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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
HH062 - História do Brasil III
Nome: Kelvin Barros Pereira
Trabalho 3 - Texto comparativo
Neste trabalho, colocarei em comparação o artigo de Seth Garfield, intitulado As
raízes de uma planta que hoje é o Brasil: os índios e o Estado-Nação na era Vargas, de
2000, e o capítulo de Sílvio Coelho dos Santos, intitulado “Os direitos indígenas no Brasil”,
que figura no livro A temática indígena nas escolas, de 1995. O primeiro autor é, atualmente,
professor da Universidade do Texas, em Austin, especializado em História do Brasil. Já o
segundo autor foi antropólogo, presidente da Associação de Antropologia e professor da
UFSC entre 1962 e 2008.
Os dois textos foram confeccionados com objetivos diferentes, mas são interessantes
para fazer, com os olhos de hoje, uma análise das mudanças institucionais nas relações e nas
políticas indigenistas. A dinâmica que buscarei fazer dividida em duas partes: visitarei
primeiro os argumentos de Seth, que trazem informações sobre essa política no Estado Novo,
em seguida visitarei dos Santos, que apresenta informações do período bem mais próximo de
nós, da Constituição de 1988 - ainda que faça alguns recuos à outros períodos. É nessa
segunda parte que, junto com a exposição dos argumentos de dos Santos, farei a comparação,
buscando expor as mudanças visíveis nos dois momentos das questões indígenas do Brasil.
Garfield, em seu texto, analisa as construções culturais por meio das quais o Estado
Novo (1937-1945) buscou dominar a população indígena, em seu processo de formação
pautado pela centralização do poder federal através da integração nacional. A política
indígena do Estado Novo delineia-se como um projeto ambíguo moldado por fatores
históricos e atores sociais. Os índios emergem não como cifras, mas como interlocutores
sociais que seguem e/ou contestam a política estatal, criando novas possibilidades
(GARFIELD, 2000, p. 14)
Vargas via nos indígenas as verdadeiras raízes brasileiras, que serviriam como base de
construção do Brasil novo. Tendo isso como base ideológica, seus planos iam no sentido de
fixar esses homens à terra, a fim de acabar com o nomadismo e converter os índios e caboclos
em cidadãos produtivos. Essa produtividade deu a tônica deste momento nas políticas
indigenistas: havia uma necessidade de integrar os índios à lógica do trabalho. Para isso
trabalhou o Serviço de Proteção aos Índios, criado no governo Vargas (GARFIELD, 2000, p.
15). Somado a isso, havia um interesse nas riquezas materiais das regiões do interior, que
eram ocupadas majoritariamente pelos indígenas, objetivando a “prosperidade da nação”.
Para que se conseguisse isso, era necessária uma ocupação desse espaço, feita pelo Estado
Novo através de diversas instituições: “Ao proporcionar escolas e serviços de saúde para
índios e sertanejos, e redes de comunicação e transporte, o governo consolidaria a nação
como um todo orgânico” (GARFIELD, 2000, p. 16).
Essa incorporação foi pautada por um programa ideológico voltado para a ideia de
“progresso”, ancorada num pensamento positivista. Primeiramente, colocou-se os índios
como heróis, sem mesmo serem ouvidos. Para isso, Cândido Rondon, diretor do Conselho
Nacional de Proteção aos Índios (criado em 1939), formulou teses de contribuições indígenas
para a história brasileira em sua assistência aos portugueses, omitindo a deslealdade deles
para com esses e minimizando as atrocidades cometidas contra os índios (GARFIELD, 2000,
p. 17). Em segundo lugar, no plano prático, para garantir a sobrevivência dos índios, o SPI
demarcaria suas terras, tais como estabelecido pela Constituição Federal de 1937. Mas, como
a cultura e identidade indígenas eram vistas como transitórias – um estágio evolutivo –, os
lotes demarcados não seriam necessários para manter o seu modo de vida. Rondon,
acreditava no progresso inevitável das sociedades como evolução dos chamados estágios de
primitivismo ao racionalismo científico ou “positivo”, de forma que chegado esse último
momento, o índio estaria completamente integrado à sociedade brasileira (GARFIELD, 2000,
p. 17).
Aliada à essa integração estava a miscigenação: o SPI passou a colocar como
obstáculo à harmonia racial e ao progresso nacional o “imigrante inassimilável”,
privilegiando o índio como parceiro, desde a “conquista” portuguesa, que fortificara a nação
brasileira desde então através de alianças sexuais e militares (GARFIELD, 2000, p. 22).
Contudo a construção dessa ideia tinha como objetivo mascarar uma realidade diferente: os
índios apresentavam uma alternativa às leis e ao sistema sócio-econômico, tudo em que a
legitimidade do governo se apoiava (GARFIELD, 2000, p. 23). Dessa forma, essa
heroicização buscava trazer ao lado do governo essa força.
Até aqui notamos como há a construção de um projeto ditada pelo Estado Novo.
Garfield argumenta que a tutela permitiria o descuido sistemático dos interesses indígenas,
com as políticas sendo implementadas sem consulta aos grupos indígenas. À época, havia um
esforço em reproduzir a noção de que esses grupos eram incapazes de cuidar de seus próprios
assuntos, colocando-os enquanto “crianças que precisam ser educadas”. Somado a isso,
houve esforço para tornar genérica a imagem do índio, resumindo os costumes e os
dialetos/idiomas de cerca de 200 grupos indígenas no Brasil (GARFIELD, 2000, p. 29).
Silvio Coelho dos Santos, em seu texto, expõe os termos da questão indígena que
pautaram a escrita da Constituição de 1988, atualmente vigente. Um primeiro aspecto, que já
aponta para uma diferenciação, se dá logo no começo do texto:
O reconhecimento dos “direitos originários sobre as terras que tradicionalmente
ocupam” e a explicitação do respeito à diferença cultural e lingüística, bem como a
obrigatória consulta aos interesses desses povos em caso de aproveitamento de
recursos hídricos ou de exploração de minerais em suas terras, realmente
significaram conquistas (SANTOS, 1995, p. 87)

Vemos que, diferentemente daquilo exposto no texto de Garfield, este projeto deixa os
interesses dos povos indígenas à frente do aproveitamento dos recursos das terras que
ocupam, conferindo-lhes o poder de vetar quaisquer projetos do Estado de exploração desses
recursos que fossem lhes afetar diretamente. Somado a isso, fica claro também o respeito à
diferença cultural e linguística, que, no projeto varguista, foi atropelado em detrimento de
simplificação em torno do termo “índio”. Aqui, é válido relembrarmos que estamos tratando
de dois contextos diferentes: um nas décadas de 1930 e 40, outro no final da década de 1980.
Seria necessária uma análise muito mais detalhada dessas questões, a fim de não cair em
anacronismos ou julgamentos. O próprio texto afirma a especificidade do contexto da
redemocratização: lideranças indígenas de diferentes povos estiveram junto ao Congresso
Constituinte, reivindicando direitos, apoiadas por setores diversos da sociedade -
antropólogos, juristas, religiosos, indigenistas (SANTOS, 1995, p. 87). Isso se diferencia
muito do próprio momento em que as políticas indigenistas varguistas foram colocadas em
prática. Como visto no texto de Garfield, o Estado Novo foi uma ditadura à qual a Marcha
para o Oeste serviu, entre outras coisas, como legitimador de uma integração nacional
sufocante, “esmagando” os indígenas pela retórica oficial. Há pouca ou nenhuma participação
prática ou institucional indígena nesse processo durante o governo varguista, e quando há,
como no caso de Lírio Arlindo do Vale, o trabalho feito ecoa costumes brancos (GARFIELD,
2000, p. 29).
Santos segue seu texto explicando que a CF de 1988 foi o primeiro texto
constitucional que explicitou as relações do Estado brasileiro com os povos indígenas. Isso já
traz uma diferenciação para a forma como a questão foi tocada pelo Estado Novo, que operou
com uma política de estado pautada na criação de órgãos de tutela, deixando de lado
quaisquer definições de direitos. Ainda nisso, Santos nota como se eliminaram, na
Constituição de 1988, as restrições feitas aos indígenas no tocante a sua capacidade civil: a
proposta de tutela foi substituída por “um conjunto de instrumentos que tem como base o
princípio de que a proteção da União deve ser exercida a partir dos direitos e bens coletivos
das sociedades e comunidades indígenas” (SANTOS, 1995, p. 93). Segundo o autor - aqui já
facilitando meu trabalho de comparação -, a situação jurídica dos índios evoluiu
substancialmente; a ideia de eles serem indivíduos “relativamente incapazes” que devem ter a
proteção do estado até que se integrem à comunhão nacional, conforme vista nas ideias
positivistas ortodoxas de Cândido Rondon expostas por Garfield, é deixada de lado. Os
indígenas agora assumem “a condição de membros de sociedades distintas e diferenciadas
que possuem direitos especiais, os quais devem ser protegidos nas relações com o Estado e
com a sociedade brasileira” (SANTOS, 1995, p. 93).
Não obstante, é interessante um último dado trazido por Santos sobre isso: a
Constituição de 1934, anterior ao Estado Novo, coloca como competência da União a
legislação sobre a incorporação dos “silvícolas” à comunhão nacional. Essa institucionalidade
da questão indígena aí expressa se aproxima muito daquela produção cultural da indianidade
apresentada por Garfield. No mesmo ano, ainda antes do Estado Novo, Vargas decretou que o
dia 19 de abril seria o Dia do Índio. Conforme Garfield (2000, p. 18) explica, essa data nos
anos seguintes ocasionou “numerosos eventos culturais e cerimônias públicas”, que se
somaram também a exibições em museus, programas de rádio, discursos e filmes sobre os
índios organizados pelo Estado, com assistência da DIP. Dessa forma, unindo os dados
expostos pelos autores podemos apontar como a política varguista não se deteve somente ao
período do Estado Novo, mas se iniciou antes, na Constituinte, através de uma promoção de
produtos ideológicos e culturais, que envolviam os índios dentro desse projeto de integração
que se materializaria a partir de 1937.
Concluindo, acredito que o trabalho acima exposto, apesar de articular momentos
diferentes nas relações entre o Estado e os indígenas, é um trabalho interessante para
pensarmos nos dias de hoje. Embora tenha ocorrido, conforme analisamos acima, uma
mudança - e melhora - radical da política varguista para a Constituição de 1988, vigente
atualmente, no tocante principalmente aos direitos das terras habitadas pelos indígenas,
vemos hoje um cenário de piora. Para citar um exemplo apenas, vimos recentemente a notícia
de que garimpeiros e pecuaristas buscam junto ao Conselho Nacional dos Povos e
Comunidades Tradicionais o status de povos tradicionais (DANTAS, 2021). Dessa forma,
acredito que debater momentos diferentes das políticas indigenistas contribuiu para o
pensamento crítico do presente, principalmente no tocante ao papel dos governos nas idas e
vindas, progressos e retrocessos dos direitos desses povos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DANTAS, Carolina. Garimpeiros e pecuaristas querem o status de 'povos tradicionais' e
comitê analisa; veja em 7 pontos. G1, s.l., 09 dez. 2021. Disponível em: <
https://g1.globo.com/meio-ambiente/noticia/2021/12/09/garimpeiros-e-pecuaristas-querem-o-
status-de-povos-tradicionais-e-comite-analisa-veja-em-7-pontos.ghtml >. Acesso em 08 dez.
2021.
GARFIELD, Seth. "As raízes de uma planta que hoje é o Brasil: os índios e o Estado-Nação
na era Vargas". In: Rev. Brasileira de História, 20 (39), 2000. Disponível em: <
https://www.scielo.br/j/rbh/a/5WGW9qddWRkHSnkrckzLHrx/?lang=pt >. Acesso em 08
dez. 2021.
SANTOS, Sílvio Coelho dos. "Os direitos dos indígenas no Brasil". In: A temática indígena
na Escola. Novos subsídios para professores de 1o e 2o graus. São Paulo: Contexto, 2011.

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