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AMBIENTE
1. Doutor em Geografia pela Eberhard Karls Universität Tübingen (Alemanha). Professor Titular da Universidade Federal do
Rio de Janeiro. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7398-3170. E-mail: mlopesdesouza@terra.com.br.
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Na esteira de uma negligência que durou muitos anos (e ainda dura, apesar dos esforços aqui
e ali), um conceito-chave, em especial, permaneceu subteorizado: ambiente. Poucos geógrafos
souberam ou quiseram dar o devido valor a esse conceito. O empenho de Dirce Suertegaray (vide,
p.ex., Suertegaray [2001], e, também, os ensaios contidos em Suertegaray [2017 e 2021]) tem sido
uma raridade, e não só no Brasil. Essa negligência foi e tem sido, a um só tempo, um reflexo e um
fator de alimentação de uma dificuldade em lidar com uma realidade social crescentemente marcada
pela presença dos hibridismos. As consequências desse descuido ou menosprezo têm sido
devastadoras para os geógrafos, que perderam (ou não chegaram a ganhar) protagonismo em toda
uma série de debates públicos politicamente cruciais, como aqueles sobre a reforma do Código
Florestal, a alteração do sistema de licenciamento ambiental e o novo marco legal do saneamento,
para só citar alguns casos brasileiros recentes.
O que é, todavia, o ambiente?
Se o entendermos como “meio ambiente”, o esvaziaremos de seu conteúdo social. Isso porque,
na tradição semântica das línguas neolatinas ibéricas, o “meio ambiente” (e seus equivalentes em
castelhano, catalão e galego) é usualmente tomado como sinônimo de “ambiente natural” (o natural
environment dos anglófonos). Em outras palavras, a sociedade é vista como algo exterior ao ambiente
(ao passo que o ambiente, de sua parte, é encarado como algo que meramente “envolve” a
sociedade); na melhor das hipóteses, a sociedade é tida como um fator entre outros, um abstrato
“fator antrópico” – sem que se enxerguem contradições sociais, assimetrias estruturais, classes e
frações de classe, clivagens raciais e de gênero, e por aí vai. Claro está que essa acepção,
lamentavelmente hegemônica, é demasiado restritiva. Para contornar essa leitura mutiladora, há
quem anteponha o prefixo “socio” ao adjetivo “ambiental” em algumas circunstâncias (impactos
“socioambientais”, conflitos “socioambientais” etc.). Não chega a ser uma aberração, pois se
compreende a louvável intenção; o resultado, porém, não deixa de ser o de incorrer em uma
redundância. O remédio empregado é um paliativo que, ao fim e ao cabo, contribui para o
agravamento da doença.
Não tratamos aqui, por isso, do “meio ambiente”, mas sim do ambiente integral ou,
simplesmente, ambiente. Qual é o alcance desse conceito? Qual seria a sua utilidade analítica? Qual
a sua relevância social?
O ambiente é um conceito totalizante ou, se preferirmos, “holístico” (desde que não seja um
holismo antidialético, que entronize o todo e sacrifique as partes). Daí vem a sua sedução; mas vem
daí, também, enquanto conceito híbrido e abrangente por excelência, seu caráter desafiador. Um
ambiente pode ser, sem dúvida, um paleoambiente – por exemplo, o ambiente terrestre no qual
viveram e reinaram os dinossauros por cerca de 170 milhões de anos, até se extinguirem durante o
Cretáceo, 66 milhões de anos atrás. Para os seres humanos, contudo, os ambientes que interessam
mais diretamente são indescoláveis da presença do Homo sapiens sapiens, que teria surgido sobre a
face da Terra mais ou menos há 300.000 anos, na África. Em outras palavras: para nós, na prática, o
ambiente é, sempre, o complexo conjunto formado pela interação de processos, dinâmicas, feições
e ciclos geobiofísicos com as relações sociais. Nos marcos desse conjunto complexo, e ao longo de
uma intrincada coevolução biológico-cultural, a sociedade humana transformou e fez uso da
materialidade da biota, das rochas, dos solos e dos fatores climáticos (a sazonalidade, as chuvas),
transformando-se a si própria no decorrer do processo. Nunca apenas se adaptando passivamente,
e sempre atribuindo significado às intempéries, aos eventos catastróficos (relatos míticos,
interpretações religiosas etc.); porém, sem jamais deixar de “dialogar” e “negociar” com os
condicionamentos e as condições dos ecossistemas e geossistemas. “Diálogo” e “negociação”
marcados, muitas vezes, pelo respeito (o que não significa uma idílica ou romantizada “harmonia”
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sem solavancos); e, em outros casos, notadamente sob a tradição religiosa judaico-cristã e sua
narrativa de uma “criação” posta por Deus para desfrute e domínio dos homens, caracterizados por
uma tentativa de subjugar incessantemente os entes não humanos (plantas e animais, rios,
pântanos...). Com o advento do modo de produção capitalista, o descompasso entre o “eco” da
ecologia e o “eco” da economia foi alçado a um patamar inédito: o ritmo da acumulação de capital,
doravante, tentaria ditar todos os ritmos e toda a produção do espaço, em detrimento dos ritmos dos
ecossistemas.
Queiramos ou não, somos, tanto o autor destas linhas quanto os seus presumidos leitores, fruto
de uma profunda e dramática ocidentalização do mundo. Incompleta, fragmentária, imperfeita;
rechaçada e modificada pela força de resistências culturais; mas, ainda assim, implacável e, pelo
menos em larga medida, seguramente irreversível. Uma ocidentalização que, além do mais, feita à
custa de genocídios e etnocídios, não deixa de representar um legado ambivalente, já que nem tudo
– de modos de pensar, valores éticos e noções políticas até confortos materiais – se revela
merecedor de reprovação (ou vamos recusar as noções de “autonomia”, “democracia”, “anarquia” e
“isonomia”, a crítica do patriarcado e de numerosos preconceitos, o filosofar como interrogação
radical e ilimitada?...). Diferenciar entre “natureza” e “sociedade” faz parte dessa herança ambivalente.
Ao escrever sobre uma “natureza”, reconhece e salienta o autor que faz sentido distinguirmos
entre processos e formas naturogênicos, geobiofísicos, de um lado, e processos e formas sociais, de
outro. Os gregos antigos tinham duas palavras para designar esses domínios do real: physis, de onde
se originam as palavras “física” e “físico”, e que se referia a uma esfera da realidade que não tinha sido
criada por mãos humanas e não estava submetida às leis da sociedade; e nómos, que significa “lei”,
mas não no sentido restrito de lei formal, e sim no sentido amplo de norma, código de conduta,
convenção social. Ou seja, aquilo que é, indiscutivelmente, criação social.
Distinguir entre physis e nómos, dessa maneira, é uma tradição grega incorporada pelo que veio
a ser mais tarde o Ocidente – e que, com a Conquista da América, a colonização de vários continentes,
o imperialismo e, por fim, a globalização, espalhou-se pelo mundo inteiro. Essa distinção nos é útil e,
acima de tudo, nos parece razoável; tanto é que, por mais que denunciemos a separação cartesiana
e rígida entre “natureza” e “sociedade”, temos enorme dificuldade para renunciar a alguma
diferenciação. Outras sociedades e culturas lidam com o mundo de outro modo: é comum que as
distinções e classificações reconheçam, por exemplo, que (certos) animais e até mesmo rios e
montanhas possuem uma “alma”, quando não poderes mágicos. Para essas sociedades e culturas,
nossa linha divisória, que historicamente serviu, entre outras coisas, para justificar uma dominação
dos animais humanos sobre os animais não humanos – e, também, a dominação de alguns grupos
de humanos sobre outros, reputados como “menos humanos” e “mais próximos da natureza”, isto é,
das “bestas feras” –, se afigura estranha ou mesmo absurda. Para nós, no entanto, a distinção entre
physis e nómos não possui apenas aspectos inconvenientes ou censuráveis, desde que seja vista
como relativa e seja sempre dialetizada. No limite, essa distinção nos permite compreender que,
assim como não devemos estender os métodos e os critérios das ciências da natureza ao domínio
da sociedade (distorção que não apenas caracteriza o positivismo, mas também está na base de
ideologias autoritárias como o “racismo científico”, a estigmatização de determinados
comportamentos e estilos de vida como “não naturais”, e assim sucessivamente), tampouco
devemos imaginar que é sensato antropomorfizar o universo inteiro ou buscar explicações místicas
(culturalmente explicáveis, mas infensas a procedimentos “racionais” de validação) para fenômenos
cosmológicos, astrofísicos, geológicos, meteorológicos ou biológicos. Para o bem e para o mal,
physis e nómos nos acompanham, e continuarão acompanhando.
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