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UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA

FÁBIO CÉSAR MELCHIOR

A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL APLICADA NA ATIVIDADE JURISDICIONAL


COMO FORMA DE REALIZAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL À
CELERIDADE PROCESSUAL

Florianópolis
2021
FÁBIO CÉSAR MELCHIOR

A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL APLICADA NA ATIVIDADE JURISDICIONAL


COMO FORMA DE REALIZAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL À
CELERIDADE PROCESSUAL

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado


ao Curso de Graduação em Direito, da
Universidade do Sul de Santa Catarina, como
requisito parcial para obtenção do título de
Bacharel em Direito.

Orientador: Wânio Wiggers, mestre.

Florianópolis
2021
FÁBIO CÉSAR MELCHIOR

A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL APLICADA NA ATIVIDADE JURISDICIONAL


COMO FORMA DE REALIZAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL À
CELERIDADE PROCESSUAL

Este Trabalho de Conclusão de Curso foi


julgado adequado à obtenção do título de
Bacharel em Direito e aprovado em sua forma
final pelo Curso de Graduação em Direito, da
Universidade do Sul de Santa Catarina.

Florianópolis, 28 de junho de 2021.

______________________________________________________
Professor e orientador WÂNIO WIGGERS, MSC.
Universidade do Sul de Santa Catarina

______________________________________________________
Profa. DANIELLE MARIA ESPEZIM DOS SANTOS, DRA
Universidade do Sul de Santa Catarina

______________________________________________________
Prof. HERCILIO EMERICH LENTZ, ESP.
Universidade do Sul de Santa Catarina
TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE

A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL APLICADA NA ATIVIDADE JURISDICIONAL


COMO FORMA DE REALIZAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL À
CELERIDADE PROCESSUAL

Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo aporte
ideológico e referencial conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do Sul de
Santa Catarina, a Coordenação do Curso de Direito, a Banca Examinadora e o Orientador de
todo e qualquer reflexo acerca deste Trabalho de Conclusão de Curso.
Estou ciente de que poderei responder administrativa, civil e criminalmente em caso
de plágio comprovado do trabalho monográfico.

Florianópolis, 28 de junho de 2021.

____________________________________
NOME ALUNO
Para Sofia.
“O anjo salva-se pelo conhecimento,
o animal pela ignorância;
entre os dois o homem permanece em litígio.” (Rumi).
RESUMO

A crise enfrentada pelo Poder Judiciário, materializada no grande congestionamento processual


e no elevado montante de recursos destinados ao custeio da jurisdição, extrapola a duração
razoável do processo. Tal situação implica em ofensa ao princípio da celeridade processual,
capaz de prejudicar toda a prestação jurisdicional bem como acesso à justiça, que resulta em
descrédito na sua capacidade de promover a pacificação social. Neste contexto, apresenta-se a
Inteligência Artificial como ferramenta capaz de otimizar a produtividade dos magistrados para
enfrentar a enorme demanda. Assim, aborda-se técnicas de IA passíveis de minimizar o
problema da ausência de celeridade processual, bem como define-se o conceito e seu histórico.
Posteriormente, trata-se dos Direitos Fundamentais, com ênfase na celeridade processual. Por
fim, visto que a utilização de sistemas inteligentes no processo pode implicar em ofensa ao
exercício dos Direitos Fundamentais, verifica-se quais os riscos envolvidos, formas de mitigá-
los e sistemas de Inteligência Artificial construídos que aferiram resultados positivos no
ordenamento jurídico nacional.

Palavras-chave: Celeridade Processual. Inteligência Artificial. Crise do Poder Judiciário.


LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 - Linha do tempo da inteligência artificial ................................................................. 16


Figura 2 - Repercussão da vitória do IBM Deep Blue sobre Gary Kasparov. ......................... 18
Figura 3 - Fluxograma de machine learning ............................................................................ 19
Figura 4 - O teste de Turing...................................................................................................... 23
Figura 5 - Etapas do Processamento de linguagem natural ...................................................... 25
Figura 6 - Processamento de linguagem natural (análises realizadas) ..................................... 26
Figura 7 - Classificação dos Direitos Fundamentais ................................................................ 35
Figura 8 - Percentual do PIB empregado no custeio do Poder Judiciário ................................ 46
Figura 9 - Demonstrativo do percentual do orçamento destinado ao pagamento de pessoal ... 47
Figura 10 - Movimentação processual do STJ em 2020 .......................................................... 58
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO................................................................................................................... 9
2 INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL ..................................................................................... 12
2.1 DEFINIÇÃO .................................................................................................................... 13
2.2 BREVE HISTÓRICO ...................................................................................................... 15
2.3 APRENDIZADO DE MÁQUINA .................................................................................. 19
2.4 PROCESSSAMENTO DE LINGUAGEM NATURAL ................................................. 22
3 DIREITOS FUNDAMENTAIS ....................................................................................... 27
3.1 CONCEITUAÇÃO .......................................................................................................... 28
3.2 CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA ......................................................................... 30
3.3 CLASSIFICAÇÃO .......................................................................................................... 33
3.4 FUNÇÕES ....................................................................................................................... 38
3.5 LIBERDADES PÚBLICAS ............................................................................................ 40
3.5.1 Princípio da celeridade processual ............................................................................ 40
4 IA E O PRINCÍPIO DA CELERIDADE PROCESSUAL ........................................... 43
4.1 A PRESTAÇÃO DA ATIVIDADE JURISDICIONAL: PROBLEMAS
ENFRENTADOS ..................................................................................................................... 44
4.2 RISCOS PARA OS DIREITOS FUNDAMENTAIS DOS JURISDICIONADOS ........ 48
4.3 A UTILIZAÇÃO DA IA NA ATIVIDADE JURISDICIONAL ..................................... 53
4.3.1 Utilização nos tribunais brasileiros ........................................................................... 55
5 CONCLUSÃO ................................................................................................................... 59
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 62
9

1 INTRODUÇÃO

Cada revolução industrial trouxe em seu bojo inovações tecnológicas que


modificaram drasticamente a sociedade e os meios de produção. Atualmente, a Quarta
Revolução Industrial, amparada pela Inteligência Artificial, apresenta mecanismos que
possibilitam até mesmo que o trabalho de natureza intelectual, hodiernamente de prestação
humana na maioria dos cenários, seja realizado – ou ao menos apoiado – por máquinas.
Por óbvio o advento da Inteligência Artificial materializa muitos benefícios para a
sociedade, mas também desperta preocupações. Ainda que os pesquisadores estejam distantes
da singularidade (que propiciaria a criação de uma máquina capaz de sentir, pensar e ter
consciência de si mesmo) faz parte do imaginário coletivo os temores causados por um
apocalipse forjado na revolução das máquinas inteligentes – veja a quantidade de produções
artísticas e cinematográficas sobre o tema. Para outros, a maior preocupação é a do desemprego
em massa; por fim, há também aqueles que simplesmente temem que os agentes inteligentes
não sejam capazes de realizar em sua plenitude o trabalho humano, pensamento que os leva a
rejeitar preliminarmente a aplicação de IA sem análises mais aprofundadas.
Boa parte dos operadores do Direito apresentam esse último perfil, mais
conservador. Com alguma ressalva ao exagero da afirmação seguinte, um jurista do início do
século XX não perceberia grande diferença ao adentrar um tribunal nos anos 2000. É fato,
porém, que a diferença entre os períodos no cenário anteriormente descrito é irrisória quando
comparada com outras carreiras (medicina e engenharia, por exemplo). Tal quadro indica que,
com a superação dos preconceitos existentes, o Direito é uma área do conhecimento passível
de grandes inovações protagonizadas pelas técnicas de IA.
Concomitantemente, os relatórios emitidos pelo Conselho Nacional de Justiça
indicam que se vive uma crise no Poder Judiciário. Ainda que os juízes brasileiros estejam entre
os mais produtivos do mundo - um estudo da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB)
indica que a média de processos julgados por juiz em 2013 foi de 1.684 processos, enquanto
para os demais 42 países pesquisados foi de 736 - a taxa de congestionamento no judiciário
nacional é de 70%, ou seja, para cada 100 novos casos apenas 30 são concluídos – fato que
aumenta consideravelmente a fila por decisões.
Neste contexto, o presente trabalho abrange questões decorrentes da aplicação da
Inteligência Artificial no Poder Judiciário do ponto de vista técnico, ético e científico. Exprime-
se a problematização na seguinte pergunta: quais são as vantagens e desvantagens da adoção de
técnicas de inteligência artificial para a consecução da atividade jurisdicional do Estado no que
10

tange o exercício dos Direitos Fundamentais, com foco na celeridade processual? Para atingir
tal finalidade, vislumbra analisar o ecossistema formado pelo Direito e Inteligência Artificial,
bem como levantar as técnicas aplicadas na solução dos problemas cotidianos do Poder
Judiciário e evidenciar os impactos – positivos e negativos – dessas abordagens na sociedade,
com o foco no Princípio da Celeridade Processual.
Acerca dos procedimentos metodológicos, primeiramente a respeito dos objetivos,
este trabalho utilizará pesquisa exploratória, com a meta de clarificar o objeto de estudo (relação
entre Direito e Inteligência Artificial). Quanto aos procedimentos técnicos, empregar-se-á a
produção científica dos principais centros acadêmicos na área delimitada anteriormente, por
meio de bibliografia pertinente.
Por sua vez, o método dedutivo será adequado para partir de teorias e leis amplas
que descreverão e analisarão fenômenos particulares. Já o método de procedimento será o
monográfico, por apresentar o estudo um caráter investigativo em profundidade, porém, capaz
de avaliar diferentes vieses do mesmo problema. O universo a ser pesquisado é o delimitado
pelo Direito Brasileiro frente a aplicação das técnicas de IA, que por vezes são decorrentes de
produtos e pesquisas internacionais. Já a técnica para coleta de dados será baseada em dados
secundários – testes, artigos e demais publicações científicas – fato que evidencia o caráter de
pesquisa bibliográfica deste. Por fim, a análise e interpretação dos dados culminará em
respostas que podem ser interpretadas de forma global, expansíveis para todo o ordenamento
jurídico nacional.
Nesse sentido, a presente pesquisa será dividida em 5 (cinco) capítulos, sendo o
primeiro deles a introdução.
O segundo capítulo discorre sobre a tecnologias que viabilizam a utilização da
Inteligência Artificial em diversos setores econômicos, em especial o Direito. Após a definição
- em linhas gerais - desta área de pesquisa, trata-se do seu histórico – desde o advento do termo
até a aplicação em larga escala das técnicas mais modernas. Em seguida, é apresentado o estado
da arte na aplicação de IA ao Direito, consubstanciado em técnicas de aprendizado de máquina
e processamento de linguagem natural.
Na sequência, o terceiro capítulo elucida a base teórica jurídica sobre o qual este
trabalho se debruça: os princípios e garantias fundamentais, em especial o princípio da
celeridade processual. Para tal, são apresentadas as questões históricas que culminaram nos
direitos fundamentais, complementadas pelo arcabouço teórico que a doutrina solidificou em
relação ao tema.
11

Já o quarto capítulo elenca as principais dificuldades enfrentadas,


quantitativamente, pelo Poder Judiciário e apresenta como o uso de Inteligência Artificial pode
dirimi-los. Nesse liame, apresenta casos de sucesso aplicados no judiciário brasileiro, bem
como alguns internacionais. Contudo, visa também estabelecer limites e impedimentos de sua
aplicação e uso, para culminar no correto exercício da atividade jurisdicional.
Por fim, o quinto capítulo trata-se da conclusão, tendo por intuito responder a
problematização do tema.
12

2 INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

Este capítulo retrata o avanço tecnológico alcançado pelos pesquisadores de


Inteligência Artificial nas últimas décadas, suficiente para sua utilização em um ramo repleto
de formalismo, quiçá de conservadorismo: o Direito. A Tecnologia da Informação tem como
característica prevalente a redução do tempo gasto nas atividades que recebem o seu auxílio.
Nesse contexto, um problema hodierno dos tribunais brasileiros é a demanda pelos
jurisdicionados esmagadoramente maior que sua possibilidade de resolução; tal fato prejudica
drasticamente o princípio da duração razoável dos processos, situação que por vezes leva
descrédito à justiça sob a ótica do cidadão comum. Fica evidente, portanto, que aplicação de
processos computacionais para auxiliar o julgamento, em especial para reduzir o seu prazo,
seria de grande benefício para toda sociedade, em especial para a magistratura.
O raciocínio é extensível a todas as carreiras jurídicas, que poderiam peticionar
mais rapidamente, com menor emprego de recursos financeiros – já que, após a sua difusão
(com uso em larga escala), é provável que as atividades desempenhadas por uma máquina
demandem valores de menor montante (a mão de obra humana especializada é, em regra, cara)
- e com incremento no grau de certeza sobre a probabilidade de sucesso dos seus processos.
Todavia, é importante prezar pela qualidade das decisões e/ou petições, bem como garantir e
acompanhar os posicionamentos jurisprudenciais dos tribunais, requisitos os quais o
atendimento é passível de verificação por este trabalho.
Assim, a partir da segunda metade do século XX a tecnologia decorrente do
desenvolvimento da Ciência da Computação auxilia o homem nas mais diversas atividades.
Automação, corrida espacial, internet, computadores pessoais e smartphones são exemplos
marcantes do suporte provido pela tecnologia às ações humanas. A perspectiva é o aumento de
sua aplicação - tanto em abrangência (novas áreas) quanto em profundidade (auxiliando em
tarefas mais complexas).

De pilotos de avião e veículos, médicos, operadores no mercado financeiro, E-


commerce, agricultura, dentre outras, todas as áreas do conhecimento podem se
beneficiar da IA. Para tal, vale-se de conhecimento de diversas áreas como ciência da
computação, matemática (lógica, otimização, análise, probabilidades, álgebra linear),
ciência cognitiva e por fim, o conhecimento específico do campo ao qual será
implementada1.

1
BRITO, T. S.; FERNANDES, R. S. Inteligência Artificial e a Crise do Poder Judiciário: Linhas Introdutórias
sobre a Experiência Norte-Americana, Brasileira e sua Aplicação no Direito Brasileiro. Revista Acadêmica
da Faculdade de Direito do Recife, p. 88.
13

A expansão da aplicação tecnológica em novos (e mais complexos) setores


proporcionou que se tenha aplicativos de Inteligência Artificial que elaboram até mesmo arte:
livros, música e quadros2. Concomitantemente, o auxílio na elaboração de diagnósticos médicos
e tratamentos de saúde é uma aplicação bastante relevante da IA – o Watson Health3 - da IBM
- é, provavelmente, o principal produto nessa área. A multidisciplinariedade é marca da IA e o
que garante a vasta possibilidades de aplicação.

2.1 DEFINIÇÃO

Entende-se por Inteligência Artificial o estudo de um conjunto de métodos,


abordagens e tecnologias que promovem que um computador se comporte de maneira
inteligente. Inteligência, nesse contexto, é encarada como uma ação que maximiza a
probabilidade de o resultado do algoritmo ter utilidade – ou seja, de forma simplificada, o
algoritmo que implementa o sistema com IA faz a coisa certa ao invés da errada. Tarefas que
compõem os pilares que constroem esse ramo do conhecimento são aprendizagem, raciocínio,
planejamento, percepção, processamento de linguagem natural e robótica4.
Um conceito relacionado que extrapola os limites da Inteligência Artificial e orienta
todo o desenvolvimento de sistemas pela Ciência da Computação é o de Algoritmos. Tais
ferramentas já são utilizadas pela humanidade há milênios; trata-se de um conjunto finito de
etapas ordenadas, para obtenção de um fim específico. Assim, são compostos, primordialmente,
por 3 fatores: um conjunto de entrada de dados, processamento e saída5. Um exemplo simples
seria uma receita de bolo. A entrada é composta pelos ingredientes; o processamento é definido
pelo passo a passo ordenado das tarefas – misturar metade dos ingredientes em uma forma
depois levar ao forno – pelo tempo adequado, na temperatura correta – e só depois de assado
misturar os demais impacta drasticamente o resultado. A saída é alcançada, com o
processamento adequado, por meio do bolo pronto.
De forma análoga os algoritmos também são ferramentas para construção de
sistemas de computador, até mesmo os inteligentes. Porém, são realizados com suas

2
GONÇALVEZ, L. R. A tutela jurídica de trabalhos criativos feitos por aplicações de inteligência artificial no
Brasil, p. 109.
3
Para maiores informações, veja https://www.ibm.com/br-pt/watson-health. Acesso em: 03/04/2021.
4
RUSSELL, Stuart. Q&A: The Future of Artificial Intelligence. Disponível em:
<http://people.eecs.berkeley.edu/-russell/temp/q-and-a html>. Acesso em 11 de out de 2020
5
CORMEN, Thomas H. et al. Introduction to algorithms, p. 17.
14

particularidades, sendo a principal é que a linguagem utilizada deve ser capaz de transmitir
instruções para o computador – aqui tem-se as linguagens de programação que operam sob
diversos paradigmas, com o intuito de aproximar-se da linguagem humana; porém, no final do
processo, todas as instruções são convertidas para zeros e uns, que são os símbolos que os
computadores realmente interpretam.
Neste contexto, definir os algoritmos usados para criar sistemas de Inteligência
Artificial passa por quatro abordagens distintas: a) agir de forma humana – materializado do
ponto de vista conceitual no teste de Turing (simular o comportamento humano de forma que
um interlocutor não seja capaz de discernir se interage com um humano ou uma máquina); b)
modelagem cognitiva: determina-se o modo do pensar humano e replica-se a forma estabelecida
para o programa (os cientistas baseiam-se em processos de introspecção, experimentos
psicológicos e/ou imagens cerebrais); c) leis do pensamento: os sistemas inteligentes são
construídos através de enunciados da lógica formal, desenvolvida no século XIX; d) por fim,
tem-se a abordagem do agente racional: o objetivo é agir para alcançar o melhor resultado
esperado, num cenário de incertezas6.
Para este trabalho a abordagem do teste de Turing7 é bastante relevante
principalmente por envolver a manipulação de linguagem natural – ou seja, a utilizada por
humanos. Já do ponto de vista conceitual – mesmo após sessenta anos de sua elaboração – sua
relevância reside em definir quatro capacidades que norteiam o estudo da IA: aprendizado de
máquina, processamento de linguagem natural, representação do conhecimento e raciocínio
automatizado; os dois primeiros são tratados neste trabalho. No teste não existe interação direta
entre humano e máquina – os questionamentos são realizados por mensagens de texto - já que
a proposição de Turing acertadamente discerniu que a inteligência prescinde de simulação
física. Todavia, o teste de Turing total é uma variante que engloba interação direta entre o
interrogador e a máquina; tem-se, portanto, mais dois campos definidos para averiguar a
percepção do agente inteligente: visão computação (para perceber objetos) e robótica (para
movimentar-se e manipular os itens de interação). Contudo, em regra os estudiosos da área não
se dedicam com afinco na aprovação pelo teste de Turing (total ou parcial), mas sim nos
fundamentos e princípios que viabilizem a evolução da Inteligência Artificial.

6
RUSSEL, S.; NORVING, P. Artificial Intelligence: a modern approach, p. 4.
7
HODGES, Andrew. Alan Turing: a short biography. 1995. Disponivel em:
<https://www.turing.org.uk/publications/dnb.html>. Acesso em: 03 abr. 2021
15

2.2 BREVE HISTÓRICO

O termo Inteligência Artificial foi criado em 1956, com uma proposta de trabalho
acadêmico conjunto para o verão daquele ano, na universidade de Dartmouth. Apesar de, do
ponto de vista de pesquisa, não ocorrerem grandes descobertas, os 10 participantes -
pesquisadores estadunidenses interessados em redes neurais, teoria dos autômatos e estudo da
inteligência - obtiveram durante o seminário a apresentação mútua das personalidades que se
tornaram os grandes nomes da pesquisa relacionada pelas próximas décadas.
Desde então a IA passou por diversas fases (marcadas por uma grande empolgação
inicial, seguida de descrédito) até que a partir dos anos 80 começou a ser utilizada em escala
industrial. Ela abrange diversos subcampos, do geral (aprendizagem e percepção) até tarefas
específicas, como jogos, demonstração de teoremas, arte, diagnóstico de doenças e direção
automobilística. A IA é relevante para qualquer tarefa intelectual; é verdadeiramente um campo
universal.
A gestação da Inteligência Artificial ocorreu entre 1943 e 1955. O primeiro artigo
reconhecidamente foi elaborado em 1943, por Walter Pitts e Warren McCulloch. Baseado em
fisiologia dos neurônios no cérebro, lógica proposicional e a teoria da computação de Turing,
os autores propuseram um modelo de neurônios artificiais (cada um deles poderia estar ligado
ou desligado, de acordo com o estímulo recebido pelos vizinhos). Em 1949 Donald Hebb
demonstrou uma regra – chamada de aprendizado de Hebb, academicamente relevante até hoje
– para modificar as intensidades de conexão entre os neurônios. Mas foi em 1950 que Alan
Turing propôs em seu artigo Computing, Machinery and Intelligence o influente teste de Turing
conceitos como aprendizagem de máquina, algoritmos genéticos e aprendizagem por reforço8.
O período compreendido entre 1956 e 1966 foi marcado por grandes expectativas.
Em 1958 a linguagem de programação LISP – a mais popular na pesquisa do ramo – foi criada
por John McCarthy. Em 1959 o termo “aprendizado de máquina” foi cunhado por Arthur
Samuel, em um contexto que possibilitou a um computador jogar damas (e melhorar as
habilidades no jogo); e em 1966 foi criado o primeiro chatbot, chamado ELIZA9.

8
RUSSEL, S.; NORVING, P. Artificial Intelligence: a modern approach., p. 41.
9
LAGE, F. C. Manual de Inteligência Artificial no Direito, p. 31.
16

Figura 1 - Linha do tempo da inteligência artificial10

Já no final do período anterior, as abordagens utilizadas começaram a se mostrar


ineficientes. O intervalo de 1966 até 1973 adequou as expectativas dos pesquisadores do campo
à realidade. Os problemas enfrentados com sucesso anteriormente eram aplicados sobre o que
o Marvin Minsky chamava de micromundo; contudo, quando eram aplicados em ambientes
maiores, notadamente com mais variáveis, mais elaborados, as falhas foram desastrosas, já que
a técnica utilizada era testar combinações diferentes até encontrar a solução. Por exemplo, as
ambiguidades decorrentes do contexto e da necessária interpretação do idioma para traduzi-lo
corretamente fez com que a frase em russo “o espírito está disposto mas a carne é fraca” fosse

10
Adaptado de LAGE, F. C. Manual de Inteligência Artificial no Direito. p. 30.
17

interpretada como “a vodca é boa mas a carne é podre” em inglês11. Ainda assim em 1972 foi
criado o WABOT-1, que se acredita ter a faculdade mental de uma criança de um ano e meio12.
Na linha do tempo, de 1969 até 1979 os experimentos foram baseados em
conhecimento: foca-se em especialidades mais estritas, com agentes inteligentes versados em
determinada área do conhecimento. A título de ilustração da especialização proposta, a
literatura traz o programa DENDRAL, desenvolvido em Stanford em 1969 por um time
composto por um filósofo que se tornou cientista da computação (Bruce Buchanan), um
geneticista ganhador do Prêmio Nobel (Joshua Lederberg) e um aluno de Herbert Simon (Ed
Feigenbaum). Bastante eficiente, o DENDRAL tinha como missão de inferir a estrutura
molecular a partir das informações fornecidas por um espectrômetro de massa13. Contudo, em
1973 o relatório Lighthill, que reivindicava que os resultados entregues pelas pesquisas do
campo não correspondiam às grandes promessas realizadas. Tal fato reduziu drasticamente o
financiamento governamental para os estudos: caracterizava-se o primeiro inverno da
inteligência artificial.
A partir de então, a IA migrou do âmbito acadêmico e tomou proporções industriais.
Apesar de algumas empresas não cumprirem as promessas feitas – fato que as relegou ao
esquecimento - durante a década de 80, o volume de investimentos na área cresceu de alguns
milhões de dólares para alguns bilhões. Na mesma década, a IA se consolidou como ciência –
mediante a utilização de experimentos empíricos, com a replicação dos resultados. Contudo de
1987 a 1993 ocorreu o segundo inverno da IA, impulsionado pela ascensão dos computadores
de mesa da Apple e IBM – que prejudicaram o mercado de hardware especializado em IA –
bem como no encarecimento da manutenção dos sistemas especialistas (carro chefe da
indústria, bastante restritos às suas áreas de atuação), acarretou o fechamento de mais de 300
empresas do ramo14.
Provavelmente o feito mais marcante da Inteligência Artificial na década de 90 foi
em 1997, com a vitória do sistema da IBM, o Deep Blue, sobre o campeão mundial de xadrez,
Gary Kasparov. O surgimento dos agentes inteligentes, que são utilizados hodiernamente, entre
outros, massivamente na Internet – bots, mecanismos de pesquisa, sistemas de recomendação e
agregadores de conteúdo de construção de sites. Outra aplicação famosa é a dos carros

11
RUSSEL, S.; NORVING, P. Artificial Intelligence: a modern approach, p. 46.
12
WABOT-1 (1970-1973). Humanoid Robotics Institute. Waseda University. Japão, Disponível em: <http://
www.humanoid.waseda.ac.jp/booklet/kato_2.html>. Acesso em: 05 abr. 2021.
13
RUSSEL, S.; NORVING, P. Artificial Intelligence: a modern approach. p.47.
14
LAGE, F. C. Manual de Inteligência Artificial no Direito, p. 34.
18

robóticos. Todavia, a abordagem de agentes inteligentes recebeu críticas dos principais


fundadores da IA (entre eles John McCarthy e Marvin Minsky); em resumo, eles acreditam que
os rumos da pesquisa e aplicação da Inteligência Artificial estavam errados, portanto, deveriam
ser redirecionados para as raízes – máquinas que pensam, aprendem e criam.

Figura 2 - Repercussão da vitória do IBM Deep Blue sobre Gary Kasparov15.

Por fim, a partir dos anos 2000 as aplicações de Inteligência Artificial se


debruçaram sobre a grande quantidade de dados disponível, como por exemplo todos os
processos digitais disponíveis em um tribunal. A partir de 2015 o foco passa do algoritmo para
o banco de dados (pois, como será visto ao longo deste trabalho, o treinamento ao qual o sistema
é submetido é capaz de influenciar nos resultados obtidos). Contudo, antes disso, merecem
destaques - em 2011 - a plataforma Watson da IBM, capaz de aprender em larga escala e auxiliar
a sociedade em atendimentos de clientes, combate a doenças graves e até mesmo no Direito e
– em 2014 – o chatbot EUGENE, que apesar de alguma controvérsia, foi aprovado no teste de
Turing ao responder e confundir aos jurados ao lado de um humano (33% dos jurados não
souberam identificar quem era o humano e quem era a máquina)16.

15
REVISTA VEJA, 7 de maio de 1997. Disponível em <https://veja.abril.com.br/blog/reveja/demasiado-
humano-ha-20-anos-kasparov-era-esmagado-por-deep-blue/>. Acesso em 12/03/2021
16
LAGE, F. C. Manual de Inteligência Artificial no Direito. p. 35.
19

2.3 APRENDIZADO DE MÁQUINA

O aprendizado de máquina é um subconjunto da Inteligência Artificial; baseia-se


na assimilação computacional de um conjunto de dados, transformando-o em modelos que
podem ser posteriormente compreendidos e utilizados. Neste sentido, trata-se de sistemas
capazes de aprender e adquirir conhecimento de forma autônoma. Tal aprendizado possibilita
ao programa tomar decisões baseadas em experiências prévias17.
Portanto,

o machine learning se manifesta apoiado em três abordagens: a) aprendizado


supervisionado: quando o conhecimento é obtido a partir de dados já categorizados
inseridos por seres humanos – o sistema busca encontrar conexões de causa e efeito
para fazer predições; b) aprendizado reforçado: quando o computador é treinado para
encontrar um resultado ótimo a partir de reforços positivos ou negativos, o papel do
“supervisor” é valorar os resultados obtidos pela máquina; c) aprendizado não-
supervisionado: quando o conhecimento é obtido por dados coletados por humanos,
porém não categorizados — máquina cria modelos capazes de demonstrar conexões
lineares18.

A assertividade dos algoritmos de machine learning é diretamente proporcional a


extensão da base de dados examinada pela ferramenta; sua origem remonta justamente do
crescimento exponencial dos dados gerados pela sociedade da informação combinada com a
capacidade computacional de análise deles. Depreende-se, portanto, de acordo com a figura
abaixo o processo de resolução de problema pela tecnologia em questão:

Figura 3 - Fluxograma de machine learning19

17
Hoffmann, A. F. Direito e tecnologia: a utilização de inteligências artificiais no processo decisório, p. 36.
18
Ibidem.
19
SCHADE, G. Machine learning, 2018. Disponível em: <https://gabrielschade.github.io/2018/01/17/ azure-
machine-learning-2.html>. Acesso em: 06 abr. 2021.
20

O primeiro passo é, para valer-se da aptidão de assimilação a partir dos dados a eles
submetidos, reunir um conjunto de dados e, assim, construir um modelo baseado
estatisticamente a partir do conjunto. Então, submetê-lo a treinamento para resolver o problema
concreto. Com a elaboração e treinamento do modelo, a capacidade de aprendizado para
execução de diferentes tarefas autonomamente resta garantida, já que com a sua exposição a
novos dados, eles se adaptam com a experiência de operações anteriores, o que culmina em
padrões que se moldam para oferecer respostas confiáveis às novas informações. Todo esse
processo ocorre de forma iterativa, com retroalimentação do sistema por várias vezes até que
um padrão confiável seja encontrado20.
Anteriormente definiu-se que os dados aos quais se submetem os algoritmos de IA
são muito relevantes para o resultado. Nesse sentido, depara-se com problemas fundamentais
na tomada de decisões por algoritmos:

Em um momento em que cada vez mais decisões tipicamente humanas são relegadas
a algoritmos, é fundamental refletir sobre as situações em que a automação da decisão
pode gerar resultados incorretos, injustificados ou injustos. Neste trabalho, serão
abordadas três dificuldades: (i) o emprego de data sets viciados; (ii) a opacidade dos
algoritmos não programados; (iii) a discriminação que pode ser gerada por algoritmos
de machine learning21.

Assim, conjuntos de dados viciados decorrem não de problemas com os algoritmos,


mas sim da qualidade dos bancos de dados fornecidos para alimentação dos aplicativos de
machine learning. Uma vez que o aprendizado de máquina é decorrente justamente dos dados
que alimentam o seu sistema, falhas e incompletudes podem prejudicar drasticamente o
resultado, criando classificações e tendências deturpadas, fato conhecido como enviesamento
do algoritmo.
Quanto à opacidade, o problema tem magnitude ainda maior. A complexidade das
operações do algoritmo para concretizar o seu processamento por vezes é ininteligível até
mesmo para os engenheiros que o codificaram, tornando todo o processo como uma caixa preta.
Os pontos cegos prejudicam o direito à explicação das decisões automatizadas, o que acaba por
ofender o princípio do contraditório, já que a própria motivação da decisão é obscura:

20
BRITO, T. S.; FERNANDES, R. S. Inteligência Artificial e a Crise do Poder Judiciário: Linhas Introdutórias
sobre a Experiência Norte-Americana, Brasileira e sua Aplicação no Direito Brasileiro. Revista Acadêmica
da Faculdade de Direito do Recife, p. 88.
21
FERRARI; BECKER; WOLKART. ArbitrumExMachina: panorama, riscos e a necessidade de regulação das
decisões informadas por algoritmos, p. 7.
21

a opacidade dos learners é consequência da alta dimensionalidade de dados, da


complexidade de código e da variabilidade da lógica de tomada de decisões. Por
empregarem centenas ou milhares de regras, por suas predições estarem combinadas
probabilisticamente de formas complexas, pela velocidade no processamento das
informações, e pela multiplicidade de variáveis operacionais, parece estar além das
capacidades humanas apreender boa parte – senão todas – as estruturas decisórias que
empreguem a técnica de machine learning22.

Por fim, ressalta-se que o aprendizado de máquina é contínuo e totalmente


dependente dos dados utilizados, bem como da forma que o seu algoritmo é criado. Assim, o
resultado de uma primeira iteração (em que houve algum tipo de discriminação) realimenta o
sistema computacional, que valida suas predições do ciclo anterior e quando se reaplica o seu
processamento àquele grupo, retroalimenta condições que aumentam cada vez mais os impactos
sociais. Um caso clássico que pode ajudar a ilustrar a questão na pesquisa referente ao sistema
LSI-R, Level of Service Inventory–Revised: a partir de um questionário respondido por presos
norte-americanos o sistema inteligente define uma pontuação de sua periculosidade e
possibilidade de reincidência. Essa pontuação em alguns estados estadunidenses implicava em
majoração da pena; em regra o sistema pontuava scores mais elevados para negros - ainda que
não houvesse qualquer pergunta relacionada à raça – tornando a política de encarceramento
ainda mais racista, consequentemente aprofundando as desigualdades23. Neste sentido,

[...] verifica-se o risco da realização de analogias para a previsão de comportamentos


quando faltam dados específicos sobre os resultados pretendidos. Certo que não se
pode precisar cientificamente quais características e indicadores fazem com que um
indivíduo seja mais ou menos propenso à reincidência. Assim, para que o algoritmo
chegue a tal resultado, são utilizadas correlações entre dados, como a existência de
parentes ou vizinhos condenados, o desempenho escolar, a convivência com usuários
de drogas, entre outros, e a probabilidade de reincidência, o que carece de confirmação
científica e acarreta resultados discriminatórios24.

Portanto, resta evidente - ainda que não esteja explícito em sua codificação – a
possibilidade de formação de vieses inconscientes dos desenvolvedores do algoritmo; tal
situação tem o condão de acarretar discriminações sociais passíveis de perpetuar a injustiça
social, já que o sistema inteligente reflete os valores humanos implícitos dos que participaram

22
FERRARI; BECKER. DIREITO À EXPLICACÃO E DECISÕES AUTOMATIZADAS: REFLEXÕES
SOBRE O PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO, p.14
23
O'NEIL, C. Weapons of math destruction. Chapter 1 - Bomb parts: What is a Model?
24
NUNES, MARQUES. Inteligência artificial e direito processual: vieses algoritmos e os riscos de atribuição de
função decisória às máquinas, p. 7.
22

do seu desenvolvimento, tornando primordial a cautela em sua utilização nas atividades


estatais.25

2.4 PROCESSSAMENTO DE LINGUAGEM NATURAL

Dentre as técnicas de IA, as aplicações de processamento de linguagem natural se


mostram mais adequadas para os objetivos específicos do atual trabalho que visam averiguar a
estreita relação da Inteligência Artificial com o Direito. Neste contexto, a abordagem principal
é a transformação de uma frase de entrada potencialmente ambígua em uma forma não ambígua,
passível de utilização por um sistema de computador. Essas representações internas variam,
claro, de uma aplicação para outra.26 O Direito, tal qual as demais ciências, é dotado de um
vernáculo próprio, com uma série de significados específicos, que necessitam de
contextualização e longo treinamento para possibilitar ao robô extrair os significados
pertinentes de um texto jurídico, com o intuito de, por exemplo, confeccionar uma decisão ou
agrupar processos atingidos por um julgamento de repercussão geral.
Neste contexto, toda pesquisa de PLN refere-se ao armazenamento computacional
e manipulação de dados linguísticos, para culminar na possibilidade de um computador
processar a mesma linguagem que os humanos usam cotidianamente, capaz de proporcionar
ferramentas em seis áreas principais: (1) interfaces em língua natural para base de dados, (2)
tradução automática, (3) programas para sumarização de grandes quantidades de texto, (4)
produção automática de documentos padrões (5) sistemas que permitem interação de voz com
computadores e (6) desenvolvimento de sistemas de Processamento de Línguas Naturais para
aplicações específicas27.
Assim, o advento dos processos eletrônicos no Direito formou uma grande massa
de dados - não estruturada, passível de estruturação através da aplicação de ferramentas de
processamento de linguagem natural – que consubstancia um fértil campo para elaboração de
aplicações específica de PLN combinadas com machine learning; logo, vale-se de inferências
estatísticas para organização textual e extração de significados – em contraposição as

25
BRITO, T. S.; FERNANDES, R. S. Inteligência Artificial e a Crise do Poder Judiciário: Linhas Introdutórias
sobre a Experiência Norte-Americana, Brasileira e sua Aplicação no Direito Brasileiro. Revista Acadêmica
da Faculdade de Direito do Recife, p. 91.
26
ROSA, J. L. G. Fundamentos da inteligência artificial, p. 145.
27
ROSA, J. L. G. Fundamentos da inteligência artificial, p. 137.
23

abordagens baseadas em regras, que demandam maior preparação em virtude da sua


complexidade.
Tais aplicações promovem benefícios aos profissionais das carreiras jurídicas.
Destacam-se: a) pesquisa jurídica – por meio do levantamento de informações textuais e
desenvolvimento de raciocínio jurídico; b) revisão de contratos – atividade bastante
dispendiosa, no qual o PLN em regra é mais rápido que os humanos; ocorre a decomposição do
contrato em cláusulas, com extração de informações relevantes e sugestões de pontos que
podem ser modificados, criados ou excluídos; c) automação de documentos – otimiza o
armazenamento, agrupa documentos com pontos similares, processa imagens; d) assessoria
jurídica – interagem com o usuário por meio de perguntas e resposta, com produção de
aconselhamento adaptado às necessidades de quem os utiliza28.

Nesse contexto do processamento de linguagem por computador, como


anteriormente tratado, o teste de Turing foi proposto por Alan Turing em 1950. A figura abaixo
ilustra o teste em questão. O computador, interrogado por um ser humano por meio de um
terminal, seria aprovado no Teste de Turing se o interrogador tão pudesse dizer se havia um
homem ou um outro computador do outro lado da linha.

Figura 4 - O teste de Turing29

Uma extensão desse teste seria o Teste de Turing Jurídico. Nesse novo teste o
sistema de PLN é especializado em escrever sentenças judiciais sem intervenção humana; a

28
LAGE, F. C. Manual de Inteligência Artificial no Direito, p. 69.
29
ROSA, J. L. G. Fundamentos da inteligência artificial, p. 138.
24

aprovação resta condicionada à impossibilidade do jurisdicionado (ou o profissional jurídico


destinatário desta) discernir se a sentença foi elaborada por um juiz humano ou por uma
máquina. Os que advogam o emprego de agentes inteligentes para essa atividade ressaltam que
a delegação da elaboração da estrutura de minutas de sentenças não é novidade no poder
judiciário, uma vez que os assessores de magistrados são incumbidos de tal função, cabendo ao
juiz o toque final e assinatura, de tal forma que a validade da sentença não fica relegada pela
sua autoria material, mas sim pela assinatura do legitimado que a profere30.
Contudo, o alto grau de complexidade inerente aos sistemas de processamento de
linguagem natural reside na:

transformação de uma frase de entrada potencialmente ambígua em uma forma não


ambígua que possa ser usada internamente por um sistema de computador. Essas
representações internas variam, é claro, de uma aplicação para outra. A transposição
de uma frase potencialmente ambígua para uma representação interna é conhecida
como parsing (análise). A palavra parse é derivada do latim: pars orationis (parte do
discurso). No Processamento de Línguas Naturais, parsing é usualmente um processo
de com binar os símbolos de uma frase em um grupo que pode ser substituído por um
outro símbolo mais geral. Esse novo símbolo pode, por sua vez, ser combinado em
um outro grupo, e assim por diante, até que uma estrutura permitida apareça 31.

A figura a seguir amplia o que foi descrito no parágrafo anterior. Para diferentes
tipos de entrada (voz, escrita manual ou teclado) o processador de linguagem extrai palavras,
frases e conceitos. As estruturas criadas – leia-se conhecimento inteligível pela máquina -
podem ou não ser armazenadas em banco de dados (eles facilitam a recuperação posterior da
informação) mas servem de insumo para criação das aplicações.

30
VALENTINI, R. S. Para além do teste de Turing jurídico? Breves apontamentos sobre os sistemas
automatizados de decisão e suas potencialidades para elevar a qualidade da prestação jurisdicional. In:
NUNES, et al. Inteligência Artificial e Direito Processual. Salvador, BA: JusPODIVM, 2021. Cap. 26, p.683-
702.
31
ROSA, J. L. G. Fundamentos da inteligência artificial, p. 145.
25

Figura 5 - Etapas do Processamento de linguagem natural32

Cabe elucidação sobre os conceitos da figura 5 para finalização da problemática.


Ela possibilita o entendimento dos cinco níveis de processamento de linguagem natural: análise
léxica (promove a divisão do texto em parágrafos, frases e palavras) , análise sintática (criação
de uma estrutura que demonstra como as palavras de uma frase estão relacionadas entre si),
análise semântica (define o significado das palavras e conjuntos de palavras relacionadas),
integração do discurso (avalia o significado de uma sentença como dependente das sentenças
anteriores e posteriores), análise pragmática (reinterpretação do discurso – através da avaliação
do conhecimento de mundo – para avaliar o objetivo do que foi dito. Exemplo: “Você sabe que
horas são?” deve ser interpretado como “Por favor, me informe o horário.”). Em regra, cada
nível recebe como entrada a saída do imediatamente anterior e fornece o resultado do seu
processamento para a próxima etapa. Contudo, não se trata de processamento necessariamente
sequencial, já que a saída de uma análise posterior pode retroalimentar o sistema em um ponto
anterior, para otimização do processo33.

32
FARINON, João Luís. Análise e classificação de conteúdo textual. Curso de Ciência da Computação, 2015.
Disponível em:
https://repositorio.unisc.br/jspui/bitstream/11624/1038/1/Jo%C3%A3o%20Lu%C3%ADs%20Farinon.pdf.
Acesso em: 05 abr. 2021.
33
LAGE, Fernanda de Carvalho. Manual de Inteligência Artificial no Direito, p. 67.
26

Figura 6 - Processamento de linguagem natural (análises realizadas)34

Encerra-se assim a abordagem técnica de Inteligência Artificial prevista para este


trabalho. O assunto é demasiadamente vasto, implementado por diversas abordagens e
tecnologias e foco de grupos de pesquisa ao redor do mundo, portanto, objetivou-se apenas a
familiarização com os conceitos chaves para proporcionar entendimento das possibilidades
tecnológicas de aplicação ao Direito, objetivando incremento na efetividade da jurisdição,
principalmente no que tange à velocidade do processamento para promulgação das decisões.
Nesse sentido, no próximo capítulo serão apresentados os Direitos Fundamentais,
sua conceituação, classificação, evolução histórica, culminando no princípio da Celeridade
Processual como a Liberdade Pública central do escopo desta pesquisa.

34
LAGE, Fernanda de Carvalho. Manual de Inteligência Artificial no Direito. p. 67.
27

3 DIREITOS FUNDAMENTAIS

O escopo deste trabalho abrange a aplicação da Inteligência Artificial ao Direito,


com o fim de promover eficiência à jurisdição para materializar o Direito Fundamental da
Celeridade Processual. Esgotada a abordagem técnica da IA – para os fins deste trabalho –
inicia-se a exploração dos aspectos e fundamentos jurídicos.
A função jurisdicional – manifestamente dotada de caráter imperioso, capaz de
impor decisões sobre a lides que envolvem pessoas (jurídicas ou naturais) e até mesmo o próprio
Estado - se diferencia das demais expressões de poder estatal (administração, legislação)
justamente pelo protagonismo da finalidade pacificadora, com o caráter de exercer poder ante
os indivíduos para persecução da felicidade pessoal e do grupo. Fica evidente, portanto, o
controle social promovido pelo Direito como “o conjunto de instrumentos de que a sociedade
dispõe na sua tendência à imposição dos modelos culturais, dos ideais coletivos e dos valores
que persegue, para a superação das antinomias, das tensões e dos conflitos que lhe são
próprios”35.
Desta maneira, os Direitos Fundamentais são resultado de uma construção histórica,
iniciada com o advento da Carta Magna Inglesa, porém com efetiva positivação apenas na
Revolução Francesa. Hodiernamente estão constitucionalmente previstos. Neste sentido, o
Título II da Constituição Federal de 1988, intitulado "Dos Direitos e Garantias Fundamentais",
os implementa no ordenamento jurídico pátrio – do artigo 5º ao 17. O Capítulo I apresenta os
direitos individuais e coletivos; o Capítulo II trata dos direitos sociais; direitos de nacionalidade
são previstos no Capítulo III; já os direitos políticos são abordados no Capítulo IV; por fim, o
Capítulo V aborda os direitos relacionados à participação em partidos políticos, bem como sua
organização e existência36.
Assim, o constitucionalismo prevê o surgimento dos Direitos Fundamentais como
uma regulação da atuação estatal para manutenção (e promoção) da liberdade individual.
Todavia, a Teoria dos Quatro Status expande esse conceito ao prever que cada membro de uma
comunidade se vincula ao Estado e enquadra-se em quatro espécies de situações jurídicas: status
passivo, status negativo, status positivo ou status ativo. Tal Teoria será retomada neste trabalho;
contudo, ressalta-se a ideia de que pacificação social é o principal intuito da jurisdição e, por
consequência exprime-se também na materialização dos Direitos Fundamentais.

35
CINTRA, A. C. A.; GRINOVER, A. P.; DINAMARCO, C. R. Teoria geral do processo, p. 27-32.
36
PAULO, V.; ALEXANDRINO, M. Direito Constitucional Descomplicado, p. 93.
28

É fato a intrínseca relação entre Direito e Sociedade. O brocardo jurídico ubi


societas ibi jus exprime o entendimento de que não há sociedade sem direito. Assim, o contrato
social que garante poder ao Estado prevê sua capacidade de solucionar conflitos.

Pelo que já ficou dito, compreende-se que o Estado moderno deve o seu poder para a
solução de conflitos interindividuais. O poder estatal, hoje, abrange a capacidade de
dirimir os conflitos que envolvem as pessoas (inclusive o próprio Estado), decidindo
sobre as pretensões apresentadas e impondo as decisões37.

Por fim, resta evidente que o congestionamento na resolução de processos no


judiciário impacta a percepção de que se vive num Estado justo. Portanto, os próximos tópicos
introduzem o estudo dos Direitos Fundamentais como um todo, finalizando com a relevância
do princípio da celeridade processual para o ordenamento jurídico moderno.

3.1 CONCEITUAÇÃO

Estabelecer uma definição para direitos fundamentais é uma tarefa complexa.


Todavia, trabalhar o entendimento de direitos fundamentais, simultaneamente, como direitos
subjetivos e elementos fundamentais da ordem constitucional objetiva tem o condão de melhor
elucidar o tema. Nesse sentido, o caráter subjetivo da definição reflete a possibilidade de impor
– por parte do indivíduo - uma atuação positiva ou negativa ao Estado, personificado nos
titulares dos poderes públicos, de tal forma que interesses pessoais (por óbvio, dentro das
possibilidades legalmente previstas) podem ser impostos em face dos órgãos estatais.
Concomitantemente, apresenta-se o caráter objetivo dos direitos fundamentais com o
perfazimento de “eficácia irradiante” para todo o ordenamento jurídico, capaz de traçar
diretrizes para aplicação do Direito38.
Outro ponto que merece atenção é a diferenciação entre direitos humanos e direitos
fundamentais. A distinção entre os conceitos reside no aspecto da positivação que possibilita
aos direitos fundamentais vigorar espacial e temporalmente em determinado ordenamento.
Todavia, os direitos humanos tangem reivindicações filosóficas essenciais ao homem,
alicerçadas em bases jusnaturalistas, bem como em postulados de direito internacional
relacionados à pessoa humana39. Nesse sentido, os direitos humanos indicam uma evolução que

37
CINTRA, A. C. A.; GRINOVER, A. P.; DINAMARCO, C. R. Teoria geral do processo, p. 32.
38
MENDES, G. F. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade, p. 2.
39
MENDES, G. F.; BRANCO, P. G. G. Curso de Direito Constitucional, p. 136.
29

contém raízes nos direitos naturais – concretizada sobre um processo de laicização do Estado,
que não concebe, logo, que determinados direitos são herdados da própria divindade. Passaram,
portanto, a representar uma perspectiva internacional inerente a condição humana, porém sem
pressuposição de origem no Cristianismo medieval, já que tal conteúdo é ausente de
normatividade jurídico.
Em suma, o processo de constitucionalização moderno tem como produto a
conversão dos direitos humanos – historicamente justificados – em direitos fundamentais.
Nesse sentido, a própria mutabilidade constitucional prevê não estagnação e reconstrução dos
direitos fundamentais (expressa, por exemplo, em novas dimensões que são assimiladas), já que
- além de sua caraterística de serem oponíveis contra o Estado, em uma leitura reducionista de
sua função – são meios para fruição de todos os demais direitos previstos no ordenamento
jurídico40.
Para tornar evidente tal afirmação, apresentam-se alguns direitos fundamentais
expressos no artigo 5º da Constituição Federal – o rol não é taxativo, já que há expressão em
outros dispositivos legais. Primeiramente, no caput, o direito fundamental à vida é, obviamente,
um pressuposto elementar para gozo de qualquer outro direito. Nesse sentido, além da
existência física – que implica em proibição à pena de morte e aborto, bem como na promoção
da saúde – há expectativa de vida digna, baseada na dignidade da pessoa humana (com
condições mínimas materiais e espirituais). Concomitantemente, a combinação dos que estão
previstos nos incisos LIV (devido processo legal), LV (plenitude do contraditório e da ampla
defesa), XXXV (inafastabilidade da jurisdição) e XXXVII e LIII (juízo natural)
consubstanciam a princípios norteadores para todo o processo brasileiro41.
Paralelamente, em complementação à ideia de serem oponíveis contra o Estado,
bem como possibilitarem o exercício dos demais direitos, a expansão dos direitos fundamentais
e sua afirmação, quando colocados à prova em juízo, denotam o grau de democracia de um
determinado Estado. Quando algum direito fundamental sofre lesão, a sociedade é prejudicada.
Por exemplo, para os direitos fundamentais ulteriormente citados, é impossível imaginar um
Estado Democrático de Direito que não respeita o processo legal; que nega o contraditório e a
ampla defesa; que nega a jurisdição de lides específicas (ou propostas por determinadas pessoas
ou grupos); que constitui tribunais de exceção para julgar casos específicos.

40
FERNANDES, B. G. Curso de direito constitucional, p. 231.
41
PAULO, V.; ALEXANDRINO, M. Direito Constitucional Descomplicado, p. 114-173.
30

Por fim, há diferenciação doutrinária entre direitos fundamentais de garantias


fundamentais. Enquanto os direitos fundamentais caracterizam-se como os bens em si mesmo
considerados, as garantias estabelecem-se como instrumentos hábeis na proteção e efetivação
dos direitos fundamentais. Os direitos são principais, as garantias são acessórias. Assim, a
garantia que corresponde ao direito à vida é a vedação pena de morte, a liberdade de locomoção
apresenta-se a garantia do habeas corpus; a liberdade de manifestação do pensamento, proibição
da censura42.

3.2 CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA

Os direitos fundamentais apresentam-se como consequência da própria evolução


histórica, com origem na concepção de direitos inatos do homem, decorrentes meramente da
condição de ser humano. Assim, em seu estado primitivo, o homem era livre e igual, simples,
solitário, com ambições meramente relacionadas à própria conservação. Com a sua
socialização, renunciou a sua liberdade e se sujeitou aos seus semelhantes. Contudo, conquistou
novas possibilidades e os direitos fundamentais concretizam-se como uma construção histórica
de todo o processo. Neste sentido, os direitos humanos (enquanto percussores dos direitos
fundamentais) baseados na tradição jusnaturalista evidenciam os direitos inerentes ao homem;
sua positivação constitucional nada mais é que o reconhecimento pelo ordenamento jurídico de
algo que faz parte da essência humana e que se consubstancia na essencialidade de limitar o
poder estatal para manter o bem-estar individual43.
Neste sentido, ressalta-se a dicotomia da adequada formulação jurídica de tais
direitos. Eles precisam de declarações solenes, reflexo de revoluções, conflitos sociais e
sofrimento humano em grande escala:

a liberdade religiosa é um efeito das guerras de religião; as liberdades civis, da luta


dos parlamentos contra os soberanos absolutos: a liberdade política e as liberdades
sociais, do nascimento, crescimento e amadurecimento movimento dos trabalhadores
assalariados, dos camponeses com pouca ou nenhuma terra, dos pobres exigem dos
poderes públicos não só o reconhecimento da liberdade pessoal e das liberdades
negativas também a proteção do trabalho contra o desemprego, os primeiros
rudimentos de instrução contra o analfabetismo, depois a assistência para a invalidez
e a velhice, todas elas carecimentos que os ricos proprietários podiam satisfazer por
si mesmos44.

42
PAULO, V.; ALEXANDRINO, M. Direito Constitucional Descomplicado, p. 95.
43
CUNHA JÚNIOR. D. Curso de Direito Constitucional, p. 534.
44
BOBBIO, N. A Era dos Direitos, p. 05.
31

A afirmação dos direitos humanos/fundamentais é histórica, progressiva e gradual,


caráter que reforça o estudo dos direitos fundamentais em dimensões. Ainda que as primeiras
discussões sobre direitos humanos remontem à Grécia antiga, no século VI a.C, passando pelo
Império Romano e até mesmo pelo Cristianismo – no sentido de que os homens são criados à
imagem e semelhança de Deus e, portanto, são dotados de valores íntimos que são passíveis de
respeito - o embrião dos direitos fundamentais foi a Magna Carta inglesa (1215).
Essencialmente, visava garantir liberdades – como o devido processo legal, garantia de
propriedade e liberdade de locomoção – aos nobres ingleses, em clara limitação ao poder estatal.
Seu principal aspecto histórico é, apesar de não ser classificada como uma constituição, ter
vinculado o rei – pela primeira vez na história medieval – às leis que editava.
Contudo, foram as revoluções burguesas que culminaram em Constituições
Liberais, com a possibilidade da positivação de Direitos Fundamentais capazes de limitar e
controlar os atos praticados pelo Estado, em um processo de proteção ao indivíduo da tirania
estatal. Sua principal característica é, portanto, demandar uma abstenção, uma não ação estatal,
que os denominam como direitos negativos. O Iluminismo foi a corrente filosófica acolhida
pela burguesia nos séculos XVII e XVIII que impulsionou os ideais das revoluções do período.
O conhecimento advindo da razão era o combustível da condução da vida em sociedade, capaz
de contribuir com o seu desenvolvimento. A nova perspectiva social era diametralmente
contrária às arbitrariedades absolutistas, na qual o monarca se confundia com o Estado. Fica
evidente no pensamento iluminista a prevalência de direitos naturais à humanidade, imutáveis
e universais, capazes de promover uma sociedade justa e igualitária para todos45.
Todavia, o resultado das revoluções foi a garantia dos direitos almejados apenas à
uma pequena parcela da sociedade. Por exemplo, a igualdade de cunho liberal prevista nos
ideais da Revolução Francesa não abrangeu a igualdade de sexos; a escravidão foi abolida na
França, mas mantida nas colônias francesas para beneficiar as empresas colonizadoras. Ainda
assim, a expansão e a garantia dos direitos decorrentes da cidadania aos burgueses foram
consideráveis e representaram o gérmen para ampliar a perspectiva de direitos aos cidadãos em
uma escala infinitamente superior ao do regime absolutista, já que todos estavam sujeitos aos
julgamentos e caprichos dos monarcas. Além disso, os ideais iluministas são relevantes para o

45
PAULO, V.; ALEXANDRINO, M. Direito Constitucional Descomplicado, p. 94.
32

pensamento humano e abriram caminho para positivação de direitos fundamentais de diferentes


dimensões46.
Assim, no Reino Unido, em decorrência da Revolução Gloriosa, a Declaração de
Direitos – Bill of Rigths, 1689 – marcou a supremacia do poder do Parlamento sobre a
monarquia absolutista. Os poderes reais foram limitados pela declaração, com o advento da
separação de poderes que submetia a monarquia – a partir de então, constitucional - à soberania
do povo. O parlamento passa a ser um órgão independente da influência real, hábil para
defender os súditos das arbitrariedades monárquicas. Já em 1776, a Declaração de Direitos do
Bom Povo da Virgínia é considerada a primeira declaração de direitos moderna, capaz de
estabelecer direitos fundamentais constitucionais antes mesmo da independência das 13
colônias inglesas na América do Norte. Preocupou-se com a fundação de um governo
democrático, com um sistema de limitação de poderes por se basear na ideia de direitos naturais
do homem, imprescritíveis. Garantiu, por exemplo, a liberdade de imprensa, direito de defesa
em processos criminais, júris imparciais, separação das atividades executivas, legislativas e
judiciais, entre outras47.
Maior destaque histórico recebe a Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, que ocorreu na França em 1789. Sua principal finalidade é a proteção dos direitos
humanos dos atos autoritários; para atingir tal finalidade, seu preâmbulo apresenta um viés
pedagógico, com o intuito de relembrar os cidadãos de seus direitos fundamentais. Corrobora
com a sua importância o fato de ter sido um marco crucial da Revolução Francesa; a sociedade
francesa estava erigida sobre três estamentos: Primeiro Estado, constituído pelo clero; Segundo
Estado, composto pela nobreza; já o Terceiro Estado era composto pelos demais, com
representatividade 98% da população e ônus de financiar – por meio de elevada carga tributária
- os privilégios da nobreza, clero e rei. Tal contexto social de tremenda desigualdade, agravado
pela ascensão burguesia – que detinha o poder econômico –foi o campo para revolução48.

Como seu objetivo não foi apenas mudar um governo antigo, e sim abolir a forma
antiga da sociedade, a Revolução Francesa teve de atacar simultaneamente todos os
poderes estabelecidos, demolir todas as influências reconhecidas, apagar as tradições,

46
LIMA, C. A. S. Revoluções burguesas: contribuições para a conquista da cidadania e dos direitos
fundamentais. p. 111.
47
CUNHA JÚNIOR. D. Curso de Direito Constitucional, p. 546 – 550.
48
LIMA, C. A. S. Revoluções burguesas: contribuições para a conquista da cidadania e dos direitos
fundamentais, p. 107.
33

renovar os costumes e os usos e, por assim dizer, esvaziar o espírito humano de todas
as ideias nas quais se haviam fundamentado até então o respeito e a obediência49.

Todavia, foi somente no século XX, com o amadurecimento social e a expressão de


direitos fundamentais caracterizados pela demanda de direitos sociais, culturais e econômicos,
que os direitos fundamentais passaram a ter caráter positivo, capazes de exigir a atuação
comissiva do Estado, expressas por meio de prestações estatais para garantir bem-estar
individual50. Ressalta-se a Declaração Universal de Direitos Humanos, adotada pela
Assembleia Geral da ONU em 1948. Ela teve o condão de influenciar na elaboração de diversas
constituições e tratados internacionais, por constituir um conjunto de direitos necessários para
promover a dignidade da pessoa humana por completo; estabeleceu diretrizes capazes de aferir,
contestar e até legitimar governos e regimes.
Fica evidente, portanto, o caráter evolutivo e cumulativo dos Direitos
Fundamentais, que se consolida com a evolução da própria história humana. Nas palavras de
Paulo Bonavides:

A história dos direitos humanos - direitos fundamentais de três gerações sucessivas e


cumulativas, a saber, direitos individuais, direitos sociais e direitos difusos é a história
mesma da liberdade moderna, da separação e limitação de poderes, da criação de
mecanismos que auxiliam o homem a concretizar valores cuja identidade jaz primeiro
na Sociedade e não nas esferas do poder estatal51.

Para dar prosseguimento ao estudo, no próximo tópico – com fins de melhor


elucidar a citação do supracitado autor no que tange ao termo Gerações - trata-se dos conceitos
capazes de adequadamente classificar os Direitos Fundamentais.

3.3 CLASSIFICAÇÃO

Uma vez definidos e historicamente posicionados, passa-se à classificação dos


Direitos Fundamentais. A abordagem constitucional clássica apegou-se à leitura textual e
estrutural do texto constitucional, que acabou por fundamentar a classificação do tema na
organização do texto expresso na carta magna. Exemplos de doutrinadores que seguiram tal

49
TOCQUEVILLE, Alexis. O antigo regime e a revolução. p, 11.
50
PAULO, V.; ALEXANDRINO, M. Direito Constitucional Descomplicado, p. 94.
51
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, p. 574.
34

modelo são Manoel Gonçalves Ferreira Filho e José Afonso da Silva. Restam assim
classificados e mapeados conforme os artigos da Constituição de 198852:
A) Direitos individuais e coletivos: art. 5º;
B) Direitos sociais: art. 6º a art. 11;
C) Direitos de nacionalidade art. 12;
D) Direitos políticos: art. 14 a art. 16; e
E) Direitos de organização em partidos políticos: art. 17.
Entretanto, tal classificação ignora a existência de direitos fundamentais
posicionados em outras partes da lei maior. Além do Título II, encontra-se, por exemplo, os
direitos ambientais (no artigo 225) e o direito à educação (no artigo 225). Além disso:

O próprio Supremo Tribunal Federal (STF) reconhece a insatisfatoriedade dessa


classificação no curso do julgamento da ADI n° 939, na qual um princípio do direito
tributário (princípio da anterioridade tributária do art. 150, II, "b" foi entendido como
um direito e garantia fundamental. Com base no pensamento de Cattoni de Oliveira,
podemos propor outra crítica, ainda mais contundente: uma leitura
constitucionalmente adequada e consciente da abertura que a linguagem (seja jurídica
ou seja ordinária) apresente aos participantes de uma prática social, que nos revela
uma dimensão pragmática dos direitos fundamentais. Nesse sentido, os direitos
fundamentais não poderiam ser classificados no vácuo, ou seja, em abstrato, sem uma
situação concreta de aplicação, pois, no caso real, de acordo com uso argumentativo
dos participantes é que se poderia definir as proporções significados do direito em
debate53.

Parece, portanto, mais adequada a abordagem do tema sob a perspectiva histórica;


nesse sentido cada dimensão de direitos afirma e acumula novos direitos fundamentais. Tal
classificação de direitos fundamentais por gerações (ou dimensões), prevê que o surgimento de
uma nova dimensão complementa a anterior, sem ocorrência de substituição de direitos
anteriormente reconhecidos. Nesse liame – ainda que alguns autores defendam a existência de
até cinco dimensões – urge ressaltar que o núcleo dos direitos de primeira, segunda e terceira
dimensões remetem ao lema da revolução francesa (liberdade, igualdade e fraternidade,
respectivamente).
Assim, cada direito fundamental é um pressuposto para compreensão e realização
da posterior. Para entender tal mecanismo, pode-se observar o direito de propriedade individual,
expressa inicialmente como um direito liberal de primeira dimensão. Com a evolução da
sociedade e surgimento da segunda dimensão de direitos, marcadamente sociais, o conceito da

52
FERNANDES, B. G. Curso de direito constitucional, p. 232.
53
Ibidem.
35

propriedade privada foi expandido para atender à ideia de que deve também atender à sua
função social; por fim, com o reconhecimento dos direitos fundamentais de terceira dimensão,
além do viés exposto anteriormente, deve também respeitar as leis ambientais54.
No que tange ao próprio amadurecimento dos direitos fundamentais na sociedade,
há que se considerar que inicialmente residiam exclusivamente na moral, até mesmo por serem
passíveis confusão com o direito natural; posteriormente, o foco foi em sua positivação
constitucional. Atualmente, a principal preocupação reside na sua efetivação. De fato, resultam
de lesões graves que impedem, ao longo da história, a expressão da dignidade da pessoa
humana55. Para melhor elucidar o tema, a figura abaixo apresenta um esquema das três
principais dimensões de direitos fundamentais e suas características essenciais:

Figura 7 - Classificação dos Direitos Fundamentais56

Os direitos de primeira dimensão são conhecidos como liberdades individuais.


Remetem ao lema liberdade da Revolução Francesa, reconhecidos por esta como direitos civis
e políticos. O homem é considerado individualmente, portanto visam limitar a interferência do
Estado na vida privada. Como exemplos desta classe estão os direitos à vida, à liberdade de
reunião, à liberdade de expressão e à propriedade. Não há qualquer preocupação com
desigualdades sociais, pois, do ponto de vista histórico, foram concebidos pelo pensamento
liberal-burguês do século XVIII, para proteger a burguesia dos monarcas absolutistas.

54
PAULO, V.; ALEXANDRINO, M. Direito Constitucional Descomplicado, p. 99.
55
CUNHA JÚNIOR. D. Curso de Direito Constitucional, p. 577
56
PAULO, V.; ALEXANDRINO, M, op. cit, p. 100
36

A análise do artigo 16 da Declaração dos Direitos do Homem, que foi o alicerce


jurídico da Revolução, revela:

Para além da finalidade estatal de proteger os direitos humanos fundamentais (art. 2º),
o constitucionalismo sempre exigiu que o Estado se organizasse em função dessa
finalidade. Por isso que a Declaração francesa, dando um conceito liberal de
Constituição, exigia dela a garantia dos direitos fundamentais. Assim, a sociedade em
que não esteja assegurado o exercício dos direitos fundamentais, nem estabelecida a
separação dos poderes, não tem Constituição (art. 16°). Aliás, esse artigo da
Declaração sintetiza os propósitos do constitucionalismo moderno de instituir
governos limitados, com a divisão das funções estatais entre órgãos distintos do poder
e a elaboração de um catálogo de direitos fundamentais. É o reconhecimento - não é
exagero dizer - por parte de uma Declaração de profunda inspiração jusnaturalista da
necessidade da positivação jurídico-constitucional dos direitos do homem.57

Fica evidente o comprometimento da Revolução Francesa com a perspectiva de


remodelar o Estado para garantir as liberdades individuais que, portanto, apresentam-se como
direitos de defesa, que foram capazes, à época de sua promulgação, de satisfazerem o principal
pleito social: proteger as pessoas do poder opressivo do Estado, consubstanciando direitos
negativos.
Por sua vez, direitos de segunda dimensão apresentam-se como liberdades positivas
e caracterizam a transição do Estado Liberal para o Estado Social. Se anteriormente o intuito
era proteger o indivíduo, passa-se a manter a proteção individual, mas, também zelar pelos
hipossuficientes. Antes esperava-se omissão estatal; agora, prestações sociais. Exemplos que
retratam a segunda dimensão são direito à saúde, trabalho, habitação, educação, assistência
social e previdência social. Todavia, alguns direitos de segunda dimensão não se enquadram no
critério anteriormente apresentado, pois espera-se omissão estatal para garantir, por exemplo, o
direito à greve e à liberdade sindical. Assim, a mera classificação entre liberdades negativas ou
positivas para qualificar um direito de primeira ou segunda (respectivamente) se mostra
ineficiente. Revela-se, portanto, adequado o critério da finalidade do instituto58.
Logo, ao deparar-se com a promoção de direitos sociais, com defesa dos
hipossuficientes em busca de igualdade substantiva, trata-se de direitos de segunda dimensão.
É importante ressaltar que a promoção por igualdade e proteção do mais fraco é reflexo das
desigualdades que o Estado Liberal promoveu, retomando o intervencionismo estatal para
equilibrar o abismo desigualdade que causado pelo livre capital – os (poucos) fortes, donos dos

57
CUNHA JÚNIOR. D. Curso de Direito Constitucional, p. 555.
58
PAULO, V.; ALEXANDRINO, M. Direito Constitucional Descomplicado, p. 98.
37

meios de produção (sem nenhuma obrigação imposta referente, por exemplo, as condições de
trabalho, horários e salários) oprimiam os (muitos) fracos. Opressão esta que debilitava a
dignidade humana. São direitos típicos do século XX, positivados nos pós Primeira Guerra,
com prevalência do lema Igualdade da Revolução Francesa.
Ainda que os direitos de segunda dimensão sejam sociais, eles ainda consideram o
homem individualmente. Comportamento diferente espera-se dos direitos de terceira dimensão.
São direitos coletivos em essência. O lema da Revolução Francesa presente é a fraternidade;
encontram-se ainda em fase inicial, poucos foram constitucionalmente codificados, outros estão
previstos em tratados internacionais. Como exemplos pode-se citar os direitos à segurança, ao
meio ambiente equilibrado, de comunicação e à solidariedade. Estão, portanto, destinados a
todos os seres humanos, como um todo conectado, tendo titularidade coletiva e caráter
transindividual59.
A existência de direitos de quarta e quinta dimensão ainda é controversa.
Influenciada pela globalização política e econômica – mesmo sem positivação jurídica interna
ou internacional - os de quarta dimensão pavimentam a formação de uma sociedade do futuro,
aberta além do campo estatal em direitos à informação, pluralismo e democracia direta, bem
como os relacionados à biotecnologia. Por sua vez, na quinta dimensão o direito à paz é
promovido da terceira para última dimensão, capaz de orientar persecução da dignidade humana
no início do século XXI60. Todavia, as novas dimensões padecem por críticas que, sob a
perspectiva histórica (que fundamenta o estudo das dimensões de direitos humanos) não
ocorreram rupturas que indiquem um novo prisma para surgimento das novas dimensões – ou
pelo menos as rupturas ainda não são identificáveis61.
Por fim, resta a reflexão sobre a possibilidade de implementar e garantir o exercício
dos direitos fundamentais, em especial os sociais. De aplicabilidade imediata, conforme o artigo
5º, § 1º da Constituição, é conferido a estes a maior eficácia possível; contudo, apresentam-se
dois problemas: de um lado, os direitos de segunda dimensão - que se encontram em uma crise
de observância e execução - pressupõem atuação estatal para garantir a prestação do que se
propõem (saúde, habitação, educação etc.); de outro, a positivação de alguns direitos
fundamentais depende de regulamentação legal para atingimento de sua plena eficácia (como é

59
ABRAÃO, R. M. Interesses difusos e coletivos, p. 26.
60
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, p. 524.
61
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, p. 59.
38

o caso dos - constitucionalmente previstos - incisos XX, XXI, XXIII e XXVII do artigo 7º e
VII, XXXII e XXXVIII do artigo 5º62.

3.4 FUNÇÕES

Por todo o exposto até então, em especial pelo caráter diretivo que os direitos
fundamentais tecem sobre todo o ordenamento jurídico para possibilitar a sua correta fruição
por todos, fica evidente que é indissociável a relação entre sociedade e direito. Assim:

Indaga-se desde logo, portanto, qual a causa dessa correlação entre sociedade e direito.
E a resposta está na função que o direito exerce na sociedade: a função ordenadora,
isto é, de coordenação dos interesses que se manifestam na vida social, de modo a
organizar a cooperação entre pessoas e compor os conflitos que se verificarem entre
os seus membros.
A tarefa da ordem jurídica é exatamente a de harmonizar as relações sociais
intersubjetivas, a fim de ensejar a máxima realização dos valores humanos com o
mínimo de sacrifício e desgaste. O critério que deve orientar essa coordenação ou
harmonização é o critério do justo e do equitativo, de acordo com a convicção
prevalente em determinado momento e lugar63.

Logo, os direitos fundamentais, historicamente estabelecidos, apresentam-se com


funções bem definidas, especialmente sobre o prisma da relação entre o cidadão e o Estado. A
doutrina apresenta a Teoria dos Quatro Status de George Jellinek. O autor prega que cada
membro de uma determinada comunidade tem personalidade e capacidade jurídica e, portanto,
vincula-se ao Estado de tal forma que pode ser enquadrado em quatro categorias distintas64.
a) Status passivo: o indivíduo está subordinado ao poder estatal, vinculado por
ordenações ou proibições.
b) Status negativo: pode o cidadão exigir do estado uma abstenção, para garantir
sua esfera de autonomia e liberdade imune ao poder estatal.
c) Status positivo: nesta situação, pode o administrado exigir uma prestação estatal
em seu favor.
d) Status ativo: é aquele em que o cidadão atua como membro da comunidade
política, através, por exemplo, do direito de voto.
A abordagem dos quatro status foi precursora e, portanto, clássica; logo, ainda é
relevante. Todavia, outra abordagem, mais moderna, apresenta as funções dos direitos

62
PAULO, V.; ALEXANDRINO, M. Direito Constitucional Descomplicado, p. 108.
63
CINTRA, A. C. A.; GRINOVER, A. P.; DINAMARCO, C. R. Teoria geral do processo, p. 27.
64
MENDES, G. F.; BRANCO, P. G. G. Curso de Direito Constitucional, p. 144.
39

fundamentais como direitos de defesa, como normas de proteção de institutos jurídicos, como
garantias positivas do exercício das liberdades e como Garantias Institucionais. Passa-se, então,
à discussão de cada um deles.
Os direitos fundamentais como direitos de defesa estão centrados no conceito de
Estado Liberal e representam meios de proteção da liberdade centrada no indivíduo contra
invasões do Poder Público por meio da limitação estatal. Representam simultaneamente
liberdades negativas – no sentido em que proíbem comportamentos invasivos por parte do
Estado – e garantem exercício positivo dos poderes do indivíduo – no sentido de poder exigir
do Estado comportamento omissivo. Caso ocorra a violação, restam as pretensões de abstenção,
de revogação ou de anulação65.
Por sua vez, os direitos fundamentais como normas de proteção de institutos
jurídicos defendem, por exemplo, o tribunal do júri, o casamento, a imprensa, a propriedade
etc. O legislador tem um autêntico dever constitucional de elaborar dispositivos jurídicos para
efetivação concreta dos institutos – leia-se um complexo organizado de normas66.
Já os direitos fundamentais como garantias positivas do exercício das liberdades
pressupõem atuação estatal para consecução do que Jellinek chamou de status positivo. Em
oposição ao absenteísmo estatal para não intervenção na liberdade individual, tem-se
procedimento ativo por parte do Estado. São dependentes de programas de políticas para sua
plena efetivação (como é o caso da promoção da educação e saúde). Há também o complemento
à essa categoria de direitos – ligadas às prestações positivas - que são relevantes para este
trabalho: direito à organização (providências estatais para estabelecimento de órgãos,
repartições e setores) e ao procedimento (por exemplo, as garantias processuais-constitucionais
como as previstas no artigo 5º, incisos XVII, XXXVII e LV)67.
Por fim, para o estudo dos Direitos Fundamentais como Garantias Institucionais,
primeiramente, conceitua-se as Garantias Institucionais como as que protegem os bens jurídicos
preservadores do que é considerado como primordial por uma sociedade. Assim, concretiza-se,
por exemplo, a proteção institucional à imparcialidade do Poder Judiciário por meio do direito
ao juízo natural (vedando os tribunais de exceção).68

65
CANOTILHO, J. J. G. Direito constitucional e teoria da constituição, p. 405.
66
MENDES, G. F. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade, p. 4.
67
MENDES, G. F. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade, p. 8.
68
LENZA, P. Direito constitucional esquematizado. p, 589.
40

Conclui-se assim a abordagem ampla sobre os direitos fundamentais; no restante deste


capítulo trata-se do princípio da celeridade processual propriamente dito, sobre o qual acredita-
se que a aplicação de inteligência artificial pode trazer ganhos substanciais para toda a operação
do Direito brasileiro.

3.5 LIBERDADES PÚBLICAS

O surgimento da expressão liberdades públicas surgiu na França, no século XVIII. Foi


prevista como um conjunto de direitos capaz de proteger a liberdade do homem frente à
opressão do Estado. Assim, são direitos fortemente atrelados à categorização de primeira
dimensão, expressos principalmente no artigo 5º da Constituição Federal de 1988.
Assim, ao analisar o princípio da celeridade processual frente as liberdades públicas,
observa-se a submissão estatal ao Direito. Se por um lado pregam a postura de abstenção do
Estado na esfera de atuação do indivíduo e sua vida privada, ao ser demandado na prestação da
tutela jurisdicional, configura-se o deve de agir; porém, não apenas para dirimir a lide, mas sim
fazê-lo em prazo legalmente fixado.69
Entretanto, a pronta solução dos conflitos levados à apreciação do judiciário, seria,
apesar de inviável, um ideal a ser perseguido. Evidentemente o adequado exercício da jurisdição
deve observar uma série de normas (algumas delas constitucionalmente previstas com o status
de direitos fundamentais), fato que consome tempo e que por vezes extrapola a duração razoável
dos processos, fator que leva o jurisdicionado à angústia e ao descrédito com a justiça70.

3.5.1 Princípio da celeridade processual

O processo é dotado, por excelência, de um formalismo que pretende garantir às


partes o devido processo legal – legalidade, imparcialidade, celeridade, entre outros - ao buscar
o Estado para exercício da jurisdição; é concedido às partes o direito de participar ativamente
de todo o processo, exercendo livremente a garantia do contraditório, bem como receber
fundamentação das sentenças prolatadas. Na verdade, o princípio da celeridade processual é um
dos diversos que decorrem do devido processo legal. Além disso, encontra-se
constitucionalmente previsto:

69
PETERS, A. S. Direito à celeridade processual à luz dos direitos fundamentais. p. 37.
70
CINTRA, A. C. A.; GRINOVER, A. P.; DINAMARCO, C. R. Teoria geral do processo, p. 34.
41

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-
se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
LXXVIII - a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável
duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação 71.

A criação de tal inciso é a materialização - por meio da positivação na lei maior da


Emenda Constitucional nº45/04 (Reforma do Judiciário) - decorrente da preocupação do
legislador com a morosidade da justiça e baixa efetividade de suas decisões, que acarretam
(além do descrédito) um retardo do desenvolvimento do país por conta de, entre outros,
inadimplência e desestímulo de investimentos. Fica evidente, portanto, a necessidade dos
jurisdicionados de perceberem as suas demandas solucionadas adequadamente, em prazo
razoável. Contudo, a previsão legal que estabelece a celeridade já estava garantida na
Constituição, por meio do princípio do devido processo legal, bem como no princípio da
eficiência aplicável à toda a Administração Pública72.
Na lição de Alexandre de Moraes:

Na tentativa de alcançar esses objetivos, a EC nº 45/04 trouxe diversos mecanismos


de celeridade, transparência e controle de qualidade da atividade jurisdicional. Como
mecanismos de celeridade e desburocratização podem ser citados: a vedação de férias
coletivas nos juízos e tribunais de segundo grau, a proporcionalidade do número de
juízes à efetiva demanda judicial e à respectiva população, a distribuição imediata dos
processos, em todos os graus de jurisdição, a possibilidade de delegação aos
servidores do Judiciário, para a prática de atos de administração e atos de mero
expediente sem caráter decisório, a necessidade de demonstração de repercussão geral
das questões constitucionais discutidas no caso para fins de conhecimento do recurso
extraordinário, a instalação da justiça itinerante, as súmulas vinculantes do Supremo
Tribunal Federal73.

Fica evidente que o acesso à justiça não é garantido por meio do mero ingresso de
demandas perante o Poder Judiciário. É necessário que a decisão, além de tecnicamente correta,
seja tempestiva. No enfretamento dessa situação, aliada às dificuldades dos custos associados
– preparo, honorários, perícias – os processualistas modernos têm procurado meios alternativos
de solução de conflitos, tal como mediação, arbitramento e conciliação. Tais soluções

71
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
72
PAULO, V.; ALEXANDRINO, M. Direito Constitucional Descomplicado, p. 199.
73
MORAES, A. Direito constitucional. p. 85.
42

apresentam a desburocratização e desformalização como resposta para garantir a adequada


prestação de solução de conflitos74.
Todavia, a abordagem apresentada por este trabalho representa a utilização da
tecnologia para a consecução da agilidade. Não se trata da efetividade da celeridade prevista na
Lei nº 11.419/2006, que visa a informatização da tramitação do processo judicial:

A lei regulamentou a maior utilização de tecnologia no acesso e distribuição de justiça,


permitindo o envio de petições, de recursos e a prática de atos processuais em geral
por meio eletrônico, mediante o uso de assinatura eletrônica, sendo obrigatório o
credenciamento prévio no Poder Judiciário, conforme disciplinado pelos órgãos
respectivos, que deverá, porém, ser realizado mediante procedimento que assegure a
adequada identificação presencial do interessado, bem como, mediante atribuição de
registro e meio de acesso ao sistema, preserve o sigilo, a identificação e a
autenticidade de suas comunicações75.

Tal informatização apresentou ganhos substanciais à toda Justiça Brasileira, visto


que o processo eletrônico otimizou e dinamizou os trabalhos e procedimentos legais,
praticamente extinguiu a utilização de papel para novas demandas judiciais – leia-se processos
físicos - e criou as bases de dados necessárias para a utilização de novas tecnologias; contudo
não refletem o estado da arte. Em suma, discute-se que a utilização da Inteligência Artificial no
ordenamento jurídico pátrio apresenta aspectos positivos e negativos; se por um lado
proporciona tamanhos ganhos à jurisdição que diz tratar-se de uma revolução - cunhada no
termo Justiça 4.076, capaz de promover o acesso à justiça, tornando-a mais assertiva e célere –
por outro pode apresentar riscos aos direitos fundamentais dos jurisdicionados – se não for
implementada com atenção aos princípios éticos, pode gerar múltiplas ofensas ao devido
processo legal; essas duas perspectivas são abordadas no próximo capítulo.

74
CINTRA, A. C. A.; GRINOVER, A. P.; DINAMARCO, C. R. Teoria geral do processo, p. 34.
75
MORAES, A. Direito constitucional. p. 86.
76
Para maiores informações, veja: https://www.cnj.jus.br/tecnologia-da-informacao-e-comunicacao/justica-4-0/
43

4 IA E O PRINCÍPIO DA CELERIDADE PROCESSUAL

A crescente presença da inteligência artificial na vida moderna é parte do que se


classifica como quarta revolução industrial. O todo é composto por avanços substanciais em
campos diversos do conhecimento, tal como biotecnologia, nanotecnologia, robótica e,
obviamente, a IA. Ainda não é factível prever acuradamente qual será o impacto que essas
transformações provocarão na sociedade. Contudo, sensíveis mudanças já podem ser
verificadas no Poder Judiciário, que tem empregado esforços para melhorar a eficiência de sua
prestação jurisdicional77.
O arcabouço legislativo brasileiro é amplo e robusto. Nas últimas décadas, reformas
legais apresentaram-se com o intuito de otimizar o processo e organizá-lo; são exemplos a
Reforma do Judiciário (Emenda Constitucional 45 de 2004) e o Código de Processo Civil de
2015. Contudo, apesar de seu caráter salutar, não são suficientes para tornar possível a prestação
jurisdicional desejada por todos: parcela significativa da solução passa por melhorar a
infraestrutura, capacitar servidores públicos e magistrados e municiá-los com recursos
(tecnológicos).
Nesse sentido, o emprego da tecnologia dentro e fora dos tribunais proporcionou
ganhos substanciais: distribuição de demandas em ambientes virtuais, softwares que proveem
auxílio para confecção de peças – bem como acompanhamento processual (prazos), plataformas
de ODR (Online Dispute Resolution – Resolução Online de Conflitos), algoritmos de
classificação de documentos e de agrupamento demandas repetitivas são exemplos de
aplicações tecnológicas que representam um mercado vasto explorado pelas lawtechs –
empresas focadas na elaboração de soluções de software jurídico – que demandam adequação
no modo de trabalho dos operadores do direito que se dispõem ao seu uso78.
Além disso, o processo judicial eletrônico é uma realidade nacional; de acordo com
o Relatório Justiça em Números 2019, conduzido pelo Conselho Nacional de Justiça – referente
ao ano de 2018 – dentre todos os processos, apenas 16,2% do total ingressou fisicamente; todos
os demais utilizaram-se de meios eletrônicos. Concomitantemente, o Relatório evidencia que o
volume de processos novos – eletrônicos - em apenas um ano, foi de 20,6 milhões; nos 10 anos
cobertos pela série histórica (2009-2018), foram protocolizados no Poder Judiciário 108,3

77
CUEVA, R. V. B. Inteligência Artificial no Judiciário. p. 82.
78
PAOLINELLI, C. M.; AZIZ ANTÔNIO, N. S. Dilemas processuais do século XXI: entre os cérebros
eletrônicos e a implementação de garantias-processuais –sobre como assegurar decisões legítimas. p. 371.
44

milhões de casos novos em formato eletrônico79. Há que se ressaltar também que em tempos de
pandemia do Corona Vírus a tecnologia propiciou que o trabalho dos operadores jurídicos fosse
efetivamente realizado sem interrupção, ainda que com alguns ajustes comportamentais.
Nessa seara, este trabalho advoga a ampliação das iniciativas tecnológicas para a
utilização de Inteligência Artificial – em conformidade com as diretrizes éticas – para obter
maior celeridade processual, sem prejuízo aos demais direitos fundamentais. Contudo, no que
diz respeito à busca da celeridade, o eminente processualista Nelson Nery Júnior alerta:

A busca da celeridade e razoável duração do processo não pode ser feita a esmo, de
qualquer jeito, a qualquer preço, desrespeitando outros valores constitucionais e
processuais caros e indispensáveis ao estado democrático de direito. O mito da rapidez
acima de tudo e o submito do hiperdimensionamento da malignidade da lentidão são
alguns dos aspectos apontados pela doutrina como contraponto a celeridade e a
razoável duração do processo que, por isso, devem ser analisados e ponderados
juntamente com outros valores e direitos constitucionais fundamentais, notadamente
o direito ao contraditório e a ampla defesa. O que se deve buscar não é uma "justiça
fulminante", mas apenas uma "duração razoável do processo", respeitados os demais
valores constitucionais80.

Assim, este capítulo aproveita-se dos conceitos tecnológicos e jurídicos debatidos


nos capítulos anteriores e trata diretamente da situação do judiciário brasileiro e de qual forma
a tecnologia da Inteligência Artificial, se bem empregada, é capaz de auxiliar na prestação
jurisdicional. Primeiramente, apresenta-se um panorama do que tem sido chamado de “crise do
judiciário”; na sequência discorre-se sobre utilização em não conformidade com os princípios
éticos, o que acarreta riscos para os direitos dos jurisdicionados. Por fim, são retratadas algumas
das experiências bem-sucedidas no judiciário brasileiro; especifica-se o nome do projeto, em
qual tribunal ocorre sua utilização, o escopo de sua aplicação e qual foi o ganho,
quantitativamente, para a celeridade processual.

4.1 A PRESTAÇÃO DA ATIVIDADE JURISDICIONAL: PROBLEMAS


ENFRENTADOS

A crise do Poder Judiciário é um fenômeno consensualmente constatado por todos


os operadores do direito e evidenciado pela literatura especializada, que se fundamenta em
estudos disponibilizados anualmente pelo Conselho Nacional de Justiça. É majoritariamente

79
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em Números 2019: ano-base 2018, Brasília, CNJ, 2018,
p.95.
80
NERY JUNIOR, N. Princípios do processo na Constituição Federal, p. 333.
45

marcada pela grande fila de processos que aguardam julgamento – que tende ao crescimento
além da capacidade de resolução por parte do Poder Judiciário – resultando na difusão de uma
sensação de insatisfação do jurisdicionado. Defende-se que essa crescente judicialização de
demandas, capaz de congestionar a prestação jurisdicional, no contexto atual da sociedade
(marcadamente orientada a informatização), torna o suporte tecnológico aos tribunais uma
necessidade concreta:

Nas três últimas décadas, temos vivido no Brasil o fenômeno da hiperjudicialização,


que se traduz no exponencial crescimento do número de processos judiciais. A
despeito de várias reformas processuais e dos esforços para promover métodos
consensuais e extrajudiciais de resolução de conflitos, as estatísticas indicam que o
país tem um dos maiores estoques de processos judiciais do mundo, com
aproximadamente 80 milhões de processos, e um elevado índice de
congestionamento, cerca de 70%, apesar de contarmos com cerca de 18 mil juízes,
cuja produtividade tem aumentado ao longo do tempo. Esse fenômeno, além de
dificultar o acesso à Justiça e ampliar desarrazoadamente a duração dos processos,
tem também elevado significativamente o custo de manutenção do sistema de justiça,
que, segundo dados do CNJ, corresponde a cerca de 1,4% do PIB', muito maior do
que o que se despende em países desenvolvidos81.

Nesse liame, encontram-se os dois pilares da crise do Poder Judiciário, a saber:


grande quantidade de processos frente à produtividade dos magistrados - consubstanciado no
congestionamento de processos que aguardam julgamento - e o alto custo de seu
funcionamento. Primeiramente, verifica-se que os juízes brasileiros estão entre os mais
produtivos do mundo: um estudo da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) indica que
a média de processos julgados por juiz em 2013 foi de 1.684 processos, enquanto para os demais
42 países pesquisados foi de 736. Todavia, a taxa de congestionamento no judiciário nacional
é de 70%, ou seja, para cada 100 novos casos apenas 30 são concluídos – fato que aumenta
consideravelmente a fila por decisões82. O mesmo estudo anteriormente citado - da AMB -
indica que, no Distrito Federal, a Fazenda Pública foi parte ativa em 71% dos processos na
primeira instância entre os 100 maiores litigantes, com 11 demandados respondendo por 50%
desses processos83. O Conselho Nacional de Justiça indica que 39% dos casos pendentes no
judiciário, com taxa de 91,7% de congestionamento são de execução fiscal84.

81
CUEVA, R. V. B. Inteligência Artificial no Judiciário. p. 79 - 82
82
SADEK, M. T. O Uso da Justiça e o Litígio no Brasil. Relatório encomendado pela Associação dos
Magistrados Brasileiros (AMB). Coordenação Maria Tereza Sadek. Disponível em:
<http://www.amb.com.br/wp-content/uploads/2018/05/Pesquisa-AMB-10.pdf>. Acesso em 12 de out. 2020.
83
SADEK, M. T. Op. cit.
84
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em Números 2018: ano-base 2017, Brasília, CNJ, 2018, p.
125.
46

O relatório Justiça em Números 2019 do Conselho Nacional de Justiça indica a


tramitação de 78,7 milhões de processos em todos os órgãos que compõem o Poder Judiciário85.
Indica também que os jurisdicionados não ingressassem com novas demandas e fosse mantida
a produtividade dos magistrados e dos servidores, o estoque de processos só seria finalizado em
2 anos e 6 meses de trabalho86. Desde 2015 percebe-se que o número de casos baixados supera
o de novos, sendo que, ainda segundo o CNJ, em 2017 mais de 30 milhões de litígios foram
solucionados. Todavia, há que se reconhecer que a reforma trabalhista reduziu
consideravelmente a postulação perante o judiciário de novas demandas. Entende-se que afastar
os casos da apreciação do judiciário não soluciona o problema aqui apresentado, deve-se
aumentar a capacidade da jurisdição promover a pacificação social por meio do enfretamento
dos litígios, não criar barreiras que coíbam o ingresso de novas demandas87.
Outro pilar do problema expressa-se por meio dos elevados custos de operação do Poder
Judiciário. Posiciona-se entre os mais caros do mundo, conforme a figura abaixo:

Figura 8 - Percentual do PIB empregado no custeio do Poder Judiciário88

Tamanho volume de processos impacta drasticamente o orçamento nacional para


custeio do seu funcionamento. De acordo com o relatório do CNJ anteriormente apresentado,
as despesas totais do Poder Judiciário atingiram o montante de R$ 93,7 bilhões, sendo que R$
85,1 bilhões são destinados ao pagamento de pessoal, o que representa 90,8% do orçamento.
Uma evolução histórica do percentual gasto com pessoal pode ser verificada na figura abaixo:

85
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em Números 2019: ano-base 2018, Brasília, CNJ, 2018,
p.79.
86
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Op. cit., p. 80.
87
BRITO, T. S.; FERNANDES, R. S. Inteligência Artificial e a Crise do Poder Judiciário: Linhas Introdutórias
sobre a Experiência Norte-Americana, Brasileira e sua Aplicação no Direito brasileiro. Revista Acadêmica da
Faculdade de Direito do Recife, p. 86.
88
DA ROS, L. O custo da Justiça no Brasil: uma análise comparativa exploratória. p. 4
47

Figura 9 - Demonstrativo do percentual do orçamento destinado ao pagamento de pessoal 89

Importante aqui ressaltar que a fonte de tais quantias são os tributos pagos pelo
cidadão brasileiro, uma vez que somente 11,61% da despesa total provem do pagamento de taxas e
emolumentos daqueles que efetivamente se utilizam do Poder Judiciário90.
Logo, o quadro retratado pelos dois pilares da crise do Poder Judiciário afronta
diretamente o princípio processual constitucionalmente previsto da duração razoável do
processo. Esse princípio – derivado de um princípio maior, acesso à justiça – prevê,
simultaneamente, o respeito ao tempo desde a propositura da ação até seu trânsito em julgado
e a adoção de meios alternativos de solução de conflitos (com o objetivo de aliviar a carga de
trabalho da justiça, otimizando o seu tempo de resposta)91.
Na lição de Nelson Nery Junior:

A complexidade da causa pode exigir dilação probatória, como, por exemplo, perícia
múltipla, que fará com que a duração razoável, para esse caso, seja maior do que a de
um caso simples. O excesso de trabalho, o número excessivo de processos, o número
insuficiente de juízes ou de servidores, são justificativas plausíveis e aceitáveis para a
duração exagerada do processo, desde que causas de crise passageira. Quando se tratar
de crise estrutural do Poder Judiciário ou da Administração, esses motivos não
justificam a duração exagerada do processo caracterizam ofensa ao princípio estatuído
na CF 5° LXXVIII92.

89
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em Números 2019: ano-base 2018, Brasília, CNJ, 2019, p.
p. 67
90
FERRARI; BECKER; WOLKART. ArbitrumExMachina: panorama, riscos e a necessidade de regulação das
decisões informadas por algoritmos, p. 84.
91
NERY JUNIOR, N. Princípios do processo na Constituição Federal, p. 329.
92
NERY JUNIOR, N. op. cit, p. 330.
48

Ante o exposto, a aplicação de agentes inteligentes para auxiliar o magistrado, ao


menos nas tarefas maçantes e repetitivas, já possibilitaria ganho sensível, capaz de impactar
positivamente toda a sociedade. Um robô capaz de verificar os casos de prescrição e decadência
nos processos que tramitam na área tributária já teria o condão de esvaziar consideravelmente
a fila de processos no Poder Judiciário. Atento à situação, o Tribunal de Justiça de Pernambuco
elaborou um sistema inteligente chamado Elis; ele foi capaz de transferir o gargalo na
tramitação de processos (cerca de 375 mil na área de execução fiscal – 53% do total) do
despacho inicial para expedição de mandados. A ferramenta executou em 15 dias – com grau
de precisão maior – o trabalho que os servidores levariam 18 meses93.
O enfretamento dessa situação envolve grande investimento de recursos financeiros
e humanos. Uma vez conhecido e quantificado o problema por meio dos relatórios apresentados
anteriormente, a gestão dos Tribunais procura melhorar as rotinas de trabalho com emprego de
métodos mais eficientes, em especial com utilização da tecnologia. Nesse sentido, por exemplo,
a Lei do Processo Eletrônico (Lei nº 11.419/2006) colaborou para a conclusão mais célere dos
processos, já que a informatização promoveu a redução da inércia processual – períodos em
que os processos se encontravam em deslocamento ou em cadastro; e a pessoas alocadas para
tais atividades puderam ser aproveitadas em outros trabalhos que propiciassem maior
celeridade. Contudo, quando se trata da aplicação de Inteligência Artificial alguns cuidados
devem ser tomados para afastar possíveis lesões aos direitos fundamentais, assunto do próximo
tópico94.

4.2 RISCOS PARA OS DIREITOS FUNDAMENTAIS DOS JURISDICIONADOS

Todo cenário delineado pela Crise do Poder Judiciário requer superação do Estado
na prestação jurisdicional. A sociedade moderna, habituada com as facilidades propiciadas pela
TI em seu cotidiano, materializa sua expectativa frente ao Estado em efetividade e eficiência
do que está constitucionalmente proposto. Nesse debate, as possibilidades previstas pela
Inteligência Artificial ocupam o ponto central da pauta de desenvolvimento dos serviços
necessários ao adequado funcionamento dos ordenamentos jurídicos de vários países, já que –
conforme anteriormente demonstrado - a mera informatização (apesar de prover ganhos) não

93
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Judiciário ganha agilidade com uso de inteligência artificial,
Brasília, CNJ, 2018.
94
CUEVA, R. V. B. Inteligência Artificial no Judiciário. p. 79 - 82.
49

propiciou um aumento de produtividade para os magistrados capaz de fazer frente à demanda


processual.
Contudo, a prestação célere da justiça é um conceito (em certa medida) abstrato, já
que, por exemplo, causas complexas naturalmente são mais dispendiosas no aspecto temporal;
além disso o comportamento das partes e do juiz do caso, bem como os prazos legais afetam
diretamente o tempo necessário para conclusão de um processo. Nesse sentido:

Se, numa demonstração de retórica jurídica, se podia dizer que "no processo o tempo
e algo mais do que ouro: é justiça", com muito maior razão se pode afirmar que a
justiça tem de ser feita da forma mais rápida possível, sempre observados os preceitos
constitucionais que devem ser agregados ao princípio da celeridade e razoável duração
do processo, como o devido processo legal, a isonomia, o contraditório e a ampla
defesa, o juiz natural (administrativo e judicial) etc. A razoabilidade da duração do
processo deve ser aferida mediante critérios objetivos, já que não se afigura possível
o tratamento dogmático apriorístico da matéria. Comporta, portanto, verificação da
hipótese concreta95.

Nesse sentido, hodiernamente há uma grande expectativa que orbita a ciência da


elaboração de sentenças judiciais por computador, que poderiam reduzir consideravelmente a
morosidade, bem como a discricionariedade excessiva; tais fatores possibilitariam a redução de
custos e a insegurança jurídica. Contudo, há que se prezar pela cautela na utilização dessas
ferramentas, pois os vieses e preconceitos possivelmente nelas embutidos – talvez
intencionalmente – podem favorecer litigantes habituais (corporações de grande poderio
econômico), etnias, classes sociais, gêneros etc. Portanto, os algoritmos elaborados para as
soluções de IA devem seguir diretrizes específicas que reflitam os princípios norteadores do
ordenamento jurídico em que serão utilizados, em consonância com os preceitos
constitucionais:

Toda a potencialidade tecnológica oferecida pelos algoritmos utilizados no judiciário


brasileiro deve ser analisada de forma inteligente, reanimando a Constituição e
fortalecendo a fruição de direitos. Não deve ser utilizada tão somente para persecução
de agilidade e rapidez decisória, de forma a facilitar a produção de padrões decisórios,
sem participação dos sujeitos afetados pelo provimento: tampouco examinada ao
alvedrio da necessária reconstrução argumentativa do caso, como justificativa para
resolução da chamada "crise" do judiciário.96

95
NERY JUNIOR, N. Princípios do processo na Constituição Federal. p. 330
96
PAOLINELLI, C. M.; AZIZ ANTÔNIO, N. S. Dilemas processuais do século XXI: entre os cérebros
eletrônicos e a implementação de garantias-processuais –sobre como assegurar decisões legítimas. p. 371
50

Entretanto, parcela considerável dos questionamentos doutrinários acerca da


questão da utilização da IA nos tribunais foca-se em algo mais elementar que a viabilidade
técnica da construção de sentenças prolatadas por computadores, que refletiriam o estado da
arte do ponto de vista científico; na verdade, a mera utilização de inteligência artificial em
qualquer fase no processo – seja para impulsioná-lo ou para verificar a admissibilidade de
Recursos Extraordinários ou Especiais, por exemplo – independente do grau de excelência
atingido por tal tecnologia, já configuraria uma afronta ao princípio da reserva legal. Discussão
essa que reforça que não é admitido que em busca da celeridade processual sejam subjugados
os demais princípios. O devido processual legal (art. 5º, LIV) preceitua que a jurisdição deve
ser precedida por lei que institua o juízo e regule o processo. Trata-se da vedação do tribunal
de exceção (art. 5º, XXXVII e LIII). A doutrina especializada assevera, assertivamente, que
uma vez que “mera” ampliação de competências de um Tribunal não pôde ser feita por lei,
ainda mais inadequado parece ser – por decisão administrativa – retirar o juiz natural de suas
funções para substituí-lo por uma máquina97.
Concomitantemente, há que se tratar de uma perspectiva ética que apresenta
reflexos sobre o direito à explicação e ao correto exercício do contraditório. A construção e
utilização ética da Inteligência Artificial é primordial para evitar distorções, como uso político
ou discriminatório. As concepções pessoais dos desenvolvedores e o treinamento ao qual a IA
é submetida deve estar livre de preconceitos e interesses escusos. Deve-se partir da premissa de
que a IA não é neutra. Nesse sentido, a opacidade anteriormente tratada deve ser a todo custo
evitada, fomentando a Inteligência Artificial transparente, na qual os resultados podem ser
explicados. Não se trata de quebra de patente, divulgação dos algoritmos (que são segredos
industriais, capazes de gerar diferencial competitivo entre as Lawtechs), mas sim de tornar claro
aos humanos que a utilizam qual foi o raciocínio elaborado pela máquina na tomada de
decisão98.
Ainda sem conclusão doutrinária sobre o tema, a transparência é relevante até
mesmo para responsabilização em caso de falhas de IA. Por exemplo, no caso de uma
condenação criminal equivocada, fundamentada em um software de reconhecimento facial: não
há consenso se a responsabilidade recai sobre o Estado Juiz, ou sobre a empresa que
desenvolveu o produto ou sobre quem o treinou. Assim, para direcionar a resolução da
problemática:

97
BAHIA, A. Reserva Legal e a Implantação do Juiz-robô no Brasil. p. 443-444
98
LAGE, F. C. Manual de Inteligência Artificial no Direito. p. 54 - 55
51

Não há dúvidas que os algoritmos, aliados as máquinas cada vez mais potentes e
sofisticadas, representam um motor do desenvolvimento científico em todos os
campos do conhecimento humano. Contudo a preocupação, sempre presente, com
possíveis efeitos danosos e desregrados que a utilização dos algoritmos pode causar
fez que, em 2017, a Association for Computing Machinery US Public publicasse o
Statement on Algorithmic Transparency and Accountability, a Declaração sobre
Transparência Algorítmica e Responsabilidade99. Tal declaração contém restrições e
recomendações sobre o uso dos algoritmos enfatizando a ideia de responsabilidade e
controle dos seus resultados, sob o título Princípios para transparência e
responsabilização algorítmica100.

Para ressaltar a importância da transparência - e como a sua ausência traz


desdobramentos negativos ao contraditório e ao direito à explicação - apresenta-se o caso a
seguir. O software COMPAS (Correctional Offender Management Profiling for Alternative
Sanctions) é utilizado no Estado de Winsconsin, Estados Unidos, com o objetivo de auxiliar os
juízes quanto à concessão de liberdade provisória para os presos em flagrante; trata-se de um
dos subsídios para fundamentar decisão do magistrado (regularmente previsto na legislação
estadual), que avalia a probabilidade de reincidência.
Nesse contexto, em 2013 Eric Loomis furtou um veículo, desrespeitou um agente
de trânsito, envolveu-se num tiroteio, foi capturado e apresentado ao magistrado que se utilizou
do software, aparentemente – por engano – exclusivamente para sua tomada de decisão, por
meio da frase emblemática na sentença, em livre tradução: “você foi identificado, por meio da
avaliação do COMPASS, como um indivíduo que representa um alto risco para a sociedade”.
Logo, o aplicativo de IA recomendou que a fiança fosse negada, causando o inconformismo de
Loomis. Recorreu, portanto, solicitando acesso aos critérios utilizados pelo algoritmo para
classificá-lo de tal forma. Na Suprema Corte Estadual seu pedido foi negado; o réu era livre
para questionar o funcionamento do algoritmo, mas não teria acesso ao seu funcionamento e
aos critérios balizadores que culminaram na decisão. Recorreu, então, à Suprema Corte
americana, que negou se posicionar sobre o caso, já que se tratava de uma questão tecnológica
pouco madura, deixando-o sem explicação dos motivos para sua condenação. Importante
ressaltar que o sistema foi desenvolvido por uma companhia privada e o estudo de uma ONG –
Propublica – culminou em um relatório que indica enviesamento do COMPASS: um

99
ASSOCIATION FOR COMPUTING MACHINERY US PUBLIC. Statement on Algorithmic Transparency
and Accountability, 2017. Disponível em http://www.acm.org/binaries/content/assets/public-
policy/2017_joint_statement_algorithms.pdf. Acesso em: 31 mai. 2021.
100
LAGE, F. C. Manual de Inteligência Artificial no Direito. p. 54 - 55
52

afrodescendente tem o dobro de chances de ser considerado mais perigoso que um


caucasiano.101
Abusos dessa magnitude decorrentes do uso da tecnologia levaram o CNJ a editar
a resolução 332/2020, que trata justamente da ética, transparência e governança da produção e
uso da Inteligência Artificial no âmbito do Poder Judiciário. Nesse contexto, versa o seu artigo
7º:

Art. 7° As decisões judiciais apoiadas em ferramentas de Inteligência Artificial devem


preservar a igualdade, a não discriminação, a pluralidade e a solidariedade, auxiliando
no julgamento justo, com criação de condições que visem eliminar ou minimizar a
opressão, a marginalização do ser humano e os erros de julgamento decorrentes de
preconceitos.
§ 1º Antes de ser colocado em produção, o modelo de Inteligência Artificial deverá
ser homologado de forma a identificar se preconceitos ou generalizações
influenciaram seu desenvolvimento, acarretando tendências discriminatórias no seu
funcionamento.
§ 2º Verificado viés discriminatório de qualquer natureza ou incompatibilidade do
modelo de Inteligência Artificial com os princípios previstos nesta Resolução,
deverão ser adotadas medidas corretivas.
§ 3º A impossibilidade de eliminação do viés discriminatório do modelo de
Inteligência Artificial implicará na descontinuidade de sua utilização, com o
consequente registro de seu projeto e as razões que levaram a tal decisão.102

Fica claro o teor do direcionamento ético que o CNJ afirma com a resolução
supracitada, capaz de afastar julgamentos e processos como o de Eric Loomis. Contudo,
evidencia-se o prejuízo gravíssimo que a opacidade de um algoritmo de Inteligência Artificial
representa para o contraditório e ampla defesa, capaz de comprometer toda a legalidade
processual.
Ainda assim, com aprimoramento das técnicas de inteligência artificial,
conscientização dos desenvolvedores por meio de diretrizes éticas e treinamento dos usuários
para uso responsável da tecnologia é possível utilizar a IA de forma salutar. Nos próximos
tópicos identifica-se vantagens de sua utilização, bem como são demonstradas as iniciativas nos
tribunais brasileiros.

101
LIPTAK, A. Sent to prison by a software program’s secret algorithns. NY Times. Disponível em:
<https://www.nytimes.com/2017/05/01/us/politics/sent-to-prison-by-a-software-programs-secret-
algorithms.html>. Acesso em: 28 de mai. 2021.
102
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (Brasil). Resolução n. 332, de 21 de agosto de 2020.
53

4.3 A UTILIZAÇÃO DA IA NA ATIVIDADE JURISDICIONAL

Superada a discussão quantos as desvantagens da utilização da IA, serão abordados


seus benefícios. Fundamentada na ciência da computação, matemática, estatística e também na
respectiva área de domínio em que será aplicada, a Inteligência Artificial, na busca por replicar
a cognição humana, sua utilização - quando adequadamente empregada - traz como vantagens
fundamentais a melhoria de produtividade aliada à redução da probabilidade de erro, fatos
decorrentes da automatização de processos e eliminação de trabalhos repetitivos empregados
por meio da força de trabalho humano, fato que culmina em benefícios também à qualidade de
vida do próprio trabalhador. Todavia, quando aplicada ao direito, seu uso varia em um espectro
que abrange, em um extremo, o (benéfico) suporte à decisão e, em outro, a (maléfica) mitigação
dos direitos humanos no processo103.
A informatização das cortes tem por objetivo que mais atividades sejam realizadas
on-line. Fato é que alguns ordenamentos jurídicos estão alterando seus processos para se
adequar às benesses da tecnologia. Como ilustração das possibilidades, encontraram-se
tribunais que operam remotamente. No Reino Unido, em julho de 2016, 730 milhões de libras
foram destinadas para revolucionar o sistema judicial britânico, com a instituição de um tribunal
on-line com competência para resolver litígio de até 25 mil libras. Na Colúmbia Britânica, o
tribunal on-line legalmente instituído lida com pequenas ações até US$ 5.000. Já na Holanda,
disputas entre vizinhos e divórcios; nos EUA as iniciativas deste teor resolvem violações de
trânsito e há destaque para um sistema de cobrança de dívidas judiciais (para a cidade de Nova
York). De forma análoga às mudanças promovidas pelo Uber o Airbnb em seus setores de
atuação, esses tribunais apresentam a notável característica de, ao invés de melhorar os
procedimentos judiciais existentes pelo emprego da tecnologia, promoverem o
desenvolvimento de novos processos que aproveitam o melhor da tecnologia.104
Todavia, no que se refere às técnicas de IA propriamente ditas, o aprendizado de
máquina tem sido utilizado principalmente com dois propósitos: classificação de documentos e
predição. Nos dois casos, toda a base de dados utilizada para o treinamento do algoritmo
direciona seu aprendizado para definir correlações entre o problema atual e problemas
anteriores. Para o primeiro, dada uma demanda postulada perante o Poder Judiciário, é possível

103
LAGE, F. C. Manual de Inteligência Artificial no Direito. p. 47 - 48
104
RABINOVICH-EINY, Orna; KATSH, Ethan. The new new courts. American University Law Review, vol.
67. 2017. p. 166-167. Disponível em: < http://www.aulawreview.org/au_law_review/wp-
content/uploads/2017/12/03-RabinovichEinyKatsh.to_.Printer.pdf >. Acesso em: 30 de mai. 2021.
54

verificar se atende ao critério de demandas repetitivas; ou então qual jurisprudência/doutrina


está relacionada ao litígio. Já a predição é especialmente útil para os escritórios de advocacia:
ferramentas de justiça preditiva procuram definir como um tribunal – obviamente, se for
treinado com as decisões proferidas por este – julgará determinada causa:

Desde a existência de sistemas auxiliares de advogados que trabalham com


inteligência artificial na elaboração de peças processuais como o ROSS e o Watson,
desenvolvidos pela IBM (International Business Machines Corporation), um modelo
jurimétrico proposto pelo professor Ruger na Suprema Corte dos Estados Unidos,
capaz de prever o resultado de 75% dos resultados dos julgamentos daquele órgão em
performance superior à de especialistas humanos, até um sistema desenvolvido pela
Corte Europeia de Direitos Humanos que chegou a um grau de previsibilidade de 79%,
as ferramentas jurídicas que se valem de tecnologias de IA têm assistido vertiginosa
crescente no judiciário em todo o mundo.105

Toda essa tecnologia tem o condão de otimizar o trabalho dos juristas. Contudo,
quando se trata da utilização de IA no processo decisório, em especial na confecção de decisões,
o tema se torna bastante controverso; é necessário regulamentação emanada do Poder
Legislativo. Portanto, por enquanto tratam-se apenas de ferramentas de classificação, triagem,
identificação de processos que atendam a determinadas características, entre (poucas) outras
opções. Objetivo é aprimorar a prestação da atividade jurisdicional por meio da diminuição do
congestionamento processual (fato que impacta diretamente na almejada celeridade), com
diminuição de custos. 106
É importante ressaltar que a evolução das ferramentas jurídicas de IA apresentam
também aos operadores do direito a contrapartida de retirar deles o monopólio sobre a
informação deste ramo do conhecimento. Toda a abordagem tradicional da advocacia tende a
ser revista, já que as legaltechs e seus produtos diminuiriam consideravelmente esse monopólio.
A democratização do direito extrapola as possibilidades de maior acesso ao Poder Judiciário
pela revolução causada pela Inteligência Artificial: os cidadãos têm a possibilidade de
utilizarem as ferramentas para consultoria jurídica, elaboração de contratos, verificação da
possibilidade de êxito de suas demandas perante o judiciário etc. Nesse sentido, ressalta-se o
caráter estatístico e matemático das soluções preditivas; ainda padecem de críticas, contudo,
nada mais fazem que avaliar as decisões que os tribunais proferiram historicamente, encontrar

105
PAOLINELLI, C. M.; AZIZ ANTÔNIO, N. S. Dilemas processuais do século XXI: entre os cérebros
eletrônicos e a implementação de garantias-processuais –sobre como assegurar decisões legítimas. p. 380.
106
CUEVA, R. V. B. Inteligência Artificial no Judiciário. p. 82.
55

padrões e enfatizá-los: não basta conhecer as regras (leis), mas sim as regras de aplicação das
regras frente os casos concretos.107.
Nas palavras de Ricardo Villas Bôas Cueva:

As rotinas de trabalho relacionadas a cadastro e separação de documentos já são as


primeiras a serem afetadas. A automação, num primeiro momento, compreende
triagem, adequação de fluxos de trabalho, padronização de rotinas, fusão de arquivos,
preenchimento de campos em modelos predefinidos. Já a inteligência artificial,
propriamente, compreende estágios mais avançados, que implicam uso intensivo de
mineração de enormes e múltiplos bancos de dados (big data), cujo resultado alimenta
o aprendizado efetuado pelos próprios computadores (machine learning e deep
learning), criando, com isso, crescente capacidade de apreensão de conteúdos e de
elaboração de modelos de decisões a partir de padrões estatísticos.108

Em suma, há que se verificar qual a abordagem da utilização das ferramentas de


Inteligência Artificial: IA no tribunal ou IA como o tribunal. Para o primeiro caso,
primordialmente duas possibilidades se apresentam: auxílio ao advogado – análise de
jurisprudência, definição do perfil do magistrado, previsão da decisão e dos custos de um
procedimento – ou como assistente na resolução de atividades repetitivas – identificação de
argumentos jurídicos ou leis relevantes para o processo. Já a Inteligência Artificial empregada
como o tribunal é mais complexa e, portanto, passível de preconceitos; apresenta-se
principalmente sob duas vertentes: substituição do juiz no processo – mais distante da realidade
hodierna; ou como participante do processo de tomada de decisão – no qual a máquina seria um
assistente do magistrado, que pode ou não acatar os aspectos propostos.109
Desta forma, o próximo tópico exibe alguns casos das principais soluções de
Inteligência Artificial adotadas nos tribunais brasileiros – em especial nos tribunais superiores
- para incrementar as possibilidades e capacidades do Poder Judiciário no enfrentamento de sua
crise decorrente do congestionamento processual.

4.3.1 Utilização nos tribunais brasileiros

Na busca por uma melhor prestação jurisdicional, ainda que exista muita resistência
no judiciário pela utilização das novas tecnologias abordadas neste trabalho, muitos tribunais
no Brasil começaram a se utilizar de ferramentas de Inteligência Artificial. Klaus Schwab -

107
CUEVA, R. V. B. Op. cit., p. 84.
108
CUEVA, R. V. B. Inteligência Artificial no Judiciário. p. 81.
109
LAGE, F. C. Manual de Inteligência Artificial no Direito. p. 101–104.
56

fundador e presidente executivo do Fórum Econômico Mundial – define que as tecnologias


digitais, amplamente compostas pela Inteligência Artificial, constituem práticas disruptivas que
compõem 4ª revolução industrial. Assim, a primeira ocorreu por volta de 1760, com a quebra
de paradigma da utilização de água e vapor para mecanizar a produção (que antes era manual).
Já a segunda revolução iniciou-se em 1850 com a utilização da eletricidade para a produção em
massa. Posteriormente, no século 20, a terceira revolução caracterizou-se pela utilização de
computadores, internet e tecnologia da informação para automatização da produção.110
As iniciativas estão espalhadas pelo país, em diferentes graus de jurisdição. Na 5ª
Vara da Seção Judiciária do Amazonas – especializada em execuções fiscais - por iniciativa do
próprio Magistrado foi criado um sistema inteligente que automatizou a penhora de ativos via
BacenJud; como resultado da iniciativa 8 mil ações judiciais foram descongestionadas,
arrecadando 30 milhões de reais para a Fazenda Nacional111. Também sobre a área de execuções
fiscais, o TJRJ implementou o sistema Victoria, capaz de verificar se a citação ocorreu
adequadamente, bem como – graças à comunicação automatizada com o BacenJud – executar
comandos de bloqueio e transferência de valores e até elaborar minuta da sentença. Dentre 7
mil penhoras executadas, apenas 3 inconsistências foram verificadas; realiza em 25 segundos o
mesmo que um servidor demora 35 minutos112. Já o sistema Radar, criado pelo TJMG identifica
demandas repetitivas e as agrupa por semelhança, distribuindo ao juízo competente
automaticamente para julgamento em conjunto113. Em Rondônia, o Tribunal de Justiça elaborou
o Sinapses. Tal sistema se tornou uma plataforma nacional de desenvolvimento de sistemas de
IA por meio de um termo de cooperação assinado com o CNJ (42/2018). Ele possui capacidade
preditiva e foi treinado com mais de 5 mil acórdãos do Tribunal114.
Desenvolvido em parceria com a UNB, o Mandamus é um projeto do Tribunal de
Justiça de Roraima que tem por objetivo gerenciar mandados – distribuição, localização do
oficial de justiça, controle de endereços das partes, citação/intimação em tempo real. 115 No TJ
do Rio Grande do Norte, três robôs – Poti (promove a execução, com bloqueio e transferência

110
PICCOLI, A. M. Judiciário Exponencial: sete premissas para acelerar a inovação e o processo de
transformação do ecossistema da justiça. São Paulo: Vidaria Livros, 2018, p. 76.
111
ROSA, A. M.; GUASQUE, B. O avanço da disrupção nos tribunais brasileiros. p. 98.
112
ROSA, A. M.; GUASQUE, B. Op. cit. p. 100.
113
ROSA, A. M.; GUASQUE, B. Op. cit. p. 104.
114
ROSA, A. M.; GUASQUE, B. Op. cit. p. 105.
115
TJRR JUSTIÇA 4.0: Soluções tecnológicas do TJRR facilitam atendimento, promovem qualidade de vida e
inclusão social. Disponível em: <https://www.tjrr.jus.br/index.php/noticias/noticias/3899-justica-4 36.-0-
solucoes-tecnologicas-do-tjrr-facilitam-atendimento promovem-qualidade-de-vida-e-inclusao-social>.
Acesso em: 27 mai. 2021.
57

de valores; procedimentos que levavam meses, ocorrem em 35 segundos), Jerimum


(classificação e rotulação de processos) e Clara (leitura de documentos, com posterior
recomendação de decisões) - são empregados para otimizar a prestação jurisdicional116. No
TJPE a ferramenta ELIS foi capaz de em 15 dias de operação dar andamento a 70 mil processos.
Ele executa o trabalho repetitivo 36 vezes mais rapidamente que os servidores e magistrados,
atuando principalmente na triagem inicial das demandas117.
Nos tribunais superiores a utilização de sistemas inteligentes também se faz
presente. No STJ, há destaque para o sistema Athos:

Em 2020, o STJ contou com uma Plataforma de Inteligência Artificial (ATHOS), que
foi treinada com a leitura de aproximadamente 329 mil ementas de acórdãos do STJ,
entre 2015 e 2017, e indexou mais de 2 milhões de processos com 8 milhões de peças,
possibilitando o agrupamento por similaridade semântica, a busca por similares, o
monitoramento de grupos, a pesquisa textual e a recuperação de jurisprudência. Com
o intuito de focar cada vez mais nessas ferramentas que usam IA, está prevista no
Plano de Gestão 2020-2022, a elevação do uso de IA, com a expectativa de aumento
de produtividade como também uma triagem mais inteligente dos processos e um
possível reaproveitamento de decisões em vários processos. Para isso, existem seis
iniciativas: Automação da área de triagem de recursos repetitivos; Criação de equipes
de curadoria de modelos de IA; Evolução do modelo de IA do projeto Athos;
Incremento da base de dados de treinamento dos modelos de IA; Criação de comitê
de ética de inteligência artificial; Expansão da capacidade de infraestrutura de TI para
processar modelos de IA; Adesão à plataforma nacional integrada de IA dos
tribunais118.

Nesse sentido, o referido Plano de Gestão 2020-2022119 indica o investimento,


esforço e retorno estimado para cada iniciativa no tribunal; entre as iniciativas de IA está
prevista a adequação ao Sinapses – projeto de IA do TJRO – conforme orientação do CNJ para
padronização das iniciativas de Inteligência Artificial nos tribunais do país. Fato é, com a ajuda
das iniciativas tecnológicas, no ano de 2020 o STJ julgou mais processos que recebeu: foram
344.034 protocolizados contra 373.741 mil processos julgados; no total ainda tramitam 258.053
demandas judiciais. A figura abaixo ilustra tal situação:

116
TJRN. ESMARN. Inteligência artificial no direito vira prioridade da ESMARN na formação de servidores
Disponível em: <https://www.esmarn.tjrn.jus.br/index.php/comunicacao/noticias/83-inteligencia artificial no-
direito-tema-vira-prioridade-da-esmarn-na-formacao-de-servidores>. Acesso em: 27 mai. 2021.
117
LAGE, F. C. Manual de Inteligência Artificial no Direito. p. 170.
118
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Relatório de Gestão do Exercício de 2020. Superior Tribunal de
Justiça. 2021. Disponível em: https://transparencia.stj.jus.br/wp-
content/uploads/Relatorio_gestao_2020.pdf>. Pag. 41. Acesso em 28/05/2021
119
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. DE MÃOS DADAS: MAGISTRATURA E CIDADANIA. Plano de
Gestão 2020/2022. Disponível em:
https://www.stj.jus.br/publicacaoinstitucional/index.php/planoEstrat/article/view/10056/10191. p.52-54.
Acesso em 28/05/2021.
58

Figura 10 - Movimentação processual do STJ em 2020120

Por fim, no Supremo Tribunal Federal foi criado, em parceria com a UnB o sistema
inteligente Victor; recebeu esse nome em homenagem ao Ministro Victor Nunes Leal, que
compôs a Corte entre 1960 e 1969 – seu trabalho possibilitou a sistematização da jurisprudência
em súmula, facilitando a aplicação de precedentes judiciais aos recursos 121. Ele é baseado nas
técnicas de processamento de linguagem natural. Seu trabalho principal é classificar os recursos
extraordinários que são submetidos ao Tribunal em um dos temas reconhecidos de repercussão
geral122; integra projeto estratégico do STF chamado MJE (Módulo de Gestão Estratégico), que
tem por objetivo final disponibilizar aos tribunais de origem uma ferramenta para aprimorar
(em agilidade e eficiência) o primeiro juízo de admissibilidade de recursos extraordinários e
especiais123. Sua performance aferida indicou queda no tempo da classificação das peças
processuais (de 15 minutos para 4 segundos), com acurácia de 94%; já na análise da repercussão
geral, o grau de certo foi 84% e o tempo caiu de 11 minutos para 10 segundos124.
Portanto, ficam retratados alguns dos experimentos relevantes de IA que estão em
curso em diversos tribunais brasileiros. Ainda que em parcela significativa esteja em fase
embrionária, já que se utiliza apenas das rotinas de classificação em listas predefinidas para
automatização de recursos e procedimentos, representam um direcionamento para utilização da
inteligência artificial para otimização da prestação jurisdicional. Os ganhos são significativos e
denotam incremento substancial na celeridade (e na assertividade) do exercício da jurisdição.

120
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Relatório de Gestão do Exercício de 2020. Superior Tribunal de
Justiça. 2021 Disponível em: https://transparencia.stj.jus.br/wp-content/uploads/Relatorio_gestao_2020.pdf.
p. 40. Acesso em: 28 mai. 2021.
121
LAGE, F. C., Manual de Inteligência Artificial no Direito. p. 265.
122
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Op. cit. p. 80.
123
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Op. cit. p. 32
124
ROSA, A. M.; GUASQUE, B. O avanço da disrupção nos tribunais brasileiros. p. 109.
59

5 CONCLUSÃO

A crescente judicialização de demandas tem sobrecarregado o pátrio sistema de


justiça em proporções alarmantes. O volume de processos é tão vasto que se diz tratar de uma
crise do Poder Judiciário, de tal forma que reformas legislativas importantes como a Emenda
Constitucional 45 de 2004 e a reforma do Código de Processo Civil não foram capazes de contê-
la. Nesse sentido, a utilização da tecnologia, representada neste trabalho pelas técnicas de
Inteligência Artificial, consubstancia-se como uma ferramenta possivelmente assertiva para o
enfrentamento dos elevados números que denotam o congestionamento processual existente no
Brasil hodiernamente.
Assim, observa-se (principalmente) a aplicação de técnicas de IA – em especial,
machine learning e processamento de linguagem natural - ao Direito, com a finalidade de
promover a celeridade processual. A verificação do ponto de vista histórico denota que as
ferramentas construídas recentemente pelas lawtechs utilizam-se da combinação de ambas; tal
composição possibilita a construção de sistemas inteligentes que se mostram eficazes para
enfrentamento de boa parte dos problemas cotidianos do mundo jurídico. Nesse contexto,
sistemas especialistas e preditivos teriam o condão de auxiliar até mesmo os usuários que não
são versados no vernáculo próprio das leis, promovendo a difusão do acesso à justiça por meio
de consultorias, jurimetria e resolução on-line de conflitos; contudo obriga advogados a
repensar parte considerável do trabalho que executam.
Concomitantemente, verifica-se que os direitos fundamentais – produtos de
construção histórica que se expressa em três (alguns autores defendem a existência de cinco)
dimensões, que os categorizam – são gravemente ameaçados pela utilização de sistemas
inteligentes. Os modelos matemáticos que possibilitam a aparente cognição dos algoritmos de
Inteligência Artificial podem apresentar vieses, capazes de discriminar ou favorecer grupos.
Por exemplo, corporações de grande poderio econômico poderiam influenciar na elaboração de
sistemas inteligentes que lhes garantisse privilégios nos julgamentos de execução tributária; ou
então um cientista da computação neonazista poderia calibrar os pesos e conceitos utilizados
por um juiz- robô para promover o encarceramento de determinada etnia. Devido ao elevado
grau de complexidade desses sistemas há também a possibilidade de que o enviesamento ocorra
de forma não intencional, tanto em sua elaboração ou então – caso não seja submetido a uma
base de dados adequada – na sua fase de treinamento e aprendizagem.
Tais possibilidades são reais e afetam gravemente o devido processo legal. Os
críticos da inteligência artificial advogam também ofensa à legalidade e ao princípio do juiz
60

natural, pois a utilização de IA nos tribunais há pouco tempo era fruto da própria iniciativa dos
Tribunais, apenas recentemente é disciplina por meio de resolução do Conselho Nacional de
Justiça (tal situação é passível de críticas, já que as resoluções emanadas pelo Órgão não têm
capacidade inovativa e, portanto, impossibilitadas de criar direitos, obrigações e principalmente
restringir direitos e garantias fundamentais); assim, o juiz robô constituiria um tribunal de
exceção, situação constitucionalmente vedada (ainda que não se trate de sistema inteligente que
prolate sentenças, sem configuração de um caráter no qual a Inteligência Artificial
consubstancia-se em essência na própria personificação do tribunal, mas apenas impulsione o
processo, realize triagem e classificação das demandas e atividades similares).
Contudo, são iniciativas decorrentes de experiências bem-sucedidas em
ordenamentos jurídicos estrangeiros, elaboradas com o intuito de enfrentar a crise do judiciário;
é numericamente comprovado (por ter a produtividade aferida nos diversos casos práticos
realizados nos tribunais brasileiros), que os sistemas de inteligência artificial abordados neste
trabalho trouxeram incremento de produtividade substancial no exercício da jurisdição. A
assertividade também foi um ponto de destaque, já que a taxa de acerto mensurada foi bastante
elevada. Mas vale reafirmar que as iniciativas nos tribunais brasileiros são anteriores à
regulamentação legal – frise-se, emanada pelo Poder Legislativo - e mesmo com a Resolução
332/2020 do CNJ não foi possível dirimir as divergências doutrinárias, a situação que endossa
as críticas relacionadas ao afrontamento do princípio da legalidade.
Assim, com reservas, defendeu-se ao longo desse trabalho a utilização de sistemas
inteligentes, ainda que para realização de tarefas maçantes e repetitivas pode desonerar
magistrados e servidores, redirecionando sua força de trabalho para empenhar-se em tarefas
mais dispendiosas do ponto de vista cognitivo, em situações em que os robôs (ainda) não têm
vantagem. Contudo, o congestionamento processual no Poder Judiciário não pode ser utilizado
como pretexto para buscar a celeridade a qualquer custo. Reforça-se tal posicionamento, bem
como ressalta-se que o regramento pertinente para concretizar a realidade da IA no Poder
Judiciário pátrio deve ser resultado de uma discussão ampla e profunda com todos os setores
sociais, confeccionada pelo Poder Legislativo e totalmente orientada na transparência
algorítmica.
Nesse sentido, entende-se, na verdade, que a revolução digital é uma realidade
cotidiana. Todos os setores sociais são impactados pela tecnologia e os benefícios que esta
proporciona. O Direito, intrinsicamente ligado à sociedade, está fadado a modernização em
simetria ao que ocorreu (e ocorre) nos demais ramos do conhecimento. Uma vez que tal
processo é irreversível (ainda que postergável) e de natureza disruptiva, cabe aos operadores
61

jurídicos adequarem-se à nova realidade que se delineia; contudo, longe do conformismo de


quem tudo aceita, devem trabalhar para que a nova onda tecnológica promova (em sintonia com
as diretrizes éticas pertinentes) os benefícios que pavimentam o caminho da pacificação social
que a Ciência Jurídica se propõe a edificar.
Por todo o exposto, ressalta-se que o objetivo da pesquisa foi alcançado. Resta
evidente que a aplicação da Inteligência Artificial ao Direito, pautada na transparência
algorítmica e no respeito pelos Direitos Fundamentais é o meio capaz de promover a
racionalização dos custos do Poder Judiciário brasileiro e, em especial, a democratização do
Direito (no sentido que mais pessoas tenham acesso ao Poder Judiciário e ao conhecimento
jurídico), bem como a segurança jurídica (por meio da uniformidade e previsibilidade das
decisões) e celeridade da prestação jurisdicional.
62

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