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Benedicto XIV, const. Dei miseratione, 3 de novembro de 1741.

Pela misericórdia de Deus, cujos julgamentos são incompreensíveis e cujos caminhos


são insondáveis, estabelecidos na suprema torre da Igreja para vigiar diligentemente
sobre todo o rebanho do Senhor, reconhecemos que pertence ao encargo confiado ao
nosso ofício pastoral arrancar pela raiz os abusos que surgem da astúcia do inimigo
infernal e da malícia dos homens. Tais abusos causam perigo à salvação das almas e
lesam os sacramentos da Igreja. Assumimos a responsabilidade de erradicá-los
profundamente e de empregar nossos esforços na execução da autoridade que nos foi
confiada, a fim de conter a temeridade humana e preservar a venerável autoridade da
Lei Divina.

§ 1. Visto que o pacto matrimonial foi instituído por Deus, sendo conveniente, segundo
a natureza, que seja perpétuo e indissolúvel, para o cuidado da educação da prole e a
preservação de outros bens do matrimônio; e na medida em que é sacramento da
Igreja Católica, não pode ser dissolvido pela presunção humana, como o próprio
Salvador afirmou com suas próprias palavras, dizendo: "O que Deus uniu, o homem
não separe". Chegou aos ouvidos de nosso apostolado que, em algumas cortes
eclesiásticas, por uma excessiva facilidade de juízes, são violadas com muita
precipitação e de maneira imprudente as sentenças proferidas sobre a nulidade desses
mesmos casamentos, dando aos cônjuges a oportunidade de passar para outras
uniões. Certamente, juízes tão imprudentes, com audácia tão precipitada, romperiam
o sagrado vínculo do matrimônio, que, pela condição perpétua da natureza e pela
própria voz, de certa forma, deveria tê-los advertido, como o primeiro pai da
humanidade preveniu, dizendo: "Esta, agora, é osso dos meus ossos e carne da minha
carne". E acrescentou: "Por isso, deixará o homem o seu pai e a sua mãe, e unir-se-á à
sua mulher, tornando-se os dois uma só carne".

§ 2. A notícia da necessidade de abolir tais práticas foi-nos comunicada por várias


partes, e foram indicados exemplos de alguns homens que, após contrair matrimônio
pela primeira, segunda e terceira vez, devido à precipitação excessiva dos juízes em
declarar a nulidade desses casamentos, ainda com suas primeiras esposas vivas,
haviam se casado pela quarta vez. Da mesma forma, mulheres que, após o primeiro,
segundo e terceiro marido, contraíram matrimônio pela quarta vez, mesmo estando
todos eles vivos, não sem escândalo para os fracos e abominação de todos os homens
de bem, que lamentavam que os sagrados vínculos do matrimônio fossem assim
desprezados e quebrados com tanta leviandade. Compreendendo isso, ficamos
profundamente aflitos, gemendo em nossos corações, e não deixamos de cumprir
nossa parte de solicitude apostólica no Senhor. No primeiro ano de nosso pontificado,
enviamos cartas extremamente severas aos bispos das regiões onde tais
acontecimentos ocorreram, lamentando profundamente essa perversidade tolerada
na Igreja de Deus. Nos esforçamos para elevar seus espíritos e inflamar o zelo pastoral
para erradicar tal prática. Isso também fizemos com outros bispos de diferentes
regiões onde soubemos que esse mau uso na dissolução de matrimônios havia se
infiltrado.
§ 3. Contudo, foi-nos respondido que isso frequentemente acontece em parte por
culpa dos próprios juízes, aos quais, seja na primeira instância, quando a causa não
pode ser conhecida diante de um juiz ordinário por alguma causa legítima, seja na
segunda, quando em determinadas regiões não há juiz a quem a causa, em grau de
apelação, possa ser devolvida. Ou, se houver, a causa não pode ser discutida diante
dele por justa causa. Casos matrimoniais desse tipo são então confiados à Sé
Apostólica, cujos representantes, por ignorância ou má vontade, estão propensos a
dissolver casamentos e, sem um exame adequado ou mesmo sem nenhum, declaram-
nos nulos e inválidos. Também ocorre em parte devido ao comportamento dos
cônjuges litigantes sobre a nulidade de seus matrimônios. Muitas vezes, apenas um
deles, que busca a dissolução do matrimônio, comparece ao tribunal, e a sentença é
obtida de acordo com seus votos, sem oposição, permitindo-lhe contrair novas
núpcias. Ou, quando ambos os cônjuges comparecem ao tribunal, se uma sentença de
nulidade do matrimônio é proferida, nenhum deles apela para o tribunal superior. Isso
pode ocorrer porque, embora os litigantes possam discordar especificamente, na
verdade, estão conspirando juntos para dissolver o matrimônio. Ou, a parte que
defendia a validade do matrimônio e impugnava com veemência a nulidade, ao
receber uma sentença contrária do juiz, muda de opinião, seja por falta de recursos
para custos judiciais, ou por falta de outros meios necessários para litigar, e abandona
a causa iniciada após a primeira sentença. Isso resulta em ambos os cônjuges, ou um
deles, contraindo novo matrimônio.

§ 4. No que diz respeito aos juízes aos quais são confiadas as causas matrimoniais fora
da Cúria Romana, sobre o bem-estar dos litigantes, providenciamos, com a vigilância
paternal que devemos ter para administrar justiça a todos de maneira íntegra e
prudente, por meio de cartas encíclicas dirigidas aos Veneráveis Irmãos Patriarcas,
Primazes, Arcebispos e Bispos, escritas em 26 de agosto, no segundo ano de nosso
pontificado. Prescrevemos medidas que, se diligentemente observadas, conforme
esperamos, em conformidade com os Sagrados Cânones e decretos do Concílio de
Trento, as causas futuras serão confiadas apenas a pessoas devidamente versadas em
conhecimento jurídico e de probidade necessária, e cuja fé comprovada seja um apoio
garantido. Além disso, acrescentamos agora o seguinte ao que foi estabelecido nessas
cartas encíclicas: embora o decreto do Concílio de Trento, que retirou as causas
matrimoniais do julgamento dos Decanos, Arcediagos e outros juízes inferiores,
reservando-as apenas para o exame e jurisdição dos Bispos, seja aplicável apenas aos
Arcediagos, Decanos e outros inferiores que, pela mesma Diocese, arrogavam para si a
competência para julgar causas matrimoniais por meio de algum privilégio ou
prescrição, pelo menos em visitação. Portanto, ordenamos e mandamos, àqueles a
quem compete a preocupação com a expedição de tais comissões ou delegações para
definir as mesmas causas matrimoniais, que no futuro não confiem o julgamento
dessas causas senão aos Bispos, especialmente aos mais próximos. Se não houver
Bispo a quem possa ser convenientemente confiada devido a uma causa legítima,
então a comissão e a delegação devem ser enviadas a um daqueles que, de acordo
com a ordem e método prescritos por nós nas referidas cartas encíclicas, tenha sido
nomeado pelo Bispo, com o conselho de seu Capítulo, como juiz adequado.
§ 5. No que diz respeito à ordem e sequência dos julgamentos em casos matrimoniais
para a devida e adequada conclusão deles: por ato próprio, com pleno conhecimento e
madura deliberação, com a plenitude do poder apostólico, com esta nossa sanção que
valerá perpetuamente, determinamos, decretamos e ordenamos que, por todos os
Ordinários Locais em suas respectivas Dioceses, seja escolhida uma pessoa idônea, se
possível do corpo eclesiástico, dotada tanto de conhecimento jurídico quanto de
probidade de vida, que será chamada de Defensor do Matrimônio. Entretanto, com a
faculdade de suspender ou remover, se houver causa justa, e substituir por outra
igualmente apta e adornada com as mesmas qualidades; o que também poderá ser
feito sempre que a pessoa designada para a defesa do matrimônio estiver
legitimamente impedida de agir.

§ 6. O dever do Defensor do Matrimônio assim eleito será comparecer ao julgamento


sempre que as causas matrimoniais sobre a validade ou nulidade forem discutidas
diante de um juiz legítimo. Ele deverá ser convocado em cada ato judicial, estar
presente no exame das testemunhas, defender a validade do matrimônio por meio de
voz e escritos, e apresentar todas as evidências que julgar necessárias para sustentar o
matrimônio.
§ 7. E, finalmente, a pessoa do Defensor, considerada como uma parte necessária para
a validade e integridade do julgamento, deverá sempre estar presente no tribunal
quando uma das partes pleitear a nulidade e a outra a validade do matrimônio. Aos
cônjuges que pleiteiam a nulidade do matrimônio, seja um ou ambos, quando o
Defensor assume esse encargo, prestará juramento de cumprir fielmente seu dever, e
sempre que for necessário comparecer em juízo para a defesa da validade de algum
matrimônio, prestará novamente o mesmo juramento. Declaramos que tudo o que for
feito em juízo sem uma citação ou intimação legítima é nulo e inválido, e queremos
que seja considerado como tal, da mesma forma como se a parte que deveria ser
citada não tivesse sido citada para a válida integridade do julgamento, sendo essa
citação ou intimação necessária, conforme prescrito pelas leis e cânones.

§ 8. Portanto, quando diante do Ordinário a quem compete julgar tais causas, surgir
alguma controvérsia em que a validade do matrimônio seja questionada, e estando em
juízo, seja com um dos cônjuges que pleiteia a nulidade do matrimônio, seja com
ambos, dos quais um busca a validade e o outro a nulidade, o Defensor do Matrimônio
deverá desempenhar diligentemente todas as partes de seu ofício. Assim, se o juiz
julgar a favor da validade do matrimônio e não houver apelação, o Defensor também
se abstém de apelar; ele se aplica se o juiz de segunda instância julgar a favor da
validade do matrimônio, depois que o juiz de primeira instância pronunciou a sentença
de sua nulidade. No entanto, se a sentença for contra a validade do matrimônio, o
Defensor, dentro dos prazos legais, apelará, aderindo à parte que pleiteava a validade.
Quando, no tribunal, não houver ninguém que pleiteie a validade do matrimônio, ou
se houver, e uma sentença for proferida contra ele, e o juízo for abandonado, o
Defensor, por obrigação, apelará para o juiz superior.

§ 9. Com a apelação pendente da primeira sentença, ou mesmo se não houver


apelação devido à malícia, negligência ou conluio do Defensor e das partes, se ambos
ou um dos cônjuges ousar contrair novas núpcias, queremos e decretamos que não
apenas sejam observadas as disposições estabelecidas contra aqueles que contraem
matrimônio contra a proibição da Igreja, especialmente para que se separem de
coabitar até que uma segunda sentença sobre a nulidade seja emitida, da qual não
tenha havido apelação dentro de dez dias, ou se a apelação for interposta e depois
abandonada. Mas, além disso, estabelecemos, decretamos e renovamos que o
contrator ou contratores de tal matrimônio estejam sujeitos a todas as penalidades
estabelecidas pelos Sagrados Cânones e Constituições Apostólicas contra os
polígamos, as quais, se necessário, declaramos, decretamos e renovamos da mesma
forma, por ato próprio, conhecimento e poder semelhantes.
§ 10. Após a causa ser levada a um segundo juiz por meio do benefício da apelação,
todas e cada uma das disposições estabelecidas diante do juiz na primeira instância
serão rigorosamente observadas perante o segundo, com a presença do Defensor do
matrimônio sendo convocado em cada ato judicial. Se o juiz de segunda instância for
um Metropolita, o Núncio da Sé Apostólica ou um Bispo mais próximo, o Defensor do
Matrimônio será aquele designado por eles, conforme recomendamos, para que possa
cumprir o que foi estabelecido por nós. Se o juiz de segunda instância for um juiz
comissário, a quem a Sé Apostólica confiou a competência da causa, e que não possui
tribunal ou jurisdição ordinária, e, portanto, carece de um Defensor do Matrimônio,
queremos que ele use o Defensor do Matrimônio designado pelo Ordinário em cuja
Diocese a causa será julgada, mesmo que seja o mesmo Ordinário que proferiu a
primeira sentença na mesma causa.

§ 11. Instruído da maneira acima, se a segunda sentença for conformar à primeira, ou


seja, se na segunda, assim como na primeira, o matrimônio for julgado nulo e inválido,
e se a parte ou o Defensor, por sua consciência, considerar que não há necessidade de
apelação, ou que a apelação interposta não deve ser prosseguida, é de livre arbítrio
dos cônjuges contrair novas núpcias, desde que nenhum deles tenha sido proibido por
algum impedimento ou causa legítima. No entanto, a autoridade concedida aos
cônjuges após a segunda sentença conforme, como mencionado acima, será entendida
e aplicada, respeitando sempre o direito ou privilégio das causas matrimoniais, que
nunca prescrevem em razão de qualquer período. Se uma nova circunstância não
revelada ou desconhecida for descoberta, ela poderá ser reconsiderada e novamente
levada à controvérsia judicial. Se a segunda sentença for sobre a nulidade e a outra
parte apelar, ou se o Defensor do Matrimônio, salvaguardando sua consciência, não
concordar com ela, seja porque a considera manifestamente injusta ou inválida, ou
porque foi proferida na terceira instância e revogou a anterior sobre a validade na
segunda instância, queremos que, mantida a proibição de ambos os cônjuges de
contrair novas núpcias, eles sejam julgados na terceira ou quarta instância. Todos os
requisitos que foram confiados a Nós nas primeiras e segundas instâncias devem ser
diligentemente observados, ou seja, em cada ato judicial, com a convocação e audição
do Defensor do Matrimônio designado pelo juiz de terceira instância.

§ 12. Recomendamos ao Defensor do Matrimônio, que assume sua função


gratuitamente por amor a Deus, ao benefício do próximo e reverência à Igreja, que, se
por qualquer motivo ele se recusar a oferecer seus serviços sem remuneração ou
salário, seja nomeado pelo juiz da causa, e, se possível, seja pago pela parte que
pleiteia a validade do matrimônio; caso contrário, será fornecido pelo juiz de primeira,
segunda ou terceira instância, respectivamente, que poderá usar as multas coletadas
ou a serem coletadas em suas jurisdições para despesas benevolentes. Contudo,
quando os juízes da causa forem juízes comissários, que não têm fórum e,
consequentemente, não têm dinheiro proveniente das multas coletadas, queremos e
ordenamos que o Defensor do Matrimônio seja compensado com o dinheiro das
multas daquele bispo em cuja diocese o juiz comissário exercerá julgamento, de
acordo com o mandato da Sé Apostólica.
§ 13. Até agora, no que diz respeito aos casos matrimoniais que são tratados fora da
Cúria Romana. Quanto aos casos que devem ser julgados em Roma, quando a
competência em primeira instância pertence ao Cardeal da Sagrada Rota na referida
cidade, em suas Subúrbios e no Distrito como nosso Vigário em assuntos espirituais
por tempo determinado, ordenamos e exigimos que todas as disposições prescritas
para os casos tratados fora da Cúria Romana sejam rigorosamente observadas. Isso
inclui o julgamento, com a convocação e audição do Defensor do Matrimônio
designado pelo mesmo Cardeal Vigário, e todas as outras diretrizes mencionadas
acima. Isso se aplica também aos casos que, por consentimento das partes em
primeira instância, por apelação direta à Sé Apostólica em segunda instância ou, em
terceira instância, são deferidos a Roma. Todos esses casos devem ser julgados, seja na
Congregação dos Cardeais da Sagrada Rota sobre a interpretação e execução do
Concílio de Trento, ou no Tribunal da Sala do nosso Palácio, desde que, por razões
justificáveis, não seja considerado necessário a designação de uma Congregação
particular de Cardeais da Sagrada Rota ou de prelados da Cúria Romana, seja por nós
ou pelo Romano Pontífice no momento.

§ 14. Uma única resolução sobre a nulidade do matrimônio, se a causa for tratada na
Congregação dos Cardeais da Sagrada Rota sobre a interpretação do Concílio de
Trento, ou em uma Congregação particular designada, e da mesma forma no Tribunal
de nossa Sala, não será suficiente para conceder aos cônjuges a liberdade de contrair
novas núpcias. Se a causa for introduzida na mencionada Congregação dos Cardeais da
Sagrada Rota sobre a interpretação do Concílio de Trento, será novamente
apresentada a ela, a pedido do Defensor do Matrimônio; se for confiada a uma
Congregação particular, a pedido do mesmo Defensor, outra Congregação particular
será designada; se for julgada no Tribunal de nossa Sala, após a apelação interposta
pelo mencionado Defensor, será decidida por outros Auditores de acordo com a
ordem rotativa. No entanto, se a causa for confiada a todo o Tribunal, será novamente
examinada por todos os Auditores: não desejamos, de forma alguma, que em qualquer
caso o vínculo matrimonial seja considerado dissolvido, a menos que duas sentenças,
resoluções ou decisões totalmente semelhantes e conformes, das quais nem a parte
nem o Defensor do Matrimônio acreditam que devam apelar, tenham sido emitidas. Se
isso não ocorrer, e se alguém contrair um novo matrimônio contrariando nossa
vontade, eles serão submetidos às penalidades estabelecidas por nós, conforme
mencionado anteriormente.

§ 15. Visto que frequentemente são apresentadas à Sé Apostólica petições para a


dispensa de um matrimônio ratificado e não consumado, que geralmente são
encaminhadas às Congregações dos Cardeais da Sagrada Rota sobre a interpretação do
Concílio de Trento, ou às vezes a uma Congregação particular designada, pelos
Romanos Pontífices no momento, para que tais petições prossigam de maneira
ordenada e adequada, ordenamos e exigimos que uma petição suplicante nos seja
apresentada ou ao Romano Pontífice no momento, na qual seja incluída uma descrição
completa e precisa de todos os fatos, e todas as causas sejam expressas, para que o
Romano Pontífice, após a leitura e consideração, possa deliberar sobre o que pode
contribuir para a obtenção da dispensa solicitada. Ele decidirá se rejeita o pedido ou se
confia o exame a uma das mencionadas Congregações, da qual, depois de seu voto
consultivo, o Secretário da mesma Congregação relatará detalhadamente toda a série
do negócio ao Romano Pontífice no momento, que, por sua prudência, decidirá se a
Resolução da Congregação deve ser aprovada, ou se o exame de toda a causa deve ser
novamente confiado a outra Congregação ou Tribunal, conforme parecer melhor ao
mesmo Pontífice.

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