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Vemos que, diferentemente daquilo exposto no texto de Garfield, este projeto deixa os
interesses dos povos indígenas à frente do aproveitamento dos recursos das terras que
ocupam, conferindo-lhes o poder de vetar quaisquer projetos do Estado de exploração desses
recursos que fossem lhes afetar diretamente. Somado a isso, fica claro também o respeito à
diferença cultural e linguística, que, no projeto varguista, foi atropelado em detrimento de
simplificação em torno do termo “índio”. Aqui, é válido relembrarmos que estamos tratando
de dois contextos diferentes: um nas décadas de 1930 e 40, outro no final da década de 1980.
Seria necessária uma análise muito mais detalhada dessas questões, a fim de não cair em
anacronismos ou julgamentos. O próprio texto afirma a especificidade do contexto da
redemocratização: lideranças indígenas de diferentes povos estiveram junto ao Congresso
Constituinte, reivindicando direitos, apoiadas por setores diversos da sociedade -
antropólogos, juristas, religiosos, indigenistas (SANTOS, 1995, p. 87). Isso se diferencia
muito do próprio momento em que as políticas indigenistas varguistas foram colocadas em
prática. Como visto no texto de Garfield, o Estado Novo foi uma ditadura à qual a Marcha
para o Oeste serviu, entre outras coisas, como legitimador de uma integração nacional
sufocante, “esmagando” os indígenas pela retórica oficial. Há pouca ou nenhuma participação
prática ou institucional indígena nesse processo durante o governo varguista, e quando há,
como no caso de Lírio Arlindo do Vale, o trabalho feito ecoa costumes brancos (GARFIELD,
2000, p. 29).
Santos segue seu texto explicando que a CF de 1988 foi o primeiro texto
constitucional que explicitou as relações do Estado brasileiro com os povos indígenas. Isso já
traz uma diferenciação para a forma como a questão foi tocada pelo Estado Novo, que operou
com uma política de estado pautada na criação de órgãos de tutela, deixando de lado
quaisquer definições de direitos. Ainda nisso, Santos nota como se eliminaram, na
Constituição de 1988, as restrições feitas aos indígenas no tocante a sua capacidade civil: a
proposta de tutela foi substituída por “um conjunto de instrumentos que tem como base o
princípio de que a proteção da União deve ser exercida a partir dos direitos e bens coletivos
das sociedades e comunidades indígenas” (SANTOS, 1995, p. 93). Segundo o autor - aqui já
facilitando meu trabalho de comparação -, a situação jurídica dos índios evoluiu
substancialmente; a ideia de eles serem indivíduos “relativamente incapazes” que devem ter a
proteção do estado até que se integrem à comunhão nacional, conforme vista nas ideias
positivistas ortodoxas de Cândido Rondon expostas por Garfield, é deixada de lado. Os
indígenas agora assumem “a condição de membros de sociedades distintas e diferenciadas
que possuem direitos especiais, os quais devem ser protegidos nas relações com o Estado e
com a sociedade brasileira” (SANTOS, 1995, p. 93).
Não obstante, é interessante um último dado trazido por Santos sobre isso: a
Constituição de 1934, anterior ao Estado Novo, coloca como competência da União a
legislação sobre a incorporação dos “silvícolas” à comunhão nacional. Essa institucionalidade
da questão indígena aí expressa se aproxima muito daquela produção cultural da indianidade
apresentada por Garfield. No mesmo ano, ainda antes do Estado Novo, Vargas decretou que o
dia 19 de abril seria o Dia do Índio. Conforme Garfield (2000, p. 18) explica, essa data nos
anos seguintes ocasionou “numerosos eventos culturais e cerimônias públicas”, que se
somaram também a exibições em museus, programas de rádio, discursos e filmes sobre os
índios organizados pelo Estado, com assistência da DIP. Dessa forma, unindo os dados
expostos pelos autores podemos apontar como a política varguista não se deteve somente ao
período do Estado Novo, mas se iniciou antes, na Constituinte, através de uma promoção de
produtos ideológicos e culturais, que envolviam os índios dentro desse projeto de integração
que se materializaria a partir de 1937.
Concluindo, acredito que o trabalho acima exposto, apesar de articular momentos
diferentes nas relações entre o Estado e os indígenas, é um trabalho interessante para
pensarmos nos dias de hoje. Embora tenha ocorrido, conforme analisamos acima, uma
mudança - e melhora - radical da política varguista para a Constituição de 1988, vigente
atualmente, no tocante principalmente aos direitos das terras habitadas pelos indígenas,
vemos hoje um cenário de piora. Para citar um exemplo apenas, vimos recentemente a notícia
de que garimpeiros e pecuaristas buscam junto ao Conselho Nacional dos Povos e
Comunidades Tradicionais o status de povos tradicionais (DANTAS, 2021). Dessa forma,
acredito que debater momentos diferentes das políticas indigenistas contribuiu para o
pensamento crítico do presente, principalmente no tocante ao papel dos governos nas idas e
vindas, progressos e retrocessos dos direitos desses povos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DANTAS, Carolina. Garimpeiros e pecuaristas querem o status de 'povos tradicionais' e
comitê analisa; veja em 7 pontos. G1, s.l., 09 dez. 2021. Disponível em: <
https://g1.globo.com/meio-ambiente/noticia/2021/12/09/garimpeiros-e-pecuaristas-querem-o-
status-de-povos-tradicionais-e-comite-analisa-veja-em-7-pontos.ghtml >. Acesso em 08 dez.
2021.
GARFIELD, Seth. "As raízes de uma planta que hoje é o Brasil: os índios e o Estado-Nação
na era Vargas". In: Rev. Brasileira de História, 20 (39), 2000. Disponível em: <
https://www.scielo.br/j/rbh/a/5WGW9qddWRkHSnkrckzLHrx/?lang=pt >. Acesso em 08
dez. 2021.
SANTOS, Sílvio Coelho dos. "Os direitos dos indígenas no Brasil". In: A temática indígena
na Escola. Novos subsídios para professores de 1o e 2o graus. São Paulo: Contexto, 2011.