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INTRODUÇÃO

Nga Muturi, uma novela de Alfredo Troni, cujo sua primeira publicação foi no ano de
1882, sendo republicada em forma de livro em 1973, traz consigo a possibilidade de diversos
debates e questionamentos a respeito da cultura africana e tudo que engloba sua relevância. É
importante destacar que a novela acontece em Luanda, capital da Angola e esse detalhe pode
retratar os costumes, a escrita e a literatura daquele lugar e época.
É possível entender no decorrer do texto existe uma varredura sobre as esferas mais
complexas das problemáticas que envolviam o povo angolano desde os primórdios.
Nga Ndreza que só é chamada de Nga Muturi (senhora viúva) após a morte de seu
senhor, foi dada ainda jovem como pagamento de uma dívida de seu tio, vale lembrar que
esse era um costume daquela época, ela que era do interior foi morar em Luanda e ser criada e
concubina de um homem branco. No decorrer da história é possível perceber que ela por
diversas vezes foi vítima de várias crueldades advindas de seu patrão, chegando até mesmo a
ser maltratada.
Só depois da morte do seu patrão é que ela descobre que era sua principal herdeira,
como isso ela acha que finalmente vai conseguir o respeito da elite branca a qual ela convivia,
mas é a partir daí começa com ela um certo jogo de interesses por parte dessas pessoas.
Todo esse jogo de interesses retrata bem aquela sociedade, já que as relações ali
presentes fogem do espontâneo e ficam somente do âmbito do fingimento, onde cada um visa
apenas interesses próprios, como é possível perceber nas cenas que relatam o velório e enterro
do ex-patrão de Nga Muturi.
É diante essa sociedade que ela quer ser aceita e para isso vive todo um processo de
negação da sua cor e de suas origens, representando o desejo do africano em ser branco, algo
que não era único dela. Esse desejo e todo esse processo de negação é algo presente na
literatura angolana, já que retrata a realidade daquele povo.
Mesmo que sua primeira publicação sendo feita anteriormente a todo o processo de
evolução da literatura angolana, o romance já traz questionamentos necessários para o
reconhecimento do valor daquela cultura e da identidade dos que a ela pertencem.
A LITERATURA AFRICANA E AS EVIDÊNCIAS DO PROCESSO DE
NEGAÇÃO DAS ORIGENS NA NOVELA NGA MUTURI

Para que ocorra um maior entendimento dos conflitos e questões relevantes presentes
na novela, é necessário que haja também um conhecimento sobre algumas questões do
processo de evolução e aceitação da literatura africana, mesmo que de forma superficial, já
que é um tempo bastante extenso.
Apesar de ser português, Alfredo Troni, autor do texto, teve seu destaque por lutar em
benefício das populações nativas africanas, o que resultou numa perseguição por parte da
coroa portuguesa, já que ele nutria esse sentimento de humanidade e justiça, tentando de
alguma forma reparar os males causados aquele povo. Foi através de Nga Muturi, que Alfredo
Troni conseguiu evidenciar uma narrativa voltada para elevação de uma negra dentro daquela
sociedade, algo que marcou aquele período, já que não era comum esse tipo de narrativa e que
serviu como base para outras histórias.
De acordo com Fonseca e Moreira (2007) o escritor africano estava no meio de duas
realidades distintas que eram retratadas, a sociedade colonial e a africana, no momento em
que escreviam era evidente que se moviam pelas duas atmosferas, mesmo que de forma
coagida, recebendo influência de ambos. Para que seus escritos fossem aceitos pela sociedade
era necessário nele ser apresentados traços europeus.
A literatura africana como um todo passou por um longo processo de identificação e
aceitação, vivenciado fases que vão desde a alienação cultural, passando pelo momento de
uma maior apreensão da realidade, retrata também o momento de entendimento de colonizado
até chegar no momento de uma liberdade de escrita, evidenciando uma honra ao que foi
conquistado.
Fazendo um apanhado mais histórico e relacionando-o com a trama é possível
perceber através dos estudos de Fonseca e Moreira (2007) que a novela traz consigo o que
mais tarde seria conhecido dentro da literatura africana como uma fase de resistência, já que
nela o autor defende a sua cultura, essa fase perpassa até mesmo o período de assimilação, já
que nesse momento o objetivo principal é repetir a forma e escrita europeia.
Discorrendo um pouco sobre a literatura africana dentro de Angola, país de origem da
novela, já que a trama passa em sua maior parte na sua capital, Luanda, pode-se perceber que
seu histórico não foge muito da totalidade que envolve essa literatura, já que no país também
ocorreu o processo de interferência dos percussores de cunho social, cultural e estético.
Posteriormente, a literatura angolana ficou marcada pelo movimento “Vamos
descobrir Angola”, que de acordo com Fonseca e Moreira (2007) que tinha como propósito
interromper todo aquele tradicionalismo cultural imposto pelos colonizadores. A partir
daquele momento o foco seria Angola e tudo que envolvesse sua cultura e suas dificuldades.
Dentro da novela é possível perceber uma crítica social, já que a personagem principal
vive esse momento de alienação cultural, nela é dramatizado o processo de aculturação, já que
Nga Muturi vive a negar e esconder suas origens e tenta a todo momento encaixar-se numa
sociedade preconceituosa, que só se relacionava com ela por interesses próprios.
Em diversos momentos da trama é possível ver a necessidade de negação de suas
origens, um momento específico é quando o narrador fala que ela “[...] Esqueceu-se da
primeira época da sua vida, e respondia com umas reticências duvidosas às perguntas que lhe
faziam sobre sua origem.” (TRONI, p. 36).
Em um outro momento é relatado que quando perguntam sobre sua origem, ela fala
que “[...] – Que não sabia bem – isto com ares maliciosos – quem era o pai, mas que se
lembrava de um branco quando era pequenita, que tomava nos braços e sentava no colo à
mesa.” (TRONI, p. 36).
A necessidade de aprendizagem da fala dos brancos, também é algo que identifica esse
processo. Já que ali ela é “obrigada” a deixar de lado suas origens. É relatado no texto que
depois de alguns anos Nga Muturi “[...] tinha aprendido um pouco a língua dos brancos, e já
não era desajeitada no vestir dos panos como quando viera.” (TRONI, p. 35). Reforçando a
necessidade daquilo para encaixar-se nos moldes estabelecidos daquele povo.
Essa questão da linguagem é bastante recorrente em inúmeras sociedades dominada já
que em diversos momentos da história é evidenciado que essa questão como um instrumento
de dominação, fazendo com que junto dessa língua seja deixado costumes e expressões que
sinalizam um povo.
Toda essa negação pode ser explicada pela imagem do negro naquela época e por todo
preconceito os envolvendo, já que a imagem do branco estava associada ao bom, o que não
acontecia com o negro.
Mesmo sem conhecer tanto daquela cultura, Nga Muturi queria pertence-la, pois
conseguia entender que somente dessa forma ela ia ser aceita pelos demais membros daquela
comunidade. Para isso se sujeitava a um jogo de interesses onde suas supostas amigas a
bajulavam somente com intuito dos benefícios em troca disso. Dentro do texto um dos
momentos que se pode perceber isso é quando o narrador fala “e como era fula, todas as
comadres que a iam visitar com a ideia de beber o vinho e comer o presunto que o patrão
comprava, diziam que sim, que ela tinha sangue branco.” (TRONI, p. 36). Vale acrescentar
aqui que o termo fula se refere a uma negra de cor clara, e essa era uma das justificativas para
um encaixe naquela sociedade.
Toda a construção da literatura africana está baseada de acordo com Fonseca e
Moreira (2007) numa abordagem diacrônica do conjunto de literaturas que estão a sua volta,
já que se trata de uma evolução constante ao longo do tempo, objetivando uma identificação
cultural e uma conquista que evolui gradativamente sobre sua consciência nacional.
Esse processo é gradual e ao longo do tempo porque a aceitação não somente dentro
da literatura também foi, em Nga Muturi é possível perceber isso em todo o texto, tanto é que
ela a todo mundo está se submetendo às imposições das famílias e pessoas que convive.
Falando um pouco sobre a estruturação da história, é possível entender de acordo com
o contexto e sua forma que se trata de uma novela pois ela “é um romance mais curto, isto é,
tem um número menor de passagens, conflitos e espaços ou os tem igual ao numero do
romance, com a diferença que a ação no tempo é mais veloz[...]” (GANCHO,2002, p.07). Na
trama trabalhada percebe-se isso a todo momento, uma narrativa curta, com poucos
personagens, alguns evidenciados apenas por sua profissão ou função, onde o desenrolar da
história acontece sem delongas.
Nessa novela existe uma narrativa com um narrador em terceira pessoa, de forma
onisciente, sendo aquele que não sabe tudo sobra a história. Esse narrador em terceira pessoa
“[...] é o narrador que está fora dos fatos narrados, portanto seu ponto de vista tende a ser mais
imparcial [...]” (GANCHO, 2002, p. 27). É importante também ressaltar que esse narrador se
torna um personagem fundamental para a história, já que ele conduz toda essa narrativa e esse
jogo de ironias e duplos sentidos.
O narrador que não é caracterizado dentro da novela, lá ele é somente o narrador ao
passo que conta a história também permite uma abertura para que seja exposta a fala das
personagens. É necessário então estar atento a história e ao contexto dela para poder perceber
melhor algumas passagens.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

É possível entender a partir da leitura da novela Nga Muturi e dos textos que serviram
como base para uma análise ainda que não tão profunda acerca desta, que em diversos
momentos foi percebido todo esse processo de negação da origem da personagem principal,
seja ele por diversos fatores.
Inúmeras são as influencias sofridas por Nga Muturi para querer pertencer a um grupo
social que não fazia parte de seu mundo. Sua infância, sua venda em troca de uma dívida, toda
a conjuntura social vivida pelos negros naquela época, a ideia que o negro estava associado a
algo ruim e somente o branco poderia se atrelar as coisas boas, dentre várias outras.
Através dessa literatura africana, mais especificamente angolana, é concebível
compreender uma serie de problemáticas envolvendo aquele povo, questões essas que são
refletidas até os dias atuais. Daí a literatura, mais uma vez, serve como um clamor para que
exista um reconhecimento daquela cultura tão oprimida, além de servir como uma maneira de
denunciar problemas e injustiças por muitas vezes recorrentes naquele povo.
O autor retratou com bastante inteligência fatos que viriam à tona em diversos
momentos posteriores e tratou todos esses questionamentos sobre o processo de negação e a
ascensão da literatura africana, com todas as suas influências e pertinências.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FONSECA, Maria Nazareth Soares; MOREIRA, Terezinha Taborda. Panorama das


literaturas africanas de língua portuguesa. Caderno Cespuc de pesquisa. Série ensaios.
V.16, p. 13-69, 2007.
GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. São Paulo: Ática, 2002. Série
Principios.
TRONI, Alfredo. Nga Muturi: cenas de Luanda. Lisboa. Edições 70.

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