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MARTINS, Roberto de Andrade.

Um precursor medieval do princípio de inércia: a


teoria do ímpeto de Jean Buridan. Vol. 2, pp. 31-58, in: SILVA, Ana Paula Bispo;
SILVEIRA, Alessandro Frederico da (eds.). História da ciência e ensino: fontes
primárias. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2018. ISBN 978-85-7861-523-9

UM PRECURSOR MEDIEVAL DO PRINCÍPIO DE INÉRCIA: A TEORIA DO


ÍMPETO DE JEAN BURIDAN

Roberto de Andrade Martins 1

Introdução
Aquilo que denominamos “princípio de inércia” atingiu sua forma madura no
século XVII, principalmente com os trabalhos de René Descartes e Isaac Newton
(Martins, 2012; Martins, 2013). No entanto, alguns de seus componentes centrais já
eram conhecidos desde o período medieval. Sua origem foi a discussão do
movimento de projéteis, um tema importante da física de Aristóteles, que recebeu
comentários e críticas durante a Idade Média. Dessa discussão surgiu o princípio do
ímpeto, de Jean Buridan, que teve enorme influência até a época de Newton.
A contribuição de Jean Buridan é conhecida pelos historiadores da ciência
desde o início do século XX, quando foi resgatada por Pierre Duhem (1913), sendo
depois estudada por diversos pesquisadores. Allan Franklin chamou a atenção dos
professores de física para esse desenvolvimento histórico medieval em um
importante (e polêmico) artigo publicado em 1976, no American Journal of Physics
(Franklin, 1976; Franklin, 1978). Paralelos entre a teoria do ímpeto de Buridan e o
desenvolvimento psicogenético de crianças foram detalhadamente estudados nos
dois primeiros capítulos da famosa obra de Jean Piaget e Rolando García,
Psychogenèse et histoire de la science, de 19832. Desde a década de 1980,
diversos pesquisadores do Brasil e de outros países analisaram as semelhanças
entre a teoria de Buridan e os conceitos espontâneos dos estudantes a respeito do

1
Professor aposentado, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professor colaborador,
Fundação Municipal de Ensino Superior de Bragança Paulista (FESB) e Universidade Federal do
Estado de São Paulo (UNIFESP). Email: roberto.andrade.martins@gmail.com
2
Esta obra foi publicada inicialmente em 1982, em espanhol, após o falecimento de Piaget, pelo co-
autor Rolando García (Piaget & García, 1982). Depois, foi publicada em francês, no ano seguinte
(Piaget & García, 1983). Há uma tradução para o português, publicada em Lisboa (Piaget & García,
1987).

1
movimento (Clement, 1982; Zylbersztajn, 1983; Gilbert & Zylbersztajn, 1985;
Nersessian & Resnick, 1989; Fischbein, Stavy & Ma-Naim, 1989; Peduzzi &
Zylbersztajn, 1997).
Embora muitos pesquisadores da área de educação mencionem a teoria do
ímpeto, muitas vezes as informações históricas em que eles se baseiam são
bastante sumárias. O objetivo central deste artigo é oferecer uma versão mais
detalhada e fundamentada da teoria do ímpeto, apresentando uma tradução
completa do principal texto de autoria de Buridan sobre o assunto, acompanhada de
esclarecimentos.

O movimento e suas causas, na Antiguidade


A palavra “física”, na época de Aristóteles, significava o estudo da natureza
(physis). Para ele, o objetivo central da física era compreender a causa (aitia) dos
fenômenos, ou seja, explicar qualquer acontecimento ou mudança. Não basta
conhecer e descrever uma mudança; é necessário tentar captar por que ela
aconteceu.
Na física atual, não precisamos explicar o motivo pelo qual os corpos que já
estão se movendo continuam a se mover. O princípio de inércia afirma que os
corpos em movimento tendem a continuar seu movimento, com a mesma direção e
velocidade, a menos que alguma coisa mude esse movimento. Somente as
mudanças de movimentos precisam ser explicadas, na física atual. Notemos que a
inércia não é uma explicação, é apenas um nome que se dá para uma propriedade
dos corpos.
Da Antiguidade até Descartes, pensava-se que o deslocamento, que é a
mudança de posição de um objeto, de um lugar para outro, também exigia uma
explicação, uma causa. A explicação do deslocamento não é, obviamente, seu
movimento – isso é apenas outro modo de descrever o que está acontecendo, e não
a indicação de uma causa. A ideia de que não é necessário explicar a continuação
dos movimentos surgiu claramente na obra de René Descartes, no século XVII – um
autor que influenciou fortemente o desenvolvimento do princípio de inércia de
Newton (Martins, 2012; Martins, 2013).
Infelizmente, muitos textos sobre Aristóteles encontrados na Internet distorcem
as ideias desse pensador. Afirmam que ele não sabia que existia o atrito e, por isso,

2
afirmava que era necessária uma força agindo continuamente sobre um livro, para
fazê-lo se mover sobre uma mesa, senão ele pararia instantaneamente. Outros
textos dão o exemplo de uma pedra sendo empurrada no chão.
Nada está mais distante do pensamento aristotélico e do seu contexto histórico.
Devemos nos lembrar de que os livros, no formato em que os conhecemos, não
existiam na Antiguidade. Naquela época, os textos eram escritos em papiro ou
pergaminho e conservados sob a forma de rolos cilíndricos. Por isso, um livro
daquela época, se fosse empurrado sobre uma mesa horizontal, manteria seu
movimento durante bastante tempo, rolando sobre ela...
De qualquer forma, Aristóteles nunca discutiu nem o movimento de livros sobre
uma mesa, nem de pedras arrastadas no chão. Ele se referiu, pelo contrário ao
movimento de uma pedra jogada no ar por uma pessoa, ou de uma flecha atirada
por um arco – e, desde muito antes de Aristóteles, já se sabia que nenhuma delas
para instantaneamente, mas sim continua a se mover durante um bom tempo.
Diante desse fato bem conhecido, o que Aristóteles tentou fazer foi explicar o
movimento dos projéteis, atribuindo uma causa ao seu movimento continuado. É
importante, também, mencionar que Aristóteles não afirma a necessidade de uma
força para que o movimento continue – ao contrário do que muitos afirmam.
Para Aristóteles, os movimentos poderiam ser naturais ou violentos (forçados) 3.
Os movimentos naturais, como a queda de uma pedra ou o movimento do fogo para
cima, teriam uma causa interna, segundo ele: são produzidos pela própria natureza
do objeto e são sempre iguais – uma pedra sempre cai, o fogo sempre sobe. Por
outro lado, os movimentos violentos (como o de um projétil) não podem ter uma
causa interna, pois um mesmo objeto pode ter diferentes movimentos forçados –
para cima, para baixo, para os lados ou girar. Essa causa externa dos movimentos
violentos é algo facilmente observável, no início do movimento – a mão de uma
pessoa, a corda de um arco que empurra a flecha, etc. Porém, depois que o objeto
já está em movimento, não vemos nada mais agindo sobre ela.
Depois que uma pedra foi lançada pela mão de uma pessoa, a única coisa que
está em contato com ela é o ar. De acordo com os princípios explicativos aceitos por
Aristóteles, a única possibilidade de explicar por que a pedra continua a se mover é

3
A teoria sobre o movimento de Aristóteles é apresentada em alguns trechos de sua Física e também
no Sobre o Céu. Para uma descrição detalhada dessa teoria, pode-se consultar o livro de Ido Yavetz
(2015).

3
através de uma causa externa em contato com ela – que só pode ser, então, o ar
que a envolve.
Assim, a causa, o agente ou motor (aquilo que move a pedra) está identificado.
Mas como o ar pode manter o movimento do projétil?
Aristóteles indicou dois tipos de mecanismos explicativos. Em um deles,
chamado antiperistasis em grego (αν ιπε ι α ι ) e que significa literalmente “ação
contrária do que está em volta”, supõe-se que o projétil empurra o ar à sua frente,
sofrendo assim uma resistência; mas sofre um empurrão do ar atrás dele, que o
mantém em movimento. A causa dessa força atrás é concebida assim: quando o
objeto se desloca, ele sai de onde estava e passa para outra posição. Se nada
entrasse no local de onde ele saiu, lá ficaria um vácuo. Porém, na física aristotélica,
o vácuo (espaço absolutamente vazio) é impossível. Para impedir a formação do
vácuo, o ar que está atrás do objeto ocupa imediatamente esse espaço e, ao fazê-lo,
bate contra a parte de trás do corpo e o empurra. Ocorre, assim, uma sucessão
contínua de ações: o objeto se move e empurra o ar, o ar é colocado em movimento
e empurra o objeto, o objeto se move e empurra o ar, e assim por diante. Embora a
descrição dessa hipótese por Aristóteles não seja totalmente clara, parece que se
supunha que o ar empurrado na frente do objeto circulava em torno dele e o
empurrava atrás. Essa ideia se originou antes de Aristóteles, tendo sido exposta por
Platão, que lhe dava o nome de periosis (πε ιο ι ).
O segundo mecanismo indicado por Aristóteles é parecido com o arrastamento
de um objeto pela correnteza de um rio. Quando a mão do lançador está se
movendo para lançar uma pedra, essa mão movimenta não apenas a pedra, mas
também o ar que está em volta dela. O ar que está em contato com a mão é
empurrado, este empurra a camada seguinte de ar e assim por diante, criando uma
cadeia de movimentos, sempre na mesma direção. Esse ar em movimento
empurraria o projétil, de acordo com essa segunda hipótese, que é a preferida por
Aristóteles, embora ele não apresente argumentos suficientemente fortes para
rejeitar a antiperistasis.
Resumindo: para Aristóteles, o movimento de um projétil é violento (não é
natural) e sua causa é externa (e não interna), sendo necessariamente algo em
contato com o objeto (pois não há ações à distância); no caso do projétil lançado no

4
ar, deve ser o próprio ar que mantém esse movimento. O processo pelo qual o ar
mantém o movimento do projétil pode ser por antiperistasis ou por arrastamento.
É fácil perceber que essa visão é completamente diferente da ensinada pela
física atual. A dinâmica de Aristóteles foi substituída pela de Newton no século XVII,
ou seja, mais de dois mil anos depois. No entanto, não houve um salto direto da
física aristotélica para o princípio de inércia. Houve diversas tentativas diferentes de
explicar o movimento dos projéteis e uma delas – a teoria do ímpeto – deu um passo
importante, negando que o ar produza esse tipo de movimento e afirmando que não
é necessária nenhuma causa externa para manter o movimento dos projéteis.

JEAN BURIDAN E SUA CONTRIBUIÇÃO


Desde a Antiguidade, houve autores que criticaram a teoria aristotélica dos
movimentos. Não podemos apresentar aqui toda essa história. É importante, no
entanto, mencionar que durante o período medieval existiram vários pensadores
islâmicos que apresentaram alternativas a essa teoria, propondo que os projéteis
continuam a se mover impulsionados por uma causa interna, que chamavam mayl
(tendência) (Pines, 1938; Pines, 1953; Sarnowsky, 2008). Esses autores supunham
que o mayl era um poder transmitido ao projétil pela pessoa ou instrumento que o
lançava. Para alguns deles, o mayl tendia a desaparecer sozinho, como um objeto
quente que vai esfriando espontaneamente. Para outros, o mayl tendia a
permanecer constante, ou seja, os projéteis tendiam a manter seu movimento,
porém essa tendência ia diminuindo por causa das resistências do ar e de outras
causas. Um antecessor de Buridan, Franciscus de Marchia ou Francesco della
Marca, defendeu a ideia de um poder interno que se enfraquecia gradualmente
(Schabel, 2006).
Não se sabe até que ponto Jean Buridan conhecia todas essas propostas; esse
é um ponto que ainda é pesquisado pelos historiadores (Sayili, 1987). Sem entrar
nessa discussão, é importante enfatizar que a proposta de Buridan, seja ou não
inspirada por trabalhos anteriores, é a mais detalhada que conhecemos e a única
que se baseia em um grande número de argumentos justificados a partir de fatos
experimentais, como será visto mais adiante.
Pouco se sabe sobre a vida de Jean Buridan. Ele nasceu aproximadamente em
1295 e faleceu em torno de 1363. Nasceu na França e estudou na Universidade de

5
Paris, onde depois se tornou professor, tendo sido reitor por duas vezes. Era padre,
como praticamente todos os professores universitários da época. Escreveu obras
sobre lógica, metafísica, ética e vários comentários aos tratados de Aristóteles. Suas
obras tiveram grande influência, tanto na sua época quanto posteriormente (Zupko,
2014).

Jean Buridan, representado em um manuscrito conservado na Biblioteca da Universidade


Jaguelônica, em Cravóvia. Fonte da imagem:
http://denstoredanske.dk/@api/deki/files/26082/=463402.501.jpg

No período medieval, grande parte da atividade didática sobre filosofia nas


universidades consistia na leitura, comentário e discussão das obras de Aristóteles.
Ao contrário do que se costuma pensar, os professores não eram apenas
repetidores de ideias antigas, mas podiam criticá-las e propor novas ideias. A partir
dessa atividade educacional, muitos docentes redigiam textos manuscritos que eram
copiados e circulavam não apenas entre seus alunos mas em diversas
universidades. A mais completa apresentação da teoria do ímpeto de Jean Buridan
se encontra no seu comentário a respeito da Física de Aristóteles. Há também

6
partes do comentário de Buridan a respeito do Sobre o céu de Aristóteles onde se
encontra uma versão resumida da teoria (ver Moody, 1942).
A contribuição de Buridan teve enorme influência até o século XVII. Direta ou
indiretamente, foi uma das fontes de inspiração dos trabalhos de Galileo e do próprio
Newton4. Depois da formulação da mecânica clássica, passou a ser ignorada.
A teoria do ímpeto de Buridan havia sido praticamente esquecida por todos, até
o início do século XX, quando foi resgatada por Pierre Duhem e estudada por
diversos historiadores da ciência. A mais antiga tradução do principal escrito de
Buridan sobre esse assunto foi feita pelo próprio Duhem (Duhem, 1913, pp. 34-53;
Duhem, 1913-1959, vol. 8, pp. 201-209). Porém, a versão que ele produziu tinha
diversos problemas, fugindo em muitos pontos ao texto original. A tradução mais
conhecida, atualmente, é a de Marshall Clagett, que é incompleta e também tem
falhas (Clagett, 1959, pp. 532-538). A tradução para o português aqui apresentada
foi feita a partir do original em latim, seguindo a edição publicada em 1509 (Buridan,
1509, fols. CXX.r-CXXI.v), levando também em conta a edição latina de Anneliese
Maier (1940, pp. 81-87). A presente tradução é bem diferente e superior a uma outra
que eu próprio havia produzido alguns anos antes e que ainda circula pela Internet.

Jean Buridan, “Questões sobre os oito livros da Física de Aristóteles”, livro


oitavo, questão décima-segunda
Questão décima-segunda: se o projétil [proiectus], após sair da mão daquele
que o projeta, é movido pelo ar, ou por qual coisa é movido. Argumenta-se que ele
não é movido pelo ar, pois vê-se que o ar principalmente resiste, pois é necessário
que ele seja dividido; além disso, se disseres que o lançador, inicialmente, moveu
tanto o projétil quanto o ar próximo, junto com ele, e que esse ar movido, move o
projétil ainda além, até tal e tal distância, será retorquida a dúvida: o que move esse
ar depois que o lançador cessou de movê-lo? Pois existe tanta dificuldade em
relação a isso [ao movimento do ar] quanto em relação à pedra lançada.
Aristóteles afirma o oposto no oitavo [livro] desta obra [Física] nesses termos:
se os projéteis continuam a se mover mais além, depois que os atiradores não os
tocam mais, pode ser por antiperistasis [αν ιπε ι α ι ], como alguns dizem, ou pelo

4
Pode-se obter uma informação detalhada sobre as influências sofridas por Galileo através da obra
de William Wallace (1981).

7
fato de que o ar, tendo sido empurrado, empurra por sua vez com um movimento
mais rápido do que o movimento de impulso pelo qual ele é conduzido para seu
lugar próprio. [Aristóteles] afirma a mesma coisa no sétimo e no oitavo [livros] desta
obra [Física] e no terceiro [livro] do Sobre o céu.
Em minha opinião, essa questão é muito difícil, pois me parece que Aristóteles
não a resolveu bem. Pois realmente Aristóteles toca duas opiniões. A primeira é a
que denomina antiperistasis, de que o projétil sai rapidamente do lugar em que
estava e, como a natureza não permite um vácuo, o ar o preenche rapidamente. O
ar assim movido rapidamente e atingindo o projétil o impele mais além; e assim
repetidamente, até certa distância. Aristóteles não aprova essa conclusão, mas a
critica, dizendo no oitavo [livro] desta obra que a antiperistasis move e faz mover
todas as coisas. O que parece poder ser compreendido assim: se não for colocado
um outro modo além da chamada antiperistasis, ocorreria que atrás do projétil
seguiriam todos os corpos e até o céu, quando o projétil sai do lugar em que estava;
ocorreria que o corpo que estava atrás dele sairia do lugar em que estava, e assim
ocorreria igualmente para todo outro corpo seguinte, e assim indefinidamente. Mas
pode-se responder imediatamente a isso, como é argumentado no quarto livro, que
não pode haver movimento retilíneo sem vácuo, a menos que todos os corpos na
sua frente se movam, pois não pode haver penetração dos corpos. E isso é
solucionado porque se algum corpo anterior se condensar, não ocorreria isso com
os que o antecedem. E assim diremos aqui que se ocorrer a rarefação dos corpos
posteriores, não será necessário que ocorra o movimento de todos os seguintes.
Mas, apesar de tal solução, parece-me que este método não tem valor, por causa de
muitas experiências [experientiae]5.
A primeira é a do pião e da roda do ferreiro, que se movem por muito tempo,
sem deixar seus lugares. Portanto, não é necessário que o ar vá atrás e preencha o

5
As experiências mencionadas por Buridan são, em geral, fatos conhecidos do dia-a-dia e não
experimentos planejados e realizados para testar alguma hipótese. Assim, em muitos casos,
“experiência” significa a mesma coisa de quando dizemos que certo profissional “tem muita
experiência” com relação àquilo que faz. σão queremos dizer que essa pessoa faz experimentos e
sim que está familiarizada com aquilo com que trabalha. Ver, a este respeito, o estudo detalhado de
Zita Toth (2010). Em grande parte, os experimentos descritos por Buridan são “experimentos mentais”
(thought-experiments), uma modalidade de argumentação bastante utilizada desde a Idade Média até
a Idade Moderna (King, 1991).

8
lugar de onde se move esse pião ou roda. Portanto, não se pode explicar dessa
maneira6.
A segunda experiência é esta: se uma lança que é atirada tiver na sua parte
posterior um cone tão agudo quanto a da frente, não se moverá menos do que se
não tivesse o cone agudo atrás. Mas certamente o ar não poderia empurrar tão bem
essa parte aguda, pois seria facilmente dividido pela ponta aguda7.
A terceira experiência é esta: quando um barco é puxado rapidamente em um
rio, contra a correnteza, após cessar-se o puxão, ele não pode ser parado
rapidamente, mas continua a se mover muito tempo. E, no entanto, um marinheiro
que esteja sobre ele não sente qualquer vento empurrando-o por trás, mas apenas
sente o ar à sua frente, resistindo. Além disso, se o dito navio estiver carregado com
feno ou madeira, e se um homem estiver atrás dessa carga, então, se o ar tivesse
tanto ímpeto [impetus] que fosse capaz de empurrar o barco tão fortemente, aquele
homem seria violentamente empurrado para a carga, pelo ar de trás; mas a
experiência mostra que isso é falso. Além disso, se o barco estivesse carregado com
feno ou palha, o ar vindo de trás e empurrando encurvaria os ramos que estivessem
atrás, mas isso também é falso.
Outra opinião, que Aristóteles parece aprovar, é que o atirador move o ar
próximo ao projétil junto com o projétil, e que esse ar movido velozmente tem o
poder de mover o projétil. Não se deve entender que o mesmo ar se move do lugar
da projeção até o lugar onde cessa o movimento do projétil; mas que o ar próximo
ao projétil é movido pelo atirador e que esse ar move um outro que lhe está próximo
e esse um outro, até certa distância. Assim, o primeiro ar move o projétil até o
segundo ar, e o segundo até o terceiro, e assim por diante. Aristóteles diz, portanto,
que não há um movente, mas muitos sucessivos. Portanto, ele diz também que o
movimento não é contínuo, mas consiste em entidades sucessivas ou contíguas.

6
Esta primeira experiência mostra que a hipótese da antiperistasis é falsa, pois uma roda ou pião gira
sem sair do lugar, portanto não produzem um espaço vazio que possa ser preenchido pelo ar, para
empurrá-los. Buridan utiliza este e outros fatos da seguinte maneira. Se aceitarmos as hipóteses de
Aristóteles, então, em determinada situação, deveria ocorrer X. No entanto, observa-se o contrário de
X. portanto, as hipóteses são falsas. Se a hipótese da antiperistasis fosse correta, o pião e a roda
parariam imediatamente, quando se parasse de empurrá-los; no entanto, observa-se o contrário
disso; portanto, a hipótese é falsa.
7
O raciocínio é o seguinte: se a hipótese da antiperistasis for verdadeira, então uma lança que tenha
uma ponta atrás não poderia ser empurrada tão facilmente pelo ar e, assim, não poderia ser lançada
tão facilmente ou à mesma distância que uma lança comum; no entanto, observa-se que não há essa
diferença; portanto, a hipótese é falsa.

9
Mas, sem dúvida, essa opinião e método parecem tão impossíveis quanto a
opinião e o método precedentes. Pois esse método não pode resolver o problema de
como o pião ou a roda do ferreiro giram depois que a mão foi removida. Pois, se
você recobrir totalmente a roda com um pano que o separe do ar ambiente, a roda
não cessará seu movimento por causa disso, mas continuará a se mover muito
tempo. Portanto, ela não é movida pelo ar.
Da mesma forma, um barco puxado rapidamente se move muito tempo depois
que se parou de puxá-lo; não é o ar em volta que o move, pois se ele fosse coberto
por um pano e o pano com o ar circundante fossem retirados, o barco não cessaria
seu movimento por isso. Além disso, se o barco estivesse carregado com feno ou
palha e se fosse movido pelo ar ambiente, então esse ar deveria dobrar os ramos
externos para a frente; mas vê-se o contrário, que são dobrados para trás, por causa
da resistência do ar ambiente.
Além disso, por mais depressa que o ar se mova, ele é facilmente dividido.
Portanto, não se vê como ele poderia sustentar uma pedra com peso de mil libras,
atirada por uma funda ou uma máquina.
Além disso, você pode mover sua mão tão velozmente ou mais velozmente, se
não tiver nada na mão, do que se tiver na mão uma pedra que deseja atirar.
Portanto, se o ar, por causa da velocidade de seu movimento, tem tanto ímpeto que
pode mover a pedra rapidamente, parece que se eu empurrasse o ar em tua direção
com igual velocidade, esse ar deveria empurrá-lo impetuosamente e com força
sensível; mas não percebemos isso.
Além disso, seguir-se-ia que você atiraria uma pluma mais longe do que uma
pedra, e algo menos pesado [mais longe] do que algo mais pesado, com iguais
tamanhos e formas, mas a experiência mostra que isso é falso. A consequência é
clara, pois o movimento do ar deveria sustentar ou carregar ou mover uma pluma
mais facilmente do que uma pedra, e algo mais leve [mais facilmente] do que algo
mais pesado.
Além disso, objetar-se-ia essa questão: por qual coisa o ar é movido depois
que o lançador cessou de se mover? A isso, o Comentador8 responde que aquele ar
é movido por sua leveza, que é inato ao ar reter a força motriz quando ele é movido;

8
σo período medieval, os autores costumavam se referir a Aristóteles como “o Filósofo” e a Averroes,
que escreveu comentários detalhados sobre as obras de Aristóteles, como “o Comentador”.

10
assim como o som se multiplica no tempo pelo movimento do ar até uma grande
distância. Deve-se realmente imaginar isso como na água. Pois quando se joga uma
pedra na água perfeitamente tranquila, a água na qual a pedra cai se move em torno
dela a água que lhe é adjacente e esta uma outra, e vemos se formarem assim
ondas circulares que se sucedem até a margem; e assim também no ar se formam
ondas e essas são tão mais velozes quanto o ar é mais sutil e mais fácil de mover.
Mas contra isso se objeta que a única leveza inata é a de se mover para o alto,
enquanto um projétil pode ser atirado em qualquer direção, para o alto, para baixo
ou para qualquer lado.
Além disso, ou essa leveza é a mesma que o ar possuía antes que o móvel
fosse lançado e que permanece nele depois, ou ela é uma outra coisa, a saber, uma
disposição diferente impressa no ar movido pelo lançador, disposição essa que o
Comentador desejou chamar de leveza. Se essa leveza é a mesma que existia
antes e que permanece depois, então o ar deveria ter, antes do momento em que o
móvel foi lançado, aquele poder motriz, como no momento do lançamento. Assim,
deveria mover antes como move depois, porque, na natureza, todo poder ativo deve
agir e realmente age. Se, pelo contrário, essa leveza é alguma outra coisa, se é uma
disposição nova, própria para mover o ar, que lhe é impressa por aquele que lança o
projétil, então nós podemos e devemos dizer da mesma forma que algo semelhante
é impresso na pedra ou no móvel projetado, que é a virtude motriz desse projétil; e
isso parece melhor do que recorrer ao ar que moveria o projétil; pois, de fato, ele
mais parece resistir.
Portanto, parece-me que se deve dizer que quando o motor move um corpo ele
lhe imprime certo ímpeto [impetus] ou certa força motora [vis motiva] na mesma
direção em que o movente o move, seja para cima ou para baixo, ou lateralmente,
ou circularmente9; e quanto mais velozmente o movente move esse móvel, tanto
mais forte será o ímpeto que ele lhe imprimirá10. É por esse ímpeto que a pedra é
movida depois que o atirador cessou de se mover. Mas esse ímpeto diminui
continuamente pela resistência do ar e pelo peso da pedra, que a inclina para uma
direção contrária àquela para a qual o ímpeto tem o poder de movê-la. Assim, o
9
Deve-se interpretar o pensamento de Buridan, neste ponto, como introduzindo um tipo de ímpeto de
rotação para corpos rígidos, como a roda e o pião, que ele mencionou anteriormente. Não confundir
com a ideia de inércia circular de Galileo, nem com a ideia de que um corpo que está descrevendo
uma trajetória circular tende a permanecer em movimento circular.
10
Ou seja, o ímpeto é proporcional à velocidade do corpo.

11
movimento da pedra se torna continuamente mais lento; finalmente, esse ímpeto fica
tão diminuído ou corrompido que a gravidade da pedra o vence e move a pedra para
baixo, para seu lugar natural.
Parece-me que esse método [hipótese] deve ser mantido, pois os outros
métodos não parecem verdadeiros e também porque todas as aparências estão em
harmonia com esse método.
Pois se alguém pergunta por que eu lanço uma pedra mais longe do que uma
pluma, ou ferro e chumbo do tamanho de minha mão mais longe do que igual
quantidade de madeira, digo que a causa disso é que a recepção de todas as
formas e disposições naturais ocorre na matéria e pela matéria; portanto, quanto
mais matéria houver, mais esse corpo pode receber de seu ímpeto, e mais intenso11.
Ora, em um corpo denso e pesado, se tudo o mais for igual, há mais matéria
primordial do que em um rarefeito e leve; portanto, um corpo denso e pesado recebe
mais desse ímpeto, e mais intensamente, assim como o ferro pode receber mais
calor do que madeira ou água de mesma quantidade. Além disso, uma pluma recebe
um ímpeto tão fraco, que tal ímpeto é imediatamente destruído pela resistência do
ar; e assim também, se madeira leve e ferro pesado de mesmo tamanho e forma
forem movidos com igual velocidade pelo atirador, o ferro se moverá até uma
distância maior, pois nele foi impresso um ímpeto mais intenso e ele não se
corrompe tão depressa quanto o menor ímpeto se corrompe. Essa é também a
razão pela qual é mais difícil colocar em repouso uma grande roda que está se
movendo rapidamente do que uma pequena, a saber, porque na maior, se tudo o
mais for igual, há mais ímpeto. E por essa razão você pode atirar uma pedra com
peso de uma libra ou meia libra mais longe do que pode atirar um milésimo dela.
Pois o ímpeto nessa milésima parte é tão pequeno que é imediatamente vencido
pelo ar resistente.
Através disso se vê também a causa pela qual o movimento natural para baixo
de um corpo pesado se torna continuamente mais veloz; pois no princípio só a
gravidade o move, por isso ele se move devagar; mas, ao movê-lo [a gravidade]
imprime nesse corpo pesado um ímpeto; esse ímpeto agora, junto com sua
gravidade, torna seu movimento mais veloz; e quanto mais rápido, mais intenso se

11
Ou seja: o ímpeto é proporcional à quantidade de matéria do objeto lançado. Newton foi o primeiro
a chamar de “massa” essa grandeza, que ele próprio descreveu como uma medida da quantidade de
matéria do corpo. Atualmente, definimos “massa” de outra forma.

12
torna o ímpeto, portanto, é evidente que o movimento se torna continuamente mais
rápido.
Aquele que deseja saltar para longe, retrocede e corre velozmente, para
adquirir com essa corrida um ímpeto que, durante o salto, o transporta a uma grande
distância; durante a corrida e o salto, ele não sente que o ar o move, mas sente o ar
diante dele, resistindo com força.
Além disso, como não aparece na Bíblia que existam inteligências apropriadas
movendo os corpos celestes12, pode-se dizer que não parece necessário supor
inteligências desse tipo, pois seria dito que Deus, ao criar o mundo, moveu cada um
dos orbes celestes como desejava e, ao movê-los, ele lhes imprimiu ímpetos que os
moveram sem que fosse necessário que ele os movesse mais, exceto pelo método
de influência geral pelo qual ele atua como coagente em todas as coisas que
acontecem. “Pois assim, no sétimo dia, Ele descansou de todo trabalho que havia
executado e deixou a outros as ações e as paixões”. Esses ímpetos impressos nos
corpos celestes não diminuíram nem se corromperam depois, porque os corpos
celestes não tinham tendência a outro movimento, nem havia resistência que
pudesse corromper ou reprimir esse ímpeto. Mas isso eu não digo afirmativamente,
mas de tal modo que eu possa receber dos senhores teólogos aquilo que eles
possam me ensinar sobre essas coisas, sobre como tudo isso pode ter sido feito.
Mas, com relação a essa opinião existem dificuldades que não são pequenas.
A primeira dificuldade é que, conforme foi dito, a pedra lançada para cima é movida
por um princípio intrínseco, a saber, pelo ímpeto que lhe foi impresso; e não parece
que isso seja verdadeiro, pois todos concordam que esse movimento é violento; ora,
pelo terceiro [livro] da Ética, o que é violento não provém de um princípio ativo
intrínseco, mas de um extrínseco. A segunda dificuldade é: o que é esse ímpeto?
Será ele o próprio movimento, ou uma outra coisa? Se for outra coisa, será uma
coisa puramente sucessiva, como o movimento, ou uma coisa de natureza
permanente? De fato, qualquer que seja a afirmação que se adote, vê-se que
aparecem argumentos difíceis em sentido contrário.

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Diversos pensadores medievais afirmavam que os corpos celestes eram movidos por anjos.
Buridan discorda dessa opinião, mas toma todo cuidado para não se posicionar contra os teólogos.
Notemos que Buridan utilizou a teoria do ímpeto tanto para corpos terrestres quanto para o
movimento dos céus. Leopoldo López defende a ideia de que, através deste trabalho, Buridan
proporcionou a primeira unificação entre a dinâmica terrestre e a celeste (López, 2009).

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Quanto à primeira dificuldade, pode-se dizer que o peso que é lançado para
cima se move por um princípio intrínseco que lhe é inerente; no entanto, diz-se que
esse movimento é violento, pois esse princípio, ou seja, o ímpeto, lhe é violento e
não natural; pois não está de acordo com a sua natureza formal; é um princípio
extrínseco que foi impresso pela violência; a natureza do corpo pesado o inclina ao
movimento oposto e à destruição desse ímpeto.
Quanto à segunda dúvida, que é muito difícil de dissipar, me parece que se
deve respondê-la colocando três conclusões.
A primeira [conclusão] é que esse ímpeto não é o próprio movimento local com
o qual o projétil se move, porque esse ímpeto move o projétil e o movente produz o
movimento; portanto, esse ímpeto produz aquele movimento e uma mesma coisa
não produz a si mesma. Portanto, etc. [sic].
Além disso, como cada movimento provém de um motor que está presente e
que existe simultaneamente com o móvel, se o ímpeto fosse o movimento, seria
necessário atribuir outro motor do qual surgisse aquele movimento e assim se
retornaria à dificuldade principal. Portanto, não serviria para nada supor um ímpeto
assim. Outros sofismam alegando que a parte inicial do movimento, que produz o
lançamento, produz outra parte do movimento que vem logo depois da primeira, e
essa uma outra, e assim por diante, até a cessação total do movimento. Mas isso
não é provável, pois o que produz alguma coisa deve existir quando aquela coisa é
feita; mas a parte anterior do movimento não existe quando a parte posterior existe,
como foi afirmado em outro lugar; portanto, nem a parte anterior existe quando a
posterior é feita. Essa consequência é evidente, pois em outro lugar foi dito que o
movimento nada mais é do que aquilo que é produzido e que é corrompido.
Portanto, o movimento não existe quando ele é produzido, mas quando ele já foi
produzido.
A segunda conclusão é que esse ímpeto não é uma coisa puramente
sucessiva, pois o movimento é uma coisa desse tipo e a definição de movimento é
adequada para ele, como foi afirmado em outro lugar. E agora acabou de ser dito
que o ímpeto não é o movimento local.
Além disso, como uma coisa puramente sucessiva é continuamente corrompida
e produzida, ela exige continuamente um produtor. Mas não há nada que possa ser
assinalado como produtor desse ímpeto que seja simultâneo com ele.

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A terceira conclusão é que esse ímpeto é uma coisa de natureza permanente
[res naturae permanentis], distinta do movimento local com o qual o projétil se
move13. Isso é evidente das duas [conclusões] mencionadas acima e do que
precede. É provável que esse ímpeto seja uma qualidade inata para mover o corpo
no qual está impresso, assim como se diz que a qualidade impressa no ferro por um
ímã move o ferro para o ímã. Também é provável que, assim como aquela qualidade
do móvel [o ímpeto] foi impressa pelo motor com o movimento; então, juntamente
com o movimento, ela é diminuída, corrompida ou impedida pela resistência ou por
uma inclinação contrária.
Assim como um corpo luminoso que gera luz produz luz refletida por causa de
um obstáculo, assim também o ímpeto, por causa de um obstáculo, produz um
movimento refletido. É verdade, no entanto, que outras causas contribuem junto com
o ímpeto para uma reflexão maior ou mais longa. Por exemplo, a bola que usamos
para jogar com as mãos, ao cair na terra, é refletida mais alto do que uma pedra,
embora a pedra caia mais rapidamente e com mais impetuosidade para a terra. Isso
é porque muitas coisas podem ser encurvadas ou comprimidas pela violência e elas
estão dispostas de forma inata a retornar rapidamente e por si próprias à sua
posição reta, ou à disposição que lhes é conveniente. Nesse retorno, elas podem
empurrar fortemente ou puxar algo junto com elas, como é evidente no caso do arco.
Desse modo, a bola atirada no chão duro se comprime pelo ímpeto de seu
movimento; e imediatamente depois de bater, ela retorna rapidamente à sua forma
esférica e se eleva para cima; nessa elevação ela adquire um ímpeto que a move
para cima até uma longa distância.
Também ocorre assim com uma corda de cítara que, colocada sob forte tensão
e sendo percutida, continua um longo tempo com aquela vibração pela qual o seu
som continua durante um tempo notável. E isso ocorre assim: pela batida ela se
curva rapidamente e violentamente para um lado e retorna rapidamente para sua
posição reta; porém, por causa do ímpeto, ela ultrapassa a posição reta para o lado
oposto e depois retorna novamente, e ela faz isso muitas vezes. Por uma razão
semelhante, um sino, depois que o tocador parou de puxar [a corda], se move um

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Este comentário parece indicar que Buridan pensava sobre o ímpeto como algo que se conserva, a
menos que algo se opusesse ao movimento do projétil e o enfraquecesse.

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longo tempo para um lado, depois para o outro, e não pode ser colocado em
repouso facilmente e rapidamente.
Esta, então, é a exposição dessa questão. Eu ficaria contente se alguém
inventasse um modo mais provável de respondê-la. E este é o fim.

Considerações finais
A teoria do ímpeto de Jean Buridan não é idêntica à nossa compreensão atual
da inércia dos corpos. Buridan estava procurando encontrar uma causa para o
movimento dos projéteis e considerou que ela seria algo transmitido ao projétil e que
permanecia nele, a menos que surgissem obstáculos; a lei da inércia não
proporciona uma causa, apenas descreve os fenômenos. No entanto, devemos
admitir que o próprio Newton ainda pensava em termos de uma causa para o
movimento inercial, e falava sobre “vis inertiae”, ou seja, força da inércia (Martins,
2013).
O conceito de ímpeto tem semelhança com o momentum ou quantidade de
movimento definido pela primeira vez por René Descartes, já que é proporcional à
velocidade e à quantidade de matéria. No entanto, no caso de Descartes, essa
grandeza era apenas uma medida do movimento e não sua explicação. Por
exemplo, quando Descartes se pergunta “Por que os corpos empurrados pela mão
continuam a se mover depois que eles a deixaram”, em vez de responder que a
causa da continuação do movimento é a quantidade de movimento, ele explica: “Não
há outra razão pela qual eles continuam a se mover quando estão fora da mão
daquele que os empurrou senão que, seguindo as leis da natureza, todos os corpos
que se movem continuam a se mover até que seu movimento seja interrompido por
quaisquer outros corpos” (Descartes, 1651, p. 96).
τ texto de Buridan menciona muitas “experiências”. Grande parte delas se
referem simplesmente a fatos bem conhecidos na época. Algumas podem ser
consideradas como experimentos de pensamento; há dúvidas sobre se ele
realmente realizou algum deles. Isso não quer dizer que não houvesse
experimentação na Idade Média. Petrus Peregrinus, por exemplo, fez uso de
experimentos em seus estudos a respeito do magnetismo (Martins, 2017).
O estudo da teoria de Buridan pode ser utilizado no contexto didático para
transmitir muitas mensagens importantes a respeito da natureza da ciência. Em

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primeiro lugar, permite mostrar que não houve um salto descontínuo da física
aristotélica para a mecânica newtoniana, tendo havido diversos passos
intermediários ao longo dos séculos – a teoria do ímpeto é apenas um deles. Em
segundo lugar, pode ser utilizado para enfatizar que a Idade Média não foi um vácuo
científico, mas que naquela época existiram pensadores importantes e originais que
deram contribuições relevantes para o avanço da física. Em terceiro lugar, ilustra a
importância do pensamento crítico, que é realmente a principal característica desse
trabalho de Buridan. Em quarto lugar, mostra que não é necessário aguardar o
surgimento de novos experimentos e instrumentos de medida para criticar e derrubar
uma teoria antiga – às vezes, já existem fatos bem conhecidos que podem refutar
uma teoria, mas as pessoas não percebem que eles podem ser utilizados para isso.
O leitor poderá pensar sobre outras mensagens que podem ser transmitidas aos
alunos, a partir desse episódio histórico.

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