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prefácio

moacyr scliar

“em meio a dores darás à luz” (gênesis 3, 16). a determinação divina, castigo
pelo pecado original, condicionou, na cultura ocidental, uma verdadeira tradição,
segundo a qual o parto é o momento de expiação da culpa, o que só pode ser feito
mediante sofrimento. aquilo que, no reino animal, é um ato fisiológico não muito
diferente de outros atos fisiológicos, ficou assim carregado de simbolismo e de
aflição. simbolismo e aflição que tinham contrapartida nas dificuldades reais que
muitas vezes estão associadas ao parto, resultantes das características anatômicas da
espécie humana. não é de estranhar, pois, que aos poucos o parto se tenha tornado
um procedimento médico. nesta trajetória a cesárea foi um momento decisivo.
numerosas lendas e mitos envolvem o surgimento da cesárea; na mitologia grega,
apolo removeu asclépio (significativamente, o fundador de um famoso culto
médico) do abdome de sua mãe. o termo é habitualmente associado ao nascimento
do imperador julio césar, o que parece pouco provável; sua mãe, aurélia, teve uma
vida relativamente longa e à época a intervenção era praticada, como medida de
último recurso, só em parturientes mortas ou agônica. também é possível que a
expressão venha do verbo "caedare," cortar. de qualquer modo, não era uma prática
exclusivamente romana; numerosas referências a ela aparecem nas culturas egípcia,
hindu e chinesa.
com a incorporação do parto à prática médica, mudou também o cenário
em que este era realizado. nas culturas ditas primitivas não era raro que uma
camponesa interrompesse o seu trabalho no campo para, ali mesmo, dar à luz,
ajudada por outras mulheres e, quem sabe, invocando uma das muitas deusas
protetoras das gestantes (no museu de antropologia da cidade do méxico existem
várias esculturas dessas deusas, que têm inclusive papel didático: estão de
cócoras, a posição mais adequada para o parto natural). mas a medicina introduz
o hospital, com recursos cada vez maiores. certamente o parto hospitalar salvou
numerosas vidas. mas também é verdade que facilitou a realização do parto
cirúrgico e isto, no brasil, acabou se traduzindo em números impressionantes.
em certos municípios do rio grande do sul, por exemplo, cerca de quatro quintos
dos partos ocorriam por cesárea. criou-se um verdadeiro clima cultural, que
envolve as próprias gestantes, e que se traduz na cesárea “a pedido”, comum
inclusive entre mulheres com alto nível de escolaridade. entre outros problemas
isto acarreta uma sobrecarga de gastos para o sistema Único de saúde, o grande
provedor de serviços de saúde em nosso país; o ministério da saúde teve de
definir um teto percentual decrescente para o pagamento de cesáreas aos
hospitais, iniciativa que contribuiu para estabilizar ou reduzir as taxas nos
serviços do sus e conveniados, enquanto que, nos serviços privados, tais taxas
continuaram aumentando. de outra parte, são preocupantes, no país, as altas
cifras de mortadidade materna.
esta situação não é, claro, exclusiva do brasil. ela levou a organização
mundial de saúde (oms) a formular uma declaração (1998), preconizando “o
mínimo possível de intervenção que seja compatível com a segurança (...). no
parto normal deve haver uma razão válida para interferir sobre o processo
natural”. esta recomendação não leva em conta somente a evidência científica,
mas considera também os direitos das mulheres à informação e à decisão em
questões de saúde-doença. o termo “humanizar” sintetiza todas estas
postulações. É uma reinvindicação das mulheres, no caso do parto, mas é
também uma reinvindicação dos setores mais avançados da área da saúde,
preocupados com o crescente desequilíbrio entre tecnologia e relação médico-
paciente. de fato, a expressão “humanização da medicina” tem ganho relevo nos
últimos anos e aos poucos escolas médicas estão incluindo no currículo a
disciplina conhecida como humanidades médicas que tem por objetivo recuperar
os aspectos humanísticos da profissão.
a humanização tem um componente emocional importante. injunção
bíblica à parte, o parto é um grande momento na vida da mulher, e da família, e
nada impede que seja também uma experiência gratificante. não se trata
exclusivamente de evitar a dor e o desconforto; trata-se do apoio proporcionado
pela equipe de atendimento, por familiares, por amigos e amigas.
por todas estas razões, a publicação de humanizando nascimentos e partos,
obra coletiva organizada pela dra. daphne rattner é um evento auspicioso, que deve
ser saudado com entusiasmo por todos aqueles que, em nosso país, dedicam seus
esforços à causa (porque é, em verdade, uma causa) da humanização do parto.
importantes trabalhos, que abordam os aspectos técnicos e científicos do parto, e
incluem depoimentos pessoais de extraordinário valor. o livro representa também
um marco na trajetória de pessoas que, por seu trabalho, dão um exemplo de
coerência, de dignidade e de excelência científica. não é apenas um texto. É uma
celebração.

moacyr scliar é médico especialista em saúde pública e doutor em ciências pela


escola nacional de saúde pública, titular do departamento de medicina preventiva
da fundação faculdade federal de ciência médicas de porto alegre. escritor, autor de
68 obras em vários gêneros.

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