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rasante

n°3 . agosto . 2018

intersecções entre arte e cidade

no meio da rua
revista
rasante
interseções
entre arte e
cidade

agosto, 2018
NO
EDITORIAL

Expediente Na rua
o público
acontece. É lá
que os encontros

NO
com os diferentes
se dá, imensuráveis
CORPO EDITORIAL Revista Rasante n03 . No Meio da Rua desencontros. A rua como
Thalita Castro Agosto, 2018 manifetação urbanística da
Bruno Geraldi Martins democracia, é constituída pelos
A Revista Rasante é uma publicação

MEIO
Rafael Baldam diferentes corpos que a atravessam,
quadrimestral que propõe debates nas
e com eles, suas contradições e conflitos
EQUIPE DE COLABORAÇÃO intersecções entre as artes e a cidade.
vêm à tona, mas não sem também apresentar
Yumi Neder Entende-se aqui que a cidade é feita
suas delícias, surpresas que só a complexidade
Camila Torato não só de sua materialidade, mas
também de todos os sonhos, encontros e
do espaço urbano pode oferecer. Talvez na rua
Thais Andressa
fique mais evidente o quão próximos vivemos uns dos

MEIO
Luana Espig Regiani desencontros e poesias que a preenchem.
Analisar a cidade a partir da ótica das outros, e a quantidade de particularidades que carregamos por
Camila Miki
representações artísticas, como o cinema, aí, até se esbarrarem em uma esquina qualquer. A arte na rua inflama o
Ana Paula Oliveira Nascimento
música, teatro, etc, é abrir possibilidades espaço público, provoca os conformados, acolhe os que estão se afogando.
Igor Augusto Leite
de leitura para o espaço vivido. A Revista Expressar-se na rua é colocar-se no limiar entre o conflito e o afago; é
Andrey Marcondes
Rasante é uma publicação independente, também o espaço legítimo da representação de si, da democracia praticada.

DA
PROJETO GRÁFICO e conta com o aval de seu corpo editorial
A Rasante n03 abre a porta e ganha a rua. Espaço das trocas, permite
Rafael Baldam e dos autores para divulgação de seu
conteúdo. que várias vivências tomem forma, até aquelas pautadas pelo consumo,
AUTORAS E AUTORES DESSA EDIÇÃO indiferença, virtualização da vida. Também são cidades. Ao virar uma
Beatriz Crocco, capa ISSN 2594-8946 esquina, uma banda toca um choro. Que surpresa! Que chance de cantar a
Carla Caffé, entrevista cidade, contar seus contos e cantos. Para alguns, a rua é estreita de mais,

DA
Rodrigo Vicente e Rafael Cabello, entrevista Quer publicar na Rasante? Entre é preciso de ordem e regulação, definição do que pode e o que não pode.
Guto Leite, artigo em contato conosco via Facebook, O proibido lança as bases para a ausência, para o vazio. Mas quem
João Pedro Campos, artigo e-mail ou site. se atreve a ingressar nessa rua é recompensado pela suas histórias e
Fausto Ribeiro, artigo contornos. Seus desenhos nos muros redesenham perfis, políticas
José Luis Abalos Júnior e Leonardo e corpos expostos no espaço público, ocupando-o com seu traço.

RUA
Palhano, artigo revistarasante@gmail.com E-MAIL A rua estreita. A ordem imposta diz que nem todos podem
Felipe Abreu, portifólio https://www.facebook.com/revistarasante FACEBOOK apresentar nesse espaço de todos. Há luta pela potência da rua.
Crica Monteiro, portifólio https://issuu.com/revistarasante ISSUU Por ela passam blocos, histórias, esquecimentos. Mas há
Gustavo Rodrigo de Souza, reflexão https://www.instagram.com/revistarasante INSTAGRAM quem recupere significados ocultos da rua, empoeirados
Lícia Andrade, reflexão https://revistarasante.wixsite.com/artecidade SITE sob um véu, e descubra que tem mais cidade em baixo da
Silvia Cristina dos Reis, reflexão Rua José Bonifácio, 759, Jardim Brasil. Atibaia/SP ENDEREÇO cidade.
RAFAEL BALDAM
10 Cité, city, cidade
Guto Leite 78 Patrimônios do efêmero:
A arte pública do graffiti ao muralismo
José Luis Abalos Júnior

18 Ritmo e pausa no espaço público Leonardo Palhano Cabreira


Entrevista Projeto Música Paratodos

A cidade é um rádio por dentro: da produção e da 98 Muros outros, graffitis


Crica Monteiro
28 pesquisa musical como leitura do território
Produção artística no espaço urbano:
106
Gustavo Rodrigo de Souza
Controle estatal e conflito

36 AJoãoprodução da cidade: crítica à ordem urbana Fausto Ribeiro


Pedro de Lima Campos

130 TôLíciameVerssiani
guardando pra quando o carnaval chegar

46 Arquitetura da Solidão, Pública Arruda


Felipe Abreu

62 Entrevista Carla Caffé


Desenho, cinema, trabalho coletivo e exercício do tempo 134 Café na estação:
Novas possibilidades de uso do espaço público
Silvia Cristina dos Reis

jean-michel basquiat, 1984


para ler e assistir
detropia, heidi ewing e
rachel grady, 2012 Patrimônios do Efêmero
JOSE LUIS ABALOS JUNIOR A arte pública
do graffiti ao
Doutorando em Antropologia Social (UFRGS),
compõe a equipe técnica e de pesquisa do Banco
de Imagens e Efeitos Visuais (UFRGS) assim como
do Núcleo de Antropologia Visual (UFRGS)
muralismo
LEONARDO PALHANO CABREIRA
Graduando em Ciências Sociais (UFRGS). compõe
a equipe técnica e de pesquisa do Núcleo de
Antropologia Visual (UFRGS)
A reflexão que tencionamos é a de investigar os princípios
79
e técnicas transmitidos pela cultura graffiti na cidade de
Porto Alegre/RS, com enfoque especial aos processos e
transformações ocorridas no interior dessa manifestação que,
atualmente, envolvem não apenas a comunidade tradicional
da arte urbana, mas atores sociais diversos que contribuem
para adicionar tanto valor estético quanto valor econômico
significativo. O presente trabalho, nesse sentido, encontra
também suporte na Rede de Pesquisa Luso-Brasileira
em Artes e Intervenções Urbanas, a RAIU, e no projeto
denominado “TransUrb Arts – Emergent Urban Arts in
Lusophone contexts” (2017-2021), coordenado pelo professor
Ricardo Campos (CICS Nova) de Lisboa/Portugal, cuja
análise que se faz é de que há uma combinação de dimensões
lúdicas, políticas e estéticas nesse processo de apropriação do
grafite pela iniciativa pública e privada.

Como problema de pesquisa central, questionamos como

jean-michel basquiat, 1982


josé luis abalos júnior e leonardo palhano . patrimônios do efêmero
uma grande variedade de artefatos pictóricos (tradicionalmente possibilidade de tratar como patrimônio as expressões de rua
caracterizados como marginais), em especial o grafite, está que se enquadram nesta categoria.
sendo transformada em bens simbólicos com valor estético e
Nesse sentido, o pensador lisboeta elenca a necessidade de
econômico e incluída no que é chamado de arte urbana? As
conceitualizar a arte urbana, o que muitos divergem pelo seu
experiências de institucionalização (COSTA JÚNIOR, 2017),
caráter híbrido e metamórfico. Campos (2017, p.1) porém,
comercialização (AGUIAR DE SOUZA, 2013) e legalização
acredita que “falar de graffiti, de murais, de street art ou arte
(CAMPOS, 2015) das artes que são feitas nas ruas têm se
urbana não é equivalente, existem patrimónios, memórias,
manifestado de formas plurais em metrópoles como Porto
tradições e práticas distintas em torno de cada um destes
Alegre (RS, Brasil).
universos”. Aqui podemos falar de uma “guerra semântica”
Nessa medida, buscamos analisar a relação entre graffiti e as inclusa dentro do campo das intervenções artísticas urbanas
novas modalidades de intervenções urbanas, como o novo na qual, dependendo do agente da rede que conversamos, a
muralismo e as artes urbanas comissionadas, com questões categoria graffiti, grafite, street art e muralismo são articuladas
vinculadas à legalização do estado e da iniciativa privada, e da de distintas formas. Para Marina Bortoluzzi1, interlocutora
patrimonialização. Propomos, assim não trazer resposta prontas e produtora de grandes festivais de muralismo através da
para o debate, mas elementos que nos façam (re)pensar sobre plataforma “Instagrafite”, temos que ter cuidado em como
essa problemática. conceituar o trabalho que está sendo realizado e deixar do que
estamos falando.
80 No passado, quando o grafite chegou aqui no Brasil, foi 81
ARTE URBANA: CAMINHOS PARA UMA REFLEXÃO SOBRE PATRIMÔNIO
lido dessa maneira: como uma prática não tão ligada
Num primeiro momento, debruçamo-nos sobre o texto a marginalidade. Mas nos EUA é muito claro, graffiti
de Ricardo Campos denominado “Arte urbana enquanto que é escrito com ffiti é arte vandal, é arte não liberada,
património das cidades”, buscando clarificar essa relação entre é arte ilegal, graffiti, e street art é arte urbana liberada,
graffiti, muralismo e arte urbana com as questões atreladas à tudo que inclui que tá na arte urbana: stencil, lambe-
patrimonialização. No supracitado texto, Ricardo Campos lambe, enfim, todo tipo de técnica. Tem essa separação
desenvolve uma reflexão que busca confrontar a arte urbana muito clara lá nos EUA, aqui a gente se confunde, a
contemporânea com algumas questões emergentes neste gente chama os nossos artistas de grafiteiros, e a gente,
campo, quer sejam, as relativas à patrimonialização deste tipo que produz festivais de muralismo, não gosta dessa
de obras pictóricas e, consequentemente, ao seu potencial para terminologia porque eles são mais que grafiteiros.
o desenvolvimento cultural, econômico e turístico das cidades.
De acordo com o autor, essas questões são relativamente Há um conjunto de características que estão associadas a estas
emergentes, em primeira medida, porque a categoria arte urbana diferentes expressões, e Ricardo Campos elenca 4 elementos
é também recente, estando ainda em construção e, em segundo fundamentais para seu entendimento: 1) A centralidade
lugar, porque até recentemente não se tinha em consideração a da rua em todo o processo, espaço da criação artística. 2) A

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relevância da materialidade urbana na composição e leitura das nas reflexões sobre o patrimônio na contemporaneidade?
obras; arte urbana resulta de uma exploração criativa da cidade, Essa questão vem associada a inúmeras nuances que
do seu edificado e ambiente material. Exemplos: As superfícies propomos aqui refletir. Elas passam pelo questionamento da
urbanas compostas por muros, fachadas, portas, tapumes, própria noção de patrimônio e patrimonialização, assim como
vitrines, mobiliário urbano, são recursos e suportes usados pelo debate sobre a (in)formalidade das ações patrimoniais.
de forma criativa pelos artistas. São compostas não só pelos
Como Ricardo Campos (2017) coloca, as dificuldades de
conteúdos gráficos criados, mas também pelo seu suporte. 3) A
delimitação de um conceito não dizem respeito unicamente
natureza informal e imprevisível ligada a grande parte destas
a arte urbana, a noção de patrimônio também passa por
expressões, muitas vezes assumindo uma faceta subversiva e
processos de ressignificação tendo uma mobilidade
marginal evidente, seja por carregar conteúdos proibidos ou
semântica. Habitualmente ele é assumido como uma
por acontecerem de forma ilícita, e são alvo de perseguição e
categoria privilegiada na construção de sentidos e significados
erradicação. E, por último, 4) a dimensão da efemeridade que
sobre a história de um lugar e como referencial da cultura
tem vastas implicações, que possuem natureza transitória;
e a identidade de um grupo social. O patrimônio aqui se
paredes pintadas, rasuradas, demolidas, uma arte de ciclo curto.
caracteriza como um qualificativo que se atribui a certos
Tais características parecem revelar sérias resistências a elementos que geram algum consenso social acerca do seu
uma inclusão num circuito mais oficial e legitimado e, interesse e qualidade (estética, cultural, histórica, etc.) e sobre
consequentemente, maiores dificuldades em conquistar os quais incide, igualmente, algum peso histórico, associado
82 reconhecimento e legitimação social. Mas, como observa à sedimentação de memórias coletivas. Sendo assim, 83
Ricardo, dificilmente poderemos classificar como patrimônio algo que,
independentemente do seu valor, tem uma esperança de vida
o que verificamos é precisamente o contrário.
curta.
Recentemente, estas expressões que, como vimos, são
originalmente de natureza informal e efémera têm sido Já a noção de “patrimonialização” diz respeito a um processo
reconhecidas por diferentes agentes sociais, como possuindo social em que algo que não era considerado uma forma de
qualidades de índole cultural ou estética que merecem património, se encontra em processo de o ser, a partir de uma
atenção (CAMPOS, 2017, p.3) ação conjunta levada a cabo por múltiplos agentes sociais,
mesmo que com sentidos diversos. A ela lhe é agregada um
valor para reforçar seu sentido como elemento coesivo do
PATRIMÔNIO: CAMINHOS PARA UMA REFLEXÃO SOBRE ARTE URBANA social e como justificativa para ressaltar e/ou exibir um lugar,
Como vimos, ao pensarmos a arte urbana pela ótica do daí a importância de seu aspecto visual na escolha do que é
patrimônio encontramos uma série de dificuldades que patrimônio ou não.
impediriam, ou pelo menos inibiriam, a relação entre estas duas Outra diferenciação importante a se fazer quando falamos
dimensões. Contudo, quais as consequências para a área do da relação de arte urbana e patrimônio é a patrimonialização
patrimônio nesse debate? Como a arte urbana pode contribuir

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informal em contraposição a uma dita patrimonialização experiência diz respeito à pintura de grandes murais nos
oficial. A oficial, ou institucional, que passa pelas burocracias bairros Centro Histórico e Cidade Baixa, locais no qual a
de um estado de direito, é promovida pelos poderes públicos e empresa privada de mobilidade urbana “Cabify” patrocinou
tende a ter pouco relação com a vida cotidiana das pessoas em as intervenções com objetivos de comemorar seu aniversário
sociedade. A patrimonialização oficial está geralmente ligada na cidade.
a um passado de monumentalidades, tendendo a esquecer
os pequenos patrimônios locais, que ganham sentido no dia
a dia dos grandes centros urbanos. Já diria Arantes (2009, p. O PROJETO ZIS GRAFITE
16) que “a preservação tem privilegiado historicamente bens O ZIS Grafite foi projetado para ser um percurso cultural
representativos dos valores políticos e estéticos das classes aberto, o qual contempla, em prosa virtual, o roteiro de uma
dominantes”. estória contada em seis quadros grafitados, percorrendo uma
Já a patrimonialização informal está associada a uma índole série de imóveis inventariados pelo patrimônio histórico
popularesca e social, quando os habitantes das grandes cidades e pontos de referência para os moradores dos bairros
vão estabelecendo alguma unanimidade em torno do valor a Independência e Floresta na cidade de Porto Alegre/RS.
atribuir a certos lugares e objetos urbanos. Esse tipo de processo Essa estória teria por objetivo provocar uma reflexão sobre
baseado em uma informalidade, geralmente, não é respeitado os temas da preservação ambiental e da nossa relação com o
por muitos municípios. Ricardo Campos (2017) traz o exemplo uso dos espaços públicos da cidade e os resíduos. Para melhor
da cidade de São Paulo no qual entender esse projeto e sua proposta, tivemos a oportunidade
84 85
de realizar uma entrevista com a curadora do projeto, Clara
o que estas situações demonstram é que, para muitos Freund2 .
cidadãos, estas expressões não-autorizadas existentes
são um património cultural da cidade, dão-lhe carácter e Antes de entendermos o ZIS Grafite, entendamos o que
identidade. Há, por isso, um elemento de identificação com é a ZIS porto alegrense. De acordo com Clara Freund, a
muitas destas obras de graffiti, apesar da sua natureza Zona de Inovação Sustentável surgiu de uma sugestão do
transitória (CAMPOS, 2017, p. 5). professor Marc Weiss a partir de um projeto que ele tinha
implementado em Washington, que se chamava Sustainable
Dito isso, mais que reflexões teóricas que articulem os conceitos Innovation Zone, que era, basicamente, um mapeamento de
trazemos dois casos empíricos localizados na cidade de Porto áreas com potencial de inovação e sustentabilidade da cidade.
Alegre/RS, no sul do Brasil. O primeiro diz respeito a uma Clara conta que, a partir da aproximação de Marc Weiss
ação que visou a produção de seis grandes murais de graffiti no com o Paralelo Vivo de Porto Alegre, local onde se encontra
bairro Floresta em Porto Alegre. O projeto “ZIS Grafite” teve o Distrito Criativo3, criou-se a ideia da implementação
financiamento público e buscou contar a história da região a de uma Zona de Inovação Sustentável na cidade. Meu
partir da pintura de grandes fachadas no antigo quarto distrito questionamento central, todavia, era de como a ideia do
da cidade, hoje encarado como um distrito criativo. Já a segunda grafite foi de encontro com um movimento de economia

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criativa, e mais especificamente de uma Zona de Inovação

hostel no bairro floresta - zis grafite.


Sustentável. Clara relatou:

porto alegre, 18 de julho de 2018,


Eu enxergo, numa visão pessoal, o grafite como um
movimento de arquitetura urbana e de empoderamento da
comunidade, de arte aberta, acessível pra todo mundo, não é

acervo dos autores


aquela arte do museu, é uma expressão de arte que começou
nas periferias e que é pública, é da rua.

O grafite teria chego na ZIS por meio de um projeto da Virada


Sustentável de 2017 em Porto Alegre, que o Paralelo Vivo, grupo
o qual Clara fazia parte, ajudou a organizar. Neste, Clara conta A ideia, então, era de construir um percurso turístico a cargo
que abraçou a ideia de fazer atividades e oficinas de melhoria do grafite naquele local, onde Clara desenhou o percurso a
dos bairros através do grafite, pensando em percursos turísticos, partir das negociações e autorizações que ia conseguindo na
como o Beco do Batman em São Paulo. De acordo com Clara, região, entre muros, portões e fachadas de sua rede criativa.
isso se daria por dois motivos: primeiro, gerar renda para o Outro ponto interessante aqui é o modo que se deu a captação
setor turístico, visto que Porto Alegre é carente desse tipo de dos recursos para o projeto: houve patrocínio tanto privado,
percurso aberto; e, segundo, além dessa carência, teria o objetivo da NET Claro, quanto também público, por meio da Lei
de revitalizar a região do Distrito Criativo e do Bairro Floresta de Incentivo à Cultura, onde foram contemplados. Veja
86 que, nas palavras dela, estava muito marginalizado. Dentro do 87
bem: patrocínio público para um projeto de grafite. Clara
mapeamento da Zona de Inovação Sustentável então, Clara complementa:
conta que identificou a região com grande potencial turístico,
Mas a intenção era, realmente, começar a criar
e conjuntamente, para aproveitar o Distrito Criativo que se
percursos abertos pela cidade, [...] vendo o grafite como
localiza naquela região, que constam empreendimentos diversos
uma forma de gerar renda para aquela região e atrair o
como hotéis, sorveterias, padarias, etc, empreendimentos que
olhar do público para a arte do grafite.
geram algum tipo de circulação e inovação no sentido do valor
criativo, de acordo com Clara. Nas fotos a seguir, um panorama Atente bem: arte do grafite. Dado este panorama, estaríamos
visual dos locais grafitados. aptos a começar a pensar numa artificação desses artefatos
simbólicos da cultura graffiti? Se seguirmos o conceito de
dos autores
alegre, 18 de julho de 2018, acervo
café do vila flores - zis grafite. porto

artificação proposto por Roberta Shapiro e Nathalie Heinich


(2013), podemos dizer que sim. De acordo com as autoras,
artificação seria a transformação da não-arte em arte; seria o
processo pelo qual atores sociais passam a legitimar como arte
alguma produção ou atividade que, antes, não era considerada
como tal.

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O grafite também se tornou mais refinado, tendo ao mesmo Na linha de pensamento dessas autoras, o século XX teria
tempo um maior alcance sociodemográfico do que tinha por característica um constante processo de absorção de
no início, além de ter envolvido uma gama de instituições novas formas de arte, não havendo mais um cânone único
no mundo da arte, como galerias, museus e editoras. Em de regulação, que seria a Academia, mas agora também o
todos esses casos, a artificação coincide com a elevação público, os jornalistas, os livros, os colecionadores, diretores
social, a sofisticação e a maioridade, tanto dos produtores de galerias, festivais, administrações públicas, quer seja,
quanto dos consumidores, a individualização da produção outros empreendedores de arte que chegam para questionar e
e o advento do autor. As obras são avaliadas em termos de colocar em xeque as tradicionais categorias e oferecer novos
critérios objetivos de “beleza”, e não somente em termos espaços nessa área. A arte urbana, nesse sentido, encontraria
do prazer subjetivo que proporcionam, e isso forma a base um locus cada vez maior. Uma vez que novos empreendedores
para uma nova experiência nessas esferas: a apreciação surgem nesse meio em transformação, atores novos também
estética (SHAPIRO & HEINICH, 2013, p. 21). se revelam, como é o caso do curador/mediador.

No ZIS Grafite, clara se destacou como uma mediadora


do projeto na medida que organizou e desenhou o trajeto,
negociou locais e autorizações para pintar e captou recursos
para a realização do empreendimento; por intermédio de
Clara, o ZIS Grafite pôde contar com financiamentos tanto
88 na instância privada, da parceria com a NET Claro, como 89
também, e principalmente, na instância pública, captando
recursos por meio da Lei de Incentivo à Cultura, onde a
aprovação do projeto passou pela Comissão de Patrimônio
Histórico da cidade. A experiência, todavia, não é singular.
Entendamos agora como se deu o projeto Cabify com
pinturas comissionadas em Porto Alegre.

O PROJETO CABIFY
“Intervenção urbana chama atenção no Centro de Porto
Alegre” acompanhada de uma grande foto, esta foi uma das
reportagens do jornal Correio do Povo no mês de Setembro
de 20174. Um dos locais escolhidos para uma grande pintura
mural no Centro Histórico de Porto Alegre, patrocinada
pintura de binho ribeiro - zis grafite. porto alegre, 18 de pela empresa Cabify, é um antigo prédio na Avenida Júlio
julho de 2018, acervo dos autores

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de Castilhos portador de uma fachada de grande visibilidade condição do centro da cidade como espaço de marginalidade.
para quem anda de ônibus ou pé pela região, ou pra quem passa O avanço do novo muralismo urbano indicaria uma postura
de ônibus pela localidade. O prédio é repleto de histórias que contrária ao que se diz do espaço desde a década de oitenta,
perpassam gerações. Uma delas diz respeito a um acidente sendo agora uma localidade “boa de se ver e de se estar”.
que ali tivera ocorrido no início dos 2000, causando algumas

2017, acervo dos autores


antes – projeto cabify. porto alegre, 03 de setembro de
mortes e desativando completamente a função do local como
estacionamento.

Desde então a antiga ruína vinha sendo pensada por muitos


artistas urbanos locais como um espaço interessante de
intervenção. Carlos, o dono do local, conta que sempre teve
dificuldades em “saber o que fazer com o local” que pertenceu
a seus familiares e nos últimos anos vinha sendo alvo de
pichações que o desagradava. A trajetória de deterioração do
antigo prédio referido não diz respeito somente a ele. O bairro
Centro Histórico em si, desde os finais da década de 1980,
passa de maneira geral por este processo. Pensado como bairro
marcado pela mobilidade, impróprio para se residir, destinado
90 às dinâmicas do trabalho na cidade moderna, o Centro Histórico 91
nem sempre teve estas características.

setembro de 2017, acervo dos autores


depois – projeto cabify. porto alegre, 26 de
Conta o artista urbano Jota Pê, um dos artistas grafiteiros
que pintou o local, que esse projeto visa “mudar um pouco
a característica do bairro”. Vinculado a um espaço de
marginalidade, o antigo prédio fica em frente a um novo hotel
de luxo e ao lado de um novo viaduto. As “novidades” ao seu
redor implicaram uma mudança estética do deteriorado prédio
histórico. Durante o mês de setembro um “colorido radical”
começou a tomar conta das antigas fachada cinza que, segundo
seu proprietário “não tinha nada a dizer, só memórias ruins”.

Para se investir neste debate, torna-se necessário recuperar


alguns fragmentos da história das bases territoriais nas quais tais
intervenções ocorrem. Percebemos assim que a pintura desse
prédio diz respeito a um movimento de resistência da própria

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A concretização deste projeto teve uma rede de agentes CONCLUSÃO: O MURALISMO ENQUANTO PATRIMÔNIO
envolvidos como os artistas urbanos organizados em um
Ao trazermos as dimensões da arte urbana e do patrimônio
coletivo chamado “Pax Art”, uma produtora de publicidade que
relacionando-as com casos empíricos, buscamos agora
“vendeu” o projeto para iniciativa privada, moradores da região,
delimitar algumas reflexões sobre este intrigante processo.
passantes, mídia, etc. A realização de um trabalho etnográfico
A primeira coisa que podemos nos perguntar é: o que, de
que objetive acompanhar as redes formadas por artistas urbanos
fato, está sendo pensado como patrimônio? A arte urbana
e instituições legalizadoras (públicas ou privadas) aponta
na qualidade de intervenções efêmeras, pouco duráveis
para uma dinâmica complexa, repleta de outros agentes que
no tempo, muda de estatuto quando falamos muralismo.
tencionam as fronteiras do legal e do ilegal. Legalização pode
Segundo Javier Abarca (2016), em artigo publicado para a
significar, em maior ou menor medida, legitimação. Mas são
revista Street Art & Urban Creativity, “murais podem ser
dois processos diferenciados que não necessariamente levam um
chamados de arte urbana, mas este termo gera confusão.
ao outro.
Estes murais são muito diferentes que era considerado arte
A reflexão sobre estes mediadores, que fazem possível este urbana décadas passadas”. Logo, ao trazermos os casos do ZIS
trânsito entre práticas ilegais e ações patrimoniais, entre Grafite e do Projeto Cabify, o que temos percebido é que estes
intervenções ilegais e legalizadas, é de essencial importância empreendimento, mesmo que se utilizem da ideia de “grafite”,
para o entendimento das dinâmicas dos processos de estabelecem novas dinâmicas com esse modelo de intervenção
patrimonialização do novo muralismo urbano. Porém, este artística urbana.
92 cenário de influências e aberturas de fronteiras institucionais 93
É o muralismo enquanto forma de expressão urbana que
pela figura da mediação vai além do grafite como prática,
é legalizado através das práticas de legalização (ABALOS
estendendo-se às reflexões entre patrimônio e cidade na
JUNIOR, J. L; CABREIRA, L. P., 2018) advindas do poder
contemporaneidade. São intrigantes as formas de mediação nas
público e da iniciativa privada. É também o muralismo
suas habilidades de flexibilizações de fronteiras institucionais e
que é pensando como patrimônio pelos agentes e ações
políticas relacionadas à prática do novo muralismo urbano.
patrimoniais localizadas em cidades como Porto Alegre.
trampo no processo de produção – projeto cabify. porto alegre, 24 Como destaca Abarca (2016), aqui já não estamos falando
de setembro de 2017. mateus bruxel / agencia rbs mais das efemeridades e dinâmicas que atingem a arte urbana
tradicional.

A arte urbana implica, portanto, em um trabalho


estratégico que poderia ser descrito como geográfico.
Uma rede de obras forma um desenho imaginário sobre
o mapa da cidade que é, novamente, um traço da relação
entre o artista e o entorno que o espectador pode seguir,
mas neste caso a trilha funciona em escala geográfica.

revista rasante nº 03 . 2018 . no meio da rua josé luis abalos júnior e leonardo palhano . patrimônios do efêmero
Descobrir estes tipos de redes e seguir os caminhos que elas NOTAS
formam permite que o espectador fique mais próximo do
[1] Idealizadora do “instagrafite”, em entrevista concedida a
ambiente. O espectador pode tocar em tudo, mesmo que não
Jose Luís Abalos Júnior no dia 17/04/2018, São Paulo, Brasil.
seja fisicamente. Isso abre sua consciência para um novo
estrato da realidade e, por extensão, para muitos outros, [2] Entrevista concedida à Leonardo Palhano Cabreira, via
e permite a ele moldar um ambiente subjetivo diferente Skype, no dia 20/06/2017, Porto Alegre, Brasil.
daquele que lhe foi imposto pelo espaço capitalista.
[3] Para ver mais sobre Paralelo Vivo e Distrito Criativo,
(ABARCA, 2016, p.7)5.
acessar: http://pointfc.com/blog/comunidades-criativas-em-
Outro ponto importante a destacar-se é distinção política entre o porto-alegre
legal e o legítimo. Práticas que eram consideradas marginais até
[4] Reportagem do Jornal Correio do Povo de 29 de Setembro
a pouco tempo atrás, começam a ser legalizadas e/ou legitimadas
de 2017. http://www.correiodopovo.com.br/ArteAgenda/
por instituições que financiadoras. A realização de um trabalho
Variedades/Arte/2017/9/629940/Intervencao-urbana-
etnográfico que objetive acompanhar as redes formadas por
chama-atencao-no-Centro-de-Porto-Alegre-
grafiteiros e tais instituições (públicas ou privadas) aponta
para uma dinâmica complexa, repleta de outros agentes que [5] Tradução livre de “el arte urbano implica, por tanto, un
tencionam as fronteiras do legal e do ilegal. Legalização pode trabajo estratégico que podría describirse como geográfico.
significar, em maior ou menor medida, legitimação. Mas são Una red de obras forma un dibujo imaginario sobre el mapa
94 dois processos diferenciados que não necessariamente levam de la ciudad que es, de nuevo, un rastro de la relación entre 95
um ao outro. Cabe analisar etnograficamente tais dinâmicas e en artista y el entorno que el espectador puede seguir, pero
entender a abertura do estado e da iniciativa privada frente a en este caso el rastro funciona a escala geográfica. Descubrir
essa demanda que parte das cidades. este tipo de redes, y seguir los caminos que forman, permite
al espectador estar más cerca de su entorno. El espectador
Por fim concluímos que o advento do novo muralismo
puede tocarlo todo, aunque no sea físicamente. Esto abre su
urbano e das artes de rua comissionadas nos faz repensar
consciencia a un nuevo estrato de la realidad y, por extensión,
algumas separações estabelecidas no debate sobre patrimônio,
a muchos otros, y le permite dar forma a un entorno subjetivo
arte e cidade. Por exemplo, a distinção entre o efêmero e o
distinto al que le es impuesto por el espacio capitalista”
permanente, o legal e o ilegal e o público e privado, são exemplo
(ABARCA, 2016, p.7).
de dicotomias clássicas presentes nos estudos do tema. Uma
abordagem etnográfica de práticas tradicionalmente ilegais que
passam a ser financiadas não demonstra uma ruptura com suas
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
tradições marginais, mas refletimos sobre as continuidades e
ABALOS JUNIOR, Jose Luis; CABREIRA, Leonardo Palhano.
descontinuidades nas quais esta “tradição” se manifesta. “Grafite e Práticas de legalização: artificação e mediação em
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