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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Elaborado pelo Bibliotecário Douglas Lenon da Silva (CRB-9/1892)

B168 Baker, Julia.


Imersões digitais : exposição em novas realidades / Julia
Baker, Juliana Pereira. — Rio de Janeiro : Ed. das autoras, 2021.
113 p. ; il.

ISBN 978-65-00-25273-6

1. Artes – Catálogo. 2. Arte – Exposições. 3. Curadoria.


4. Crítica de arte. I. Pereira, Juliana. II. Título.

CDU 7.074(061.4)
6 APRESENTAÇÃO

8 AGRADE CAMÍZ

16 DAVI BENAION

30 RAFAEL AMORIM

50 ANA CLÁUDIA ALMEIDA

62 BEA MARTINS

72 ANDRÉ VARGAS

78 SALLISA ROSA

86 DIAMBE DA SILVA

96 DENILSON BANIWA

112 FICHA TÉCNICA


APRESENTAÇÃO  6—7
IMERSÕES DIGITAIS é uma plataforma para experimentos, A exposição aqui proposta foge desta realidade. Ao nos em infinitas abas e “googadas”. Por momentos parecemos a singularidade das mostras, a cada semana um artista
tanto artísticos quanto curatoriais. Decidimos navegar depararmos com um novo cenário iniciado no Brasil e compreendê-lo mas suas múltiplas possibilidades não inaugura sua exposição, em uma galeria única, criando
dentro de um espaço desconhecido e propusemos uma no mundo, em março de 2020, no qual o encontro já não se revelam facilmente para nós, sujeitos que não entram o seu próprio enredo e lidando com os desafios desta
nova experiência para ês artistas convidades. é tão corriqueiro, espaços de partilha e de trocas têm nas profundezas da web, assim como a cidade que nos plataforma peculiar.
números de visitantes limitados e o trânsito dos corpos atravessa cotidianamente.
Executar uma exposição, uma obra de arte, quando se e corpas na cidade é restrito, bloqueado, nós, criadores e JULIA BAKER E JULIANA PEREIRA
conhece em quais terrenos está se adentrando, facilita consumidores de arte e cultura, tivemos que propor novas Neste contexto convidamos nove artistas, habitantes
o trabalho. Se estamos em um museu ou uma galeria ocupações de territórios, ainda a serem desbravados ou naturais do grande Rio de Janeiro, para ocuparem
podemos solicitar metragens, compreender o espaço e e explorados, mas os quais oferecem, atualmente, um uma pequena fração deste espaço digital supostamente
suas limitações, o espaço entre cada obra, com que cores alento de segurança e, de alguma forma, de partilha ilimitado. Não se trata de uma exposição coletiva e sim
as paredes serão pintadas etc. Mesmo quando os suportes e troca. de exposições individuais, mas é inegável apontar que
são variados, como uma pintura ou uma vídeo-instalação, as obras se encontram em encruzilhadas do território
O projeto se fez
a materialidade das obras e do próprio espaço nos ajudam O território por nós escolhido foi o virtual, um espaço carioca e colocam em discussão problemas que a cidade possível graças à
lei de emergência
a construir narrativas sobre o que estamos vendo e como ao mesmo tempo familiar mas desconhecido, onde nos apresenta, seja em ambientes compartilhados pela
cultural Aldir Blanc
percorremos a exposição. os nossos trânsitos diários acontecem em formato de massa, como o espaço das ruas, ou na intimidade das do município do
Rio de Janeiro.
mensagens, compartilhamento de imagens, mergulhos esferas privadas de nossas casas e quartos. Para marcar
Agrade Camíz  8—9
[A RUA É UM ESPAÇO]
DEMOCRÁTICO MESMO,
SACA? É O MELHOR LUGAR
PRA ARTE. FOI ONDE
EU TIVE MEU CONTATO
PRIMEIRO COM A ARTE,
FOI ONDE EU CONHECI
ARTE, QUE EU ENTENDI
O QUE ERA ARTE. A RUA
AGRADE CAMÍZ (1988) cresceu na Zona Norte do Rio
de Janeiro e explora a estética do subúrbio em seus
É REALMENTE O LUGAR QUE
trabalhos. As grades, tão comuns nas portas das casas VOCÊ PODE FAZER O QUE
e portões de vilas e condomínios desta parte da cidade,
VOCÊ QUISER, VOCÊ NÃO
criam uma separação entre as narrativas de dentro e as
de fora. De certa maneira, Agrade traz uma atualização
PRECISA SER AUTORIZADO,
contemporânea das discussões de gênero na arte sobre VOCÊ PODE SIMPLESMENTE
as configurações do espaço feminino, como sendo o
IR LÁ, FAZER, COLOCAR

AGRADE
espaço de dentro, do íntimo, do privado. A artista, além
de produzir obras de pequenas dimensões, que podem
E DEIXAR.
ser exibidas em galerias e museus, também possui um
trecho da entrevista concedida por Agrade Camiz
trabalho expressivo como grafiteira e muralista em que pode ser vista na íntegra aqui.

diversos pontos da cidade.

CAMÍZ
Agrade inicia sua trajetória artística na rua e considera
ser este o lugar mais acessível, pois não depende
de muitos materiais para começar a produzir, e não
impõem tantas barreiras quanto os espaços oficiais da
arte, como museus e galerias. A rua, apesar de ser um
espaço de disputa, está sempre disposta a acolher e
a compartilhar.
Agrade Camíz  10—11
Talvez, por ser uma artista que inicia sua trajetória na
rua, Agrade parte de um olhar voltado para fora, para as
grades urbanas de proteção, para as ruas do subúrbio e
para as interações, os hábitos e os modos de vida destes
territórios. As grades, muitas vezes, podem ser simbólicas,
são as normas sociais que pretendem definir o que
pertence à atmosfera pública e o que é do âmbito privado.
Às mulheres, historicamente, foi atribuído o espaço de
dentro, uma mulher de bom nome ocupa-se da casa, dos
afazeres domésticos que trarão conforto à família, cabe
a mulher agradar. Uma boa mulher é reservada, não
dá motivos para rumores, principalmente em relação
a sua vida íntima. Em Teu nome tá no judas (2020), a
artista recorda uma tradição dos subúrbios cariocas que
acontece no Sábado de Aleluia, na semana santa, onde
comportamentos considerados desviantes de alguns
membros da vizinhança são expostos através de cartazes
em algum ponto do bairro. Agrade Camíz salienta o quanto
esta exposição cai com muito mais impacto sobre a vida
das mulheres que, quando expostas, tinham muito mais
dificuldade de desvincular suas imagens dos rumores.
Ela lembra ainda da ansiedade vivida pelas mulheres da
família, gerada pelo receio de ter o nome mencionado no
“mural da vergonha”.

Teu nome tá no Judas


2020
Agrade Camíz  12—13
Em Propriedade pessoal (2020), a Se Agrade inicia suas investigações Propriedade pessoal I, II e III
2020
artista reflete sobre a independência artísticas com um olhar voltado para
feminina, que está totalmente fora do território delimitado pelas
vinculada a uma autonomia grades, nesta exposição podemos
econômica, ou seja, para uma observar uma caminhada gradual
mulher ser livre, dona de si, das para o espaço interno, não só em
suas escolhas e até mesmo de seu direção ao interior da casa, mas
próprio corpo, precisa, antes, ser em direção a uma subjetividade.
independente materialmente. Já a Os sonhos, os desejos, as memórias
dependência econômica transforma e uma delimitação do espaço pessoal
a mulher em propriedade de alguém, dão indícios de que o olhar da artista
devendo ser útil a quem a sustenta e encontra-se agora em um lugar
a acolhe. Quando uma mulher sonha intermediário, como o de quem
com sua independência financeira, olha pelas frestas das grades para
muitas vezes desde menina, não diz o interior da casa, observando as
respeito apenas ao desejo de possuir tensões existentes no espaço privado,
poder de compra, não está somente onde a mulher muitas vezes é refém,
ligado ao consumo, mas sim a um a depender das circunstâncias, outras
desejo de ser livre, de poder controlar tantas se torna especialista em
a própria vida e construir a sua sobreviver, se utilizando de táticas
própria trajetória rumo ao destino ancestrais, passadas de geração em
que projetou para si. O mesmo vale geração, pois cada emancipação
para o campo da arte, que manteve feminina conquistada hoje se deve
as mulheres por séculos relegadas aos sonhos das que vieram antes, que
a determinadas esferas, linguagens lutaram e construíram as condições
e temáticas. Quantas artistas não de hoje.
foram invisibilizadas, vivendo à
sombra de um homem, seja como
esposa ou como assistente de ateliê.
Agrade Camíz  14—15
Quando eu crescer, sonhos e realidades
2020
Davi Benaion  16—17
BENAION
DAVI
A rua é para quem? Se visitarmos textos do começo
do século XIX, como as crônicas de João do Rio sobre
as ruas do Rio de Janeiro, estávamos diante de um
ambiente democrático disponível para os exploradores,
os flâneurs, os adeptos da vadiagem, os trabalhadores,
os devotos e qualquer sujeito com o desejo de vagar e
conhecer o que a cidade poderia oferecer. A rua parecia
ser “coabitada” por todes. Porém, mesmo quando João
cita, em seu livro A alma encantadora das ruas (1908),
personagens conhecidos em certos endereços, ele relata
que, dependendo do bairro, o trato com aquele sujeito era
diferente. As ruas podem acolher ou repudiar os corpos
que por elas transitam. Relembramos a questão inicial e
acrescentamos: a rua pode ser para todes?
Davi Benaion  18—19
DAVI BENAION (1991) performa o corpo e os espaços
entendidos enquanto públicos nas obras de sua exposição.
Elu trabalha com dança e performance a partir das
inconformidades entre seu próprio corpo e articulações
normativas impostas, que reforçam problemáticas ligadas
ao gênero. Ao trazermos João do Rio e sua relação com as
ruas, seu convite a experimentá-las, temos que pontuar
que o autor era um homem cis, assim, certos aspectos
podiam se abrir com mais facilidade por ele possuir este
marcador. Afinal, a rua não abraça todes corpos, tampouco
é generosa com as pluralidades do gênero. Sua construção
passa por desejos privados expressos pela voz de poderes
públicos que criam um ambiente de circulação ditado por
normas. Se formos pensar em exemplos banais, temos
vias onde a circulação de corpos é impedida pois os carros
tomam as calçadas, outras que se tornaram lar, e também
algumas em que corpas não normativas não conseguem
circular sem serem destacados. Todas as potências deste
espaço e as problemáticas impostas por ele podem ser
reconhecidas nos trabalhos de Davi.

Cumaps
Humaitá
2019
colaboração:
Vitor Medeiros
Davi Benaion  20—21
Cumaps
Arcos da Lapa TEM ESSA ASSOCIAÇÃO UMA IDENTIDADE QUE
2019
colaboração: MUITO FORTE ENTRE UMA NÃO SEJA BINÁRIA MAS
Vitor Medeiros
IDEIA DE SEXUALIDADE AO MESMO TEMPO EU
COLADA A UMA IDEIA DE NÃO ESTOU ALI COM
GÊNERO QUE NÃO DÁ PARA A MINHA IDENTIDADE,
SE COLAR, E COLADA MAS EU ESTOU ALI COM
A ESSES MAPEAMENTOS ESTEREÓTIPOS QUE SÃO
TAMBÉM NO CORPO, QUE DESIGNADOS PARA MIM E
NÃO DÁ PARA SE COLAR. ISSO APARECE NO CORPO,
ENTÃO PENSANDO COMO EU QUE É UM CORPO QUE
ME ORGANIZO, DE MANEIRA NÃO DEVERIA ESTAR ALI
CRÍTICA, PENSANDO EM DAQUELA FORMA.

Trecho da entrevista concedida por Davi Benaion


que pode ser vista na íntegra aqui.
Davi Benaion  22—23
O corpo é o suporte. Davi lança seu corpo no local público,
oferecendo e recebendo estímulos múltiplos. Podemos
pensar em como a obra concretiza relações com o espaço
público e passantes de maneiras muito particulares,
pois ela irá ocorrer de forma processual. Importante
sublinhar que o trabalho desenvolvido, cumaps (2019),
surgiu a partir da performance Fauno (2018) na qual Davi
transporta o fauno de Vaslav Nijinsky para um contexto
de sedução contemporânea, quebrando o binarismo do
masculino versus feminino e apresentando uma figura não
binária, que performa para todes ao seu redor ao som de
divas do pop internacional. Ao pensar os limites impostos
pela performance, em termos de locais onde a mesma
poderia acontecer, Davi viu no lambe a possibilidade de
ampliar a presença de sua persona para outros espaços,
nos quais a lógica do campo da arte não é dominante. Davi
foi para as ruas, ambiente público que se diz democrático,
mas regido por uma série de hierarquias e normas não
escritas. Para a realização de cumaps, Davi mapeou
espaços em diferentes bairros, criou um trajeto assim
como criamos ao colocar endereços no Google maps.

Cumaps
Riachuelo
2019
colaboração:
Vitor Medeiros
Davi Benaion  24—25
Cumaps
Passeio Público
2019
Davi Benaion  26—27
Na ida, navegamos o maps e nos deparamos com pontos
marcados pela intervenção dos lambes. Cada imagem
retrata Davi no exato espaço físico no qual a instalação do
lambe foi feita. Humaitá, Lapa, Praça Mauá, Centro… Davi
coloca seu corpo em todos estes ambientes que possuem
uma lógica de circulação e movimentação particulares.
Ao instalar o trabalho com pinceladas grossas de cola, ele
não revela imediatamente a imagem, ela surge enquanto a
secagem ocorre, o choque do transeunte se dá por partes,
é quase um descortinamento do que está por vir. E assim
a persona de Davi se revela, expõe um corpo que tem sua
plenitude rechaçada no espaço público, que não tem a
tranquilidade e segurança de percorrer as vias públicas
a qualquer momento, em qualquer horário. A crítica
imposta pela obra nos faz questionar a quem as vias
públicas pertencem, quais corpos são aceitos e podem
circular. E, quando é um corpo não normativo? Um corpo
que não deseja estar dentro de uma lógica binária, que se
opõe? Um corpo não dual e sim plural? A rua se encanta?
A rua se abre? No percurso de ida conhecemos este corpo,
ele se revela para nós e para os passantes e habitantes das
avenidas, becos e vielas.

Os vídeos podem
ser vistos no
site da exposição
Davi Benaion  28—29
O caminho de volta tem outras
marcas. A mesma linha que cria
as relações entre as ruas e como
devemos caminhar para chegar de
um ponto a outro, agora cria um
percurso dérmico pelo corpo de Davi.
Não reconhecemos perna, braço ou
sexo, e sim linhas e nuances, curvas
e recortes. A imagem se revela.
O corpo é representado pelo lambe
e nele vemos a ação do tempo e dos
indivíduos. São pedaços rasgados,
interações, uma imagem apagada
por espectadores inquietos. Como
falamos, a rua não é generosa com
todes, ela tem suas regras, criadas
por poderes visíveis e invisíveis. Nos
caminhos de retorno, vemos uma
volta marcada por intervenções. Uma
volta que machuca pois quer apagar
um corpo que tem direito à rua. Um
corpo que para existir precisa resistir.

As imagens revelam como as


relações entre rua, sujeito e gênero
precisam ser visitadas e trabalhadas.
São imagens que, por mais que
incomodem alguns, não poderiam
estar em outro espaço que não o da
esfera pública. Mesmo que rasguem,
desenhem por cima ou raspem o
corpo de Davi dos lambes, seu efeito
já se fez presente. O corpo, mesmo
em sua ausência.
Rafael Amorim  30—31
A cidade se faz presente nas criações do artista
RAFAEL AMORIM (1992). Ele vive a cidade, ou melhor,
as cidades, as que incorporam este conjunto de territórios
que chamamos de Rio de Janeiro. Por três séculos foi a
capital do país e, mesmo destituída de tal título, continua
a representar um dos muitos Brasis que rondam o
imaginário nacional e internacional de festividades, praia,
carnaval e folia. Onde as moças caminham pela orla

RAFAEL
com seus bronzeados, amigos se reúnem nos bares de
esquina para acompanhar o último jogo entre Flamengo
e Fluminense, espaço em que a festa pode ser encontrada
em cada esquina, que o tambor se mantém aquecido de
janeiro a janeiro. Outras facetas reportadas passaram, nas
últimas décadas, a serem reconhecidas enquanto cariocas:

AMORIM
as balas perdidas, a violência com corpos e corpas pretas,
o descaso com quem é habitante da cidade. Apesar de
midiado, são apenas poucas facetas de uma cidade plural,
que parece se transformar a cada esquina, em cada bairro
ou município que compõe o grande Rio de Janeiro.
Rafael Amorim  32—33
Rafael revela conhecer diferentes nos transporta e nos faz imaginar
momentos da cidade. Ele tenta os cenários relatados. É uma cidade
experimentar o Oeste, Sul, Centro e viva, um grande organismo que se
Norte a partir de suas necessidades e alimenta de todes nós. Por vezes é
desejos. Ser de Padre Miguel produz caótica, violenta, nos faz mesmo
marcas em sua formação e em sua repensar se habitá-la vale a pena,
poética enquanto sujeito carioca. nos faz questionar se o barulho, a
Ter estudado no campus da UFRJ fumaça e a confusão de buzinas
localizado na Ilha do Governador são maus necessários. Mas logo os
produziu uma nova exploração encontros se apresentam. As noites
da cidade, através de trajetos que nos bares, as conversas com os
apenas o transporte público é capaz conhecidos desconhecidos, a água
de produzir. A sua ocupação da que se faz presente no mar, nas ORA ESSE ESPAÇO A ALGUMA RELAÇÃO,
cidade se dá por meio de passos lagoas, rios e as chuvas que invadem
DOMICILIAR É UM RECORTE A ALGUM ESPAÇO. ENTÃO
largos, paradas de metrô e apertos a cidade… A poesia do Rio consegue,
de corda para a descida no ponto por vezes, prevalecer sobre seu
DA CIDADE. ORA A ESSES DOIS ESPAÇOS,
de ônibus. Rafael é um explorador caos e assim vamos (sobre)vivendo. CIDADE É UMA AMPLIAÇÃO O PÚBLICO E O PRIVADO,
dos caminhos e possibilidades que Mesmo gastando muito dinheiro,
DESSE ESPAÇO MENOR. EU EU ACHO QUE ELES
a cidade diz oferecer. Mesmo sendo mesmo com medo do que pode se
uma realidade compartilhada por apresentar em uma esquina, mesmo
ACHO QUE ESTOU SEMPRE ACABAM VIRANDO CAMPOS
muitos, a forma como reverbera em presenciando uma cidade partida, há QUERENDO RELACIONAR. QUE RECEBEM ESSE
cada um é única. vida nas fissuras. E é na fissura que
PRINCIPALMENTE PORQUE ENDEREÇAMENTO.
conseguimos criar nossas relações,
Acesse a obra
As fronteiras que existem entre a é neste lapso de espaço, na brecha,
O TRABALHO QUE EU Trecho da entrevista concedida por Rafael Amorim
As fronteiras que existem entre a gente II
que pode ser vista na íntegra aqui.
2017 gente II (2017), trabalho em formato que o espaço da cidade se transforma DESENVOLVO HOJE, EU
de áudio, nos transporta para uma para nós, pois como nos conta uma
PASSO A ENTENDER
urbe que machuca e acolhe ao mesmo das vozes do trabalho: cada vírgula da
tempo. O trabalho é uma carta lida cidade, é nela que residimos.
COMO UM TRABALHO DE
e construída por várias vozes, que ENDEREÇAMENTOS. ESTÁ
SEMPRE ME INTERESSANDO
ENDEREÇAR ESSA ESCRITA
QUE EU MEXO NO TRABALHO
A ALGO, A ALGUÉM,
Rafael Amorim  34—35
Aos exilados, as boas vindas
2020

Mas e quando a cidade se fecha? E quando as ruas já não solares. Na cama, quais linhas nos cortam? Quais raios
se apresentam mais disponíveis para passearmos, para incidem sobre nós? Rafael abre seu espaço íntimo, permite
ocuparmos? Tal cenário se concretizou de forma extrema que o espectador de sua obra o penetre, conheça o espaço
em 2020, quando a pandemia de COVID-19 aportou no de suas fragilidades. O artista cria uma ruptura entre o que
Brasil. O país, podemos colocar que de um jeito meio deveria ser público ou privado, relacionando com o tempo
torto, se fechou. O cotidiano não deveria estar no espaço atual, em que as casas se apresentam para todes nas
das calçadas, das fissuras da cidade e sim em um espaço vídeo conferências.
privado, de nossas casas. Toda a vida pública passou
a habitar o ambiente do lar, melhor dizendo, o lar a Rafael continua a ocupar a cidade, agora uma cidade
partir do espaço virtual. O trabalho, reuniões de amigos, composta pelos lares compartilhados nas câmeras dos
cursos, faculdade, escola, festas, tudo tinha que ocorrer celulares e computadores. A sua exploração das fissuras e
compartilhado e individualizado pela tela do aplicativo brechas dialoga nos dois trabalhos revelando que, espaços
de encontros online. A casa se tornou o centro de nossas públicos e privados, quando apropriados, se transformam
vidas e, para alguns, o quarto ocupou um espaço ainda e trocam de significados constantemente.
maior. Rafael relata, através da série Aos exilados,
as boas vindas (2020), sua nova forma de se relacionar
com seu espaço particular. Local de trabalho, estudo,
descanso e prazer, seu quarto se transforma em obra.
Na ação-performance com registros fotográficos, ele cria
um segredo embaixo de sua cama: onde me penetram
os trópicos. Os trópicos cortam, produzem relações
geográficas imaginárias a partir de linhas criadas pelos
homens que ajudam a entender a incidência de raios
Rafael Amorim  36—37
Rafael Amorim  38—39
Rafael Amorim  40—41
Rafael Amorim  42—43
Rafael Amorim  44—45
Rafael Amorim  46—47
Rafael Amorim  48—49
ANA CLÁUDIA ALMEIDA  50—51
EU SINTO QUE, PARA
MIM, A ABSTRAÇÃO ME
CONDUZ MAIS FACILMENTE
POR ESSE CAMINHO DE
NÃO QUERER PASSAR
UMA MENSAGEM MUITO
OBJETIVA, DE NÃO QUERER
ESTAR MUITO LIGADA
A UM MOTIVO SUPER
ESPECÍFICO, PORQUE EU

ANA
TENHO VONTADE MESMO DE
QUESTIONAR ESSA RELAÇÃO
QUE A GENTE TEM COM
ANA CLÁUDIA ALMEIDA (1993), artista do subúrbio do O USO NA VIDA, COMO
Rio de Janeiro, divide conosco pequenos recortes do seu
A GENTE ENXERGA ISSO

CLÁUDIA
dia-a-dia e seu próprio olhar, de maneira generosa e
abnegada, nos convidando ao exercício da abstração de
NA VIDA.
paisagens do cotidiano. Observa-se em seu trabalho um
Trecho da entrevista concedida por Ana Cláudia
constante desejo de traduzir movimento em desenho Almeida que pode ser vista na íntegra aqui.

e pintura. A abstração é uma linguagem bastante


sofisticada, uma forma complexa e elaborada de escrita

ALMEIDA
e leitura, que se assume como processo nunca acabado,
sempre em gerúndio, aguardando o olhar do espectador
para se completar, ao passo que se soma às suas
próprias subjetividades.
ANA CLÁUDIA ALMEIDA  52—53
A escolha da abstração está diretamente ligada à sua O campo da arte cria uma série de normas para definir
vivência na escola de design, onde a funcionalidade é o que é um trabalho de arte legítimo e o que apenas se
sempre o objetivo central do projeto. A artista deseja aproxima disso. Para tal, são criadas outras nomenclaturas
romper a relação da sua produção com o uso e a utilidade, que auxiliam este campo a produzir critérios de exclusão:
por entender que estas lógicas estão intimamente ligadas artefato, artesanato, popular, regional, naif e identitário
com a estratégia de sobrevivência do capitalismo, que são alguns exemplos desta segregação. Ao optar pela
pretende atribuir uma finalidade objetiva, não apenas abstração de cenas do seu cotidiano, Ana Cláudia Almeida,
às coisas do mundo, como também aos indivíduos, seus enquanto uma pessoa negra, produz um efeito adverso,
corpos e suas identidades. A abstração como opção de contrariando as expectativas institucionais de amalgamar
linguagem narrativa de Ana Cláudia está ligada a um todas as pessoas racializadas dentro de uma única
desejo persistente de alcançar uma contra-função, categoria, fora do circuito “universal”.
um contra-uso, um contra-discurso e uma contra-
normatividade social.

Árvore
2021
ANA CLÁUDIA ALMEIDA  54—55
A coletiva Nacional Trovoa1 surge da recusa a essa
categorização percebida nas trocas de experiência entre
Ana Cláudia e as demais fundadoras da coletiva, que
começaram a se articular para “furar a bolha” e ocupar
os espaços consagrados da arte com mais assiduidade.
Hoje, a coletiva, que reúne artistas e curadoras negras e
não-brancas, está presente em nove Estados brasileiros.
As mulheres do Trovoa, ao contrário do que se entende
por coletivo artístico, não estão engajadas em produzir
obras coletivamente, mas sim em construir discurso,
além de uma rede de trocas e apoio na consolidação de
suas carreiras. Quando unidas em uma exposição coletiva,
podemos perceber a pluralidade estética e narrativa que
existe entre elas.

1 “O Levante Nacional TROVOA é um coletivo


de artistas visuais e curadoras racializadas
pertencentes as cinco regiões brasileiras (Norte,
Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul). Até o
momento o levante mapeou onze Estados, sendo
eles Amazonas, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Goiás,
Mato Grosso, Maranhão, Pará, Pernambuco, Rio de
Janeiro e São Paulo.

Fundado em 2017 na cidade do Rio de Janeiro, o


Levante Nacional TROVOA nasce a partir das
preocupações iniciais de quatro jovens mulheres e
reivindica urgência na discussão sobre o sistema de
arte no Brasil com especial atenção à visibilidade
e inserção das artistas racializadas cis e trans
nesse circuito”.

Texto retirado do site sp-arte.com/galerias/


nacional-trovoa/ em abril de 2021.
2021
Carros

ANA CLÁUDIA ALMEIDA  56—57


2021
Chuva

ANA CLÁUDIA ALMEIDA  58—59


Van
2021

ANA CLÁUDIA ALMEIDA  60—61


BEA MARTINS  62—63
MARTINS
BEA MARTINS (1990) nasceu e passou grande parte de sua
vida na cidade de Cabo Frio, na Região dos Lagos do Estado
do Rio de Janeiro. Cidade litorânea e importante produtora
de sal desde o século XIX, a praia está presente em
múltiplos aspectos da vida de seus habitantes e dos que
escolhem visitar tal recanto. Sal e areia estão entranhados
em Bea, que os utiliza como materiais escultóricos
para desenvolver suas obras. O valor econômico destas

BEA
matérias é narrado através de construções sensíveis nas
quais evidências de fragilidade e efemeridade se fazem
presentes, afinal basta um vento ou uma chuva e o sal e a
areia são diluídos por entre o que lhes sustenta.
BEA MARTINS  64—65
po di um (2021), trabalho criado os patamares, que se encontram po di um
2021
para a exposição, consiste em imersos na areia, menos visíveis aos
uma construção escultórica de passantes na praia. De certa forma,
um pódio invertido, feito com a há uma inversão de poderes. Se
areia da praia. Junta-se a obra, um imaginarmos a disposição dos atletas
tríptico fotográfico, um vídeo e olímpicos, o grande vencedor se
alguns gifs. Tais desdobramentos encontra no espaço mais alto, com
narram a construção de uma maior destaque. O ouro se eleva em
escultura temporária, que a partir relação ao bronze e a prata, a vitória
dos movimentos da maré, será altera a relação com o chão, que se
desfeita em poucas horas. Um pódio torna céu. Inverter o pódio coloca
que nunca será ocupado, e que o vencedor aterrado. O trabalho
ao mesmo tempo em que produz, esconde, não revela, a vitória não
dissipa as relações entre primeiro, é posta em destaque, ao contrário,
segundo e terceiro lugar. A artista se torna introspectiva diante dos
cria um ranking “negativo”, esconde demais competidores.
ESSE TRABALHO FAZ PARTE PINTURA, ESCULTURA, INVISIVELMENTE AOS

BEA MARTINS  66—67
DE UMA PESQUISA QUE INSTALAÇÃO ETC. ESTE OLHOS MAS, EU ACREDITO
VENHO ME DEDICANDO A TRABALHO CONSEGUE CRIAR QUE EXISTEM RESQUÍCIOS,
ALGUM TEMPO, ONDE PENSO UNICIDADE, SÃO ALGUMAS UM PÓ, UM TIPO DE
A ESCULTURA PARA ALÉM DESTAS LINGUAGENS EM POEIRA QUE TRANSITA
DE UMA CONVENÇÃO LIGADA UMA, COMO UM ACÚMULO DE PELAS SUPERFÍCIES.
A HISTÓRIA, COMO UMA TEMPO E ESVAZIAMENTO DE Trecho da entrevista concedida por Bea Martins que
pode ser vista na íntegra aqui.
LINGUAGEM TRADICIONAL, MATÉRIA. O TEMPO, ELE
QUE DEFINE UM TRABALHO FLUI EM UM MOVIMENTO
EXCLUSIVAMENTE EM DINÂMICO, VAI PASSANDO
BEA MARTINS  68—69
O trabalho questiona, através de sua impermanência, Pode um? Bea conversa, intencionalmente, com um
o quanto dura uma vitória, o sentido de disputa e das artista sergipano cuja criação se desenvolveu em seu
hierarquias sociais. A disputa desenfreada imposta longo período na cidade do Rio de Janeiro. Arthur Bispo
diariamente para se tornar melhor (seja no trabalho, do Rosário produziu, em seu tempo de vida, uma obra que
nos relacionamentos ou na vida cotidiana em geral) faz compartilha o nome do trabalho de Bea. Podium (sem
com que sempre se busque estar em um pódio, um pódio data) consiste em três cilindros de madeira de alturas
imaginário e fragilizado e força à disputa, por vezes, diferentes com os números 1, 2 e 3 pintados em cada um,
consigo mesmo. Por que deixar que a água do mar leve tal juntamente com uma sílaba da palavra podium (po di um).
sistema de classificação embora? Como não se prender O cilindro com o desenho do número 1 conta com a sílaba
em disputas sem sentido? O trabalho não oferece resposta “di”, no número 2 lemos “po” e no 3 “um”, dispostos
e sim produz questionamentos a partir de uma simples em uma sequência 2, 1 e 3 (seguindo a ordem do pódio
inversão de uma estrutura tão marcada em espaços esportivo), conseguimos ler podium. O jogo com as sílabas
de disputa. se inicia e permite diferentes interpretações: pó di um,
podi um, podium. Quantos podem ocupar o espaço dado,
para quantos o espaço é destinado? Quem se transforma
em pó e quem sobrevive? O pó de um representa uma
perda? Um êxito não alcançado? Afinal, quem vence e
quem é vencido?
As duas obras se relacionam e nos na escultura executada pela artista.
levam a pensar nas estruturas e As imagens que revelam a construção,
lógicas de validação impostas às os vídeos e fotografias, impõe a
pessoas a partir de critérios de presença de Bea ao trabalhar a obra.
habilidade, força, beleza e muitos Suas mãos, seu corpo, seus membros
outros inventados a cada momento. criam a estrutura, se relacionando
Bispo questionava a lógica de uma com a areia, com os desníveis
sociedade que o aprisionou em um presentes. Sal e areia, suor e areia,
manicômio. Bea coloca indagações mar e areia.
semelhantes e inclui uma nova
camada, a da vitória transitória. Não
apenas seu pódium é aterrado, não
eleva os vencedores, mas também
pode ser destruído a qualquer
momento. Na beira do mar ele foi
construído, a maré, o vento e, até
mesmo o ser humano, interferem
ANDRÉ VARGAS  72—73
Baía de Guanabara
2021

ANDRÉ VARGAS (1986) é artista, poeta e educador. Possui


uma produção ligada às memórias e às heranças culturais
afro-brasileiras, suburbanas e da infância. Produz uma
linguagem que se dá pelo hibridismo, no cruzo, produto da
troca entre significados e significantes, entre território e
territorialidade. Em Calunga Grande (2021), André evoca
a memória das águas do Atlântico, onde estão sepultados
mais de dois milhões de africanos que, por mais de três
séculos de tráfico humano, foram lançados ao mar. Uma
faixa de escala monumental onde se lê “Calunga Grande”
produz sentido no contato com pontos que constituem
o território batizado como Pequena África por Heitor
dos Prazeres. André Vargas e Jéssica Hipólito (artista
colaboradora do trabalho em questão) vestem branco

ANDRÉ
em reverência aos que vieram antes, aos que venceram a
morte, sonharam e lutaram por um futuro de liberdade
para seus descendentes.

VARGAS
ANDRÉ VARGAS  74—75
O artista tem como objetivo
radicalizar a língua, dita portuguesa,
trazendo para o seu vocabulário
usual as palavras cunhadas no seu
seio familiar e por seus antepassados.
Na tradição africana, Calunga1 é
um signo para o sentimento de No território da Pequena África, embarcações; e o Jardim suspenso ordem, ao mesmo tempo que
vazio, que nos toma quando algum André revisita cinco pontos do Valongo, que também integra pretende unificar, abre brechas onde
ente querido vai embora, também fundamentais para contar a história o circuito histórico e arqueológico a fenomenologia acontece quase
entendido como morte, que é este da superação. São eles: a Baía de da celebração da herança africana, invisível à vigilância do colonizador.
lugar para onde os nossos vão, onde Guanabara, parte deste Atlântico apesar de ter sido construído com O artista assume como uma missão
não podemos mais vê-los. Calunga Negro, por onde milhares de vidas a intenção de apagar a memória do seu trabalho dar visibilidade a
Grande é mar, horizonte infinito, que passaram, algumas abandonadas daquela região e suprimir as marcas esse quase invisível.
por séculos tirou de muitas famílias e ali mesmo, neste grande cemitério da escravidão.
comunidades, sujeitos queridos que submerso, outras transplantadas em
nunca mais foram vistos, que nunca território americano, em diáspora; André Vargas contraria a formalidade
mais voltaram. Os que sobreviviam Cais do Valongo o Cais do Valongo, patrimônio da língua se valendo das ironias
2021
à travessia e chegavam ao novo histórico da humanidade desde 2017, geradas por ela própria, como por
mundo, eram forçados a abandonar guarda o principal índice da chegada exemplo no trabalho Não vote em
suas próprias subjetividades, o que de mais de 1 milhão de vítimas da branco (2020), da série proféticas,
também é uma forma de morrer, escravidão, que deixaram ali suas onde a frase significa, ao mesmo
portanto, transplantar sua cultura primeiras pegadas em solo brasileiro; tempo, um conselho ao leitor para
aqui, do outro lado, é uma tática de o Quilombo da Pedra do Sal, bem não escolher um candidato branco, e
permanência e continuidade apesar cultural de natureza imaterial da ao mesmo tempo para não invalidar
do trauma. 1 A palavra traduzida, para o português, como A palavra Calunga aparece com múltiplos cidade do Rio de Janeiro, ponto de seu voto e optar por um candidato
significados. De acordo com a wikipedia: Calunga
melancolia ou saudade (sentimentos que remetem a sociabilidade fundamental para não branco. Esta estratégia brincante
um vazio ou falta) é banzo. significa “tudo de bom” nas línguas bantas.
Significa também “necrópoles” em quicongo. a sobrevivência dos africanos em seria o que se chama de “agir
O banzo é a saudade do conhecido, saudade dos que Dentro do espiritismo, pode significar “grande
se foram, saudade dos que perdemos pelo caminho. diáspora; o Instituto dos Pretos nas brechas”. A palavra “ginga”,
mar”, e também o nome de uma falange. Nas
Ao experimentar tantas perdas, tantas saudades, e religiões afro-brasileiras também significa Novos, sítio histórico e arqueológico por exemplo, que está ligada à
se encontrando em uma situação nova repleta de “cemitério”, e “calunga grande” significa “beira
torturas e sem nenhuma condição mínima para do Cemitério dos Pretos Novos, onde movimentação do jogo de capoeira, é
do mar”. Na mitologia bantu, é o nome de uma
viver, a morte, como uma passagem para outro divindade secundária. Acessado na wikipedia.org/ eram enterradas e enterrados as ao mesmo tempo dança, jogo e luta.
plano, parecia ser a única solução. wiki/Calungas
pessoas que chegavam sem vida ou A separação entre dança, jogo e luta
que faleciam assim que chegavam em categorias distintas é um sintoma
por conta das condições precárias do epistemicídio colonial. A obsessão
a que eram submetidas dentro das eugenista da modernidade pela
NOSSO PORTUGUÊS

ANDRÉ VARGAS  76—77
É UM PRETOGUÊS, É
UM CRIOULO, É UM
BRASILEIRO E É UMA
REAÇÃO ADVERSA
DESSA HISTÓRIA DA
COLONIZAÇÃO.

Trecho da entrevista concedida por André Vargas


que pode ser vista na íntegra aqui.

Jardim suspenso do Valongo


2021

Instituto dos Pretos Novos Pedra do Sal


2021 2021
SALLISA ROSA  78—79
isso o storie não mostra (2020-2021) já virou bordão
entre a artista SALLISA ROSA (1986) e seus amigos.
Através de imagens trocadas pelo celular, eles cruzam
entre si arquivos produzidos em frações de segundos e
que escolhem não partilhar em suas redes sociais. Tais
arquivos compõe o trabalho exibido na plataforma
Imersões Digitais.

SALLISA
Na rede Instagram, um story tem o limite de 15 segundos e
se pode “subir” até 100 stories nesta midiateca. Cada foto,
ou vídeo, ficam disponíveis por 24 horas e desaparecem
após isto. O máximo de tempo que estas 100 imagens
entram em contato com os frequentadores das redes de
Sallisa é de 25 minutos por dia. O que esta fração de tempo

ROSA
representa? O que se quer representar com ela?
SÃO OS RECORTES DA VIDA

SALLISA ROSA  80—81
As imagens escolhidas, os filtros faciais, os fundos e
efeitos de foto e vídeo criam uma narrativa para um
REAL QUE A GENTE NÃO
dia, que se realiza em poucos segundos. Quem visita os
COLOCA NO INSTAGRAM stories, acredita acompanhar todo o cotidiano daquele
POR VÁRIOS MOTIVOS. indivíduo. Através de uma cuidadosa seleção iconográfica,
o imaginário em torno da artista se constrói e a sua
SÓ EU TENHO ACESSO OU
representação no mundo se transforma a partir de seus
PESSOAS MUITO ÍNTIMAS stories. O aplicativo também permite outros tipos de
TEM ACESSO. QUE SÃO manipulação do tempo-espaço, se o perfil é fechado, por
exemplo, apenas as pessoas aceitas como “seguidoras”
CONVERSAS, DESABAFOS,
podem visualizar os stories. Se pode limitar ainda mais
IMAGENS, TEXTOS… o acesso, escolhendo dentre os “seguidores” um grupo
de “amigos próximos”, para que apenas estes possam
Trecho da entrevista concedida por Sallisa Rosa que
pode ser vista na íntegra aqui. acompanhar os 15 segundos de exposição.

Possíveis recortes da vida criam realidades forjadas,


identidades planejadas de acordo com o que se quer
mostrar aos pares. Tais criações ocorrem de forma
descontrolada nos espaços virtuais, mas estes excessos
não são exclusivos apenas online. As identidades
inventadas, criadas a partir da percepção dos fragmentos
dos indivíduos vêm ocorrendo cotidianamente, desde que
o sujeito moderno passou a se entender como ser único.

isso o stories não mostra


2020-2021, em processo
SALLISA ROSA  82—83
Há momentos anteriores à diferentes agentes, a artista vai
modernidade, antes do sujeito ser o subvertendo o que lhe foi designado
protagonista da discussão filosófica, desde seu nascimento e produzindo
que as massas possuíam identidades um novo entendimento a partir de
forjadas por fragmentos selecionados como se mostrar e como ser visto.
por grupos dominantes. Assim se cria O que mostramos é, necessariamente,
o indigena universal, que irá se vestir, como queremos ser vistos? Ou será
falar, comer, socializar de uma única que somos vistos a partir do que
maneira. No escopo de seu trabalho, achamos que está sendo visibilizado
Sallisa questiona tal visão. Através por nosso comportamento?
da criação de imagens, muitas
vezes autorretratos, ela coloca em
ameaça uma identidade dada, seja
aos indígenas em seu largo ou às
mulheres indígenas. Ficcionando
realidades e criando diálogos entres
SALLISA ROSA  84—85
Em uma das imagens da série, aprovação de um outro deve ser passageiros, se apagam e são
intitulada Roberta me disse, descartada, parar de esperar por destinados a existir apenas por
destaca-se o trecho de uma validações e apenas nos deixarmos momentos, não serem narrativas
conversa que parece acontecer no existir e co-existir, sem a pressão finais de uma vida contada a partir
whatsapp. “O foda-se que falo não é do que se é esperado de tal indivíduo de fragmentos produzidos. Por
desrespeitar ninguém mas é derrubar que possui tais características. vezes, o que não foi revelado ou
as espectativas sobre vc mesma”. selecionado, para estar nas redes
Em conjunto com o texto, aparece Voltamos ao título da série isso o produz mais sentido e narra muito
destacada da conversa uma foto de stories não mostra. As imagens - mais o cotidiano do que o que lá se
Sallisa transformada em figurinha, ou memória de imagens não feitas faz presente. Que mais produções
sentada com um olhar contemplativo. naquele segundo - revelam o não não sejam mostradas nos stories, que
A obra apresenta um problema típico revelado, o que talvez pudesse ser mais produções de narrativas sejam
de quem usa as redes: expectativas editado mas não foi selecionado criadas e trabalhadas para além de
sobre nós mesmo reforçadas pelo no final para entrar e existir nas 24 meros 15 segundos.
olhar de aprovação ou não de um horas de um stories. Mesmo com
outro. Através de uma frase curta sua presença nas redes, precisamos
e determinada, essa espera de nos lembrar que os stories são
DIAMBE DA SILVA  86—87
DIAMBE DA SILVA (1993) é comunicóloga, pesquisadora e

DIAMBE
artista anti-colonial. Suas obras reivindicam a devolução
de tudo o que foi tomado pelos invasores, a cidade, a
paisagem, o nome, a identidade, o trabalho, o ócio, etc.
Questionando o espaço público e as normas sociais, ela
cria outras coreografias, que só são possíveis através do
afeto e do acolhimento de seus pares. Diambe apresenta
uma obra de arte e vida ao criar trabalhos que lidam

DA
com moradia e símbolos da cidade, que permeiam seus
deslocamentos e vivências pelo espaço urbano em diversas
etapas de sua existência, que vão da infância à vida adulta,
numa relação entre dentro e fora, centro e periferia.

SILVA
DIAMBE DA SILVA  88—89
isabel, av. princesa isabel, da série Devolta
2021

“Não serei bixa presa por causa de Ao construir anéis de fogo em


arte”. Na ocasião da realização das volta destes monumentos que
coreografias da série Devolta, a homenageiam escravocratas e
artista costumava carregar esta genocidas - muitas vezes invisíveis,
frase juntamente com a Lei 5.429 mas que existem com o objetivo de
coladas ao corpo, para o caso de reencenar as opressões coloniais
ser abordada por policiais que, de raça e classe - nos faz lembrar
porventura cheguem para performar quem são os donos do espaço
a colonialidade já presente nos (público e privado). A artista causa
monumentos da cidade do Rio de uma fissura nesta coreografia
Janeiro. Diambe age protegida pelas social, trazendo o imprevisto, o
brechas desta lei municipal, que impremeditado e o impensado,
determina os limites das ações provocando um improviso, de
artísticas nos espaços ditos públicos maneira que a autoridade policial,
da cidade, na estratégia de se valer tão ignorante (no sentido de ignorar)
das vantagens que o codinome “arte” em relação às artes e as próprias leis,
pode trazer para seus trabalhos, também improvisa e reorganiza sua
que muitas vezes preconizam coreografia, na maioria das vezes de
atos desobedientes e insubmissos. maneira muito ineficaz, como por
Cognominar essas ações como exemplo protegendo o monumento
coreografias é, ao mesmo tempo, com uma viatura permanente, por
uma estratégia e uma denúncia ao algumas semanas após o ocorrido.
desvelar as movimentações sociais
do cotidiano da cidade, que tem seus
passos já bem marcados.
DIAMBE DA SILVA  90—91
AS MINORIAS ACABAM
SENDO UNIVERSAIS, EU
ACHO QUE EU NÃO SOU
APENAS MINORITÁRIA,
EU SOU UNIVERSAL,
ACHO QUE TODO MUNDO
É UNIVERSAL.

Trecho da entrevista concedida por Diambe da Silva


que pode ser vista na íntegra aqui.

Um comprovante de residência, uma carteira de trabalho,


um comprovante de renda, por exemplo, são todos
documentos que existem também para marcar os passos
desta coreografia social, que marca os acessos das
minorias ao poder, para definir a quem os direitos serão
assegurados, quem deverá ter sua existência protegida
e legitimada, quem poderá ter acesso a moradia, saúde,
educação, alimentação, trabalho, etc. Em um momento
de vulnerabilidade, se não fosse pela colaboração das
pessoas que aderiram ao seu projeto de residência artística
(Residência Sem Teto), Diambe teria que escolher entre
morar e dar continuidade a seus propósitos artísticos.

Trocas de segredos
2021
DIAMBE DA SILVA  92—93
Nesta ocasião, Diambe também com a artista por seus pares, os
rompe com as normas da sociedade segredos são também as trocas
e reside de maneira itinerante provocadas pela convivência, pelo
em mais de 30 casas, mudando compartilhamento do espaço
de endereço a cada semana. Essas residencial, onde ficamos mais à
sucessivas mudanças resultaram vontade em relação ao “socialmente
em um chaveiro com mais de 30 aceito”, onde nos vestimos de
chaves, cada uma com o seu próprio forma mais confortável, andamos
segredo. Estas chaves se tornaram descalças, comemos de maneira
matrizes que deram origem à descompromissada, fazemos a
série Trocas de segredos. Nos nossa higiene pessoal, nos sentimos
mantos que compõem a exposição, seguros para dormir. As matrizes
esses segredos são recombinados. geradas a partir das chaves são
Os segredos trocados vão além dos uma metáfora para a troca afetiva
códigos de cada chave, trocada profunda, de uma semana.
a cada semana, compartilhadas
DIAMBE DA SILVA  94—95
DENILSON

DENILSON BANIWA  96—97
Até que os leões tenham seus próprios
historiadores, as histórias de caçadas
continuarão glorificando o caçador.

Provérbio africano

BANIWA
Quantas histórias existem em uma história? A narrativa sim distorções de cores e tamanhos, que transformam
entendida como oficial, a que será passada através de em múltiplas versões, a cada girada, a cada nova lente,
documentos, livros e da oralidade é uma escolha de um algo que nos era dado como uma única forma. Assim
grupo. Quando nos familiarizamos com a História do como os fatos ocorridos, que são experimentados por
Brasil nos livros do ensino fundamental e médio, uma diferentes pessoas, e por isso histórias distintas podem
história com H maiúsculo, e que parece universal, estamos contemplá-los, principalmente se envolvem disputas e
conhecendo apenas uma versão dos fatos. É perceptível situações conflituosas entre partes.
como o lado pende sempre para a história do “vencedor”,
do colonizador, de quem dominou e subjugou o outro lado
e fez de sua narrativa a verdadeira. Escolheu enaltecer
certos fatos, omitir outros, selecionar personagens, e
assim criar uma narrativa. Toda história é uma ficção,
pois apresenta uma ótica singular dos eventos decorridos
em um período. Podemos fazer uma analogia com o
caleidoscópio usado como brinquedo pelas crianças.
Se você mira em um objeto, através da lente do brinquedo
você não verá o mesmo objeto que percebe a olho nu e
SE O QUE ME RESTA,

DENILSON BANIWA  98—99
Não queremos justificar uma ou outra versão, mas Tamuia

reafirmar que não podemos nos ater a uma história apenas,


ELES À MEMÓRIA, ELES 2021
DESTA HISTÓRIA DO
as demais precisam ser contadas, precisam ser ouvidas, PODEM FICCIONAR O QUE
pois a partir das várias imagens que este caleidoscópio
BRASIL, SÃO GRAVURAS
ELES QUISEREM E ESTÁ
cria, podemos ter algum entendimento do que aconteceu. DE DEBRET E DO DEBRI,
Assim quem era herói, não necessariamente o foi em toda
CERTO! E TÁ CERTO!
EU POSSO INVENTAR
sua trajetória, um salvador pode, na verdade, ter destruído
Trecho da entrevista concedida por Denilson Baniwa
uma comunidade em prol de algo que não era de interesse
QUALQUER HISTÓRIA QUE que pode ser vista na íntegra aqui.

comum. É necessário entender as camadas das histórias, EU QUISER A PARTIR


rever e descobrir os personagens que vivenciaram os
DISSO. PORQUE SE O QUE
fatos, abrir espaço para que os leões narrem suas violentas
caçadas, só assim teremos conhecimento dos sujeitos que
ME RESTA DE MEMÓRIA
participaram das várias histórias do Brasil. SÃO ESSAS GRAVURAS E
AS CARTAS, EU POSSO
INVENTAR A REALIDADE
QUE EU QUISER. POR
QUE MUITA GENTE NO
BRASIL NÃO TEM MEMÓRIA
DA PRÓPRIA FAMÍLIA,
DA PRÓPRIA HISTÓRIA.
MUITOS DOS QUE HOJE
SÃO CONSIDERADOS
OS INDÍGENAS
AUTODECLARADOS,POR
EXEMPLO, A HISTÓRIA
DO BRASIL ROUBOU A ELES
O DIREITO À MEMÓRIA.
SE O ESTADO BRASILEIRO
NÃO DEU O DIREITO A
DENILSON BANIWA  100—101
Cunhambebe não foi um, mas dois céu, vêm do mar. Em uma luta
personagens importantes para atemporal, em que o Brasil colônia
as histórias brasileiras. O pai era se mistura com um pós apocalíptico,
conhecido como um homem forte, os portugueses e os alienígenas se
que carregava um canhão embaixo tornam um só. Um sujeito que chega
de cada braço para enfrentar os sem perguntar, que deseja apenas
portugueses e a invasão, ele não destruir e se apropriar. Afinal de
tinha medo, seu porte atlético quem é o direito a habitar aquela
ajudava na sua imponência e terra? Em sua carta, ouvimos: Porque
espantava os invasores. O filho lutava haveríamos de ter medo / Dentro
mais com as palavras e alianças. de nossa própria casa? Por que não
Buscavam criar acordos para garantir devem lutar por seu lar? E quando
a sobrevivência de seu povo, sua lutam, porque são nomeados
cultura. Ambos são personagens do selvagens?
início da formação do Brasil e são
convocados na obra de DENILSON
BANIWA (1984). Narrando uma
invasão, Denilson se transforma em
Cunhambebe pai, em seus últimos
momentos de luta nos quais decide
deixar um legado, uma carta para seu
filho relatando os acontecimentos
da invasão. Os invasores vêm do
DENILSON BANIWA  102—103
DENILSON BANIWA  104—105
Denilson cria uma carta manifesto. As palavras surgem
na tela através da leitura, na seleção de imagens
fotográficas e com o curta-metragem por ele produzido.
Questionar a narrativa, independente de quem seja o
outro. Os invasores chegaram e irão alterar a paisagem e
a vida daqueles que por lá estavam. Alteram com a força
da pólvora ou com a disseminação de doenças. Alteram
pois mudam a relação com a natureza e com a forma de
habitar. Eles impõem as mudanças, não se preocupam
com o que já está. Como coloca Denilson, é legítima
defesa, não é selvageria. É luta e necessidade. E, neste
tempo circular, em que o passado nunca acaba e o futuro
já chegou, em que vivemos uma disputa sem fim, o corpo
físico apodrece mas o espírito continua na luta. Ele se une
aos seus ancestrais e não para, não podem se cansar, seja
contra os primeiros portugueses ou os alienígenas pálidos,
a resistência tem que continuar. É um embate sem fim no
qual Cunhambebe transcende sua carne: Eu não sou um
homem / Sou onça.
DENILSON BANIWA  106—107
DENILSON BANIWA  108—109
DENILSON BANIWA  110—111
  112—113
organização e textos artistas identidade visual comunicação e mídias digitais apoio entrevistas

JULIA BAKER AGRADE CAMÍZ ANDRÉ LIMA LÍVIA AGUIAR NAPUPILA


JULIANA PEREIRA ANA CLÁUDIA ALMEIDA LUÍSA BORJA
ANDRÉ VARGAS
BEA MARTINS
DAVI BENAION
DENILSON BANIWA
DIAMBE DA SILVA
RAFAEL AMORIM
SALLISA ROSA

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