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Imersoes Digitais Ebook 210823
Imersoes Digitais Ebook 210823
ISBN 978-65-00-25273-6
CDU 7.074(061.4)
6 APRESENTAÇÃO
8 AGRADE CAMÍZ
16 DAVI BENAION
30 RAFAEL AMORIM
62 BEA MARTINS
72 ANDRÉ VARGAS
78 SALLISA ROSA
86 DIAMBE DA SILVA
96 DENILSON BANIWA
AGRADE
espaço de dentro, do íntimo, do privado. A artista, além
de produzir obras de pequenas dimensões, que podem
E DEIXAR.
ser exibidas em galerias e museus, também possui um
trecho da entrevista concedida por Agrade Camiz
trabalho expressivo como grafiteira e muralista em que pode ser vista na íntegra aqui.
CAMÍZ
Agrade inicia sua trajetória artística na rua e considera
ser este o lugar mais acessível, pois não depende
de muitos materiais para começar a produzir, e não
impõem tantas barreiras quanto os espaços oficiais da
arte, como museus e galerias. A rua, apesar de ser um
espaço de disputa, está sempre disposta a acolher e
a compartilhar.
Agrade Camíz 10—11
Talvez, por ser uma artista que inicia sua trajetória na
rua, Agrade parte de um olhar voltado para fora, para as
grades urbanas de proteção, para as ruas do subúrbio e
para as interações, os hábitos e os modos de vida destes
territórios. As grades, muitas vezes, podem ser simbólicas,
são as normas sociais que pretendem definir o que
pertence à atmosfera pública e o que é do âmbito privado.
Às mulheres, historicamente, foi atribuído o espaço de
dentro, uma mulher de bom nome ocupa-se da casa, dos
afazeres domésticos que trarão conforto à família, cabe
a mulher agradar. Uma boa mulher é reservada, não
dá motivos para rumores, principalmente em relação
a sua vida íntima. Em Teu nome tá no judas (2020), a
artista recorda uma tradição dos subúrbios cariocas que
acontece no Sábado de Aleluia, na semana santa, onde
comportamentos considerados desviantes de alguns
membros da vizinhança são expostos através de cartazes
em algum ponto do bairro. Agrade Camíz salienta o quanto
esta exposição cai com muito mais impacto sobre a vida
das mulheres que, quando expostas, tinham muito mais
dificuldade de desvincular suas imagens dos rumores.
Ela lembra ainda da ansiedade vivida pelas mulheres da
família, gerada pelo receio de ter o nome mencionado no
“mural da vergonha”.
Cumaps
Humaitá
2019
colaboração:
Vitor Medeiros
Davi Benaion 20—21
Cumaps
Arcos da Lapa TEM ESSA ASSOCIAÇÃO UMA IDENTIDADE QUE
2019
colaboração: MUITO FORTE ENTRE UMA NÃO SEJA BINÁRIA MAS
Vitor Medeiros
IDEIA DE SEXUALIDADE AO MESMO TEMPO EU
COLADA A UMA IDEIA DE NÃO ESTOU ALI COM
GÊNERO QUE NÃO DÁ PARA A MINHA IDENTIDADE,
SE COLAR, E COLADA MAS EU ESTOU ALI COM
A ESSES MAPEAMENTOS ESTEREÓTIPOS QUE SÃO
TAMBÉM NO CORPO, QUE DESIGNADOS PARA MIM E
NÃO DÁ PARA SE COLAR. ISSO APARECE NO CORPO,
ENTÃO PENSANDO COMO EU QUE É UM CORPO QUE
ME ORGANIZO, DE MANEIRA NÃO DEVERIA ESTAR ALI
CRÍTICA, PENSANDO EM DAQUELA FORMA.
Cumaps
Riachuelo
2019
colaboração:
Vitor Medeiros
Davi Benaion 24—25
Cumaps
Passeio Público
2019
Davi Benaion 26—27
Na ida, navegamos o maps e nos deparamos com pontos
marcados pela intervenção dos lambes. Cada imagem
retrata Davi no exato espaço físico no qual a instalação do
lambe foi feita. Humaitá, Lapa, Praça Mauá, Centro… Davi
coloca seu corpo em todos estes ambientes que possuem
uma lógica de circulação e movimentação particulares.
Ao instalar o trabalho com pinceladas grossas de cola, ele
não revela imediatamente a imagem, ela surge enquanto a
secagem ocorre, o choque do transeunte se dá por partes,
é quase um descortinamento do que está por vir. E assim
a persona de Davi se revela, expõe um corpo que tem sua
plenitude rechaçada no espaço público, que não tem a
tranquilidade e segurança de percorrer as vias públicas
a qualquer momento, em qualquer horário. A crítica
imposta pela obra nos faz questionar a quem as vias
públicas pertencem, quais corpos são aceitos e podem
circular. E, quando é um corpo não normativo? Um corpo
que não deseja estar dentro de uma lógica binária, que se
opõe? Um corpo não dual e sim plural? A rua se encanta?
A rua se abre? No percurso de ida conhecemos este corpo,
ele se revela para nós e para os passantes e habitantes das
avenidas, becos e vielas.
Os vídeos podem
ser vistos no
site da exposição
Davi Benaion 28—29
O caminho de volta tem outras
marcas. A mesma linha que cria
as relações entre as ruas e como
devemos caminhar para chegar de
um ponto a outro, agora cria um
percurso dérmico pelo corpo de Davi.
Não reconhecemos perna, braço ou
sexo, e sim linhas e nuances, curvas
e recortes. A imagem se revela.
O corpo é representado pelo lambe
e nele vemos a ação do tempo e dos
indivíduos. São pedaços rasgados,
interações, uma imagem apagada
por espectadores inquietos. Como
falamos, a rua não é generosa com
todes, ela tem suas regras, criadas
por poderes visíveis e invisíveis. Nos
caminhos de retorno, vemos uma
volta marcada por intervenções. Uma
volta que machuca pois quer apagar
um corpo que tem direito à rua. Um
corpo que para existir precisa resistir.
RAFAEL
com seus bronzeados, amigos se reúnem nos bares de
esquina para acompanhar o último jogo entre Flamengo
e Fluminense, espaço em que a festa pode ser encontrada
em cada esquina, que o tambor se mantém aquecido de
janeiro a janeiro. Outras facetas reportadas passaram, nas
últimas décadas, a serem reconhecidas enquanto cariocas:
AMORIM
as balas perdidas, a violência com corpos e corpas pretas,
o descaso com quem é habitante da cidade. Apesar de
midiado, são apenas poucas facetas de uma cidade plural,
que parece se transformar a cada esquina, em cada bairro
ou município que compõe o grande Rio de Janeiro.
Rafael Amorim 32—33
Rafael revela conhecer diferentes nos transporta e nos faz imaginar
momentos da cidade. Ele tenta os cenários relatados. É uma cidade
experimentar o Oeste, Sul, Centro e viva, um grande organismo que se
Norte a partir de suas necessidades e alimenta de todes nós. Por vezes é
desejos. Ser de Padre Miguel produz caótica, violenta, nos faz mesmo
marcas em sua formação e em sua repensar se habitá-la vale a pena,
poética enquanto sujeito carioca. nos faz questionar se o barulho, a
Ter estudado no campus da UFRJ fumaça e a confusão de buzinas
localizado na Ilha do Governador são maus necessários. Mas logo os
produziu uma nova exploração encontros se apresentam. As noites
da cidade, através de trajetos que nos bares, as conversas com os
apenas o transporte público é capaz conhecidos desconhecidos, a água
de produzir. A sua ocupação da que se faz presente no mar, nas ORA ESSE ESPAÇO A ALGUMA RELAÇÃO,
cidade se dá por meio de passos lagoas, rios e as chuvas que invadem
DOMICILIAR É UM RECORTE A ALGUM ESPAÇO. ENTÃO
largos, paradas de metrô e apertos a cidade… A poesia do Rio consegue,
de corda para a descida no ponto por vezes, prevalecer sobre seu
DA CIDADE. ORA A ESSES DOIS ESPAÇOS,
de ônibus. Rafael é um explorador caos e assim vamos (sobre)vivendo. CIDADE É UMA AMPLIAÇÃO O PÚBLICO E O PRIVADO,
dos caminhos e possibilidades que Mesmo gastando muito dinheiro,
DESSE ESPAÇO MENOR. EU EU ACHO QUE ELES
a cidade diz oferecer. Mesmo sendo mesmo com medo do que pode se
uma realidade compartilhada por apresentar em uma esquina, mesmo
ACHO QUE ESTOU SEMPRE ACABAM VIRANDO CAMPOS
muitos, a forma como reverbera em presenciando uma cidade partida, há QUERENDO RELACIONAR. QUE RECEBEM ESSE
cada um é única. vida nas fissuras. E é na fissura que
PRINCIPALMENTE PORQUE ENDEREÇAMENTO.
conseguimos criar nossas relações,
Acesse a obra
As fronteiras que existem entre a é neste lapso de espaço, na brecha,
O TRABALHO QUE EU Trecho da entrevista concedida por Rafael Amorim
As fronteiras que existem entre a gente II
que pode ser vista na íntegra aqui.
2017 gente II (2017), trabalho em formato que o espaço da cidade se transforma DESENVOLVO HOJE, EU
de áudio, nos transporta para uma para nós, pois como nos conta uma
PASSO A ENTENDER
urbe que machuca e acolhe ao mesmo das vozes do trabalho: cada vírgula da
tempo. O trabalho é uma carta lida cidade, é nela que residimos.
COMO UM TRABALHO DE
e construída por várias vozes, que ENDEREÇAMENTOS. ESTÁ
SEMPRE ME INTERESSANDO
ENDEREÇAR ESSA ESCRITA
QUE EU MEXO NO TRABALHO
A ALGO, A ALGUÉM,
Rafael Amorim 34—35
Aos exilados, as boas vindas
2020
Mas e quando a cidade se fecha? E quando as ruas já não solares. Na cama, quais linhas nos cortam? Quais raios
se apresentam mais disponíveis para passearmos, para incidem sobre nós? Rafael abre seu espaço íntimo, permite
ocuparmos? Tal cenário se concretizou de forma extrema que o espectador de sua obra o penetre, conheça o espaço
em 2020, quando a pandemia de COVID-19 aportou no de suas fragilidades. O artista cria uma ruptura entre o que
Brasil. O país, podemos colocar que de um jeito meio deveria ser público ou privado, relacionando com o tempo
torto, se fechou. O cotidiano não deveria estar no espaço atual, em que as casas se apresentam para todes nas
das calçadas, das fissuras da cidade e sim em um espaço vídeo conferências.
privado, de nossas casas. Toda a vida pública passou
a habitar o ambiente do lar, melhor dizendo, o lar a Rafael continua a ocupar a cidade, agora uma cidade
partir do espaço virtual. O trabalho, reuniões de amigos, composta pelos lares compartilhados nas câmeras dos
cursos, faculdade, escola, festas, tudo tinha que ocorrer celulares e computadores. A sua exploração das fissuras e
compartilhado e individualizado pela tela do aplicativo brechas dialoga nos dois trabalhos revelando que, espaços
de encontros online. A casa se tornou o centro de nossas públicos e privados, quando apropriados, se transformam
vidas e, para alguns, o quarto ocupou um espaço ainda e trocam de significados constantemente.
maior. Rafael relata, através da série Aos exilados,
as boas vindas (2020), sua nova forma de se relacionar
com seu espaço particular. Local de trabalho, estudo,
descanso e prazer, seu quarto se transforma em obra.
Na ação-performance com registros fotográficos, ele cria
um segredo embaixo de sua cama: onde me penetram
os trópicos. Os trópicos cortam, produzem relações
geográficas imaginárias a partir de linhas criadas pelos
homens que ajudam a entender a incidência de raios
Rafael Amorim 36—37
Rafael Amorim 38—39
Rafael Amorim 40—41
Rafael Amorim 42—43
Rafael Amorim 44—45
Rafael Amorim 46—47
Rafael Amorim 48—49
ANA CLÁUDIA ALMEIDA 50—51
EU SINTO QUE, PARA
MIM, A ABSTRAÇÃO ME
CONDUZ MAIS FACILMENTE
POR ESSE CAMINHO DE
NÃO QUERER PASSAR
UMA MENSAGEM MUITO
OBJETIVA, DE NÃO QUERER
ESTAR MUITO LIGADA
A UM MOTIVO SUPER
ESPECÍFICO, PORQUE EU
ANA
TENHO VONTADE MESMO DE
QUESTIONAR ESSA RELAÇÃO
QUE A GENTE TEM COM
ANA CLÁUDIA ALMEIDA (1993), artista do subúrbio do O USO NA VIDA, COMO
Rio de Janeiro, divide conosco pequenos recortes do seu
A GENTE ENXERGA ISSO
CLÁUDIA
dia-a-dia e seu próprio olhar, de maneira generosa e
abnegada, nos convidando ao exercício da abstração de
NA VIDA.
paisagens do cotidiano. Observa-se em seu trabalho um
Trecho da entrevista concedida por Ana Cláudia
constante desejo de traduzir movimento em desenho Almeida que pode ser vista na íntegra aqui.
ALMEIDA
e leitura, que se assume como processo nunca acabado,
sempre em gerúndio, aguardando o olhar do espectador
para se completar, ao passo que se soma às suas
próprias subjetividades.
ANA CLÁUDIA ALMEIDA 52—53
A escolha da abstração está diretamente ligada à sua O campo da arte cria uma série de normas para definir
vivência na escola de design, onde a funcionalidade é o que é um trabalho de arte legítimo e o que apenas se
sempre o objetivo central do projeto. A artista deseja aproxima disso. Para tal, são criadas outras nomenclaturas
romper a relação da sua produção com o uso e a utilidade, que auxiliam este campo a produzir critérios de exclusão:
por entender que estas lógicas estão intimamente ligadas artefato, artesanato, popular, regional, naif e identitário
com a estratégia de sobrevivência do capitalismo, que são alguns exemplos desta segregação. Ao optar pela
pretende atribuir uma finalidade objetiva, não apenas abstração de cenas do seu cotidiano, Ana Cláudia Almeida,
às coisas do mundo, como também aos indivíduos, seus enquanto uma pessoa negra, produz um efeito adverso,
corpos e suas identidades. A abstração como opção de contrariando as expectativas institucionais de amalgamar
linguagem narrativa de Ana Cláudia está ligada a um todas as pessoas racializadas dentro de uma única
desejo persistente de alcançar uma contra-função, categoria, fora do circuito “universal”.
um contra-uso, um contra-discurso e uma contra-
normatividade social.
Árvore
2021
ANA CLÁUDIA ALMEIDA 54—55
A coletiva Nacional Trovoa1 surge da recusa a essa
categorização percebida nas trocas de experiência entre
Ana Cláudia e as demais fundadoras da coletiva, que
começaram a se articular para “furar a bolha” e ocupar
os espaços consagrados da arte com mais assiduidade.
Hoje, a coletiva, que reúne artistas e curadoras negras e
não-brancas, está presente em nove Estados brasileiros.
As mulheres do Trovoa, ao contrário do que se entende
por coletivo artístico, não estão engajadas em produzir
obras coletivamente, mas sim em construir discurso,
além de uma rede de trocas e apoio na consolidação de
suas carreiras. Quando unidas em uma exposição coletiva,
podemos perceber a pluralidade estética e narrativa que
existe entre elas.
BEA
matérias é narrado através de construções sensíveis nas
quais evidências de fragilidade e efemeridade se fazem
presentes, afinal basta um vento ou uma chuva e o sal e a
areia são diluídos por entre o que lhes sustenta.
BEA MARTINS 64—65
po di um (2021), trabalho criado os patamares, que se encontram po di um
2021
para a exposição, consiste em imersos na areia, menos visíveis aos
uma construção escultórica de passantes na praia. De certa forma,
um pódio invertido, feito com a há uma inversão de poderes. Se
areia da praia. Junta-se a obra, um imaginarmos a disposição dos atletas
tríptico fotográfico, um vídeo e olímpicos, o grande vencedor se
alguns gifs. Tais desdobramentos encontra no espaço mais alto, com
narram a construção de uma maior destaque. O ouro se eleva em
escultura temporária, que a partir relação ao bronze e a prata, a vitória
dos movimentos da maré, será altera a relação com o chão, que se
desfeita em poucas horas. Um pódio torna céu. Inverter o pódio coloca
que nunca será ocupado, e que o vencedor aterrado. O trabalho
ao mesmo tempo em que produz, esconde, não revela, a vitória não
dissipa as relações entre primeiro, é posta em destaque, ao contrário,
segundo e terceiro lugar. A artista se torna introspectiva diante dos
cria um ranking “negativo”, esconde demais competidores.
ESSE TRABALHO FAZ PARTE PINTURA, ESCULTURA, INVISIVELMENTE AOS
BEA MARTINS 66—67
DE UMA PESQUISA QUE INSTALAÇÃO ETC. ESTE OLHOS MAS, EU ACREDITO
VENHO ME DEDICANDO A TRABALHO CONSEGUE CRIAR QUE EXISTEM RESQUÍCIOS,
ALGUM TEMPO, ONDE PENSO UNICIDADE, SÃO ALGUMAS UM PÓ, UM TIPO DE
A ESCULTURA PARA ALÉM DESTAS LINGUAGENS EM POEIRA QUE TRANSITA
DE UMA CONVENÇÃO LIGADA UMA, COMO UM ACÚMULO DE PELAS SUPERFÍCIES.
A HISTÓRIA, COMO UMA TEMPO E ESVAZIAMENTO DE Trecho da entrevista concedida por Bea Martins que
pode ser vista na íntegra aqui.
LINGUAGEM TRADICIONAL, MATÉRIA. O TEMPO, ELE
QUE DEFINE UM TRABALHO FLUI EM UM MOVIMENTO
EXCLUSIVAMENTE EM DINÂMICO, VAI PASSANDO
BEA MARTINS 68—69
O trabalho questiona, através de sua impermanência, Pode um? Bea conversa, intencionalmente, com um
o quanto dura uma vitória, o sentido de disputa e das artista sergipano cuja criação se desenvolveu em seu
hierarquias sociais. A disputa desenfreada imposta longo período na cidade do Rio de Janeiro. Arthur Bispo
diariamente para se tornar melhor (seja no trabalho, do Rosário produziu, em seu tempo de vida, uma obra que
nos relacionamentos ou na vida cotidiana em geral) faz compartilha o nome do trabalho de Bea. Podium (sem
com que sempre se busque estar em um pódio, um pódio data) consiste em três cilindros de madeira de alturas
imaginário e fragilizado e força à disputa, por vezes, diferentes com os números 1, 2 e 3 pintados em cada um,
consigo mesmo. Por que deixar que a água do mar leve tal juntamente com uma sílaba da palavra podium (po di um).
sistema de classificação embora? Como não se prender O cilindro com o desenho do número 1 conta com a sílaba
em disputas sem sentido? O trabalho não oferece resposta “di”, no número 2 lemos “po” e no 3 “um”, dispostos
e sim produz questionamentos a partir de uma simples em uma sequência 2, 1 e 3 (seguindo a ordem do pódio
inversão de uma estrutura tão marcada em espaços esportivo), conseguimos ler podium. O jogo com as sílabas
de disputa. se inicia e permite diferentes interpretações: pó di um,
podi um, podium. Quantos podem ocupar o espaço dado,
para quantos o espaço é destinado? Quem se transforma
em pó e quem sobrevive? O pó de um representa uma
perda? Um êxito não alcançado? Afinal, quem vence e
quem é vencido?
As duas obras se relacionam e nos na escultura executada pela artista.
levam a pensar nas estruturas e As imagens que revelam a construção,
lógicas de validação impostas às os vídeos e fotografias, impõe a
pessoas a partir de critérios de presença de Bea ao trabalhar a obra.
habilidade, força, beleza e muitos Suas mãos, seu corpo, seus membros
outros inventados a cada momento. criam a estrutura, se relacionando
Bispo questionava a lógica de uma com a areia, com os desníveis
sociedade que o aprisionou em um presentes. Sal e areia, suor e areia,
manicômio. Bea coloca indagações mar e areia.
semelhantes e inclui uma nova
camada, a da vitória transitória. Não
apenas seu pódium é aterrado, não
eleva os vencedores, mas também
pode ser destruído a qualquer
momento. Na beira do mar ele foi
construído, a maré, o vento e, até
mesmo o ser humano, interferem
ANDRÉ VARGAS 72—73
Baía de Guanabara
2021
ANDRÉ
em reverência aos que vieram antes, aos que venceram a
morte, sonharam e lutaram por um futuro de liberdade
para seus descendentes.
VARGAS
ANDRÉ VARGAS 74—75
O artista tem como objetivo
radicalizar a língua, dita portuguesa,
trazendo para o seu vocabulário
usual as palavras cunhadas no seu
seio familiar e por seus antepassados.
Na tradição africana, Calunga1 é
um signo para o sentimento de No território da Pequena África, embarcações; e o Jardim suspenso ordem, ao mesmo tempo que
vazio, que nos toma quando algum André revisita cinco pontos do Valongo, que também integra pretende unificar, abre brechas onde
ente querido vai embora, também fundamentais para contar a história o circuito histórico e arqueológico a fenomenologia acontece quase
entendido como morte, que é este da superação. São eles: a Baía de da celebração da herança africana, invisível à vigilância do colonizador.
lugar para onde os nossos vão, onde Guanabara, parte deste Atlântico apesar de ter sido construído com O artista assume como uma missão
não podemos mais vê-los. Calunga Negro, por onde milhares de vidas a intenção de apagar a memória do seu trabalho dar visibilidade a
Grande é mar, horizonte infinito, que passaram, algumas abandonadas daquela região e suprimir as marcas esse quase invisível.
por séculos tirou de muitas famílias e ali mesmo, neste grande cemitério da escravidão.
comunidades, sujeitos queridos que submerso, outras transplantadas em
nunca mais foram vistos, que nunca território americano, em diáspora; André Vargas contraria a formalidade
mais voltaram. Os que sobreviviam Cais do Valongo o Cais do Valongo, patrimônio da língua se valendo das ironias
2021
à travessia e chegavam ao novo histórico da humanidade desde 2017, geradas por ela própria, como por
mundo, eram forçados a abandonar guarda o principal índice da chegada exemplo no trabalho Não vote em
suas próprias subjetividades, o que de mais de 1 milhão de vítimas da branco (2020), da série proféticas,
também é uma forma de morrer, escravidão, que deixaram ali suas onde a frase significa, ao mesmo
portanto, transplantar sua cultura primeiras pegadas em solo brasileiro; tempo, um conselho ao leitor para
aqui, do outro lado, é uma tática de o Quilombo da Pedra do Sal, bem não escolher um candidato branco, e
permanência e continuidade apesar cultural de natureza imaterial da ao mesmo tempo para não invalidar
do trauma. 1 A palavra traduzida, para o português, como A palavra Calunga aparece com múltiplos cidade do Rio de Janeiro, ponto de seu voto e optar por um candidato
significados. De acordo com a wikipedia: Calunga
melancolia ou saudade (sentimentos que remetem a sociabilidade fundamental para não branco. Esta estratégia brincante
um vazio ou falta) é banzo. significa “tudo de bom” nas línguas bantas.
Significa também “necrópoles” em quicongo. a sobrevivência dos africanos em seria o que se chama de “agir
O banzo é a saudade do conhecido, saudade dos que Dentro do espiritismo, pode significar “grande
se foram, saudade dos que perdemos pelo caminho. diáspora; o Instituto dos Pretos nas brechas”. A palavra “ginga”,
mar”, e também o nome de uma falange. Nas
Ao experimentar tantas perdas, tantas saudades, e religiões afro-brasileiras também significa Novos, sítio histórico e arqueológico por exemplo, que está ligada à
se encontrando em uma situação nova repleta de “cemitério”, e “calunga grande” significa “beira
torturas e sem nenhuma condição mínima para do Cemitério dos Pretos Novos, onde movimentação do jogo de capoeira, é
do mar”. Na mitologia bantu, é o nome de uma
viver, a morte, como uma passagem para outro divindade secundária. Acessado na wikipedia.org/ eram enterradas e enterrados as ao mesmo tempo dança, jogo e luta.
plano, parecia ser a única solução. wiki/Calungas
pessoas que chegavam sem vida ou A separação entre dança, jogo e luta
que faleciam assim que chegavam em categorias distintas é um sintoma
por conta das condições precárias do epistemicídio colonial. A obsessão
a que eram submetidas dentro das eugenista da modernidade pela
NOSSO PORTUGUÊS
ANDRÉ VARGAS 76—77
É UM PRETOGUÊS, É
UM CRIOULO, É UM
BRASILEIRO E É UMA
REAÇÃO ADVERSA
DESSA HISTÓRIA DA
COLONIZAÇÃO.
SALLISA
Na rede Instagram, um story tem o limite de 15 segundos e
se pode “subir” até 100 stories nesta midiateca. Cada foto,
ou vídeo, ficam disponíveis por 24 horas e desaparecem
após isto. O máximo de tempo que estas 100 imagens
entram em contato com os frequentadores das redes de
Sallisa é de 25 minutos por dia. O que esta fração de tempo
ROSA
representa? O que se quer representar com ela?
SÃO OS RECORTES DA VIDA
SALLISA ROSA 80—81
As imagens escolhidas, os filtros faciais, os fundos e
efeitos de foto e vídeo criam uma narrativa para um
REAL QUE A GENTE NÃO
dia, que se realiza em poucos segundos. Quem visita os
COLOCA NO INSTAGRAM stories, acredita acompanhar todo o cotidiano daquele
POR VÁRIOS MOTIVOS. indivíduo. Através de uma cuidadosa seleção iconográfica,
o imaginário em torno da artista se constrói e a sua
SÓ EU TENHO ACESSO OU
representação no mundo se transforma a partir de seus
PESSOAS MUITO ÍNTIMAS stories. O aplicativo também permite outros tipos de
TEM ACESSO. QUE SÃO manipulação do tempo-espaço, se o perfil é fechado, por
exemplo, apenas as pessoas aceitas como “seguidoras”
CONVERSAS, DESABAFOS,
podem visualizar os stories. Se pode limitar ainda mais
IMAGENS, TEXTOS… o acesso, escolhendo dentre os “seguidores” um grupo
de “amigos próximos”, para que apenas estes possam
Trecho da entrevista concedida por Sallisa Rosa que
pode ser vista na íntegra aqui. acompanhar os 15 segundos de exposição.
DIAMBE
artista anti-colonial. Suas obras reivindicam a devolução
de tudo o que foi tomado pelos invasores, a cidade, a
paisagem, o nome, a identidade, o trabalho, o ócio, etc.
Questionando o espaço público e as normas sociais, ela
cria outras coreografias, que só são possíveis através do
afeto e do acolhimento de seus pares. Diambe apresenta
uma obra de arte e vida ao criar trabalhos que lidam
DA
com moradia e símbolos da cidade, que permeiam seus
deslocamentos e vivências pelo espaço urbano em diversas
etapas de sua existência, que vão da infância à vida adulta,
numa relação entre dentro e fora, centro e periferia.
SILVA
DIAMBE DA SILVA 88—89
isabel, av. princesa isabel, da série Devolta
2021
Trocas de segredos
2021
DIAMBE DA SILVA 92—93
Nesta ocasião, Diambe também com a artista por seus pares, os
rompe com as normas da sociedade segredos são também as trocas
e reside de maneira itinerante provocadas pela convivência, pelo
em mais de 30 casas, mudando compartilhamento do espaço
de endereço a cada semana. Essas residencial, onde ficamos mais à
sucessivas mudanças resultaram vontade em relação ao “socialmente
em um chaveiro com mais de 30 aceito”, onde nos vestimos de
chaves, cada uma com o seu próprio forma mais confortável, andamos
segredo. Estas chaves se tornaram descalças, comemos de maneira
matrizes que deram origem à descompromissada, fazemos a
série Trocas de segredos. Nos nossa higiene pessoal, nos sentimos
mantos que compõem a exposição, seguros para dormir. As matrizes
esses segredos são recombinados. geradas a partir das chaves são
Os segredos trocados vão além dos uma metáfora para a troca afetiva
códigos de cada chave, trocada profunda, de uma semana.
a cada semana, compartilhadas
DIAMBE DA SILVA 94—95
DENILSON
DENILSON BANIWA 96—97
Até que os leões tenham seus próprios
historiadores, as histórias de caçadas
continuarão glorificando o caçador.
Provérbio africano
BANIWA
Quantas histórias existem em uma história? A narrativa sim distorções de cores e tamanhos, que transformam
entendida como oficial, a que será passada através de em múltiplas versões, a cada girada, a cada nova lente,
documentos, livros e da oralidade é uma escolha de um algo que nos era dado como uma única forma. Assim
grupo. Quando nos familiarizamos com a História do como os fatos ocorridos, que são experimentados por
Brasil nos livros do ensino fundamental e médio, uma diferentes pessoas, e por isso histórias distintas podem
história com H maiúsculo, e que parece universal, estamos contemplá-los, principalmente se envolvem disputas e
conhecendo apenas uma versão dos fatos. É perceptível situações conflituosas entre partes.
como o lado pende sempre para a história do “vencedor”,
do colonizador, de quem dominou e subjugou o outro lado
e fez de sua narrativa a verdadeira. Escolheu enaltecer
certos fatos, omitir outros, selecionar personagens, e
assim criar uma narrativa. Toda história é uma ficção,
pois apresenta uma ótica singular dos eventos decorridos
em um período. Podemos fazer uma analogia com o
caleidoscópio usado como brinquedo pelas crianças.
Se você mira em um objeto, através da lente do brinquedo
você não verá o mesmo objeto que percebe a olho nu e
SE O QUE ME RESTA,
DENILSON BANIWA 98—99
Não queremos justificar uma ou outra versão, mas Tamuia
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