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As Institutas

Volume I
Capítulo XIV
Seção 5 - Funções e designativos dos anjos

Que os anjos são espíritos celetiais de cujo ministério e serviço Deus Se utiliza para efetuar tudo
que há decretado em muitos lugares na Escritura se lê. De onde, também, lhes foi atribuído este
designativo, por isso que, para aos homens manifestar-Se, Deus os emprega como emissários
intermédios.
Por uma razão semelhante, foram tomados também os demais designativos por que são
assinalados. Denominam-se Exércitos, porque, como elementos da Sua guarda, rodeiam a seu
príncipe, exornam-Lhe a majestade, e a rendem conspícua, e, como soldados, estão sempre
atentos ao sinal de seu comandante, e, destarte, estão preparados e prontos para cumprir-Lhe as
ordens, de sorte que, tão logo haja Ele de acenar, à ação se aprestem, ou, antes, em ação
estejam. Como, para proclamar-Lhe a magnificência, pintam os demais profetas tal representação
do trono de Deus, sobremaneira o faz, porém, Daniel [7.10], onde refere que de pé se haviam
postado mil milhares e dez vezes mil miríades de anjos, quando Seu sólio judicacional ascendera
Deus.
Uma vez que, também, por meio deles, o Senhor expressa e manifesta maravilhosamente a
força e a pujança de Sua mão, daí Poderes se designam os anjos. Porque, ademais, através deles
Deus exerce e admnistra sua soberania no universo, por isso, ora se dizem Principados, ora
Potestades, ora Domínios [I Co 15.24; Ef 1.21; Cl 1.16].
Finalmente, porque neles, de certo mode, reside a glória de Deus, por esta razão são também
chamados Tronos, se bem que, em referência a esta última designação, prefira nada afirmar, já
que interpretação diferente calha, ou igualmente, ou até mais. De fato, omitido este designativo,
daqueles precedentes o Espírito Santo Se serve vezes não poucas para exalçar a dignidade do
ministério angélico. Pois, nem é razoável que sem honra se releguem estes instrumentos, mercê
dos quais Deus exibe, de modo especial, a presença de Sua soberana majestade.
Ademais, também à vista disso, não uma vez só, são os anjos chamados deuses, por isso que
em seu ministério, como em um espelho, em certa medida, a Divindade nos representam. Ora,
inda que a mim me não desagrada o fato de que os escritores antigos interpretam que, onde a
Escritura registra que o Anjo de Deus apareceu a Abraão [Gn 18.1], a Jacó [Gn 32.1, 28], a Moisés
e outros [Js 5.14; Jz 6.12; 13.9, 22], esse Anjo era Cristo, contudo, mais frequentemente, onde se
faz menção de todos os anjos, este designativo, deuses, se lhes confere. Nem deve isto parecer
cousa de que maravilhar-nos, pois que, se a príncipes e prepostos esta honra se outorga, porque,
em sua função, fazem as vezes de Deus, Que é o Supremo Rei e Juíz, muito maior razão há
porque se confira aos anjos, em que a efulgência da divina glória esplende muito mais
copiosamente.

Seção 6 - O ministério dos anjos a velarem de contínuo pela proteção dos crentes

Aquilo, porém, que, à nossa consolação e ao fortalecimento de nossa fé nos podia ser de
particular relevância, em isto ensinar insiste sobremodo a Escritura, a saber, que os anjos são
despenseiros e ministradores da divina beneficência para conosco. E, por isso, a Escritura refere
que eles montam guarda pela nossa segurança, assumem a nossa defesa, dirigem os nossos
caminhos, exercem solicitude para que não nos aconteça algo de adverso.
Universais em teor são asserções como estas, que se aplicam, em primeira plana, a Cristo,
Cabeça da Igreja, depois a todos os fiéis: "Aos Seus anjos deu ordem a respeito de ti, para que te
guardem em todos os teus caminhos; nas mãos te susterão, para que não tropeces, porventura,
em alguma pedra" [Sl 91.11-12]. De igual modo: "O Anjo do Senhor Se posta ao redor daqueles
que O temem e os livra" [Sl 34.7]. Com quais asserções Deus evidencia que delega a Seus anjos a
proteção daqueles a quem houve por bem devam ser guadados. Em conformidade com este
privilégio, o Anjo do Senhor consola a fugitiva Hagar e lhe ordena reconciliar-se com sua senhora
[Gn 16.9]. Abraão promete a seu servo que um anjo lhe haveria de ser o guia da jornada [Gn 24.7].
Jacó, na benção de Efraim e Manessés [Gn 48.16], ora que o Anjo do Senhor, através de quem
havia sido livrado de todo mal, os faça prosperar. Assim, um anjo foi preposto para proteger o
acampamento do povo israelita [Ex 14.19; 23.20] e, quantas vezes quis Deus redimir a Israel da
mão dos inimigos, libertadores suscitou mediante o ministério dos anjos [Jz 2.1; 6.11; 13.9]. Assim,
finalmente, para que se não faça de mister referir mais exemplos, os anjos ministram a Cristo [Mt
4.11] e Lhe foram presentes em todas as angústias [Lc 22.43]; às mulheres anuciaram-lhe a
ressureição, aos discípulos Sua gloriosa vinda. E destarte, oara que desempenhem este encargo
de nossa proteção, lutam contra o Diabo, e todos os nossos inimigos e executam a vingança de
Deus contra aqueles que nos são infensos. Assim, é que lemos que, para livrar Jerusalém do
cerco, o Anjo de Deus exterminou, em uma noite, cento e oitenta e cinco mil no acampamento do
rei da Assíria [II Rs 19.35; is 37.36]

Seção 7 - Precária a base para afirmar-se a realidade de anjo da guarda individual

Por outro lado, não ousaria afirmar como certo, se a cada fiel, individualmente, lhe haja sido, ou
não, destacado à defesa um anjo específico. Evidentemente, quando Daniel faz referência ao Anjo
dos persas e ao Anjo dos gregos está a significar que certos anjos são destacados como guardiães
a reinos e províncias. Também Cristo, quando diz que os anjos das crianças sempre contemplam a
face do Pai [Mt 18.10], dá a entender que há certos anjos a quem lhes foi confiada a segurança.
Mas, disto não sei se deva concluir-se que cada um lhe assiste seu anjo particular. Isto, em
verdade, deve haver-se por certo: que não a um só anjo apenas incumbe o cuidado de cada um de
nós, mas, antes, que todos, em um consenso único, vigiam pela nossa segurança. Ora, dos anjos
todos em consjunto se diz que mais se regozijam por um pecador voltado ao arrependimento do
que por noventa e nove justos que hajam persistido na justiça [Lc 15.7]. Também de muitos anjos
se diz que hão conduzido a alma de Lázaro ao seio de Abraão [Lc 16.22]. Nem, de fato, em vão,
mostra Eliseu a seu serviçal tantos carros de fogo [II Rs 6.17], que lhe haviam sido particularmente
destinados.
Há uma passagem [At 12.15] que, a confirmar isso, parece um pouco mais clara que outras. Isto
é, quando Pedro, retirado do cárcere, batia aos portais da casa em que os irmãos se haviam
congregado, como não pudessem presupor que fosse ele, diziam que era seu anjo. Isto lhes
parece à mente haver acorrido da concepção generalizada de que aos fiéis, a cada um
individualmente, lhes hajam sido designados como guardiães os seus próprios anjos. Se bem que
aqui se pode também replicar que nada obsta
a que entendamos a um qualquer dentre os anjos, a quem o Senhor houvese então confiado a
proteção de Pedro, e não obstante, nem por isso, ser-lhe-ia guarda perpétuo, tal como,
popularmente, se imaginam haverem sido atribuídos a cada pessoa, como se fossem gênios
diversos, dois anjos, um bom e um mau.
Nem pega a pena, entretanto, ansiosamente investigar o que não nos vem muito ao caso saber.
Ora, se a alguém isto não satisfizer, que lhe velem pela segurança as ordens todas da milícia
celestial, não vejo que profeito possa derivar disto: se vem a saber que um anjo lhe é
particularmente outorgado por guarda pessoal. Aliás, grande agravo fazem a si próprios e a todos
os membros da igreja quantos restrigem a um anjo único esse cuidado que Deus exerce em
relação a cada um de nós, como se por nada hajam sido prometidas essas forças auxiliares,
cercados e assistidos das quais, por todos os lados, lutemos mais animosamente.

CALVINO, J. Trad. Waldyr Carvalho Luz, São Paulo, Casa Editora Presbiteriana, 1985

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