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julho/2021
julho/2021
entrevista
FêCris Vasconcellos 7 André Lemos – As cores e as sombras das cidades...
Tiago Medina e Bernardo Bercht 18 Joel Kotkin – À procura da alma das cidades
pensata
Mariana Félix de Quadros 39 Em busca de uma cidade para as mulheres
Helena Cybis 41 A mobilidade para a diversidade
ensaio
Lizete Dias de Oliveira 44 Teko Porã em Porto Alegre
Ana Luiza Goulart Koehler 48 Becos, ontem e hoje
Neila Prestes Araujo 52 Que origem é essa do bairro Restinga?
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo 57 A cidade e a segurança pública
UMA OBRA
COLETIVA
A
posto que muita gente anda com
saudade de flanar pela cidade.
Ainda que flanar estivesse em
desuso antes mesmo da pandemia che-
gar... Com tanto barulho, tanta agenda
para cumprir, obstáculos para vencer –
da insegurança aos buracos nas calçadas
–, quem aí flanou nos últimos anos?
Editor-assistente
José Falero
Reportagem
Estúdio Fronteira Agora pensem comigo – e com a geó-
Colaboradores desta Conselho administrativo
grafa canadense Leslie Kern: esse cara
edição: Adriana Martorano só pode ser um homem branco, saudá-
Ana Luiza Goulart Koehler Filipe Speck
Bernardo Bercht Luís Augusto Fischer vel, de classe média e hétero.
Eloar Guazzelli Roger Lerina
FêCris Vasconcellos
Helena Cybis
Lizete Dias de Oliveira
Gestão de Produto e
Estratégia
Só essa figura pode vagar em paz na
Mariana Félix de FêCris Vasconcellos cidade sem ser interrompida a cada
Quadros
Nathallia Protazio contato@parentese esquina com um fiu-fiu ou algo pior.
Neila Prestes Araujo
Rodrigo Ghiringhelli de
.com.br
“A constante antecipação do assédio
Azevedo
Tiago Medina
comercial@
matinaljornalismo.com.br
significava que a minha capacidade
Zita Possamai de passar incógnita pela multidão era
Projeto gráfico Para assinar: sempre passageira”, diz Kern no recém
Déborah Salves
www. lançado Cidade feminista – a luta pelo
Editoração
Thainá Coimbra
matinaljornalismo
.com.br
espaço em um mundo desenhado por
homens (Oficina Raquel).
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editorial
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ABRE
Leia a entrevista com PARENTESE
Vítor Ortiz que
saiu no site da Parêntese .COM.BR
nesta semana
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crônica
A
cordo no leve movimento das sim tão prendada.’’
pálpebras cansadas. Não dormia
há três dias. Quase quatro. Sorte ‘‘Olha só, que onda…’’
que a Diva veio ontem e batizou as pane-
las da casa nova, ‘‘comer bem é o primeiro ‘‘Bah, pior. Desculpa ae a decepção.’’
passo pra um bom sono’’ – ela falava en-
quanto eu só conseguia balançar a cabe- ‘‘Ok, eu fico com o fogão, então.’’
ça de boca cheia. O médico na Dr. Flores
disse que mais um mês, talvez dois, meu ‘‘Jura?’’
fígado fica bom. Com sorte sem sequelas
da Covid. A Diva me olha e ri, ‘‘Pior é na ‘‘Claro, sou muito boa nisso. Pode
guerra, menina, que morre e não se en- apostar!’’
terra’’. Verdade. Pior é na guerra.
‘‘Oi.’’
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‘‘Bom dia,
querida’’,
no banco
de madeira
do Gasômetro.
‘‘Dormiu bem?’’
Relembre
Tantas horas perdidas na distância de
um aplicativo. Pensei que nada faria 2021 DIREITO À CIDADE
ser pior que o ano passado. Depois de
tanto vazio, tanto frio, sem sorrisos nem Uma mesma cidade diz coisas
abraços, subindo a Borges desabitada muito diferentes para cada um
como numa cena de filme pós-apocalíp- de nós – e sobre nós. Ou deixa de
tico. A vida pós-moderna. ‘‘Todo mundo dizer. Em uma crônica, publica-
agora se conhece assim, tua prima não ca- da na Parêntese em 2019, José
sou com um carinha do Tinder?’’ Era ver- Falero reflete sobre as diferentes
dade. Ela tinha casado. E mais uma vez eu experiências vividas no espaço
falando de você, de como me doía aquela urbano. Quem acessa o que uma
estranha sensação de te amar sem nunca metrópole tem a oferecer? Que
ter te visto, nunca ter te tocado. E naquele encontros são possíveis e para
espaço, entre o aí e o aqui, eu viajando ao quem? Que histórias cada um de
imaginar o cheiro dos teus cabelos, o bri- nós pode escrever na cidade?
lho da tua risada, o som da tua respiração
à noite. Como se faz para enterrar alguém “Os subempregos me fizeram
que se fez presente em todos os lugares ir para lá e para cá, sacolejando
vazios desta cidade que nunca esteve? dentro de ônibus lotados. Eu via
os prédios do Centro passando
pela janela, e durante anos a fio
Conversávamos o tempo todo. ‘‘Aqui eles nunca me disseram nada.
hoje tá um sol tímido’’, na calçada suja do Era como se nem mesmo fossem
Opinião. ‘‘Bom dia, querida’’, no banco de de verdade. Era como se fossem
madeira do Gasômetro. ‘‘Dormiu bem?’’ só parte de um gigantesco cená-
Hoje o silêncio no vento frio que cola mi- rio de papelão, morto, sem vida,
nha máscara ainda mais ao rosto no via- sem histórias.”
duto Otávio Rocha. Ela está úmida das lá-
grimas que choro enquanto penso que tu
nunca visitou Porto Alegre, não tivemos Leia a crônica no
esse tempo. A tua ausência me parece tão site da Parêntese
irreal quanto tua morte prematura. Mas,
pior é na guerra.
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Foto: Arquivo pessoal
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entrevista
ANDRE LEMOS –
AS CORES E AS
SOMBRAS DAS
CIDADES INTELIGENTES
Pesquisador da cultura digital desde os
anos 1990, o professor da UFBA fala sobre os
possíveis impactos da mediação onipresente
das plataformas na vida urbana
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E
ntre videoconsultas e relógios des sociais e no dossiê “In Vitro” no blog
inteligentes de Os Jetsons, e do Lab404 (Laboratório de Pesquisa em
olhos que tudo veem de 1984, Mídia Digital, Redes e Espaço/Poscom-
as diferentes visões de futuro, quan- UFBA). Mesmo em suas publicações
do são descritas, falam mais sobre o mais acadêmicas nesses mais de 30 anos
presente que do porvir. A superpotên- de contribuições à área, o professor faz
cia autoritária baseada em vigilância, jus à profissão e proporciona bons mer-
como descreveu George Orwell, parecia gulhos na evolução da cultura digital e
um problema que ficaria na década de na formação de fenômenos sociais como
1940, enquanto a simpática Rosie era as cidades inteligentes de modo com-
mágica como os primeiros eletrodomés- preensível e lógico.
ticos dos anos 1950 e 1960. Animador
ou aterrorizante, estamos numa época Um exemplo de boa didática é esta
em que câmeras medem a temperatu- entrevista. Concedida a la Jetsons por
ra corporal dos transeuntes na Estação videochamada, nela, André Lemos fala
Mercado e já é possível conversar com sobre dataficação, plataformização e
uma geladeira, então, é seguro dizer que pinta as cores vibrantes e sombrias de
algum futuro já chegou. E ele veio tra- um amanhã que já está presente.
zendo tudo: o robô aspirador, os carros
que dirigem sozinhos e, claro, a vigilân-
cia e o roubo de dados. Parêntese – Como o senhor vê,
em 2021 e especialmente no Brasil,
No início da década de 1990, quando a questão das cibercidades?
a maioria sequer havia ouvido o frus-
trante e inesquecível ruído da internet André Lemos – O que a gente cha-
discada, André Lemos já estudava ciber- mava de cidade digital era num momento
cultura em seu doutorado na Université em que a internet emergia e que precisa-
Paris Descartes, na França. Na década ríamos dotar as cidades de infraestrutu-
seguinte, para saber do trânsito era pre- ra básica mínima de acesso à internet,
ciso ligar no rádio e torcer para o locu- de transparência da informação pública.
tor falar da sua rota, mas o hoje profes-
sor da Universidade Federal da Bahia
participava em Dublin, Irlanda, de pes-
quisas a respeito das cibercidades, que
viriam a se chamar mais tarde cidades
inteligentes. Em 2021, imaginar o futu-
ro do espaço urbano e da nossa relação Considero questões
com a cultura digital passa por observar centrais na discussão
as pesquisas passadas e presentes de
André Lemos.
sobre as cidades
inteligentes hoje o uso e
Para quem não é iniciado no tema, a segurança dos dados.
a dica é começar pelas reflexões a res-
peito da mútua influência entre cultura
digital e pandemia presentes no livro
A Tecnologia é um Vírus: Pandemia e
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outra coisa: “Peraí, será que isso é inte- P – Em seus trabalhos, o senhor
ligente mesmo?”, “De que inteligência fala muito das cidades inteligen-
nós estamos falando?”. O “smart” aqui tes terem a ver com uma questão
no “Smart Cities” são tecnologias sensí- de adaptabilidade em relação ao
veis digitais. Isso não significa necessa- uso que se faz da própria cidade.
riamente que estamos caminhando para Em que medida o senhor avalia que
uma cidade mais inteligente. Isso seria os governos – nas esferas munici-
uma discussão importante a ser feita. pal, estadual e federal – têm real-
Toda cidade é inteligente na sua forma de mente feito uso desses dados para
existir, mas uma cidade inteligente não melhorar as cidades e deixá-las
necessariamente precisa usar esses arte- mais adaptáveis?
fatos para desenvolver a sua inteligência.
Talvez, seja mais inteligente uma cidade AL – Não tem uma receita pronta para
em que as pessoas consigam se deslocar ser utilizada em todos os lugares. Eu pas-
de maneira mais autônoma e que gere sei um ano na Irlanda e fui trabalhar com
menos pegadas de carbono do que com o Rob Kitchin (professor e pesquisador
carros que dirigem sozinhos, por exem- na Maynooth University), que é um dos
plo. Por um lado, o termo vincula a essas maiores especialistas mundiais nessa
tecnologias que são inteligentes porque discussão. Tinha uma experiência muito
captam dados em tempo real e nos per- interessante, em Dublin, que era o uso
mitem agir no fluxo do deslocamento tripartite de empresas públicas, das pre-
de pessoas e dados. Por outro lado, nos feituras (há mais de uma responsável por
permite questionar de que cidade inteli- Dublin) e das universidades para produ-
gente nós estamos falando, o que é uma zir experiências inteligentes na cidade.
cidade inteligente, qual o futuro, o que Nós tínhamos lixeiras que sabem quando
queremos e outras questões. estão cheias e indicam quando devem ser
coletadas para ter uma maior racionaliza-
ção do transporte. Você tem sensores em
prédios públicos que medem o grau de
ruído e de poluição da cidade, bicicletas
públicas, aplicativos para todo o deslo-
camento de ônibus, smart cards para pe-
gar o trem e os ônibus, e uma ação, tam-
Toda cidade é bém, de vigilância e de controle. Essas
inteligente na sua são tecnologias de vigilância no sentido
mais neutro da palavra: eu estou vigiando
forma de existir, mas como está o trânsito pra poder intervir,
uma cidade inteligente quantas pessoas tem no ponto de ônibus
para poder colocar mais ônibus naquele
não necessariamente ponto, o ruído para ver se consigo dimi-
precisa usar esses nuir. Por isso que a Shoshana Zuboff (pro-
artefatos para fessora aposentada da Harvard Business
School, autora de A Era do Capitalismo
desenvolver a de Vigilância - Editora Intrínseca, 2021.
sua inteligência. 800pg) vai chamar esse capitalismo de
dados como um capitalismo de vigilância,
que é colher dados para produzir ações.
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questão central, que também precisa o meu trabalho hoje, com a pandemia,
ser discutida. Que dados são colhidos? passa pelas plataformas: eu dou aula,
Para onde vão os dados? Quem protege? oriento, faço conferência, tudo pelas pla-
Quem é essa instância que regula isso? taformas. Então, essa plataformização
Essas questões eu considero centrais na passa a ser a estrutura da sociedade con-
discussão sobre as cidades inteligentes temporânea. Os governos precisam lidar
hoje: o uso e a segurança dos dados. com isso também, ou desenvolver plata-
formas próprias. Por exemplo, agora tem
essa plataforma do Governo Federal em
P – A gente viu na pandemia a que nós, servidores públicos federais,
associação entre entes públicos temos que passar. O meu colega Sérgio
e aplicativos da Apple, ou com a Amadeu (doutor em Ciência Política,
própria Apple, ou com o Google. professor da Universidade Federal do
Lembro aqui do economista brasi- ABC, referência em redes digitais, pri-
leiro Ladislau Dowbor, em A Era do vacidade e tecnologia da informação) es-
Capital Improdutivo, falando dessas tava dizendo que esses dados vão todos
grandes empresas multinacionais para os Estados Unidos. Que tipo de pro-
voando acima dos radares dos go- teção tem nesse tipo de coisa? Vai passar
vernos. E a gente tem aqui os go- por servidores nos Estados Unidos, mas
vernos entregando os nossos dados são dados dos funcionários públicos. Eu,
e buscando novos dados com essas para saber meu contracheque, minhas
empresas. Como o senhor enxerga férias, e tal, tenho que entrar nesse apli-
essa associação dos governos com cativo. É compulsório. Não é algo que eu
essas grandes empresas do Big Five escolho. Então, como é feito esse tipo de
(Apple, Google, Amazon, Facebook ação? Como os governos se comportam?
e Microsoft), que têm quase um mo- Bom, eu acho que a gente precisa ter
nopólio do nosso uso da internet?
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Foto: Labfoto-Facom/UFBA
alta vigilância sobre as nossas ações que
é sempre “para o bem”. Mas é isso que
vai gerar o problema, porque esses dados
agregados vão gerar ações proativas so-
bre mim mesmo a posteriori. Vai voltar
contra mim mesmo. Como é que nós va-
mos resolver esse problema de uma co-
leta indiscriminada de dados sobre todas
as coisas? Tem um autor sobre o qual fiz
uma palestra essa semana para dizer que
a ideia de uma vida privada é uma coisa
meio ilusória, a gente usa isso mais no sis-
tema econômico, jurídico, para dizer “os
meus dados”. Mas, na realidade, os dados
não são meus. Na realidade, são eles que
me constituem. Se não tiver o censo do
IBGE, que Brasil existe? Nenhum. As pes-
soas que não têm documento, como elas
vão pegar o auxílio emergencial na Caixa
Econômica Federal? Não pegam. Tem que AL – Não sei como sair disso a não ser
ter um CPF. Essas plataformas não que- pela ação política, no sentido de fazer o
rem tanto o meu dado nominal, querem debate e criar ações que bloqueiem isso.
o dado agregado, que vai dizer “essa pes- Hoje se fala, por exemplo, de privacida-
soa que se comporta assim, ele vai consu- de pelo design. Se eu for comprar alguma
mir isso aqui, então vamos bombardeá-la coisa, por que eu tenho que preencher um
com esse tipo de informação”. Essa coisa formulário e botar meu CPF? Por que eu
não existia antes. Essas câmeras são para tenho que fazer isso? Não, você não tem
quê? Para prevenir assalto, sempre para que fazer, mas se eu não faço isso a far-
proteger, mas, na realidade, isso é pro- mácia não vai me dar desconto. Então,
dutor de vários problemas. Inclusive, há as pessoas vendem um pouco o seu dado
vários países e estados, por exemplo, nos ali. Eu tenho que ter um sistema que ten-
Estados Unidos, banindo câmeras de re- te travar isso. Um cartão inteligente de
conhecimento facial. Há todo um movi- trânsito que tem todos os meus dados.
mento no Brasil hoje de pressionar para Por que ele tem que ter todos os meus da-
que também aconteça esse banimento. dos? Essa é uma ação. Outra ação é jurídi-
Porque há muitos erros e esses erros são ca: como eu protejo isso? E técnica. Essas
sempre contra os de sempre, os pobres, plataformas, elas precisam ter respon-
negros, mulheres, etc. Esse eu acho que sabilidade nisso também, acho que isso
é o problema central: como é que nós va- está acontecendo já, depois de pressão,
mos desenvolver uma cidade inteligente, que era o que falávamos antes. Essas são
que parta do princípio que ser inteligente ações técnicas, políticas, jurídicas, educa-
significa captar o máximo possível de da- cionais, o papel da mídia, o que estamos
dos sem violar a privacidade e sem gerar fazendo aqui, o nosso papel na universi-
uma sociedade distópica, onde tudo é vi- dade, no ensino, na pesquisa, chamar a
giado e controlado? atenção para isso. E debater. Porque não
acho que vá haver um retrocesso para
chegar a tecnologias que não funcionem
P – E como o senhor acha que a mais na base da vigilância de dados. Tem
gente resolve isso? que haver proteções.
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P – E o senhor enxerga vontade coisa que se pensa em fazer para dizer que
política para fazer isso, em algum está tentando fazer algo é colocar uma câ-
nível? Ou mesmo no setor privado? mera. Ou monitorar os dados, ou rastrear
o telefone celular. Isso gera uma ação mais
AL – Eu acho que as empresas sentiram simplória, mais fácil e que eles são mesmo
a pressão e começaram a reagir. Às vezes compelidos a fazer. Porque, se não fize-
parece uma gourmetização desse proces- rem, vão dizer que não está fazendo nada.
so, mas já é alguma coisa. Por exemplo, Os ônibus são rastreados por satélite aqui
os bancos fazendo propagandas, como o em Salvador, têm câmeras que não fun-
Itaú dizendo “privacidade com a gente é cionam, agora querem fazer funcionar.
tudo”, isso já é um reflexo de uma pres- Muitos dizem que essa cidade inteligen-
são. Ou mesmo a Bia, do Bradesco, dizen- te é uma cidade da vigilância, no sentido
do “olha, machismo aqui comigo não. Não punitivo mesmo. Menos para criar uma
vou mais responder a esse tipo de agres- cidade resiliente, ambientalmente amigá-
são porque eu sou uma inteligência artifi- vel, convivial e mais para controlar, vigiar
cial com uma voz feminina”. Claro, tem aí e punir. Uma estrutura foucaultiana, um
todo um marketing, toda uma gourmeti- panóptico eletrônico para controlar, para
zação, mas é uma reação. As redes sociais vigiar, não mais pelo confinamento, que
agirem no sentido de colocar alertas ou ti- deixa se mover, mas controla todos os da-
rar algo que é fake também é uma reação. dos. Não é efetivamente uma cidade que
A Apple tem uma publicidade agora na te- gere uma vida melhor para as pessoas.
levisão mostrando que retirou a obrigato- E como a gente gera isso? Eu acho que a
riedade de compartilhar dados, você pode participação pública é fundamental. Em
agora não deixar que os sites e aplicativos Dublin isso é muito legal: tem a prefeitu-
te rastreiem. E a publicidade é muito inte- ra, a participação pública, as empresas e
ressante, as pessoas vão seguindo o per- as universidades trabalhando juntas para
sonagem e daqui a pouco ele para e co- debater esses projetos. Na maioria das ve-
meça a deletar, porque são ali os cookies zes, aqui, são processos que saem de um
seguindo a pessoa o tempo inteiro e mo- gabinete de uma prefeitura. Então, seria
nitorando o que a gente faz. Essa é uma fundamental ampliar o debate público so-
ação importante também. O Marco Civil, bre esse capitalismo de vigilância e sobre
a LGPD, no Brasil, são marcos importan- como podemos transformar um pouco
tes. Mas tem muito a ser feito ainda. E os esse tipo de ação no espaço urbano.
desafios são muito grandes porque nós
vivemos num país de extrema violência.
Aqui em Salvador nós temos quatro ou
cinco assaltos a ônibus diários. Qual a so-
lução do prefeito? Colocar câmera de vi-
gilância. Bom, a câmera de vigilância não
vai funcionar, vai gerar viés, mas o que o
Há muitos erros e
cara vai fazer? Tem que fazer alguma coi- esses erros são
sa. Vai colocar um policial dentro de cada sempre contra
ônibus? Vai ser pior ainda porque o cara
vai sacar a arma, tiroteio, vai matar as os de sempre, os pobres,
pessoas. Então, a primeira coisa que eles negros, mulheres.
pensam em fazer é colocar uma câmera de
vigilância. E isso é fruto de uma estrutura
muito maior que não vai se resolver com
uma câmera de vigilância. Mas a primeira
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A PROCURA DA
ALMA DAS CIDADES
Pesquisador da história de cidades ao redor do
mundo, Joel Kotkin projeta núcleos urbanos menos
densos em nome de maior qualidade de vida
“
As cidades perderam sua alma.” É o que enxerga hoje o geógra-
fo norte-americano Joel Kotkin. Diretor-executivo do Instituto
de Reforma Urbana de Houston e professor da Universidade de
Chapman, na Califórnia, o geógrafo norte-americano é pesquisador
do desenvolvimento dos núcleos urbanos ao longo da história e autor
de livros sobre o tema, incluindo “A Cidade: Uma História Global” e,
mais recentemente “The Coming of Neo-Feudalism: A Warning to the
Global Middle Class” (ainda sem tradução para o português). Kotkin
acredita que a pandemia irá acelerar mais um novo processo de trans-
formação das cidades em um futuro próximo.
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ro dos centros urbanos como focos de ço de 2020. Vai ser necessário pensar
convívio e reunião. São Francisco, Nova a urbanização – e o que se quer para
York, Chicago sempre serão grandes ci- o futuro: “Temos que refletir e decidir
dades, mas não vão ser tão importantes como encolher a planta urbana para
economicamente e não vão crescer tan- que fique mais humana”.
to demograficamente”.
A cidade, afinal, deve ser feita para
Mas a volta ao cotidiano que era tido as pessoas. Em seu livro, ele defende:
como normal antes da pandemia tam- “Muito mais importante para o futuro
bém precisará de ajustes. “As pessoas das cidades que construir novos edi-
passaram 18 meses em casa, não vão fícios será o valor que as pessoas atri-
querer ir ao escritório, perder uma hora buem à experiência urbana. “No fim,
todos os dias ou mais”, alertou. “Elas uma grande cidade depende das coi-
não terão problema em encontros pon- sas que suscitam em seus cidadãos um
tuais para trabalhar, mas vão querer apego peculiar e forte”, acrescentou
manter suas vidas em casa também”, ele, citando o sociólogo Robert Ezra
acrescentou ele. “Acho que temos que Park: “A cidade é um estado de espíri-
voltar a ter lugares onde a gente possa to, um corpo de costumes, e de atitudes
ter intimidade, se sentir em comunida- e sentimentos não organizados”.
de. Precisa reconceber a vida urbana.
Forçar as pessoas para dentro de me-
trôs cinco dias por semana não vai fa- VALORIZAÇÃO DA
zer isso. Passa da crise da Covid para a ARQUITETURA DO
crise da comunidade.” CENTRO
Logo, não bastará “voltar ao normal” Joel Kotkin acredita numa nova par-
e retomar a vida tal qual era até mar- ticipação dos centros na vida das cida-
des. “Terão de se reinventar”, afirmou.
“Especialmente onde existe arquite-
tura tradicional.” Por aqui, a gestão
Sebastião Melo reitera a disposição
em revitalizar o Centro Histórico de
Precisa reconceber Porto Alegre, acenando com reformas
a vida urbana. de prédios da região até uma eventual
derrubada do sempre polêmico Muro
Forçar as pessoas da Mauá.
para dentro de metrôs
cinco dias por semana Mas o escritor alerta: a revitalização
de centros não passa necessariamente
não vai fazer isso. por arranjos futuristas. Bem pelo con-
Passa da crise trário. Kotkin citou um exemplo orien-
da Covid para a crise tal para explicar seu pensamento: “Na
China, tudo é muito moderno, mas é
da comunidade. feio, chato”, opinou. “É mais interes-
sante em pequenos bolsões de arqui-
tetura, até com influências europeias.
São zonas que estão florescendo.”
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nossos mortos
“
Está é a Sandra dos anos 90.” Com ria, nesse obscuro 2021, dizer que a histó-
esta frase, a professora, historia- ria não passa de ficção, quando o negacio-
dora e pesquisadora de sobreno- nismo já entrou pela porta e os projetos de
me tapuia Jatahy e italiano Pesavento, retorno a mais recente Ditadura brasileira
recebido do marido Roberto, encer- tomam assento em nossa mesa? Agora, é
rava uma de suas tantas palestras, na fácil. Mas quem foi capaz de não só resis-
sala Redenção, no Campus Central da tir mas se reinventar naqueles anos 1990,
Universidade Federal do Rio Grande do última década do século? Sim, ela mesma:
Sul. Meus olhos de estudante curiosa Sandra Pesavento. Com a nova perspec-
contemplavam a metamorfose da histo- tiva teórica, já vigente aqui e em outras
riadora social, com consolidada produ- praias, vinham também novas problemá-
ção intelectual calcada no materialismo ticas, novos objetos, novas temáticas, no-
histórico, que reorientava suas investi- vas abordagens. Nesse leque de possibili-
gações para a perspectiva da denomina- dades, Sandra lançou sua mirada para a
da Nova História Cultural. cidade e, ao lado de outros colegas impor-
tantes, reconfigurou os estudos urbanos
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É sabido que
ninguém inventa
a roda e todo
pesquisador parte
do conhecimento
acumulado por aqueles
que vieram antes.
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importava pensar que o sonhado, o ide- ganizada por Sandra Pesavento à frente
alizado e o percebido sobre a cidade não do Museu da UFRGS e a exposição Porto
se encontravam hierarquicamente abai- Alegre Caricata, desta vez organizada
xo dos denominados acontecimentos e com a equipe do Museu de Porto Alegre
que a imaginação compõe a história da Joaquim José Felizardo.
cidade, assim como o vivido. Nesse senti-
do, através dos aspectos sensíveis do ur- Por incrível que pareça, a década que
bano, Sandra Pesavento lançou as bases fora marcada pela propalada crise da
para a investigação do imaginário na his- história, também foi aquela em que a
tória brasileira e para a consideração das universidade – especialmente através de
formas de pensar, de ver e de conceber o Sandra Pesavento, de suas pesquisas e
mundo na composição do todo social. de seus inúmeros admiradores – com a
população porto-alegrense ousou sonhar
com uma outra Porto Alegre possível. Se
Na vertente da História Cultural, hoje por enquanto o futuro é incerto, quem
já não tão nova, nenhum documento sabe ao reinventar o passado sob inspi-
do passado ou temática deve ser des- ração de Sandra, possamos alimentar as
considerada para a construção do co- nossas esperanças de dias melhores.
nhecimento histórico. Guiada por esse
princípio, criticado por alguns colegas,
Sandra Pesavento acolheu e estimulou a
investigação de objetos de estudos con-
siderados heterodoxos e não atinentes à
disciplina, naqueles tempos, como o car- A partir do estudo
naval, os museus, o patrimônio, as fes-
tas, o cinema, a publicidade, a fotografia, do imaginário,
os hospícios, a psiquiatria, a família, os importava pensar
bandidos, a polícia, entre tantos temas
orientados por ela.
que o sonhado,
o idealizado e o
percebido sobre
Acredito que a atenção para os estu-
dos urbanos e para a história de Porto a cidade não se
Alegre, nos anos 1990, teve um com- encontravam
ponente incentivador para Sandra hierarquicamente
Pesavento e tantos outros pesquisado-
res, entre os quais me incluo. Aquela dé- abaixo dos
cada marcou também a gestão da cidade denominados
pela Administração Popular, mantida no
poder por quase 20 anos. A efervescên-
acontecimentos e
cia cultural, o ambiente político propício que a imaginação
para pensar e para refletir sobre Porto compõe a história
Alegre contribuiu para um desejo de
produzir conhecimento histórico sobre da cidade, assim
a cidade e, por outro lado, ultrapassou como o vivido.
os muros da universidade e alcançou um
público mais amplo. São exemplos disso
a exposição que logo virou livro intitula-
da Porto Alegre: espaços e vivências, or-
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CIDADE NANQUIM
Eloar Guazzelli Felizmente minha comprimento horizon-
ansiedade foi canaliza- tal, cada uma formadas
da para o desenho, e foi por quatro folhas colo-
A
construção do dessa forma que come- cadas uma sobre a outra,
painel que de- cei a desenhar em folhas formando uma altura de
pois veio a ser A4 uma cidade vista de 84 centímetros). Ainda
chamado de Cidade cima. A escolha desse ta- sem nome, tinha nas-
Nanquim foi fruto do manho de papel se expli- cido a cidade nanquim.
acaso. Em 1990, fui sub- ca pela necessidade de Um painel que hoje ain-
metido a uma pequena desenhar sem grandes da segue em construção,
cirurgia que, apesar de complicações, em geral com aproximadamente
não constituir uma in- deitado tendo um peque- 30 metros (a metade do
tervenção grave, exigiu no suporte servindo de tamanho que penso ne-
uma recuperação cheia base. Porém logo o dese- cessário para retratar
de cuidados: deveria fi- nho começou a crescer e esta cidade).
car dentro de casa pelo comecei a fazer emendas
período de um mês, que levaram a cidade Cada etapa foi execu-
além de evitar o sol, pois para outras folhas suces- tada em períodos que ti-
fora submetido a uma sivamente. Sem planeja- nham entre si intervalos
grande incisão no maxi- mento prévio, ao final relativamente longos, al-
lar e tinha de evitar ba- de meu retiro forçado, gumas vezes abrangen-
tidas nesse local. Uma eu tinha feito um painel do mais de um ano. Foi
situação chata para uma de aproximadamente 40 o preço que paguei pela
pessoa inquieta. folhas (dez colunas no liberdade que o traba-
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lho apresenta ao não es- cado na memória e cons- Por isso mesmo esse tre-
tar vinculado a nenhum truído pela imaginação. cho de muralha que co-
projeto específico. Claro Logicamente o fato de mecei a desenhar a par-
que a produção dos de- ser um apaixonado pelas tir de 2005 apresenta
senhos em momentos cidades (e ter a sorte de nítidos traços orientais,
diferentes levou a certas viajar por vários países) revelados nas cúpulas
descontinuidades for- ajudou-me a coletar um que dominam algumas
mais, mas acredito que grande número de ima- de suas torres.
justamente aí encontra- gens ao longo de anos de
-se um elemento enri- pesquisa e desenho de O amontoado de ca-
quecedor deste trabalho, observação. Talvez a úni- sas que fica entre as
ao trazer para o primei- ca exceção seja um car- pedras da muralha e as
ro plano seu caráter de taz na estação de trem, curvas dos penhascos
obra ainda em execução vagamente inspirado em foi adquirindo maior
e, ao mesmo tempo, sa- um cartaz soviético. densidade com o passar
lientando seu caráter do tempo, construindo
espontâneo. Na verda- Na verdade, sou um um pequeno povoado
de toda cidade é imagi- apaixonado pelo univer- sobre a costa. Ao longo
nada, sem que nenhum so urbano em geral, mas desse cenário também
dos seus desenhos tenha com certeza a Cidade coloquei um trecho de
sido copiado a partir de Nanquim guarda mui- linha de trem. A cida-
referências fotográficas ta influência das duas de busca novos espaços
ou desenhos de obser- metrópoles do Prata (as que já estão assinalados
vação. Essa foi uma das capitais do Uruguai e nas minhas mais recen-
premissas mais impor- da Argentina), cidades tes anotações. A costa
tantes deste trabalho que me causaram gran- irá continuar escarpada
que nasceu ao acaso mas de impressão desde mi- mas o bairro antigo será
se converteu logo numa nhas primeiras visitas seguido de um trecho
espécie de jogo pessoal, ainda adolescente. “virgem” ocupado por
um teste de habilidades um trecho de floresta.
e, ao mesmo tempo, uma Um olhar atento so- Por sua vez, a linha de
grande brincadeira: não bre estes cadernos reve- trem irá desaparecer em
desenhar sobre o real ou la inúmeros rascunhos um túnel que passa jus-
dentro das regras nor- de um bairro muito po- tamente sob este trecho
mais de trabalho, com bre cujas habitações fo- de mata. Depois desta
prazos definidos, metas ram construídas com parte que será pratica-
a alcançar e, sobretudo, pedaços da muralha que mente o encontro entre
esboços. também acompanha a o morro escarpado e
costa escarpada. Prova- o mar, a linha de trem
À cidade caberia ser velmente essas habita- reaparece na saída do
um território de liber- ções rudimentares foram túnel, já dentro de ou-
dade, aquele lugar onde construídas com restos tro contexto, um bairro
busco refúgio das vicis- da fortificação, pratica- turístico, totalmente à
situdes do ofício de de- mente integradas ao seu beira-mar, meio cami-
senhista e da vida em conjunto. Esse bairro nho para um bairro an-
geral. Dessa forma cada nasceu da observação de tigo elegante que indica
prédio, logradouro, mo- antigas cidadelas orien- o extremo “ocidental”
numentos e personagens tais como a de Istambul, do painel. Mas isso é o
da cidade tem de ser bus- cidade que me fascina. futuro.
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pensata
EM BUSCA DE
UMA CIDADE PARA
AS MULHERES
Mariana Félix de Quadros
E
m que medida a ação dos mo-
vimentos de mulheres, intelec-
tuais e feministas pode auxiliar
os(as) gestores(as) públicos(as) a pla-
nejar as cidades com uma perspectiva
de gênero? Como podemos avançar?
Como podemos construir uma socieda-
de feminista, antirracista e inclusiva?
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P
lanejar mobilidade urbana vai Pessoas planejam suas viagens con-
além de projetos pontuais, de siderando uma série de fatores: o tem-
ciclovias ou reestruturação de po de viagem, custo, conveniência e
vias, (que são extremamente impor- segurança do deslocamento completo,
tantes, mas não suficientes). Uma cida- da origem ao destino, para o horário
de com um bom padrão de mobilidade e particularidades da atividade. Uma
deve viabilizar que a população reali- rede de ciclovias disponível na orla do
ze os deslocamentos necessários para Guaíba e no centro da cidade pode ser
desenvolver suas atividades de forma adequada para o deslocamento de es-
eficiente, segura e agradável. Mas o tudantes que residam na Cidade Baixa
planejamento de mobilidade precisa ou Menino Deus e se destinam ao cam-
atender às necessidades de toda a di- pus central da UFRGS, por exemplo,
versidade de usuários da cidade. mas não viabiliza o deslocamento de
um grande número de pessoas, como
Ampliar os deslocamentos a pé e moradores do extremo sul da cidade
por bicicleta é altamente desejável por
vários motivos, por questões de saúde
(uma população que pratica exercício é
mais saudável); por questões econômi-
cas individuais (são mais baratos); mas
principalmente por questões ambien- Modos ativos de
tais e pela eficiência sob o ponto de vis-
ta de uso do espaço. Modos ativos de deslocamento
deslocamento contribuem para a qua- contribuem para
lidade do espaço urbano (uma região
com pedestres e ciclistas é mais viva,
a qualidade do
mais agradável). Investimentos em espaço urbano
ambientes com calçadas confortáveis, (uma região com
espaços agradáveis e seguros, com uma
combinação de comércio, serviços e re- pedestres e ciclistas
sidências, que estimulem a população é mais viva).
a realizar seus deslocamentos a pé, traz
retornos econômicos. Estudos desen-
volvidos em algumas cidades, inclusi-
ve brasileiras, indicam que imóveis em
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ensaio
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orto Alegre é o final de um ca-
minho, que os Guarani chamam
Tape. Aqui, flora, fauna e gente
se encontram e permanecem, às mar- sou. Tupã, o mais novo, dono do trovão,
gens do Guaíba. do vento e da brisa, também recusou.
Jakaira, o dono da bruma e das plumas,
Nhanderú criou Yvy tenonde, a foi quem aceitou. Caminhando e fuman-
Primeira Terra, e subiu até Oyva ropy, do seu petygua, o cachimbo sagrado, ele
o firmamento, para descansar. Depois, criou a Segunda Terra, essa em que vi-
essa terra ficou coberta de água. Os geó- vemos hoje, chamada de Yvy rupá. Na
logos calculam que por volta de 400 mil caminhada, encontrou dois Guarani que
anos Porto Alegre era um arquipélago de estavam deitados, sem vida, e de seus
ilhas que hoje são os topos dos nossos corpos criou a Guajuvira, a árvore sa-
morros. Ali no alto, enormes matacões grada que usam para fazer seus arcos e
comprovam que só a força das águas po- seu petygua. Assim os Guarani contam a
deria carregá-los. Lá em cima, a grama história da primeira árvore.
baixa, testemunha de um tempo frio, é
alimento para os graxains, que até há Pela Geologia, há 5 mil anos che-
pouco dividiam o espaço com o veado garam as árvores, que em guarani
campeiro, hoje extinto. são chamadas de yvyrá, tanto as da
Mata Atlântica como as da Floresta da
Depois de um tempo, o clima esquen- Amazônia. Elas se estabeleceram nas
tou e os campos recuaram para o sul, en- encostas dos morros e nas bordas dos
quanto chegavam os butiás e os maricás rios, onde vivem o gato do mato e o bu-
vindos do Chaco. Chegaram e se instala- gio ruivo. Dizem os Guarani que cada
ram nas regiões mais baixas e úmidas de planta tem seu animal. Por exemplo, no
banhado. Com eles vieram a capivara e o miolo da flor da erva do bugio pode-se
ratão do banhado, que até pouco tempo ver a cara de um bugio. O jacaré tem sua
dividiam o espaço com o jacaré do papo planta, o cachorro tem sua erva, o beija-
amarelo, hoje extinto. -flor tem sua flor. Os Guarani têm a sua
erva, caá mini, a erva-mate.
Contam os Guarani que nos Tempos
Originários, quando as águas baixaram, Quando as águas estavam bem bai-
tudo ficou muito seco. Nhanderú, então, xas, os Guarani saíram do Yvy mbyte,
pediu aos seus filhos que se ocupassem o Centro do Mundo, e começam o seu
de fazer um novo mundo. Karaí, o dono guatá, a sua caminhada na direção
das chamas, o mais velho dos três, recu- de onde nasce o sol, no Paraguaçú,
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bro que em Porto Alegre vivem mais pela salvaguarda desse patrimônio de
duas etnias indígenas: os Kaingang e os valor inestimável, que é parte do acervo
Charrua. Aqui são faladas três línguas do Museu?
diferentes que nós, juruás, insistimos
em não escutar: o Guarani, a língua Jê Outra ameaça: a Mina do Guaíba,
e o Ipi, a língua dos Charrua. Suas pa- que, se instalada, poderá causar danos
lavras e suas presenças invisibilizadas e irreversíveis à qualidade do ar e das
teimosas denunciam a invasão do agro- águas ( ). Outro perigo para a nossa
negócio, que transformou as terras do sobrevivência: a retirada de areia do lei-
interior do estado num deserto de mo- to argiloso do Guaíba, que movimentará
noculturas. Porto Alegre é uma das ci- as partículas decantadas de metais pe-
dades brasileiras com maior presença sados. É do Guaíba que vem a água que
indígena, porque só aqui sobrou mato bebemos. Porto Alegre está se transfor-
para que possam viver. mando no fim da picada!
Antes de conhecer esses meus mes- Porto Alegre, esse grande tekoá, é um
tres, eu conhecia o mundo Guarani lugar delicado e frágil, como são os lu-
através da Arqueologia. Há décadas gares e os momentos de encontro. Com
os arqueólogos prospectam, registram os povos originários, com quem nós, o
e estudam os sítios arqueológicos de juruás, dividimos (desigualmente) essa
Porto Alegre. O material resgatado nas paisagem linda, cercada de morros e
pesquisas de campo está, na grande ilhas, banhada por um delta de rios que
maioria, sob a salvaguarda do Museu deságuam nesse lago maravilhoso e frá-
Joaquim José Felizardo, que está sendo gil, que deveria ser tratado com toda a
ameaçado por um projeto de privatiza- delicadeza que o Yy merece. Aliás, para
ção ( ) que se anuncia no horizonte, os Guarani também não existe a palavra
como prenúncio de uma tempestade paisagem como nós a entendemos em
que transformará o passado indígena português. Paisagem poderia ser tradu-
em ruínas. Se for efetivado o plano neo- zida como “o que enche meus olhos de
liberal de alugar o Museu para a inicia- mundo”. O pensamento guarani é uma
tiva privada, quem ficará responsável poesia constante.
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parecer com Paris no início do século E cada vez mais longe. Tão longe que
XX. Seus habitantes muito menos: os hoje as cidades sofrem com problemas
negros com suas tradições e religiosi- terríveis de insuficiência de seus siste-
dade de origem africana, os imigrantes mas de transporte público, com traba-
e trabalhadores pobres, cujas brigas lhadores que têm de passar horas pre-
e desordens nas casas de prostituição ciosas em ônibus e trens lotados entre
baratas e nas terríveis tavernas faziam a casa e o local de trabalho. Os becos
o deleite do jornalismo sensacionalis- que ainda insistem em ficar próximos
ta da época, condenando todo aquele aos centros urbanos continuam íngre-
vício que não tinha lugar numa cidade mes e estreitos, só que agora em áreas
moderna e branca. Assim, os becos fo- impróprias para a habitação, seja por
ram os principais alvos das campanhas riscos de deslizamento ou por serem
higienistas e dos grandes bota-abaixo destinadas à preservação ambiental.
das primeiras décadas do século XX Pode-se dizer que, se o beco ainda exis-
em capitais como Rio de Janeiro, Porto te hoje como era há mais de um século,
Alegre, Salvador e São Paulo. A pobre- é porque o problema que o origina per-
za e a sujeira não poderiam mais ser manece: a imensa desigualdade social
aceitas nos centros das cidades, então e a concentração espacial dos recursos
foram mandadas para mais longe. e serviços urbanos.
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Os becos são a
expressão espacial do
indesejável, daquilo
que a cidade não quer
ver, mas sem a qual
não funciona.
Relembre
OS BECOS PORTO-
ALEGRENSES
No início deste ano, Vinicius
Rodrigues entrevistou a Ana Luiza
Koehler sobre seu livro Beco do
O senso comum diz que nos becos Rosário, história em quadrinhos
de hoje – as favelas, os territórios ur- desenhada e roteirizada por ela.
banos marginais e conflagrados, do- No papo, ela conta sobre a pro-
minados pela violência – o Estado não posta da HQ, resultado de sua
entra. Contudo, é de se desconfiar que, dissertação de mestrado. “Sempre
após tantos séculos de divisão social tive uma grande fascinação por
e espacial no Brasil aqui simbolizada história – e história dos anos
pelos becos, talvez haja uma relação 1920, pela sua estética, pela mo-
muito mais de interdependência entre dernização urbana, pela revolução
o Estado e territórios conflagrados do tecnológica que se operava naque-
que se apresenta à primeira vista. le momento, e me perguntei como
teria sido essa década na história
Em suma, os becos são a expressão de Porto Alegre. A partir daí, foi
espacial do indesejável, daquilo que a imaginar que pessoas viveram
cidade não quer ver, mas sem a qual esse momento (e como viveram)
não funciona como funciona hoje: os para contar a história da cidade”.
trabalhadores precários, mal remune-
rados, cujos serviços de baixo custo
mantêm girando uma economia que Leia a entrevista no site
prima pela concentração da renda. da Parêntese
Enquanto esta última persistir, per-
sistirão os becos.
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A
política urbana de moderniza- com a extinção dos Becos Centrais e
ção da cidade passou décadas com o combate aos cortiços. Isso feito
planejando uma limpeza. Uma com o olhar atento dos fiscais e com a
suposta revitalização que deu origem aplicação das Normas de Construção e
ao bairro. Isso acontece efetivamente Código de Conduta.
com a entrada do período da ditadura
militar, em 1964, regime que exerce a É bom que se saiba que Porto Alegre
força através dos denominados recur- do início do XX teve um aumento popu-
sos para a transformação urbana. Daí lacional desproporcional às condições
vem a proposta de modernização dos de infraestrutura urbana existentes. A
Territórios Negros e Pobres: as Vilas busca de melhores condições de vida e
de Malocas. Uma remoção aos que re- oportunidade de trabalho motivou um
sistiam nas áreas do centro da cidade. fluxo migratório constante e crescente
Essa ação silenciou populações e suas nos primeiros cinquenta anos daque-
culturas que foram então encaminha- le século. Além de se estruturar como
Fonte: Zero Hora, 16 de março de 1967. Museu da Comunicação Hipólito José da Costa
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A cidade é um encontro
de culturas com origens
tão diversas quanto as
trajetórias humanas que
as compõem.
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Foi de madrugada,
a polícia de choque
chegou e foi avisan-
do:
– De novo!
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Tu dá sardinha
que trago a
massa e fulana
o tomate, por
muito tempo
vivemos assim.
Therezinha Rosa Marques
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O
debate sobre criminalidade e No Brasil, seja por conta do modelo
segurança pública no Brasil tem de policiamento adotado, seja em fun-
sido pautado pela polarização ção das limitações impostas pelo texto
entre defensores de medidas duras con- constitucional, os municípios perma-
tra o crime, que vão desde o endureci- neceram por muito tempo à margem
mento das penas e dos trâmites proces- do debate sobre segurança pública.
suais até o salvo conduto da excludente Via de regra, este foi um problema
de ilicitude para a violência policial, e considerado de responsabilidade dos
críticos do sistema de segurança pública governos estaduais. Contudo, a partir
e justiça penal, pelos abusos praticados do final dos anos 90 a segurança pú-
e a ineficácia do encarceramento para a
contenção da criminalidade.
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recomendações
Foto: Cobogó/Divulgação
LIVRO
RACIONAIS MC’S:
SOBREVIVENDO
NO INFERNO | ARTHUR
DANTAS ROCHA
Em 1997, o lançamento do quarto dis-
co de estúdio dos Racionais MC’s foi um
ato de coragem. Distribuído por um selo
independente, vendeu mais de 1,5 milhão
de cópias e fez com que o grupo paulis-
ta de rap formado em 1988 invadisse o sobre a violência policial nas favelas, a
mainstream com sua “crônica da vida das negritude e a marginalização da popula-
classes subalternas do Brasil urbano”. ção negra e pobre. O palco é a cidade, de-
finida em termos políticos pelos vetores
No livro Racionais MC’s: Sobrevivendo de dominação e resistência: o poder dos
no Inferno (Cobogó, 176 páginas, R$ 46), de cima e a potência negra/periférica.
lançamento da coleção O Livro do Disco,
Arthur Dantas Rocha se inspira na cul- A voz do autor se mescla a falas de in-
tura do sample para criar um texto que, tegrantes do grupo e de outras dezenas de
reunindo diversas vozes, traça um amplo artistas e pensadores – de Lecy Brandão e
panorama estético, social e político para Baco Exu do Blues a Kabengele Munanga
discutir a relevância e a permanência do e Toni Morrison. Uma citação de James
álbum – que, em sua “fúria negra”, se tor- Baldwin resume o trauma de que trata
nou uma obra emblemática da virada do o disco: “A grande dor é que você nunca
século no país e é hoje tão urgente quanto pode chegar perto de um branco e sentir-
há quase 25 anos. -se protegido. Você é tão humano quanto
ele, e se ele está perdendo uma luta, vai
“O trabalho dos Racionais tem a força dizer que a culpa é sua, não importa se foi
dessas verdades avassaladoras que rom- você que atacou ou não”.
pem com a mentira há muito cultivada
em uma sociedade cordial”, escreve o au-
tor. Formado por Mano Brown, Ice Blue, RAIVA | MONICA
Edi Rock e KL Jay, o grupo denunciou em ISAKSTUEN
suas músicas a desigualdade e a lógica
da necropolítica por meio de letras que, Primeiro romance publicado no Bra-
como crônicas sociais, trazem reflexões sil da norueguesa Monica Isakstuen,
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