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A emergência dos pomeranos no campo do patrimônio cultural: o


caso de São Lourenço do Sul (RS)1

Evander Eloí Krone


evanderkrone@gmail.com
Universidade Federal de Pelotas

RESUMO

Neste trabalho procura-se se situar a emergência dos pomeranos no campo do patrimônio cultural, evidenciando
o fato de que cada vez mais povos e comunidades tradicionais tem colocado seu passado, história, saberes,
fazeres e práticas culturais na base de reconhecimento de seus direitos. Desta forma, o trabalho análisa o caso do
município de São Lourenço do Sul onde a relação entre políticas públicas, patrimônio e tradição tem tangenciado
um discurso baseado na valorização e resgaste da cultura e identidades pomerana.

Introdução
Durante muito tempo a transformação de um bem em patrimônio estava relegada basi-
camente a base material, do ponto de vista jurídico o patrimônio cultural era uma definição
monumentalista e o Estado estava preocupado em preservar bens materiais tais como prédios,
igrejas, ruínas, etc. No Brasil, a Constituição de 1988 trouxe para o campo jurídico nacional,
importantes noções associadas ao patrimônio cultural, que possibilitaram incorporar os bens
culturais imateriais no leque de bens passíveis de proteção. Com isso, saberes, celebrações, ri-
tuais, lendas, hábitos, entre outras práticas culturais brasileiras passaram a ser alvo de projetos
de salvaguarda do patrimônio cultural nacional.
É nesse contexto que no município gaúcho de São Lourenço do Sul, a relação entre
políticas públicas, patrimônio e tradição tem recentemente tangenciado um discurso político
baseado na valorização e no resgate da cultura, identidade e do patrimônio imaterial de famí-
lias rurais de origem pomerana.
A colonização de São Lourenço do Sul remonta ao final do século XVIII quando se es-
tabeleceram nessa região as primeiras sesmarias ocupadas por luso-brasileiros que fundaram
fazendas e desenvolveram a pecuária extensiva e, posteriormente as charqueadas. Segundo
Salamoni (2001), além da presença portuguesa e negra que ali se estabeleceram desde o final
do século XVIII, agregou-se ainda ao processo de ocupação do território imigrantes de origem

1
Cabe ressaltar que o presente trabalho é resultado da minha pesquisa de mestrado, em andamento junto ao
Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pelotas.
2

germânica, assim, em 1858, a região acompanhou uma nova frente de colonização com a che-
gada de imigrantes provindos da Pomerânia.
Podemos compreender São Lourenço do Sul como um espaço notadamente marcado
pela confluência de diferentes etnias que contribuíram para o desenvolvimento socioeconômi-
co e cultural da região. Contudo, atualmente ações de caráter patrimonial vem sendo imple-
mentadas pelo poder público local centrando, especialmente, na valorização da dimensão ima-
terial de um patrimônio cultural pomerano associado às práticas culturais, hábitos alimentares,
costumes e tradições mantidos pelos descendentes pomeranos.
Entretanto, conforme salientam Ferreira e Hedein (2009), em São Lourenço do Sul a
origem pomerana foi durante muito tempo considerada uma identidade problemática. Nesse
sentido, Gonçalves (2008), que estudou relações interétnicas e a formação da identidade ger-
mânica na região, afirma que a identidade pomerana estava associada à servidão e a miséria
que os imigrantes viviam na Europa. Assim, o pomerano era uma identidade estigmatizada,
desta forma, vistos como grupo étnico inferior, muitos preferiam afirmar sua linhagem com a
descendência do “alemão legítimo” (GONÇALVES, 2008).
Contudo, em São Lourenço do Sul a identidade pomerana, antes estigmatizada, atual-
mente se encontra “supervalorizada através de uma política local de 'invenção do passado' e
de atribuição de sentidos patrimoniais ao cotidiano” (FERREIRA; HEDEIN, 2009, p. 138).
Assim “transformar a cidade num reduto pomerano é a preocupação central dos gestores pú-
blicos e ideias de autenticidade e tradição se apresentam como alicerces fundantes dessa po-
lítica” (FERREIRA; HEDEIN, 2009, p. 147).
Nesse contexto recente de valorização do patrimônio cultural, a tradição alimentar
pomerana tem sido explorada como um dos pilares dessa herança. É assim que a
Südoktoberfest2, maior festa da cultura germânica do município de São Lourenço do Sul,
torna-se aqui cenário privilegiado de estudo, pois é na festa “típica”3 que a alimentação é
usada de forma ideológica para o acionamento e demarcação de diferenças étnicas, bem como
para a produção de discursos reificados sobre a identidade e cultura pomeranas. Dessa forma,
tomando a Südoktoberfest como espaço de observação e a alimentação como abordagem, o
presente trabalho busca apreender como e de que forma são elaborados as ideias e discursos
que remetem à afirmação de fronteiras étnicas.

2
Termo cujo o significado é festa de outubro do sul.
3
O uso que fazemos do termo “típico”, colocado entre aspas, deve-se à necessidade de entender que nem tudo
que é selecionado e definido como “típico” tem presença no cotidiano da vida das pessoas.
3

Em termos metodológicos, este estudo constituiu-se a partir da abordagem etnográfica,


tendo como principal universo empírico de observação a própria Südoktoberfest. A observa-
ção participante teve início em 2011, durante a realização da 24ª edição da festa, vindo a ter
seguimento na 25ª Südoktoberfest. Durante esse período, foram efetuados registros imagéticos
da festa, coletadas informações e realizadas anotações em diário de campo. Assim, foi possí-
vel, durante duas edições consecutivas do evento, participar e compartilhar dos principais es-
paços de sociabilidade da festa, bem como interagir com visitantes, organizadores e atores lo-
cais. Posteriormente, foram acrescidas aos dados de campo entrevistas efetuadas junto a orga-
nizadores e atores locais que participam da festa.

Os novos sujeitos de direito no campo do patrimônio cultural


Abreu (2004) ressalta que, desde o começo dos anos de 1990, documentos da Organi-
zação das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO – anunciavam a
preocupação do desaparecimento, diante da globalização, dos chamados povos tradicionais.
Durante muito tempo ignorou-se qualquer papel ativo dos povos tradicionais nas políticas pa-
trimoniais, de desenvolvimento ou de conservação de recursos naturais. Porém, desde a déca-
da de 1980 os povos tradicionais passaram a ocupar posição de destaque no centro do debate
público, como atores legítimos dotados de importantes conhecimentos sobre o meio ambiente
e como preservá-los (CUNHA; ALMEIDA, 2001 apud SANTILLI, 2005).
Segundo Alfredo Wagner (2010), os conhecimentos nativos, até então contestados,
hoje estão na base do reconhecimento dos direitos dos povos tradicionais. Esse autor pontua o
surgimento, nas últimas décadas, de vários movimentos sociais, como os de seringueiros,
pomeranos, quebradeiras de coco, pescadores, quilombolas, ribeirinhos, entre outros, a partir
da adoção de designações coletivas pelas quais se autodefinem. Desta forma, segundo Alfredo
Wagner (2010, p. 184), “mais do que uma estratégia de discurso tem-se o advento de
categorias que se firmam através de uma existência coletiva, politizando não apenas as
nomeações da vida cotidiana, mas também um certo modo de viver e sua práticas rotineiras
no uso dos recursos naturais”.
É nesse contexto que emergem os novos sujeitos de direito no campo do patrimônio.
Segundo Gonçalves (1996), os discursos sobre a preservação do patrimônio têm lastro em
uma retórica da perda e é assim que a noção contemporânea de patrimônio foi implementada
com base em políticas que lastimavam a perda de tradições e produções das elites. Desde os
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anos 1990 pode-se notar uma nova vertente da retórica da perda, agora associada ao medo de
desaparecimento de culturas de povos tradicionais face ao processo de globalização (ABREU,
2008). Dessa forma, podemos perceber que, nas duas últimas décadas, o patrimônio passou a
ser marcado por uma noção mais inclusiva e menos elitista.
Assim, temos aquilo que Abreu (2008, p. 9-10) definiu como a emergência do “outro”
no campo do patrimônio, ou seja, há uma nova tendência, representada, nos últimos anos, pelo
“fato que diferentes populações vão cada vez mais apropriar-se do patrimônio como instru-
mento para suas conquistas na vida social”. Nesse sentido, a categoria patrimônio, construída
no contexto da “invenção” dos estados nacionais, passa a ser progressivamente apropriada e
ressemantizada pelos povos tradicionais. Dessa maneira, grupos que antes apareciam à mar-
gem das políticas patrimoniais passaram a colocar a memória e o patrimônio de seus grupos
na base de uma tomada de consciência de um passado a salvaguardar (FERREIRA; HEIDEN,
2009).
Apesar de presentes no Brasil desde meados do século XIX, os camponeses pomera-
nos estiveram, durante muito tempo, à margem da sociedade. Sendo inferiorizados e muitas
vezes ridicularizados por seu modo característico de falar, origem, hábitos alimentares, costu-
mes, religiosidade e práticas culturais. Desta forma, os pomeranos permaneceram como um
grupo étnico estigmatizado e inferiorizado.
Os pomeranos, mantiveram em grande medida sua vida e trabalho vinculados ao cam-
po, e foram marcados na relação com o mundo urbano pelo estigma do camponês pobre, atra-
sado e relaxado. Bourdieu (2006) observa que, no contato com o mundo urbano, o camponês
é geralmente inferiorizado e qualificado pejorativamente quanto a sua aparência e desvalori-
zado a partir de categorias urbanas de julgamento4.
Gonçalves (2008), que estudou relações interétnicas e a formação da identidade germâ-
nica no extremo sul do Brasil, afirma que os pomeranos permaneceram como um grupo étnico
estigmatizado, inferiorizados inclusive diante de seus pares mais próximos, os descendentes
de imigrantes renanos, que passaram a denominar-se alemães. Gonçalves (2008) observa que,
em função desse estigma, muitos pomeranos passaram a ocultar sua origem étnica, preferindo
muitas vezes afirmar sua linhagem como descendente do “alemão legítimo”.

4
Como exemplo do tipo de preconceito e estigma vivenciado pelos pomeranos, vale mencionar aqui a matéria
escrita por Ricardo Grinbaum publicada na Revista Veja, em 08 de junho de 1994, em que retrata os
pomeranos como camponeses que vivem na Europa do século XIX. O título da matéria resume o tom do
discurso preconceituoso: Gente do outro mundo: descendentes de pomeranos vivem no Espírito Santo como
se estivessem na Europa do século passado.
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No entanto, na última década uma série de ações tem sido desenvolvidas no sentido de
romper com este estigma e de promover uma valorização da cultura e identidades pomeranas.
Desta forma, a identidade pomerana, antes estigmatizada, atualmente se encontra no centro de
uma política de reinvenção do passado e de atribuição de sentidos patrimoniais ao cotidiano
(FERREIRA; HEDEIN, 2009).
Desde a criação, em 2006, da Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos
Povos e Comunidade Tradicionais (CNPCT), os pomeranos são reconhecidos como perten-
centes aos povos e comunidades tradicionais do Brasil. Deste modo, os pomeranos têm manti-
do um papel ativo nos fóruns de debate dos povos e comunidades tradicionais, sendo repre-
sentados por lideranças5 capixabas, reivindicando políticas públicas que contemplem deman-
das específicas do grupo.
É assim que em 2011 teve lugar no sul do Rio Grande do Sul, o primeiro PomerBR,
um evento nacional criado para discutir temas como o pertencimento e os modos de ser dos
pomeranos e que reuniu pesquisadores, professores, estudantes, lideranças políticas e campo-
neses. Em 2012 o evento foi sediado no Espírito Santo e teve como resultado a elaboração da
Carta de Santa Maria do Jetibá onde os participantes manifestaram interesse pela salvaguarda,
registro, promoção e desenvolvimento sócio-cultural da cultura pomerana no Brasil.
Cabe ressaltar, que algumas ações já vem sendo desenvolvidas em diferentes contextos
geográficos. Cabe destacar, por exemplo, que vários municípios do Espírito Santo criaram leis
reconhecendo o bilinguismo, tornando o pomerano, ao lado do português, uma das línguas
oficiais. Ainda no Espírito Santo, no município de Santa Maria do Jetibá, a prefeitura local
vem concedendo incentivos fiscais para construção e reforma de casas e prédios que tenham
estilo germânico em suas fachadas, esquadrias e telhados, procurando, desta forma, incentivar
o turismo local.
É na esteira de iniciativas como essas que podem também ter sido inspiradas algumas
das ações desenvolvidas no município gaúcho de São Lourenço do Sul. Uma das primeiras
ações que demarcaram, neste município, a emergência e desenvolvimento de políticas de pa-
trimônio cultural refere-se à instituição, em 2003, do Caminho Pomerano, rota rural turística
que permite ao visitante conhecer ou relembrar costumes pomeranos, bem como saborear pra-

5
Jorge Kuster Jacob, Secretário Municipal de Cultura e Turismo do município de Vila Pavão (ES), é o
representante dos pomeranos na CNPCT.
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tos e bebidas apresentados como tradicionais, como o Maischnaps, o peito de ganso defumado
e o café colonial.

A Südoktoberfest
A partir de ações de cunho patrimonial, promovidas pela administração pública local, e
com a valorização da antes depreciada cultura pomerana, a própria Südoktoberfest – maior
festa local da cultura alemã6 – passou a incorporar o novo status conferido aos pomeranos. No
final da década de 1980, jovens integrantes do grupo de danças folclóricas alemãs
Sonnenschein7, de São Lourenço do Sul, decidiram criar uma espécie de Oktoberfest8 no Sul
do Rio Grande do Sul, criando a Südoktoberfest. Desde 1988, a festa é realizada anualmente,
sempre no mês de outubro, com duração de três dias.
Cabe ressaltar que a Südoktoberfest é um evento organizado por um grupo folclórico
de predominância alemã e que tem por foco a valorização da cultura alemã da região. À época
da criação da festa, a questão da valorização da cultura pomerana ainda não estava colocada.
A partir dos anos 2000, as políticas públicas locais passaram a abordar com maior ênfase o
patrimônio cultural pomerano. Neste sentido, a Südoktoberfest, que iniciou como uma festa da
cultura alemã, aos poucos passou também a incorporar elementos da estigmatizada etnia
pomerana
A programação da festa envolve a realização de um jantar “típico”, geralmente servido
na noite de sexta-feira, com o acompanhamento de apresentações do grupo de dança
Sonnenschein. Já no sábado e domingo, além do Sonnenschein marcam presença também
grupos de dança alemã convidados, de outros municípios. Também anima a festa a escolha
das rainhas da Südoktoberfest, assim como a realização de bailes e jogos germânicos, tais
como o Schafskopf9. Cabe ainda destacar as apresentações dos grupos de coral, muito
presentes nas comunidades rurais de São Lourenço do Sul.

6
Segundo os organizadores, na edição de 2012 da Südoktoberfest foram vendidos cerca de 12 mil ingressos.
7
Segundo interlocutores, a tradução para o português do nome do grupo seria alvorecer ou nascer do sol.
8
Oktoberfest é um festival celebrado em Munique, no estado da Baviera, ao sul da Alemanha, que foi
disseminado por várias partes do mundo, inclusive para a região sul do Brasil. O festival é baseado na
gastronomia, música, folclore e manifestações culturais de origem alemã. No Brasil, as Oktoberfest mais
conhecidas são as de Blumenau (SC), Santa Cruz do Sul (RS) e Igrejinha (RS). Em alemão, Oktober significa
outubro, e Fest significa festa, por isso a denominação Oktoberfest.
9
O Schafskopf é um jogo de baralho, praticado principalmente por moradores da zona rural do município. Na
Alemanha, é praticado em várias regiões, sendo muito popular na região da Baviera. Schafskopf, em alemão,
significa “cabeça de carneiro”. Segundo Ricci (2005), é uma expressão que significa “burro”, “imbecil”,
“tolo”.
7

Um dos pontos altos da festa é o desfile de rua, realizado na manhã de domingo,


contando com grande participação da população local, que sai à rua para assistir ao desfile das
candidatas a rainha e dos grupos de dança e para ver os trajes característicos e as mascotes
Walter e Wilma, dois bonecos em forma de ganso que constituem a marca da festa. Carros,
caminhões, tratores e mesmo bicicletas são enfeitadas, geralmente com as cores da Alemanha.
Durante o trajeto, também são distribuídos gratuitamente para a população chope, linguiça,
cuca10, doces e outros alimentos considerados característicos da cultura alemã-pomerana..
Outro destaque da festa é o almoço de domingo, com pratos característicos da
culinária alemã-pomerana, como, por exemplo, o Eisbein11, o Rievelsback12, pato assado, sopa
de galinha, chucrute13, linguiça e cuca. Não obstante, paralelo ao cardápio “típico”, podemos
também encontrar na festa uma série de bancas que oferecem lanches do tipo fast-food, como
sanduíches, pastéis, cachorros-quentes, refrigerantes, balas, doces, sorvetes e picolés.
Também é oferecida ao visitante a oportunidade de saborear, durante a tarde, o café
colonial, servido em um espaço anexo ao galpão crioulo, composto de bolos, biscoitos,
salames, linguiças, tortas, café, chá, suco e o famoso Spickbost (peito de ganso defumado),
prato que, em 1993, deu origem à mascote oficial da festa, Walter – um ganso em forma de
boneco.
Em 2012, a mascote oficial da festa passou a ter uma versão feminina. Escolhida pelo
voto popular, a gansa Wilma passou a compor, juntamente com o ganso Walter, o casal ícone
da festa. Assim, cabe chamar atenção ao fato de que atualmente essas aves passaram a ser os
grandes protagonistas da festa, aparecendo representados no desfile temático, em que estão
presentes os personagens Walter e Wilma. Pode-se ainda destacar que, em boa medida, o
cardápio considerado “típico” da festa é baseado no consumo da carne de ganso, sendo
servido no buffet do almoço, vendido defumado nas bancas e apreciado também no espaço

10
Cuca é um prato característico da culinária de origem alemã, preparada a base de farinha, ovos e manteiga. A
cuca tem um sabor adocicado e é elaborado com uma cobertura de açúcar e em algumas das suas variações é
recheada com frutas.
11
É um prato em que o principal ingrediente é o joelho de porco preparado com temperos e comumente
acompanhado de chucrute.
12
É uma espécie de bolinho elaborado a base de batata, farinha de trigo e ovos. A batata é ralada de forma a
ficar com uma massa bem fina, posteriormente são acrescidos os ovos e a farinha trigo e por fim o bolinho é
frito. Cabe sublinhar que, na edição de 2009, a comissão organizadora promoveu um concurso culinário de
Rievelsback. Na época, cada concorrente teve que preparar 100 Rievelsback que foram servidos à comissão
organizadora e aos participantes do jantar da Südoktoberfest. Os critérios para avaliação das receitas foram os
seguintes: sabor, higiene no preparo, apresentação, ingredientes da região e receita típica pomerana.
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O chucrute é um prato elaborado a partir de uma conserva de repolho fermentado.
8

destinado ao café colonial, onde é possível consumir o peito de ganso defumado.


Contudo, apesar de toda a euforia em torno do ganso e, em especial, em torno do peito
de ganso defumado, esse alimento não está associado à dieta alimentar da maioria das famílias
rurais, compostas por descendentes de imigrantes pomeranos. Maciel (2001), explica que nem
sempre os pratos e alimentos acionados como marcadores da identidade cultural de um grupo
são aqueles de uso mais cotidiano. No entanto, eles podem muito bem representar o modo
como as pessoas desejam ser vistas e reconhecidas. Este parece ser o caso em que se enquadra
o peito de ganso defumado, já que apesar de ser um produto apresentado como emblemático
da cultura pomerana, atualmente, são raros os camponeses que mantém sua produção.
Segundo Luciane Peske, coordenadora da Südoktoberfest, a falta de oferta do produto é um
grande problema para a organização da festa.
Maciel (2001) ressalta ainda que a constituição de uma cozinha “típica” vai além da
simples invenção de uma lista de pratos singulares ou “exóticos”, mas implica também no
sentido que essas práticas ganham quando associadas a noções de pertencimento. A autora cita
como exemplo o binômio feijão-com-arroz, que no Brasil constitui a comida do cotidiano, en-
quanto que o prato “típico” servido aos estrangeiros e apresentando como símbolo da culiná-
ria nacional é a feijoada. O que é considerado “típico” não necessariamente está relacionado
às práticas do dia a dia, mas sim ao modo como o grupo deseja ser visto e reconhecido.
O peito de ganso é um produto relativamente caro para os padrões locais de consumo,
sendo vendido em algumas feiras do município pelo valor aproximado de R$ 50,00 o quilo.
De modo geral, apesar de muitas famílias rurais criarem gansos, poucas são as que se dedicam
à atividade de produção do peito de ganso defumado. O produto, então, acaba por fazer parte
da dieta alimentar de apenas uma pequena elite local, que tem condições de comprar ou
produzir o produto.
Nesse sentido, o costume de consumir peito de ganso defumado pode ser interpretado
como uma tradição inventada, entendida, tal como proposto por Hobsbawm (1997), enquanto
um processo criativo e legítimo. Esse historiador estudou a construção das tradições no
contexto do surgimento dos estados nacionais, argumentando que muitas tradições são
inventadas, sem guardar correspondência com a vida cotidiana das pessoas. Assim, certos
objetos e elementos culturais podem ser apropriados, institucionalizados e ritualizados como
meio de reivindicar um passado, uma memória e uma identidade a salvaguardar, já que “não é
necessário recuperar nem inventar tradições quando os velhos usos ainda se conservam”
9

( HOBSBAWM, 1997, p. 16).


Contudo, é preciso ter também presente que a Südoktoberfest é uma festa realizada em
ambiente urbano e, apesar de baseada em uma tradição rural e alimentação camponesa, o pú-
blico que ali se faz presente é eminentemente da cidade. O que ali se consome não é apenas
comida, mas também uma imagem idealizada do rural, algo que Eizner (1995 apud MENAS-
CHE, 2003) caracterizou como o consumo de imagens dos sabores perdidos. Portanto, na Sü-
doktoberfest a alimentação assume caráter ideológico, um modo de acionar identidades – for-
talecendo pertencimentos – e acentuá-las frente a outros grupos.

Considerações finais
Os dados discutidos aqui são parciais, cabendo ainda novos investimentos até a finali-
zação da pesquisa de mestrado. Porém, é possível afirmar que as ações atualmente em voga
em São Lourenço do Sul, estão associadas a um contexto nacional e internacional mais amplo,
com a criação de políticas públicas voltadas a valorização do patrimônio cultural de povos e
comunidades tradicionais. Neste contexto recente, grupos antes marginalizados, como, por
exemplo, os pomeranos, tem acionado práticas culturais e colocado o seu próprio passado e
história em jogo na luta para reivindicar reconhecimento, valorização e direitos.
No contexto empírico estudado, os pomeranos passaram a ter uma visibilidade que an-
tes não desfrutavam. É assim que a própria Sudoktoberfest, que antes se quer fazia menção a
cultura pomerana, atualmente passou a se apropriar do discurso e das ações de valorização e
reconhecimento da identidade pomerana. Neste sentido, vivemos um momento de ressignifi-
cação e (re)elaboração da própria identidade pomerana e de uma constante (re)construção da
pomeraneidade.

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