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A DIVINDADE DE CRISTO

§ 1. O Testemunho do Antigo Testamento


A doutrina da redenção é a doutrina distintiva da Bíblia. A pessoa e a obra do Redentor
compõem, portanto, o grande tema dos escritores sacros. Da natureza da obra que ele devia
consumar, era necessário que ele fosse simultaneamente Deus e homem. Ele precisava
participar da natureza daqueles a quem veio redimir; e ter poder para subjugar todo o mal
e a dignidade de valorizar sua obediência e sofrimentos. Portanto, do princípio ao fim do
sagrado volume, de Gênesis ao Apocalipse, um Redentor Deus e homem é apresentado
como o objeto de suprema reverência, amor e confiança aos filhos dos homens que
pereciam. É absolutamente impossível apresentar um décimo das evidências que as
Escrituras contêm da veracidade desta doutrina. Ela é para a Bíblia o que a alma é para o
corpo – seu princípio vital e todo-impregnado, sem o qual as Escrituras não passariam de
um sistema frio e morto de história e preceitos morais. Portanto, parece uma obra de super-
rogação provar aos cristãos a divindade de seu Redentor. É como provar que o sol é a fonte
de luz e calor para o sistema do qual ele é o centro. No entanto, como há homens que se
professam cristãos, mas negam esta doutrina, da mesma forma que houve e ainda há
pessoas que fazem do sol mero satélite da terra, é necessário que pelo menos parte da
evidência por meio da qual esta grande verdade é demonstrada esteja à disposição para
combater os que a contradizem.

O Proto-evangelho
Imediatamente depois da apostasia de nossos primeiros pais, anunciou-se que a
semente da mulher esmagaria a cabeça da serpente. O significado desta promessa e
predição deve ser determinado por revelações subseqüentes. Quando interpretada à luz
das próprias Escrituras, manifesta que a semente da mulher significa o Redentor, e que o
esmagamento da cabeça da serpente significa seu triunfo final sobre os poderes das trevas.
Nesse proto-evangelho, como foi sempre denominado, temos a aurora da revelação tanto
da humanidade como da divindade do grande libertador. Como semente da mulher, sua
humanidade é distintamente declarada, e a natureza do triunfo a alcançar, subjugando a
Satanás, demonstra que ele seria uma pessoa divina. No grande conflito entre o bem e o
mal, entre o reino da luz e o reino das trevas, entre Cristo e Belial, entre Deus e Satanás,
aquele que triunfa sobre Satanás não pode ser menos que divino. Nos primeiros livros da
Escritura, mesmo em Gênesis, temos, pois, nítidas insinuações de duas grandes verdades:
primeira, que há uma pluralidade de pessoas na Deidade; e, segunda, que uma dessas
pessoas se preocupa especialmente com a salvação dos homens – em sua diretriz, governo,
instrução e livramento final de todos os males de sua apostasia. A linguagem empregada no
registro da criação do homem, “Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa
semelhança”, não admite nenhuma explicação satisfatória além daquela fornecida pela
doutrina da Trindade.
Jeová e o Anjo de Jeová
É sobre a revelação primária e fundamental desta grande verdade que se baseiam todas
as revelações subseqüentes da Escritura. Visto que há mais de uma pessoa na Deidade,
descobrimos prontamente a distinção entre Jeová como mensageiro, mediador, e Jeová
como aquele que envia, entre o Pai e o Filho, como pessoas co-iguais, coeternas,
percorrendo toda a Bíblia, com sempre crescente clareza. Esta não é uma interpretação
arbitrária ou desautorizada das Escrituras do Antigo Testamento. Em Lc 24.27, diz-se que
nosso Senhor, “começando por Moisés, discorrendo por todos os Profetas, expunha-lhes o
que a seu respeito constava em todas as Escrituras”. Moisés, portanto, testificou de Cristo;
e temos sólida base sobre a qual lançar a interpretação das passagens do Antigo
Testamento, as quais anunciam a pessoa e obra do grande libertador, como uma referência
a Cristo.
Aquele que foi prometido a Adão como a semente da mulher foi em seguida declarado
ser a semente de Abraão. Que isto não se refere a seus descendentes coletivamente, mas
a Cristo individualmente, sabemos com base na afirmação do Apóstolo (Gl 3.16) e à luz do
cumprimento da promessa. Não é por meio dos filhos de Abraão como nação, mas por meio
de Cristo, que são benditas todas as nações da terra. E as bênçãos a que se faz referência,
a promessa dada a Abraão, ou seja, aquela que, como diz o Apóstolo, se cumpriu em nós, é
a promessa da redenção. Por isso, Abraão viu o dia de Cristo e se alegrou, e como disse
nosso Senhor: Antes que Abraão existisse, eu sou. Isso prova que a pessoa predita como a
semente da mulher e como a semente de Abraão, através de quem a redenção seria
efetuada, tinha de ser Deus e homem. Não poderia ser a semente de Abraão, a menos que
fosse homem; e não poderia ser o Salvador dos homens, a menos que fosse Deus.
Assim descobrimos por todo o Antigo Testamento constante menção de uma pessoa,
distinta de Jeová, como alguém a quem, contudo, se imputam os títulos, os atributos e as
obras de Jeová. Essa pessoa se chama ‫מֵ לְ אַ ְך אֱֹלהִ ים‬, ‫אֲלגָי מַ לְ אַ ְך יְ הֹ וָה‬, ‫יְ הֹ וָה‬, ‫אֱֹלחיִ ם‬,
Reivindica autoridade divina, exerce prerrogativas divinas e recebe homenagem divina. Se
fosse uma questão isolada, se em um ou dois casos o mensageiro falasse em nome daquele
que o havia enviado, poderíamos supor que a pessoa assim designada fosse um anjo ou
servidor comum de Deus. Mas quando tal descrição se repete por toda a Bíblia; quando
descobrimos que esses termos se aplicam não antes a um anjo particular, que a pessoa
assim designada é também chamada de o Filho de Deus, o Deus Onipotente; que a obra a
ele atribuída é em outras partes atribuídas ao próprio Deus; e que no Novo Testamento,
esse Jeová manifesto, que conduziu seu povo sob a dispensação neotestamentária, se
declara ser o Filho de Deus, o λόγος, que se manifestou em carne, torna-se indubitável que
pela expressão Anjo de Jeová, nos primeiros livros da Escritura, devemos discernir uma
pessoa divina, distinta do Pai.

A. O Livro de Gênesis
Portanto, já em Gn 16.10, o Anjo de Jeová aparece a Agar e lhe diz: “Multiplicarei
sobremodo a tua descendência, de maneira que, por numerosa, não será contada”. E somos
informados que Agar “invocou o nome do Senhor, que lhe falava [Attah el Roi]: Tu és Deus
que vê; pois disse ela: Não olhei eu neste lugar para aquele que me vê?” (v. 13). Portanto
declara-se que este anjo é Jeová e promete o que somente Deus poderia cumprir. Também
em Gn 18.1, somos informados de que Jeová apareceu a Abraão nas planícies de Manre,
quando lhe prometeu o nascimento de Isaque. No versículo 13, 14, ele é uma vez mais
denominado Jeová. Disse Jeová: “Acaso, para o Senhor há coisa demasiadamente difícil?
Daqui a um ano, neste mesmo lugar, voltarei a ti, e Sara terá um filho”. Enquanto os anjos
se dirigiam a Sodoma, um deles, chamado Jeová, disse: “Ocultarei a Abraão o que estou
para fazer?” e “Disse mais o Senhor: Com efeito o clamor de Sodoma e Gomorra tem-se
multiplicado e seu pecado se tem agravado muito. Descerei e verei” etc., e Abraão,
acrescenta-se, permanecia na presença de Jeová. Ao longo de toda a intercessão de Abraão
em favor das cidades da planície, o anjo é abordado como Adonai, título atribuído
unicamente ao verdadeiro Deus, e este fala como Jeová e assume a autoridade de Deus,
para perdoar ou castigar como bem lhe parecesse. Quando se menciona a execução da
sentença pronunciada sobre Sodoma, afirma-se: “Então fez o Senhor chover enxofre e fogo,
da parte do Senhor, sobre Sodoma e Gomorra”. Com respeito a esta e outras expressões
notáveis e semelhantes, a questão não é “O que poderiam significar?”, mas “O que
significam?”. Tomadas em si mesmas, poderiam ser desvirtuadas, mas, à luz das revelações
concatenadas de Deus sobre esta questão, torna-se evidente que Jeová é distinguido como
uma pessoa de Jeová, e que por isso na Deidade há mais de uma pessoa a quem pertence
o nome de Jeová. Neste caso, as palavras “enxofre” e “fogo” podem ser conectadas às
palavras “de Jeová” no sentido de “fogo de Deus”, como expressão figurada denotando o
raio. A passagem poderia então significar simplesmente: “Jeová fez chover raios sobre
Sodoma e Gomorra”. Tal coisa não só vai de encontro à pontuação autorizada da passagem
segundo o indicam os acentos, mas também vai de encontro à analogia da Escritura. Ou
seja, seria esta uma interpretação não natural, que põe esta passagem em nítido conflito
com aquelas em que há distinção entre o Anjo de Jeová e Jeová, ou seja, entre as pessoas
da Deidade.
Em Gn 22.2, Deus ordena que Abraão lhe ofereça Isaque em sacrifício. O Anjo de Jeová
detém sua mão no momento da imolação, e diz (v. 12): “Pois agora sei que temes a Deus,
porquanto não me negaste o filho, o teu único filho”. E nos versículos 16 e 17, o Anjo de
Jeová diz: “Jurei, por mim mesmo, diz o Senhor … que deveras te abençoarei e certamente
multiplicarei a tua descendência”. E Abraão chamou o nome daquele lugar “Jeohvah-Jireh”.
Aqui Deus, o Anjo de Jeová e Jeová são nomes dados à mesma pessoa, a qual jura por si
mesma e promete a Abraão a bênção de numerosa posteridade. O Anjo de Jeová, portanto,
tem de ser uma pessoa divina.
Na visão de Jacó registrada em Gn 28.11–22, ele viu uma escada que atingia o céu:
“Perto dele estava o Senhor e lhe disse: Eu sou o Senhor, Deus de Abraão, teu pai, e Deus
de Isaque. A terra em que agora estás deitado, eu ta darei, a ti e à tua descendência. A tua
descendência será como o pó da terra”. Aqui a pessoa, que em outro lugar é chamada Anjo
de Jeová e que fizera a mesma promessa a Abraão, é chamada de Senhor Deus de Abraão
e Deus de Isaque. Em Gn 32.24–32, diz-se que Jacó lutou com um anjo que em seguida o
abençoou, e, ao vê-lo Jacó, disse: “Vi a Deus face a face”. O profeta Oséias (12.4–5), ao
referir-se a este evento, disse: “lutou com o anjo, e prevaleceu; chorou, e lhe pediu mercê;
em Betel achou a Deus e ali falou Deus conosco. O Senhor, o Deus dos Exércitos, o Senhor
é o seu nome”. O anjo com quem Jacó lutou era o Senhor Deus dos Exércitos. 1

1
Hodge, C. (2001) Teologia Sistemática. 1a edição. Traduzido por V. Martins. São Paulo: Hagnos, p.
362–365.

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