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JORNAL
Ano XVIII/ N.º 732
De 21 de Outubro
a 3 de Novembro de 1998

DE LETRAS,
320$00
(IVA incluído)
Quinzenário

ARTES
..

E IDEIAS
10 Quarta-feira, 21 de Outubro de 1998

JOSE SARAMAGO/NOBEL 98
Foi na terça-feira, 13, que José Saramago,
vindo de Lanzarote, regressou a Portugal
ou aqui chegou pela primeira vez nobiliza­
do. Mas seria no dia seguinte, no CCB
(ver Comentário, pág. 2), que a comoção
e o júbilo se expressaram com maior ênfa­
se. Numa sessão inesquecível, promovida
pelo Ministério da Cultura, a deixar o es­
critor (como o JL previra na edição extra
do dia 14, que lhe foi inteiramente dedica­
da) surpreso com o imenso obrigado por­
tuguês pelo P rémio.
Na véspera, a sessão fora na CML, com
João Soares a entregar ao escritor as cha­
ves da cidade, enquanto o Ministério da
Educação tomara duas decisões: dava o
nome de.José Saramago à Escola Secundá­
ria de Mafra e fazia do 8 de Outubro (data
da atribuição do Nobel) o Dia da Língua
Portuguesa.
Mas na quarta-feira, se no CCB foi o que
se viu, com o primeiro-ministro a presidir,
o dia fora todo ele intenso para Saramago.
Na P residência da República, Jorge Sam­
paio atribuíra-lhe o Grande Colar da Or­
dem de Sant'lago da Espada e anunciava
estar presente no dia 1 O, em Estocolmo,
na cerimónia solene do Nobel. D epois, o
escritor revisitara o Diário de Notícias, de

Um reino
que fora director-adjunto entre 9 de Abril
e 25 de Novembro de 75, seguira para as
instalações do P CP e teria tempo para,
ainda antes de chegar ao CCB, falar aos
trabalhadores da CGTP reunidos na P ra­
ça do Comércio. Se em Belém (Presidên­

de palavras
cia da República e CCB) recebera as ho­
menagens nacionais, junto dos camaradas
de partido e dos sindicalistas, reafirmara
a sua opção política. Acentuando que não
foi preciso deixar de ser comunista para
ganhar o Nobel, se fosse preciso nunca o
teria querido receber.
O dia de quinta-feira, 15, foi marcado pela
inauguração da exposição sobre José Sa­ EDUARDO PRADO COELHO
ramago na Biblioteca Nacional (de que o
escritor fora na véspera designado leitor á instantes que cortam co­ Tem sido afirmado, e julgo que é indismentí­ <leriam a ser substituídos por uma espécie de
emérito pelo director Carlos Reis). E na mo diamantes. E nós fica­ vel, que nenhum outro premiado suscitaria um algazarra comunicativa em que nada fica de
sexta-feira, 16, seguiria para o Porto, aon­ mos atónitos a tentar repe­ tão grande e expansivo entusiasmo no espaço comum naquilo que se comunica. Podemos
de, mesmo antes do Nobel, já estava pre­ tir o momento do corte - de língua portuguesa: Saramago é uma refe­ cair nessa espécie de pessimismo, e temos ra­
incapaz de compreender rência em todos os planos para os escritores zão nisso - aliás, Saramago tem sido um dos
visto participar no Encontro de Literaturas como era antes agora que que em África escrevem a nossa língua, Sara­ mais perseverantes na denúncia desses perigos.
Ibero-Americanas, promovido pelo Institu­ passámos para o lado do mago é para os brasileiros um autor no qual E, no entanto, o milagre acontece: é possível,
to Camões (ver página 2). Só que entre o depois. Desde há uma semana que recordo o eles se reconhecem como reconhecem em como anteontem aconteceu em Lisboa, que
previsto e o realizado, acontecera o Nobel, grito e o gesto de vitória de Francisco José Vie­ Vieira, Eça ou Pessoa. uma sala se levante em palmas quando alguém
o que transformou por completo o fim-de­ gas, a meu lado, no stand português de Frank­ Por outro lado, como Saramago sublinhou ain­ diz que se não pode viver dignamente sem a
semana de Saramago no Parto. Destaque­ furt, quando, de telemóvel na mão, comunicava da anteontem no Centro Cultural de Belém, força das palmas. É possível, como se viu nes­
se neste particular, para a sessão de home­ com uma rádio de Lisboa. E logo a seguir o eco talvez não houvesse a sensação de que o escri- ta semana, que um país se levante em alegria
nagem da Câmara, com Fernando Gomes de aplausos e vozes de festa que nos chegavam . tor A ou o escritor B já deveriam ter tido o porque alguém ganhou um prémio de literatu­
a fazer do escritor filho adoptivo da cida­ doutro ponto da Feira. E recordo ainda a corri­ Nobel, mas havia sem dúvida a ideia de que ra. E possível que um escritor invente uma
de, cabendo a Eduardo Prado Coelho (ver da louca para o aeroporto e o abraço de para­ um escritor de língua portuguesa o merecia energia nova para a palavra «levantar». E é
texto ao lado) saudar-lhe a obra e a vida. béns, e a seguir a falta de palavras, essa espécie desde há muito. Daí este movimento de alegria possível que durante alguns dias a literatura te­
Destaque ainda para a visita de surpresa à de emparvecimento generalizado que se apossa (em que a Espanha também se incorporou, e nha, como disse, subido à rua. Mas Saramago
Metalúrgica Secca, cujos trabalhadores, de nós quando as coisas são manifestamente agrada-me que assim tinha sido): «nós» tive­ deu-nos a explicação: há momentos em que tu­
em abaixo assinado, lhe tinham enviado maiores do que nós somos. Permitam-me uma mos o prémio que devíamos ter. do parece possível; este é um desses. Sabemos
uma saudação pelo Nobel. confidência: do ponto de vista estritamente in­ Isto disse Saramago. O que ele já não podia di­ bem que se trata de uma quimera. Mas a vida
telectual, sei, como Saramago sabe, e o tem di­ zer é o que «nós» pensamos: que ninguém me­ não faria sentido sem momentos destes: como
Saramago que, na véspera, não participara
to repetidas vezes, que outros escritores de lín­ lhor do que ele podia ser o «nós» que nós so­ toda a obra de Saramago prova, o «não» de
na manifestação pró-cubana, apareceria, gua portuguesa mereceram ontem ou poderiam mos. E só assim se explica o sentimento que uma ficção, inventada pelo obscuro e insub­
no dia seguinte, no comício de Matosinhos, ter merecido hoje, uma distinção deste tipo. pudemos ter (refiro-me àqueles que estiveram misso gesto de um revisor, deverá sempre ser
ao lado de Fidel. Para, em duas ou três pa­ Mas não creio que, no plano puramento huma­ em Frankfurt) ao regressar a Portugal: não foi mais forte do que o «sim» de qualquer realida­
lavras («O P r émio Nobel da Literatura no, que é obviamente o mais ingénuo e mais que a literatura tivesse caído à rua, foi que a li­ de pragmática.
1998 está ao lado da revolução cubana») puro, eu pudesse sentir uma alegria tão espon­ teratura tinha subido à rua. Recordo de novo o instante mágico de Frank­
sintetizar mais uma vez o seu posiciona­

P
tânea e tão verdadeira como a que tive quando furt: o que dele é antes e o que dele foi o de­
mento ideológico. Como - sucessivamente soube do Prémio atribuído a Saramago. Há pa­ odemos às vezes pensar que a literatura pois. O antes desapareceu devorado pelo de­
- foi reafirmando neste «regresso» a Por­ ra isso uma série de razões, algumas releváveis, se vai converter numa coisa do passado, pois: como se desde sempre Saramago tivesse
tugal que, num certo sentido, nunca de cá e outras que pertencem a uma esfera mais ínti­ destroçada pela voragem das imagens sido o Prémio Nobel que hoje é. Como se a
saira. «Onde eu estou está o meu páís» - ma que não saberia nem desejaria explicar nes­ precipitadas, massacrada pe1o clamor eufórico justiça tivesse começado no princípio do mun­
disse - afirmando que o seu portuguesis­ te momento. Mas creio que no fundo não sou das novas tecnologias, em que o livro, e o si­ do - ela, a justiça futura.
mo «pede meças» aos dos demais portu­ nesse plano muito diferente da esmagadora lêncio à volta do livro, e a luz desse silêncio, e Falemos então do escritor Saramago. Do modo
gueses. maioria dos portugueses. o murmúrio em nós dessa voz silenciosa, ten- como 1;oube implantar um reino de palavras
Quarta-feira, 21 de Outubro de 1998

JOSE SARAMAGO/NOBEL 98
onde hoje entramos como na nossa casa - positivo, é legítimo, é saudável, é justo. Adver­ -
""
sem que por isso se dissipe o crepitar das tre­
vas e rumores que envolvem as velhas casas.
Do modo como essa casa íntima e desconheci­
sários que devem aceitar, por um princípio de
tolerância, a grandeza de um prémio, mas po­
dem e devem dizer tudo o que os afasta dessa
UM ABRAÇO DO CORAÇAO
da muda de cor como os olhos de Biimunda de obra. Não tenhamos a ilusão de que a literatura Meu caro José Saramago: agora que mais nenhum prémio te será dado, e que a tua festa do
livro para livro. Há escritores que escavam deva ser uma sublimação generalizada. Se há Nobel ainda retumba no meu corçação ressentido, desejo falar-te da imensa tranquilidade da
obstinadamente a terra de um território. Outros algo de político numa obra, isso faz que a obra minha consciência a teu respeito. Tu sabes que nem sempre os que estão perto são os mais
inventam, como Saramago, uma construção de partilhe com a política a sua condição essen­ verdadeiros. A distância é boa conselheira. Tu, antes, em Lanzarote ou por esse mundo aéreo
sucessivos patamares onde tudo o que parece cial: traçar uma linha de fronteira entre amigos fora, e eu aqui em Lisboa. Tu, há dias, em Frankfurt e depois em Lisboa, e eu correndo ilhas
diferente repete noutro lugar a nemória obses­ em1m1gos. em Cabo Verde: mas imagina tu tanta gente a sorrir, a dar-me a mim os parabéns pelo teu No­
siva do lugar em que se ergueu. Assim, cada li­ Mas aquilo que estruturou o núcleo do pro­ bel pórtuguês, como se de algum modo o prémio de um fosse também o de muitos de nós, es­
vro de Saramago dá um salto no desconhecido. jecto comunista não resistiu à prova da histó­ critores portugueses. Não podes calcular como me orgulhou o facto de, lá tão longe, estar afi­
A razão é simples, e para ela apontarei duas ria: a ideia de um sujeito que, considerando o nal tão próximo de ti, o que de resto aconteceu ao longo de todos estes anos de ausência.
causas: poucos escritores são capazes de arran­ proletariado como o actor social que nada ti­ Amigo, leitor e dentro de algumas das tuas causas, como sabes.
car de ideias romanescas tão fortes, tão inten­ nha a perder, o tomava portador de todas as É facto que te tenho por merecedor absoluto deste Nobel. Escreveste livros únicos, renovaste
sas, tão pregnantes. E poucos escritores têm virtudes, e em especial da virtude de resgatar, o romance português e europeu deste fim de século, és um homem que preza sobretudo a vir­
este extraordinário dom de saber dar o título desalienando-a, a humanidade inteira. Aquilo tude da honra (tal como eu, se me permites). Mas é aí que em parte começa o ressentimento
certo para as ideias de que partem. Nunca sa­ que se desloca surdamente na obra de Sara­ do meu coração. Há pelo menos dois livros teus que eu tinha a estrita obrigação de ter escrito:
bemos em que patamar do mundo iremos des- mago é a consciência de que hoje se não pode o Memorial e O Evangelho. O primeiro, porque foi sempre o romance da minha esperança de
cobrir o próximo romance de Saramago - já apoiar no conceito de um sujeito privilegia­ romancista; o segundo, porque ainda hoje se agitam em mim os ventos e as brisas de uma mi­
nem ele sabe, estou certo. E, no entanto, gosta­ do, mas, sim, noutras modalidades de pensar tologia literária que educou e perdeu Antero de Quental e que também não há maneira de se
-- ria de sublinhar, isso não significa que não a base da revolta P.ossível. O que a obra de afastar de mim. Foi por isso que recebi o teu Nobel com tanta alegria e com tanta naturalida­
existam, bem pelo contrário, temas constantes Saramago nos mostra é que é preciso � ao en­ de. Por ti e por todos nós. Se dizem que ele nos era devido, porque não limitarmo-nos a vivê­
e insistentes na obra de Saramago. Isto é, eixos contro dos seres humanos para lá de uma lo sem ter de o agradecer? Agradeço-te eu a ti teres posto a nossa Literatura na História de
estruturantes nesta ficção das ficções. ideia abstracta de universalidade, em nome Portugal e nos olhos do mundo. Um abraço do coração.

A
do qual muitos crimes se cometeram, ou para
penas como exemplos, gostaria de lá da ideia de que cada um tem algo de único JOÃO DE MELO
evocar alguns. Em Levantado do e de indizível, e que passa pelo peso maternal
Chão, no dia «levantado o principal»
da última página, todos são convocados, e
«vão todos, os vivos e os mortos», mas e, To­
do seu nome (e nisso se esgotaram muitas re­
voltas sem futuro). É preciso. procurar nos ho­
mens e mulheres o lugar em que eles se tor­
OBRIGADA, i:>ILAR
dos os Nomes, o mais recente livro de Sarama­ nam não-sujeitos da história, porque submeti­ Dirigia-me de táxi para o aeroporto de Orly quando
go, o tema central é precisamente esse: mani­ dos à exclusão radical das novas formas de ouvi na rádio a notícia de que o Prémio Nobel da
pulando «os papéis da vida e da morte», os pobreza ou desenraizamento, ou então, na Literatura tinha sido dado ao José Saramago. Dei
alucinados deuses burocratas da Conservatório arena ruidosa das nossas democracias, sujei­ um salto acompanhado de um grito de alegria e
Geral da Vida vão abrindo as frestas por onde tos evaporados de si mesmos (e a metáfora da apertei com força a mão do Pedro. Ficámos, a par­
a fronteira se afrouxa ou mesmo se apaga. Não ceguiera não dizia outra coisa). É aqui, neste tir desse momento, com um grande desejo de che­
há antes nem depois: vivos e mortos confun­ toar com o dedo a humanidade nua, nesse gar a Lisboa, em estado de euforia e comoção. '
dem-se na mesma apoteose de ser, ter sido e desvendar que somos a partir dessa coisa que Dia 14 lá estive eu no Centro Cultural de Belém
vir a ser. Não conheço, ordem das utopias, uto­ em nós já não tem nome, que conseguimos (CCB) , depois de quase duas horas numa fila de
pia mais alta. alcançar, seguindo os livros de Saramago, a espera, para arranjar lugar. O ambiente estava car­
E que faz Biimunda, essa criação extraordiná­ linha rasa de uma humanidade futura, essa regado de uma energia tão forte que o Saramago,
ria de Saramago? Olha os seres por dentro - jangada de uma humanidade de harmonia e no palco, ficava esmagado em palmas, em gritos,
como só uma mulher o sabia fazer. E, no en­ esperança que sobrevive à flor do mar. em palavras, em admiração e amor. No meio da­

D
tanto, na relação de amor há um tema que é quele entusiasmo, emocionada até às lágrimas, re­
certamente uma das marcas mais profundas da isse-me um dia que a literatura é uma cordei o ano de 1980 quando, pela voz de Luís Fili­
obra de Saramago. Falo da promessa de Bii­ promessa de felicidade. Acrescentarei pe Costa, ouvi na Aritena 2 falar na minha exposi­
munda em relação ao amado: «Nunca te olha­ que é por isso mesmo que ela é políti­ ção (a primeira que fiza em Lisboa, na S.N.B.A),
rei por dentro». Este tema poderá ser designa­ ca: porque se impacienta com a promessa adia­ num programa em que se falou muito do Levanta­
do como uma cercadura de pudor com que Sa­ da. E isso nós aprendemos numa daquelas ce­ do do Chão de José Saramago. Nunca mais esqueci essa feliz coincidência.
ramago assinala o respeito que ·o outro suscita nas admiráveis com que Saramago finta nos Mais tarde, já em 1997, o José pediu-me para fazer ilustrações para o seu livro de poemas O
em nós (o que explica muito das cautelas e iro­ seus livros os riscos de um alegorismo excessi­ Ano de 1993, que a Caminho reeditou. Aceitei logo com entusiasmo, embora com receio de·
nias da sua sintaxe, essa cadência aveludada vo. Na História do Cerco de Lisboa, Raimundo não ser capaz de estar à altura. Foram tempos de encontros, de conversas estimulantes e criati­
das palavras sempre OIJSadas e reticentes). Po­ Silva envia rosas a Maria Sara. E podemos ler: vas. O livro ficou bonito mas hoje faria tudo de outra maneira.
de o médico de Ensaio sobre a Cegueira «Raimundo Silva lançou-se sobre o telefone, Quando terminou a cerimónia no CCB, José Saramago deixou o palco e eu decidi que tinha,
olhar os olhos e desejar nos olhos entrever a num segundo de dúvida pensou, E se não é ela, apesar da multidão, de lhe dar um abraço. Assisti então a um momento sagrado: o José, pálido
alma. Mas há nesse avançar no desconhecido era ela, Maria Sara, que lhe dizia, Não o devia e a tremer de tanta emoção, dirigiu-se para a mulher e abraçou-a com tal intensidade e sereni­
um momento de pausa e retraimento que é a er feito, Porquê, pensou ele, desconcertado, dade que durante segundos,.minutos?, aquele homem e aquela mulher foram um só corpo e
marca de reverência em relação ao outro: só Porque a partir de hoje não poderei receber ro­ uma só alma. Consegui dizer baixinho: Obrigada, José, pelo que ofereces ao Mundo nos teus
assim o outr.o é verdadeiramente o outro na sua sas todos os dias, Nunca lha faltarei com elas, livros, e pelo amor que dedicas a esta mulher. Que vivas muitos anos e que possas continuar a
glória, distância e dignidade. Só assim o amor Não me refiro a rosas rosas. Então, Ninguém fazê-lo com paixão. Obrigada, Pilar, pelo bem que fazes ao nosso José Saramago.
é possível e a compaixão silenciosa. Só assim deveria poder dar menos do que deu alguma
o cão das lágrimas enxuga as lágrimas do so­ vez, não se dão rosas hoje para dar um deserto GRAÇA MORAIS
frimento. Por isso escreve Saramago no seu ro­ amanhã».

A ACADEMIA ACERTOU
mance: «O médico só disse, se eu voltar a ter Escrever é prometer - e por isso uma imensa
olhos olharei verdadeiramente os olhos dos ou­ responsabilidade: rosas hoje, rosas amanhã. É
tros, como se estivesse a ver-lhes a alma. A al­ possível que o escritor acompanhe a promessa
ma, perguntou o velho da venda preta, Ou o que floriu nas palavras por ele escritas. Nisso Quando cheguei a Frankfurt havia uma mágoa pelo facto do embaixador não estar presente e
espírito, o nome pouco importa, foi então que, Saramago nunca nos desiludiu. E, se me per­ por o Estado Português não ter enviado ninguém para trazer José Saramago directamente para
surpreendentementf, se tivermos em conta que mitem aflorar aqui uma daquelas razões incon­ Portugal. Depois, houve várias iniciativas, mais ou menos descoordenadas, como normalmen­
se trata de pessoa que não passou por estudos fessáveis a que no início aludi, eu diria que es­ te acontece em Portugal. Todos quiseram ganhar o Nobel por Saramago, mesmo aqueles que
adiantados, a rapariga dos óculos escuros, dis­ te Prémio me alegra não apenas porque a obra não queriam que Saramago tivesse ganho. Na Câmara de Lisboa, Saramago foi recebido com
se, Dentro de nós há uma coisa que não tem de Saramago é uma promessa de felicidade, grande entusiasmo e calor humano. Isso, concerteza, é mais importante para ele do que as
nome, essa coisa é o que somos». mas porque a vida de Saramago, o que delas reacções oficiais.
E isto poderia servir-me para entrar no terceiro sabemos e o que dela em poudor se esconde, é Não é o Nobel que faz uma literatura grande. Mas, como é evidente, a sua atribuição chama a
tema. Tem-se repetido que Saramago é um es­ para todos nós uma promessa de felicidade. atenção para a literatura portuguesa. Houve prémios Nobel muito mal atribuídos, e grandes
ctritor que se interessa pelos seres mais modes­ Como se ela própria se tivesse tomado o es­ escritores que nunca o receberam. Mas, desta vez, penso que a Academia acertou, porque Sa­
tos. Isto é verdade, José, mas gostaria de ir plendor de uma ficção vivida. ramago é um grande escritor.
mais longe na análise das coisas. Saramago Quanto à velha questão de Espanha, penso que é expressão de mesquinhez e insegurança.
pertence a uma geração que teve um ideal polí­ Não temos de nos queixar de Espanha, que sabe zelar pelos seus, mas sim de nós próprios,
tico: convém dizê-lo, é um escritor que é tam­ * Este texto (cujo título é da responsabilidade do JL)tem
como base a intervenção do autor na sessão solene de que muitas vezes não o sabemos fazer.
bém um comunista. E, por isso, é natural que a homenagem a José Saramago na Câmara Municipal do MANUEL ALEGRE
!111 sua obra tenha adversários. Não é só natural, é Porto.
12 Quarta-feira, 21 de Outubro de 1998

JOSE SARAMAGO/PREMIO NOBEL 98

Um homem tranquilo
F
MÁRIO DE CARVALHO

"Fala com o Saramago", sobretudo oportunidade de confiar todas as suas


disseram-me. E eu, com dúvidas, apreensões e receios (valeria a pena
um endereço na mão fui continuar a escrever? Aquilo que escrevia teria
procurar o Saramago, num alguma qualidade, ou seria um divertimento pas­
edificio em que ele traba­ sageiro e digestivo? ) e de receber em troca gra­
lhava não longe das Amo­ tas palavras amigas de encorajamento. Sem ne­
reiras. Recebeu-me num nhuma condescendência, mas com uma franque­
corredor forrado de corticite um tanto para o es­ za leal e fraterna.
curo. Tratava-se, acho eu, de preparar uma reu­ Foi talvez a lembrança desses momentos que le­
nião alargada de escritores comunistas. Foi cor­ vou o escritor mais jovem, uma madrugada, a
tês, rápido, despachado. Poucas palavras, andar acordar José Saramago pelas duas da matina. Es­
decidido (interrompeu a conversa umas poucas tava desesperado. Acabava de publicar um livro
de vezes para ir tratar não sei de quê) um ligei­ que tinha uma gralha em cada linha. Coisas gra­
ríssimo tardar na voz. Alguma surpresa tácita víssimas. A "errata" final mal dava conta do des­
por lhe ter sido enviado um funcionário tão jo­ vario que aquilo era. "Retiro o livro?" "Que é
vem e sem renome. Acontecia-me quase sem­ que eu faço?", "Que é que eu faço?". Coisa que
pre. À espera de um Carlos Brito, ou de um Oc­ se faça não é de certeza acordar um cidadão às
távio Pato, os meus "controlados" deviam inter­ tantas da matina, para carpir mágoas próprias.
rogar-se, lá no íntimo, porque é que o Partido Mas a resposta de José Saramago foi tão solidá-
lhes enviava um puto meio aéreo, pouco dado às
questões literárias e habituado a raciocinar por
silogismos.
Ficou combinado já nem sei o quê. Aperto de
mão e até depois. E se não foi exactamente as­
sim e se a minha malfadada memória arruma
mal as coisas, também não andou longe disto.
Aliás, não tem grande importância. Naquele
sombrio corredor não se passou nada de espe­
cialmente relevante para a História de Portugal.
Para a da Literatura Portuguesa ainda menos. ria, tão compreensiva, que só depois o escritor

º
O facto é-que eu escassamente sabia quem era o novo se compenetrou de que tinha cometido um
Saramago e nisto estava largamente acompanha- grande abuso e lhe ficava a dever mais esse mo­
do. Uns comentários literários na "Seara Nova" mento de apreço e de camaradagem.
(às vezes azedotes), um livro de poemas que me­
receu o sarcasmo dum então novel crítico literá­ estupor do tempo não para de passar. Vie­
rio (não reincidente) e umas crónicas algures que ram as ocasiões sociais. Algum formalis­
nem assim, nem assado. mo. Livros enviados e recebidos. Um cartãozi­
Estávamos em 1974, o mundo tinha-se posto a nho. Duas linhas. Encontros fugazes, mais ou
girar muito depressa, toda a gente precisava de. menos mundanos, nos sítios mais esquisitos.
correr a mata-cavalos para aguentar o passo do Conversa de circunstância. Participações em
mundo. As reuniões sucediam-se, ensarilhadas ,:'eventos".
umas nas outras, até altas horas da noite. Na al­ Continua a ser uma delícia ( e com o tempo cada
tura, era vergonha um tipo deitar-se cedo. Ao le­ vez mais requintada) ouvir Saramago a expor,
vantar-se, no dia seguinte sentiria o remorso de mesmo quando não tem razão, ou tem razão a
ter perdido 136 eventos decisivos. E os escrito­ mais, que é uma forma de não ter razão. Já por
res tinham todos uma grande queda para a políti­ duas vezes lho disse, não por delicadeza, mas
ca e o gosto de discussões circulares de palavra­ porque, sinceramente admiro a forma como ele

A
pega-palavra, a ver quem é que lhe dava mais. se exprime. Um dia um jornalista confiou-me
Nesses tempos escrevia-se pouco. E a literatura que ele era um das pessoas mais fáceis de entre­
escrita que faltava compensava-se ali na oralida­ vistar. Bastava transcrever a fala para o papel, tal
de (poderei dizer "na oratura" ?) de fogosas reu­ que me parecia coisa de feiticeiro. E ainda· por í pelos anos 80, andava por Lisboa um qual. Não havia bordões de linguagem, nem he­
niões. cima, num português impecável, capaz de ser lo­ escritor tirocinante, desconfiado e inse­ sitações, as frases saíam-lhe escorreitas, em bom
Chegava a ser divertido e eu sentia-me um privi­ go posto em papel. guro a quem calhava frequentar a "Vari­ português, com vocabulário próprio (não o bási­
legiado. Nunca conheci o Partido dos comissá­ Uma noite, Saramago apareceu com a barba a na da Madragoa". Conhecia o José Saramago de co) e gramática completa. Mais um dom. O tal
rios políticos, mas admito que o tenha havido, assomar e alguém atirou um comentário qual­ umas reuniões políticàs, anos atrás, mas não era que eu já começara a admirar 25 anos antes, em
em qualquer esconso distante, ou numa cave quer. "Estou só a fazer a minha pose de revolu­ caso para abusos. Via-o chegar e sentar-se, ora reuniões cheias de fumo.

R
obscura, já que falam tanto nisso. Ali, que eu cionário fatigado..." respondeu ele. Acho que es­ sozinho ora com Isabel da Nóbrega, havia uma
saiba, não. Era Althusser para diante, Lenine não ta era.comigo. Naquela noite devo ter exagerado troca breve de saudações, e cada qual no seu lu­ esisti um bocado a escrever estas linhas.
sei quê, e um paciente Eduardo Prado Coelho nos bocejos. gar, e com quem estava. O escritor aprendiz ti­ E ter-me-ia escapado, se não fosse a in­
(castigador indómito das entropias) a querer que Depois veio o "Manual de Pintura e Caligrafia". nha muito a consciência de que havia uma dife­ sistência, de certo modo firme, de quem
se teorizasse e a tentar pôr um bocado de ordem Não entusiasmou ninguém. Julgo ter percebido, rença de estatutos: ele a começar aos tropeços, me encomendou a prosa. Neste momento de eu­
naquilo. Um dia hei-de relatar como o Manuel então, o quanto aquele livro era importante para cheio de medos. O outro já célebre e festejado. foria, abençoada euforia, toda.a gente tem coisas
da Fonseca dava cabo das reuniões a contar his­ José Saramago e a incomodidade por que deve Acrescia que, se um era tímido, o outro era nada para dizer. Em alguns casos vem-me ao espírito
tórias. Mas hoje é do Saramago. ter passado perante apreciações mais ou menos dado a efusões. Uma altivez distante, de cabeça aquela expressão brasileira do "papagaio do pi­
Era difícil não reparar na extrema elegância de evasivas ou condescendentes. Tinha apostado levantada (às vezes uma sombra no olhar...) que rata". Sabem o que são os "papagaios do pira­
linguagem, na capacidade de réplica, e no com­ muito forte. Creio que ainda hoje valoriza muito não parecia encorajar aproximações. E assim se ta"? São aqueles tipos que se atrelam às celebri­
prazimento com as palavras por parte de José o "Manual...". Mas nas opiniões então domi­ foram vendo e ao de longe cumprimentando: dades e aproveitam para se mostrarem por cima
Saramago. Recordo-me de estar de lápis na mão, nantes, que, no essencial me parecem acertadas, Um belo dia, parte de Saramago um convite para do ombro delas quando as câmaras começam a
a fazer de conta que olhava para ontem e a pen­ não era ainda o romance de um grande escritor. almoçarem juntos. O jovem escritor teve ocasião filmar. O José Saramago está neste momento a
sar, depois duma interpelação qualquer: "Vamos Não tinha sido desta... de saber muita coisa (as circunstâncias dilace­ ser assediado por milhentos "papagaios de pira­
lá a ver como é que ele se safa desta". E habi­ José Saramago foi para o "Diário de Notícias", rantes que muito magoaram Saramago e acaba­ ta". É natural e é humano. Mas eu preferia não
tualmente safava-se. Abria aquele sorriso que perdemos o contacto, vieram anos sobre anos, a ram - Deus a escrever direito por tortas linhas... - estar entre eles.
hoje todos lhe conhecem, tartanmdeava um bo­ vida e as suas trapalhadas, e ele publica o "Le­ no exílio do Lavre e no "Levantado do Chão"); Em todo o caso, ainda bem que tive oportunida­
cadinho e lá lhe saía o repentismo. Eu que sem­ vantado do Chão". Um deslumbramento. A se­ teve o privilégio de ouvir em primeira mão, mui­ de de manifestar a gratidão que uma natural re­
pre fui um repentista-do-dia-seguinte não podia guir, o "Memorial". Outro. E o mais que se sábe to à puridade (segredo religiosamente respeita­ serva, de parte a parte, provavelmente deixaria
deixar de admirar e de invejar uma arte de dizer e se louva. do) o plano d' "A Jangada de Pedra", mas teve calada pela vida fora.
Quarta-feira, 21 de Outubro de 1998 13

JOSE SARAMAGOIPREMIO NOBEL 98

A hlstória e a parábola LUCIANA STEGAGNO PICCHIO

té que enfim! As expres­ do monarca absoluto D. João V. Romance


sões de júbilo e de alívio histórico na minuciosa descrição da socieda­
correm e cruzam-se en­ de portuguesa, cortesã e popular do início do
tre uma margem e a ou­ século XVIII, na sumptuosidade barbárica
tra do Atlântico, entre dos autos de fé promovidos por uma Inquisi­
Portugal e o Brasil, in­ ção ainda imperante, torna-se romance so­
vestem as ilhas, Madeira, cial na evocação daquela massa de operá­
Porto Santo, Açores, Cabo Verde, pedaços rios, assalariados rurais, canteiros, que ti­
de uma mítica Atlântida que hoje fala J?Ortu­ nham sido os construtores materiais do tem­
guês. Chegam até às costas de uma Africa plo. Mas toma-se romance de realismo fan­
agora independente, mas sempre lusófona, tástico na invenção das personagens, primei­
embora com variantes crioulas, desde Ango­ ra entre todas a de Biimunda, filha de marra­
la à Guiné Bissau e a S. Tomé e Príncipe. na, de olhos claros e um belo nome germâ­
Depois, com um salto, tocam Moçambique nico que, não por acaso, um compositor co­
no Oceano Índico e desembarcam naquelas mo Azio Corghi vai escolher como protago­
zonas de uma Ásia que ainda conserva, num nista da sua recriação musical do romance.
substrato de tradições linguísticas e cultu­ A partir desse.momento, a inspiração de Sa­
rais, a memória de uma antiga presença. E ramago toma-se urgente. O ano da morte de
chegam até a comover a Galiza, região de Ricardo Reis (1984) situa numa Lisboa toca­
uma Espanha hoje orgulhosa do seu plurilin­ da pela vizinha guerra de Espanha a per­
guismo e na qual o galego é um parente manência na cidade de um heterónimo de
muito próximo do falar de além-Minho. Um Fernando Pessoa que sobrevive um ano após
prémio para a língua portuguesa. a morte do poeta e é talvez a mais poética,
O português José Saramago ganhou o Nobel comovida homenagem à memória daquele
com pleno direito pessoal. Mas sarou tam­ que é hoje considerado o maior poeta do
bém uma ferida que durava há quase um sé­ Portugal moderno. E, assim como a Janga­
culo. Nunca tinha sido atribuído o prémio da de pedra (1987) representa a gostosa e
da literatura a um autor deste bloco linguísti­ polémica profissão de fé anti-europeísta do
co de mais de 200 milhões de habitantes, português Saramago, a História do cerco de
português, brasileiro ou africano que fosse. Lisboa (1989) é uma sua alegre «correcção»
E, no entanto, este universo lusófono podia da história em nome da liberdade de inter­
gabar-se das suas grandes tradições literárias pretação.
tanto em Portugal como no Brasil e contava Mas o Saramago mais próximo de nós e pa­
com uma nova impetuosa tradição de escri­ ra nós mais universal é, sem dúvida, o últi­
tores africanos de expressão potuguesa. Há mo. Aquele que, com o sofrido e humaníssi­
muito que esperávamos este momento. Tí­ mo Evangelho segundo Jesus Cristo (1991),
nhamo-lo esperado um dia para o velho rap­ suportou a incompreensão na pátria, esco­
sodo Jorge Amado e para os poetas de élite lhendo desde então a via do exílio em Lan­
como João Cabral de Melo Neto. Mas, so­ zarote, nas Canárias. É também aquele de
bretudo, para um escritor como ele, José Sa­ que, depois do voluntário afastamento de
ramago, no qual víamos, há anos, o candida­ Portugal e da sua «realidade sonora», com a
to mais justo, mais autorizado, mais nosso: e lhido e mudo,/ que quem se cala quanto me café poucos conheciam, irrompe de repente consequente imersão num universo de lín­
por quem sofríamos nas esperas de cada calei,/ não poderá morrer sem dizer tudo». na cena J,iterária portuguesa em 1980 com gua espanhola, todos temeramos uma redu­
ano, em Outubro, como quem aguarda com Depois apareceram as primeiras colectâneas um romance singular que o coloca imediata­ ção da sensibilidade «auditiva» : indispensá­
confiante angústia a chegada da sua mala no de crónicas: Deste mundo e do outro (1971), mente em primeiro plano entre os narradores vel, parecia-nos, para a criação daquela «li­
tapete rolante do aeroporto sem nunca a ver A bagagem do viajante (1974), como provas nacionais. teratura oral» que constituira até àquele mo­
chegar. A desilusão agridoce do ano passado de escrita que contivessem já em embrião

E
mento a matéria da sua criação poética.
quando o nosso Dario Fo venceu por um fio todas as ideias da futura narrativa. Em se­ é aquele Levantado do chão, no qual Mas Saramago viu mais longe do que nós. E
o próprio José Saramago, tinha-nos deixado guida o teatro (a começar por A noite, 1979), aparece pela primeira vez, numa saga com as projecções brancas do seu romance
uma grande margem de esperança. A histó­ que nos aparece hoje como a obra dum es­ camponesa de sabor à primeira vista Ensaio sobre a cegueira (1995) primeiro, e
ria do Nobel ensinara-nos pelo menos, co­ critor <<diverso», discursivo, referencial e ainda realista, a sua originalíssima cifra estilís­ depois com o «burocrático» Todos os nomes
mo já nos tempos do prémio a Octávio Paz, polémico tal como a sua prosa de invenção é tica. O «discurso oral» de Saramago, aquelas (1997), recentemente publicado também na
a jogar com as probabilidades. misteriosa, alusiva, poética. suas páginas cheias de sinais, sem maiúsculas tradução italiana, soube imergir-nos em at­
Apesar do seu corpo ágil e longilíneo de A motivação do Nobel fala de um Saramago nem pontuação, era, de facto, capaz de repro­ mosferas de pesadelo e de sonho que a pra­
adolescente e do sorriso de quem, com 76 «que com parábolas sustentadas por imagi­ por poeticamente, em som primeiro ainda que xe académica nos sugeriu definir kafkianas,
anos, pensa num futuro operoso e sereno ao nação, compaixão e ironia, continuameme em palavras, uma história nacional e indivi­ mas que, no futuro, talvez sejam directa­
lado de Pilar, a jovem mulher espanhola que nos permite captar uma realidade ilusória».E dual: as vicissitudes de três gerações de cam­ mente ligadas a ele, à sua fantasia, à sua hu­
o acompanhará a Estocolmo, mostrando ao talvez seja esta a melhor etiqueta para uma poneses do Alentejo que, através da luta de manidade, à sua capacidade de «vem mais
mundo como pode ser belo um casal de inte­ obra que, apesar das reconstituições minu­ classes, levantando-se do chão, verticalizando­ além e naturalmente de «ouvir», naquela sua
lectuais, Saramago na sua longa vida, teve, ciosas dos ambientes duma época e duma se à medida que se reconheciam homens, se peculiaríssima recriação auditiva da realida­
como todos, alegrias e desilusões. Sobretudo ideologia (a Lisboa inquisitorial do início do tomavam protagonistas de uma história que até de circunstante. Saramago gosta da Itália on­
do seu país. Comunista militante, nunca fac­ século XVIII, a Lisboa das origens dividida aí tinha sido apanágio dos seus patrões. de tem tantos amigos, onde as suas obras fo­
cioso, sempre crítico, nunca trânsfuga, tivera ainda entre mouros e cristãos, os anos do A fama internacional virá imediatamente a ram traduzidas mesmo antes que noutros paí­
que esperar pelo fim do salazarismo e pela franquismo e do seu contágio ao Portugal séguir, em 1984, com o Memorial do Con­ ses, onde lhe foram dados os primeiros dou­
revolução dos cravos de Abril de 1974 para salazarista, a Palestina de uma Vida de Jesus vento que continua a ser ainda hoje a sua toramentos «honoris causa» e onde lhe foram
poder aparecer com pleno direito na cena li­ vista pela parte do Homem), não aparecem obra mais famosa e da qual ele partirá para concedidos os primeiros prémios literários. E,
terária portuguesa e internacional. E fora nunca como meras revisitações do facto his­ uma viagem de escrita, para .uma aventura para nós, este Prémio Nobel longamente
imediatamente um sucesso, como de quem, tórico, mas como sua parábola, como um narrativa que o tornará escritor já sem limi­ anunciado e finalmente concedido, é como se
na sombra da espera, tivesse afinado os seus pretexto para a interpretação de um hoje que tações regionais: um dos mais significativos fosse um prémio para um dos nossos.
instrumentos. Primeiramente viera a poesia, filtra o passado com o afastamento comovi­ narradores do nosso tempo. O Memorial
com os Poemas possíveis (1966) e Provavel­ do e irónico do depois. conta a construção, nas primeiras décadas do Este texto da muito prestigiosa especialista de litera­
turas de Portugal e do Brasil, e professora da Univer­
mente alegria (1971) que, depois de tantos O novo Saramago, um intelectual já maduro século XVIII, do Mosteiro e da Igreja de sidade de Roma, foi publicado também em La Repub­
anos, revelam hoje toda a sua carga humana que vivia desde sempre em Lisboa, mas que Mafra, erigido com extraordinária magnifi­ blica. A tradução para português é da drª Isabel Mi­
e profética:«Só direi, / Crispadamente reco- fora do círculo dos amigos de trabalho e de cência nos arredores de Lisboa, por ordem nervini.
14 Quarta-feira, 2lde Outubro de 1998

JOSE SARAMAGO/PREMIO NOBEL 98

Inventar a·escrita
D
GERMANO DE ALMEIDA*

o jornalista José Sarama­ que teria saído há um anos atrás.


go de há muito que ouvia Nunca tinha lido nada do Saramago, ainda os
falar mas só o conheci co­ autores portugueses estavam com a fama de
mo escritor em 1983. Nes­ chatos, de modo que abri o livro com muito
sa época estávamos às pouca convicção. Mas logo me encantou a
voltas com o Ponto & Vir­ aparatosa preparação de Dom João Quinto pa­
gula de que tínhamos ra a justa tarefa de bem emprenhar Sua Majes­
acabado de publicar o primeiro número. tade a Rainha e pouco depois já sorria com
A ideia inicial tinha sido fazer da revista uma gosto, sobretudo desse esforço do autor em
coisa literariamente original em Cabo Verde e contar uma estória como se o humor não exis­
era óbvio que a sua escrita, especialmente o tisse na paródia das situações que cria e o riso
editorial, deveria reflectir essa inovação. En­ existisse apenas na entonação das palavras na
carreguei-me de o escrever, mas três ou quatro sua voz escrita. E também havia que essa for­
tentativas resultaram falhadas, não mereceram ma de escrever sem ponto final parágrafo hí­
a concordância dos outros directores. Pelos fen, travessão, já estava inventada, não corría­
fins acabei ficando farto daquilo e então juntei mos o risco de sermos acusados de iconoclas­
pedaços dos editoriais rejeitados, mais bocados tas. Era um descanso.
das nossas discussões e fiz uma coisa que não Tempos depois vi Saramago em Cabo Verde,
respeitava as regras da pontuação e disse-lhes, Mindelo. Tinha vindo a convite do Centro Cul­
se não é isso então não sei fazer melhor! Era! tural Português e fez uma palestra, suponho
Finalmente concordámos por unanimidade à que sobre a sua obra, porque lembro-me que
primeira votação. me chamou a atenção e me impressionou en­ ACADEMIA BRASILEIRA SAUDA SARAMAGO

Consagração da língua
Dito muito francamente, pensava que tinha in­ contrar uma pessoa de tão bom humor, tanto
ventado uma forma de escrever. Até que pou­ no falar como no escrever, e que no entanto
cos dias depois a Leonor, uma amiga portu­ não ria, parecia não saber como se deve fazer
guesa que na altura vivia na Praia, sem qual­ para se rir. Dessa palestra retive a estória que
quer explicação, mas certamente por causa do ele contou de alguém que lhe tinha telefonado «A merecida vitória de José Saramago representa uma consagração para a língua portugue­
editorial, me mandou o Memorial do Convento a lamentar muito pesaroso não estar a conse- sa. N�o se compreendia o silêncio de tantos anos da Academia Sueca, quando se sabe que a
nossa comunidade, hoje de 21 O milhões de pessoas, utiliza esse idioma, de inigualável be­
leza, com extraordinária propriedade.
José Saramago, com a subtileza e os recursos da sua obra de romancista e ensaísta, é um
expoente da nossa literatura. Desde Memorial do Convento, passando pelo incomparável O
CONGRESSO INTERNACIONAL Ano da Morte de Ricardo Reis, Saramago cantou Portugal e seus mitos, sem deixar de es­
crever uma obra de características universais.
Os brasileiros, que o têm como irmão, rejubilam-se com o seu êxito. A história, sempre
VASCO DA GAMA mais rápida que o pensamento, como ele costuma afirmar, foz-lhe a devida justiça. Vibra­
mos com essa história, que tem do doce sabor da lusofonia.»
HOMENS, VIAGENS E CULTURAS
Arnaldo Niskier
Presidente da Academia Brasileira de Letras
Auõit:ório i'la Torre oo Tombo
4 a 7 i'le Novembro guir penetrar nos seus livros. Experimenta lê­ escrito Levantado do Chão porque afinal das
los em voz alta, disse que sugeriu à pessoa. contas é preciso calcular o número de indiví­
duos que é forçoso condenar à miséria, ao tra­
Alameàa àa U-niversiàaàe imos todos dessa observação mas lem­ balho desproporcionado, à desmoralização, à
1600 Lisboa bro-me de a ter achado muito sábia. É infâmia, à ignorância crapulosa à desgraça in­
que mesmo escritas, as estórias são vencível, à penúria absoluta, para produzir
contadas, a gente as ouve e então a melhor for­ um rico. E acreditei mesmo que o menor ri­
Com sessão simultânea no ma de as entender forçosamente deve ser len­ gor que detectei nos Cadernos de lanzerote
Auàitório àa Biblioteca Nacional do-as em voz alta. reflectiam essa de decisão infeliz, porque o
a s àe Novembro Depois de O Memorial do Convento veio O
Ano da Morte de Ricardo Reis e depois A Jan­
que esperava dele era, se não uma gargalhada,
pelo menos um texto jocoso.
gada de Pedra e depois A História do Cerco de De há muito andava à espera de o encontrar
INFORMAÇÕES Lisboa e depois O Evangelho Segundo Jesus para lhe dizer que o admirava, mas quando
Cristo e depois a decisão de deixar Portugal por um dia nos cruzámos no átrio da SPA tinha
ale Isabel Gentil protesto contra a Inquisição no poder que lhe acabado de me passar pelas mãos os Cader­
ou Maria João Rivotti censurava um livro. Essa não a entendi e a mi­ nos de Lanzerote e estava demasiado irritado
nha admiração que tinha vindo a crescer sofreu com ele para lhe falar. Porém, no ano passado
Casa ôos Bicos um baque considerável. É que sempre me fez em Frankfurt ele dirigiu-se a mim para saber
Rua ôos Bacalhoeiros confusão ver os intelectuais usarem o seu dever da minha saúde e foi um homem simples, de
tel 88I 09 00 de atacar os governos e ao mesmo tempo quere­ olhar doce e bom que me falou e fiquei con­
rem o direito de serem apaparicados com pal­ tente e comecei a pensar que se calhar os Ca­
fax 887 33 80 madinhas nas costas. Já menino na Boa Vista ti­ dernos de lanzerote são ainda a forma sim­
e-mail congressos@cncôp.pt nha aprendido que quem não quer a pátria não ples como um homem simples se expressa
quer a bandeira e por isso sempre pensei que o porque não é impunemente que se conquista
que serenamente devem esperar são socos, pon­ um nome de saramago.
tapés e caneladas, e vá-se com sorte que a exco­ De modo que nunca antes eu tinha ficado tão
munhão já não é o que foi na Idade Média. duplamente feliz.de um prémio Nobel, por­
De modo que hoje que ele é prémio Nobel, que afinal das contas «se o homem é formado
com muito orgulho para todos os que falam pelas circunstâncias, é necessário formar as
português e acreditam nos amanhãs que can­ circunstâncias humanamente».
tam, tenho de confessar que não gostei dessa
atitude, achei-a indigna de alguém que tinha *Escritor
Quarta-feira, 21 de Outubro de 1998 15

JOSE SARAMAGO/NOBEL 98

Um reencontro A
Anti-vedeta
lgumas pessoas saberão< e creio

com o Evangelho
que José Saramago não o igno­
ra, que o meu favorito ao No­
bel, por razões·que se prendem com as
afinidades que ooracterizam as :famílias
litt:;rárias, é í\ntõnio 'Lobo Antqnes. E
vale a pena,dizer que continuo a dese­
jar, ao autor de O Esplendor de Portu­
gal, por que não,,<;> prémio que, à seme­
lhan9a do que aconteceu com a Espa-

F
FREI BENTO DOMINGUES* 0:W. e a O�écia, pode ser atribuído, vá­
iquei muitíssimo conten­ verter o poder e fazer dele serviço.O rias vezçs, e con1pequenos intervalos, a
te, não só porque o Pré­ próprio Jesus diz que é o Homem para nãcioµais de um,.mesmo país. Em suma,
mi o Nobel chama a a Religião e não a Religião para o Ho­ · a aleg,ria de ver galardoado José Sara­
atenção sobre a cultura mem. A experiência de Jesus foi de mago, e foi sincero e profundo o meu
portuguesa, que tem vin­ amor e não de violência. Jesus passou a júbilo,..só pode equiparar-se à trísteza
do nos últimos anos a ter vida «a levantar gente do chão». Quan­ de verificar que, por enquanto, não re­
algum incremento, mas do Saramago denuncia Deus como von­ cebeu António Lobo A11tunes aquilo
tãinbém poi Saramago - a quem envio um tade de poder sem limites, sem olhar a que tanto p.1erece. E quero declarar,
grande abraço. Uma das pessoas que mais meios, eu diria que isso é indirectamen­ itmuito vincadamente, que não foi, tão
tem contribuído para esse incremento é José te uma homenagem. O Deus do Evan­ só, a estatura da escrita de Saramago,
Saramago com a sua obra. É a obra que tem gelho é um Deus de ternura e compai­ . com quem tive o gosto de jantar, em
vindo a ser mais conhecida no estrangeiro. xão. A Igreja deveria ser para testemu­ i Erankfurt1 na véspera do grande dia,
Ele chama a atenção para a literatura portu­ nhar esse amor. •q tornou tl)n:a evidência. Foi tam­
guesa, mas ele foi o mais eficaz nisso. Ape­ Parece-me que, ao subverter o Evange­ Lb • . e.é e�s,pc:illl .xegistá-1o, .a $11ª ini-
sar de realçar uma literatura, penso que é a lho, Saramago talvez não tenha sido na­ .
1 g lável e élemplar dignidade moral e
construção de José Sàramago, e não sobretu­ da blasfemo, acabou por reencontrar o : cNic11. ".Ele.'�oübe relativiza.'r �. glqi;ia
do uma literatura, que está em causa. espírito do Evangelho. Sobre o ponto : desreMu.ndo,.porque não existe absolu-
Isto não tem a ver com uma valorização face de vista estético é um grande livro. É alcanêe do l).omem, ê a$sumiu a
rt
aos outros escritores, não é uma análise com­ um anti-evangelho de Jesus Crist(), se ;•
1 e �en;r u.ntuosida-
parativa. É uma obra admirável. O ritmo de bem que vá ao encontro do Evangelho d.os :p.1aij distín- ·
escrita e a capacidade de efabulação. A abor­ porque é também uma denúncia do po­ xto
dagem aos grandes problemas mundiais, às der em nome de Cristo.
Relativamente à reacção do jornal do
ri
questões da alma humana, e da vida em so­ µ;e,p;i. a quatro é
esatãrem
ciedade. Não é só a arte pela arte, apesar de Vaticano acho que foi dada excessiva Sâqlmago constituiu a an-
se tratar de um exercício estético. Problema­ importância às suas palavras. Aquele é iti,-vedetâ ênci; eº· pe-
tiza questões essenciais. um orgão do Vaticano, mas não da
Da obra do escritor tocou-me profundamente Igreja. Saramago disse que a Igreja de­ r10 ,q?al ser aferi�� .. �ida-
O Memorial do Convento. Gostei também veria falar a uma só voz. Eu quero que �de$ myu:lga');,es. .\!ór tudo 1st()1 dacJ:u,i �e
·mando (l cal9roso e amplo abraço, mais
muito de O Ano da Morte de Ricardo Reis, e a Igreja seja cada vez mais plural, e que
tenha várias vozes. Acho que se o jor­ ra rosa vermelha, que eu tiriha,,r1a mão, e
do Ensaio Sobre a Cegueira. O que eu gosto
no José Saramago é a arte que ele tem de es­ nal queria tratar esta obra era fazendo que os bárbaros do Norte, tropeçando
crever. uma análise literária, e não ideológica. úns nos outrostnão permitiram que lhe
2
JOSÉ SARAMAGO COM FREI BENTO DOMINGUES, EM 1991
Quanto ao Evangelho Segundo Jesus Cristo do Novo Testamento. Vendo as coisas mais O jornal comete o erro básico de não apreciar fentregasse.
muitas pessoas viram nele uma falsificação do profundamente, se o Novo Testamento é uma uma obra literária e de escorregar para a crítica
Evangelho. Em primeiro lugar é uma obra lite­ denúncia de uma representação de Deus e do àquilo que uma pessoa tem todo o direito de MÁRIO CLÁUDIO
rária e é a sua densidade estética que deve ser sagrado, como sendo aquilo que exige das pes­ ser - ser comunista. É uma reacção risível.
-�

analisada. soas tudo, talvez haja uma outra leitura. Enten­


Aparentemente, parece um atentado aos textos do o Novo Testamento como dedicado a sub- *Dominicano. Depoimento oral

Dignidade extrema

l:l?Il;li/
ALCALÁ
LIVRARIA ESPANHOLA
Literatura Espanhola clássica e actual
JOSÉ MANUEL MENDES*
s palavras ficaram um quecer aquela outra voz, inidentificada ainda, ridade. Este Nobel pode ser apropriado, sem • História • Filosofia • Psicologia
momento interrompidas, que, de si.tão descontida, me procurou para uma mácula, por milhões de leitores que, nas sete
como que à espera da elo­ das estações de televisão, seria talvez meio-dia? partidas, o aguardavam. Pode ser apetecível • Pedagogia • Antropologia • Literatura
quência e da fundura do O certo é que nada continuou como estava, o para vários poderes que o não advogaram. Va­ hispano-americana • Livros escolares
que não sabem, não sabe­ mundo era já diverso e, de súbito, entre os in­ le lembrar, por exemplo e contraste, que a
contáveis rostos de quem celebrava o triunfo, eu • Linguística • Dicionários • Direito
rão nunca exprimir. Foi APE apresentou, desde 1992, a candidatura do
com a emoção do silêncio era apenas uma sinédoque da euforia. grande escritor ao Prémio de maior expressão • Cinema • Artes Plásticas • Revistas
que acolhi a notícia, a sua iluminação, seu pro­ universal. Pode ser. Mas celebra, acima de tu­ • Livros por encomenda

A
fundo acontecer. Depois, mal inventara as pri­ Academia de Estocolmo acabava, afi­ do, uma obra inconfundível no contexto das li­
meiras rosas para o José, desataram-me a lín­ nal, distinguindo um autor como Sara­ teraturas do nosso tempo. O humanismo, a in­
gua, ainda na véspera de uma qualquer ordena­ mago e os livros que nos vem doando, conformação, o génio que ela transporta. A • Lisboa - Rua Serpa Pinto, n.º 1-A-1200 Lisboa
ção do discurso, e comecei a falar. Como es­ por prestigiar-se a si mesma, assumir a decisão coerência, o trabalho à margem do cálculo ou Tel. 343 09 10 - Fax 343 09 li
quecer a voz que, no intervalo de uma aula na incontornável, realizar a escolha que faltava. das leis do mercado... E a dignidade extrema, • Lisboa-Rua da Madalena, n.º 56/58
Universidade, me trouxe o instante esperado, o Desolando, é facto, umas quantas lnquisições deixem-me pensá-lo, de um homem que, para 1100 Lisboa-Te!. 88614 11
jorro para sempre indefinível? Instante, sim. - as que pronunciaram já, alto e bom som, as orgulho de (quase) todos nós, nasceu um dia
que cochicham pelos mil fios da mesquinhez
• Porto-Rua Santos Pousada, 759-4000 Porto
Que o digam alguns do que me estão .próxi­ na Azinhaga do Ribatejo - nome de uma pá­
mos. Deitara-me, na noite anterior, com a evi­ fazendo-se baba ou teia, as que, em determina­ tria a que, afinal, pertencíamos e só agora co­
Tel. (02) 510 22 46Fax (02) 510 50 39

dência de uma premonição adversa ao sonho dos círculos, torciam o nariz aos méritos de nhecemos.
• Cascais - Rua Visconde da Luz, n.º 41-A,
que se constrange, ao Portugal pequenino com­ uma bibliografia irrigada, como raras, por um
2750 Cascais-Tel. 48678 27
prazendo-se na lamúria e na invídia. E como es- destino e renovo, solidez, fulgurância, singula- *Presidente da Associação Portuguesa de Escritores


16 Quarta-feira, 21 de Outubro de 1998

JOSE SARAMAGO/PREMIO NOBEL 98


PARA UANDO PRODU OES PORTUGUESAS?

Biimunda e Divara MÁRIO VIEIRA DE CARVALHO

ão são muito frequentes, de construção do Convento e colaborador se­ modificações. Corghi trabalhou sobre uma
desde a cristalização do creto de Gusmão na empresa da máquina tradução italiana do texto. Já depois de com­
género ópera, as situa­ voadora. Assim, partindo embora quase tex­ pletada a partitura, Andrea Molino, Alexan­
ções de colaboração di­ tualmente, da tradução italiana do romance, der Scherer e Carsten Wilke elaboraram uma
recta entre o compositor e deixando intactas as palavras de Saramago e versão alemã do libreto, que foi a utilizada na
um autor literário seu conferindo-lhes o peso de palavras cénicas estreia da obra na Ópera de Münster e se en­
contemporâneo - situa- cheias de sedução literária (aproximação ao contra agora disponível num duplo CD (eti­
ções como as que deram origem a Biimunda e género da «ópera literária», que tem nà Salo­ queta Marco Polo - Opera Classics,
· Divara, água e sangue. Azio Corghi leu a tra­ mé de Richard Strauss, sobre a peça de Óscar 8.223706-7). Tive ocasião de estudar a parti­
dução italiana do Memorial do Convento e Wilde, o seu melhor exemplo), o libreto desen­ tura e de ver o espectáculo em Münster, na
pensou imediatamente numa ópera. Dirigiu­ volve-se ao mesmo tempo segundo três planos magnífica encenação de Dietrich Hilsdorf
se a José Saramago, que não conhecia pes­ simultâneos - os chamados «espaço real», «es­ (com a direcção musical de Humburg). Con­
soalmente, e obteve não só a anuência, mas paço acústico» e «espaçoimaginário» - cuja in­ sidero a obra um dos momentos mais fortes
também a própria colaboração do romancista venção e articulação não é possível senão sob do teatro musical contemporâneo - onde,
para a adaptação do texto. O resultado foi um a perspectiva de um pensamento musical mais uma vez, a concepção tradicional do es­

E,
libreto que bem pode ser considerado um (aproximação à tradição libretística). paço cénico é subvertida e a tensão entre em­
marco no teatro musical deste século. Se já patia e efeito de estranheza suscita um espec­
no romance - como tenho referido - a técnica a síntese de ambas as componentes que tador activo, tão envolvido quanto crítico re­
de trabalhar o narrador heterodiegético signi­ permite à partitura de Corghi reprodu­ lativamente à acção músico-teatral represen­
ficava uma recuperação da estrutura épica das zir no palco cénico a atmosfera barroca tada à sua volta. É lamentável que o conceito
narrativas barrocas, aquilo que se recupera na da narrativa de Saramago e o seu carácter de de ópera ainda vigente em Portugal - um con­
DESENHO DE MICHEL LEBOIS, REPRESENTANDO
adaptação do libreto (por Saramago e pelo A PASSAROLA narrativa exemplar. Não cabe aqui entrar em ceito em que é suposto a ópera olhar, a peso
compositor) é o mais épico de todos os géne­ pormenores quanto às componentes musicais, de ouro, para o seu próprio umbigo - tenha
ros músico-dramáticos da mesma época: o da xão até ao auto-de-fé onde é queimado, na mas importa acentuar a lógica de montagem impedido, até agora, o público português de
Paixão. Domenico Scarlatti assume aí o papel presença de Biimunda, o operário maneta, ( discurso não linear) experienciar todo o
do Evangelista, que narra as estações da Pai- Baltasar Sete Sóis, empregado nos trabalhos pressuposta na frag­ enorme potencial co­
mentação em três com­ municativo destas
plexos sonoros com obras, o que só será
características bem di­ possível no dia em que
ferenciadas ( em cor­ elas forem dadas a co­
respondência com o li­ nhecer entre nós na
breto)
' e a paleta
.
de re-
.
língua de Saramago,
cursos expressivos uti- na língua da literatura
lizados, a qual - por que foi distinguida
exemplo, na parte vo­ com o Nobel de 98.
INSTITUTO cal, momento particu­
PIAGET
S
Uma abordagem esclarecedora larmente sensível da e preconceitos
relação de palavra e d� gosto, ideoló­
do crescimento e do desenvolvimento som - percorre a bem gicos ou outros
DIVISÃO EDITORIAL
cognitivo infantil a partir dizer todas as grada­ impediram uma das
da experiência prática. ções: desde a palavra coisas mais óbvias pa­
falada oudeclamada ao ra o programa musical
bel canto italiano e português da Feira de
R0&1muv l'etersuH O insucesso escolar desde a limpidez e li­ Frankfurt 97 - que era
Victoria Pelron-Collins nearidade da elocução o de suscitar, nessa
não é uma fatalidade.
MANUAL DE PIAGET Pistas para construir
à exploração tímbrica
de constelações fonéti­
ocasião, um Gastspiel
da produção de Müns­
PARA PROFESSORES uma escola diferente. cas, que assim se tor­ ter da Divara na Ópera
E PAIS nam ininteligíveis en­ de Frankfurt - ou leva­

-ACABÃicõM·
Hubert Montriooer /:,
quanto texto e criam
mundos sonoros oníri­
cos (a cargo do octeto
ram a preterir esta ópe­
ra e.esta produção rela­
tivamente a tantas ou­
vocal). Vi a produção tras que nada· tinham a
O INSUCESSO de Milão, na encena­ ver com Portugal, du­
�A ESCOLA ção de Savary, e a de rante o chamado Festi­
..��----
AS SUAS co....-..,
Lisboa, que a retomava
- e a memória que con­
val dos Cem Dias e a
Expo-98, confesso que
E os sws kii;õ;"'IAs servo da obra e dessas FIGURINO DE JACQUES SCHMIDT PARA BLIMUNDA não sei que justifica­
realizações não deixou ção se dará agora para
ainda esmorecer o fascínio que exerceram em não começar já a trabalhar numa versão por­
mim. Divara, encomenda da Ópera de Müns­ tuguesa a ser posta em cena brevemente, ou
Preço: 1800$00 Acrescido de 5% de IVA
ter, por ocasião das comemorações do 1200.º no São Carlos, ou no São João. Seria caricato,
aniversário da cidade e do 500º aniversário da que numa obra com libreto de Saramago, re­
À VENDA rebelião dos Anabaptistas, resultou directa­ presentada em Portugal, fôssemos nós (e não
NAS LIVRARIAS mente de um projecto comum do compositor os estrangeiros), a ter que usar o sistema de
PEÇA INFORMAÇÕES EM TODO O PAÍS e do escritor, suscitado na presença do· maes­ legendas electrónicas para perceber a acção -
E CATÁLOGOS PARA:
INSTITUTO PIAGET tro Will Humburg e da directora da Ricordi, um sistema que destrói a comunicação teatral,
DIVISÃO EDITORIAL Mimma Guastoni. Saramago escreveu um de importância decisiva, especialmente numa
Largo da Madre Deus, 9 - 1900-311 Lisboa
Preço: 3400$00 Acrescido de 5% de IVA texto dramático autónomo (ln Nomine Dei), ópera deste tipo. Além disso - diz-se, mas na
Telfs.: 862 05 00 · Fax: 868 82 77
www.ipiaget.pt que foi publicado como peça de teatro e pos­ ópera acha-se que não - a nossa pátria é a lín­
E-mail: piaget.editora@mail.telepac.pt teriormente utilizado na ópera, com pequenas gua portuguesa.
Quarta-feira, 21 de Outubro de 1998 17

JOSE SARAMAGO/NOBEL 98

Histórias
de não galardoados
uem diria que o Prémio De volta a Estocolmo, Artur Lunkvist entu­ tinha-o atribuído ao israelita Shmuel Yosef Liege e os <<nobilizados» Octavio Paz (1990) e
Nobel da Literatura já siasma a Real Academia Sueca. E, como rela­ Agnon e ao sueco Nelly Sachs», explicou Salvatores Quasimodo (1959) também.
esteve para ser atribuído tou a António Olinto, a atribuição ficaria pla­ Olinto. Em primeira mão, o JL noticiava ainda que se­
a um escritor de língua neada para 1958. Só aí seria possível porque No início da década de 60, outras nomeações te membros da Real Academia Sueca tinham
portuguesa? o galardoa­ havia que compensar os anos da guerra, nos começaram a surgir. E, pela primeira vez, can­ estado na Fundação Calouste Gulbenkian, em
do teria sido Jorge de quais não tinha havido atribuições do prémio. didaturas isoladas. Aquilino Ribeiro, tinha pu­ Lisboa, para avaliar das hipóteses de um Nobel
Lima, um poeta brasilei­ «Havia que dar o prémio a Faulkner, a Chur­ blicado, em 1959, Quando os Lobos Uivam, e português. Nesse encontro, com dirigentes do
ro nascido em 1893, chill...» - contou ao JL António Olinto. nos anos seguintes a Sociedade Portuguesa de Pen Clube Português, falou-se também em Jo­
com uma poesia que vai do modernismo descri­ A 16 de Novembro de 1953, morre Jorge de Escritores propõe a sua candidatura. Também sé Saramago, Vergílio Ferreira, Miguel Torga,
tivo, de cunho regional, ao abstraccionismo, Lima. E o Nobel da Literatura de 1958 é atri­ Miguel Torga foi proposto por professores e Agustina Bessa-Luís, Ramos Rosa, Eugénio de
passando pela poesia negra e pela religiosa. buído a Boris Pastemak. Porque, afinal de con­ universidades portuguesas e italianas. Os jor­ Andrade, Sophia de Mello Breyner e Herberto
Estamos no pós II Guerra Mundial. Em 1947, tas, a excepção de uma atribuição póstuma já nais de 1985 tomam a falar na sua candidatura, Helder.
ou talvez em 1948. Artur Lunkvist, um mem­ tinha sido gasta, em 1931, com o escritor sue­ apoiada pelos escritores cabo-verdianos. Nos últimos anos, as atenções concentraram-se
bro da Real Academia Sueca da Língua, que co Erik Axel Karlfelsdt que, em 1918, o havia O autor de Os Bichos, tal como Jorge Amado, em António Lobo Antunes e José Saramago -
conhecia bem o português, é convidado por recusado. e Carlos Drummond de Andrade, continuaria a os nomes mais falados pela imprensa
uma Companhia de Navegação Sueca para ir à ser falado para o Nobel. Em 1982, «O Jornal» estrangeira. Cada vez mais traduzidos,
Índia. Lunkvist encontrou aqui a oportunidade UMA CANDIDATURA noticiava: «Nem Drummond, nem Torga, nem inclusive na Suécia, cada vez com maior
de conhecer o autor da poesia pela qual estava SOBRE O ATLÂNTICO Borges, nem Graham Greene: o Prémio Nobel projecção internacional, os dois escritores
apaixonado. Entusiasmado, de imediato per­ da Literatura de 1982 é o colombiano Gabriel portugueses, nas vésperas da divulgação do
guntou: «O navio passa no Rio de Janeiro?». António Olinto haveria de ser também prota­ García Márquez». Nobel de 1997, apareciam nos jornais suecos.
De Jorge de Lima apenas tinha a morada do gonista de outra história da língua portuguesa Já na década de 90, no Brasil, falar-se-ia em Recensões bastante positivas das últimas
escritório e a informação de que ficaria na zo­ em busca do maior prémio de Literatura. No João Cabral de Melo Neto e, em Portugal, em obras, uma longa entrevista com Saramago,
na dos cinemas. De manhã cedo, o navio atra­ final da década de 60, Olinto, então professor Vergílio Ferreira e Fernando Namora, na altura manchetes que afirmavam que esse ano seria
ca junto da Praça Mahua. Percorre, a pé, a Rio de Língua e Literatura Portuguesa, na Univer­ o escritor português mais traduzido. galardoado um português. Não o foi no ano
Branco e no final da avenida... A zona dos ci­ sidade de Colombia, nos Estados Unidos, par­ Em 1991, a instituição francesa Actes du Sud passado, mas sim no dia 8 de Outubro de
nemas e o escritório de Jorge de Lima! Mais ticipou num documento propondo a candidatu­ propõe António Ramos Rosa e o JL anuncia 1998, às 12 horas.
tarde, contaria a António Olinto, escritor e ra conjunta do português Ferreira de Castro e que o poeta é o «favorito» entre os escritores
membro da Academia Brasileira de Letras: do brasileiro Jorge Amado. «Pensávamos num portugueses. Na verdade, Ramos Rosa havia
«Ali estava um homem para ganhar o Nobel!» prémio ex aequo, pois a Academia, em 1966, ganho o prémio da Bienal Internacional de 5.8.L.

TRADUÇÕES
Bretanha, Grécia, Hungria, Israel, nha, Grécia, Hungria, Itália e Israel Assis -Itália. Total: 1
Itália, Japão, México, Noruega, e Noruega. Total: 12
Países Baixos, Polónia, Roménia, Deste Mundo e do Outro - Es­
Rússia, Suécia, Suíça e Turquia. Ensaio sobre a Cegueira -Ale panha (castelhano). Total: 1
Total: 27 manha, Brasil, Espanha (castelha
no), Findanlês, França, Hungria, Que Farei com Este Livro? -
Evangelho Segundo Jesus Cristo Itália, Noruega, Suécia e Grã-Bre­ Itália. Total: 1
- Alemanha, Argentina, Brasil, tanha. Total: 10
Colômbia, Dinamarca, Espanha, Cadernos de Lanzarote I, II e III
Grã-Bretanha, Israel, Itália, Norue­ Objecto Quase - Alemanha, Es­ - Espanha (castelhano). Total: 1
ga, Países Baixos, Polónia, Suécia, panha (castelhano), França e Itália.
França, Grécia e Holanda. Total: 16 Total: 4 OS MAIS VENDIDOS
E EDITADOS EM PORTUGAL
História do Cerco de Lisboa - Manual de Pintura e Caligrafia
- Alemanha, Espanha (castelha­ Memorial do Convento - 281
Alemanha, Argentina, Brasil, Co no), Grã-Bretanha e Itália. Total: 4 mil exemplares, 18 edições
lômbia, Dinamarca, Espanha (cas A Bagagem do Viajante - Espa O Evangelho segundo Jesus
Memorial do Convento - Ale­ Cristo.- 181.900 mil exemplares,
manha, Argentina, Brasil, Bulgá­ nha (castelhano), Itália e México. 21 edições
ria, China, Colômbia, Dinamarca, telhano e catalão), Grã-Bretanha, Total: 3 A Jangada de Pedra - 91.500
Espanha (castelhano e catalão), Es­ Grécia, Holanda, Hungria, Itália, mil exemplares, sete edições
tados Unidos, Finlândia, França, França, Méxiéo, Noruega, Romé­ Viagem a Portugal - Espanha Viagem a Portugal - 76.000 mil
Grã-Bretanha, Grécia, Holanda, nia e Suécia. Total: 16 (castelhano), Brasil e Grã-Breta exemplares, 19 edições
Hungria, Israel, Itália, Japão, Mé­ nha. Total: 3 O Ano da Morte de Ricardo Reis
xico, Noruega, Polónia, Roménia, A Jangada de Pedra - Alema­ - 70 mil exemplares, 11 edições
Rússia, Suécia, Suíça, Turquia, Re­ nha, Brasil, Dinamarca, Espanha ln Nomine Dei - Brasil, Itália e Ensaio sobre a Cegueira - 68
pública Federal da Jugoslávia (ser­ ( castelhano e catalão), Estados Espanh� (castelhano). Total: 3 500 exemplares, duas edições
vo-croata), República Checa e Re­ Unidos, França, Finlândia, Grã­ História do Cerco de Lisboa -
pública Eslovaca. Total: 29 Bretanha, Hungria, Israel, Itália, O Ano de 1993 - Espanha (caste­ 59 mil exemplares, três edições
Levantado do Chão - Alema­ Noruega e Roménia. Total: 13 lhano) e Itália. Total: 2 Levantado do Chão -48 mil
nha, Brasil, Cuba, Bulgária, Repú­ exemplares, 11 edições
blica Checa, República Eslovaca, O Ano da Morte de Ricardo Reis A Noite - Espanha (castelhano e Todos os Nomes - 40 mil exem­
Colômbia, Dinamarca, Espanha - Alemanha, Brasil, Dinamarca, valenciano) e Itália. Total: 2 plares, uma edição
( castelhano e catalão), Estados Espanha (castelhano e catalão), Es Cadernos de Lanzarote I - 30
Unidos, Finlândia, França, Grã- tados Unidos, França, Grã-Breta A Segunda Vida de Francisco de mil exemplares, uma edição

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