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Ilustração: Eloar Guazzelli

julho/2021
julho/2021

editorial 2 Uma obra coletiva


crônica 5 Bom dia, querida
Nathallia Protazio

entrevista
FêCris Vasconcellos 7 André Lemos – As cores e as sombras das cidades...
Tiago Medina e Bernardo Bercht 18 Joel Kotkin – À procura da alma das cidades

nossos mortos 21 As cidades imaginárias de Sandra...


Zita Possamai

ensaio gráfico 25 Cidade nanquim


Eloar Guazzelli

pensata
Mariana Félix de Quadros 39 Em busca de uma cidade para as mulheres
Helena Cybis 41 A mobilidade para a diversidade

ensaio
Lizete Dias de Oliveira 44 Teko Porã em Porto Alegre
Ana Luiza Goulart Koehler 48 Becos, ontem e hoje
Neila Prestes Araujo 52 Que origem é essa do bairro Restinga?
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo 57 A cidade e a segurança pública

recomendações 61 Livros, disco


Roger Lerina
JULHO/2021

UMA OBRA
COLETIVA

A
posto que muita gente anda com
saudade de flanar pela cidade.
Ainda que flanar estivesse em
desuso antes mesmo da pandemia che-
gar... Com tanto barulho, tanta agenda
para cumprir, obstáculos para vencer –
da insegurança aos buracos nas calçadas
–, quem aí flanou nos últimos anos?

Capa: ensaio gráfico Mas a cidade estava ali, à disposição


Cidade Nanquim, por de todo mundo antes do coronavírus,
Eloar Guazzelli certo?

Todo mundo quem, como diz um


grande amigo. Vamos voltar rapidinho
expediente ao século 19 pra lembrar da figura tipi-
Parêntese Grupo Matinal
Jornalismo
camente urbana do flâneur, criada por
Fundador autores europeus. Aquela pessoa que
Luís Augusto Fischer Diretor executivo
Filipe Speck andava por aí a contemplar as ruas de
Editores-executivos
Luís Augusto Fischer Editora-chefe Paris, misturando-se a outros morado-
Ângelo Chemello Pereira
Luís Augusto Fischer |
Marcela Donini res e alcançando uma das grandes delí-
Ângelo Chemello Pereira Chefe de reportagem cias da vida urbana, ser anônimo.
Marcela Donini Naira Hofmeister

Editor-assistente
José Falero
Reportagem
Estúdio Fronteira Agora pensem comigo – e com a geó-
Colaboradores desta Conselho administrativo
grafa canadense Leslie Kern: esse cara
edição: Adriana Martorano só pode ser um homem branco, saudá-
Ana Luiza Goulart Koehler Filipe Speck
Bernardo Bercht Luís Augusto Fischer vel, de classe média e hétero.
Eloar Guazzelli Roger Lerina
FêCris Vasconcellos
Helena Cybis
Lizete Dias de Oliveira
Gestão de Produto e
Estratégia
Só essa figura pode vagar em paz na
Mariana Félix de FêCris Vasconcellos cidade sem ser interrompida a cada
Quadros
Nathallia Protazio contato@parentese esquina com um fiu-fiu ou algo pior.
Neila Prestes Araujo
Rodrigo Ghiringhelli de
.com.br
“A constante antecipação do assédio
Azevedo
Tiago Medina
comercial@
matinaljornalismo.com.br
significava que a minha capacidade
Zita Possamai de passar incógnita pela multidão era
Projeto gráfico Para assinar: sempre passageira”, diz Kern no recém
Déborah Salves
www. lançado Cidade feminista – a luta pelo
Editoração
Thainá Coimbra
matinaljornalismo
.com.br
espaço em um mundo desenhado por
homens (Oficina Raquel).

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JULHO/2021

editorial

Ao homem do topo da pirâmide so-


cial está assegurado o privilégio de ser
invisível na cidade. E tantos outros,
lembra a autora, como sistemas de
transporte pensados para suportar a As cidades vêm
mobilidade de quem faz trajetos line- sendo projetadas
ares entre A (casa) e B (trabalho) na
hora do rush.
há anos por essa
mesma f igura padrão
E a mulher que anda pela cidade o que usuf rui
dia inteiro? Que leva o caçula na cre-
che, volta para casa, faz a comida, leva
o máximo dos
o primogênito na outra escola, vai para espaços urbanos.
o seu emprego de meio-turno ou dá
conta de mil e uma atividades autôno-
mas para complementar a renda e na
volta pra casa ainda passa no mercado?
Se falta fôlego para ler, imagina per-
correr esse zigue-zague diariamente... Aliás, a maioria das autoras des-
te número #83 são mulheres. Não foi
Estou chamando a atenção para proposital, é resultado de um esforço
a perspectiva das mulheres, que são – que aos poucos vai deixando de ser
maioria na população brasileira e esforço – em busca de mais diversida-
quase metade dos arrimos das famí- de. Porque cada vez mais mulheres –
lias do País. Mas a própria autora cis, trans, brancas, negras, de origem
diz que “considerar o gênero como a pobre – produzem inteligência sobre
categoria primária para a igualdade qualquer assunto.
também pode ser limitante”. Ao ho-
mem negro também é negada a opor- Mestre em História, Neila Prestes
tunidade de caminhar pela cidade em Araujo relembra como se formou a
paz. Às pessoas com deficiência idem, Restinga no que ela chama de “guer-
por razões diferentes. O mesmo vale ra contra a maloca”, que fez parte da
para a comunidade LGBTQIA+ e ou- política urbana de modernização da
tros grupos minoritários. Capital. A engenheira civil e professora
da UFRGS Helena Cybis escreve sobre
Não por acaso, as cidades vêm sendo a importância de se pensar a mobi-
projetadas há anos por essa mesma fi- lidade para a diversidade de deman-
gura padrão que usufrui o máximo dos das existentes numa cidade. No texto
espaços urbanos. E se as cidades fos- da arqueóloga Lizete Dias de Oliveira,
sem pensadas por mulheres? A provo- ampliamos o imaginário do que é a ci-
cação dá título a mais um livro recém dade com a perspectiva dos guaranis.
lançado, este pela editora Zouk. Uma
das organizadoras, Mariana Félix de Duas entrevistas oferecem panora-
Quadros, apresenta para vocês a obra, mas diferentes sobre os espaços urbanos.
um conjunto de artigos escritos por um FêCris Vasconcellos, gerente de Produ-
grupo plural de mulheres. to do Grupo Matinal Jornalismo,

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entrevistou André Lemos, professor da


Universidade Federal da Bahia, sobre
os impactos da mediação da vida urbana
pelas plataformas sociais. Já os jorna-
listas Bernardo Bercht e Tiago Medina,
editor da Matinal News, conversaram
com o pesquisador e escritor Joel Kotkin
sobre como tornar mais humanas as ci-
dades no pós-pandemia.
AINDA MAIS
As lindas ilustrações na capa e nas
páginas desta edição são do Eloar
IDEIAS E BOAS
Guazzelli, que vem criando uma cidade
imaginada desde os anos 1990. A obra
já foi exposta em Porto Alegre, feito
HISTÓRIAS
que o artista gostaria de repetir e, por
isso, está em busca de patrocínio.

Tem muito mais nesta edição, uma


construção coletiva, como são as cida-
des, conforme nos lembra a homena-
geada da seção Nossos Mortos, Sandra
Pesavento. Seu legado é resgatado aqui
por Zita Possamai.

Pensar os espaços urbanos está no


coração do nosso trabalho no Matinal.
Queremos uma cidade mais pulsante ar-
tisticamente, uma administração públi-
ca mais transparente, o direito à cidade
estendido a todos. Achei auspicioso que
dois novos livros que repensam a cida-
de tenham chegado em minhas mãos
enquanto preparávamos essa edição e
eu me vacinava contra a Covid. Que a
imunização chegue logo a todo mundo
– todo mundo mesmo – e que os novos
ventos nos devolvam a cidade..

— Marcela Donini WWW.

ABRE
Leia a entrevista com PARENTESE
Vítor Ortiz que
saiu no site da Parêntese .COM.BR
nesta semana

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crônica

‘‘Oi, tudo bem?’’


BOM DIA, QUERIDA
‘‘Tudo bem sim, e contigo?’’

‘‘Vem me visitar de madrugada, ‘‘Tudo de boas, acabei de ver aqui as


coloca tua mão em mim tuas fotos do perfil, adorei a do pão.’’
que eu deixo’’
Liniker e os Caramelows ‘‘Ah, hahahahha. Sério?’’

Nathallia Protazio ‘‘Claro, pô. Foi você que fez?’’

‘‘Não, foi minha prima. Eu não sou as-

A
cordo no leve movimento das sim tão prendada.’’
pálpebras cansadas. Não dormia
há três dias. Quase quatro. Sorte ‘‘Olha só, que onda…’’
que a Diva veio ontem e batizou as pane-
las da casa nova, ‘‘comer bem é o primeiro ‘‘Bah, pior. Desculpa ae a decepção.’’
passo pra um bom sono’’ – ela falava en-
quanto eu só conseguia balançar a cabe- ‘‘Ok, eu fico com o fogão, então.’’
ça de boca cheia. O médico na Dr. Flores
disse que mais um mês, talvez dois, meu ‘‘Jura?’’
fígado fica bom. Com sorte sem sequelas
da Covid. A Diva me olha e ri, ‘‘Pior é na ‘‘Claro, sou muito boa nisso. Pode
guerra, menina, que morre e não se en- apostar!’’
terra’’. Verdade. Pior é na guerra.

O texto que escreveram sobre você


não pude ler. Como poderia? Não é na-
tural conhecer alguém primeiro pela au-
sência. Nosso único amigo em comum
me ligou ontem, queria saber como eu
Eu disse o óbvio,
estava. Eu disse o óbvio, só que ao con- só que ao contrário.
trário. Se algo é evidente e eu contar do Se algo é evidente e
avesso, não chega nem a ser uma men-
tira, é no máximo uma brincadeira: ‘‘Tá eu contar do avesso,
tudo bem, tranquilo, afinal, a gente nem não chega nem a
se conheceu de verdade mesmo.’’ A frase ser uma mentira,
morreu dentro da minha boca, e o que
mais doía era eu estar mais uma vez fa- é no máximo
lando de você como se não fosse. Aquela uma brincadeira.
nossa realidade paralela, ambígua.

‘‘Oi.’’

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‘‘Bom dia,
querida’’,
no banco
de madeira
do Gasômetro.
‘‘Dormiu bem?’’

Relembre
Tantas horas perdidas na distância de
um aplicativo. Pensei que nada faria 2021 DIREITO À CIDADE
ser pior que o ano passado. Depois de
tanto vazio, tanto frio, sem sorrisos nem Uma mesma cidade diz coisas
abraços, subindo a Borges desabitada muito diferentes para cada um
como numa cena de filme pós-apocalíp- de nós – e sobre nós. Ou deixa de
tico. A vida pós-moderna. ‘‘Todo mundo dizer. Em uma crônica, publica-
agora se conhece assim, tua prima não ca- da na Parêntese em 2019, José
sou com um carinha do Tinder?’’ Era ver- Falero reflete sobre as diferentes
dade. Ela tinha casado. E mais uma vez eu experiências vividas no espaço
falando de você, de como me doía aquela urbano. Quem acessa o que uma
estranha sensação de te amar sem nunca metrópole tem a oferecer? Que
ter te visto, nunca ter te tocado. E naquele encontros são possíveis e para
espaço, entre o aí e o aqui, eu viajando ao quem? Que histórias cada um de
imaginar o cheiro dos teus cabelos, o bri- nós pode escrever na cidade?
lho da tua risada, o som da tua respiração
à noite. Como se faz para enterrar alguém “Os subempregos me fizeram
que se fez presente em todos os lugares ir para lá e para cá, sacolejando
vazios desta cidade que nunca esteve? dentro de ônibus lotados. Eu via
os prédios do Centro passando
pela janela, e durante anos a fio
Conversávamos o tempo todo. ‘‘Aqui eles nunca me disseram nada.
hoje tá um sol tímido’’, na calçada suja do Era como se nem mesmo fossem
Opinião. ‘‘Bom dia, querida’’, no banco de de verdade. Era como se fossem
madeira do Gasômetro. ‘‘Dormiu bem?’’ só parte de um gigantesco cená-
Hoje o silêncio no vento frio que cola mi- rio de papelão, morto, sem vida,
nha máscara ainda mais ao rosto no via- sem histórias.”
duto Otávio Rocha. Ela está úmida das lá-
grimas que choro enquanto penso que tu
nunca visitou Porto Alegre, não tivemos Leia a crônica no
esse tempo. A tua ausência me parece tão site da Parêntese
irreal quanto tua morte prematura. Mas,
pior é na guerra.

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Foto: Arquivo pessoal
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entrevista

ANDRE LEMOS –
AS CORES E AS
SOMBRAS DAS
CIDADES INTELIGENTES
Pesquisador da cultura digital desde os
anos 1990, o professor da UFBA fala sobre os
possíveis impactos da mediação onipresente
das plataformas na vida urbana

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FêCris Vasconcellos Cultura Digital (Sulina, 2021. 150pg). A


obra é um apanhado de textos publicados
por Lemos em veículos de imprensa, re-

E
ntre videoconsultas e relógios des sociais e no dossiê “In Vitro” no blog
inteligentes de Os Jetsons, e do Lab404 (Laboratório de Pesquisa em
olhos que tudo veem de 1984, Mídia Digital, Redes e Espaço/Poscom-
as diferentes visões de futuro, quan- UFBA). Mesmo em suas publicações
do são descritas, falam mais sobre o mais acadêmicas nesses mais de 30 anos
presente que do porvir. A superpotên- de contribuições à área, o professor faz
cia autoritária baseada em vigilância, jus à profissão e proporciona bons mer-
como descreveu George Orwell, parecia gulhos na evolução da cultura digital e
um problema que ficaria na década de na formação de fenômenos sociais como
1940, enquanto a simpática Rosie era as cidades inteligentes de modo com-
mágica como os primeiros eletrodomés- preensível e lógico.
ticos dos anos 1950 e 1960. Animador
ou aterrorizante, estamos numa época Um exemplo de boa didática é esta
em que câmeras medem a temperatu- entrevista. Concedida a la Jetsons por
ra corporal dos transeuntes na Estação videochamada, nela, André Lemos fala
Mercado e já é possível conversar com sobre dataficação, plataformização e
uma geladeira, então, é seguro dizer que pinta as cores vibrantes e sombrias de
algum futuro já chegou. E ele veio tra- um amanhã que já está presente.
zendo tudo: o robô aspirador, os carros
que dirigem sozinhos e, claro, a vigilân-
cia e o roubo de dados. Parêntese – Como o senhor vê,
em 2021 e especialmente no Brasil,
No início da década de 1990, quando a questão das cibercidades?
a maioria sequer havia ouvido o frus-
trante e inesquecível ruído da internet André Lemos – O que a gente cha-
discada, André Lemos já estudava ciber- mava de cidade digital era num momento
cultura em seu doutorado na Université em que a internet emergia e que precisa-
Paris Descartes, na França. Na década ríamos dotar as cidades de infraestrutu-
seguinte, para saber do trânsito era pre- ra básica mínima de acesso à internet,
ciso ligar no rádio e torcer para o locu- de transparência da informação pública.
tor falar da sua rota, mas o hoje profes-
sor da Universidade Federal da Bahia
participava em Dublin, Irlanda, de pes-
quisas a respeito das cibercidades, que
viriam a se chamar mais tarde cidades
inteligentes. Em 2021, imaginar o futu-
ro do espaço urbano e da nossa relação Considero questões
com a cultura digital passa por observar centrais na discussão
as pesquisas passadas e presentes de
André Lemos.
sobre as cidades
inteligentes hoje o uso e
Para quem não é iniciado no tema, a segurança dos dados.
a dica é começar pelas reflexões a res-
peito da mútua influência entre cultura
digital e pandemia presentes no livro
A Tecnologia é um Vírus: Pandemia e

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Havia um processo de colocar as insti-


tuições do espaço urbano na internet,
disponibilizar acesso às pessoas, não só
à informação, mas também à própria in-
ternet. Esses problemas continuam. Nós Novas tecnologias
vivemos em um país de uma grande de- trouxeram uma
sigualdade e essa pandemia tem revela-
do muito isso.
mudança na ação
para o urbanismo,
O conceito evoluiu acompanhando as no sentido de dotar
dinâmicas dessas tecnologias por que
passamos, nesses 20 anos, para uma
esses espaços de
nova configuração da cultura digital, tratamento inteligente
que é a sociedade de plataformas, com de dados que fizessem
essas diversas instituições que mesclam
software e hardware, na qual os aplica- com que a
tivos são a face mais visível, a pele des- ação política se tornasse
sas estruturas, e também baseado em mais responsiva.
um grande uso de dados e de inteligên-
cia artificial, de algoritmos de inteligên-
cia artificial. Essas novas tecnologias
trouxeram uma mudança na ação para
o urbanismo, para a política pública,
para as cidades no sentido de dotar es-
ses espaços de objetos inteligentes, de vão instituir um urbanismo baseados em
sensores, de tratamento inteligente de dados e inteligência artificial.
dados que fizessem com que a dinâmi-
ca, o fluxo das pessoas e das coisas no
espaço urbano se tornassem mais res- P – E qual a diferença, ou relação,
ponsivo, que a ação política se tornasse entre os termos “cibercidade”, “ci-
mais responsiva em relação a esses da- dade digital” e “cidade inteligente”?
dos. Se não tínhamos antes essa possi-
bilidade de monitorar deslocamento de AL – Essa ideia de cibercidade con-
pessoas, de informação, etc., hoje nós tinua. A ideia de “ciber” caiu um pouco
temos isso. em desuso, mas acho que o princípio
continua, e talvez até mais forte, porque
Nós podemos colocar sensores em vários o princípio da cibernética é controle e
lugares para medir, em tempo real, como pilotagem. O termo “ciber” vem daí. E a
é que a cidade reage a, por exemplo, en- gente tá hoje com uma cidade ainda mais
garrafamentos, ruídos, limpeza urbana, controlada e pilotada pelos dados, pelos
e essa própria dinâmica vai alterar a algoritmos e, logo, por essas tecnologias.
forma como as pessoas vão lidar com o Então, a evolução dessa discussão sobre
espaço urbano. Hoje temos essa lente de cibercidades, ou de cidades digitais, vai
ação sobre o espaço urbano que é o te- se dar hoje no que se chama de cidades in-
lefone celular: você vai saber o percurso teligentes. Quando a gente fala de cidade
que você vai fazer de carro, o ônibus que digital, a gente falava o digital acoplado
você vai pegar, usar um aplicativo para diretamente à cidade, então a gente en-
chamar um carro para se deslocar, mas, tendia como tecnologia. Mas, quando a
também, para os poderes públicos que gente fala “inteligente”, já remete a uma

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outra coisa: “Peraí, será que isso é inte- P – Em seus trabalhos, o senhor
ligente mesmo?”, “De que inteligência fala muito das cidades inteligen-
nós estamos falando?”. O “smart” aqui tes terem a ver com uma questão
no “Smart Cities” são tecnologias sensí- de adaptabilidade em relação ao
veis digitais. Isso não significa necessa- uso que se faz da própria cidade.
riamente que estamos caminhando para Em que medida o senhor avalia que
uma cidade mais inteligente. Isso seria os governos – nas esferas munici-
uma discussão importante a ser feita. pal, estadual e federal – têm real-
Toda cidade é inteligente na sua forma de mente feito uso desses dados para
existir, mas uma cidade inteligente não melhorar as cidades e deixá-las
necessariamente precisa usar esses arte- mais adaptáveis?
fatos para desenvolver a sua inteligência.
Talvez, seja mais inteligente uma cidade AL – Não tem uma receita pronta para
em que as pessoas consigam se deslocar ser utilizada em todos os lugares. Eu pas-
de maneira mais autônoma e que gere sei um ano na Irlanda e fui trabalhar com
menos pegadas de carbono do que com o Rob Kitchin (professor e pesquisador
carros que dirigem sozinhos, por exem- na Maynooth University), que é um dos
plo. Por um lado, o termo vincula a essas maiores especialistas mundiais nessa
tecnologias que são inteligentes porque discussão. Tinha uma experiência muito
captam dados em tempo real e nos per- interessante, em Dublin, que era o uso
mitem agir no fluxo do deslocamento tripartite de empresas públicas, das pre-
de pessoas e dados. Por outro lado, nos feituras (há mais de uma responsável por
permite questionar de que cidade inteli- Dublin) e das universidades para produ-
gente nós estamos falando, o que é uma zir experiências inteligentes na cidade.
cidade inteligente, qual o futuro, o que Nós tínhamos lixeiras que sabem quando
queremos e outras questões. estão cheias e indicam quando devem ser
coletadas para ter uma maior racionaliza-
ção do transporte. Você tem sensores em
prédios públicos que medem o grau de
ruído e de poluição da cidade, bicicletas
públicas, aplicativos para todo o deslo-
camento de ônibus, smart cards para pe-
gar o trem e os ônibus, e uma ação, tam-
Toda cidade é bém, de vigilância e de controle. Essas
inteligente na sua são tecnologias de vigilância no sentido
mais neutro da palavra: eu estou vigiando
forma de existir, mas como está o trânsito pra poder intervir,
uma cidade inteligente quantas pessoas tem no ponto de ônibus
para poder colocar mais ônibus naquele
não necessariamente ponto, o ruído para ver se consigo dimi-
precisa usar esses nuir. Por isso que a Shoshana Zuboff (pro-
artefatos para fessora aposentada da Harvard Business
School, autora de A Era do Capitalismo
desenvolver a de Vigilância - Editora Intrínseca, 2021.
sua inteligência. 800pg) vai chamar esse capitalismo de
dados como um capitalismo de vigilância,
que é colher dados para produzir ações.

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P – E como isso vem ocorrendo


no Brasil?

AL – A vigilância dos dados é uma


vigilância que pode servir para algo po- A vigilância dos dados
licialesco e de redução das ações mais é uma vigilância que
democráticas, mas também para uma in- pode servir para
tervenção urbana que venha a melhorar
a vida das pessoas. Eu acho que em vá- algo policialesco e
rias cidades do Brasil nós temos muitas de redução das ações
experiências que vão tentar melhorar o
fluxo de pessoas e de coisas. Semáforos
mais democráticas,
inteligentes, sensores em encostas para mas também para
determinar se com uma chuva há peri- uma intervenção urbana
go de deslizamento, bicicletas públicas,
aplicativos para transporte, câmeras de que venha a melhorar
vigilância inteligentes, reconhecimento a vida das pessoas.
facial, que é um problemão hoje. Todas
essas ações têm sido mais para criar
uma cidade de vigilância no sentido de
controle do que propriamente para algo
mais convivial. Talvez seja uma preocu-
pação inicial, de montar uma estrutura
que dê conta do trânsito, da violência, da de estacionamento. Aqui, se você for
limpeza, mas me parece ainda pouco in- estacionar seu carro, às vezes tem uma
teligente no sentido de estar bem acopla- pessoa lá com a cartelinha que te ven-
da à dinâmica sociocultural do espaço. É de, mas, se essa pessoa não estiver lá e
como se ela fosse aplicada independente você for embora, você toma multa. Você
do espaço, como se a mesma solução va- é obrigado a ter um aplicativo para pagar
lesse para todas. Me parece que há pouca mesmo se não tiver ninguém ali com a
inteligência ainda colocada nessa dimen- cartelinha. Então, você é obrigado a ter
são. E pouco uso dos dados ainda. Os go- um telefone celular, uma conta de inter-
vernos não usam os dados de maneira net, o aplicativo baixado, crédito no apli-
inteligente, no sentido de colher muitos cativo e pagar. São várias empresas que
dados que permitam uma ação mais efi- ganharam a licitação com a prefeitura e
caz. Esse processo de dataficação, que é nós fizemos um estudo do que, na litera-
retirar desses dados para produzir inte- tura, se chama de “dark partterns”, que a
ligência, ainda me parece pouco eficaz. gente traduziu como “interfaces malicio-
Mas há sempre um perigo aí de invasão sas”. São interfaces que pegam os dados
de privacidade, de segurança, de hacke- das pessoas que não necessariamente
rs invadirem. Quem é que controla isso? são importantes para o serviço. Ora, se
Quem faz esse sistema funcionar? eu sou obrigado a usar esse serviço, que
proteção a prefeitura utiliza para prote-
ger meus dados dessas empresas? Para
P – Poderia dar um exemplo onde vão os meus dados? O que as em-
desses perigos de segurança? presas fazem com isso? Hoje nós temos a
Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD),
AL – Nós desenvolvemos um artigo que tende a nos proteger um pouco,
aqui em Salvador sobre os aplicativos mas ainda está começando. Essa é uma

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questão central, que também precisa o meu trabalho hoje, com a pandemia,
ser discutida. Que dados são colhidos? passa pelas plataformas: eu dou aula,
Para onde vão os dados? Quem protege? oriento, faço conferência, tudo pelas pla-
Quem é essa instância que regula isso? taformas. Então, essa plataformização
Essas questões eu considero centrais na passa a ser a estrutura da sociedade con-
discussão sobre as cidades inteligentes temporânea. Os governos precisam lidar
hoje: o uso e a segurança dos dados. com isso também, ou desenvolver plata-
formas próprias. Por exemplo, agora tem
essa plataforma do Governo Federal em
P – A gente viu na pandemia a que nós, servidores públicos federais,
associação entre entes públicos temos que passar. O meu colega Sérgio
e aplicativos da Apple, ou com a Amadeu (doutor em Ciência Política,
própria Apple, ou com o Google. professor da Universidade Federal do
Lembro aqui do economista brasi- ABC, referência em redes digitais, pri-
leiro Ladislau Dowbor, em A Era do vacidade e tecnologia da informação) es-
Capital Improdutivo, falando dessas tava dizendo que esses dados vão todos
grandes empresas multinacionais para os Estados Unidos. Que tipo de pro-
voando acima dos radares dos go- teção tem nesse tipo de coisa? Vai passar
vernos. E a gente tem aqui os go- por servidores nos Estados Unidos, mas
vernos entregando os nossos dados são dados dos funcionários públicos. Eu,
e buscando novos dados com essas para saber meu contracheque, minhas
empresas. Como o senhor enxerga férias, e tal, tenho que entrar nesse apli-
essa associação dos governos com cativo. É compulsório. Não é algo que eu
essas grandes empresas do Big Five escolho. Então, como é feito esse tipo de
(Apple, Google, Amazon, Facebook ação? Como os governos se comportam?
e Microsoft), que têm quase um mo- Bom, eu acho que a gente precisa ter
nopólio do nosso uso da internet?

AL – É isso que a gente chama de so-


ciedade de plataforma. É muito difícil
você achar alguém hoje que não lide ou
com Google, Apple, Microsoft, Facebook
ou Amazon no seu dia a dia. Que não Todo o meu trabalho
passe por pelo menos uma dessas gran- hoje, com a pandemia,
des empresas, que são o Big Five – isso
no ocidente, porque nós temos o “Big
passa pelas plataformas:
Five” na China, Tecent, Baidu, Alibaba eu dou aula, oriento,
(ByteDance, Meituan e DidiXuxing), faço conferência, tudo
que são também donas de grandes pla-
taformas, reguladas de forma diferente.
pelas plataformas.
Enquanto na China é mais estatal, aqui Essa plataformização
é pelo mercado. Essas cinco empresas passa a ser a estrutura
dominam as nossas ações. O trabalho de
plataforma, hoje, é um trabalho espraia- da sociedade
do para todas as áreas. Nós estamos aqui contemporânea.
trabalhando mediados por uma plata-
forma (Zoom). Embora eu não seja como
o motorista da Uber, que precisa estar
diretamente ligado à plataforma, todo

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soas não sejam obrigadas a aceitar uma


nova carta de regulação da privacidade e
nós, no Brasil, vamos ter que aceitar. Ou
a gente aceita ou você sai fora do aplicati-
vo. Isso seria contra a LGPD. Ele poderia
perguntar “você quer fornecer seus da-
dos?” e se você disser “não”, o aplicativo
poderia dizer “ok, pode continuar a usar”.
Mas, não. Está banindo os usuários.
Grande parte, hoje, das relações sociais,
da esfera pública, passa pelo Whatsapp,
o que talvez seja muito perigoso. E esse
perigo está migrando pro Telegram, que
não tem nem empresa representante no
Brasil. E, hoje, as fake news são um fe-
nômeno dessas redes. Porque essas re-
des não têm um algoritmo que vá filtrar.
Quando você vai para as redes sociais,
hoje você tem Facebook e Twitter que dão
alertas: “Você quer mesmo mandar sem
ler?” ou “Olha, isso aqui é sobre Covid,
você não quer ler isso?”. Isso surgiu de-
marcos legais que limitem esse tipo de pois de muitos embates. Ou seja, essas
coisa. A LGPD é um marco importante empresas precisam ter alguma regulação
hoje no Brasil, foi tardio, mas finalmente pública porque elas vão mediar a conver-
chegou. Tem uma autoridade que está se sação pública, a política hoje. Não se tra-
constituindo e que vai controlar isso aí. ta mais da esfera midiática clássica, nem
E precisamos ficar muito atentos, porque da rua. Se trata dessas redes aí e elas pre-
efetivamente essa ação passa sempre por cisam ser reguladas. É um debate muito
essas grandes plataformas e a força, no importante, está em aberto, e como é que
Brasil, de você desenvolver plataformas os governos vão se posicionar em relação
próprias para essas ações é muito limita- a essas plataformas, não só para esses
da ainda. É muito complicado. projetos mais específicos de cidades inte-
ligentes, mas para uma dimensão políti-
ca mais ampla.
P – O senhor poderia dar outros
exemplos em que é preciso pensar
políticas públicas nesse sentido? P – No seu livro mais recente (A
Tecnologia é um Vírus: Pandemia
AL – Por exemplo: o debate público e Cultura Digital) o senhor usa o
nas redes sociais, o que vamos fazer? Vai termo “cosmopolítica” para falar
haver uma regulação do governo em rela- sobre a necessidade de criarmos
ção às redes sociais ou não? O Whatsapp “uma consciência comum sobre o
agora está mudando a sua política de pri- enfrentamento de temas que nos
vacidade. Muda aqui, mas não mudou afetam globalmente, mas com as
na Europa, porque lá não foi permitido colorações locais”. Mas frente às
em razão da lei de privacidade. Então, bolhas de filtro criadas nas redes
o Facebook (dono do Whatsapp) fez um sociais e ao viés da confirmação,
acordo com a Europa para que as pes- como a cidade se transforma?

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AL – Acho que tem uma permeabilida- artificial. Só existe inteligência artificial,


de muito grande. O termo virtual voltou, porque a nossa inteligência não é fruto de
com isso de “vamos fazer uma aula virtu- um nada que emerge, mas é fruto daqui-
al” ou “uma reunião virtual”, uma coisa lo que nós absorvemos e da forma como
tão anos 1990. É cringe agora falar virtual nós absorvemos. Então, a literatura e o
(risos). Mas o termo voltou. E não há uma jornalismo são formas que nós temos de
diferença (entre o real e o virtual). O que a ampliar a nossa experiência. Quando eu
gente faz nessas plataformas, essas ações leio um livro são experiências que eu vivo
estão totalmente vinculadas e balizam a pelos outros e que eu não vivo diretamen-
nossa ação. Não só o que nós vamos fazer te, porque a nossa experiência de primei-
na rua, como nós vamos nos deslocar, que ra mão é mais limitada. Essas mídias am-
tipo de informação buscamos, que tipo de pliam essas experiências. As plataformas,
ação fazemos, isso tudo hoje está muito as mídias sociais, o jornalismo, as artes,
interligado com esse processo de datafi- a literatura, elas são formas que balizam
cação, tendo no smartphone essa lente de a nossa entrada no mundo e a maneira
uma relação direta. Entender esse proces- como a gente vai viver a cidade.
so é fundamental: a forma como nós nos
relacionamos, agimos no espaço urbano,
tem muito a ver com a maneira como nós P – A bolha da rede social são as
nos deslocamos também pelo espaço ele- bolhas da cidade também?
trônico, pelo ciberespaço, e como os dados
são produzidos, consumidos. Não há mais AL – É. E explode. Na pesquisa a gente
essa separação. Eu acho que essa relação mostra que o algoritmo quer te agradar.
é direta e é uma espécie de curto-circuito. Por isso a ideia da bolha. É a mesma coi-
Isso não tem muita diferença da relação sa que quando você vai num restaurante
com as mídias, na realidade. As mídias e dá uma boa gorjeta para o garçom. Da
são, da escrita até a internet, formas de próxima vez que você for lá, ele vai querer
driblar constrangimentos do espaço e do te agradar, ele vai te dar uma sobremesa
tempo e formas de criar a nossa media- que você já gostou. A mídia social funcio-
ção com o mundo. A nossa inteligência é na um pouco assim. Mas o imponderável
tá sempre aí. Pesquisas têm mostrado que
mesmo a tentativa de te manter na bolha,
para te agradar, para que você siga dan-
do visualização, ela não consegue manter
a pessoa presa na bolha o tempo inteiro.
Outras coisas aparecem. O algoritmo não
Não há uma diferença é tão perfeito assim. Você consegue esca-
(entre o real e o virtual). par. Mas, o rompimento da bolha é fruto
também dessa experiência mais caótica
O que a gente faz nossa. Por mais que essa curadoria tente
nessas plataformas, acontecer, nunca é total. De alguma for-
essas ações estão ma, ela vai balizar nossa ação no mundo
e no espaço urbano, e a visão que nós te-
totalmente vinculadas e mos do espaço urbano. A forma de des-
balizam a nossa ação locamento é um exemplo. Agora, se você
precisa ir de um ponto A a um ponto B,
com o tempo, isso faz com que você não
se preocupe mais em saber por onde você
está passando. Antes você precisava ter

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esse conhecimento porque senão você


não chegaria. Hoje, eu não preciso mais.
Eu quero colocar no GPS “como chegar
de A a B” e não quero me preocupar com
o que está ao redor, já que a setinha vai Eu quero colocar
me levar para o meu lugar. Então, isso vai no GPS “como
mudando a maneira como nós vamos agir
sobre o mundo.
chegar de A a B” e
não quero me
preocupar com o que
P – O senhor falou sobre o ca-
pitalismo de vigilância também
está ao redor, já que
no seu último livro e, enquanto a setinha vai me levar
eu lia, me lembrei de um outro li- para o meu lugar.
vro, mais antigo, do Dave Eggers
chamado O Círculo, uma distopia Então, isso vai
que fala sobre uma sociedade em mudando a maneira
que uma única empresa tem aces- como nós vamos agir
so a todos os nossos dados, então
os governos permitem que ela co- sobre o mundo.
loque câmeras nos locais públicos.
Também me lembrei muito do caso
de Cingapura, onde houve dimi-
nuição da violência e de lixo nas
ruas, tudo baseado em alto grau de
vigilância. A minha pergunta, que sistema para dizer o que vai para cada
é um pouco cretina, é sobre essa pessoa, que vai moldar um pouco as nos-
questão distópica: estamos abrin- sas noções de mundo. Já é uma tendên-
do mão de privacidade em nome da cia nossa mesmo, não acho que a gente
segurança? As cidades vão abraçar busque a diferença, a gente busca um cer-
isso? Até que ponto isso pode che- to conforto. Quando você entra em uma
gar, na sua visão? livraria, você vai buscar livros que você
está acostumado. Mas hoje você corre
AL – Esse é o problema central hoje o risco de cada vez mais se fechar pela
da cibercultura, da cultura digital. Eu lógica da plataforma. E tudo é baseado
vivi isso no começo da cultura digital, em nos nossos dados, o que nós fazemos e
1990 ou 1991. Eu estava na França para como nós fazemos. O que era da cidade
estudar isso (Lemos fez doutorado em so- digital, da digitalização – transformar
ciologia na Université Paris Descartes, algo físico em algo eletrônico, um livro
Paris V, entre 1991 e 1995) e a internet em ebook por exemplo, – agora, na cida-
estava começando, na França estava sur- de inteligente, é dataficação, que é saber
gindo ainda. E a gente via um potencial por onde você leu, o que você marcou,
libertador e emancipador gigantesco, o onde você parou no livro. Essa ação vai
Pierre Lévy (filósofo e sociólogo francês, instruir a empresa e dizer “olha, aquele
referência mundial no tema) fala de in- livro a maioria das pessoas para na meta-
teligência coletiva, conectiva. As pessoas de”, isso pode instruir o escritor “olha, as
entravam em fóruns anônimos, as coisas pessoas param de ler seu livro na metade,
aconteciam em ordem cronológica. Hoje talvez você precise melhorar a poética da
a gente tem esse algoritmo no meio do sua escrita...”. Isso tudo vai gerando uma

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Foto: Labfoto-Facom/UFBA
alta vigilância sobre as nossas ações que
é sempre “para o bem”. Mas é isso que
vai gerar o problema, porque esses dados
agregados vão gerar ações proativas so-
bre mim mesmo a posteriori. Vai voltar
contra mim mesmo. Como é que nós va-
mos resolver esse problema de uma co-
leta indiscriminada de dados sobre todas
as coisas? Tem um autor sobre o qual fiz
uma palestra essa semana para dizer que
a ideia de uma vida privada é uma coisa
meio ilusória, a gente usa isso mais no sis-
tema econômico, jurídico, para dizer “os
meus dados”. Mas, na realidade, os dados
não são meus. Na realidade, são eles que
me constituem. Se não tiver o censo do
IBGE, que Brasil existe? Nenhum. As pes-
soas que não têm documento, como elas
vão pegar o auxílio emergencial na Caixa
Econômica Federal? Não pegam. Tem que AL – Não sei como sair disso a não ser
ter um CPF. Essas plataformas não que- pela ação política, no sentido de fazer o
rem tanto o meu dado nominal, querem debate e criar ações que bloqueiem isso.
o dado agregado, que vai dizer “essa pes- Hoje se fala, por exemplo, de privacida-
soa que se comporta assim, ele vai consu- de pelo design. Se eu for comprar alguma
mir isso aqui, então vamos bombardeá-la coisa, por que eu tenho que preencher um
com esse tipo de informação”. Essa coisa formulário e botar meu CPF? Por que eu
não existia antes. Essas câmeras são para tenho que fazer isso? Não, você não tem
quê? Para prevenir assalto, sempre para que fazer, mas se eu não faço isso a far-
proteger, mas, na realidade, isso é pro- mácia não vai me dar desconto. Então,
dutor de vários problemas. Inclusive, há as pessoas vendem um pouco o seu dado
vários países e estados, por exemplo, nos ali. Eu tenho que ter um sistema que ten-
Estados Unidos, banindo câmeras de re- te travar isso. Um cartão inteligente de
conhecimento facial. Há todo um movi- trânsito que tem todos os meus dados.
mento no Brasil hoje de pressionar para Por que ele tem que ter todos os meus da-
que também aconteça esse banimento. dos? Essa é uma ação. Outra ação é jurídi-
Porque há muitos erros e esses erros são ca: como eu protejo isso? E técnica. Essas
sempre contra os de sempre, os pobres, plataformas, elas precisam ter respon-
negros, mulheres, etc. Esse eu acho que sabilidade nisso também, acho que isso
é o problema central: como é que nós va- está acontecendo já, depois de pressão,
mos desenvolver uma cidade inteligente, que era o que falávamos antes. Essas são
que parta do princípio que ser inteligente ações técnicas, políticas, jurídicas, educa-
significa captar o máximo possível de da- cionais, o papel da mídia, o que estamos
dos sem violar a privacidade e sem gerar fazendo aqui, o nosso papel na universi-
uma sociedade distópica, onde tudo é vi- dade, no ensino, na pesquisa, chamar a
giado e controlado? atenção para isso. E debater. Porque não
acho que vá haver um retrocesso para
chegar a tecnologias que não funcionem
P – E como o senhor acha que a mais na base da vigilância de dados. Tem
gente resolve isso? que haver proteções.

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P – E o senhor enxerga vontade coisa que se pensa em fazer para dizer que
política para fazer isso, em algum está tentando fazer algo é colocar uma câ-
nível? Ou mesmo no setor privado? mera. Ou monitorar os dados, ou rastrear
o telefone celular. Isso gera uma ação mais
AL – Eu acho que as empresas sentiram simplória, mais fácil e que eles são mesmo
a pressão e começaram a reagir. Às vezes compelidos a fazer. Porque, se não fize-
parece uma gourmetização desse proces- rem, vão dizer que não está fazendo nada.
so, mas já é alguma coisa. Por exemplo, Os ônibus são rastreados por satélite aqui
os bancos fazendo propagandas, como o em Salvador, têm câmeras que não fun-
Itaú dizendo “privacidade com a gente é cionam, agora querem fazer funcionar.
tudo”, isso já é um reflexo de uma pres- Muitos dizem que essa cidade inteligen-
são. Ou mesmo a Bia, do Bradesco, dizen- te é uma cidade da vigilância, no sentido
do “olha, machismo aqui comigo não. Não punitivo mesmo. Menos para criar uma
vou mais responder a esse tipo de agres- cidade resiliente, ambientalmente amigá-
são porque eu sou uma inteligência artifi- vel, convivial e mais para controlar, vigiar
cial com uma voz feminina”. Claro, tem aí e punir. Uma estrutura foucaultiana, um
todo um marketing, toda uma gourmeti- panóptico eletrônico para controlar, para
zação, mas é uma reação. As redes sociais vigiar, não mais pelo confinamento, que
agirem no sentido de colocar alertas ou ti- deixa se mover, mas controla todos os da-
rar algo que é fake também é uma reação. dos. Não é efetivamente uma cidade que
A Apple tem uma publicidade agora na te- gere uma vida melhor para as pessoas.
levisão mostrando que retirou a obrigato- E como a gente gera isso? Eu acho que a
riedade de compartilhar dados, você pode participação pública é fundamental. Em
agora não deixar que os sites e aplicativos Dublin isso é muito legal: tem a prefeitu-
te rastreiem. E a publicidade é muito inte- ra, a participação pública, as empresas e
ressante, as pessoas vão seguindo o per- as universidades trabalhando juntas para
sonagem e daqui a pouco ele para e co- debater esses projetos. Na maioria das ve-
meça a deletar, porque são ali os cookies zes, aqui, são processos que saem de um
seguindo a pessoa o tempo inteiro e mo- gabinete de uma prefeitura. Então, seria
nitorando o que a gente faz. Essa é uma fundamental ampliar o debate público so-
ação importante também. O Marco Civil, bre esse capitalismo de vigilância e sobre
a LGPD, no Brasil, são marcos importan- como podemos transformar um pouco
tes. Mas tem muito a ser feito ainda. E os esse tipo de ação no espaço urbano.
desafios são muito grandes porque nós
vivemos num país de extrema violência.
Aqui em Salvador nós temos quatro ou
cinco assaltos a ônibus diários. Qual a so-
lução do prefeito? Colocar câmera de vi-
gilância. Bom, a câmera de vigilância não
vai funcionar, vai gerar viés, mas o que o
Há muitos erros e
cara vai fazer? Tem que fazer alguma coi- esses erros são
sa. Vai colocar um policial dentro de cada sempre contra
ônibus? Vai ser pior ainda porque o cara
vai sacar a arma, tiroteio, vai matar as os de sempre, os pobres,
pessoas. Então, a primeira coisa que eles negros, mulheres.
pensam em fazer é colocar uma câmera de
vigilância. E isso é fruto de uma estrutura
muito maior que não vai se resolver com
uma câmera de vigilância. Mas a primeira

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A PROCURA DA
ALMA DAS CIDADES
Pesquisador da história de cidades ao redor do
mundo, Joel Kotkin projeta núcleos urbanos menos
densos em nome de maior qualidade de vida

Tiago Medina e Bernardo Bercht


As cidades perderam sua alma.” É o que enxerga hoje o geógra-
fo norte-americano Joel Kotkin. Diretor-executivo do Instituto
de Reforma Urbana de Houston e professor da Universidade de
Chapman, na Califórnia, o geógrafo norte-americano é pesquisador
do desenvolvimento dos núcleos urbanos ao longo da história e autor
de livros sobre o tema, incluindo “A Cidade: Uma História Global” e,
mais recentemente “The Coming of Neo-Feudalism: A Warning to the
Global Middle Class” (ainda sem tradução para o português). Kotkin
acredita que a pandemia irá acelerar mais um novo processo de trans-
formação das cidades em um futuro próximo.

“A maior criação da humanidade foi


suas cidades. Elas representam a ex-
trema realização de nossa imaginação
enquanto espécie, atestando nossa ca-
pacidade de reformar o ambiente natu-
ral das maneiras mais profundas e du-
radouras”, afirma o professor, no livro
“A Cidade”, que passa o panorama da
formação, auge e declínio de diversas
metrópoles ao redor do globo. Desde a
Mesopotâmia até os dias atuais, passan-
do, claro, por Roma, a “primeira mega-
lópole” da humanidade, o autor traça
semelhanças e diferenças desses lugares
em diferentes períodos. Para ele, tanto
no Ocidente quanto no Oriente, os nú-
Foto: Reprodução

cleos se formam a partir de três pilares:


espiritual, político e econômico.

Em entrevista à Parêntese, Kotkin


disse ver a época atual como um ponto

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lugares são iguais”, exemplificou o pro-


fessor. “Às vezes é bem entediante.”

Não raro as semelhanças de diferen-


O que fizemos nos tes locais são causadas por puros mo-
últimos 20 anos é dismos. E esse tempo dedicado à bus-
ca pelo “cool” terá de fazer com que as
empurrar urbanismo cidades se reinventem para se reen-
muito denso contrarem. A questão é que esse mo-
vimento ocorrerá em meio a um êxodo
e terminamos de grandes centros, algo que já vinha
com cidades que acontecendo antes mesmo da Covid-19.
são bifurcadas O motivo, além da recente difusão do
home office, é porque as cidades preci-
economicamente. sam ser mais amigáveis: “A gente não
fez as cidades boas para as famílias. A
educação é ruim, a infraestrutura não é
ideal”, criticou o geógrafo, que apontou:
“Há políticas que afastam os negócios
empresariais do núcleo urbano”.
de divisão. Aliás, mais um dentre tan-
tos na história. Agora ocorre tanto pela O movimento de espraiamento ali-
pandemia quanto pelas desigualdades via a densidade. “Estávamos indo numa
sociais, que já vinham se acentuando direção assim, mas agora fomos mais
mesmo antes do coronavírus se espa- rápido. Historicamente, as pandemias
lhar mundo afora. “O que fizemos nos transformam as cidades”, contou ele,
últimos 20 anos é empurrar urbanismo lembrando que a gripe espanhola oca-
muito denso e terminamos com cidades sionou uma diminuição de cerca de 800
que são bifurcadas economicamente. mil pessoas em Nova York. “E isso foi
Temos enormes diferenças de classes positivo, pois era um dos lugares mais
entres os locais nas cidades”, afirmou. densamente populosos do mundo, com
vários problemas.”
Tal situação levou ao aumento de
densidade de muitos locais, o que não é Joel Kotkin prevê uma acomodação
necessariamente positivo: “A atividade do mercado de trabalho a partir do con-
econômica tinha essa ideia de acontecer trole da pandemia. A possibilidade de
em núcleos densos da cidade. Agora não intercalar o trabalho entre casa e escri-
é mais verdade. As cidades vão ter que tório, na opinião dele, será mais difun-
se reinventar e voltar para o básico”. dida do que antes, mas talvez não tanto
quanto neste momento. “Não teremos
O excesso também acabou por ter 40% das pessoas trabalhando de casa.
um efeito colateral de tirar as singula- Antes eram 6%, mas acho que teremos
ridades de diversos lugares. “Quando se 25% de trabalho em home office. E pro-
está no centro urbano, é difícil encon- vavelmente um modo híbrido, com es-
trar coisas que são únicas”, lamentou. critórios virtuais e reais”, projetou.
“Singapura é uma grande cidade, im-
pressionante. Mas quando você está lá, O novo cenário do ambiente de tra-
em qualquer quadra, você poderia estar balho impactará diretamente na rotina
em qualquer lugar do mundo. Todos os das grandes cidades: “Eu vejo o futu-

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ro dos centros urbanos como focos de ço de 2020. Vai ser necessário pensar
convívio e reunião. São Francisco, Nova a urbanização – e o que se quer para
York, Chicago sempre serão grandes ci- o futuro: “Temos que refletir e decidir
dades, mas não vão ser tão importantes como encolher a planta urbana para
economicamente e não vão crescer tan- que fique mais humana”.
to demograficamente”.
A cidade, afinal, deve ser feita para
Mas a volta ao cotidiano que era tido as pessoas. Em seu livro, ele defende:
como normal antes da pandemia tam- “Muito mais importante para o futuro
bém precisará de ajustes. “As pessoas das cidades que construir novos edi-
passaram 18 meses em casa, não vão fícios será o valor que as pessoas atri-
querer ir ao escritório, perder uma hora buem à experiência urbana. “No fim,
todos os dias ou mais”, alertou. “Elas uma grande cidade depende das coi-
não terão problema em encontros pon- sas que suscitam em seus cidadãos um
tuais para trabalhar, mas vão querer apego peculiar e forte”, acrescentou
manter suas vidas em casa também”, ele, citando o sociólogo Robert Ezra
acrescentou ele. “Acho que temos que Park: “A cidade é um estado de espíri-
voltar a ter lugares onde a gente possa to, um corpo de costumes, e de atitudes
ter intimidade, se sentir em comunida- e sentimentos não organizados”.
de. Precisa reconceber a vida urbana.
Forçar as pessoas para dentro de me-
trôs cinco dias por semana não vai fa- VALORIZAÇÃO DA
zer isso. Passa da crise da Covid para a ARQUITETURA DO
crise da comunidade.” CENTRO
Logo, não bastará “voltar ao normal” Joel Kotkin acredita numa nova par-
e retomar a vida tal qual era até mar- ticipação dos centros na vida das cida-
des. “Terão de se reinventar”, afirmou.
“Especialmente onde existe arquite-
tura tradicional.” Por aqui, a gestão
Sebastião Melo reitera a disposição
em revitalizar o Centro Histórico de
Precisa reconceber Porto Alegre, acenando com reformas
a vida urbana. de prédios da região até uma eventual
derrubada do sempre polêmico Muro
Forçar as pessoas da Mauá.
para dentro de metrôs
cinco dias por semana Mas o escritor alerta: a revitalização
de centros não passa necessariamente
não vai fazer isso. por arranjos futuristas. Bem pelo con-
Passa da crise trário. Kotkin citou um exemplo orien-
da Covid para a crise tal para explicar seu pensamento: “Na
China, tudo é muito moderno, mas é
da comunidade. feio, chato”, opinou. “É mais interes-
sante em pequenos bolsões de arqui-
tetura, até com influências europeias.
São zonas que estão florescendo.”

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nossos mortos

tudo, como se isso não bastasse, a filoso-


AS CIDADES fia quis discutir e afirmar que a história
não passava de ficção. Tempos duros,
IMAGINARIAS aqueles, hein! Só os fortes resistiram.
Muitos foram para a direita, essa sim
DE SANDRA com uma história centenária sem muito
risco; outros entregaram-se ao irracio-
PESAVENTO nalismo de práticas alternativas; outros
enlouqueceram; alguns e algumas ainda
estão perdidos por aí.
Zita Possamai
Mas ninguém pode negar que a História
está mais forte do que nunca. Quem ousa-


Está é a Sandra dos anos 90.” Com ria, nesse obscuro 2021, dizer que a histó-
esta frase, a professora, historia- ria não passa de ficção, quando o negacio-
dora e pesquisadora de sobreno- nismo já entrou pela porta e os projetos de
me tapuia Jatahy e italiano Pesavento, retorno a mais recente Ditadura brasileira
recebido do marido Roberto, encer- tomam assento em nossa mesa? Agora, é
rava uma de suas tantas palestras, na fácil. Mas quem foi capaz de não só resis-
sala Redenção, no Campus Central da tir mas se reinventar naqueles anos 1990,
Universidade Federal do Rio Grande do última década do século? Sim, ela mesma:
Sul. Meus olhos de estudante curiosa Sandra Pesavento. Com a nova perspec-
contemplavam a metamorfose da histo- tiva teórica, já vigente aqui e em outras
riadora social, com consolidada produ- praias, vinham também novas problemá-
ção intelectual calcada no materialismo ticas, novos objetos, novas temáticas, no-
histórico, que reorientava suas investi- vas abordagens. Nesse leque de possibili-
gações para a perspectiva da denomina- dades, Sandra lançou sua mirada para a
da Nova História Cultural. cidade e, ao lado de outros colegas impor-
tantes, reconfigurou os estudos urbanos

Naqueles anos, assistíamos atônitos


à queda do Muro de Berlim, à derrocada
dos regimes ditos socialistas, aos prog-
nósticos do Fim da História e a uma onda
de pessimismo envolvia especialmente a Sandra lançou sua
esquerda que nos corredores acadêmicos
discutia o giro linguístico, Foucault, à cri-
mirada para a cidade
se das metanarrativas e dos paradigmas e, ao lado de outros
teleológicas da modernidade. Marx ruía e colegas importantes,
com ele a possibilidade de uma teoria dar
conta da realidade social. O real, aquele reconfigurou os estudos
mesmo que pensávamos encontrar atrás urbanos no Brasil.
das cortinas ideológicas da luta de clas-
ses, também se perdera numa quimera,
na qual as representações eram tudo que
restava para apreender. No meio disso

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no Brasil, até então, praticamente apenas


investigados por urbanistas, geógrafos,
sociólogos, entre outros.

Porto Alegre se deu bem nessa. A ci-


dade passou a ser esquadrinhada por
Sandra e por uma legião de seguidores,
entre bolsistas, orientandos, orientan-
das e pesquisadores inspirados pelas
exposições, livros e escritos produzidos
a partir desse período. Não que Porto
Alegre não tivesse sido pesquisada e que
diversos autores não tenham se dedica-
do à história de Porto Alegre antes de
Sandra. É sabido que ninguém inventa
a roda e todo pesquisador parte do co-
nhecimento acumulado por aqueles que
vieram antes. No caso da capital dos
gaúchos, urbanistas ou historiadores
deixaram relevantes contribuições para
a compreensão da chamada “evolução
urbana” e reler esses trabalhos pode ser
interessante para observar as mudanças
proporcionadas pela História Cultural
e por Sandra Pesavento, sem dúvida a
maior incentivadora de estudos sobre
Porto Alegre, a partir dos anos 1990.

Mas o que Sandra Pesavento trouxe de


novidade para os estudos sobre a cidade

É sabido que
ninguém inventa
a roda e todo
pesquisador parte
do conhecimento
acumulado por aqueles
que vieram antes.

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e, especialmente sobre a história, ou his-


tórias no plural, de Porto Alegre? Eis aí
um belo objeto de investigação historio-
gráfica a exigir maior fôlego daqueles que
desejarem se aventurar nos livros e nos Para Sandra,
escritos da autora, muitos publicados e havia uma cidade
disponibilizados gratuitamente online
( ), graças à generosidade da família,
para além do
ao Instituto Histórico e Geográfico do espaço urbano.
Rio Grande do Sul e às abnegadas guar-
diãs da memória de Sandra. Aqui ousa-
rei apontar algumas pistas, limitadas
pelo espaço precioso dessa revista.

A pesquisadora investiu seus estudos do urbano, especialmente na literatura e


de pós-doutoramento na França, espe- nos escritos de cronistas, poetas, escrito-
cialmente na capital Paris, onde teve con- res que inseriram Porto Alegre nas suas
tato com autores relevantes para as suas narrativas. Nessas investidas, a pesqui-
abordagens, a exemplo de Roger Chartier, sadora ousou trabalhar com documentos
que trouxe a Porto Alegre para desfrutar pouco usuais para o ofício do historiador
do calor da Usina do Gasômetro. Outro e nunca antes mencionados na historio-
autor importante para suas pesquisas foi grafia de Porto Alegre, mas que permiti-
Marcel Roncayolo, a partir do qual a au- ram perscrutar as sensibilidades das pes-
tora propôs investigar a cidade a partir de soas do passado, a exemplo de Achylles
seus leitores oficiais e leitores especiais. Porto Alegre e outros escritores.
Os primeiros seriam aqueles sujeitos que
produzem a cidade a partir das instâncias Nessa renovação dos documentos, ter-
administrativas e do poder, particular- mo mais apropriado que fontes, os jornais
mente objeto privilegiado de uma deter- também tiveram lugar de destaque nas
minada perspectiva da história, calcada pesquisas de Sandra, pois estes permi-
principalmente na documentação escrita tiam, mesmo que do modo enviesado da
oficial produzida pelo poder público exe- crônica policial, uma aproximação com o
cutivo ou legislativo. Nossos arquivos es- modo de vida de pessoas simples, de es-
tão repletos de leis, projetos, mapas, atas, cravizados, de libertos, de pobres, de mu-
correspondências que oferecem informa- lheres, de moradores dos becos e vielas
ções de fundamental relevância para en- da área central de Porto Alegre. Foram
tender as mudanças das nossas cidades ao os jornais, a exemplo d’A Gazetinha, que
longo do tempo. Entretanto, os registros permitiram conhecer uma das persona-
legados pelos detentores do poder, como gens mais interessantes da história de
intendentes ou prefeitos, conselheiros Porto Alegre, Fausta, uma mulher preta
ou vereadores, urbanistas ou servidores moradora do antigo Beco do Poço, atual
públicos permitem apreender uma visão Avenida Borges de Medeiros.
parcial e linear da cidade.
Essa perspectiva problematizadora do
E a cidade sonhada, cantada em prosa urbano que fugia de um tempo cronoló-
e verso, onde ficaria? Para Sandra, havia gico linear e que permitia mirar fontes
uma cidade para além do espaço urba- originais e inusitadas, foi articulada te-
no. Justamente aí residia o interesse da oricamente pela historiadora por meio
autora em buscar outras representações do estudo do imaginário, a partir do qual

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importava pensar que o sonhado, o ide- ganizada por Sandra Pesavento à frente
alizado e o percebido sobre a cidade não do Museu da UFRGS e a exposição Porto
se encontravam hierarquicamente abai- Alegre Caricata, desta vez organizada
xo dos denominados acontecimentos e com a equipe do Museu de Porto Alegre
que a imaginação compõe a história da Joaquim José Felizardo.
cidade, assim como o vivido. Nesse senti-
do, através dos aspectos sensíveis do ur- Por incrível que pareça, a década que
bano, Sandra Pesavento lançou as bases fora marcada pela propalada crise da
para a investigação do imaginário na his- história, também foi aquela em que a
tória brasileira e para a consideração das universidade – especialmente através de
formas de pensar, de ver e de conceber o Sandra Pesavento, de suas pesquisas e
mundo na composição do todo social. de seus inúmeros admiradores – com a
população porto-alegrense ousou sonhar
com uma outra Porto Alegre possível. Se
Na vertente da História Cultural, hoje por enquanto o futuro é incerto, quem
já não tão nova, nenhum documento sabe ao reinventar o passado sob inspi-
do passado ou temática deve ser des- ração de Sandra, possamos alimentar as
considerada para a construção do co- nossas esperanças de dias melhores.
nhecimento histórico. Guiada por esse
princípio, criticado por alguns colegas,
Sandra Pesavento acolheu e estimulou a
investigação de objetos de estudos con-
siderados heterodoxos e não atinentes à
disciplina, naqueles tempos, como o car- A partir do estudo
naval, os museus, o patrimônio, as fes-
tas, o cinema, a publicidade, a fotografia, do imaginário,
os hospícios, a psiquiatria, a família, os importava pensar
bandidos, a polícia, entre tantos temas
orientados por ela.
que o sonhado,
o idealizado e o
percebido sobre
Acredito que a atenção para os estu-
dos urbanos e para a história de Porto a cidade não se
Alegre, nos anos 1990, teve um com- encontravam
ponente incentivador para Sandra hierarquicamente
Pesavento e tantos outros pesquisado-
res, entre os quais me incluo. Aquela dé- abaixo dos
cada marcou também a gestão da cidade denominados
pela Administração Popular, mantida no
poder por quase 20 anos. A efervescên-
acontecimentos e
cia cultural, o ambiente político propício que a imaginação
para pensar e para refletir sobre Porto compõe a história
Alegre contribuiu para um desejo de
produzir conhecimento histórico sobre da cidade, assim
a cidade e, por outro lado, ultrapassou como o vivido.
os muros da universidade e alcançou um
público mais amplo. São exemplos disso
a exposição que logo virou livro intitula-
da Porto Alegre: espaços e vivências, or-

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ensaio gráf ico

CIDADE NANQUIM
Eloar Guazzelli Felizmente minha comprimento horizon-
ansiedade foi canaliza- tal, cada uma formadas
da para o desenho, e foi por quatro folhas colo-

A
construção do dessa forma que come- cadas uma sobre a outra,
painel que de- cei a desenhar em folhas formando uma altura de
pois veio a ser A4 uma cidade vista de 84 centímetros). Ainda
chamado de Cidade cima. A escolha desse ta- sem nome, tinha nas-
Nanquim foi fruto do manho de papel se expli- cido a cidade nanquim.
acaso. Em 1990, fui sub- ca pela necessidade de Um painel que hoje ain-
metido a uma pequena desenhar sem grandes da segue em construção,
cirurgia que, apesar de complicações, em geral com aproximadamente
não constituir uma in- deitado tendo um peque- 30 metros (a metade do
tervenção grave, exigiu no suporte servindo de tamanho que penso ne-
uma recuperação cheia base. Porém logo o dese- cessário para retratar
de cuidados: deveria fi- nho começou a crescer e esta cidade).
car dentro de casa pelo comecei a fazer emendas
período de um mês, que levaram a cidade Cada etapa foi execu-
além de evitar o sol, pois para outras folhas suces- tada em períodos que ti-
fora submetido a uma sivamente. Sem planeja- nham entre si intervalos
grande incisão no maxi- mento prévio, ao final relativamente longos, al-
lar e tinha de evitar ba- de meu retiro forçado, gumas vezes abrangen-
tidas nesse local. Uma eu tinha feito um painel do mais de um ano. Foi
situação chata para uma de aproximadamente 40 o preço que paguei pela
pessoa inquieta. folhas (dez colunas no liberdade que o traba-

25
JULHO/2021

lho apresenta ao não es- cado na memória e cons- Por isso mesmo esse tre-
tar vinculado a nenhum truído pela imaginação. cho de muralha que co-
projeto específico. Claro Logicamente o fato de mecei a desenhar a par-
que a produção dos de- ser um apaixonado pelas tir de 2005 apresenta
senhos em momentos cidades (e ter a sorte de nítidos traços orientais,
diferentes levou a certas viajar por vários países) revelados nas cúpulas
descontinuidades for- ajudou-me a coletar um que dominam algumas
mais, mas acredito que grande número de ima- de suas torres.
justamente aí encontra- gens ao longo de anos de
-se um elemento enri- pesquisa e desenho de O amontoado de ca-
quecedor deste trabalho, observação. Talvez a úni- sas que fica entre as
ao trazer para o primei- ca exceção seja um car- pedras da muralha e as
ro plano seu caráter de taz na estação de trem, curvas dos penhascos
obra ainda em execução vagamente inspirado em foi adquirindo maior
e, ao mesmo tempo, sa- um cartaz soviético. densidade com o passar
lientando seu caráter do tempo, construindo
espontâneo. Na verda- Na verdade, sou um um pequeno povoado
de toda cidade é imagi- apaixonado pelo univer- sobre a costa. Ao longo
nada, sem que nenhum so urbano em geral, mas desse cenário também
dos seus desenhos tenha com certeza a Cidade coloquei um trecho de
sido copiado a partir de Nanquim guarda mui- linha de trem. A cida-
referências fotográficas ta influência das duas de busca novos espaços
ou desenhos de obser- metrópoles do Prata (as que já estão assinalados
vação. Essa foi uma das capitais do Uruguai e nas minhas mais recen-
premissas mais impor- da Argentina), cidades tes anotações. A costa
tantes deste trabalho que me causaram gran- irá continuar escarpada
que nasceu ao acaso mas de impressão desde mi- mas o bairro antigo será
se converteu logo numa nhas primeiras visitas seguido de um trecho
espécie de jogo pessoal, ainda adolescente. “virgem” ocupado por
um teste de habilidades um trecho de floresta.
e, ao mesmo tempo, uma Um olhar atento so- Por sua vez, a linha de
grande brincadeira: não bre estes cadernos reve- trem irá desaparecer em
desenhar sobre o real ou la inúmeros rascunhos um túnel que passa jus-
dentro das regras nor- de um bairro muito po- tamente sob este trecho
mais de trabalho, com bre cujas habitações fo- de mata. Depois desta
prazos definidos, metas ram construídas com parte que será pratica-
a alcançar e, sobretudo, pedaços da muralha que mente o encontro entre
esboços. também acompanha a o morro escarpado e
costa escarpada. Prova- o mar, a linha de trem
À cidade caberia ser velmente essas habita- reaparece na saída do
um território de liber- ções rudimentares foram túnel, já dentro de ou-
dade, aquele lugar onde construídas com restos tro contexto, um bairro
busco refúgio das vicis- da fortificação, pratica- turístico, totalmente à
situdes do ofício de de- mente integradas ao seu beira-mar, meio cami-
senhista e da vida em conjunto. Esse bairro nho para um bairro an-
geral. Dessa forma cada nasceu da observação de tigo elegante que indica
prédio, logradouro, mo- antigas cidadelas orien- o extremo “ocidental”
numentos e personagens tais como a de Istambul, do painel. Mas isso é o
da cidade tem de ser bus- cidade que me fascina. futuro.

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pensata

EM BUSCA DE
UMA CIDADE PARA
AS MULHERES
Mariana Félix de Quadros

E
m que medida a ação dos mo-
vimentos de mulheres, intelec-
tuais e feministas pode auxiliar
os(as) gestores(as) públicos(as) a pla-
nejar as cidades com uma perspectiva
de gênero? Como podemos avançar?
Como podemos construir uma socieda-
de feminista, antirracista e inclusiva?

Refletir sobre essas questões é o ob-


jetivo do nosso livro E se as cidades
fossem pensadas por mulheres, im-
presso pela Editora Zouk, organizado
por mim, Mariana Felix, e Laura Sito,
militante feminista e antirracista, atu-
almente vereadora de Porto Alegre.
Com prefácio elaborado por Manuela
D’Ávila e teste de orelha por Céli Pinto,
a publicação traz artigos assinados por Nosso livro nasceu
um grupo plural de mulheres, buscan-
do uma interface entre academia e mi-
da compreensão de
litância política. que, apesar da cidade
ser nossa, ela sempre foi
Nosso livro nasceu da compreensão
de que, apesar da cidade ser nossa, ela construída para e pelos
sempre foi construída para e pelos os os homens. Um novo
homens. Um novo projeto de socieda- projeto de sociedade,
de, de país e de mundo tem como ter-
reno as cidades. Pois, muito embora de país e de mundo
seja visto como um espaço neutro e de tem como terreno
acesso igual a todos/as, é neste espaço
multiformas que as mais diversas desi-
as cidades.
gualdades são configuradas e estrutu-
radas. Cidades pensadas para e pelos
homens se sentirem donos do espaço

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JULHO/2021

público e, reafirmadas, a partir da defi- Para algumas, fazia sentido pensar


nição de uma segregação socioespacial. em um projeto de segurança pública
Ou seja, as cidades não são neutras e ao olhar para a cidade; já para outras,
perpetuam desigualdades nas esferas a construção de Políticas Públicas. E
da segurança pública, dos serviços pú- acredito que, essencialmente, pensar
blicos, mobilidade urbana, educação, cidades seja exatamente isso, este es-
entre outras. paço aberto, íntimo e coletivo ao mes-
mo tempo.
Acreditamos que, a mudança desta
realidade, apenas se tornará possível Nas próximas semanas queremos
por meio do olhar plural da diversida- iniciar lives falando sobre o livro. A re-
de de mulheres que vivem a cidade co- cepção tem sido muito boa, com muito
tidianamente: mulheres negras, trans, carinho, feedbacks positivos, mostran-
LGBTS, pobres, gestoras públicas, jo- do também a potencialidade do tema.
vens, entre outras. Este livro, portan- Quando tudo retornar às normalida-
to, têm um caráter téorico, mas, so- des, buscaremos realizar debates sobre
bretudo, um imperativo político para o tema em diferentes pontos da cida-
uma outra configuração de cidades de, buscando que ele seja, para além
não mais marcada pelas desigualdades de uma ferramenta teórica, uma ferra-
de gênero, raça, sexuais e de classe. menta política.
Reforçando esta diversidade, as auto-
ras foram selecionadas, buscando tam-
bém a interface entre academia e mili-
tância política.

Minha participação neste projeto


editorial iniciou quando a Laura me
convidou para escrever um livro sobre
mulheres e direito à cidade. Achei in-
crível o projeto desde o início e monta-
mos um grupo no whatsapp chamado
“Pretas intelectuais” para planejar e
organizar o livro. Considero a materia-
lização do livro como um ato de resis-
tência, tendo em vista que ele foi pen-
sado e organizado no meio de uma crise
sanitária, a pandemia do Coronavírus,
levando, inclusive, várias editoras e li-
vrarias ao colapso.

Tivemos todo o cuidado do mundo


para que tivéssemos representações
plurais de mulheres em diversos âm-
bitos da cidade, assim como cuidamos
também para que todas se sentissem à
vontade para escrever qual o tipo de ci-
dade faz sentido para si e merece ser
criada. Fiquei encantada ao perceber
a diversidade de olhar para a cidade.

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áreas caminháveis tendem a ser mais


valorizados. (Este é um assunto mui-
to rico, que vale uma grande discussão
por si só).
A MOBILIDADE
Mas deslocamentos a pé e por bici-
PARA A cleta têm limitações. Uma grande par-
cela dos deslocamentos da cidade não é
DIVERSIDADE compatível com estes modos, seja pelas
características do usuário (idade, con-
dições de saúde), pela distância a ser
Helena Cybis percorrida, ou por outras característi-
cas como o motivo da viagem.

P
lanejar mobilidade urbana vai Pessoas planejam suas viagens con-
além de projetos pontuais, de siderando uma série de fatores: o tem-
ciclovias ou reestruturação de po de viagem, custo, conveniência e
vias, (que são extremamente impor- segurança do deslocamento completo,
tantes, mas não suficientes). Uma cida- da origem ao destino, para o horário
de com um bom padrão de mobilidade e particularidades da atividade. Uma
deve viabilizar que a população reali- rede de ciclovias disponível na orla do
ze os deslocamentos necessários para Guaíba e no centro da cidade pode ser
desenvolver suas atividades de forma adequada para o deslocamento de es-
eficiente, segura e agradável. Mas o tudantes que residam na Cidade Baixa
planejamento de mobilidade precisa ou Menino Deus e se destinam ao cam-
atender às necessidades de toda a di- pus central da UFRGS, por exemplo,
versidade de usuários da cidade. mas não viabiliza o deslocamento de
um grande número de pessoas, como
Ampliar os deslocamentos a pé e moradores do extremo sul da cidade
por bicicleta é altamente desejável por
vários motivos, por questões de saúde
(uma população que pratica exercício é
mais saudável); por questões econômi-
cas individuais (são mais baratos); mas
principalmente por questões ambien- Modos ativos de
tais e pela eficiência sob o ponto de vis-
ta de uso do espaço. Modos ativos de deslocamento
deslocamento contribuem para a qua- contribuem para
lidade do espaço urbano (uma região
com pedestres e ciclistas é mais viva,
a qualidade do
mais agradável). Investimentos em espaço urbano
ambientes com calçadas confortáveis, (uma região com
espaços agradáveis e seguros, com uma
combinação de comércio, serviços e re- pedestres e ciclistas
sidências, que estimulem a população é mais viva).
a realizar seus deslocamentos a pé, traz
retornos econômicos. Estudos desen-
volvidos em algumas cidades, inclusi-
ve brasileiras, indicam que imóveis em

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que se deslocam ao centro para o tra- finições de investimentos e ações so-


balho. As distâncias são muito longas e ciais, pesquisas que levantem o padrão
as ciclovias não têm continuidade que de deslocamentos de uma cidade são
garantam condições seguras para todo importantes para subsidiar o planeja-
o percurso. Um sistema de transporte mento da mobilidade urbana.
coletivo eficiente e aderente às necessi-
dades da população é a espinha dorsal Pessoas se deslocam para viabilizar
da mobilidade urbana. suas atividades. Conhecer as caracte-
rísticas da população e seus desloca-
Não raro, usuários desenvolvem ati- mentos, origens, destinos, horários,
vidades concatenadas, de casa para tra- motivos das viagens e modos utilizados
balho, almoço, estudo, compras, uma são essenciais para subsidiar projetos
eventual atividade de lazer e retorno à de mobilidade urbana. A última pes-
casa. Este padrão de atividades, cada quisa origem-destino abrangente de
vez mais frequente, torna ainda mais Porto Alegre foi realizada em 2003. A
complexas as decisões sobre o conjun- cidade sofreu imensas transformações
to de deslocamento que precisam ser nestes 18 anos.
realizados durante o dia. As pessoas to-
mam decisões sobre destinos e modos Porto Alegre é uma cidade dinâmi-
de viagens considerando a conveniên- ca, que passa por transformações urba-
cia das alternativas disponíveis. nísticas muito rapidamente, regiões se
adensam, novos bairros surgem, sho-
Assim como o censo realizado pelo pping centers. Soluções de mobilidade,
IBGE é essencial para subsidiar de- mesmo adequadas para um determina-

As ciclovias não têm


continuidade que
garantam condições
seguras para todo
o percurso. Um sistema
de transporte coletivo
eficiente e aderente
às necessidades da
população é a
espinha dorsal da
mobilidade urbana.

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do período, muito provavelmente não e ainda há muita especulação sobre


serão adequadas após o adensamento como será a vida quando retornarmos
das edificações, a construção de um a algum novo normal.
novo bairro, ou mudanças no uso do
solo que transformam zonas residen- A mobilidade urbana em Porto Alegre
ciais em áreas dedicadas a serviços e tem jeito? Eu diria que sim, desde que
comércio, como acontece em várias re- os agentes envolvidos se conscientizem
giões da cidade. de que estamos em um período de gran-
de transformação tecnológica e cultu-
Agregando mais uma dificuldade a ral. A disponibilidade de internet móvel
este assunto, é preciso considerar que permite que a sociedade crie novas so-
assim como a cidade, os hábitos e ne- luções de mobilidade a uma velocidade
cessidades da população também se maior que o poder público tem conse-
alteram em decorrência das condições guido gerenciar. Os modelos de contra-
econômicas do país e de mudanças cul- tos, funções e a atuação das instituições
turais e tecnológicas. A posse do auto- precisam se ajustar a esta realidade. As
móvel não é mais tão valorizada para mudanças nos valores, hábitos e pa-
uma parcela da população, como era há drões de deslocamentos da população
algum tempo. Uma crescente consciên- têm sido muito rápidas. O planejamen-
cia ambiental vem lentamente promo- to da mobilidade urbana precisa ser ba-
vendo mudanças de valores, que tem seado em informações consistentes so-
levado à valorização da bicicleta e dos bre as necessidades da população para
deslocamentos a pé nas áreas urbanas. se ajustar a estas mudanças.

A evolução tecnológica, em especial


a revolução produzida pelos smartpho- Relembre
nes afetou todos os setores da econo-
mia, e está revolucionando o setor de
transportes. Serviços por aplicativos DESIGUALDADES
tem impactado fortemente a mobilida- E MOBILIDADE
de urbana. As mudanças promovidas URBANA
pela internet móvel são drásticas, e
desafiam o papel dos órgãos públicos, A manifestação das desi-
que tem a função de prover e controlar gualdades sociais na mobi-
os serviços de transportes. A internet lidade urbana também foi
móvel permite que a sociedade se orga- tema de artigo escrito pelo
nize, e crie novas soluções de transpor- arquiteto e urbanista Pedro
tes com uma velocidade maior do que Xavier de Araujo, mestre
a estrutura organizacional do estado é em Planejamento Urbano e
normalmente capaz de lidar. Regional pela Ufrgs. O tex-
to foi veiculado na Matinal
Bem, toda esta discussão seria per- News em novembro de 2020.
feitamente válida se este texto tives-
se sido escrito em fevereiro de 2020,
quando surgiu uma pandemia mun-
Leia o artigo no site
dial. Pessoas passaram a realizar tra- da Matinal News
balhar remoto, as instituições se reor-
ganizaram, mudanças nos hábitos e no
setor produtivo continuam ocorrendo

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JULHO/2021

ensaio

Fotos: Arquivo pessoal


TEKO PORA EM
PORTO ALEGRE
Lizete Dias de Oliveira

P
orto Alegre é o final de um ca-
minho, que os Guarani chamam
Tape. Aqui, flora, fauna e gente
se encontram e permanecem, às mar- sou. Tupã, o mais novo, dono do trovão,
gens do Guaíba. do vento e da brisa, também recusou.
Jakaira, o dono da bruma e das plumas,
Nhanderú criou Yvy tenonde, a foi quem aceitou. Caminhando e fuman-
Primeira Terra, e subiu até Oyva ropy, do seu petygua, o cachimbo sagrado, ele
o firmamento, para descansar. Depois, criou a Segunda Terra, essa em que vi-
essa terra ficou coberta de água. Os geó- vemos hoje, chamada de Yvy rupá. Na
logos calculam que por volta de 400 mil caminhada, encontrou dois Guarani que
anos Porto Alegre era um arquipélago de estavam deitados, sem vida, e de seus
ilhas que hoje são os topos dos nossos corpos criou a Guajuvira, a árvore sa-
morros. Ali no alto, enormes matacões grada que usam para fazer seus arcos e
comprovam que só a força das águas po- seu petygua. Assim os Guarani contam a
deria carregá-los. Lá em cima, a grama história da primeira árvore.
baixa, testemunha de um tempo frio, é
alimento para os graxains, que até há Pela Geologia, há 5 mil anos che-
pouco dividiam o espaço com o veado garam as árvores, que em guarani
campeiro, hoje extinto. são chamadas de yvyrá, tanto as da
Mata Atlântica como as da Floresta da
Depois de um tempo, o clima esquen- Amazônia. Elas se estabeleceram nas
tou e os campos recuaram para o sul, en- encostas dos morros e nas bordas dos
quanto chegavam os butiás e os maricás rios, onde vivem o gato do mato e o bu-
vindos do Chaco. Chegaram e se instala- gio ruivo. Dizem os Guarani que cada
ram nas regiões mais baixas e úmidas de planta tem seu animal. Por exemplo, no
banhado. Com eles vieram a capivara e o miolo da flor da erva do bugio pode-se
ratão do banhado, que até pouco tempo ver a cara de um bugio. O jacaré tem sua
dividiam o espaço com o jacaré do papo planta, o cachorro tem sua erva, o beija-
amarelo, hoje extinto. -flor tem sua flor. Os Guarani têm a sua
erva, caá mini, a erva-mate.
Contam os Guarani que nos Tempos
Originários, quando as águas baixaram, Quando as águas estavam bem bai-
tudo ficou muito seco. Nhanderú, então, xas, os Guarani saíram do Yvy mbyte,
pediu aos seus filhos que se ocupassem o Centro do Mundo, e começam o seu
de fazer um novo mundo. Karaí, o dono guatá, a sua caminhada na direção
das chamas, o mais velho dos três, recu- de onde nasce o sol, no Paraguaçú,

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o Grande Mar, o Oceano Atlântico.


Seguindo o trajeto dos rios voadores,
passaram pelo Paramiri e chegaram
ao Tape, que segue os yakã, os rios,
Ibicuí e depois o Jacuí, que deságuam
no Guaíba e na Grande Poça, a Yyupa, a
Lagoa dos Patos. Para os Guarani os rios
Yguaçu, Paraná, Paraygua e Uruguay
são sagrados e foram criados nos tem-
pos Originários, quando foi criado o
Yy rupa maraey, o Lago das Águas
Eternas, o Aquífero Guarani.

Em comum entre as narrativas dos ge-


ólogos e arqueólogos e a dos Guarani há
Yy, a água. Todos nós, Guarani e juruás,
os que têm cabelo na boca, sabemos que
dela depende a vida, que somos seres de
água e que somos feitos de 70% dessa
molécula maravilhosa e rara. A própria
terra, Yvy, depende e está cercada de
água. A floresta, Ybá, depende da água.
Ybirá, a madeira, significa o futuro do
parceiro da água. Yy é água, vy, a terra e
rá, o futuro. E na Yy, está Y, que significa
o pilar, o sustento úmido e molhado de
toda a vida.

Dançando ao som de seus Cantos


Sagrados, os Guarani caminham pelo
mundo, olhando carinhosamente e no-
meando os seres vivos, plantas e ani-
mais. Uma observação precisa e deli-
cada de quem entra em contato com os A palavra pitanga,
detalhes, e o banal ganha uma dimensão traduzida literalmente,
de encantamento, de prazer pela exis-
tência. Conhecidos como os “Grandes significa a “experiência
Filósofos”, eles vivem no mundo do ex- do vermelho”.
perimentar. A palavra pitanga, traduzida
literalmente, significa a “experiência do
Existe melhor forma
vermelho”. Existe melhor forma de en- de entender o vermelho
tender o vermelho na sua vermelheza do na sua vermelheza
que uma pitanga madura?
do que uma
O que conto aqui tenho ouvido de pitanga madura?
três Mestres: Gerônimo Verá Tupã,
Timóteo Verá Tupã Potinguá e Carlos
Papá. Com eles tenho aprendido o Teko
Porã, a Bela Forma de Viver. Mas lem-

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bro que em Porto Alegre vivem mais pela salvaguarda desse patrimônio de
duas etnias indígenas: os Kaingang e os valor inestimável, que é parte do acervo
Charrua. Aqui são faladas três línguas do Museu?
diferentes que nós, juruás, insistimos
em não escutar: o Guarani, a língua Jê Outra ameaça: a Mina do Guaíba,
e o Ipi, a língua dos Charrua. Suas pa- que, se instalada, poderá causar danos
lavras e suas presenças invisibilizadas e irreversíveis à qualidade do ar e das
teimosas denunciam a invasão do agro- águas ( ). Outro perigo para a nossa
negócio, que transformou as terras do sobrevivência: a retirada de areia do lei-
interior do estado num deserto de mo- to argiloso do Guaíba, que movimentará
noculturas. Porto Alegre é uma das ci- as partículas decantadas de metais pe-
dades brasileiras com maior presença sados. É do Guaíba que vem a água que
indígena, porque só aqui sobrou mato bebemos. Porto Alegre está se transfor-
para que possam viver. mando no fim da picada!

Antes de conhecer esses meus mes- Porto Alegre, esse grande tekoá, é um
tres, eu conhecia o mundo Guarani lugar delicado e frágil, como são os lu-
através da Arqueologia. Há décadas gares e os momentos de encontro. Com
os arqueólogos prospectam, registram os povos originários, com quem nós, o
e estudam os sítios arqueológicos de juruás, dividimos (desigualmente) essa
Porto Alegre. O material resgatado nas paisagem linda, cercada de morros e
pesquisas de campo está, na grande ilhas, banhada por um delta de rios que
maioria, sob a salvaguarda do Museu deságuam nesse lago maravilhoso e frá-
Joaquim José Felizardo, que está sendo gil, que deveria ser tratado com toda a
ameaçado por um projeto de privatiza- delicadeza que o Yy merece. Aliás, para
ção ( ) que se anuncia no horizonte, os Guarani também não existe a palavra
como prenúncio de uma tempestade paisagem como nós a entendemos em
que transformará o passado indígena português. Paisagem poderia ser tradu-
em ruínas. Se for efetivado o plano neo- zida como “o que enche meus olhos de
liberal de alugar o Museu para a inicia- mundo”. O pensamento guarani é uma
tiva privada, quem ficará responsável poesia constante.

Falo na dificuldade de traduzir um


mundo tão delicado onde não existem
palavras e nem os sentidos que usa-
mos no português. Por exemplo, não
Paisagem poderia existe nem mesmo a palavra idioma. O
ser traduzida como “o Guarani não diz que fala a língua gua-
rani, porque nhee, a palavra, é o sopro
que enche meus olhos úmido que vem do coração. Mas elas
de mundo”. só saem de dentro porque existe o ele-
O pensamento mento Y, o úmido que molha a boca
para que possamos emitir os sons, que
guarani é uma viajam de dentro de mim para dentro
poesia constante. de ti. Então, não existe um idioma,
existe um Amor Infinito, Mborayvu,
que é transmitido pelas Belas Palavras,
Ayvu rapyta, e pelos Cantos Sagrados,
Mboray. Esses são os três princípios

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originários que sustentam o modo de


ser Guarani e que são inspirados cons-
tantemente por Nhanderú, o Criador,
desde os tempos iniciais.

Nhee, o hálito, o respiro, é o dispara-


dor da vida. Por isso é tão importante o
Nhee porá, o emitir o ar e a Boa Palavra,
porque a fala é a própria manifestação
da vida no nosso corpo. E ela só é possí-
vel no Nheery, a Mata Atlântica, o lugar
onde as almas se banham.

Do Nheery, que os Guarani encon-


traram quando chegaram aqui, nas
margens do Guaíba, já existe muito
pouco. Se quiseres ter uma experiência
em Nheery espia por cima do muro do
Clube do Professor Gaúcho. Ali vais ver
13 hectares de Mata Atlântica, com o ar-
roio Espírito Santo deslizando por entre
as árvores. Mas não demora, em pouco
tempo o arroio será canalizado e todas Agora, em junho, estamos no Ara
elas serão derrubadas por um empreen- Yma, o Tempo Velho, o tempo frio de
dimento imobiliário. O mesmo destino se recolher, quando Jakaira se manifes-
terá a Ponta do Arado, que será loteada ta cobrindo o mundo com sua neblina
por um outro condomínio devastador. nos amanheceres. Depois, virá o Tempo
Novo, o Ara Pyau, o tempo de renova-
Nheery é uma fonte de passagem do ção, folhas, árvores, filhotes. E, nova-
corpo para o mundo celestial, Yvyrupa. mente Ara Yma, e depois Ara Pyau,
O espírito, nossa fala, nosso Nhee é nos- num ciclo eterno.
so meio de comunicação com Nhanderú.
É através da Nheery que o poder de E, em cada amanhecer, podemos
Nhanderú chega ao nosso corpo com a ter a experiência com os seres sagra-
umidade da mata. O mundo está em uma dos, através da bruma de Jakaira, ou
relação de unicidade entre o corpo, o ar da sinfonia dos pássaros, os envia-
da mata e o céu. Então, sem mata, sem dos de Nhamandú, desde os Tempos
árvore, não temos vida. Não se trata de Imemoriais. Ensinam os Guarani que
fala, trata-se de amor, o amor que vem para viver um Teko Porã toda manhã,
de dentro pra fora com as cordas vocais quando acordamos, precisamos de um
molhadas que emitem a fala da alma. tempo no nosso escuro interior para re-
Meu corpo úmido, xe guara rete, tem lembrar a viagem feita nos sonhos, para
uma ligação direta com o céu. Este ha- lembrar dos mundos visitados na noite.
bitar o próprio corpo reconhecendo que Para só então, delicadamente, pedindo
todos os elementos, terra, água e ar estão licença como quando entra no Nheery,
no meu corpo. O reconhecer que dentro abrir os olhos. As pálpebras são os por-
da gente existe Nhanderú e que somos tais que nos jogam num outro mundo,
parte de um todo é o princípio do Teko o mundo da luz, onde se vê, mas não se
Porã, a Bela Forma de viver. enxerga o essencial.

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zer algumas pistas: beco tem provavel-


mente origem latina na palavra vieco,
segundo o Houaiss, um diminutivo da
palavra via (rua, estrada, caminho).
BECOS, ONTEM Ora, tem-se aí uma ideia de hierar-
quia na malha urbana: existem as ruas
E HOJE e os becos, muitas vezes sem saída.
As primeiras com ares de protagonis-
tas nos mapas, plantas e imaginário
Ana Luiza Goulart Koehler urbano, oficiais e bem apresentadas,
levando nomes de vultos ilustres da
história: Comendador Fulano, Doutor
uando se diz que alguém en- Beltrano, Coronel Sicrano. Os segun-
Q trou num beco sem saída, ime-
diatamente se pensa numa pes-
soa envolvida em uma situação difícil.
dos, coadjuvantes que muitas vezes
se prefere deixar atrás da cortina da
paisagem urbana, e que seguidamente
Ou então quando se imagina a crimi- levam nomes bem menos imponentes:
nalidade urbana, também não raro se Beco do Mijo, Beco do Oitavo, Beco do
pensa em algum bandido que saiu de Poço, Beco Curral das Éguas. Justiça
um beco para roubar ou matar. Como seja feita: em favor dos becos, há que
se pode ver, o beco já vem acompa- se dizer que, ao menos nos seus nomes,
nhado de muitas conotações negati- eles tradicionalmente guardam relação
vas no imaginário urbano. Mas por mais direta com as práticas e sociabili-
que é assim? dades populares de que são palco.

Primeiramente, um rápido exame Como se pode ver, tanto em suas eti-


da origem da palavra em si pode tra- mologias quanto na tradição dos nomes

Ilustrações: Ana Luiza Goulart Koehler

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que recebem, ruas e becos marcam di- Se a ocupação do espaço costuma


ferenças que não param por aí. Como é expressar as desigualdades da socieda-
sabido nos estudos de história urbana, de que o ocupa, os becos exemplificam
modos diferentes de nomear espaços da muito bem divisões que permanecem
cidade indicam diferenças tanto na for- até hoje nas cidades brasileiras. Essas
mação como na ocupação e significado ruas estreitas e íngremes, em cujos ter-
destes espaços no imaginário urbano. E renos era mais complicado construir e
é justamente isso o que se constata ao cujo acesso era também era mais can-
observar a formação das cidades brasi- sativo ou até perigoso, terminavam
leiras de origem colonial portuguesa: de por acolher as camadas mais desfa-
Porto Alegre a Salvador, a tradição lusi- vorecidas da população. Ao longo do
tana situava os primeiros assentamen- século XIX, trabalhadores pobres, ne-
tos coloniais em colinas junto a corpos gros escravizados e libertos, imigran-
d’água, situação que favorecia a defesa tes pobres que aportavam às capitais
do território. A desvantagem é que se brasileiras encontravam nos becos as
tinha que subir ou descer os caminhos moradias possíveis para habitar junto
íngremes que iam se formando para li- ao centro da cidade – minúsculas ca-
gar a parte baixa à parte alta da cidade sinhas, avenidas e casas de cômodos
– as famosas ladeiras – e, para evitar densamente ocupadas – e que, apesar
esse inconveniente, as ruas principais da precariedade, permitiam-lhes estar
era traçadas sobre as suaves curvas de próximos às oportunidades de trabalho
nível do relevo. Daí resultavam malhas urbano. Desde sempre, morar perto do
de ruas importantes e largas, de decli- trabalho é uma vantagem.
ves suaves, cortadas por ruazinhas ou
becos íngremes. Não é raro encontrar Mas estar no coração da cidade foi a
expressões como estreito e ladeirento ruína dos becos: suas casinhas, cortiços
para designar os becos nas crônicas ur- e barracos não ficavam bem no meio
banas de tantas cidades do país. das cidades brasileiras que queriam se

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parecer com Paris no início do século E cada vez mais longe. Tão longe que
XX. Seus habitantes muito menos: os hoje as cidades sofrem com problemas
negros com suas tradições e religiosi- terríveis de insuficiência de seus siste-
dade de origem africana, os imigrantes mas de transporte público, com traba-
e trabalhadores pobres, cujas brigas lhadores que têm de passar horas pre-
e desordens nas casas de prostituição ciosas em ônibus e trens lotados entre
baratas e nas terríveis tavernas faziam a casa e o local de trabalho. Os becos
o deleite do jornalismo sensacionalis- que ainda insistem em ficar próximos
ta da época, condenando todo aquele aos centros urbanos continuam íngre-
vício que não tinha lugar numa cidade mes e estreitos, só que agora em áreas
moderna e branca. Assim, os becos fo- impróprias para a habitação, seja por
ram os principais alvos das campanhas riscos de deslizamento ou por serem
higienistas e dos grandes bota-abaixo destinadas à preservação ambiental.
das primeiras décadas do século XX Pode-se dizer que, se o beco ainda exis-
em capitais como Rio de Janeiro, Porto te hoje como era há mais de um século,
Alegre, Salvador e São Paulo. A pobre- é porque o problema que o origina per-
za e a sujeira não poderiam mais ser manece: a imensa desigualdade social
aceitas nos centros das cidades, então e a concentração espacial dos recursos
foram mandadas para mais longe. e serviços urbanos.

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Os becos são a
expressão espacial do
indesejável, daquilo
que a cidade não quer
ver, mas sem a qual
não funciona.

Relembre

OS BECOS PORTO-
ALEGRENSES
No início deste ano, Vinicius
Rodrigues entrevistou a Ana Luiza
Koehler sobre seu livro Beco do
O senso comum diz que nos becos Rosário, história em quadrinhos
de hoje – as favelas, os territórios ur- desenhada e roteirizada por ela.
banos marginais e conflagrados, do- No papo, ela conta sobre a pro-
minados pela violência – o Estado não posta da HQ, resultado de sua
entra. Contudo, é de se desconfiar que, dissertação de mestrado. “Sempre
após tantos séculos de divisão social tive uma grande fascinação por
e espacial no Brasil aqui simbolizada história – e história dos anos
pelos becos, talvez haja uma relação 1920, pela sua estética, pela mo-
muito mais de interdependência entre dernização urbana, pela revolução
o Estado e territórios conflagrados do tecnológica que se operava naque-
que se apresenta à primeira vista. le momento, e me perguntei como
teria sido essa década na história
Em suma, os becos são a expressão de Porto Alegre. A partir daí, foi
espacial do indesejável, daquilo que a imaginar que pessoas viveram
cidade não quer ver, mas sem a qual esse momento (e como viveram)
não funciona como funciona hoje: os para contar a história da cidade”.
trabalhadores precários, mal remune-
rados, cujos serviços de baixo custo
mantêm girando uma economia que Leia a entrevista no site
prima pela concentração da renda. da Parêntese
Enquanto esta última persistir, per-
sistirão os becos.

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das para a margem espacial da cidade.


Um limite periférico que se situa à beira
do não-existir.

QUE ORIGEM E Mas essa história é ainda anterior.


A dita limpeza da cidade traz seus pro-
ESSA DO BAIRRO pósitos num contexto que precisamos
remontar.
RESTINGA?
Limpar a cidade já era meta das
Políticas Urbanas no início do século
Neila Prestes Araujo XX. A memória sobre a contínua expul-
são dos mais pobres para áreas mais
afastadas, por exemplo, já se registra

A
política urbana de moderniza- com a extinção dos Becos Centrais e
ção da cidade passou décadas com o combate aos cortiços. Isso feito
planejando uma limpeza. Uma com o olhar atento dos fiscais e com a
suposta revitalização que deu origem aplicação das Normas de Construção e
ao bairro. Isso acontece efetivamente Código de Conduta.
com a entrada do período da ditadura
militar, em 1964, regime que exerce a É bom que se saiba que Porto Alegre
força através dos denominados recur- do início do XX teve um aumento popu-
sos para a transformação urbana. Daí lacional desproporcional às condições
vem a proposta de modernização dos de infraestrutura urbana existentes. A
Territórios Negros e Pobres: as Vilas busca de melhores condições de vida e
de Malocas. Uma remoção aos que re- oportunidade de trabalho motivou um
sistiam nas áreas do centro da cidade. fluxo migratório constante e crescente
Essa ação silenciou populações e suas nos primeiros cinquenta anos daque-
culturas que foram então encaminha- le século. Além de se estruturar como

Ordem do prefeito Célio Marques Fernandes, delegado


indicado pela ditadura militar de 1964

Fonte: Zero Hora, 16 de março de 1967. Museu da Comunicação Hipólito José da Costa

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Fonte: Texto de Justino Martins na Revista do Globo em 23 de junho de 1945


uma capital de maior porte, o período
ainda foi agravado pela crise do Pós-II
Guerra. Resumo: não havia como aco-
lher a todos.

As políticas de urbanização da po-


breza (habitação) começam a apare-
cer na mídia. Uma voz de destaque
na imprensa é a do jornalista Justino
Martins, que aborda o assunto no ano
de 1945. Tem-se ali os primeiros regis-
tros de Vilas de Malocas, momento em
que se aplicou um dos primeiros deslo-
camentos em massa de população po-
bre de Porto Alegre. Formou-se então a
Vila Marginal, dando origem ao bairro
São João.

Mais tarde, em 1951, as Vilas de


Malocas foram conceituadas por
Laudelino T. Medeiros (intelectual da
UFRGS, sociólogo que era referência da
instituição em seu tempo) como núcle- “A ‘Vila Marginal’,
os sub-humanos. Lugar de animalidade de Porto Alegre,
bruta, contaminante, promíscuo e peri- um agrupamento
goso. Esse conceito, que é preconceito, tragicamente pitoresco,
onde se pretende
está registrado em seu livro: Vilas de
organizar um pouco
Malocas – Ensaio de sociologia urbana. da grande miséria com
(POA, 1951). Medeiros foi além. Quando os parcos recursos da
analisou espaços de ocupação, como o caridade semi-oficial”
núcleo “Forno do Lixo”, se dedicou a es-
crever de maneira acusatória. Sua narra-
tiva apontou o “maloqueiro” como o mal
a ser combatido. Rótulos bem afinados
ao olhar de um sociólogo católico defen-
sor da moral e dos bons costumes.
A narrativa do
Antes de Laudelino Medeiros, o
Relatório do Prefeito Ildo Meneghetti
sociólogo
publicado no Correio do Povo (06 de Laudelino T. Medeiros
abril de 1950) já demonstrava o pavor apontou o
com que a elite porto-alegrense observa-
va os núcleos de Vilas de Malocas. Nas “maloqueiro”
palavras de Meneghetti, o trabalho era como o mal
árduo já que se fazia necessário dispor a ser combatido.
da presença do poder público. Eram áre-
as inóspitas, povoadas de habitantes que
literalmente provocavam estranhamen-
to pelo seu modo de vida.

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É assim parte do discurso: Lembremos: a cidade é um encontro de


culturas com origens tão diversas quanto
A complexidade do controle das as trajetórias humanas que as compõem.
malocas exige um trabalho rude É um espaço de disputa de ocupação física
e afanoso, se considerarmos o e de narrativas. Livros clássicos que retra-
meio ambiente em que se deve tam a cidade no século XX preferem con-
processar a ação do poder públi- denar culturas “marginais”, mesmo que
co, face aos elementos heterogê- todos nós saibamos o quanto elas são ri-
neos e inadaptáveis, incapazes, cas, cheias de alegrias e de encantamentos.
em sua maioria, de compreen-
der a situação de geral preca-
riedade de que se reveste tal RELATOS DA GUERRA
espécie de habitação. Ao invés, CONTRA A MALOCA
atêm-se seus moradores, sim-
plesmente, à forma econômica A proposta de remoção da Ilhota, an-
de viver que as malocas lhes tigo bairro próximo da Avenida Azenha,
proporcionam, por não sujeitos é o começo das remoções que se dirigem
a pagamento de aluguel. à Restinga. Ela foi iniciada em 12 de fe-
vereiro de 1967.
(...)
Morador da Restinga, o senhor Hélio
Ressentindo-se dos mais rudi- Soares Fernandes nos conta que o início
mentares preceitos de higiene, da ação se deu pela Avenida Ipiranga.
constituem ameaça não só a Um número significativo de caminhões
saúde de seus moradores como municipais e outros contratados con-
mesmo a população em geral tavam com cerca de 40 funcionários do
e, mais, séria advertência aos Departamento Municipal de Habitação
bons costumes, em virtude da (DEMHAB). Havia ainda a presença da
semipromiscuidades em que se Brigada (Polícia Militar) e do Exército.
encontram os ocupantes dos im- Todos chegaram na primeira hora da
provisados domicílios. manhã e foram iniciando o trabalho.

(Meneghetii, Correio do Povo Em meio a gritos, choros e xingamentos


em 06 de abril de 1950) dos moradores, os funcionários já iam reu-

A cidade é um encontro
de culturas com origens
tão diversas quanto as
trajetórias humanas que
as compõem.

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nindo os pertences de cada


casa e colocando nos cami-
nhões, içando as estrutu-
ras de madeiras inteiras,
quando possível, e jogando
na carroceria uma a uma.

Essa política, que se ini-


ciou com a Ilhota, depois
tomou a cidade. Uma lista
de ocupações irregulares
e pobres daquele período
passaram a ser deslocadas
em uma verdadeira guerra
contra a maloca. Tal qual
o drama de viver em um Hélio Soares Fernandes
campo de batalhas, o medo
que se impôs ao pobre veio
acompanhado da perda da
moradia e da sensação de
viver como um condenado.

Foi de madrugada,
a polícia de choque
chegou e foi avisan-
do:

– Os que estão aqui


vão tudo para a
Restinga.

Nós só nos olhamos


e dissemos: José Luis Vieira Ventura

– De novo!

Mestre Ventura, morador da Restinga, pela ditadura militar para prefeitura em


foi removido com a família da vila Santa 1964. O objetivo foi o de levar todos que
Luzia. Sua mãe decidiu resistir e alugar não comprovavam trabalho para inse-
um caminhão para voltar a ocupar espa- rir em uma gleba de terra na Estrada da
ço em uma vila na Cavalhada. À época foi Restinga, ao extremo sul de Porto Alegre.
o que assegurou a seus filhos o acesso a Local em meio à área rural e que a pre-
escola que não existia nos primeiros anos feitura havia comprado. Assim, as Vilas
da Restinga. A família de Ventura voltou de Malocas trocaram os becos centrais
a ser removida para a Restinga, em 1978. por ruas retas e lotes medidos. Os mo-
O relato acima reconstrói esse momento. radores deslocados perderam, a partir
daquele momento, a proximidade com o
A ordem expressa foi do prefeito Célio centro. Receberam em troca a distância
Marques Fernandes, delegado indicado físico-social. A ida para a futura Restinga

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Tu dá sardinha
que trago a
massa e fulana
o tomate, por
muito tempo
vivemos assim.
Therezinha Rosa Marques

Therezinha Rosa Marques

acaba com o deslocamento facilitado Dona Terezinha hoje é uma senho-


para o trabalho, para o comércio, para o ra que lembra sorrindo como as amigas
hospital. Fica-se longe dos amigos e pa- juntavam o que tinham para comparti-
rentes. lhar a comida. Um esforço do coletivo.

Uma a uma as famílias foram chegan-


do e suas casas se amontoando em pilhas
de tábuas. Já não havia mais lar, eram
só restos de memórias, seres se recons-
truindo depois de uma vida que se apre- Relembre
sentava em destroços.
VOCAÇÃO
O abandono foi a ordem do dia ECOLÓGICA
nos primeiros anos de ocupação. Na
Restinga não havia luz, água potável, co- Deixados à própria sor-
mida ou lugar de referência para recla- te, os moradores pioneiros
mar. Localizada a 500m da Estrada João da Restinga encontraram no
Antônio de Silveira, única referência, as conhecimento da natureza a
famílias iam chegando diariamente. O solução para muitos de seus
plano autoritário de Porto Alegre coloca- problemas. Nesta reportagem
va os muitos sujeitos sem registro formal publicada em dezembro de
de trabalho no mesmo lugar. 2019, Amanda Hamermüller
escreve sobre a vocação eco-
Nesse tempo a comunidade cuidava lógica da região.
de si. Vizinhos e familiares se uniram
para resistir.
Leia a reportagem no
– Tu dá sardinha que eu site da Parêntese
trago a massa e fulana o
tomate, por muito tempo nós
vivemos assim.

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zonas criminógenas e a implementação


dos Chicago Area Projects, buscando
identificar e atuar sobre os “gatewa-
ys” da criminalidade, significaram um
A CIDADE E A avanço importante no debate sobre a
prevenção ao delito. Desde então, tan-
SEGURANCA to no contexto norte-americano como
em outros países, o envolvimento de
PUBLICA gestores municipais na coordenação
de programas de prevenção, com par-
ticipação comunitária, tem sido muitas
Rodrigo Ghiringhelli de vezes o caminho mais exitoso para a re-
Azevedo dução de homicídios, lesões corporais,
furtos, roubos e delitos sexuais.

O
debate sobre criminalidade e No Brasil, seja por conta do modelo
segurança pública no Brasil tem de policiamento adotado, seja em fun-
sido pautado pela polarização ção das limitações impostas pelo texto
entre defensores de medidas duras con- constitucional, os municípios perma-
tra o crime, que vão desde o endureci- neceram por muito tempo à margem
mento das penas e dos trâmites proces- do debate sobre segurança pública.
suais até o salvo conduto da excludente Via de regra, este foi um problema
de ilicitude para a violência policial, e considerado de responsabilidade dos
críticos do sistema de segurança pública governos estaduais. Contudo, a partir
e justiça penal, pelos abusos praticados do final dos anos 90 a segurança pú-
e a ineficácia do encarceramento para a
contenção da criminalidade.

Para além desta dicotomia muitas


vezes contraproducente para o enfren-
tamento de um problema que vitimiza No Brasil, seja por
grande parte da população brasileira,
que tem sua integridade física e/ou pa- conta do modelo de
trimonial ameaçada cotidianamente, a policiamento adotado,
questão da prevenção ao delito tem sido seja em função das
pouco discutida e menos ainda priori-
zada. Há experiências exitosas neste limitações impostas pelo
âmbito, e todas elas passam pelo maior texto constitucional,
protagonismo do poder local/municipal
na implementação de iniciativas e pro-
os municípios
gramas e na articulação da ação das po- permaneceram por
lícias com outros atores sociais. muito tempo à margem
No campo dos estudos criminológi- do debate sobre
cos, a relevância do município na ges- segurança pública.
tão da segurança pública é algo já cons-
tatado desde os primeiros estudos da
Escola de Chicago, nas primeiras déca-
das do século XX. A identificação das

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blica passou a receber um tratamento


especial na agenda das discussões dos
compromissos da União com os muni-
cípios, deixando de se constituir como
problema da segurança estritamente A pauta deixa de
dos estados e de suas polícias. ser exclusivamente
Desde então, muitas experiências
a repressão,
importantes de políticas públicas de priorizando a
segurança passaram a ocorrer na esfe- prevenção e a
ra municipal. Vários são os municípios
que, nestes últimos 20 anos, criaram
promoção de
secretarias municipais de segurança ur- novas formas de
bana, assumindo responsabilidades na convivência social
área, produzindo diagnósticos, desen-
volvendo planos municipais, formando e cidadã.
e reestruturando suas Guardas, imple-
mentando projetos sociais com foco na
prevenção das violências e da criminali-
dade. Tais experiências são muito diver-
sas e se orientam por princípios e expec-
tativas também muito variadas, sendo, tucional, intersetorial e interagencial,
no geral, pouco estudadas e conhecidas. através de mecanismos democráticos
de controle, monitoramento e avalia-
No âmbito das políticas municipais ção das políticas públicas.
de segurança, a pauta deixa de ser ex-
clusivamente a repressão, priorizando Em 2007, seguindo essa tendência
a prevenção e a promoção de novas mais ampla de indução da atuação dos
formas de convivência social e cidadã, municípios no campo da segurança
focadas na garantia, no respeito e na pública, o Ministério da Justiça lan-
promoção de direitos. A intenção passa ça o Programa Nacional de Segurança
a ser a implementação de políticas de Pública com Cidadania (PRONASCI),
segurança cidadã, balizadas por duas reconhecendo os avanços dos planos
perspectivas, distintas e complementa- anteriores e assumindo a complexida-
res: a repressão qualificada da crimi- de do fenômeno da violência, dando
nalidade, com a contenção de grupos ênfase maior às questões das raízes so-
armados que dominam territórios e cioculturais e dos agenciamentos sub-
controlam mercados ilegais, como fac- jacentes às dinâmicas das violências e
ções do tráfico ou milícias urbanas, e a da criminalidade, entendendo estarem
prevenção social das violências, com a imbricados à segurança outros proble-
identificação de gateways e a incidên- mas e fatores sociais, culturais, am-
cia preventiva sobre os mesmos. bientais, tais como: educação, saúde,
cultura e serviços de infraestrutura.
As políticas municipais de seguran-
ça cidadã expressam, pois, a expecta- Entre os projetos e programas estru-
tiva de que as políticas de segurança turantes do PRONASCI estavam a valo-
devam se adequar às realidades locais rização dos profissionais do sistema de
e aos anseios das populações, em uma segurança pública e justiça criminal; a
perspectiva de integração interinsti- reestruturação do sistema penitenci-

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ário; o combate à corrupção policial e


ao crime organizado e o envolvimento
comunitário. Sobre os programas lo-
cais merecem destaque o Território de
Paz, o Mulheres da Paz, o PROTEJO e Entre as
os programas de Justiça Comunitária. prioridades das
É possível afirmar que, em que pese políticas municipais
a descontinuidade desta relação entre de prevenção
União e municípios no âmbito da segu-
rança urbana, os resultados alcançados
ao delito
estabeleceram as bases para a constru- estão aquelas
ção de um novo modelo de segurança voltadas
pública, menos centrado no papel re-
pressivo e reativo do Direito Penal e do
especificamente
sistema de justiça criminal (judiciário, para os jovens,
polícias e prisões), e mais na construção que como se sabe
de alternativas democráticas e dialogais
para a gestão e mediação dos conflitos e são os
da violência. mais afetados
pela violência
Entre as prioridades das políticas
municipais de prevenção ao delito estão interpessoal.
aquelas voltadas especificamente para
os jovens, que como se sabe são os mais
afetados pela violência interpessoal.
Investindo em esporte, cultura e educa-
ção, o Protejo (Projeto de Proteção dos
Jovens em Território Vulnerável) bus-
cou inserir o jovem exposto à violência,
tanto doméstica quanto de rua, aos direi-
tos de cidadania. A ideia era resgatar sua
autoestima, enfrentar vulnerabilidades e
construir alternativas de vida diferentes
da opção pelo tráfico e outras formas de
obtenção de renda de forma ilícita.

Outra ação importante foi o Projeto


Mulheres da Paz, formando lideranças
femininas nas comunidades mais vul-
neráveis para a concretização de um
trabalho de disseminação de uma cul-
tura de cidadania. Aproximar os jovens
ao Protejo, por exemplo, foi uma das fi-
nalidades das Mulheres da Paz, forma-
das em cursos de formação em Direitos
Humanos e capacitadas a mediar con-
flitos e encaminhar pessoas em situa-
ção de risco para que participassem dos

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projetos desenvolvidos em suas comu- externa (Instituto Cidade Segura). A ci-


nidades. As Mulheres da Paz recebiam dade assumiu o Pacto pela Paz, com um
uma bolsa auxílio para desenvolverem conjunto de medidas voltadas à integra-
este trabalho. ção das polícias para o enfrentamento
dos hot spots da criminalidade, assim
É através dos Gabinetes de Gestão como a apreensão de armas ilegais.
Integrada Municipal (GGIM) que a co- O foco na prevenção foi adotado pela
municação entre os diferentes agentes implementação de programas sociais,
e agências se inicia: policiais civis, mi- como o Infância Melhor (visitas de pro-
litares, guardas municipais, servidores fissionais de saúde a crianças de até 3
da secretaria de segurança pública e anos em situação de vulnerabilidade so-
representantes da comunidade come- cial), Famílias Fortes (encontros sema-
çam a traçar metas para enfrentar os nais para fortalecer vínculos familiares
problemas e administrar os confli- de jovens com até 14 anos) e Escola pela
tos. Instalam-se, então, os Conselhos Paz (com comissões internas de preven-
Comunitários de Segurança Urbana, ção da violência nas escolas).
com o objetivo de discutir as diversas
questões ligadas à violência. A união Uma agenda efetiva para as políticas
dos agentes responsáveis é a principal públicas de segurança deve abordar
inovação, já que não são apenas os res- preferencialmente ações preventivas,
ponsáveis diretos pela segurança pú- articuladas com departamentos e se-
blica que discutem os problemas, mas cretarias importantes da administra-
os próprios membros da comunidade, ção pública (educação, saúde, serviços
que interagem e dão ideias para lidar sociais, habitação, transporte, planeja-
com os conflitos. mento urbano, comunicação, esporte,
lazer e cultura) – políticas específicas
Mais recentemente, um estudo do de segurança preocupadas com a prote-
IPEA sobre os municípios que mais re- ção integral de direitos, com o sistema
duziram as mortes violentas entre 2019 de persecução criminal, incluindo, ain-
e 2020 apontou a cidade de Pelotas, no da, entidades da sociedade civil, asso-
Rio Grande do Sul, como um dos qua- ciações comunitárias, cidadãos em ge-
tro municípios com maior redução, da ral. Resta claro que esses pressupostos,
ordem de 52% entre um ano e outro. embora não exaustivos, representam
Entre as causas do fenômeno está a ini- passos importantes para o enfrenta-
ciativa do município em assumir res- mento da violência e da criminalidade
ponsabilidade na prevenção ao delito, a partir da experiência local das cida-
inclusive com o apoio de consultoria des no campo da segurança pública.

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recomendações

Foto: Cobogó/Divulgação
LIVRO

RACIONAIS MC’S:
SOBREVIVENDO
NO INFERNO | ARTHUR
DANTAS ROCHA
Em 1997, o lançamento do quarto dis-
co de estúdio dos Racionais MC’s foi um
ato de coragem. Distribuído por um selo
independente, vendeu mais de 1,5 milhão
de cópias e fez com que o grupo paulis-
ta de rap formado em 1988 invadisse o sobre a violência policial nas favelas, a
mainstream com sua “crônica da vida das negritude e a marginalização da popula-
classes subalternas do Brasil urbano”. ção negra e pobre. O palco é a cidade, de-
finida em termos políticos pelos vetores
No livro Racionais MC’s: Sobrevivendo de dominação e resistência: o poder dos
no Inferno (Cobogó, 176 páginas, R$ 46), de cima e a potência negra/periférica.
lançamento da coleção O Livro do Disco,
Arthur Dantas Rocha se inspira na cul- A voz do autor se mescla a falas de in-
tura do sample para criar um texto que, tegrantes do grupo e de outras dezenas de
reunindo diversas vozes, traça um amplo artistas e pensadores – de Lecy Brandão e
panorama estético, social e político para Baco Exu do Blues a Kabengele Munanga
discutir a relevância e a permanência do e Toni Morrison. Uma citação de James
álbum – que, em sua “fúria negra”, se tor- Baldwin resume o trauma de que trata
nou uma obra emblemática da virada do o disco: “A grande dor é que você nunca
século no país e é hoje tão urgente quanto pode chegar perto de um branco e sentir-
há quase 25 anos. -se protegido. Você é tão humano quanto
ele, e se ele está perdendo uma luta, vai
“O trabalho dos Racionais tem a força dizer que a culpa é sua, não importa se foi
dessas verdades avassaladoras que rom- você que atacou ou não”.
pem com a mentira há muito cultivada
em uma sociedade cordial”, escreve o au-
tor. Formado por Mano Brown, Ice Blue, RAIVA | MONICA
Edi Rock e KL Jay, o grupo denunciou em ISAKSTUEN
suas músicas a desigualdade e a lógica
da necropolítica por meio de letras que, Primeiro romance publicado no Bra-
como crônicas sociais, trazem reflexões sil da norueguesa Monica Isakstuen,

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Foto: Rua do Sabão/Divulgação


vencedora do sa urgentemente de reformas, com três
Norwegian crianças – sendo dois meninos gêmeos.
Book Award, Compras no supermercado, tarefas es-
Raiva (Rua do colares, reunião de pais, um marido que
Sabão, tradu- chega cada vez mais tarde, vizinhos –
ção de Leonar- uma rotina estressante que força a per-
do Pinto Silva, sonagem ao limite.
324 páginas,
R$ 49) explora Sentada no sofá, presa por um tra-
a maternidade vesseiro de amamentação gigante, ela
e o casamento se pergunta o que restou da pessoa que
num de seus apresentou a seu parceiro dois anos an-
aspectos mais tes. “Eu sou a soma de minhas ações ou
realistas: a so- meus ideais?” O que resta de si mesma,
brecarga feminina. A protagonista vive após a maternidade e toda a transforma-
em uma casa imensa e antiga, que preci- ção do corpo e da rotina?

Foto: Biscoito Fino/Divulgação


DISCO

JAPAN TOUR 2019 |


MÔNICA SALMASO,
GUINGA, TECO
CARDOSO
E NAILOR PROVETA

O álbum Japan Tour 2019 nas-


ceu durante a turnê pelo Japão
de um quarteto especialíssimo, Escute o disco Japan
formado pela cantora Mônica Tour 2019 online.
Salmaso, pelo violonista e com-
positor Guinga, pelo saxofonista e
flautista Teco Cardoso e pelo cla-
rinetista Nailor Proveta, reunido gistradas em estúdio, nos dois dias
em torno da música de Guinga. seguintes à apresentação.
Seis das 12 faixas do álbum origi-
nalmente editado no Japão, que O repertório do álbum, que traz
agora ganha lançamento no Brasil na capa uma obra da artista minei-
via Biscoito Fino nas plataformas ra Leonora Weissmann, reúne can-
de música e em seguida em CD, ções que Guinga compôs sozinho
foram gravadas ao vivo no Nerima ou com parceiros como Aldir Blanc,
Culture Center, em Tóquio, no dia Anna Paes, Celso Viáfora, Paulo
10 de abril de 2019. As demais re- César Pinheiro e Thiago Amud.

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