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Fevereiro

Março/2014

ANO IX
n° 56

COM GILBERTO FREYRE, O POETA E A


MEU COLEGA MAIS VELHO... CIDADE
Edmílson Caminha Ronaldo Costa Fernandes

H
á de se fazer uma diferenciação entre

Q
uando se comemoram os 80 anos civilização e cidade. O poeta apreende
de Casa-grande & senzala, que o a cidade através da civilização. A cida-
editor Augusto Frederico Schmidt de é um ente concreto, a civilização um estado de
lançou em dezembro de 1933, lembro-me existência. A cidade propicia que a civilização, ou
de que em julho de 1977, ainda sob o peso seja, a circulação de bens culturais, possa aconte-
da decisão que tomara havia pouco – largar cer nela, cidade. Não entremos em considerações
sobre a desumanização das cidades grandes. Tra-
o curso de Medicina no terceiro ano e iniciar
ta-se aqui de ver como a civilização permeia a ci-
o de Letras –, fui ao Recife para encontrar
dade e a cidade aconchega, acolhe, permite que o
Gilberto Freyre, que tanto me impressio-
poeta seja possuidor de um bem cultural, a civili-
nara com a grandeza e a opulência da sua
zação, que a própria cidade lhe fornecerá. Porque
obra. Cumpria o desejo, que ainda hoje te- a cidade é o grande receptáculo da civilização.
nho, de estar com escritores e artistas que, Não só continente da civilização como também o
na plenitude dos 70, 80 anos, já não devere- caldeirão onde a civilização e a cultura podem ser
mos ter entre nós por muito tempo (ontem alimentadas, projetadas, criadas e germinadas.
mais do que hoje, quando chegar aos 100 Continua na página 7
começa a se tornar comum). Assim, conhe-
ci Drummond, Pedro Nava, João Cabral de
Melo Neto, Afonso Arinos de Melo Franco, DESTINO E
DESTINAçãO
José Américo de Almeida, Rachel de Quei-
roz, Francisco Brennand, Dorival Caymmi,
Paulo Autran, Luís Carlos Prestes, Oscar
Niemeyer, Ariano Suassuna... e o autor de Flávio R. Kothe
Casa-grande & senzala.

N
Do hotel, telefono para o Instituto
atal tem a ver com natalício. Celebra-se
(depois Fundação) Joaquim Nabuco:
ter-se nascido. Como os salmões e as tarta-
— Por favor, gostaria de falar com Gilberto
rugas, os humanos costumam rever nessa
Freyre. época o lugar em que nasceram, reencontrar peda-
Sociólogo e antropólogo Gilberto Freyre Continua na página 3
ços perdidos de si mesmos. Inventam um novo ano,
para se separarem da roupa suja do ano que acaba e

WILLIAM SHAkESPEARE:
vestirem uma roupagem feita de bons propósitos. A
cada ano repetem o ciclo, como se a Terra não com-
pletasse um ciclo a cada momento. A vida pode não

OS PRIMEIROS 450 ANOS ter sentido, mas sempre se inventam novos quando
os velhos fracassam. Os atos que fazemos e deixa-
Fabio de Sousa Coutinho mos de fazer, todos têm consequências.
Eu não existiria se meu bisavô, aos 17 anos,

C
onsiderado por colegas, discípulos e leitores o mais lúcido e referencial crítico literário surgido em 1870, não tivesse emigrado da Silésia para o sul
nos Estados Unidos nas seis últimas décadas, Harold Bloom (1930) é, acima de tudo, um arguto do Brasil. Morando em Glogau, onde havia cinco
intérprete e devotado divulgador shakespeariano. quartéis prussianos, ele sabia que viria uma guerra.
Seu livro de maior projeção, entre os cerca de vinte, todos de qualidade superlativa, que publicou Sabia que a guerra entre a Prússia e a França não era
deles, que haviam sido invadidos e tomados, em três
desde 1959, constitui verdadeiro tratado, ao longo do qual, peça após peça, examinou os trinta e cinco
grandes guerras, pela Prússia no século XVIII. Fre-
textos que compõem a inigualável obra poética e dramatúrgica do bardo de Stratford-upon-Avon. O ca-
derico, rei da Prússia, é chamado O Grande, mas é
lhamaço se intitula “SHAKESPEARE – A Invenção do Humano” e foi editado no Brasil, com primorosa
responsável pela morte de uma porcentagem maior
tradução de José Roberto O’Shea e revisão de Marta Miranda O’Shea, pela Editora Objetiva, no ano 2000.
de alemães que Hitler. O meu trisavô dizia: “Não
O Professor Bloom dividiu seu monumento estético, de quase novecentas páginas, em nove partes, cor-
criei meus filhos para ser bucha de canhão”. Eram
respondentes a igual número de categorias que atribuiu, com irreprochável critério científico, ao OPUS pacifistas. Para não esquecer disso, deram-me um
THEATRALE de Shakespeare. segundo nome, René, acentuado à maneira francesa.
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2 Associação Nacional de Escritores Jornal da ANE
Fevereiro / março – 2014

“PADRE MENDES –
O SEMEADOR” Soneto
Danilo Gomes do Mês
U
ma edição primorosa, amplamente ilustrada com Rotary Club por alguns anos e promoveu o intercâmbio de
fotografias e reprodução de manuscritos, capa estudantes de Ouro Preto aos Estados Unidos e vice-versa.”
dura, 311 páginas, numerosos e interessantes de- Na “orelha” do volume, a Editora Liberdade assina
poimentos de amigos, parentes e ex-alunos. Assim é o livro um texto que se inicia assim: “O Semeador apresenta a vida
“Padre Mendes – o Semeador”, que teve organização e linha de Padre Mendes, educador e humanista. São dezenas de
editorial de Francelina Silami Ibrahim Drummond, con- relatos (e milhares seriam, porque são três gerações) que
sultoria e revisão de Elinor de Oliveira Carvalho e coorde- mostram a múltipla atuação desse professor de Português
nação executiva de Arnaldo Fortes Drummond. Os três são que ensinava poesia e análise sintática no rigor do metro
professores universitários aposentados, de Ouro Preto. Um camoniano de Os Lusíadas, radicais escritos em alfabeto
magnífico trabalho da Editora Liberdade, daquela histórica grego, despertava o gosto e formava o hábito da leitura; des-
cidade mineira. se professor de Inglês que inovou o ensino, introduzindo a
O livro celebra o centenário de nascimento do música como método de aprendizado; desse sacerdote que,
grande educador Cônego José Pedro Mendes Barros, o ao lado das funções de celebrar missa e participar do ca-
famoso Padre Mendes, professor de português e inglês na lendário litúrgico e paralitúrgico, recebia de portas abertas
antiga capital mineira. Ele deu aulas no Colégio Arquidio- quem o procurasse e solicitasse conselho e interseção; desse
cesano (onde fui seu aluno de português, em 1956 e 1957) agente cultural inigualável que criou um grêmio literário
e na Escola Técnica. (GLTA), nucleando a atividade cultural da cidade com gru-
Nascido em Nova Era em 29 de novembro de 1913, pos teatrais, recitais de poesia, debates literários, revista,
na Fazenda Córrego Fundo, estudou nos seminários de Ma- jornal e até rádio com programação diária.”
riana, MG, passou praticamente toda a Além dos textos de Francelina
SAUDADE
vida em Ouro Preto e faleceu em Belo Silami Ibrahim Drummond, Arnaldo
Horizonte, vitimado pelo Alzheimer, Fortes Drummond, José de Assis Car- Da Costa e Silva
em 20 de fevereiro de 1999.Em 1938 o valho, Padre Waldyr Ferreira de Almei-
ativo sacerdote fundou o Grêmio Lite- da, Elinor de Oliveira Carvalho, Aline
Saudade! Olhar de minha mãe rezando,
rário Tristão de Ataíde, nas dependên- Monteiro e Paulo Monteiro, temos na
cias do Colégio Arquidiocesano. Essa valiosa obra dezenas de depoimentos, E o pranto lento deslizando em fio...
entidade incentivava a leitura e promo- dentre eles os de Paulino Cícero de Saudade! Amor da minha terra... O rio
via peças de teatro, concertos e saraus. Vasconcelos, Emílio Ibrahim, João Pig- Cantigas de águas claras soluçando.
Os sobrinhos do sacerdote, Ali- nataro Pereira, Octávio Elísio, Ângelo
ne Monteiro e Paulo Monteiro, escre- Oswaldo de Araújo Santos, José Carlos
vem: “A homenagem a Tristão de Ataíde Baeta, Alceu Amoroso Lima Filho e Noites de junho... O caburé com frio,
provocou certa polêmica. O pensador Aluísio Fortes Drummond. Ao luar, sobre o arvoredo, piando, piando...
cristão não tinha a simpatia de todos A obra foi lançada em concor- E, ao vento, as folhas lívidas cantando
dentro da Igreja Católica. Conta-se que, rida noite de autógrafos,no velho Co-
A saudade imortal de um sol de estio.
quando da criação do GLTA, um padre légio Arquidiocesano, em Ouro Preto,
chegou a dizer que “Padre Mendes que em 21 de novembro último.Tive a ven-
fique com Tristão de Ataíde; eu fico com tura de lá estar e conhecer e rever ami- Saudade! Asa de dor do Pensamento!
a Igreja Católica”. Mesmo com a contro- gos.Noite memorável, de celebração e Gemidos vãos de canaviais ao vento...
vérsia, o Grêmio foi fundado e exerceu confraternização.
As mortalhas de névoa sobre a serra...
grande influência na vida dos jovens alunos do Colégio Tive o privilégio, como ex-aluno do saudoso educa-
Arquidiocesano e também de jovens moradores de Ouro dor, de participar daquelas páginas, a convite da professora
Preto e região.” e escritora Maria Francelina Silami Ibrahim Drummond, Saudade! O Parnaíba – velho monge
Os dois sobrinhos acrescentam, no seu precioso autora dos livros “Bernardo Guimarães Cronista” e “Leitor As barbas brancas alongando... E, ao longe,
depoimento: “Em 1964, foi estudar Literatura Americana e Leitura na Ficção Colonial”. Quanto ao livro sobre o legen-
O mugido dos bois da minha terra...
nos Estados Unidos, com uma bolsa da Fulbright, na Uni- dário Padre Mendes, trata-se, realmente, da memória par-
versidade Rutgers, em New Jersey, ficando seis meses. Lá, tilhada de um cultíssimo Servo de Deus, de um humanista
conheceu o Father Sulivan, que o levou para morar na casa que honra as tradições culturais de Minas e do Brasil. O livro (Seleção de Napoleão Valadares)
paroquial.Daí para frente, passou a ir anualmente para os é uma rica fonte de ensinamentos, informações e curiosida-
Estados Unidos, para aprimorar o inglês e, ao mesmo tem- des e quem desejar adquiri-lo pode entrar em contato com CORREÇÃO: No nº 55 deste Jornal, na coluna Soneto
po, assumir a paróquia de Father Sulivan, enquanto este o editor e professor Arnaldo Fortes Drummond, na Editora de Mês, saiu o retrato de Casimiro de Abreu em vez do
saía de férias. Isso durou até 1972, quando Father Sulivan Liberdade, Rua Antônio de Albuquerque, nº 51, Ouro Preto- de Batista Cepelos.
faleceu. Seu contato com os Estados Unidos favoreceu a -MG, CEP 35400-000 ou pelo telefone 31-35516201 ou ain-
juventude de Ouro Preto. Padre Mendes foi Chairman do da pelo e-mail editoraliberdade@gmail.com.

Associação Nacional de Escritores Jornal da ANE n o 56 – fevereiro/março de 2014

SEPS EQS 707/907 Bloco F – Edifício Escritor Almeida Fischer Editor Conselho Editorial
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2013‑2015 2° Tesoureiro: Eugênio Giovenardi José Jeronymo Rivera Cláudia Gomes
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1ª Secretária: Maria Célia Nacfur Anderson Braga Horta, Danilo Gomes, José Jeronymo Rivera,
2º Secretário: Ariovaldo Pereira de Souza José Santiago Naud, Napoleão Valadares e Romeu Jobim.
Toda colaboração não solicitada será submetida ao Conselho Editorial.
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Fevereiro / março – 2014

Continuação da página 1

COM GILBERTO FREYRE, MEU COLEGA


MAIS VELHO...
Edmílson Caminha

Q uem deseja falar?


— Edmílson Caminha. Sou cearense, ex-
-estudante de Medicina, e vim ao Recife
para vê-lo.
Ninguém precisava dizer-lhe da impor-
tância e do valor que tinha – ele o sabia des-
de sempre. Sociólogo, antropólogo, etnólogo,
historiador, jornalista, político, Gilberto Freyre
senhora: “Eu estava em Londres e me perdi na
confusão das ruas, em hora de maior movimen-
to. Dirigi-me então a um senhor e perguntei-
-lhe onde ficava a Victoria Station. Ele, antes de
— E qual o interesse de um ex-estudante de foi, essencialmente, escritor. Não apenas porque orientar-me, observou: a senhora fala um inglês
Medicina em conhecer Gilberto Freyre...? assim se considerava, mas por ser essa a maior muito fluente, mas com uma ponta de sotaque.
— É que ninguém pode entender e mais profunda vocação com que nasceu. En- É estrangeira. De onde? E quando eu lhe disse
completamente o Brasil sem ler os seus livros. saísta notável, também praticou a ficção e a que era do Brasil, sorriu, feliz, e comentou: ah, da
— Pois é Gilberto Freyre quem está falan- poesia. Sobre os versos de “Bahia de Todos os terra de Gilberto Freyre!” Ao que, segundo Mon-
do! Você poderá vir depois de amanhã, às quatro Santos e de quase todos os pecados”, confessou- tello, o amigo acrescentou: “você está vendo? Po-
da tarde? Vou pedir à secretária que agende. -lhe ninguém menos do que Manuel Bandeira: pulares, na Europa, somos eu e o Pelé!”
“Teu poema, Gilberto, será a minha eterna dor Tão vaidoso era o sábio pernambucano
Como vemos, ele próprio atendera ao te- de corno”. que essa faceta da sua índole acabou por se fol-
lefone, para surpresa minha... No dia que mar- Em 1971, a Rainha Elizabeth II tornou- clorizar. A um admirador que recebera, teria fa-
cou, lá estava eu na Avenida 17 de Agosto, em
-o Sir, ao proclamá-lo Cavaleiro Comandante do lado tanto de si mesmo que pediu perdão, ao se
Casa Forte, para visitá-lo. Chego ao histórico
Império Britânico; dez anos depois, recebeu da dar conta do excesso: “Desculpe-me, faz horas
prédio que sedia a instituição e sou levado ao
França o título de Grande Oficial da Legião de que lembro as homenagens e tributos que me
gabinete em que o presidente me espera, sen-
Honra. Duas homenagens para explodir o ego de prestam no mundo inteiro. Agora é você quem
tado a uma velha e grande escrivaninha de ma-
qualquer vivente, mais ainda o de Gilberto Freyre, fala: qual a sua opinião sobre minha obra...?”
deira:
— É uma honra conhecer o senhor. Tenho que só conhecia uma pessoa mais vaidosa que ele: Do Recife, voltei para Fortaleza com a hon-
a certeza de que intelectuais do mundo inteiro já Dona Magdalena, por ser casada com tão ilustre ra de um autógrafo no meu exemplar do Casa-
vieram ao Recife apenas para homenageá-lo. brasileiro... -grande & senzala, em que, com generosa mo-
E ele, sem nenhuma falsa modéstia: Contava Josué Montello, como prova da déstia, o autor escreveu: “A Edmílson Caminha,
— Você tem razão: personalidades de mui- vaidade do companheiro, que certo dia, em uma cordial abraço do seu colega mais velho, Gilberto
tos países já estiveram aí nessa cadeira, em que reunião diplomática, o sociólogo tomou-o pelo Freyre.” Donde se pode concluir que colegas im-
você está sentado... braço para que ouvisse o depoimento de uma portantes é que não me faltam...

ARTHUR SCHOPENHAUER,
MÁQUINA DE PENSAR
João Carlos Taveira

A
o concluir a leitura do livro de Fábio Libó- Jung, Joseph Campbell, Leon Tolstoi, Thomas der. Com isso, o sistema colabora com a minoria
rio, intitulado Schopenhauer e a Estética Mann, Fernando Pessoa e Jorge Luís Borges. no sentido de tornar o rebanho mais afável dentro
do Desejo (Editora Wizard, 2012), ficamos Schopenhauer ficou conhecido por seu li- de um status de acomodação cada vez mais me-
com a sensação de que desconhecíamos muitas de vro O Mundo como Vontade e Representação, que diocrizante. Fugir desse estigma é tarefa para pou-
suas próprias descobertas. Corajosas descobertas. sintetiza as ideias de que o nosso mundo é dirigi- cos. E muitos sabem disso.
Meticuloso e atento, Fábio Libório percorre um do continuamente por uma vontade insatisfeita e Já no livro A Arte de Envelhecer, o filósofo
caminho, se não totalmente novo, pelo menos busca a satisfação influenciado pelo pensamento continua, por intermédio de aforismos, suas aná-
bem arejado e convidativo. Seu estudo é resultado oriental. Segundo ele, “a verdade foi reconhecida lises certeiras em relação ao homem. Para ele, o
de vários anos de docência e apresenta um retrato pelos sábios da Índia”. Por isso, as soluções apon- pior dos sentimentos é a inveja, que só encontra
fiel do indivíduo a partir da sexualidade propos- tadas para o sofrimento foram semelhantes às dos apaziguamento na morte, pois na velhice só faz
ta pelo gênio alemão. Sexualidade esta que vem pensadores budistas, que tinham a fé como reali- arrefecer, em alguns casos. No geral, vai aumen-
envolta por muitos aspectos da condição huma- dade transcendental. tando com o passar do tempo. E Fábio Libório
na. Dentro da visão cristalina de Schopenhauer, o Esse homem era uma verdadeira máquina soube transmitir com sutileza estilística todas as
homem se utiliza da expressão amor para nomear de pensar e seus pensamentos — os mais diver- nuanças do discurso schopenhaueriano, dando-
sua pulsão ao sexo, que tem por meta precípua a sos em áreas distintas — continuam vivos e atu- -nos uma visão abrangente e ao mesmo tempo
preservação da espécie. Nada mais que isso. antes nos meios acadêmicos. E o que explica isso? sintética.
Como é sabido, Schopenhauer influenciou Certamente sua lucidez diante dos fatos e da vida Esse é o papel que todo livro devia cum-
muita gente boa nos meios filosóficos, literários dos seus semelhantes, sempre carentes de certezas prir, mas que, infelizmente, ainda não acontece,
e musicais do mundo moderno. Entre suas in- e confirmações dos arquétipos mais recônditos principalmente nos países em que as pessoas con-
fluências mais marcantes, podemos citar as que da alma. A humanidade, desde sempre, caminha tinuam sua luta para tornar-se povo, para poder
exerceu sobre Friedrich Nietzsche, Richard Wag- meio às cegas na luta pela sobrevivência, comple- se libertar das correntes do atraso que as mantêm
ner, Ludwig Wittgenstein, Erwin Schrödinger, tamente à mercê das intempéries e do comando pregadas ao chão com individualidade egoística e
Albert Einstein, Sigmund Freud, Otto Rank, Carl de uns poucos que detêm as engrenagens do po- perniciosa.
4 Associação Nacional de Escritores Jornal da ANE
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Novo livro de Cultura em


Jacinto Guerra Debate
chega a Minas
B
onita crônica de Edmílson Caminha sobre como
Gerais conheceu o sociólogo Gilberto Freyre no antigo
Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais

D
do Recife, que hoje leva o nome do autor de Casa Grande
epois de lançamentos em Portugal e em Brasília, o livro Viagem e Senzala. A matéria está na primeira página desta edi-
a Vila Verde – Encantos do Minho (Thesaurus Editora, Brasília, ção.
2013), de Jacinto Guerra, chega a Minas Gerais, com apresentação
e lançamentos programados para março, em Belo Horizonte e Bom Despa- M
cho (terra do escritor), além de Divinópolis e Carmo do Cajuru.

O
Jacinto diz que seu novo livro resultou de “um sonho de quase cin- romancista Ruy Nedel não para. Acaba de lançar
quenta anos, quando leu pela primeira vez uma informação histórica sobre
novo livro: Revolução e Guerra dos Farrapos. O
Vila Verde” – e acrescenta: “isto foi em Bom Despacho, cidade fundada por
prefácio é do também romancista Nelson Hoff-
colonizadores portugueses que vieram do Minho nos fins do século XVIII”.
mann. Na orelha do livro, editado pela FuRI de Santo Ân-
Para desenvolver esse projeto, as oportunidades do autor vieram com uma
gelo, Marco Marques diz que “Ruy esmiúça os fatos para
bolsa de estudos na Universidade de Évora e, mais tarde, um programa de
intercâmbio entre Bom Despacho, no Brasil, e Vila Verde, em Portugal. explicar melhor o episódio que ensanguentou a província
A província do Minho, cenário desse livro de viagem a Portugal, é de São Pedro”.
uma das mais belas regiões do mundo – comparável à Provence, na França, O autor oferece o seu trabalho aos “gaúchos e brasilei-
à Toscana, na Itália, e à Serra Gaúcha, no Brasil. ros de todas as querências”.
Nesse livro, o leitor viaja também para o Gerês, um paraíso de flo-
restas, águas e montanhas, perto de Vila Verde, entre o Minho e Trás-os- M

A
-Montes, até a Galiza, na fronteira de Portugal com a Espanha. No olhar
brasileiro de Jacinto Guerra, Vila Verde não é apenas uma vila. É uma bela poeta Kori Bolivia, atual presidente da ANE, teve
e pequena cidade, com rico patrimônio de arte e cultura, belezas naturais, um de seus poemas musicado em La Paz. Em bre-
muito verde; uma cidade criativa de um Portugal de muita história, belas ve a gravação será lançada no Brasil.
tradições e surpreendente modernidade.

Resignação Miragem
Alberto Bresciani Carlos Drummond de Andrade
Para Olga Savary
Aqui te vejo passar
Chegou, impressentida e silenciosa,
E te chamo
com uma saudade eslava nos cabelos
Daqui (apesar do ridículo) e um ritmo de crepúsculo ou de rosa.
Te jogo esses ramos
Os olhos eram suaves, e eis que ao vê-los,
E por vezes aceito
outra paisagem, fluida, na distância,
Algum que devolva sugeria doçuras e desvelos.
E o pais onde espero
No coração, agora já sem ânsias,
As palavras
paira a serenidade comovida
A remissão do tempo que lembra os puros cânticos da infância.
(já tentei sair)
Logo depois se foi, mas refletida
Se eu rio
nesse espelho interior, onde as imagens
Durante o naufrágio? se libertam do tempo, além da vida,
Era só dizer
Olenka permanece, entre miragens.
Desculpe
Hoje não ia chorar. Rio de Janeiro, 1955
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Fevereiro / março – 2014
Continuação da página 1

William Shakespeare:
os primeiros 450 anos
Fabio de Sousa Coutinho

A ssim, na Parte I, As Primeiras Comédias, fi-


gura, por exemplo, A MEGERA DOMADA;
na Parte II, Os Primeiros Dramas Históri-
cos, aparecem HENRIQUE VI e RICARDO III; na
Parte III, As Tragédias de Aprendizado, o destaque é
Ao abranger, em trabalho de quase impos-
sível superação, um conjunto literário que inau-
gurou a forma mais corrente de representação de
personagem e personalidade, em língua inglesa,
Harold Bloom sustenta que Shakespeare, ao mes-
rem, ou dele se aproximem, no idioma espanhol,
Miguel de Cervantes, precursor do romance oci-
dental; o florentino Dante Alighieri, fundador, no
primeiro quartel do século XIV, como corolário
linguístico do dialeto toscano, do italiano moder-
para ROMEU E JULIETA; na Parte IV, As Altas Co- mo tempo, inventou o humano, conforme hoje no em que está moldada, lapidarmente, A DIVI-
médias, Harold Bloom analisou, entre outras, SO- nos é conhecido. Nesse aspecto, o mestre de Yale NA COMÉDIA; Luís Vaz de Camões e Fernando
NHO DE UMA NOITE VERÃO, O MERCADOR chega a ponto de afirmar que seu ídolo é o pri- Pessoa, os maiorais de Portugal e de nosso riquís-
DE VENEZA e MUITO BARULHO POR NADA; meiro psicólogo, e Sigmund Freud, que viveu tre- simo vernáculo; Victor Hugo e Marcel Proust,
na Parte V, Os Grandes Dramas Históricos, des- zentos anos depois de William Shakespeare, um gigantes da gloriosa literatura francesa; Johann
ponta AS ALEGRES COMADRES DE WINDSOR; “retórico tardio”. Wolfgang von Goethe, expoente da culta, cerebral
na Parte VI, As “Peças-Problema”, brilha MEDIDA Nascido em 1564, o fenomenal escritor fa- e admirável prosa alemã.
POR MEDIDA; na Parte VII, As Grandes Tragédias, leceu, não tão precocemente para os padrões etá- Na jubilosa celebração sem fronteiras dos
cinco peças esplendorosas: HAMLET, OTELO, REI rios de sua época, aos 52 anos de idade, em 1616. 450 anos de seu nascimento, torna-se inescapá-
LEAR, MACBETH e ANTÔNIO E CLEÓPATRA; São literalmente incontáveis as utilizações e de- vel atestar que William Shakespeare marcou, pela
na Parte VIII, O Epílogo Trágico, avulta CORIO- rivações artísticas de seus trabalhos, nos quatro grandeza inexcedível de sua criação imortal, um
LANO; e , por fim, na Parte IX, Os Romances, seis séculos e meio que transcorreram desde que veio encontro sem fim com todas as posteridades. Exis-
títulos que enfatizam o diferencial shakespeariano, ao mundo. Sua importância intelectual encontra tirá enquanto houver tempo e espaço. É espécime
sendo A TEMPESTADE o mais pujante e arrebata- pouquíssimos paralelos na história cultural da raro, único, absoluta e impermeavelmente genial,
dor dentre eles. humanidade, na era cristã: talvez a ele se equipa- que saiu da vida para viver no (uni)verso.

SONETOS DO OUTONO
Napoleão Valadares

D epois de publicar outros livros de poesia, Luiz Carlos de Oliveira Cer-


queira nos apresenta agora o livro de sonetos Folhas do Meu Outono.
São sessenta e dois sonetos, em que o autor – um lírico inveterado –,
mostra com clareza a face da saudade, da melancolia, da dor, do sentimento
amoroso e, principalmente, do sonho.
No Soneto nº 101: Venha, pássaro azul, imagem dos meus sonhos, / venha, quero
o brilhar dos seus olhos risonhos! / Estarei a esperá-la, sempre, eternamente. No
Soneto nº 109: Ah! Bom ser eremita e viver de sonhos, / pouco importa se alegres
ou tristonhos, / importa-me ser livre para sonhar. No Soneto nº 102: Abro a porta
dos meus sonhos – fico a esperá-la... / Até sinto o perfume que por tudo exala / e
O soneto, desde Jacopo, passando por Guittone e chegando a Petrarca, então vejo a razão por que ainda vivo! E ainda no 103: Ah! Os meus sonhos são os
vem vicejando no campo das letras, subindo quase sempre, às vezes descendo, sonhos de Fedra, / volúpia afogada em mares salgados...
mas sempre ganhando terreno. Dante Alighieri e Shakespeare foram seus cul- Outra constante na lira de Luiz Carlos é o trem de ferro. No lugar onde
tores. ele nasceu e se criou havia a linha, a estação e o trem chegando e saindo, com seu
Na língua portuguesa parece ter sido Sá de Miranda, no início do século apito, com seu povo. E isso parece ter deixado no autor uma profunda marca de
XVI, o primeiro a usar esta forma de poema da qual um poeta dificilmente saudade, que ele externa em muitos dos seus poemas: Da minha infância ainda
consegue fugir. E aí vieram Camões e muitos outros. No Brasil, a partir de ressoa o apito / do velho trem, soando triste e prolongado (Soneto nº 90);
Gregório, surgiram grandes sonetistas, como Cláudio Manuel da Costa, Bilac, Embarquei num trem de ferro, ainda menino / e me deixei perder no
Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos, Alphonsus de Guimaraens. tempo e na distância (Soneto nº 84); Bem junto correm trilhos, onde, em tur-
No Modernismo, começando pela Semana de Arte Moderna, com o espí- bilhão / passa o trem, que de lembrar não canso (Soneto nº 93); Há um trem
rito de mudanças drásticas, quiseram excluir tudo o que dissesse respeito a for- sempre a passar em minha vida, / quando chega me traz saudade tanta!...
ma. E nessa esteira entrava o soneto, que deveria ser, no mínimo, esquecido. Mas (Soneto nº 94).
foi por pouco tempo, porque alguns integrantes da Escola acabaram se tornando O livro vem ilustrado com selos que homenageiam conhecidos poetas bra-
excelentes sonetistas. Guilherme de Almeida, por exemplo. O próprio Mário de sileiros e estrangeiros: Camões, Olavo Bilac, Tobias Barreto, Cruz e Sousa, Allan
Andrade, chamado por Manuel Bandeira de “Papa do Novo Credo”, acabou fa- Poe, Cora Coralina, Castro Alves, Cecília Meireles, Bocage, Mário Quintana,
zendo sonetos. E Menotti Del Picchia tem dentro do famoso Juca Mulato um Gonçalves Dias, Drummond, Schiller, Machado de Assis, Manuel Bandeira, Fa-
exemplar de fazer inveja a qualquer parnasiano. gundes Varela, Dante Alighieri, Vinicius de Moraes, Guilherme de Almeida e Ca-
A poesia de Luiz Carlos, aqui como nas obras anteriores, revela senti- simiro de Abreu. A reprodução desses selos no livro vem a ser, sem dúvida, uma
mentos pessoais e profundos, com rastros de mágoa e amargura, com presença nova homenagem prestada aos poetas. Uma ilustração simples e significativa.
de dor e lágrimas presentes. Embora não exerça o rigor na métrica, tem no ver- O autor, que atualmente é Presidente da Casa do Poeta Brasileiro – seção
sejar habilidade para manejar rimas e certo poder de atração que incita o leitor de Brasília, tem participação ativa em outras instituições culturais, como a As-
a prosseguir na leitura, além de uma linguagem fluente e clara, sem construções sociação Nacional de Escritores, o Instituto Histórico e Geográfico do Distrito
rebuscadas. E isso, via de regra, agrada o povo que, principalmente nos tempos Federal, a Academia de Letras e Música do Brasil, entre outras. Este livro é, pois,
de agora, prefere uma leitura sem quebra-cabeças. produto do labor de uma pessoa do ramo, de quem há mais de vinte anos trilha
Aqui está a imagem do eterno sonhador. Na sua poesia, o autor de Solidão os difíceis caminhos da literatura.
das Horas demonstra certa obsessão pelo sonho, que é tão constante que o locali- Agora, depois de Solidão das Horas, 1990; Além da Curva, a Saudade,
zamos mesmo nos poemas de outros temas. Mas em alguns lugares o sonho está 1997; Quando Houver Nunca Mais, 2002; e Ante as Sombras, 2009, Luiz Carlos
claro, evidente, mostrando-se. brinda os leitores com Folhas do Meu Outono. Esperamos que esse outono tenha
Assim é que ele diz no Soneto nº 69: Na direção do meu olhar sem porvir, muitas outras folhas para que, além dessas, os leitores tenham a oportunidade
/ onde o sonho jamais se fará florir, / pois sonhos são, também, nuvens vaporosas... de desfrutar de uma poesia lírica que não é muito comum nos nossos dias.
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Destino e destinação
Flávio R. Kothe*

H
á quase vinte anos, quando eu fazia um pós-doutorado na uni- França, como haviam tantas vezes ocorrido nos séculos XVIII, XIX e
versidade de Frankfurt, resolvi dar um giro num fim de semana XX. Os dois lados tanto invadiram quanto foram invadidos.
pela beira do rio Mosel. Um amigo alemão, o Dr. Schwamborn, Estranho é que os parceiros não conseguiam se entender bem,
havia me recomendado ir a Ida-Oberstein, uma cidade dupla, com fortes pois os alemães não falavam o francês e os franceses pouco falavam
raízes brasileiras. Os nomes das famílias na lista telefônica pareciam os alemão. Tive de fazer o papel de intérprete. Estava sendo servido o pra-
de Lajeado, Estrela, Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do Sul. Muitos to típico da região, o “Ida-Obersteinerspiess”, um espeto com cubos de
emigraram do Hunsrueck para lá. Essa região da Alemanha, além de pro- carne de porco e gado intermediados por cebolas e tomates. Era uma
duzir um maravilhoso vinho nas encostas do Mosela, em geral branco, versão em miniatura do xixo gaúcho, de onde havia sido trazido pelos
também fazia, com pedras semipreciosas, objetos decorativos. Na década que haviam ido ao Sul do Brasil comerciar pedras na segunda metade
de 1850, houve forte praga nas plantações de batata e as minas da região do século XIX.
começaram a se esgotar. Para buscar novas fontes de pedras, as famílias Depois que com alguns cálices de vinho a conversa já corria mais
mandavam filhos ao Sul do Brasil, para comprarem ágatas. No museu solta, pedi licença para colocar uma questão delicada. Eu queria saber
da cidade essa história é lembrada. Nas lojas se encontravam, quando lá o que eles achavam daqueles que haviam emigrado no passado, pois na
fui, muitas peças decorativas feitas com pedras da região de Cristalina de época de Bismarck e das guerras eles foram tratados como traidores da
Goiás. pátria, perdendo inclusive a cidadania após dez anos de ausência. Os dois
De tanto andar para lá e para cá pela cidade, bateu-me a fome. prefeitos me asseguraram que certos estavam esses pacifistas do passado,
Era um domingo. Encontrei um restaurante, estava lotado. Conhecen- e não todos aqueles que haviam desejado guerra. Não eram covardes, e
do os costumes alemães, conversei com a chefe dos garçons. A palavra sim pessoas de coragem, capazes do ato extremo de mostrarem à pátria
“Gastprofessor” ‒ catedrático visitante ‒ iluminou-lhe o rosto. Pediu os calcanhares. Mereciam respeito pela coragem moral e pela ousadia de
que eu a acompanhasse. Explicou que estava havendo a confraterniza- começar a vida num lugar desconhecido, ainda não civilizado.
ção anual entre representantes locais e os de uma cidade francesa pou- O encontro foi chegando ao fim, os franceses se preparavam para
co além da fronteira. Havia uma parceria entre as cidades. Fui levado voltar à sua cidade, eu tinha de tomar o trem para retornar a Frankfurt.
a uma mesa e, quando vi, estava sentado entre os prefeitos e as pri- Nós nos despedimos com a sensação de que, após tão franco e cordial
meiras-damas das duas cidades. Explicaram-me que a parceria tinha encontro, nunca mais iríamos nos ver. Assim foi.
por meta principal que nunca mais houvesse guerra entre Alemanha e *Flávio R. Kothe é professor titular de estética na Universidade de Brasília.

O REI DOS LENÇÓIS


Olga Savary

Para Susana Tavares Pedro e Casimiro de Brito

O
lhar, olhava-o há anos. Vê-lo era ver andar com movimento de água, várzea já de- va. Nadar, nadava. Em chão batido de terra e
veludo, que assim o chamavam. salagada mas ainda toda úmida, promessa de areia de interior, dos cafundós do mato ou chão
Veludo. Veludo Negro – ela repetia, vastas águas represadas sempre a vir, prestes a citadino de pedrinhas portuguesas, de ardósia
incansável. Diziam-no sem vez na terra. Como, explodir de novo. A qualquer hora, pretexto ou ou pedra de lioz, íntimo de águas ribeirinhas
se era o Rei dos Lençóis? Era assim: diz-que, sortilégio. Desejava o júbilo de Veludo encalhar ou profundas, cristalinas ou barrentas, enove-
sofisticado, deitava em lençóis negros com mu- nela. Porém ele era um barco sempre a seguir, lando-se ou liberto das vegetações desapegadas,
lheres brancas, em brancos com mulheres ne- seguindo sempre. Mesmo sem sair do lugar. E soltas das terras caídas das margens e revolvidas
gras. Desejoso de contrastes aquele altivo talo onde iria fazer água, era ele que ia escolher. lá do fundo.
de palmeira alta, os bagos vermelho-escuros Outras vezes parecia percorrer bravia- Olhar, olhava-o há anos. Logo ele, que
explodindo na boca o vinho dos frutos do açai- mente campos indomáveis, sem fim, montado não a vê. Verá, virá? Fica ela à espreita, espe-
zeiro, a boca arroxeando, era puramente roxa, em búfalo, cavalo de seu próprio corpo. Os des- rando, lutadora que nem peixe das piracemas,
quase negra. Negra como a pele macia e negra campados o atraíam, só para ele demonstrar a nadando contra a corrente, a favor da vida,
de Veludo. força libertária, qual Zumbi dos Palmares. Li- barro e peixe ávido, beira e profundezas de
– Que sucesso o de Veludo com as mulhe- berdade, teu nome? Veludo. Veludo ao vento, à rio, igarapé e igapó, vazante e cheia de riacho,
res! – diziam, com inveja. – E olha que nem de mercê das chuvas compactas, chuvas amazôni- enchente, torvelinho, chuva fininha e chuva-
raça pura ele é... cas a mais não poder, vindas das 42 ilhas a ro- rada forte de bátegas fartas, chuvisco e chu-
– Raça pura é para animal. Ser humano é dear a cidade, usinando mais chuvas, coriscos, va levando a vida na brincadeira, querendo
miscigenado – respondia rindo, sábio e zombe- clarões, raios, trovões, tempestades, ventanias, só brincar de casinha, olhando a vida como
teiro, na ironia de sua majestade, todo votado à vendavais. mentirinha de teatro, ela – que nada sabe
alegria. E ele ali firme, estático se movendo, – franqueará o caminho ao senhor da vida,
Quanto a ela, observava, quieta, sem falar tranqüilo-intranqüilo, dono da terra, senhor da quando ele quiser fazê-la rainha dos lençóis
nada. Olhava só – e já era muito. Mirava aquele água, olhos puxados e carapinha. Andar, anda- brancos e dos lençóis negros.
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O poeta e a cidade
Ronaldo Costa Fernandes

A
cidade desumanizada também vai afetar o poeta. O convívio com a confrontando-se com a civilização? Não, a resposta é não. Naquele instan-
decadência da cidade, seu lado sórdido, alimentará solidão, medo e te, Lorca entrava em contato com a megalópole física, com os números
desconforto que também serão elementos de tensão produtiva. Mas exagerados de animais mortos para alimentar os nova-iorquinos, com os
esta “cidade perversa” só poderá ser apreendida de modo criativo e transfor- arranha-céus, as grandes avenidas, enfim, com a grandiosidade da maior
mador caso a civilização, cujo veículo é a cidade, possa fornecer os instru- cidade moderna do mundo. Mais tarde, conhecendo melhor a cidade, os
mentos para que o artista transforme, por exemplo, violência em produção negros, Harlem, etc., Lorca poderá mostrar um lado mais humano da cida-
poética. A cidade em si mesma, conjunto urbanístico e arquitetônico, não de. O contato com a civilização se dará no encontro com intelectuais por
tem grande influência sobre a produção poética. Deixemos bem claro: não um lado e por outro o conhecimento da situação do negro norte-america-
queremos dizer que o meio, a cidade, não atue sobre a produção poética. A no, o Harlem, e outras aventuras do gênero. Se por um lado o livro mostra
cidade só é elemento frutificador na poesia quando ela passa pelo dado da o deslumbramento do provinciano, por outro mostra a conquista estética
civilização. Mesmo que o poeta seja ingênuo ou pouco culto, a apreensão da e transformação que o artista fará a partir do contato com a civilização na
civilização se dará através de sua sensibilidade. Outros buscarão mecanismos grande cidade.
convencionais de troca cultural como a universidade, visita a galerias, acesso A questão da civilização e ruína, ruína aqui entendida como a degra-
a publicações ou atos e iniciativas congêneres. dação da cidade. O confronto entre o mundo da cidade civilizada e o mundo
O grande exemplo entre cidade e civilização está na relação entre bárbaro da cidade agressiva e violenta vai gerar no poeta uma consciência
Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. Mário vivia em Paris, na grande não de cidadania – esta, pelo contrário, é fragilizada – mas uma consci-
cidade, coração cultural do mundo, abrigo das grandes vanguardas. Pessoa ência de orfandade. Poderiam argumentar que este confronto não apenas
vivia na Lisboa provinciana, no dizer do próprio João Gaspar Simões.1 Ora, coloca o poeta encurralado em sua particular civilização como também
são duas grandes capitais européias, mas significativamente diferentes no degrada a todos. Obviamente não poderíamos eliminar o poeta da polis e a
tempo em que viviam. Paris esbanjava modernidade, Lisboa estava presa polis é a cidade de todos. Logo o fenômeno certamente se estende a todos
ao passado, até e principalmente, que é o que nos interessa aqui, em lite- os moradores da cidade civilizada acossada pela cidade bárbara. Contudo,
ratura. Antes que Sá-Carneiro influencie Pessoa, ou seja, antes que Paris o poeta irá transformar a barbárie da cidade civilizada em matéria-prima
influencie Lisboa, é Fernando Pessoa que é o mestre de Sá-Carneiro. Se- para sua obra e a sua forma de apresentação dialética desse confronto não
guramente, sem a orientação de Pessoa, segundo testemunho do próprio necessariamente acontecerá de maneira explícita ou recriminatória. Para
Sá-Carneiro, o poeta de Dispersão não seria o grande poeta da literatura mim não me interessam os índices – no sentido da linguagem de Pierce –
portuguesa se não tivesse seguido os conselhos do amigo dois anos mais em que são citados fatos de violência da cidade, mas a maneira como ela
velho Fernando Pessoa. O que acontecia então? Acontecia que Fernando sub-repticiamente incluiu-se no poema, embora a temática por vezes esteja
Pessoa entrara, através da grande, mas provinciana cidade de Lisboa (e até longe de falar de violência. Neste sentido, o poeta pode estar falando de
mesmo antes na provinciana Durban), em contato com a civilização. A es- tecnologia, ambição, angústia ou amor e seu poema conter a tensão social
tada de Sá-Carneiro em Paris era uma estada física. Embora Sá-Carneiro e a dialética cidade x violência. Talvez este seja o modo mais difícil de per-
tenha falado e comentado com Fernando Pessoa sobre alguns movimentos ceber a metáfora da violência dentro do poema, mas com certeza é a mais
vanguardistas do princípio do século que estavam acontecendo em Paris, rica e intrigante para o crítico. Até mesmo porque se o poema já chegou a
esta mesma cidade que Sá-Carneiro vivia e que o deslumbrava e que, por este nível de elaboração é porque sua poesia é transcendente e não apenas
deslumbrá-lo, dialeticamente, via Fernando Pessoa o modo provinciano relato sociológico da degradação.
de Sá-Carneiro conviver com a cidade, esta mesma cidade, dizíamos, dará Por fim a questão do poeta na pós-modernidade. A cidade é o lugar
oportunidade a Sá-Carneiro entrar em contato com a cidade física, mas privilegiado da dispersão pós-moderna. O lugar que é o não-lugar. É na
não com a civilização de Paris. Foi preciso que um poeta que nunca deixou cidade que o poeta exercita a sua capacidade de desconfiar da cidade e da
Portugal, pois Fernando Pessoa veio da África do Sul mas nunca esteve palavra que a nomeia, de buscar a margem e tornar o que é sombra e resto
em Londres ou Paris, foi preciso que o poeta de Mensagem, via civilização, o centro que por sua vez e por atuação dialética é seu oposto, a periferia. Só
desse as coordenadas poéticas para o poeta suicida que vivia nesta época, a cidade permite a multiplicação do múltiplo, a singularidade do singular,
como apontamos, no olho do furacão cultural das vanguardas. Então faça- a expressão caleidoscópica dos guetos, das etnias, das reivindicações de um
mos a distinção entre a cidade civilização e a cidade física. A primeira leva sujeito mutante e fluido. Apreender a cidade não é mais apreender a pai-
o poeta a transformações; a segunda é apenas uma moldura, um pano de sagem física ou, melancólica e nostalgicamente, lembrar-se da rua Lopes
fundo. A segunda, a cidade cenográfica, apenas transformará o poeta se Chaves, mas enveredar por um mapa do disforme, uma topografia da au-
este deixar-se comunicar e contaminar pela cidade civilização, ou seja, pela sência, um espaço vazio onde cabem todas as supostas verdades e as mui-
civilização que a cidade física lhe facilita. tas ironias urbanas. O poeta está na cidade pós-moderna como a cidade
Um dos casos curiosos é o de Frederico Garcia Lorca. Poeta cigano, pós-moderna está nele: fragmentariamente, subjetivamente, autoralmente,
cantor das províncias andaluzas, de ritmo gitano, de romanceiros fáceis e moral, étnica, marginal, excêntrica, paródica, fantasmal e alegoricamente.
musicais, quando se encontra com a megalópole Nova York é tomado pelo A cidade é uma poesia em si mesma, uma poesia não-concreta, uma poesia
horror. As imagens surreais, absurdas, fantásticas, doloridas e exageradas de um mundo virtual. O poeta hoje está em simbiose com a cidade que o
como a morte por dia de não sei quantos mil cabritos para alimentar os ameaça e o traga, o seduz e o faz vítima da trama da pós-modernidade.
habitantes de Manhattan o impressionam. Para alguns sua poesia se trans- Mais do que simbioticamente preso à cidade, o poeta não é mais aquele
forma, amadurece. Passa a incluir no seu repertório linguagem e imagem que somente acusa a cidade, mas também aquele que constrói o imaginário
universais e incorpora definitivamente o surrealismo. Mas Lorca já tinha das cidades.
entrado em contato com a civilização em Madri, na mesma Madri provin-
ciana que lembrava a Lisboa de Fernando Pessoa. Ele mesmo dissera que
abominava ser conhecido apenas como poeta do Romancero Gitano porque 1 Aqui valeria explicar a distinção entre grandes cidades e cultura feita por João Gaspar Simões justamente
aquele tipo de poesia e temática o caracterizava como um artista rústico, quando fala da relação dos dois poetas. Esta observação de João Gaspar Simões é que foi o ponto de par-
tida para teorizar sobre a distinção: cidade x civilização. João Gaspar Simões, em seu livro Vida e obra de
sem instrução, intuitivo, o que era justamente o contrário. Lorca era cul- Fernando Pessoa, afirma que “cultura é do domínio espiritual”, que Pessoa tinha cultura, mas não acesso às
to, refinado, cosmopolita, inquieto intelectualmente. De qualquer modo, o grandes cidades, “a civilização é diferente de cultura”. Para João Gaspar Simões, Pessoa era homem culto,
impacto que Nova York lhe causa e que resulta no livro Um poeta em Nova mas provinciano e Pessoa mentira, no disfarce heterônimo de Álvaro de Campos, “em sua fase civilizada,
no rompante europeu, ultracivilizado, fumiste, snob do dinamismo moderno, da força, da celeridade, da
York, é de um desatino, um forte impacto, uma surpresa e desconcerto. vertigem, do esplendor material das grandes metrópoles ou da civilização mecânica.” ( p. 270 ) Logo, João
Estaria o companheiro dos surrealistas espanhóis como Luís Buñuel (que Gaspar Simões opõe cultura x civilização, enquanto preferi trabalhar com a oposição cidade x civilização,
colocando nesta última todo o peso da cultura. Observe-se contudo que a pretensão de Simões não era
o aconselhara a deixar a temática cigana) e do monarquista Salvador Dalí tratar do assunto O poeta e a cidade, tema específico deste artigo.
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O.G. REGO DE CARVALHO, CONTINUA-


DOR DO ROMANCE MACHADIANO
M. Paulo Nunes

O
problema da morte, como de resto o do amor, tem esclarece que há dois tipos de romance: o romance-espetá- originalidade de O. G. Rego de Carvalho, na elaboração de
ocupado, de modo absorvente, as grandes obras culo, que quer dar uma imagem do real que nos circunda, e sua obra realmente única em nosso meio, uma das maiores
literárias, do passado aos nossos dias. Daí a razão o romance-problema, chamado romance-ensaio, cujo saldo de nossa geração e de nosso tempo.
por que as grandes obras de ficção não têm fugido a esse final é uma reflexão. Este romance tem como objetivo fun- Acho que essa aproximação se faz pelo lado da con-
tema, pelo contrário, todas dele se ocupam de maneira ob- damental pôr um problema. (Cf. ob.cit.p.112) duta interior das personagens. O que significa essa conduta
sedante. Partindo de tal pressuposto, que considero simplifi- interior? À falta de melhor comparação eu a identificaria
Os leitores de Eça se recordam do final de O Primo cador, mas bastante válido, podemos dizer que na literatura com aquela atitude de “amor e medo” que um crítico de
Basílio e da primorosa descrição que o romancista faz da brasileira há duas vertentes dominantes, a do romance- renome no modernismo, Mário de Andrade, pôde surpre-
morte de Luísa, uma das páginas mais dolorosas de nossa -espetáculo, segundo aquela definição, ou romance social, ender na poesia de Álvares de Azevedo, no lúcido estudo
literatura – a de língua portuguesa. Parece que o autor, na como queiram, fundado por Alencar, primeiro autor lido que publicou em sua obra Aspectos da Literatura Brasileira,
impossibilidade de manter viva a figura frágil da persona- por O.G., segundo suas confissões de escritor, e a do roman- a respeito daquele genial poeta romântico, com o título de
gem, em face do desenrolar da trama do romance, dela tan- ce-problema ou romance psicológico ou de sondagem in- “Amor e Medo”.
to se apieda, ao ponto de retirá-la da vida com aquela página terior, fundado por Machado de Assis. Ambas as vertentes Consiste essa técnica na captação dos gestos que
das mais impressivas e comovedoras da literatura de ficção. chegaram até os dias atuais, a primeira tendo continuidade não se completam, no amor que não se consuma, naquela
O mesmo pode-se dizer de Marcel Proust ao narrar em Aluísio Azevedo, Júlio Ribeiro, Adolfo Caminha, Lima atitude hamletiana que faz com que Hamlet, na tragédia
em “A la recherche...” a morte de Bergotte, símile de Anatole Barreto e modernamente em José Américo de Almeida, o clássica, que ama Ofélia, dela se afaste por estar obcecado
France. Ou da morte de Piers, o Lord Sparkenbroke do ro- iniciador do romance de 30, Jorge Amado, Graciliano Ra- com a sua vingança, o que a leva ao desespero e ao suicí-
mance do mesmo nome do grande romancista inglês Char- mos, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, Érico Veríssimo dio. Em suma, é aquela situação vivida pela personagem
les Morgan. e outros mais. Conceição, no conto “Missa do Galo”, quando ela, atraída
Em A Criação do Mundo, romance autobiográfico A segunda vertente, que aparece já na segunda pelo adolescente tímido que a ama e a receia, mantém-se
de Miguel Torga, reeditado, há algum tempo, pela Nova fase de Machado de Assis, com Memórias Póstuma de Braz na agitação e na dúvida, e afinal nada acontece. Passa-se
Fronteira, em primorosa edição prefaciada por Alberto da Cubas, Dom Casmurro e Quincas Borba, principalmente, o tempo, chega o companheiro para acordá-lo para irem
Costa e Silva, há uma perfeita descrição da morte, na passa- continua com Raul Pompéia (O Ateneu) e modernamente, se a missa da meia-noite e nada se completa, embora o lei-
gem que para cá transcrevo. Observa o prefaciador que para distingue com Graciliano Ramos, Lúcio Cardoso, de quem é tor esteja torcendo para que alguma cousa ocorra entre
captar a verdade e a beleza daquele diálogo muito contri- um dos livros mais densos de nossa literatura – Crônica da os dois.
buiu a educação do escritor pelo médico de aldeia, e “é ca- Casa Assassinada, Cornélio Penna (Fronteira), Ciro dos An- É a suspeita de Bentinho, em Dom Casmurro, do
paz de guardar para nós e para sempre, com uma precisa sim- jos (O Amanuense Belmiro e Abdias), além de outros. suposto adultério de Capitu, embora no romance nada
plicidade que acentua a pungência, este momento da morte”. A esta vertente pertence o nosso O.G., com Ulisses exista de concreto, de palpável, que nos possa levar a uma
“– Se eu pudesse dormir, Sr.Doutor ... se eu pudesse entre o Amor e a Morte, Somos todos Inocentes, o denso e conclusão, ao julgamento definitivo da traição de Capitu.
dormir, que felicidade! profundo Rio Subterrâneo, um dos mais perfeitos livros da Houve, não houve? não sabemos até hoje, não obstan-
– Sossega que vais dormir, rapariga... literatura brasileira, e a novela Amarga Solidão. te já haver sido a obra de Machado submetida às mais
– Então que ninguém me acorde, minha mãe... Que Longe de mim o propósito de analisar-lhe a obra, percucientes análises, em nossa língua e em outras da
ninguém me acorde... como já o disse. Quero apenas dar algumas indicações nes- atualidade.
E ninguém mais a acordou.” (Cf.ob.cit.p.6) te contexto em que situamos o nosso romance. Romancista Em O. G. Rego de Carvalho há o mesmo problema.
Em Ulisses entre o Amor e a Morte há um breve capí- machadiano por quê? Já uma vez soube, ele teria recusado O dos gestos que não se completam, o das ações que não
tulo com o título: “Quente era a manhã em julho”, que para esse parentesco, afirmando que praticamente não havia lido se realizam, o dos desejos que não se cumprem. Sobretudo
aqui transponho: Machado de Assis. Isto não importa. Importa é que, embora porque a neurose – e são neuróticas as personagens de O.
“Quente era a manhã, em julho, quando meu pai se inconscientemente, tenha ele continuado essa vertente, a do G., inibe totalmente para a ação prática, pois ela se realiza
deitou, as pálpebras baixando. E puro e distante, e feliz, enca- romance psicológico ou de sondagem interior, ou mesmo no domínio do subconsciente, marcando o conflito interior
rou o céu e o tempo.” (Cf.ob.cit.p.26-1994) romance-problema, como quer Vergílio Ferreira. Gracilia- de suas personagens.
É assim o nosso O.G. em tudo que fez até hoje. De- no Ramos, quando lhe assinalavam essa tendência, reagia Obra aberta, de acordo com a conceituação de Um-
tentor de uma obra clássica porque modelar, de inimitável irritado, dizendo que nunca lera o bruxo do Cosme Velho. berto Eco, ela só se realiza com a colaboração do leitor, por-
perfeição estética, de perfeito equilíbrio em seu contexto e Ocorre é que os romancistas, embora não o queiram, quanto o autor nada conclui, deixando um campo aberto,
em que não há termos desbordantes, de uma pureza e de seguem um caminho inteiramente imprevisível, de acordo um problema posto à nossa reflexão.
uma simplicidade inigualável. com o seu gênio. Eça de Queiroz pretendia, à maneira de Bal- Hermes realiza o seu amor com Afonsina? Não sa-
Falei em simplicidade, o que está longe de confun- zac, com a sua “comédia humana”, descrever um vasto painel bemos dizer. E para concluir, voltando ao começo, ou seja,
dir-se com facilidade. Porque muita gente pensa, entre nós, da sociedade portuguesa, em vários volumes, com o título ge- ao primeiro livro do autor, Ulisses afinal recebe de Concei-
que escrever de forma simples é escrever de maneira fácil. ral de Cenas da Vida Portuguesa. Resumiu este propósito no ção uma declaração de amor, já no final do livro.
Ledo engano! Para adquirir aquela simplicidade, quanto romance Os Maias, a sua obra-prima, e obra-prima da Lite- – Eu o amo, Ulisses, teria dito a namorada.
tormento na luta com as palavras, este pobre material com ratura Portuguesa, no qual, através da história da decadência “Conceição saiu rápido, sem volver o rosto. Quando
que lidamos, nós que escrevemos. (Cf. ob. cit. p. 61-1998). de uma família, fixou a decadência da sociedade portuguesa, mais tarde a procurei para renovar-lhe os votos de amor que
Gustave Flaubert passava horas diante do papel em conforme ohavia feito o romantismo tardio, a educação sen- lhe tinha feito e constantemente repetia, já não a encontrei:
branco para redigir um texto impecável, saindo extenuado timental e o constitucionalismo postiço. misturara-se à multidão.
desse trabalho. Desse esforço quase extenuante sairiam A Mas em que o nosso O.G. teria continuado Macha- Dela, ainda hoje, guardo a recordação desse momen-
Educação Sentimental e Madame Bovary. Gabriel Garcia do de Assis? No desenho dos caracteres das personagens, to em que nossas mãos, as minhas aquecidas às suas, se uni-
Marquez declarou, ao fazer 70 anos de idade, que passava às fazendo com que Afonsina e Helena fossem uma réplica de ram pela última vez.” (Cf.ob.cit.p.99-1994)
vezes oito horas para escrever meia página. Capitu, a dos “olhos de ressaca” ou a “cigana oblíqua e dis- Esses gestos que não se completam, essa atitude
Esta luta pela expressão, de que resulta o estilo, na simulada”, como a caracterizou o agregado José Dias? Com de “amor e medo”, essa permanente busca do ser em con-
opinião de Fidelino de Figueiredo, constitui a luta do escri- certeza, não. Na prosa perfeita, límpida, transparente, musi- flito consigo mesmo, ou como diria Pessoa, essa relação
tor para aprimorar o seu instrumento de expressão. E esta cal, conforme demonstraria Cineas Santos, em sua partici- conflituosa comigo e os comigos de mim, tal a essência da
foi em vida a luta estrênua do nosso O.G. Rego, no apri- pação em seminário sobre o escritor? Na datação de seu ro- obra ogerreguiana que a aproxima do gênio de Machado
moramento de sua pequena grande obra. Abordá-lo de um mance, como o romance da decadência da cidade de Oeiras de Assis.
lance não é assim tarefa fácil. E nem pretendo fazê-lo neste e das famílias que constituem aquela sociedade singular, a Grande O. G. Rego de Carvalho, honra e glória da
despretensioso comentário, no instante em que celebramos exemplo de Machado de Assis, que seria o perfeito roman- nossa Oeiras, do nosso afortunado Piauí! Deus o conserve
a memória imperecível de O. G. Rego de Carvalho, para cista do II Império, segundo cabalmente o demonstrou o por muitos anos em nossa memória, para felicidade nossa
além da morte. crítico Astrojildo Pereira, em estudo dos mais lúcidos, com e modelo para as novas gerações de escritores verdadeira-
Vergílio Ferreira, um dos grandes romancistas da aquele título? Nenhuma dessas razões o poderiam levar à mente escritores, que são raros.
literatura portuguesa da atualidade, já desaparecido, em proximidade da técnica machadiana na elaboração de seus Assim seja!
entrevista publicada no livro Vergílio Ferreira, Um Escritor romances, senão de forma linear.
Apresenta-se, organizado por Maria da Glória Padrão, em O que os aproximaria, entretanto? Digo “aproxima- (Discurso pronunciado na sessão solene de homenagem póstuma a O.
edição portuguesa da Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, ria” para evitar mal entendidos e poder preservar a absoluta G. Rego de Carvalho, realizada pela Academia Piauiense de Letras,
em 23 de novembro de 2013.)
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Repentina veio a OS INTELECTUAIS NO


noite... MONTE OLIMPO
Jolimar Corrêa Pinto
Kori Bolivia

Q
ualquer avaliação sobre o desempenho para a formulação de novos preceitos tenden-
De repente fez-se noite das classes dominantes em um país – tes a inibir essa atual tendência à prática da
e a água que corre é vermelha
sem a perspectiva histórica – corre o violência como forma de se impor, seja na po-
mas corre seca.
O ar que se respira risco de estar impregnada de paixão, de interes- lítica quanto na religião ou nos relacionamen-
é pó encobrindo o céu. ses contrariados e, portanto, sem a necessária tos comuns do dia a dia.
isenção – obrigatória no âmbito científico. Somos – os intelectuais – pessoas cuja
Repentina veio a noite A análise das condições econômicas, so- formação, vivência, criatividade, senso agu-
e noite densa ciais e políticas do Brasil atual vem sendo reali- do de observação e comunicação, obrigados a
embalando perdidos corpos,
zada por políticos, cientistas políticos, jornalis- exercitar o sacerdócio da salvação da humani-
ruidosamente ferindo
a clara manhã. tas e economistas, além de representantes dos dade enquanto seres vivos, de carne e osso, sem
setores profissionais de empregados e empre- cometer hipocrisias ou estelionatos (o “conto
É noite, de repente, gadores, todos defendendo seus próprios inte- do vigário”). Há uma carência que nós não po-
e o grande pássaro borrifa resses ou pontos de vista vis-à-vis com os fatos demos ignorar e a cujo atendimento não nos é
penas pelo ar. correntes; são opiniões contaminadas com o dado faltar.
calor dos debates e das conveniências, cientifi- Ao ser questionado sobre se a decadência
M camente imprestáveis. intelectual poderia prejudicar o equilíbrio do
E os intelectuais? parece-me que estamos mundo, respondeu um cidadão ilustre, Pu-

Flashes instalados confortavelmente em um “Monte


Olimpo”, indiferentes aos dramas, aos questio-
blius Lentulus Cornelius:
“Sem dúvida. E é por essa razão que ob-
namentos, às vicissitudes, às alegrias e tristezas servamos na paisagem político-social da Terra
Terezy que pairam sobre a humanidade. Estaríamos as aberrações, os absurdos teóricos, os extremis-
perplexos face aos terríveis, inexplicados, tene- mos, operando a inversão de todos os valores.
Cantos e orações, brosos comportamentos – das pessoas simples “Excessivamente preocupados com as
santuários marianos até os líderes de todos os matizes, chefes de suas extravagâncias, os missionários da inteli-
– presença de Deus. Estados e de governos, partidos políticos, líde- gência trocaram o seu labor junto ao espírito
res religiosos, grandes complexos empresariais por um lugar de domínio, como os sacerdotes
As luzes das velas
e militares? Por que estaríamos silentes, não religiosos que permutaram a luz da fé pelas
iluminam corações
na terra de Fátima. partícipes – na condição de naturais formado- prebendas tangíveis da situação econômica.
res de opinião – quando as massas revoltosas, Semelhante situação operou naturalmente o
Senhora de Lourdes ignaras, malformadas, maltratadas, enganadas, mais alto desequilíbrio no organismo social
transportada nos andores encurraladas eleitoralmente estão carentes de do planeta, e, como prova real desse asserto,
– chuva de emoções. uma orientação bem-intencionada, que esteja devemos recordar que a guerra de 1914-1918
interessada apenas no crescimento intelectual e custou aos povos mais intelectualizados do
Santa Terezinha
social, na libertação de seres humanos acorren- mundo mais de cem mil bilhões de francos,
a santa de Lisieux
– exemplo de fé. tados por esmolas analgésicas? salientando-se que, com menos da centésima
Estamos vivendo de um passado que não parte dessa importância, poderiam essas na-
Assis! Quanta história mais existe, presos a “verdades” já revogadas, ções haver expulsado o fantasma da sífilis do
sobre seu filho Francisco, defendendo posições que não se coadunam cenário da Terra.»
que viveu na graça. com as necessidades do momento, defendendo Os religiosos bem-intencionados se di-
deuses já caídos, trocando elogios nem sempre zem salvadores das almas, cabe-nos procurar
A fé renovada
na terra de Santiago, merecidos, trilhando sendas povoadas de al- mostrar à humanidade como tomar atitudes
apóstolo santo. mas penadas, fazendo de conta que não temos visando ao próprio bem-estar, e prescindir dos
a obrigação de analisar criticamente as institui- comandos de lideranças carismáticas, cujos
Evocar São Pio, ções que nos governam – aqui e agora – natu- propósitos inconfessáveis estão preponderante-
de San Giovanni Rotondo, ralmente sem paixões partidárias. mente a serviço dos interesses próprios ou gru-
é receber graças. Não podemos nos aprisionar em um pais; e costumam levar os países a sangrentas
academicismo vicioso – por mais que o quei- revoluções destruidoras e fratricidas.
Foi no monte Gárgano
que apareceu um guerreiro ramos virtuoso – sob pena de sermos acome- Compromissados apenas com a busca da
– São Miguel Arcanjo. tidos futuramente de sofridos remorsos pela verdade, isentos de paixões ou interesses subal-
não participação, pela abstenção no momento ternos, cuidemos de dar um vade retro à nossa
Sob ardente sol em que o mundo – carente, não de palavras olímpica indiferença, quando nada para esti-
romeiros cheios de fé consoladoras, tranquilizantes, confortadoras, mular o debate elegante de questões mal resol-
celebram milagres.
pacificadoras, sedativas, mas de convocação vidas que estão atribulando nossas vidas.
10 Associação Nacional de Escritores Jornal da ANE
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Revolução e Guerra dos Farrapos


Nelson Hoffmann

E
u devo confessar e confesso: sou pouco deu conta disso: o atual território do Rio Grarede Na sequência, Ruy Nedel apresenta fa-
versado em nossa História Farroupilha. do Sul era de quem? A quem pertencia? Quem o tos e equívocos da Revolução. E mostra uma
Conheço sim, mas não com a profun- dominava? E, sobretudo, quem ocupava, vivia e curiosidade que pouca gente percebe: a Revo-
didade que essa nossa questão do Movimento morava nessa terra hoje sul-rio-grandense? lução foi um movimento inicial que terminou
Farroupilha merece. Como gaúcho, missioneiro Leia-se a história e estude-se, que, então, gerando a Guerra dos Farrapos. A Revolução
e fronteiriço que sou, tal mediocridade de co- vai se compreender o profundo amor gaúcho ao contestava lideranças locais; a Guerra procla-
nhecimento é um pecado que raia as dimensões solo que lhe serviu de chão seguro e livre, sem mou a independência sulina: Era o fim da Re-
mínimas de uma América do Sul inteira. Isso é peias que não o amor à terra. Daí que todos que volução, iniciava-se a Guerra dos Farrapos.
imperdoável. aqui aportavam, acabavam tendo seus sentimen- E segue-se o capítulo Guerra dos Farra-
Reconheço, vou penitenciar-me. O que tos de pátria mais arraigados ao solo gaúcho do pos, emendado e clareado com Heroísmos-Vi-
me leva a tal revisão de vida é a leitura que que ao Brasil e poder central. O relacionamento lanias-Abnegações. São detalhes, documentos
acabo de fazer dos originais do novo livro do sul-rio-grandense era mais ligado ao mundo e comprovações de intenções e realizações ha-
Ruy Nedel: Memoriando a História do Sul vidas e que pouco circulam por aí. Os
– Avaliação Crítica. Tomo II: Revolução e fatos são explicados, os personagens são
Guerra dos Farrapos. Por deferência do au- colocados em suas verdadeiras dimen-
tor, pediu-me leitura e opinião. sões. Afinal, dentre tanto herói e cana-
Uma segunda confissão: impressio- lha, quem era mesmo canalha ou herói?
nei-me com a leitura. Isso não é coisa fácil, Ruy Nedel mostra e demonstra.
veterano que sou de um bocado de miles Por fim, Negociações de Paz. E
de livros já lidos, relidos, treslidos. Quando bem logo vai surgindo a questão: por
o livro sair em forma definitiva, impresso que guerras? E a constatação angus-
em gráfica e todo pautado, vou relê-lo e tiante: Passam-se os milênios e a mania
tomá-lo como guia para um melhor conhe- humana de matar humanos permanece.
cimento desta nossa história tão rica, tão Essa Revolução e Guerra, como tantas
problemática e tão pouco entendida. e tantas por este mundo de Deus, não
Ruy Nedel começa esse tomo II de precisava ter acontecido, tivesse havi-
seu Memoriando a História do Sul do modo do um pouco de compreensão entre
como fez no primeiro tomo, com um Pró- imperiais lusitanos e telúricos sulinos.
logo. Neste, no Prólogo, o autor tece consi- Ao final, acertaram-se imperiais e re-
derações gerais sobre o Movimento Farrou- voltosos, sem derrota final pelas armas
pilha e faz uma espécie de resumo do que e, talvez, por exaustão após tantos anos
irá desenvolver no corpo do livro. Dentre de guerra...
vários detalhes iniciais, que serão bem de- A paz? Talvez porque a guerra
senvolvidos depois, um, que não será tão contra Rosas já tivesse preparado os âni-
desenvolvido, chama a atenção: a força da mos para, logo mais, pelearem lado a
maçonaria. A maçonaria foi decisiva na lado contra o estrangeiro, sem saberem a
eclosão desse movimento bélico, – diz o au- razão...
tor – desde os preâmbulos até a deflagração E eu volto à minha verdade confes-
e, inclusive, durante todo o período da Repú- sional do início deste comentário: o meu
blica Rio-Grandense. grande pecado de conhecimento real da
Outro detalhe inicial,a merecer de- Questão Farroupilha é verdadeiro. E tem
senvolvimento maior depois, é a motivação dimensões latino-americanas, até mais
da paz assinada entre império e revoltoso e maiores. Esse Movimento, acontecido
farrapos: A pacificação era, pois, uma ne- aqui onde eu nasci e moro, tem dimen-
cessidade para o Império.E observa que já não cisplatino do que ao poder central brasileiro, o sões insuspeitadas.
se discute historiografia oficial. Não interessa que resulta, para quem se adentra na história da Foi desse Movimento que surgiu o hoje
mais o aprofundamento e dialética na procura formação do Rio Grande do Sul e na história das território brasileiro em sua totalidade; foi des-
da verdade histórica sobre a epopeia farroupilha. revoluções cisplatinas, na percepção nítida de que se Movimento que surgiu a formação do terri-
O povo a transformou em símbolo para todas as o sentimento de pátria era loco-regional e não bra- tório sul-rio­-grandense como aí está; foi desse
ideologias e correntes políticas ou partidárias. De sileiro. Movimento que surgiu a definição da América
história, transformou-se em tradição do povo a E vem o imigrante alemão, lembrando Cisplatina dos dias atuais; foi desse Movimento
cultuar valentia e tenacidade ancestral. que essa imigração começou em 1825 e a ques- que surgiu um povo que, mesmo contestador dos
Falou. tão farrapa eclodiu em 1835. O império, na per- poderes centrais, é o maior integrador da nacio-
Após o prólogo, Ruy Nedel adentra sua ava- sonificação lusitana, administrava a Província nalidade brasileira.
liação crítica com Causas predisponentes e causas discriminando todas as pessoas de bem que não Ruy Nedel ensinou-me tudo isso e muito
desencadeantes. De cara, a afirmação forte e abso- faziam parte do clã lusitano. mais.
lutamente verdadeira: O Rio Grande do Sul nasceu O descontentamento, que grassava há R. G., 08.05.13
separado de Portugal e separado do Brasil. Alguém, tempos e por todos os lados, explodiu, tornou-
ou algum escrevinhador de coisas gaúchas, já se -se revolta. Era a Revolução Farroupilha. Nelson Hoffmann
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CASTRO ALVES O POETA MANDELA


DOS ESCRAVOS Emanuel Medeiros Vieira
Ariovaldo Pereira de Souza

V
“Certas pessoas, raríssimas, parecem acima da
alho-me de uma citação de Carlos Magno de Melo, extraída do Jornal da ANE, condição humana. Nelson Mandela foi um desses
página 3, exemplar nº 53 - ago/set 13, em que: “O dever do escritor é provocar seres inexplicáveis. Passar na prisão 27 anos, com
a leitura. O resto é decorrência”. Daí registrarmos esta breve biografia a seguir, a consciência de que só lhe acontecia assim por
defender uma das mais grandiosas causas univer-
para que histórias de grandes ícones da literatura não se acomodem nos escaninhos da
sais, e emergir desse massacre sem ressentimento,
letargia. Entrementes, muitas vezes, pouco inspirados, deixamos de reeditar a história com propósitos e atos de quem fosse servido por
de nossos maiores poetas. Para que suas histórias não sejam suplantadas pela sombra 27 anos com o melhor da vida – isso excede o hu-
do esquecimento, é imperativo que reinscrevamos belas páginas da história de seus mano. O animal homem não é assim.” (...)
mais lídimos representantes da poesia brasileira. Começamos pelo mais legítimo poeta
(Jânio de Freitas)
defensor dos problemas sociais.
Entre os escritores que denunciaram os sofrimentos dos cativos destaca-se o

E
poeta baiano Castro Alves, expoente da chamada terceira geração romântica. Mulato, u sei: “toneladas” de papéis já foram escritos sobre
filho de um médico, Antonio Frederico de Castro Alves nasceu no interior da Bahia Nelson Mandela.
em 1847. Ainda jovem transferiu-se para a capital da Província, onde realizou o cur- Mas, brevemente, eu só queria ressaltar algo que me
so secundário. Já manifesta, nessa época, sua preferência por escritores franceses, tocou muito na sua vida – que é a existência de um dos maio-
res seres do século XX (ou de todos os tempos).
sobretudo Victor Hugo, preocupados com as questões sociais. Foi para Recife em
Queria tentar iluminar um caminho para a refle-
1862, onde passou a freqüentar a Faculdade de Direito. Contaminado pelo ambiente xão: a capacidade impressionante do Perdão. Sim. Perdão.
acadêmico, tornou-se re- publicano e aboli- Não o perdão facilitário das telenovelas, de “boca”, que se
cionista. O Teatro Santa Isabel, na época, diz todos os dias.
era o grande centro aglu- tinador dos jovens Algo profundamente enraizado no coração, internali-
zado durante tantos anos de privação da liberdade.
estudantes e dos boêmios pernambucanos. Lá,
Por um objetivo maior que ele mesmo: seu país e seu
discutia-se de tudo, de projetos artísticos a povo.
reformas sociais e políti- cas. Nesse ambien- Com muito esforço, contaremos nos dedos (de uma
te, Castro Alves flores- ceu em sua carreira só mão) seres desta estirpe. Dessa grandeza.
literária, por meio de po- emas como “Pedro Saiu da prisão sem ressentimento, quando seria capaz
(com uma só conclamação) de colocar fogo na África do Sul.
Ivo”, dedicado ao líder da Rebelião Praieira
São exemplos que ainda nos dão esperança na espécie
de 1848, e uma série de versos abolicionis- humana.
tas reunidos, mais tarde, em “Os Escravos” Tal esperança anda escassa, pela brutalidade dos mo-
(1883). Lá também co- nheceu a atriz Eu- delos existentes, pela exclusão, pela desigualdade obscena,
gênia Câmara, que seria o grande amor de pela traição dos valores mais caros, pela negação do outro,
sua breve vida. Em 7 de setembro de 1867 pelo individualismo intenso, pela prevalência dos corações
secos e duros.
estreou com grande su- cesso no teatro em
Pelo desejo constante de vingança.
Salvador, com a peça abo- licionista “Gonzaga Uma luz como Mandela é um farol: de misericórdia,
ou Revolução de Minas”. No ano seguinte de compaixão.
foi com Eugênia para a capital, disposto a E uma sensação de orfandade invade o planeta, reple-
encenar a peça no Rio de Janeiro. Apesar do to de guerras – mesmo no seu país, com tanta violência, com
a Aids atingindo taxas elevadíssimas.
apoio de José de Alencar e Machado de Assis, os teatros cariocas fecharam-lhe as por-
Meu pai dizia que o Bem iria vencer – na batalha fi-
tas. Mudou-se então, desiludido, para São Paulo, com vontade de continuar seus estu- nal, dos Anjos contra os Demônios (do racismo, do egoísmo,
dos de direito. A Faculdade paulista, nessa época, era um agitado centro intelectual e do preconceito, da mesquinharia, da inveja, da cobiça, en-
político, onde fervilhavam idéias reformadoras e abolicionistas, pontificavam figuras fim, dos baixos instintos).
como José Bonifácio, o Moço, Joaquim Nabuco e Rui Barbosa. Da mesma maneira Há momentos em que a gente chega a duvidar. Mas é
que em Recife, jovens lotavam os teatros para ouvir Castro Alves declamar ardentes preciso acreditar E que façamos (diariamente) a nossa parte.
Ainda assim, Mandela foi maior que o seu tempo.
versos de amor, reunidos em “Espumas Flutuantes”, e poesias abolicionistas como
Foi maior que ele.
“Vozes d´África” e “Navio Negreiro”. Quando estreou “Gonzaga”, a platéia paulista Ofertou-nos, como dádiva eterna, o mais precioso
aplaudiu ainda com maior entusiasmo que a de Salvador, consagrando-o definitiva- presente: a esperança.
mente como “o poeta dos escravos”. A vida pessoal do poeta, no entanto, assemelha- Mostrou que o perdão mais profundo – mesmo que
va-se ao sonho dos românticos da geração anterior à dele: sofrimento e frustrações. muito difícil – é possível.
Alvíssaras!
Em novembro de 1868 foi abandonado por Eugênia. Daí, deixou para trás o público
Vai, Mandela, ilumina outros espaços. Dialeticamen-
que o amava e recolheu-se no interior da Bahia, onde escreveu os poemas posterior- te, seguirás em frente.
mente reunidos em “Cachoeira de Paulo Afonso” ( 1876). O poeta faleceu em julho Quem sabe, em um lugar pobre e modesto, talvez
de 1871, tendo apenas completado 24 anos, sem ver aprovada a Lei do Ventre Livre, numa manjedoura, apareçam outros mandelas.
mas tendo sua obra reconhecida como um retrato grandiloquente e dramático dos
sofrimentos dos escravos. (Brasília, dezembro de 2013)
12 Associação Nacional de Escritores Jornal da ANE
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HEROICIDADE E POESIA
Fontes de Alencar

N
o ano de 1906, entre a eleição de tre se tornou estrênuo propagandista, con- e vendo-a soçobrar, preferiu submergir-se
Afonso Pena, em março, e sua posse servou, porém, o Dr. Fausto Cardoso toda com ela a salvá-la a preço do sangue alheio
na Presidência da República, em no- independência e a originalidade do seu belo ou de uma vilania própria.”
vembro, fatos graves ocorreram na vida polí- talento, e continuando a aprofundar sozinho
tica de alguns Estados, destacadamente Mato o estudo das teorias em que fora iniciado, Francisco Rollemberg, que já re-
Grosso e Sergipe. Cinjo-me ao acontecido em ostenta-se hoje com a envergadura de um presentou o Estado e o povo de Sergipe
Sergipe. espírito fortemente culto e extremamente nas duas Casas do Congresso Nacional,
Clovis Beviláqua, referindo-se a Faus- ousado.” quando Deputado escreveu a Introdução
to Cardoso, que seguira em ju- a Discursos Parlamentares de Fausto
lho desse ano para sergipanas Cardoso, dando na aludida peça
plagas, disse que ele desempe- pormenores da Revolta de 1906,
nhara “com brilho excepcional” inclusive da absurda morte do seu
o mandato de deputado federal, líder.
tendo tomado parte na discus- Jackson da Silva Lima, com-
são do Código Civil propug- petente estudioso dos labores cul-
nando pelo divórcio. Encontra- turais dos sergipanos, recolheu,
ram-se naquele julho na Bahia. em jornais e revistas de outrora,
Clovis narrou, em 1927, ainda o quanto pôde do produzido por
amargurado, a tragédia de que Fausto Cardoso na área da poe-
Fausto fora vítima. sia. Esparsos e inéditos (Fausto
Fausto Cardoso escrevera Cardoso – Vol. I – Poesia) – obra
em Taxinomia Social, de 1898, editada pelo Governo do Estado de
que a liberdade Sergipe em 1980 – é a resulta do seu
lavor. E dessa coletânea é O Poeta,
“foi amalgamada na história soneto que aqui reproduzo:
com o cimento dos séculos e o
sangue dos homens. E quantos Quando surges sonhando e tua lira canta,
a quiserem possuir hão-de- Inveja abrindo vai, como esfaimado
-conquistá-la pelo mesmo ca- corvo,
minho”. As asas negras pelo abobadado e torvo
Horizonte, em que o Deus da rima se
Antes, em 1894, publicara levanta!...
Concepção Monística do Uni-
verso, com prefácio de Graça Reatas a obra imortal da caravana santa
Aranha, que pouco depois seria o Dos teus mortos irmãos, vencendo o
fundador da cadeira n° 36, Tobias mesmo estorvo,
Barreto seu patrono, da Acade- Tragando o mesmo fel, haurindo o mesmo
mia Brasileira de Letras. No ano sorvo
Do veneno letal, que aos cobardes
subseqüente, Souza Bandeira,
quebranta!
também, da Escola do Recife, su-
cessor de Martins Júnior na Casa
Ornas a Terra e a Terra, ingrata, te
de Machado de Assis, sobre esse
apedreja,
livro iria dizer: O tempo andando, quando da inaugu-
Porque o Infinito tens na mente e o pões
ração da sua estátua na praça que lhe leva o
no verso,
“Discípulo de Tobias Barreto, o Dr. Fausto nome, em Aracaju, discursou Gumersindo A sustentar, cantando, intérmina peleja.
Cardoso pertence ao número dos que ouvi- Bessa dizendo:
ram a palavra do grande mestre, graças à
É um louco! – brada o mundo em tua luz
qual pôde familiarizar-se com as doutrinas “Esta apoteose de hoje não se a consagra ao imerso,
modernas, e possuir-se do entusiasmo comu- poeta, ao orador, ao filósofo, ao professor Mas segue o raio astral, que pelo Azul
nicativo que ele sabia ter pelas “idéias novas laureado; mas ao herói, ao homem abne- dardeja
que voam de outros mundos e vêm fazer seu gadamente generoso, leoninamente valente, Doirando as almas como o sol doira o
ninho em nossas cabeças.” Fortemente satu- para quem o sacrifício era uma volúpia, que, Universo!
rado das doutrinas de que o pranteado mes- tendo consumado uma revolução incruenta,

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