade. Em vez de serem
três, agora eram dois sócios, seria preciso legalizar a mudança, porém ainda
não tinha pensado a sério nas formalidades necessárias.
– Sim – disse Abdias, o único jurista do grupo e hoje estranhamente
loquaz, pelo menos já tinha soltado uma palavra na presença de Sofia. –
Além disso, és a sócia executiva, portanto tens de negociar novo contrato.
Deves ser paga pelo acréscimo de responsabilidades e trabalho, embora já
antes fosses a gestora, pelo que percebi. Responsabilidade maior, mais
tempo de ocupação, remuneração maior. É justo.
– Vamos ver, depois – disse Sofia, procurando evitar a conversa.
No entanto, esforço em vão. O grupo era estranhamente solidário quando
se agarrava a um assunto, não o largava enquanto ele ainda estrebuchasse
de vida. Faziam perguntas a que ela não sabia ou não queria responder,
lançavam conjeturas e sugestões, animados, como se tratasse de negócio
deles. Até mesmo Abigail, com muitos sorrisos e festas na mão de Jared,
pelos vistos seu novo namorado.
– Deves discutir um financiamento, aproveita a oferta que o Solferino te
fez de falar ao pai dele, um aumento de capital com um sócio milionário e
fazes um upgrade tremendo do restaurante. Ainda ganhas uma estrela
Michelin.
Talvez não fosse a intenção de Abigail, mas o dito provocou gargalhada
generalizada. Não por causa do upgrade e o financiamento do pai de
Solferino, mas pela estrela Michelin. Seria como mandar um foguete para
Marte sem ajuda de outros. A ideia disparatada nem fez Sofia sorrir,
preocupada em desviar a conversa sobre temas financeiros e legais para
longe dela.
– Como está o caso de Jezabel? – perguntou, em desespero de causa.
– Na mesma, como é óbvio – respondeu Patrício e ninguém acrescentou
uma palavra.
Não percebeu porque seria óbvio, porém depois pensou, em poucos dias
seria difícil haver muitos desenvolvimentos, Patrício tinha razão e ela só
estava a mostrar nervosismo à toa.
– À parte a estrela, a ideia de Abigail não é má – disse Jared. – É o
momento de te lançares para a frente. A senhora te travava, sabemos sem
que o tenhas dito, ela já estava mais que deslumbrada pelo êxito
conseguido. Tu és capaz de ir mais longe. Lança-te. Esta zona está a
precisar de um restaurante de qualidade, os bons estão todos do outro lado,
na cidade velha. É longe e chato ir para lá sempre.
Sofia olhava para Kaleb e Salomé, pedindo socorro. Porém, eles não
pareciam perceber. Estavam até um pouco alheados do assunto. Em Salomé
se tornava um hábito, muitas vezes Sofia a apanhava fora da conversa,
discutindo com os seus kazumbis. Kaleb, pelo contrário, parecia sempre
atento, sobretudo se o assunto dizia respeito a ela, antes. Ou seria apenas
ilusão sua e Kaleb deixara de se interessar? Essa rapaziada era muito
inconstante, demasiadas solicitações, convites para viagens e festas, moças
a se atirarem descaradamente, algumas verdadeiras belezas a sonharem com
um lugar na alta-roda. Ou estaria atraído por Salomé, mais uma vez sem
marido, sentada ao lado dele? Sofia levantou do lugar, deu a volta à mesa
para apanhar a garrafa de uísque vazia, aproveitou para ver a posição das
mãos dos amigos. Não, a mão de Kaleb não estava poisada na coxa de
Salomé nem a de Salomé tocava no corpo dele. Coincidiu estarem sentados
juntos e sem intervirem na conversa. Foi buscar uma garrafa nova ao quarto
delas e veio a tempo de ouvir uma explicação de Jared sobre as razões do
sucesso do Mamã Ester, centrado no crescimento acelerado da urbanização
do Morro Bento atraindo mais gente e de mais dinheiro para as imediações.
Sofia colocou a garrafa no centro da mesa, cada um que se servisse, e foi
sentar no lugar habitual, de frente para Kaleb.
Reparou por um momento em Jared, absorto em inventar estratégias
financeiras para ela.
Jared de Oliveira era formado em Relações Internacionais, um curso que
abria muitas portas nos tempos das especulações intelectuais. Vários
comentaristas nas televisões e rádios ostentavam o título de especialista em
relações internacionais, assim como alguns conhecidos catedráticos. Jared
tinha sido convidado uma vez para comentar um mambo qualquer numa
televisão, era o seu momento de glória. No entanto, fez uma figura
lamentável, se encolheu com o peso da responsabilidade ou era apenas
medo, medo puro, gaguejou que nem um rafeiro enfrentando um
dobermann, o pivô bem que tentava lhe sacar uma frase de jeito sobre
estratégias políticas ou as contradições essenciais do mundo
contemporâneo, mas nada saía com coerência, percebendo que suava, o que
o enervava ainda mais. Tiveram de meter publicidade de emergência e ele
dispensado de todos os media para sempre. Voltou para o aconchego da
casa paterna, à espera de uma vaga de docente numa universidade, a
descoberta brusca de uma vocação pedagógica era a desculpa habitual para
a inércia dos príncipes, preferindo viver da mesada substancial que o pai lhe
dava, acrescida da clandestina que ele mendigava à mãe e por vezes ao
padrinho, um general na reforma com interesses em empresas avulsas,
sobretudo de pedras preciosas.
Dizia Jared, se referindo a Sofia:
– Se não quiser um financiamento de um particular, sempre pode obter de
um fundo de pensões. Conheço um muito conceituado que avança uma
almofada financeira para quem queira investir para aumentar um negócio,
apresentando já resultados, o que é o caso aqui em questão. Imaginemos,
subir um andar nesta casa para criar uma nova sala em cima, com todos os
apetrechos. Como já existe a sala de baixo e pode apresentar as contas
provando lucros seguros, eles avançam o dinheiro para a construção em
cima. Com juros baixos e por dez anos, por exemplo. No caso do Mamã
Ester, a decisão seria óbvia, eles aceitavam. E os lucros obtidos nem
precisavam de cinco anos para pagar o empréstimo.
Era ideia interessante. Ela pediu os dados do tal fundo, ele deu. Se
quiseres, acrescentou, ajudo a fazer a proposta, é preciso desenhar o projeto,
podemos pedir o apoio da Salomé ou outro formado em gestão. E vou
mesmo contigo. Se eles não me conhecerem, sabem de gente que me
conhece.
Claro, o pai ou o padrinho, tanto fazia, o nome era cunha garantida. Ela
não se manifestou mas guardou na memória. Porque já tinha pensado na
possibilidade remota de aumentar o espaço, acrescentando um andar. Se
tratava de um restaurante num edifício de um piso térreo e sem construções
contíguas. Portanto aguentava perfeitamente um acréscimo. Diferente do
caso muito conhecido e contestável de prédios de quatro andares, que
tinham recebido mais três por cima, fora do projeto original, os quais, além
do mais, serviam para celebração de casamentos e torneios de dança no
último andar, com centenas de participantes. Felizmente não estavam em
zona sísmica, senão muitos desastres ocorreriam só por causa da batida dos
aparelhos de amplificação sonora, sempre no máximo da capacidade
decibélica.
Não alimentou a conversa, desejosa de acabar com ela. Mas não esqueceu
as boas sugestões.
À meia-noite, disse, meus meninos, é hora de fechar. Todos se
levantaram, disciplinados. Esperava que Kaleb ficasse para trás, mas ele
saiu com os outros. Por sorte tinha a carrinha, com a qual iria para casa. Até
Kaleb a abandonava, nem lhe perguntou se queria boleia. Salomé entrou no
carro dele, Sofia viu ao trancar a porta. Afinal vieram juntos. Tinha algum
significado?
Teria sido Kaleb a convencer Salomé a fazer o aborto?
Nunca te admires do admirável.
13

O tempo no lar ia passando. Os dois amigos entraram na escola e se


destacavam pois tinham aproveitado os meses sem aulas oficiais para
avançarem em matérias desconhecidas. Em breve era claro que Radamel
sabia o que dizia quando gabava os dotes de Kassule para o desenho e a
pintura. No resto era mediano, mas nas belas-artes brilhava. Infelizmente o
professor da escola não chegava aos calcanhares do argentino e com ele o
miúdo pouco aprendia. Radamel lhe arranjava papel especial para desenho e
ele muitas vezes passava tardes inteiras tentando captar todas as sombras de
uma folha de palmeira, entrevista do banco de cimento do refeitório, a
curva graciosa de uma anca feminina, ou as nervuras e poros da sua mão
esquerda servindo de modelo, enquanto os outros seguiam as lições mais
díspares ou estudavam solitariamente.
Himba se destacava mais em Português e Ciências. Gostava de saber
porquê os músculos se retesavam ou relaxavam, ou como uma planta se
reproduzia. Muitas vezes, porém, se distraía do estudo para ver como os
donos da cozinha preparavam a comida. Aprendeu a fazer refogados e
cozidos, ao mesmo tempo que muzonguê ou saka-saka. Tudo na cozinha a
deliciava. Infelizmente era uma cozinha de gente pobre, onde não se faziam
bolos ou doces, nem entradas de marisco. Depois lá voltava ao estudo,
prolongando as tardes.
De vez em quando tinham autorização para ir à Ilha. Geralmente alguém
proporcionava boleia e voltavam de candongueiro, com dinheiro que o
padre Adão lhes dava, depois de convencer o inflexível Job a abrir os
cordões à bolsa. Seria pequena quantia, mas muito para as finanças do
internato, barafustava Job. No entanto conhecia o suficiente da estória das
crianças para acabar por satisfazer o sacerdote. Uma vez aconteceu irem
com o próprio Adão e voltarem com ele. Enquanto o padre ajudou na missa
e depois almoçou com o colega da Ilha, eles foram comer a casa de Dona
Isabel Kimba, sempre feliz por os encontrar. Com ela estavam em
segurança. Himba nunca ia absolutamente tranquila, tinha medo de
encontrar uma ponta do passado. E só serenava quando deparava com a
senhora boa das trancinhas ou Mariano. Então, o passado começava a fazer
música, perdia os tons de roxo violento, volteava entre os lilases e amarelos
da música.
E foi mesmo dessa vez que surgiu Noé, fardado, saído da tropa para
visitar a família. Foi uma grande festa na casa da senhora boa das
trancinhas quando o soldado bateu à porta. Já tinha estado com os
familiares, vinha cumprimentar os amigos. Sobretudo Mariano, seu kamba
dos pinos nas águas luandinas. Embora dois anos mais velho que ele,
Mariano vivera a mesma infância turbulenta. E muitas vezes Noé se
agasalhava naquela casa, quando a sua problemática família apresentava
sinais da constante disfuncionalidade.
Pois esta parte era um mambo que os meninos desconheciam. Quando se
tornaram amigos e protegidos de Noé, desconfiavam das suas ausências.
Ele nunca lhes disse ter família na Ilha, uma casa, mas dizia ser conhecido,
conseguir ligações. Apenas. Porque o pai tinha duas casas, duas famílias,
filhos de ambos os lados. A mãe, primeira mulher, não aceitava a existência
de uma segunda, mais nova. Religiosa como Dona Isabel, frequentadora da
igreja, queixava no padre a bigamia do marido. O padre reprovava, mas
nada podia fazer. A igreja era por dogma contra a poligamia, mas fechava
os olhos na prática, dada a tradição africana que resistira a todos os meios
usados para acabar com a vergonha, como diziam os religiosos. Cinco
séculos de evangelização, se queixava o vigário da Ilha ao amigo Adão,
cinco séculos e nunca vencemos esse costume horrível, havendo mesmo
sacerdotes a darem o exemplo da prática vergonhosa, se deitando com duas
ou mais mulheres.
A última tentativa para combater a poligamia tinha sido a do partido
único que se instituiu depois da Independência e que condenava a prática,
não podendo os polígamos se inscreverem como militantes, como rezavam
os Estatutos. Mas o partido, tal como a igreja, proibia a prática mas fechava
os olhos para quem a praticava. E toda a gente sabia que A e B, membros
importantes, tinham Luanda 1, Luanda 2 e às vezes mesmo Luanda 3 e
Luanda 4, como se chamavam na gíria as kitias. Estes membros eram
invejados pelos apenas bígamos, havia cochichos nas reuniões de célula,
cenas de crítica e autocrítica, tudo simulação, para Marx não se contorcer
na sua tumba, nunca ninguém deixou de subir até às instâncias superiores
por causa da sua poligamia. Uns malandros nas células sibilavam, e se a sua
esposa fizer a mesma coisa, você aceita, ou recusa a igualdade entre os
sexos, bandeira fundamental do partido? Discussões acesas se havia
mulheres militantes na reunião. Porque o assunto era discutido com muita
paixão por elas, as principais visadas ao verem parte dos proventos terem de
ser divididos por outra casa. Mas fazer mais como então? Protestar e fechar
os olhos. Como a igreja durante cinco séculos, como o partido…
Por causa da relação conflituosa entre os pais, talvez pela intransigência
religiosa da mãe, Noé muitas vezes se afastava e dormia onde calhava e até
ia catar comida nos contentores, se juntando aos grupos de famintos. Um
dia diria a Himba que afinal acabava por tomar posição a favor do pai,
culpando a mãe de radicalismo. Uma estupidez, reconhecia mais tarde, mas
no tempo da sua juventude era assim, muitas gerações de poligamia educam
os filhos a aceitar a atitude. Só não ia aproveitar da comida de Luanda 2 do
pai, isso não, seria desrespeitar a mãe. Embora conhecesse o sítio da barraca
dela, um alojamento mais pobre do que o dos pais, e até conversasse por
vezes com os meios-irmãos, mais novos que ele. Parecia normal falar com
os miúdos e até protegê-los se fosse preciso, afinal se tratava de irmãos.
Mas entrar em casa da segunda já não era possível.
Nesse almoço, Noé explicou que ainda não estivera em situação de
guerra, apenas em quartéis perto do troar dos canhões e do silvo dos
mísseis. Tinha, porém, ouvido muitas estórias. Uma era verdadeira e o tinha
marcado, chegou a um jornal, embora ninguém tivesse ligado importância.
Os camaradas de armas afirmavam ser autêntica, estavam presentes quando
se passou.
– Há pouco tempo, como sabem, se deu a batalha do Cuíto. Uma parte da
cidade, a maior, com os rebeldes, a mais pequena, ligada ao Cunje, com os
nossos, totalmente cercados. Meses, muitos meses. Os cadáveres eram
enterrados nos quintais das casas ou nas ruas. Não sobrou nenhum bicho,
nem rato. A população e militares a morrer de fome. Só não pereceram
todos porque havia bombardeamentos de comida. Os aviões arriscavam o
fogo das antiaéreas inimigas e lançavam para as nossas linhas munições,
armas, comida, água potável, medicamentos, tudo, tudo tinha de ser
lançado. De vez em quando um avião era abatido, muitas vezes o
lançamento era mal feito por ser de noite e os bens caíam nas mãos dos
outros. Havia muitos feridos e o sangue acabou. Os que resistiam estavam
tão fracos que não podiam dar sangue aos que tinham hemorragias. O
sangue também era lançado em sacos especiais. Um dia, um soldado
apanhou sacos de sangue. Em vez de entregar nos hospitais de campanha, o
egoísta, pior, não há termo para esse gajo, desculpe, Dona Isabel, o filho de
uma cabra, vendeu o sangue a uma senhora que tinha dinheiro, como os
outros, mas não tinha onde comprar comida. Vinte milhões de kwanzas
pelos sacos. A senhora abriu logo um para cozinhar, julgava era carne seca.
Mas achou estranho aquele tom castanho. E, como tinha um primo
enfermeiro, perguntou o que era aquilo. Assim soube que tinha comprado
sangue humano. É mesmo verdade.
A indignação estava espelhada na cara de todos os ouvintes. Ninguém
ousava falar.
Por fim, Dona Isabel expressou o sentimento geral:
– Esse devia ser apanhado e fuzilado.
– Nada. Ninguém descobriu o culpado. Só a senhora conhecia a cara dele.
Ela não saía das ruínas da casa, com medo dos tiros e obuses. Ele deve ter
sido alertado pelo falatório dos enfermeiros e médicos, evitou aparecer
perto da senhora. Se tinha ainda alguns sacos escondidos, fê-los
desaparecer. E pronto. Ficou com um monte de dinheiro… Também é
verdade, aquele monte de dinheiro valia muito pouco.
– Um tipo que faz uma coisa dessas… – disse Kassule.
– A guerra manda cenas estranhas – disse Mariano. – Cria heróis e
também bandidos como esse…
– É, há gente mesmo gananciosa – disse Noé. – Sabendo que esse sangue
ia salvar muitas vidas…
– Acreditem, esse criminoso vai ficar rico. Se faz isso na guerra, o que
não faz na paz?
Ninguém contrariou a fala da senhora boa das trancinhas. A menina
pensou, está vivo de certeza, só os bons morrem nas nossas guerras.
Pensava nos pais ou talvez também em Tobias, morto numa guerra
diferente, na guerra do areal, mas guerra na mesma. Por causa dela. Uma
sombra deve ter passado na sua cara, pois os outros olharam para a menina,
alheada do mundo. Noé viu Mariano fitá-la com preocupação. E Noé
também fitou Mariano. Se mediram com os olhos. Ameaças mútuas? A
amizade era forte, sorriram.
De regresso à igreja, onde iam encontrar o padre Adão, Kassule gozou
com Himba:
– Grande acaso encontrar o Noé. Gostaste de o ver?
– Está mais velho. Um homem.
– Quase tão homem como o Mariano.
– O Mariano é mais velho, tu sabes.
– Se nota ainda?
– Acho que não. O Noé fala de forma diferente de quando nos deixou. Já
antes falava como um adulto mas agora… A guerra…
– Qual preferes?
– Prefiro como? – Himba na defensiva.
– Como homem… Gostas mais do Noé ou do Mariano?
– Sei lá. Conheço o Noé há mais tempo. Lembras? Sempre nos ajudava,
era um sossego quando ele estava connosco…
– Por causa da Madia.
– Lhe conhecemos antes da Madia. Depois de ela ir embora, ele
continuou a aparecer e nos ajudar.
– O Mariano também ajuda.
– Os dois são boa pessoa.
– Se tivesses de escolher, quem escolhias?
– Mas escolher para quê?
– Como homem. Tu sabes.
– Não sei nada. São dois amigos meus, é tudo.
– Os dois olhavam para ti de maneira especial, julgas eu não vi? Ainda
vão andar à pancada por tua causa, apesar de serem amigos.
– Cala, ouviste? Cala já. Não te admito. Conversa da túji…
Kassule ficou espantado com uma reação tão violenta, quase gritou para
ele, coisa rara na amiga. Afinal ele só estava a lhe provocar de brincadeira.
Mas ela levou a sério, zangada mesmo. Despreparado para continuar a
guerra verbal, preferiu obedecer, então não era a irmã mais velha? No
entanto, ficou a matutar nas razões que poderiam levá-la a perder assim a
cabeça, gritar com os olhos a arder, como ele nunca tinha visto. Mesmo nos
momentos mais difíceis, em que dava vontade de explodir, ela mantinha a
atitude comedida e doce. Afinal também a raiva, comum em todos eles,
podia se apoderar dela. Uma novidade. Por causa de Noé? Por causa de
Mariano? Por causa dos dois ou por causa de ninguém em especial?
O padre Adão já estava à espera deles, temos de ir agora, senão chegamos
de noite, cada vez há mais movimento para aquela região e os
candongueiros vão sempre cheios, assunto que, pelos vistos, os dois padres
tinham estado a discutir como toda a gente fazia afinal, não é só agora que
os habitantes da capital se queixam do trânsito infernal, tema de introdução
e fecho de qualquer conversa, primeiro para a desculpa pelo atraso ou
escassez de contacto e depois pela necessidade da partida rápida. No
entanto, os meninos ainda tiveram de fazer detalhado relato do encontro
com os amigos, do regresso momentâneo de Noé, do almoço e acolhimento
de Dona Isabel.
– Uma boa senhora, das minhas melhores fiéis – disse o padre da Ilha. –
A generosidade feita pessoa.
Himba concordou em silêncio, não havia melhor maneira de caracterizar
a senhora das trancinhas, a mãe de Mariano. Também morreria cedo? Só se
Deus fosse mesmo um ser maldoso e não o que lhe contavam os padres. Ela
ainda acreditava neles?
Com sono regular e comida suficiente, Himba e Kassule cresceram e
engordaram. Pelo menos já não tinham os ossos de fora e os olhos a
crescerem nas faces. E ela se arredondara um pouco de ancas e os botões do
peito robusteceram. Como prometido, se ocupava das plantas. As árvores
eram regadas sempre. E os primeiros bolbos de rosa de porcelana davam
rebentos que brotavam do chão como pontas de lança para se
transformarem em canas. Lento, tudo muito lento, só daí a dois anos dariam
as primeiras flores, diziam os entendidos. E exigiam muita água. Mais fácil
era fazer crescer os outros tipos de plantas dando flores, nos canteiros
marcados pelas pedras brancas. Enquanto se entretinha a mondar com as
próprias mãos, a enterrar as sementes ou a regar, ela não pensava em mais
nada, só nas plantas que dela dependiam para viver. Era injusto dizer que
dependiam pois ela não deixava ninguém mais se intrometer. Para a rega
das árvores, por serem muitas e espaçadas, tendo de se utilizar baldes e
regadores pesados, aceitava o apoio dos outros. Para as flores não. Sua
propriedade particular, seu monopólio, como lhe chamou Job um dia. E ela
gostou, é mesmo o meu monopólio, elas só me querem a mim, amam como
a uma mãe. E temos de arranjar mais espécies, fazer jardins a sério, com
relva e tudo.
– Relva? – se espantou um dia o padre. – Imaginas a quantidade de água
que seria precisa?
– A água sai das torneiras. É só arranjar umas coisas… aprendi mesmo o
nome mas agora esqueci… Aspersores?
– Talvez sejam. Mas a água vai ser paga um dia, por enquanto estamos a
beneficiar do desvio pouco legal que fizemos no tubo da empresa… Mais
tarde ou mais cedo põem aqui um contador que marca toda a água que
gastarmos e temos de a pagar. Não vai ser nada barato. E tens de concordar,
ainda não é urgente.
– Não falei assim, padre. Disse, um dia vamos fazer…
O padre não insistiu, não tinha a mínima importância, eram só sonhos
inocentes e antes esses que outros piores. Mas lhe parecia ter mesmo
percebido ser um plano que ela acalentava como próximo e importante,
fazer um belo jardim com grande variedade de flores e relva. Um pequeno
Planalto Central?
Na conversa com Radamel, o padre contou o desejo de Himba. O
arquiteto abanou a cabeça.
– Eu não apoiaria. Primeiro há a razão que invocaste, a da água. A que
temos já nos basta e devemos agradecer que estejam a fechar os olhos,
dando uma de apoio a uma obra com interesse social. A relva, além do
mais, atrai muitos mosquitos. Aconselharia mesmo que fizessem um
esforço para arrancarem os capins que vão nascendo entre as plantas, o
capim húmido é o melhor ambiente para a mosquitada prosperar. Já são
tantos, ainda será pior um dia que o capim cresça.
O padre, para as coisas deste mundo, seguia os conselhos do amigo.
E, para desespero de Himba, o seu território foi invadido sábado por um
grupo de jovens comandados pelo próprio Adão, que lhe avisou de véspera,
amanhã vamos te ajudar a mondar o jardim, não deve haver nem um capim,
por causa dos mosquitos. A menina chorou de raiva, nem se queria levantar
da cama nesse sábado fatídico, imaginando futuros sombrios. Os invasores
iam pisotear as plantas, estragar as flores em crescimento, destruir o seu
trabalho. Não participou, ficou a observar de longe o trabalho alheio. O
sacerdote percebeu a frustração dela, pediu a Débora para a confortar, com
calma, só conversar, ela acaba por perceber que é um trabalho penoso,
embora não pareça, o terreno é grande e exige muito tempo numa posição
difícil, não estamos habituados a isto, nunca fomos camponeses, nem ela,
para passar horas acocorados. Débora foi falar estas coisas e a voz dela era
tranquila, doce, explicando muito bem, o padre não tinha intenção de se
meter no trabalho dela e ninguém estragava nada, as instruções foram claras
e escolhidos os jovens mais responsáveis, exatamente para não se porem em
brincadeiras que podiam gerar o caos e pisarem as plantas. Aos poucos,
Himba foi digerindo a sua raiva, mas não gostou. Kassule, sentado a seu
lado, sem poder participar por causa da falta da perna, achava a amiga
andava a exagerar naquele frenesim de tratar de plantas, assim como fora
dura a despropósito para ele um dia que brincara só por causa de Noé e
Mariano. Depois concluiu, é, as miúdas têm cenas dessas quando chegam a
uma certa idade, me contaram os mais velhos, deve ser isso o que acontece
com ela, entrou nessa idade. E riu alto. Himba e Débora olharam para ele,
mas o kandengue fez um gesto com a mão a dizer, deixem lá, uma coisa
minha, coisa de malucos, claro. E elas continuaram a conversa, conversa
não, porque só Débora falava, mas Himba já concordava com a cabeça, o
que era um progresso, achava Kassule.
E o território dela ficou sem um capinzinho. Careca como a cabeça de
Adão. Os mosquitos teriam de ir procurar outro sítio onde deixar as suas
perigosas larvas.
As aulas também corriam bem para os dois amigos e não havia
demasiados desacatos, normais em concentrações de jovens com muitas
hormonas a se desenvolverem. Ao domingo iam à missa na igreja mais
próxima, a qual ficava a cerca de três quilómetros. Marchavam em grupos e
demoravam a chegar. Ocasião aproveitada por muitos deles para se
despistarem e passearem pela vizinhança em vez de assistirem ao culto. As
igrejas católicas não eram como as pentecostais, que nasciam mesmo em
baixo de imbondeiros. Precisavam de um mínimo de instalações próprias e
sobretudo de ter aqueles artefactos como altar, custódia, etc. Esta era a
razão por que ainda não tinha sido aceite o pedido de padre Adão para
oficiar no próprio lar. A área do refeitório aberto era boa para as missas e
ele estava habilitado para o fazer. Mas a autorização da hierarquia só
acontecia se ele tivesse esses instrumentos fundamentais, os quais afinal
não eram fáceis de obter, por se tratar de uma igreja de pobres. Faltava
mesmo uma grande cruz de madeira para ficar implantada no refeitório e
assim indicar que ali se celebravam cultos cristãos. Isto tinha sido explicado
por Débora aos amigos, quando lhe perguntaram porquê tinham de se
deslocar tão longe a pé, quando podiam ter missa no sítio onde moravam.
As burocracias e a pobreza da igreja, foram essas as ideias que retiveram.
Pobreza podiam entender, nunca dela tinham saído afinal, mas burocracia
era palavra desconhecida e estranha. Metia algum medo.
A igreja então também tinha burocracia?
Aos domingos, de todos os modos, apesar da canseira de irem à missa tão
longe, obrigação que Kassule suportava com um sorriso nos lábios, sempre
apoiado numa muleta mais confortável, arranjada por Radamel, tinham no
regresso almoço reforçado, ao qual nunca faltavam aqueles que se
despistavam para fugirem à missa. Alguns apareciam com fruta ou doações
pequenas dos vizinhos. As quais eram partilhadas, compensando portanto o
pecado de fugirem do culto. O padre bem teimava, ninguém era obrigado a
assistir, mas no íntimo ficava compungido ao verificar que apenas metade
dos seus protegidos se manifestavam crentes, ou sem vontade de o
dececionar. Gostaria que todos seguissem os ensinamentos dados nas aulas
de Moral Cristã que prodigalizava no sábado à tarde, enquanto Débora
preparava os mais devotos com a instrução do catecismo. De qualquer
modo, nunca admoestava alguém que bocejasse nas aulas ou evitasse o
culto. Preferia manter os jovens no lar, apesar de não se converterem, a
abandoná-los pelas ruas do vício e da fome. Nisso era apoiado pelo
arquiteto, puxando com argumentação da América Latina, a pior coisa que
o catolicismo fez foi se considerar a única religião verdadeira e obrigar pela
força todos a aderir, é preciso convencer e não impor, e outros exemplos
tirados da história da própria Angola colonial, em que só uma Igreja era
considerada como tal, sendo o resto escória proibida e perseguida,
particularmente as crenças de origem africana, com exceções tardias de
aceitação em relação a alguns cultos protestantes. Conversas longas em que
nem sempre concordavam um com o outro, mas chegando finalmente a
certo consenso, como bem provava a atuação posterior de Adão.
Além das aulas regulares, havia o estudo orientado em outras alturas, em
que os mais preparados ajudavam os internos com maiores dificuldades ou
em que normalmente se fazia o trabalho de casa. Altura própria para
Kassule deixar extravasar a sua veia artística, desenhando atitudes, gestos
ou detalhes da vida. Cada vez melhor. A habilidade tão gabada por Radamel
afirmava-se. E Himba um dia foi surpreendida por um retrato que o amigo
lhe ofereceu. Ela olhou e viu no papel o que achava ser verdadeiramente, ou
o que parecia ser aos olhos de Kassule, coincidente. Estava numa atitude
meditativa, contemplando o seu interior ou o seu passado, o que se notava
no toque quase impercetível do lábio inferior, que lhe fazia a boca
assimétrica, e na profunda tristeza dos belos olhos. A preto e branco, com
muitas sombras e matizes de cinzento. Apesar da tristeza evidenciada pelos
olhos, o todo transmitia uma nota de malícia, própria das meninas a
descobrir a vida. O retrato não foi mostrado a mais ninguém e permanecia
guardado no fundo da última gaveta, com alguns objetos por cima,
escondendo-o. O pacto entre eles era o de ser secreto. Ela muitas vezes
contemplava o retrato, a sós na camarata. Até descobrir o amor que Kassule
lhe demonstrava ao desenhá-la daquela maneira. E ela aquecia por dentro,
um fogo que vinha das entranhas, se mirando no espelho que o retrato
representava. Achava, ninguém a podia conhecer tão bem. Estava ali
inteira, como pensava que era, como queria ser, e o que tinha sido antes de
tudo. A capacidade técnica era apenas um instrumento para exprimir o
sentimento do artista. Ao mesmo tempo, o próprio Kassule estava todo ali,
se expondo talvez de forma inocente. Tivesse na época Himba conhecido
algo sobre pintura e teria certamente associado o seu retrato, todas as
proporções guardadas, ao de Lisa Gherardini que Leonardo da Vinci pintou
e que seria conhecida como Gioconda ou Mona Lisa.
– Tens feito o retrato de muitas pessoas? – perguntou um dia ao amigo.
– Às vezes, mas é difícil. As pessoas se mexem muito ou vão embora
antes que acabe. Outras vezes não fica muito bem e já não as volto a
apanhar. Porque não desejo qualquer pessoa. Tem de ter alguma coisa que
me chame a atenção. Também não quero ser descoberto a desenhar alguém,
podia criar ofensas.
– E eu fiquei um dia muito tempo quieta e foi assim que me apanhaste…
– Não, o teu retrato eu fiz de cabeça. Estava numa aula chata de
Matemática.
– Não precisaste de me estudar para fazer o desenho?
– Claro que não. Precisava?
E era assim. Ele tinha-a apanhado melhor que uma fotografia, talvez a
pensar na vida passada e nos pais, ou nas tristezas da Ilha, sabia lá em quê,
tanta coisa em que uma pessoa se perde ao perder… Sem precisar de olhar
para ela, copiando o que dela tem no pensamento e na memória. Um artista.
E também muito amor. A ideia não a perturbou, antes pelo contrário,
aquecia o coração saber que alguém gostava dela de verdade, como a mãe o
tinha feito, ou o pai.
Não estava sozinha na cidade voraz.
Débora tinha também por missão visitar as diferentes escolas onde
aprendiam os jovens do lar, para saber como progrediam e ouvir uma ou
outra queixa de um comportamento, que sempre as havia. Por vezes vinha
furiosa, como quando se queixou ao padre, estando Radamel e Job
presentes, essa diretora pedagógica da escola 30 é uma incapaz, nem sequer
tem opinião sobre a Joana e a Adélia. Eu ando preocupada com elas,
parecem-me muito alheadas, sobretudo à tarde quando estudam aqui,
suspeito que tenham problemas que não querem revelar e não estão
concentradas no trabalho, vou lá à escola falar com a senhora e ela diz que
está tudo muito bem, elas são exemplares. Exemplares até podem ser,
caladinhas, quietas, mas naquilo que eu queria saber fiquei na mesma, não
sei se estudam e se percebem o que lhes é ensinado ou não. Bem, ela acha
que sim. Acha? Tem de ter a certeza, não é para isso uma diretora
pedagógica, ainda por cima com curso superior?…
– Ora, ora, ora… Quimeras! – cortou Radamel. – Aqui curso superior tem
algum significado? Temos verdadeiros ignorantes da sua profissão não só
com curso superior mas com doutoramento… está bem, não será de
universidades de grande prestígio, as quais até rugiriam de vergonha se
houvesse algum exemplo de um dos seus formados a dar barraca
profissional. Mas vêm com diplomas de doutoramento e são uns
anormais…
– Radamel, como falas essas coisas? – cortou o padre.
– Tenho visto cada burrice que nem imaginam. De gente de fato e
gravata, sempre muito ufana a exibir os seus diplomas emoldurados… Isso
não quer dizer nada.
– Está bem – disse o padre. – O outro também dizia que não era preciso ir
à escola, pois Jesus Cristo não foi e fez mais milagres do que ninguém.
Bom, mas isso é só ignorância, obscurantismo. Estamos de facto a falar de
coisas sérias. A senhora tem a obrigação de saber como avançam as
crianças na sua escola.
– De todas é difícil – disse Job.
– Sim – disse Débora. – Não pode saber de todas, mas pelo menos devia
dizer, vou perguntar ao responsável pela turma, este é que tem de saber o
estado de cada aluno. Nem se lembrou disso ou a escola nem tem
professores responsáveis de turma… Foi o que me revoltou.
– A Débora tem toda a razão – apoiou Radamel. – Mas, voltando ao que o
Adão disse, porque é que Jesus Cristo teria de ir à escola… Então não era a
outra face de Deus, uma parte da Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo, um
deus portanto? Ele não precisava de ir a nenhuma escola, sabia tudo, até
como ia ser atraiçoado e ia morrer. Quem sabe todo o futuro não precisa de
escola…
– Não gozes com coisas sérias – disse o padre Adão.
Uma coisa eram as conversas que tinham a sós, outra aquela ali com
testemunhas.
– Estou mesmo a falar a sério. É um grande problema teológico, esse. A
Igreja deve ter uma resposta para ele. Se Cristo foi à escola a fingir que ia
aprender alguma coisa, era um grande hipócrita e mentiroso. A única
alternativa é não ter precisado de ir por saber já antes o que lhe poderiam
ensinar. E a tua Igreja tem de o dizer.
Job percebeu a incomodidade de Adão e desviou:
– Se eu for lá, ou melhor, se o senhor padre for lá, a diretora da escola não
vai ter outra atitude? Acho que sim. Senhor padre, devia ir falar com ela. Se
quiser, acompanho.
No que todos concordaram.
A dúvida lançada por Radamel coseu em lume brando.
Sem resposta.
***
Kaleb apareceu de manhã no restaurante, queria se explicar sobre a cena
do outro dia. Não estava na hora de abrir, o trabalho tinha começado na
cozinha há pouco tempo. Ela disse para ele sentar a uma mesa, perguntou se
queria beber alguma coisa.
– Deve ser muito cedo para um uísque – disse ele, duvidoso.
– Uma cerveja então?
Ele concordou e ela chamou um dos criados de mesa. Depois de servido e
ter provado um gole, disse:
– Deves ter estranhado, nem te ofereci boleia…
– Estava aí a carrinha do restaurante, fui nela. Em breve tenho a carta de
condução, estou no fim do curso, o exame é uma formalidade, segundo diz
o meu instrutor. Sabias?
Claro que ele não sabia, ou soube e esqueceu há muito. Na realidade não
era assunto importante.
– Houve um lance estranho... Com a Salomé.
Sofia sentiu o peito apertar, sinal de uma revelação desagradável, talvez
mesmo fatal. Ela sabia que boa coisa não seria, como um grasnar de ganso
indicava um invasor. Um fio de voz:
– Não tens nada que explicar.
– Tenho, sinto que tenho. Vinha para o jantar quando ela me telefonou
pedindo boleia, um problema no carro. Desviei para casa dela e apanhei-a.
Depois do jantar tinha de a levar. Claro, podia na mesma ter ido contigo e
ela. Mas Salomé pediu para irmos sozinhos. E no caminho disse que se ia
separar do Alfredo. Perguntei porquê. Ela não quis dizer. Mas então falou
uma coisa estranha, a única pessoa que sabe a razão é a Sofia e ela não vai
contar nada. Pronto, foi isso…
– E deixaste de trabalhar para vir me dizer isso? Dois ou três dias depois?
– Fui processando, processando, falo com a Sofia ou não? Também estás
enganada, não tenho trabalho. Acabei um relatório, não há projeto novo.
Nenhum. Parece que Angola deixou de ser interessante para investimentos
exigindo estudos de impacto ambiental.
– É mesmo crise?
– Saímos alguma vez dela?
– Parece que não – concordou Sofia. – O progresso e as conquistas são
sempre mais propaganda que realidade. A boa notícia é que estamos
habituados, sabemos virar-nos.
– Alguns… Os mesmos de sempre. Este restaurante talvez sofra alguma
coisa, menos frequência, as pessoas poupam nas bebidas, bebem mais
cerveja que vinho, etc., o que tem acontecido em muitas partes do mundo.
Mas tens razão, não vais sentir muito, as pessoas precisam sempre de
comer. Nem eu vou sentir, nem os amigos… Que se lixe a crise, se de facto
há… Desculpa ter-te deixado pendurada na outra noite, fui um vulgar
cretino…
– Já te disse, tinha a carrinha. E não tens obrigação nenhuma de me dar
boleia, ora essa.
– Não tenho obrigação, é prazer.
Ela mirou-o atentamente. Ele estava com os olhos fixos no copo de
cerveja, talvez por se sentir arrependido ou então por não saber onde fixar
os olhos sem incómodo. Podia ser sincero e querer uma relação verdadeira
com ela, daí os remorsos por não lhe ter prestado a devida atenção. Podia
no entanto ser também outra coisa muito diferente. Teve um
pressentimento, muitas vezes os pressentimentos batiam certo. Perguntou de
chofre:
– Vieste tirar nabos da púcara sobre a Salomé?
Kaleb abanou a cabeça lentamente. Sem tirar os olhos do copo vazio.
Falou e a voz era suave, meiga.
– Vim explicar. Só isso.
Ela avaliava a situação, não deixando de o fitar.
– Não te choca que ela se separe do Alfredo? Parecia um casal firme,
equilibrado...
Sofia não respondeu logo. Que sabia ela dessas coisas, o que era um casal
firme? No entanto, a dúvida lhe surgiu no cérebro e insistia em permanecer,
como um diabrete das estórias infantis que impediam as crianças de
sossegar com seus ditos ou movimentos súbitos. Deixou que ele bebesse o
resto da cerveja, ia processando, como diria Kaleb.
– Já que vieste te explicar, diz-me uma coisa. Haverá alguma razão para
Salomé te informar a ti sobre essa decisão tão íntima? Afinal, ela tem
muitos amigos com carro, todos os do grupo… E podia se confessar
comigo, normalmente é mais fácil com outra mulher… Mas escolheu-te.
Tem algum motivo?
Kaleb talvez esperasse todas as reações menos essa pergunta. Pergunta
incómoda, a rainha das perguntas. Decisiva, perigosa. Resolveu não iludir a
resposta, haveria oportunidade para a contrição, mais tarde. Nem teve
tempo para repensar, respirar fundo, marcar uma pausa, disse muito
depressa, sem deixar que as palavras voltassem para a boca, sufocando-o:
– Há. Antes de conhecer o Alfredo ela tinha uma relação comigo.
– Ah!
– E numa festa há uns meses houve uma daquelas cenas confusas, tudo
bêbedo ou drogado, encontrámo-nos de novo. Ela procurava o Alfredo,
achava que ele tinha ido com outra, vingou-se… comigo.
Pronto, bem sabia, o pressentimento estava certo, pouco faltava para a
revelação brilhar como um diamante. De sangue.
Porém, na conversa do outro dia, Salomé só disse a Kaleb, Sofia sabe a
razão da separação, mais palavra menos palavra. Dava a ideia de não ter
acrescentado outra ideia e ela não devia mujimbar qualquer suposição sobre
o resultado dos atos deles. De facto não tinha certeza nenhuma, apenas
podia suspeitar. Até podia ter se tratado de outra festa, eles iam a tantas…
Porque tinha de ser a farra a que Salomé aludira, falando com ela? Embora
fosse uma grande coincidência… Estas, porém, existiam. Se não fosse,
porquê diria Salomé que Sofia sabia da verdade, se lhe tinha falado apenas
de uma festa?
– Não te deu nenhuma razão para a separação… – disse ela, em estilo de
pergunta.
– Não. E afinal podia. Como bem falaste, houve razões para me dar a
notícia. Eu é que a apresentei ao Alfredo. Eu é que a conhecia há muito
tempo. Mas não disse mais nada. Só se referiu a ti como sabendo. E agora
eu pergunto, como? Contou-te o quê?
– Achas que vou kuribotar o que uma amiga me segredou?
Ele virou a garrafa vazia, deitou-a na mesa num gesto brusco.
– Sei que não vais. Desculpa.
Sofia tinha vontade de o provocar, contar a verdade, ela nem lembra que
te encontrou nessa farra louca em que se vingou do Alfredo, só tu te
lembras, pois ainda estás fixado nela, afinal. Mas não devia revelar nada, a
verdade ficava melhor enterrada, se fosse mesmo essa a verdade. Salomé
viria se confessar mais tarde, sobretudo descobrindo que Kaleb a procurara.
O que era normal, pois sabia da inclinação recíproca, recíproca pelo menos
na opinião dos amigos. Ele tinha sido muito claro mais de uma vez quando
conversavam no carro, tinha interesse genuíno nela, não uma brincadeira
sem consequências, como era frequente no seu meio social. No entanto, no
último jantar, Kaleb também esteve ausente das conversas mais tempo que
o habitual. Entendeu bem ou ele disse que ela lhe contou do divórcio apenas
no regresso? Foi no regresso, sim, por isso Kaleb não lhe propôs a habitual
boleia. Como explicar então a ausência dele? Andou no jantar a fazer contas
sobre o que podia acontecer com uma mulher com quem tivera uma relação,
depois um caso esporádico, que lhe pede uma boleia, com o marido ausente.
Como se planeasse o resto da noite. Ele ainda devia estar ligado a ela,
embora se dissesse atraído por Sofia. Ela fez as contas e batia certo, o rapaz
devia andar um bocado dividido e por isso demorou a aparecer. Tinha de
olhar para o lado, não se apegar, não acreditar em estórias de fadas, nenhum
dos príncipes lhe estava destinado, tinham outras princesas a quem acordar
com um beijo de amor.
– Queres mais uma cerveja?
– Não, não, obrigado.
– Com franqueza, se me permites a franqueza, ainda não percebi porque
vieste hoje.
Ele olhou para Sofia, uma cara de admiração. Tinha andado a falar para
as paredes ou em finlandês?
– Não te disse? Queria perceber.
– É tão essencial para ti perceber?
Ele embatucou. Voltou a fazer rolar a garrafa em cima da mesa. Depois
falou baixo, como só para si:
– Talvez nem me interesse nada, tudo impessoal… Não. Não é verdade.
Morro de curiosidade, confesso…
– Apenas curiosidade?
– Sim, é isso. E estranheza. Não vos sabia tão ligadas, cheias de segredos.
Quando te conheci, naquela festa na casa do Solferino, não parecias à
vontade, a Salomé era a tua guia…
– É verdade, eu estava completamente fora do meu meio.
– Pois. Por isso me surpreendeu que fossem íntimas ao ponto de só tu
poderes compreender uma decisão dela. Ou deles, nem sei… Se tratando de
uma decisão tão importante…
Ela ficou calada, tentando adivinhar o que significavam as dúvidas e
reticências dele. Ora, são interesses um pouco mesquinhos, já me remeteu
para o meu lugar, de forma delicada mas segregou, como todos eles fazem.
Os príncipes nunca deixam o seu espaço para os outros, qualquer dia tudo
está reservado, terras, praias, até o céu. Ando mesmo a perder tempo com
este, agora também desocupado, para não variar. Tem todo o tempo do
mundo para tentar descobrir a verdade sobre Salomé e o seu aborto. Pelos
vistos, não havia nada a recear, o mona nunca iria sair claro, se tratou de um
crime inútil. Como todos os crimes? De qualquer modo, encorajei-a a fazer
o aborto, parecia o mais prudente. Não a posso criticar por isso.
Kaleb sentiu a frieza dela. Lhe faltou a coragem de argumentar, a
enfrentar, se abrindo nas suas verdades e dúvidas. Disse meia dúzia de
frases inócuas e se despediu. Sem a tentativa de um beijo.
Mas Sofia não ia ter tréguas por muito tempo.
Depois do almoço, quando o pessoal descansava antes de começar os
preparativos para o jantar, apareceu o pastor da igreja de Dona Ester. Sofia,
ao vê-lo pedir licença para falar com ela, adivinhou, vem o vigarista
defender os seus dízimos.
– Sabe como a nossa igreja é pobre, vivemos das esmolas dos fiéis. Dona
Ester devia pagar o seu dízimo uns dias antes de falecer, uns dias não são
nada, nem lhe lembrei, senhora tão caridosa... Depois sucedeu o infausto
acontecimento…
Sofia acertou, ele ia reclamar a dívida para com o deus enganado, que deu
à senhora muitas alegrias nos últimos dias e ela não recompensou como
devia, embora se saiba que foi por falta de tempo e não de querer. Um deus
enganado é muito raivoso, pode ameaçar lançar pragas, fogo, destruição, ela
devia se preparar.
Ainda estava magoada com a conversa com Kaleb, que lhe parecia ser um
corte definitivo. Não ia apaziguar a consciência tratando o farsante como
uma pessoa de respeito, precisava ser direta e dura. Falou num tom seco,
em contraste com a maneira melíflua do pregador de todas as curas.
– Se houve dívida, é com ela, senhor pastor. Se tiver algum meio de
comunicar com ela, vocês são bons nessa coisa de milagres e comunicação
com o outro mundo, então acerte as contas com ela. Eu não pago dívidas
alheias. Se foi para isso que cá veio, perdeu o seu tempo.
– Ela não pagou, mas deixou dinheiro consigo para essas coisas que foi
gastando. Aliás, senhora, o filho pode pagar pela mãe, ele também
frequentava a igreja, onde estava a ser tratado e a melhorar muito depressa,
devo dizer.
Sofia começava a se impacientar. Ainda por cima o homem se revelava
um mentiroso descarado, apresentando êxitos falsos, falando de melhoras
num Ezequiel que fugia dele como o rato do cheiro do gato. Mais raivosa
ficou quando notou, o pastor procurava com insistência os olhos dela, em
tentativa de controlar as ideias. Tinha pensado num primeiro momento em
pôr o charlatão na rua, mas depois refletira, devo à lembrança de Dona
Ester não destratar demasiado quem ela apreciava, com razão ou sem ela.
Porém, não admitia que quisessem lhe controlar a mente, truque de burlão
que conhecia há muito. Foi ainda mais fria na resposta:
– O filho não está e nisso de ter havido progressos com as suas rezas é
falso. Neste momento está muito mais calmo, a ser tratado a sério,
medicado por profissionais da saúde e não por aldrabões. Sem os demónios
que sentia na sua igreja, como ele mesmo dizia, fugia de lá agarrado à
cabeça e aos gritos, todos sabemos… E não estando ele, ninguém lhe vai
pagar nada. Estamos conversados?
O homem, num primeiro arreganho, tentou crescer perante ela, como se a
pudesse atemorizar. Desconseguiu, pois tinha fraca figura, voz de periquito,
e a boca denunciava apenas ganância. E ela continha uma raiva que
ameaçava romper todos os diques.
– A ser tratado? Onde?
– Não lhe vou sequer dizer, não lhe diz respeito.
– O filho de uma crente diz respeito à igreja, aí é que a senhora se
engana.
– Em que lei está isso escrito? Talvez na sua, que não é lei reconhecida
pelo Estado, o qual anda a investigar as suas fraudes. Se não sabia, fica a
saber… Na nossa lei, que é defendida pela polícia, as crenças não se
transmitem como se fossem uma propriedade. E agora pode sair, que temos
mais que fazer do que aturar sugadores de dízimos.
O pastor, que não o era de bois como os criadores de gado do Sul, frase
muito usada nas suas prédicas, mas de almas, fez o gesto de levantar um
imaginário chicote ou porrinho, de ameaça.
– Não me vai dizer onde mantém sequestrado o filho da nossa irmã?
– Já lhe disse, não vou.
Sofia deixou passar as palavras sequestrado e irmã, para não alimentar a
discussão, mas não as esqueceu. Ele voltou ao tom ameaçador:
– Falou de polícia? Pois ela vai gostar de saber que raptou um homem
incapaz de tomar decisões.
Sofia deu uma gargalhada. Dona Ester, que se queixava amiúde das
injustiças cometidas nesta terra, por vezes dava o exemplo de a igreja não
estar legalizada por pura perseguição ou influência das já estabelecidas. Era
a razão de evitar grandes cultos e iniciativas arriscando chamar a atenção
das autoridades. Por isso mesmo Sofia tinha mencionado o Estado, a
polícia, investigações. Passou ao contra-ataque:
– Sim, senhor. Quer então contar as coisas à polícia? Pois eu também
estou muito interessada em ver a autorização que tem para fazer cultos e
cobrar funerais, o que pode ser considerado negócio ilícito. Vamos pois
juntos à polícia, nem é longe daqui. E assim vamos saber qual é o avanço
das averiguações que estão a fazer. Até aproveitamos ir na nossa carrinha
para o senhor não apanhar muito pó. É só chamar o motorista. Vamos?
Avançou para a porta de saída. Gritou para a cozinha, Tadeu, nós vamos
ali à polícia tratar um assunto e já volto. Apareceu a cara assustada de Kiaxi
a olhar para eles. Logo meteu a cabeça para dentro da cozinha. O pastor não
se mexeu.
– Então? Estou à sua espera.
O homem sabia estar entalado. Polícia era a pior coisa com que se queria
deparar. Não contava com o bluff, sabia ser bluff, os burlões têm muito faro
para os truques dos adversários. Mas não podia arriscar. Ela atravessou a
porta para fora e ele ficou parado dentro.
– Dona Sofia, podemos conversar.
Ela voltou um passo atrás, estacionando no umbral. Usou o tom de maior
desprezo que conseguiu.
– Ainda não percebeu? Não tenho nada que conversar consigo, só quero
que me acompanhe à polícia e faça lá todas as queixas. Depois eu só faço
uma pergunta, onde está o papel de autorização da sua igreja, mais nada. O
resto não é consigo nem comigo. É com as autoridades. Venha mostrar que
é homem.
E partiu mesmo para a carrinha. Avisado não se sabe como, talvez por
uma das muitas moscas que frequentavam o bairro, o motorista já estava ao
volante. Sofia entrou e sentou ao lado dele. Apareceu na porta a figura
derrotada do pastor. Ela fez um gesto com a mão, apresse-se. Ele veio com
o rabo entre as pernas, não entrou no carro. Falou num queixume pela
janela:
– Sequestrou, sim. A noiva dele é que me contou. Não tem coração,
separa casais?
Sofia percebeu de onde o pastor tinha recebido informação. Por isso
Kiaxi, ao ouvir a voz dela em tom alto, tinha deitado a cabeça fora da
cozinha, onde devia estar de ouvidos arrebitados. Assustada com o caminho
que os mambos tinham levado.
– Entra ou não entra no carro? Tenho mais que fazer.
– Pobre rapaz. Já não lhe chegavam os demónios, agora também lhe retira
a noiva.
– Vou perguntar pela última vez. Entra ou não?
– Isso é que a senhora queria. Para me fazer desaparecer. Aí com o seu
segurança – e apontou para o motorista.
Sofia saiu do carro, depois de dizer ao motorista:
– António, já que és meu segurança, dá uma corrida a este senhor. De
preferência com a chave de rodas.
– Sim, senhora – disse António, saindo do seu lugar e indo lá atrás pegar
numa chave de rodas.
O motorista era grande e pesado. Tinha ouvido o bocado de conversa e
ficou ofendido por ser tratado de segurança e cúmplice de um crime
qualquer que nem tinha percebido qual seria. Avançou para o pregador com
vontade de lhe dar mesmo uma pancada com a chave. Não foi preciso. O
homem bazou sem olhar para trás.
– Obrigado, António. Não te canses a ir atrás dele, missão cumprida.
Voltou a entrar no restaurante. Foi à cozinha, respirou fundo e de maneira
ruidosa. Falou para Kiaxi na frente dos outros:
– Vou fazer as contas contigo. Quantos dias trabalhaste este mês? Nunca
mais pões os pés nesta casa, ouviste? Desde quando é que os nossos
trabalhadores vão a uma igreja alheia fazer queixas da patroa? Assim
aprendes a não te meteres onde não és chamada.
A moça deitou as mãos à cabeça, berrou que nem um cabrito, batendo
com um pé no chão. Uma verdadeira xinguiladora em plena sessão
mortuária. Entretanto olhava de lado para os colegas, procurando apoio.
– Chega de teatro, não estamos no komba. Quantos dias trabalhaste?
Kiaxi calou de repente. Percebeu, a cena não lhe valia de muito, arriscou,
perdeu. Fungou apenas um pouco, começou a fazer as contas. Sofia, para a
humilhar de forma definitiva, disse para os outros:
– Sabem o que esta menina foi dizer ao pastor? Que era a noiva do
menino Ezequiel, imaginem!
Um coro de muxoxos condenou a rapariga até ao fim dos tempos. Uma
mulher da limpeza até levantou a mão e avançou para ela, mas Sofia lhe fez
um gesto imperativo que a paralisou.
– Não é verdade, eu só queria lhe ver – gemeu Kiaxi.
– Não estou a inventar nada, foi o pastor que disse. E o António ouviu,
podem lhe perguntar.
Kiaxi desatou num pranto silencioso. Se via, agora não se tratava de cena,
era choro sentido. Tarde demais.
Sofia não perdoava traições.
14

Himba terminou a 8.ª classe, que na época marcava o fim do Ensino de


Base. Podia agora seguir estudos para o Ensino Médio, tirando um curso
profissionalizante ou a via rápida para o Superior, fazendo três anos de Pré-
Universitário. Queria estudar mais e por isso se aconselhou com padre
Adão e Radamel. A universidade era praticamente impossível de atingir,
apesar das suas capacidades, reconhecidas por todos. Um curso médio
então, mas qual e como? Os institutos que proporcionavam esse tipo de
cursos ficavam longe daquela área periférica da cidade, como aliás era o
Pré-Universitário, em pleno centro urbano. Havia candongueiros mas
necessitaria de mudar duas ou três vezes de rota, o que aumentava o preço.
Nem ela nem o lar tinham verba para as viagens. Poderia trabalhar em
qualquer coisa para arranjar dinheiro do transporte. Tinha catorze anos,
outras começavam mais novas que ela. Não temia salo pesado, mas que
poderia fazer? Pedia conselho.
A discussão foi animada. Os dois mais-velhos achavam ela tinha muitos
dotes para o estudo e devia lutar por isso, a escola de base não lhe bastava.
Mas fazer então o quê? Radamel logo avançou, eu pago os teus transportes,
não tenho grandes encomendas porque cobro pouco e não gosto de
burocracias nem de andar a inventar projetos só para sacar dinheiro, como
outros infelizmente fazem, mas tenho o suficiente para te garantir
candongueiro até ao sítio onde for o teu instituto ou escola. São necessárias
no entanto outras coisas, por exemplo roupa e sapatos, não podes vestir
sempre da mesma maneira, serias muito desprezada… é isso mesmo, esta
sociedade é tão cruel como outra qualquer, um estudante de certo nível já
tem de se apresentar melhor que o de nível de ensino inferior, para não
sofrer a troça escondida dos colegas. E o material escolar, os livros que por
vezes são muito caros, alguns até nem existem, as escolas funcionam com
os professores a ditarem as lições, não fazem mais nada senão ditarem…
Teríamos de arranjar algum fundo para essas despesas suplementares. Como
providenciar? E, escolhida a escola, ainda há a matrícula, mas isso acho que
o padre Adão resolve, e este disse, sim, a matrícula resolvo, seja no Pré-
Universitário seja num Instituto Médio, mantenho conhecimentos no
ministério, um familiar meu é até diretor de qualquer serviço lá.
Se falava há muito nas bolsas internas, isto é, facultadas pelo Estado a
alunos com bom rendimento escolar e sem possibilidades de estudar apenas
com a ajuda da família. Mas as únicas bolsas que de facto existiam eram as
externas, dadas para fora do país, um processo difícil e incerto, exigindo
cunhas mais fortes. Himba também não aceitaria sair da terra, ligada ainda à
esperança de paz e reencontro familiar.
O padre, por um lado, Radamel, pelo outro, perguntavam às pessoas
conhecidas, procuravam mesmo instituições que pudessem garantir alguma
ajuda. Parecia difícil, embora não impossível, pois os dois tinham grande
poder de convencimento e teimosia suficiente, se o objetivo era arranjarem
meios para outros, não para si próprios, o que afinal acaba por não ser tão
raro assim em qualquer sociedade. Himba entretanto já tinha optado por um
curso médio que lhe proporcionasse um emprego quase certo, mal acabasse
os estudos. Job aconselhou-a, és boa na Matemática, gostas de fazer coisas,
acho que o curso de Contabilidade e Gestão estava mesmo bem para ti,
afinal o mesmo que eu fiz. E podia ajudar-te em alguma dúvida.
Foi assim que Himba optou por Contabilidade e Gestão, uma carreira
garantindo futuro risonho no capitalismo, como declarou Radamel ao saber
da decisão dela. Ironia escondida na declaração do arquiteto? Himba não
notou, talvez nova demais para essas subtilidades, mas repararam Job e
Débora, esta sempre hesitante na sua decisão pessoal.
Como o lar tinha crescido com a construção de um novo dormitório para
rapazes e alguns acréscimos no refeitório, o padre abençoava a falta de
vocação da moça que mantinha ali como seu braço direito. Adão já não
tinha vergonha de mostrar contentamento por ela nunca se ter apresentado
no convento para a entrevista. Mais ainda depois de apanhar Débora e Job
enlaçados num fim de tarde com um pôr do sol magnífico sobre o mar do
Mussulo como pano de fundo. Era um belo par e certamente se tratava da
vontade do Senhor que casassem e tivessem muitos cristãozinhos. Chamou-
os a um espaço confidencial e disse que era altura de oficializarem o
namoro com a apresentação às famílias e pedido de noivado, como manda a
tradição da terra. Que Job preparasse já o alembamento, embora estivesse a
gozar, pois os pais de Débora não eram tradicionalistas, pelo menos
exigindo pagamento ou outros dotes particulares. Depois, casamento na
igreja, proferiu o sacerdote. Os dois ficaram a olhar um para o outro,
assustados. Ainda não tinham pensado em casamento?, se interrogou de
repente o eclesiástico, já mais escandalizado. Não ousou no entanto fazer
uma pergunta tão direta, era pessoa delicada. Por isso não teve resposta e a
conversa ficou sem conclusão. Talvez já tivessem avançado no namoro
mais que o permitido pela moral e a Igreja, há muito ela deixara de se
confessar a ele, preferia o padre que dizia missa a três quilómetros,
confissão depois da missa. Ao que constava, Job nunca se confessava nem
aparecia no culto, mais interessado em pescar com o pai nessas manhãs de
domingo. Adão achou que deveria ter uma conversa a sós com o pupilo e
amigo, noutro dia, quanto mais próximo melhor. Com Job seria mais direto,
homem a homem, só o casamento era uma solução para dois adultos na
situação deles. Ou então supunham ele não tinha percebido há muito a
inclinação recíproca? Quem julgavam enganar afinal? Ele sabia e nunca
interferira, mas agora era o momento das grandes decisões. Ao que Job
respondeu, tem razão, padre, mas lhe digo o mesmo que o meu pai me
disse, como queres casar se nem emprego tens?, porque para o meu pai isto
não é emprego pois o senhor padre não me paga salário e portanto tenho de
procurar um trabalho na cidade para poder casar e manter a minha mulher
na nossa casa, criando os filhos. Só então e só mesmo então o padre Adão
percebeu que todos os feitiços que tivesse feito estavam destinados ao
fracasso ou tinham virado ao contrário, pois o facto de Débora não ter ido
para o convento ainda tornava mais complicada a tarefa dele, pois a perdia a
ela e a Job, com o casamento. Se tivesse ingressado no noviciado, só a
perderia, guardando Job por mais algum tempo. Mas não havia maneira de
voltar atrás, o cesto mágico tinha sido agitado, só dava agora para espreitar
lá para dentro e perceber o resultado. Sempre funesto para as suas intenções
e mau para o lar. Job prometeu, vou fazer como o senhor padre aconselhou,
primeiro tenho de arranjar um emprego, mas venho cá lhe fazer as contas
no fim de semana, sempre. Há muito o pai lhe tinha feito essa sugestão,
prontamente rejeitada. As circunstâncias tinham mudado, havia Débora, o
rapaz se adaptava à nova situação.
O que obrigava o sacerdote a tomar as decisões financeiras do dia a dia.
Mau comércio.
– Arranjo alguém para o ajudar, prometo – disse Job.
Débora também prometeu preparar a mais velha das raparigas, já na casa
dos vinte, para a substituir na camarata.
Não era a mesma coisa.
Mas sempre um consolo.
Os passos foram dados, Job arranjou facilmente emprego numa empresa
acabada de abrir na Corimba, perto da casa paterna, foi pedir a mão de
Débora e o casamento marcado. O mais difícil seria arranjarem um ximbeco
onde morar. O pai dele ajudaria, permitindo que se instalassem nos anexos
da vivenda dele, depois de obras de adaptação. E Débora se esforçou com
Judite, a nova responsável pelo dormitório das meninas.
Kassule avançava também nos estudos, embora sem o brilho de Himba.
Só mesmo em desenho e pintura, onde experimentava tintas oferecidas por
Radamel. Este gostava particularmente das cenas de vida quotidiana que o
menino tentava reproduzir, como as zungueiras a venderem coisas ao ar
livre, os carros enferrujados numa rua, os imbondeiros e catos-candelabro
da paisagem ambiente, o mar e seus barcos, uma mulher a bater o funje, um
alfaiate a cortar um pano para uma camisa, o barbeiro a rapar a cabeça de
um cliente cheio de caretas, etc., etc. Kassule considerava mais difíceis as
imagens de um figurante só, pois tinha de precisar as feições, o que exigiria
espiar os alvos ou conseguir mesmo que posassem para ele, enquanto as
cenas de multidão exigiam apenas traços e volumes estreitos representando
indivíduos, o que contava eram as cores. Mas o arquiteto insistia, o retrato é
mais difícil mas uma etapa necessária, como a pintura das veias de uma
mão, as diferentes colorações das unhas, as folhas e troncos de uma árvore,
e outros detalhes. As cenas de multidão num mercado eram interessantes,
sem dúvida, mas não treinavam o artista para mais altos voos. Incentivava-o
para procurar as dificuldades, não caias na tentação do facilitismo, para
progredir é preciso enfrentar os obstáculos, falhar, repetir, até se atingir o
ponto mais próximo da perfeição. Isso se aplicaria a qualquer arte. Nunca
ficar satisfeito com um trabalho, insistir com ele, insistir, repetir, repetir.
Haka, coisa mais chata, se rebelava o menino. Mas ia fazendo o que o
professor aconselhava. E sentia que progredia. Essa disciplina fazia que
fosse admirado na classe e os professores lhe perdoassem falhas em
Matemática ou Português. Ele tem o dom para as artes plásticas, deve se
dedicar a elas ao máximo. O que era bastante cómodo para Kassule, a
passar de classe apenas porque desenhava e pintava bem.
Sentia algum susto ao pensar que Himba ia mudar de escola, enquanto ele
permaneceria naquela. Estava habituado à companhia dela na ida e a
esperar pela amiga, pois as aulas dela demoravam mais, para regressarem
juntos ao lar. A partir de agora seria diferente, ele a continuar a ir a pé, é
verdade que com outros companheiros do internato, enquanto ela se
aventuraria na grande cidade. Himba haveria de se orientar, tinha crescido
nos dois anos seguintes à saída da Ilha, já sabia como se defender. Ele
também tinha crescido e a sua muleta era uma arma intimidante. Treinou
contra os miúdos que se metiam com ele e de uma vez chegou a derrubar
dois, um pouco mais velhos, que se tinham zangado a sério com alguma
piada dele. Como Himba acusava muitas vezes, Kassule era um desbocado,
falava onde não devia e dizia o que não agradava a outros. Porém, ele
continuava a usar o seu direito de expressão e se metia em enrascadas. Os
outros no princípio evitavam ameaçar, considerando a condição física dele.
Quando perdiam a cabeça, ele guardava a sua fria e usava com habilidade a
muleta. Himba muitas vezes o via a treinar a arma contra uma árvore, em
golpes debaixo para cima ou o contrário, ou em meia-volta para trás, truque
que resultava sempre. E, só apoiado naquela perna, conseguia dar
cambalhotas no chão com enorme rapidez, o que desorientava os
adversários. Quando descobriu as suas faculdades de luta, então, se tornou
mais agressivo ou corrosivo nos comentários, para levar os outros ao
combate. Ainda te vai sair caro, advertia Himba, afinal só tens doze anos.
Doze anos, sim, mas doze anos muito vividos, valem por dezasseis. E como
era alto e os braços muito fortificados, de facto enfrentava com sucesso
rapazes de dezasseis anos. Um lutador, o mano Kassule. E artista. Onde
tinha ela conhecido um personagem assim? Num livro? Devia ser, porque
tinha visto muito poucos filmes.
Se falava em arranjar uma televisão para o lar, Radamel e Job eram
adeptos ferrenhos da ideia, e de vez em quando voltavam ao tema, no
entanto o padre resistia, o dinheiro pode ser utilizado em coisas mais úteis.
Claro, temia o reforço que o aparelho emprestaria às tendências
pecaminosas dos internos, particularmente das internas, mais influenciadas
pela moda das telenovelas. Sabia o que acontecia na cidade e no mundo,
deviam comentar muito isso nas suas reuniões de igreja, maus exemplos
para a juventude e perda dos valores cristãos em concorrência com a luxúria
e as práticas libertinas propagadas pela televisão. Adão era bastante
conservador em termos de moral, se inscrevendo na corrente dominante das
hierarquias católicas africanas, consideradas reacionárias pelos mais
avançados membros do clero. Embora fosse quase um revolucionário no
respeitante aos temas económicos e sociais, advogando sociedades
igualitárias e justas, em que a honestidade fosse a primeira virtude e o povo
o único promotor e beneficiário das políticas, insistindo ser esse o
pensamento social da Igreja, esquecido pelos papas e cardeais. Um
conservador e um socialista ao mesmo tempo, gozava Radamel. E tu és um
libertino e pouco socialista, adivinho alguma ganância em ti, disparava o
padre, injustamente, confessava logo no seu íntimo, pois Radamel era tão
despojado das coisas materiais como ele próprio e por isso se tornaram
amigos chegados, apesar das diferenças religiosas.
Enquanto os dois disputavam o luxo de comprar uma televisão ou não,
outros benfeitores se mobilizaram e realmente um fundo foi criado para
ajudar Himba nos estudos. Fundo garantindo as viagens, vestuário e
material escolar. O acordo foi selado numa reunião no refeitório, entre o
padre, o arquiteto, o senhor David, pai de Job, e uma dezena de apoiantes
do lar. Destes se destacou na discussão pela negativa o padre da igreja mais
próxima, em representação da diocese naquela zona, por se opor a que a sua
igreja despendesse algum dinheiro com uma miúda que, embora batizada,
pelo menos era o que ela dizia e o padre Adão certificava mesmo sem
apresentar nenhum documento, sim, sabemos que a guerra impede as
pessoas de terem os documentos, muitos arquivos foram destruídos, mas
isso não é o mais grave, o problema é que ela nunca se confessou nestes
dois anos ou sim?, no que Adão foi forçado a reconhecer, pelo menos a ele
não, a menos que o fizesse ao padre da Ilha, mas bem sabia que isso não era
possível, das poucas vezes que fora visitar Dona Isabel nem tinha posto o
pé na igreja, mas ia à missa todos os domingos, replicou, em defesa da sua
pupila, no que a discussão se transformou numa renhida luta verbal entre os
dois sacerdotes. Pouco proveitosa para o fim em questão, na medida em que
a igreja não deu uma moeda, tendo felizmente os outros assegurado o
provimento do fundo. Se confessando ou não, batizada certamente mas não
contava, o certo é que Himba obteve a possibilidade de estudar. Ao mesmo
tempo que, nas horas vagas, frequentava a cozinha do lar, aprendendo como
confecionar certos pratos e ajudando o pessoal na sua feitura. Já na casa dos
pais gostava de secundar a mãe na cozinha e um dos seus sonhos
escondidos na Ilha era obter autorização para trabalhar num dos
restaurantes. Em casa dos pais e no lar, os pratos eram normais, sem grande
elaboração. Embora a mãe caprichasse nos dias de festa, fazendo doces das
frutas da região e até bolos, se conseguisse alguma farinha, proeza difícil
em tempos de guerra. No lar os panelões não permitiam subtilezas, o
objetivo era produzir comida barata para muita gente. Aprendia pois pouca
coisa dessa arte. Num dos restaurantes da Ilha, sim, teria tido oportunidade.
Mas quem a aceitaria numa cozinha, esfarrapada e cheirando a mar? Um dia
aprenderia a cozinhar a sério, já tinha ouvido conversas entre as colegas de
escola e professoras sobre essa profissão útil e cada vez mais sofisticada.
Era um sonho, também tinha o direito.
A conspiração acabou por funcionar, pois ela tinha sempre o dinheiro
para os transportes e comprou roupa num mercado do Rocha Pinto onde
algumas oénegês, que recebiam doações de fardos vindos da Europa com
vestuário usado, vendiam esse material a preços acessíveis para obterem
dinheiro que investiam em escolas ou postos médicos ou campanhas de
educação da população dos bairros mais carentes. A propósito, esta prática
deu alguma discussão, pois os fardos de roupa barata acabavam com
qualquer possibilidade de se criar uma indústria de vestuário competitiva,
reclamavam alguns ativistas e candidatos a empresários. O certo é que
muitas senhoras se dedicando antes a esse tipo de confeção arranjavam
menos clientes, algumas mesmo tendo mudado de atividade, passando a
vender legumes ou cerveja pelas ruas e engrossando o exército de
zungueiras. As organizações mostravam as obras e diziam, o dinheiro foi
bem empregue, estão aí escolas ou diminuição da natalidade das famílias
com o ensino de métodos anticoncecionais ou melhor defesa dos direitos
políticos das pessoas. Os críticos aproveitavam para sacarem argumentos
negativos, como o facto de o negócio de fardos arranjar emprego em
Angola para jovens drogados que era preciso afastar dos centros de vício na
Europa. Discussão envenenada, interminável, sem fim à vista. Para Himba
foi mais fácil encontrar no mercado dos fardos o que necessitava. Livros e
material escolar também eram adquiridos nessas bancas de produtos baratos
pois não pagavam impostos, provenientes ainda por cima dos desvios
perpetrados nas escolas por dirigentes ou professores, tudo servia para
abastecer o mercado paralelo, onde nada faltava, diferentemente das lojas
legalizadas, por vezes carentes de alguns produtos. E ela se admirava e
contava no lar aos amigos com alguma estupefação, como é possível que
me vista e calce por menos dinheiro que o despendido para o material
escolar? Alguma coisa está errada, dizia padre Adão, no que concordava
Radamel, talvez muita coisa está mesmo errada, mas o argentino evitava
concluir, por ser estrangeiro e achar que não tinha o direito de criticar certos
aspetos mais ligados à política do país hospedeiro. Ele sabia como os
angolanos eram orgulhosos e adeptos da teoria de poderem criticar tudo,
mas só entre eles, os estranhos não tinham esse direito. Evitava chocar
sensibilidades.
À parte uma ou outra tentativa de um rapaz em gombelar, Himba não
tinha razões de queixa. Rejeitava logo e com tal frieza que ninguém queria
repetir.
O pior até nem aconteceu no Instituto mas numa vinda para o lar, com a
noite a cair. Na estrada mesmo que dava para o dormitório, foi empurrada
de repente para o capim da beira. Caiu, largando a pasta com os livros. Um
homem se atirou sobre ela, tentando dominá-la. Estava escuro e não havia
mais ninguém na estrada. A casa vizinha parecia desocupada e o terreno
ainda distava um pouco da do outro lado, onde uma luz bruxuleava na noite.
O homem ficou sobre ela e tentou lhe imobilizar os braços. Himba lutou e
ele mudou de ideia, lutou para lhe levantar a saia. E depois a menina
pensou, vi muitas lutas e sei tudo sobre a autodefesa, só devo recordar.
Como se tivesse ouvido a voz de Tobias, numa luta o primeiro mandamento
é não perder a cabeça. Ele vai ainda gastar muito tempo na preparação e
terei a minha oportunidade, a qual pode estar ao lado. Aconteceu de facto.
O homem, considerando-a dominada, se ergueu um pouco para baixar as
calças e ela aproveitou. A pedra já estava na sua mão esquerda há
momentos, tinha-a encontrado ao procurar de um lado e outro,
sorrateiramente. Ele nem adivinhou o que podia ser aquele gesto dela, o
braço do chão para a cabeça dele. Caiu para o outro lado, inanimado. Ela
afastou o corpo, evitou tocar por causa do sangue, apanhou as suas coisas e
correu para o lar. No caminho tentava não se descontrolar, ele ia ficar um
bom bocado sem mexer, a pancada tinha sido forte. Ela estava a salvo.
Quando chegou ao portão e o abriu, encostou-se a ele, respirando forte.
Tinha de se recompor, pensar em todas as possibilidades. Não conhecia o
homem, mais adivinhado que visto naqueles momentos de luta. Tinha a
certeza de não o conhecer, mas a questão era outra, foi um ataque de
oportunidade ou o tipo sabia quem ela era e estava à sua espera? Eram
situações muito comentadas, as violações frequentes nesses bairros escuros,
sem postes de eletricidade, sem patrulhamento policial. E, nesta zona, ainda
pior, porque não havia muitas casas e as pessoas habitando as existentes
tinham hábitos domésticos, não ficavam muito tempo na rua, nem deixavam
as crianças nela. Cenário perfeito para um ataque, sobretudo aquele sítio, o
único efetivamente ainda não ocupado pelas habitações. Seria um maluco
que fazia aquilo com frequência, se escondendo ali à espera de uma presa?
Ou fora alguém que a seguira no candongueiro ou a partir do ponto onde ela
saiu do carro? Alguém que a tinha escolhido para alvo? Este seria o pior
cenário. Agora conhecia-a, sabia as suas rotinas, e queria se vingar. A
violação já não lhe bastaria.
O sangue puxava o sangue.
Contava ao padre Adão? Decidiu logo, não, pode depois me proibir de
estudar. De hábito ela saía mais cedo da escola e chegava ainda de dia ao
lar. Mas hoje tinha decidido aceitar o repto de participar num ensaio para
uma peça de teatro que o Instituto queria apresentar no 11 de novembro,
Dia da Independência. Os ensaios só eram possíveis depois das aulas, daí o
atraso. A primeira resolução estava tomada, para o futuro não se metia em
mais cenas de ensaiar peças, pelo menos a horas tardias. Portanto, o que
tinha a fazer era explicar o que realmente sucedeu na escola, justificando o
atraso. E esconder o ataque. Devia arranjar muito bem a roupa e o cabelo,
parecer como todos os dias, vinda das aulas, acalmar os nervos e controlar a
tremura da fala. Talvez a Kassule contasse algum dia, quando estivesse
disposta a ouvir os xingamentos dele, és maluca, como vieste tão tarde
sozinha, esqueceste como é o mundo?, o que já ia acontecer quando pusesse
o pé no refeitório ou no campo de futebol, onde estariam quase todos
reunidos. Ainda pensou em falar a Débora, mas não, a outra estava
demasiado preocupada a pensar no casamento e a arranjar o enxoval,
ajudada por muitas meninas. Deixa a Débora sonhar, fica toda preocupada e
a imaginar criação de brigadas de vigilância à estrada. O que de facto podia
ser uma boa solução, uma brigada atenta e apanhavam o maluco, e depois
de uma carga de porrada entregavam-no à polícia, ele merecia. Era melhor
não meter a Débora no assunto, nem ninguém.
De repente a ideia terrível, e se o homem tivesse morrido?
A pedra era pesada e a pancada foi com força na parte lateral do crânio.
Só então a ideia dominou o seu cérebro, deixou de ser uma pergunta, passou
a ser um assustador pensamento permanente. Podia ter matado o maldito
desgraçado. O coração bateu com mais força. Amanhã, ao sairmos para a
escola, vamos ver as moscas naquele local e alguém descobre um corpo?
Ela, assassina? Foi legítima defesa, até conhecia o termo das muitas
conversas na Ilha com o grupo do Tobias. No entanto, nunca deixaria de ser
uma matadora, com razão ou sem ela. Melhor não comentar com ninguém,
mesmo sendo legítima defesa. Se encontrassem um corpo, quem ia fazer a
ligação? Quem ia suspeitar dela, uma menina bem comportada e boa
estudante, só porque um desconhecido aparecia morto com uma pancada de
pedra na cabeça num terreno de ninguém onde talvez estivesse a fumar
liamba ou a espiar alguma casa? Não chegavam a ela e se chegassem teria
todos os defensores do seu lado. Estava decidido, nem a Kassule contaria,
pelo menos por enquanto.
Respirou fundo mais uma vez, sentiu a coragem, avançou para o
refeitório iluminado.
Explicou ao padre a razão do atraso, tentando falar como era habitual, ele
abanou a cabeça em reprovação, disse, a estas horas já é perigoso andar por
estas ruas, não acho bem que continues nesses ensaios, por muito boas que
sejam as tuas intenções, e ela disse ele tinha razão, não imaginara que
chegasse tão tarde. É a pior hora para o trânsito, já sabes disso, mas todas as
horas eram más para o trânsito, ela aprendera nos meses em que andava no
Instituto.
Em Luanda não há boas horas para o trânsito.
Kassule estava entusiasmado com o jogo de futebol, apesar de ter ficado
escuro e muitas vezes nem conseguirem ver a bola. Ele, sem jogar, remetido
para uma das linhas, via no entanto a bola e todas as jogadas. Por isso não
se aproximou dela e era menos uma preocupação, pois o menino tinha um
dom natural em perceber as agitações dela. Ao jantar, também não ficaram
lado a lado, como normalmente acontecia. Ela tinha conseguido se
antecipar num lugar entre outros dois, Kassule sentou mais ao lado, sem
reparar ter sido afastado de propósito. Como podia sequer adivinhar tal
coisa, não eram como irmãos?
Himba dormiu mal, pesadelos que a levavam a acordar. Voltava ao
passado, ao medo constante da noite, não só da noite, da própria vida.
Sentiu a falta da presença de Tobias, deitado a seu lado, um braço sobre ela,
sentiu mesmo o peso agradável do braço e o cheiro que lhe estava
associado. Tinha arrancado facilmente o jovem da sua memória, recusava
qualquer alusão ou imagem que o pudesse fazer voltar ao pensamento. Mas
nessa noite pela primeira vez sentiu a falta. Ou já acontecera antes ou
mesmo todas as noites e o seu subconsciente conseguia abafar a saudade?
Tinha respirado de alívio quando percebeu estar livre de tudo aquilo, tinha
finalmente voltado a ser um pouco criança nos primeiros dias do lar, sem ter
de olhar sempre para trás e respeitar as vontades do «marido». E agora
sentia falta da proteção de Tobias e suas exigências, por acaso nada
extravagantes? Chorou silenciosamente a morte do amigo, ele era mesmo
seu amigo.
Pela primeira vez.
Na manhã seguinte, o coração não parava de saltar. Manteve a rotina e
saiu com um grupo de miúdos que iam para a escola antes frequentada por
ela, entre os quais ia Kassule. Deixavam-na no ponto do candongueiro, no
fim da estrada, e continuavam para a escola. Quando se aproximaram do
sítio do ataque, ela deixou se ficar um pouco para trás, hesitando em
enfrentar o inevitável. Sem pensar, Kassule imitou-a. Vinham os dois no
fim do grupo. Ela esperava a todo o momento um grito de alguém da frente.
Não aconteceu. Os pés estavam muito pesados e tinha mais dificuldade em
andar que o próprio Kassule. Era aquele o lugar. Quem soubesse do caso
talvez pudesse notar o capim deitado num ponto, talvez descobrisse gotas
de sangue e uma pedra com marcas castanhas. Só uma pessoa sabia do caso
e essa não quis olhar para o local. Passaram. E nada sucedeu. Nem corpo,
nem moscas, nada. Respirou fundo. O que seria melhor, haver lá um
cadáver que só passaria a persegui-la em pesadelos ou assim, o vazio, que
significava a sobrevivência do tipo que poderia voltar a atacar? Assim era
melhor, de todos os modos, pensou. Continuou a andar, mais ligeira, até o
ponto do candongueiro. Já havia duas pessoas à espera do carro. Não ficava
sozinha, com medo de novo ataque. Se despediu dos amigos com alegria
quase fingida. Como todos os dias.
O candongueiro apareceu, tinha lugar para os três passageiros, se
acomodaram e ela suspirou de alívio. A partir dessa altura, jurou, devo
olhar bem para as pessoas. Posso reconhecer o atacante. Na véspera à noite,
tinha cassumbulado uma faca muito afiada na cozinha e escondido no seu
saco, em sítio onde chegaria sempre com facilidade. Não a apanhariam a
jeito nunca mais.
Julgavam ela era o quê, uma gruta para pilas carentes?

***

O tempo foi passando, o grupo de amigos a comparecer uma a duas vezes


por semana como sempre, o restaurante sempre cheio e de gente mais rica
ou simplesmente mais esbanjadora, muito dinheiro a entrar. O pastor
parecia ter desistido de procurar Sofia exigindo dízimos. Mas ganhou mais
uma fiel, Kiaxi. Sofia soube do recrutamento pela indignação de uma das
ajudantes da cozinha, a qual encontrou a moça em pleno dia de semana a
caminho do culto. Disse que não trabalhava, andava só na igreja, mas não
explicou quais as reais funções em tão importante instituição para o consolo
das almas. Em hora de trabalho, bravava a empregada. Se calhar anda a
lavar a roupa do pastor, se não for lavar mais alguma coisa. As outras riam,
não tanto do dito, mas da raiva da colega, notória como fervorosa católica.
Sofia conheceu entretanto, nas suas voltas de compras e resolução de
assuntos burocráticos, um funcionário importante do governo da província,
manda-chuva dos mercados, restaurantes e bares, o qual descaradamente se
fez a ela. Evitou maior intimidade mas lhe perguntou porquê nunca o tinha
visto no seu restaurante, o senhor diretor não come? Pois fique sabendo,
está convidado.
Ele apareceu um dia para jantar e foi tratado como um príncipe. Quando
pediu a conta, Sofia foi lhe dizer, cortesia da casa, a conta estava saldada, o
que mais entusiasmou o homem. Três noites depois, lá estava de novo ele
para jantar. Sofia fazia contas, uma vez é cortesia, no fundo podia
interpretar a pergunta dela como um convite e convidado não paga. Mas
uma vez sem direito a repetição. Voltava por causa dela ou pela comida de
borla? Como saber? Situação complicada. Ainda por cima o tipo era casado
e vinha sozinho. As intenções não deviam ser de um comensal apreciando
umas boleias. Preferiu arriscar, levou a conta ao cliente e aceitou o
pagamento, gesto que ele fez sem dúvidas nem hesitações. Entendera
portanto que a primeira refeição foi apenas de convite ou cortesia. Gostava
mesmo da comida ou tentava gombelar? Sofia deixou o assunto para o
futuro. Se informou e constatou ter acertado na primeira intuição, o diretor
era uma das pessoas que a podiam ajudar a resolver assunto delicado e
confidencial. Esperou alguns dias que ele aparecesse de novo no
restaurante. Aconteceu, com uma semana de intervalo. Atenta, viu como ele
lhe mirava entre garfadas. Se aproximou da mesa, perguntou se a comida
lhe agradava, se o vinho estava na temperatura certa, tudo perfeito, cliente
satisfeito e fidelizado, parecia. Ela adiantou então dizer que um dia desses
apareceria no serviço dele, tinha um assunto de grande importância a tratar.
Ele deu dia e hora, de facto no dia seguinte às nove horas da manhã,
portanto prioridade máxima, o que lhe agradou.
As despedidas foram calorosas e de olhos brilhantes.
Ela foi à administração, lutando contra o tráfego intenso para chegar a
tempo, mas tudo correu bem, pois ela a entrar por um lado e ele pelo outro,
nove horas em ponto. Alegria do diretor por ser ela a primeira atendida.
Explicou a morte súbita da sócia e portanto a necessidade de mudança do
nome no alvará do restaurante, uma vez que as formalidades com as
Finanças estavam atrasadas, o sistema sofrendo nova atualização. Ele foi
compreensivo, reconheceu as dificuldades geradas no distrito por causa das
bruscas mudanças de estrutura, estamos a crescer rápido demais, não há
administração que aguente, porém veio bater à porta certa, resolvo isso num
instante, promessa cumprida pois deu uma instrução à secretária que foi
com Sofia ajudá-la a preencher impressos, entregar no guiché
correspondente e voltar com tudo pronto para o chefe assinar e carimbar de
selo branco. Saiu de lá com o alvará em nome dela e o mais legalmente
possível. Claro, disse ao diretor ser ele convidado para um almoço especial
no sábado em que apresentaria um novo prato saído da sua imaginativa
cozinha. Difícil de saber se o homem ficava feliz com o convite para provar
uma iguaria única sem pagar ou se o motivo era outro. Ela lançou o isco, se
quiser levar a sua mulher, são almoços familiares, mas ele respondeu muito
rápido, ela foi no Lubango, tem lá óbito, o que era bastante ambíguo. Foi
dali despachar a inscrição nas Finanças com o novo nome e confirmar
portanto a legalização da passagem do restaurante para sua propriedade. Só
faltaria o registo imobiliário, já agora ficava com tudo, também o edifício
do restaurante e terreno, para o que contava com uma outra ajuda
importante.
Tratava das questões burocráticas sem ter recurso à amizade e influência
de algum dos príncipes. Deixava-os como reserva estratégica, por um lado.
Pelo outro, mantinha a sua privacidade, nenhum deles devia saber como
resolvia alguns mambos. Para quê? Para um contar ao amigo, que de
seguida punha a notícia numa rede social e tudo ser público? Se afastava
desses meios de fofoca quanto podia. O mesmo fazia Diego, que apenas
postava de vez em quando um quadro para ver se apelava ao bom gosto de
algum potencial cliente. Sem grande sucesso, se diga. Só tinha atraído a
atenção de um inglês que se gabava de ser grande colecionador de arte
africana, mas foi mais regateador que qualquer vendedor do souk de
Marraquexe, informações das práticas de comerciantes árabes colhidas
junto de um amigo e colega maliano. A quantia era tão irrisória que ele
recusou a transação, afinal o inglês só queria burlar negros? E por isso
Diego acreditava estar destinado a vender apenas nos mercados, onde
socializava com os meios populares a que pertenço, como ele dizia com
orgulho.
Diego tinha percebido grande tensão em Sofia, nos dias seguintes à morte
da sócia, que ele atribuiu ao natural sofrimento pelo passamento de alguém
tão próximo. Aprovou também a escolha do lar para Ezequiel e passou a
visitá-lo todas as semanas, só para saber se o tratavam bem e, com a sua
inspeção semanal, impedir qualquer falta de atenção do pessoal se
responsabilizando pelo bem-estar do filho de Dona Ester. Se ninguém
aparecesse para o visitar, para perguntar que progressos fazia ou se lhe
tinham passado os pesadelos com os espíritos dos mortos, eles iam abusar,
não lhe dar as refeições a horas, ou empobrecê-las ao máximo. Como ele
mudava os dias e os momentos, aleatoriamente, o pessoal do lar
desconseguia de lhe aplicar um padrão e portanto tinha de fazer as coisas
bem, sempre. Afirmou mesmo a Sofia, sei que não te dá jeito ir lá, deixa
comigo, uma vez por semana pelo menos passo, fico um quarto de hora
com ele, por vezes conversamos bem, e não me incomoda porque é no
caminho para a kitanda. E sabes, não tenho maior fã dos meus quadros que
ele. A sério, fica a olhar, vira e revira o quadro, maravilhado, fazendo sons
complicados com a garganta, feliz da vida. Vou lhe pintar um com pássaros,
ele gosta de passarinhos, vai lhe fazer bem. Ideia apoiada pela irmã, é
ótimo, faz isso, ele gosta de pássaros, queria ter um periquito em casa, me
contou Dona Ester, ela é que não quis, teve medo de ele ter um daqueles
ataques e ver no bicho um espírito inimigo. Na sequência dessa conversa
com a irmã, Diego pintou mesmo o quadro, eram quatro passarinhos todos
diferentes, um bico de lacre, um caxinjonjo, um peitinho-celeste, um
pardaleco, três a voarem, o caxinjonjo parado sobre uma flor, lhe sugando o
néctar. Ezequiel até chorou de emoção. Sempre que ele ia ao lar, Ezequiel
apontava o quadro, estou a tomar bem conta dele, depois andava com a
pintura debaixo do sovaco por todo o lado. Se suasse demais debaixo do
braço ainda ia esborratar o quadro, pensou o artista, mas não o impediu de
passear a obra assim por todo o lado, era bom se o fazia feliz.
Não custa nada dar o pouco que se tem, dizia Diego.
– Conversam sobre o quê? – perguntou Sofia.
– De muitas coisas. De comida, de pássaros, do mar que ele não
conhece…
– Não conhece o mar?
– Não. A mãe nunca o levou. Talvez medo que ele se afogasse?
– Talvez – disse Sofia. – O pai morreu quando ele era muito pequeno,
naquela altura muita gente em Luanda nunca tinha estado numa praia.
Parece impossível mas é verdade. O pai acabaria por levá-lo, se ficasse
vivo. Já a mãe… E sobre mulheres não conversam?
– Às vezes. Ele é muito curioso sobre mulheres. Quer saber coisas.
– Que coisas?
– Ora, no fundo é o normal para um rapazinho. Se as mulheres são iguais
aos homens… Percebeu algumas diferenças, têm mamas grandes… quer
saber mais coisas…
– E tu explicas-lhe tudo.
– Só um bocado. Não é bom criar macaquinhos na cabeça dele, não
achas?
Ela anuiu. Embora não tivesse esquecido a cena contada por Dona Ester
com a antiga empregada montada em cima de Ezequiel. Ele sabia mais
coisas ou então tinha esquecido, cabeça fraca. Ficava espantada com a
capacidade revelada pelo irmão de ter sensibilidade e paciência para uma
pessoa que antes desprezava, que tratava de anormal ou algo pior. De facto,
antes de privar com ele. Depois a alma generosa de Diego levava a melhor.
Não era mesmo um tipo especial?
Na sequência dessa conversa, começaram a recordar pessoas que
conheceram. Pobres como eles, jogados pelas ruas. De que nunca mais
ouviram falar. Por vezes acontecia um jornal ou televisão tratar de
desaparecimentos de crianças ou de algumas que eram descobertas a passar
em aeroportos longínquos. E se perguntaram, será que aquelas que
desapareceram e que eles conheceram tiveram destinos semelhantes?
Raptadas nas ruas e enviadas para paragens distantes, com destino à
prostituição, escravatura ou, o mais horrível, para serem mortas e os seus
órgãos servirem para transplantes, salvando a vida dos ricos?
Se contemplaram, desviaram o olhar, magoado. Quem garantia alguma
coisa?
O diretor apareceu de novo no restaurante, desta vez mais afoito. Esperou
que os clientes saíssem, ele se foi deixando a bebericar uns conhaques.
Quando ficaram sozinhos, falou para Sofia, que estava do outro lado da
sala:
– Não quer beber um copo comigo?
Ela pediu desculpa, mas as regras da casa impediam o pessoal de beber
ou provar qualquer comida com os clientes, mesmo se não havia mais
ninguém. Para todos os efeitos, o restaurante ainda estava aberto.
– Então feche isto e depois vamos a um bar americano que conheço aqui
perto beber qualquer coisa. Pode dar-me a conta, por favor.
Ela fez o que ele pediu, levou a máquina para o pagamento, enquanto
matutava, recusar seria muito injusto e parecendo má educação. Tinha de ir,
mesmo contrariada.
Mas não estava disposta a ser cobrada de um favor.
Ele pagou, ela despediu o pessoal, apagou quase todas as luzes e fechou a
porta, se despedindo do guarda. Mas não entrou no carro dele, tenho de
levar a carrinha, vá à frente a mostrar o caminho, eu sigo-o. E assim foi, o
carro dele à frente, fazendo todos os sinais muito cuidadosamente para ela
não se perder. Era afinal um bar que ela já conhecia, bastante perto. Ele
continuou no conhaque, é a melhor bebida do mundo, os franceses é que
percebem de prazeres, dizia ele, mas Sofia ficou por uma cerveja nacional.
Quando beberam a segunda rodada e depois de uma conversa ligeira e
não desagradável, ela se despediu, agradecendo o convite, mas tinha de ir
para casa tratar da família, nesse momento com sério problema pois tinha
chegado uma tia do Bié, vinda para tratamento e Sofia não sabia se o irmão
sozinho lhe podia valer em caso de emergência, o irmão era muito atado e
com pouca iniciativa, tendo ela mordido os lábios ao dizer tamanha mentira
mas precisava de uma desculpa razoável para se desenvencilhar da situação
delicada, Diego que desculpasse. O diretor tentou insistir para mais uma
rodada, mas ela repetiu a estória da tia em mau estado de saúde e ele
desistiu. Ela lhe apertou a mão, agradecendo mais uma vez todas as
gentilezas.
Bazou.
O homem deve ter compreendido de forma definitiva. Ou então era burro,
o que não seria de negar de imediato, dada a vacuidade das conversas. Não
lhe interessava, ela só queria mostrar que sabia ser educada mas não pagava
favores daquela maneira que ele ia insinuando. E se era burro e não tinha
entendido, então ainda ia partir a cabeça mais uma vez. Meteu a primeira
mudança da carrinha, arrancou para casa, aliviada. Um problema a menos.
Na vida é assim, um a um se resolvem os problemas.
Não tinha masé sacudido para trás o problema do Kaleb. Ele parecia em
rutura, pelo menos não se deixava ficar para o fim, no momento da saída,
nunca mais a convidara para a levar a casa. Nem se despediam com um
beijo. Devia estar baralhado, sem saber o que pensar sobre o estado da sua
relação. Ela também. Achava-o o mais atraente homem que conhecera, se
destacando do grupo por ter ideias, por se bater por elas, não como os
outros, se limitando a criticar e escarnecer de tudo e todos, mesmo daqueles
que os tinham feito ricos e mimados, sem uma ação, uma iniciativa
interessante para preencher o tempo da existência. Neste caso separava
também o casal Salomé e Alfredo, duas pessoas que como Kaleb faziam
coisas, e que nunca mais apareceram como casal mas cuja situação ela
recusava inquirir, por medo de ser remetida ao seu lugar de mulher vinda do
musseque ou da rua, sem direito portanto a entrar na intimidade dos eleitos.
Alfredo nunca mais tinha aparecido e se os outros discutiram o mambo, o
que parecia inevitável ao fim de certo tempo, não foi na presença dela,
Sofia. Quem disse, os casais foram inventados para se separarem? Devia ser
algum comentarista de televisão, não tinha estofo de sentença filosófica.
Um tremendo disparate no caso dos dois amigos, eles sempre se
entenderam bem e quando estavam juntos se adivinhava a química
existente. O mais comum era as pessoas profetizarem, eis um casal perfeito,
cientes de tudo, até das coisas do coração. Sofia tinha esperança de os
profetas terem razão e o desentendimento ser temporário.
Se fosse crente, rezaria por isso.
Deus faz deuses para os que neles não podem acreditar, pensamento dela.
Sem pretensões filosóficas.
15

Muitas coisas iam acontecendo na vida de Himba e Kassule, mas eles não
retinham tudo, apenas alguns aspetos mais relevantes. Seriam mesmo
relevantes? Ninguém manda na sua memória portanto é inútil selecionar o
que cada um nela enterra. Embora, muito depois, haja sempre quem diga,
perante uma atitude qualquer do protagonista, isso foi influenciado pelo
trauma que sofreu naquele dia. Os psicólogos clínicos são campeões desse
jogo.
Himba guardou bem no subconsciente o ataque de que foi vítima e do
qual se desembaraçou com uma pedrada fortemente aplicada na cabeça do
agressor? Tinha muitos pesadelos, mas vinham desse ataque, ou de todos os
outros? De um dia em que resvalou quando brincava com os irmãos na
beira do rio, caiu na água e imaginou num relance a mordidela de um
jacaré? Ou na emboscada em que caiu o camião transportando a família
para Luanda? Ou a primeira violação? Ou o pão que um miúdo lhe roubou
na praia? Ou aquela vez em que padre Adão foi duro para ela ao interpretar
mal uma frase inocente? Ou o desprezo na cara das pessoas quando
descobriam que fora uma menina de rua, ou de praia, melhor dizendo?
Tantas razões. Parecidas tinha Kassule, embora nunca revelasse sonhar
pesadelos e fosse alegre por natureza. Perdeu pai, mãe, até uma perna, no
entanto parecia gozar com benevolência a medíocre vida que tinha. Seria
mesmo medíocre? Como a considerava ele? Interrogações e mais
interrogações para o narrador.
Felizmente eles se interrogavam menos.
Himba estava a meio do curso, gostava mesmo dele e ia passando com
distinção. Kassule desenhava e pintava cada vez melhor, brincando sempre
que seria um artista, mas antes haveria de jogar futebol como Maradona, o
seu ídolo. Himba nunca sabia se Kassule falava a sério, se efabulava. Era
alto para os seus quinze anos e uma cara agradável, quase sempre
sorridente. Difícil distinguir nele quando algo lhe corria pior. Ela porém
sabia. Porque o sorriso não era o mesmo, havia um ricto qualquer no canto
da boca, ou então eram os olhos que brilhavam menos que o costume. Os
dois amigos se conheciam muito bem e desconseguiam de se enganar um ao
outro. Uma exceção: Himba conseguiu esconder dele o ataque a que tinha
sido sujeita na estrada para o lar. E até a dúvida morando em si para sempre
desde essa noite, por ter sido descoberto o corpo de um homem já em
decomposição, a pequena distância dali, num ximbeco miserável, três ou
quatro dias depois. O mujimbo chegou ao lar, teria sido assassinato, pelo
menos tinha um osso da cabeça metido para dentro, certamente provocado
por objeto contundente. Podia ser o mesmo tipo, que ainda teve força
suficiente para chegar ao seu refúgio, ou podia ser outro miserável. Havia
uma dúvida razoável, provocando em Himba um baque forte quando lhe
contaram, mas nunca teve certeza. Ou não quis descobrir. Nem perguntou
pormenores. Ela tinha usado o braço esquerdo para desferir a pancada,
acertando portanto no lado direito da cabeça do agressor. Mas nem inquiriu
para saber que parte da cabeça do homem encontrado tinha sido amolgada.
O desgraçado foi logo enterrado, dado o estado do corpo, a polícia
mergulhada em demasiados afazeres para tentar descobrir como morre um
vagabundo com um osso da cabeça metido para dentro. Sem detalhes,
Himba nunca poderia garantir, era aquele mesmo. No entanto, se tratava de
uma coincidência perturbante. Preferiu juntá-lo a Tobias, os dois numa zona
qualquer da sua memória a que preferia não aceder. Embora com Tobias o
feitiço não resultasse tão bem, pois à noite, deitada, muitas vezes sentia o
braço dele por cima do corpo, pensamento fazendo-a dormir em segurança.
Tobias a levava para a areia da praia.
Também escondeu de Kassule uma cena passada no Instituto, essa então
imprópria mesmo de ser contada. Encontrou uma certa dificuldade em
Economia Política, disciplina teórica cujo programa se falava em alterar
totalmente, pois era ainda inspirada no dos países socialistas colapsados
com os escombros do muro de Berlim. O diretor pedagógico do Instituto,
conhecido por tentar seduzir as jovens estudantes e colecionar conquistas
amorosas, era o professor dessa matéria. Usava sempre fato e gravata, com
um lencinho a condizer. Diziam, eram fatos caros, mas os alunos não
sabiam distinguir. E era muito improvável que conseguisse obter fatos
mesmo caros com o salário de professor. Mas se dizia isso e ninguém
negava. Teria outras fontes de rendimento. Devia passar bastante tempo
com o ferro quente a desfrisar o cabelo, mantendo-o em caracóis apertados
que provocavam a inveja dos colegas. Metade das moças estavam
apaixonadas por ele, no que deviam concorrer com algumas professoras
mais novas.
Já tinha lançado algumas piadas indiretas a Himba, com seus
prometedores dezassete anos. A prova final se aproximava e ela sentia estar
mal preparada, a única exceção em todas as disciplinas. Lhe aborrecia
estudar aquela matéria, de forma um pouco inexplicável, porque engolia
outras talvez mais aborrecidas. Seria do professor? O chumbo em Economia
Política era uma possibilidade que a deixava fora de si. Concebeu então um
plano. Começou a procurar os olhos do diretor pedagógico nas aulas, não
desviava os seus, sorria levemente, só então baixava os olhos, como
embaraçada. E debandava logo a seguir à aula. Ele bem a procurava pelos
corredores, mas ela tinha artes de se colar nas paredes. O homem passou a
estar mesmo muito interessado, gostava das moças esquivas. Nas vésperas
dos exames, ela bateu à porta do gabinete do professor. Este autorizou a
entrada e um sorriso rasgado lhe atravessou a face, ao ver quem o visitava.
– Senta-te. A que devo a honra da tua visita?
Himba sentou na cadeira à frente, muito direita. Que é que estou a fazer
aqui?, ainda se perguntou num último arrependimento. Mas precisava de ter
boa nota naquela disciplina e a vida era uma guerra, aprendera desde
sempre.
– Professor, tenho dificuldade na Economia Política e preciso de saber
duas ou três perguntas que vão ser feitas no exame.
Ele olhou-a diretamente, a estudar. Notou, o peito da moça arfava. E
como era pontiagudo aquele peito. Tanta promessa!
– Espera lá. Queres que te diga que perguntas vão sair na prova?
– Só duas ou três.
– Duas ou três ou todas é a mesma coisa. – Tirou um molho de chaves do
bolso e abriu uma gaveta. Mostrou uma folha de papel. – Vês? Está aqui a
prova que fiz. Mas não te digo nem uma das perguntas. Nem te entrego a
folha…
Até aí o plano estava a correr como ela pensara. Ainda melhor, pois não
imaginava que a prova até já estava feita.
– Não quero a folha, professor. Só uma fotocópia.
Ele riu do descaramento. Ela também se espantava com a sua ousadia,
mas manteve a cara fechada.
– E que ganho eu com isso?
– Não sei. O que o professor quer ganhar? Dinheiro não tenho.
Ele olhava para ela cheio de dúvidas. Demasiado direto, podia ser uma
armadilha. Sabia estar em vantagem, era o professor e, ainda mais, o diretor
pedagógico. E era bonito como homem, as mulheres rodopiavam à volta
dele. Já tinha percebido a atração que a moça sentia por ele. Não podia ser
armadilha nenhuma, ainda por cima vinda de uma ingénua como aquela,
nascida de certeza num mato qualquer. Ficou calmo. Voltou a pôr o papel na
gaveta mas sem a fechar.
– Tens alguma coisa para me dar?
– Sou pobre, vivo num lar fora da cidade. Não tenho nada para lhe dar…
Não devia ser ela a tomar a iniciativa, isso sabia. Se corresse mal, ela só
tinha pedido, mais nada, é crime pedir umas perguntas de um exame? É,
claro que é, mas menos grave do que propor o negócio em que os dois
estavam a pensar. Estariam a pensar no mesmo negócio? Subitamente o
diretor se decidiu e levantou da cadeira. Se postou ao lado dela, lhe tocou
na face, depois no pescoço, demorou aí a mão, hesitando. Era o passo
decisivo, a moça sabia, tremendo por dentro, mas aparentando firmeza de
granito preto. Muito lentamente, explorando, a mão deslizou para os seios.
Himba saltou da cadeira, representando muito bem a honra ofendida.
– Que está a fazer, professor? Haka! Não respeita as alunas?
O diretor ficou de braço no ar, parado, estupefacto, perante uma reação
tão inesperada. Não lhe ocorria nenhuma ideia. Respirou fundo, recuou,
com o braço estendido para a frente a pedir tréguas, por favor, ouve.
– Podemos fazer uma troca... Que dizes? Ficas com a prova e eu gozo o
que tens em baixo da saia por uma hora. Tenho o carro ali e podemos sair
sem que ninguém repare.
Ela olhou-o de frente, mantendo a posição de força. Um sorriso de
desprezo nos lábios.
– Por quem me toma? Alguma prostituta? Se volta a me tocar, eu grito. E
bem alto. Não imagina como consigo gritar alto.
O diretor pedagógico recuou para a secretária e as bagas de suor
ininterrupto surgiam na testa, apesar do ar condicionado.
– Que queres, afinal? – suspirou.
– Já lhe disse. Uma fotocópia dessa prova. E não pode mudar as
perguntas à última da hora.
– Se não te der a fotocópia?
– Grito. E tenho as confissões da Ivone, da Luísa, da Olga, e de mais
algumas, que o professor lhes fez coisas e promessas. Vai para a cadeia e
nunca mais pode pôr o pé numa escola.
– É chantagem, é crime.
– Crime já cometeu, apalpou as mamas de uma menor de idade.
Pedófilo!
Encurralado, olhou para a porta fechada, outro erro cometido. Os
professores não deviam receber moças no seu gabinete e manterem a porta
fechada, regra primeira de segurança. Ela percebeu o que estava por trás do
olhar dele.
– E nem pense em abrir a porta porque eu grito. Se sai de onde está, é só
para ir ali à fotocopiadora. Vá, faça a cópia, e o assunto fica resolvido.
Ele não tinha escapatória. Se dirigiu em passo pesado para a máquina, fez
a fotocópia e entregou-lha.
– Prometes ao menos que isto fica entre nós…
– Se não alterar as perguntas…
E ela saiu do gabinete, a tremer de medo, com a fotocópia bem guardada
no saco das aulas. A prova não foi alterada, foram outros os avaliadores,
Himba conseguiu nota elevada. Não o voltaria a ter como professor, por
isso iam ignorar-se até ao fim do curso dela. Não, esse segredo não contava
a Kassule nem a ninguém. O pedófilo continuou a atuar no seu gabinete?
Nunca soube nem lhe interessava. As outras que se safassem, cada um se
defende com as armas que possui, princípio escondido de Himba desde os
tempos da Ilha de Luanda. Só que nem sempre podia usar as armas.
É tudo uma questão de oportunidade.
De vez em quando ia espreitar o retrato dela feito pelo Kassule. Nos olhos
dela estava determinação? Estava, sem dúvida. Tinha também doçura. Ela
fora dura com o professor, nada de doçura, foi aliás isso que o atraiçoou, até
então devia pensar nela como uma aluna meiga, carente, apaixonada pelo
deus que se apresentava à sua frente, falando com palavras difíceis que
parecia dominar como o herói que era. Como poderia ele se imaginar na
posição de alvo? Deve ter sido uma grande deceção, se dizia ela, quando
pensava sobre o assunto. Não sentira remorsos e continuava na mesma.
Tinha de passar no ano e a disciplina era um escolho. Removeu o escolho.
Ainda por cima se tratando de um criminoso, um pedófilo, de que todos
falavam mas sem atuarem contra o prevaricador. Ela fez justiça. E lucrou
com a justiça. Nada tinha de se envergonhar, a vida era uma guerra, como
todos lhe diziam, e ela tinha aprendido nas circunstâncias mais difíceis. Ia
agora ter remorsos?
Remorsos são para os fracos, ela era uma lutadora.
Quanto a Kassule, teve uma boa prenda de Natal. Por insistência do padre
e de Radamel, lhe arranjaram a tão desejada prótese. Não das que eram
fabricadas ou adaptadas no país, pesadas e rígidas, mas uma importada,
moderna, articulável. O tamanho podia ser aumentado ou diminuído e até o
tamanho do pé, para poder calçar sapato esquerdo igual ao direito. Antes
nem pensara na questão do sapato, não o incomodava nada como fazer, pois
usava sempre chinelo. Queria poder andar, mesmo coxeando e com calçado
diferente. Mas agora, com um par de sapatos e calça, podia disfarçar a sua
deficiência. Se conseguisse a adaptação. A grande vantagem desta prótese é
que podia ser alongada para acompanhar o crescimento da perna incólume.
E ele prometia ter ainda muito para crescer. Também era muito leve e um
material de primeira, disse o arquiteto, impossível de quebrar. Ia três vezes
por semana ao Centro de Reabilitação para aprender a usar a perna.
Também a solidariedade entrou em jogo para isso, pois a Reabilitação
ficava no centro da cidade e era preciso pagar os bilhetes de candongueiro.
Usaram o fundo de Himba, pedindo um reforço suplementar, como já o
tinham usado para outras emergências do género. O número de apoiantes
tinha aumentado, o lar gozava de alta reputação e alguns governantes
aproveitavam para melhorar a imagem pessoal com alguma doação especial
e muitos jornalistas a cobrirem o espetáculo da oferta. Kassule acabou,
portanto, por se habituar à prótese. Doía muito de manhã, quando a
colocava, se queixava a Himba, mas só a ela. Depois diminuía.
– A dor vai passar, é o que eles dizem. Também no sovaco me doía muito
a muleta, depois ficou calo e deixou de doer.
Meses, anos? Demoraria. Ia, no entanto, vencer essa batalha, dizia Himba
e ele acreditava.
– Imagina, um dia vou poder correr. Ainda não tento, falta o equilíbrio.
Uns saltinhos só…
Ela batia palmas, animando.
– E até vais jogar futebol… Não é o que dizes sempre?
– Bem, isso é mesmo só no gozo. Sei, nunca poderei jogar futebol…
– Porque não? Explica, Kassule. Porque não?
Uma esperança maluca entrava nele, esperança tão maluca como as ideias
que aquela irmã mais velha por vezes lhe incutia.
– Porque não? – murmurava Kassule. – Podia rematar com a perna boa, a
outra a servir de apoio. Questão de treino.
Já tinha havido milagres maiores.
Demorou meses a se adaptar, porém disfarçava as dores e ia para a escola
com a prótese, calças e sapatos. Já não era um rapazinho, agora mais
parecia um adolescente que coxeava. As pessoas iam deixando de o ver
como uma pessoa a quem faltava um órgão, apenas alguém que, por um
qualquer acidente, ficara com uma lesão um pouco grave, e coxeava. De
sorriso nos lábios.
Estava decidido a não seguir os estudos normais, ficava com a oitava
classe, que tinha completado. Queria ser pintor e portanto prosseguiria
buscas nessa linha, mesmo se de maneira menos formal. Havia cursos
irregulares, encontros de jovens artistas, onde se podia aprender alguma
coisa. Não precisava saber escrever melhor nem conhecer a estrutura da
matéria ou os pensamentos de um rato quando lhe apresentam um pedaço
de queijo. Acreditava serem coisas interessantes para outros, mas não para
ele. Odiava Matemática, tão amada por Job, o qual, infelizmente, nunca
seguiria para um curso superior, casado e com um bebé, o que acarretava
responsabilidades. Estava bem no emprego arranjado pelo senhor David
numa empresa com sede em Benguela e um ramo em Luanda, apoiava o lar
do padre no fim de semana, se sentia feliz com a família em crescimento,
mas seria difícil conseguir manter isso tudo e estudar.
Na vida, tem de se saber deixar alguma coisa para trás.
Ele nunca abandonaria a pintura, nem se voltasse de novo a passar fome.
Admitia que no princípio do próximo ano escolar, percebendo que ele não
se queria matricular, o padre Adão talvez lhe dissesse, está na hora de
arranjares outro alojamento. Pensamento assustador. Tão assustador que
nem a Himba o revelava. Mas depois acalmava, não, o padre os aceitou sem
obrigação de estudarem, enfim, estava pressuposto mas não era
absolutamente obrigatório, eles é que queriam, pois havia outras crianças
que nunca quiseram estudar, sempre a fugirem da escola. Só tinha quinze
anos e o padre não ia pô-lo na rua. Para compensar, trabalharia no lar, havia
sempre muita coisa a fazer e ele tinha jeito para pintar paredes ou consertar
mobílias, com isso justificava a permanência, pelo menos até aos dezoito
anos, a maioridade. Outros tinham medo dessa idade, significava ida
obrigatória para a guerra, muitos amigos dele desapareciam na altura. Ele
não tinha de se preocupar, já tivera o seu ferimento, gozava consigo próprio,
só faltara a medalha. Por vezes gozava também com os amigos, vocês não
sabem o que é guerra, eu sou um antigo combatente e ainda por cima
mutilado de guerra. Os outros faziam uma careta incrédula, não
respondiam, ele trazia no corpo as provas, dizer mais o quê?
A paixão pelo desenho e pintura levava-o a ficar horas a admirar livros de
arte que os kambas emprestavam, ia conhecendo os nomes dos pintores
famosos, estrangeiros e nacionais, estudando as fotografias dos quadros de
diferentes escolas e épocas, se interessava pela história do tema, mas
também apreciava muito a escultura, sobretudo a clássica africana. Radamel
um dia lhe deu uma fotografia de uma máscara tchokuê, uma Muana Puó,
quer dizer a mulher-menina, observa o que é beleza, e ele viu, para lá das
linhas esculpidas da face bela da moça, um mundo inteiro, ovalidades
dentro do oval do rosto, dramas, sonhos, fascínio. Encontrou máscaras
parecidas em feiras de artesanato e em lojas, era um dos ícones maiores da
arte do Leste do país e do vizinho Congo, mas nenhuma tinha o enlevo
daquela fotografada num museu belga, para onde a máscara fora levada há
muitos anos. Nela não havia cor, era negra como o modelo e a cor da
madeira, ébano, mas afinal a cor não era tudo na arte, sem ela se podia
pintar um universo de sensações. Quando Himba lhe perguntou o que via
naquela Muana Puó para ficar horas longe da vida, mirando, ele só disse
beleza, beleza pura, total. Não sei explicar, só sinto, esta máscara faz-me
vibrar, é o mundo, olha, olha para o meu braço, a pele está toda arrepiada,
assim fico quando tenho vontade de chorar, chorar de alegria, de prazer.
Por vezes acontecia a ver o mar calmo da Ilha.
O jovem não desfitava a foto e ela achava estranho, mas ao mesmo tempo
se sentia contente por perceber o embevecimento dele. Uma alma sensível,
procurando, não o sentido da vida em si, mas o sentido da vida na beleza do
mundo. Para lá da desagregação do mundo, ou nessa mesma desagregação,
ele descobria encanto, era um quase milagre.
Tinha mudado muito. Quem hoje estudasse Kassule, não encontraria o
menino astuto e desenrascado da praia, quando ela o conheceu, sabendo
muitas coisas, inventando o que ignorava, sempre porém com uma solução
para um problema. Bem, nem sempre tinha soluções, ninguém as tem, mas
se movimentava na rua com um sentido da oportunidade que era fora do
comum na idade dele. Já era muito curioso, perguntava sobre tudo, olhava e
voltava a olhar algo despertando a sua atenção, sim, essa curiosidade o
perseguia. No entanto, agora se tornara mais pensativo, virado para dentro,
ao mesmo tempo que observava as particularidades das coisas que todos
viam mas nem reparavam. Não só as estudava, como as reproduzia. E o que
ele reproduzia tinha uma ideia, uma mensagem, não eram imagens mudas,
mesmo se belas. Kassule se fartava de falar através das pessoas que
desenhava ou dos bichos que pintava. Tinha acontecido primeiro com o
desenho que fez de Himba. Ela se revia naquele desenho, era sempre ela,
quer estivesse orgulhosa de alguma vitória, quer se sentisse envergonhada
por algum ato menos digno que cometera, o orgulho e o remorso ao mesmo
tempo. Um único retrato, escondido na gaveta de uma cómoda, podia
refletir estados de espírito tão opostos? Sabia, era a sua própria consciência
a se rever no retrato. Mas quantos seriam capazes de criar uma obra que
provocasse tais sentimentos dissonantes? Deviam ser muito bons, muito
verdadeiros. Ideia que por vezes lhe causava algum medo, ao desenhar uma
pessoa ele entrava na alma dessa pessoa, via o modelo tal como era? Ou era
o modelo a se ver apenas como queria, a dado momento? No fundo, voltava
sempre ao tema de ficar sem saber quão bem Kassule a despia ao desenhá-
la. Podia esconder algum segredo, algum defeito, se para ele posasse?
Mesmo sem posar, se ele apenas a imaginasse e a recriasse com o lápis e o
papel?
Jogo muito perigoso para quem oculta a cor da alma.
***O pai de Patrício voltou a ser nomeado ministro. Já tinha sido muitos
anos antes, o que lhe proporcionou a maior parte da sua fortuna, se
fôssemos acreditar nas más-línguas, o que todos na realidade fazemos. Os
amigos de Patrício eram os primeiros a defender essa origem pouco digna
da riqueza paterna, na qual ele se lambuzava com prazer evidente. Desta
vez a situação era complicada, pois mandavam os protocolos que o país
tinha assinado no quadro da região pugnar pela transparência nos negócios
e boa governação. O que implicava uma rápida substituição de nome do
titular nas empresas de alguém que fosse nomeado para o governo. Patrício,
na tarde mesma da nomeação, foi empossado como administrador e sócio
principal de muitos dos negócios paternos, alguns outros passando para um
tio ou irmão. Convidou os amigos para o jantar e até Alfredo, ultimamente
muito arredio, recebeu telefonema dele, sei que estás em Luanda, faz o
favor de vir comemorar comigo a minha ascensão aos cargos de Presidente
do Conselho de Administração de algumas companhias e Diretor-Geral de
outras, o que é uma grande chatice, portanto pelo menos hoje quero ter
todos os amigos comigo para em conjunto solidário chorarmos a perda de
tempo que vou ter a gerir as ditas cujas empresas da túji.
Jantar de trinta pessoas, encomendado às cinco da tarde para começar às
nove da noite. Sofia já tinha treino, não entrou em pânico, reuniu o pessoal,
vamos reservar aquela parte toda da sala, preparem tantas doses disto mais
tantas daquilo, ela conhecia os gostos, preveniu por precaução quarenta
refeições e foi limpar as garrafas correspondentes que seriam derrotadas no
jantar de comemoração. Tinha sentimentos divididos: por um lado, ficava
contente por um amigo ter oportunidade de aplicar ao mais alto nível o
curso e mestrado de gestão de empresas que tinha feito nos Estados Unidos,
sem nunca ter praticado nem como ajudante de um diretor qualquer. Por
outro lado, percebia a injustiça da coisa, pois não seria Patrício a trabalhar,
ele ia se limitar a aparecer de vez em quando na sede do grupo de empresas,
onde ficaria com o gabinete que antes o pai ocupara para se refastelar
nalguma poltrona mais confortável, telefonando aos amigos ou clicando
numa rede social sobre fofocas, enquanto uma série de estrangeiros com
muitos títulos e fraca experiência iam gerindo as empresas, combinando
contratos com o ministério do pai, sem concursos públicos nem
concorrentes, por vezes desviando para as suas próprias contas as comissões
dos negócios, outras pondo nos depósitos offshore do novel ministro ou de
algum familiar muito próximo. Patrício não ia controlar nada, pois era
apenas um bom e simpático rapaz com propensão para despesas luxuosas e
inúteis.
Se esmerou na preparação do jantar, talvez o pai dele aparecesse lá para o
meio, lhe confidenciou ao telefone Patrício, pelo menos ia tentar convencê-
lo, o que seria excelente para ela, nunca nenhum ministro se tinha dignado
entrar no restaurante, por dois minutos que fosse. Já tinha estado perto de
gente importante, os seus amigos de certa forma eram, mas nunca tinha
cheirado diretamente o perfume ligado ao poder. Através de Patrício ia
acontecer.
Os clientes habituais encheram a parte não reservada e outros mais
atrasados já não conseguiam entrar. Ela pedia desculpa, uma reserva de há
uns tempos para um grupo numeroso, institucional, frisava a palavra para
perceberem que ela não poderia recusar, mas contava com os fregueses para
a segunda mesa ou então num dos próximos dias. A notícia correria por
aquela área da cidade, para se ir jantar no restaurante da Mamã Ester agora
era preciso reservar mesa ou ir muito cedo, estava sempre cheio.
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Os do grupo foram chegando e Patrício não foi dos primeiros, nunca era.
A nomeação do pai não o faria mudar os hábitos. Mesmo para um jantar de
sua iniciativa.
Chegou Jared e Abigail, juntos, com ar apaixonado. Depois Salomé,
sozinha, depois Solferino com nova amiga, depois Segismundo e Tiago,
mais tarde ainda Alfredo, o qual ignorou Salomé e se sentou perto de
Abdias, cumprimentando todos em geral e sem olhar para a ex-mulher,
confirmando a separação de forma pública, o que também já deixara de ser
novidade. Havia no grupo umas pessoas desconhecidas de Sofia e os
restantes membros habituais da tribo, sendo o novo grande empresário um
dos últimos a aparecer, mas já com os copos e falando muito alto, arrotando
autoridade emprestada. A mesa foi pequena para os que se juntavam a eles
e Sofia providenciou uma fora de uso por ter uma perna muito insegura,
mas lá veio a mesa e cadeiras diferentes, o que ninguém notou, até porque
estavam mais interessados em esvaziar os copos com os aperitivos e provar
os quitutes que ela mandara preparar durante o fim de tarde, quitutes da
terra com jinguba, mandioca, gengibre, milho, açúcar e jindungo,
misturados com pastéis e salgados de proveniência europeia de muita
variedade, o que por si só seria uma refeição, mas se apresentavam como
entradinhas para puxar as bebidas. De maneira que ninguém notou a
periclitância da mesa acrescentada, tendo no entanto Sofia avisado os que a
ela se sentaram para terem alguma prudência no jogo de cotovelos, pois
uma pressão mais forte podia provocar um desastre. Patrício falou em trinta
pessoas mas apareceram mais e se o senhor ministro viesse com o seu
séquito, claro, ministro nunca anda sozinho, então a situação se tornaria
catastrófica, ou como dizia um antigo combatente, empírica.
Uma conversa muito animada se passava com o agora verboso Abdias,
nas suas vestes de jurista sem casos, o qual se embebedara mais cedo do
que era habitual e insistia com Patrício sobre o que todos suspeitavam mas
não ousavam deitar para fora:
– Não podes fazer essa jogada, meu. Tens mesmo de controlar muito bem
os contratos, sabes que existe um Tribunal de Contas que vai estar atento, é
um conflito de interesses… Como fazer negócios com o ministério do teu
pai? Todo o mundo vai falar.
Perante o desinteresse de Patrício, ele insistia:
– Podes dizer que a empresa do teu grupo tem autonomia e que ninguém
tem culpa que o ministro contratante seja teu pai, mas o que sempre foi feito
agora cai mal na opinião pública…
Grande gargalhada dos amigos a acompanhar a eloquência do
pseudojurista.
– Alguém quer saber da opinião pública? – perguntou Solferino, com
lágrimas nos olhos de tanto rir.
Uma senhora acrescentou:
– Ainda se fosse o Conselho de Segurança…
Mais gargalhadas.
– Qual deles, o da ONU ou o nosso? – perguntou Jared, o homem das
Relações Internacionais.
Novo riso histérico. Depois pouco se entendia, pois falavam e riam todos
ao mesmo tempo, cada um querendo ser mais divertido que o parceiro do
lado. Sofia acompanhava com dificuldade as piadas, estava muito afastada,
embora atenta à mesa em U, não fosse faltar alguma coisa. Começavam a
servir os pratos principais e ela queria ouvir as opiniões, sobretudo das
pessoas que vinham pela primeira vez. Dos outros já conhecia os gostos e
dizeres, variavam pouco.
A ausência de Kaleb lhe chamara a atenção. Por demais evidente aos seus
olhos. Podia estar fora de Luanda, ter surgido algum trabalho, o qual faltava
ultimamente como o próprio lhe tinha dito e repetido várias vezes. Quem
sabe viajou? Não tinham compromisso, mas ele avisaria se se ausentasse
por um período de tempo, achava ela. Afinal havia entre eles um pouco
mais do que amizade, embora sem hipótese de avançar muito, por vontade
dela. Andava chateado com as barreiras impostas ao relacionamento, claro,
mas não lhe faria a ofensa de viajar sem a prevenir, não, isso não era
próprio de Kaleb. Tarde demais, já não viria ao jantar. Dor no peito. Sem
importância, disse a si mesma, já passa. No entanto, não passava. Era
mesmo sentimento de ausência, saudade. Tinha dificuldade em reconhecer,
mas a saudade estava lá incrustada, como sempre, saudade de muita coisa
que devia ter ocorrido e não aconteceu, muita gente que foi e não se sabe
para onde, na voracidade da vida citadina da grande leoa. Gostaria muito de
ter cruzado os olhos com Kaleb, de ver aquele sorriso escondido nos lábios
cuja destinatária só ela reconheceria.
Nem Kaleb apareceu nem o novo ministro. Patrício olhava muitas vezes
para a porta, expectante. Em vão. Ainda não seria hoje que exibiria o pai, o
seu máximo ídolo, à curiosidade dos amigos, embora todos o conhecessem.
Não na intimidade de uma conversa informal, no meio de copos, o velho se
resguardava um pouco das armadilhas sempre preparadas pelas selfies e
respetiva divulgação por tudo que fosse rede social. Macaco velho com
calos no rabo, o seu pai. Teve de responder a nova arremetida de Abdias
sobre o assunto chato da incompatibilidade de uma companhia de um filho
estabelecer contrato com o ministério de que o pai fosse responsável. Ou
vice-versa:
– Não me lixes, meu. Eu ainda nem conheço o nome das empresas, só de
algumas, de ouvir por acaso o velho falar com os amigos… Não faço a
mínima ideia de qual a sua atividade. E já me vens com conselhos e
restrições sobre o que elas devem fazer e evitar. Não achas isso um bocado
boêlo e a despropósito? É mesmo muito. Vá, bebe mais um copo, que
viemos cá para isso.
Recebeu palmas dos ouvintes. Estavam ali todos para festejar novas
oportunidades e pretexto para encontros, farras, bacanais, não para se
enredarem nos meandros dos negócios da velha guarda e suas leis
incompreensíveis, coisas chatas que para poucos eram sagradas.
– Ainda por cima vindo de ti – disse Segismundo. – Já esqueceste de
como o teu papá enriqueceu? Alguns de nós ouviram uns segredos gritados
pelas casas e nem todos esqueceram tudo…
Abdias se virou para o agressor cheio de vontade de responder com
violência. Mas lhe saiu uma voz pouco convincente:
– Não vamos mexer na merda uns dos outros, OK? Eu nem sei dessas
coisas, nem o meu pai me pôs ao corrente dos seus negócios… Até podia,
sou da área do Direito.
– Se é para mostrar que és um brilhante jurista que estás aí a chatear o
Patrício, te saiu o tiro pela culatra – gritou uma dama de vestido amarelo
brilhante, parecido ao das princesas de banda desenhada. Só lhe faltava o
grande medalhão da sorte.
Ainda por cima a frase foi proferida num momento em que Sofia se tinha
aproximado por outra razão da mesa e forçosamente ouviu. A frase
assassina fez Abdias se calar de vez, para sossego de Patrício. Sossego
permanente por esse lado, mas desilusão pela ausência paterna. Também
permanente.
Os outros clientes foram abandonando o restaurante até por fim a sala
ficar só com a grande mesa ocupada, onde se amontoavam as garrafas de
todos os álcoois do planeta. Sofia perguntou a Patrício se algumas garrafas
vazias podiam ser retiradas e ele aquiesceu, era mesmo melhor trazer mais
cheias. Estavam no momento do champanhe para o brinde, quando ele fez
sinal à dona da casa para se aproximar, um brinde primeiro a quem nos
recebe tão bem e com tão boa comida, todos batendo os cálices, também
Sofia. A partir dessa altura ela ficou por ali, mas desta vez de pé, pois a
mesa era grande demais e devia se aproximar de um ponto ou outro para
poder inspecionar o trabalho do pessoal. Lhes tinha prevenido, esta noite
ficam a servir mais tempo, é especial, depois compenso. Dispensou os
trabalhadores da cozinha, havia sobremesas e gelados suficientes para o
resto do jantar, agora só as bebidas contavam e um ou outro café ou chá,
incumbência que o pessoal de sala podia resolver.
Tinha decidido antes, romperia o princípio de fechar a porta à meia-noite,
era uma ocasião especial, não é todos os dias que um dos nossos tem o pai
nomeado ministro.
– Já encomendei um – quase gritou Segismundo, o poeta.
Sofia pensou que ele falava para ela, reclamando de atraso no serviço. Se
aproximou e depois percebeu, falavam entre eles de outro assunto qualquer.
– Um puto é fixe – disse Tiago. – Eu que o diga. Todos os meses brinco
com ele. O azar é a mãe, não escolhi muito bem.
Sofia percebeu o tema. Eram conhecidas as queixas de Tiago em relação
à mãe do filho dele, devia estar com três anos agora. Se lembrava de ele
confessar no ano passado que até teve vergonha de a levar a casa para a
apresentar aos pais. Uma ordinária, tinha sido a sua expressão final. Fora
mesmo obrigado, tinha de mostrar a mãe do primeiro neto dos pais dele e
não podia levar a criança sozinha, como se fosse uma abandonada. Os pais
gostaram muito do mona, lhe descobriam parecenças com ambos, mas
depois lhe ralharam a sós como a uma criança, que raio de mulher
escolheste para lhe fazer um filho, foi a primeira e última vez que essa
senhora entrou aqui em casa, proibição que ele cumpria com prazer. A bem
da verdade, só a via quando ia brincar com o filho durante meia hora, lhe
deixando um bom presente, e depois desaparecia durante um mês. Por
exigência da mãe de Tiago, regularmente ele fazia um depósito bancário
para as despesas da criança. Uma soma a seu ver exagerada com a qual a
«ordinária» vivia na melhor…
– Mas afinal encomendaste com quem, Segismundo? – perguntou uma
senhora.
– Ora, uma por aí. Não interessa, a criança é que conta.
– Deve ser como a mãe do meu canuco – disse Tiago.
– Não é chata, nem interesseira, parece… Só que foi uma relação pouco
séria, de curta duração… Ela ficou grávida… Que se lixe, está
encomendado e pronto!
– Tens a certeza que é teu? – perguntou a senhora.
– Certeza, certeza, alguém a tem? Agora há os testes, é mais seguro. Mas
acho mesmo que é, não é bandida, só que…
– Ao menos é bonita? – perguntou o homem que estava ao lado da
senhora.
– Isso é, sem dúvida – disse Segismundo.
– É o que interessa – voltou a falar o homem, cismando com o copo nas
mãos.
A mulher lhe mandou um olhar rancoroso, então só a beleza conta? A
reação da esposa levou o senhor a pensar baixo, se a mãe é bonita o filho
tem possibilidades de também ser. Desviou o mambo:
– Menino ou menina?
– Ainda não se sabe. Queria que fosse miúdo, mas…
– Já há mulheres a mais nesta terra, não é? – perguntou Jared do outro
lado da mesa.
Todos os próximos riram. Senhoras inclusive.
– Nunca são demais – disse Solferino.
Dada a distância a que Solferino se encontrava, no meio do zoar de tantas
vozes, Sofia se espantou, como pôde ele seguir a conversa? Ouvidos de
tuberculoso, como diziam? Ou entendeu apenas a fala de Jared, mais perto
dele e se intrometeu na conversa, para agrado das damas. Solferino era
muito atencioso para as mulheres e tinha um enxame delas sempre à volta.
Não nessa noite, em que a estrela era Patrício.
Sofia mudou de posição e se aproximou de Salomé. Lhe segredou ao
ouvido:
– Estranho Kaleb não ter aparecido para uma comemoração do amigo do
peito. Sabes dele?
Salomé se virou, os olhos a brilhar de forma anormal, parecia liambada.
– Porque é que haveria de saber, não me dizes?... Já agora, por acaso até
sei. Ele não te disse?... Tem um irmão muito doente, foi visitá-lo à África
do Sul.
Havia muita violência controlada na fala dela. Ele não te disse?
Acusação? Como se Sofia e Kaleb fossem confidentes para tudo, o que era
injusto. Nem sabia existir um irmão na África do Sul.
Sofia percebeu na dureza dela. Salomé a acusava de alguma coisa, fruto
de intriga ou má interpretação, só podia. Sofia tinha o seu orgulho, não ia
perguntar o que lhe mexia com os kalundús, que se lixe, menina mimada!
Percebeu uma coisa porém, isso era certo, tinha perdido Salomé. Antes
perdera Kaleb, também de forma pouco explícita.
As perdas começavam a contar.
O resto da noitada foi um fardo difícil de suportar. Embora tivesse dado
bué de lucro.
No fundo, não era o que importava?
16

Era o ano de 2002.


A anunciada chegou como a chuva no Planalto.
Só avisos leves, nada de barulhos certos, apenas rumores. Como as
nuvens esparsas e sons abafados de trovoadas longínquas, cinco minutos
antes de uma mansa tempestade.
A paz desdobrou sua manta sobre o país.
Os inimigos se abraçaram, a reconciliação foi proclamada, as armas se
calaram de forma definitiva, ao que parecia. E as pessoas voltaram a sonhar.
Nem julgavam já isso provável. Algumas, pelo menos, acreditavam na
possibilidade, porque otimistas existem sempre em toda a parte, mesmo em
minoria. Logo se começou a falar de reunião das famílias separadas, muitas
delas até nas ideias e nas ambições, outras apenas pela distância ou o
desconhecimento. Foi criado um programa oficial para o reencontro das
famílias. Ia resultando.
Himba se apresentou, mostraram a cara dela na televisão, em todos os
jornais, jovem procura família, e havia os dados todos, nomes, idade, sítio
de nascimento. Kassule encolheu os ombros, não aceitou fazer o que os
companheiros do lar empreenderam. Para quê?, ele sabia que não ia
encontrar familiares porque simplesmente não os havia, o que não era
verdade, lhe contrapunham, tens tios, talvez avós, primos de certeza, a
família africana é sempre bastante extensa, alguém sobrou. O rapaz
resolveu o problema há muito, acabara com esse tipo de laços sentimentais.
Não aceitou participar. Mais tarde, quando se percebeu que o apelo dela não
fora ouvido, dizia ele, vês como eu tinha razão, Himba? Criaste ilusões,
sim, outros encontraram parentes, mas a ti ninguém respondeu, valeu a pena
acreditares no impossível?
– Outros encontraram, disseste bem. Eu não. Mas isso não quer dizer que
tiveste razão ao recusar tentar. Foste medroso, não arriscaste a desilusão que
tenho agora.
– Medroso nada. Haka! O meu pai morreu, a minha mãe morreu. Ainda
não tinha irmãos, além da Sofia, que desapareceu e não pode estar viva,
senão me procurava, sabia onde me encontrar. O que me interessam os
outros parentes, tão afastados? Talvez um dia, mas agora não contam. Só
isso.
– Tive pouca sorte até agora. No entanto, não desisti. Estive a guardar
dinheiro para a viagem. Vou ao município descobrir. Já se pode circular,
dizem.
Himba estava prestes a concluir o curso médio de contabilidade e gestão.
Desde o ano anterior trabalhava a meio tempo em modesta loja de roupa
numa rua paralela à do lar, tendo dispensado o fundo criado para o apoio
dos seus estudos, o qual foi desviado a outros necessitados. Ganhava um
pequeno salário na loja mas chegava para os extras, pois tinha assegurada
comida e dormida no lar. Por pouco tempo. Logo que acabasse o curso,
procuraria outro emprego e um alojamento. E levaria Kassule consigo,
claro. Mas nunca tinha dito nada ao amigo sobre estes planos, podiam as
coisas correr mal e era depois uma tristeza maior. Segredo dos muitos que
ela ciosamente guardava, uns para serem revelados no devido tempo, outros
fechados para a eternidade.
Kassule não tentou demovê-la da viagem. Afinal seria bom para ela, teria
a certeza de uma vez por todas. O padre Adão também concordou, deves
mesmo ir, se for preciso alguma coisa… mas ela dissuadiu-o, não preciso,
obrigada, só quero a sua bênção. Vou rezar muito para que encontres as
respostas à tua angústia, minha filha. Irás sempre com Deus, eu sei.
Esse era outro grande segredo de Himba. Embora frequentasse a missa
todos os domingos, há muito deixara de acreditar nos dogmas da Igreja.
Dessa ou de qualquer outra. A fé numa divindade tinha sumido do seu
cérebro. Simplesmente, como quem acorda de um sono tranquilo
transformado numa barata monstruosa. Talvez desde que deixara a Ilha,
talvez momentos antes. Dizia com frequência a si própria que se existisse
um deus tão poderoso como as religiões afirmavam, então não consentiria
nas desgraças que ela vira e algumas sofrera na sua curta vida. Não era
possível um ser tão insensível, ainda por cima num mundo criado por ele
próprio. A fé era um logro, quem a sentisse só queria ser enganado. Então,
virou o feitiço contra o feiticeiro, enganou todos, fingiu crença, só não se
confessava porque tinha vergonha de mentir com descaramento ao pedir um
perdão para aquilo que não seria perdoado, apenas porque inexistia o
perdoador. Não escondeu de Kassule a ausência da confissão, eles entravam
e saíam juntos da igreja. Dizia, uma verdadeira seca, o padre é só uma
pessoa como outra qualquer, para quê lhe contar coisas vergonhosas? Ele
concordava e rematava, então podíamos nos confessar a Radamel ou à
senhora boa das trancinhas, seria a mesma coisa. E ela dizia, vês que tens
razão?
Partiu para o município. Foi uma viagem complicada, demorada,
incómoda, de dias, porque as pontes tinham sido todas destruídas e as
estradas estavam impraticáveis. Também eram raros os carros arriscando
minas enterradas e outros tipos de avarias. Mas chegou lá e reconheceu os
cheiros, os sons, os morros, a cor do capim. Não havia casas novas e grande
parte das existentes estavam até em escombros. A guerra tinha sido
destruidora. A administração já não era no mesmo sítio, da antiga
construção sobravam dois muros partidos e entulho. A igreja estava de pé,
embora sem uma das paredes e com um grande buraco no teto. A escola
onde o pai ensinava e ela aprendera as primeiras letras também se tornara
uma ruína. O hospital, reduzido a metade, ainda funcionava, lhe disseram.
E, ao passar, ela viu um enfermeiro. Avançou para a casa onde nascera e
sentiu muita dor, pois era um terreno vazio, com alguns tijolos no chão. Não
reconhecia ninguém nas ruas. No entanto, havia gente. Aspeto de
camponeses meio perdidos entre ruínas. Eram refugiados que preferiam
viver nas cubatas que construíram nas periferias e vinham para o centro da
vila à procura de alguma coisa. Kazumbis olhando para todos os restos com
atenção. Procuravam comida? Devia ser. Atravessou a povoação,
percorrendo toda a rua principal. Ninguém a chamou, o que era natural,
saíra dali menina e agora tinha quase vinte anos, quem ia mesmo
reconhecê-la? Visitou lugares onde tinham morado pessoas conhecidas,
amigos dos pais, mas nada. Ou não existiam as casas, ou aparecia outra
gente, ocupante de oportunidade, com o olhar característico de quem teme
ser desalojado pelo legítimo proprietário, ressuscitado dos mortos. Esgares
fugitivos e ao mesmo tempo arreganhadores de medo. Se sentiu perdida e
sentou em cima de uma pedra larga no antigo jardim do centro,
irreconhecível. No seu tempo havia bancos e sombras, até uma pequena
piscina onde nadavam e brincavam. Agora sombras imperavam, embora
houvesse menos árvores, muitas abatidas para aproveitarem a lenha. Mas
não sobraram os bancos de jardim. E desconseguia de descortinar onde fora
a piscina, talvez naquele monte de escombros e lixo que se avistava dali.
Sim, aquele monte tinha sido a piscina onde aprendera a nadar. E o rio?
Não, esse ninguém levou, o rio estaria no lugar de sempre. Mais tarde iria
comprovar, porque na sua desorientação nem nisso acreditava realmente.
Sentada na pedra, recordando os tempos da infância, procurou solução
para o início da busca. Ou indago sobre alguém da igreja, deve haver padre
ou sacristão, ou vou descobrir a administração, sei, disseram, ainda existe
um administrador municipal. É só perguntar onde fica, tudo tão perto
afinal.
Umas crianças olharam com estranheza quando ela perguntou pela
administração. E apontaram para o edifício da esquina, onde antes morava o
veterinário, lembrava bem. Lá chegada, viu de facto um letreiro indicando
ser ali a sede da administração municipal. Hesitou, mas depois puxou dos
galões de filha da terra e entrou, sem pedir licença. Havia um porteiro ou
guarda, que nem lhe ia perguntar o que queria e deve ter ficado admirado
por ela lhe dar explicação desnecessária.
– Vim de Luanda para falar com o senhor administrador.
O porteiro ou guarda sorriu, solícito. Quem vem de Luanda é importante.
Ainda por cima bem vestida, talvez tenha pensado o funcionário, a gente da
terra usava remendos e farrapos. Himba leu os pensamentos nos olhos do
indivíduo. Com uma espécie de vénia, ele juntou as duas mãos e apontou
para uma porta. Se adiantou e bateu, abrindo-a de seguida.
– Tem aqui uma senhora de Luanda para falar com o sô administrador.
Ela não ouviu a resposta, entrou. Um homem estava sentado a uma
secretária, com alguns papéis à frente. Poucos. Imaginava as autoridades
sempre atulhadas em pilhas de papéis e por isso se admirou. Não havia
livros na estante de uma parede, algumas pastas de arquivo apenas. Mas
mais admirada ficou por reconhecer o homem. Era o mesmo administrador
de quando ela saíra do município. Finalmente, alguém conhecido, amigo
dos pais, as famílias se visitavam, comiam juntos muitas vezes. Sorriu. De
pura felicidade. O outro estranhou.
– Conhecemo-nos?
Ela afirmou que sim, mas fora há muito tempo. E falou dos pais, o
professor e a enfermeira. Uma sombra nos olhos do outro indicou a Himba
o pior. Ele pediu para ela se sentar, dispensou o porteiro, lamentou o que
tinha acontecido à família.
– Então tu sempre sobreviveste? Sim, lembro-me, eras a mais velha, a boa
estudante…
Himba ganhou coragem para lhe pedir que contasse os pormenores
conhecidos, não sabia nada do que se passara com os pais e irmãos,
resumidamente falou do ataque, da fuga dela e de como se perdera. A
última esperança de saber alguma coisa era mesmo vir ao município e por
isso fez a viagem de Luanda.
– Soubemos do ataque aqui no dia seguinte – disse o administrador,
homem baixo e magro, com ar bem mais desgastado do que ela lembrava. –
Duas pessoas viram ou ouviram o que passou e mandaram um estafeta
contar. Era muito longe, naquela altura. Fomos com alguns populares que
ainda tinham um carro. O meu, o da administração, já tinha sido destruído,
caindo numa mina, não sei se te lembras disso. Eles não atacaram o
município logo, não era uma prioridade, só nos cortaram das outras terras,
tomaram conta das estradas. Portanto fomos lá e o camião estava todo
queimado. Trouxemos os corpos das pessoas, alguns muito carbonizados,
foi demasiado trabalho para tão pouca gente… Várias viagens, muito
medo… Fizemos um enterro digno. Conseguimos identificar os corpos de
alguns, de outros não. Mas sabíamos quantos tinham saído daqui e
verificámos que faltavam três corpos, o de uma menina, tu, sei agora, e de
dois homens. Um deles encontrámos quando voltámos lá, no dia seguinte,
estava afastado da estrada. O outro não sabemos quem é, nunca se
manifestou.
– Um deles gritou para mim, para eu correr sem olhar para trás. Lembro.
– Salvou-te a vida. Talvez.
– No momento pensei que era o meu pai.
– Não era. O teu pai foi identificado. Depois te levo ao cemitério
improvisado que temos agora. Se quiseres…
Himba soube mais tarde, ao almoço na casa do administrador, que ele
tinha saído da vila só quando ela foi atacada. Pensava todos os dias em
retirar mas depois dizia, amanhã parto, aguento ainda mais um bocado.
Assistiu à degradação de todos os serviços, incapacitado de fazer alguma
coisa, estavam cercados, sem apoio de lado nenhum. Aumentou o número
de refugiados que se aconchegavam à vila, erguendo cubatas, fazendo
lavras, abatendo árvores. Ele deixava, como podia impedir? No fundo, só
lhes dava palavras de consolo, um dia a guerra vai acabar, e eles, na sua
miséria, lhe davam restos de comida. Um comércio de palavras por comida.
O padre foi embora e ele era a única autoridade, que não mandava em nada,
não havia nada para mandar. Um fantasma, sabes, Himba, o que é um
kazumbi?, bem, eu me chamava a mim próprio de kazumbi, era um
fantasma da autoridade central. Não fugi apenas por falta de coragem.
Devia ter feito como o teu pai ou o padre. Sei que não correu bem
convosco, mas era um gesto de coragem. O padre se deu bem, escapou.
Outros acham que o herói sou eu que fiquei, até falam em me dar uma
medalha de mérito, mas é tudo falso, te digo, sou herói porque não tive
coragem de fugir.
Himba não compreendeu muito bem o raciocínio alheio e tomou-o apenas
como uma tentativa de consolo pela confirmação da sua perda. No entanto,
não era conforto nenhum, o pai é que fora culpado do que tinha acontecido,
primeiro por querer fugir, segundo por atrasar a fuga já decidida. Se
tivessem tentado na véspera, tudo correria bem. Podia estar a ser injusta,
mas era o seu sentimento já antigo, que nunca revelava senão a Kassule.
Sim, ela nunca perdoaria ao pai, era o seu destino.
Depois perguntou pela mulher do administrador, mas, ao ver a careta,
logo se arrependeu.
– Morreu. Há muito tempo. Ficou doente e aqui não havia tratamento
possível. Tentei evacuá-la, mas como fazer? Ainda procurei arranjar apoio,
pessoas que me ajudassem a transportá-la de maca pelo mato até onde fosse
possível tratá-la, mas ninguém aceitava. Também já não tinha amigos, só os
refugiados que sentiam ainda mais medo que eu. Morreu sem tratamento.
– Lembro-me, tinha três filhos.
– Quatro. Estão bem, dois ainda em Benguela, os outros dois já foram
estudar para o estrangeiro. Mandei-os para o litoral ainda antes da vossa
fuga. Tiveram sorte, chegaram bem. O meu irmão tratou deles. Já há alguns
anos começou a melhorar a situação, como deves saber. Pelo menos acabou
a guerra aqui na região, levada mais para o Leste. Então foi possível ter
algum apoio do governo. Pedi bolsa para os dois mais velhos e consegui.
Também pudemos limpar o lixo maior do município e pôr o hospital a
funcionar com um médico vietnamita e dois enfermeiros. E algumas outras
coisas. Além disso temos escola. Tudo feito ainda antes da paz definitiva.
Agora espero que se possa desenvolver a sério a região, já não há
entraves...
– O município foi ocupado…
– Sim, acabaram por ocupá-lo. Fugimos para o mato, conhecíamos bem a
montanha, havia muitos abrigos, era o nosso último recurso. Tu também
deves ter brincado na montanha, era o sítio dos piqueniques e de onde vinha
o leite todas as manhãs, lembras? Fomos para lá, outros ficaram na vila,
sem medo do exército de ocupação ou sem coragem de fugir. Aguentámo-
nos dois meses, os populares e eu. Alguns morreram de doenças misturadas
com a fome. Apanhávamos pouca comida nas lavras à noite, o mel ajudava
e os frutos que todos conhecemos. Água não faltava, há duas nascentes.
Depois o nosso exército atacou a vila, hoje cidade, e os outros fugiram.
Voltámos então para as casas. Ou escombros… Ficou muito destruída,
como podes constatar. Mas já está melhor, muito melhor. Chorei quando vi
a destruição, o lixo, a falta de tudo. Chorei e pensei, a minha terra nunca
mais se vai erguer. Mas depois ganhámos coragem. Trabalhámos bué. E as
ajudas vieram. Poucas, mas vieram. Um professor para aqui, um enfermeiro
para ali, um dinheiro para contratar alguns funcionários. Ninguém queria
vir das cidades para esta vila em ruínas e sem futuro. Ainda temos falta de
muitos funcionários. Acredito que virão. Chamamos cidade a isto, ninguém
contestou, talvez ajude a atrair pessoas competentes.
Himba não sabia se o sonho do administrador se tornaria realidade.
Normalmente, as pessoas que fugiam de um lugar não voltavam a ele. Os
que estavam nas cidades maiores recusavam ser colocados nas menores. Ela
própria nunca sairia de Luanda, esta terra já não era a dela. Porém, a
narrativa do administrador comoveu-a. Como é que aquele homem de mais
de cinquenta anos, franzino, magro por ser magro mesmo antes de ter
passado fome, tinha aguentado tanto e ainda acreditava? O futuro atuava
como algum deus, um fazedor de promessas?
– Eles têm razão, o senhor merece uma medalha e das grandes. Aqui para
nós, também acho, não há heróis. Nem fazem falta nenhuma.
O administrador precisava desviar a conversa para temas menos
comoventes, pediu desculpa por só lhe ter oferecido água a acompanhar a
refeição, não havia outra bebida para eles.
– É o que bebo – disse ela.
– Tenho uma garrafa de vinho guardada, reservada, o governador
prometeu uma visita.
– Se fosse no sítio de onde venho, não teria que guardar garrafa nenhuma.
Ao que me dizem, antes de uma visita das autoridades grandes, vem sempre
a logística com tudo.
– Podes ter razão. Por prudência, mantenho a garrafa guardada.
Foi assim que Himba soube que estava de facto sozinha no mundo, pois
nem conhecia o resto da família espalhada por muitos sítios, sobretudo no
Planalto Central devastado pela guerra. E a tal parentela de Luanda, nem o
nome dela sabia.
O regresso decorreu sem incidentes. Demorado, complicado, doloroso.
Foi preciso apanhar vários carros e dormir no caminho duas noites. Luanda-
Sul, com o rítimo cada vez mais rápido de expansão, lhe pareceu o futuro
certo. Se construía por todo o lado, as gruas gigantescas marcavam a
paisagem, mais para o interior e sul que o Morro Bento, atraindo gente de
todos os lados, contraste absoluto com o que passava no município de
nascimento.
Foi muito breve no lar, ao contar o que soubera, em poucas palavras,
encontrei o mesmo administrador de antes, todos morreram, os corpos
foram identificados e enterrados. O padre ainda perguntou:
– Te deram uma certidão de óbito?
– Os papéis da administração foram todos queimados, até os assentos de
batismo da igreja. Não há documentos, também ninguém está preocupado
com eles. Ah, já é uma cidade, posso dizer nasci no que hoje é uma cidade,
um grande motivo de orgulho para qualquer nativo, como é lógico.
Kassule não gostou nada do azedume disfarçado de ironia. Calou o que
tinha vontade de dizer, tu já sabias, não tinhas esperança, só querias
acreditar. A tristeza era genuína no rosto dos amigos.
Amigos são para isso, afinal.
Pouco tempo depois, ao lutar contra a falta de sono, muito frequente
desde que tinha estado no sítio do seu nascimento, Himba teve uma espécie
de revelação. Virou e revirou a ideia, fazia sentido, sim. Talvez fosse difícil
de convencer as pessoas, em primeiro lugar Kassule. Depois o padre, os
outros não interessavam. Talvez Radamel ou Job para a ajudarem. Ninguém
entenderia, está bem de ver. Mas não se importava, ela sabia o significado
da atitude, radical, definitiva. E pouco trabalho daria, apenas algumas peias
burocráticas, ultrapassáveis. Estava habituada a sofrer, como todos os
compatriotas, as demoras, as repetições de pedidos e procedimentos, as
fotocópias inúteis, tudo porque não se confiava nos honestos para se ser
enganado pelos desonestos sem controlo. O supercontrolo formal e pouco
eficaz levava ao peso da máquina burocrática, registos e confirmações para
todos os atos, necessidade de certificar qualquer documento no notário,
numa terra quase sem notários, filas compridas e horas de espera para uma
qualquer senha sem importância. Ia só com a sua calma e coragem fazer as
coisas e andar de um lado para o outro, de repartição em repartição, se fosse
caso disso, para atingir o objetivo. Quanto mais difícil, maior o prazer da
vitória.
Foi pensando num nome.
Quando chamou Kassule à parte, na hora antes do jantar, e lhe contou a
conclusão a que chegara e a luta que se propunha travar, o rapaz abriu muito
os olhos.
– Porquê?
– Não achas uma grande ideia?
Ele afinal não achava grande ideia. Nem má. Tanto lhe fazia. Mas não
entendia a razão daquela maluqueira.
– Acho que devemos fazer – insistiu ela.
– Se eu não quiser, tu fazes na mesma?
– Claro, eu vou fazer, se me deixarem. Sei que é possível e legal, mas
complicado. Tu fazes se quiseres. Mas para sermos verdadeiramente
irmãos…
Se tratava de mudar de identidade.
Os dois. Ficariam com o mesmo apelido e registados como irmãos. Não
era a razão principal de Himba. A que ocultava. De facto, queria se libertar
do apelido paterno, talvez isso lhe fizesse esquecer o passado, toda a dor
acumulada, partia para uma nova vida com novo nome. Sem o lastro da
culpa do pai, vergonha por ele, causador da tragédia da família. E o
primeiro nome seria Sofia, em vez de Himba, nome de kimbo. Sofia, como
a irmã perdida de Kassule. Teriam o mesmo apelido e ficavam como
irmãos. Só era preciso convencer o padre a lhes dar o apelido dele, Moreira.
Sofia Moreira.
Bué fixe.
Essa era a ideia, completamente louca, nas primeiras avaliações de
Kassule, o qual no entanto encontrava uma vantagem na proposta, se
livrava desse nome que o menorizava, o de filho mais novo, um perfeito
disparate lhe darem esse nome, tema de muita gozação na Ilha e na escola,
pior ainda com o crescimento. Nisso Himba tinha razão. Ficar com o
apelido do padre, como é então?, vamos ficar filhos dele?, toda a gente sabe
padre não pode ter filhos, poder pode e alguns têm, mas não devem. De
repente lembrou um nome que sempre o perseguiu e a ideia da maluca da
irmã começou a ganhar nova consistência, se chamaria Diego, como
Maradona. O grande argumento que não ocorreu a Himba, também longe de
alguns sonhos dele.
Ela não tinha a exclusividade dos segredos.
– OK, o meu nome será Diego. Mas Moreira? Achas que o padre vai no
registo dizer, estes são meus filhos, quando os registei para poderem entrar
na escola, menti, dei outro nome para cada um deles, mas afinal são irmãos,
assumo, a mãe se chamava Madia, que é Maria, Nossa Senhora, em
kimbundo?
– Qual é o problema? O papel de identidade que nos deram é provisório,
serviu só para a escola, nem precisamos de o guardar. Vamos com o padre,
mentimos, nunca fomos registados, estamos a se registar. Pela primeira vez.
E acabou. Na minha terra os arquivos foram queimados, na tua de certeza
que também, têm de acreditar numa pessoa conceituada como o padre. Ele
não vai dizer que é nosso pai, vai só dizer que, como apenas tínhamos um
nome, o nome que escolhermos, ele nos dá o apelido. Mais fácil. E não há
mentira nenhuma, nem podem saber que já temos um registo provisório,
vamos noutro sítio, há uns de registo mais facilitado agora por causa dos
milhões que nunca tiveram documentos, ou estavam fora da sua área, ou os
papéis foram queimados nas vilas e kimbos.
– E ficamos irmãos?
– Sim, pela lei. Se não quiseres ser Diego nem meu irmão, tudo bem. Eu
falo sozinha com o padre.
Kassule aceitou, depois de algumas hesitações, vou pensar, amanhã te
digo. No fundo, para ele era igual. Quando fizesse quadros mesmo a sério
talvez assinasse como Kassule. Mas o mais certo seria usar Diego. Nenhum
angolano se chama Diego, só eu. Achava.
Quando foram falar com o padre, este primeiro ficou zangado. Que
brincadeira é essa? Nunca o tinham visto zangado a sério. Mas amoleceu,
respirando fundo e tentando pensar, eles devem ter alguma razão, que se
expliquem.
– Sô padre, vou ficar Kassule e só Kassule toda a vida. Toda a gente na
cidade tem mais que um nome. E isso é nome de menino, não para um
homem feito. E vou ser homem um dia.
– Tu, sim, compreendo. Nos kimbos normalmente só se tinha um nome.
De resto se dizia, quando era preciso diferenciar, o fulano, filho de sicrano.
Por isso vais precisar de um apelido e podes tomar o meu. Mas a Himba…
ela tem dois apelidos, do pai e da mãe… E Himba é muito bonito.
– Sofia também é – replicou Kassule.
– Sim, e tem significado, sabedoria – concordou o padre. – Quadra bem
com ela. Mas renegar os apelidos paternos, não acho bem.
Ela não tinha imaginado este tipo de objeção. Pelos vistos, o sacerdote se
desimportava de lhes emprestar a identidade, problema menor. Punha masé
em causa a razão profunda da atitude de Himba. Decidiu explicar à sua
maneira, voz baixa, com ecos dramáticos.
– Enquanto tinha esperança que eles fossem vivos… Mas agora… Cada
vez que escrevo o nome completo, me lembro deles, me dá uma saudade,
morreram de maneira horrível… quero cortar, não pensar no assunto, vida
nova…
– Podes até não pensar… Mas vais sonhar. Impossível comandar os
sonhos.
– Com sonhos posso eu bem, já estou habituada. Mas preciso de respirar
outro ar. E o nome é importante, muito mais do que se pensa. O nome
marca uma pessoa.
Embora Himba tivesse escondido o mais importante, o sacerdote foi
tocado pela argumentação dela, sobretudo o ar de criança sofredora que ela
aprendeu nos tempos da Ilha, se precisava de pedir algo de importante,
comida por exemplo.
– Deem tempo, preciso de pensar.
Eles concordaram, o padre tinha todo o tempo. Himba lhe explicou, agora
havia postos de registo rápido, duas testemunhas chegavam para se ter um
assento e bilhete de identidade. Bastava dizer o pai era Moreira, ninguém
conhecia o padre com esse nome, apenas padre Adão. A mãe seria Madia.
Por isso eles ficavam Sofia e Diego mais o nome do pai. Qual o problema?
– Não é esse o problema, embora me obriguem a mentir, posso até fingir
que não oiço o que vocês dizem no registo, para não cometer pecado, se
forem vocês a falar. Tenho dúvidas, também deve haver o pecado da
omissão… Passemos. O Job pode servir de segunda testemunha, já percebi,
não tem esse tipo de problemas morais. Infelizmente. E mesmo sem
compreender vai aceitar. A maka é outra, ainda não estou convencido.
Ia se aconselhar com Radamel, estava visto. Este era mais moderno,
aceitaria facilmente. Himba resolveu se antecipar e pedir o apoio do
arquiteto para convencer o sacerdote.
Logo no dia seguinte, quando ele foi ao lar, no fim da tarde, para ver
como andavam alguns dos seus jovens educandos. O assunto é sério,
preciso lhe pedir um favor, sussurrou Himba. Se afastaram para baixo de
uma árvore. E ela contou o seu plano, acrescentando:
– Gostamos muito do padre Adão, tem sido um pai para nós. Usar o
apelido dele era um orgulho.
– E o teu não é? O do teu pai?
Ela voltou ao teatro já ensaiado com o sacerdote. Mesmo com excelente
representação, não convenceu Radamel.
– Mudar o nome não tira a dor, se de facto dor existe. Podes enganar o
Adão, a mim não. O que há por trás do teu desejo?
A moça hesitava, mas acabou por jogar os dados. Suspirando.
– Quero esquecer que fui filha dele. Quero rasgar o passado, nunca mais
pisar aquela terra, não ter nenhuma foto, que não tenho mesmo, nem
documentos de lá, tudo foi queimado. Não fiquei com nada daquela terra e
daquele tempo. Sinto pena pela minha mãe mas tem de ser. Se tivesse
sobrevivido algum irmão, podia manter o nome, só para o encontrar. Não
sobrou nenhum. Como se muda de pele se não se muda de nome?
Havia desespero e não era fingido na voz e nos olhos de Himba.
– Porque não dizes a verdade ao Adão? Seria mais fácil.
– Ele não ia aceitar. Honrarás pai e mãe, não é o que ensinam? Para ele é
uma questão religiosa, não para mim.
– Não o conheces tão bem como eu. Se ele hesitou, como achas, e vem
falar comigo, eu vou contar a verdade, tens vergonha de ser filha de quem
és e por isso mudas de apelido. Duvido que ele aceite, nessas
circunstâncias. Não acredito no deus dele, mas acredito naquele homem. E
não deixarei que o enganem. Estamos conversados. Tens um dia para lhe
contar, não, tens uns minutos, porque daqui a pouco ele vem contar a vossa
pretensão. E terei de dizer o que penso e que falaste comigo. Por isso vai
procurá-lo.
– Não é só o problema da vergonha ou culpa, entendeste mal. Quero
esquecer o meu passado…
– Em que foste feliz.
– Talvez. Mas acabou e quero enterrá-lo.
– Entendo a simbologia, podes crer. Se contares ao mais-velho Adão toda
a verdade, eu apoio-te quando ele me vier falar. Mas não deixo que o
enganes com as tuas manhas de menina. Porque estás a ficar manhosa,
sabias?
Himba muxoxou com raiva. Deu meia-volta e se afastou. Não tinha
alternativa. Manhosa, não é? Seja.
Encontrou o padre no sítio onde ele devia estar e lhe contou tudo. Tudo?
Nunca se conta tudo. O essencial. E que falou com Radamel que a
convenceu a vir esclarecer as razões da sua atitude. O padre não respondeu
imediatamente. Olhava só para ela. Depois suspirou e disse:
– Em várias das nossas sociedades tradicionais, uma pessoa muda o nome
se casa, ou se passa pelas cerimónias de iniciação e é considerado adulto.
Há outras culturas em que se muda o nome porque se tem o primeiro filho,
o pai e a mãe assumem o nome que a sociedade ou o grupo escolheu para o
recém-nascido. Passam a ser o pai e a mãe de fulano. É curioso como
chegas às mesmas práticas que não te foram ensinadas. Duvido que as
soubesses. Mas talvez a razão seja a mesma por que elas ficaram instituídas
nessas sociedades. À mudança de estatuto social deve corresponder novo
nome. No teu caso por razões negativas, o azedume e o despeito. Nas
nossas sociedades pode ser por outras razões… Está bem, vamos fazer
como queres. Mas para o futuro lembra uma coisa. O teu pai foi bom pai e
guardas muitas coisas boas dele. Se decidiu que deviam abandonar a vila,
tinha razão, estava a defender a família. Se demorou um dia a mais,
ninguém podia imaginar que isso tivesse importância. Talvez precisasse de
um dia para se despedir dos amigos, dos alunos, da terra. E por um acaso
essa demora foi fatal. Pensaste nisso?
Himba ia ter muito tempo para pensar na conversa e nas palavras de padre
Adão. No momento só lhe interessava a decisão dele. Agradeceu pela
compreensão.
Afinal foi tudo mais fácil.
Se encaminharam ao posto de registo com o padre e Job, que aceitou ser
testemunha, Himba contou a estória, Job acrescentou umas coisas,
introduzindo depois o padre como sacerdote do lar e de repente obtinham os
documentos. Tiraram fotografia e marcas das impressões digitais. Daí a
uma semana receberam o bilhete de identidade. Com este, ela foi ao
Instituto mudar o nome de matrícula, inventou uma estória um bocado
descosida mas deu para ser aceite pela funcionária.
Quando terminou o curso, recebeu um diploma legítimo em nome de
Sofia Moreira.
Kassule não tinha pedido certificado da oitava classe, se estava nas tintas
para isso, só queria pintar. Ia manter Kassule nas suas obras como nome
artístico, até porque reproduzia cenas da vida nas ruas e nos musseques e
um pseudónimo africano condizia mais com o que revivia na tela ou no
papel.
Não demorou muito a que Sofia arranjasse um emprego a tempo
completo. Ao fim de um mês e de receber o seu primeiro salário, falou com
Diego, vamos arranjar um ximbeco fora do lar. Espanto do rapaz. Ela
insistiu, não podemos continuar aqui, temos de nos virar, deixar o lugar para
outros. Vou fazer vinte anos, tenho vergonha de estar ainda num lar. Vão me
dizer, tens idade a mais e há muita criança na rua, vai embora. Antes disso,
saio eu. E acho que, como meu irmão mais novo, deves vir comigo.
Também vais fazer dezoito anos e ser maior, te dizem a mesma coisa. Com
toda a razão.
Alugou um quarto de arrumação numa casa modesta mais para sul do
Morro Bento, para lá se mudaram. Levaram emprestados dois catres do lar,
devolveriam quando ela tivesse dinheiro para comprar os próprios. E se
desenrascaram assim. O padre Adão e os outros amigos compreenderam, de
facto ela não devia continuar lá. Prometeram se ver muitas vezes.
No entanto, Sofia nunca mais pôs o pé no lar e deixaram as missas de
domingo. Diego aparecia de vez em quando para visitar os amigos e
desculpar a irmã, anda sempre muito ocupada.
Todos sabiam, era mentira.
O mesmo para a Ilha, a senhora boa das trancinhas e seus filhos.
Sofia cortou com todos. Diego, por vezes, aparecia.
***
A caravana parou à frente das bancas onde os artistas expunham as suas
obras. Eram três todo-o-terreno de alta cilindrada, mais conhecidos pelo
sugestivo nome de tubarões. Devia ser alguma comitiva de gente importante
e Diego olhou com mais atenção as pessoas, todos homens, que saíam das
viaturas. Logo se distinguiu o chefe, o qual começou a andar para a direção
contrária à de Diego, concentrado nas caras dos vendedores e pouco nos
quadros. Esta era a zona dos pintores. Os escultores ocupavam as bancas a
seguir, com menos cores mas mais objetos e atraindo maior número de
clientes. Devia saber aproveitar os veios de uma madeira para criar uma
figura, pensou pela milionésima vez o artista, mas me deu para o desenho e
depois a pintura. Só devia ter paciência, não lamentar a opção.
Os lamentos são para os fracos e os covardes.
O amigo dele, Joseph, nascido no Congo Democrático, lhe segredou da
banca ao lado:
– Esse mijagrosso que vai à frente é o que manda nas autorizações para se
vender nos mercados aqui deste município.
– Como sabes? – perguntou Diego.
– Lembro a cara. Foi ele que me vendeu autorização.
– Gasosa?
– Sim, lhe paguei gasosa.
– Foda-se… Corrupto!
– Xê, eu corrupto?
– Não tu. Ele.
Nenhum dos dois sabia que pela lei o comprador e o vendedor de favores
administrativos são considerados corruptos. Só que para Joseph era questão
de vida ou de morte, não tinha alternativa senão obedecer às regras dos
fiscais. Diego tivera sorte, a sua licença tinha sido tratada por Sofia noutra
repartição há muito tempo, ainda nem tinha a ideia de acabar ali no
mercado. A irmã nunca lhe disse que tinha pagado alguma coisa senão o
estipulado por lei. Suspirou. Se fosse preciso também untaria as mãos do
responsável, chorando apenas pelo dinheiro gasto injustamente. A vida era
injusta. A de artista em terra subdesenvolvida ainda mais.
Ia fazer mais como então?
A comitiva chegou ao fim e regressou pelo mesmo caminho. O
responsável por vezes parava diante de um artista e falava com ele, as
habituais perguntas sem interesse, nem para um, nem para o outro. Cada um
fazia a sua parte, os jogos da política eram conhecidos. Ao chegar à frente
de Diego, o responsável ia passar e se dirigir a Joseph mas de repente
travou. Se virou para as telas expostas em conjuntos de quatro. Aproximou
a cara de uma delas e leu o nome do pintor.
– Kassule? É o que assinou aqui? É você mesmo?
– Sim, o meu nome é Diego Moreira. Assino Kassule.
– Onde ouvi esse nome? Ah, já sei, conheço a sua… mulher?... irmã?...
Sofia…?
Diego achou estranho, mas respondeu, sim, tenho uma irmã que se chama
assim.
– Dona de um restaurante… Não é longe daqui, não é verdade?
– Sim, é ela mesmo. O Mamã Ester.
– É isso – disse o diretor dos restaurantes, mercados e afins. – Boa
comida, por sinal. Fui eu que lhe arranjei o novo alvará, em nome dela, tem
ali uma máquina de fazer dinheiro. Dê-lhe os meus cumprimentos. E
parabéns pelas suas obras, são muito interessantes.
Se apertaram as mãos e o responsável continuou a visita, tendo depois
entrado no carro da frente e os três tubarões se fizeram à estrada,
imponentes.
Novo alvará, não foi mesmo o que o corrupto disse? A questão lhe
perturbava a cabeça, para em seguida dizer, claro, Sofia teve de tratar de
novo alvará por causa da morte da sócia. Lhe daria os cumprimentos do
senhor das gasosas. E ia perguntar se também tinha pagado gasosa ao
vigarista. Ou seria uma espécie de renda mensal, como vira em filmes das
máfias? Diego podia ser cruel, na sua integridade.
No dia seguinte de manhã, foi ele que preparou o mata-bicho e quando
Sofia se sentou à mesa ele lhe contou a cena da véspera.
– É verdade, sim, ele me ajudou no alvará. Eu lhe tinha convidado para
um jantar, não faças essas caras porque nos nossos negócios tem de ser, e
depois ele apareceu mais vezes, gostou da comida. Talvez tivesse outras
intenções, mas não lhe dei oportunidade de avançar.
– Ele exigiu dinheiro para dar a autorização de venda no mercado ao meu
amigo Joseph.
– Não me admira – disse ela. – Essa gente das administrações se governa
assim, entram em todos os negócios para ficar com comissões, mesmo se
depois os negócios não avançam. A comissão, essa, fica logo, em primeiro
lugar.
– E como é que ficou o alvará, em nome de quem?
– No meu, claro…
O tom da resposta tinha sido ligeiro, despreocupado, mas Diego conhecia
a irmã e os seus segredos, mesmo se fingia não reparar. Achou uma ponta
estranha na forma demasiado desprendida dela responder ao assunto, hum,
hum, não lhe agradou, coçou o queixo num gesto que ela conhecia e não era
de bom augúrio. Diego então se lembrou.
– Não devia ser no do Ezequiel? Ele é o herdeiro da mãe. Sem contar com
o outro irmão, esse que foi para a América…
Ela mastigou o pão torrado lentamente, concentrada. Sabia, Diego não ia
largar mais o mambo enquanto não tivesse uma explicação detalhada e
satisfatória. Preferiu não desviar muito o assunto e andarem às voltas
durante semanas ou meses no jogo das meias verdades.
– O Ezequiel não podia ficar com aquilo, como ia gerir? Pôr o restaurante
na situação em que está deu muito trabalho… para ser destruído logo a
seguir pelo coitado. E o outro irmão desapareceu, nem a mãe sabia onde ele
anda. Não conta. Tive de ficar com o restaurante. Mas todos os meses
ponho dinheiro numa conta que abri para o Ezequiel e que tem dinheiro
para pagar o lar dele por muitos anos, já agora.
– No documento só está o teu nome?
– Sim. É mais fácil. Seria uma carga de trabalhos pôr o Ezequiel a assinar
toda a papelada. Se fosse preciso um documento das Finanças ou da
Hotelaria e ele tivesse de estar presente… imaginas? Mesmo para ele
assinar um papel é um problema, nem sei se ainda sabe... E depois para
quê? Assim está mais protegido…
– Protegido? Foi roubado… desculpa, mas essa é a palavra, ele foi
roubado. O restaurante era da mãe, portanto ele é o herdeiro e o restaurante
devia ser dele, estar em nome dele. E não é, agora passou para ti. Era
possível arranjar uma maneira legal de ficar o nome dele no papel e tu com
a parte que a mãe dele te deu. Eram sócios e tu a administradora ou lá como
se chama. Mas lhe cassumbulaste com a ajuda daquele corrupto. Tens
palavra melhor que roubo?
Sofia contava que o mambo fosse descoberto por Diego, mais cedo ou
mais tarde, mas de outra maneira. Fez asneira, reconheceu, devia lhe ter
falado logo, assim se sente também ele enganado, quando a ideia não fora
essa, nunca tentara enganar Diego.
Também nunca vira tanto desgosto e nojo na cara dele.
– Ouve, mano. Eu ia te dizer, um desses dias. Mas só nos temos
encontrado ao mata-bicho, há muito tempo que não saímos juntos. E de
manhã não é boa altura para se conversar.
– Qualquer altura é boa para falar sobre um assunto importante destes.
Podias ter pedido a minha opinião. Não o fizeste. Sabias, eu ia dizer que
estava errado, era só por ganância, não para ajudar o pobre do Ezequiel.
Quando é que te tornaste assim, a pensar apenas no teu interesse? Essa não
é a Himba que se tornou minha irmã Sofia…
Ela ficou calada, deixando passar a tormenta. Como o caranguejo, metida
na sua toca, por causa da onda do mar.
– Foi na Ilha, por causa da morte do Tobias? Nunca mais te conheci
namorado, nem homem que aceitasses perto de ti. Foi a morte dele que te
pôs assim? Esqueceste toda a gente da Ilha e lá tiveste amigos que te
ajudaram muito, como a mim. Eu vou visitá-los, a senhora boa das
trancinhas, os filhos, o Noé. Eles perguntam por ti e me obrigas a mentir,
sempre o trabalho ou porque estás doente ou foste ao Planalto. Mentiras.
Para não dizer a verdade que ia deixá-los tristes, ela já não quer saber de
vocês…
– Não é isso.
– É exatamente isso. Ou os mais próximos, o padre e os amigos do lar,
que nos acolheram… Nunca foste cumprimentar, dizer sou eu mesma, estou
aqui porque vos agradeço todo o apoio, vocês fizeram que eu não fosse uma
puta de rua, me deixaram estudar, poder trabalhar, ser o que sou… Convidá-
los para irem comer uma vez no teu restaurante, só ficava bem. Não, não
queres saber, e ali eu não minto porque eles descobrem logo a falsidade.
Digo só que tu estás diferente, qualquer coisa se passou e eu não sei, queres
apagar o passado ou um mambo assim… Eles compreendem, não falam
mais do assunto, mudamos para discutir futebol. Porque eles têm pena de
mim, envergonhado, ali a torcer as mãos porque a minha irmã, que lhes
pediu o nome, agora nem os vai visitar. Isso faz-se? Eu vi te transformares e
não fiz nada. Também tenho culpa. Depois conheceste esse grupo.
Lembras-te quando fiquei no bar durante o jantar em que eles lá estiveram?
Sofia lembrava. Tinha prometido a Diego, ele podia ficar no bar e dali
observar o restaurante e os comensais. Podia até servir os que se sentassem
ao balcão do bar. Não aconteceu, nenhum se sentou, as pessoas preferem as
mesas. Os bancos do bar estavam lá só para enfeite e às vezes um dos
príncipes sentava à espera dos outros. Por pouco tempo. Diego ficava atrás
do bar e estudava as posições, as feições, as conversas e as pequenas brigas,
os gestos tirados dos hábitos, os relacionamentos. Fascinado. E depois Sofia
se sentava à mesa deles e o artista percebia as mudanças subtis, uns olhares
esperançosos, outros obstinados, Abdias sofredor em silêncio. Dificilmente
poderia acompanhar todas as conversas, eram muitas ao mesmo tempo, se
encavalitavam umas nas outras, mas não tinha importância, ele absorvia o
ambiente dos que nasceram com toda a fortuna e futuro. Os príncipes.
– Não gostei de te ver com eles. Bebias as palavras deles, os gestos, se
percebia, querias ser como eles, tinhas inveja de não poderes ser igual.
Parva! Nunca poderias ser. Nasceste numa vila de província, de pais que
não sabiam o que é o poder, seja ele o que for. Te aceitavam ali, no teu
restaurante, te podiam até levar a casa deles, mas para mostrar, olha, eu vivo
e sou assim, vou ao teu restaurante de vez em quando para viver outra
realidade, me misturar um pouco com as classes inferiores, a tua classe…
Ela não respondeu. Se encolhia na cadeira, mexendo na colher do açúcar.
Fraca demais para contrapor uma frase, uma ideia.
– Talvez nunca te tenhas deitado com nenhum deles. Acho mesmo que
não o fizeste. Não és capaz. Porquê? Isso não sei, mas adivinho.
Sofia sentiu necessidade de falar, talvez para lhe inspirar compaixão.
Nem saberia explicar essa necessidade, não havia racionalidade a que se
agarrar, queria desaparecer, deixar de ouvir aquela voz suave, dorida, nunca
se exaltando, mas ao mesmo tempo precisava de o sentir perto dela, o seu
irmão, o que não foi a família que lhe arranjou, ela própria o escolheu, tinha
muito mais força e valor. Falou numa voz muito fraca, quase inaudível:
– Nunca me deitei com mais ninguém, desde o Tobias. Não sou capaz.
Não são saudades dele, é outra coisa… Medo de enfrentar um homem?
Medo de ficar presa a alguém? Não sei dizer…
Ele concordou com a cabeça. Agora estavam em sintonia, como antes,
como durante tantos anos. Falou:
– Durante muito tempo tive medo de me aproximar demais de uma
mulher. O meu problema era simples. Como fazer quando estivesse com ela
no quarto? Espera aí, agora vou tirar esta perna de metal, porque senão te
podes magoar. Como dizer isso? Perdi assim algumas raparigas muito
interessantes que estavam dispostas a tudo. Até que falei com o Radamel. E
ele explicou, se ela gosta de ti então não se vai importar se tens duas pernas
ou não. Mas tens de lhe falar antes, para ela não se assustar no quarto. Tens
de ser sincero, olha, gosto de ti e tu pareces gostar de mim, mas já reparaste
que não ando como todos, arrasto um pouco a perna esquerda? É porque
tenho uma prótese. Simples. Aceitei o conselho dele. Arranjei uma miúda
porreira, fixe mesmo, namorámos, até que me enchi de coragem e lhe disse
que era mutilado. Ela ficou chocada, nem tentou esconder. Não sabia,
lamentou. Falámos e nos encontrámos de novo e ela já estava normal. Falei
de novo no assunto e ela disse, não tem importância, o teu valor não está
numa perna a mais ou a menos, gosto de ti na mesma. Então lhe levei para o
quarto de um amigo. Hesitava. Foi ela que disse, mostra então essa perna,
tira as calças. Fiz. Ela não mostrou nenhuma pena ou admiração, nada,
tinha uma reação normal. Perguntou como se punha e se tirava a prótese.
Lhe mostrei. Depois fizemos amor. Eu sabia tudo de ver e de ter lido, nunca
tinha feito. Ela já. Me ajudou. E pronto. Nunca mais tive esse tipo de
problemas. Porque o meu amigo Radamel me aconselhou bem e eu tive a
coragem de seguir o conselho dele.
– É bom ter um amigo como o Radamel – disse ela.
– Mas tu abandonaste-o e ao padre e aos outros. E nunca lhes pediste
conselho sobre as coisas realmente importantes…
Ela se encolheu de novo, dentro da concha. Ou da cova.
– Também tenho culpa. Desconfiei que tinhas problemas desses e nunca
tive coragem de falar contigo, de te contar a minha experiência e como era
importante arranjares um namorado. Te ensinar como podias fazer. Ou
contar ao Radamel, que teria um conselho acertado. Devia ter rompido a
barreira que criaste à tua volta. Reconheço, tenho culpa. Desconfiei que
estavas a afundar e não soube dar a mão.
Sofia continuou calada. As lágrimas corriam dos olhos. Porque é sempre
tarde demais que as coisas acontecem, nunca no momento certo? Porque
não me deste duas chapadas e disseste o que eu devia ouvir? Só agora.
Tarde demais.
Diego levantou da mesa. Com o dedo indicador lhe tocou na mão, num
gesto tímido de carinho.
– Não posso morar mais contigo. Vou arrumar as minhas coisas e deixar
esta casa.
– Porquê?
– Não posso beneficiar do roubo que cometeste. Como posso comer da
comida que trazes para casa, usar a eletricidade que pagas, o aluguer do
apartamento? Seria cúmplice e não quero ser. Lamento.
– Vais para onde?
– O meu amigo congolês, o Joseph, vive num kubiko fixe. Tem um quarto
pequeno vazio, com tralhas. Ele me deixa dormir lá. Até eu arranjar outra
coisa.
– Não precisas ir embora.
– Preciso mesmo. Não posso conviver com a ganância ou o resultado
dela. Não vou ser um escravo desta ditadura da ganância, que parece ser o
nosso destino. Outros sejam escravos. Eu sou diferente.
– Eu sou o que fizeram de mim. O teu país.
– Outros sofreram tanto como tu e continuaram honestos e dignos.
Humanos… O país é de todos e não deve ser culpado pelos erros dos seus
filhos.
– Não posso viver sem ti, és o meu irmão.
Ele ficou calado algum tempo, talvez para pensar numa resposta, talvez
apenas para engolir o sofrimento autoinfligido. Quem sabe o que passa na
cabeça de uma pessoa?
– Devia ir à polícia denunciar o roubo. Um cidadão cumpridor fazia
assim. Mas não sou capaz. Afinal continuas a ser a minha irmã. Não me
peças mais do que isso, Himba.
Foi para o quarto arrumar as imbambas. Dali telefonou para Joseph, o
qual aceitou de bom grado acolhê-lo, o tempo que quiseres, meu. Afinal
nós, congoleses, acolhemos milhões de angolanos durante muitos anos das
vossas guerras, estamos habituados. E deu uma gargalhada fraterna. Era
verdade absoluta, os angolanos no entanto têm tendência de o esquecer.
Sofia ficou a ouvi-lo fazer todo o barulho a arrumar com raiva e pressa os
quadros, as tintas, os pincéis, a roupa, os sapatos, os livros de arte. Tinha de
inventar caixas e malas que não existiam. Não poderia levar tudo de uma
vez, mas já não era problema dela.
Foi ao quarto e abriu a gaveta do fundo da cómoda. Afastou as roupas e
encontrou o retrato que ele tinha desenhado no lar. Um dia ela comprou
uma moldura para proteger o retrato mas nunca mostrou a Diego. Ele
provavelmente nem se lembrava dessa sua primeira obra. Olhou para ela
durante muito tempo. Havia tristeza, sim. Mas era ela. O olhar era duro. Ou
por vezes se tornava duro, depois amansava. Seria ela dura? Sim, tinha de
reconhecer. Chorou por cima do retrato, porque ele lhe dizia coisas que ela
não queria ouvir. Diego sabia como ela era. Há muito tempo. Esse
conhecimento estava ali, aprisionado no retrato. Para quê negar?
Guardou o retrato na mesma gaveta, saiu de casa, entrou no carro. Lutou
contra o trânsito que ia todo na direção de Luanda antiga, esteve parada e a
andar quase a passo na estrada da Samba, depois na Marginal, até chegar à
Ilha, duas horas depois. Foi avançando, já com muito maior facilidade até à
Ponta, onde estacionou. No restaurante deviam estar em pânico com a falta
dela para os orientar. Até podia fazê-lo pelo telefone, mas não lhe
interessava. Naquele momento, o restaurante tinha deixado de existir. Por
umas horas, no entanto.
Ficou parada a olhar em frente.
Cabritinhos de espuma na crista das ondas. Escuros, oleosos, os
cabritinhos.
Viu os novelos de ondas no mar.
Os novelos também estavam escuros, oleosos, restos derramados de
petróleo. Ameaçadores.
Diego disse mesmo, é este o nosso futuro, a ditadura da ganância?

Luanda – São Paulo, novembro de 2015


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CAPA
Ficha Técnica
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