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ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

2023/2024

4.
Acerca da Imagem

Excertos de H. Jonas, The Phenomenon of Life: Towards a Philosophy of


Biology.
Evanston: Northwestern University Press, 1966.
93. Gruta de Altamira, Espanha. Pintura. ca. 34 000-12 000 a.C.
94. Altamira, Espanha.
95. Altamira,
Espanha.
96. Altamira,
Espanha
97. Gruta de
Lascaux,
França.
Pintura.
ca.
15 000 a.C.
98. Lascaux,
França
99. Lascaux,
França.
100. Lascaux,
França.
101.
Gruta de
Chauvet,
França.
Pinturas.
ca.
30 000
a.C.
103.
Chauvet.
104. Foz Côa,
Portugal.
Gravura.
ca. 22 000
a.C.
105. Foz
Côa,
Portugal.
“Os nossos exploradores entram numa caverna e discernem nas 106. A imagem
paredes linhas ou outras configurações que têm de ter sido produzidas como
característica
artificialmente, que não têm função estrutural e que sugerem uma antropológica
semelhança com algumas das formas vivas encontradas lá fora.
Exclama-se então: «aqui está a evidência do ser humano!» Porque? A
evidência não requer a perfeição das pinturas de Altamira. O mais
imperfeito e infantil desenho seria tão concludente quanto os frescos
de Michelangelo. Conclusivo de quê? Da natureza mais-do-que-animal
do seu criador; e de ser potencialmente um ser falante, pensante,
inventor, em suma, «simbólico». E uma vez que isto não é uma questão
de grau, como na tecnologia, a evidência tem de revelar o que revela
apenas pela sua qualidade formal.”

Hans Jonas: The Phenomenon of Life: Towards a Philosophy of Biology.


Evanston: Northwestern University Press, 1966, p. 158
107. Inutilidade biológica da imagem

“Uma criatura que faz imagens é, por isso, uma criatura capaz de
fazer objetos inúteis, ou que tem fins para além dos fins
biológicos, ou que pode servir estes últimos de maneiras
afastadas da utilidade direta das coisas instrumentais.”

Jonas: The Phenomenon of Life, p. 158.


“Antes de continuarmos temos de definir o que é uma imagem, ou por meio 108. Propriedades
da imagem I
de que propriedades um objeto vem a ser uma imagem de outro objeto.
1. A propriedade mais óbvia é a «semelhança». Uma imagem é um objeto que
tem uma semelhança claramente reconhecível, ou reconhecível se se
pretender, com um outro objeto.
2. A semelhança é produzida intencionalmente: o objeto que a tem é, no que
se refere a esta propriedade, um artefacto. Uma semelhança natural entre
dois objetos não faz de um uma imagem do outro. A artificialidade (e, por
isso, a intencionalidade) da semelhança em uma das duas coisas tem de ser
reconhecida como a própria semelhança. A intenção externa do autor
permanece como uma «intencionalidade» intrínseca no produto – a
intencionalidade da representação, que é comunicada ao suporte. Assim,
enquanto que a semelhança em si mesma é recíproca, a relação de imagem
que a utiliza é unilateral: a coisa artificial é uma imagem da natural, mas a
natural não é uma imagem da artificial.”
Jonas: The Phenomenon of Life, p. 159.
109. Propriedades da imagem II

“3. A semelhança não pode ser completa. Uma duplicação de todas as


propriedades do original resultaria na duplicação do próprio objeto –
numa outra instância do mesmo objeto, não numa imagem sua. Se
copio um martelo em todos os seus aspectos, obtenho um outro
martelo, não uma imagem de um martelo.
“A incompletude da semelhança tem de ser perceptível, de modo a
qualificar a semelhança como «mera semelhança».”

Jonas: The Phenomenon of Life, p. 159


110. Propriedades da imagem III

“4. Além desta condição básica, a «incompletude» assume graus de liberdade.


Dentro da dimensão constituída pela «incompletude ontológica», a imagem é
novamente elíptica: muito é omitido mesmo da aparência superficial [do
modelo]. Omissão implica seleção. No seu aspecto positivo, assim, a
incompletude da criação da imagem significa a seleção de traços
«representativos», «relevantes» ou «significativos» do objeto, ou seja, da sua
aparência ao sentido a que a imagem se dirige. A restrição apenas a esse único
sentido como o meio perceptual da representação é ela mesma já a primeira
«seleção» operativa na criação da imagem, e isto está genericamente pré-
determinado pela predominância da visão: a natureza do homem decidiu-se
desde logo pelo aspecto visual como representativo das coisas.”
Jonas: The Phenomenon of Life, p. 160.
111. Propriedades da imagem IV

“Conduzida por esta capacidade além dos termos iniciais da imagem, a


função representativa pode assentar progressivamente menos numa
semelhança do que no mero reconhecimento da intenção. Inicialmente,
para fazer a intenção reconhecível, é necessário um grau óbvio de
semelhança, e este é o domínio próprio da imagem; porém, com o
surgimento de uma convenção simbólica, uma amplitude crescente de
substituições e abreviações gráficas se torna disponível, com uma
emancipação crescente em relação à «semelhança».”

Jonas: The Phenomenon of Life, p. 162


112. Propriedades da imagem V

“7. A imagem é inativa e em repouso, apesar de poder retratar movimento e ação.


Ela pode captá-los numa presença estática porque o representado, a
representação e o veículo da representação (a coisa que é a imagem ou o suporte
físico da imagem) são estratos diferentes da constituição ontológica da imagem.
Não obstante a sua corporalização, a semelhança é insubstancial, como uma
sombra ou uma imagem ao espelho. Ela pode representar o perigoso sem colocar
em perigo, o deletério sem fazer mal, o desejável sem saciar. O que é
representado ao modo da imagem está, na imagem, removido do comércio causal
com as coisas e transportado para uma existência não-dinâmica que é uma
imagem da existência propriamente dita – um modo de existência que não deve
ser confundido nem com o da coisa que representa nem com a realidade
representada.”
Jonas: The Phenomenon of Life, pp. 162-163.
113. Imagem e vestígio

“Uma pegada é um sinal do pé que o fez e, como um efeito, conta a


história da sua causalidade. Uma pintura, apreendida como pintura, não é
um sinal dos movimentos do pintor, mas do objeto retratado. Na imagem o
nexo causal está cortado. Livre para retratar qualquer situação, incluindo a
de pintar uma pintura, a imagem não representa a causalidade da sua
própria produção.”

Jonas: The Phenomenon of Life, p. 163-164.


114. Diego Velazquez, As Meninas,
1656. Museu do Prado, Madrid.
115. Imagem e verdade

“Como o recriador das coisas «na sua semelhança» o homo pictor [pictorial
man] submete-se ao padrão da verdade. Uma imagem pode ser mais ou
menos verdadeira em relação ao objeto. A intenção de retratar coisas
reconhece-as tal como são e aceita o veredicto de serem segundo a adequação
da homenagem pictórica [pictorial homage]. A adequatio imaginis ad rem que
precede a adequatio intellectus ad rem é a primeira forma da verdade
teorética – a precursora da verdade verbalmente descritiva, a qual é a
precursora da verdade científica.”

Jonas: The Phenomenon of Life, p. 172.


116. O controlo eidético da motricidade I

“Uma outra capacidade está implicada na faculdade pictórica. As imagens,


afinal, têm de ser feitas, e não meramente concebidas. Assim, a sua existência
externa como resultado da atividade humana revela também um aspecto
físico da capacidade que a faculdade das imagens oferece: o tipo de domínio
que o homem tem sobre o seu corpo. Este domínio, termine ele na produção
de uma imagem ou de uma coisa ou de qualquer outra ação física é
governado também pela «imagem». De facto, este não é senão o lado
corporal da mesma faculdade da imagem, de que temos até aqui discutido
somente o lado mental. A forma visada não é corporizada pelo desejo, e o
domínio interno do eidos, com toda a sua liberdade de esboço mental,
permaneceria inefectivo se não fosse também o poder de guiar o corpo do
sujeito na execução. …/…
117. O controlo eidético da motricidade II

“A escrita é o exemplo mais familiar desta tradução de um padrão eidético


para o movimento de um membro; a dança (com uma coreografia pré-
desenhada) é um outro; e o uso da nossa mão exibe em toda a parte esta
tradução motora da forma no seu mais vasto alcance prático como a
condição de toda a tecnologia. O que temos então é um facto trans-animal,
unicamente humano: o controlo eidético da motricidade, ou seja, a ação
muscular governada não pelo padrão estímulo-resposta, mas pela forma
livremente escolhida, internamente representada e intencionalmente
projetada. O controlo eidético da motricidade, com a sua liberdade de
execução externa complementa o controlo eidético da imaginação com a sua
liberdade de esboço interno.”

Jonas: The Phenomenon of Life, p. 172-173.


118. O poder dos nomes I

“Retorno mais uma vez ao lado mental [da imagem]. A Bíblia conta-nos
(Génesis 2:19) que Deus criou os animais do campo e as aves do ar, mas deixou
que Adão os nomeasse. Uma Haggada [comentário hebraico] a esta passagem
(Génesis Rabba XVII.5) afirma que Deus elogiou a sabedoria de Adão acima da
dos anjos dizendo que ao dar nomes a todas as criaturas, a si próprio e até
mesmo a Deus, Adão fez o que os anjos não seriam capazes de fazer. Dar
nomes aos objetos é aqui considerado com o primeiro feito do homem recém-
criado e como o primeiro ato distintivamente humano. Foi um passo além da
criação. Aquele que os deu demonstrou assim a sua superioridade sobre os
seus companheiros de criação e anunciou o seu futuro domínio sobre a
natureza. …/…
119. O poder dos nomes II

“Ao dar nomes a «todas as criaturas vivas» criadas por Deus o homem criou
nomes de espécies para a pluralidade em que cada uma se iria multiplicar. O
nome, ao se tornar geral, preservaria a ordem arquetípica da criação
perante a multiplicidade dos indivíduos. O seu uso para cada caso individual
renovaria o ato original da criação no seu aspecto formal. Assim a
duplicação da natureza pelos nomes é simultaneamente uma ordenação da
natureza segundo os seus padrões genéricos. Cada cavalo é o cavalo original,
cada cão o cão original.”

Jonas: The Phenomenon of Life, p. 173.


120. Verdade, negação e liberdade humana

“Em suma, queremos indicar que a experiência da verdade, como


desvelamento simultâneo do erro, inclui um elemento de negação. Daí se
segue que, como uma tese primeira, que a capacidade para a verdade
pressupõe a capacidade de negar e que, por conseguinte, somente um ser
que pode apreender a negatividade, que pode dizer «não», pode
apreender a verdade. Além disso, uma vez que o poder da negação é uma
parte da liberdade e, efetivamente, um ingrediente definitório dela, a tese
é que a liberdade é um pré-requisito para a verdade e que a experiência
da verdade é em si mesma a evidência e o exercício de um certo tipo de
liberdade.”

Jonas: The Phenomenon of Life, p. 175.

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