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Filosófica

Índice
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Prefácio

1 | Antropologia Filosófica ou Filosofia do Homem

1. Reflexão Filosófica sobre a Pessoa Humana

2. O Método da Antropologia Filosófica

3. A antropologia filosófica em relação a outros campos da filosofia e da teologia

Resumo do Capítulo 1

2 | A Vida e os Graus da Vida

1. A noção de vida

2. A Vida como Imanência e Transcendência

2.1. Imanência

2.2. Transcendência

3. Características Gerais dos Seres Vivos

3.1. Características constituintes ou estruturais

3.1.1. Unidade

3.1.2. Organicidade

3.2. Características dinâmicas ou operacionais

3.2.1. Automovimento

3.2.2. Adaptação

4. Graus de Vida e Operações de Vida

4.1. Vida Vegetativa

4.2. Vida Sensível

4.3. Vida Intelectiva


4.4. Conclusão: os graus da vida são caracterizados pela “cumulatividade”, dependendo das
operações da vida

Resumo do Capítulo 2

3 | A Alma ou o Princípio Vital

1. Premissa: Forma e Matéria, Substância e Acidentes

2. A Alma como Forma Substancial dos Seres Vivos: Duas Definições de Alma

2.1. O ponto de vista estrutural ou constituinte: a alma como forma do corpo

2.2. O ponto de vista dinâmico ou funcional: a alma como primeiro princípio de operações

3. Características da Alma

4. A Perspectiva Global

Resumo do Capítulo 3

4 | O Corpo Vivo

1. Matéria Inerte e Corpo Vivo

2. O Corpo como Sistema: A Ideia de Organismo

2.1. O Corpo Animado no Nível Estrutural: “Organicidade”

2.2. O Corpo Animado no Nível Dinâmico: “Intencionalidade”

3. A noção de órgão: anatomia e fisiologia

4. A relação causal entre alma e corpo

5. O Corpo e a Corporeidade

6. Origens e Evolucionismo

7. Cosmogênese, Biogênese e Antropogênese

Resumo do Capítulo 4

5 | As Faculdades, ou Princípios Operativos: Ato e Operação

1. Ato e Potência, Operação e Faculdade

2. Faculdade do Indivíduo ou Faculdade da Alma?


2.1. Ponto de Vista Estrutural: As Faculdades como Propriedades Acidentais da Alma

2.2. Ponto de Vista Dinâmico: As Faculdades e a Atividade do Indivíduo

3. Tipologia e Interação das Faculdades Humanas

3.1. Distinções entre as faculdades

3.2. A interação das faculdades do homem

Resumo do Capítulo 5

6 | Conhecimento Humano: Os Sentidos Externos

1. Vida Cognitiva

1.1. Ser e Saber

1.2. Ação Transitiva e Ação Imanente

1.2.1. Ações Transitivas

1.2.2. Ações Imanentes

1.3. Atividade Cognitiva

2. Sentir Conhecimento

2.1. Faculdades dos sentidos e conhecimento intelectual

2.2. Os órgãos e faculdades dos sentidos

3. Sentidos Externos

3.1. Tocar

3.2. Gosto

3.3. Cheiro

3.4. Audição

3.5. Visão

4. Sensíveis adequados, comuns e por acidentes

Resumo do Capítulo 6

7 | Conhecimento Humano: Experiência Sensível Interna


1. Sentidos Externos e Sentidos Internos

2. O bom senso

3. Imaginação

4. Poder Cogitativo

5. Memória

Resumo do Capítulo 7

8 | Conhecimento Humano: O Intelecto

1. Conhecimento Intelectual

2. O que sabemos com o intelecto e como o conhecemos

3. Autoconsciência ou Autoconhecimento

4. Inteligência e Fala

5. O problema mente-corpo

Resumo do Capítulo 8

9 | Dinamismo Tendencial e Liberdade

1. Tendências e Instintos

2. A plasticidade das tendências humanas

3. A Vontade, ou Tendência Espiritual

4. A Voluntariedade das Ações e da Liberdade

5. Conceitos Determinísticos

5.1. O Determinismo de Certas Teorias Científicas

5.2. Sociologismo e Psicologismo

Resumo do Capítulo 9

10 | Dinamismo Afetivo

1. Reflexões Filosóficas sobre Afetividade

2. Esclarecimento Terminológico
3. Tendências e Afetos

4. Sensações, sentimentos e humores

5. O Dinamismo dos Sentimentos

5.1. Os afetos como ações sensoriais imanentes

5.2. O valor cognitivo dos sentimentos

6. Tipologia dos Afetos

7. Afetividade e Liberdade

7.1. Os sentimentos e a responsabilidade moral

7.2. A Educação da Afetividade

Resumo do Capítulo 10

11 | Sexualidade

1. Corporeidade e Sexualidade

2. Relações entre homem e mulher

3. Integrando o impulso sexual na ideia de amor como dádiva

4. Sexualidade e amadurecimento da pessoa

Resumo do Capítulo 11

12 | Espiritualidade, Morte e Imortalidade

1. Monismo, Dualismo e Dualidade

2. O problema existencial ou filosófico da morte

3. Mais sobre a relação alma-corpo

4. Imaterialidade e Imortalidade

5. Na origem da pessoa

Resumo do Capítulo 12

13 | Quem é a pessoa?

1. A Centralidade da Pessoa
2. Perspectiva Fenomenológica e Perspectiva Metafísica

3. Análise Metafísica da Noção de Pessoa

3.1. Inalienabilidade

3.1.1. Irrepetibilidade

3.1.2. As consequências da inalienabilidade

3.2. Completude

3.3. Intencionalidade e Relacionalidade

3.4. Autonomia

4. Explicação histórica de como se desenvolveu a noção metafísica de pessoa

4.1. A noção grega e latina de pessoa antes do cristianismo

4.2. A Contribuição do Cristianismo

4.2.1. A Filosofia dos Padres até Santo Agostinho

4.2.2. Definição de Boécio

4.2.3. São João Damasceno e São Boaventura

4.2.4. A Filosofia de São Tomás de Aquino

4.3. O papel do personalismo

Resumo do Capítulo 13

14 | Liberdade e Auto-realização

1. A tarefa da autorrealização

2. Existência Autêntica

3. Coerência e Fidelidade

4. Pessoas e Indivíduos

5. A Experiência da Liberdade

6. A Experiência do Mal

7. O “xeque-mate” da dor
8. Autorealização e Autotranscendência

8.1. Dinamismo e Tensão

8.2. Interioridade e Exterioridade

8.3. Autodistanciamento, amor e doação de si

8.4. Autotranscendência da Pessoa e Transcendência

Resumo do Capítulo 14

15 | A Relacionalidade da Pessoa

1. Originariedade da Relacionalidade

2. O homem é social por natureza

3. Tendências Socializadoras e Virtudes Sociais

3.1. Relações com as Origens, Tradição e Autoridade

3.2. Relações de Reciprocidade e Amizade

3.3. As raízes da sociedade

4. Autorealização Pessoal e Sociedade

5. Concepções Individualistas e Concepções Coletivistas

5.1. Autossuficiência e Individualismo

5.2. Formas de Coletivismo

Resumo do Capítulo 15

16 | Cultura

1. O Significado da Palavra “Cultura”

1.1. Cultivo, Formação e Culto

1.2. Cultura e Existência Humana

2. Três Elementos Fundamentais da Cultura

2.1. Língua e tradições culturais

2.2. Uso e personalizado


2.3. Valores na Cultura

3. Cultura e Sociedade

3.1.A Interacção entre Cultura Pessoal e Cultura Social

3.2. A “Teoria dos Três Mundos” de KR Popper e JC Eccles

Resumo do Capítulo 16

17 | Valores

1. Existência Pessoal Orientada para Valores

1.1. A Hierarquia e Experiência de Valores

1.2. A Transmissão e Reconhecimento de Valores

1.3 Estabilidade de Valores e Auto-realização Pessoal

1.4 A Contribuição da Axiologia de Max Scheler

2. Análise Metafísica de Valor

2.1. Valor e Ser

2.2. Valor, beleza e verdade

Resumo do Capítulo 17

18 | Trabalhar, festejar, brincar

1. A Obra do Homem no Mundo

2. A noção de trabalho

3. Significados subjetivos e objetivos do trabalho

4. Significado Relacional e Significado Ecológico do Trabalho

5. Tecnologia e Relação com a Natureza

6. Festa

7. Jogue

Resumo do Capítulo 18

19 | Tempo e História
1. História e Liberdade

2. Natureza Cíclica e Linear da História

3. Temporalidade Biográfica

3.1. Passado, presente e futuro

3.2. A pressa, a preocupação e o projeto de vida

3.3. A Esperança e o Desejo de Eternidade

Resumo do Capítulo 19

Bibliografia

Notas finais
Antropologia Filosófica :
Uma introdução
Fórum Teológico Centro-Oeste
Downers Grove, Illinois

Fórum Teológico Centro-Oeste


Rua Transversal 4340, Suíte 1 • Downers Grove, Illinois 60515 EUA

Telefone: (630) 541-8519 • Fax: (331) 777-5819

mail@mwtf.org • www.theologicalforum.org

Antropologia Filosófica, Uma Introdução

Título Original: Antropologia Filosofica, Una introdução

Segunda Edição Revisada e Corrigida

Copyright © 2007 – Edusc srl

Via Sant'Agostino, 7/A – 00186 Roma

Direitos autorais desta edição em inglês © 2014, 2015, Rev. James Socias

Digital Edition, 2017

ISBN 978-1-939231-87-1

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida, armazenada em sistemas de recuperação ou transmitida, de qualquer forma ou por qualquer meio, eletrônico, mecânico, fotocópia ou

outro, sem a permissão prévia por escrito do proprietário dos direitos autorais.

Autores: José Angel Lombo e Francesco Russo

Tradutor: Piers Amodia

Editor: Rev.

Editor-chefe: Jeffrey Cole

Design e Produção: Stephen J. Chojnicki

RECONHECIMENTOS

O editor gostaria de agradecer à EDUSC pela permissão para traduzir Antroplogia Filosofica, Una introduçãoione , Seconda edizione riveduta e corretta (Roma, 2007). Ele também agradece a todos que colaboraram na

edição deste livro.

Isenção de responsabilidade: o editor deste livro tentou dar o devido crédito a todas as fontes usadas no texto. Qualquer erro de crédito ou falta de crédito não é intencional e será corrigido na próxima edição.
Prefácio

Mihi quaestio factus sum. Se há um assunto que deveríamos conhecer bem, esse
assunto é a pessoa humana, porque é o que somos e o que são aqueles com quem estamos
em contacto contínuo. Por que, então, é importante refletir sobre esse assunto?
Precisamente porque diz respeito diretamente a nós e às nossas próprias vidas. Assim,
como escreveu Platão, um filósofo, mesmo ao custo de se tornar objeto de escárnio, nunca
deixa de “explicar” a sua existência. “O que é um ser humano e o que é próprio de tal
natureza fazer ou suportar diferente de qualquer outra, isso ele indaga e se esforça para
descobrir.”

Nem sempre é fácil entrar neste campo porque podemos encontrar formas muito
diferentes de lidar com a questão; na verdade, acreditamos ser possível concordar, pelo
menos até certo ponto, com a seguinte afirmação de Heidegger:

Nenhuma outra época teve tantas e variadas concepções sobre o homem como a atual. Nunca antes como hoje o
conhecimento sobre o homem foi apresentado de forma tão insistente e fascinante. No entanto, também é verdade que
nenhuma época soube menos do que a nossa sobre o que é o homem. Nunca o homem assumiu um aspecto tão
problemático como no nosso tempo.

Que esta observação não é injustificada é demonstrado pelo facto de, especialmente
durante as décadas de 1950 e 1960, ter havido uma tendência recorrente para falar sobre o
“problema do homem”, como pode ser visto nos títulos de obras de, entre outros, M. Buber
e por G. Marcel, que utilizou essa expressão literal.

Conscientes desta dificuldade, o objetivo do livro que aqui apresentamos (no qual,
em relação às edições anteriores, foram introduzidas diversas modificações e correções) é
orientar o leitor na reflexão sobre a pessoa humana. Não pretende ser um tratado de
antropologia filosófica em sentido estrito, mas uma introdução ao estudo desse assunto -
uma introdução que procura oferecer os elementos fundamentais para tal estudo, mas sem
se aprofundar exaustivamente nos detalhes de cada assunto e sem se deter sobre questões
mais especializadas ou sobre todos os debates em curso.
Para cumprir o nosso propósito, optamos por adotar um estilo conciso e dividir o
trabalho em capítulos relativamente curtos. Esta última característica traz inevitavelmente
o risco de uma aparente fragmentação, mas deve tornar o trabalho mais fácil de ler e
consultar. O livro está dividido em duas partes distintas e separadas: a primeira (intitulada
“A Pessoa Humana: Um Ser Vivo Corporal-Espiritual”) utiliza um método analítico para
refletir sobre a pessoa humana como um ser vivo no mundo, possuindo seus próprios
fundamentos fundamentais. propriedades; a segunda (intitulada “Autorealização Pessoal:
Entre Relacionalidade e Historicidade”) adota uma perspectiva sintética e dinâmica para
demonstrar a particularidade da existência humana caracterizada pela liberdade.

A antropologia filosófica não pode deixar de ser antropologia metafísica no sentido


aristotélico, em outras palavras, uma reflexão filosófica que se estende às causas e
princípios últimos e radicais da realidade humana. Por esta razão, o livro, e a primeira
metade em particular, baseia-se no pensamento clássico, especialmente no pensamento
aristotélico-tomista, para analisar o homem em termos metafísicos. Após uma breve
explicação do papel da antropologia filosófica (Capítulo 1), começamos explicando a noção
de vida e os vários níveis de vida antes de examinarmos o princípio vital, ou seja, a alma
(Capítulos 2 e 3), que permeia o corpo do ser vivo e faz dele um organismo (Capítulo 4). A
atividade do ser vivo é realizada por meio de faculdades operacionais, ou princípios
(Capítulo 5), que permitem o desempenho de funções vegetativas e sensoriais, tanto
externas quanto internas (Capítulos 6 e 7). Na pessoa humana, a atividade cognitiva revela
o seu mais alto grau de imanência no conhecimento intelectivo (Capítulo 8), cujo papel nos
ajuda a compreender a particularidade do dinamismo dos seres humanos e especialmente
a natureza da sua liberdade (Capítulo 9). Depois de refletir sobre a afetividade e a
sexualidade (capítulos 10 e 11), a primeira parte termina com o capítulo 12, dedicado à
espiritualidade e à imortalidade da pessoa.

O capítulo 13, sobre a noção de pessoa humana, serve de base para toda a segunda
parte do livro. É a compreensão da identidade pessoal, ontológica e existencial, que nos
permite compreender porque é que o ser humano é chamado a realizar-se de uma forma
conforme à dignidade da pessoa (Capítulo 14). Esta autorrealização surge
constitutivamente nas relações com os outros (Capítulo 15) e no interior de uma cultura
(Capítulo 16), que é veículo dos valores aos quais se refere o comportamento de um
indivíduo (Capítulo 17). A auto-realização como indivíduos relacionais exige o nosso
envolvimento no trabalho, cuja ideia é melhor compreendida com referência à celebração e
à diversão (Capítulo 18), mas é acima de tudo evidente que os seres humanos alcançam a
auto-realização no tempo e na história, projectando-se para o futuro e para a eternidade
(Capítulo 19).

Ao concluir esta breve apresentação, vêm à mente as palavras de Santo Agostinho:


“O que cada homem é hoje, o próprio homem tem dificuldade em saber. No entanto, até
certo ponto, ele sabe o que é hoje, mas não sabe o que será amanhã.” Isto realça, entre
outras coisas, a importância de unir a reflexão teórica à realidade concreta através de um
esforço constante de aplicação e verificação. O nosso dever de compreender é interminável,
e isto é particularmente verdadeiro para a autocompreensão, porque a pessoa humana não
é um objeto estático e só pode compreender-se com referência àquilo que a ultrapassa e a
transcende. Como diz Platão, apenas em comparação com aquilo que é “total e
perfeitamente justo . . . a verdadeira inteligência de um homem é encontrada, e também sua
inutilidade e covardia.”

Capítulo 1

Antropologia Filosófica
ou Filosofia do Homem

1. Reflexão Filosófica sobre a Pessoa Humana


Muitas áreas do conhecimento dizem respeito à pessoa humana ou identificam
como objetivo a elaboração de uma antropologia , ou seja, em termos etimológicos, um
discurso ou um tratado sobre o homem. Mas em cada uma destas áreas é utilizada uma
abordagem “sectorial”, na qual um ou outro aspecto da existência humana é examinado, e
por isso o substantivo “antropologia” é acompanhado por um adjectivo que circunscreve o
âmbito da investigação.

Assim, embora a terminologia utilizada nem sempre seja a mesma, temos a


antropologia cultural , que estuda os usos e costumes das sociedades humanas à medida
que se estruturam ao longo do tempo como expressões de relações específicas com os
outros e com o meio ambiente, e a antropologia psicológica , que estuda o comportamento
humano do ponto de vista da dinâmica mental para compreender como se constitui a
identidade psicológica e como surgem os transtornos e perturbações de personalidade.
Para citar outro exemplo, a antropologia social analisa a dinâmica das relações entre os
indivíduos para destacar os elementos comuns às diversas formas de sociedade.
Finalmente, há a antropologia etnológica , que estuda grupos humanos, descrevendo e
comparando seus traços comuns em associação com as condições geográficas, históricas e
climáticas em que vivem.

Como se pode ver, cada uma destas disciplinas científicas preocupa-se apenas com
um único aspecto, por mais importante que seja, da pessoa humana; mas cada um não
pode, por si só, compreender o homem em toda a sua riqueza e complexidade. O que são, na
verdade, são análises científico-experimentais (isto é, baseadas na observação, na
verificação empírica), que não podem dar conta da pessoa em si; isto é, visto globalmente e
não de um ponto de vista particular.

Já a antropologia filosófica reflete sobre o homem para compreendê-lo em sua


totalidade, apreendendo os princípios fundamentais de sua existência no mundo e de seu
comportamento. Portanto, pode-se dizer que, enquanto a ciência investiga como o indivíduo
humano se manifesta em relação ao seu ambiente e aos seus semelhantes, a filosofia se
pergunta sobre o porquê dos seres humanos, sobre os princípios últimos de sua existência
e atividade. A diferença entre as abordagens científica e filosófica da pessoa humana
também pode ser expressa dizendo que a filosofia procura responder à questão: Quem é a
pessoa humana? enquanto as referidas disciplinas científicas se preocupam mais com:
Como ele age? Como ele evolui? e, como ele interage com os outros? Isto não significa que os
dois sectores não possam comunicar entre si; muito pelo contrário: a filosofia deve levar
em conta os resultados da ciência, pois muitas vezes estimularão o aprofundamento do
estudo ou a reformulação de certas teses, e os cientistas, na sua autonomia metodológica,
devem procurar não perder de vista esta área do conhecimento, que constitui a fonte do
significado .

A expressão “ antropologia filosófica ” é relativamente recente na filosofia. Embora


tenha raízes remotas em I. Kant, o termo consolidou-se no século XX graças
particularmente aos trabalhos de M. Scheler, H. Plessner e A. Gehlen. E embora estes
autores dêem à disciplina uma conotação precisa (a de reflectir sobre o homem sobretudo
a partir de dados biológicos e da comparação com os animais), este livro pretende
apresentar uma antropologia filosófica para além dessa limitação temática, reflectindo
sobre a pessoa humana em o sentido mais geral indicado acima.

2. O Método da Antropologia Filosófica

Devemos agora considerar que metodologia adoptar nas nossas reflexões filosóficas
sobre a pessoa humana. O método analítico por si só, com o qual se examinam os
fenómenos individuais ou cada aspecto da pessoa, é inadequado, pois se de facto, por um
lado, teria a vantagem de produzir resultados e definições precisos, por outro
alcançaríamos o efeito de desmantelar o indivíduo num aglomerado difícil de remontar
num todo unitário. No entanto, o método sintético por si só, que estuda o indivíduo como
uma totalidade já existente, também é inadequado, pois se, por um lado, permitiria obter
alguma compreensão do todo, por outro, ignoraria a particularidade dos vários dimensões
humanas e negligenciam o dinamismo do indivíduo, ou seja, o facto de ele ser um ser
aberto e não fechado ou estático.

Devemos, então, adoptar uma abordagem diferente, que pode ser definida como
sistémica , o que significa que abordamos a pessoa humana como um “sistema”, cujos
elementos estão em estreita coordenação entre si. Esses elementos são compreendidos
com referência ao todo, e o todo requer a interação dos elementos individuais. Assim, por
exemplo, a fala humana não pode ser totalmente compreendida se for considerada apenas
como uma faculdade isolada, mas pode ser compreendida com referência à existência de
um indivíduo racional, relacional e cultural; ao mesmo tempo, a comunicação linguística
(que pode ser não verbal) é fundamental para o desenvolvimento de todo o indivíduo.

Para seguir esta abordagem sistémica no estudo filosófico da pessoa humana,


juntam-se duas vertentes: uma vertente analítico-indutiva , que procura voltar dos
fenómenos observáveis aos princípios, e uma vertente sintético-dedutiva , que procura
aplica os princípios aos fenômenos e reúne as informações deles emergentes. Como se verá,
nos capítulos seguintes procuraremos levar em consideração ambos os aspectos sem, no
entanto, esquecer uma peculiaridade importante desta disciplina filosófica particular:
vejamos o que é.

A antropologia filosófica reflete sobre a pessoa humana, mas os seres humanos não
são objetos de estudo da mesma forma que, digamos, um fragmento de bauxita, um
rododendro ou um besouro. Em primeiro lugar, como também acontece com os objetos que
acabamos de mencionar, existe um certo grau de pré-compreensão ; em outras palavras, do
conhecimento prévio do que são e do que é o homem. Eles não são totalmente
desconhecidos e não é possível negligenciar completamente o que já sabemos; no máximo
podemos retificar nossa opinião se descobrirmos que ela está incorreta. Mas a diferença
reside principalmente no facto de a reflexão sobre o ser humano estar ligada à
autocompreensão , ou seja, ao conhecimento que tenho de mim mesmo como ser humano e
à comparação com os meus semelhantes. Esta experiência primordial e fundamental não
pode ser eliminada; na verdade, em mais de uma ocasião servirá como um sólido ponto de
partida para a análise filosófica.

3. A antropologia filosófica em relação a outros campos da filosofia e da teologia

Mencionamos a relação entre a antropologia filosófica e outras áreas do


conhecimento sobre o homem, mas devemos dizer também algo sobre a sua relação com
outras áreas da filosofia. As duas disciplinas com as quais sua ligação é mais evidente são a
ética e a metafísica. A antropologia atua como base para a primeira, enquanto a última atua
como base para a antropologia.

Toda ética pressupõe alguma forma de antropologia filosófica, uma concepção


precisa do ser humano. Em primeiro lugar, porque falar de ética significa afirmar que o
homem é livre; caso contrário, não faria sentido preocupar-se com deveres, normas,
responsabilidades e assim por diante. Em segundo lugar, porque qualquer que seja a
orientação da ética filosófica, ela acentua um aspecto particular da pessoa humana; por
exemplo, a ética da virtude sustenta que o indivíduo está orientado para uma vida feliz no
sentido de uma vida que esteja plenamente em conformidade com o bem do homem,
enquanto a ética hedonista sustenta que a moralidade consiste na busca do prazer e,
portanto, enfatiza o afetivo e esfera sensorial da vida humana.

A relação da antropologia filosófica com a metafísica já está implícita no que


explicamos acima. Quando refletimos profundamente sobre o homem, procuramos
compreender o seu ser como o fundamento radical das expressões humanas. Visto que a
metafísica é a parte da filosofia que se preocupa com os princípios últimos da realidade,
segue-se que a antropologia filosófica não pode deixar de ser antropologia metafísica
(implicitamente, se não explicitamente), porque terá de utilizar conceitos metafísicos como
poder, ação, matéria, natureza. e pessoa. Por exemplo, para não se limitar a apenas
descrever o livre arbítrio, o filósofo deve perguntar-se sobre a base da liberdade, sobre a
sua relação com a verdade e os valores, sobre o problema da relação entre a liberdade e a
natureza humana, e assim por diante. Embora as referências historiográficas nos próximos
capítulos sejam bastante limitadas, pode-se dizer que, para muitos filósofos modernos e
contemporâneos que dedicam um estudo sério à pessoa humana, o vínculo entre
antropologia e metafísica está implicitamente presente, apesar de certas observações
críticas que possam fazer sobre uma maneira particular de compreender o papel da
metafísica.

Além da ética e da metafísica, existe também uma ligação muito evidente entre a
antropologia filosófica e outras disciplinas filosóficas que tratam do comportamento do
homem, da sua organização da sociedade e da sua abertura à transcendência; por exemplo,
filosofia política, filosofia sociológica, filosofia da cultura e da arte e filosofia da religião.
Também nestes casos o enfoque dado ao assunto é determinado por uma visão específica
do ser humano.

Finalmente, gostaríamos de mencionar a relação da antropologia filosófica com a


teologia e, em particular, com as deliberações sobre o conteúdo da Revelação cristã. O
estudo do ser humano leva-nos a perguntar, entre outras coisas, se o indivíduo é
inteiramente circunscritível ao universo material ou se há nele algo incorpóreo, se o seu
anseio de felicidade está destinado a permanecer para sempre insatisfeito ou se está
orientado em direção a uma dimensão transcendente, quer sua morte marque o fim
irrevogável de tudo ou se o eu sobreviver à morte. Estas são questões às quais a filosofia do
homem não pode escapar a priori , porque fazê-lo não só limitaria o seu campo de análise,
mas também correria o risco de dar uma interpretação parcial a certas questões
fundamentais. Ao colocar-se estas e outras questões semelhantes, a razão pode fornecer
uma série de respostas precisas, mas também se vê confrontada com problemas cuja
solução está parcialmente fora do seu alcance - tais como questões sobre o destino final do
homem após a morte - ou o drama do mal, que sempre contém um núcleo insondável. A
Revelação cristã lança luz sobre estes assuntos, graças à qual a razão pode alargar o seu
campo de investigação mesmo para além das suas próprias limitações.

Além disso, mesmo com questões explicitamente filosóficas, o Apocalipse pode


oferecer uma ajuda válida à especulação. Pensemos no importante papel que a noção
bíblica do homem criado à imagem e semelhança de Deus desempenhou na elaboração da
noção filosófica de pessoa e na compreensão da sua dignidade universal. Não podemos
esquecer que a nossa cultura está tão impregnada da contribuição do cristianismo que
seria praticamente impossível procurar excluí-la das reflexões sobre o ser humano.
Concluindo, portanto, a antropologia filosófica, por um lado, dá uma contribuição
necessária à tarefa teológica de compreender a verdade revelada, enquanto, por outro, a
filosofia do homem é desafiada pelos conteúdos da Revelação, que estimulam e realçam o
trabalho de razão.

Resumo do Capítulo 1

Muitas ciências tratam da pessoa humana, mas cada uma tende a concentrar-se num
único aspecto. Já a antropologia filosófica reflete sobre o homem em sua totalidade,
buscando compreender seus princípios últimos, ou seja, o “porquê último” do homem
existir e agir como age. A antropologia filosófica procura responder à questão: “Quem é a
pessoa humana?”; para chegar a uma resposta, deve também ter em conta as contribuições
das outras ciências humanas. A metodologia da antropologia filosófica tem de ser tanto
analítico-indutiva (trabalhando desde a experiência vivida até aos princípios últimos) como
sintético-dedutiva (aplicando os princípios a fenómenos observáveis, a fim de recolher
novos dados).

A antropologia filosófica é o fundamento da ética e é, por sua vez, fundada na


metafísica. Dado que a pessoa humana está orientada para a transcendência, a antropologia
filosófica permanece aberta à teologia e receptiva à luz que vem da Revelação divina.
Capítulo 2

A Vida e os Graus da Vida

1. A noção de vida

Quando falamos sobre a vida ou descrevemos um determinado ser como “vivo”,


estamos nos referindo a um certo tipo de atividade. Na verdade, distinguimos um ser vivo
de um ser inanimado porque o primeiro se move “sozinho” ou “por si mesmo”. Mas se
observarmos a realidade com mais atenção, descobrimos um movimento que não é apenas
movimento no espaço: alguns seres vivos, como as plantas e certos animais, não viajam de
um lugar para outro, mas mesmo assim são descritos como “vivos”. ” Com a palavra “vida”,
então, nos referimos a uma atividade e, mais precisamente, à atividade que um ser realiza
com base em si mesmo e afetando a si mesmo, através do crescimento, da nutrição e da
reprodução.

Assim, mesmo que algo sem vida não seja totalmente estático — pode sofrer certo
movimento — reconhecemos que tal movimento nada mais é do que inércia e, portanto,
que a coisa é, de fato, inerte. Assim, uma prova que indica a presença de vida é a capacidade
de “reagir” a estímulos, pois, enquanto um ser inerte não tem, por si só, espontaneidade ou
movimento, um ser vivo “reage” a fatores externos e faz um movimento de seu ter. 1

Para um ser vivo a vida não é um fator extrínseco ou acessório. A vida não pode ser
reduzida a alguma ação particular, mesmo que ações particulares sejam evidências de vida:
um indivíduo pode realizar certas ações precisamente porque está vivo, e não vice-versa.
Observando este fato, Aristóteles afirmou: “No caso dos seres vivos, seu ser é viver”. Na2

verdade, para os seres vivos não existe apenas continuidade, mas também identidade entre
ser e viver. Por exemplo, não faria sentido afirmar: “Esta coisa existe; é grande e também
está vivo.” Para os seres vivos, a vida não é um fator acidental que se acrescenta ao ser, mas
algo essencial para que, para eles, não viver significasse simplesmente deixar de existir.

2. A Vida como Imanência e Transcendência

Assim, passamos a compreender que os seres vivos têm um grau de existência mais
perfeito do que os seres inanimados: Viver é existir de forma superior. Mas em que consiste
esta perfeição maior? Resumidamente, podemos dizer que a vida pode ser interpretada em
termos de dois aspectos fundamentais: como capacidade de imanência e como capacidade
de transcendência.

2.1. Imanência

De modo geral, as ações de um ser vivo distinguem-se pelo fato de permanecerem


no agente que as realiza. Isto significa que não são apenas um efeito da realidade externa e
que não modificam apenas essa realidade. Pelo contrário, são empreendidas pelo ser vivo
principalmente com base em si mesmo e agindo sobre si mesmo. Alimentos, informações e
memórias, por exemplo, permanecem no ser vivo e, de fato, fazem dele o que é. Vemos
assim uma correlação entre o “resto” da atividade e o “eu” do ser vivo. Essa característica
recebe o nome de “imanência” e pode ser definida como uma espécie de “interioridade” da
atividade. 3

Em todo caso, é claro que a imanência está presente em graus variados e que uma
maior capacidade de imanência revela uma maior perfeição de vida. Como diz São Tomás:
“Quanto mais sublime for uma natureza, mais aquilo que dela emana será intimamente
parte dela”. Em termos gerais, qualquer acção levada a cabo por um ser vivo é imanente
4

porque envolve sempre alguma forma de auto-movimento, por outras palavras, de


actividade sobre o eu. Assim, descrevemos como imanentes ações como alimentação,
crescimento e reprodução, que também podem ser vistas nas plantas. No entanto, estas
actividades permanecem no agente apenas de forma muito imperfeita porque estão
limitadas aos seus efeitos externos e denotam um grau muito baixo de “interioridade”.

Alguns seres vivos, porém, possuem capacidades superiores às que acabamos de


mencionar, como é o caso dos animais que são capazes de reconhecer a realidade e de
tender para ela. Uma sensação ou um desejo permanece no ser vivo não apenas de forma
mais estável, mas também de forma mais profunda e interna do que, digamos, a comida.
Mesmo assim, tais ações têm origem em um estímulo externo e, portanto, sua imanência
depende em grande parte do entorno.

Finalmente, existem certas atividades que não apenas permanecem no ser vivo e em
um nível mais profundo, mas também têm origem no próprio ser. Estas são as ações do
intelecto e da vontade, que são específicas do homem. Na verdade, as ações intelectuais e
voluntárias – que consideraremos mais tarde – são muito mais estáveis do que qualquer
outra atividade e, portanto, permanecem dentro do ser com o mais alto grau de imanência.

2.2. Transcendência

A imanência, então, é uma característica inconfundível da vida, mas não deve ser
confundida com uma espécie de fechamento ou autossuficiência. A imanência contrasta
com a dispersão, ou o que pode ser chamado de “transitividade”. Tal dispersão faria com
que o vivente deixasse de ser realmente “ele mesmo”; por outras palavras, faria com que se
fragmentasse nas suas diversas actividades sem preservar uma unidade global. Assim, a
imanência não se opõe à relação do vivente com os outros; antes, é complementar à
capacidade de transcendência. 5

Em termos muito gerais, transcendência significa abertura e amplitude, em oposição


ao fechamento e à limitação dos seres inanimados. São Tomás menciona isso
expressamente: “A ação do ser vivo transcende a ação da natureza que opera nas coisas
inanimadas”. Esta abertura implica superar os limites da existência através da ação. Um ser
6

vivo é sempre capaz de produzir um efeito superior às condições iniciais da sua ação; por
exemplo, na nutrição são integrados certos elementos externos para manter e desenvolver
a estrutura física de um ser; na percepção, a influência da realidade externa é assimilada
como informação útil para a atividade de um ser.

Tal como acontece com a imanência, a capacidade de transcendência também está


presente nos seres vivos em diferentes graus, o que revela diferentes níveis de perfeição da
vida. O nível mais elementar encontra-se nas plantas, que interagem com o meio ambiente
através das atividades de nutrição, crescimento e, em particular, procriação. No entanto, a
sua abertura à realidade através de tais acções é muito limitada. As plantas, de facto, não
“têm” experiência da realidade, mas apenas “passam” por fenómenos que afectam a sua
estrutura física.

A transcendência está presente em maior grau quando há uma “experiência” da


realidade, e isso só é possível através do conhecimento e da inclinação, algo que
discutiremos nos próximos capítulos. Através dessas atividades, específicas dos animais, os
seres vivos estão abertos a qualquer realidade corpórea . Neste contexto, São Tomás
escreveu algumas observações significativas: “Na existência material – que é circunscrita
pela matéria – cada coisa é apenas o que é; portanto, esta pedra é apenas esta pedra. Por
outro lado, na existência imaterial – que é ampla e de alguma forma infinita, não sendo
circunscrita pela matéria – uma realidade não é apenas o que é, mas também, de alguma
forma, todas as outras realidades.”

Além da transcendência do conhecimento sensorial e da inclinação está a


transcendência do intelecto e da vontade. Através destas atividades o ser racional – o
homem – está aberto à experiência de toda a realidade , não apenas da realidade corporal.
Assim, Aristóteles disse que um ser dotado de intelecto e vontade “é, de certa forma, todas
as coisas”. Em certo sentido, a capacidade humana de transcendência pode ser descrita
como ilimitada, e isto remete, como veremos, ao desejo natural de Deus e à felicidade.
3. Características Gerais dos Seres Vivos

Tendo visto em que consiste, nos seus aspectos fundamentais, a perfeição da vida,
devemos agora analisar as características que geralmente se encontram em todos os seres
vivos. É necessário, antes de tudo, fazer uma distinção importante. Dissemos que os seres
vivos têm a capacidade de se moverem, mas devemos também notar que, dependendo da
sua actividade, também são dotados de uma estrutura particular. Na verdade, sem uma
disposição adequada das suas partes, um ser vivo não seria capaz de realizar as suas
atividades. Na natureza existe uma correspondência recíproca entre estrutura e
dinamismo. Por isso consideraremos as características dos seres vivos com base nestes
dois pontos de vista: a sua estrutura e o seu dinamismo .

3.1. Características constituintes ou estruturais

Do ponto de vista da sua estrutura, um ser vivo caracteriza-se pela sua unidade e
pela sua organicidade .

3.1.1. Unidade

Um ser vivo possui uma forma específica de coesão entre suas partes componentes,
o que o torna fisicamente estável. O ser não é desarticulado, mas uma totalidade de partes
unidas. Unidade significa estabilidade mas não rigidez e, portanto, a coesão não é
incompatível com o poder de mudança; pelo contrário, é a condição que torna possível a
mudança. Se o ser vivo não tivesse estabilidade suficiente, qualquer mudança causaria a
sua destruição.

Todos os seres vivos mantêm a sua unidade através das suas próprias operações, e
essa unidade é tão fundamental que, se for perdida, o resultado é a morte ou o fim da vida.
É verdade que em alguns seres vivos a divisão não significa necessariamente a cessação da
vida, mas nestes casos a partição é a sua forma de reprodução (um processo conhecido
como “fissão binária”) e, de qualquer forma, é claro que o resultado de tal divisão é não um
ser dividido, mas vários seres diferentes. A vida, então, implica unidade, e a divisão é
incompatível com a vida do mesmo indivíduo.

3.1.2. Organicidade

A referida unidade não significa a uniformidade das partes componentes de um ser


vivo; essas partes não formam um todo homogêneo, mas um sistema organizado. O termo
“organismo” expressa precisamente a ordem interna das partes, e isso significa que a
relação entre elas não é extrínseca, mas intrínseca ao todo constituído. Na verdade, cada
parte tem uma função diferente, mas a relação entre todas elas tem seu direcionamento, ou
objetivo, na conservação ou valorização do indivíduo como um todo. Em contraste, nas
coisas inertes vemos que as partes são pouco diferenciadas; é evidente que existe uma
ordem – pensemos, por exemplo, na cristalização de minerais – mas é uma ordem uniforme
e, por assim dizer, monolítica. Isto implica que a divisão destas realidades não é
significativa pela sua natureza; por exemplo, um fragmento de rocha ainda é uma rocha,
não muito diferente de outros fragmentos de rocha.

Um ser monolítico é, por definição, estático e passivo, enquanto um ser vivo pode
mover-se, na medida em que algumas de suas partes atuam sobre as outras. Assim,
compreendemos que a consistência orgânica do ser vivo – a diferenciação e a ordem das
suas partes componentes – é o que lhe permite agir por si mesmo e sobre si mesmo. É
justamente por constituirem um todo orgânico que as partes do ser vivo são chamadas de
“órgãos”. Quanto maior a ordem entre os órgãos, maior a capacidade de ação e mais
perfeita é a vida.

3.2. Características dinâmicas ou operacionais

No que diz respeito à sua atividade, ou dinamismo, um ser vivo caracteriza-se pelo
seu automovimento e pela sua adaptação .

3.2.1. Automovimento
Do ponto de vista do seu dinamismo, a capacidade mais óbvia e testável do ser vivo
é a de se mover. Já vimos que tal movimento não deve ser entendido exclusivamente como
o poder de se deslocar de um lugar para outro, mas, de forma mais geral, como a
capacidade de empreender uma atividade a partir de si mesmo e agir sobre si mesmo.
Neste contexto, é importante distinguir o automovimento dos seres vivos daquele das
máquinas. Na verdade, certas máquinas (“robôs”) são projetadas de forma a serem capazes
de realizar ações sem a aparente intervenção de fatores externos, ou seja, “sozinhas”. No
entanto, a origem do seu movimento não é intrínseca porque não reside na própria
máquina, mas no seu construtor. Já no mundo natural, a origem das operações é intrínseca
a cada ser e é chamada de “natureza” desse ser. Conseqüentemente, o movimento dos seres
vivos é distinto daquele das máquinas, assim como o natural é distinto do artificial.

O automovimento pode ser considerado em vários níveis, tão numerosos quanto as


atividades dos próprios seres vivos. O automovimento como autoconstrução é
particularmente interessante: o ser vivo é ao mesmo tempo, em diferentes graus, o
arquiteto e o resultado de sua própria atividade. Isto é observável em todas as suas ações
(nutrição, crescimento, procriação, etc.), mas particularmente no conhecimento e na
inclinação. Através destas atividades, de facto, os seres vivos adquirem a experiência
necessária à sua própria conservação e valorização. A autoconstrução pode, então, ser
extremamente complexa: a experiência adquirida e conservada por um animal já é uma
forma de autoconstrução e se torna ainda mais perfeita em seres inteligentes capazes de
adquirir hábitos — pense, por exemplo, no processo de educação - e criando uma cultura.

3.2.2. Adaptação

Intimamente associado ao seu automovimento, o ser vivo também tem a capacidade


de se adaptar ao seu entorno e de reagir aos estímulos dele emergentes. Isto significa, por
um lado, que a relação de um ser com as coisas não é meramente passiva e, por outro, que
essa relação é de alguma forma conservada e elaborada dentro do próprio ser. É altamente
significativo que todos os seres vivos (plantas, animais e homem) sofram ou desenvolvam
certas mutações dependendo do clima, da geografia ou de outros fatores externos. Nas
plantas, a relação com o meio ambiente é puramente física; em outras palavras, consiste
numa troca de elementos materiais. Nos animais, essa relação também se dá por meio do
conhecimento e da inclinação e, portanto, é muito mais complexa do que nas plantas.
Assim, os animais podem desenvolver estratégias de ataque e defesa, modificar o ambiente
para torná-lo mais agradável (ninhos, tocas, etc.) e organizar-se em formas de vida em
grupo. Por sua vez, o homem é capaz de desenvolver formas de adaptação muito mais
complexas através da sua razão e vontade, como o cultivo da terra, a criação de animais, a
construção, as realizações culturais (ciência, arte, tecnologia, jogos), formas de vida social
(instituições, leis) e assim por diante.

4. Graus de Vida e Operações de Vida

Agora que temos uma ideia adequada das características gerais dos seres vivos,
devemos procurar identificar, ainda a um nível muito geral, as diferenças entre esses seres.
No decorrer das nossas explicações, fizemos repetidas referências aos diferentes graus de
perfeição da vida. Os aspectos fundamentais da vida – imanência e transcendência – e as
características gerais dos seres vivos – estruturais e dinâmicas – estão ambos presentes em
graus variados, e isso nos permite estabelecer diferentes níveis entre os seres vivos.

Com base no que explicamos até agora, podemos dizer brevemente que o grau de
vida é determinado pelo grau de imanência e de transcendência de suas operações. Assim
podemos estabelecer três níveis fundamentais: a vida das plantas, a vida dos animais
irracionais e a vida do homem. Esses níveis são chamados, respectivamente, de vida
vegetativa , vida sensitiva e vida intelectiva .

4.1. Vida Vegetativa


As plantas se distinguem pelo fato de realizarem três tipos de operações: nutrição,
crescimento e procriação. Através do crescimento o ser vivo adquire as quantidades e
proporções adequadas. Poderíamos dizer que esta é a mais básica das operações da vida
porque é a expressão essencial da ideia de automovimento que, como vimos, é uma
característica peculiar à vida. Através da nutrição o ser assimila (corretamente falando,
metaboliza) a realidade externa e a utiliza para manter sua própria estrutura física.
Finalmente, através da procriação, o ser produz outro ser semelhante a si e adquire assim
uma certa perpetuidade, embora esta qualidade seja mais correctamente atribuída à
espécie como um todo.

Nas plantas estas funções estão associadas a certos movimentos fixos - tendências
naturais - sobre os quais o ser não tem controle, por exemplo, o movimento em direção à
água, em direção à luz, etc. De modo geral, podemos dizer que as operações vegetativas têm
como objeto o corpo. do próprio ser vivo, da sua sobrevivência, do seu desenvolvimento e
da propagação da espécie a que pertence.

4.2. Vida Sensível

A relação dos animais com o meio ambiente é diferente da das plantas graças ao
sistema de percepção que caracteriza a vida sensível. A vida sensível manifesta-se, em
primeiro lugar, na capacidade de reconhecer a realidade material e, de certa forma,
apropriar-se dela. É por esta razão que, embora o objectivo almejado por um ser individual
seja determinado pela sua natureza, a origem dos movimentos depende do próprio ser
vivo, que reconhece as qualidades sensoriais dos objectos circundantes. Essa habilidade
permite que ele tenha um certo controle sobre suas ações. Os animais têm, portanto, uma
inclinação (ou, para usar a terminologia clássica, um apetite) associada à sua percepção
sensorial: a consciência do que é percebido como prazeroso ou prejudicial provoca
necessariamente uma reação.
Em segundo lugar, e como consequência do que acabamos de dizer, a vida sensível
manifesta-se na capacidade de locomoção, que é mais elementar nos animais inferiores e
mais complexa nos animais superiores.

4.3. Vida Intelectiva

O grau mais exaltado de vida nos seres corpóreos é o da vida intelectiva, na qual,
como observamos, a capacidade de imanência e transcendência é mais perfeita. Como foi
dito, o conhecimento intelectivo tem maior abertura do que o conhecimento sensorial
porque aborda tanto a realidade corpórea quanto a incorpórea e compreende a relação
entre o fim e os meios para atingir esse fim. Esta capacidade está na base do progresso
técnico e da construção de ferramentas. O homem tem uma tendência intelectiva graças à
qual o indivíduo tende para aquilo que conheceu intelectivamente, isto é, no seu aspecto
universal.

Assim, os seres racionais são, num sentido mais adequado, “donos” das suas
próprias ações porque tendem para fins que eles próprios decidiram, embora dentro dos
limites da sua natureza. É claro que os seres racionais também têm impulsos naturais, mas
a resposta a esses impulsos não ocorre “automaticamente”; requer a mediação da razão e a
aquisição de hábitos, como veremos quando falarmos de liberdade e cultura nos capítulos
9, 14 e 16.

4.4. Conclusão: os graus da vida são caracterizados pela “cumulatividade”,


dependendo das operações da vida

Esta breve explicação sobre os graus de vida será desenvolvida nos próximos
capítulos, especialmente no Capítulo 3, que focará especificamente na origem vital dos
seres vivos. Neste ponto, porém, devemos acrescentar que o grau superior de vida
pressupõe o grau ou graus inferiores e, portanto, podemos falar de uma “cumulatividade”
dos graus de vida, em outras palavras, de uma relação sequencial entre eles.
Isto significa que as operações sensoriais só podem ser realizadas com base em
operações vegetativas e que, por sua vez, as operações intelectivas só podem ser realizadas
com base em operações sensoriais e vegetativas. Assim, a presença das operações
inferiores é condição para o cumprimento das superiores: Existem seres vivos que realizam
apenas operações vegetativas (plantas), mas a vida sensitiva dos animais exige uma vida
vegetativa e, no homem, a vida intelectiva exige tanto vida sensorial e vegetativa.

Resumo do Capítulo 2

A vida é automovimento, e uma criatura viva é um ser que pode influenciar a si


mesmo e agir por si mesmo; isso significa que todos os seres vivos têm capacidade de
imanência e capacidade de transcendência, mas cada um possui essa capacidade em graus
diferentes. Do ponto de vista da sua estrutura, o ser vivo distingue-se pela unidade e
consistência orgânica; no que diz respeito à sua atividade ou dinamismo, caracteriza-se
pelo automovimento e adaptação. Existem três graus de vida: vida vegetativa (as atividades
de nutrição, crescimento e reprodução), vida sensível (caracterizada por uma relação
cognitiva com o ambiente circundante) e vida racional ou intelectiva (caracterizada pela
capacidade racional de conhecer o universal). aspectos da realidade). Para poder realizar
as operações do grau superior de vida, as operações dos graus inferiores devem estar
presentes; a percepção sensorial não é possível sem atividade vegetativa, e conceitos
abstratos não podem ser formados sem conhecimento sensorial e atividade vegetativa.

Capítulo 3

A Alma ou o Princípio Vital


1. Premissa: Forma e Matéria, Substância e Acidentes

Vimos como a vida pode ser considerada como um certo tipo de atividade e, mais
precisamente, a atividade que é realizada a partir do eu e sobre o eu, ou seja, o
“automovimento”. No entanto, se considerarmos cuidadosamente qualquer processo de
mudança, descobrimos que, de facto, existe um aspecto variável e um aspecto constante;
em outras palavras, existem vários estados que mudam sobre uma determinada base
estável. Com base nesta experiência, Aristóteles passou a reconhecer dois princípios
1

presentes em todas as realidades. Por um lado, existe um sujeito, ou base permanente do


processo, que ele chamou de “matéria”; por outro, existe alguma propriedade que é
adquirida ou perdida, chamada “forma”. Segundo Aristóteles cada coisa material é um “ser
2

que muda” no qual há algo que permanece e algo que muda: matéria e forma.

Das várias mudanças, no entanto, algumas dizem respeito apenas a aspectos


parciais de uma coisa – tais como a sua cor, peso, posição, etc. – enquanto outras envolvem
a coisa radical e totalmente, como é o caso da procriação e da decadência. Aristóteles
estabeleceu assim distinções entre, respectivamente, “mudanças acidentais” e “mudanças
substanciais”. O primeiro tipo de mudança permite-nos distinguir os aspectos parciais de
uma coisa (os seus “acidentes” ou “formas acidentais”) da própria coisa, que é o objecto
dessa mudança. Em contraste, com o segundo tipo de mudança, a mudança substancial, não
temos um novo estado da mesma realidade, mas uma realidade completamente diferente.
Assim, surgem princípios de coisas ainda mais radicais: por um lado, o princípio pelo qual
uma realidade é de um certo tipo ou espécie (a “forma substancial”) e, por outro, o sujeito
básico dessa especificação (o “ matéria prima”).

Consideremos um exemplo: um cavalo pode sofrer diversas alterações, como o


crescimento da crina ou o movimento de um lugar para outro. Estas são mudanças
acidentais que destacam a distinção entre o próprio cavalo (a “substância”) e os seus
aspectos variáveis (os “acidentes”). Mas também é verdade que o cavalo nasceu em algum
momento e que um dia deverá morrer. No que diz respeito ao nascimento e à morte,
devemos falar de mudanças substanciais. Nestes casos, a propriedade adquirida com o
nascimento e perdida com a morte não é um aspecto individual específico, mas
precisamente o “ser cavalo” do cavalo, ou seja, a sua “forma substancial”. E, no entanto, esta
propriedade não aparece e desaparece simplesmente sem passar por qualquer processo;
antes, há algo que “antes” existia de uma certa maneira e “depois” existe de uma maneira
diferente. Essa base, ou sujeito, da mudança radical (neste caso, de nascer ou morrer) é o
que se chama “matéria prima”.

Resumidamente, então, podemos dizer que toda a realidade material é composta de


“substância” e “acidentes” e que a “substância”, por sua vez, é composta de “forma
substancial” e “matéria primária”. 3
A forma substancial é a especificação primária de
qualquer forma de realidade, ou seja, seu modo de ser mais radical, aquilo que faz com que
ela pertença a uma determinada espécie e realize as atividades específicas dessa espécie. A
matéria prima é aquela que é determinada pela forma substancial e, portanto – sendo esta
última a forma mais básica de existência – não é determinada per se . É simplesmente o
princípio fundamental de qualquer determinação possível. Finalmente, a substância ,
composta de forma substancial e matéria prima, é por sua vez base, ou sujeito, de diversas
determinações parciais, os acidentes.

2. A Alma como Forma Substancial dos Seres Vivos: Duas Definições de Alma

Desde a antiguidade (no Ocidente, pelo menos desde o século VI a.C.), o nome “alma”
tem sido dado ao princípio mais radical da vida humana. Ao longo da história, porém, o
significado do termo tem sido apresentado de diferentes formas, principalmente no que diz
respeito à sua relação com o corpo e com o homem como um todo.

Para compreender o que é a alma, o primeiro ponto a considerar é que o homem é


um ser vivo; isto é, ele é capaz de agir a partir de si mesmo e sobre si mesmo, como vimos
no Capítulo 1. Reconhecemos que há vida nele, mesmo que nem sempre a vejamos em ação
e deve, então, haver algo que o mantenha vivo mesmo quando não está realizando nenhum
tipo de operação, pelo menos de forma perceptível. É a este princípio vital que foi dado o
nome de alma ( anima em latim); portanto, dizemos que os seres vivos são “animados”,
enquanto aqueles sem vida são “inanimados” ou “inertes”. A peculiaridade dos corpos vivos
em relação aos corpos inanimados não deriva de nenhum fator corpóreo, mas de um
princípio diferente: a alma.

Além disso, devemos considerar que o homem é um ser que pertence à ordem
natural e, portanto, como todas as realidades naturais, é composto de forma e matéria. Em
4

virtude de sua forma substancial, cada homem é um indivíduo da espécie humana que
possui uma constituição particular, disposição de partes componentes, e assim por diante,
que lhe permitem realizar as operações características de sua espécie. Portanto, a forma
substancial deve ser considerada sob dois pontos de vista: em primeiro lugar, devemos
considerar o facto de que ela confere uma certa estrutura à substância, e depois devemos
examinar o facto de que ela torna esta substância capaz de realizar certas operações. Por
5

esta razão, Aristóteles considerou a alma como o primeiro e radical princípio dos seres
vivos e definiu-a de duas formas complementares: uma relativa à estrutura dos seres vivos,
e outra ao seu dinamismo. 6

2.1. O ponto de vista estrutural ou constituinte:


a alma como forma do corpo

Do ponto de vista da constituição de um ser vivo, a forma substancial é o que lhe dá


vida, o torna um todo organizado e o faz pertencer a uma determinada espécie.
Conseqüentemente, Aristóteles definiu a alma como “a primeira realidade de um corpo
natural que contém potencialmente vida”. 7
Nesta definição, a expressão “atualidade
primeira” indica aquilo que constitui mais fundamentalmente a realidade, ou seja, o que
chamamos de forma substancial, enquanto “corpo natural” indica a matéria adequada para
ser constituída como um corpo vivo.
A alma, então, atualiza ou aprimora a matéria de tal maneira que constitui, com essa
matéria, um todo unitário e ordenado, em outras palavras, um “corpo orgânico ou
animado”. Isto não significa, porém, que a alma esteja reduzida a apenas organizar o corpo,
a supervisionar a ordem entre as suas diversas partes. A alma é o princípio – não o
resultado – dessa ordem. Resumindo, podemos dizer que a alma é o ato ou “forma do
corpo” ( forma corporis ), e o corpo é o princípio material da substância viva. Como disse
8

Vanni Rovighi: “Afirmar que a alma humana é a forma do corpo significa afirmar que aquilo
que torna o homem vivo e consciente é o mesmo princípio, a mesma realidade, que aquilo
pelo qual ele tem um corpo específico”. 9

2.2. O ponto de vista dinâmico ou funcional:


a alma como primeiro princípio de operações

Se, por outro lado, examinarmos o ser vivo do ponto de vista das suas atividades,
veremos que a forma substancial é o que lhe permite realizar diversas operações -
operações que, na verdade, são a expressão da vida: movimento local, nutrição, percepção ,
etc. Aristóteles ofereceu assim uma segunda definição de alma, complementar à primeira: A
alma é “a causa primária em virtude da qual vivemos, percebemos e pensamos”. Com esta
10

formulação, o objectivo do filósofo não era cobrir todas as actividades de um ser vivo, mas
sim sublinhar o facto de a alma ser o seu “primeiro” princípio.

Numa substância dotada de vida, as operações têm muitos princípios imediatos:


olhos para a visão, pernas para o movimento, etc. Estes órgãos não são, contudo, o
“primeiro” princípio de tais atividades porque são, por sua vez, movidos por outro
princípio que os ativa. para ver, andar, etc. Segue-se que em cada ser vivo deve haver um
primeiro princípio para todas as suas atividades, e a isso é dado o nome de “alma”.

3. Características da Alma
A alma, então, é a forma do corpo e o primeiro princípio das operações realizadas
por um ser vivo. Devemos agora considerar como é em si, quais são as suas características
fundamentais. De modo geral, seja qual for a espécie de ser vivo, cada alma se caracteriza
pelo fato de ser simples , incorpórea , inextensa e única .

Em primeiro lugar a alma é simples ; ou seja, não tem partes. O que pode ser dividido
em partes é a substância como um todo porque é composta de forma substancial e matéria,
mas, por sua vez, a alma – como forma substancial – designa o ser vivo apenas
parcialmente e não na sua totalidade. Dessa simplicidade derivam as demais características
que consideraremos a seguir.

A alma é incorpórea ; ou seja, não é um corpo. Traduz a potência da matéria em ação


e a torna um todo organizado, mas por si só não se identifica com o corpo nem com uma
parte do corpo (o cérebro, o coração, etc.), pois de outra forma não seria capaz para
configurar a ação fora da matéria.

A alma é inextensa ; ou seja, é sem extensão. Ser estendido significa ter partes extra
partes ; isto é, partes separadas umas das outras, o que seria incompatível com a
simplicidade da alma. A extensão é uma propriedade da matéria – e da substância
composta de matéria – mas não da forma per se . Conseqüentemente, a alma não pode ser
medida ou pesada nem ter sua localização em um órgão específico do corpo.

A alma é única , uma singularidade que deu origem a discussões consideráveis ao


longo da história. Essa característica deriva do fato de a alma ser a forma substancial do ser
vivo. Graças à sua forma substancial, de facto, cada coisa é o que é e age segundo a sua
natureza. Afirmar que numa realidade existem várias formas substanciais seria uma
contradição porque, nesse caso, a realidade em questão não seria uma substância, mas
várias substâncias justapostas, e seria necessário encontrar o princípio que as mantém
unidas. Portanto, pela mesma razão pela qual existe apenas uma forma substancial em cada
substância, existe apenas uma alma em cada ser vivo.
A alma e o corpo juntos constituem uma única substância: o ser vivo. Uma prova
disso pode ser encontrada no fato de que a morte é seguida quase imediatamente pela
ausência de movimento e decomposição. Conseqüentemente, o fato de o homem possuir
capacidades não apenas intelectuais, mas também sensoriais e vegetativas, não pode ser
explicado postulando a coexistência nele de várias almas, mas reconhecendo diferentes
operações da mesma alma.

Dissemos que a alma não se confunde com o corpo, que entre os dois existe uma
relação que une a forma à matéria, ou seja, uma relação “substancial”. É evidente que tal
relação implica dependência mútua, mas isto não significa que a dependência seja a mesma
para ambas as partes. O corpo depende completamente da alma e dela recebe toda a sua
perfeição, mas a relação da alma com o corpo é diferente. Em muitos seres vivos a alma não
pode existir independentemente do corpo porque a sua perfeição se limita a conferir uma
certa estrutura ao corpo e a torná-lo capaz de agir. Contudo, existem seres nos quais a alma
é mais perfeita do que o necessário apenas para ativar o corpo. Esta é a alma do homem,
que por isso é definida como espiritual. Mais tarde veremos como se justifica este maior
grau de perfeição. Por enquanto nos limitaremos à seguinte afirmação: Mesmo que a alma
humana seja a forma do corpo e, com o corpo, constitua uma única substância, ao mesmo
tempo ela tem uma independência “relativa” de ser e de ação que claramente distingue-o
da alma dos seres irracionais.

4. A Perspectiva Global

Até agora procuramos apresentar a ideia da alma como o princípio vital dos seres
vivos usando uma perspectiva analítica que é parte integrante da abordagem sistemática
que estamos usando. Com este método analítico é inevitável que procedamos à dissecação
do objeto de estudo, ou seja, no nosso caso, isolando o princípio vital da totalidade do ser
individual ou, como veremos no próximo capítulo, isolando o corpo do seu princípio vital.
Se a isto somarmos a tendência natural de imaginar o nosso assunto em termos materiais, é
fácil correr o risco de considerar a alma como mais uma coisa entre outras coisas, como um
elemento que se acrescenta a outro e que pode ser removido ao mesmo tempo. vai.

Embora voltemos a este assunto na secção 4 do próximo capítulo e no capítulo 12,


vale a pena reiterar que, ao reflectir sobre a pessoa humana, nunca devemos perder de
vista a perspectiva global, ou seja, a perspectiva que considera o indivíduo em todos os
aspectos (somático, mental e espiritual). A alma, como forma, não é uma “parte em si” do
ser vivo, mas, como explicamos acima, é o princípio que organiza o ser, estruturando-o e
mantendo-o vivo. Por esta razão, a alma é por vezes comparada ao ritmo de uma sinfonia
ou ao maestro de uma orquestra: sem ritmo não haveria música sinfónica, mas isto requer
sons, e sem o maestro uma peça musical não poderia ser tocada adequadamente. , embora
ainda precise de músicos e seus instrumentos. 11

Resumo do Capítulo 3

A filosofia aristotélico-tomista oferece duas definições de alma. De acordo com o


primeiro deles, a alma é a forma substancial do ser vivo ; a segunda define a alma como o
primeiro princípio das operações do ser vivo . Quando falamos de forma substancial,
queremos dizer o princípio metafísico pelo qual um ser vivo pertence a uma espécie
particular. A alma é simples, incorpórea, inextensa e única. A reflexão filosófica nunca deve
perder de vista a perspectiva global; portanto, não devemos esquecer que a alma é um dos
dois coprincípios do ser vivo, sendo o outro coprincípio o corpo.

Capítulo 4

O Corpo Vivo
1. Matéria Inerte e Corpo Vivo

No capítulo anterior chegamos à conclusão de que a alma é a forma substancial do


corpo. Contudo, fazer esta afirmação é, de alguma forma, pressupor a própria ideia do que é
o corpo vivo. Devemos, então, buscar compreender a corporeidade porque tal compreensão
pode trazer grande clareza — ou levar a muitos erros — sobre o homem.

O facto de o homem ser um ser material é evidente na vida quotidiana: o nosso


movimento de um lugar para outro e as nossas limitações inevitáveis, como o cansaço, a
vulnerabilidade, a doença e até a morte, são as experiências imediatas que temos da nossa
condição material. No entanto, também temos a consciência de não sermos exclusivamente
materiais, facto evidenciado pela própria “consciência”, pois é o pensamento que torna
possível este distanciamento, ou superação da matéria. Através da reflexão entendemos
que o corpo faz parte de nós e descobrimos a sua importância para a totalidade do nosso
ser. Visto que definimos a alma como forma substancial e como primeiro princípio das
atividades de um ser vivo, isso significa que o corpo recebe vida e movimento da alma, mas
é neste ponto que devemos introduzir algumas elucidações importantes.

Em primeiro lugar, o termo “corpo” não se aplica apenas aos seres vivos, mas
também, de forma mais geral, a realidades que têm uma certa extensão no espaço e que
sofrem alterações ao longo do tempo. Este, por exemplo, é o significado com que a palavra é
usada na formulação de leis físicas, como o famoso princípio de Arquimedes: “Um corpo
imerso num líquido recebe uma flutuabilidade igual ao peso do líquido deslocado”. Assim,
em termos gerais, “corpo” é utilizado para se referir a uma realidade que possui certas
propriedades físico-químicas, que podem ser de vários tipos; por exemplo, um corpo é
palpável, visível e audível, sujeito a certos fatores dinâmicos e possuindo propriedades
mensuráveis, como peso, temperatura ou carga elétrica.
Quando Aristóteles afirma que a alma é “a primeira realidade do corpo natural”, ele
está considerando o corpo como uma realidade material que “precede” a forma substancial
e é capaz de recebê-la. Isto deve ser entendido no sentido de que, sendo a alma o princípio
de toda a perfeição e atividade do ser vivo, o corpo “sem” a alma carece de estrutura e não
pode realizar suas atividades vitais, e mesmo que tenha alguma tipo de estrutura e
dinamismo, certamente não são os dos seres vivos.

Assim, quando falamos de “corpo” com referência aos seres vivos, estamos nos
referindo a algo muito diferente da matéria inerte. Estamos falando de um conjunto de
elementos materiais regulados pelo princípio vital, ou alma e, portanto, estruturados e
preparados para as atividades vitais. É neste caso que podemos falar de “corpo vivo”, ou
seja, um corpo que possui a estrutura e o dinamismo que caracterizam os seres dotados de
vida. Precisamente para sublinhar a diferença entre matéria inanimada e viva, Aristóteles
observou que é errado dizer que um cadáver é “humano”, tal como seria errado dizer o
mesmo sobre uma pintura ou escultura. 1

Esta é uma premissa importante porque nos ajuda a compreender que o corpo
humano — ou o corpo de um ser vivo em geral — não deve ser identificado como matéria
prima infundida com atividade pela alma. O corpo que podemos ver e tocar é ele próprio o
ser vivo feito de forma e matéria. Obviamente, forma e matéria são dois princípios
metafísicos da realidade que não podemos ver nem tocar; só podemos compreendê-los pela
reflexão. E, no entanto, como dissemos no capítulo anterior, estamos conscientes de que a
2

realidade presente na nossa experiência é uma realidade composta que possui,


precisamente em virtude da matéria, certas propriedades físico-químicas.
Conseqüentemente, a substância viva específica é, ao mesmo tempo, um corpo vivo e um
ser corpóreo.

2. O Corpo como Sistema: A Ideia de Organismo


O corpo vivo, então, é distinto da matéria inerte. Mas como nos tornamos
conscientes disso? Fundamentalmente, podemos fazê-lo de duas maneiras: primeiro,
reconhecendo a estrutura ordenada do corpo; em segundo lugar, reflectindo sobre o seu
dinamismo autónomo. O corpo vivo é, na verdade, antes de mais nada, um conjunto
unitário e organizado de partes capazes de realizar determinadas atividades
independentemente de outros corpos. É por isso que é chamado de “organismo”, isto é, um
sistema no qual as partes internas são ordenadas e direcionadas para a perfeição do todo.
Diferentemente da matéria inerte, o corpo vivo possui essas características em virtude da
perfeição que a alma lhe confere, ou seja, justamente por ser um corpo animado. Devemos,
então, agora procurar compreender em que consiste esta perfeição a nível estrutural e a
nível dinâmico.

2.1. O Corpo Animado no Nível Estrutural: “Organicidade”

Primeiramente, o corpo vivo é composto de partes heterogêneas. Já vimos como a


diversidade e a ordem entre essas partes é o que possibilita as ações do ser vivo e como um
simples ser material — estruturalmente indiferenciado — é um ser passivo. O ser vivo,
então, possui múltiplas partes que estão intimamente relacionadas entre si, mas a relação
3

entre elas não é homogênea porque a distinção entre elas não é apenas quantitativa, mas
qualitativa. Cada parte é distinta das outras porque ocupa um espaço diferente e porque
tem uma função específica dentro do todo. Assim podemos ver que a ordem interna do ser
vivo é hierárquica, cada parte contribuindo à sua maneira para a perfeição global. Por4

exemplo, no caso do corpo humano, é claro que o correto funcionamento de certas partes é
absolutamente necessário para a sobrevivência (coração, cérebro, pulmões), outras são
menos indispensáveis (mãos, pés, olhos, ouvidos) e outros ainda não são absolutamente
indispensáveis (cabelos, unhas, dentes). Tudo isto mostra que algumas destas partes têm
um papel principal, outras um papel secundário, e esta estrutura global é o que nos permite
falar de “sistema”: O corpo animado não é um mero agrupamento de elementos, uma
agregação de fragmentos de matéria, mas uma totalidade de partes ordenadas
hierarquicamente com base em suas múltiplas funções.

Vale a pena notar que a complexidade e a hierarquia interna das partes diferem
dependendo dos graus de vida. Quanto mais perfeito é um ser vivo, mais complexa é sua
estrutura corporal. 5
Assim, uma planta é relativamente simples, embora tenha uma
estrutura muito clara – raiz, caule, folhas e flores – com sistema próprio de absorção e
assimilação de substâncias químicas. O corpo dos animais é muito mais complexo, com
acentuada diferenciação de tecidos e órgãos; esta diferenciação difere em grau, indo desde
corpos que são, em certo sentido, semelhantes aos das plantas - pensemos, por exemplo,
nas esponjas e nas águas-vivas - até outros altamente diferenciados - como é o caso dos
mamíferos superiores - em onde há também uma diferenciação dos sistemas internos:
nervoso, digestivo, reprodutivo, respiratório e assim por diante.

Por fim, o corpo humano destaca-se pela sua estrutura e complexidade, talvez a
mais exaltada do mundo natural. Embora seja difícil estabelecer uma hierarquia precisa e
linear entre os animais, a preeminência do homem parece clara a partir da complexidade
de todos os seus sistemas internos – respiratório, circulatório, imunológico, etc. – mas
especialmente do sistema nervoso. Neste ponto devemos deixar claro que a maior
perfeição do corpo humano se manifesta não só na grande complexidade das suas partes,
mas sobretudo nas relações muito estreitas entre elas. No caso do sistema nervoso em
particular, o contacto entre os neurónios pode ocorrer de tantas maneiras diferentes que
constitui a base para uma imensa gama de experiências.

2.2. O Corpo Animado no Nível Dinâmico: “Intencionalidade”

No entanto, a perfeição do corpo não se manifesta apenas na complexidade das suas


partes e na sua disposição hierárquica. Tal estrutura implica que cada parte esteja
preordenada para a perfeição do todo, assim como para seu objetivo específico. Dizer que o
corpo é um sistema orgânico significa, então, que cada parte individual não está fechada em
si mesma, mas aberta às outras com as quais está em contacto mais ou menos imediato.
Esse aspecto dinâmico fica evidente no fato de que não existe parte do corpo que não tenha
função ou finalidade precisa. Com efeito, para realizar atividades complexas, é necessário
que as partes do corpo não sejam rigidamente determinadas e independentes —
“cristalizadas”, por assim dizer, como nos minerais — mas que se liguem às outras com as
quais se relacionam. realizar essas atividades. Tal característica pode ser chamada de
“abertura” ou “intencionalidade” do corpo e de suas partes.

Todos os elementos de um corpo vivo são interdependentes, mesmo que a sua


relação nem sempre seja igualmente direta. Isto já é evidente nas plantas, cujas raízes
transmitem substâncias nutritivas ao caule, e o caule às folhas e frutos. A correlação entre
as partes do corpo dos animais é ainda mais estreita, primeiro entre os órgãos internos
(sistema nervoso, trato digestivo e sistemas respiratório e reprodutivo), mas também entre
os membros externos (patas, coluna vertebral, crânio, etc.). No entanto, é no corpo humano
que vemos o maior grau de abertura.

Desde a antiguidade que se tentam compreender a relação que existe entre a


morfologia do corpo humano e as funções que este é capaz de desempenhar. O primeiro
filósofo a estabelecer uma ligação entre a capacidade intelectual e o uso das mãos parece
ter sido Anaxágoras, a quem são atribuídas as seguintes palavras: “A posse destas mãos é a
causa de o homem ser de todos os animais o mais inteligente”. Aristóteles retoma esta
6

ideia, mas mantém antes a visão oposta: o homem tem mãos porque é o mais inteligente.
Assim ele enfatiza a correlação entre o intelecto e a mão, afirmando que esta última é “a
ferramenta das ferramentas”. Por sua vez, Tomás de Aquino observou que a natureza,
7

“embora não tenha fornecido [ao homem] armas e roupas como forneceu aos outros
animais, deu-lhe razão e mãos, com as quais ele é capaz de obter essas coisas”. A mão, na
8

verdade, não é um instrumento especializado; pelo contrário, é altamente versátil e pode


ter diversos usos. Esta flexibilidade operacional permite ao homem não só realizar
determinadas ações necessárias à vida – apoio, defesa, manipulação de alimentos – mas
também criar ferramentas complexas e precisas para atividades que estão de acordo com a
sua inteligência, como a tecnologia e as artes.

Ao mesmo tempo, o “bipedalismo” do homem - isto é, a capacidade de andar


constantemente sobre dois pés - é uma condição indispensável para o uso das mãos que, de
facto, não seriam livres nem dotadas de um grau de mobilidade tão elevado se fossem tinha
que suportar o peso do corpo, assim como as patas ou cascos dos animais. O bipedalismo,
por sua vez, depende obviamente da postura ereta da coluna vertebral, o que possibilita
uma postura equilibrada da cabeça. Esta posição permite, por um lado, maior capacidade
craniana, mas, por outro, garante que a cabeça não tenha que se inclinar para a frente (para
ataque, defesa ou alimentação). E a boca não precisa ter formato de focinho; em vez disso,
pode ter lábios finos, uma língua extremamente móvel e dentes recuados que permitem -
juntamente com o resto do aparelho vocal - a emissão de sons altamente variados, a base
fisiológica da linguagem articulada. 9

A intencionalidade do corpo também difere em grau dependendo da perfeição das


atividades do ser vivo. Deve então ser feita uma distinção entre a intencionalidade do corpo
no que diz respeito às operações vegetativas e a sua intencionalidade no que diz respeito às
operações de conhecimento e inclinação. Na verdade, as partes do corpo que se preocupam
com a nutrição, o crescimento e a procriação estão estruturadas de forma a desempenhar
funções que ultrapassam as meras propriedades físico-químicas da matéria. 10
Estas
atividades exigem uma certa especialização morfológica e funcional a vários níveis. Assim,
os órgãos de nutrição são regulados e adaptados à alimentação; os do sistema motor estão
adaptados a um determinado ambiente físico; os do sistema reprodutivo estão abertos à
complementaridade com o outro sexo, à alimentação e proteção da prole, e assim por
diante.

Uma situação análoga, mas num nível muito mais elevado, pode ser encontrada nas
partes do corpo que atuam como base para o conhecimento e a inclinação. Nesse caso, o
próprio corpo, em certo sentido, ultrapassa as limitações da matéria e possibilita ao
indivíduo realizar operações que não são exclusivamente materiais. A “imaterialidade” das
11

atividades de conhecimento e inclinação requer uma disposição adequada do corpo, uma


disposição que pode ser descrita como uma maior “abertura” ou “indeterminação” das
partes que desempenham essas funções. É evidente que todas as partes do corpo estão
relacionadas entre si e são “estruturadas” para desempenhar certas “funções”, mas no caso
do corpo humano tais funções não correspondem a necessidades meramente materiais,
mas vão além delas. Vemos assim uma relação entre a inteligência — o espírito — e a
morfologia do corpo, que se reflecte na sua maior “abertura” ou “não especialização”.

3. A noção de órgão: anatomia e fisiologia

Ao falar sobre as partes do corpo vivo destacamos como a diversidade de operações


depende da estrutura dessas partes. As diversas partes do organismo, em virtude de sua
estrutura e função, são chamadas de “órgãos”. Este conceito é de grande importância
porque permite compreender a relação entre a morfologia do corpo e o seu dinamismo, ou
seja, a correlação que existe entre anatomia e fisiologia. Na verdade, cada uma das funções
do ser vivo ocorre por meio de uma parte separada e convenientemente predisposta.

A relação entre a constituição física e a atividade específica de uma parte do corpo é


uma medida da sua especialização. Quanto mais perfeita a operação, mais especializado é o
órgão. Se, por exemplo, considerarmos o olho, descobrimos que ele é na verdade um órgão
extremamente complexo: além de ter músculos e tecidos próprios, que requerem uma
forma particular de irrigação sanguínea, descobrimos que a retina possui células especiais
(chamadas “bastonetes” e “cones”) que permitem perceber cores e luz dentro de um
espectro definido. É precisamente esta estrutura como um todo que nos permite ver; não
teria utilidade para a audição, o paladar ou qualquer outra operação, e sem ela a forma
especificamente humana da visão não seria possível. 12
A especialização dos órgãos deve ser vista não como uma forma de limitação ou
fechamento, mas como uma pré-ordenação para um determinado tipo de atividade. O
funcionamento de um órgão exige, de facto, uma complexidade e proporção específicas
entre os seus elementos materiais e, por sua vez, o funcionamento dos vários órgãos
permite o desenvolvimento e o equilíbrio de todo o ser. Esta é a razão da existência, dentro
do corpo, de diferentes tecidos e sistemas.

As funções vitais, que dependem dos órgãos como base material, requerem um
maior grau de especialização dependendo do seu grau de perfeição. Assim, as plantas
possuem órgãos relativamente simples e não especializados, embora altamente complexos
se comparados com a matéria das coisas inertes. As raízes, por exemplo, servem para
captar água e outras substâncias, mas esta função pode ser desempenhada a nível
secundário por outras partes, como as folhas ou o caule. Em outras palavras, embora as
partes das plantas sejam especializadas, elas são “relativamente” intercambiáveis. 13

Nos animais a especialização orgânica é muito maior e permite a realização de


atividades mais específicas. Mesmo as funções vegetativas – nutrição, crescimento e
reprodução – requerem, nos animais, uma maior complexidade de órgãos e uma
combinação mais específica dos seus elementos materiais. Esta característica torna-se
muito mais evidente no caso das funções de conhecimento e inclinação e, de facto, os
órgãos necessários para tais funções têm de ter uma estrutura altamente específica e
particular. Neste contexto, Aristóteles falou do “meio”, indicando um equilíbrio apropriado
na composição do órgão que lhe permite reagir a certos estímulos e não a outros. As partes
14

do corpo pré-ordenadas para o conhecimento – e o mesmo se aplica, como veremos, à


inclinação – devem ter uma composição muito precisamente equilibrada para serem
estimuladas por qualidades muito diferentes. Esta é a razão pela qual as plantas não podem
ter sensibilidade, nem mesmo o sentido do tato. Embora possam estar sujeitos à ação de
objetos externos, não possuem as propriedades orgânicas necessárias para poder perceber
as qualidades que recebem como distintas; em vez disso, eles passam por elas
passivamente como uma simples mudança física em seus corpos. 15

Vemos, então, que existe uma relação entre a estrutura corporal e o objeto capaz de
estimular um órgão: a primeira condiciona a intensidade e o tipo de ação que o segundo é
capaz de realizar e, portanto, “meio” pode ser entendido como uma espécie de de “abertura
orgânica”. Esta característica, contudo, não contraria a especialização; antes, é a maneira
específica pela qual os órgãos dos sentidos são especializados. Eles não teriam utilidade no
desempenho de suas funções se não tivessem esse “meio”. Assim, podemos dizer que
quanto mais perfeitas as operações vitais, maior “abertura” ou “significância” devem ter os
respectivos órgãos.

4. A relação causal entre alma e corpo

Tendo examinado a natureza e as características do corpo vivo, podemos agora


retornar brevemente à relação entre alma e corpo. Mais adiante dedicaremos uma seção
específica ao estudo da unidade do ser humano individual; por agora devemos reiterar o
que dissemos no final do último capítulo sobre a perspectiva global: a natureza humana
não é nem puramente material nem puramente espiritual; antes, é uma realidade composta
de um princípio material (isto é, o corpo) e um princípio espiritual (isto é, a alma racional).
16
Assim, alma e corpo estão unidos como partes integrantes de uma única substância – o
homem – e constituem uma unidade “substancial”. 17

Para compreender melhor o que estamos dizendo, é útil lembrar que Aristóteles
distinguiu quatro tipos de causa: material, formal, eficiente e final. Dado que a realidade
18

composta pela alma e pelo corpo é o homem total, a influência causal destes dois
coprincípios refere-se principalmente ao indivíduo; em outras palavras, entre a alma e o
corpo existe uma relação causal que diz respeito antes de tudo à substância que é o
indivíduo humano. Ao mesmo tempo, porém, também são causas, uma em relação à outra:
a alma é a causa do corpo, e o corpo é a causa — num sentido limitado, como veremos — da
alma.

A matéria e a forma influenciam a estrutura, ou constituição, da realidade. A causa


formal é aquela que determina algo como sendo um tipo particular de realidade, enquanto
a causa material é aquela de que algo é feito ou em que existe. Podemos, então, dizer que a
alma é a causa formal do composto humano, na medida em que o compõe de uma
determinada espécie. Pela mesma razão, é também a causa formal do corpo porque o
constitui de um certo tipo (corpo vivo, corpo sensível, e assim por diante). Por sua vez, o
corpo é a causa material do ser vivo porque é aquilo de que é feito (a madeira das árvores,
os músculos e ossos dos animais e do homem, etc.). Mas o corpo também é a causa material
em relação à alma, não porque a alma seja feita de matéria, mas porque existe “no” corpo e
o corpo é permeado por ela. Contudo, como veremos, a alma humana pode subsistir após a
19

morte.

Por outro lado, as causas eficientes e finais dizem respeito ao dinamismo, ou


atividade, das coisas. A causa eficiente é aquela de onde provém a ação, e a causa final é
aquela para onde tende a ação, aquilo que a atrai. A alma é a causa eficiente do corpo e de
todos os seres vivos porque é o primeiro princípio de todas as suas atividades. Isto não
significa, porém, que a alma seja o único princípio das atividades, nem que seja o seu
princípio imediato. Como veremos, atua através de faculdades específicas que são os
princípios diretos ou imediatos das ações. Por fim, a alma também é a causa final do corpo,
no sentido de que a finalidade do corpo é realizar atividades que tenham a alma como
princípio.

5. O Corpo e a Corporeidade

As explicações contidas na secção anterior são importantes porque nos ajudam a


não perder de vista a natureza unitária da pessoa. Na verdade, seguindo o método analítico
utilizado até agora, estudamos a alma e o corpo em dois capítulos distintos, mas não
devemos esquecer que a alma permanece sempre o princípio vital de um corpo e que o
corpo, em nosso campo de estudo, é sempre um corpo animado ou vivo. Vale a pena
reiterar mais uma vez, então, que não existe um corpo (humano ou animal) no qual uma
alma seja posteriormente infundida, nem uma alma preexistente que seja atribuída a um
corpo.

No contexto da cultura moderna, é importante não perder de vista a perspectiva


global de que falámos na última secção do capítulo anterior. É evidente que o estudo
científico do corpo envolve uma atitude de distanciamento em relação ao objeto
examinado, considerando-o quase como uma unidade autocontida que pode ser encontrada
em todos os seres vivos e possuidora de propriedades mensuráveis. Mas não é possível
considerar o corpo humano apenas do ponto de vista biológico ou fisiológico, ignorando
inteiramente as dimensões éticas, culturais e existenciais que são específicas da pessoa
humana. Segundo alguns comentadores, esta redução do corpo a um objecto de exame
autocontido também se encontra no estudo filosófico e, em particular, metafísico do corpo.

Para evitar o risco de estudar o corpo apenas do ponto de vista do observador


imparcial e neutro, a filosofia moderna recorre frequentemente à distinção entre corpo e
corporeidade . Falar de corporeidade é referir-se à experiência que cada indivíduo humano
tem de sua própria situação existencial (isto é, de sua própria condição de ser vivo
corpóreo-espiritual); é destacar o fato de que o corpo humano já é per se diferente do dos
outros seres vivos porque é o correlativo adequado de uma alma espiritual. Cada indivíduo
vivencia, em si e nos outros, como uma realidade inseparável da totalidade do indivíduo (o
corpo, com sua espacialidade, temporalidade, sexualidade) se manifesta e expressa o eu.
Somente em situações extremas pode haver dissociação entre as dimensões corpórea e
mental-espiritual.

Esta distinção reflete em parte aquela feita em alemão entre Körper e Leib ,
desenvolvida por E. Husserl e M. Scheler. Körper é o corpo considerado objetivamente em
sua fisicalidade, enquanto Leib é o próprio corpo percebido pelo indivíduo em sua
subjetividade. A reflexão sobre a corporeidade é, de fato, um elemento importante na obra
dos filósofos fenomenológicos.

6. Origens e Evolucionismo

Por trás das explicações dadas neste capítulo e no último está a questão relativa às
origens da vida, do mundo e do homem. Isto, por sua vez, põe em causa o debate sobre o
evolucionismo, ao qual foi dada muita atenção no século passado e no início deste. Não
podemos oferecer um quadro completo do problema e procuraremos apenas definir de que
forma ele afeta o estudo da antropologia filosófica e, mais especificamente, o estudo
filosófico do corpo humano.

Não se deve esquecer que o evolucionismo não pode apresentar-se como uma
resposta à questão sobre a origem última da realidade porque, para evoluir, algo deve
primeiro existir. Por si só, portanto, a teoria evolucionista não se opõe à doutrina
judaico-cristã da criação. O conflito surge quando esquecemos que a Bíblia não existe para
fornecer as respostas à investigação científica sobre o mundo ou quando se sente
necessário fazer a passagem injustificada da teoria científica da evolução para uma visão
ateia e materialista do mundo e da humanidade. .

Acima de tudo, deve-se ter em mente que não existe uma única teoria evolutiva, mas
várias teorias, muitas vezes em conflito significativo umas com as outras. Assim, é
apropriado distinguir, como fazem alguns estudiosos, entre evolução e evolucionismo: o
primeiro é observável (embora alguns de seus detalhes ainda sejam objeto de discussão),
enquanto o último é frequentemente uma doutrina que inclui um conceito muito preciso do
pessoa humana e do mundo. Quando o evolucionismo se apresenta como uma tentativa de
responder à questão relativa à origem do homem, no sentido radical, isso envolve
necessariamente um certo grau de reducionismo; isto é, torna-se uma tentativa de explicar
tudo sobre o homem com base em algumas de suas características que são suscetíveis de
cálculo e medição.

7. Cosmogênese, Biogênese e Antropogênese

A questão sobre a origem do homem ( antropogênese ) está ligada àquela sobre a


origem do universo ( cosmogênese ) e sobre a origem da vida ( biogênese ). Dado que
ninguém teve experiência directa da origem do cosmos ou da vida, qualquer explicação
científica é extremamente indirecta - concentrando-se em efeitos muito distantes da sua
causa - e por isso apenas teorias muito hipotéticas podem ser formuladas.

No que diz respeito à origem do universo, a teoria mais aceite hoje é a da grande
explosão primordial (o Big Bang), que ocorreu há cerca de 15 mil milhões de anos e desde a
qual o universo iniciou a sua expansão e tornou-se progressivamente mais frio. Presume-se
que a Terra se formou há 4,5 mil milhões de anos, enquanto os fósseis mais antigos de
seres vivos datam de há cerca de 3,5 mil milhões de anos. Estes, no entanto, eram
organismos extremamente simples, o que torna difícil explicar a chegada de organismos
complexos, que só podem ser datados de muito mais tarde, há cerca de mil milhões de anos.
Outra questão ainda a ser esclarecida é a passagem dos elementos inertes (química) para
os seres vivos (biologia) porque há um enorme salto qualitativo da célula para os
elementos químicos envolvidos nas funções vitais.

Ao considerar a origem do homem, deve-se fazer uma distinção entre dois aspectos:
com efeito, embora estejam intimamente ligados, não podemos identificar a questão da
origem do homem com a da origem do corpo humano. O primeiro tema é de natureza
estritamente filosófica e tem implicações teológicas, enquanto o segundo pertence tanto à
filosofia como às demais disciplinas acadêmicas. O evolucionismo, baseando-se nas ciências
positivas, deveria procurar uma resposta à segunda destas duas questões e não
directamente à primeira. É por esta razão que, no estudo da antropogénese, costumamos
falar de dois processos distintos: o processo de hominização e o processo de humanização .

A hominização diz respeito à “preparação do corpo humano”, ou seja, aos estágios


não-humanos de desenvolvimento dos seres vivos que precederam o aparecimento da
humanidade na Terra. Assim, refere-se aos chamados “ancestrais” do homem. A
humanização, por outro lado, diz respeito ao “desenvolvimento do corpo humano”, isto é,
às etapas através das quais o homem já existente, usando a sua inteligência e liberdade,
aperfeiçoou os elementos característicos de uma forma de vida especificamente humana.
Ao estudar estes dois processos é possível destacar algumas etapas significativas, mas não
é empiricamente possível demonstrar a passagem de um processo a outro. Por outras
palavras, a paleoantropologia tem de admitir uma quebra de continuidade entre os
hominídeos e o aparecimento do ser humano. É por isso que a expressão “ancestrais do
homem” só pode ser usada para se referir aos seres vivos que precederam o aparecimento
da espécie humana e não para tomar como certa alguma suposta relação de descendência
direta entre hominídeos e seres humanos.

Além disso, o que chamamos de hominização não é um processo linear, mas


desenvolvido seguindo uma série de linhas evolutivas entrecruzadas, das quais algumas se
entrelaçaram e outras se extinguiram. Além disso, as alterações genéticas interagiram com
os factores ambientais de tal forma que a espécie humana passou a encontrar-se na
confluência de uma série de alterações que a tornam inteiramente única.

Consideremos brevemente algumas das etapas do processo que levou à formação da


espécie homo sapiens sapiens , que é a do homem moderno. Os primeiros primatas surgiram
há cerca de 65 milhões de anos, enquanto o aparecimento dos hominídeos pode ser datado
de cerca de 10 milhões de anos atrás. Graças aos restos fósseis é possível datar (com maior
precisão, embora ainda com uma variável de alguns milhões de anos) o aparecimento dos
australopitecos na savana africana entre 4 e 5 milhões de anos atrás. Esses hominídeos,
embora acostumados a viver em árvores (como evidenciado pelo comprimento de seus
membros superiores), andavam eretos (isto é, eram bípedes) e tinham uma capacidade
craniana média de 400 a 500 cc. Um espécime famoso é conhecido pelo nome de “Lucy”,
classificado como australopithecus afarensis , descoberto em Afar, na Etiópia, e datado de
3,2 milhões de anos atrás.

As várias formas de australopitecos foram extintas há cerca de 2 milhões de anos.


Também por volta deste período apareceu o homo habilis , cujos restos mortais foram
encontrados na África oriental e meridional. O nome se deve ao fato de que esses
hominídeos de alguma forma organizavam seu próprio território, usavam ferramentas de
pedra primitivas e tinham uma capacidade craniana desenvolvida de cerca de 700 cc. A
partir de cerca de 1,6 milhão de anos atrás, diversas partes da África passaram a ser
habitadas pelo homo erectus , assim chamado mesmo que a postura ereta ainda não tivesse
sido definitivamente adquirida. Restos de Homo erectus que datam de períodos mais
recentes também foram encontrados na Europa. Sua capacidade craniana era de cerca de
950 cc e ele era capaz de trabalhar pedra, usar fogo e organizar seu espaço vital.

Um processo gradual de coexistência entre as duas espécies levou a formas arcaicas


da espécie homo sapiens , surgida há cerca de 100 mil anos; estes incluem os Neandertais
europeus e do Médio Oriente, embora estudos recentes mostrem que o homem de
Neandertal já estava presente na Europa (por exemplo, em Espanha) há cerca de 400.000
anos. O homem de Neandertal foi sucedido pela espécie humana moderna, o homo sapiens
sapiens (que surge há cerca de 35.000 anos), embora só haja provas de uma relação de
contiguidade entre os dois, e não de continuidade. Foi demonstrado que o sapiens tinha
uma cultura muito evoluída: há vestígios de representações artísticas, de trabalhos em
pedra e osso e de práticas funerárias.

Este é, em poucas palavras, o conjunto de dados conhecido pela paleoantropologia,


que deve ser integrado ao da bioquímica e da genética molecular. A compreensão da
passagem de uma espécie para outra é muitas vezes fruto de hipóteses, embora, nos
últimos anos, a investigação do genoma das várias espécies tenha fornecido algumas
indicações muito úteis. Em qualquer caso, do que resumimos nesta seção, segue-se que o
processo que levou ao aparecimento dos seres humanos incorpora (além da influência
concomitante e necessária das mudanças ambientais) diversos mecanismos ou linhas
evolutivas, cuja ação não por si só não nos impede de reconhecer um finalismo que interliga
o desenvolvimento das diversas formas de vida.

Resumo do Capítulo 4

O corpo é um dos dois coprincípios do ser vivo. Os corpos de todos os seres vivos já
estão impregnados de uma alma; na verdade, um corpo sem alma seria mera matéria
orgânica, e não o corpo de um ser vivo. Nos seres vivos, o corpo é um organismo porque
suas partes estão estruturadas e sincronizadas entre si. Cada parte, ou órgão, tem uma
função ou finalidade precisa, e assim podemos falar da intencionalidade das partes do corpo
no sentido de que cada uma é pré-ordenada para o seu objetivo específico e para o objetivo
do ser vivo como um todo. . Nos humanos, como em todos os seres vivos, a alma e o corpo
constituem uma unidade substancial, e a relação entre eles é como aquela entre a causa
formal e a causa material do ser. A filosofia moderna, em particular a fenomenologia, faz
uma distinção entre o corpo ( Körper em alemão) e a corporeidade ( Leib ) para sublinhar a
diferença entre o estudo objetivo do corpo e a percepção subjetiva do próprio corpo. As
teorias evolucionistas procuram explicar as mudanças que as espécies sofrem ao longo dos
séculos, incluindo as da espécie humana. Tais teorias visam explicar a cosmogênese (a
origem do universo), a biogênese (o surgimento da vida) e a antropogênese (o
aparecimento e o desenvolvimento do ser humano), mas a natureza específica dos
humanos, que são seres corpóreo-espirituais, não pode ser explicado meramente em
termos de mudanças orgânicas e genéticas.

capítulo 5
As Faculdades, ou
Princípios Operativos:
Ato e Operação

1. Ato e Potência, Operação e Faculdade

No Capítulo 3 vimos como a alma é a forma substancial do ser vivo e examinamos


isso a partir de duas perspectivas diferentes: a da estrutura do ser e a do seu dinamismo. A
alma é o primeiro princípio das atividades vitais, mas isso não exclui o papel de outros
princípios intermediários que provocam as atividades de forma mais direta. A verdade é
que os seres vivos corpóreos são organismos complexos nos quais as operações surgem
através da interação de diferentes causas. Esses princípios intermediários são as
faculdades e os órgãos.

No último capítulo discutimos a noção de órgão. Agora devemos voltar nossa


atenção para as faculdades . Podemos definir faculdades em termos gerais como as
capacidades estáveis da alma para agir de uma determinada maneira, mas para alcançar
uma compreensão plena da noção de faculdade, devemos considerar a relação entre as
noções de ato, potência e operação. . A distinção entre ato e potência já surgiu em diversas
ocasiões ao longo deste trabalho, principalmente na explicação da estrutura fundamental
da realidade, que é constituída pela “forma substancial” e pela “matéria prima”. As noções
de ato e potência, entretanto, não podem ser definidas porque são a base de todas as outras
noções; ou seja, não é possível explicá-los utilizando elementos mais simples, mas apenas
descrevê-los e procurar “reconhecê-los” nas coisas.

A título de aproximação preliminar podemos dizer que o ato é a perfeição de uma


coisa, em qualquer nível, enquanto a potência é a disposição ou capacidade para atingir
essa perfeição. Assim, dizemos que algo “tem potência” na medida em que tem capacidade
de chegar a determinado ato; a referência, então, não é a uma mera ausência de uma certa
perfeição, mas a uma capacidade operacional real. Assim, a potência sempre se refere a um
ato e é sempre “potência para” um determinado ato.

No entanto, um ato não é necessariamente uma perfeição estável porque existem


atos — como movimentos e ações — que significam uma perfeição “em andamento” ou “em
andamento”. Para distinguir estes dois tipos de atos, o ato estável e o ato “em andamento”,
a filosofia clássica cunhou os termos, respectivamente, “primeiro ato” (actus primus) e
“segundo ato” (actus secundus) ou , mais simplesmente , “agir” e “operar”. Um exemplo de
1

“primeiro ato” é a forma (substancial ou acidental) de uma coisa, enquanto suas ações são
“segundos atos”.

Ora, se a potência, como vimos, sempre se refere a um ato e é entendida a partir do


ato, segue-se que devemos distinguir entre dois tipos de potência: uma potência que se
refere ao primeiro ato e outra que se refere ao segundo. agir. A primeira chama-se
“potência passiva” e consiste na capacidade de receber uma perfeição; a segunda é
chamada de “potência operativa” e consiste na capacidade de realizar uma operação.
Quando falamos das faculdades, ou poderes, da alma, referimo-nos precisamente às
potências operativas do ser vivo, ou seja, ao princípio direto ou imediato — e não ao
primeiro princípio, que é a própria alma — das suas ações.

2. Faculdade do Indivíduo ou Faculdade da Alma?

As faculdades são distintas tanto da alma quanto das operações individuais. A alma
é o primeiro ato substancial do ser vivo, enquanto as faculdades são os seus poderes, ou
capacidades operativas. E por que é importante distinguir entre a alma e as suas
faculdades? Porque as operações do ser vivo não são contínuas, mas descontínuas, pois,
embora o ser permaneça sempre vivo, nem sempre age de acordo com todas as suas
capacidades; ou seja, nem sempre está se movendo ou sempre percebendo sons ou cheiros.
2

Se a alma não fosse apenas o primeiro princípio de atividade, mas também o único e
imediato princípio, o ser vivo teria que estar utilizando todas as suas capacidades o tempo
todo.

E sabemos que os seres vivos, de fato, não o fazem: o ser individual atua através das
potências operativas, ou faculdades, da alma de tal maneira que esta última é (para usar a
terminologia que acabamos de delinear) uma primeira ato ordenado a um segundo ato. 3

Ora, se a alma é a forma substancial do ser, isso significa que, por um lado, ela confere a
espécie ao indivíduo e, por outro, que é o princípio primeiro de suas atividades. Assim, a
relação entre a alma e as faculdades pode ser considerada do ponto de vista da constituição
do ser e do seu dinamismo.

2.1. Ponto de Vista Estrutural:


As Faculdades como Propriedades Acidentais da Alma

A forma substancial, como já enfatizamos em diversas ocasiões, é o ato mais radical


da substância (isto é, do ser individual), em virtude do qual pertence a uma determinada
espécie e pode ter outras perfeições. O sujeito da forma substancial não é uma realidade já
4

formada, mas algo que existe apenas em potência. Por outro lado, uma realidade já em ação
pode ter diversas perfeições parciais, que são formas acidentais; por exemplo, uma pessoa
pode ser mais alta ou mais baixa, em um lugar ou em outro, com cabelos claros ou escuros.
Assim, podemos dizer que, no ser vivo, a alma é o primeiro ato substancial, enquanto as
faculdades são espécies de propriedades (ou acidentes) acidentais, embora de natureza
muito especial. Com efeito, em cada substância existem algumas perfeições que, embora
permaneçam distintas da forma substancial, dela surgem necessariamente e são chamadas
de “acidentes próprios”: as faculdades são acidentes deste tipo e, para ser mais preciso, são
um certo tipo de qualidade. 5

Sendo propriedades acidentais, as faculdades são atos, perfeições do indivíduo;


contudo, as diversas faculdades não são todas inerentes ao ser vivo da mesma maneira. 6

Algumas faculdades, como o intelecto e a vontade, não possuem órgão próprio, enquanto
outras, como as faculdades vegetativas e sensoriais, atuam sobre uma base orgânica
específica. Assim, as duas primeiras perfeições (a intelectual e a eletiva) são inerentes
diretamente à alma espiritual, enquanto as demais são perfeições que têm como tema o
organismo vivo como um todo.

Além disso, de modo análogo àquele em que a alma determina e especifica o corpo
humano, as faculdades determinam e especificam os órgãos; isto é, eles os tornam
adequados para determinadas operações. As faculdades, por sua vez, são especificadas por
7

suas operações e objetos. Podemos, então, afirmar que a diversidade dos órgãos surge da
diversidade das faculdades, e que a diversidade das faculdades surge da diversidade das
operações e dos objetos. 8

2.2. Ponto de Vista Dinâmico:


As Faculdades e a Atividade do Indivíduo

Já explicamos que, no decorrer da atividade, a alma movimenta as diversas


faculdades para realizar as operações individuais. Devemos, no entanto, mencionar
novamente um outro aspecto e nunca perdê-lo de vista, embora a própria análise das
faculdades possa fazer com que o esqueçamos: é impensável um indivíduo com estruturas
operativas separadas e independentes umas das outras. Dissemos, e diremos novamente,
9

que a perspectiva analítica não deve fazer-nos perder de vista a perspectiva global.

Assim, afirmar que a alma é sujeito de todas as atividades (espirituais e corporais)


de um ser vivo não significa que essas atividades possam ser atribuídas apenas à alma ou
às suas faculdades, e menos ainda aos órgãos. As ações devem ser atribuídas ao ser vivo
como um todo, que age graças à sua alma e às suas faculdades. Normalmente não dizemos:
10

“Meus olhos vêem” ou “Minha inteligência entende”, mas “Eu vejo” ou “Eu entendo”.
Falando corretamente, então, os atos pertencem ao indivíduo vivo e não às suas partes
individuais. 11
Assim, deve-se concluir que a alma, como forma substancial do ser vivo,
comunica seu próprio ato às faculdades, e estas produzem as operações individuais que se
referem a vários objetos.

3. Tipologia e Interação das Faculdades Humanas

Devemos agora considerar a diversidade das faculdades humanas. Tendo em conta


que estas faculdades são potências operativas, a sua distinção depende dos actos para os
quais são ordenadas, ou seja, das operações que são capazes de realizar. As operações, por
sua vez, distinguem-se com base no objeto a que se referem. Podemos dizer, então, que as
faculdades se distinguem pelas suas operações e as operações pelos seus objetos. 12

Isso não significa que as faculdades e suas operações devam ser identificadas entre
si. Os primeiros são sempre distinguidos dos segundos como a potência (operativa) do
(segundo) ato. Ter uma capacidade estável para agir de determinada forma não é a mesma
coisa que a efetiva realização de determinadas operações. Isto é evidente a partir da nossa
experiência pessoal: temos a capacidade de agir mesmo quando, de facto, não o fazemos;
por exemplo, possuímos a faculdade da visão mesmo quando nossos olhos estão fechados
ou a faculdade do tato mesmo quando não estamos tocando nada.

Deve ficar claro que nem todas as operações requerem uma potência diferente para
serem realizadas; em vez disso, as faculdades são especificadas e distinguidas por
operações de diferentes “tipos”. Por exemplo, ver a cor preta ou a cor azul — ambas são
qualidades — não requer faculdades diferentes, mas diferentes operações da mesma
faculdade, ao passo que ver uma cor, ouvir um som ou saborear um sabor são operações
que requerem faculdades diferentes.

3.1. Distinções entre as faculdades

Posteriormente consideraremos mais detalhadamente a natureza e os atos das


diversas potências operativas; por enquanto procuraremos apenas fornecer um esboço
geral. Em primeiro lugar, existem três grupos consideráveis de faculdades nos seres vivos:
faculdades vegetativas, sensoriais e intelectuais.

As faculdades vegetativas são assim chamadas porque são as únicas que as plantas
possuem. Os poderes vegetativos têm a característica de serem indispensáveis à vida e, de
fato, pertencem a todos os seres vivos. Eles são nutrição, crescimento e reprodução.

As faculdades sensoriais são possuídas pelos animais e pelo homem juntamente com
as funções vegetativas. Através deles o ser vivo está aberto a qualquer forma de realidade
corpórea ou material. São o conhecimento e as inclinações que vêm dos sentidos.

As faculdades intelectuais são possuídas exclusivamente por seres racionais. 13

Através do intelecto e da vontade, que possui juntamente com as funções vegetativas e


sensoriais, a pessoa humana está aberta a toda a realidade, tanto material como imaterial.
Uma característica importante das faculdades intelectuais é a sua imaterialidade, ou seja, o
fato de não possuírem órgão próprio e específico.

3.2. A interação das faculdades do homem

Para compreender a interacção dinâmica que existe entre as diversas faculdades,


devemos examinar a questão a dois níveis: o da natureza das faculdades (que, em última
análise, é determinada pelo objecto a que se referem) e o da natureza das faculdades. da
sequência cronológica das operações. Se considerarmos a natureza das faculdades, as
“primeiras” potências são as faculdades intelectuais, seguidas pelas faculdades sensoriais e,
por último, pelas faculdades vegetativas. Dizer que uma faculdade é “primeira” por sua
natureza significa que ela tem a primazia ou prioridade e, portanto, que as demais estão
subordinadas a ela.

Se, por outro lado, considerarmos a ordem cronológica das operações, então as
“primeiras” são as faculdades vegetativas, seguidas das faculdades dos sentidos e, por
último, das faculdades intelectuais. As faculdades superiores, por sua natureza, necessitam
das inferiores para poderem realizar as suas ações. Isto significa que o primeiro contato do
homem com a realidade – e, em geral, de qualquer ser vivo – se dá através do seu corpo e
de suas potências vegetativas. A experiência surge quando esse contato inicial no nível
vegetativo é então elaborado pelos sentidos e pelo intelecto.

Para finalizar este capítulo mencionaremos dois aspectos importantes relacionados


à interação das faculdades. A primeira é que as potências, assim como os graus de vida,
implicam-se mutuamente; isto é, as faculdades superiores dependem da operação das
inferiores. Assim, as potências intelectuais implicam a atividade prévia das potências
sensoriais, que, por sua vez, requerem a operação das potências vegetativas. O segundo
aspecto é que, embora para a preservação e o desenvolvimento da vida devam intervir
muitas das faculdades inferiores, no plano intelectual estão envolvidas poucas faculdades:
apenas o intelecto e a vontade, que atuam em vários níveis. Em outras palavras, a
complexidade é um sinal de perfeição no mundo material, assim como a simplicidade o é no
mundo espiritual. No entanto, o homem participa em ambos os mundos, e isto reflecte-se
14

na complexa interacção dos seus órgãos e na simplicidade das suas operações intelectuais.
Obviamente, isto significa que as faculdades humanas têm maior perfeição e capacidade
operativa.

Resumo do Capítulo 5

A alma é o primeiro princípio das atividades do ser vivo. No entanto, cada ser,
enquanto vivo, nem sempre realiza as operações que é capaz de realizar; por exemplo, nem
sempre está se movendo ou sempre sabendo. Assim, falamos de faculdades, isto é, daqueles
princípios imediatos de ação que são as potências operativas do ser vivo. São potências
operativas porque consistem na capacidade de realizar uma determinada operação. Nos
seres humanos, algumas faculdades possuem uma base orgânica específica (faculdades
vegetativas e sensoriais), enquanto outras (faculdades intelectivas, isto é, intelecto e
vontade) não possuem órgão próprio, embora seu funcionamento dependa
extrinsecamente da base orgânica.

Capítulo 6

Conhecimento Humano:
Os Sentidos Externos

1. Vida Cognitiva

No Capítulo 2 citamos Aristóteles no sentido de que “no caso das coisas vivas, o seu
ser é viver”. Na verdade, desenvolvendo as ideias que já explicamos, podemos afirmar que
viver significa existir reflexivamente (imanência) e em desenvolvimento (transcendência):
ser “de si mesmo e em direção a si mesmo”. Assim, vemos que há uma continuidade e uma
descontinuidade entre o ser e o viver: Viver é ser, mas de uma forma mais perfeita que os
objetos inertes ou inanimados. Com base nesta conclusão, indicamos que os graus de vida
são também graus de ser e que entre eles há continuidade (os graus superiores incluem os
inferiores) e descontinuidade (os graus superiores superam os inferiores).
Consequentemente, viver é ser, mas a vida também implica uma novidade no ser: cada grau
de vida está em continuidade com os graus anteriores, mas também introduz algo novo. É
neste capítulo que devemos falar das novidades que a vida cognitiva introduz em relação à
vida vegetativa.

Conhecer é uma forma de viver e uma forma de ser. Se é verdade que viver pode ser
descrito (em termos gerais) como um modo de ser reflexivo ou imanente, devemos agora
acrescentar que conhecer é viver reflexivamente, com um grau indiscutivelmente mais
elevado de imanência e transcendência no que diz respeito à vida vegetativa. Na verdade,
como procuraremos mostrar mais tarde, a imanência e a transcendência só ocorrem
realmente na vida cognitiva.

1.1. Ser e Saber

A vida cognitiva, então, é caracterizada por sua maior imanência e transcendência.


Mas como deveria ser entendida esta perfeição em relação aos seres vivos sem
conhecimento? Podemos encontrar esta perfeição em dois níveis: o da existência dos seres
vivos e o da sua atividade.

A forma substancial é, como já sabemos, o princípio da existência e da atividade de


todos os seres vivos. Nas substâncias dotadas de vida, a alma (sua forma substancial)
organiza o corpo e o torna capaz de realizar operações a partir de si e sobre si mesmo. No
caso das plantas, a atividade da alma consiste apenas em aperfeiçoar o próprio corpo;
assim, eles só podem possuir suas próprias formas e perfeições, o substancial e o acidental.
É claro que uma planta pode absorver outras substâncias – água e vários elementos
químicos – mas não os “tem” como distintos de si mesma; apenas os transforma em si
mesmo. Se essas substâncias têm certas qualidades de temperatura ou cor, etc., a planta
não pode ter essas qualidades na sua alteridade, mas é passiva em relação a elas, isto é, não
sente frio, mas fica fria. Podemos concluir, então, que o seu ter não se distingue do seu ser
1

no sentido de que não adquire outras perfeições.

Os seres vivos com capacidade de conhecimento vão um passo além. Eles podem
“ter” não apenas as suas próprias formas, mas também as de outras realidades e podem
dirigir as suas atividades com base nesta experiência. A alma cognitiva não limita suas
2

atividades à formação do seu próprio corpo; é dotado do que pode ser chamado de
“transbordamento formal”, ou seja, da capacidade de superar de alguma forma a
materialidade. Graças a isso, o ser vivo pode não apenas “ser” de uma forma ou de outra,
mas também “ter”, ou possuir, outras realidades distintas de si mesmo. O conhecimento,
então, não pode ser comparado à nutrição: na atividade cognitiva as formas “tinha” não
modificam passivamente o ser vivo, nem o ser modifica essas formas.

Tomás de Aquino falou assim de duas formas de ser: o ser natural e o ser
intencional. O ser natural é aquilo que as coisas têm na natureza, fora da mente; por
3

exemplo, a existência da maçã que está diante de mim, a cor verde de sua casca, a
composição química de sua polpa. No caso das coisas corpóreas, o seu ser natural inclui a
matéria. O ser intencional, por outro lado, é a existência que as coisas têm na alma: a maçã
percebida, a cor vista ou a doçura provada. Ao contrário do ser natural, o ser intencional é
sempre imaterial. Na verdade, não é possível que as coisas existam materialmente na alma
porque a própria alma é imaterial. Além disso, se as coisas estivessem materialmente na
mente, seriam modificadas no momento em que fossem conhecidas, porque a matéria não
pode estar localizada em lugares diferentes ao mesmo tempo (ela sempre tem dimensões
específicas).

Por isso dissemos que a atividade, ou perfeição, da alma cognitiva não se limita a
organizar e estruturar o corpo do ser vivo, porque ela é capaz de possuir outras coisas
dependendo do seu ser intencional. Assim, Aristóteles afirma repetidamente que a alma
cognitiva “é, de certa forma, todas as coisas existentes”. Ao falar de “ser de uma certa
4

maneira” ele se refere não ao ser natural, mas ao ser intencional, ou seja, ao ser que
respeita a alteridade das coisas. Neste contexto, são muito significativas as seguintes
palavras de São Tomás: “Segundo o ser material, que é restringido pela matéria, cada coisa
é apenas o que é, por exemplo, esta pedra nada mais é do que esta pedra; enquanto que de
acordo com o ser imaterial, que é amplo e de alguma forma infinito, na medida em que não
é circunscrito pela matéria, uma realidade não é apenas o que é, mas também, de alguma
forma, outras realidades.” 5

1.2. Ação Transitiva e Ação Imanente


Neste ponto podemos perguntar-nos: em que sentido o ser cognitivo, intencional e
imaterialmente, “tem” outras realidades? Por que o conhecimento não pode ser comparado
à nutrição? Para responder a isto devemos estudar a atividade dos seres cognitivos, e para
isso é necessário examinar a distinção, já feita por Aristóteles, entre dois tipos de atividade:
a atividade imanente e a atividade transitiva.

Aristóteles distinguiu dois tipos de ações, que chamou de póiesis e práxis . Estas 6

noções passaram para a filosofia clássica com os termos de “ações transitivas” e “ações
imanentes”, respectivamente. Se considerarmos qualquer tipo de atividade, vemos que ela
está sempre orientada para algum fim: “Todo agente age para um fim”, como diria São
Tomás. Esse fim é por vezes algo externo à acção; ou seja, um resultado ou produto
7

exterior como, por exemplo, a construção de uma casa. Outras vezes, porém, o fim não é
externo à ação, mas consiste na realização da própria ação. Isso acontece em ações que não
8

produzem um produto ou resultado tangível, externo, como observar uma pintura ou ouvir
música. A primeira dessas duas ações, aquela que produz um efeito externo, é chamada de
póiesis , ou “ação transitiva”; à segunda, que deixa efeito apenas no agente da ação, recebe o
nome de práxis , ou “ação imanente”. Consideremos agora estas duas formas de atividade
com mais detalhes.

1.2.1. Ações Transitivas

Ações como construir uma casa, preparar uma refeição ou dirigir um carro são
direcionadas a um objeto diferente do agente que as realiza. Assim, o seu resultado é
distinguível da acção em si e, para falar correctamente, poderíamos dizer que têm um
“objectivo” em vez de um “fim”. Esta distinção é clara em muitas línguas modernas, mas os
9

gregos já distinguiam entre peras (“objetivo”) e telos (“fim”). As ações transitivas têm,
10 11

então, um peras (objetivo) em vez de um telos (fim). Segue-se que tais ações não são
12

instantâneas, mas prolongadas ao longo do tempo. A razão última para isto reside no facto
de a actividade transitiva dizer respeito ao ser natural na sua materialidade, e como a
matéria tem sempre certas dimensões, isso implica necessariamente que a acção tem uma
finalidade espaço-temporal.

1.2.2. Ações Imanentes

As ações imanentes potencializam o agente que as realiza. Nesta categoria


enquadram-se operações como, por exemplo, ver, ouvir, querer ou pensar. O seu fim
consiste na própria ação: o objetivo de observar uma pintura não é modificá-la ou produzir
qualquer outro efeito material externo, mas simplesmente ver a pintura. São, então, ações
instantâneas que não ocorrem por meio de um processo. Podemos usar as palavras de
Aristóteles para descrevê-los: “Ao mesmo tempo vemos e vimos, entendemos e
compreendemos, pensamos e pensamos”. 13

Um outro ponto também deve ficar claro. No capítulo 2 explicamos como a vida se
distingue pela imanência, mas falávamos então de imanência no sentido amplo para
distinguir a existência e a atividade do ser vivo da pura exterioridade dos objetos inertes.
Agora podemos dizer que a imanência pode ser encontrada – falando corretamente, ou pelo
menos num grau mais óbvio – na vida cognitiva. Na verdade, só falamos de imanência
quando a atividade ultrapassa a exterioridade da matéria e o seu efeito permanece no
agente, e isso só é possível se a ação for imaterial, ou seja, se disser respeito às formas e não
à matéria.

1.3. Atividade Cognitiva

Deve agora estar claro que o conhecimento é uma atividade imanente e não
transitiva. Dentre as ações imanentes, a atividade cognitiva tem caráter “possessivo” ou
“apreensivo”. Isto a distingue das atividades do tipo apetitivo (das quais falaremos mais
tarde), que dependem da inclinação. Com efeito, enquanto no conhecimento o ser cognitivo
assimila a si a realidade, na inclinação o sujeito se orienta, ou tende, para a realidade. Como
vimos, a ação imanente relaciona-se com a existência intencional, que é imaterial. O
conhecimento pode ser definido, então, como “a posse imaterial ou intencional de uma
forma”. Isto significa que a forma possuída através do conhecimento existe na alma de
14

uma forma diferente daquela em que existe na realidade, ou seja, intencionalmente e não
naturalmente. Nesta definição, contudo, os termos “imateriais” e “intencionais” não são
completamente sinónimos.

“Imaterial” significa “não formado de matéria”. As formas substanciais ou acidentais


das coisas existem unidas à matéria, enquanto a forma como é conhecida é chamada de
15

“imaterial” porque é conservada na alma, separada da matéria. Por exemplo, a percepção


de uma maçã não tem sabor, mas é a maçã verdadeira que tem sabor; o pensamento do
fogo não queima, mas o fogo real queima. Assim, diz-se que a forma “conhecida” é uma
“semelhança” da forma real que existe unida à matéria.

“Intencional” significa “existir na alma”. As formas da realidade extramental dão às


coisas sua existência específica, enquanto a forma possuída cognitivamente não traz
nenhuma realidade à existência, mas existe apenas na alma. A sua existência é intencional;
em outras palavras, sua atividade consiste em referir-se à forma de realidade extramental
que dá à substância sua existência natural.

A intencionalidade é uma característica importante das formas na mente e


pressupõe imaterialidade. No contexto da atividade cognitiva, “intencionalidade” não
significa algo voluntário ou desejado; antes, indica que o conhecedor, através da forma
possuída, é “voltado” ou “referido” para a realidade conhecida. A forma ou espécie cognitiva
(a maçã comida, o sabor provado) está na mente, mas refere-se à realidade que representa
(a maçã real, as propriedades reais da sua polpa) e que é conhecida. Num sentido
etimológico, poderíamos dizer que somos “informados” pelo que sabemos e sobre o que
sabemos. 16

2. Sentir Conhecimento
2.1. Faculdades dos sentidos e conhecimento intelectual

A atividade cognitiva tem dois graus: o dos sentidos e o do intelecto. 17


O
conhecimento sensorial pertence aos animais e ao homem. Sua característica fundamental
é o fato de ocorrer por meio de um órgão do corpo. 18
Vimos como a relação entre a
faculdade e o órgão dos sentidos é “hilomórfica” (de forma e matéria): Cada faculdade
organiza e move seu órgão de maneira análoga àquela em que a alma organiza e move o
corpo. Os órgãos dos sentidos são partes do corpo especializadas nas funções necessárias
ao conhecimento. Assim, a sua constituição material implica sempre algum tipo de
limitação na atividade que são capazes de desempenhar; isto é, o olho serve apenas para
ver e não para ouvir, e não pode suportar um estímulo excessivamente brilhante; o ouvido
serve apenas para ouvir e não para ver, e não pode suportar um estímulo acústico
excessivo, e assim por diante.

O que acabamos de dizer sobre os limites do conhecimento sensorial pode ser


melhor compreendido se o compararmos com o conhecimento intelectual. Como veremos
mais adiante, as faculdades intelectuais não possuem um órgão específico, e não são
designadas pela matéria para apreender determinados objetos ou realizar determinadas
operações. As faculdades sensoriais, por outro lado, recebem formas através da alteração
física de seus órgãos específicos, de modo que essas formas, embora não sejam materiais
em si, são determinadas por certas condições materiais. Essas condições materiais
consistem na individualidade e na acidentalidade da forma sensorial, e isso significa que a
faculdade sensorial (ou mais simplesmente o “sentido”) sempre conhece uma forma
individual (isto é, não universal) e uma forma acidental (isto é, não substancial). : Minha
visão vê esse azul deste mar que estou contemplando, mas não o azul do mar em um sentido
geral ou abstrato. Além disso, uma faculdade sensorial só pode conhecer os objetos capazes
de alterar o seu órgão dentro de certos limites. 19

2.2. Os órgãos e faculdades dos sentidos


Como surge o conhecimento sensorial, ou mais simplesmente a ação de “sentir”? Em
primeiro lugar, o órgão é estimulado por algo físico ou corpóreo. Esta alteração envolve a
recepção de uma forma extramental específica, como o verde de uma oliveira ou o perfume
de uma planta de jasmim. Contudo, deve ser, como já explicamos, uma forma quantitativa e
qualitativamente “proporcional” às capacidades materiais do órgão, ou seja, dentro dos
seus limites de desempenho. Em geral, o olho pode ver cores e o ouvido ouvir sons, mas o
olho humano não pode ver a faixa cromática do infravermelho ou do ultravioleta, e o
ouvido não pode ouvir sons de frequência muito alta ou muito baixa.

Quando o órgão é estimulado fisicamente, ele recebe uma forma específica de forma
material e puramente passiva; isto é, é “modificado” pelo ato de uma realidade. Por sua vez,
a faculdade dos sentidos – que, juntamente com o órgão, forma uma única unidade – 20

recebe a mesma forma, mas de forma formal ou intencional. Na verdade, a faculdade


cognitiva é uma potência operativa e não passiva, de modo que a sua recepção de uma
forma não pode ser material nem meramente passiva; pelo contrário, a própria faculdade
atualiza a forma recebida e a dá a conhecer. Deve também ficar claro que a forma
extramental não seria conhecida sem a atividade da faculdade cognitiva; por exemplo, uma
qualidade química específica da maçã não seria um “sabor” se a maçã não fosse provada. 21

Assim, a “passagem” da forma natural específica para a forma sensorial intencional ocorre
em virtude de três fatores: (1) a alteração física ou estimulação do órgão; (2) a unidade
entre o órgão e o corpo docente; e (3) a recepção do formulário na faculdade, que o
atualiza. Tendo em conta estes três factores, três observações importantes devem ser
feitas.

1. O conhecimento sensorial não pode ser reduzido a um processo fisiológico,


embora exija tal processo para ocorrer. A alteração física do órgão, com a consequente
reação do sistema nervoso, não constitui conhecimento per se , mas é uma atividade
transitiva prévia. A atividade imanente de conhecer ocorre apenas no ato em que a forma é
recebida pela faculdade, que a atualiza e a torna conhecida. Não há processo (ou seja, um
momento inicial, um desenvolvimento e um fim) entre a recepção da forma e sua
atualização: o conhecimento é uma atividade imanente e, portanto, instantânea.

Esta especificação é importante porque se poderia pensar que o discurso filosófico


sobre o conhecimento dos sentidos introduz uma complicação excessiva no que diz
respeito às explicações (aparentemente mais simples) que um neurologista poderia dar
sobre o funcionamento dos órgãos da visão ou da audição e a sua relação com as diversas
áreas da visão. o cérebro. Mas o neurologista apenas explica os mecanismos do órgão e,
sendo um cientista, não se detém nos princípios últimos da atividade sensorial cognitiva.
Poderíamos dizer que, enquanto o cientista examina as mudanças físicas e as reações que
ocorrem no processo sensorial, o filósofo reflete sobre a mudança espiritual e intencional
associada à mudança física do órgão. Voltando à distinção feita no Capítulo 1, poderíamos
acrescentar que o neurologista ou fisiologista explica como ocorre a percepção sensorial de
um estímulo (por exemplo, algo quente), enquanto o estudioso da antropologia filosófica se
pergunta o que é esse calor que sinto . São dois níveis diferentes, embora interligados.

2. A imanência e a imaterialidade do conhecimento sensorial não são completas. Isto


se deve à base orgânica de tal conhecimento, ou seja, à necessidade da alteração física de
um órgão para que isso aconteça. Como observamos, esta incompletude de imanência e
imaterialidade é evidente principalmente nas condições de individualidade e
acidentalidade das formas dos sentidos. Mais tarde, veremos como a imanência e a
intencionalidade completas pertencem apenas à atividade intelectual.

3. A forma recebida pela faculdade tem a “mesma” forma daquilo que é percebido,
que existe, como já reiteramos em diversas ocasiões, naturalmente fora da mente e
intencionalmente na alma. Disto deriva uma observação fundamental de Aristóteles: “A
atividade do objeto sensível e a do sentido perceptivo são uma e a mesma atividade”. Isto 22

significa, por um lado, que nenhum ato de conhecimento existe sem um objeto – uma
espécie de “pensamento puro” – porque alguma coisa é sempre conhecida, e, por outro
lado, que a forma conhecida é um ato único em onde o ato do conhecedor (a faculdade) e o
ato do conhecido (a forma real) se unem. Sem esses dois atos não há conhecimento.
Por fim, devemos deixar claro que quando falamos de órgãos dos sentidos estamos
nos referindo a uma estrutura complexa que inclui uma parte periférica e uma parte
central. O primeiro reúne os estímulos sensoriais que então, através do sistema nervoso,
chegam a áreas específicas do cérebro onde são processados. O correto funcionamento das
faculdades sensoriais exige que todas essas estruturas permaneçam intactas e, vice-versa,
se as partes periféricas ou centrais forem danificadas, a percepção sensorial pode ser
afetada. Assim, por exemplo, após a amputação de um membro, alguma sensação de tato
pode persistir a nível neurológico, ou um trauma numa área específica do cérebro pode
impedir um indivíduo de reconhecer os estímulos de um órgão periférico.

3. Sentidos Externos

O conhecimento sensorial tem vários níveis, dependendo do grau de imanência da


forma conhecida. A diferença fundamental é aquela que existe entre os sentidos externos e
os chamados sentidos internos, mas mesmo dentro destas duas categorias é possível
estabelecer uma hierarquia com base no grau de imanência, como veremos a seguir. As
faculdades sensoriais externas estão em contato mais direto com a realidade, da qual
distinguem aspectos mais específicos, mas, ao mesmo tempo, mais superficiais. Por sua vez,
as faculdades sensoriais internas processam a experiência externa, distinguindo aspectos
mais profundos e mais gerais. Neste capítulo consideraremos os sentidos externos,
deixando o estudo dos sentidos internos para o próximo capítulo.

Dissemos que o conhecimento sensorial distingue formas individuais, que são


acidentes da substância, em outras palavras, aspectos acidentais daquilo que existe. No
23

entanto, nem todos os acidentes (quantidade, relacionamento ou lugar, por exemplo) são
capazes de estimular diretamente um órgão dos sentidos; somente as qualidades dos
sentidos podem fazer isso. Os sentidos externos, então, podem ser divididos de acordo
24
com as diversas maneiras pelas quais as qualidades reais estimulam os seus respectivos
órgãos. Desde a época de Aristóteles, é tradicional enumerar cinco sentidos: visão, audição,
olfato, paladar e tato. Como dissemos, entre estes podemos estabelecer uma hierarquia
dependendo do seu grau de imaterialidade e imanência. Isto depende de dois fatores: a
alteração física do órgão e a alteração dos meios pelos quais as qualidades entram em
contato com o órgão. 25

Alguns sentidos como o tato e o paladar requerem contato direto com o objeto e até
absorção material das qualidades para percebê-los (não se pode sentir calor sem se
aquecer até certo ponto, embora aquecer-se não seja o mesmo que sentir calor). Por outro
lado, outros sentidos, como o olfato, a audição e a visão, podem funcionar à distância do
objeto sem ter que adquirir materialmente as qualidades sentidas (o ouvido não precisa
tocar para ouvir, nem o olho mudar de cor para ouvir). ver).

Os cientistas ainda discutem o número de sentidos externos, e há alguma tendência


a considerar que existem mais de cinco. É um problema que, durante vários séculos,
também despertou considerável interesse entre os filósofos. No entanto, parece provável
que certas atividades sensoriais, além das listadas acima, sejam meramente operações
conjuntas de mais de um sentido ou diferentes modalidades do sentido do tato. 26

3.1. Tocar

O tato é o mais básico dos sentidos. Embora outros sentidos possam faltar em certas
espécies animais, as faculdades táteis estão presentes em todos os seres vivos dotados de
sentimentos. Todos os sentidos externos baseiam-se neste sentido e poderiam, de alguma
forma, ser considerados como configurações mais ou menos desenvolvidas deste. No caso27

do homem, um bebé nos primeiros meses de vida depende principalmente do toque, tanto
para a nutrição como para obter as informações sobre o seu entorno que necessita para o
seu desenvolvimento. No entanto, este é o mais “material” e o menos imanente de todos os
sentidos porque requer não só o contacto físico direto com o objeto, mas também uma
certa participação material nas suas qualidades; isto é, não podemos sentir calor ou frio
sem nos aquecermos ou resfriarmos.

Nos seres cognitivos superiores, o sentido do tato é mais desenvolvido (mais


“sensível”, poderíamos dizer) em relação à constituição mais equilibrada dos seus corpos.
Assim, Tomás de Aquino sustentava que o homem é a criatura que possui esta faculdade no
grau mais perfeito. Os animais podem ter outros dons naturais mais desenvolvidos (como é
o caso, por exemplo, dos sentidos do olfato e da visão de muitos animais), mas só no
homem o tato está aberto a qualidades tão sutis e diversas. Quanto à base orgânica deste
sentido, abrange todo o corpo do ser vivo, embora algumas áreas sejam mais predispostas
que outras. Os dedos estão particularmente bem adaptados, assim como a pele em geral e
até os tecidos internos. A ativação desta base orgânica requer, como é o caso de todos os
órgãos dos sentidos, a concentração de terminações nervosas específicas, e o sentido do
tato está completamente ausente, ou muito reduzido, nas partes do corpo onde tais
terminações estão ausentes ou escassos, como cabelos ou unhas.

3.2. Gosto

Com seu maior grau de imaterialidade e imanência, o sentido do paladar vem depois
do tato. Compartilha com o sentido anterior a necessidade de contato imediato com o
objeto e de certa aquisição material da qualidade gustativa percebida. Apesar disso,
pode-se afirmar que o paladar é mais imaterial que o tato porque possui um órgão
periférico mais localizado (as papilas gustativas na língua) e porque as qualidades
gustativas são mais específicas do que as qualidades táteis. Também é muito interessante
notar como a língua consegue diferenciar claramente entre sensações táteis e sensações
gustativas. Isto sublinha a distinção definitiva entre as duas faculdades.

Outra característica específica do órgão do paladar é a sua umidade: os sabores são


sempre percebidos misturados a um líquido de tal forma que a ausência total de umidade
impediria a sensação e, talvez, até danificaria o órgão. Até os alimentos mais secos são
dissolvidos ou misturados com líquidos secretados pela própria língua (saliva) para serem
degustados (é o que acontece, por exemplo, com o sal e com o açúcar). Por outro lado, o
excesso de líquido tornaria os sabores imperceptíveis, como acontece quando muitos
sabores se sobrepõem e temos dificuldade em reconhecer novos.

Do ponto de vista da sobrevivência de um ser vivo, o gosto pode parecer uma


faculdade supérflua, mas fornece informações vitais sobre a adequação daquilo que um
indivíduo conhece. Certamente uma realidade não é adequada ou inadequada pelo simples
fato de ser “saborosa”, mas certamente existe uma estreita relação entre os dois aspectos.
Por exemplo, um animal tende a comer aquilo que lhe dá prazer, que é, ao mesmo tempo, o
alimento mais adequado para ele. Obviamente, o caso do homem é muito mais complexo,
fundamentalmente porque a adequação da realidade é compreendida a um nível muito
mais profundo do que a do instinto ou dos sentidos; isto é, é compreendido ao nível da
razão.

3.3. Cheiro

Uma grande afinidade com o sentido do paladar encontra-se no sentido do olfato,


que tem, no entanto, um maior grau de imaterialidade e imanência porque o seu órgão não
precisa estar em contato direto com o objeto, nem precisa adquirir qualidades reais
materialmente. Com o olfato, as formas dos sentidos podem ser percebidas à distância da
coisa que as possui. A maior imanência do objeto conhecido também fica evidente na vasta
diversidade de qualidades olfativas e na facilidade com que podem ser ligadas à
experiência.

Por exemplo, é uma experiência muito comum associar um cheiro a uma pessoa, a
uma casa, a um acontecimento específico do passado, e assim por diante; algo que pode ser
chamado de “capacidade evocativa” dos cheiros. Isto tem grande importância para os
animais em sua busca por alimento, reprodução e defesa. No homem, por outro lado, o
olfato não é particularmente preciso ou bem desenvolvido e é inferior ao de muitos
animais. Porém, a capacidade olfativa do ser humano é capaz de distinguir muitas
qualidades, que podem ser agrupadas em categorias precisas.

Quanto ao órgão periférico do olfato, ele se encontra em uma superfície compacta


localizada na região superior da cavidade nasal (a “mucosa olfatória”) e, parcialmente, em
certas zonas próximas às laterais do septo nasal (o “epitélio olfatório”). ”). A partir daqui, o
estímulo nervoso atinge um centro muito próximo do cérebro. Este centro é uma das
primeiras partes do sistema nervoso a se desenvolver nas fases iniciais do organismo e,
junto com a visão, é o primeiro órgão dos sentidos a se diferenciar na formação do cérebro.
Isto mostra a importância fundamental do olfato na experiência de vida de um ser vivo,
pelo menos no que diz respeito às funções cognitivas elementares que controlam a nutrição
e a reprodução.

3.4. Audição

O sentido da audição tem um nível ainda maior de imaterialidade e imanência.


Compartilha com o olfato a característica de funcionar distante de seu objeto e de não ter
que adquirir materialmente as qualidades percebidas. Mas no caso do olfato, o ar inspirado
tem que ser aquecido na cavidade nasal para que os elementos químicos que contém
ativem o órgão, enquanto para ouvir as qualidades sonoras requerem apenas uma
alteração espacial e local da realidade. Além disso, a audição compartilha com a visão o fato
de que o agente material que interage com o órgão não é químico, como no caso do paladar
e do olfato, mas físico, como no caso do tato – ondas sonoras para a audição e ondas
luminosas para a visão.

Juntamente com a faculdade da visão, então, a audição é considerada um dos


sentidos externos superiores devido ao seu maior grau de imaterialidade e imanência.
Porém, diferentemente da visão, o sentido da audição exige uma certa mudança na
realidade para perceber as qualidades sonoras. Essas qualidades são produzidas pelo
movimento dos corpos e, portanto, ocorrem necessariamente ao longo do tempo. Em
outras palavras, mesmo que a ação de ouvir, sendo imanente, não siga um processo, as
qualidades reais devem manifestar-se sequencialmente para serem “ouvidas”. A
importância deste sentido para a vida humana é evidente tanto na diversidade das
qualidades sonoras – tom, timbre, intensidade, ritmo, duração, etc. – como no facto de o
som proporcionar uma forma especial de conhecimento sobre a sucessão dos fenómenos. A
audição, então, pode ser considerada como o sentido por excelência do tempo e da duração.

Quanto ao órgão periférico da audição, ele se encontra nas três partes do ouvido:
externo, médio e interno. O ar é de vital importância na recepção do som porque as ondas
sonoras não podem passar pelo vácuo. Eles podem, no entanto, passar por um corpo sólido
e até mesmo pela água, embora o ouvido dos animais terrestres esteja menos adaptado
para perceber sons em um líquido.

3.5. Visão

O sentido da visão é a mais imaterial e imanente das faculdades externas. Ao


contrário do tato e do paladar, e em comum com o olfato e a audição, seu órgão — o olho —
não precisa adquirir materialmente as qualidades percebidas, por exemplo, não precisa
tornar-se colorido ou luminoso para poder ver. Porém, diferentemente do olfato e da
audição, o órgão da visão não necessita de uma alteração significativa na realidade para ser
estimulado. O fato de a coisa vista ter de ser iluminada é uma mudança irrelevante em
comparação com outras mudanças na realidade.

Hoje sabemos que a luz é um meio físico e que as suas ondas são transmitidas ao
longo do tempo, mas a sua velocidade é tal que se aproximam (pelo menos no que diz
respeito à experiência quotidiana) de serem simultâneas. Assim, podemos dizer que a visão
exige a simultaneidade dos fenómenos, assim como a audição exige a sua sequencialidade.
E é certo que um sentido, cujo órgão pode interagir quase simultaneamente com
qualidades reais, é um sentido muito próximo daquelas faculdades que gozam de completa
imanência e imaterialidade; daí o fato de que as palavras “visão” e “iluminação” têm sido
frequentemente usadas para descrever a atividade da mente.

4. Sensíveis adequados, comuns e por acidentes

Até agora nos detivemos, em termos gerais, nos sentidos externos da visão, audição,
olfato, paladar e tato, que têm como objetos, respectivamente, cores, sons, cheiros, sabores
e qualidades táteis. Estes são chamados de objetos dos sentidos (ou sensíveis) próprios ou
“primários”, porque cada um é percebido por apenas um sentido e não pode ser percebido
por outro e porque, ao distingui-los, o sentido com uma base orgânica funcionando
corretamente não pode confundi-los.

No entanto, como já sugerimos, também existem aspectos sensoriais articulados e


complexos que não podem ser reduzidos a um único sentido. Estes não requerem a
existência de diferentes sentidos externos, mas a interação dos existentes para
proporcionar uma experiência mais complexa. Esses aspectos complexos têm sido
tradicionalmente chamados de sensíveis comuns , ou “secundários”, e são os seguintes:
movimento, repouso, unidade, número, figura e magnitude. Na verdade, com os nossos
sentidos podemos apreender se algo está em movimento ou parado, se é um ou muitos, se
tem uma determinada figura externa, se é grande ou pequeno. Não se deve, contudo, pensar
que estes aspectos sejam objetos de todos os sentidos ao mesmo tempo. Por um lado, é
verdade que o movimento, o repouso e o número podem ser percebidos por todos os
sentidos ao mesmo tempo, ao passo que isto não se aplica à figura ou à grandeza; por outro
lado, o tato e a visão podem distinguir todos os sentidos comuns, enquanto o paladar, o
olfato e a audição não.

Os sensíveis próprios e comuns são chamados de “sensíveis per se ” porque são os


aspectos acidentais, ou individuais, da realidade, que os sentidos externos podem
apreender por si próprios. Existem, no entanto, outros aspectos da realidade que se diz
indevidamente serem o objeto das faculdades dos sentidos. Estes são chamados de
“sensíveis por acidente ”. Imaginemos, por exemplo, que estamos olhando para um cavalo
branco: O objeto da nossa visão é na verdade a cor, mas, como a cor branca pertence
sempre a um sujeito, dizemos que “vemos” o cavalo; em outras palavras, atribuímos um
acidente a uma substância corpórea. No entanto, quando dizemos isto, não nos referimos à
substancialidade do cavalo porque a substancialidade não é algo capaz de estimular um
órgão dos sentidos: não é um acidente ou um conjunto de acidentes. Falando corretamente,
então, “o cavalo individual existente” não é um objeto de conhecimento sensorial, mas de
compreensão intelectual. Algo semelhante poderia ser dito sobre a causalidade: ver algo
branco nascer de uma égua — o potro — não é testemunhar a causalidade, mesmo que essa
realidade seja o efeito de uma causa. A causalidade, como a substância, é objeto apenas do
intelecto.

Resumo do Capítulo 6

No Capítulo 2 falamos da capacidade de imanência e transcendência do ser vivo.


Estas duas capacidades são a base da distinção entre dois tipos de ação que o ser realiza:
ações transitivas e ações imanentes. Ações transitivas são aquelas que produzem um
resultado externo distinto da ação em si, por exemplo, construir, pintar, cozinhar, etc.
Ações imanentes são aquelas que não produzem um resultado distinto da ação em si
porque seu resultado permanece dentro do agente que as executou . Tanto o conhecimento
sensorial quanto o conhecimento intelectivo são ações imanentes. A atividade cognitiva
pode ser definida como a posse imaterial ou intencional de uma forma. Ao conhecer, um
indivíduo assimila intencionalmente a realidade.

O conhecimento sensorial, que é específico dos animais e dos seres humanos (as
plantas não o possuem, no sentido estrito), surge através de órgãos específicos do corpo.
Esses órgãos são a sede das faculdades sensoriais, que percebem as formas cognitivas de
acordo com certas condições materiais. Isso significa que a forma do sentido cognitivo é
sempre individual e acidental, ou seja, refere-se aos aspectos acidentais da realidade.

A filosofia aristotélico-tomista distingue entre os sentidos externos e internos.


Tradicionalmente, existem cinco sentidos externos: tato, paladar, olfato, audição e visão,
cada um com seu próprio objeto sensorial (respectivamente, qualidades táteis, sabores,
cheiros, sons e cores). Através da interação dos vários sentidos, os sentidos comuns –
incluindo tamanho, repouso e movimento – são percebidos.

Capítulo 7

Conhecimento Humano:
Experiência Sensível Interna

1. Sentidos Externos e Sentidos Internos

A experiência sensorial não se limita ao conhecimento externo descrito no capítulo


anterior, mas é processada num nível mais profundo pelos chamados “sentidos internos”. 1

Tal processamento é indispensável para a vida dos seres cognoscentes porque, como
explica Tomás de Aquino: “Devemos observar que, para a vida de um animal perfeito, o
animal deve apreender uma coisa não apenas no momento real da sensação, mas também
quando ela está ausente. De outra forma . . . um animal não seria movido a procurar algo
ausente: o contrário disso podemos observar especialmente em animais perfeitos, que são
movidos por progressão.” 2

Na experiência sensorial externa, muitos limites têm que ser superados para poder
agir com base no conhecimento: nenhum sentido pode perceber o objeto dos outros
sentidos e, portanto, não pode unificar ou distinguir os fenômenos; nenhum sentido
conserva as suas sensações e, portanto, não permite ao ser vivo agir na ausência da
realidade percebida; nenhum sentido é capaz de avaliar a realidade que apreende e,
portanto, não fornece conhecimento suficiente para a ação. Porém, a observação mostra
que os seres vivos dotados de conhecimento superam esses limites em seu
comportamento. Devemos, então, procurar compreender quais faculdades “organizam” a
experiência sensorial e permitem que os seres vivos atuem com base nela.

Em primeiro lugar, um ser vivo deve ser capaz de receber dados dos sentidos
externos de forma unitária, mas diferenciada; isso acontece através do bom senso ( sensus
communis ). Em segundo lugar, é necessário que este conhecimento seja conservado para
que possa ser utilizado em diversas circunstâncias; este é o papel da imaginação . Em
terceiro lugar, o ser vivo deve ser capaz de apreender a adequação ou a nocividade da
realidade sensorial para poder agir com base no seu conhecimento; esta tarefa cabe ao
poder estimativo dos animais e ao poder cogitativo do homem. Finalmente, o ser vivo deve
ser capaz de conservar as suas avaliações para agir em vários momentos do tempo; esta é a
função da memória . 3

Como explicamos no capítulo anterior, as faculdades dos sentidos podem ser


categorizadas de acordo com o grau de imanência da forma percebida. Agora, tendo
considerado os vários níveis de imaterialidade e imanência na experiência sensorial
externa, devemos fazer o mesmo com os sentidos internos e, para este fim, podemos
dividi-los em dois grupos. Por um lado, certos sentidos recebem ou conservam formas de
sentido e são chamados de sentidos formais ; estes são o bom senso e a imaginação. Por
outro lado, certos sentidos recebem ou conservam valores sensoriais de adequação e são
chamados de sentidos intencionais ; estes são os poderes estimativos (no homem, poderes
cogitativos) e a memória. Cada um dos dois grupos tem uma hierarquia dependendo do
4

seu grau de imanência: a imaginação é mais imanente que o senso comum, e a memória é
mais imanente que o poder estimativo (no homem, o poder cogitativo).
Por último, no que diz respeito aos órgãos dos sentidos internos (não esqueçamos
que estamos a falar de faculdades orgânicas), estes estão muito menos claramente
demarcados do que os sentidos externos. Eles estão localizados em várias partes do
sistema nervoso, principalmente nas chamadas áreas do cérebro. 5
Contudo, dois
esclarecimentos devem ser feitos. Em primeiro lugar, não existe uma correspondência
inequívoca entre os sentidos internos e estas áreas; em outras palavras, um único sentido
pode atuar a partir do estímulo – simultâneo ou sucessivo – de diferentes áreas. Em
segundo lugar, o estímulo que desencadeia a operação não é um estímulo externo, mas a
ação dos próprios sentidos externos, que é processada pelo cérebro em vários níveis.
Passemos agora a considerar mais de perto os sentidos internos.

2. O bom senso

Como vimos, cada um dos sentidos externos apreende o seu objeto particular, mas
não tem a capacidade de perceber as suas próprias operações nem de distinguir os seus
próprios objetos dos dos outros sentidos. Por exemplo, a visão apreende a cor vermelha de
uma maçã e, em condições normais, distingue-a do verde das folhas, mas não percebe a
ação de ver, nem distingue a vermelhidão da casca da doçura da maçã. carne. Essas
operações que não são realizadas pelos sentidos externos são, no entanto, fundamentais
para o ser vivo, que deve ser capaz de absorver os aspectos sensoriais de forma unitária e
ordenada. O que percebemos não é, de facto, uma mistura de fenómenos que se apresentam
aos nossos sentidos; em vez disso, os dados dos sentidos têm uma ordem que revela a
unidade do que percebemos fora da mente. Além disso, o ser vivo tem consciência de que
está sentindo, mesmo sem refletir sobre os seus próprios atos, e isso lhe permite unificar a
sua própria experiência.

Segue-se, então, que deve haver uma faculdade que una as operações e os objetos
dos sentidos externos. Essa faculdade é chamada de “senso comum”. Seu objeto não é
diferente daquele dos sentidos externos individuais; antes, é constituído desses mesmos
objetos juntamente com as operações dos próprios sentidos, apreendidos de forma
unitária. Por esta razão, o senso comum tem sido denominado “síntese perceptiva” e
6

“consciência sensorial”, podendo ser considerado como o primeiro nível de


autoconhecimento do ser. 7
Sua ação é, então, uma unificação de sensações, ou um
agrupamento de sensações unificadas, e recebe o nome de “percepção”.

Assim, podemos dizer que o senso comum é o sentido formal da unidade da


experiência sensorial, ou seja, a faculdade que unifica, na percepção, a pluralidade das
sensações externas. Segue-se que é a faculdade responsável pela percepção dos objetos que
chamamos de “sensíveis por acidente ”. Na verdade, como sugerimos no capítulo anterior,
uma primeira aproximação 8
da substância e da causalidade (embora não no sentido
próprio, isto é, nem a natureza da realidade percebida, nem o nexo causal em si) é
apreendida precisamente no sentido sensorial. unificação da percepção. Por exemplo, ao
conhecer uma maçã o bom senso atribui a sensação de vermelho e a de doçura à mesma
realidade, vinculando ambas à nutrição. Deve, no entanto, ficar claro que o senso comum
unifica mas não conserva as formas percebidas pelos sentidos externos. Esta, como
veremos, é tarefa da imaginação. Assim, o bom senso só é ativado na presença da realidade
em questão.

Quanto à base orgânica deste sentido, a neurofisiologia sustenta que não é


altamente localizada, mas pode ser encontrada em todo o córtex cerebral. A título de
9

resumo, podemos aqui recapitular as funções do senso comum como (a) apreender os
objetos de todos os sentidos externos, (b) distinguir esses objetos, (c) unificá-los na
percepção e (d) apreender o atos dos sentidos externos em uma espécie de “consciência
sensorial”.

3. Imaginação
A unificação dos sentidos externos, realizada pelo senso comum, não é momentânea
ou transitória, mas é conservada a nível sensorial. Se isso não acontecesse, o conhecimento
seria interrompido na ausência da realidade que o originou e haveria uma descontinuidade
entre as diversas percepções, o que impossibilitaria a vida sensorial. Para conservar as
percepções, então, é necessária uma faculdade diferente do bom senso, e esta faculdade é a
imaginação . Aqui nos encontramos com um grau de imanência maior do que o de
percepção porque o que é conhecido “permanece” no ser cognoscente; ou seja, é
conservado pelo corpo docente. Consequentemente, a imaginação não está ligada à
presença física da realidade, mas funciona de forma independente.

É evidente que a imaginação é de grande importância para os seres vivos porque


conservar as percepções lhes permite dar continuidade à sua experiência de vida e
unificá-la mais completamente. Tal unificação ocorre como uma espécie de “generalização”,
ou seja, uma integração e extensão das formas conhecidas. A capacidade desta faculdade
10

de “conservar e unificar” torna-a particularmente aparentada com o intelecto e,


poderíamos dizer, prepara o caminho para a atividade deste último, pois, como veremos, é
a partir de imagens que a abstração intelectual pode tomar lugar. Na verdade, sem
imaginação não pode haver pensamento porque algo não pode ser compreendido sem
alguma representação imaginativa prévia. 11
No entanto, é igualmente importante não
confundir imaginação com pensamento porque é possível imaginar coisas que são falsas,
enquanto a compreensão de algo não pode ser falsa. 12

Também não devemos confundir imaginação com a percepção que pertence ao bom
senso. Por exemplo, podemos exercitar a nossa imaginação enquanto dormimos, mas não
podemos fazer o mesmo com a nossa percepção; além disso, alguma forma de realidade
pode despertar em nós uma sensação e ser percebida sem ser representada na imaginação.
13
No entanto, continua a ser verdade que a atividade desta faculdade segue a ação do senso
comum (isto é, da percepção); isto é, não podemos imaginar sem ter sentido e percebido. 14

Com base numa série de estudos, Jolivet observa que as pessoas são capazes de criar
imagens apenas com base nos sentidos que têm ou tiveram. Por exemplo, aqueles que
nasceram cegos e surdos podem usar imagens tácteis, olfactivas e gustativas com grande
precisão, mas não outras imagens, enquanto a perda de uma função sensorial através da
15

lesão de um órgão periférico não envolve a perda de imagens relacionadas com objectos.
específico para esse sentido. 16

A imaginação realiza a primeira integração do espaço e do tempo no conhecimento.


17
Com efeito, esta faculdade é capaz de reunir os sensíveis comuns — previamente
adquiridos pelos sentidos externos e parcialmente unificados na percepção — numa única
18

forma complexa.

Falamos acima de uma continuidade entre a imaginação humana e o intelecto. A


verdade é que tal continuidade se encontra em todas as faculdades sensoriais do homem, e
isso as torna mais perfeitas que as dos animais. Tal perfeição é evidente num nível inferior
nos sentidos externos e no senso comum, mas é mais evidente na imaginação, pois,
enquanto nos animais esta faculdade é um simples “arquivo” de percepções, nos seres
humanos ela fornece ao intelecto recursos “material” com base no qual extrair conceitos
universais.

Em outras palavras, a imaginação humana é a faculdade que estabelece a ligação


entre a vida sensorial e a vida intelectual. E a imaginação humana tem um alcance
operativo maior e objetos mais complexos do que a imaginação animal, que é mais simples
e mais rígida. 19
Na verdade, é precisamente porque a imaginação humana estabelece
continuidade entre a experiência sensorial e as faculdades superiores que está à disposição
dessas faculdades, isto é, do intelecto e da vontade. 20

A imaginação é de particular importância quando se trata de invenção e criação


artística. É claro que algumas descobertas são estritamente racionais e não meramente
sensoriais (um teorema matemático, por exemplo, ou uma fórmula química), mas falamos
de “invenções” para nos referirmos especificamente a processos imaginativos que podem
dizer respeito ao campo da arte, das ciências, ou tecnologia. Na verdade, qualquer trabalho,
por mais técnico ou artístico que seja, exige desenho e planeamento e, nisso, a imaginação
desempenha um papel importante. Mais tarde, veremos que a capacidade criativa teria
21

pouca utilidade se não fosse guiada pela inteligência e, portanto, quando falamos de
“imaginação criativa”, estamos realmente nos referindo à imaginação como guiada pela
inteligência prática, que é a faculdade (a faculdade não-sensorial) capaz de organizar os
meios com vistas a um fim. 22
Do que dissemos fica claro que é importante educar a
imaginação para contribuir para a formação da personalidade.

Identificar o órgão da imaginação é uma questão complicada, ainda mais do que a da


percepção. Vimos como, ao contrário dos sentidos externos, a base orgânica dos sentidos
internos não está claramente demarcada. No caso da imaginação, porém, ela nem sequer é
fixa ou determinada, embora seja localizada. Pode-se dizer que a base orgânica da
imaginação é constituída por certos circuitos neuronais que mudam ao longo da vida de um
indivíduo. Em outras palavras, o cérebro e o sistema nervoso adaptam-se
progressivamente de acordo com a atividade da imaginação. Esta é uma observação muito
23

importante porque apenas um órgão que não é rigidamente determinado (ao contrário dos
órgãos dos sentidos externos) é capaz de conservar formas na ausência da presença física
da realidade de onde vieram essas formas.

Em síntese, podemos dizer que a imaginação é a faculdade que conserva as


percepções e faz com que elas voltem a estar presentes. Pode ser definido, então, como o
sentido formal da continuidade da experiência sensorial externa. Se, como já observamos, a
percepção é uma unificação de sensações, podemos agora acrescentar que a imaginação é
um arquivo de percepções. As funções da imaginação podem, então, ser recapituladas da
24

seguinte forma: (a) conservar as percepções do senso comum, (b) completá-las


adicionando outras percepções previamente conservadas, (c) combinar várias percepções
para obter imagens mais gerais, e (d) fornecer ao intelecto imagens gerais para que este
seja capaz de extrair conceitos universais.
4. Poder Cogitativo

Passemos agora a considerar outros sentidos internos, aqueles que chamamos de


“intencionais”. Estes apreendem e conservam os aspectos sensoriais particulares que
dizem respeito à adequação ou à nocividade das coisas. Esses aspectos (chamados, aliás, de
intenções , ou seja, intenções) provocam um certo movimento da vontade nos seres vivos,
pois a verdade é que as realidades conhecidas não atraem nem repelem se não forem
consideradas adequadas ou prejudiciais. Como observa Aristóteles, podemos imaginar as
25

coisas mais terríveis e, no entanto, permanecer calmos, como acontece quando vemos
alguma cena horrível representada numa pintura, mas isso não acontece se considerarmos
essas realidades perigosas ou prejudiciais. Uma ovelha, por exemplo, não foge do lobo
26

porque é preto e feio, mas porque a ovelha reconhece isso como algo que pode prejudicá-la.

A faculdade que apreende a adequação ou nocividade de uma realidade sensorial


individual é chamada de poder cogitativo no homem e poder estimativo nos animais. A ação
do poder cogitativo e estimativo contém algum grau de antecipação do futuro porque
distingue implicitamente o fim para o qual o indivíduo está orientado. Com base em
diversas percepções avaliativas, esta faculdade pode orientar a atividade e possibilitar a
aquisição de experiência. Conseqüentemente, o poder cogitativo ou estimativo também
pode ser chamado de “sentido intencional do futuro”. 27

As funções do poder cogitativo e estimativo podem ser resumidas da seguinte


forma: (a) avaliar os aspectos individuais da realidade sensorial, (b) dirigir a atividade com
base nessa percepção avaliativa, e (c) adquirir experiência de ambos os próprios aspectos
individuais. e da acção prática que lhes diz respeito. Esta é a base da capacidade de
aprender e ser treinado.

Pelo que acabamos de dizer, é evidente que o poder cogitativo e o poder estimativo
estão intimamente relacionados com o instinto natural, sobre o qual falaremos mais
detalhadamente no Capítulo 9. Aqui nos limitaremos a observar que todos os instintos
contêm um aspecto de inclinação e um aspecto do conhecimento. Pense, por exemplo, em
como uma andorinha reconhece o material adequado para construir o seu ninho. No
entanto, o poder de estimativa nos animais é guiado pelo instinto natural e, portanto,
oferece informações rigidamente definidas sobre a adequação ou nocividade de uma
realidade particular. Por outro lado, o poder cogitativo no homem é guiado pela razão e,
portanto, é capaz de considerar vários motivos para a adequação ou nocividade das coisas,
aplicando o julgamento da razão à realidade concreta. É por isso que o poder cogitativo
também é chamado de “razão particular” ( ratio particularis ) porque de alguma forma
28

participa do conhecimento intelectual e atua reunindo os diversos elementos do


conhecimento sensorial.

5. Memória

A memória tem a função de conservar e reapresentar as percepções avaliativas do


poder cogitativo. Portanto, pode ser chamado de “sentido intencional do passado”, assim
como o poder cogitativo ou avaliativo é do futuro, como dissemos acima. A relação entre
estes dois sentidos intencionais é análoga àquela que existe entre os sentidos formais, ou
seja, o senso comum (que apreende as formas unitariamente) e a imaginação (que conserva
as formas e as representa).

A função da memória é, então, semelhante à da imaginação, embora diga respeito a


avaliações e não a formas. No entanto, precisamente porque trata de avaliações, há outra
diferença importante entre os dois: a memória, de alguma forma, distingue o tempo,
enquanto a imaginação é incapaz de fazê-lo. Na verdade, as avaliações não correspondem
apenas às qualidades das realidades externas que são objeto dos nossos sentidos, mas
também se referem às nossas próprias disposições subjetivas. Assim, o que se conserva na
memória – tendo sido primeiro apreendido pelo poder cogitativo ou estimativo – é a
atividade interior do próprio ser vivo, ou seja, a sua própria “experiência de vida”. A partir
29

desta descrição, fica evidente que a memória é vital para a consolidação da experiência
adquirida. No imediato, é o poder estimativo ou cogitativo que torna possível tal
experiência, mas é na memória que ela se conserva e consolida.

Tendo em conta o facto de a memória ser uma faculdade sensorial (e, portanto, uma
faculdade orgânica), pode-se compreender porque é que certas lesões cerebrais podem
30

resultar na perda da percepção da identidade subjectiva. Este fato, porém, não significa que
possamos afirmar, como fizeram alguns autores, que o self esteja localizado no cérebro. O 31

“eu” humano não é redutível à experiência de si mesmo, nem à alma ou ao corpo


separadamente; antes, implica a totalidade da substância espiritual e corporal. No entanto,
32

a memória sensorial — pela conservação da sua própria experiência — envolve uma


espécie de “consciência da própria identidade”, embora muito limitada; no entanto, esta
consciência não é exclusiva do sentido interno da memória porque o eu humano não é
meramente corpóreo e, portanto, não pode ser totalmente apreendido pelos sentidos. A
área do cérebro responsável pela memória é às vezes chamada de forma inadequada de
“localização da consciência de si mesmo”. Como veremos, tal consciência só existe
realmente no nível intelectual porque o intelecto é capaz de apreender e conservar tanto os
aspectos materiais como espirituais da experiência.

As funções da memória podem ser resumidas nos três pontos seguintes: (a)
conservar as percepções avaliativas, (b) articular sensações ao longo do tempo e (c) dar
continuidade à experiência interna. Também nesta faculdade há uma diferença notável
entre os seres humanos e os animais, pois, enquanto os animais se lembram das coisas
instintivamente, nos seres humanos as memórias podem ser controladas e organizadas 33
graças ao facto de a memória também participar ao nível do intelecto
e a vontade.

O poder cognitivo e a memória têm sua base orgânica em certas áreas altamente
localizadas do cérebro. Lesões nessas áreas podem causar perda parcial ou total da
capacidade de recordação.
Resumo do Capítulo 7

No capítulo anterior, explicamos como a filosofia aristotélico-tomista distingue


entre os sentidos externos e os sentidos internos. Enquanto os sentidos externos são
ativados diretamente por um estímulo, os sentidos internos são ativados após a recepção
dos dados sensoriais externos. Na verdade, os sentidos internos podem ser ativados
mesmo na ausência de um estímulo externo.

Embora hoje alguns estudiosos utilizem terminologias parcialmente diferentes,


existem tradicionalmente quatro sentidos internos: em primeiro lugar, o senso comum, que
reúne e distingue as percepções dos sentidos externos. Em segundo lugar, a imaginação,
que conserva e unifica as percepções sensoriais; as imagens dos sentidos são a base da
atividade intelectiva dos seres humanos. Em terceiro lugar, o poder cogitativo (chamado
poder estimativo nos animais), que apreende aspectos sensoriais relativos à adequação ou
nocividade das coisas. Em quarto lugar, a memória, que conserva e representa as
percepções avaliativas do poder cogitativo; desta forma, a memória articula sensações ao
longo do tempo e dá continuidade à experiência sensorial interna.

Capítulo 8

Conhecimento Humano:
O Intelecto

1. Conhecimento Intelectual
No Capítulo 6 fizemos uma apresentação geral da vida cognitiva, afirmando que ela
se distingue pela sua imanência e imaterialidade. Contudo, também explicamos que no
conhecimento sensorial estas duas características são sempre limitadas pela condição
material das formas dos sentidos e que apenas o conhecimento intelectual é totalmente
imanente e imaterial. A frase aristotélica anteriormente citada no sentido de que a alma
cognoscente “é de certa forma todas as coisas existentes” encontra sua plena confirmação
neste nível, pois o intelecto pode conhecer tudo o que existe e, portanto, “conformar-se”
com isso (embora cada sentido possa apreende apenas os seus próprios objetos com as
características específicas com que se apresentam).

É por isso que podemos falar de uma abertura potencialmente ilimitada do intelecto
– uma consequência da sua imaterialidade. No entanto, o que queremos dizer quando
afirmamos que o conhecimento intelectual é imaterial? Já respondemos parcialmente a esta
questão nos dois últimos capítulos, quando explicamos que as faculdades dos sentidos são
limitadas pela sua base orgânica; isto é, eles só conseguem distinguir certos estímulos
dentro de certos limites. Um estímulo excessivamente forte pode prejudicar o órgão, pelo
menos temporariamente, enquanto um estímulo muito fraco não seria percebido, como no
caso de uma explosão que pode prejudicar a audição ou de um som tão baixo que não pode
ser ouvido. Isto se deve justamente à materialidade do conhecimento sensorial. A
inteligência, por outro lado, não tem um limite abaixo do qual não possa funcionar, uma vez
que nenhuma realidade é pequena demais para ser compreendida; nem existe um limite
acima do qual as faculdades intelectuais seriam danificadas. Muito pelo contrário, um nível
mais elevado de conhecimento intelectual permite uma melhor compreensão de outras
áreas da realidade. É claro que isto não significa que saibamos tudo o que existe, mas
significa que se, actualmente, não conhecemos algum aspecto específico do mundo (por
exemplo, uma nova espécie animal ou um dos genes de o genoma humano), isto não
depende de limitações estruturais do intelecto.
Baseando-se numa ideia de Aristóteles, Tomás de Aquino formulou a seguinte
conclusão: “É claro que por meio do intelecto o homem pode ter conhecimento de todas as
coisas corpóreas. Ora, quem quer que conheça certas coisas não pode ter nenhuma delas
em sua própria natureza, porque aquilo que está naturalmente nele impediria o
conhecimento de qualquer outra coisa. . . . Portanto, se o princípio intelectual contivesse a
natureza de um corpo, seria incapaz de conhecer todos os corpos. . . . Da mesma forma,
é-lhe impossível compreender por meio de um órgão corporal, uma vez que a natureza
determinada desse órgão impediria o conhecimento de todos os corpos.” 1

Argumentar que a inteligência é imaterial não significa, evidentemente, esquecer


que a pessoa é um ser corpóreo-espiritual. Pelo contrário, deve-se reconhecer que o papel
dos sentidos é indispensável ao intelecto porque, para podermos alcançar um
conhecimento da “natureza dos corpos” (isto é, da essência das coisas), precisamos do
sentido formas apreendidas pelos sentidos externos e internos. Assim, podemos dizer que
“o fantasma [isto é, a imagem fornecida pela imaginação] é para o intelecto o que a cor é
para a visão”. Por exemplo, podemos conhecer a essência de um gato, compreender o que é
2

um gato e fornecer uma definição de gato apenas com base nas percepções sensoriais
anteriores de gatos individuais. Aqui, mais uma vez, vemos a importância de não introduzir
fratura (corpo/alma, sentidos/intelecto) na unidade da pessoa.

2. O que sabemos com o intelecto e como o conhecemos

Neste ponto, devemos explicar, pelo menos em termos gerais, o que significa
“conhecer a natureza dos corpos”, deixando a tarefa de definições mais profundas para a
filosofia do conhecimento. Esta expressão significa que, enquanto os sentidos apreendem
aspectos individuais das coisas que temos diante de nós (sua cor, tamanho, cheiro, etc.), a
faculdade intelectual sabe o que é cada coisa; por outras palavras, a sua essência (não as
árvores individuais que posso ver e tocar neste jardim, mas o que cada árvore é em si).
Assim, enquanto as faculdades dos sentidos conhecem o particular, a inteligência conhece o
universal, ou seja, o conceito ou ideia que não está circunscrito a este ou aquele indivíduo
(a essência da árvore é a mesma para as palmeiras do jardim, para as bananeiras do
jardim). rua da cidade e os lariços nas encostas das montanhas).

Há, então, uma passagem do nível sensorial para o nível intelectivo, e esta passagem
é chamada de abstração , ou apreensão da essência. A essência universal é alcançada
abstraindo ou liberando as formas sensoriais de sua particularidade por meio de uma
comparação mais ou menos elaborada entre imagens sensoriais. Para tanto, é
indispensável que a mente permaneça aberta à realidade; realidade não criada, mas
iluminada pelo intelecto humano, que, por um lado, procura ativamente iluminar aquilo
que é inteligível e universal nas imagens sensoriais e, por outro, atua como uma força
passiva que recebe e conserva as formas intelectuais que foram extraídos. Estas formas
intelectuais são eminentemente intencionais, como explicamos no Capítulo 6. Não são o
que o intelecto conhece - caso contrário, separar-nos-iam da realidade - pelo contrário, são
os meios pelos quais conhecemos a realidade. Em outras palavras, o conhecimento
intelectivo não se limita à abstração do conceito, mas sempre remete à concretude e à
individualidade da realidade. Por exemplo, se tivéssemos encontrado o famoso poeta
3

italiano Giuseppe Ungaretti, não teríamos parado no conhecimento intelectivo da ideia


abstrata do homem, mas teríamos conhecido intelectualmente Giuseppe Ungaretti como
um ser humano com todas as suas peculiaridades inconfundíveis.

Precisamente para obter um melhor conhecimento do que é um ser individual,


reunimos as nossas diversas apreensões intelectuais num julgamento . Nesta segunda
operação do intelecto, afirmamos ou negamos uma propriedade de um determinado
sujeito, como quando afirmamos: “Giuseppe Ungaretti é uma pessoa” ou “Meu gato não é
uma pessoa”. É aqui que a verdade e o erro entram em jogo, pois, ao formular um
julgamento, podemos espelhar eficazmente a realidade ou cometer um erro.
Um simples julgamento, como os que acabamos de mencionar, pode ser articulado
no raciocínio , operação característica da inteligência humana, que exercemos
discursivamente. Isso significa que raramente apreendemos a realidade de forma intuitiva
e direta e, na maioria das vezes, para chegar a uma conclusão sobre algo, devemos reunir
julgamentos previamente formulados. Isto acontece, por exemplo, no raciocínio silogístico
em que chegamos a uma conclusão com base numa premissa: “O meu gato é um animal, e
todos os animais são mortais; portanto, meu gato é mortal.”

Duas observações adicionais sobre este assunto devem ser feitas. Identificamos três
operações do intelecto (apreensão da essência, ou abstração; julgamento; e raciocínio, ou
argumento). Isto significa que o nosso conhecimento intelectivo é progressivo, mas não que
seja fragmentado. Muitas vezes, justamente para compreender a essência de algo, devemos
formular julgamentos e seguir raciocínios, para que não haja lacuna entre uma operação e
outra.

Finalmente, o conhecimento intelectivo pode ser um fim em si mesmo ou pode ter


como objetivo algum propósito final. A primeira dessas duas possibilidades é chamada de
conhecimento especulativo ou teórico (por exemplo, o de um observador de pássaros que
estuda o voo da codorna); o segundo é o conhecimento prático (o do caçador que estuda o
voo da codorna para se posicionar melhor). Voltaremos a esta distinção quando falarmos
sobre valores no Capítulo 17, na Parte II deste livro.

3. Autoconsciência ou Autoconhecimento

Uma consequência da imaterialidade do intelecto é a capacidade do ser cognoscente


de se conhecer, de ter consciência de si mesmo, de “retornar a si mesmo”. Com isto não
queremos dizer o tipo de reflexão que poderíamos definir como objetiva por meio da qual
investigamos a natureza da pessoa e da sua capacidade de raciocinar. Pelo contrário,
estamos aludindo à reflexão subjetiva que ocorre concomitantemente com a ação de
conhecer, pela qual poderíamos dizer que a inteligência está presente em si mesma no
sentido de que percebemos que estamos exercendo o conhecimento intelectual e temos
consciência de que estamos realmente conhecendo algo.

Por que isso é uma consequência da imaterialidade é explicado por São Tomás nos
seguintes termos: “Retornar à sua própria essência significa apenas que uma coisa subsiste
em si mesma. Na medida em que a forma aperfeiçoa a matéria dando-lhe existência, ela se
difunde nela de certo modo e retorna a si mesma na medida em que tem existência em si.
Portanto, aquelas faculdades cognitivas que não subsistem, mas são atos de órgãos, não se
conhecem, como no caso de cada um dos sentidos, enquanto as faculdades cognitivas que
subsistem conhecem a si mesmas.” Somente aquilo que é espiritual pode retornar a si
4

mesmo ou refletir plenamente sobre si mesmo, porque não depende intrinsecamente da


matéria, o que implica limitação e unidirecionalidade no sentido de uma tendência rígida
em direção a um objetivo específico. É por isso que os animais têm apenas uma
autoconsciência imperfeita, porque o conhecimento sensorial depende intrinsecamente de
uma base orgânica e está sujeito às suas limitações.

4. Inteligência e Fala

Uma das áreas em que a especificidade da inteligência é mais evidente é a da fala, na


qual se expressa a capacidade simbólica do ser humano. Na verdade, compreendemos e
representamos simbolicamente a realidade através de signos de vários tipos,
especialmente signos fonéticos e gráficos. Graças à fala podemos comunicar com os nossos
semelhantes e expressar a nossa abertura intencional ao mundo que nos rodeia. Desta
capacidade deriva a linguagem no sentido de um sistema organicamente estruturado ou
conjunto de signos, sobre o qual teremos algo a dizer no Capítulo 16.

Para entender por que a fala é uma particularidade exclusiva do ser humano, pode
ser útil começar com um trecho de Aristóteles:
Agora, é evidente que o homem é mais um animal político do que as abelhas ou qualquer outro animal gregário.
A natureza, como costumamos dizer, não faz nada em vão, e o homem é o único animal a quem ela dotou com o dom da
fala. E enquanto a mera voz é apenas uma indicação de prazer ou dor e é, portanto, encontrada em outros animais (pois a
sua natureza atinge a percepção de prazer e dor e a intimação deles um para o outro, e nada mais), o poder da fala é
pretendia expor o conveniente e o inconveniente e, portanto, também o justo e o injusto. E é uma característica do homem
que só ele tenha algum senso do bem e do mal, do justo e do injusto, e assim por diante, e a associação de seres vivos que
têm esse senso forma uma família e um estado. 5

Este extrato destaca uma característica fundamental da fala humana: o fato de poder
referir-se a objetos abstratos e universais (o bom e o mau, o justo e o injusto); enquanto a
comunicação animal sempre se refere a objetos concretos e tangíveis. 6

Existe, de facto, uma diferença qualitativa entre a linguagem do homem e a dos


animais. Várias experiências realizadas ao longo de anos em chimpanzés (que possuem
uma capacidade fonética suficientemente desenvolvida) mostraram que estes são capazes
de adquirir uma linguagem de gestos e até uma linguagem verbal (na experiência a que nos
referimos, apenas quatro palavras: papa, mama, cup, up) que, no entanto, utilizam apenas
para comunicação com intenção pragmática (pedir comida, chamar atenção, etc.). No 7

homem, por outro lado, a linguagem não é adquirida por simples imitação, mas em virtude
da sua capacidade de reconhecer padrões e relações. Uma criança fala para fazer perguntas
e aprender sobre o mundo, e a linguagem se desenvolve por meio de uma forma de
controle retroativo exercido pela audição das palavras pronunciadas. Uma criança, então,
tem fome de palavras; pergunta os nomes das coisas e exerce continuamente as suas
capacidades, até por si mesmo. 8

No final do século XIX, o progresso no estudo da biologia e a difusão do darwinismo


levaram algumas pessoas a sustentar que a fala e os actos de expressão linguística são
ditados por certas necessidades biológicas e são utilizados de acordo com leis biológicas
precisas. No homem, dizia a teoria, há uma passagem direta da mera expressão da emoção
para a linguagem no verdadeiro sentido, e a diferença entre a linguagem animal e a humana
reside apenas no fato de os humanos terem alcançado um nível mais elevado de evolução.
Em primeiro lugar, deve-se objetar que esta é apenas uma afirmação que não
explica nada sobre por que tais diversidades deveriam existir em primeiro lugar. Além
disso, a análise da estrutura linguística destaca uma diferença radical entre a linguagem
emotiva e a linguagem proposicional (ou seja, a linguagem que descreve ou designa objetos
com palavras articuladas numa proposição e que está associada ao uso da inteligência): A
interjeição ou exclamação típica de uma reação emocional é usado precisamente quando
não podemos ou não queremos falar. A investigação realizada neste campo leva-nos a
reconhecer que “não há nenhuma prova psicológica de que os animais alguma vez tenham
atravessado a fronteira que separa a linguagem emocional da linguagem proposicional”. 9

A chamada linguagem animal, como explicamos, expressa estados emocionais


associados à esfera da experiência sensorial, mas não indica objetos ou ações. A sua
aparente semelhança com a linguagem humana é de carácter puramente material e não
exclui – pelo contrário, acentua – a sua diferença formal e funcional. Além disso, não existe
nenhuma prova histórica de que o homem, mesmo nas formas mais baixas da sua cultura,
alguma vez tenha utilizado uma linguagem puramente emotiva ou gestual.

5. O problema mente-corpo

Entre as questões que precisam ser tratadas por meio de um diálogo fecundo entre
as ciências e a filosofia está aquela que hoje se chama relação mente-corpo . Esta não é
certamente uma questão nova, pois tem sido objecto de reflexão ao longo de muitos
séculos, mas os progressos alcançados nas neurociências impulsionaram para que fosse
formulada de uma forma nova e, em certo sentido, mais precisa.

Às vezes, mas mais raramente, é descrita como a “relação mente-cérebro”, mas esta
definição é inadequada (qualquer que seja a solução proposta) porque nos induz a pensar
que existe uma relação exclusiva entre as estruturas cerebrais e a racionalidade de uma
pessoa, quando na verdade a capacidade intelectiva interage com todo o corpo, com a
experiência sensorial e com as emoções. Este facto marca uma diferença radical entre a
inteligência artificial e a inteligência humana porque esta nunca é apenas a mera execução
de operações comparáveis às de um computador. Como já dissemos, o ser humano exerce
sua faculdade cognitiva em associação com os sentidos e com seus estados afetivos ou
emocionais, bem como interagindo com o meio ambiente.

O problema poderia ser reduzido aos seus aspectos essenciais fazendo a pergunta: O
que significa o termo “mente”? Se com esta palavra queremos dizer apenas um estado físico
particular derivado de certos processos neuronais, caímos inevitavelmente no
materialismo ou fisicalismo , ao qual está associada a teoria conhecida como eliminativismo .
10
Se, por outro lado, pela palavra “mente” queremos dizer algo que não pode ser reduzido à
matéria, então abrem-se várias soluções que podem ser ligadas ao problema mais geral
(mencionado nos Capítulos 3 e 4) da relação entre mente e corpo. Uma dessas soluções é a
do dualismo , que distingue o espiritual do físico, mas depois nos deparamos com a
dificuldade de manter estes dois aspectos juntos. Tem-se procurado resolver esta
dificuldade através do interacionismo (ainda numa perspetiva dualista), ideia apoiada, por
exemplo, por JC Eccles que procurou explicar a interação entre corpo e mente com base nos
seus estudos neurológicos. Mas o caminho do dualismo é sempre, por assim dizer, um
caminho defensivo no sentido de que deve procurar laboriosamente resolver as questões
levantadas pela própria experiência pessoal e pelo progresso das ciências humanas.

Não há espaço aqui para delinear todos os pontos de vista do debate atual sobre
este assunto, no qual também existem posições intermediárias em relação aos dois acima
mencionados. Um deles, por exemplo, é o de J. Searle, que tem o mérito de se distanciar do
11

materialismo em sentido estrito e de uma visão reducionista da mente humana, embora


permaneça na esfera do naturalismo biológico em seu explicação dos processos mentais e
da consciência. Em nossa opinião, para não cair numa concepção inadequada da pessoa
12

humana (e assim, para todos os efeitos, negar a sua liberdade), a solução deve ser
procurada na área da teoria dual que, com base da filosofia aristotélica e tomista, considera
alma e corpo (e, como consequência, mente e corpo) como dois coprincipais do único
indivíduo vivo. No quadro desta abordagem fundamental, à qual voltaremos no Capítulo
13

12, é possível encontrar uma resposta, como vários autores procuraram fazer, às questões
levantadas pelas ciências cognitivas modernas. 14

Resumo do Capítulo 8

No Capítulo 6 explicamos como o conhecimento é, em termos gerais, a posse


imaterial ou intencional de uma forma. No conhecimento sensorial, isso ocorre em um nível
inferior porque tem uma base orgânica e a forma do sentido cognitivo é sempre individual
e acidental. Em contraste, o conhecimento intelectual é uma atividade completamente
imanente e, por si só , imaterial.

Por meio do intelecto, o ser humano é capaz de conhecer e assimilar toda a


realidade. Por esta razão, Aristóteles afirmou que a alma “é de certa forma todas as coisas
existentes”. A natureza universal do conhecimento intelectivo é um sinal de sua
imaterialidade porque, enquanto com as faculdades sensoriais apreendemos apenas os
aspectos particulares de um determinado objeto em um determinado lugar e tempo,
através da atividade intelectiva conhecemos a essência das coisas, em outras palavras, o
que uma coisa é em si, abstraindo-a das diferenças e características individuais. As
operações do intelecto são abstração, julgamento e raciocínio.

A imaterialidade do intelecto é o que torna possível a plena autoconsciência do ser


humano, porque as coisas limitadas pela matéria não podem refletir sobre si mesmas.
Graças à atividade intelectual, a linguagem humana é per se diferente da dos animais, pois,
enquanto os animais comunicam apenas estados emotivos e percepções sensoriais, os
seres humanos também comunicam conceitos universais e abstratos, como justiça e
injustiça, bem e mal, beleza e feiura, etc. A reflexão sobre a atividade intelectual deve
procurar explicar a relação mente-corpo, que agora pode ser melhor compreendida graças
ao progresso das neurociências. Nas explicações sobre este problema, é importante evitar o
reducionismo, ou seja, reduzir os humanos a seres puramente materiais nos quais não há
espaço para a liberdade.

Capítulo 9

Dinamismo Tendencial
e Liberdade

1. Tendências e Instintos

No Capítulo 7 examinamos o papel de um sentido interno (poder de estimativa nos


animais e poder de cogitação nos seres humanos), que percebe a adequação ou a
nocividade de uma realidade sensorial individual para si mesmo. Neste contexto,
explicamos que este sentido interno está relacionado com os instintos e, de forma mais
geral, com as tendências naturais dos indivíduos. Neste ponto, então, devemos explicar
mais detalhadamente o que se entende por tendência e instinto.

Para compreender plenamente a noção de tendência , devemos voltar ao que


dissemos sobre a alma como sendo a forma do ser vivo e, portanto, o princípio do
desenvolvimento e aprimoramento do ser, do seu movimento em direção ao seu próprio
fim particular. . À luz desta noção, pode-se entender que em cada ser vivo existe uma
orientação, ou tendência, para a sua própria perfeição. Assim, por exemplo, uma planta
cresce voltada para o sol, ou uma abelha dirige-se para as flores de onde extrai o pólen.
Estas são inclinações inatas; em outras palavras, surgem da própria natureza do indivíduo
e o impelem para o seu próprio bem vital, para aquilo de que necessita para alcançar a
realização. 1
Embora a tendência natural para o seu próprio bem vital fundamental
(sobrevivência, reprodução, crescimento) seja específica de todos os seres vivos, naqueles
dotados de conhecimento sensível esta orientação intrínseca, ou inata, é aperfeiçoada pela
experiência sensorial. Assim, eles têm uma inclinação espontânea para o bem vital
apreendido através dos sentidos. É esta inclinação, ou tendência sensorial, que nos animais
2

é chamada de instinto . É por isso que afirmamos no Capítulo 7 que o instinto possui um
3

aspecto de tendência e um aspecto de conhecimento, pois, de fato, a tendência instintiva é


ativada, ou reforçada, pela realidade conforme percebida através da experiência sensorial
e, em particular, através dos dois sentidos internos de poder de estimativa e memória. A
ativação da tendência envolve todo o organismo, como quando uma chita se prepara para
perseguir sua presa ou uma marmota come grandes quantidades de comida durante a
estação quente para se preparar para enfrentar a hibernação de inverno.

De modo geral, as tendências instintivas impelem os seres, por um lado, a buscar o


que é prazeroso e a evitar o que é prejudicial e, por outro, a enfrentar quaisquer obstáculos
no caminho para alcançar o prazer ou fugir do perigo. Por isso, é comum fazer uma
distinção entre tendências instintivas do tipo desiderativo e aquelas do tipo impulsivo. 4

Esta distinção pode ser compreendida se tivermos em mente o facto de que uma tendência
instintiva do tipo impulsivo muitas vezes interrompe uma do tipo desiderativo e, pelo
menos no curto prazo, actua na direcção oposta. Este é o caso de muitas espécies animais
onde os machos do rebanho lutam entre si para acasalar com as fêmeas e certos indivíduos
até morrem para a sobrevivência da espécie. Neste exemplo, a tendência impulsiva tem,
pelo menos a princípio, vantagem sobre a desiderativa; embora também se possa
argumentar que tal comportamento é simplesmente o resultado de uma única tendência
instintiva para o bem e a sobrevivência da espécie.

2. A plasticidade das tendências humanas


O ser humano também é dotado de tendências sensoriais, mas em vez de chamá-las
de instintos, preferimos (ou deveríamos preferir) chamá-las genericamente de tendências
ou, para usar um termo retirado da psicologia, de impulsos emocionais . Nos animais, os
instintos apresentam um grau considerável de rigidez porque são pré-determinados para
um determinado fim, de acordo com a modalidade imposta pela espécie. Assim, um5

estímulo externo é seguido por uma percepção dos sentidos, que ativa a tendência de onde
deriva uma resposta vegetativo-motora. O circuito estímulo-resposta é fechado e
caracterizado por um certo grau de automatismo em virtude do qual, por exemplo, é muito
difícil manter um gato no cio fechado num apartamento na cidade, ou é inevitável que com
a chegada do verão ou no inverno, as aves migratórias deslocam-se de uma região
geográfica para outra.

Deste ponto de vista, os instintos animais são virtualmente infalíveis em condições


normais e podem dar origem a certas respostas verdadeiramente notáveis. Pensemos, de
facto, na migração das aves por distâncias de milhares de quilómetros ou na organização
perfeita de um formigueiro ou de uma colmeia.

É claro que existem certas espécies animais que apresentam algum grau de
adaptabilidade e maior capacidade de acumular experiências sensoriais. É graças a isto que
é possível a domesticação de certas espécies (como cavalos e cães), em virtude da qual
podem, em certa medida, lidar com mudanças consideráveis nas suas circunstâncias. Mas
isto envolve apenas um enriquecimento do circuito estímulo-resposta, pois é possível
domesticar ou treinar um animal fazendo uso de estímulos sensoriais (através de
recompensa ou punição), mas certamente não usando a sua capacidade de interiorizar as
razões que explicam uma determinada forma de comportamento.

Nos seres humanos, as tendências ou impulsos possuem sempre um certo grau de


6

flexibilidade e incerteza. Não podemos falar de um circuito fechado de estímulo-resposta


porque há sempre alguma mediação pessoal da inteligência; hábitos adquiridos; valores
morais; cultura; e, em última análise, liberdade, algo de que falaremos em breve. Do ponto
de vista do observador externo, isto pode parecer uma deficiência dos seres humanos em
relação aos animais, que não necessitam de um período de gestação tão longo nem de uma
dependência tão prolongada dos cuidados parentais. Como indicamos no Capítulo 4, A.
Gehlen desenvolveu esta ideia falando da “incompletude” do homem em relação aos
animais. Mas esta aparente incompletude nos seres humanos permite que as tendências
instintivas permaneçam abertas a uma diversidade de respostas. Falamos assim de uma
plasticidade das tendências no sentido de que a sua ativação pode ser modelada com vista a
uma determinada resposta. Usamos o termo plasticidade para indicar que esta capacidade
de orientar ou modelar as tendências não é absoluta (como no caso de um artista, cujo
trabalho depende necessariamente das características do mármore ou da madeira que
utiliza), mas deve assumir dimensões humanas. a natureza em conta. Por exemplo, posso
orientar a minha tendência para a nutrição adoptando uma dieta vegetariana, não comendo
carne às sextas-feiras durante a Quaresma por motivos religiosos, ou seguindo uma dieta
hipocalórica para perder peso, mas em qualquer caso tenho de comer.

Qual é a raiz dessa plasticidade? Como acabamos de indicar, no ser humano a


resposta às tendências não é fixa ou rigidamente determinada porque ele é dotado não
apenas de conhecimentos sensíveis, mas também de conhecimentos intelectuais através
dos quais conhece os aspectos universais da realidade e, portanto, compreende o que é
bom além dos aspectos contingentes particulares das coisas que ele percebe. É para o bem
assim entendido que o ser humano se orienta com a sua vontade, e é sobre esta tendência
particular que devemos falar agora.

3. A Vontade, ou Tendência Espiritual

O facto de o homem ter tendências diferentes das do tipo instintivo acima


mencionado pode, antes de mais, ser deduzido da nossa experiência quotidiana de conflito
entre o que desejamos com os sentidos e o que queremos racionalmente. Por exemplo,
sentimo-nos impelidos a ficar na cama e dormir, mas queremos levantar e ir trabalhar;
desejamos saciar o apetite, mas queremos esperar um amigo para almoçarmos juntos. Isso
acontece porque a pessoa não apenas percebe a realidade com os sentidos em seus
aspectos sensoriais acidentais e individuais, mas também a conhece intelectualmente,
compreendendo aquilo que é bom ou verdadeiro em si, como diz Aristóteles na passagem
que citamos no capítulo anterior.

Assim, assim como o conhecimento sensível leva a uma tendência sensorial que
definimos como instintiva, o conhecimento intelectual leva a uma tendência que
poderíamos definir como sendo de tipo intelectual ou espiritual. Esta é a vontade. Em
termos gerais, então, a vontade é a tendência espiritual para o bem como apreendido
intelectualmente e, portanto, para o bem considerado em si mesmo e não nos seus aspectos
contingentes ou acidentais. Nos dois exemplos simples que utilizamos acima, a vontade
revela-se independente do bem específico percebido através dos sentidos (cansaço, saciar a
fome) porque está orientada para um bem mais universal e imaterial (cumprir um dever, a
fidelidade de amizade).

Como tal, a vontade é também uma “tendência natural”, no sentido de que, por
natureza, cada homem tem a capacidade de orientar-se conscientemente para a bondade
percebida ou para os seus próprios fins específicos. De si mesmo, cada ser humano deseja
aqueles fins que são intrínsecos à sua humanidade, como conhecer a verdade, ser feliz e
viver, e ele os deseja absolutamente e não ficará totalmente satisfeito com resultados
contingentes. Mas alcançar esses fins requer uma avaliação dos meios a utilizar e, portanto,
uma escolha entre um caminho ou outro. Todos desejam alcançar a felicidade e uma “vida
de sucesso”, mas alguns almejam isso estudando filosofia e outros estudando medicina.
Assim, embora o indivíduo não possa deixar de querer o seu próprio bem fundamental,
cabe-lhe desejar este ou aquele meio para o conseguir. 7
4. A Voluntariedade das Ações e da Liberdade

De certo ponto de vista, poderia-se afirmar que no ser humano a vontade é o motor
final de suas ações. Pois mesmo que seja o intelecto quem conhece o bem para o qual
tendemos, é a vontade que orienta todas as faculdades de um indivíduo para o bem e pode
até condicionar o intelecto. Mas também aqui devemos ter cuidado para não introduzir
uma divisão na unidade da pessoa. Nem a vontade nem o intelecto agem separadamente
(não existe vontade pura ou razão pura); antes, existe uma causalidade recíproca entre os
dois, e ambos estão enraizados na integridade do homem individual com a sua
sensibilidade e emotividade. 8

Esta explicação é importante para entendermos o que queremos dizer quando


falamos de ações voluntárias . São ações que surgem de um princípio intrínseco à pessoa
que age na consciência do fim para o qual tende. Dizemos que surgem de um princípio
intrínseco para distingui-los de ações que alguém poderia realizar sob coerção (por
exemplo, sob ameaça ou em estado de hipnose). A voluntariedade também requer uma
orientação intencional ou consciente para um fim, pelo que podemos dizer que uma acção
voluntária é uma acção empreendida conscientemente. 9

Deixando à ética a tarefa de estudar mais detalhadamente a acção voluntária, do 10

que acabamos de dizer, podemos deduzir que se eu próprio sou o princípio das minhas
próprias acções, então sou livre. Ter liberdade significa ser senhor de nós mesmos e de
nossas ações. Isto não acontece nos animais, cujo comportamento é determinado pelos
instintos da espécie, mas acontece nos seres humanos que se orientam conscientemente
para os seus fins particulares, e isto não é contrariado pelo facto de os seres humanos
também terem uma natureza específica. de onde derivam tendências específicas. O que
conta é o facto de o ser humano agir a partir de si e para si, escolhendo voluntariamente o
modo como se orientar para um fim e na consciência do fim para o qual se inclina. É
precisamente esta consciência que lhe permite escolher, e por isso dizemos que a razão é a
raiz da liberdade, não para promover o racionalismo (isto é, a supremacia da esfera da
razão com exclusão de outras), mas para sublinhar o facto de que , se não conhecesse o fim
ou o bem em si, o homem não seria capaz de orientar-se conscientemente para ele. É por
isso que a filosofia clássica explica que a liberdade, ou livre arbítrio, é “a faculdade da
vontade e da razão” e que aquelas ações que provêm de uma “vontade deliberada” (ou 11

seja, iluminada por um julgamento) são livres.

5. Conceitos Determinísticos

Daremos uma consideração mais completa à liberdade no Capítulo 14, adotando um


ponto de vista existencial. O que nos interessa agora é deixar claro que o tema da liberdade
suscita muitas interrogações e é sem dúvida um dos temas que mais apaixona os filósofos.
Algumas das dificuldades dizem respeito às relações entre os homens e do homem consigo
mesmo: Como é possível libertar-se das próprias paixões ou do respeito pela sociedade em
geral? Outras questões dizem respeito ao lugar da pessoa na história: o indivíduo é um
protagonista ou um mero instrumento na progressão dos acontecimentos históricos? Para
resolver estes problemas, têm sido frequentemente formuladas soluções determinísticas,
isto é, soluções que negam efectivamente a existência de liberdade no homem.
Consideremos brevemente algumas dessas posições. 12

5.1. O Determinismo de Certas Teorias Científicas

Como teoria científica geral, o determinismo foi fortemente proposto no século XIX
por P.-S. Laplace (1749-1827), segundo quem era possível reduzir a astronomia à mecânica
e deduzir o movimento dos corpos celestes, prevendo o seu futuro e reconstruindo o seu
passado. Claramente, tal teoria deixa pouco espaço para a ação livre do homem. Contudo, o
determinismo universal não é um facto observável ou uma lei natural, nem é um postulado
exigido pela ciência. É, antes, uma doutrina filosófica porque generaliza certos dados e os
torna absolutos a ponto de criar uma teoria que ultrapassa o âmbito da ciência. Além disso,
com o abandono do mecanicismo universal, os desenvolvimentos na física e na astronomia
tendem agora a reconhecer a incerteza presente no universo.

Com base no progresso alcançado nas ciências médicas, especialmente na


neurologia, algumas pessoas passaram a considerar todas as ações humanas como
resultado de reações e combinações químicas ou como manifestações de estados orgânicos.
Se isto fosse verdade, então a liberdade seria apenas aparente. No entanto, por mais que
estes factores possam afectar o exercício da liberdade, eles são apenas as condições
orgânicas para a acção livre e não a sede ou fonte da liberdade, que não é mensurável
clinicamente, senão nos seus efeitos. Além disso, embora certas doenças afetem o exercício
da liberdade e em certos estados subjetivos (como o sono) a liberdade não seja utilizada,
isso não significa que ela tenha sido suprimida ou desaparecida. 13

Não devemos esquecer que os seres humanos não dependem necessariamente das
suas condições corporais e podem, por exemplo, mudar o seu estilo de vida, a sua fonte de
alimentação, e assim por diante. Com efeito, um dos sinais mais evidentes da emergência
do homem sobre a matéria e sobre os animais é a sua tendência para encontrar
alternativas, para identificar e resolver problemas e para utilizar dados empíricos para
alcançar resultados originais e criativos. Perante as dificuldades e necessidades, os animais
reagem de forma instintiva e bastante previsível, enquanto os seres humanos pensam
soluções ou descobrem novas oportunidades, que são capazes de conservar, transmitir e
aumentar. Desta forma, como observa Leonardo Polo, homem é um sistema aberto; em
o

outras palavras, ele é uma entidade estruturada que pode ser reorganizada e aperfeiçoada.
Ele não está num estado de estabilidade homeostática, mas de equilíbrio dinâmico. 15

Para sublinhar o facto de não existir rigidez determinística mesmo a nível


neurológico, podemos salientar que certas áreas do cérebro apresentam uma capacidade
considerável para substituir outras em casos de danos, e que o desenvolvimento cerebral
em si não é completamente previsível em seus resultados, nem mesmo geneticamente
(apesar de certas supostas descobertas superficialmente alardeadas). No que diz respeito à
singularidade do ser humano, Eccles falou em termos de uma “loteria genética
infinitamente improvável”. Para demonstrar a relação entre a liberdade e as condições
16

materiais com que tem de lidar, Popper citou dois exemplos interessantes: primeiro, o de
Beethoven, que compôs as suas grandes sinfonias superando as limitações objectivas
decorrentes da sua surdez progressiva. Na verdade (e este é o segundo exemplo), o homem
com a sua liberdade enfrenta as circunstâncias da sua vida como um montanhista, que pode
optar por escalar os Himalaias ou os Andes, mas ao atingir o cume é inevitavelmente retido
e limitado pelas suas próprias capacidades físicas. e pelo caminho que ele escolheu. 17

Dois casos famosos na história da ciência, muito estudados no final do século XIX e
início do século XX, são os de Helen Keller e Laura Bridgman. Ambos eram surdos e cegos
(Keller ficou logo após o nascimento) e conseguiram aprender o uso das palavras graças à
ajuda de seus professores. Suas vidas mostram que a relação humana com o mundo (isto é,
o desenvolvimento da cultura e a obtenção de conceitos universais através da inteligência)
envolve a superação da simples associação entre estímulo sensorial e resposta individual. 18

Para explicar o que acabamos de dizer, podemos usar a já clássica distinção entre
“liberdade de” (que nunca é absoluta no homem porque ele é constrangido e limitado) e
“liberdade para” (que significa adotar uma determinada postura, orientar-se para um fim);
o primeiro é negativo, o último é positivo.

5.2. Sociologismo e Psicologismo

Uma solução do tipo determinista também pode ser aplicada aos problemas que
surgem na vida do homem e da sociedade. Embora consideremos este assunto no Capítulo
15, deixemos agora claro que se for atribuída importância excessiva às pressões e
estruturas da sociedade, chegaremos à conclusão de facto de que a conduta humana é
infalivelmente previsível com base em estatísticas sócio-culturais. e influências, e isto mais
uma vez seria negar a existência da liberdade. Isto não significa, por outro lado, que
devemos ignorar a influência da sociedade, do ambiente ou da educação, mas temos de
reconhecer que as vidas reais dos seres humanos individuais negam teorias deste tipo. As
estatísticas, por exemplo, referem-se apenas aos resultados exteriores das ações (ações
amadurecidas interna e livremente por cada indivíduo); registam apenas a soma total dos
resultados das decisões individuais.

Certas teorias psicológicas também chegam, por vezes, ao ponto de subordinar o


comportamento individual a impulsos inconscientes, e, segundo alguns observadores, os
19

elementos característicos da personalidade seguem leis bem definidas. No entanto,


devemos perguntar-nos se os hábitos e tendências característicos não são adquiridos
livremente, pelo menos em parte. Além disso, todas as informações que podem ser
recolhidas sobre um homem individual não nos permitem ir além da mera probabilidade
na previsão da sua conduta. Como observa Frankl, qualquer ação aparentemente óbvia e
irrefletida representa o elo final de uma longa cadeia de decisões, das quais o primeiro
provavelmente estava consciente. 20

Noutros casos, são feitas tentativas, muitas vezes do ponto de vista da psicologia
social, para estabelecer uma ligação necessária e determinística entre factores sociais
individuais que existem na infância e certas situações ou formas de conduta que surgem na
adolescência ou na vida adulta. Sem dúvida, é possível estabelecer tais conexões a
posteriori , mas estes fatores não negam a priori a “liberdade de” do indivíduo, embora
constituam limites à sua “liberdade de”. Assim, o contexto histórico de uma situação de
desvio (problemas familiares, educação inadequada, tensões ou traumas) deve por si só ser
considerado como um “indicador de risco inespecífico”: “Isto significa que estas condições
prévias, embora identificáveis em muitos casos de desvio, permanecem abertos a outros
resultados bastante diferentes e não desviantes”. 21

Resumo do Capítulo 9
Todo ser vivo tem tendências, isto é, tendências naturais ou inatas para o seu
próprio aprimoramento e desenvolvimento; são tendências naturais no sentido de que são
inerentes à natureza do ser (seja vegetal, animal ou humano). As tendências naturais dos
seres vivos que possuem consciência sensorial são chamadas de instintos, e os instintos
podem ser desiderativos (busca de prazer) ou impulsivos (como reações a algo prejudicial).
Nos seres humanos, as tendências naturais dos sentidos são geralmente chamadas de
impulsos emocionais porque, graças à mediação do intelecto, apresentam um notável grau
de plasticidade.

A vontade é uma tendência intelectual ou espiritual. É graças à vontade que o ser


humano pode orientar-se não só para um bem específico e contingente percebido através
dos sentidos, mas também para o bem ou a verdade em si mesmo. A vontade possibilita ao
indivíduo agir livre e voluntariamente, ou seja, realizar ações com a consciência de buscar
determinado objetivo. Assim, dizemos que ser livre significa ser fonte, princípio e mestre
das próprias ações. Na história da filosofia houve certas visões que efetivamente negam a
liberdade da pessoa; tais visões são chamadas de “deterministas” porque sustentam que a
ação humana é inteiramente “determinada” pela sociedade, por estruturas fisiológicas e
neurológicas, ou pelo inconsciente.

Capítulo 10

Dinamismo Afetivo

1. Reflexões Filosóficas sobre Afetividade

Quando falamos de “afetividade”, ou de emoções, a primeira impressão que


podemos ter é a de se tratar de uma dimensão de grande relevância para o ser humano,
mas que, ao mesmo tempo, é difícil de definir com precisão. Não é exagero dizer que, entre
os muitos estudos publicados recentemente sobre este assunto, existe um consenso quase
unânime no reconhecimento da sua importância, mas, ao mesmo tempo, um desacordo
considerável sobre a abordagem básica a seguir. Pode-se acreditar que a afetividade só se
tornou objeto de estudo nos últimos tempos e que os pensadores da antiguidade e da Idade
Média a ignoraram quase completamente. No entanto, tal visão seria incorreta.

Os filósofos gregos (principalmente Aristóteles e Platão, mas também os estóicos,


epicuristas e neoplatônicos) discutiram as afeições. Santo Agostinho também deu
considerável atenção ao assunto, assim como Santo Tomás de Aquino na Idade Média. É
verdade que, em alguns casos, estes autores adoptaram uma perspectiva
predominantemente ética em vez de antropológica, mas também é verdade que qualquer
estudo ético pressupõe fundamentos antropológicos como explicamos no Capítulo 1, e
assim, também nestes trabalhos, é possível encontrar reflexões importantes sobre o tema
da afetividade.

2. Esclarecimento Terminológico

Antes de fazer uma breve apresentação dos principais aspectos da afetividade


humana, é importante fazer algumas observações relativas à terminologia. Muitas vezes
falamos indistintamente de “sentimentos”, “emoções”, “paixões” e “afeições”. Essas
expressões e outras semelhantes não são sinônimos, mas também não são antônimos
completos: seus significados têm algo em comum, mas implicam nuances diferentes. Definir
exatamente essas nuances é muito difícil porque o uso dos termos muda dependendo da
escola de pensamento e do autor. Consequentemente, limitar-nos-emos a oferecer os
esclarecimentos mínimos necessários para dar seguimento às explicações dadas neste
capítulo. 1

Como pode ser facilmente deduzido, cada uma das expressões acima refere-se à
afetividade, mas de um ponto de vista diferente. Na verdade, tendemos a falar de
“sentimento” para nos referirmos a um fenómeno mental que é estável e regular, enquanto
invocamos “emoção” para indicar um estado complexo num indivíduo que envolve
profundas mudanças mentais e fisiológicas. O termo “paixão” é geralmente adotado para
denotar a passividade no nível dos sentidos diante de um estímulo de grande intensidade,
enquanto a palavra “afeto” indica um fenômeno análogo, mas no nível espiritual. Hoje, toda
esta esfera é frequentemente aludida indistintamente com o termo coração . De qualquer
forma, de modo geral podemos dizer que o que a psicologia moderna chama de “emoções”
ou “afetos” corresponde no seu essencial ao que a filosofia clássica chamava de paixões
(paixões) — do verbo latino pati , sofrer — sublinhando como o indivíduo sofre ou sofre.
sofre uma reação específica. Neste capítulo falaremos de sentimentos e afetos, usando os
dois termos como sinônimos.

Este esclarecimento inicial permite-nos inferir três características básicas da


afetividade: O dinamismo afetivo insere-se na esfera das tendências como princípios de
ação, implica uma certa passividade no sujeito e manifesta-se de forma diferente ao nível
dos sentidos e naquele do espírito. 2

3. Tendências e Afetos

“Experimentar um sentimento” é algo que pode acontecer de diferentes maneiras,


mas envolve sempre a atração de um sujeito por um objeto: “Gosto de viajar”, “Tenho medo
de voar”, “Estou feliz que você está comigo”, “eu gosto de alguém”, etc. No que diz respeito
aos afetos, o indivíduo, em vez de “fazer” algo, “sente-se movido” em direção a algo. Isto não
significa que o afeto seja meramente passivo, mas que a sua atividade consiste
fundamentalmente em “reagir” diante de algo que desperta atração ou repulsa.

Atração e repulsão são as formas pelas quais as tendências se relacionam com seu
objeto (ou seja, um bem a ser obtido ou um mal a ser evitado), enquanto a passividade é a
característica fundamental das faculdades orgânicas. Assim, os afetos ou sentimentos
poderiam ser definidos como as operações específicas das tendências sensoriais, ou seja, a
3

ativação dessas tendências. Por exemplo, o fato de o homem tender para a mulher, e
vice-versa, é algo naturalmente presente em todos os indivíduos, mas é por uma pessoa
específica que sentimos atração como consequência da ativação da tendência.

A afetividade, então, não deve ser considerada secundária ao conhecimento ou às


tendências, mas como o exercício das faculdades tendenciais. E assim as tendências
4

sensoriais, sobre as quais falamos no capítulo anterior, são chamadas simplesmente de


“tendências”, enquanto “afeições” é o nome genérico para os seus atos. Não são, portanto,
faculdades separadas, mas potências operativas ou operações próprias.

4. Sensações, sentimentos e humores

Estabelecemos, então, que as afeições, ou sentimentos, são os atos ou operações das


tendências sensoriais. Assim, a afetividade irá interagir, por um lado, com o conhecimento
e, por outro, com o corpo.

Na verdade, como explicamos anteriormente, a tendência sempre segue o


conhecimento, de acordo com a teoria clássica de que “ninguém tende para algo que ainda
não conhece”. Portanto, as nossas tendências sensoriais fazem-nos tender para as coisas
5

que conhecemos, e a forma como essas tendências são ativadas é precisamente através dos
afetos, ou sentimentos. Assim, por exemplo, posso conhecer um bolo de chocolate
olhando-o ou provando-o; Posso então me sentir atraído por isso, e essa atração se
expressa como um sentimento de desejo ou prazer: “Eu adoraria comer uma fatia!” ou “Este
bolo é delicioso!” Os sentimentos de desejo ou de prazer — como outros sentimentos —
são, então, a “realização” das tendências, ou seja, a sua ativação.

Conseqüentemente, é importante não confundir sentimento com sensação . Ambas


são formas de atividade sensorial, mas a primeira é tendencial, enquanto a segunda é
meramente cognitiva. Eu poderia, pelo menos em teoria, saber algo sem sentir qualquer
sentimento em relação a isso. Tomar consciência das qualidades ou valores de uma
realidade não é o mesmo que sentir-se inclinado a isso. Como atividade tendencial, o afeto,
ou sentimento, tem origem no conhecimento, mas não é redutível ao conhecimento.

Embora os sentimentos tenham origem no conhecimento, nem todas as formas de


conhecimento podem estimular as tendências, mas apenas aquelas que dão origem a uma
avaliação e que estão, portanto, predispostas à ação. Por exemplo, se estou satisfeito
examinarei a vitrine de uma confeitaria com certo desinteresse, mas se estiver com fome
examinarei para ver qual bolo me atrai mais. Como sabemos, esse tipo de conhecimento é
fornecido pelos sentidos internos intencionais – poder cogitativo e memória – que são
capazes de apreender os valores sensoriais de adequação e conservá-los. Somente na
medida em que conheço algo tão bom para mim no momento presente isso pode despertar
minhas tendências, e é de sua ativação que derivam os sentimentos.

As tendências sensoriais são faculdades orgânicas, e isso significa que seu uso está
associado à disposição do corpo. Todos nós já experimentamos como um único fenômeno
pode provocar diferentes reações afetivas em diferentes pessoas, ou na mesma pessoa em
diferentes momentos dependendo do seu estado físico. Se eu estiver doente,
provavelmente não sentirei nenhum sentimento ao me deparar com algo de que gosto. Esse
estado de coisas é indicado por uma palavra comumente usada: humor, que descreve uma
condição fisiológico-afetiva que é influenciada não apenas por disposições espirituais
específicas, mas também por certas condições físicas, como cansaço, pressão atmosférica e
desequilíbrio hormonal.

Assim, fica claro que os sentimentos têm um duplo papel. Por um lado, referem-se a
valores sensoriais objetivos; em outras palavras, registram a adequação ou a nocividade, a
dificuldade ou a facilidade das realidades sensoriais individuais. O medo, por exemplo, é
uma resposta a uma situação real de perigo, e a alegria é a reação a uma situação real de
harmonia. As realidades sensoriais individuais são, então, apreendidas na sua relação com
a nossa própria natureza e, embora as nossas reações afetivas nem sempre sejam
proporcionais ao estímulo externo, a nossa avaliação não se refere apenas ao nosso estado
interior subjetivo, mas à relação que se estabelece. entre nós e a realidade. Por outro lado,
6

porém, os sentimentos também são expressão de disposições fisiológicas e psicológicas


subjetivas, na medida em que manifestam o estado do corpo e da mente, condições que
podem ser transitórias ou permanentes. Uma resposta afetiva de um tipo ou de outro
destaca, em maior ou menor grau, o caráter de um indivíduo, seu humor e até mesmo seu
estado de saúde.

5. O Dinamismo dos Sentimentos

Como, então, surge um sentimento? Como vimos, depende fundamentalmente do


conhecimento sensorial dos valores dos sentidos, tal como apreendidos pelo poder
cogitativo e conservados na memória. Esse conhecimento desperta a tendência, atraindo-a
para a aquisição ou rejeição de determinada realidade, e é justamente esse tipo de
movimento reativo que se chama sentimento. Posteriormente, a tendência, através da
ativação dos afetos, atua sobre outras faculdades, provocando um impulso para agir seja
para atingir ou para evitar a realidade conhecida. Assim, estabelece-se um circuito entre
conhecimento, afetividade e ação.

No caso da afetividade sensorial humana, os sentimentos são normalmente


insuficientes para a ação porque existem outras exigências, maiores do que as da
experiência sensorial, que intervêm no nosso comportamento. Na verdade, a atividade
humana deriva de uma vontade deliberada que não é necessariamente regulada para seguir
os impulsos da experiência sensorial; isto é, um sentimento de antipatia não leva, por si só,
a um comportamento agressivo em relação a outra pessoa. No entanto, os afetos têm um
papel importante na atividade porque reforçam a influência das tendências sobre as
demais faculdades. Por exemplo, o desejo de estar com a pessoa que ama pode levar um
homem a empreender uma viagem para vê-la, a trabalhar mais horas para lhe comprar um
presente, etc. as tendências. Sendo ato de potências tendenciais, os sentimentos favorecem
a passagem da tendência à atividade, de uma simples “tendência” a uma “ação”.

5.1. Os afetos como ações sensoriais imanentes

Consideradas como consequência de atividades tendenciais, as afecções são


operações imanentes que não podem ser meramente equiparadas a eventos físicos ou
funções vegetativas. A tristeza pela morte de um amigo não se reduz à secreção de lágrimas
ou à ativação de certos neurotransmissores. A natureza imanente dos sentimentos ou
afetos implica intencionalidade, o que significa que têm um conteúdo, que se referem a
algo; isto é, os sentimentos são sempre “sentimentos por” ou “sentimentos em relação a”
7

aquilo que os desperta, como já explicamos. Mesmo que quiséssemos sustentar que uma
condição afetiva poderia existir em relação ao nada, que o próprio nada seria considerado -
8

ao ser processado no intelecto - como um certo objeto ou conteúdo da afeição.

Ao mesmo tempo, a natureza sensorial da afetividade implica o envolvimento do


organismo e, portanto, um certo grau de atividade transitiva. Assim, quando estamos
emocionais, também passamos por fenômenos somáticos de vários tipos, como aumento da
frequência cardíaca, agitação, suor, tremores ou lágrimas. A polaridade entre estes dois
aspectos, o imanente e o transitivo, corresponde à distinção tradicional entre os
componentes “formais” e “materiais” dos sentimentos. A primeira é a sua dimensão
9

específica e particular, que consiste numa tendência de origem cognitiva e, portanto, numa
atividade imanente. Este último refere-se ao seu substrato e, por assim dizer, aos seus
meios de transmissão, ou seja, às alterações fisiológicas.

Os sentimentos, na verdade, sendo ações sensoriais, envolvem necessariamente


mudanças somáticas. Como vimos, cada faculdade sensorial constitui uma unidade única
com seu órgão, assim como a forma se une à matéria. Assim, afirmamos que as reações
orgânicas associadas à afetividade são marcadamente influenciadas por condições
somáticas anteriores. Por exemplo, quando estamos cansados, não temos as mesmas
reações emocionais que quando estamos descansados, quando o tempo está frio ou quente,
quando o sol está brilhando ou quando está chovendo, ou na primavera ou no inverno. Em
outras palavras, as disposições do corpo condicionam a atividade das faculdades
tendenciais, como acontece com outras potências orgânicas. Este vínculo particular entre
os afetos e a condição física acarreta dificuldades não só em conceituar os afetos, mas
também em dominá-los. Os sentimentos nunca são totalmente transparentes ou
completamente sob nosso controle.

Deve-se ter em mente também que os órgãos são o substrato material das
faculdades e que as faculdades só podem atuar através dos órgãos. Isso significa que as
reações corporais associadas aos sentimentos são sempre proporcionais à própria
atividade afetiva e não podem ser compreendidas separadamente dela. Por outras palavras,
mesmo que tais reacções sejam influenciadas pelo ambiente físico externo (temperatura,
pressão atmosférica, clima, etc.) ou por condições fisiológicas subjectivas (por exemplo,
estado de saúde), ainda assim ocorrem em correspondência com os movimentos
tendenciais. , que são ações imanentes. 10

Em virtude desta dependência, o corpo e os movimentos orgânicos são uma


expressão — poderíamos chamá-los de “linguagem” — da afetividade. Se os afetos fossem
uma mera resposta orgânica à influência da realidade externa sobre o corpo, de acordo com
o modelo estímulo-resposta, ou se fossem simples expressões dos processos internos do
11

sujeito, independentes de seu conhecimento da realidade, então eles seria uma linguagem
12

incompreensível. O facto, porém, é que, apesar da nossa dificuldade em compreender os


sentimentos, estamos habituados a interpretá-los. As lágrimas, os soluços e a contração da
face, por exemplo, representam o aspecto somático do que chamamos de “choro”, e mesmo
no cinema ou no teatro sabemos que esses gestos correspondem a um determinado estado
psicológico e expressam determinados sentimentos. O que emerge, então, é uma correlação
entre a realidade conhecida, os sentimentos e a reação somática.
5.2. O valor cognitivo dos sentimentos

Os atos tendenciais, que incluem os afetos, possuem uma forma particular de


intencionalidade em relação aos atos cognitivos. Referem-se não apenas a um objeto, mas
também à medida com que esse objeto diz respeito ao indivíduo (identificam o objeto como
adequado ou prejudicial, como difícil ou fácil). Por exemplo, o desejo de beber pode
direcionar-se para um copo de água, mas considera-o como algo que pode saciar a sede
sentida pelo indivíduo. É por isso que os sentimentos, como já sugerimos, referem-se não
apenas a valores reais dos sentidos, mas também a disposições sensoriais subjetivas. Em
certo sentido, poderíamos dizer que são o “termômetro” dessas disposições. Assim,
podemos falar de um papel cognitivo “indireto” dos afetos, papel que se refere tanto à
realidade quanto ao sujeito. Eles expressam a realidade através da avaliação que o sujeito
faz dela, ou da disposição do sujeito em relação a essa realidade. 13

Em última análise, os afetos e as reações somáticas a eles associadas dependem dos


valores apreendidos, que são o que os motiva. De um modo geral, “motivação” ou “motivo”
é usado para descrever as causas formais e finais de um movimento (neste caso, a reação
emocional), mas não a causa eficiente (isto é, a causa que provoca o movimento de forma
real e prática). termos). Estar “motivado” significa ser atraído, não ser pressionado, e é
14

desta forma que os valores dos sentidos movem a tendência, e a tendência gera sentimento.
A dependência da afetividade do conhecimento permite orientar as emoções e ter algum
controle sobre elas. O facto de esta dependência ser formal e definitiva, mas não eficiente,
significa que não é possível exercer um controlo rígido sobre a afetividade, mas sim
orientá-la. Em outras palavras, não podemos regular perfeitamente o surgimento, a
intensidade e a duração dos sentimentos, mas podemos, por assim dizer, orientá-los.

Falamos sobre a motivação e a orientação dos sentimentos. Isto levanta duas


questões muito importantes que dizem respeito à afetividade: a educação dos sentimentos
e o seu papel na ética. Mas antes de entrar neste assunto, pode ser útil introduzir uma série
de esclarecimentos adicionais sobre a natureza dos sentimentos.
6. Tipologia dos Afetos

Muitas classificações para os sentimentos foram sugeridas com base em diferentes


critérios. Esses critérios podem ser condensados em duas categorias fundamentais: a
relação das tendências com o seu objeto específico e as reações provocadas no sujeito pela
sua atividade. A primeira delas pode ser considerada essencial porque diz respeito aos
actos das próprias faculdades, actos que se distinguem especificamente com base nos seus
objectos. Com efeito, para compreender a natureza de uma faculdade, é necessário
identificar o objeto do seu funcionamento. Contudo, o segundo destes critérios (ou seja, as
reações subjetivas) deve ser considerado acidental porque diz respeito às consequências
das atividades tendenciais no sujeito e não à atividade em si. Este critério pode ser
subdividido dependendo se são consideradas reações mentais, 15
reações somáticas ou
fisiológicas, ou outros aspectos como intensidade e duração. Finalmente, também pode
16 17

haver classificações mistas que levem em conta tanto o objeto das tendências quanto as
reações subjetivas. 18

Assim, do ponto de vista da sua essência, os afetos são categorizados com base no
seu objeto. Este é o critério que seguiremos, pois diz respeito à própria natureza dos
sentimentos. 19
Nesta base é possível categorizar os sentimentos em três níveis:
genericamente, com base na diversidade das faculdades tendenciais; especificamente, com
base na relação de cada tendência com o seu objeto; e acidentalmente, com base na
intensidade da influência do objeto ou com base no seu conteúdo específico. 20

Uma primeira distinção entre os afetos deriva da diversidade das faculdades


tendenciais dos sentidos. Como explicamos, uma tendência do tipo desiderativo faz com
que o sujeito tenda à posse do que é adequado e à rejeição do que é prejudicial, enquanto
uma tendência do tipo impulsivo move o sujeito a superar os obstáculos que o separam do
que é. prazeroso ou apetitoso, e permanecer firme contra o que é prejudicial. 21
Os
movimentos de tendência desiderativa referem-se, então, diretamente ao objeto sensorial,
enquanto os de tendência impulsiva referem-se mais diretamente aos meios que dizem
respeito ao objeto. No caso dos primeiros sentimentos, a posse do objeto é percebida como
algo imediato; neste último caso, a posse do objeto é mediada pelo enfrentamento de certas
dificuldades. A tendência impulsiva pressupõe, ou segue, a tendência desiderativa.

Em segundo lugar, a distinção entre os afetos é determinada pela relação das


tendências com o seu objeto. Esta relação depende de dois aspectos: a contrariedade do
objeto em relação à tendência e o seu grau de proximidade com ela. Na verdade, as
tendências sensoriais podem ter uma relação positiva ou negativa com o seu objeto: a
tendência desiderativa apreende a adequação ou nocividade do objeto, enquanto a
tendência impulsiva apreende a congruência, ou falta de congruência, dos meios para
atingir o objeto. Assim, a tendência impulsiva relaciona-se com o seu objeto,
considerando-o, se for bom, como alcançável ou inatingível e, se for mau, como evitável ou
inevitável.

Além disso, uma tendência pode orientar-se em direção ao seu objeto em vários
graus. No caso da tendência desiderativa, o primeiro grau é aquele em que se sente atraído
pelo que é bom ou sente repulsa pelo que é mau (amor/ódio); a segunda, aquela em que é
movido efetivamente a possuir o que é bom ou efetivamente a rejeitar o que é ruim
(desejo/rejeição); a terceira, aquela em que desfruta do que é bom ou sofre os efeitos do
que é ruim (prazer/dor). No caso da tendência impulsiva, o primeiro grau é dado como
dado, como dissemos, enquanto o segundo grau consiste no movimento em direção ao que
é bom, mas ainda não possuído, sendo alcançável ou inatingível (esperança/desespero), ou
em direção ao que é ruim, mas ainda não sofrido, sendo evitável ou inevitável
(ousadia/medo). No terceiro grau, a tendência impulsiva diz respeito ao mal como evitável
(raiva), mas não tem movimento em relação a um mal presente, mas inevitável, nem em
relação ao bem já possuído, pois em ambos os casos não há mais meios a serem
empregados ou obstáculos a serem superados. 22
Finalmente, a terceira distinção entre os afetos é a distinção acidental, que depende
da intensidade do movimento afetivo ou do seu objeto. Por exemplo, o amor pode ser mais
ou menos inflamado, a esperança mais ou menos confiante e a alegria mais ou menos
eufórica. Além disso, podemos ficar tristes pelo mal sofrido pelos outros (compaixão) ou
pelo bem desfrutado pelos outros (inveja). No entanto, isto é de importância secundária na
definição dos vários tipos de afecções, uma vez que só acidentalmente diz respeito à sua
natureza. 23

Tomando como fundamento o objeto das tendências, Tomás de Aquino oferece a


seguinte classificação dos afetos: 24

Nas tendências do tipo desiderativo:

1. No que diz respeito ao bem em geral: o amor


2. Com relação ao mal em geral: ódio
3. Com relação ao bem futuro: desejo
4. Com relação ao mal futuro: fuga
5. Com relação ao bem presente: alegria
6. Com relação ao mal presente: tristeza

Em tendências de tipo impulsivo:

7. Com relação ao bem futuro alcançável: esperança


8. Com relação ao bem futuro inatingível: desespero
9. Com relação ao mal futuro evitável: ousadia
10. Com relação ao mal futuro inevitável: medo
11. Com relação ao mal presente evitável: raiva
Nesta lista, alguns pontos despertam particular interesse. Certos aspectos da
atividade, que costumamos considerar como atos de vontade (amor e ódio) ou como
virtudes éticas (alegria, esperança e ousadia), são listados como sentimentos. Por que? Para
compreender isto, é preciso lembrar que os afetos são, propriamente falando, atos das
tendências sensoriais. No entanto, a experiência sensorial humana não existe separada da
racionalidade, mas em continuidade com ela. Deste facto decorrem duas consequências
importantes: por um lado, tal continuidade permite que os afetos existam num nível
superior (isto é, na vontade); por outro, significa que os afetos são matéria, ou conteúdo, de
certas virtudes éticas. Portanto, achamos que pode ser útil dar alguma consideração à
25

educação dos sentimentos e ao seu papel na vida moral. 26

7. Afetividade e Liberdade

Dissemos repetidamente que os sentimentos são atividades sensoriais e, portanto,


distintas da atividade espiritual e tendencial que depende do intelecto e da vontade. No 27

entanto, seria errado acreditar que os afetos devam ser “superados” por atos voluntários.
Os seres humanos não podem prescindir dos seus sentimentos, tal como a actividade
intelectual não pode prescindir dos sentidos, o que equivaleria a supor que um indivíduo
consegue viver sem o seu corpo. A natureza humana inclui “essencialmente” as dimensões
28

espirituais e corporais.

Assim, por um lado, devemos lembrar que os sentimentos são diferentes dos atos da
vontade. Tomamos consciência disso quando tomamos livremente uma decisão relutante,
ou seja, que contrasta com a reação emocional do momento. Mas, por outro lado, nunca
devemos esquecer que os sentimentos sempre acompanham os atos voluntários, às vezes
reforçando-os. É esta relação que nos induz a refletir sobre a moralidade dos afetos.
29

7.1. Os sentimentos e a responsabilidade moral


A avaliação moral é um julgamento prático que considera uma ação boa ou má na
medida em que é reconhecida como dirigida (ou não dirigida) ao bem da pessoa. Para que
uma ação seja direcionada para um determinado fim, o agente deve ser sua causa no
sentido próprio e não apenas um sujeito passivo de seus efeitos. Este não é totalmente o
caso dos afetos, que, como dissemos, são per se algo que acontece comigo, e não algo que eu
faço, embora, é claro, isso não signifique completa passividade a certos estímulos. Contudo,
são as ações empreendidas livremente à luz da razão que são, em sentido pleno, causadas
pela pessoa. Portanto, apenas os atos voluntários são, propriamente ditos, morais e podem
ser avaliados como bons ou maus no sentido radical (com base na sua relação com o fim
último e total da pessoa).

Assim, os sentimentos não estão sujeitos à avaliação moral direta (ou seja, são
considerados isolados e em si), mas isso não significa que sejam eticamente irrelevantes. O
que isto significa é que o seu valor moral depende de como participam na actividade das
faculdades superiores, isto é, o intelecto e a vontade. 30
Por exemplo, experimentar um
sentimento de aborrecimento durante uma conversa longa e chata pode ser uma reação
natural, especialmente se estivermos cansados, mas, se meditarmos deliberadamente sobre
a nossa reação emocional e usá-la como motivo para ofender ou criticar o orador, ele pelas
costas, então, nesse ponto, a liberdade e, portanto, a responsabilidade moral entram em
jogo. Como se pode ver, então, não é o sentimento em si que é moralmente bom ou mau,
mas o ato voluntário que dele deriva. Na verdade, a vontade não pode ficar indiferente à
afetividade pela simples razão de que não é indiferente aos valores que os sentimentos –
consequências da atividade sensorial cognitiva – lhe apresentam.

Segue-se daí que a relação entre os afetos e a realidade é, de alguma forma, o


pré-requisito da ação livre, tanto no sentido positivo como no negativo. Os sentimentos são
a condição psicológica para a ação livre (e, portanto, moralmente responsável). Por
exemplo, uma pessoa que reagiu de forma incoerente em relação aos valores da realidade
seria incapaz de tomar decisões completamente voluntárias. Permanecer indiferente
enquanto sofre danos físicos, sentir medo na ausência de perigo ou encontrar prazer na
crueldade são estados que podemos considerar patológicos e que limitam a liberdade de
ação. E se tal incoerência fosse fruto de uma atitude livremente escolhida, seria avaliada
31

como uma conduta moralmente negativa. Por outro lado, quando as reações afetivas são
equilibradas e coerentes com os valores reais, é possível tomar uma decisão livre e madura.

Não podemos continuar aqui a insistir na relação moral entre reações afetivas e atos
voluntários: essa tarefa cabe à ética e à teologia moral, com base em dados psicológicos
adequados. Limitar-nos-emos a sublinhar uma questão importante que acaba de surgir, ou
seja, a relação entre os sentimentos e os valores da realidade. Esta relação é em parte
natural e espontânea e em parte cai na esfera da livre autorrealização do indivíduo. Na
verdade, uma pessoa pode educar a sua afetividade através dos seus hábitos, e é sobre isso
que nos voltaremos agora para concluir este capítulo.

7.2. A Educação da Afetividade

Embora exista uma ligação natural entre os afetos e os valores dos sentidos da
realidade, o indivíduo pode, no entanto, modificar essa ligação, pelo menos até certo ponto,
educando ou pervertendo os seus sentimentos. Por exemplo, é natural sentir compaixão
pelo sofrimento dos outros, mas eu poderia treinar-me para sufocar a minha compaixão e
assumir uma atitude de impassibilidade, pelo menos tanto quanto possível.

Isso pode acontecer por pelo menos dois motivos. O primeiro é o circuito que
conecta conhecimento, tendência e ação, que é específico dos seres cognoscentes. Na
verdade, como veremos, as ações reforçam, através dos hábitos, conhecimentos e
tendências. Ações do mesmo tipo tornam mais natural uma certa avaliação e um certo
movimento tendencial. A segunda razão é específica do homem: o conhecimento humano e
as tendências sensoriais estão abertas à razão e à vontade no sentido de que os dois
últimos podem orientar os dois primeiros. Esta razão, que também mencionamos
anteriormente, é de considerável importância e tentaremos explicá-la de forma mais
completa.

Como vimos, cada ato tendencial depende, em última análise, de um ato cognitivo de
tal forma que as tendências possam ser reguladas com base no conhecimento. O
conhecimento exerce uma influência formal e final porque seu papel consiste em
apresentar as formas e os valores que atraem as tendências. Mas como as tendências
sensoriais são faculdades orgânicas, não é possível exercer controle completo sobre elas,
apenas orientá-las. É por isso que Aristóteles observou que podemos ter um domínio
político, mas não despótico, sobre as nossas tendências. O governo despótico é aquele
32

exercido por um senhor sobre um servo que não pode se opor ao seu controle ou agir de
forma autônoma. A relação entre alma e corpo poderia ser comparada a tal regra porque o
corpo sem o seu princípio vital não seria mais um corpo vivo e nada poderia fazer. O
governo político, por outro lado, é aquele exercido por agentes livres que têm a capacidade
de agir por si próprios e de se opor ao controle do senhor. A relação do intelecto e da
vontade com os sentimentos é análoga a esta forma de governo. Isto não acontece porque
as tendências e os afetos a elas associados possam agir com total independência, mas
porque os seus movimentos também dependem da imaginação e dos sentidos externos. Por
exemplo, posso saber que é benéfico tomar um medicamento e posso querer tomá-lo, mas
percebo-o como um sabor desagradável e, portanto, sinto repulsa por ele. Ou sei que comer
demais faz mal à saúde e gostaria de evitar certos alimentos; no entanto, esses alimentos
ainda me parecem prazerosos e me atraem fortemente. Em ambos os casos a reação afetiva
não pode ser completamente modificada e a ação livre deve levar isso em conta.

É uma experiência comum sentir como se as nossas emoções escapassem ao nosso


controle, mas também sabemos que é possível estar consciente delas e orientá-las. Não
podemos reprimi-los ou sufocá-los (porque o nosso domínio sobre eles não é despótico),
mas podemos, conscientes da sua reactividade, orientá-los para a consecução de um
determinado objectivo. Segue-se que certas atitudes são erradas: o hedonismo no sentido
geral, segundo o qual o bem do indivíduo consiste no prazer sensorial e qualquer tipo de
dor é um mal radical, e o rigorismo, que sustenta que qualquer tipo de prazer implica um
mal. Ambas estas atitudes pressupõem uma visão contrária à unidade da pessoa humana,
que só pode alcançar a sua perfeição através de todas as suas dimensões: a sensorial, a
afetiva e a racional.

Para compreender como é possível o domínio político dos afetos, devemos lembrar
que as potências operativas do intelecto e da vontade são capazes de potencializar-se no
exercício dos seus atos. Tal aprimoramento, mantido de forma estável, é chamado de hábito
. Do ponto de vista antropológico-moral, os hábitos são perfeições adquiridas de forma
estável das potências operativas através das quais se exerce a influência da esfera racional
sobre a esfera sensorial e afetiva. Dizer que são perfeições adquiridas de forma estável não
significa que sejam inamovíveis porque o dinamismo da pessoa exige um aprimoramento
contínuo e, se os hábitos não fossem melhorados, tenderiam a desaparecer.

Portanto, a educação da afetividade consiste essencialmente na aquisição,


conservação e fortalecimento dos hábitos. Contudo, os hábitos não podem ser educados de
forma moralmente neutra, ou seja, ignorando a sua referência ao bem ou ao mal. Sendo o
resultado da ação livre, serão sempre boas ou más: no primeiro caso, serão virtudes; destes
últimos, vícios. O crescimento de uma virtude implica a diminuição do seu vício oposto e,
vice-versa, a diminuição da virtude implica o aumento do vício. 33

Podemos, então, dizer que o homem virtuoso é senhor dos seus próprios atos e é
capaz de guiar os seus próprios sentimentos. Contudo, o homem do vício não domina os
seus sentimentos; em vez disso, ele próprio é dominado pelos objetos dos sentidos que se
apresentam a ele e desencadeiam uma reação emocional. Na presença de um aspecto
positivo da realidade, por exemplo, o homem virtuoso é capaz de controlar as suas reações
e desfrutar desse bem em conformidade com o seu próprio bem. O homem do vício, por
outro lado, não é capaz de controlar suas reações, mas permanece dependente da realidade
que o atrai, mesmo que envolva algo ruim para ele. Em última análise, educar os afetos
significa aumentar a liberdade e moldar as virtudes; a educação afetiva é uma parte
importante da educação moral. Por exemplo, não basta querer o que é bom; pelo contrário,
devemos saber como alcançá-lo com coragem e força – qualidades morais que incluem os
sentimentos de esperança e ousadia (para nos referirmos à lista que demos
anteriormente).

Antes de concluir este capítulo, devemos observar que os afetos têm o mérito de ser
uma expressão particularmente apropriada da unidade substancial do corpo e da alma, da
espiritualidade e da sensibilidade. No entanto, eles não são a raiz da valorização da pessoa.
O indivíduo não pode agir sem os sentimentos, mas não pode alcançar o seu próprio
aprimoramento sem ordenar os seus afetos através da sua liberdade. A afetividade é guiada
pelo intelecto e pela vontade através das virtudes. 34

Resumo do Capítulo 10

No capítulo anterior explicamos o que é uma tendência e que tipos de tendência


podem ser encontrados nos seres humanos. Os afetos, ou sentimentos, podem ser definidos
como as operações das tendências: quando um objeto conhecido ativa uma das tendências
naturais do indivíduo, então surge nele uma emoção em resposta a esse estímulo. Assim, os
afetos estão sempre associados ao conhecimento sensorial (o objeto pode estar presente ou
meramente lembrado ou imaginado). Por um lado, as reações emocionais do indivíduo
referem-se aos aspectos sensoriais da realidade, mas, por outro, dependem também das
disposições sensoriais subjetivas do indivíduo (fisiológicas e psicológicas).

Existe uma estreita relação entre conhecimento, afetividade e ação: os sentimentos


podem reforçar ou dificultar a decisão de realizar determinada ação livre, mas também
podem levar a uma ação impulsiva e não inteiramente voluntária. Portanto, é importante
educar a afetividade e aprender a conhecer nossas reações emocionais para regular nossos
sentimentos com vistas ao nosso próprio aprimoramento moral.
Capítulo 11

Sexualidade

1. Corporeidade e Sexualidade

No Capítulo 4 consideramos o tema da corporeidade e explicamos como cada ser


humano se experiencia como indivíduo corpóreo-espiritual. A maneira como existo no
mundo e estabeleço relações com os outros é caracterizada pela minha corporeidade com
sua espacialidade (meus traços, minha figura, etc.), temporalidade (incluindo minha idade e
estado de desenvolvimento) e sexualidade (feminilidade ou masculinidade). A
corporeidade diz respeito à pessoa como um todo, no sentido de que a nossa mente e as
nossas atividades espirituais também dependem do nosso corpo. Segue-se que a identidade
sexual não é apenas uma configuração anatômica, mas marca toda a existência do indivíduo
masculino e do indivíduo feminino. Por esta razão, muitas vezes distinguimos entre sexo e
sexualidade . O primeiro é um mero fato biológico e fisiológico; a última é a configuração de
toda a pessoa de acordo com uma identidade masculina ou feminina. 1

Entendida desta forma, a sexualidade é mais uma expressão da unidade de toda a


pessoa humana, na qual corpo, mente e espírito não podem ser separados de forma
compreensível. Um corpo, sexualmente identificado, mas considerado matéria pura, corre o
risco de ser reduzido a um objeto de experimentação ou exploração; uma mente não
correlacionada com o corpo e com as tensões espirituais poderia ser reduzida a um
conjunto heterogêneo de impulsos; a espiritualidade não referida ao corpo e à mente pode
aparecer como um estado ideal e inatingível. Ao mesmo tempo, o facto de a sexualidade
afectar toda a pessoa significa que o indivíduo também tem um dever muito específico: o de
integrar a sua masculinidade ou feminilidade no quadro geral da sua vida, como
explicaremos a seguir. Descrever isto como um dever significa que não é algo automático
ou dado como certo; isto é, a tendência sexual — tal como as outras tendências sensoriais,
mas talvez mais fortemente — pode ser uma fonte de desintegração e conflito.

A visão unitária da pessoa permite-nos não ser vítimas de outra forma de


reducionismo, que poderia ser definida como o “reducionismo da cultura” ou o
“reducionismo da liberdade”, que em última análise é um produto do individualismo. É 2

verdade que os seres humanos não são necessariamente obrigados a seguir as suas
tendências naturais, incluindo as tendências sexuais, mas isso não significa que não se deva
ter em conta a sua constituição física e que esta possa ser transformada de acordo com o
gosto subjetivo.

Se prevalecessem as preferências arbitrárias e subjetivas, estaríamos reduzindo a


corporeidade (entendida como uma dimensão da totalidade da pessoa) a um corpo a ser
manipulado e explorado, e isso teria um efeito desintegrador na vida individual. Na
verdade, a complementaridade homem-mulher e a abertura da união sexual à procriação
não são formas de “condicionamento biológico” a superar, mas dados inscritos desde o
início na própria estrutura antropológica dos indivíduos e, consequentemente, da
sociedade. Além disso, a posição que descrevemos como “reducionismo da cultura”
envolveria uma visão dualista da pessoa porque significaria apresentar o corpo como uma
prisão, ou um inimigo, do “eu” que procura afirmar-se.

2. Relações entre homem e mulher

Não deveria ser necessário sublinhar que a diferença entre homem e mulher é, do
ponto de vista antropológico, um dado primário. Por mais óbvio que seja, reiteremos que as
coisas não começaram com indivíduos sexualmente indistintos que, ao longo dos séculos e
através de transformações culturais, se tornaram diferenciados em termos de sexualidade.
Além disso, é evidente que a diferença entre os sexos faz parte do contexto geral da
reprodução dos seres vivos, mesmo levando em conta todas as peculiaridades e
complexidades dos mundos animal e vegetal. No entanto, devemos perguntar-nos se se
pode dizer que o significado da diferença sexual nos seres humanos começa e termina com
os seus objectivos reprodutivos, ou seja, se só pode ser compreendido de um ponto de vista
biológico-fisiológico. E mais uma vez devemos responder que este ponto de vista por si só
não faz justiça à particularidade do indivíduo humano.

Os seres humanos são estruturados com identidades muito precisas (uma


identidade ontologicamente fundada, como veremos no Capítulo 13), parte da qual é a
diferença sexual, ou seja, feminilidade e masculinidade. Quando dissemos que a diferença
entre o homem e a mulher é um dado primário, o que queríamos dizer era o seguinte: que
não só na origem de cada ser humano, no decurso da história, reside uma união entre uma
mulher e um homem, mas também que a a pessoa humana realiza-se e compreende-se
graças à reciprocidade entre o homem e a mulher, à reciprocidade entre a pessoa
masculina e a pessoa feminina. Essa autocompreensão e autorrealização envolve todas as
dimensões do indivíduo: a do corpo (com o desenvolvimento, a descoberta e o
conhecimento da corporeidade sexualizada), a da mente (com seus vários estágios de
maturação) e a da o espírito (com seu aprimoramento incessante).

Dado que a dualidade dos sexos é um dado primário, a mulher e o homem gozam de
igual dignidade como pessoas, embora a história tenha testemunhado frequentemente a
subordinação dos primeiros aos segundos. Este é um sinal evidente de desordem, das
raízes conflituosas nas relações entre os indivíduos, algo sobre o qual não podemos nos
3

debruçar aqui, mas que provocou um contra-movimento por parte de grupos feministas
nas últimas décadas. Conquistas como a obtenção da igualdade de direitos devem ser
consideradas uma conquista, mas por vezes criou-se um antagonismo que parece confundir
a diferença entre os sexos e, como consequência, a especificidade dos papéis do homem e
da mulher na sociedade e na sociedade. família.
O objectivo que as mulheres devem procurar claramente não pode ser o de se
identificarem completamente com os homens (ou vice-versa). Se tomassem o homem como
modelo de referência, perderiam de vista a sua própria identidade. Assim, não se deve
esquecer que a dualidade dos sexos implica uma especificidade, uma particularidade na
pessoa masculina e na pessoa feminina que não pode ser reduzida a meros aspectos
biológicos, mas que envolve também um dever de toda a pessoa para com os outros e para
com a sociedade. . A tendência para nivelar as diferenças, que se manifesta de tantas
maneiras na cultura moderna, poderia levar a um empobrecimento irreparável da família,
da comunidade social e dos indivíduos. Basta recordar o facto inegável de que o casal e a
família se baseiam na diferença sexual e na fecundidade da união entre os sexos.

3. Integrando o impulso sexual na ideia de amor como dádiva

Como explicamos no Capítulo 9, as inclinações sensoriais que são chamadas de


instintos nos animais deveriam ser chamadas de impulsos emocionais nos seres humanos
porque a forma como são traduzidas em ação não é rigidamente determinada pela espécie,
mas caracterizada por uma certa plasticidade. Falar de plasticidade é referir-se à liberdade
com que o indivíduo se orienta para o seu fim particular, ou seja, a autodeterminação e a
autorrealização. Portanto, o ser humano não possui uma sexualidade meramente animal,
forçada a seguir mecanismos descontrolados e independentes da esfera voluntária ou
racional. A tendência sexual que cada indivíduo tem por natureza deve ser
progressivamente humanizada. Por outras palavras, deve integrar-se naquilo que é
especificamente humano, ou seja, na esfera da liberdade e do amor como dom. Dito de
outra forma,

Quando falamos do impulso sexual no homem, não temos em mente uma fonte interior de ações específicas de
alguma forma “impostas de antemão”, mas uma certa orientação, uma certa direção na vida do homem, implícita na sua
própria natureza. O impulso sexual nesta concepção é um impulso natural nascido em todos os seres humanos, um vetor de
aspiração ao longo do qual toda a sua existência se desenvolve e se aperfeiçoa a partir de dentro. . . .
O homem não é responsável pelo que lhe acontece na esfera do sexo, pois obviamente ele próprio não é a causa
disso, mas é inteiramente responsável pelo que faz nesta esfera. O facto de o impulso sexual ser a fonte daquilo que
acontece num homem, dos vários acontecimentos que ocorrem na sua vida sensual e emocional independentemente da
sua vontade, mostra que este impulso é uma propriedade de toda a existência humana e não apenas de uma de suas
esferas ou funções. Esta propriedade que permeia toda a existência do homem é uma força que se manifesta não apenas
naquilo que “acontece” involuntariamente no corpo humano, nos sentidos e nas emoções, mas também naquilo que toma
forma com a ajuda da vontade. 4

Esta passagem destaca a diferença, que notamos anteriormente, entre as dinâmicas


humanas que não são diretamente controladas pelo indivíduo e as ações livres. Aplicada à
sexualidade, esta diferença mostra que certas reações emocionais e fisiológicas podem ser
ativadas espontaneamente, mas cabe a cada um de nós orientar a nossa inclinação sexual
para a valorização da pessoa como um todo, como deve acontecer também com os outros
sentidos. inclinações.

Detenhamo-nos um pouco no livre aperfeiçoamento da pessoa no Capítulo 14. Por


enquanto, podemos dizer que o indivíduo humano alcança a auto-realização apropriada
quando orienta todas as suas próprias estruturas e dinâmicas para o seu próprio bem. É
desta forma que ele manifesta a sua capacidade de autodomínio, que é uma condição
indispensável para a liberdade porque, se eu não fosse dono de mim mesmo, não seria
livre. Segue-se que a expressão mais plena da liberdade é a doação de si mesmo aos outros,
seja através do casamento ou a Deus: possuindo tudo de mim (minhas aspirações, minhas
tendências, meu passado e meu futuro), eu me dou porque só posso dar aquilo que é meu.
Portanto, um presente é sempre um gesto gratuito que nasce do amor e não do cálculo.
Quando damos, fazemos isso para sempre (não com a intenção de receber de volta o que
demos) e exclusivamente (sem trocar o nosso presente).

Se compreendermos desta forma a relação entre amor e doação, então a integração


do impulso sexual significa dar a esse impulso um sentido de totalidade porque, em virtude
da sua intensidade, é uma inclinação capaz de envolver as energias corporais e mentais do
Individual. Como explica Karol Wojtyła: “A palavra latina 'inteiro' significa 'todo' - de modo
que 'integração' significa 'tornar o todo', o esforço para alcançar a totalidade e a
completude. O processo de integração do amor depende dos elementos primários do espírito
humano – liberdade e verdade. ” É o livre arbítrio e uma orientação interior para a verdade,
5

que não depende de nós mesmos, que constituem a essência do amor e o motor do
processo pelo qual o impulso sexual é integrado.

4. Sexualidade e amadurecimento da pessoa

Não se deve esquecer que a integração a que nos referimos acima é um processo no
sentido de que segue um desenvolvimento gradual e não é um estado definitivamente
adquirido. Isso fica evidente se pensarmos no crescimento do ser humano do ponto de vista
físico e mental ao longo das diversas fases da infância, adolescência e velhice. Em cada uma
dessas “fases” da vida, o impulso sexual se manifesta de formas muito específicas e,
portanto, a tarefa de integrá-lo se dará de forma diferente a cada vez: desde a tomada de
consciência da própria identidade sexual, até a compreensão das peculiaridades do outro
sexo, à aceitação da “linguagem do corpo”. 6

No decurso deste amadurecimento pessoal, o indivíduo desenvolve a sua


capacidade de autodomínio, o que significa também descobrir e salvaguardar a sua própria
intimidade – não apenas a intimidade física, mas também a intimidade espiritual. Neste
sentido, a modéstia não é vergonha nem recato, mas a consciência de um tesouro que só é
comunicado livremente a quem é considerado digno de confiança e de afecto. Parte deste
tesouro é o próprio corpo sexualizado e os sentimentos, que, se expostos ao mundo,
tornam-se triviais, uma mera mercadoria a ser trocada.

Como dissemos, é o autodomínio que torna possível o amor e a doação. Disto


podemos deduzir que a essência da troca recíproca de dons entre mulher e homem, na qual
se baseia a família, é constituída pela liberdade interior do indivíduo que reconhece a
verdade do outro. A união sexual entre homem e mulher é a plena expressão corporal de tal
liberdade e, por isso, só tem sentido no contexto da doação total que é específica do
matrimónio. Fora do contexto de uma dádiva recíproca, total e exclusiva (ou seja, sem
limite de tempo ou circunstância), a união sexual entre homem e mulher é uma falsificação.

O amor entre marido e mulher no casamento não é a única forma de experimentar a


doação que envolve toda a existência da pessoa. A capacidade de doação pode orientar-se
transcendentemente para um ideal ou para Deus, renunciando à atividade sexual. Isto não
significa que a sexualidade seja inibida, mas que seja integrada num nível mais elevado. O
7

facto de todos os seres humanos terem em si uma identidade sexual masculina ou feminina
indica que cada pessoa é chamada a viver a vida oblativamente, isto é, chamada a expressar
a ideia do amor como dom. Esta é, de facto, a vocação mais radical do ser humano: que cada
pessoa exista graças ao amor e viva para amar e para ser amada.

Antes de concluir este capítulo devemos deixar claro que refletimos sobre o tema da
sexualidade desde um ponto de vista antropológico e não moral. Por outras palavras, o
nosso objectivo foi o de delinear, dentro dos limites que nos atribuímos para cada capítulo,
os elementos antropológicos que podem ser úteis na compreensão do papel da sexualidade
na vida da pessoa. São estes elementos antropológicos, entre outros, que servem de
fundamento às reflexões morais que constituem o foco de estudo da ética e da teologia
moral, que se baseiam mais diretamente na Revelação cristã.

Resumo do Capítulo 11

A sexualidade não é apenas uma configuração anatômica (masculina ou feminina),


mas caracteriza toda a existência do ser humano. Nesse sentido, expressa a unidade da
pessoa humana, composta de corpo, mente e espírito. A complementaridade do homem e
da mulher e a abertura da sua união sexual à procriação estão inscritas nas próprias
origens da estrutura antropológica dos indivíduos e, como consequência, da sociedade
humana.
Portanto, não existe sexualidade puramente animal nos seres humanos; a inclinação
sexual que cada indivíduo tem por natureza deve ser sempre humanizada no sentido de
que deve ser integrada naquilo que é especificamente humano, ou seja, na esfera da
liberdade e na ideia do amor como dom. Esta integração da sexualidade na totalidade da
existência é um processo de desenvolvimento gradual e não um estado definitivamente
adquirido.

Capítulo 12

Espiritualidade, Morte
e Imortalidade

1. Monismo, Dualismo e Dualidade

Nos Capítulos 3 e 4 voltamos nossa atenção, respectivamente, para a alma e para o


corpo vivo. Também reiteramos constantemente o fato de serem coprincípios, ou seja, dois
princípios que operam juntos na constituição do indivíduo humano. Sozinhos, nem o corpo
nem a alma constituem um ser humano. Observamos também que não é fácil exemplificar a
realidade unitária que percebemos em nós mesmos e nos nossos semelhantes, porque a
nossa imaginação tende sempre a apresentar duas “coisas”, uma ao lado da outra ou, no
máximo, misturadas. Esta dificuldade reflecte-se nas diversas formas como, ao longo da
história da filosofia, foram feitas tentativas de explicar em termos conceptuais a
coexistência dos seres humanos na sua corporeidade e na sua espiritualidade.

Uma abordagem frequentemente utilizada é a do monismo , que reduz a realidade


humana a uma única dimensão, seja ela material ou espiritual. O materialismo sustenta que
só podemos conhecer o que é corpóreo e, portanto, nega efetivamente que os seres
humanos possam possuir qualquer princípio real de natureza espiritual, ou seja, que não
possa ser reduzido a dimensões calculáveis, mensuráveis ou testáveis. Pode existir, embora
seja muito menos frequente, uma forma contrastante de monismo: espiritualista ou
idealista, que, embora incapaz de negar a evidência da corporeidade, baseia a sua
compreensão do homem apenas na sua vida espiritual ou racional, negando por vezes uma
realidade real. distinção entre eventos materiais e eventos mentais. No entanto, esta última
1

posição termina inevitavelmente no dualismo, como explicaremos agora.

O dualismo , de facto, reconhece que a existência humana é caracterizada pela


presença da realidade espiritual e da realidade material, mas não quer ou é incapaz de
apresentá-las na sua unidade. Nesta visão, matéria e espírito são dois elementos distintos,
muitas vezes contrastantes, que, apesar da sua heterogeneidade, existem
contemporaneamente no indivíduo. É claro, então, que enquanto o monismo (pelo menos
aparentemente) defende a unidade do indivíduo, o dualismo introduz uma fractura que é
difícil de consertar.

Já a teoria dual se baseia nas ideias de Aristóteles e Tomás de Aquino para


apresentar o ser humano como um todo bidimensional, ou seja, como um ser caracterizado
pela cooperação do espírito e do corpo . Tal cooperação emergiu em muitos dos
argumentos apresentados até agora, como quando falamos da relação necessária entre a
atividade racional e a atividade sensorial ou da ligação entre o dinamismo dos sentidos e o
do espírito. Esta cooperação expressa a dualidade do ser humano, o que implica que o
princípio espiritual não pode ser compreendido sem referência ao corpo, que é assim
permeado, e que o corpo não pode ser compreendido sem referência ao espírito, que nele
está encarnado. Como vimos, especialmente no Capítulo 3, para compreender a unidade da
pessoa devemos adoptar uma perspectiva que se estende aos princípios últimos da
realidade, ou seja, a perspectiva metafísica que nos permite compreender a unidade
substancial entre alma e corpo. O princípio radical da pessoa, a perfeição que torna
possíveis todas as suas perfeições, é o ato de ser comunicado pela alma ao corpo. 2
Voltaremos a este tema no próximo capítulo. Agora, porém, devemos considerar
uma questão que testa a validade das teorias sobre a unidade da pessoa, isto é, o problema
da morte.

2. O problema existencial ou filosófico da morte

Não é fácil perceber o problema da morte quando o olhamos de forma isolada ou à


distância. Por outro lado, percebemos isso como um problema quando nos toca
pessoalmente, seja porque sentimos a sua aproximação em nós mesmos ou porque o vemos
tocar alguém próximo de nós. É em situações como estas que adquirimos uma consciência
completa do nosso estado mortal e nos questionamos ansiosamente sobre o significado da
vida, o valor das nossas ações, a natureza transitória das coisas e a persistência do eu para
além da existência terrena. Um aspecto particularmente problemático é o contraste entre a
inelutabilidade da morte e o desejo do indivíduo de persistir no futuro e prolongar
ininterruptamente o seu amor pelos outros.

Enquanto a morte permanecer apenas um assunto entre muitos outros, um assunto


a ser estudado de forma isolada, não nos sentiremos diretamente envolvidos. Referindo-se
à filosofia de Kierkegaard, Pareyson com o seu tom característico explica que “se se trata
apenas de definir a morte, então ela está logo feita, e mesmo um jovem pode administrá-la
sem muita experiência. Mas se se trata de dizer qual o valor da morte como orientação para
a vida, qual o significado concreto da morte para um indivíduo real e específico, então é
necessário ter carregado dentro de si a ideia da morte por muito tempo, tê-lo depositado na
consciência como semente viva de reflexões interiores e ações exteriores”. 3

Às vezes é a literatura, e não a filosofia, que melhor demonstra como a aproximação


da morte no homem, ou perto dele, pode efetuar mudanças profundas. Um exemplo
magistral disso está numa novela de Tolstoi em que o protagonista é dominado pelo avanço
inexorável de sua doença:
O exemplo do silogismo que ele aprendeu da lógica de Kieseveter: “Caius é um homem, os homens são mortais,
portanto Caius é mortal”, pareceu-lhe durante toda a sua vida correto apenas em relação a Caius, mas de forma alguma em
relação a si mesmo. . . . “Caius era realmente mortal, e era certo que ele morresse; mas para mim, pequena Vanya, Ivan
Ilych, com todos os meus sentimentos e ideias, para mim é uma questão diferente. Não pode ser que eu deva morrer. Isso
seria horrível demais. Tal era o seu sentimento. 4

Tais dúvidas existenciais conduzem a outras questões que colocam em questão a


concepção filosófica da pessoa humana. Então, tudo no indivíduo é material e, portanto,
corruptível? Como explicar a persistência de “alguma coisa” do indivíduo após a morte?
Para encontrar uma resposta adequada, devemos regressar aos elementos da teoria dual da
pessoa e chegar ao seu núcleo metafísico.

3. Mais sobre a relação alma-corpo

A pessoa humana é um todo cuja existência é possibilitada por dois coprincípios: a


alma e o corpo. Explicamos isso, primeiro definindo a alma como a “forma do corpo” de
acordo com Aristóteles, e depois especificando que a alma é a “forma substancial do corpo”.
Em outras palavras, a alma é o princípio radical do ser vivo no sentido de que não apenas
confere certas propriedades secundárias, mas “conforma” a matéria, tornando-a um corpo
vivo (no caso do homem, um corpo humano), um corpo humano. organismo capaz de
realizar certas operações vitais. Portanto, é a união da alma e do corpo que faz com que o
indivíduo exista como uma substância completa.

Mas devemos sublinhar que, para o ser humano, o adjectivo “substancial” unido ao
substantivo “forma” assume um significado particular porque, neste caso, significa que a
alma humana é a forma do corpo e que, ao mesmo tempo, é subsistente. Afirmar que a alma
humana é subsistente significa que ela possui o ser e o comunica ao corpo. Chegamos a esta
conclusão com base na observação de que existem operações imateriais no homem, isto é,
ações cuja realização depende dos sentidos apenas extrinsecamente (no que diz respeito ao
objeto apreendido pelos sentidos), mas não intrinsecamente. Esta relativa independência
da matéria leva à afirmação de que a alma humana age por si mesma, no sentido de que é o
princípio das suas próprias ações. Ora, como cada ser age na medida em que está “em ato”,
segue-se que a alma intelectiva (isto é, a forma do corpo) possui o ser por si mesma. 5

Comunica o ser ao corpo, e é em virtude deste ato único de ser que a pessoa humana
subsiste.

4. Imaterialidade e Imortalidade

Do que acabamos de dizer e com base nas explicações fornecidas no Capítulo 8,


devemos concluir que a alma humana é um princípio imaterial ou espiritual. Platão chegou
a esta mesma conclusão com grande clareza e precisão. Portanto, não obstante as diversas
6

formas de materialismo, esta é uma verdade que faz parte da herança perene da história da
filosofia.

A imaterialidade da alma humana implica a sua incorruptibilidade, e isto pode ser


demonstrado de várias maneiras. Em primeiro lugar, a alma é simples no sentido de que
não é composta de forma e matéria. Do ponto de vista metafísico, a corrupção significa
precisamente a separação destes dois princípios, como acontece quando ocorrem
mudanças substanciais num sujeito que perde a sua forma substancial, por exemplo, uma
madeira que se transforma em cinzas ou uma flor que apodrece. Mas a alma humana é uma
forma subsistente, e a sua subsistência não é anulada pela corrupção do corpo porque o
corpo recebe o seu ser da forma. Além disso, pode-se considerar que, embora o corpo esteja
sujeito à ação de outros agentes, o espírito não é “corroído” por agentes externos de
natureza material. Através da inteligência podemos conhecer toda a realidade, mas isso não
corrói o espírito em si; pelo contrário, quanto mais progredimos no conhecimento, mais
aguçado se torna o nosso intelecto.

Em apoio à ideia da subsistência da alma como coprincípio do indivíduo humano,


outros argumentos (epistemológicos) poderiam ser usados, como descrevemos nos
Capítulos 4 e 8. O intelecto é capaz de receber todas as formas dos sentidos, enquanto o
corpo é sempre determinado pela matéria. O intelecto conhece formas ou conceitos
universais e abstratos (justiça, mal, bem, beleza, ódio, generosidade e assim por diante),
que transcendem as condições materiais dos objetos percebidos. O intelecto é capaz de
autorreflexão completa.

No entanto, para compreender a espiritualidade do ser humano (precisamente em


virtude do seu princípio espiritual), os argumentos antropológicos também são muito
eficazes. Tomás de Aquino, por exemplo, destaca como cada indivíduo deseja existir de uma
forma específica para si e como, sendo o que é específico do homem é viver segundo a
razão, o ser humano deseja existir sempre porque, através da razão, o seu conhecimento de
a realidade pode superar os limites de tempo e espaço, ou seja, circunstâncias contingentes.
Este desejo de perpetuidade não deriva de fatores materiais, mas da natureza espiritual da
alma humana. Por sua vez, Santo Agostinho coloca a ênfase no desejo de felicidade que é
7

inerente a cada pessoa humana, um desejo que ultrapassa todas as formas limitadas e
temporárias de satisfação porque anseia por uma felicidade infinita e imperturbável. 8

No mesmo contexto, podemos refletir sobre a capacidade de autotranscendência do


ser humano, que tende constantemente a superar-se na sua autorrealização, a projetar-se
para além do tempo (com esperanças e planos para o futuro) e a voltar-se para Deus acima
e acima das incertezas mundanas. Como veremos mais detalhadamente no Capítulo 14, a
autotranscendência implica a emergência do espírito sobre a materialidade.

Deveria, então, ser evidente que falar da imaterialidade e incorruptibilidade da alma


humana significa apoiar a ideia da sua imortalidade. Mas aqui surge mais uma vez um
aparente problema que surgiu anteriormente: é a alma que é imortal ou a pessoa é imortal?
O problema é apenas aparente e pode ser resolvido recordando o que dissemos sobre o
conhecimento intelectual. Quem conhece a verdade ou extrai um conceito universal é a
pessoa, mas não é errado afirmar que “a inteligência sabe” porque tal frase destaca o papel
do princípio imediato da ação, ou seja, a alma racional. Da mesma forma, a raiz da
imortalidade na pessoa reside na sua forma substancial. E assim, ao afirmar que a alma
humana é imortal, está implícito que a pessoa é imortal em virtude do seu princípio
espiritual.

A pessoa sobrevive à morte — à corrupção do corpo — com suas características


individuais, com seu “eu”. Mas a condição da “alma separada do corpo” não é natural
porque cada alma é feita para existir com o seu corpo. E, portanto, podemos ver, à luz da
razão, a viabilidade da ressurreição da carne conforme estabelecida pela Revelação Cristã.

Assim, também no que diz respeito à imortalidade, convém não descurar a


perspectiva existencial, que nos convida a não reduzir o assunto a uma discussão erudita
irrelevante porque é de facto uma questão decisiva. Kierkegaard observa que

levantar o problema da própria imortalidade é, ao mesmo tempo, para o sujeito vivo que levanta o problema,
uma ação , e certamente não uma ação para os distraídos que de vez em quando se perguntam se são imortais de uma
forma inteiramente geral. . . . Ele pergunta como deve se comportar em sua vida para expressar sua imortalidade, e se a
expressa efetivamente ou não; e até receber novas ordens contenta-se com esta tarefa que, dado que abrangerá toda a
eternidade, pode certamente abranger uma vida inteira. 9

5. Na origem da pessoa

Dito o que dissemos, surge uma questão espontânea sobre a origem da pessoa com
os seus dois princípios constitutivos da alma e do corpo. Embora retornemos parcialmente
a este assunto no capítulo seguinte, algumas explicações podem ser dadas aqui.

A questão relativa à origem da pessoa seria fácil de responder se quiséssemos


manter um ponto de vista materialista. Se os seres humanos fossem mera matéria, então o
estudo da genética e da embriologia seria suficiente para compreender de onde eles vêm.
Mas até agora procuramos mostrar que um dos princípios constituintes do homem não é
material, e assim a investigação científica consegue explicar como o organismo humano se
forma e se desenvolve, mas não de onde vem o seu princípio espiritual. Este princípio,
precisamente por ser espiritual, não pode provir do processo reprodutivo no sentido de
que não é transmitido pelos pais, que, no entanto, transmitem a herança genética do
indivíduo. Se isto não fosse verdade, ou seja, se estivéssemos circunscritos a um processo
10

material, não teríamos um princípio intrinsecamente independente da matéria.

Para procurar compreender de onde vem a alma humana, como ela “surge” para
conformar a pessoa, devemos também nos referir à distinção entre a alma humana e a dos
seres irracionais. 11
No caso de plantas e animais, a forma, ou alma, é transmitida no
processo reprodutivo através da potência de um material biológico apropriado. A alma dos
seres irracionais não tem existência própria, mas graças a ela surge um indivíduo. Como
dissemos, a sua função limita-se a conformar o corpo e permitir-lhe realizar as ações
corporais específicas da espécie. A alma humana, por outro lado, possui uma perfeição que
ultrapassa as propriedades da matéria, portanto sua origem não pode ser explicada apenas
com base em elementos materiais. Essa perfeição se manifesta na realização de ações como
o livre arbítrio e a inteligência, que não são corpóreas per se , embora utilizem uma base
orgânica.

À luz da Revelação cristã, chegamos à conclusão, cujos vislumbres já eram evidentes


na filosofia grega, de que o espírito humano deriva de um Princípio que é ele próprio
espiritual, isto é, de Deus. Portanto, na origem da alma humana, que comunica o seu ser a
um corpo que lhe é específico, está um ato criativo de Deus. Ao falar da alma humana como
forma substancial, deixamos claro que, ao usar este conceito, não desejamos estabelecer
uma prioridade temporal da alma sobre o corpo (ou seja, a alma não preexiste em algum
lugar para ser então “infundida ”em um corpo informe), mas para indicar uma
preeminência ontológica, ou seja, o fato de que é a alma que transmite o ser possuído pelo
corpo.

Do ponto de vista da teologia e da filosofia, a conclusão acima requer


esclarecimentos adicionais, que, no entanto, não podemos abordar aqui. Limitar-nos-emos
a dizer que esta conclusão pressupõe a intervenção simultânea (em certo sentido, uma
espécie de cooperação) entre os pais e Deus com a sua ação criativa. Os pais preparam a
matéria para receber a forma, que é criada diretamente por Deus.

Resumo do Capítulo 12

Na reflexão filosófica sobre a pessoa humana, é importante evitar o monismo


materialista, que se concentra apenas na dimensão corporal da pessoa, mas é igualmente
importante evitar o dualismo, que considera a pessoa como uma amálgama de duas
substâncias diferentes (corpo e espírito). , acidentalmente unidos um ao outro. Em
contrapartida, deve-se dar ênfase à dualidade dos seres humanos, reconhecendo que eles
possuem dois coprincípios (a corporeidade e a alma espiritual) unidos para formar uma
única substância. O princípio espiritual não pode ser compreendido sem referência ao
corpo do qual é a forma, e o corpo não pode ser compreendido sem referência ao espírito,
que nele está encarnado.

Precisamente pela unidade do ser humano, a morte surge como um problema não
apenas do ponto de vista existencial, mas também filosófico. A morte coloca com força a
questão de quem é o ser humano e se o indivíduo sobrevive à destruição do seu corpo. A
alma humana é per se incorruptível porque é o princípio das atividades imateriais que não
dependem intrinsecamente do corpo (ações livres e conhecimento intelectual). Provar a
imaterialidade e incorruptibilidade da alma humana leva a sustentar a sobrevivência do eu
após a morte. Esta tese também pode ser sustentada refletindo sobre o desejo de
perpetuidade e de felicidade completa, que é inerente a cada indivíduo.

Visto que a alma humana é espiritual, ela não pode derivar da matéria. Pelo
contrário, sendo um princípio espiritual, deriva de um Princípio espiritual, isto é, de Deus.

Capítulo 13
Quem é a pessoa?

1. A Centralidade da Pessoa

Subjacente aos debates sobre as questões éticas mais importantes (do respeito pela
vida humana à defesa do ambiente) está uma concepção muito precisa de quem é a pessoa,
mesmo que isso não seja especificamente reconhecido. Admitir, por exemplo, que é lícito
reproduzir e seleccionar o indivíduo humano num laboratório não significa apenas decidir
sobre a utilização de uma determinada forma de tecnologia, mas também sustentar que o
homem pode ser manipulado da mesma forma que um computador ou uma boneca. Isto
também se aplica a outros problemas fundamentais enfrentados pela cultura, pela
sociedade e pela política.

Portanto, é compreensível que hoje se deva prestar especial atenção à pessoa


humana, mesmo que muitas vezes falemos sobre o assunto sem esclarecer exatamente o
que queremos dizer, ou seja, sem deixar claro do ponto de vista conceitual por que e como
a pessoa humana é diferente de outros seres vivos. E, no entanto, é necessário chegar a uma
noção de pessoa humana que possa servir de fundamento, de ponto de referência claro,
diante dos problemas discutidos nos campos da filosofia e do direito, da psicologia, da
educação e da sociologia. Na verdade, pode-se dizer que em qualquer ciência que envolva o
homem é necessário proceder com base numa concepção apropriada da pessoa humana,
como destacamos no Capítulo 1.

2. Perspectiva Fenomenológica e Perspectiva Metafísica

Acabámos de dizer que as transformações na cultura moderna devem encorajar-nos


a interrogar-nos sobre as raízes da dignidade da pessoa para responder à pergunta: quem é
o homem? Podemos tentar responder a esta questão seguindo dois itinerários filosóficos
1

que, como veremos, não são mutuamente exclusivos.

Em primeiro lugar, é possível evidenciar características específicas que tornam o ser


humano inteiramente original e inconfundível no mundo em que vive e, portanto,
merecedor de uma estima que não pode ser demonstrada a outros seres vivos, mas que são,
no entanto, dignos de respeito.

Poderíamos definir esta abordagem como um processo fenomenológico-existencial


porque se baseia na observação de fenômenos tipicamente humanos e na reflexão sobre as
2

características distintas da existência humana. Centra-se nos fatos observáveis para


examinar e esclarecer as formas como o homem se manifesta e se realiza. Desta forma,
surgem diversas características que nos permitem dar uma série de definições do homem
com base nas suas capacidades. A maioria destas definições não são totalmente
abrangentes, mas incluem um ou mais aspectos fundamentais da pessoa humana. Entre
eles está a antiga formulação que define o homem como animal racional (animal racional),
ou seja, o animal capaz de conhecer a realidade e dela extrair conceitos universais. Da 3

mesma forma, pode-se dizer que o homem é o único ser que sabe rir, mostrando a sua
4

capacidade de desapego de si mesmo e dos acontecimentos em que está envolvido. Ou


ainda, ele é o único ser mortal com base na suposição de que o evento da morte (não
5

reduzido aos seus aspectos biológicos) não diz verdadeiramente respeito a outros animais.
Ou que “sabe dizer não” e, portanto, não depende inequívoca e absolutamente da realidade
que tem diante de si. Ou que ele é “o ser que age” no sentido de que assume posições e
6 7

também tem capacidade de decidir por si mesmo.

Cada uma destas afirmações evidencia um traço fundamental da pessoa humana,


mas é claro que, ao seguir este primeiro itinerário, utilizamos um método
predominantemente descritivo ou comparativo, que fornece informações significativas
porque pressupõe, mais ou menos conscientemente , uma noção subjacente da pessoa
humana. É necessário, então, um segundo itinerário que parta do fundamento constitutivo
da pessoa humana, no qual as potencialidades que o homem manifesta na sua vida já estão
contidas in nuce: Esta perspectiva é específica da metafísica, que se preocupa com os
princípios últimos da realidade . Poderíamos dizer que, nas afirmações acima (“o homem é
um ser mortal”, “o homem é o ser que sabe dizer não”, e assim por diante), a análise
fenomenológico-existencial concentra-se no predicado da proposição, enquanto a análise
metafísica concentra-se no verbo “é”, na existência pessoal.

É claro que a perspectiva metafísica por si só não é suficiente para compreender


toda a riqueza da existência humana porque, como veremos nos próximos capítulos, a
pessoa não seria compreensível sem considerar a forma como se relaciona com os outros,
exerce a sua liberdade, dá de si ele mesmo, vive no tempo e na história, alcança a
auto-realização e transforma o mundo circundante. No entanto, estas dimensões pessoais
implicam necessariamente uma identidade ontológica da qual derivam. Dito de outra
forma, a dignidade ontológica da pessoa humana, a sua existência pessoal, não depende de
uma capacidade ou característica específica; os direitos fundamentais da pessoa (o direito à
vida ou à liberdade religiosa, por exemplo) não derivam dos dons específicos ou da retidão
moral de um indivíduo, mas da sua própria existência, da qual derivam todas as outras
perfeições. Em outras palavras, o indivíduo humano é digno de respeito não porque seja
capaz de rir ou porque seja mortal (para se referir a duas características mencionadas
acima), mas porque é uma pessoa.

Pelo que dissemos, porém, é evidente que as perspectivas metafísica e


fenomenológico-existencial não são mutuamente exclusivas; em vez disso, eles se
complementam. Uma espécie de circularidade deve ser estabelecida entre eles para que
possam se esclarecer reciprocamente. Para esse fim, procuraremos agora penetrar no
núcleo original da existência pessoal e depois, nos próximos capítulos, voltaremos para
considerar os vários níveis de existência. Para isso devemos utilizar alguns conceitos
aparentemente difíceis, mas o esforço necessário para compreendê-los não será em vão.
3. Análise Metafísica da Noção de Pessoa

Deixaremos para o final deste capítulo algumas explicações históricas sobre como se
desenvolveu a noção metafísica de pessoa. Por enquanto, para chegarmos ao núcleo
ontológico acima mencionado, podemos partir da afirmação de Tomás de Aquino: “'Pessoa'
significa o que há de mais perfeito em toda a natureza: isto é, um indivíduo subsistente de
natureza racional”. Esta é uma afirmação metafísica porque a dignidade da pessoa não se
8

baseia directamente na forma como ela age, mas naquilo que ela é como tal (explicaremos
isto mais detalhadamente mais tarde), independentemente de todos os seus potenciais
serem expressos ou não. Desta afirmação resulta que o valor da vida humana, ou da pessoa
humana, é incomensurável. O seu valor intrínseco não depende nem é aumentado por
outras qualidades, nem é comparável a elas. O valor de cada indivíduo como homem não
admite comparação com uma capacidade técnica ou desempenho físico específico.

Ao lado desta afirmação de Tomás de Aquino, podemos colocar a definição clássica


de Boécio, segundo a qual a pessoa é “uma substância individual de natureza racional”. 9

Ambas as afirmações contêm três noções metafísicas importantes: indivíduo, natureza e


substância. Para compreender a pessoa do ponto de vista metafísico, não basta afirmar que
ela é algo individual, pois a individualidade também pertence às propriedades acidentais,
ou seja, ao que existe como perfeição ou característica de um sujeito. Por exemplo, peso ou
cor, que não subsistem por si mesmos, mas são inerentes a outra coisa (o branco e o
amarelo não existem em geral, mas como uma página branca ou uma flor amarela).

Da mesma forma, não basta dizer que a pessoa é uma substância, ou seja, algo que
subsiste em si mesma e não em outra coisa, nem que ela é uma “natureza” porque este é um
conceito genérico e abstrato. A natureza indica algo comum a todos os indivíduos e,
portanto, pertence a uma espécie, enquanto, na realidade, “uma natureza” subsiste sempre
de forma individualizada, isto é, com características que a tornam um indivíduo específico
de sua espécie e que não são per se parte da definição de uma natureza específica (em
outras palavras, não “cavalo” ou “cachorrinho”, mas este cavalo ou aquele cachorro existe
na realidade extramental).

Assim, unindo as três noções (indivíduo, substância e natureza) ao termo pessoa,


estamos nos referindo a uma substância individualizada de natureza racional. No que diz
respeito à natureza humana, a pessoa é singular, única e irrepetível. O fundamento último
desta singularidade e irrepetibilidade é a posse de um ato específico de ser ( actus essendi ),
que confere atualidade à substância e às suas determinações. Tudo o que a pessoa sabe,
tudo o que ela quer e tudo o que ela faz deriva do ato em virtude do qual ela é. Embora este
assunto possa ser interpretado de diversas maneiras, procuremos traçar alguns contornos
básicos.

O que queremos dizer com a expressão “ato de ser”? Queremos dizer o princípio
metafísico pelo qual algo realmente é – não a existência como homem , como gato , ou como
rocha , que deriva de sua natureza, ou essência – mas ser , simples e radicalmente. Na
verdade, é claro, o ser pertence a todas as substâncias subsistentes individuais, mas destas
a pessoa mostra um nível mais elevado de subsistência porque age “ propter se ”, como o
princípio das suas próprias ações. Com relação a outros indivíduos subsistentes, seu ato de
ser é possuído de forma mais “específica”.

A dignidade irredutível da pessoa humana reside não tanto na razão abstrata (como
poderia parecer à primeira vista na definição de Boécio), mas na racionalidade ou
espiritualidade possuída por um indivíduo concreto que subsiste em virtude de um ato de
ser. É evidente que o indivíduo humano passa por vários estágios de desenvolvimento, mas
há uma continuidade em sua existência. Ou ele é um ser humano ou nunca se tornará um,
por mais perfeições que lhe possam ser atribuídas externamente e por mais que sejam as
circunstâncias externas em que ele possa se encontrar. Não são as propriedades
fenomenológico-existenciais que determinam a existência pessoal, mas o contrário: da
existência pessoal surgem as características específicas da pessoa humana que podem ser
estudadas a partir de uma perspectiva fenomenológico-existencial.
A pessoa humana possui o ato de ser em si e para si, mas não a partir de si; isto é, ele
não cria, de um ponto de vista ontológico, a si mesmo. Sua existência é concedida pelo Ser
Subsistente, ou seja, Deus. A partir da Revelação cristã e de acordo com o que explicamos
no capítulo 12, podemos dizer que na origem de cada pessoa humana está um ato livre
criador de Deus, que a institui como uma “novidade na existência”, à sua imagem e imagem.
semelhança. A dignidade da pessoa deriva, portanto, da sua origem e do seu ser atual.

Vejamos agora as principais propriedades metafísicas que decorrem de tal


concepção da pessoa humana. Estas propriedades, que já estavam implícitas na nossa
análise anterior, são destacadas por muitos filósofos personalistas e existencialistas, e
10

também aqui passaremos frequentemente de um nível de análise para outro. Esta é mais
uma prova de que, para compreender correctamente estas propriedades, elas devem ser
examinadas numa perspectiva metafísica. Teremos que retornar a algumas dessas
características em capítulos posteriores.

3.1. Inalienabilidade

Para começar, examinemos as duas características que derivam do primeiro aspecto


fundamental da pessoa humana, isto é, da sua subsistência.

Em primeiro lugar, a inalienabilidade da pessoa humana deriva do facto de ela não


ser inerente a outra coisa, mas subsistir em si e para si: O meu ser pessoa é inalienável no
11

sentido de que não pode ser tirado de mim. Uma pessoa não pode ser assumida por outra
porque cada pessoa possui uma identidade ontológica própria, uma identidade que lhe
permite assumir um papel ou uma tarefa. 12
Deste atributo deriva a definição clássica
segundo a qual a pessoa é sui iuris et alteri incommunicabilis (que poderíamos traduzir
13

como “a pessoa pertence a si mesma e é inalienável”).

Aquilo que faz com que um indivíduo seja esta coisa particular não é transferível ou
comunicável a outros, e isto é especialmente verdadeiro no caso da pessoa, que desfruta de
uma forma inteiramente única de individualidade. Na verdade, o que faz de Sócrates um
14
homem (isto é, a sua natureza ou essência) pode ser comunicado a muitos outros, mas o
que faz dele este homem só pode ser comunicado a uma pessoa, a ele próprio. A espécie se
15

propaga, não a pessoa. Pela mesma razão, como dissemos, o meu “ser pessoa” não pode ser
tirado de mim, mesmo que eu possa perder um determinado papel ou certas características
físicas.

Este conceito, ao qual a filosofia cristã dá muita ênfase, representa uma diferença
fundamental em relação às filosofias panteístas ou místicas, que conjecturam a anulação da
pessoa no todo, na natureza ou na divindade. O indivíduo permanece ele mesmo diante de
Deus. À luz da Revelação cristã é mais fácil compreender que a criatura é desejada, guiada
16

e protegida “ propter se ” (“para si”).


17

3.1.1. Irrepetibilidade

Uma característica da inalienabilidade da pessoa humana é a sua irrepetibilidade ,


porque a pessoa individual não é apenas um exemplo único de uma norma universal como
um quadrado entre a infinidade de figuras geométricas com quatro lados de igual
comprimento dispostos em ângulos retos. Ele não é como uma das inúmeras reproduções
do David de Donatello ou do Moisés de Michelangelo. Em vez disso, poderíamos dizer que
ele é original, imitável, mas não repetível em si mesmo. Pois mesmo que pudéssemos
reproduzir com precisão as características corporais de uma pessoa, não teríamos a mesma
pessoa porque ela é um indivíduo que existe na sua singularidade original e irrepetível. 18

Em termos filosóficos, isto pode ser mais claramente compreendido se


considerarmos que, enquanto o conceito de natureza abrange apenas os elementos
essenciais de uma coisa e é uma parte em relação ao todo da criatura individual, o conceito
de pessoa significa outra coisa, algo que existe e inclui tudo o que existe no ser humano
com as características individuais que o distinguem dos demais. Pedro não é uma pessoa
porque é um homem , é uma pessoa porque é este homem . Nem é correto dizer que “o
homem é uma pessoa”; antes, devemos afirmar que “este homem é uma pessoa”; 19
da
mesma forma “a pessoa humana” não existe; antes, “esta ou aquela pessoa humana” existe.
Assim, como explicamos, a dignidade pessoal não deriva da humanidade ou da
racionalidade considerada em termos abstratos, mas da existência concreta, real e
individual que deriva de um ato específico de ser.

3.1.2. As consequências da inalienabilidade

Ao enfatizar a inalienabilidade e a irrepetibilidade da pessoa, estamos afirmando a


primazia da individualidade. Humanidade, Sociedade, Espírito Absoluto, Nação e Cosmos
(ou, para usar termos mais cotidianos, opinião pública, as massas, o grupo, e assim por
diante) são categorias que não podem ser consideradas independentes ou em oposição ao
valor do homem individual. Nestes conceitos totalitários (isto é, conceitos que enfatizam o
20

todo ou a totalidade), o indivíduo seria, para usar uma expressão adequada de Sciacca,
nada mais do que um “um pedaço de pano” distinguido apenas pelas suas dimensões em
relação ao todo. 21

A primazia da individualidade também pode ser diminuída pela teoria evolucionista


rígida e materialista, segundo a qual o ser humano individual está subordinado como mero
meio ou instrumento ao progresso da espécie. Ao mesmo tempo, porém, o indivíduo não
deve fechar-se em si mesmo e tornar-se um absoluto. A irrepetibilidade e a dignidade do
ser humano revelam-se precisamente na sua inerente relacionalidade com a
transcendência, no facto de ter uma relação pessoal com o mundo, com os outros e com
Deus. Como veremos em breve, a irrepetibilidade e a relacionalidade só podem ser
plenamente compreendidas por comparação com outras. Somente considerando a mim
mesmo e aos outros em nossa respectiva individualidade irrepetível (isto é, não como
indivíduos produzidos em massa e infinitamente multiplicáveis) é possível reconhecer a
dignidade de cada homem e tratá-lo como um indivíduo, único em si mesmo.
Guardini acrescenta algumas outras características existenciais possuídas pelos
indivíduos com base em sua inalienabilidade metafísica: elas são autopertencentes,
insubstituíveis e autogarantidas. Isso ele explica da seguinte maneira:

“Pessoa” significa que eu, em meu ser, definitivamente não posso ser possuído por nenhuma outra entidade, mas
pertenço a mim mesmo. . . . Pessoa significa que não posso ser habitado por nenhum outro, mas que, em relação a mim
mesmo, estou sozinho comigo mesmo; Não posso ser representado por nenhum outro, mas sou meu próprio fiador; Não
posso ser substituído por mais ninguém, mas sou único. 22

Do ponto de vista antropológico e fenomenológico, a inalienabilidade e a


inviolabilidade ontológica da pessoa refletem-se no fenómeno do pudor. Na verdade, a 23

inalienabilidade sugere uma intimidade profunda e inviolável que a pessoa tende a


proteger. Além disso, esta propriedade metafísica dos seres humanos mostra-se muito
importante no estudo da liberdade, pois, de facto, a autodeterminação e o autocontrolo que
distinguem os atos livres estão enraizados no autodomínio que deriva da inalienabilidade:
a ação surge do ser que se possui (de acordo com o princípio clássico operari sequitur esse ,
que significa: “a ação surge, ou deriva, do ser”). Assim, os atos morais, ou seja, as ações
decorrentes do exercício da liberdade, podem ser definidos como uma afirmação livre do
nosso ser. 24

3.2. Completude

Uma segunda característica que deriva da subsistência da pessoa humana é a


completude . Isto não deve ser entendido em termos material-quantitativos ou lógicos, mas
no sentido de que, pela riqueza do seu ato de ser, a pessoa é uma realidade completa; isto é,
ele não é simplesmente uma parte em relação a um todo, mas um todo em si mesmo.
Embora desde o nascimento até a idade adulta passe por vários estágios de
desenvolvimento, do ponto de vista ontológico nunca lhe falta nada para ser pessoa.
Portanto, para evitar mal-entendidos, talvez fosse melhor falar de plenitude , ou
integralidade .
Seria redutor dizer, por exemplo, que a pessoa é apenas uma parte do universo ou
que não tem outra tarefa senão a de fazer parte da sociedade. A pessoa não é apenas um
indivíduo ao serviço da espécie; ele não está destinado simplesmente a ser “como os
25

outros”. Para usar a expressão paradoxal de Kierkegaard: mil homens são menos que um
homem. 26
Por outras palavras, os indivíduos não são simplesmente elementos que,
somados, constituem a humanidade, nem é a soma final que estabelece o valor dos
indivíduos. Este facto é negado — na teoria e, mais cedo ou mais tarde, na prática — por
todas as ideologias totalitárias, segundo as quais o indivíduo só é relevante para realizar o
progresso social, a marcha da história, a realização de algum projecto político ou
demográfico, e assim por diante. 27

Dizer que a pessoa é um todo em si mesma não significa reconhecer nela alguma
suposta autossuficiência ontológica. Ou seja, não significa pensar que o indivíduo é autor e
princípio do seu próprio ser. Pelo contrário, indica, como observa Kant, que a pessoa é um 28

fim em si mesma e nunca simplesmente um meio; ele é um fim que existe per se e não pode
ser utilizado como mero instrumento subordinado a outros fins.

A importância de considerar a pessoa com respeito ao seu valor inerente, como


totalidade, torna-se evidente se, por exemplo, considerarmos dois acontecimentos na vida
do homem, como a morte e o nascimento.

Numa perspectiva idealista, ou na versão marxista da dialética hegeliana, o valor do


indivíduo é efectivamente negado. Não é nenhuma surpresa, então, que Marx escrevesse
sobre a morte nestes termos:

A vida individual e a vida genérica do homem não são muito diferentes - e isso é inevitável - o modo de existência
do indivíduo é um modo mais particular ou mais geral de vida da espécie ou a vida da espécie é um modo mais particular
ou mais geral de vida da espécie ou a vida da espécie é um modo mais particular ou mais geral de vida da espécie. vida
individual geral . . . . A morte parece ser uma dura vitória da espécie sobre o indivíduo particular e contradizer a sua
unidade. Mas o indivíduo particular é apenas um ser específico da espécie e, como tal, mortal. 29
De um ponto de vista materialista como o de Marx, o indivíduo está efetivamente
subordinado ao progresso da espécie porque nada nele escapa ao determinismo das leis da
natureza. Porém, é justamente diante da morte que o ser humano vivencia a sua própria
totalidade. Como sugerimos no início do capítulo, a morte não é apenas um facto biológico,
mas um acontecimento no qual me encontro sozinho com todo o meu ser, bastante
independente dos acontecimentos da espécie ou da humanidade. É com esse sentimento de
singularidade que parentes e amigos percebem a morte de um ente querido. 30

Um argumento semelhante poderia ser apresentado em relação ao nascimento da


pessoa. O valor do indivíduo vindo ao mundo não se limita ao processo de propagação da
espécie. O bebê estabelece uma relação única com o pai e a mãe, e os pais não ficam
indiferentes se um ou outro dos filhos deve sobreviver.

O progresso na genética torna cada vez mais urgente e importante a compreensão


do valor incomparável, no que diz respeito à espécie, do ser humano individual que vem ao
mundo. Tecnologias como a fertilização artificial e a clonagem (aplicadas ao homem)
podem levar-nos a considerar o ser humano não pela sua identidade pessoal e
intransferível, mas pelas suas qualidades biológicas, que podem ser arbitrariamente
manipuladas, programadas e selecionadas. No caso da fertilização artificial, o “produto
humano” parece valer mais em termos do que representa para as pessoas que o
encomendaram do que em termos do que é . Isto aumenta significativamente o perigo de o
nascimento ser usado como um meio para aplacar os próprios sentimentos, para satisfazer
o desejo de ter um filho ou para preencher uma sensação de vazio.

Reiteremos, no entanto, o facto de que a característica metafísica da completude de


uma pessoa deve ser vista em associação com a sua relacionalidade constituinte. A pessoa
humana é um todo que deve realizar-se e possuir-se na relação com os outros.

3.3. Intencionalidade e Relacionalidade


Além da subsistência, a análise metafísica também esclarece outro aspecto
fundamental da pessoa humana, a saber, a racionalidade, entendida como a capacidade de
assimilar cognitivamente tudo o que existe e apreender a inteligibilidade, a beleza e a
bondade da existência. Associadas à racionalidade estão, antes de mais, a intencionalidade
31

e a relacionalidade , ou seja, a abertura à realidade e aos outros.

É fato que o ser humano é relacional, sendo seu primeiro relacionamento com Deus
e com seus pais. Mas relacionalidade significa também capacidade de estabelecer relações,
de orientar-se para o mundo e para os outros, de doar-se. Esta capacidade pode ser
diretamente associada à racionalidade, mas também deve ser vista em termos da
inalienabilidade metafísica e do autopertencimento fundamental mencionado acima. Se
faltasse esta última qualidade, apenas se estabeleceriam relações exteriores e não relações
pessoais (isto é, entre um “eu” e um “tu”). Com base na sua profunda intimidade e
autodomínio, o homem não é apenas um entre muitos, mas estabelece relações que são
únicas e específicas para si mesmo. Ele não está isolado e fechado: o conceito de pessoa
implica tanto a relação consigo mesmo, ou pertencimento a si mesmo, quanto a relação
com aquilo que transcende o eu (outras pessoas ou Deus). 32

À primeira vista, esta propriedade, tão essencial como outras, pareceria um tanto
desconsiderada na análise metafísica da pessoa. No entanto, muitos filósofos modernos que
estudam a pessoa dão-lhe considerável ênfase. Não nos deteremos mais no assunto aqui,
mas retornaremos a ele de um ponto de vista diferente no Capítulo 15.

3.4. Autonomia

A racionalidade do ser humano também está associada à sua autonomia. Voltando


ao que acima delineamos, poderíamos dizer que na pessoa, de certa forma, a natureza está
a serviço do indivíduo ou, melhor ainda, do singular, como diz Kierkegaard. Não são os
33

instintos naturais que decidem o destino de cada homem, mas o indivíduo que usa os seus
instintos naturais, conhecendo o seu propósito, para dirigir o curso da sua vida. Como
34
dissemos, os indivíduos racionais mostram uma forma particular de singularidade porque
têm controlo sobre as suas próprias ações; não agem como os outros, mas agem por si
(“essencialmente”), demonstrando assim a sua própria inalienabilidade.
35

Esta propriedade lembra o princípio clássico segundo o qual as ações, em última


análise, pertencem ou devem ser atribuídas a indivíduos vivos. Assim, assim como
dissemos que Pedro é uma pessoa na medida em que é esse homem , também devemos
dizer que ele é essa pessoa que pode agir e age, realizando ações pessoais: é o mesmo
sujeito subsistente único que é, sente, quer e sabe. 36
Experimentamos esta verdade
subjectivamente no exercício da nossa liberdade quando nos sentimos, por assim dizer,
sozinhos connosco próprios ao fazer certas escolhas ou realizar certas acções, algo que
consideraremos no próximo capítulo.

4. Explicação histórica de como se desenvolveu a noção metafísica de pessoa

4.1. A noção grega e latina de pessoa antes do cristianismo

A história da noção de pessoa, nos seus aspectos semânticos e conceituais, é um


assunto intrincado e complexo; aqui podemos dar apenas um breve vislumbre que pode, no
entanto, ser útil para traçar um esboço básico do assunto. 37

Pessoa em grego foi inicialmente pr'oswpon, que, de significar máscara teatral


(literalmente “aquilo que está diante dos olhos”), passou a designar o próprio ator de
teatro, aquele que usava a máscara. Originalmente, esta palavra não designava de forma
alguma o homem – nem num sentido geral, nem, menos ainda, num sentido ético-espiritual
– mas sim o “personagem”, o papel desempenhado pelo ator que usou a máscara para se
apresentar com um rosto. diferente do seu.

Este significado também está presente na palavra latina. A máscara possibilitava a


comunicação com o público (assim, personare , segundo alguns estudiosos, vem de sonus ,
alusão à amplificação da voz, de onde deriva o verbo "personificar") e denotava o papel do
ator na a ação que ocorre no palco. Isto acomodou certos papéis fixos nas comédias latinas,
por exemplo, uma vez que as mulheres não eram autorizadas a actuar no teatro, a máscara
permitia aos homens personificar as mulheres.

No direito romano, o termo “pessoa” era utilizado para designar alguém que, em
virtude de um nome, era reconhecível e podia desempenhar um papel na sociedade. Mas
esse papel e a dignidade de ser cidadão estavam subordinados a certas condições externas,
como nascimento, riqueza e linhagem. Um homem sem nome, que não pertencia a uma
linhagem conhecida e sem voz, ou seja, sem direito a voto, era caput ; isto é, um indivíduo
anônimo. 38

Em termos muito gerais, podemos dizer que também na cultura grega o valor do
indivíduo era secundário ou subordinado em relação ao universal, ao ciclo da história, à
cidade-estado, à família patriarcal, ao destino, ou à a vontade dos deuses. 39

Platão (427-347 a.C.), de facto, sustentou que apenas o Homem, e não este homem, é
verdadeiramente real e cognoscível. É a ideia do homem que é eterna, imutável e
necessária, enquanto os indivíduos são temporários e acidentais. As ideias relegam o
indivíduo animado e vivo que as contempla a um nível secundário. Um exemplo disso se
encontra no seguinte trecho: “Você, homenzinho, é um daqueles que olham
incessantemente para o todo e tendem para ele. . . . Você não consegue entender como
acontece cada ato de geração para que a essência da felicidade esteja presente na vida do
todo. Assim, não é para você que ele existe; antes, é você quem existe para a vida do todo.” 40

Não é surpresa, portanto, que no quinto livro da sua República , Platão teorize que esposas
e filhos deveriam ser mantidos em comum, argumentando que a procriação é
exclusivamente uma função para o bem do Estado. 41
De forma semelhante, Plotino (205-270 d.C.) também parece subordinar a liberdade
humana à Providência que, em nome da harmonia geral, designa alguns homens como bons
e outros como maus. 42

Nosso objetivo aqui não é desvalorizar mais de sete séculos de filosofia, apenas
destacar brevemente que, à luz do Apocalipse, as concepções filosóficas anteriores não
eram mais suficientes para fornecer uma base adequada para a noção de pessoa. No
entanto, a filosofia de Sócrates com o seu apelo à vida interior e ao “conhece-te a ti mesmo”;
a de Platão com o seu reconhecimento da primazia do Bem; a de Aristóteles com seu estudo
magistral da ética; e, no mundo latino, o estoicismo de Sêneca, com foco nas virtudes dos
sábios, forneceu as bases necessárias para a continuação da especulação. Neste contexto, é
significativo que São Clemente de Alexandria (150-215) tenha considerado a filosofia grega
como uma segunda revelação, embora incompleta, ou como um rio que flui para o Novo
Testamento. Na verdade, não se deve esquecer que a filosofia antiga tinha a sua própria
antropologia e a sua própria ética. Para citar outro exemplo do valor dos pensadores da
antiguidade, no filósofo estóico-cínico Epicteto (50-138), o termo pr'oswpon, mesmo na
sua definição como máscara teatral, assume claras conotações ético-antropológicas: O
homem é um ator que não escolheu seu papel, mas deve interpretá-lo bem. Uma ideia
semelhante também pode ser encontrada em Sêneca.

Aqui fizemos uma breve menção à filosofia grega e latina; limitando-nos, isto é, ao
pensamento ocidental. Resta perguntar se e como o pensamento oriental contém uma
noção adequada de pessoa. Mas para o fazer seria necessário embarcar num estudo
histórico-crítico a fim de identificar que noção filosófica de pessoa existia antes de Cristo, e
se a difusão do Cristianismo influenciou posteriormente certos aspectos da “filosofia
oriental”. Isto, no entanto, é algo que não podemos fazer aqui.

4.2. A Contribuição do Cristianismo


Com o Cristianismo o indivíduo emerge em todo o seu valor, como destinatário da
Revelação, objeto de amor e filho adotivo de Deus. O homem é racional e livre precisamente
porque foi criado à imagem de Deus. Ele é autônomo em virtude do ato criativo que,
tornando-o participante de um poder infinitamente sábio e livre, cria cada indivíduo e o
dota da luz do conhecimento, das iniciativas da vontade e da capacidade de amar. O
conteúdo da Revelação — e especialmente as verdades da filiação e da providência divina
— ajudam-nos a ver o significado de pessoa com nova clareza. Assim, como observa
Guardini, se a nossa relação com o Deus vivo e pessoal do cristianismo falhar, ainda será

certamente é possível reconhecer um indivíduo dotado, culto e eficiente, mas não a pessoa autêntica que é uma
designação absoluta de cada homem para além das suas qualidades psicológicas ou culturais. Assim, o conhecimento da
pessoa está ligado à fé cristã. O reconhecimento e o respeito podem durar um pouco depois que a fé é perdida, mas depois
são gradualmente perdidos.

A mudança introduzida pelo Cristianismo fez-se sentir não só ao nível da


especulação filosófica, mas sobretudo na sociedade e na cultura.

Segundo alguns estudiosos, a influência do Cristianismo é evidente no direito


romano em vários campos da legislação, mas particularmente no que diz respeito aos
direitos da pessoa. Isto é mais notável, como é de se esperar, no período entre Constantino
e Justiniano, durante o qual a influência da ética cristã veio a ser adicionada à influência
anterior do estoicismo. Exemplos da influência do cristianismo incluem a difusão da prática
de alforriar escravos ( favor libertatis ); a proibição de os proprietários alienarem um
escravo, separando-o do cônjuge e dos filhos, e o reconhecimento das famílias dos escravos.
Da mesma forma, os direitos de propriedade e o direito à defesa legítima passaram a ser
moderados pelo respeito pelos outros.

4.2.1. A Filosofia dos Padres até Santo Agostinho

A falta de categorias conceituais adequadas na filosofia da época obrigou o


raciocínio dos Padres da Igreja, que se basearam na herança filosófica grega e latina para
definir a noção de pessoa. A ocasião surgiu, sobretudo, com as disputas teológicas sobre a
Trindade e a Encarnação. A história deste desenvolvimento especulativo é longa e
complexa, e daremos apenas um breve esboço.

É importante ter em mente que o que os pensadores cristãos procuraram fazer foi
responder às questões teóricas que surgiram das suas reflexões sobre o Apocalipse. Indo
além do ideal do homem virtuoso tal como entendido pelos gregos e latinos, tornou-se
necessário tentar traduzir em termos filosóficos as verdades da condição do homem como
criatura, da sua filiação divina e da Encarnação na Segunda Pessoa da Trindade. Como
podemos explicar em termos conceituais que Deus realmente se tornou homem? Como
podemos definir a singularidade e a individualidade da pessoa humana? Em que consiste o
seu ser à imagem e semelhança de Deus? Qual é a sua dignidade e em que ela se baseia?
Podemos falar de “pessoa” em Deus e no homem?

Santos. Gregório de Nazianzo (329/330–390) e Gregório de Nissa (335–395)


separaram a noção de pessoa daquela de “máscara” e foram dos primeiros a usar o termo
pr'oswpon (que deu origem a mal-entendidos e heresias que viam nas Pessoas da Trindade
apenas “modos” de Deus) como equivalentes a upasiς.

Uma importante contribuição para a sistematização da questão foi feita por Santo
Agostinho (354-430) nos seus estudos sobre a distinção e unidade das Pessoas divinas. Mas
na sua época não havia consenso terminológico sobre o uso do termo “substância” como
sinônimo de “pessoa”. Apesar disso, ele revela uma compreensão considerável da noção
quando escreve: “Pessoa não significa espécie, mas algo singular e individual” e: “Cada
homem individual. . . é uma pessoa.” Não devemos, porém, procurar nas suas obras uma
definição plena e completa de pessoa nem um estudo específico do seu uso analógico, para
podermos aplicar o conceito de pessoa a Deus e ao homem.

4.2.2. Definição de Boécio

A expressão mais famosa para indicar a noção metafísica de pessoa foi a cunhada
por Severino Boécio (480-526), que ocupou cargos importantes na corte de Teodorico e
traduziu e comentou obras de Platão e Aristóteles. Certamente seria inapropriado
considerar esta definição como uma definição verdadeira e completa no sentido moderno
ou científico da palavra. É, antes, uma expressão que sistematiza o uso de certos termos e
pressupõe todo um conceito do mundo e do homem. Ele chegou a isso no contexto de
certas disputas teológicas contra os Nestorianos (que sustentavam que há duas naturezas e
duas Pessoas em Cristo, unidas por um vínculo puramente moral) e os Monofisitas (que,
inspirados por Eutiques, sustentavam que Cristo tinha apenas um, divino, natureza). Como
indicamos acima, Boécio “definiu” a pessoa como “uma substância individual de natureza
racional”.

Examinamos o significado dos termos individuais anteriormente neste texto, mas


iremos mencioná-los novamente brevemente, embora sem entrar nas várias interpretações
que a definição foi dada. “Substância” indica aquilo que existe em si, em oposição aos
“acidentes” (peso, cor, tamanho), que são características inerentes a um sujeito subsistente.
Esta substância é “individual”, ou seja, existe com características que a distinguem de
outros indivíduos da mesma espécie. O termo “natureza” significa a essência (aquilo pelo
qual uma coisa é o que é), sendo o princípio das operações. Desta natureza depende a
“racionalidade”, ou seja, a capacidade de conhecer o mundo circundante e dele extrair
conceitos universais.

A definição de Boécio organiza e sistematiza os conceitos grego e latino como num


mosaico. Especifica a totalidade do sujeito subsistente, ou seja, sua espécie e os acidentes
que lhe são inerentes. Para chegar a este ponto teve primeiro de esclarecer – e é aqui
sobretudo que reside o seu mérito – a distinção entre os dois termos “natureza” e “pessoa”,
que na altura eram usados de forma incorrecta e confusa.

Esta definição não pretende iluminar toda a verdade sobre o homem. Deve ser
entendido apenas como um ápice teórico numa visão mais ampla da pessoa e do mundo
que não se limita a uma única fórmula. Posteriormente, seriam destacados seus limites
implícitos, entre eles a dificuldade de aplicar tal noção de pessoa, ao mesmo tempo, a Deus,
aos anjos, e ao homem ou uma certa ambiguidade no termo substantia .

4.2.3. São João Damasceno e São Boaventura

São João Damasceno (ca. 675-749), quase como um precursor do existencialismo,


escreveu que “a pessoa é aquela que, expressando-se através das suas próprias operações e
propriedades, apresenta uma manifestação de si mesmo que a distingue dos outros do
mesmo natureza como ele.” A sua definição é interessante porque mostra, entre outros
exemplos possíveis, que as dimensões personalista e existencialista não estavam de forma
alguma ausentes no pensamento clássico sobre o indivíduo humano. Deve-se mencionar
também Ricardo de São Vítor (falecido em 1173), que definiu a pessoa humana como
“existência individual ou incomunicável de natureza racional” e a Pessoa divina como
“existência incomunicável de natureza divina”.

São Boaventura (1217-1274) pode ser considerado um dos melhores intérpretes do


que é conhecido como personalismo cristão. Para ele, a ideia de pessoa implica a ideia de
indivíduo e de uma certa dignidade devido à sua forma específica. Ele percebeu com clareza
a raiz profunda da pessoa: “Esta é a distinção da pessoa no terceiro capítulo do Êxodo: Eu
sou quem sou”. O personalismo, então, baseia-se na “metafísica do Êxodo”. Aqui, a
revelação lança um raio de luz sobre o ser divino: a personalidade é o sinal da existência no
seu mais alto grau de perfeição. Somos pessoas porque somos obra de uma Pessoa.
Participamos da personalidade divina, assim como participamos de sua perfeição e de sua
providência, assim como participamos de seu ser.

4.2.4. A Filosofia de São Tomás de Aquino

Fizemos repetidas referências à filosofia de São Tomás de Aquino (1224/5–1274).


Ele voltou à definição de Boécio, mas vimos como ele também definiu a pessoa como uma
subsistens racionale , ou como aquilo “que subsiste em uma natureza intelectual ou
racional”, porque tal noção também pode ser atribuída a Deus. O termo “subsistente”
encapsula os três elementos: indivíduo, natureza e substância.

Os seus comentários sobre a definição de Boécio lançam luz sobre as suas profundas
implicações no que diz respeito, por exemplo, à individualidade e à subsistência. Ao
sublinhar a dignidade da pessoa humana no seu estado individual concreto, São Tomás
recorda como as ações pertencem sempre ao indivíduo singular subsistente (o suppositum
), nunca à natureza, e que o suppositum é o todo que possui a natureza específica como sua
parte formal ou perfectiva. Com uma visão que vai contra qualquer forma de platonismo,
ele afirma que a existência de um homem é mais verdadeira em sua própria natureza do
que na mente divina porque o fato de existir no estado material faz parte da verdade do
homem, e isso não é o caso da mente divina.

4.3. O papel do personalismo

Esta breve visão geral será suficiente. É claro que não é uma história completa de
como a noção metafísica de pessoa se desenvolveu, mas mostra algumas das fases do
processo pelo qual ela foi afirmada e definida. Concentramo-nos sobretudo em certas
etapas filosóficas da perspectiva metafísica; nos próximos capítulos examinaremos outros
aspectos importantes da concepção da pessoa humana, aspectos que emergem mais
plenamente na perspectiva que definimos como fenomenológico-existencial.

Para concluir esta breve investigação, devemos fazer alguma referência ao facto de
que no século XX, sob a influência de circunstâncias históricas específicas, a atenção de
muitos pensadores passou a centrar-se na pessoa. Na verdade, a tragédia das duas guerras
mundiais, especialmente da segunda, mostrou que extremos de desprezo pelo homem
podem ser alcançados em nome de uma ideologia. E o mesmo pode ser dito sobre exemplos
históricos de exploração e abuso de indivíduos em nome do capitalismo, do comunismo ou
do nacionalismo. Diante de tais acontecimentos, é natural que se pergunte: como é possível
chegar ao ponto de perder de vista o valor do ser humano individual? Que conceito de
pessoa humana pode servir de fundamento e não de fundamento provisório para a sua
dignidade?

Estas questões, decorrentes das lições da história, juntamente com outros factores
filosóficos e culturais, deram origem a uma série de escolas de filosofia conhecidas
colectivamente como “personalismo”, que se desenvolveram especialmente durante a
primeira metade do século XX. Pensadores de tendências por vezes muito diferentes
passaram a fazer parte do movimento (incluindo, para mencionar apenas dois, Emmanuel
Mounier e Paul-Louis Landsberg). Procuraram colocar o valor da existência individual no
centro das suas reflexões e deram um impulso positivo ao debate sobre esta questão entre
os intelectuais da sua época. Esse impulso, pelo menos no seu sentido unitário, talvez tenha
perdido agora muita da sua energia, mas a importância do estudo da pessoa humana nunca
pode diminuir e, felizmente, de facto, ainda hoje está connosco.

Resumo do Capítulo 13

As duas questões fundamentais levantadas neste capítulo são: “Quem é a pessoa


humana?” e, “Que noção de pessoa humana pode servir como fundamento adequado para a
sua dignidade?” Podemos dar uma resposta fenomenológico-existencial baseada nas
características da vida humana que a distinguem da vida de outros seres vivos, ou podemos
dar uma resposta metafísica que procura alcançar o fundamento último da identidade
ontológica pessoal. Estas duas abordagens não são mutuamente exclusivas, mas a
perspectiva metafísica é aquela que oferece uma resposta definitiva às duas questões
fundamentais acima mencionadas. A reflexão metafísica leva-nos a considerar a pessoa
como um ser individual de natureza racional, e a análise desta noção mostra que o ser
humano é inalienável, irrepetível, completo em si mesmo, intencional e relacional,
autónomo nas suas ações. O desenvolvimento da noção metafísica de pessoa foi um longo
processo histórico no qual o Cristianismo desempenhou um papel decisivo. Os
acontecimentos históricos do século XX levaram muitos pensadores a examinar a
centralidade da pessoa humana.

Capítulo 14

Liberdade e
Auto-realização

1. A tarefa da autorrealização

No capítulo anterior procurámos compreender o núcleo metafísico da noção de


pessoa humana, ao mesmo tempo que realçámos a importância de não nos determos nesse
resultado mas, a partir dele, examinarmos também o homem nas suas dimensões
existenciais, ou seja, em seu dinamismo. 1

Para introduzir o nosso assunto, podemos começar com uma passagem muito eficaz
de São Gregório de Nissa:

Todos os seres sujeitos à passagem do tempo nunca permanecem idênticos a si mesmos, mas passam
continuamente de um estado para outro num processo de mudança que está sempre em ação, para o bem ou para o mal. . .
. Agora, estar sujeito à mudança é renascer continuamente. . . . Mas, neste caso, o nascimento não ocorre por intervenção
externa, como é o caso dos seres corpóreos. . . . É o resultado de uma escolha livre e, portanto, somos, de certa forma,
nossos próprios pais, criando-nos como desejamos e através das nossas escolhas dando-nos a forma que desejamos. 2

Esta passagem refere-se não só ao facto de a existência humana passar por diversas
fases de desenvolvimento físico-biológico (infância, infância, etc.), mas também alude a
toda a fisionomia da pessoa - espiritual e corporal - que é chamada à auto-autonomia.
cumprimento. Assim, dizemos que o homem é causa sui , causa de si mesmo, não num
sentido ontológico porque o indivíduo finito não pode criar-se a partir do nada, mas no
sentido dinâmico-existencial, isto é, em termos operacionais. Cada ação livre me configura
de uma forma particular, positiva ou negativamente, formando minha personalidade. A
mesma ideia pode ser expressa assim: Cada pessoa é uma tarefa para si mesma; somos
necessariamente livres e, portanto, gostemos ou não, a realização de nossas vidas depende
de nós.

Obviamente, isso não significa que sejamos causa de nós mesmos em sentido
absoluto, ou seja, sem referência aos fatores individuais (biopsicológicos) e
histórico-sociológicos que nos distinguem, mas a nossa livre autorrealização interage com
aqueles fatores.

Para melhor compreender isso, pode ser útil nos aprofundarmos brevemente na
neurologia, limitando-nos a buscar uma compreensão intuitiva do que afirmamos acima. O
desenvolvimento da personalidade (isto é, do aspecto dinâmico-existencial da pessoa) está
ligado, por um lado, aos processos de crescimento dos tecidos nervosos e, por outro, à
plasticidade cerebral. Os primeiros são responsáveis pela especialização de áreas do
cérebro, especialmente das áreas linguísticas; esta última, que não se limita a um período
da vida, está na base de todos os processos de aprendizagem e adaptação. Mozart é
considerado um excelente exemplo dessa plasticidade, ou seja, da capacidade de modelar e
orientar o desenvolvimento de áreas específicas do próprio cérebro. Desde os primeiros
anos de vida revelou uma extrema aptidão (determinada ontogeneticamente) para a
música. O seu pai compreendeu-o imediatamente e, graças a uma educação musical
constante, antes de Mozart atingir a puberdade, os seus neurônios (a área do cérebro
conhecida como neocórtex) sofreram uma reorganização que o tornou um dos maiores
músicos de todos os tempos. 3

Este exemplo mostra que, para alcançar a auto-realização, o homem deve ter em
conta as disposições do seu próprio corpo, que, graças à sua liberdade e criatividade, pode
utilizar para alcançar os objectivos que se propôs. Mostra também que a auto-realização
não diz respeito apenas ao aspecto estritamente espiritual do homem, mas envolve
também o seu corpo. Na verdade, não poderia ser de outra forma, dada a unidade
corporal-espiritual da pessoa humana.

É importante que as nossas reflexões sobre a livre autorrealização da vida


individual se realizem depois de termos empreendido uma análise metafísica da pessoa
humana, para não perder de vista o seu núcleo ontológico. Caso contrário, podemos chegar
a pensar que tudo no indivíduo é variável e relativo, que as mudanças e as escolhas
influenciam cada um de nós a tal ponto que nos impedem de saber o que a pessoa, como tal,
é. Numa perspectiva metafísica, porém, é fácil compreender que cada indivíduo possui uma
identidade ontológica permanente, que é o fundamento que o torna reconhecível como
pessoa, embora as caracterizações que ele assume periodicamente em sua vida possam
mudar. 4

Neste contexto, falamos de um “fundamento personalista da liberdade” para


sublinhar o facto de que a liberdade só pode ser plenamente compreendida e justificada
com base numa compreensão adequada da pessoa humana e, tal como foram feitos
progressos nos esforços compreender o núcleo essencial da noção de pessoa, portanto tem
havido um progresso paralelo nas reflexões sobre a liberdade.

Deixando de lado as conclusões a que chegou, Hegel reconheceu que a influência do


Cristianismo, com os seus esforços especulativos para formular uma concepção adequada
da pessoa humana com base na Revelação, foi decisiva para a compreensão da liberdade: 5

Continentes inteiros. . . nunca tive essa ideia. . . . Os gregos e os romanos, Platão e Aristóteles, até mesmo os
estóicos, não a tinham. Pelo contrário, viram que é apenas pelo nascimento (como, por exemplo, um cidadão ateniense ou
espartano) ou pela força de carácter, educação ou filosofia (o sábio é livre mesmo como escravo e acorrentado) que o ser
humano é realmente gratuito. Foi através do Cristianismo que esta ideia veio ao mundo. Segundo o Cristianismo, o
indivíduo como tal tem um valor infinito como objeto e objetivo do amor divino, destinado como mente a viver em
relacionamento absoluto com o próprio Deus e a ter a mente de Deus habitando nele, ou seja, o homem está
implicitamente destinado à liberdade suprema . . 6
2. Existência Autêntica

Tendo estabelecido a nossa premissa para examinar a auto-realização do homem,


devemos agora acrescentar uma série de esclarecimentos para compreender, em primeiro
lugar, que direcção deve tomar a livre auto-realização.

Para compreender isto, devemos primeiro reconhecer que a seguinte interpretação


da liberdade é muito difundida: Alguém é livre se puder escolher qualquer coisa, sem estar
sujeito a nenhum critério de avaliação ou ao julgamento dos outros. A escolha individual
está acima da crítica porque os indivíduos são livres para se realizarem como quiserem,
como quiserem, e nenhuma regra ou modelo lhes pode ser imposto. Deste ponto de vista, a
autorrealização que mencionamos acima é entendida como a capacidade de adotar
qualquer tipo de estilo de vida sem ter que se justificar perante nenhuma autoridade
superior, diante de nada e de ninguém.

Sem entrar nas raízes histórico-filosóficas desta abordagem, fica claro que esta é
7

uma noção infantil de liberdade, como se ser livre significasse negligenciar o próprio poder
de julgamento, tomar decisões caprichosas e caprichosas, e ser incapaz de assumir
qualquer responsabilidade. em nossas relações com os outros. É evidente que tal
comportamento denota não apenas imaturidade, mas também o triunfo do egoísmo, de um
individualismo impenetrável a qualquer tipo de discussão, o poder dominante do “eu”
superficialmente expresso em frases como “Eu faço o que me agrada”, e outras
reivindicações semelhantes.

Para refutar tal posição, deveria ser suficiente observar que a liberdade absoluta
entendida nestes termos é irrealista porque ignora o facto de que todas as nossas escolhas
são feitas na presença de condições e circunstâncias precisas e efectuadas sob o peso do
nosso passado e das nossas aspirações. para o futuro de tal forma que qualquer suposta
espontaneidade seja apenas aparente. Além disso, a nossa própria experiência pessoal
desmente esta tese, pois, se fôssemos verdadeiramente capazes de fazer qualquer escolha
com total indiferença, as nossas vidas e as dos outros não seriam vistas como
problemáticas ou tão dramáticas como por vezes são. A verdade é que, pelo menos em
algumas circunstâncias, temos consciência de que não é fácil tomar uma decisão:
perguntamo-nos qual seria o melhor a fazer e, por sua vez, julgamos as decisões dos outros,
reconhecendo-as como dignas. de elogio ou culpa. Em resumo, percebemos que a livre
autorrealização não pode significar indiferentismo ou emotivismo.

O indiferentismo e o emotivismo surgiriam se, por exemplo, nos dispusessemos a


experimentar qualquer experiência, quanto mais, melhor, sob o equívoco de que uma é tão
boa quanto outra. Fazer isso seria cair na superficialidade e na dispersão, experimentando
o vazio interior e uma sensação inevitável de tédio e falta de sentido, porque significaria
perder de vista por que agimos e os valores para os quais somos orientados. A verdade é
que o que conta não é ter experiências, mas sim a forma como as realizamos e o seu
conteúdo. Assim, podemos dizer que, para viver uma vida autêntica, precisamos “saber
gerir os sim e os nãos”,8 ou
seja, dar uma resposta adequada, positiva ou negativa, às
alternativas que se apresentam no nossas vidas. Precisamos de reconhecer que as nossas
escolhas individuais, na medida em que são nossas e gratuitas, podem ser certas ou
erradas. Vista desta forma, a acção autêntica contrasta com a acção artificial, com a
adaptação irreflexiva às normas dominantes, numa palavra, com o conformismo. 9

Como observa Spaemann, para se considerar autêntico não basta dizer “faço o que
quero” ou “faço o que quero”. Estas são observações óbvias e sem sentido, tanto porque
quem age de acordo com a consciência age, em última análise, como quer, como porque
contêm o risco implícito de agir sob o efeito de um impulso momentâneo. 10
A atitude
especificamente humana é perguntar por que quero algo, pois é, de fato, específico da
dignidade do homem agir de acordo com a razão. Isto não significa, contudo, que apenas a
11

razão seja humana; antes, a razão deve ser a principal coordenadora de uma conduta
orientada para a felicidade. 12
É por isso que é possível avaliar se uma forma de conduta é autêntica ou não, ou
seja, se o indivíduo está se realizando de forma singular e intransferível, orientando-se para
o fim que lhe é específico. Na verdade, como veremos no Capítulo 18, as pessoas agem de
acordo com uma espécie de tabela de valores, que cada pessoa pode estruturar de forma
diferente e que constitui o guia objetivo do seu próprio projeto de vida. Portanto, é com
referência a estes valores racionalmente cognoscíveis que a autenticidade da conduta
individual pode ser julgada.

Estas observações sobre a autenticidade podem estar associadas a uma das


propriedades metafísicas da pessoa de que falamos no capítulo anterior, ou seja, a
irrepetibilidade do indivíduo. Esta irrepetibilidade manifesta-se não só no comer, no
crescer, na experiência do prazer, no dormir, etc., mas sobretudo naquelas escolhas que são
expressão consciente da nossa autonomia, que envolvem toda a pessoa num compromisso
sério e intenso (amar alguém, doação de si mesmo, decidir o próprio futuro, assumir um
papel ou uma tarefa). São ações importantes no sentido de que são importantes para mim,
e a sua intensidade deriva mais da plenitude de significado com que são acompanhadas do
que do esforço físico que envolvem. Se, em última análise, estes traços se encontram em
13

todas as acções livres, é no entanto verdade que há algumas acções em que são mais
evidentes porque são isentas de indiferença e de emotivismo.

3. Coerência e Fidelidade

O perigo do conformismo, a que nos referimos, lembra-nos que o crescimento do


homem, a realização da tarefa de auto-realização como pessoa, ocorre automaticamente na
verdade e em direção à verdade, em direção ao bem desejado e escolhido à luz da verdade.
Portanto, a verdade deve ser conhecida profundamente. Uma forma de comportamento
14

não pode ser autêntica se for contrária ao bem do homem ou poderia sê-lo apenas
subjetivamente, o que, no entanto, evidenciaria a incoerência entre o que o homem é, o que
ele considera ser e o que ele expressa de ele mesmo.

A autêntica autorrealização de que falamos aqui não é a mesma coisa que a mera
realização de um ato livre; antes, depende do valor moral desse ato. O homem realiza-se
autenticamente não pelo simples fato de realizar uma ação ou escolha livre, mas porque se
torna bom (ou, dito de outra forma, verdadeira e autenticamente homem) quando a ação é
moralmente boa. Aqui entra em jogo a autotranscendência, ou seja, o crescimento ou
superação do eu em direção à verdade e ao bem. Se eu não me orientasse para a bondade e
15

a verdade – que não dependem de mim, mas estão localizadas em um nível superior – eu
não alcançaria a transcendência. Na superação de si mesmo, ocorre também um aumento
da liberdade porque há uma maior capacidade de autodeterminação.

A par desta necessidade de coerência íntima, devemos recordar que o exercício da


liberdade, que está na base do comportamento autêntico de que falamos, deve sempre
realizar-se dialogicamente (ou seja, no relacionamento com os outros); caso contrário, é
fácil passar da ideia de autenticidade para o subjetivismo e o individualismo. 16
É
precisamente abrindo-nos aos outros e reconhecendo o nosso próximo que somos capazes
de compreender e afirmar-nos mais plenamente. A autenticidade é fortalecida e garantida
pelo desenvolvimento da dimensão interpessoal, da relacionalidade, que, como vimos no
capítulo anterior, é uma característica essencial do homem.

A harmonia entre o mundo interior da pessoa, a sua conduta e a verdade (ou


bondade) do homem permite perseverar no compromisso de cumprir uma tarefa
livremente assumida, que envolve todo o indivíduo. O comportamento é, então, autêntico
quando reflecte esta coerência e dá prova de fidelidade. Uma pessoa comporta-se fielmente
quando, à luz da verdade, permanece orientada para a realização futura do seu próprio
projecto de vida, livremente promulgado no presente em continuidade (que pode ser
continuação ou rectificação) com o que foi feito no passado. 17
4. Pessoas e Indivíduos

Precisamente para sublinhar o dever do homem de realizar-se de acordo com a sua


dignidade, muitos filósofos, especialmente da escola existencial, fazem uma distinção entre
o conceito de pessoa e o de indivíduo. Mencionamos isto porque é uma abordagem
generalizada e não ineficaz para sublinhar a nossa responsabilidade de auto-realização
autêntica, embora tenha, como veremos, certos limites potenciais 18 o seu contexto não se

for amplamente claro. Referimo-nos apenas a dois autores, mas pode-se observar que, num
traço partilhado pelas diversas definições, o termo pessoa é utilizado sobretudo como uma
categoria ética, indicando o grau adequado de realização humana que o homem deve
alcançar se não o fizer. desejam permanecer no nível da mera individualidade, o que é uma
condição eticamente insuficiente ou não eticamente definível.

Para N. Berdyaev (1874–1948), “A personalidade não é uma categoria biológica ou


psicológica, mas sim uma categoria ética e espiritual”. 19

O indivíduo é uma categoria do naturalismo, da biologia e da sociologia. . . . O homem certamente é um


indivíduo, mas não é apenas um indivíduo. . . . Não existem dois homens separados, mas um mesmo homem é ao mesmo
tempo um indivíduo e uma personalidade. Não se trata de dois seres diferentes, mas de dois tipos de qualidade, de duas
forças diferentes no homem. . . . O homem, como indivíduo, suporta a experiência do isolamento, egocentricamente
engolfado em si mesmo. . . . O homem como pessoa, o mesmo homem, ganha o domínio do autoconfinamento egocêntrico
[e] revela um universo em si mesmo. 20

“A personalidade não é em caso algum um dado pronto, é a colocação de uma


questão, é o ideal de um homem”; é “todo o meu pensamento, toda a minha vontade, todo
21

o meu sentimento, toda a minha atividade criativa”. 22

E. Mounier também usa esta distinção. Embora afirme que os dois conceitos não
podem ser claramente contrastados ou separados, ele observa que o indivíduo é dominado
pela dispersão e pela cobiça; o indivíduo é a pessoa reduzida aos seus aspectos puramente
materiais, um sujeito sem vida interior, um ser sem generosidade que procura apenas
apoderar-se de tudo para si. Ele vive uma vida de superficialidade e egoísmo. A pessoa, por
outro lado, encarna a generosidade e a vida interior; ele dá e dá de si mesmo, suas
perspectivas estão abertas. 23

Argumentos mais ou menos semelhantes podem ser encontrados em L. Lavelle, G.


Marcel, M. Blondel, MF Sciacca, , bem como em J. Maritain. É uma abordagem que, se vista
24

no contexto das observações acima mencionadas sobre a tarefa de auto-realização de


acordo com uma existência autenticamente humana, tem uma certa validade. Mas é
evidente que o homem não pode ser claramente dividido em níveis através de observações
que, quando tudo estiver dito e feito, permanecem externas e arbitrárias. Haverá, então,
indivíduos que nunca se tornarão pessoas? A dignidade da pessoa depende apenas das suas
ações? Existem campos em que é suficiente comportar-se como meros indivíduos?
Precisamente para evitar estas incertezas, é importante não perder de vista a perspectiva
metafísica que mencionamos anteriormente.

5. A Experiência da Liberdade

O que dissemos sobre a autorrealização da pessoa implica que cada um se sinta


livre, responsável pelas escolhas que faz. Esta responsabilidade, especialmente em certos
momentos da vida, faz sentir o seu peso. Como escreve Lévinas:

Ser Eu/Ego doravante significa ser incapaz de escapar da responsabilidade, como se todo o edifício da criação
estivesse sobre meus ombros. Mas a responsabilidade que esvazia o Ego do seu imperialismo e egoísmo – seja o Ego da
salvação – não o transforma num momento da ordem universal; em vez disso, confirma a singularidade do Eu. A
singularidade do Ego é o fato de que ninguém pode responder em meu lugar. 25

A responsabilidade é sempre um apelo à liberdade, e é para esta dimensão


fundamental da pessoa humana que devemos agora dirigir a nossa atenção. A liberdade
pode receber um fundamento filosófico com base no dinamismo inerente à natureza
humana, mas também é possível chegar à mesma conclusão, de acordo com o que dissemos
até agora, pelo que pode ser definido como a forma experiencial de liberdade.

Esta abordagem pode ser encontrada em vários autores, incluindo, para citar dois
exemplos cronologicamente distantes um do outro, R. Descartes e H. Bergson. Para
Descartes não sabemos nada com mais certeza do que conhecemos a liberdade, e, segundo26

Bergson, a liberdade está entre as coisas que conhecemos com mais clareza. Embora o 27

argumento subjacente que utiliza seja completamente diferente, Kant também chega a uma
conclusão semelhante: a autonomia da vontade é claramente evidente face à lei moral. O
homem intui o seu dever moral e a possibilidade de transgredi-lo, e assim ganha
consciência de ser livre. 28

Pode-se, então, afirmar que a experiência interior que temos do nosso livre arbítrio
nos nossos atos livres é diretamente aparente e representa o fondamentum inconcussum (o
fundamento sólido) para a afirmação de que a liberdade está efetivamente presente nesses
atos. 29
Na verdade, cada um de nós está individualmente consciente da labilidade da
vontade quando experimentamos a condição comumente descrita como “ser mimado pela
escolha”, quando nos deparamos com alternativas que não oferecem motivações decisivas.
Para superar a indecisão é necessária a autodeterminação da vontade, que pode ser
considerada como o “motor” da autorrealização que estamos discutindo.

Muitos autores existencialistas abordam este assunto com grande energia, incluindo
Guardini, cujas opiniões sobre o assunto são muito significativas. Ele também sustenta que
a consciência de ser livre é um resultado direto da experiência: Na liberdade,
experimentamos aquilo que é invariável, irrevogável. Ser livre apresenta-se-me como um
facto, e tenho uma experiência interior disso, não se considerar a questão de forma
abstracta, mas se reflectir em termos concretos sobre as minhas próprias acções, caso em
que reconheço que elas me pertencem (esta é a essência de liberdade) no sentido de que a
ação surge em mim e a partir de mim. Eu me experimento como o ponto de partida vivo
30

das ações, a fonte de ligações causais, de acordo com duas modalidades que encontram
expressão nas frases: “Eu sou meu próprio mestre” e “Eu sou eu mesmo”. O valor de
afirmação da liberdade contido nestas duas afirmações (ou em outras semelhantes)
permanece evidente mesmo quando expressas de forma negativa (“Nessas circunstâncias
eu não era meu próprio mestre”, “Eu não sou mais eu mesmo”. ). 31

6. A Experiência do Mal

As reflexões sobre a nossa experiência de liberdade, sobre o modo como cada


homem se percebe como livre, não podem ser separadas das reflexões sobre a experiência
do mal. O mal não pode ser posto de lado concebendo uma antropologia falsamente
optimista e dando a impressão de que a auto-realização pessoal segue um caminho de
ascensão contínua, sem contratempos ou fracassos.

A tragédia do Holocausto, da Bósnia e do Ruanda (para mencionar apenas alguns


dramas do século XX) deve servir de aviso, fomentando uma cultura da memória que
encoraja o homem a transcender-se em direcção ao que é bom. Na sociedade das bases de
dados e do armazenamento de informação, existe o risco, como observam JB Metz e HM
Enzensberger, de cair numa cultura de amnésia porque armazenar realmente não significa
nada mais do que esquecer. 32
Lembrar, contudo, não significa nutrir uma cultura de
ressentimento; pelo contrário, significa adquirir uma consciência capaz de se abrir ao
perdão e à mudança.

As consequências catastróficas do mal na história devem levar o indivíduo a


interrogar-se sobre o mal que enfrenta no contexto da sua própria vida. Os argumentos
utilizados para apoiar a ideia da experiência de liberdade também podem ser adotados
para recordar a presença tenaz da negatividade, da transgressão e do abandono voluntário
da bondade tal como é conhecida e apresentada. Talvez sejam as figuras literárias que mais
eficazmente chamam a nossa atenção para este aspecto da existência humana. Pense, por
exemplo, no herói do romance A Queda , de Camus, que descobre o mal não apenas ao seu
redor, mas também dentro de si mesmo, ou no insight psicológico de Dostoiévski, que
“coloca a vida do homem no contexto da luta entre o bem e o mal .” 33

Contra o otimismo fácil, idealista e positivista do século XIX, segundo o qual o mal nada mais é do que um
elemento dialético destinado a ser superado ou um episódio transitório na marcha triunfal da humanidade, ele lembra
que a realidade do mal e da dor, do pecado e do sofrimento, da culpa e da retribuição, do crime e do castigo é,
infelizmente, um facto real e incontornável. 34

Na história da filosofia não faltaram tentativas de projetar o conflito interior do


homem no mundo externo. O exemplo mais claro disso é a teoria maniqueísta; Santo
Agostinho, no seu combate contra ela, sustentou que o conflito entre o bem e o mal não se
deve à existência de dois princípios impessoais opostos, mas é interior à vontade como
uma doença radical do espírito que é marcada pelo Pecado Original e em necessidade de
uma intervenção extraordinária da graça. Seus escritos revelam uma espécie de dualidade
da vontade: “De onde vem essa coisa monstruosa? E por que isso acontece? A mente
comanda o corpo e este obedece imediatamente; a mente comanda a si mesma e é
resistida.” E um pouco mais tarde, ele acrescenta: “Eu, quando estava deliberando sobre
35

servir agora ao Senhor meu Deus, como há muito havia proposto, fui eu quem quis, eu
quem não quis. Fui eu, até eu mesmo. Em outro lugar ele deixa claro que o mal não é algo
36

em que alguém cai, mas o próprio ato de cair. Em suma, não existe nenhuma realidade
37

criada que seja má em si mesma.

Nas passagens que citamos, o Bispo de Hipona descreve o que, com grande
perspicácia antropológica, São Paulo já havia escrito:

Pois sei que nada de bom habita em mim, isto é, na minha carne. Posso querer o que é certo, mas não posso
fazê-lo. Pois não faço o bem que quero, mas o mal que não quero é o que faço. . . . Portanto, acho que é uma lei que, quando
quero fazer o que é bom, o mal está ao meu alcance. 38

Reconhecer a experiência do mal nestes termos ajuda-nos a compreender que não


há validade no ponto de vista intelectualista (apenas parcialmente de origem
socrático-platónica) que sustenta que o conhecimento perfeito gera necessariamente uma
acção perfeita. Se isto fosse verdade, seguir-se-ia que a ignorância é a única causa do mal
(que seria assim reduzido ao estatuto de mero erro) e que todos os males podem ser
resolvidos através do progresso e da ciência. Isto é falsamente optimista e não leva em
conta a verdade sobre o homem. Assim, Karol Wojtyła, apoiando-se em Scheler, mas
criticando parcialmente as suas conclusões, também destaca a presença de um “drama da
vontade”, uma luta interior na experiência concreta do bem e do mal e na experiência da
obrigação moral. 39

7. O “xeque-mate” da dor

Ao seguir o caminho da auto-realização, inevitavelmente teremos que nos deparar


com a dor (física ou moral, nossa ou dos outros). Isto muitas vezes apresenta-se como um
obstáculo, pois os nossos projectos e aspirações são “xeque-mate” e somos obrigados a
reordenar as nossas vidas. Poderíamos dizer que a pessoa que sofre sofre uma mudança de
perspectiva que a leva a questionar a sua própria identidade, a sua relação com o mundo e
as suas relações com os outros. Estes três elementos fundamentais da autorrealização são
postos à prova e, em alguns casos, lançados em turbulência. A imagem que temos de nós
mesmos e das nossas capacidades pode mudar; a forma como olhamos o mundo e o que ele
nos oferece (e, aparentemente, nos nega) pode alterar-se. As nossas relações com os outros
podem entrar em colapso, consolidar-se ou crescer.

O sofrimento pode provocar um auto-interrogatório tão profundo que nos obriga a


pôr em causa os próprios fundamentos da nossa existência. Neste contexto, “pôr à prova”
40

adquire também o significado de corroborar a autenticidade e genuinidade das nossas


relações e, como consequência, revelar, por um lado, falsas seguranças e atitudes
inautênticas e, por outro, profundas vínculos e verdadeiras qualidades pessoais.

É justamente por isso que o encontro inelutável com a dor envolve também a
responsabilidade intransferível do indivíduo diante das situações e acontecimentos de sua
vida. Visto sob esta luz, o sofrimento torna-se um chamado à superação e ao
amadurecimento e pode, de maneiras inimagináveis, acelerar a plena realização de si
mesmo. 41

8. Autorealização e Autotranscendência

A responsabilidade com que cada pessoa assume a sua tarefa de “tornar-se homem”
e o compromisso com que se realiza verdadeiramente como pessoa são sinais da sua
constante autotranscendência, isto é, da sua projeção para além da situação particular e
para além de si mesmo. Esta é uma característica fundamental da pessoa humana, que pode
ser expressa com a famosa frase de Pascal: “O homem transcende infinitamente o homem”,
42
significando que descobrimos em nós mesmos um “instinto” para a felicidade, para o bem
e para a verdade. Porém, tudo isso está além de nós; não os possuímos de forma absoluta e
não podemos dispor deles como quisermos. Até ter consciência da própria miséria é um
sinal de grandeza porque pressupõe a ideia do que se aspira ser; isto é, pressupõe a ideia e
o desejo da verdade e do bem. 43

Outro autor que colocou a autotranscendência no centro de suas reflexões foi o


psiquiatra e filósofo Viktor E. Frankl, que escreveu:

A essência da existência humana reside na “autotranscendência”. . . . E por autotranscendência quero dizer o fato
de que ser homem significa fundamentalmente estar orientado para algo que nos transcende, para algo que está além e
acima de nós, algo ou alguém, um significado a cumprir ou outro ser humano a encontrar e amar. Conseqüentemente, o
homem é ele mesmo na medida em que se supera e se esquece. 44

Assim, a existência do homem reside num contexto de autotranscendência. Isto é 45

observável em vários campos, onde encontramos o que poderíamos chamar de “sintomas”


da liberdade e da espiritualidade da pessoa humana. Consideremos alguns exemplos.

8.1. Dinamismo e Tensão


Em virtude da sua capacidade de autotranscendência, a pessoa humana
caracteriza-se pelo dinamismo. Como vimos desde o início deste capítulo, a sua
personalidade existencial é uma conquista contínua que nunca é totalmente concluída; é
um resultado alcançado à medida que avança, mas nunca definitivo. Luigi Pareyson, ao
analisar os traços constitutivos da pessoa em termos existencialistas, escreve que a pessoa
pode ser descrita a partir do binômio conceitual de totalidade e insuficiência, indicando os
dois pólos de uma dialética viva. 46

Isto significa que, em qualquer momento da sua vida, o homem aparece como um
todo acabado e com uma validade bem definida, permanecendo, no entanto, insuficiente,
isto é, susceptível de alteração, rectificação ou enriquecimento. Tal como uma criação
artística, o indivíduo pode ser considerado como uma obra (em certo sentido, uma obra
feita por si mesmo), que, por mais aperfeiçoável que seja, é por si só digna de
reconhecimento. 47

Este dinamismo manifesta-se também no facto de no homem existir uma tensão


constante para se superar, para ir além e para fora de si mesmo. Às vezes isto é vivido como
um desequilíbrio entre o que se é e o que se gostaria de ser, entre o resultado efetivo de
uma ação e o seu objetivo original. Maurice Blondel analisa o conflito que a vontade tem de
enfrentar quando se sente contrariada e derrotada: A pessoa aspira plenamente a ser o que
quer, mas é incapaz de o ser de forma absoluta; ele gostaria de ser suficiente para si
mesmo, mas não consegue. Temos de ter em conta este aparente fracasso da acção que
desejamos.

Existe uma dissimetria perene entre a ação que empreendemos e a nossa vontade. O
ideal concebido é superado pela operação real, mas, por sua vez, a realidade assim obtida é
superada por um ideal que se recria constantemente. Tudo isto, segundo Blondel, é prova
da nossa própria pobreza, do facto de que a perfeição e a inteligência que vemos em nós
próprios não são as nossas: “Descobrimos, como num espelho imperfeito, esta perfeição
inacessível”. 48
Este conflito de atividade pode, então, abrir o homem a Deus, à
transcendência. Essa abertura, embora possamos não ter consciência disso, distingue cada
uma das nossas ações e manifesta-se na nossa aspiração natural pelo melhor, na nossa
percepção de ter um papel a cumprir, na nossa busca pelo sentido da vida. 49

Os esforços incessantes do indivíduo em busca da perfeição, embora


fundamentalmente interiores e não quantificáveis, aparecem em todas as dimensões da
pessoa e tornam-se evidentes para os outros de maneiras que às vezes são surpreendentes,
despertando admiração. Romano Guardini, observador atento da dinâmica da educação, faz
uma descrição contundente deste fenômeno:

Aqui está um homem com uma disposição definida e claramente penetrável. O cálculo das suas energias parece
claro e aparente. Quem o conhece conhece o seu caráter e as suas possibilidades e sabe mais ou menos que rumo seguirá
o seu desenvolvimento. Este homem faz o seu trabalho; ele trabalha pelo que é certo e bom; ele vive sua vida humana. No
seu eu íntimo, porém, está o segredo da sua vontade e, através de tudo o que ele faz e deseja conscientemente, ocorre uma
metamorfose no seu eu interior. Há algo aí que o torna cada vez mais aberto a coisas que antes lhe estavam fechadas.
Além de todas as capacidades psicológicas calculáveis, ele se torna mais amplo, mais rico, mais transparente e
benevolente. Ocorre uma metamorfose lenta, tão silenciosa que ele mesmo não se dá conta e talvez apenas o amigo, às
vezes quase assustado com a comparação, veja o que aconteceu. Tudo alcança uma profundidade, uma translucidez, uma
energia luminosa. A metamorfose atinge até o rosto, até o tom de voz. Este é o espírito. 50

8.2. Interioridade e Exterioridade

A tensão dinâmica da pessoa, expressão da sua autotranscendência, manifesta-se na


relação entre interioridade e exterioridade. Experimentamos isso quando não conseguimos
expressar adequadamente os nossos sentimentos ou quando palavras e gestos duros nos
impossibilitam de examinar o coração dos outros. Santo Agostinho examina esta relação e
mostra como a interioridade excede e supera a exterioridade. O conceito de interioridade
51

não é o mesmo que o de alma; antes, remete à imagem paulina do homem interior que se
renova dia após dia, também em contraste com o declínio do homem exterior. 52

A interioridade não é uma qualidade estática. Não é um estado em que nos


encontramos, mas uma projeção dinâmica em direção a uma meta. Isto significa que a
pessoa transcende os seus próprios atos, que o seu universo interior não pode ser
completamente expresso porque o que é espiritual não pode ser plenamente fixado e
inserido num signo material. É por isso que “só podemos tomar conhecimento dos segredos
da consciência na medida em que estes nos são revelados, e só até agora nós julgamos”. 53

Voltando ao tema do desequilíbrio entre exterioridade e interioridade no homem,


Santo Agostinho observa que, enquanto Deus é simplicidade absoluta porque em virtude da
plenitude do seu ser é o que tem, nas vicissitudes existenciais da pessoa humana o que
prevalece é o dimensão do ter, que implica mutabilidade e contingência. Assim, ele exorta 54

as pessoas: “Não procurem o que vocês têm, mas o que vocês são”, querendo recordar que 55

a dimensão da posse pertence, por si mesma, à exterioridade, enquanto o que conta é


cumprir aquilo a que somos chamados. ser.

Portanto, o centro unificador da existência humana no processo de auto-realização é


a interioridade, e para isso devemos nos voltar para evitar a dispersão, pois a posse
material e o ativismo exterior podem levar à alienação e nutrir um sentimento de
frustração:

As imagens que decorrem da exaltação e da volubilidade não nos permitem ver a unidade imutável. O espaço
nos oferece algo para amar; o tempo afasta aquilo que amamos, deixando na alma um vórtice de imagens que alimentam
as paixões por objetos sempre novos. Assim a alma fica inquieta e atormentada porque está frustrada em seu desejo de
possuir aquilo que, de fato, está possuída. Por isso é chamado à tranquilidade, isto é, a não amar as coisas que não podem
ser amadas sem tormento. E assim, de fato, irá dominá-los; não será possuído por eles, mas os possuirá. 56

8.3. Autodistanciamento, amor e doação de si

A autotranscendência da pessoa também se expressa no que se denomina


capacidade de autodistanciamento, que está na base do senso de humor e é um dos
recursos de que o homem dispõe diante dos fatores mentais e sociais. O psiquiatra Viktor
Frankl fala da “capacidade humana de 'autotranscendência' como uma condição que torna
possível a desreflexão”; A desreflexão
consiste em deixar de concentrar a atenção obsessiva nos
próprios sintomas, nos próprios defeitos e em pensar nos outros ou no outro. A melhor
atitude existencial para superar muitas formas de neurose, que Frankl chamou de
“noogênica” (isto é, derivada de um problema de sentido ou sentido), é precisamente a de
rir de si mesmo, distanciar-se de tudo o que produz medo ou angústia e transcendendo-o. 58

O autodomínio e o autocontrole, que caracterizam o exercício da liberdade humana,


permitem doar-se livremente, ato de distanciamento generoso com o qual o homem se
coloca antes e acima de si mesmo para decidir sobre si mesmo. abrir-se totalmente ao
outro. Na visão de Guardini, esta experiência é uma garantia de autenticidade:
59

O homem não consiste em si mesmo, mas é “aberto e estendido”, beirando o risco, em direção ao que é diferente
dele e especialmente em relação a outro ser humano. Nisto ele é verdadeira e autenticamente ele mesmo, e se torna assim
tanto mais quanto mais ousa afirmar-se não como uma individualidade fechada, mas aberta e estendida em direção a algo
que justifique esse risco. Para nos expressarmos na linguagem cotidiana, o homem torna-se ele mesmo ao “desapegar-se”
de si mesmo. 60

Esta passagem de Guardini, que lembra a de Frankl citada no início da seção 8 deste
capítulo, é importante para uma compreensão adequada do que temos tentado explicar
sobre a autorrealização. Isto não pode ser entendido como uma preocupação egoísta de nos
realizarmos a qualquer custo; se o fizéssemos, falharíamos miseravelmente nas nossas
tentativas porque o indivíduo, em vez de se transcender, fechar-se-ia em si mesmo num
horizonte cada vez mais estreito e através das suas acções procuraria apenas a gratificação
subjectiva. A autorrealização é, de facto, consequência da abertura aos valores e da doação
aos outros. 61

No que diz respeito à estrutura e à fenomenologia da doação, limitar-nos-emos a


observar que tanto o amor como a doação de si exigem uma perspectiva que vai além do
tempo. Pois, de fato, na doação de nós mesmos, aspiramos à posse (nunca completa) do que
fomos, do que somos e do que seremos, e, no amor, tendemos a uma união perene, que
deve ser reconquistados sempre e de novo com a pessoa que amamos. Na doação e no
amor, o homem supera-se numa espécie de bipolaridade que emergiu mais de uma vez
nestes comentários sobre a autotranscendência. A autodeterminação pressupõe um tipo
particular de complexidade na pessoa. Assim, pessoa é aquela que possui a si mesma e, ao
mesmo tempo, aquela que é possuída única e exclusivamente por si mesma.

Se recordarmos agora o que dissemos no capítulo 11 sobre a sexualidade,


compreender-se-á porque a dinâmica mais profunda da pessoa é a do amor. É a
necessidade de amar e de ser amado que impregna as nossas ações. Temos experiência
contínua disso e, por isso, associamos tão intimamente a felicidade e o amor. Sentir-se
verdadeiramente amado significa ser feliz; amar de todo o coração nos enche de felicidade.
Por isso é importante direcionar corretamente o nosso amor, “pois a pessoa vive naquelas
coisas que ama, que deseja muito e nas quais se considera abençoada”.

8.4. Autotranscendência da Pessoa e Transcendência

Vimos como Blondel considera a insatisfação de uma pessoa com os resultados das
suas próprias ações como um sinal claro da pobreza humana, daquela luta pelo Absoluto
que está subjacente a cada instante da existência humana.

O impulso autotranscendente inerente ao homem requer e denota uma origem e um


fim que estão fora e acima dele. Somente o Absoluto, ou Transcendência divina, pode criar
tal tensão e dar-lhe realização completa. Só tendo presente a relação entre finitude e
infinito, entre temporalidade e eternidade na vida e na história humana, podemos evitar
radicalmente aquela concepção redutora do homem que o restringe a uma única dimensão
e o considera como um objecto a ser programado e manipulado. À luz desta relação com o
Absoluto e da consciência da dignidade pessoal nela fundada, a autotranscendência da
pessoa humana surge não só como uma capacidade que devemos utilizar, mas sobretudo
como um dever a que somos chamados.

Esta ideia está bem resumida na seguinte passagem de Heschel:

A oração não é uma necessidade, mas uma necessidade ontológica , um ato que constitui a própria essência do
homem. . . . A dignidade do homem não consiste na sua capacidade de fabricar ferramentas, máquinas, armas, mas
principalmente em ser dotado do dom de se dirigir a Deus. É este dom que deveria fazer parte da definição do homem.
Resumo do Capítulo 14

A pessoa humana é causa sui , causa de si mesma, não num sentido ontológico, mas
num sentido dinâmico-existencial. Cada indivíduo tem a tarefa da autorrealização, ou seja,
de viver uma existência autenticamente humana. Conformismo, indiferença e emotividade
são contrários a viver uma existência autêntica, enquanto a coerência íntima e a fidelidade
são características da autenticidade. Na nossa luta pela livre realização de nós mesmos, nos
deparamos com a possibilidade de experimentar o mal e com a provação da dor. A
autorrealização significa acima de tudo autotranscendência; por outras palavras, forjar
dinamicamente a própria vida, tendendo a objectivos cada vez mais elevados,
inspirando-se nas próprias profundezas interiores para não permanecer escravizado ao
mundo exterior. A expressão mais plena da autotranscendência consiste no amor e na
doação de si. Só em Deus, que é Absoluto e Transcendente, o impulso da pessoa humana
para a autotranscendência pode encontrar o seu objectivo último.

Capítulo 15

A Relacionalidade
da Pessoa

1. Originariedade da Relacionalidade

A pessoa humana é um ser relacional e não pode ser compreendida se este fator for
negligenciado porque é uma das suas características fundamentais. A relacionalidade é
uma qualidade originária no sentido de que está na origem do indivíduo, que não se cria.
Como dissemos no capítulo 13, cada pessoa se institui como uma novidade no ser: A
criatura humana nasce numa relação com o amor divino e com o amor humano e
caracteriza-se pela relação fundacional de filiação-paternidade-maternidade. 1
Contudo,
assim como a existência pessoal é uma realidade ontológica que envolve um dever
existencial (no último capítulo vimos como devemos realizar-nos autenticamente como
pessoas), também a filiação, a paternidade e a maternidade são relações básicas que
contêm uma responsabilidade ética ; por outras palavras, não podem ser reduzidos a uma
certidão de nascimento ou a um dado biológico, mas devem ser vividos de forma
autenticamente humana.

Portanto, a pessoa é ontológica e fisiologicamente caracterizada pela sua abertura


às relações, a tal ponto que nenhuma dinâmica, faculdade ou inclinação humana escapa a
esta tendência básica. A forma como vivemos e existimos é relacional, aberta aos outros.
2 3

Corporeidade, e especialmente a sexualidade que a caracteriza (tanto em homens como em


mulheres); a vontade como capacidade de amar; e as faculdades do conhecimento e da
linguagem são todas essencialmente comunicativas. É claro que as formas como a
relacionalidade é concretizada dependem do indivíduo, mas mesmo o isolamento
voluntário e a rejeição das relações sociais representam uma forma, por mais negativa que
seja, de traduzir a sociabilidade em prática. Por sociabilidade entendemos a característica,
inerente ao homem, de abertura intencional aos outros (a humanidade e Deus). Por outro
lado, ao falar de “socialidade”, referimo-nos à efetiva realização dessa capacidade.

2. O homem é social por natureza

À luz do que acabamos de dizer, o axioma da filosofia clássica que sustenta que o
homem é social por natureza emerge em toda a sua validade. Já em sua época, Aristóteles
sustentava que a sociabilidade é essencial ao homem. Em suas reflexões sobre a
característica especificamente humana de viver em sociedade, ele avança gradativamente,
passando de um tipo de observação histórico-existencial para um raciocínio mais
metafísico. Primeiro, fala de viver em comunidade por causa das necessidades da vida,
depois afirma que o Estado existe para viver bem, ou seja, de uma forma digna do homem.
Finalmente, depois de ter afirmado que a sociabilidade se expressa principalmente na
linguagem, conclui que o homem é por natureza “político” (isto é, social). A passagem em
que isso aparece mais claramente é esta:

Quando várias aldeias são unidas numa única comunidade completa, grande o suficiente para ser quase ou
totalmente autossuficiente, o Estado passa a existir, originando-se nas necessidades básicas da vida e continuando a
existir em prol de uma vida boa. E, portanto, se as formas anteriores de sociedade são naturais, o Estado também o é, pois
é o fim delas, e a natureza de uma coisa é o seu fim. Pois o que cada coisa é quando plenamente desenvolvida, chamamos
sua natureza, quer estejamos falando de um homem, de um cavalo ou de uma família. . . . Portanto, é evidente que o Estado
é uma criação da natureza e que o homem é por natureza um animal político. E aquele que por natureza e não por mero
acidente está sem estado ou é um homem mau ou está acima da humanidade. . . . A prova de que o Estado é uma criação da
natureza e anterior ao indivíduo é que o indivíduo, quando isolado, não é autossuficiente e, portanto, é como uma parte
4

em relação ao todo. Mas aquele que é incapaz de viver em sociedade, ou que não tem necessidades porque é suficiente
para si mesmo, deve ser um animal ou um deus: ele não faz parte de um Estado. 5

A conclusão a que chegou Aristóteles é partilhada por muitos estudiosos, que veem
no ser humano uma forma específica de estabelecer relações com os outros. A mesma coisa
também emerge de vários estudos em antropologia, paleontologia e neurologia. Por
exemplo, estudar o comportamento dos animais superiores não revela qualquer
comportamento verdadeiramente altruísta, embora o termo “altruísta” seja usado na
etologia animal. De acordo com Eccles, para denotar o verdadeiro altruísmo, uma ação
6

deve ser caracterizada pela intencionalidade (ou seja, não uma forma de conduta que seja
meramente instintiva (por mais habitual que seja) porque um animal pode, por instinto,
viver em um grupo ou sozinho) e pela relacionalidade (ou seja, deve ser conscientemente
dirigido a outro indivíduo ou indivíduos e realizado no interesse de outros). Estas duas
características não são observáveis no comportamento animal.

Os primeiros indícios de comportamento social, verificados pela paleontologia e


característicos dos indivíduos da espécie humana, são a partilha de alimentos, a vida
comunitária, os ritos funerários como a colocação de flores e outros objetos junto ao
túmulo e o cuidado com os outros. Em 1971, foi publicado um estudo sobre o esqueleto de
um homem de Neandertal (que viveu há cerca de 45 mil anos) que não só tinha sido
gravemente incapacitado desde o nascimento, mas também apresentava sinais de lesões
subsequentes. Mesmo assim, esse indivíduo foi mantido vivo por cerca de quarenta anos, e
isso só pode ter acontecido se outros membros da tribo cuidassem dele. 7

Contudo, as contribuições científicas não são, por si só, suficientes para provar de
forma definitiva e empírica que a forma como o homem estabelece relações com os outros
é especificamente diferente daquela que existe entre os animais. Tais contribuições são
sem dúvida úteis, mas devem ser sempre interpretadas à luz da antropologia filosófica, que
estuda o homem em todas as suas dimensões. O objectivo, de facto, não é negar que outros
seres vivos tenham relações com o seu entorno e com os seus semelhantes, mas mostrar
porque tais relações no homem têm uma especificidade exclusiva. Por exemplo, voltando
ao que dissemos no primeiro parágrafo deste capítulo, os animais também têm relações
baseadas na procriação e no nascimento, mas são experienciados apenas como respostas a
factores biológicos e instintivos.

É importante, igualmente, ter presente a análise metafísica do Capítulo 13. Com base
numa concepção adequada da pessoa, que por sua vez é a base do conceito de liberdade, é
possível compreender melhor a natureza do homem. sociabilidade inerente. A diferença
intrínseca entre um rebanho de animais e a sociedade humana consiste precisamente no
facto de que, enquanto a primeira é necessariamente regida por instintos que dependem da
espécie, a segunda é guiada pela liberdade dos seus indivíduos (uma prova disso, entre
muitas , é a diversidade de instituições e formas de sociedade). Também não se deve
esquecer que, desde os nossos primórdios, estamos conscientes da diferença entre o
homem e os animais e que a nossa concepção da pessoa humana não é simplesmente a
soma de uma série de dados experimentais. Segue-se que a reflexão sobre os seres
humanos e sobre outras criaturas vivas ocorre com base na experiência e no conhecimento
prévios.
3. Tendências Socializadoras e Virtudes Sociais

Para enriquecer a nossa compreensão da relacionalidade inerente à pessoa humana,


podemos acrescentar que todos os estudos biológicos, antropológicos e sociológicos nos
levam a reconhecer certas tendências socializantes no homem que estão na base das suas
expressões de sociabilidade. Estas tendências também se encontram nos animais, mas, no
8

homem, têm uma orientação e um desenvolvimento específicos: são a base das virtudes
porque são guiadas e aperfeiçoadas pela razão e pela liberdade e, portanto, também se
relacionam com a cultura . São os factores que regulam a dinâmica social e as regras
subjacentes que estruturam o ordenamento da sociedade. Por outras palavras, situam-se
num nível mais fundamental do que a política e mesmo a ética normativa, ou seja, a um
nível antropológico.

Deixemos claro que dizemos isto evitando o determinismo biológico, isto é, a teoria
que explica todo o comportamento humano, mesmo a ética e a religião, apenas com base
em dados biológicos. Deve-se, de fato, ter em mente que os termos “inclinação” e “virtude”
não são sinônimos, embora possamos dizer que o pensamento clássico via as virtudes
como o desenvolvimento e o aprimoramento de uma tendência natural 9 com base no fato
de que há oposição entre uma vida moral e a natureza humana.
não

As virtudes às quais nos referiremos foram amplamente estudadas pela filosofia


clássica. São chamadas de virtudes sociais porque dizem respeito à forma de viver uma
10

vida melhor; isto é, uma vida mais digna do homem do ponto de vista individual e social. As
tendências nas quais se baseiam essas virtudes podem ser livremente orientadas pelo
indivíduo para o bem ou desviadas para o mal. Assim, encontramo-nos na área da relação
entre liberdade, moralidade e natureza humana, que, no entanto, não podemos aprofundar
aqui. 11

3.1. Relações com as Origens, Tradição e Autoridade


Começaremos com a pietas , isto é, com a virtude baseada na inclinação de
reconhecer o fundamento do próprio ser, da própria vida e do próprio conhecimento, e
assim venerar a Deus, aos seus pais, e à sua pátria ou solo natal, para sentir-se ligado ao seu
passado e à sua própria história, ou seja, às suas origens, ao “lugar” de onde viemos e onde
nos “implantamos”. 12
Como veremos, este é o fundamento que ajuda a dar sentido à
celebração, cujo valor antropológico deriva, entre outras coisas, do facto de evidenciar os
vínculos com as próprias raízes. Esta virtude pode ser chamada de religiosidade, amor filial
ou patriotismo; a inclinação que está na sua base é muitas vezes referida com expressões
como “chamado do sangue” ou “chamado da terra”. Seus sintomas são a nostalgia e a
alegria do retorno.

Os laços e a dependência inerentes a esta virtude não devem ser vistos num sentido
negativo, como se indicassem apenas passividade e fechamento ao futuro. A capacidade de
tomar iniciativas e de fazer planos baseia-se sempre no passado; por exemplo, uma
tradição que não é renovada e não ganha nova vida está destinada a extinguir-se, tal como
uma família sem filhos ou um país sem novos cidadãos. Assim, o crescimento e a renovação
exigem algum tipo de vínculo ou fidelidade à própria identidade. Os desvios desta
inclinação incluem o racismo e o nacionalismo e, em contraste, riscos como a desorientação
ou a perda das próprias raízes.

Passaremos agora à observantia , que é a virtude baseada na inclinação de respeitar


a autoridade legítima, de submeter-se a um indivíduo dominante que possui maior
dignidade. Quando muitos indivíduos estão todos orientados para um único fim, sempre há
alguém que lidera e orienta. Isto não contrasta com a liberdade; antes, é específico da
natureza social do homem. 13
Na verdade, como observa Platão, mesmo “um bando de
ladrões e ladrões, ou qualquer outro bando de malfeitores” não poderia “alcançar nada se
entre si se comportassem sem qualquer princípio de justiça”. Uma prova diária disso
14

também pode ser vista em grupos de jovens de vários tipos (uma sala de aula, uma equipe
esportiva, etc.), nos quais um dos membros assume a função de “chefe”.
O anarquismo, que tem suas raízes teóricas em autores como MA Bakunin
(1814-1876) e P.-J. Proudhon (1809-1865), por um lado, confirma e, por outro, nega esta
inclinação: reconhece, de facto, uma inclinação natural para a ordem social, mas também
propõe a abolição de todas as formas de autoridade estatal imposta.

Parcialmente associada a esta virtude está a dulia (ou seja, honrar, prestar a devida
honra), a virtude baseada na inclinação de reconhecer o mérito do melhor, de respeitar o
melhor e de ser respeitado, de procurar ser o melhor. melhor e se destacar. Está
intimamente ligado à pietas e é um dos elementos que coordena o ordenamento da
sociedade, o chamado sociograma em que cada indivíduo desempenha um papel ou assume
uma tarefa de acordo com os seus próprios méritos. Uma expressão desta virtude é o
surgimento de líderes e heróis, de estrelas do desporto e do espectáculo, e de santos; outra
15

é a eleição de representantes para órgãos institucionais. Neste último caso, os eleitores


escolhem (ou deveriam escolher) pessoas que se destacam dos demais candidatos pela
posse de determinadas qualidades. Esta virtude significa que cada homem deve gozar do
seu próprio grau de fama e tem o direito de ver a sua reputação respeitada porque é justo
reconhecer a honra dos outros. Os desvios desta tendência são, por um lado, a vaidade e a
ambição, que estão enraizadas no desejo de enganar ou intimidar os outros, e, por outro, a
pusilanimidade, que leva a pessoa a subestimar os seus próprios talentos e capacidades e
encoraja a inércia.

O reconhecimento dos talentos dos outros não é, por si só, um sinal de passividade
ou de resignação, porque a capacidade de imitar e de se formar conscientemente no
modelo de outra pessoa é uma parte importante da realização pessoal, como veremos mais
tarde. Uma decisão moralmente válida de imitar outra pessoa requer um ato enérgico de
vontade, bem como uma certa dose de autoconfiança, porque olhamos para as ações de
nosso herói na esperança de sermos dignos de realizá-las nós mesmos. A reação de uma
personalidade narcisista ou, mais geralmente, individualista é bem diferente. Nesse caso, o
indivíduo fica angustiado e passivo, sem força de vontade; sua emulação inconsciente não é
uma expressão de sua busca por um modelo, mas de sua falta de imagens interiores
positivas, do medo da mediocridade ou da derrota. 16

A última deste grupo é a obedientia , que é a virtude baseada na inclinação para


seguir ordens, para manter as normas. O homem, de facto, tem um desejo inerente de
segurança, uma necessidade de ordem social e um desejo de ver o seu papel na sociedade
aceite. Além disso, para que a sociedade evolua e se desenvolva, é necessário que haja um
17

certo número, ainda que mínimo, de regras estabilizadoras (fundadas em expressões


elementares de mérito e demérito, na satisfação de necessidades e na distribuição de
riqueza). Um fenómeno que contrasta com isto é o do terror, que surge de uma total
ausência de segurança e é, de facto, o objectivo prosseguido pelo terrorismo, que procura
derrubar a sociedade. No entanto, é claro que o terrorismo é em si uma confirmação desta
inclinação porque mostra que, quando a inclinação é frustrada, uma pessoa é incapaz de
ordenar a sua existência de uma forma digna e harmoniosa.

3.2. Relações de Reciprocidade e Amizade

A gratidão é a virtude que aperfeiçoa a inclinação para retribuir o benefício


recebido. Estabelece entre os indivíduos uma série de relações sociais que não são
jurídicas, mas ainda assim muito importantes para a sociedade.

O oposto do anterior é a vindicatio , que é a virtude que aperfeiçoa a inclinação


natural para retribuir o dano recebido. É virtude quando a inclinação está orientada para o
bem, ou seja, dependendo do caso, assegurar a penitência de quem cometeu o mal (ou pelo
menos impedi-lo de cometer mais mal, salvaguardando assim a paz dos outros) ou
defender justiça social e a honra de Deus. Em contraste com estes está o vício da crueldade
ou ferocidade e o da submissão ou aquiescência. A administração da justiça na sociedade
18

representa a institucionalização destas virtudes.

Em seguida vem a veritas , ou veracitas , ou seja, a virtude baseada na inclinação de


se manifestar como realmente é (expressar a própria subjetividade) ou de manifestar as
coisas como são (o reconhecimento da realidade). Isto faz parte da necessidade de
autenticidade, que é inerente a cada homem e que recebe particular ênfase dos filósofos
existencialistas e personalistas; fizemos referência parcial a isso no Capítulo 14. As
distorções dessa inclinação incluem falsidade, hipocrisia e arrogância.

Um papel particularmente importante é desempenhado pela amicitia (também


chamada de affabilitas ), sendo a virtude que dá uma orientação positiva à inclinação para
estabelecer e cultivar relações de afinidade com os outros. Encontra expressão em formas
de comportamento frequentemente descritas com palavras como cordialidade, jovialidade
e afabilidade. Estas, para serem autênticas, devem estar orientadas para o bem dos outros;
em outras palavras, devem nascer de uma alma benevolente que não busque
exclusivamente a utilidade ou o prazer individual. Entre outros, M. Scheler fez
contribuições importantes ao assunto em seu livro de 1923, The Nature of Sympathy ,
embora as palavras de Aristóteles nos livros 8-9 de sua Ética a Nicômaco permaneçam
fundamentais.

Por fim, devemos mencionar a liberalitas , que aperfeiçoa a inclinação para dar uma
parte do que possuímos. Encontra expressão nas diversas tradições culturais relativas à
troca de riquezas e presentes e na hospitalidade. Formas contrastantes de comportamento
19

incluem avareza e prodigalidade.

3.3. As raízes da sociedade

Esta breve visão geral das virtudes sociais e das tendências socializantes mostra a
riqueza e a complexidade da sociabilidade da pessoa humana. Por ser a sociabilidade uma
característica inerente à sua natureza, o homem jamais poderá erradicá-la ou suprimi-la
completamente. Por exemplo, por mais generalizada que seja a avareza, é impossível
alguém não dar nada de seu próprio interesse, mesmo que seja apenas uma informação. O
mesmo se aplica à inclinação para expressar algo de si mesmo: é impossível reprimir todas
as expressões espontâneas de simpatia. Da mesma forma, é impossível mentir sempre e
sobre tudo; só podemos fazê-lo em atos isolados porque a nossa inclinação natural é dizer a
verdade, e espontaneamente, ao nível do pré-consciente, os indivíduos tendem a expressar
20

os seus sentimentos através de gestos, expressões faciais, tom de voz, etc. eles não
acreditassem uns nos outros nem dissessem a verdade uns aos outros, a humanidade não
poderia coexistir e a estrutura da sociedade entraria em decadência. 21

Assim, se a cultura de uma determinada época e sociedade ou de algumas das suas


manifestações ou estruturas se destinasse a reprimir ou corromper alguns destes
fundamentos de sociabilidade, estaria a agir contra as suas próprias raízes. A inclinação
para a honra, por exemplo, é central para o indivíduo e para a sociedade (ainda que no
homem só encontre realização completa e autêntica na glória recebida de Deus, que não
julga as aparências, mas examina o coração), e se o cinismo e a degradação predominasse, a
comunidade social se desintegraria. Em qualquer caso, a repressão completa de uma ou
mais destas inclinações – embora tenha sido perseguida pelos regimes através da violência
e da propaganda – seria impossível porque significaria erradicar a humanidade do homem.

Estas tendências e as virtudes nelas baseadas estão ligadas entre si de tal maneira
que uma não pode ser tornada absoluta à custa das outras; se fosse, não seria mais uma
virtude. Na verdade, as virtudes são per se bem ordenadas ou, poderíamos dizer,
correlativas. A amizade, por exemplo, aumenta com a gratidão, mas não pode contrastar
com a veracidade ou com o respeito pela justiça ( vindicatio ). Vice-versa, a inclinação à
honra e ao respeito não pode ser separada do reconhecimento das próprias origens ( pietas
) porque estamos em dívida com os outros e temos laços com eles. Finalmente, deve-se
dizer que, como acontece com todas as qualidades espirituais da pessoa, a família
desempenha um papel muito importante no desenvolvimento e na consolidação das
virtudes sociais. As relações entre pai e mãe, entre pais e filhos e entre irmãos são um
modelo e um banco de testes para essas virtudes.
4. Autorealização Pessoal e Sociedade

O exame das tendências socializantes e das virtudes sociais confirma o facto de que
a existência humana ocorre dentro de uma rede de relações, não só porque preciso dos
outros para alcançar quase todos os meus objectivos, mas também porque as outras
pessoas são igualmente indispensáveis para que eu possa alcançar uma auto-estima
adequada. -cumprimento. Até a experiência e o conhecimento que tenho de mim mesmo
são fortalecidos pelas minhas relações com os meus semelhantes, pois afirmo-me e tomo
consciência de mim mesmo no meu relacionamento com os outros, que intervêm direta ou
indiretamente na formação da minha identidade psicológica. Isto é evidente no período da
infância como, por exemplo, quando as crianças se identificam ou se contrastam com a
figura paterna ou materna ou com o seu professor, desenvolvendo assim um conhecimento
de si mesmas. Mas também se verifica nos adultos, que procuram, conscientemente ou não,
a aprovação, o respeito e o apoio dos outros.

Daqui resulta que a posse da minha auto-realização e da minha própria identidade


surge sempre num contexto de reconhecimento recíproco, e, portanto, viver uma vida
22

autêntica não é fruto de uma escolha arbitrária ou exclusivamente subjectiva: a


comparação com os outros é um pré-requisito indispensável para um comportamento
autenticamente humano. Se assim não fosse, ou seja, se as minhas ações tivessem validade
apenas para mim, tudo se tornaria irrelevante e insignificante. As escolhas que faço são
importantes para mim e para os outros porque se referem a toda uma estrutura de valores
que são universalmente reconhecidos ou reconhecíveis.

Precisamente por esta abertura inerente aos outros, o indivíduo manifesta formas
espontâneas de comportamento como a partilha de sentimentos e convicções, o diálogo e
até conflitos verbais com os outros. No entanto, onde falta a comunicação e o
desenvolvimento adequado das relações com os outros, não só se desintegra a comunidade
humana (seja uma família, um grupo de amigos, uma associação, uma empresa ou toda uma
sociedade), mas também o próprio indivíduo é prejudicado na sua autorrealização como
ser humano, na formação da sua personalidade.

A dimensão interpessoal vem à tona na relação “eu-você”, em que cada homem é


considerado em sua personalidade irredutível e ontologicamente fundada. “Eu-você”
expressa apropriadamente a ideia de reconhecimento recíproco entre as pessoas, um
reconhecimento que ficaria oculto nos termos “ele” e “eles”, nos quais o homem é
considerado de fora, como um objeto, e não compreendido em seu subjetividade pessoal. 23

E, no entanto, para que as relações interpessoais favoreçam o amadurecimento autêntico e


a autotranscendência de “eu” e “você”, é necessário que ambas as partes estejam orientadas
para uma esfera de significados e valores que as transcendam. Só assim conseguirão
superar os seus respectivos egoísmos e fechamentos. 24

As relações interpessoais não acontecem de uma forma automática ou que devem


ser tidas como certas. O homem deve apoiar a sua capacidade inata de se abrir aos outros
de forma responsável e voluntária, de os acolher e de os aceitar como “outro eu”: “Cada um
de nós tem experiência da sua própria humanidade apenas na medida em que somos
capazes de participar na humanidade dos outros, de experimentá-los como 'outro eu'.” 25

Definitivamente falando, então, uma pessoa pode levar uma vida digna do homem (a
“boa vida” de Aristóteles, como mencionamos no início deste capítulo) e realizar-se
completamente apenas graças a uma rede de relacionamentos. No entanto, não se deve
esquecer que a sociedade também pode desempenhar um papel negativo, de redução, de
condicionamento ou de degradação: basta recordar — para mencionar apenas um dos
aspectos mais superficiais — os efeitos padronizadores de seguir passivamente os ditames
da moda. Existe até o risco de atingir o nível de despersonalização descrito por Heidegger:

Ao utilizar meios de transporte públicos e ao fazer uso de serviços de informação como o jornal, todos os outros
são iguais aos outros. Este Ser-um-com-o-outro dissolve completamente o próprio Dasein no tipo de Ser dos “Outros”, de
tal maneira, de fato, que os Outros, enquanto distinguíveis e explícitos, desaparecem cada vez mais. Nesta inconspicuidade
e indeterminação, desdobra-se a verdadeira ditadura dos “eles”. Nós temos prazer e nos divertimos como eles [ o homem ]
sentem prazer; lemos, vemos e julgamos a literatura e a arte como eles veem e julgam; da mesma forma, recuamos diante
da “grande massa” à medida que eles recuam; achamos “chocante” o que eles acham chocante. 26

5. Concepções Individualistas e Concepções Coletivistas

Até aqui vimos como o homem, considerado na plenitude de todas as suas


dimensões, possui uma individualidade ontologicamente fundada e está constitutivamente
em relação com os outros. E chegamos à conclusão de que isto está tão profundamente
enraizado nele que a integralidade da sua autorrealização depende também da forma como
ele vive a sua relacionalidade.

Estes dois aspectos (o valor da singularidade e o da relacionalidade) devem ser


sempre considerados em conjunto. Se por acaso forem separados, corremos o risco de
enfatizar unilateralmente a autonomia do indivíduo ou o papel da sociedade,
apresentando-os como mutuamente conflitantes. Se o primeiro prevalecer, as outras
pessoas tornar-se-ão uma mera restrição à minha liberdade de iniciativa; se este último
predomina, então os interesses colectivos aparecem como o objectivo global ao qual
sacrificar o bem do indivíduo. Teríamos assim, por um lado, o individualismo e, por outro, o
coletivismo, nas suas diversas formas possíveis.

Tanto a concepção individualista como a coletivista, às quais nos referiremos a


seguir, dão consideração exclusiva ou exagerada a uma das características fundamentais da
pessoa humana de que falamos no Capítulo 13 (autonomia, integralidade, relacionalidade),
ignorando as outras. As conclusões histórico-políticas a que estas concepções conduziram
deveriam dar-nos o que pensar quando reflectimos sobre as consequências de qualquer
tipo de reducionismo na nossa compreensão do homem. 27

5.1. Autossuficiência e Individualismo


Tomando uma posição diferente daquela indicada por Aristóteles (que citamos no
início da seção 2 deste capítulo), alguns filósofos dão maior ênfase à autossuficiência e à
individualidade do homem. Esta abordagem deriva frequentemente de uma concepção
antropológica específica (em muitos casos uma concepção dualista) que sustenta que a
associação com outros homens é apenas uma exigência imposta pelo nosso estado
corpóreo, enquanto o próprio espírito humano tende à independência e à autonomia.

Uma série de pontos de vista característicos desta abordagem podem ser


encontrados na filosofia antiga, por exemplo, os de Epicuro (341-270 aC) e de Plotino
(205-270 aC). Segundo o primeiro, para alcançar a felicidade e a paz, o homem precisa
apenas de si mesmo; ele não precisa do Estado, das instituições, nem da nobreza, nem
mesmo de Deus. Ele é perfeitamente autárquico. Conseqüentemente, ele faz a seguinte
28

admoestação: “Não vos enganeis, homens; não se deixem enganar; não caia em erro; não
existe uma sociedade natural de seres que raciocinam entre si”; “cada um pensa apenas em
si mesmo.” Daí o mandamento epicurista de “viver secretamente” (λ'aθε βι'wσας). Plotino
29 30

também afirmou que “não é possível viver feliz em sociedade 'com o corpo'”. 31

Mencionamos estes dois autores apenas a título de exemplo, mas esta abordagem
emerge repetidamente ao longo da história da filosofia e assume várias formas sociais e
culturais. Com base nesta visão, o facto de o homem viver em sociedade é visto como uma
necessidade inevitável que sacrifica o ideal de autonomia do indivíduo ou, como resultado
de um acordo alcançado entre os indivíduos, para evitar contrastes e conflitos de
interesses. Em resumo, esta visão sustenta que a comunidade social surge como uma
necessidade racionalizada com fins utilitários. O capitalismo e uma certa forma de
liberalismo podem ser identificados com esta abordagem na medida em que consideram a
solidariedade ou o compromisso de resolver as injustiças sociais apenas como meios para
garantir o aumento da riqueza e do bem-estar individual.

Poderíamos traçar o desenvolvimento da noção de autarquia ou autossuficiência do


homem desde a antiguidade até ao individualismo moderno e, ao longo do caminho,
veríamos como o ser humano é sempre considerado fechado na sua própria subjetividade,
32 sendo o objetivo dominar a natureza com a tecnologia, dominar o próprio corpo com a
seu

razão, dominar os outros com a política ou o capital, etc. Desta forma, o ser humano
fecha-se inexoravelmente sobre si mesmo, mas, como vimos, existem outros aspectos
inerentes ao noção de pessoa: abertura ao mundo natural respeitado na sua realidade,
reconhecimento dos outros homens na sua dignidade e relação integral entre o eu e as
dimensões psíquico-biológicas do corpo. 33

Esta abordagem individualista também tem estado presente na evolução do direito,


uma vez que a pessoa tem sido cada vez mais vista como uma singularidade irrepetível,
autónoma e absoluta, acima das relações entre as nações ou entre os vários setores da
sociedade. Isto teve efeitos positivos, como a Declaração dos Direitos do Homem , mas
também envolveu aspectos negativos, pois, se formularmos direitos para o indivíduo (ou
seja, atribuídos ao único indivíduo isolado), negligenciamos a relacionalidade entre os
homens e podemos provocar conflitos entre direitos. 34
Um exemplo particularmente
evidente, entre outros, é o aumento de reivindicações por vezes paradoxais, como o
suposto “direito a ter um filho saudável”.

5.2. Formas de Coletivismo

Mas a sociabilidade da pessoa não pode ser acentuada ao ponto de lhe conferir
prioridade absoluta na nossa compreensão do homem. Este conceito atingiu a sua
expressão mais completa no marxismo, no qual a abordagem coletivista está unida a um
materialismo abrangente. De acordo com K. Marx (1818-1883), “A essência do homem não
é uma abstração inerente a cada indivíduo. Na verdade, é o conjunto das relações sociais”; 35

“não é a consciência dos homens que determina a sua existência, mas a sua existência social
que determina a sua consciência”. L. Feuerbach (1804-1872), que inspirou parcialmente a
36

filosofia de Marx, também sustentou que a essência do homem está contida apenas na
comunidade; ele tinha uma visão negativa das coisas pessoais e individuais e exaltava o
37

papel do intelecto (ou entendimento), que definia como a “verdadeira faculdade do


gênero”, ou seja, daquilo que não é específico: “O coração representa particular
circunstâncias, indivíduos — o entendimento, circunstâncias gerais, universais; é o
sobre-humano, isto é, o poder impessoal no homem”. 38

Na visão coletivista, a essência e a dignidade da pessoa humana estão subordinadas


a uma realidade terrena que é superior ao indivíduo. Pode ser, dependendo do filósofo, da
sociedade ou de uma de suas classes, de um partido político, do Estado, do progresso
histórico, da defesa da raça ou da evolução da humanidade. Assim, o indivíduo é visto como
uma mera ferramenta útil para atingir certos fins gerais que podem ser alcançados através
da supervisão do funcionamento dos mecanismos económicos e sociais. A liberdade
individual é vista com desconfiança e a capacidade de iniciativa é aproveitada por
estruturas impostas de cima.

Uma abordagem semelhante pode ser encontrada no sociologismo, em que o estudo


científico dos fenómenos sociais é considerado como a chave para explicar – tornando-os
uma ciência – todos os fenómenos espirituais do homem. Nas suas diversas formulações, o
que isto significa é a primazia absoluta sobre a pessoa da suposta vontade social da
sociedade empírica com os seus mecanismos de poder e organização.

Resumo do Capítulo 15

A pessoa humana é caracterizada pela sua relacionalidade. Ele é relacional quanto


às suas origens (porque na origem da pessoa está a sua relação com Deus, com os seus pais,
com o contexto social) e quanto à sua constituição (a pessoa constitui e estrutura a sua
identidade com base nas relações ). A filosofia aristotélica explica como o ser humano é
“social por natureza” não apenas para satisfazer as suas necessidades materiais, mas
também para “viver bem”, isto é, para viver uma vida autenticamente humana. A
relacionalidade inerente à pessoa também encontra expressão na posse de inclinações
socializantes, das quais surgem as virtudes sociais. Essas inclinações e as virtudes
associadas são as raízes da sociedade. Além disso, não se deve esquecer que as relações
sociais são necessárias para a auto-realização, mas também podem tornar-se um obstáculo
à autêntica auto-realização. Na história da filosofia, alguns pensadores deram ênfase
abrangente à autossuficiência e autonomia do indivíduo, apresentando a relação entre a
pessoa e a sociedade em termos individualistas. Outros exageraram a importância das
relações sociais, chegando ao ponto de ignorar o valor do indivíduo e de desenvolver ideias
coletivistas.

Capítulo 16

Cultura

1. O Significado da Palavra “Cultura”

Para introduzir as nossas reflexões sobre cultura, talvez seja útil fornecer uma
etimologia exacta da palavra, para o que faremos referência, entre outras, a certas
observações de Gadamer. 1

1.1. Cultivo, Formação e Culto

A palavra “cultura” vem do verbo latino colere , no qual se combinam três


significados. 2

Um primeiro significado refere-se à educação, ou ao cultivo de dons ou faculdades


naturais no sentido físico-técnico: Assim, dizemos “cultivar a terra” ou falamos de uma
“formação natural” para nos referirmos à aparência externa de uma coisa (por exemplo,
uma formação de montanhas, que se criou sem intervenções artificiais, ou uma
neoformação para indicar um tumor benigno). O que prevalece aqui é a ideia de deixar as
coisas agirem de acordo com a natureza, seguindo seus próprios processos específicos até
chegar a um resultado observável e reconhecível.

Mas cultura tem também um segundo significado, que deriva do facto de o verbo
colere também significar embelezar, adornar, ou seja, não apenas permitir que as coisas
que já existem cresçam, mas intervir activamente na sua configuração final. Este é o
significado que a palavra alemã Bildung (cultura, formação) assumiu a partir do século XIX,
significando não tanto a mera educação de faculdades ou talentos naturais, mas o processo
interno de desenvolver e assimilar o que recebemos dos outros, ou seja, , a conformação
espiritual interior a uma imagem ( Bild em alemão), que muitas vezes pode ser considerada
como a imagem ideal da pessoa humana, mas também pode ser tomada num sentido
místico, isto é, como a imagem de Deus que o homem carrega consigo e isso orienta seu
desenvolvimento. A ideia predominante aqui é a da formação recebida dos educadores e da
autoformação. Neste sentido, quando falamos de homem culto, queremos dizer um homem
formado ou conformado a uma imagem ou modelo da pessoa humana (assim, um homem
pode estar plenamente desenvolvido do ponto de vista físico ou natural, mas pode ser
inculto do ponto de vista físico ou natural). do ponto de vista da sua formação espiritual).

O verbo colere também tem um terceiro significado, um significado religioso, de


onde deriva a ideia de “culto”, isto é, o culto e a veneração de Deus. Esta definição não é de
forma alguma negligenciável e, de facto, muitos escritores enfatizam a componente
religiosa das culturas.

Do estudo das duas primeiras definições do termo, fica claro que o conceito de
cultura abrange a natureza e o exercício das faculdades espirituais do homem (ou seja, os
dons naturais e a sua transformação segundo um modelo), 3 a ordem biológica e a livre

intervenção do homem que configura essa ordem, e a transmissão do conhecimento e sua


assimilação interior.

1.2. Cultura e Existência Humana


À luz do que acabamos de dizer sobre as raízes semânticas da palavra, pode-se
compreender que a cultura não pode ser reduzida à aprendizagem, à educação ou a uma
qualificação académica, mas tem um âmbito muito mais amplo. O que a cultura faz, de facto,
é estabelecer uma relação íntima entre a esfera corporal e a esfera espiritual, entre o que é
partilhado e o que é individual, entre o que é universal e o que é pessoal. O indivíduo culto
(no sentido indicado acima), por um lado, conforma-se aos traços humanos universais e,
por outro, é individualmente único. A cultura, entendida neste sentido, não se consegue
pela mera aplicação de uma técnica (didática, pedagógica, mnemónica) ou pela transmissão
de um corpo de conhecimentos. A pessoa culta assimilou de forma criativa e livre o que
recebeu.

Na visão de Guardini, “Cultura é tudo o que o homem cria e existe no seu encontro
vivo com o mundo que o rodeia”. Esta afirmação não é excessivamente generalizada
4

porque a existência e as actividades do homem no que diz respeito ao seu ambiente não se
limitam à dimensão natural, mas, em virtude da sua liberdade, têm sempre uma dimensão
cultural. A cultura está associada ao nível de ser de uma pessoa e não ao seu nível de ter, ao
nível de estar aqui: ser entendido no sentido dinâmico-existencial sobre o qual falamos
longamente no Capítulo 14. O nível de ter diz respeito apenas à obtenção de certos
habilidades e posse de diversas formas de conhecimento; o nível do ser, por outro lado, diz
respeito à vivência de uma existência autenticamente humana, ou seja, à realização pessoal.

Assim, por exemplo, seria errado pensar que as escolas devem favorecer uma
educação centrada no que o homem possui e na sua capacidade de utilizá-lo, limitando os
seus objectivos académicos ao fornecimento de conhecimentos, experiências e capacidades.
As escolas fornecem educação, e a educação envolve o que o homem é e o que ele é
chamado a ser. Lembre-se que, neste contexto, o meu ser pessoa é, do ponto de vista
existencial, uma tarefa a ser realizada e não um resultado já alcançado. Assim, não devemos
nos iludir pensando que podemos permitir que um menino ou uma menina cresça com
absoluta espontaneidade, imaginando que desta forma não influenciamos a sua disposição
“natural” nem condicionamos as escolhas que fazem. Não existe um “estado natural
incontaminado” no homem, sem relação com qualquer tipo de valor. Todas as escolhas
livres e todos os ensinamentos são inspirados num modelo específico da pessoa humana.

Guardini usa uma imagem muito eficaz: a educação, seja na escola ou na família, é
um caminho que os jovens são apresentados e por onde começam a percorrer, mas, sendo
um caminho, tem sempre uma direção particular, um destino . Não existe estrada que não
5

leve a lado nenhum, e fingir que existe seria um engano, ou não seria uma estrada, mas sim
um parque de estacionamento. É importante, então, deixar claros os objetivos da educação,
algo que pode ser ilustrado com o exemplo a seguir. Se, no decorrer de uma aula, eu
explicasse a composição do corpo humano, poderia afirmar que a conduta humana é
inteiramente determinada por tal ou qual estrutura neurobiológica, ou poderia
simplesmente ignorar o problema da liberdade do homem, ou poderia mostrar essa
liberdade não pode ser explicada em termos neurobiológicos. No primeiro caso, apresento
uma visão materialista do homem; no segundo caso, apresento uma visão superficial da
existência; no terceiro caso, apresento uma visão integral da pessoa.

Se este aspecto fundamental fosse esquecido, o homem correria o risco de se tornar


objecto involuntário de manipulação ideológica e política. Voltando aos significados do
verbo colere , reiteremos que não há cultura sem modelo ou sem imagem de homem, nem
educação sem valores de referência. (Isto é válido, para dar outro exemplo, para a suposta
neutralidade da chamada educação sexual nas escolas ou das campanhas de informação do
Estado sobre a SIDA: no homem não existe uma sexualidade exclusivamente biológica ou
anatómica independente das escolhas pelas quais ele é responsável.)

Assim, quando dizemos que só o homem tem cultura, queremos dizer que no
homem as realidades naturais, individuais e ambientais são absorvidas pela esfera da
liberdade e aí adquirem um novo tipo de potencialidade. A resposta do homem aos seus
6

instintos e às suas necessidades básicas (nutrição, sobrevivência como defesa contra o


ambiente) é, ao contrário dos animais, cultural e histórica, ou seja, muda de acordo com as
circunstâncias. Esta falta de rigidez é, de facto, o sinal da liberdade humana. Às vezes, a
7

etologia animal também fala sobre “comportamento cultural”, mas o sentido é ambíguo. É
verdade que os animais individuais podem aprender a resolver certos problemas de uma
nova forma, por exemplo, usando um ramo como clube ou mesmo aprendendo algum tipo
de navegação rudimentar na água, mas estas “descobertas” não levam ao nascimento de um
civilização nem qualquer mudança que marcou época.

2. Três Elementos Fundamentais da Cultura

2.1. Língua e tradições culturais

Considerada do ponto de vista da antropologia cultural, a cultura pode ser definida


como um conjunto estruturado e historicamente transmitido de significados expressos em
símbolos, um sistema de conceitos hereditários pelos quais os homens comunicam,
transmitem e desenvolvem os seus conhecimentos e as suas atitudes perante a vida. 8

Integrando esta noção na antropologia filosófica, cabe destacar que esses símbolos e
conceitos são interiorizados por indivíduos que encontram no sistema cultural modelos de
percepção (que apresentam a realidade como já organizada pela experiência), modelos de
avaliação (que atribuem um valor positivo ou significado negativo para eventos e
fenômenos específicos) e modelos de ação e comportamento.

A língua falada por uma comunidade social desempenha um papel vital na


transmissão dos sistemas culturais, e este é o primeiro elemento para o qual devemos
agora voltar a nossa atenção. Para começar, pode ser útil lembrar que, embora a fala
indique a capacidade humana de comunicar com os outros e de representar a realidade (a
sua natureza específica foi examinada na primeira parte deste livro), a língua (inglês,
italiano, suaíli e e assim por diante) é o sistema comunicativo utilizado por um grupo
específico de indivíduos.
Como explicou Wilhelm von Humboldt (1767-1835), a diferença fundamental entre
as línguas não pode ser reduzida a sons ou sinais; antes, depende de “visões de mundo”
específicas ( Weltansichten ), do desenvolvimento do espírito de um determinado povo e
das condições em que vive. A linguagem não é estática e definitiva; antes, reflecte a
9

actividade incessante da mente humana de tal forma que “a linguagem é, por assim dizer, a
aparência exterior do espírito de um povo”. 10

Deixando de lado as suas concepções idealistas, von Humboldt sustenta muito


acertadamente que a linguagem expressa a harmonia que se estabelece entre o mundo e o
homem. A linguagem, como observa Coreth, 11
carrega em si toda a história de uma
sociedade. Transmite padrões de pensamento, opiniões e representações do mundo; reúne
toda a sedimentação de uma tradição espiritual-cultural: consideremos, por exemplo, a
riqueza dos provérbios e dos ditos populares. Um grupo social expressa a sua própria
identidade cultural tanto nos aspectos fonéticos (sons ásperos ou suaves ou variedades de
tons como no chinês) como nos aspectos semânticos da sua língua. A prevalência de certos
12

sons ou de certas representações conceituais expressa o caráter religioso, científico,


humanístico ou técnico de uma cultura. Isto se reflete de muitas maneiras; por exemplo,
numerosas expressões revelam pistas para um vínculo com o transcendente, como a
saudação alemã grüss Gott ou a expressão italiana ogni ben di Dio para se referir à
abundância de algo. Além disso, os numerosos sufixos do italiano ( -ino , -rello , -uccio , -etto
, -tino , alguns dos quais podem ser combinados entre si, aumentando as possibilidades)
talvez possam indicar uma propensão para nuances e uma abordagem acomodatícia da
vida. . 13

Podemos obter experiência direta disto se, por exemplo, como adultos procurarmos
aprender outra língua: temos a impressão de nos aproximarmos de um mundo novo que
possui uma estrutura intelectual própria e uma forma bem definida de encarar a vida. Além
disso, graças a esta experiência, tornamo-nos mais capazes de perceber a estrutura
específica e os traços distintivos da nossa própria língua materna. 14
Como observa Cassirer, se a fala tivesse apenas a função de copiar ou imitar a ordem
das coisas, então seria lógico querer descobrir qual das actuais “cópias linguísticas” – isto é,
qual das línguas faladas – é a mais adequada. Contudo, a linguagem também contém o
aspecto produtivo ou construtivo da fala; isto é, a sua capacidade de estabelecer uma
relação particular com a realidade (o mundo, outras pessoas) para enriquecê-la e
modificá-la. 15

2.2. Uso e personalizado

Um segundo elemento que caracteriza a cultura de um povo são os seus usos e


costumes, tão numerosos que escapam a qualquer descrição exaustiva: vão da comida ao
vestuário, da educação ao mobiliário, das cerimónias religiosas à vida política. Tomamos
consciência deles especialmente quando viajamos para um país estrangeiro ou quando
conhecemos alguém de uma nacionalidade diferente ou mesmo apenas de uma cidade
diferente.

Ao lado das características comuns nos costumes dos povos determinadas pelo seu
património biofisiológico e ambiental, existem também diferenças consideráveis que
dependem de factores como o crescimento demográfico, acontecimentos históricos,
particularidades raciais ou geográficas, e mesmo os afectos. Neste contexto basta
mencionar alguns exemplos muito óbvios: Os dons físicos de um determinado povo podem
facilitar a prática e a popularidade de um determinado desporto (pense nos corredores
africanos de longa distância); o clima dos países tropicais impede um estilo de vida
excessivamente acelerado e impõe um padrão preciso aos acontecimentos diários; certos
povos têm uma propensão inata para o ritmo e são naturalmente dotados para dançar e
cantar; algumas populações (sejam genoveses, escoceses ou napolitanos) são
proverbialmente famosas por certas características inveteradas, que têm raízes distantes,
embora devamos evitar generalizações.
Isto deveria ajudar-nos a compreender a verdade da afirmação de Guardini sobre a
cultura citada na secção 1.2 deste capítulo: “Cultura é tudo o que o homem cria e existe no
seu encontro vivo com o mundo que o rodeia”. Isto significa que toda a existência do
homem (na sua totalidade corpóreo-espiritual) em relação ao meio envolvente está na raiz
das suas expressões culturais, ou seja, do seu comportamento, que não é exclusivamente
determinado pela natureza.

2.3. Valores na Cultura

Embora examinemos isto de um ponto de vista mais geral no Capítulo 17, devemos
fazer uma breve referência aos valores que diferentes culturas procuram salvaguardar e
transmitir. Este é o terceiro elemento da cultura que desejamos examinar. É evidente que
os costumes e a língua de uma civilização ou de um grupo social reflectem os seus valores
predominantes, ou seja, as coisas tidas como mais dignas de respeito. A história mostra que
houve sociedades que atribuíram uma importância considerável ao valor da coragem na
guerra, do respeito pela divindade, dos costumes funerários, e assim por diante, até às
sociedades modernas nas quais os valores do bem-estar e da saúde parecem predominam
(um sinal disso, entre outros, é a proliferação de revistas e programas de televisão
dedicados a este assunto).

É evidente que a hierarquia de valores predominantes reflecte uma concepção


específica do homem e do seu fim último, e são precisamente questões tão radicais como
estas que nos permitem avaliar o grau de “civilização” de um período histórico. Assim, não
é possível defender o relativismo cultural em qualquer sentido absoluto, e por esta razão
podemos falar sobre os valores e os “não-valores” de uma determinada cultura. Certos
ideais ou formas de comportamento podem assumir o papel de “não-valor” numa
sociedade quando ofuscam ou negam a verdade sobre o homem; por exemplo, exaltar a
pátria ou a raça ignora a relacionalidade inerente da pessoa e pode levar a acções políticas
desumanas, como a discriminação ou a deportação. E assim é sobre uma base
antropológica – e não apenas através da avaliação dos seus níveis de alfabetização ou
desenvolvimento económico – que as civilizações podem ser avaliadas.

Intimamente associada ao papel dos valores numa cultura está a questão do vínculo
inseparável entre religião e civilização. Não é possível estudar história ou cultura sem levar
em conta o sentimento religioso dos povos; aliás, poder-se-ia dizer que cada cultura se
caracteriza pelo modo como o homem enfrenta o mistério de Deus. Na opinião de Dawson,
“As grandes religiões são, por assim dizer, grandes rios de tradições sagradas que fluem
através dos tempos e através de paisagens históricas em mudança que irrigam e
fertilizam”. Na verdade, ao examinarmos os acontecimentos históricos, percebemos que
16

[a fé] introduz na vida humana um elemento de liberdade espiritual que pode ter uma influência criativa e
transformadora na cultura social e no destino histórico do homem, bem como na sua experiência pessoal interior. 17

Neste sentido, o papel do cristianismo tem características específicas que fazem do


seu encontro com a cultura um fenómeno único.

3. Cultura e Sociedade

3.1.A Interacção entre Cultura Pessoal e Cultura Social

Para compreender a relação entre a cultura dos indivíduos e a do grupo social a que
pertencem, pode ser útil fazer uma breve referência ao estruturalismo, uma escola de
pensamento que se tornou popular no século XX. Segundo os estruturalistas, estruturas 18

fundamentais se reúnem em cada cultura, assim como as estruturas elementares comuns


(fonemas) fazem em uma língua.

A forma como os estruturalistas estudam a sociedade e a cultura tende a destacar as


estruturas invariáveis que sustentam as instituições, as relações sociais (até mesmo as
relações entre parentes de sangue) e os costumes. Em vez de procurar compreendê-las a
19

partir de dentro, a história e a sociedade são dissecadas a partir de fora com o mesmo
distanciamento científico que é usado nas ciências naturais e na linguística. Esta
abordagem tem um aspecto positivo na medida em que procura evitar uma visão
historicista e individualista da cultura, visão inerente a alguns expoentes do
existencialismo e ao pensamento de JP Sartre, que exaltava a individualidade e a
singularidade. Por outro lado, porém, pode levar à conclusão de que a sociedade e a cultura
se desenvolvem de acordo com um processo autónomo do qual o homem é um produto e
instrumento inconsciente. Nesta visão, o indivíduo humano só poderia ser compreendido
nas (e, em última análise, reduzido às) suas relações sociais. Esta abordagem tende a
esquecer a transcendência do homem sobre a sociedade e as suas estruturas (é
significativo que esta escola de filosofia deva ser associada ao marxismo) porque nega ou
ignora a sua liberdade interior. 20

3.2. A “Teoria dos Três Mundos” de KR Popper e JC Eccles

A fim de dar uma breve explicação da interação entre a cultura social (em outras
palavras, uma civilização) e a cultura pessoal (a personalidade entendida no seu sentido
cultural), achamos que pode ser útil recordar a “teoria dos três mundos”, tal como
elaborada por Popper e Eccles. Apresentaram esquematicamente a realidade, o ambiente
21

em que o homem está inserido, da seguinte forma:

MUNDO 1 MUNDO 2 MUNDO 3


OBJETOS FÍSICOS ESTADOS DE CONHECIMENTO OBJETIVO
E ESTADOS CONSCIÊNCIA
1. Conhecimento
Matéria e energia subjetivo
INORGÂNICA (universo)
2. BIOLOGIA Experiência Hereditariedade cultural codificada
Estrutura e ações de todos de: em substratos materiais:
os seres vivos – percepção – filosófico
– cérebro humano – pensamento – teológico
– emoções – científico
– intenções – histórico
– memórias – literário
– sonhos – artístico
– criatividade – tecnológico
3. ARTEFATOS Sistemas teóricos, problemas
substratos materiais científicos, argumentos críticos
– da criatividade humana
– de ferramentas
– de máquinas
– de livros
– de obras de arte
– de música

Esta é, evidentemente, uma representação esquemática e, portanto, não exaustiva,


como os próprios autores deixam claro. Nós a utilizamos independentemente da sua teoria
antropológica geral, que de qualquer forma exigiria um tratamento separado,
especialmente no que diz respeito a Popper. No entanto, é um resumo útil não só porque dá
uma representação gráfica da interacção entre a cultura social e a cultura individual, mas
também porque servirá de referência ao considerar o tema do trabalho no Capítulo 18.

As três colunas distinguem três áreas distintas da experiência humana, que, no


entanto, interagem entre si. O desenvolvimento do Mundo 1 leva a um crescimento do
Mundo 2, que por sua vez enriquece o Mundo 3. Novos conhecimentos do Mundo 3
despertam experiências mais ricas do Mundo 2, que se traduzem numa expansão do Mundo
1. Como explicamos no Capítulo 14, o progresso cultural não ocorre no homem apenas
como resposta a necessidades ou situações materiais; muitas vezes é a própria pessoa
quem levanta os problemas e cria alternativas. Não devemos, portanto, interpretar a
relação entre o Mundo 1 e os outros dois Mundos num sentido determinista, como se
fossem vasos comunicantes. Além disso, a representação esquemática não deve fazer
esquecer o papel da liberdade pessoal, graças à qual o indivíduo pode orientar e até mesmo
inverter o desenvolvimento do seu ambiente ou compensar certas inadequações materiais.

No entanto, é evidente, por exemplo, que a possibilidade de transmissão de


tradições e ideias culturais (Mundo 3) através do papel e da tinta (Mundo 1) permite um
maior desenvolvimento dos recursos subjetivos do Mundo 2. A relação crítica e madura
com que um A pessoa interage com essas áreas da realidade é uma parte importante do
processo de crescimento da personalidade individual. Tenhamos presente que o papel dos
dons biológicos de uma pessoa, que podem ser desenvolvidos ou inibidos, também entra na
relação entre os três “mundos”; é por isso que na coluna “Mundo 1” também é feita menção
aos cérebros humanos. Esta teoria pode ser associada ao que dissemos sobre a língua de
um povo tal como falada por indivíduos em que se unem aspectos fonéticos, semânticos,
afetivos e espirituais: O domínio dos recursos linguísticos permite maior capacidade
comunicativa e receptiva e, portanto, melhor interação entre pessoas. e cultura social.

Para sublinhar a importância da interação entre o indivíduo, o seu semelhante e o


mundo que o rodeia, citaremos apenas três dos muitos exemplos possíveis. O primeiro é o
caso, mencionado por Eccles, de uma jovem chamada Genie que foi mantida isolada num
loft pelo seu pai psicótico: Até aos oito meses de idade, ninguém lhe dirigiu uma palavra e,
desde a idade dos vinte meses aos treze anos, ela recebeu apenas os cuidados
indispensáveis. A ausência de contato com o Mundo 3 e os escassos recursos do Mundo 1
causaram danos consideráveis à sua personalidade. O médico que cuidou dela notou como
a sua falta de exposição ao diálogo tinha causado danos consideráveis no lado esquerdo do
seu cérebro, embora o lado direito compensasse este défice com uma fala muito limitada.
Felizmente, a menina conseguiu aos poucos suprir sua deficiência educacional. 22

Guardini cita outro exemplo não tão preciso em termos científicos, mas igualmente
significativo. Salimbene escreve que um Sacro Imperador Romano do século XIII, Frederico
II de Hohenstaufen (que tinha um grande interesse nas ciências naturais e na filosofia),
desejava descobrir se a língua primordial do homem era o latim, o grego ou o hebraico.
Para isso, mandou levar três órfãos para uma casa isolada com ordens de que fossem bem
tratados, mas que ninguém falasse com eles. O resultado foi que todos os três morreram. 23

Por fim, há a famosa história do menino encontrado abandonado na floresta de


Aveyron, na França, no final do século XVIII. Os médicos que o examinaram deduziram que
ele foi abandonado nos primeiros anos de vida e sobreviveu sem contato humano quase até
a adolescência. Os danos cerebrais devidos ao seu isolamento revelaram-se um obstáculo
intransponível ao ensino da linguagem verbal e ao desenvolvimento normal da sua
inteligência, embora não tenha sido possível estabelecer se o menino tinha sido afectado
por problemas mentais antes do seu abandono. A história foi transformada num excelente
24

filme intitulado L'enfant sauvage, de F. Truffaut.

Estes três exemplos enfatizam a interação entre a cultura em que uma pessoa vive e
a sua existência individual. São também mais uma prova do que explicamos sobre
relacionalidade no Capítulo 15: Os relacionamentos e a comparação com os outros são
parte integrante do desenvolvimento da personalidade humana.

Resumo do Capítulo 16

Para compreender o significado do termo cultura é útil recordar as suas raízes


etimológicas no verbo latino colere , que reúne três significados: cultivar dons e faculdades
naturais, favorecer o desenvolvimento segundo um modelo ideal e adorar a Deus. Devido à
sua liberdade, a existência do ser humano no mundo nunca é meramente espontânea ou
natural, mas sempre cultural: ele orienta livremente a sua existência com referência a
valores específicos e não apenas como uma resposta unívoca aos seus instintos vitais. Os
elementos fundamentais que constituem e transmitem a cultura incluem a língua, os
costumes e os valores. Estes elementos actuam ao nível da cultura do indivíduo e ao nível
da cultura de um povo. Estes dois níveis também se influenciam mutuamente, como foi
sublinhado pelo estruturalismo que, no entanto, não tem em devida conta a liberdade do
indivíduo. A “teoria dos três mundos” de KR Popper e J. Eccles ajuda-nos a compreender
como interagem a cultura individual e social. Destaca como a cultura do indivíduo e de toda
uma civilização é influenciada não apenas por ideias, mas também por fatores geográficos,
climáticos e fisiológicos.

Capítulo 17

Valores

1. Existência Pessoal Orientada para Valores

O homem age sempre tendo em vista um fim, que orienta as suas ações e as suas
escolhas. De um modo geral, esse fim é a obtenção da verdade e da bondade, para as quais a
nossa natureza humana está orientada, mas esta orientação básica é especificamente
determinada na prática por cada indivíduo. Assim, podemos dizer, a título de uma primeira
aproximação, que os valores são a verdade e a bondade vistas não num sentido abstrato
(na teoria ou em geral), mas na prática, isto é, no que se refere à minha própria existência
. Na
verdade, consciente ou inconscientemente, agimos sempre com base numa percepção
prévia daquilo que acreditamos ser um valor. Saúde, sucesso, dinheiro e assim por diante
são alguns dos motivos mais comuns por trás de nossa atividade diária.

Não é possível, então, falar superficialmente de uma “ausência de valores” numa


sociedade ou na vida de uma pessoa porque o problema consiste na verdade em descobrir
quais os motivos básicos que orientam as transformações sociais e o comportamento
individual.
1.1. A Hierarquia e Experiência de Valores

Os valores a que nos referimos e com base nos quais agimos derivam em parte da
cultura em que vivemos, uma cultura transmitida através da tradição e da educação, mas
cada homem, valendo-se da sua própria experiência pessoal, também constrói o seu
próprio sistema hierarquicamente estruturado de valores; por outras palavras, identifica e
estabelece o que considera importante na sua vida, em relação ao qual está disposto a
aceitar vários graus de compromisso. Por exemplo, podemos ser flexíveis no que diz
2

respeito ao passatempo que escolhemos para um fim de semana, mas não estamos
dispostos a ceder tão facilmente em questões relacionadas com amizade ou trabalho; ou
ainda, algumas pessoas são muito exigentes com a qualidade e apresentação dos alimentos,
enquanto outras se contentam com uma refeição apressada para ter tempo para praticar
um desporto. Essas coisas dependem da importância que atribuímos a um valor em relação
a outro.

No entanto, esta hierarquia de valores tem uma certa objectividade que se torna
clara através da experiência e da comparação com a realidade. É nesta base que
estabelecemos as nossas preferências e podemos julgá-las. Procuraremos explicar isso com
referência à experiência artística. Posso preferir o estilo gótico ou o romântico, mas isso
3

não me impede de admirar a beleza da arquitetura barroca. A preferência por um estilo ou


outro é uma questão de gosto, o que, no entanto, não me cega (ou não deveria) no meu
julgamento de outras expressões artísticas. Num nível mais mundano, o sucesso de uma
canção pop de verão pode fazer com que eu a ouça com prazer em diversas ocasiões, mas
sei bem que dentro de alguns anos ela perderá o sabor e será esquecida. Por outro lado,
uma sinfonia de Beethoven ou a obra de um talentoso cantor e compositor sempre resistirá
à comparação com a moda sazonal.

Estes dois exemplos, dos muitos que poderíamos ter utilizado, implicam duas
consequências. Em primeiro lugar, a escala de valores não é totalmente arbitrária, mas
refere-se a uma realidade conhecida; em segundo lugar, é possível cultivar e desenvolver a
sensibilidade em relação aos conteúdos de valor da realidade, aprendendo a reconhecê-los
e a hierarquizá-los. Procuremos explicar isso mais claramente.

1.2. A Transmissão e Reconhecimento de Valores

Mais do que uma bagagem teórica, os valores são transmitidos de geração em


geração por meio de atitudes e comportamentos cotidianos, como as formas como os
problemas da vida são enfrentados, especialmente no ambiente familiar, onde os laços
intergeracionais e a complementaridade de os papéis de pai e mãe desempenham um papel
importante. Isto cria uma continuidade entre jovens e adultos que é mais profunda do que
pode parecer. No entanto, embora os valores sejam transmitidos e ensinados, cada homem
4

deve reconhecê-los e apreciá-los pelo que são, porque os valores não são algo frio ou
neutro, mas envolvem - em vários graus e dependendo da sua importância - a pessoa
inteira, a sua vontade e os sentimentos dele. Isto significa que deve haver envolvimento
pessoal neles e, portanto, livre adesão a eles; caso contrário, permaneceremos na esfera da
indiferença.

Por exemplo, não basta ouvir falar da importância da solidariedade ou do estudo


porque, se não mostrarmos abertura e interesse por estes ou outros valores, não
conseguiremos reconhecê-los. Algo semelhante acontece se, numa cerimónia oficial, sou
apresentado a muitas pessoas. Se eu não demonstrar interesse ou abertura para com os
outros convidados, o papel deles será pouco mais do que um papel secundário em minha
vida, e esquecerei imediatamente seus rostos e nomes. É vital, então, que a afetividade de
uma pessoa seja posta em jogo. Por exemplo, podemos abordar determinados valores com
paixão, o que é uma vantagem porque nos torna atentos a uma determinada qualidade. No
entanto, deve ser lembrado que “tudo o que a paixão pode fazer é levar-nos a uma nova
relação com um valor, mas não pode nos dizer qual deve ser uma resposta adequada e livre
a ele”5 e que, exercer liberdade, julgamento e avaliação também são necessários.
para
Dado que os valores actuam como critérios-guia para a existência pessoal, a
auto-realização do homem será maior na medida em que for orientado para valores mais
elevados, isto é, valores menos relativos e menos passageiros. Se eu assumir a riqueza, o
bem-estar ou o prazer como meus critérios-diretrizes, minha vida ficará exposta à
variabilidade e instabilidade inerentes a esses objetos dos sentidos. Se, por outro lado, me
preocupo com valores estáveis e universais, ocorre um aumento de liberdade no sentido de
que minhas potencialidades espirituais tendem para objetos que não expiram: a amizade, a
solidariedade e o amor a Deus não têm limites pré-estabelecidos e não são contingentes.

1.3 Estabilidade de Valores e Auto-realização Pessoal

Hoje, existe uma separação generalizada e perigosa entre a verdade teórica e a


verdade prática, entre o que um indivíduo reconhece e considera como verdadeiro (e,
portanto, um valor) e o reflexo dessa verdade ou valor no seu comportamento pessoal. Se
faltar esta coerência, que faz parte da autenticidade, os valores acabam por perder o seu
6

significado e a sua força porque se tornam uma “noção” conhecida apenas na teoria. Esta é
uma das razões que leva ao chamado relativismo de valores, segundo o qual não existem
valores universais e que a sua escolha é uma questão puramente individual e subjetiva,
dependente do capricho. Quando não há coerência entre o que consideramos verdadeiro e
o nosso comportamento pessoal, acabamos perdendo a capacidade de julgamento correto.

Há outro factor que tende a reforçar esta abordagem instável. Como vimos quando
discutimos cultura, os valores são sempre transmitidos por modelos e exemplos vivos, que
nos são oferecidos no nosso quotidiano ou no nosso contexto sócio-cultural: heróis e
santos, mas também “celebridades”, pessoas famosas, campeões desportivos, e cantores. 7

Ora, numa sociedade tão informacional como a nossa, o excesso de “tipos” de referência
pode levar à inconstância e à superficialidade porque os modelos apresentados são muitas
vezes contraditórios ou idealizados.
Para evitar este perigo, devemos reconsiderar o que já dissemos sobre a experiência
dos valores. Na opinião de Spaemann, apreendemos o conteúdo de valor da realidade num
8

ato de prazer ou de arrependimento, de respeito, de desprezo, de ódio, de medo ou de


esperança; consequentemente, podemos falar de uma espécie de “sentimento de valores”
porque o conhecimento dos valores implica afetividade. Mas os conteúdos de valor nos são
revelados aos poucos e na medida em que aprendemos a tornar objetivos os nossos
interesses. Por exemplo, temos de aprender a ouvir e compreender boa música se
quisermos apreciá-la; temos que aprender a ler atentamente um texto para apreciar um
estilo literário; temos que aprender a distinguir os vários vinhos para os apreciar; e temos
que aprender a compreender os outros homens para valorizar os seus dons.

Isto significa que é necessário um processo formativo através do qual cada homem
objetifique e diversifique os seus interesses ou desejos e, assim, aumente a sua capacidade
de sofrer e ser feliz. Embora possamos ser obtusos ou cegos para certos valores, “a
formação de um sentido de valores, de um sentido de hierarquia de valores, da capacidade
de distinguir o que é importante do que não é importante é necessária para o sucesso da
vida de cada indivíduo”. vida e também é um pré-requisito para sua capacidade de se
comunicar com os outros”. Com efeito, a referência estável aos valores objectivos dá
9

continuidade ao nosso projecto de vida e permite-nos alcançar a felicidade, entendida


também como harmonia interior. Se o nosso comportamento é apenas uma função de
estímulos externos casuais ou de humores e não se baseia numa ordem objectiva de
valores, então não temos condições para alcançar a harmonia connosco próprios e até o
acordo com os outros. Se não tivéssemos a capacidade de organizar e relativizar os nossos
desejos de acordo com um ponto de vista objectivo, então nenhum acordo seria possível e
predominaria o conflito entre várias reivindicações de satisfação pessoal.

1.4 A Contribuição da Axiologia de Max Scheler

Na história da filosofia no que diz respeito aos valores, Max Scheler (1874-1928)
ocupa um lugar particularmente importante. Em 1916 ele escreveu o ensaio Formalismo
10
na Ética e Ética Não-Formal de Valores: Uma Nova Tentativa Rumo à Fundação de um
Personalismo Ético em que empreende uma análise fenomenológica da experiência moral,
11

assumindo, entre outras coisas, uma perspectiva axiológica na qual estão presentes as
12

conclusões a que chegamos anteriormente. É por isso que fazemos uma breve menção a ele
agora.

Scheler acreditava que a pessoa humana é capaz de intuir valores axiológicos e,


portanto, que “existem qualidades-valor autênticas e verdadeiras , e constituem um
domínio especial de objetividades; têm relações e correlações próprias e distintas; e, como
qualidades -valor , podem ser, por exemplo, superiores ou inferiores. Sendo este o caso,
pode haver entre essas qualidades de valor uma ordem e uma ordem de categorias , ambas
independentes da presença de um domínio de bens em que aparecem, inteiramente
independentes do movimento e das mudanças desses bens em história, e ' a priori ' à
experiência deste reino de bens.” 13

Apontando para a estrutura hierárquica dos valores, Scheler distingue as seguintes


categorias, entre outras: valores do agradável e do desagradável (que dizem respeito à
esfera da sensibilidade); valores vitais (aqueles correlacionados ao sentimento vital, de
onde surgem, por exemplo, a alegria ou a tristeza, a coragem ou a angústia, o impulso de
vingança ou de raiva); valores espirituais (que não podem ser reduzidos a uma mera lei
biológica e dizem respeito à beleza e à feiúra, à justiça e à injustiça, à verdade); e valores do
sagrado (que são apreendidos com um ato específico de amor, diante do qual respondemos
com fé ou com falta de fé, com veneração e adoração, experimentando felicidade ou
desespero). 14

Como deixa claro Lambertino, 15


na visão de Scheler, os valores possuem uma
autonomia que é ao mesmo tempo ontológica e cognitiva no sentido de que não dependem
da experiência do sujeito ou de seus estados afetivos. As qualidades axiológicas possuem
“uma determinada ordem de classificação em relação ao 'superior' e ao 'inferior'. Esta
ordem é independente da forma de ser em que entram os valores.” As reflexões de Scheler
16
são importantes porque defendem com rigor a objetividade e a universalidade dos valores.
Em contraste com a tendência de torná-los subjetivos e relativos, ele sustenta que o valor é
imposto em si e por si, enquanto as pessoas tendem a conceder validade apenas com base
no que é aceito pela maioria, no que os outros pensam. No entanto, Scheler não dá uma
explicação satisfatória do domínio de uma pessoa sobre os seus atos, pois o indivíduo
parece quase passivamente atraído para o mundo dos valores. Existem também alguns
17

aspectos problemáticos na sua concepção de pessoa.

2. Análise Metafísica de Valor

Até aqui, nossas reflexões sobre valores têm sido direcionadas a partir de uma
perspectiva fenomenológico-existencial, referindo-se a diferentes realidades (entre elas o
bem-estar, o sucesso, a felicidade, a bondade, a verdade e o amor de Deus) que têm em
comum o fato de sermos adequado à pessoa, ou seja, uma relação intencional de apreciação
e avaliação com o sujeito humano. Agora, como fizemos anteriormente quando reflectimos
sobre a pessoa, procuraremos empreender uma análise metafísica para compreender o
fundamento ontológico desta característica comum.

2.1. Valor e Ser

Comecemos com uma afirmação de Guardini, segundo quem “'valor' é o que torna
um ser digno de existir e uma ação digna de ser executada”. É evidente que esta não é uma
18

definição técnica; antes, indica que o valor é uma qualidade inerente à realidade,
implicando uma referência intencional à pessoa que percebe a realidade. Se, como
dissemos, o valor funciona como guia, ou referência, para a atividade humana, é porque a
pessoa é capaz de apreendê-lo nos diversos setores da realidade. Assim, para
compreendermos mais profundamente a noção de valor, devemos considerá-la numa
perspectiva metafísica, colocando-a em relação à existência.
Pode-se afirmar que a pessoa humana conhece o valor de tudo o que existe, que
descobre o valor como propriedade inerente à realidade. Portanto, o valor não pertence à
área conhecida na metafísica como “predicamental” 19
(que diz respeito a formas
particulares de ser, como dimensão, peso, cor, etc.), e pareceria mais apropriado concentrar
a nossa análise do valor em o chamado campo transcendental, que, transcendendo as
particularidades, diz respeito a tudo o que existe. As propriedades transcendentais, de fato,
são inerentes a tudo o que existe pelo simples fato de existir. Por exemplo, embora não
possa dizer que tudo o que vejo é vermelho, posso afirmar que tudo o que vejo tem a sua
própria bondade ou perfeição.

Entre os vários transcendentais reconhecidos pela metafísica, três referem-se à


20

relação entre a realidade e a pessoa humana. São verum , bonum e pulchrum (verdade,
bondade e beleza), que indicam a relação da realidade com o intelecto e a vontade do
homem que apreende, respectivamente, a inteligibilidade, a bondade e a beleza dessa
realidade. Podemos, então, como de fato fazem vários autores, propor a tese de que o valor
está associado a esses três transcendentais no sentido de que, assim como descobrimos um
grau variável de bondade, verdade ou beleza em cada objeto único (isto é, em tudo o que
existe), assim compreendemos e valorizamos o seu valor e dignidade, ou seja, o seu aspecto
axiológico. Isso significa também que, assim como os transcendentais, o valor tem seu
fundamento no ser e não depende exclusivamente do sujeito que o percebe.

Embora possa parecer mais fácil demonstrar que o valor é um aspecto do bem,
também é possível considerar a verdade num sentido axiológico e, portanto, estabelecer
uma relação entre valor e verdade. Eles são, em qualquer caso, inseparáveis, ou seja, a
nossa experiência de valores é uma experiência cognitiva porque conhecemos a verdade de
um determinado objeto como algo bom para nós. 21

2.2. Valor, beleza e verdade


Se não perdermos de vista a perspectiva metafísica que delineámos na secção
anterior, compreenderemos que os valores não podem ser justificados apenas em termos
históricos e sociológicos, mas também requerem uma reflexão metafísica que remonta às
suas causas últimas. Tendo em mente o que dissemos sobre a sua associação com a
verdade, a bondade e a beleza, deveria ficar claro que os valores precisam ser examinados
com uma análise meta-histórica e metassociológica. Com o objetivo de delinear tal análise,
podemos adotar os argumentos utilizados por Platão e por Santo Agostinho para mostrar o
caráter absoluto e a transcendência, respectivamente, da beleza e da verdade. Citaremos 22

estes dois autores com alguma extensão para não privar o seu raciocínio de qualquer força.

Em seu Banquete , Platão usa estas palavras para descrever o mais elevado grau de
amor pela beleza que pode ser alcançado através do conhecimento:

Quando um homem tiver sido até agora ensinado na tradição do amor, passando de vista em vista de coisas
belas na ascensão correta e regular, de repente ele lhe terá revelado, à medida que chega ao fim de seu relacionamento
amoroso, um visão maravilhosa, bela em sua natureza. . . . Em primeiro lugar, é sempre existente e não surge nem perece,
nem aumenta nem diminui; em seguida, não é belo em parte e em parte feio, nem é tal em um determinado momento e em
outro em outro, nem em um aspecto belo e em outro feio, nem tão afetado pela posição a ponto de parecer belo para
alguns e feio para outros. outros. Nem mais o nosso iniciado encontrará o belo que lhe é apresentado sob a forma de um
rosto ou de mãos ou de qualquer outra parte do corpo, nem como uma descrição particular ou peça de conhecimento,
nem como existindo em algum lugar em outra substância, como um animal. ou a terra ou o céu ou qualquer outra coisa,
mas existindo sempre em singularidade de forma independente por si mesma, enquanto toda a multidão de coisas belas
participa dela de tal maneira que, embora todas elas estejam surgindo e perecendo, ela não cresce nem maior nem menos
e não é afetado por nada. 23

Esta passagem não deveria induzir-nos a apoiar a ideia de uma espécie de


platonismo de valores, isto é, atribuir-lhes uma existência separada num mundo próprio.
Pelo contrário, recorremos ao argumento platónico para sublinhar o facto de que, embora
os valores sejam atribuídos a realidades particulares, isso não significa que sejam
inteiramente variáveis e subjectivos. Tal como acontece com a beleza, reconhecemos o
valor de uma coisa precisamente porque não somos nós que decidimos esse valor
arbitrariamente, e aprendemos a mostrar maior apreço pelos valores mais exaltados em
relação aos menos duráveis.

Para corroborar ainda mais esta conclusão, as opiniões de Santo Agostinho sobre a
verdade também são úteis:

Temos, portanto, na verdade uma posse da qual todos podemos desfrutar igualmente e em comum; não há nada
faltando ou defeituoso nele. . . . Todos se apegam a isso; todos tocam ao mesmo tempo. É um alimento que nunca se divide;
você não bebe nada dele que eu não possa beber. Quando você participa dela, você não faz de nada sua posse privada; o
que você tira dele ainda permanece inteiro para mim também. . . . Ninguém jamais toma parte dele para uso privado, mas
é totalmente comum a todos ao mesmo tempo. . . . Nenhuma multidão de ouvintes impede outros de se aproximarem da
beleza da verdade e da sabedoria, desde que haja uma vontade constante de desfrutá-las. Sua beleza não passa com o
tempo nem muda de um lugar para outro. A noite não o interrompe nem a escuridão o esconde, e não está sujeito aos
sentidos corporais. . . . Muda todos os seus espectadores para melhor; ele próprio nunca mudou para pior. Ninguém é seu
juiz; sem ele ninguém julga corretamente. Claramente, portanto, e sem dúvida, é mais excelente do que as nossas mentes,
pois é uma e ainda assim torna cada mente separada sábia e juiz de outras coisas, nunca da verdade. 24

Dos argumentos de Platão e Santo Agostinho segue-se que não apreendemos a


beleza e a verdade em sentido absoluto; antes, é em virtude da beleza e da verdade que as
coisas, e nós mesmos, compartilhamos que podemos julgar algo como belo ou verdadeiro.
Assim, segue-se que a beleza e a verdade não são produtos da mente humana, mas
transcendem-na e são universais. Da mesma forma, a fundamentação dos valores
transcende a subjetividade pessoal e posiciona-se na esfera ontológica, à qual o homem se
abre com a sua inteligência e a sua vontade.

É claro que é possível seguir outros caminhos para alcançar uma compreensão
adequada do valor. Poderíamos, por exemplo, examinar os valores a partir de uma
perspectiva mais diretamente personalista, centrando-nos no bem específico do homem,
para o qual tende cada pessoa. No entanto, sentimos que o que dissemos tem uma certa
validade também porque sublinha o facto de que a reflexão sobre este assunto não deve ser
superficial. Na verdade, não se deve esquecer que a discussão sobre valores acabou por se
tornar, em muitos aspectos, enganadora porque o conceito de valor é frequentemente
caracterizado pelo subjetivismo, pela espiritualidade intimista ou pelo psicologismo. Ao
considerar este assunto na esfera não-filosófica, é muito fácil cair em banalidades.

Resumo do Capítulo 17

As pessoas agem sempre com vista a um fim e orientam o seu comportamento para
determinados valores, que podem ser o sucesso, o bem-estar ou a riqueza. Estabelecemos
uma hierarquia entre os valores que norteiam a nossa atividade — ou seja, consideramos
determinados valores mais importantes que outros — e essa hierarquia nunca é
completamente arbitrária, mas tem fundamentos objetivos. Os valores nos são
transmitidos pela cultura e pela educação, e aprendemos a compreender a sua importância
graças à experiência pessoal. A coerência entre o que consideramos importante e o nosso
próprio comportamento pessoal permite-nos alcançar a plena autorrealização como seres
humanos. Argumentos fenomenológicos como os de Max Scheler ajudam a explicar que os
valores têm raízes objetivas, embora ele não dê peso suficiente ao papel da liberdade na
orientação de um indivíduo em direção aos valores. Do ponto de vista metafísico, por outro
lado, os fundamentos ontológicos dos valores podem ser demonstrados referindo-se à
doutrina dos transcendentais da existência, ou seja, aquelas propriedades metafísicas que
pertencem a cada ser simplesmente pelo fato de ele existir. Dois desses transcendentais são
a verdade e a bondade, e o valor pode ser considerado um aspecto da verdade e da
bondade daquilo que existe. Para compreender que os valores são transcendentes, no
sentido de que não são criados subjetivamente pelo indivíduo, algumas reflexões úteis
podem ser encontradas em Platão sobre a beleza e em Santo Agostinho sobre a verdade.

Capítulo 18

Trabalhar, festejar, brincar


1. A Obra do Homem no Mundo

No Capítulo 16 explicamos que a cultura é um modo de existência específico do


homem, que caracteriza a sua relação com o mundo que o rodeia: ele faz parte desse
mundo e dele depende, mas a sua resposta aos estímulos e às situações é mediada pela
liberdade. Esta forma particular de fazer parte do mundo reflecte-se no trabalho, através
do qual a pessoa satisfaz as suas próprias necessidades e transforma o ambiente natural.

Na verdade, a dimensão mais evidente do trabalho é precisamente a relação que se


foi estabelecendo ao longo dos séculos entre o homem e o seu habitat. Houve uma série de
etapas decisivas na evolução desta relação, como o uso do fogo e a fusão dos metais, que
revelam a diferença essencial entre o homem e os animais. A pessoa humana não está
completamente sujeita às necessidades da espécie, mas procura e descobre novas
oportunidades, e as grandes descobertas não podem ser explicadas se as considerarmos
apenas como uma resposta a necessidades elementares; pense, por exemplo, no uso do
fogo para cozinhar alimentos, na invenção da flecha ou na agricultura. Num certo sentido,
podemos dizer que é o próprio homem quem inventa novas necessidades e depois as
resolve. Além disso, é o próprio corpo humano, que à primeira vista pode parecer menos
1

adaptado do que o de muitos outros animais, que caracteriza o trabalho do homem e a sua
relação com o meio ambiente. Por exemplo, a postura ereta e a mobilidade das mãos
permitem ao homem fazer uso extremamente versátil dos objetos naturais. O corpo
humano é o digno correlato da atividade livre do homem.

Ao contrário da forma como os animais utilizam os recursos naturais para a sua


própria sobrevivência, a especificidade do trabalho humano não deriva de algum traço
somático, mas da própria pessoa. Um animal tende, por natureza, para o bem, conforme
determinado pelas suas próprias necessidades, para o bem para si e para a sua espécie. O
homem, por outro lado, tende conscientemente para o bem em si e pode, portanto,
renunciar a um bem imediato em vista de um bem superior, ou pode procurar
conscientemente o bem para os outros. A atividade especializada e tecnicamente perfeita
2

de uma formiga, de uma abelha ou de um castor é um limite intransponível para esses


animais, mas isso não é verdade para o homem que se orienta livremente para um fim e
pode mudar as suas atividades ou estilo de vida. Retomando as raízes etimológicas da
3

palavra “cultura”, podemos dizer que o homem habita o mundo enquanto o cultiva; em
continuidade com a natureza, ele faz surgir novas possibilidades. 4

2. A noção de trabalho

Somente recentemente as considerações sobre o trabalho começaram a encontrar


espaço na filosofia, especialmente na antropologia filosófica. Os estudos sobre o tema
devem levar em conta uma evolução inquestionável na forma como o trabalho é visto na
existência da pessoa humana. A Revelação bíblica lança uma luz fundamental sobre estas
reflexões, embora a relação entre o cristianismo e a visão do trabalho apresente alguns
aspectos problemáticos.

Ao longo da história, de facto, o trabalho foi considerado como uma necessidade


inevitável, se não como uma maldição. Esta visão foi influenciada não apenas por uma certa
leitura da narrativa bíblica do Pecado Original, mas também pelo facto de a cultura grega e
latina ter uma visão negativa do trabalho, como evidenciado pelas palavras que usam para
descrevê-lo (p'oνος e labor ), que têm um significado original de cansaço e sofrimento que
foi transmitido em muitas línguas modernas. Um pequeno sinal de quão persistente tem
5

sido este ponto de vista pode ser encontrado nas palavras escritas em 1964 por J. Pieper,
um filósofo que morreu no final do século XX e que fez algumas observações muito
interessantes sobre este assunto: “Na verdade, como é bem conhecido, os textos sagrados
do Cristianismo designam o trabalho – e, na verdade, a morte – como um castigo.” 6
Contudo, para um leitor atento, a Bíblia fala do trabalho como uma vocação original
da pessoa humana, que foi criada por Deus para cultivar e proteger a terra. O que emerge
7

da Revelação Cristã é, então, uma igualdade fundamental da dignidade do trabalho, embora


diferenciando as diversas profissões e tarefas. Esta verdade foi reafirmada a partir da
década de 1930 por São Josemaría Escrivá 8
e tem sido reiterada no ensinamento
magisterial recente, particularmente no Beato. Encíclica Laborem Exercens de João Paulo II
(datada de 14 de setembro de 1981). O trabalho é uma dimensão fundamental da
existência humana no mundo e assim permanece, embora caracterizado pelo cansaço,
mesmo depois do Pecado Original. 9

Para chegar a uma noção adequada de trabalho, devemos procurar manter-nos


equidistantes entre dois extremos: por um lado, uma definição excessivamente restrita que
não inclui todas as áreas de trabalho (como, por exemplo, a investigação académica, o
trabalho doméstico , e assim por diante) e, por outro lado, definindo-o em termos tão gerais
que não é então possível distinguir a sua especificidade em relação a outras áreas da
atividade humana. Tendo presentes as opiniões de vários filósofos, Melendo dá a seguinte
definição: Trabalho é qualquer actividade especificamente humana, realizada com esforço,
necessária como meio e tecnicamente definível, que contribui para a promoção do bem
comum e valoriza quem a realiza. Esta é, em nossa opinião, uma noção suficientemente
10

ampla, embora, como o próprio autor reconhece, não resolva completamente todas as
questões que surgem sobre o assunto numa sociedade em mudança como a nossa. Entre os
elementos que inclui, dois são de importância mais fundamental: a utilidade do trabalho
para um fim ulterior e o esforço que envolve. Estas duas características permitem-nos
distinguir, digamos, um desportista profissional de um amador ou um jornalista de alguém
que mantém um diário. 11

3. Significados subjetivos e objetivos do trabalho


A definição de trabalho acima dada alude a uma das suas características
particularmente importantes: a de contribuir para a valorização de quem o realiza. Isto
significa que, para que seja uma actividade especificamente humana que esteja de acordo
com a dignidade da pessoa humana, deve não só procurar alcançar algum objectivo
externo, mas também deve contribuir para a auto-realização do indivíduo.

É evidente que o trabalho tem um significado objectivo no que diz respeito aos seus
resultados tangíveis, ou seja, a transformação da natureza ou da realidade em geral. Isto
pode ser visto no trabalho agrícola ou no artesanato que produz novos objetos e
ferramentas, mas também no trabalho intelectual, que aumenta aquela área da realidade
que nós, com Popper e Eccles, chamamos de “Mundo 3” e que inclui o património cultural e
teórico. e sistemas científicos. 12
Mas uma actividade é humana quando é realizada
voluntariamente com uma compreensão do fim em vista e dos meios necessários para
atingir esse fim. E assim, sendo uma atividade humana, o trabalho também tem um
significado subjetivo no que diz respeito à autorrealização de quem o realiza; isto é, não é
apenas o indivíduo que procura os meios para manter a vida, mas também a sua
auto-expressão. O trabalho tem, então, uma dimensão existencial e ética incontornável pelo
facto de “quem o realiza é uma pessoa, um sujeito consciente e livre, ou seja, um sujeito que
decide sobre si mesmo”. 13

Isto explica o que dissemos acima sobre a igualdade fundamental das pessoas que
trabalham, que é colocada sob uma nova luz pela Revelação Cristã. A dignidade do trabalho
não depende exclusivamente dos resultados externos ou dos objetos produzidos, nem da
pertença a um determinado grupo social, mas está associada à dignidade e valorização de
quem o realiza. Portanto, “ a base primária do valor do trabalho é o próprio homem ”. E 14

mesmo que uma profissão tenha menor relevância económica ou social, do ponto de vista
subjetivo não perde o valor que possui para quem a exerce. É nesta base que se torna
moralmente necessário superar situações de injustiça ou discriminação no mundo do
trabalho porque são contrárias à dignidade da pessoa humana.
Podemos, então, concluir que o significado subjetivo do trabalho tem preeminência
em relação ao significado objetivo, mas isso não significa que o resultado a ser alcançado
através do trabalho seja totalmente sem importância; pelo contrário, precisamente porque
o exercício de uma profissão é um acto pessoal, é sempre dirigido intencionalmente para
um objecto ou meta, cuja realização adequada é condição para a autorrealização do sujeito.
15
A mera “boa vontade” genérica não é suficiente se não for acompanhada pelo
compromisso de levar a uma conclusão positiva o que estamos a fazer. Além disso, seria
errado e alienante exercer uma profissão exclusivamente como meio de obter ganhos
económicos e um maior nível de bem-estar. Estas motivações, que fazem parte do aspecto
subjetivo, não devem fazer-nos ignorar completamente o valor do profissionalismo e do
serviço que prestamos à sociedade.

4. Significado Relacional e Significado Ecológico do Trabalho

O que acabamos de dizer sobre o serviço oferecido à sociedade através do trabalho


pode ser melhor compreendido se tivermos em mente a relacionalidade inerente à pessoa,
algo que discutimos no Capítulo 15. A plena autorrealização do indivíduo requer o
desenvolvimento de relações com outros, de uma rede de laços sociais vivenciada
conscientemente. Portanto, mesmo que tenhamos afirmado a preeminência do significado
subjetivo do trabalho, isso não pode nos levar a considerar a atividade profissional
exclusivamente como fonte de autosatisfação e autoafirmação. Se o fizéssemos, talvez
obteríamos resultados externos consideráveis, mas falharíamos na tarefa do nosso próprio
amadurecimento interior e, não raro, ficaríamos abertos a vários tipos de neurose.

Não se trata apenas de perceber que cada um de nós só pode realizar o seu trabalho
graças ao trabalho dos outros (por exemplo, o de quem me fornece eletricidade,
matérias-primas, recursos financeiros ou canais de comunicação). ; antes, compreender o
significado relacional do trabalho significa, sobretudo, ter em conta o facto de que só posso
alcançar o meu bem pessoal contribuindo para o bem comum e que em todas as
actividades profissionais deve haver uma atitude implícita de serviço aos outros.
Infelizmente, a mentalidade individualista a que nos referimos nos Capítulos 14 e 15 torna
difícil reconhecer a importância desta dimensão do trabalho, e isto também pode explicar
por que razão, para mencionar apenas um exemplo, muitas pessoas em Itália e noutras
nações ricas evitam ir na profissão de enfermagem, que é tão manifestamente orientada
para servir os outros.

Além disso, a preeminência do significado subjetivo do trabalho não deve significar


que, para alcançar os objetivos que me propus, eu tenha o direito de ignorar as
consequências que as minhas ações têm no mundo e no ambiente. Existe, de facto, o que
poderíamos chamar de um significado “ecológico” do trabalho, que diz respeito ao respeito
e à melhoria do habitat em que vivemos. Além disso, uma atitude irresponsável para com a
natureza acabaria por se voltar contra o próprio homem no seu presente e, sobretudo, no
seu futuro imediato.

5. Tecnologia e Relação com a Natureza

A importância do significado ecológico e ambiental do trabalho leva-nos a outra


questão, que tem hoje particular relevância: o problema da tecnologia, que mencionaremos
brevemente sem entrar em questões estritamente éticas.

É verdade que através do trabalho o homem humaniza o mundo e o torna habitável;


torna-o num ambiente adequado para si, construindo estradas, pontes e casas ou plantando
árvores e protegendo florestas; mas a sua relação com a natureza (e, portanto, também
com o seu próprio corpo) não pode ser vista apenas em termos de domínio absoluto ou
exclusivamente como uma luta. A ocorrência de catástrofes naturais e o aparecimento de
doenças devem deixar claro que existem limites que devem ser respeitados e uma
harmonia que deve ser continuamente recuperada e conservada.
O progresso tecnológico e a criação de ferramentas cada vez mais eficientes são
sinais da liberdade do homem, da sua contínua superação de si mesmo. No entanto, como
salientaram muitos autores, hoje estamos expostos aos perigos da tecnocracia, ou seja, de
uma sociedade em que o homem é dominado pela tecnologia que ele próprio criou. Não
podemos mais prescindir desta tecnologia e gastamos grande parte de nossas energias em
mantê-la e aumentá-la; as nossas vidas são em grande parte condicionadas por ele (pense,
por exemplo, nas dificuldades que surgem quando o fornecimento de electricidade ou de
água é interrompido ou quando as linhas telefónicas avariam). O problema não deve ser
considerado isoladamente; pelo contrário, devemos perguntar-nos se o progresso
tecnológico actual, com todas as suas implicações, facilita ou dificulta a auto-realização e a
existência autêntica da pessoa humana. Ou, dito de outra forma: o significado objectivo do
trabalho tecnologicamente especializado (isto é, os seus resultados e os objectivos que se
propõe) deve permanecer em harmonia com o seu significado subjectivo (ou seja, com as
dimensões existencial e ética) e com a sua importância relacional. e significado ecológico.

A dependência descontrolada da tecnologia poderá levar à destruição do ambiente


em que vivemos e, em última análise, à alienação dos próprios seres humanos. Não
devemos esquecer que, do ponto de vista antropológico e ético, pode ser necessário evitar
certas ações que são, de facto, tecnicamente possíveis. Portanto, embora seja importante
evitar o catastrofismo ou visões puramente negativas da tecnologia, o interesse crescente
pela ecologia é perfeitamente compreensível.

Ao contrário do que muitas vezes se acredita, é precisamente uma visão criacionista


do mundo (que não pode ser completamente identificada com o que hoje é conhecido como
“criacionismo” nos EUA) que fornece uma base adequada para argumentos ecológicos: a
criação exige respeito, reconhecimento e proteção; podemos participar da obra divina da
criação e, em certo sentido, continuá-la, mas não nos apropriarmos tiranicamente dela para
nós mesmos. Assim, é importante que o homem não perca a capacidade de contemplar, ou
seja, de olhar a realidade em si e por si, apreciando e usufruindo da sua beleza, sem a visão
utilitarista ou prática imposta pela tecnologia e por um desejo desproporcional de si
mesmo. bem-estar; caso contrário, o que prevalecerá será sempre o desejo de modificar o
mundo, de manipulá-lo e de possuí-lo para seu benefício exclusivo. 16

Muitos filósofos examinaram as consequências negativas que surgem quando a


tecnologia alcança o domínio indiscriminado. Entre elas citaremos as visões expressas nas
obras de Martin Buber, segundo quem a expansão do mundo material com seus produtos,
máquinas e processos de fabricação provoca uma diminuição das relações interpessoais. A
disseminação de atitudes egoístas e utilitárias nos torna menos capazes de estabelecer
relações dialógicas. Na verdade, uma das causas da solidão interior do homem é a
tecnologia das máquinas que, “inventadas para servir os homens no seu trabalho,
impressionaram-no para o seu serviço”. 17

Uma última observação deve ser feita. Hoje, a evolução da tecnologia e do mundo
virtual parece abrir perspectivas que ultrapassam a própria natureza humana. Em algumas
pessoas isto consolidou a ideia de que não é possível alcançar uma compreensão unitária
do homem porque ele parece estar num estado de metamorfose contínua marcada por uma
plasticidade de tendências em que cada pessoa é ou poderia tornar-se aquilo que ela
mesma deseja. ser. Mas isto significa renunciar à identidade pessoal e colocar-se
inconscientemente à mercê das pessoas que administram e governam a tecnologia. 18

6. Festa

É a partir de uma compreensão adequada do trabalho, visto como dimensão


fundamental da vida do homem na terra, que podemos compreender o significado da festa
na existência humana. Assim como o trabalho é uma atividade especificamente humana
com a qual o homem estabelece uma relação especial com a natureza, também a festa
caracteriza o ritmo temporal da pessoa humana e permite-lhe manter um vínculo vivo com
as suas próprias raízes e com o seu fundamento último, isto é, com a transcendência. .
A importância que os rituais celebrativos têm na nossa existência é um sinal de que
o homem é um ser “situado”, como tantos filósofos existencialistas e personalistas têm
apontado. Isto significa, em primeiro lugar, que o indivíduo está fortemente enraizado no
seu passado, na sua história e nas suas circunstâncias. Em segundo lugar, segue-se que,
para que uma festa seja autêntica, deve ter uma relação adequada com a realidade
circundante, um consenso relativamente ao mundo , sem o qual seria apenas o clamor
19

superficial do espectáculo. É por isso que as reflexões sobre este tema devem estar
relacionadas também com o que diremos no próximo capítulo sobre a temporalidade da
pessoa, que está inserida no tempo, mas estendida para a eternidade.

Para compreender por que a festa nos permite manter vivo o vínculo com a
transcendência, não devemos nos limitar ao significado mais superficial e cotidiano da
palavra; antes, devemos pensar na tendência de “celebrar” que é inerente a cada cultura. As
pessoas celebram o que consideram importante, e de forma mais solene quanto mais
exaltados são os valores envolvidos. As pessoas alegram-se com um nascimento ou um
casamento, com a colheita no campo ou no início do ano, com a maioridade ou com a
chegada da primavera. A festa está relacionada com as origens do homem, com as verdades
fundamentais da sua existência, com o que define e transcende a sua vida, com o seu desejo
de felicidade. Assim, a festa tem particular importância e solenidade quando envolve
valores religiosos, e está intimamente ligada ao que dissemos no capítulo 15 sobre a
virtude da pietas , através da qual honramos a Deus, à família e à pátria.

Torna-se claro o quão importantes são as festas para manter vivo o vínculo com as
nossas raízes se considerarmos o que aconteceu na época da Revolução Francesa e na
Alemanha nazista e na União Soviética durante o século XX: Os regimes
recém-estabelecidos instituíram imediatamente novas festas em para transformar rápida e
profundamente a cultura popular, arrancando-a do seu passado. 20

Por fim, cabe mencionar dois outros elementos antropológicos importantes que
estão presentes na festa, mas não estão diretamente associados às nossas reflexões sobre o
trabalho. Em primeiro lugar, a festa humana revela a relacionalidade inerente à pessoa
porque celebramos em comunhão, pelo menos em comunhão espiritual, com os outros. Em
segundo lugar, a propensão para celebrar é um sinal do desejo insaciável de felicidade que
é inerente ao indivíduo humano, um desejo nunca plenamente satisfeito no decurso da sua
história pessoal.

7. Jogue

É também a partir de uma compreensão adequada do trabalho que podemos


compreender a particularidade do brincar e considerá-lo como uma dimensão da existência
associada à auto-realização e à auto-expressão da pessoa humana, embora o seu papel
mude. desde a infância até a idade adulta. A brincadeira costuma fazer parte da festa; não é
apenas uma expressão da necessidade de repouso físico, distração ou entretenimento
(entendido como a interrupção do esforço físico ou mental e a realização de uma atividade
prazerosa), mas envolve também a criatividade da pessoa humana, a sua capacidade de se
desligar, e rir da realidade. Tanto a festa como a brincadeira têm a característica essencial
de serem um fim em si mesmas, ou seja, de não se referirem a algum objetivo utilitário
externo de interesse próprio ou necessidade material. No entanto, festa e diversão não são
21

equivalentes: no ato da festa, o motivo pelo qual celebramos é importante; é o que dá


sentido à festa: «De facto, a actividade humana recebe o seu sentido sobretudo do seu
conteúdo, através do seu próprio objecto, não através do 'como', mas através do 'quê'» .

Tomando a atividade recreativa humana como modelo interpretativo, é possível


criar uma filosofia ou teoria do brincar, em vários campos, e é neste contexto que este
assunto tem hoje importância. Consideremos como, num jogo, o efeito de uma jogada
contém um elemento de imponderabilidade porque o que fazemos depende sempre do que
os outros fazem; existe uma estreita interdependência porque ganhamos ou perdemos não
apenas através das nossas próprias capacidades, mas também como consequência das
capacidades ou incapacidades dos outros. Além disso, os jogadores podem concordar entre
si, e tal acordo pode ser respeitado ou desconsiderado.

Esta perspectiva pode ser aplicada, por exemplo, no campo da sociologia: assim
como cada jogador tem o seu próprio papel num jogo, também cada indivíduo tem um
papel na sociedade (esta é a chamada “teoria do papel” proposta por, entre outros GH
Mead, R. Linton e T. Parsons); as atividades de interação social podem ser vistas e
explicadas como um jogo em que os participantes ganham e ajudam os outros a vencer. A 23

mesma perspectiva pode ser aplicada no campo da economia: em 1994, o Prémio Nobel da
Economia foi ganho por três académicos (JC Harsanyi, JF Nash e R. Selten) que, examinando
o mundo das finanças (especialmente a macroeconomia e a gestão da indústria),
observaram a importância dos chamados “jogos não cooperativos” para prever os
resultados das interações econômicas estratégicas, para analisar a influência das
presunções de erro no processo de tomada de decisão e para estudar o comportamento dos
financiadores que não o fazem. tenha todas as informações necessárias. A perspectiva
também pode ser utilizada no campo da biologia onde, na verdade, falamos da estratégia
(jogo) que os organismos vivos utilizam para sobreviver. Este modelo interpretativo
também é utilizado ainda mais na hermenêutica e na psicologia.

Resumindo, o ser vivo pode ser considerado um jogador e sua atividade de


auto-organização e autodesenvolvimento como o jogo do qual ele participa, observando
suas regras (isso também entra na linguagem cotidiana com frases como “Estou jogando
por minha vida"). O jogo, de facto, preenche todas as condições de um “sistema aberto”; isto
é, um sistema que não é absoluta e rigidamente predeterminado, mas depende da
criatividade e da liberdade dos indivíduos. 24

No entanto, devemos evitar alargar indevidamente o âmbito do jogo, porque não só


perderíamos a sua especificidade, mas também correríamos o risco de adoptar uma
abordagem errada da vida real. Ou tudo se tornaria um jogo, com a consequente falta de
compromisso e reflexão, ou tudo se tornaria sério e perderíamos a capacidade de nos
desligarmos dos fardos da vida quotidiana. Além disso, do ponto de vista psicológico e
25

sociológico, muitos estudiosos alertam contra os perigos inerentes à era da comunicação


electrónica, dos videojogos e da chamada “realidade virtual”: Muitas vezes corremos o risco
de perder uma percepção autêntica das nossas relações com os outros, de os fundamentos
da realidade e até da nossa própria personalidade.

Resumo do Capítulo 18

O trabalho pode ser considerado uma atividade humana: uma atividade que exige
esforço necessário como meio para atingir um objetivo ulterior, necessita de habilidade
técnica e está orientada para o bem comum e para a valorização de quem o realiza. Do
ponto de vista antropológico, o trabalho pode ser visto como tendo um significado
quádruplo: subjetivo (a realização pessoal do trabalhador), objetivo (o resultado
produzido), relacional (o serviço aos outros e ao bem comum) e ecológico (respeito pelo e
melhoria do ambiente natural). Refletir sobre estes quatro aspectos ajuda também a
evidenciar os riscos da tecnocracia, isto é, do desenvolvimento técnico e científico que não
respeita a dignidade da pessoa humana nem a ecologia. Festa e diversão estão relacionadas
ao trabalho. A festa marca o ritmo temporal da pessoa humana e permite-lhe manter um
vínculo vivo com as próprias raízes e com o seu fundamento último, isto é, com a
transcendência. A brincadeira não surge apenas da necessidade de repouso físico, distração
ou entretenimento, mas está associada à autorrealização e à autoexpressão da pessoa.

Capítulo 19

Tempo e História
1. História e Liberdade

Para conhecer uma pessoa, geralmente procuramos saber onde e quando ela
nasceu, o que fez, de que família provém; em poucas palavras, procuramos conhecer a sua
história, as suas circunstâncias históricas. É claro que é óbvio que cada homem tem a sua
própria história, mas ao considerar esta característica antropológica fundamental, devemos
evitar cair em dois extremos opostos.

Por um lado, devemos evitar os vários tipos de historicismo que sustentam que o
homem é a sua história, que a historicidade é a característica essencial e definidora do
homem, um horizonte intransponível que compreende inteiramente o significado da vida
humana. De acordo com esta visão, não pode haver verdade sobre o homem porque todo o
conhecimento seria o produto de uma época específica; tudo dependeria do momento
histórico atual. Por outro lado, é importante não sucumbir a uma visão estática da pessoa,
1

ou seja, a uma espécie de substancialismo que considera a historicidade como um acidente


sem importância para a pessoa humana, quando, na verdade, é uma propriedade que não
pode ser separado de sua situação no mundo.

A história está intimamente associada à liberdade do homem, que não é impelido


pela sua natureza numa única direcção, mas impulsiona-se livremente em direcção a
algumas das possibilidades que lhe são oferecidas, abrindo novas e excluindo outras. As
atitudes tomadas e as decisões tomadas afetam cada um de nós como seres humanos, mas
não são um fardo que nos é imposto porque poderiam ter sido diferentes do que realmente
são. É precisamente esta livre iniciativa da pessoa que faz história daquilo que de outra
forma seria apenas uma temporalidade mensurável. Ao dar respostas que não são impostas
inequivocamente pelo estímulo, o homem se abre para possibilidades desnecessárias. 2

Portanto, podemos dizer, com Heidegger, que embora os objetos (especialmente os objetos
inanimados, mas também as plantas e os animais) sejam como coisas já tomadas como
dadas, apenas o homem existe no sentido próprio; isto é, ele está numa relação consciente
com as possibilidades de sua própria existência. 3
Uma rocha pode trazer marcas da
passagem do tempo, mas isso é algo bem diferente dos acontecimentos da minha vida, que
posso narrar.

No entanto, a autodeterminação do indivíduo assim considerada não deve fazer-nos


pensar num contraste entre a natureza humana, vista como um fundamento estável, e a
liberdade, vista como a progressiva realização histórica do indivíduo. A liberdade não
contrasta com a natureza humana; antes, é uma propriedade específica da natureza
humana. A historicidade, portanto, está enraizada no dinamismo e no potencial do nosso
ser: O indivíduo não é mera mobilidade, pura ocorrência, mas possui uma unidade
ontológica permanente, que, como vimos, tem orientação própria e dimensão
supra-histórica.

2. Natureza Cíclica e Linear da História

Antes de examinar mais de perto certos aspectos da temporalidade do indivíduo,


mencionemos brevemente dois paradigmas interpretativos da história. A sucessão
temporal, ou sucessão de eventos históricos, pode ser interpretada usando um modelo
cíclico ou linear. Segundo alguns estudiosos, as interpretações mais antigas da história,
tanto entre gregos como entre romanos, seguiam uma concepção cíclica do tempo. Platão,
por exemplo, sustentava que qualquer acontecimento cósmico ou social reflecte o seu
próprio paradigma no mundo eterno das ideias; o tempo passa de acordo com um processo
cíclico baseado em uma proporção numérica perfeita. Aristóteles também era da opinião
4

de que o movimento rotacional dos céus indicava a eternidade cíclica do tempo. A história
5

grega sustentava que o que efetivamente existe é o perihodos , o “período” de rotação


(sempre o mesmo) dos céus, e os estóicos também acreditavam que o mundo estava
6

sujeito a um ciclo infinito de nascimento e morte, que seguia precisamente intervalos. 7

Já a Revelação Cristã introduziu e estabeleceu uma concepção linear da história: o


homem e o cosmos foram criados por Deus do nada, e sua trajetória temporal consiste em
estabelecer o Reino de Deus até que o homem venha a participar da eternidade divina. Com
o acontecimento único e irrepetível da Encarnação, a história e o tempo adquirem uma
conotação positiva; não são o pálido reflexo de um mundo ideal preexistente, mas derivam
do impulso do ato criativo no qual a liberdade humana tem uma parte. Santo Agostinho
explica como, na concepção cíclica do tempo e na doutrina da reencarnação, a alma imortal
tende indefinidamente para a falsa felicidade e retorna indefinidamente para a verdadeira
infelicidade. 8
E Löwith observa que a teoria cíclica, que é de origem pagã, não tem
esperança porque a esperança e a fé estão, pela sua essência, ligadas ao futuro, e não pode
haver futuro verdadeiro se o tempo passado e o tempo por vir forem vistos como fases
equivalentes. dentro de um ciclo constante de recorrência que não tem começo nem fim. 9

No entanto, por mais bem fundamentado que seja, não devemos exagerar a
dicotomia entre tempo cíclico e linear; 10
pelo contrário, devem ser vistos como duas
dimensões que funcionam em níveis diferentes ou que constituem um processo espiral ou
helicoidal. Além disso, mesmo do ponto de vista historiográfico, a periodização cíclica não
desapareceu completamente. Basta mencionar a doutrina dos estágios das nações, ou dos
corsi e ricorsi da história, conforme elaborada por Giambattista Vico (1668-1744). Também
é verdade que a temporalidade individual, como veremos, desenvolve-se seguindo ritmos
precisos e uma série de alternâncias que tendem a harmonizar-se com o tempo e a
natureza cósmica: dia e noite; dormir e acordar; cansaço e descanso; prazer e esperança;
nascimento e morte. 11

A prevalência do paradigma linear na interpretação da história, precisamente


devido às suas raízes cristãs, induz-nos a ver o curso da história como uma progressão em
direção a um futuro transcendente. É uma atitude tipicamente cristã sentir-se herdeiro de
conquistas anteriores e, ao mesmo tempo, evitar fechamentos ou esquematismos
excessivamente rígidos. Pense na abordagem construtiva dos filósofos escolásticos em
relação aos pensadores gregos e muçulmanos. Ao longo dos séculos, a humanidade teve
uma finalidade interna, em virtude da qual a sucessão das gerações e dos acontecimentos
individuais adquire unidade e inteligibilidade. É por isso que São Boaventura poderia
comparar a história do mundo a um poema, cuja beleza só pode ser apreciada por uma
visão ampla, não limitada às palavras individuais. Da mesma forma, Santo Agostinho foi
capaz de considerar a propagação do Império Romano e de sua cultura como providencial
(embora a fonte de perseguições cruéis) porque acabou se tornando a base para a
propagação do Cristianismo. 12

Esta visão histórica teve uma influência considerável nas tentativas posteriores de
explicar a história universal, embora a tensão em relação a Deus seja frequentemente
substituída pela acção de alguma força imanente ou pela obtenção definitiva de algum
resultado terreno. Esta secularização da ideia cristã de providência deu origem a conceitos
totalitários, isto é, conceitos que procuram realizar o desenvolvimento completo do
progresso ou alcançar um pináculo intransponível da história. No entanto, embora exista
uma teleologia da história e da sociedade, uma situação de desenvolvimento insuperável e
estática nunca será alcançada porque é uma meta impossível em todos os níveis: individual,
social ou histórico. A natureza dinâmica da liberdade faz do progresso uma série de
eventos sem fim. Numa utopia esta série é artificialmente fechada, mas uma ideia, por mais
perfeita que seja, nunca pode cobrir completamente todos os aspectos da realidade
concreta. Seria uma ideia utópica perseguir o mito do progresso em si, imaginando um
13

mecanismo perfeito de crescimento constante em direcção a uma época de perfeição


definitiva e intemporal. A acção humana, precisamente porque é ética, implica a
necessidade de decidir face a diversas alternativas e está per se aberta ao melhoramento ou
ao fracasso. 14

3. Temporalidade Biográfica

Voltaremos agora nossa atenção para a temporalidade do indivíduo. Isto é algo de


que temos experiência constante: estamos conscientes das mudanças sucessivas em nós
mesmos e naqueles que nos rodeiam; temos consciência de que o tempo passa ou que nos
falta tempo; abandonamo-nos às memórias do passado e elaboramos projetos para o
futuro.

Considerada objetivamente, isto é, do ponto de vista de quem estuda a pessoa


humana, a temporalidade humana tem três aspectos: Um diz respeito ao estado corpóreo
entendido como um organismo cuja atividade (incluindo concepção, nascimento,
crescimento e envelhecimento) constitui vida no sentido biológico ; outra diz respeito à
existência humana como um continuum consciente de experiências vividas, escolhas feitas
e inserção numa época histórica, que é a vida num sentido biográfico; e a última diz
respeito ao aspecto da tensão espiritual do homem em direção à eternidade, que se
expressa em sua religiosidade e em sua projeção constante em direção ao futuro (algo que
já mencionamos ao discutir a autotranscendência no capítulo 14 e ao qual retornaremos no
final). deste capítulo).

Se, por outro lado, examinarmos subjetivamente a temporalidade humana, isto é, do


ponto de vista da própria pessoa, descobriremos que os três aspectos acima mencionados
estão intimamente fundidos: Os processos orgânicos têm um efeito sobre a nossa
consciência, que por sua vez tem um efeito influência sobre eles, enquanto a tensão
espiritual envolve o corpo e orienta as escolhas que fazemos. É por isso que, para
chegarmos à plena compreensão de um indivíduo, temos que levar em conta o seu passado,
presente e futuro; por outras palavras, devemos considerar todo o seu universo pessoal
também numa perspectiva temporal, porque ele possui uma unidade profunda.

A referência à subjetividade é muito importante para o nosso estudo porque, se a


consciência espiritual não existisse, então o tempo (que é formalmente uma medida de
movimento) também não existiria em nenhum sentido real. Assim, como dissemos na
primeira secção deste capítulo, os animais não são, propriamente falando, históricos
porque a sua consciência está completamente imersa no fluxo da sua existência – “apenas
uma consciência que não seja inteiramente temporal pode ter uma medida de movimento ;
isto é, do tempo” – e apenas na consciência humana o tempo se apresenta como uma
15

totalidade simultânea na qual o passado e o futuro são inerentes ao presente da nossa vida.

3.1. Passado, presente e futuro

No que diz respeito à forma como o homem, com a sua subjetividade, vivencia o
tempo e vive no tempo, podemos falar de três “etapas”: o passado, que vivenciamos com a
memória; o presente, que vivenciamos com atenção; e o futuro, que vivemos com
esperança e expectativa. 16

Heidegger fala dos três “êxtases” do tempo, usando essa palavra no seu significado
etimológico de “fora de si”: O futuro é o sentido da existência, a projeção do homem em
direção a uma possibilidade; o passado é o que foi, que nunca desaparece totalmente; o
presente é sua proximidade com as coisas. 17

No que diz respeito à primeira das “etapas”, é preciso dizer que é precisamente com
a memória e a tradição que nasce a história. Cícero, na verdade, chamou-a de vita memoriæ
(“vida de memória”). Obviamente, a história não pode ser reduzida a um simples acto de
18

recordação, mas surge através do auto-interrogatório do homem sobre as suas próprias


origens e passado, porque é uma questão fundamental na sua compreensão de si mesmo. 19

Existe, de fato, um vínculo estreito entre o passado e o presente no homem. Segundo


Santo Agostinho, a memória é o tecido conjuntivo da vida do espírito porque “quem
trabalha deve respeitar ambos [início e fim]. Pois aquele que em cada desenvolvimento de
atividade não olha para trás, para o início, não olha para frente, para o fim.” Um homem
20

sem passado ficaria inquieto e desorientado. As observações de Agostinho encontram


21

confirmação na neurologia: De uma perspectiva psicológica e neurológica, a organização


temporal da consciência humana baseia-se num paradigma cronológico de
passado-presente-futuro. A consciência consciente do presente inclui não apenas a
lembrança de episódios do passado, mas também a previsão de eventos futuros. Tal
antecipação envolve uma série complexa de processos mentais, incluindo a lembrança de
antecipações anteriores do futuro.

DH Ingvar e J. Eccles falam, respetivamente, de memória do futuro e de antecipações


memorizadas , aludindo à nossa recordação das antecipações que surgem quando
pensamos em ações futuras com todas as suas possíveis consequências. Um excelente
modelo desse processo pode ser encontrado no jogo de xadrez: cada jogador faz sua
própria jogada lembrando-se dos movimentos feitos até o momento e buscando prever os
possíveis contra-ataques de seu adversário. Essas ideias foram corroboradas em
experimentos científicos que medem o aumento do fluxo sanguíneo para o córtex
pré-frontal do cérebro durante os chamados “devaneios”, ou seja, aquelas situações em que
o sujeito contempla o que poderia acontecer ou o que gostaria que acontecesse no futuro.
futuro. Além disso, foi demonstrado que os danos nessa área do cérebro podem provocar a
síndrome da “perda do futuro”, cujos sintomas incluem apatia, falta de ambição e escassa
capacidade de planear o futuro. 22

Em todo o caso, a forma como a pessoa humana encara o futuro é altamente


específica porque é sempre acompanhada pela consciência da sua própria mortalidade, não
no sentido de pensarmos constantemente na certeza de que devemos morrer, mas no
sentido de que procuramos antever um futuro que sabemos não ser indefinido e que
percebemos como uma oportunidade a aproveitar, uma aventura pontual. Se assim não
fosse, seríamos vítimas da indecisão e da inércia, situação bem descrita no conto de Borges
intitulado El inmortal , no qual retrata uma cidade habitada por pessoas que não estão
sujeitas à morte e em cujas vidas - passadas, presentes, e futuro — ficam confusos a tal
ponto que os levam a um estado de inércia e indiferença. 23

3.2. A pressa, a preocupação e o projeto de vida

A forma como vivemos o presente pode dar origem à pressa, um fenómeno


tipicamente humano que é muitas vezes o resultado da aceleração, do aumento do ritmo
que a tecnologia permite e provoca. Porém, tal comportamento pode gerar ansiedade e
outros sintomas patológicos que derivam da interrupção dos ritmos naturais. Também 24

aqui emerge a especificidade do homem: os animais nunca têm pressa e permanecem


sujeitos aos ritmos naturais; já o homem, ao fugir da mera materialidade, procura
ultrapassar os limites temporais e dominá-los para atingir um objetivo (pense, por
exemplo, no uso que fazemos dos relógios). Como diz Heidegger, o homem não estaria
preocupado se estivesse completamente predeterminado, se o seu caminho já estivesse
traçado, se estivesse completamente constrangido por uma situação de facto , se não
tivesse a possibilidade quase de estar à frente de si mesmo ( Sich- vorweg-sein ), de prever e
escolher entre diversas possibilidades. Assim, a preocupação é o modo de ser de quem é, ao
mesmo tempo, constrangido e livre. 25

Já referimos — ao discutirmos a autenticidade e o projecto de vida pessoal — sobre


a necessidade de coordenar o passado, o presente e o futuro na existência individual: 26 O
homem
só pode realizar-se autenticamente assumindo uma abordagem correcta em relação a
estes factores temporais. A atenção desequilibrada por parte do indivíduo em relação a
apenas uma dessas dimensões da temporalidade o levaria a um comportamento
inautêntico e imaturo.

Citando as conclusões a que chegou um psiquiatra, podemos dizer:

Homem maduro é aquele cuja equação temporal pode ser assim descrita: vive situado num presente em que o
passado está digerido e tudo está impregnado de futuro. Ele superou seus traumas e não precisa repassar seu passado
porque foi capaz de absorvê-lo; ele olha para frente e se prepara para atingir seus objetivos. 27

Isto pode ser melhor compreendido se refletirmos sobre o facto de que, por
exemplo, uma dependência excessiva das circunstâncias presentes significaria uma
incapacidade de canalizar essas circunstâncias para um fim, para um projeto que
procuramos realizar conhecendo a nós mesmos e ao nosso passado; acabaríamos por 28

apenas nos conformar com o nosso ambiente.


Deve também ser salientado que o homem tem uma tendência a fugir do seu próprio
tempo histórico e que esta tendência, em parte inerente em virtude da sua
autotranscendência, é reforçada pelo mundo moderno da tecnologia e das comunicações
em que possibilidades mais novas e mais apetitosas e modelos são constantemente
apresentados a nós. Isso pode levar as pessoas a vivenciarem seu próprio presente com um
sentimento de mediocridade e frustração em relação ao que gostariam de obter. Segue-se
que há uma produção crescente de mitos em direção aos quais nos projetamos e nos
identificamos, e por meio dos quais escapamos à nossa própria história real. Pensemos,
para mencionar apenas os aspectos mais superficiais, no fenômeno das celebridades, da
literatura escapista ou dos chamados “símbolos de status”, que se tornam objetos de
desejo. 29

3.3. A Esperança e o Desejo de Eternidade

Para além destas características típicas da civilização moderna, a tendência da


pessoa humana a projectar-se para além do tempo exprime-se mais profundamente na
esperança e no desejo de felicidade que caracterizam a existência humana.

Referindo-nos às ideias de Gabriel Marcel, podemos dizer que a esperança não é


simplesmente desejo, que se circunscreve a objetos particulares; nem é mero otimismo
30

esperar superficialmente um resultado feliz; nem é pura vitalidade. Pelo contrário, quando
31

sentimos uma esperança, mesmo em relação a um objeto bem definido ou a uma meta
precisa, esse objetivo é sempre parte de um projeto mais amplo e de um pedido adicional.
Assim, podemos dizer que esperamos ao mesmo tempo “alguma coisa” e “tudo” porque 32

esse resultado está sempre associado ao conjunto da nossa vida. A esperança humana, na
sua consciência e autenticidade, implica o reconhecimento da própria finitude e a abertura
a uma dimensão transcendente, a experiência da limitação e a tendência a superá-la. A
esperança não é a simples projecção de uma necessidade humana, mas a resposta gratuita
e satisfatória à procura de um homem que não se contenta com os bens finitos e
transitórios, mas se orienta para o bem na sua totalidade.
Por isso, a esperança autêntica é um sinal da condição humana como ens religatum ,
33
que deve a possibilidade da sua plena realização a Deus, que é bem transcendente e
perfeito. Neste sentido, o pensamento da nossa própria morte não só não nos impede de ter
esperança, mas é, ou pode ser, um elemento importante que reforça a nossa percepção
íntima de que aquilo que esperamos escapa às imagens tangíveis de uma vida no mundo,
vai além de quaisquer cálculos que possamos realizar e está fora do nosso controle.

A condição do homem na terra é a de buscar, de tender além, de esperar, de


planejar, de esperar: “A condição de estar em viagem representa a constituição mais íntima
do ser de uma criatura. É o ‘ainda não’ intrínseco e entitativo das coisas criadas.” 34
A
esperança humana contém vestígios de algo ainda não definitivamente realizado, mas que
ansiamos, a marca da eternidade a que aspiramos na história. 35
E é evidente que a
esperança está entrelaçada com o desejo de felicidade, que é característico do ser humano e
ao qual a filosofia clássica dá tanta importância; o desejo de felicidade, em última análise, é
36

o desejo de eternidade. 37

Resumo do Capítulo 19

A pessoa humana é um ser histórico graças à sua liberdade. Precisamente porque é


livre, a pessoa pode agir de uma forma que não é determinada exclusivamente pela
natureza, pois enquanto os vestígios da passagem do tempo se encontram em tudo o que
existe, só a pessoa humana pode narrar a história da sua vida. O indivíduo vive sua
temporalidade tendo como referência o passado, o presente e o futuro, vivenciando o
passado com memória, o presente com atenção e o futuro com expectativa. Para se realizar,
a pessoa deve manter uma relação correta com estas três “etapas” do tempo: não pode
buscar refúgio apenas nas lembranças do passado, não pode preocupar-se apenas com o
instante presente e não pode viver sonhando apenas com o futuro. Contudo, a pessoa
humana está constantemente orientada para o futuro, e isto é um sinal do seu inerente
desejo de eternidade, da sua esperança de uma felicidade mais plena e duradoura.

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Notas finais

Prefácio

1. 1. “Tornei-me uma questão para mim mesmo.” Agostinho, Confissões , 10, 33,
50.
2. 2. Platão, Teeteto , 174 B; no diálogo essas palavras são atribuídas a Sócrates.

3. 3. M. Heidegger, Kant und das Problem der Metaphysik , em Gesamtausgabe. I.


Abteilung: Veröffentlichte Schriften 1910–1976 , volume 3 [Klostermann: Frankfurt am Main
1991, p. 209]. Neste contexto, Heidegger refere-se numa nota de rodapé à obra de Max
Scheler, Die Stellung des Menschen im Kosmos .

4. 4. Cf. M. Buber, Entre Homem e Homem , traduzido por Ronald Gregor Smith.
[Londres — Nova York: Routledge, 2002] (o livro foi publicado pela primeira vez em
alemão em 1954); G. Marcel, L'homme problématique . Paris: Aubier-Montaigne 1955. Além
desses dois textos famosos, outros livros de antropologia filosófica usaram a mesma
expressão no título. Uma breve análise da atual desintegração cultural do homem pode ser
encontrada em S. Palumbieri, L'uomo, questa meraviglia. Antropología filosófica I. Trattato
sulla costituzione antropologica [Roma: Urbaniana University Press, 1999, pp. 27–36].

5. 5. Agostinho, Sermão 46, 27.

6. 6. Platão, Teeteto , 176 a.C. No texto, Sócrates está falando de Deus, que é
sempre “supremamente justo”.

Capítulo 1

1. 1. Há também a antropologia fisiológica , ou física , que trata dos traços


somáticos dos indivíduos, e a paleoantropologia , que estuda restos humanos fossilizados.
Numa perspectiva ainda mais especializada, existe também a antropologia criminal .

2. 2. Cfr. S. Palumbieri, L'uomo, questa meraviglia: Antropología filosófica I:


Trattato sulla costituzione antropologica (Roma: Urbaniana University Press, 1999), 51–52.

3. 3. A expressão antropologia filosófica é utilizada para designar correntes


filosóficas muito diferentes umas das outras. Uma visão geral interessante é encontrada em
E. Conti, “Antropologia filosófica in Italia ”, “La Scuola Cattolica”, 31–74 (2004).
4. 4. Mounier faz uma observação útil sobre o assunto: “Não é verdade, então,
que existam pedras, existam árvores, existam animais e existam pessoas humanas, nada
mais que árvores autopropulsoras ou animais mais astutos que outros. A pessoa não é um
objeto (mesmo o objeto mais maravilhoso do mundo) que entendemos como entendemos
outros objetos, de fora. É a única realidade que somos capazes de conhecer e, ao mesmo
tempo, construir a partir de dentro” (E. Mounier, Personalism [New York: Routledge & Paul,
1970], 11).

5. 5. Isto é evidente, entre outros lugares, no já mencionado livro de E. Mounier,


Personalismo .

6. 6. Uma breve exposição recente da relação entre fé e razão encontra-se no


Beato. João Paulo II, carta encíclica Fides et Ratio (14 de setembro de 1998).

Capítulo 2

1. 1. Cfr. S. Palumbieri, L'uomo, questa meraviglia: Antropología filosófica I:


Trattato sulla costituzione antropologica (Roma: Urbaniana University Press, 1999), 149.

2. 2. Aristóteles, De Anima , II 4, 415 b 13.

3. 3. Cf. J. Vicente Arregui e J. Choza, Filosofia del hombre: Una antropología de la


intimidad (Madrid: Rialp, 1991), 59–60.

4. 4. Tomás de Aquino, Summa Contra Gentiles , l. IV, c. 11, n. 1: “ Quanto aliqua


natura est altior, tanto id quod ex e a emanat, magis ei est intimum .”

5. 5. Podemos dizer que imanência e transcendência são correlativas no sentido


de que uma capacidade superior de imanência corresponde a uma capacidade superior de
transcendência. Sobre este assunto, ver Tomás de Aquino, Quæstio Disputata De Anima , a.
13, c. Voltaremos ao assunto de um ponto de vista existencial no Capítulo 14.

6. 6. Ibidem : “ Actio enim animæ transcendit actionem naturæ in rebus


inanimatis operantis .”
7. 7. Tomás de Aquino afirma que a procriação é a mais perfeita das operações
vegetativas e que está próxima da vida sensível porque abre o ser vivo à realidade externa:
cf. Suma Teológica , I, q. 78, a. 2, c.

8. 8. Nas plantas, a abertura é muito semelhante à exterioridade (isto é, o


simples contacto externo) precisamente devido ao seu baixo nível de imanência. Somente a
abertura “de dentro” pode ser chamada de “transcendência”, e não a mera “transitividade”
na definição dada acima. Mais uma vez, a estreita ligação entre imanência e transcendência
é evidente.

9. 9. A realidade corpórea é a realidade física, ou seja, a realidade localizada


num tempo e espaço específicos.

10. 10. Tomás de Aquino, In De Anima , l. 2, lec. 5, n. 5: “ Secundum esse materiale,


quod est per materiam contractum, unaquæque res est hoc solum quod est, sicut hic lapis, non
est aliud quam hic lapis: secundum vero esse immateriale, quod est amplum, et quodammodo
infinitum, inquantum non est per materiam terminatum, res non solum est id quod est, sed
etiam est quodammodo alia .”

11. 11. Cf. Aristóteles, De Anima , III 8, 431 b 21.

12. 12. Cf. M. Artigas e JJ Sanguineti, Filosofia della natura (Florença: Le Monnier,
1989), 217–236.

13. 13. A não distinção entre as partes não deve ser confundida com
simplicidade. Deus é simples, mas não inerte ou uniforme; ele vive da maneira mais
exaltada. Por outro lado, todas as coisas criadas são compostas e a sua simplicidade é,
portanto, sempre relativa. De modo geral, o que determina a perfeição da vida não é a
multiplicidade das partes, mas a ordem intrínseca entre elas.

14. 14. Cf. Tomás de Aquino, Quæstio Disputata De Veritate , q. 22, a. 3,c; Suma
Contra Gentios , II, 48, n. 3.

15. 15. À luz da Revelação cristã sabemos que todo o universo foi criado por
Deus e, portanto, tem nele a sua origem. Deus poderia ser descrito como um Artista, o
“Construtor” do mundo, mas ele está em um nível infinitamente superior ao dos seres
criados porque tudo e todas as coisas vêm dele.

16. 16. Deve, no entanto, ser reiterado que externamente, ao nível


fenomenológico, pode não haver diferença discernível. Somente transcendendo os
fenômenos em busca de seu fundamento, ou origem, é que a diferença efetiva entre as
coisas artificiais e as naturais se torna evidente.

17. 17. Cfr. Aristóteles, De Anima , II, 3, 414a 29–415a 13; Tomás de Aquino,
Summa Theologiæ , I, q. 78, a. 1.

18. 18. Cfr. Tomás de Aquino, Summa Theologiæ , I, q. 78, a. 2, c.

19. 19. Como Movia observa com referência à filosofia de Aristóteles, “A alma
inferior é uma condição para a existência da superior, e esta última contém potencialmente
a primeira, isto é, também é capaz de desempenhar as suas funções” (G. Movia,
“Introdução” a Aristóteles, L'anima , 21 [Milão: Bompiani, 2001]). “Daí derivam duas
consequências muito importantes: a primeira é que o homem não tem três almas, mas uma
alma única e única. A segunda é que a alma intelectiva difunde, por assim dizer, o seu teor
espiritual também na dimensão sensorial e corporal do homem” ( ibid ., 45).

Capítulo 3

1. 1. Ele discute isso, sobretudo, no sétimo e oitavo livros de sua Metafísica .

2. 2. Aristóteles negou que a realidade fosse puro movimento aleatório, como


Heráclito afirmava que era, ou mera estabilidade rígida, que era a visão de Parmênides.

3. 3. Estamos falando aqui de coisas materiais, sujeitas a mudanças; portanto,


não incluímos os anjos ou, muito menos, Deus.

4. 4. Contudo, como veremos, ele não é “meramente” natural.

5. 5. Tenha em conta as explicações que demos na secção 3 do último capítulo.


6. 6. Um resumo claro do pensamento aristotélico sobre este assunto é
encontrado em C. Fabro, L'Anima: Introduzione al problema dell'uomo (Segni: Edivi, 2005),
114-115.

7. 7. Aristóteles, De Anima II, 1, BK 412, a 27; cf. ibid. , 412, b 5.

8. 8. Comentando estas noções, Basti enfatiza que matéria e forma não devem
ser entendidas como dois termos irredutíveis em aparente contraste com a singularidade
das coisas existentes; designam as “relações constitutivas” das coisas existentes no sentido
de que, devido à sua relação causal, uma coisa existente tem uma natureza específica; cf. G.
Basti, “ Dall'informazione allo spirito: abbozzo di una nuova antropología ”, em L'anima , 48
(Milão: Mondadori, 2004).

9. 9. S. Vanni Rovighi, Uomo e natura: Appunti per una antropología filosófica


(Milão: Vita e Pensiero, 1980), 176.

10. 10. Aristóteles, De Anima II, 2, BK 414, a 12–13; cf. ibid. , 413, b 11.

11. 11. Ver J. Villanueva, Intorno al body-mind problem , “Acta Philosophica”, 1/3
(1994), 135–143; para esclarecimentos adicionais úteis, cf. L. Borghi, L'antropología
tomista e il body-mind problem (alla ricerca di un contributo mancante), “Acta
Philosophica”, II/1 (1992), 1279–292; JJ Sanguineti, Filosofia della mente: Una prospettiva
ontologica e antropologica (Roma: Edizioni Università della Santa Croce, 2007), capítulo 3.

Capítulo 4

1. 1. Cfr. Aristóteles, De Anima , II 1, 412 b 21–22.

2. 2. A forma e a matéria não são objeto dos nossos sentidos, mas apenas do
nosso intelecto.

3. 3. Esta relação é tão estreita que a modificação de uma parte implica a


mudança das outras.
4. 4. Por esta razão, doenças físicas em certas partes podem causar disfunções
mais ou menos graves e até a morte do indivíduo.

5. 5. Cf. Tomás de Aquino, Quæstio Disputata De Anima , q. un., a. 7, c.

6. 6. Esta afirmação chegou até nós através de Aristóteles, De Partibus


Animalium , IV 10, 687 a 7. Cf. GS Kirk, JE Raven e M. Schofield, The Presocratic Philosophers:
A Critical History with a Selection of Texts (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1983),
383, fragmento 508.

7. 7. Aristóteles, De Anima , III 8, 432 a 1–2: “A alma é análoga à mão; pois assim
como a mão é uma ferramenta de ferramentas, a mente é a forma das formas.” Ver também
Tomás de Aquino, In De Anima , l. 3, lectio 13, n. 4.

8. 8. Tomás de Aquino, Summa Theologiæ , I-II, q. 5, a. 5, anúncio 1; cf. ibid. , eu,


q. 76, a. 5, ad 4. Uma forma mais desenvolvida da mesma ideia surge novamente muitos
séculos depois em Arnold Gehlen, que acentua a “precariedade” ou “incompletude” inicial
do homem em relação aos outros animais, a fim de destacar a posição única que o homem
ocupa. o indivíduo humano tem no mundo (cf. A. Gehlen, Man, His Nature and Place in the
World [Nova York: Columbia University Press, 1988], 194).

9. 9. Cfr. Tomás de Aquino, Summa Theologiæ , I, q. 91, a. 3, anúncio 3; JC Eccles,


Evolution of the Brain: Creation of the Self (Londres e Nova York: Routledge, 1989), 73–99.

10. 10. Isto demonstra a natureza específica da biologia como disciplina


autónoma e a sua irredutibilidade à física ou à química.

11. 11. Neste ponto, a distinção entre corpos naturais e coisas artificiais torna-se
mais evidente: as operações de uma máquina não podem ser comparadas com os atos
cognitivos ou voluntários de uma pessoa. Mesmo os protótipos recentes de robôs são
meros autômatos que reproduzem apenas as características da atividade humana. Assim,
por exemplo, os cálculos que podem ser realizados por um computador não podem ser
chamados de “conhecimento” em sentido estrito, nem os seus movimentos podem ser
chamados de “inclinações”. Examinaremos mais de perto a imaterialidade destas operações
nos Capítulos 8 e 9.

12. 12. Sabemos que outros animais podem perceber dados dos sentidos que o
homem não consegue. Alguns, de facto, podem “ver” o calor do corpo, outros ouvir sons de
frequência muito alta, etc. No entanto, o mundo em que o homem vive seria completamente
diferente – talvez nem mesmo fosse “humano” – se as suas capacidades sensoriais fossem
diferentes das os que ele tem.

13. 13. Obviamente, isto não é verdade da mesma forma para todas as fábricas:
algumas têm um maior grau de especialização, outras um menor.

14. 14. Cf. Aristóteles, De Anima , II 12, 424 a 16–424 b 21.

15. 15. Por exemplo, eles não “percebem” o quente ou o frio, mas “tornam-se”
quentes ou frios. Cf. Tomás de Aquino, Sententia Super De Anima , lib. 2, l. 24, n. 7.

16. 16. Aqui vale a pena citar esta eficaz passagem de Sciacca: “O homem é uma
luz de inteligência e razão, de intuição e discurso e vontade, mas também de sangue,
músculos, nervos e ossos. Um gesto da mão, um piscar de olhos, uma careta ou um sorriso,
lágrimas ou indiferença, um olhar, um encolher de ombros, qualquer movimento expressa
um pensamento, um sentimento, uma repulsa, uma dor, um prazer, sempre algo de sua vida
emocional ou volitiva” (MF Sciacca, L'uomo questo “squilibrato,” [Palermo: L'Epos, 2000],
78).

17. 17. Como veremos no Capítulo 12, seria errado considerar a sua relação
como algo “acidental” porque isso implicaria uma forma de dualismo (espiritual ou
material).

18. 18. As diversas causas são explicadas em Aristóteles, Metafísica , V 2, 1013 a


24–1014 a 25.

19. 19. Uma questão que tem dado origem a muita especulação é a da
“localização” da alma. Obviamente, não está “localizado” no corpo como um objeto físico
que ocupa um determinado espaço. Pelo contrário, está “localizado” no corpo em virtude da
sua causalidade: o corpo recebe toda a sua perfeição da alma e a alma age e se mostra
através do corpo. Neste sentido, deve-se afirmar que a alma está localizada em todo o corpo
e em todas as partes dele. Cf. Tomás de Aquino, Summa Theologiæ , I, q. 76, a. 8.

20. 20. Cf. ibid. , eu, q. 91 a. 3 c.

21. 21. Cf. S. Palumbieri, L'uomo, questa meraviglia: Antropología filosófica I:


Trattato sulla costituzione antropologica (Roma: Urbaniana University Press, 1999),
103–105. As diversas perspectivas no estudo do corpo estão bem apresentadas em MT
Russo, Corpo , saudação, cura: Linee di antropologia biomedica (Soveria Mannelli:
Rubbettino, 2004), 75–131.

22. 22. Cfr. E. Husserl, Meditações Cartesianas: Uma Introdução à Fenomenologia


(Nova York: Springer, 1977), 120 e seguintes; id ., Ideas Pertaining to a Pure Phenomenology
and to a Phenomenological Philosophy (Haia e Boston: Kluwer Academic Publishers, 1989),
livro II, seção I, capítulo III; seção II, capítulo III; livro III, capítulo I §§ 2–3.

23. 23. Cf. M. Scheler, Formalismo em Ética e Ética Não-formal de Valores: Uma
Nova Tentativa em Direção à Fundação de um Personalismo Ético (Evanston, IL:
Northwestern University Press, 1985), 398–424.

24. 24. Nesta seção e na próxima faremos referência aos seguintes textos, cuja
leitura é aconselhável: M. Artigas, Le frontiere dell'evoluzionismo (Milão: Ares, 1993); JC
Eccles, Evolução do Cérebro: Criação do Eu , cit.; F. Facchini, “ Uomo, identità biologica e
culturale ”, em Dizionario interdisciplinare di scienza e fede , Vol. 2, 1462–1483 (Roma: Città
Nuova e Urbaniana University Press, 2002). A informação bibliográfica encontrada no
Portale di Documentazione Interdisciplinare di Scienza e Fede ( www.disf.org ) também é
muito útil.

25. 25. Em 26 de abril de 1985, no final de um simpósio sobre “A fé cristã e a


teoria da evolução”, o Beato. João Paulo II explicou: “Não há obstáculo para uma fé na
criação corretamente compreendida ou para um ensino da evolução corretamente
compreendido. Na verdade, a evolução pressupõe a criação. A criação surge à luz da
evolução como um acontecimento que se prolonga no tempo — como uma creatio contínua
— no qual Deus se torna visível aos olhos do crente como ‘Criador do céu e da terra’” (B.
João Paulo II, Insegnamenti , vol. VIII, 1 [1985] [Cidade do Vaticano: Libreria Editrice
Vaticana, 1986], 1132).

26. 26. Uma breve visão geral da situação pode ser encontrada em J. Villanueva,
Le spiegazioni Scientifiche dell'evoluzione, “Acta Philosophica”, 1/8 (1999), 135–149. Sobre
os limites teóricos de certas doutrinas evolucionistas, ver R. Spaemann, “ Essere ed essere
dinuto: o que é que explica a teoria da evolução? ”em Natura e ragione: Saggi di antropología
(Roma: Edizioni Università della Santa Croce, 2006), 41–65.

27. 27. Como observa Facchini, a compreensão do processo de hominização deve


estar associada à questão da animação, à qual retornaremos no capítulo 12: “No caso da
animação, há uma intervenção de Deus criador no momento em onde a organização de uma
forma viva é alcançada de modo a ter as características da vida humana” (F. Facchini,
Origini dell'uomo ed evoluzione culturale: Profili Scientifici, filosofici, religiosi [Milão: Jaca
Book, 2002], 266). Assim, “a verdadeira alternativa não é entre evolução e criação. Pelo
contrário, entre uma visão de um mundo em evolução, dependente do Deus criador
transcendente, de acordo com o seu plano, e uma visão de um mundo em evolução,
auto-suficiente e capaz de criar e transformar-se por uma espécie de poder e inteligência
imanentes” ( ibid. , 267). O livro é uma obra competente e séria, embora a compreensão de
algumas das ideias que contém possa exigir um certo grau de formação teológica.

capítulo 5

1. 1. Cfr. Aristóteles, De Anima , II 1, 412 a 20 e seguintes; Tomás de Aquino,


Summa Theologiæ , I, q. 48, a. 5, c.

2. 2. Em geral, não se faz distinção entre “faculdades do ser” e “faculdades da


alma”. A alma é o primeiro princípio de funcionamento, mas, como veremos a seguir, o
sujeito final das ações é o próprio vivente, não suas partes; isto é, quem age é o vivente e
não uma de suas faculdades ou sua alma.

3. 3. Cf. Tomás de Aquino, Summa Theologiæ , I, q. 77, a. 1, c; ver também


Aristóteles, De Anima , II 1, 413 a 1–10.

4. 4. Aqui não estamos considerando o ato de ser aquilo, embora não seja um
segundo ato, também não se pode dizer que seja uma forma, seja substancial ou acidental.

5. 5. A qualidade, um dos acidentes de que fala Aristóteles, pode, por sua vez,
ser de três tipos: potências operativas (que estamos discutindo aqui), qualidades afetivas e
hábitos. Visto que o acidente de qualidade aperfeiçoa a substância através de sua forma, as
faculdades podem ser chamadas de “acidentes da alma” ou “acidentes do ser”.

6. 6. Cf. Tomás de Aquino, Summa Theologiæ , I, q. 77, a. 5, c.

7. 7. Cf. id , In De Anima , l. 2, lec. 2, n. 8; aula. 24, n. 5.

8. 8. Cf. ibid , l. 1, lec. 8, n. 5.

9. 9. Sciacca observa: “Sentido, inteligência, razão, vontade, etc., são sem dúvida
formas distintas de atividade, cada uma tendo seu próprio objeto, mas o sentido não exclui,
como tal, a presença das outras formas, de modo que aquele que sente (ou razões, ou
desejos, etc.) sentidos com todo o seu eu. Somente o intelectualismo abstrato pode
considerar as “faculdades” não apenas como distintas umas das outras, mas como agindo
individualmente, como se o resto não interviesse; assim, a verdade seria objeto apenas da
razão , a beleza apenas dos sentidos , etc. . . Toda a vida, mesmo a vida puramente biológica,
procede por inclusão, e cada um dos seus atos é uma síntese; as abstrações são para os
filósofos, não para a existência concreta” (MF Sciacca, L'uomo questo “squilibrato” [Palermo:
L'Epos, 2000], 22).

10. 10. Cf. Aristóteles, De Anima , I 4, 408 b 14–15.

11. 11. O caso da alma humana é, no entanto, muito especial porque, sendo
espiritual, pode subsistir sem o corpo após a morte (voltaremos a isto no Capítulo 12). No
entanto, nem mesmo quando está neste estado a alma sozinha pode ser considerada um
homem perfeito. Cf. Tomás de Aquino, Quæstio De Potentia , q. 9, a. 2, 14 ad: “A alma
separada do corpo pela morte não é . . . uma pessoa." Ver também SL Brock, “ Tomaso
d'Aquino e lo statuto fisico dell'anima spirituale ”, em L'anima (Milão: Mondadori, 2004),
69–72.

12. 12. Cf. Aristóteles, De Anima , II 4, 415 a 14–22; Tomás de Aquino, Summa
Theologiæ , I, q. 77, a. 3, c.

13. 13. Obviamente, aqui só será dada consideração ao homem e não aos anjos
ou a Deus.

14. 14. Cf. Tomás de Aquino, Quæstio De Anima , q. un., a. 7, c.

Capítulo 6

1. 1. Cfr. Tomás de Aquino, In De Anima , l. 2, lec. 24, n. 7.

2. 2. Cf. id , Summa Theologiæ , I, q. 14, a. 1, c.

3. 3. Cf. ibid. , eu, q. 56, a. 2, anúncio 3.

4. 4. Aristóteles, De Anima , III, 8, 431 b 21.

5. 5. Tomás de Aquino, In De Anima , l. 2, lec. 5, n. 5. Ver Capítulo 2, nota 10.

6. 6. Cf. Aristóteles, Ética a Nicômaco , VI, 4, 1140 a. Para uma explicação e


avaliação da concepção aristotélica, consulte A. Malo, Il senso antropologico dell'azione:
Paradigmi e prospettive (Roma: Armando, 2004), 22–51.

7. 7. Tomás de Aquino, Summa Theologiæ , I, q. 44, a. 4, c: “ Omne agens agit


propter finem. ” Um estudo profundo da concepção tomista pode ser encontrado em SL
Brock, Action and Conduct: Thomas Aquinas and the Theory of Action (Edinburgh: T & T
Clark, 1998).

8. 8. São Tomás dá o exemplo da distinção entre “iluminar” algo e “brilhar”. Cf.


Quæstio De Veritate , q. 8, a. 6, c.
9. 9. O italiano distingue entre multa e término ; Alemão entre Ende e Ziel . Em
inglês é possível fazer uma distinção entre “objetivo”, como propósito, e “fim”, como
conclusão de algo.

10. 10. Daí a palavra “perímetro”, o limite externo de uma superfície ou volume.

11. 11. Daí a palavra “teleologia”, a doutrina da evidência de propósito.

12. 12. Cf. Aristóteles, Metafísica , IX 6, 1048 b 18 ss.

13. 13. Ibid ., IX 6, 1048 b 23–24.

14. 14. Cf. Aristóteles, De Anima , II 12, 424 a 18–19.

15. 15. Aqui não levamos em conta as formas subsistentes (isto é, os anjos), uma
vez que a sua existência é uma questão de fé e, portanto, o seu estudo é da competência da
teologia.

16. 16. Cfr. SL Brock, Tommaso d'Aquino e o estatuto físico da animação espiritual ,
cit., 71.

17. 17. Mantendo a abordagem analítica utilizada nestes primeiros capítulos,


examinaremos aqui o conhecimento sensorial nos aspectos específicos que o distinguem do
conhecimento intelectual. Contudo, como já observamos repetidamente, a experiência de
vida do homem é de profunda unidade. Sciacca diz: “O corpo move o espírito, e o espírito o
corpo. Não há movimento espiritual que não seja comunicado ao corpo, que imediatamente
o sente e expressa através de sentimentos internos e sinais externos. Não há sensação
consciente que não envolva também o espírito e o faça mover-se. A sensação é
corporal-espiritual; sentir é 'pensar sentindo' e pensar é 'sentir pensando', como disse
Plotino” (MF Sciacca, L'uomo questo “squilibrato” [Palermo: L'Epos, 2000], 82).

18. 18. Sobre o tema do conhecimento sensorial, uma explicação muito clara
pode ser encontrada em JJ Sanguineti, Introduzione alla gnoseologia (Florença: Le Monnier,
2003), 45-82.

19. 19. Os limites superior e inferior dentro dos quais os fenômenos sensoriais
podem estimular um órgão são chamados de capacidade “limiar” de cada órgão.
20. 20. Cf. Tomás de Aquino, In De Anima , l. 2, lec. 24, n. 5.

21. 21. Não basta que haja uma troca química entre a realidade material e o
órgão. Isso acontece nas plantas, mas seu comportamento não mostra que elas possuam o
que poderia ser chamado de conhecimento.

22. 22. Aristóteles, De Anima , III 2, 425 b 26. Em outro lugar Aristóteles é ainda
mais conciso: “O conhecimento real é idêntico ao seu objeto” ( ibid , III 7, 431 a 1); “A mente
que está pensando ativamente são os objetos que ela pensa” ( ibid , III 8, 431 b 23).

23. 23. Lembre-se das explicações dadas no Capítulo 3.

24. 24. Deve-se especificar ainda que nem todas as qualidades (por exemplo, a
figura que algo tem, uma potência operativa, um hábito, etc.) podem alterar o órgão dos
sentidos, mas apenas as chamadas “qualidades afetivas”; cf. Tomás de Aquino, Summa
Theologiæ , I, q. 77, a. 3.

25. 25. Cf. ibid. , eu, q. 78, a. 3, c.

26. 26. Por exemplo, alguns defendem que a propriocepção (a percepção, através
de receptores específicos, dos movimentos do próprio corpo) constitui outro sentido.
Outros falam de “sentidos cutâneos” e distinguem o sentido do tato da sensação de dor e da
sensação de temperatura: cf. W. Arnold, HJ Eysenck e R. Meili, Encyclopedia of Psychology
(Nova York: The Seabury Press, 1972), 688. Por sua vez, Peter Gray sustenta que existe
uma sensação de dor, mas depois atinge um nível um tanto desconcertante. conclusão:
“Qualquer tentativa de definir um número exato é inteiramente arbitrária porque aquilo
que para uma pessoa é um único sentido para outra pode consistir em dois ou mais
sentidos” (P. Gray, Psicología [Bologna: Zanichelli, 1997], 299 ) . Aqui, sentimos, seria
claramente útil unir a precisão conceitual da filosofia com os fundamentos experimentais
da ciência.

27. 27. Cfr. Tomás de Aquino, Summa Theologiæ , I, q. 76, a. 5,c; ibid. , eu, q. 91, a.
3, ad 1. Na verdade, hoje sabemos que não apenas as qualidades do paladar e do olfato, mas
também do som e da luz são, na verdade, estados particulares da matéria (ondulatório ou
corpuscular). Poderíamos, então, pensar em termos de uma espécie de “impacto” dessas
qualidades com o órgão dos sentidos e, portanto, a assimilação de todos os sentidos com o
sentido do tato.

28. 28. Contudo, deve também ser dito que a imediação do contacto tem graus:
podemos sentir a temperatura de um objecto sem ter de lhe tocar, mas não podemos dizer
se está molhado ou seco sem lhe tocar.

29. 29. Cfr. Tomás de Aquino, Summa Theologiæ , I, q. 76, a. 5,c; Sentença De
Anima , lib. 2, l. 19, n. 4–5. Por exemplo, o sentido do tato é pouco desenvolvido em animais
com esqueleto externo (insetos e aracnídeos) e naqueles cuja pele é coberta por escamas
ou notavelmente espessa (como os grandes répteis, hipopótamos e rinocerontes, em
muitos peixes e em crustáceos). Referindo-se a Aristóteles, São Tomás relaciona o
desenvolvimento do sentido do tato à inteligência.

30. 30. Cfr. Aristóteles, De Anima , II 10, 422 a 8–422 b 16.

31. 31. Cf. J. Jiménez Vargas e A. Polaino-Llorente, Neurofisiología psicológica


fundamental (Barcelona: Editorial Científico-Médica, 1983), 147.

32. 32. Cf. ibid. , 146-147.

33. 33. Cf. Aristóteles, De Anima , II 8, 419 b 4 ss.

34. 34. Cfr. Tomás de Aquino, Summa Theologiæ , I, q. 78, a. 3, c.

35. 35. A ideia de “duração” é mais relevante para um som do que para uma
imagem. Poderíamos dizer que um som instantâneo seria imperceptível, assim como um
movimento sem tempo.

36. 36. Cf. Aristóteles, De Anima , II 8, 419 b 18.

37. 37. São Tomás, a quem fizemos repetidas referências, acreditava que a luz
não trazia nenhuma forma de mudança material (cf. Tomás de Aquino, Summa Theologiæ ,
I, q. 78, a. 3 c). A ciência do século passado provou que a luz, embora seja uma forma de
onda, é composta de partículas chamadas “fótons”, e por isso devemos reconhecer que a
iluminação sempre envolve uma modificação, por mínima que seja, na coisa iluminada.
38. 38. Cf. Tomás de Aquino, Sententia De Anima , lib. 2, l. 14, n. 19–20.

39. 39. Cfr. ibid. , lib. 2, l. 13, n. 2.

40. 40. Cf. Aristóteles, De Anima , III 1, 425 a 15–17.

41. 41. Cfr. Tomás de Aquino, Sententia De Anima , lib. 2, l. 13, n. 5.

42. 42. Precisamente porque a substância e a causalidade são o objecto do


intelecto, certas teorias que procuraram reduzir o conhecimento humano à experiência
sensorial, como o empirismo britânico dos séculos XVII e XVIII (Berkeley, Locke e Hume),
criticaram estas noções.

Capítulo 7

1. 1. A terminologia clássica de “sentidos externos” e “sentidos internos” não se


refere ao facto de os órgãos dos sentidos externos estarem no exterior do corpo, enquanto
os dos sentidos internos estão no interior. Em vez disso, sugere que os primeiros são
diretamente ativados por um estímulo físico, químico ou mecânico, enquanto os últimos
entram em ação após a recepção de dados sensoriais externos: cf. C. Valverde, Antropologia
filosófica (Valência: Edicep CB, 2000), 149.

2. 2. Tomás de Aquino, Summa Theologiæ , I, q. 78, a. 4, c.

3. 3. Esta é a lista dada por Aristóteles ( De Anima , III, 1–3) e posteriormente


desenvolvida por Tomás de Aquino (cf. Summa Theologiæ , I, q. 78, a. 4, c). Os estudiosos
hoje usam terminologia variada; por exemplo, alguns falam em “percepção” para se referir
ao senso comum ou incluem poderes cogitativos no estudo da aprendizagem; outros
diversificam estes sentidos ou consideram-nos todos juntos na sua actividade conjunta (cf.
JL Pinillos, Principios de psicología [Madrid: Alianza, 1988], 217-404). A análise de
Aristóteles ainda retém grande valor no estudo da experiência sensorial interna e nos ajuda
a compreender a unidade do homem em suas ações.
4. 4. Cf. Tomás de Aquino, Summa Theologiæ , I, q. 78, a. 4, c. Os aspectos
apreendidos por esses dois sentidos são chamados de "intenções" ( intenções ) por São
Tomás: cf. Tomás de Aquino, Summa Contra Gentiles , l. II, c. 60, n. 1. É por isso que os
poderes cogitativos e a memória são chamados de sentidos intencionais , enquanto o senso
comum e a imaginação são chamados de sentidos formais porque se referem diretamente às
formas dos sentidos: cf. C. Fabro, Percezione e pensiero (Brescia: Morcelliana, 1962),
193–195.

5. 5. Esta é a conclusão que emerge das experiências em animais e dos estudos


médicos no homem. Pode-se observar, de fato, que uma lesão em uma área específica do
cérebro pode levar à perda da memória, da imaginação, da avaliação ou da capacidade de
dar unidade às sensações ou de distingui-las. Estas coisas, porém, não envolvem
exclusivamente uma única área. Hoje, de facto, a neurofisiologia tende a ver o cérebro como
uma espécie de “rede” e não como um agrupamento de “regiões” ou “áreas”, porque existe
uma interacção quase completa tanto entre as partes do cérebro como entre elas e o
sistema nervoso.

6. 6. Cf. Tomás de Aquino, Sententia De Anima , lib. 2, l. 13, n. 8. Nesta passagem,


São Tomás também atribui ao bom senso a tarefa de “perceber que vivemos”. Sanguineti,
com toda a razão, em vez de falar de “senso comum”, usa o termo percezione integrale
(percepção integral), que pode parecer menos ambíguo hoje: cf. JJ Sanguineti, Introduzione
alla gnoseologia (Florença: Le Monnier, 2003), 57.

7. 7. Não é uma reflexão no verdadeiro sentido porque o bom senso não


conhece o seu próprio funcionamento, mas o de outras faculdades inferiores.

8. 8. Falamos aqui de “primeira aproximação” para sublinhar o facto de que


substância e causalidade são apreendidas de uma forma ainda vaga e imprecisa. Por isso,
em psicologia, esta operação é por vezes chamada de “organização primária dos dados
sensoriais”, para distingui-la do conhecimento mais perfeito dos poderes cogitativos, ao
qual se dá o nome de “organização secundária da percepção”: cf. C. Fabro, Percezione e
pensiero , cit., 108 ss., 193 ss.
9. 9. Cfr. H. Brown, Cérebro e Comportamento: Um Livro Didático de Psicologia
Fisiológica (Oxford: Oxford University Press, 1976), 149–274.

10. 10. O processamento destas formas é, de facto, denominado “imagem” ou,


para usar a terminologia clássica, “fantasia”. Mais tarde veremos que a unificação realizada
pelo intelecto é de nível superior, não sendo uma simples generalização, mas uma
“universalização”, ou seja, um conhecimento que é superior não tanto na amplitude do que
se conhece, mas na sua “compreensão” profunda.

11. 11. Cf. Aristóteles, De Anima , III, 3, 427 b 14–16.

12. 12. No sentido de que entendemos ou não entendemos, aquilo que foi
compreendido não pode ser falso. Não devemos confundir a compreensão de uma coisa
com o julgamento ou avaliação do que foi compreendido. Mais tarde, veremos a distinção
entre estas duas operações do intelecto.

13. 13. Cfr. Aristóteles, De Anima , III, 3, 428 a 6–10.

14. 14. Cf. ibid. , III 3, 429 a 1.

15. 15. Cfr. R. Jolivet, Tratado de Filosofia , Vol. II: Psicología (Brescia:
Morcelliana, 1958), 213.

16. 16. Cfr. ibid , 234, que cita o exemplo de Beethoven que continuou a compor
música mesmo depois de ficar surdo.

17. 17. Cfr. J. Vicente Arregui e J. Choza, Filosofia del hombre: Una antropología de
la intimidad (Madrid: Rialp, 1991), 185.

18. 18. Digamos novamente que a incompletude da unificação se deve ao fato de


que o senso comum unifica as sensações, mas não conserva as percepções. Essa
conservação é tarefa da imaginação.

19. 19. É por isso que às vezes usamos “imaginação” para nos referirmos apenas
à faculdade humana, enquanto a faculdade análoga nos animais é referida com o termo
“fantasia”.
20. 20. Pode-se argumentar que grande parte dos distúrbios mentais se devem à
falta de harmonização da imaginação com a vontade e o intelecto, ou seja, a uma espécie de
funcionamento “independente”. Isto explica em parte por que os desenhos e a narração de
sonhos são usados em testes clínicos: cf. J. Vicente Arregui e J. Choza, Filosofia del hombre:
Una antropología de la intimidad , cit., 187. Mais tarde, veremos que a relação entre a
imaginação sensorial e a esfera volitivo-racional não é de dependência ou de absoluta
domínio, mas de controle relativo.

21. 21. A importância de um desenho, ou de um esboço, nas artes e nas ciências é


evidente pelo facto de muitas vezes ser necessário produzir um modelo de uma obra antes
de a realizar. Neste campo, por exemplo, a ciência e a tecnologia fazem atualmente grande
uso de simulações computacionais.

22. 22. Cfr. R. Jolivet, Tratado de Filosofia: Vol. II: Psicología (Brescia: Morcelliana,
1958), 261–262.

23. 23. Esta teoria está de acordo com um facto da neurofisiologia: embora o
número de células do sistema nervoso — os neurónios — não aumente significativamente
após o nascimento (cerca de 100 mil milhões, com uma certa perda progressiva), a massa
encefálica aumenta quatro vezes antes de atingir a idade adulta. Isto se deve ao
crescimento dos dendritos e axônios, que são as partes do neurônio responsáveis por
receber e transmitir informações (isto é, o material biológico dos circuitos neuronais).

24. 24. A ideia de “arquivo” implica não só a unificação das formas, mas também
a sua conservação, que é função específica da imaginação.

25. 25. Cf. C. Fabro, Percezione e pensiero , cit., 196–201.

26. 26. Aristóteles, De Anima , III, 3, 427 b 21–25.

27. 27. Cfr. J. Vicente Arregui e J. Choza, Filosofia del hombre: Una antropología de
la intimidad (Madrid: Rialp, 1991), 189.

28. 28. Cfr. Tomás de Aquino, Summa Theologiæ , I, q. 78, a. 4, c.


29. 29. Voltaremos a este assunto no Capítulo 19, quando discutirmos a
temporalidade humana.

30. 30. Existem vários tipos de memória que envolvem diferentes áreas do
cérebro e do sistema límbico: a memória sensorial (o traço de curta duração do estímulo
sensorial no ouvido ou no olho, por exemplo), uma memória de curto prazo e uma memória
de curto prazo. memória de longo prazo (cf. P. Gray, Psicología [Bologna: Zanichelli, 1997],
399–436).

31. 31. Cf. KR Popper e JC Eccles, The Self and Its Brain (Nova York: Routledge,
1984), capítulos P4, E7.

32. 32. Voltaremos a este assunto no Capítulo 13.

33. 33. Para sublinhar esta distinção, São Tomás fala da memória nos animais e
da reminiscência no homem: cf. Tomás de Aquino, Summa Theologiæ , I, q. 78, a. 4 c.

Capítulo 8

1. 1. Tomás de Aquino, Summa Theologiæ , I, q. 75, a. 2, c. Cf. Aristóteles, De


Anima , III, 4, 429 a 13–429 b 6.

2. 2. Tomás de Aquino, Summa Theologiæ , I, q. 75, a. 2, ad 3. Como explica


Brock: “Embora a operação do intelecto no homem seja incorpórea per se , ela possui, no
entanto, uma ligação natural com o corpo devido ao fato de ocorrer em conjunto com a
operação dos sentidos”. (SL Brock, Tommaso d'Aquino e lo statuto fisico dell'anima spirituale
, cit., 79).

3. 3. Como explica Sanguineti, “Os conceitos são mediadores intencionais do


pensamento e. . . são objetos imanentes quo (por meio dos quais) a realidade é apreendida,
e não objetos quod do pensamento; isto é, eles não são o objetivo final da operação
objetivadora da compreensão” (JJ Sanguineti, Introduzione alla gnoseologia , cit., 85).

4. 4. Tomás de Aquino, Summa Theologiæ , I, q. 14, a. 2, anúncio 1.


5. 5. Aristóteles, Politics , I, 2: 1253 a 10–12. O texto grego usa o termo logos ,
traduzido como “fala”, e o termo phoné , traduzido como “voz”.

6. 6. Num certo sentido, ecoando as opiniões de Aristóteles, Heidegger escreve:


“Diz-se que o homem tem linguagem por natureza. Afirma-se que o homem, diferentemente
das plantas e dos animais, é o ser vivo capaz de falar. Esta afirmação não significa apenas
que, juntamente com outras faculdades, o homem também possui a faculdade da fala.
Significa dizer que somente a fala permite ao homem ser o ser vivo que é como homem. É
como quem fala que o homem é homem” (M. Heidegger, On the Way to Language [London
and New York: Harper & Row, 1971], 189). E acrescenta: “O homem não seria homem se
não fosse capaz de falar - de dizer 'é' - ininterruptamente, por qualquer motivo, com
referência a qualquer coisa, em várias formas, permanecendo a maior parte do tempo em
silêncio. Na medida em que a linguagem concede esse poder, o ser do homem repousa
sobre a linguagem.” Heidegger não concebe a linguagem apenas como a faculdade
expressiva do indivíduo; pelo contrário, embora tendo isto em conta, as suas ideias revelam
uma visão do homem cuja natureza não é permanente, mas essencialmente histórica.

7. 7. Cf. JC Eccles, Evolution of the Brain: Creation of the Self (Londres e Nova
York: Routledge, 1989), 71–78.

8. 8. Os estudos de Papousek de 1985 destacaram grandes diferenças entre


crianças e jovens chimpanzés. Enquanto os chimpanzés permanecem em grande parte
silenciosos, as crianças conversam constantemente. Os sons emitidos pelas crianças
deixadas sozinhas foram sistematicamente registrados e demonstraram que elas exerciam
constantemente suas capacidades, com melhora progressiva na pronúncia dos fonemas: cf.
M. Papousek, H. Papousek e M. Bornstein, “O ambiente vocal naturalista de bebês: sobre o
significado da homogeneidade e da variabilidade na fala dos pais”, em Percepção social em
bebês (Norwood, NJ: Allen Publishing Corp., 1985 ), 269–297. Esta situação já havia sido
extensivamente descrita em vários estudos psicolinguísticos que remontam ao início do
século passado. A chamada “fome de nomes” da criança surge no vigésimo terceiro mês de
vida, quando ela nomeia repetidamente os objetos que tem em mãos. Este não é
simplesmente um processo mecânico e mnemônico de aprendizagem, mas o início de uma
relação com o mundo objetivo (cf. E. Cassirer, An Essay on Man: An Introduction to a
Philosophy of Human Culture [Garden City, NY: Doubleday and Co ., 1953], 170–171).

9. 9. Cfr. E. Cassirer, Um Ensaio sobre o Homem , cit., 150; cf. também ibid , 48.

10. 10. Esta teoria sustenta que, para resolver o problema mente-corpo, é
necessário “eliminar” os conceitos pré-científicos do bom senso que a filosofia tem
utilizado até agora. Só assim será possível chegar a uma forma científica de
psiconeurofisiologia: cf. S. Nannini, “ Mente e corpo nel dibattito contemporaneo ”, em
L'anima , cit., 36–37. Outra teoria frequentemente associada à abordagem materialista é a
do funcionalismo.

11. 11. Uma contribuição recente e bem documentada para o tema é a de JJ


Sanguineti, Operazioni cognitiva: un approccio ontologico al problema mente-cervello, “Acta
Philosophica,” II / 14 (2005), 233–258; editado pelo mesmo autor, ver também a
bibliografia temática Filosofia della mente e scienza cognitiva, “Acta Philosophica,” II/14
(2005), 343–348.

12. 12. Sobre este assunto, ver a seguinte entrevista: JR Searle, “ L'irriducibilità
della coscienza: Intervista a cura di E. Carli ”, em L'anima , cit., 105–120.

13. 13. Uma visão geral concisa e útil do assunto pode ser encontrada em L.
Borghi, L'antropología tomista e il body-mind problem (alla ricerca di un contributo
mancante), “Acta Philosophica,” II/1 (1992), 279–292. Ver também JJ Sanguineti,
Introduzione alla gnoseologia , cit., 48–56.

14. 14. Cf. G. Basti, “ Dall'informazione allo spirito: Abbozzo di una nuova
antropología ”, em L'anima , cit., 41–65.

Capítulo 9
1. 1. A filosofia aristotélico-tomista define esta inclinação como apetite natural ,
do latim ad-petere , que significa “tender a”, “voltar-se para”.

2. 2. Para distingui-lo do apetite natural, na filosofia tomista esta inclinação é


denominada appetitus elicitus , ou seja, aquela que é despertada, ou atraída (do verbo latino
elicere ), pelo conhecimento do bem.

3. 3. Portanto, diferentemente do termo inclinação , o termo instinto refere-se à


origem do movimento espontâneo, ou tendência.

4. 4. Adotamos parcialmente a terminologia usada por JA García Cuadrado,


Antropología filosófica: Una introducción a la Filosofía del Hombre (Pamplona: Eunsa, 2001),
66. A filosofia aristotélico-tomista, por outro lado, fala, respectivamente, de apetite
concupiscível e de apetite irascível : cf. Tomás de Aquino, Summa Theologiæ , I, q. 81, a. 2, c.

5. 5. Sobre este assunto ver A. Malo, Antropologia dell'affettività (Roma:


Armando, 1999), Capítulo 4.

6. 6. A psicologia realiza uma análise muito detalhada das inclinações humanas.


Lersch, por exemplo, identificou um impulso para viver (do qual fazem parte o impulso para
agir e a inclinação ao prazer), inclinações associadas à própria individualidade (que incluem
o egoísmo, a inclinação ao respeito e a vontade de poder), e inclinações transitivas (entre
elas o impulso de produção, interesse e inclinações normativas e sociais): cf. P. Lersch, Der
Aufbau des Charakters (Leipzig: JA Barth, 1938), Capítulo 4 da seção geral. Discutiremos as
inclinações normativas e sociais no Capítulo 15, onde, no entanto, as chamaremos de
inclinações socializantes .

7. 7. A explicação dada por São Tomás sobre a relação entre intelecto e vontade,
com referência ao fim último do homem e aos meios para alcançá-lo, ainda é de
fundamental importância: cf. Tomás de Aquino, Quæstiones Disputatæ de Malo , q. 6.

8. 8. Do ponto de vista existencial, o indivíduo está sempre além daquele


momento inicial em que a inteligência tem prioridade “constitutiva” sobre a vontade.
Podemos reconstruir este momento do ponto de vista teórico, mas ele já passou e o que
temos que enfrentar é sempre uma realidade humana na qual as potências espirituais estão
implicadas juntas. Assim, é impossível identificar uma fase que seja puramente intelectiva
ou puramente volitiva.

9. 9. A ação consciente, conforme mencionada no texto, é diferente de uma ação


da qual temos consciência. Posso estar consciente dos processos digestivos que ocorrem
depois do almoço, mas não são ações conscientes no sentido acima mencionado. Portanto,
distinguimos entre ações humanas (ações conscientes no sentido acima) e ações do homem
(aquelas que estão além do meu controle direto, como digestão, crescimento,
envelhecimento e o surgimento involuntário de uma memória). As ações do homem, então,
são o que acontece no meu organismo físico-mental.

10. 10. Cf. A. Rodríguez Luño, Etica (Florença: Le Monnier, 1992), Capítulo 5; M.
Rhonheimer, La prospettiva della morale: Fondamenti dell'ética filosófica (Roma: Armando,
2006), Capítulo 2.

11. 11. Tomás de Aquino, Summa Theologiæ , I-II, q. 1, a. 1. Para sublinhar a


diferença entre o comportamento livre dos seres humanos e o comportamento dos animais,
São Tomás, com uso eficaz do latim e referindo-se a São João Damasceno, explica que,
enquanto os seres vivos dotados de inteligência “agem, ”aqueles dotados apenas de
conhecimento sensorial “são acionados” (“ non enim agunt, sed magis aguntur ”): cf. ibid. ,
I-II, q. 6, arg. 2.

12. 12. Embora muito breve e com algumas pequenas ambiguidades, uma visão
geral deste tópico pode ser encontrada em R. Vernaux, Psicología: Filosofía dell'uomo
(Brescia: Paideia, 1966), 189–198.

13. 13. Cfr. J. Cervós-Navarro, “ Libertà umana e neurofisiologia ”, em Le


dimensioni della libertà nel dibattito Scientifico e filosófico (Roma: Armando, 1995), 25–34.
Para referências a outras teorias decorrentes da neurofisiologia que têm sérias implicações
para a liberdade humana , ver LE Echarte, Limiti e classificação do novo campo da
Neuroetica: Identità, responsabilità, informazione e manipolazione del cervello, “Medic —
Metodologia didattica e innovazione clinica: Nuova Serie,” 2/12 (2004), 19–20.
14. 14. Cf. L. Polo, Quién es el hombre: Un espíritu en el tiempo (Madrid: Rialp,
1998), 116–117.

15. 15. O princípio da homeostase, que tem aplicações na física e na biologia,


indica o estado de equilíbrio estabelecido entre um estímulo externo e uma resposta
interior. Em oposição a Freud, Viktor Frankl destaca como este princípio é redutor em
relação ao homem porque ignora a sua teleologia (cf. VE Frankl, Man's Search for Meaning
[Boston: Beacon Press, 2006], 110).

16. 16. JC Eccles, Evolução do Cérebro: Criação do Eu , cit., 248.

17. 17. Cfr. KR Popper, O Universo Aberto: Um Argumento para o Indeterminismo


(Londres: Hutchinson, 1982), 128.

18. 18. Cfr. E. Cassirer, Um Ensaio sobre o Homem: Uma Introdução a uma
Filosofia da Cultura Humana (Garden City, NY: Doubleday and Co., 1953), 52–56.

19. 19. Na psicologia freudiana, por exemplo, embora nem a liberdade do


indivíduo nem o imperativo moral sejam negados em princípio, cria-se uma teoria que
exclui efetivamente o papel central da liberdade de ação: cf. A. Lambertino, “ Aspetti della
teoría freudiana dell'uomo ”, em Immagini dell'uomo: Percorsi antropologici nella filosofia
moderna (Roma: Armando, 1997), 63–76.

20. 20. Cf. VE Frankl, Homo patiens (Brezzo di Bedero: Salcom, 1979), 99.

21. 21. G. De Leo, “ Vuoto esistenziale e devianza minorile: Elementi per una lettura
psico-sociologica ”, em Giovani, vuoto esistenziale e ricerca di senso: La sfida della logoterapia
, (Roma: Las, 1998), 30.

Capítulo 10

1. 1. Um resumo útil pode ser encontrado em J. Vicente Arregui e J. Choza,


Filosofia del hombre: Una antropología de la intimidad (Madrid: Rialp, 1991), 223 ss.
2. 2. Sobre o assunto deste capítulo, muitos benefícios podem ser obtidos com a
leitura de A. Malo, Antropologia dell'affettività (Roma: Armando, 1999); para uma
explicação clara e concisa, ver também F. Rodríguez Quiroga, La dimensión afectiva de la
vida (Pamplona: Cuadernos de Anuario Filosófico, 2001).

3. 3. Como observa São Tomás, também podemos falar de afetos para nos
referirmos às operações da faculdade espiritual da vontade, mas no campo espiritual os
afetos são mais “ativos” e menos “passivos” porque não têm uma estrutura orgânica. base:
cf. Tomás de Aquino, Summa Theologiæ , I-II, q. 22, a. 3, c. É preciso ter em mente que o que
aqui chamamos de afetos, na antropologia tomista são chamados de “ paixões ” justamente
para sublinhar como o indivíduo toma consciência dessas reações como se as “sofresse” (do
verbo latino pati ) ou sofrendo sua influência: cf. M. Rhonheimer, A Perspectiva da
Moralidade: Fundamentos Filosóficos da Ética da Virtude Tomista (Washington, DC: The
Catholic University of America Press, 2011), 168–175.

4. 4. Alguns filósofos (como I. Kant em A Crítica do Juízo ) atribuíram à


afetividade ou ao sentimento o papel de “terceira faculdade” ao lado do intelecto e da
vontade. Mas do ponto de vista da antropologia clássica, os afetos são atos e não potências
operativas.

5. 5. Cf. Tomás de Aquino, Summa Contra Gentiles , I, 5, n. 2.

6. 6. Isto significa que os sentimentos nunca podem ser exclusivamente


subjetivos ou arbitrários. Como observa Lewis, o julgamento “eu gosto” não pode ser
reduzido ao julgamento “tenho sentimentos agradáveis”; pelo contrário, implica uma
referência objectiva à realidade: cf. CS Lewis, A Abolição do Homem (Londres: Fount, 1999),
1–16.

7. 7. Lembre-se do que explicamos no Capítulo 5.

8. 8. Esta é, por exemplo, uma das conotações com que Heidegger descreve o
sentimento de ansiedade, embora a sua análise diga respeito a um nível muito diferente
daquele da antropologia da afetividade: cf. M. Heidegger, “ O que é metafísica? ”em Escritos
Básicos (San Francisco: Harper One, 1993), 100–106.
9. 9. Cfr. Tomás de Aquino, Summa Theologiæ , I-II, q. 37, a. 4, c; ibid. , q. 44, a. 1,
c.

10. 10. Cf. Tomás de Aquino, Summa Theologiæ , I-II, q. 37, a. 4, c.

11. 11. Esta é a tese por trás de certas teorias behavioristas e funcionalistas,
como as dos psicólogos W. James e FA Lange. Uma avaliação crítica da teoria behaviorista
pode ser encontrada em A. Malo, Antropología dell'affettività , cit., 39-65.

12. 12. A tese antropológica de Kant poderia ser considerada um reflexo desta
visão.

13. 13. Cfr. JA García Cuadrado, Antropologia filosófica: Uma introdução à filosofia
do homem (Pamplona: Eunsa, 2001), 102–103.

14. 14. Como veremos, esta coerência com a relação causal estabelecida entre
conhecimento e tendência está na realização dos atos: a influência do conhecimento é
formal e final, enquanto a da tendência é eficiente.

15. 15. Esta é a abordagem característica da fenomenologia de Max Scheler.

16. 16. Esta é a perspectiva predominante da psicologia experimental.

17. 17. Estes pontos de vista podem ser aplicados tanto às reações mentais como
às somáticas, de onde deriva, por exemplo, a distinção entre sentimentos e humores
simples; cf. P. Lersch, Der Aufbau des Charakters (Leipzig: JA Barth, 1938), 126–133.

18. 18. Um exemplo de tal classificação pode ser encontrado na primeira parte
do livro de P. Lersch, Der Aufbau des Charakters , cit.

19. 19. Este é o critério seguido por Tomás de Aquino. No entanto, é preciso
lembrar que, embora as obras de São Tomás contenham diversas classificações mais ou
menos detalhadas, ele não procura fazer uma apresentação exaustiva do conteúdo dos
afetos. Uma descrição detalhada destes conteúdos é, antes, tarefa de uma análise
fenomenológica, que, pensamos, é plenamente compatível com o seu ponto de vista. A sua
classificação pode, claro, parecer ter pouca utilidade descritiva precisamente porque ele
não procura oferecer uma descrição, mas sentimos que a flexibilidade da sua abordagem
pode revelar-se útil como base a partir da qual se pode desenvolver uma análise
fenomenológica.

20. 20. Cf. Tomás de Aquino, Quæstio Disputata De Veritate , q. 26h. 4 c.

21. 21. Lembre-se que as tendências desiderativas e impulsivas são chamadas,


na filosofia aristotélico-tomista, de apetite concupiscível e apetite irascível .

22. 22. Cfr. Tomás de Aquino, Summa Theologiæ , I-II, q. 23, a. 4; Quæstio
Disputata De Veritate , q. 26, a. 4.

23. 23. Uma explicação sistemática, embora não exaustiva, das várias
classificações acidentais é dada por St. Thomas em seu Scriptum Super Libros Sententiarum ,
lib. 3, d. 26, q. 1, a. 3, c.

24. 24. Cf. Tomás de Aquino, Summa Theologiæ , I-II, q. 23, a. 4.

25. 25. É função da virtude orientar um ato humano para que seja realizado da
melhor maneira. Se tivermos em mente a distinção que fizemos numa nota de rodapé do
capítulo anterior entre “ações humanas” e “ações do homem”, devemos concluir que, por si
só, os sentimentos se enquadram na última categoria. Segue-se que certas virtudes
orientam as ações humanas, enquanto outras integram as ações do homem na esfera da sua
liberdade.

26. 26. Sobre este assunto, ver, entre outros: M. Rhonheimer, The Perspective of
Morality , cit., 168-182; A. Rodríguez Luño, Ética (Florença: Le Monnier, 1992), 144–148,
260–262; E. Colom e A. Rodríguez Luño, Scelti in Cristo per essere santi: Elementi di Teologia
morale fondamentale (Roma: Edizioni Università della Santa Croce, 2003), 141–171,
217–218.

27. 27. Mas, como explicam Santo Agostinho e São Tomás, não é incorreto falar
de sentimentos espirituais, ou sentimentos da vontade, por causa de uma certa semelhança
com os efeitos das tendências sensoriais: cf. Santo Agostinho, De Civitate Dei , IX, 5; Tomás
de Aquino, Summa Theologiæ , q. 22, a. 3, ad 3. Deve-se ter em mente que, enquanto a
tendência sensorial é atraída pelo objeto e sua atividade denota passividade, a tendência
espiritual se move ativamente em direção ao objeto.

28. 28. São Tomás faz a seguinte importante observação: “A boa operação do
homem é com paixão , assim como é produzida com a ajuda do corpo” ( Summa Theologiæ ,
I-II, q. 59, a. 5, ad 3) .

29. 29. Obviamente, pelo menos em teoria, podem existir circunstâncias


extraordinárias em que os movimentos afetivos são reduzidos ao mínimo como
consequência de alguma condição psicológica ou como resultado de um comportamento
excessivamente rigorista. Mas uma “tonalidade afetiva” de fundo é inseparável da vida
humana.

30. 30. Cfr. Tomás de Aquino, Summa Theologiæ , I-II, q. 24h. 1 c. Sobre a relação
entre razão, vontade e afetividade, com referência à antropologia aristotélico-tomista, ver:
A. Malo, Antropología dell'affettività , cit., 213-258.

31. 31. Cf. Tomás de Aquino, Quæstiones Disputatæ de Malo , q. 3, a. 9 c.

32. 32. Cf. Aristóteles, Política , I 2, 1254 b 2. Devemos, é claro, reconhecer que a
expressão “regra”, que surge em diversas ocasiões nesta seção, tem conotações negativas, e
somente com grande reserva seria aceita por filosofia moderna. Utilizando um conceito a
que nos referiremos no capítulo 11, poderíamos antes falar da “integração” da afetividade
na totalidade da pessoa.

33. 33. O vício, portanto, não é apenas a falta de virtude, mas também a presença
real e eficaz de um hábito que nos dispõe ao mal e realmente impede a realização do bem.

34. 34. Sobre o assunto desta seção, ver A. Rodríguez Luño, La scelta ética: Il
rapporto fra libertà e virtù (Milão: Ares, 1988); M. Rhonheimer, A Perspectiva da Moralidade:
Fundamentos Filosóficos da Ética da Virtude Tomista , cit., 167–223.

Capítulo 11
1. 1. Esta distinção é claramente explicada, entre outros, por S. Palumbieri,
L'uomo, questo paradosso: Antropologia filosofica II: Trattato sulla con-centrazione e
condizione antropologica (Roma: Urbaniana University Press, 2000), 198-199.

2. 2. Exemplos de “reducionismo da cultura” incluem certas posições extremas


em discussões recentes sobre a questão do género que minimizam o papel da diferença
corporal e sobrestimam o da cultura subjectiva. Quando neste texto falamos de “inclinação
sexual”, não nos referimos ao que hoje se chama de “orientação sexual”, ou seja, uma
inclinação de natureza sexual exclusivamente subjetiva e circunstancial. Por si só, a
“orientação sexual” não é um critério sobre o qual basear uma reivindicação de direitos
porque a expressão pode ser usada para se referir a qualquer impulso do qual possamos
ser vítimas. Assim, por exemplo, uma frase do tipo “não devemos permitir a discriminação
com base na orientação sexual” é demasiado ambígua para ser admitida; afinal, a pedofilia
também é uma “orientação sexual”, mas não seria discriminatório não empregar um
pedófilo como professor do ensino primário.

3. 3. A Revelação Cristã vai à raiz deste conflito com a narrativa do Pecado


Original no Livro do Génesis. Um comentário de fundamental importância para a
antropologia bíblica é o do Beato. João Paulo II, Homem e Mulher, Ele os Criou: Uma Teologia
do Corpo (Boston, MA: Pauline Books and Media, MA, 2006).

4. 4. K. Wojtyła, Amor e Responsabilidade (São Francisco: Ignatius Press, 1993),


46–47; ênfase no original.

5. 5. Ibid. , 116; ênfase no original.

6. 6. Na integração da sexualidade, como em todos os processos formativos que


envolvem a pessoa, há interação entre vários fatores: aspectos fisiológicos, caráter, família,
sociedade, cultura, etc. Consequentemente, os resultados não são alcançados
automaticamente e podem surgir desequilíbrios ou deficiências. Apesar de todas as
tentativas de demonstrar as suas raízes genéticas, a homossexualidade deve ser atribuída a
um distúrbio psicológico de natureza afetivo-educacional. Sobre este assunto, é possível
consultar estudos de G. van den Aardweg e dos marido e mulher J. e LA Nicolosi, incluindo:
GJM van den Aardweg, Homosexuality and Hope: A Psychologist Talks About Treatment and
Change (Ann Arbor, MI : Livros do Servo, 1985); GJM van den Aardweg, A Batalha pela
Normalidade: Um Guia para (Auto) Terapia para Homossexualidade (San Francisco: Ignatius
Press, 1997); J. Nicolosi e LA Nicolosi, Guia dos Pais para Prevenir a Homossexualidade
(Downers Grove, IL: InterVarsity Press, IL, 2002).

7. 7. Como observa a Dra. Wanda Poltawska: “Do ponto de vista da fisiologia do


corpo humano, a renúncia à atividade sexual não representa a mortificação de uma
exigência específica porque o corpo não possui mecanismos que o obriguem a tal atividade”
( W. Poltawska, “ Il celibato sacerdotale alla luce della medicina e della psicología ”, em Solo
per amore: Riflessioni sul celibato sacerdotale [Cinisello Balsamo: Paoline, 1993], 90).

Capítulo 12

1. 1. Cfr. JJ Sanguineti, Introduzione alla gnoseologia (Florença: Le Monnier,


2003), 49.

2. 2. Uma breve apresentação da teoria dual, que também responde a algumas


das objeções mais recentes, pode ser encontrada em G. Basti, “ Dall'informazione allo
spirito: Abbozzo di una nuova antropologia ”, em L'anima (Milão: Mondadori, 2004), 41–65.
também JJ Sanguineti, Introduzione alla gnoseologia , cit., 54–56.

3. 3. L. Pareyson, Kierkegaard e Pascal (Milão: Mursia, 1998), 156.

4. 4. L. Tolstoi, A Morte de Ivan Ilitch e Outras Histórias (Nova York: Barnes &
Noble, 2004), 121–122.

5. 5. Cf. Tomás de Aquino, Quæstio Disputata De Anima , a. 1,c; Suma Teológica ,


I, q. 76, a. 1.

6. 6. Especialmente no seu diálogo Fédon .

7. 7. Cf. Tomás de Aquino, Summa Theologiæ , I, q. 75, a. 6.

8. 8. Sobre este assunto, ver Agostino, La speranza (Roma: Città Nuova, 2002).
9. 9. S. Kierkegaard, Postilla conclusiva non Scientifica alle “Briciole di filosofia”
(Bolonha: Zanichelli, 1962), Vol. Eu, 370; ênfase no original.

10. 10. A visão que sustenta que a alma é transmitida por reprodução é chamada
de traducianismo ; um de seus defensores foi Tertuliano, mas a teoria foi proposta
novamente no século XIX.

11. 11. Sobre este assunto, ver a explicação concisa em Tomás de Aquino,
Quæstio Disputata de Spiritualibus Creaturis , q. 1, a. 2, anúncio 8.

Capítulo 13

1. 1. Assim colocada, a pergunta exprime a atitude correcta para com o homem,


porque realça imediatamente a sua peculiaridade. Seria redutor perguntar-nos “o que” é o
homem, porque tal formulação correria o risco de reduzir o ser humano a mais uma coisa
entre muitas outras. Filósofos clássicos (por exemplo, Ricardo de São Vítor e Alexandre de
Hales, ambos do século XII) sublinharam o facto de a noção filosófica de pessoa responder
ao problema de quis est (“ quem é”) o homem individual.

2. 2. Do grego phainómenon , “aquilo que aparece”. Aqui usamos a expressão


“fenomenológico” num sentido genérico e não técnico, isto é, não limitado a uma escola
filosófica particular de pensamento.

3. 3. Embora mais ou menos precisa (porque o homem é cientificamente


classificado como parte do reino animal), esta definição é inadequada porque o significado
de animalitas no homem é diferente per se daquele nos animais (cf. E. Coreth, Antropología
filosófica [ Bréscia: Morcelliana, 1991], 67). Com tal definição, de fato, corremos o risco de
atribuir à noção comum de animal o dom extrínseco da racionalidade (cf. H. Arendt, The
Human Condition [Chicago: The University of Chicago Press, 1958], 284) como se
quisermos dizer que assim como o camaleão é o animal capaz de mudar de cor, o homem é
o animal capaz de raciocinar. Mas proceder desta forma significaria perder de vista quem é
o homem, porque significaria colocá-lo no mesmo nível dos outros animais e, assim, negar a
sua particularidade.

4. 4. Cf. H. Bergson, Il riso: Saggio sul significato del comico (Roma e Bari:
Laterza, 1994), 4.

5. 5. Cf. H. Arendt, A Condição Humana , cit., 18–19. Esta afirmação também se


encontra em outros filósofos, entre eles Heidegger, que observa que a morte no homem é
um fenômeno existencial que não pode ser reduzido ao dado físico-biológico da cessação de
atividades vitais: cf. M. Heidegger, Being and Time (Nova York: Harper & Row, 1962),
Divisão dois, Capítulo 1 §§ 49-53. Em outro lugar ele diz: “Morrer significa ser capaz da
morte como morte. Só o homem morre. O animal morre”: id ., “The Thing”, em Poetry,
Language, Thought , 176 (Nova York: HarperCollins, 2001).

6. 6. Cf. M. Scheler, “ Die Stellung des Menschen in Kosmos ”, em Gesammelte


Werke , 44, (Berna: A. Francke, 1976).

7. 7. Cf. A. Gehlen, Homem: sua natureza e lugar no mundo (Nova York:


Columbia University Press, 1988), 24, 48.

8. 8. “ Persona significat id quod est perfectissimum in tota natura, scilicet


subsistens in racionali natura ” (Tomás de Aquino, Summa Theologiæ , I, q. 29, a. 3). São
Tomás condensa a noção de pessoa na expressão subsistens racionale ; isto é, ser racional
subsistente: cf. A. Milano, “ La Trinità dei teologi e dei filosofi: L'intelligenza della persona in
Dio ”, in Persona e personalismi (Nápoles: Dehoniane, 1987), 56-61. Sobre a concepção da
pessoa humana em São Tomás, ver JA Lombo, La persona humana en Tomás de Aquino: Un
estudio histórico y sistemático (Roma: Apollinare Studi, 2001).

9. 9. “ Naturæ racionalis individua substantia ”: S. Boécio, Liber de persona et


duabus naturis contra Eutychen et Nestorium, ad Joannem Diaconum Ecclesiæ Romanæ ,
Capítulo III, PL 64, 1343.

10. 10. Para uma explicação clara e mais detalhada do que dissemos, com
referência precisa às obras de São Tomás de Aquino, ver C. Cardona, Metafisica del bene e
del male (Milão: Ares, 1991), especialmente o Capítulo 3, “ L'atto personale di essere ”,
62–93.

11. 11. Na terminologia clássica, esta qualidade foi identificada com o nome de
“incomunicabilidade”. Este termo, no entanto, pode dar origem a mal-entendidos porque se
pode esquecer que se refere ao nível metafísico e não ao nível existencial das relações entre
as pessoas.

12. 12. Cf. Tomás de Aquino, Commentum in Librum III Sententiarum , d. 5, q. 2,


aa. 1 e 2.

13. 13. Como observou K. Wojtyła, implícitos nesta frase estão o autodomínio (
sui juris ) e o autocontrole ( alteri incommunicabilis ) característicos da pessoa que,
consequentemente, decide sobre si mesmo usando sua própria vontade (cf. The Acting
Pessoa [Dordecht: D. Reidel Publishing Company, 1979], 106–107).

14. 14. Cf. Tomás de Aquino, Summa Theologiæ , I, q. 29, a. 1.

15. 15. Cfr. ibid. , q. 11, a. 3.

16. 16. É neste sentido que podemos compreender as palavras de Agostinho:


“Quando eu me unir a ti com todo o meu ser. . . minha vida será uma vida real, sendo
totalmente preenchida por ti” (“ Cum inhæsero tibi ex omni me... viva erit vita mea tota plena
te ”, [Agostinho, Confissões , 10, 28, 39]); meu ser não me é tirado pela união definitiva com
Deus.

17. 17. Tomás de Aquino, Summa Contra Gentiles , III, 112. O quanto uma
compreensão adequada da pessoa humana está ligada à relação com Deus é explicado de
forma concisa em R. Guardini, “ Conosce l'uomo chi ha conoscenza di Dio ”, in Accettare se
stessi , 35–72 (Brescia: Morcelliana, 1992).

18. 18. Segundo Crosby, a irrepetibilidade característica da pessoa humana pode


ser considerada como consequência ou expressão de sua espiritualidade, ou seja, do fato de
que a pessoa não pode ser completamente reduzida à dimensão espacial ou material, e que
nela o todo é superior aos elementos individuais, que por si só podem parecer
insignificantes (cf. JF Crosby, The Selfhood of the Human Person [Washington, DC: The
Catholic University of America Press, 1996], 43–44, 52–53) .

19. 19. Cf. Tomás de Aquino, Commentum in Librum III Sententiarum , d. 10, q. 1,
a. 2.

20. 20. Cf. C. Fabro, Riflessioni sulla libertà (Segni: Edivi, 2004), 200. Este aspecto
é efetivamente explicado por E. Mounier, que usa o termo “vocação” para descrevê-lo: “O
significado de cada pessoa é tal que ela não pode ser substituído no lugar que ocupa no
universo das pessoas” ( Il personalismo [Roma: AVE, 1974], 73).

21. 21. MF Sciacca, Morte e imortalidade (Palermo: L'Epos, 1990), 39; Sciacca
está aqui se referindo à filosofia de Spinoza, mas usa a mesma imagem em seu L'uomo
questo “squilibrato” (Palermo: L'Epos, 2000), 109.

22. 22. R. Guardini, Persona e libertà: Saggi di fondazione della teoría pedagogica
(Brescia: La Scuola, 1987), 181–182. Veja também como essas ideias são apresentadas em
B. Mondin, L'uomo: chi è: Elementi di antropologia filosófica (Milão: Massimo, 1989),
374–375.

23. 23. Cf. K. Wojtyła, Love and Responsibility (San Francisco: Ignatius Press,
1993), 190–191. Embora, num contexto estritamente metafísico, Mounier também enfatize
o vínculo entre o autodomínio de uma pessoa e o sentimento de modéstia: cf. E. Mounier,
Personalismo , cit., 66–67.

24. 24. Cf. A. Millán-Puelles, A livre afirmação de nosso ser: Uma fundamentação da
ética realista (Madrid: Rialp, 1994).

25. 25. Isto significa também que a pessoa não pode ser compreendida apenas
em termos de relações quantitativas com os seus semelhantes. Este é um aspecto do qual
São Tomás parece já ter consciência quando escreveu, “ rácio partis contrariatur rationi
personæ ” (“o conceito de 'parte' se opõe ao de 'pessoa'”), Commentum in Librum III
Sententiarum , D. 5, q. 3, a. 2; cf. JF Crosby, The Selfhood of the Human Person , cit., 50. Pouco
depois, ele escreveu: “ Ad rationem personæ exigitur quod sit totum et completum ” (“no
conceito de pessoa está implícito que 'pessoa' significa uma pessoa integral e realidade
completa”), Commentum in Librum III Sententiarum , d. 5, q. 3, a. 2, anúncio 3.

26. 26. Cf. S. Kierkegaard, Diário (1847–1848) (Brescia: Morcelliana, 1980), Vol.
4, IX A 91, n. 1791.

27. 27. Convém sublinhar o carácter paradoxal da referida expressão de


Kierkegaard, que, se desligada das outras características fundamentais da pessoa humana,
poderia levar ao perigo de passar de um nível metafísico ao âmbito da vitalidade, dos dons
individuais, originalidade, beleza e valores culturais exaltados. Isto abriria caminho ao
individualismo, que, de facto, se esconde em certas posições existencialistas (cf. R. Guardini,
Das Ende der Neuzeit: Ein Versuch zur Orientierung [Basel: Hess, 1950], 76-77).

28. 28. Cfr. I. Kant, Fondazione della metafisica dei costumi (Milão: Rusconi,
1994), seção II, 141–145.

29. 29. K. Marx, Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1844 (Moscou: Progress


Publishers, 1959); ênfase no original.

30. 30. Cfr. J. Gevaert, Il problema dell'uomo: Introduzione all'antropología


filosófica (Torino e Leumann: Elle Di Ci, 1989), 255–256; JF Crosby, A individualidade da
pessoa humana , cit., 51–52.

31. 31. Cf. A. Campodonico, Ética della ragione: La filosofía dell'uomo tra
nichilismo e confronto interculturale (Milão: Jaca Book, 2000), 29–31, 216–218.

32. 32. Este aspecto é destacado na noção de Pareyson sobre a confluência da


auto-relação e da hetero-relação na pessoa: cf. L. Pareyson, Esistenza e persona (Gênova: Il
Melangolo, 1985), 229–230. Para um estudo filosófico-teológico da relacionalidade,
também com referência ao que é conhecido como “filosofia dialógica ou relacional”, ver M.
Serretti, Natura della comunione: Saggio sulla relazione (Soveria Mannelli: Rubbettino,
1999).

33. 33. Cf. S. Kierkegaard, Diário (1850) (Brescia: Morcelliana, 1981), Vol. 7,X2A
426.
34. 34. Veja também como uma observação muito semelhante aparece em
Tomás de Aquino, Summa Contra Gentiles , III, 113.

35. 35. Cf. id , Summa Theologiæ , I, q. 29, a. 1. Neste sentido pode-se dizer que
enquanto os indivíduos racionais agem ( agunt ), os indivíduos não racionais são dirigidos
ou movidos ( aguntur ): cf. ibid .

36. 36. São Tomás diz isso com a simples frase “ hic homo intelligit ” (“este
homem sabe intelectualmente”), Summa Theologiæ , I, q. 76, a. 1, com o qual ele refutou a
existência de um intelecto universal para todos os homens. A frase destaca o fato de que,
apesar da existência de diversas faculdades na alma, nas ações é a pessoa inteira que
intervém, ou seja, há unidade na atividade humana.

37. 37. Para explicações mais detalhadas, ver o ensaio de JA Lombo, La persona
humana en Tomás de Aquino: Un estudio histórico y sistemático , cit., 31–165.

38. 38. Cf. B. Albanese, “ Persona (storia) ” em Enciclopedia del Diritto (Milão:
Giuffrè, 1983), Vol. XXXIII, 169-181.

39. 39. Cfr. É. Gilson, The Spirit of Medieval Philosophy (Nova York: Charles
Scribner's Sons, 1940), Capítulo X, 189–208.

40. 40. Platão, Leis , X 903 C. St. Thomas aponta que para Platão apenas o homem
“separado” é o verdadeiro homem; o homem, tal como existe na matéria, é homem apenas
por participação: cf. Tomás de Aquino, Summa Theologiæ , I q. 18, a. 4, anúncio 3.

41. 41. Cfr. Platão, República , V 459 A–462 C.

42. 42. Cfr. Plotino, "Sobre a Providência" I, em Enéadas , III, 2, 10–11.

43. 43. Mesmo Gilson, que mencionamos anteriormente, destaca a “eficaz


contribuição” da filosofia grega e latina neste campo: cf. É. Gilson, op. cit., 243.

44. 44. Sobre este assunto, ver G. Reale e D. Antiseri, Il pensiero occidentale dalle
origini ad oggi (Brescia: La Scuola, 1985), Vol. I, Parte 8. “ A revolução espiritual da
mensagem bíblica. ” A explicação de Mounier sobre a novidade cultural do cristianismo no
que diz respeito ao conceito de pessoa também é útil: cf. E. Mounier, Personalismo , cit.,
14–18.

45. 45. R. Guardini, La fine dell'epoca moderna: Il potere (Brescia: Morcelliana,


1984), 99.

46. 46. Cf. S. Riccobono, Lineamenti della storia delle fonti e del diritto romano
(Milão: Giuffrè, 1949), 178–190; M. Talamanca, Lineamenti di storia del diritto romano
(Milão: Giuffrè, 1989), 556, 575.

47. 47. “ Personæ nomine non speciem significari, sed aliquid singulare atque
individuum ”: Agostinho, De Trinitate , VII, 6, 11.

48. 48. “ Singulus quisque homo. . . una persona ”: ibid. , XV, 7, 11.

49. 49. Cfr. A. Trapè, “Introduzione: Teologia”, em Agostinho, La Trinità , Vol. 4.


(Roma: Città Nuova, 1987), XXXVI– XXXVII, LXII– LXIII.

50. 50. “ Naturæ racionalis individua substantia ”: S. Boécio, Liber de persona et


duabus naturis contra Eutychen et Nestorium, ad Joannem Diaconum Ecclesiæ Romanæ ,
Capítulo III, PL 64, 1343.

51. 51. Spaemann dá uma explicação muito boa da importância ontológica da


definição de Boécio: “Um indivíduo que existe desta forma não pode ser representado por
completo por qualquer descrição possível. Nenhuma descrição pode substituir a nomeação.
Uma pessoa é alguém , não algo , não um mero exemplo de um tipo de ser que lhe é
indiferente” (R. Spaemann, Persons: The Difference Between “Someone” and “Something”
[Oxford: Oxford University Press, 2006], 29).

52. 52. Esta questão é examinada em JA Lombo, La persona humana en Tomás de


Aquino: Un estudio histórico y sistemático , cit., 69-114.

53. 53. Dialética , c. 43, PG 94, 613.

54. 54. “ Rationalis naturæ individua [vel incommunicabilis] existencial ”: De


Trinitate , lib. IV, cap. 23, PL 196, 946. O autor utiliza o termo “ existentia ” com um
significado muito preciso para indicar originalidade e substancialidade.
55. 55. “ Divinæ naturæ incommunicabilis existencial ”: ibid , cap. 22, PL 196, 945.

56. 56. “ Ecce, personalis distintio; Exodi tertio: Ego sum, qui sum ”: Commentarius
in Evangelium S. Joannis , VIII, 38.

57. 57. “ Omne subsistens in natura racionali vel intelectuali ”: Tomás de Aquino,
Summa Contra Gentiles , IV, c. 35; cf. Suma Teológica , III, q. 2, a. 2.

58. 58. Cf. id , Summa Theologiæ , III, q. 2, a. 2.

59. 59. Cf. ibid. , eu, q. 18, a. 4, anúncio 3.

60. 60. O primeiro a usar esta expressão foi Charles Renouvier (1818–1903), que
em 1903 escreveu uma obra intitulada Le Personnalisme .

61. 61. Em 1983, Ricoeur escreveu um breve artigo com um título


deliberadamente provocativo, “Meurt le personnalisme, revient la personne. . .,” no qual
afirmou que a ideia de pessoa ainda é o terreno mais relevante para considerar os
problemas jurídicos, políticos, económicos e sociais de hoje, enquanto seria ineficaz apelar
às ideias de “consciência”, “ sujeito” ou “eu” (o artigo foi republicado em P. Ricoeur,
Lectures 2: La contrée des philosophes [Paris: Seuil, 1992], 195–202).

Capítulo 14

1. 1. Detenhamo-nos um pouco nesta questão porque as nossas explicações


servirão de referência para vários capítulos futuros, especialmente no que diz respeito à
cultura e aos valores culturais.

2. 2. Gregório de Nissa, De Vita Moysis , II, 2–3: PG 44, 327–328. A mesma


expressão, referindo-se também à liberdade, encontra-se em Homilia 6: PG 44, 702–703:
“Estamos em certo sentido, nossos próprios pais.” Por sua vez, Santo Agostinho contrasta o
nascimento e o crescimento espiritual com o nascimento e o crescimento físico: “A idade ou
a estatura do corpo não dependem da própria vontade. Um homem não cresce em relação à
carne quando quer, assim como não nasce quando quer, mas onde o nascer depende da
vontade, o crescimento também depende da vontade” (Agostinho, In Epistolam Ioannis ad
Parthos , III, 1).

3. 3. Cf. JC Eccles, Evolution of the Brain: Creation of the Self , cit., 225. Para uma
breve explicação do conceito de plasticidade cerebral do ponto de vista neuropsiquiátrico,
ver CL Cazzullo, “La libertà nell'interpretazione della struttura e della dinamica della
personalità ” em F. Russo e J. Villanueva (eds.), Le dimensioni della libertà nel dibattito
Scientifico e filosofico , 44–45 (Roma: Armando, 1995).

4. 4. Muitos existencialistas e alguns personalistas destacam que alguém é uma


pessoa e se manifesta autonomamente como tal quando exerce a própria liberdade. Mas
uma concepção positiva de liberdade deve basear-se numa noção metafísica de pessoa;
caso contrário, a nossa posição torna-se uma mera descrição, ou parênteses, o que acaba
por ser uma base insuficiente para a ética. Como dissemos, do ponto de vista ontológico, ou
alguém é uma pessoa ou nunca se tornará uma. É verdade que a liberdade se exerce no
tempo e passa por vários estágios de maturação, mas não há salto ontológico na existência
do ser humano individual. É evidente que muitos autores desejam evitar o perigo do que é
chamado de “substancialismo”, mas o termo substância, tal como usado na filosofia clássica,
não deve ser entendido como um substrato imóvel de um indivíduo estático, mas como
uma fonte de autonomia e inviolabilidade. isso pertence ao ato de ser. Uma análise
interessante da relação entre pessoa, liberdade e natureza com referência a certas posições
da filosofia moderna pode ser encontrada em P. Sabuy Sabangu, La question du dualisme
antropologique: Une analyze d'après Robert Spaemann, “Acta Philosophica,” II/9 (2000),
241–265; Persona, natureza e ragione: Robert Spaemann e a dialética do naturalismo e do
espiritualismo (Roma: Armando, 2005).

5. 5. Ver os comentários dos seguintes autores sobre a mudança radical na


concepção de liberdade entre a cultura grega e a cristã: G. Reale, “ Libertà ”, in Storia della
filosofia antica , Vol. V, 152–155 (Milão: Vita e Pensiero, 1980); M. Pohlenz, Liberdade na
vida e no pensamento grego: a história de um ideal (Dordrecht: Kluwer Academic
Publishers, 1966), 161 ss.
6. 6. GWF Hegel, Enciclopédia das Ciências Filosóficas § 482. Ver também
observações sobre este assunto de C. Fabro, Riflessioni sulla libertà (Segni: Edivi, 2004), 16.
Gadamer também diz que, no mundo da Grécia clássica, a liberdade era “a liberdade de
ação e escolha de quem era seu próprio senhor, ao contrário do escravo que seguia não a
sua própria vontade, mas os caprichos de seu senhor. A liberdade, neste sentido, era uma
característica do 'status' político: a condição de ser um homem livre” (HG Gadamer, “
Kausalität in der Geschichte? ” in Gesammelte Werke , Vol. IV, 113 [Tübingen: JCB Mohr,
1987–1995 ]). Deste ponto de vista, então, há uma limitação à esfera da liberdade.

7. 7. Yepes, cujas reflexões sobre este assunto são muito claras, refere-se às
teorias de JS Mill sobre a liberdade: cf. R. Yepes, Fundamentos de antropologia: Un ideal de
la excelencia humana (Pamplona: Eunsa, 1996), 165–166.

8. 8. Cf. ibid. , 169.

9. 9. Sobre este assunto, consulte R. Yepes, La persona come fuente de


autenticidad, “Acta Philosophica”, I / 6 (1997), 83–100; C. Taylor, A Ética da Autenticidade
(Cambridge, MA: Harvard University Press, 1992).

10. 10. Cf. R. Spaemann, Basic Moral Concepts (Londres e Nova York: Routledge,
1989), 22–23, 34–35, 60. Lembre-se também da observação de Max Scheler, citada no
Capítulo 13, no sentido de que o homem é aquele que sabe como dizer não; em outras
palavras, ele sabe como orientar suas ações além do modelo estímulo-resposta.

11. 11. Cf. Aristóteles, Ética a Nicômaco , I, 7, 1098 a 1–3; ibid. , X, 7, 1177 b
27–38.

12. 12. Cf. M. Rhonheimer, The Perspective of Morality (Washington, DC: The
Catholic University of America Press, 2011), 91–92. Sciacca explica: “A humanidade do
homem é maior do que, mas não sem, a sua racionalidade” (MF Sciacca, L ' uomo questo
“squilibrato” [Palermo: L'Epos, 2000], 24).

13. 13. Cfr. R. Yepes, La persona come fuente de autenticidad , cit., 89, 93. Por esta
razão, São Tomás de Aquino observa que as ações verdadeiramente humanas são aquelas
pelas quais o indivíduo é livre e conscientemente responsável: cf. Suma Teológica , I-II, q. 1,
a. 1. Uma importante contribuição teórica ao tema da autenticidade foi feita por A.
Rigobello, L'estraneità interiore (Roma: Studium, 2001).

14. 14. Cf. K. Wojtyła, Perché l'uomo: Scritti inediti di antropologia e filosofia
(Milão: Mondadori, 1995), 80.

15. 15. Cfr. K. Wojtyła, The Acting Person (Dordrecht: D. Reidel Publishing
Company, 1979), 155–156, 179–180. Falaremos mais detalhadamente sobre
autotranscendência na seção 8 deste capítulo.

16. 16. Cfr. C. Taylor, The Ethics of Authenticity , cit., 55-69. Consideraremos este
aspecto com maior profundidade no Capítulo 15.

17. 17. Com muito maior incisão, escreve São Josemaría Escrivá: “Um marido, um
soldado, um administrador que cumpre fielmente em cada momento, em cada nova
circunstância da sua vida, os deveres de amor e de justiça que outrora assumiu, sempre
seja muito melhor como marido, soldado ou administrador. É difícil manter
constantemente activo este aguçado sentido de lealdade. . . mas é a melhor defesa contra o
envelhecimento do espírito, o endurecimento do coração e o enrijecimento da mente” (J.
Escrivá, Conversations with Monsenhor Escrivá de Balaguer [Sydney: Little Hills & Scepter,
1993], 1).

18. 18. Cfr. S. Cotta, “ Persona (filosofia del diritto) ” na Enciclopedia del diritto ,
Vol. XXXIII, 162–167 (Milão: Giuffrè, 1983).

19. 19. N. Berdyaev, Escravidão e Liberdade (Londres: G. Bles, 1943), 25.

20. 20. Ibid. , 35–36.

21. 21. Ibidem , 23.

22. 22. Ibidem , 25.

23. 23. Cf. E. Mounier, Personalismo , cit., 46–53, 64.

24. 24. Para este último, ver particularmente MF Sciacca, L'uomo questo
“squilibrato”, cit., 42–45, 52–72.
25. 25. E. Lévinas, Humanismo do Outro (Chicago: University of Illinois Press,
2003), 33.

26. 26. Cf. R. Descartes, I principi della filosofía , Pars Prima, XLI (Torino: Bollati
Boringhieri, 1992), 92.

27. 27. “A liberdade é, então, um facto e, entre os factos que podemos observar,
nenhum é mais claro”: H. Bergson, Essai sur les données imediatos de la conscience (Paris:
PUF, 1970), 145.

28. 28. Cfr. I. Kant, Crítica da Razão Prática (Mineola, NY: Dover Publications,
2004), 2.

29. 29. Cfr. A. Millán-Puelles, La libre afirmación de nuestro ser: Una


fundamentación de la ética realista (Madrid: Rialp, 1994), 207. Explicando que,
precisamente por sua obviedade, a liberdade não é suscetível de prova e não requer
nenhuma, o autor explica como uma conclusão semelhante pode ser encontrada não
apenas em Descartes e Kant (embora com certas ressalvas), mas também em Aristóteles,
São Tomás e Jaspers (cf. ibid , 208-217).

30. 30. Cfr. R. Guardini, Persona e libertà: Saggi di fondazione della teoría
pedagogica (Brescia: La Scuola, 1990), 58–99. “Liberdade é pertencimento a si mesmo. Sei
que sou livre quando percebo que pertenço a mim mesmo; quando percebo que, ao agir,
dependo de mim mesmo, que a ação não transita por mim e, portanto, pertence a outra
entidade, mas surge em mim e, portanto, é minha nesse sentido específico; e nele sou meu”
( ibid. , 101).

31. 31. Cf. ibid , 99–102. São Tomás também menciona o autopertencimento
conferido pela liberdade: “ Homo liber dicitur esse sui ipsius. Et hoc est quod Augustinus dicit
”, Super Ioan. (Tratado. XXIX, super VII 16 [PL 35, 1629]): “ Quid tam tuum est quam tu? ”
(“Um homem livre pertence a si mesmo. E como diz Agostinho, 'O que é mais seu do que
você mesmo?'”), Summa Theologiæ , I, q. 38, a. 1, anúncio 1; São Tomás faz estas
observações no interessante contexto de sua explicação sobre por que o Espírito Santo
pode ser chamado de “Dom”.
32. 32. Cf. JB Metz, “ Tra la memoria e l'oblio: La Shoah nell'epoca dell'amnesia
culturale ”, em E. Baccarini e L. Thorson (eds.), Il bene e il male dopo Auschwitz: Implicazioni
etico-teologiche per l 'oggi (Milão: Paoline, 1998), 53–55.

33. 33. L. Pareyson, Dostoevskij: Filosofia, romanzo ed esperienza religiosa (Torino:


Einaudi, 1993), 60.

34. 34. Ibid. , 27.

35. 35. Agostinho, Confissões , 8, 9, 21; cf: ibid , 8, 5, 10. Sobre este assunto ver
também L. Alici, R. Piccolomini e A. Pieretti, Il mistero del male e la libertà possibile , vol II:
Linee di antropologia agostiniana (Roma: Institutum Patristicum Augustinianum , 1995); L.
Alici, L'altro nell'io: In dialogo con Agostino (Roma: Città Nuova, 1999), 177–182.

36. 36. Agostinho, Confissões , 8, 10, 22. Esta, além disso, é também uma
observação recorrente na literatura não-cristã; basta recordar os famosos versos de Ovídio:
“ Aliudque cupido, mens aliud suadet: video meliora proboque, deteriora sequor ” (“A razão
puxa para um lado, a luxúria ardente para outro; ela vê e sabe o que é bom, mas não faz
nenhum dos dois”), Ovídio, Metamorfoses , lib. VII, 19-21.

37. 37. Cf. Agostinho, De Civitate Dei , 12, 8.

38. 38. Romanos 7: 18–19, 21.

39. 39. Cfr. K. Wojtyła, Perché l'uomo: Scritti inediti di antropologia e filosofia , cit.,
161-162. A expressão “drama da vontade” aqui se refere ao dinamismo dessa faculdade.

40. 40. O que chamamos de autointerrogatório é descrito de forma mais eficaz,


em termos autobiográficos, por Santo Agostinho, que, duramente provado pela morte de
um amigo querido, atormentava-se continuamente em sua dor: “Tornei-me um grande
enigma para mim mesmo. e perguntou à minha alma por que ela estava tão triste” (“ factus
eram ipse mihi magna quæstio et interrogabam animam meam ” [Agostinho, Confissões , 4, 4,
9]).

41. 41. Isto não altera o facto de que a dor irrompe na vida como um “escândalo”
e que, considerada a nível pessoal, conserva sempre um fundo de “mistério”. Ver os ensaios
contidos no volume R. Esclanda e F. Russo, Homo patiens: prospettive sulla sofferenza
umana (Roma: Armando, 2003).

42. 42. B. Pascal, Pensamentos (Paris: Cerf, 1982), 371; cf. ibid. , 369.

43. 43. Cf. L. Pareyson, Kierkegaard e Pascal (Milão: Mursia, 1998), 242.

44. 44. VE Frankl, Alla ricerca di un significado nella vita (Milão: Mursia, 1990),
72.

45. 45. Palumbieri faz uma distinção adequada entre “autotranscendência”, que é
a estrutura dinâmica básica dos seres humanos, e “autotranscendência”, que é o processo
que deriva dessa estrutura (cf. S. Palumbieri, L' uomo , questo paradosso: Antropologia
filosofica II: Trattato sulla con-centrazione e condizione antropologica [Roma: Urbaniana
University Press, 2000], 40. O esteio de toda a nossa análise neste ensaio é a
“autotranscendência”).

46. 46. Cf. L. Pareyson, Esistenza e persona (Gênova: Il Melangolo, 1985), 200.

47. 47. Cf. ibid , 200–201. “A pessoa, capturada num dos seus instantes,
congelada no seu incessante processo de desenvolvimento, identificada num dos seus actos
que a capturam e condensam, é o resultado final de todo um processo de operações: ela é
uma obra acabada e definida com o seu carácter individual e inconfundível. Ele não é um
entre muitos (isto é, individual), mas único, nem é parte de um todo (isto é, particular), mas
inteiro” (Id, Estetica: Teoria della formatività [ Florence: Sansoni, 1974], 184). Isto fica
ainda mais claro se reconsiderarmos o que foi dito no Capítulo 13 sobre a “completude”
metafísica da pessoa.

48. 48. M. Blondel, Ação (1893) (Notre Dame, IN: University of Notre Dame Press,
2007), 320.

49. 49. Cfr. ibid. , 326.

50. 50. R. Guardini, Persona e liberdade: Saggi di fondazione della teoria


pedagógica , cit., 157.
51. 51. O Bispo de Hipona analisa este assunto de forma verdadeiramente
magistral. Sobre este tema ver, entre outros, A. Pieretti, Interiorità e intenzionalità: La
dignità del finito , em L. Alici, R. Piccolomini, e A. Pieretti (eds.), Ripensare Agostino:
Interiorità e intenzionalità (Roma: Institutum Patristicum Augustinianum, 1993), 99–120;
L. Alici, L'altro nell'io: In dialogo con Agostino , cit., 73–81, 105–107, 263–289.

52. 52. “Portanto, não desanimamos. Embora a nossa natureza exterior esteja
definhando, a nossa natureza interior se renova dia após dia” (2 Cor 4, 16).

53. 53. Agostinho, De Civitate Dei , I, 26. Sobre a exteriorização incompleta do


homem interior, ver também K. Wojtyła, The Acting Person , cit., 7–13.

54. 54. Cfr. Agostinho, De Civitate Dei , XI, 10, 2.

55. 55. Id , Sermão 127, 3, 3.

56. 56. Id , De Vera Religione , XXXV, 65.

57. 57. VE Frankl, Alla ricerca di un significado della vita , cit., 34.

58. 58. Na logoterapia esta abordagem clínica é chamada de “técnica terapêutica


de intenção paradoxal”: cf. ibid. , 57–59; id ., Teoria e terapia delle nevrosi (Brescia:
Morcelliana, 2001), 69-70, 166. Existem, contudo, certas patologias mentais nas quais tal
método não é aplicável. Como dissemos anteriormente, quando a dor e o sofrimento
afligem um indivíduo, ele é chamado a orientar as circunstâncias em que se encontra para
um valor (isto é, a transcendê-las) e não a fechar-se nelas.

59. 59. Lembre-se do que foi dito sobre este assunto no Capítulo 11.

60. 60. R. Guardini, Persona e liberdade , cit., 42.

61. 61. Frankl adverte que a auto-realização é, e deve continuar a ser, o efeito
não intencional da autotranscendência; seria prejudicial e frustrante torná-lo objeto de
uma intenção precisa. O que vale para a auto-realização também vale para a felicidade e o
prazer. É precisamente a busca extenuante pela felicidade que impede que ela seja
alcançada. Quanto mais fizermos dela o objecto directo dos nossos esforços, mais
seguramente falharemos o alvo (cf. VE Frankl, Teoría e terapia delle nevrosi , cit., 42, 201).
62. 62. Cfr. K. Wojtyła, The Acting Person , cit., 106–107.

63. 63. Agostinho, Carta a Proba , 130, 3, 7 (“ Agit enim homo in iis quæ diligit, quæ
pro magno appetit, quibus beatum se esse credit ”).

64. 64. AJ Heschel, A Busca do Homem por Deus (Nova York: Scribner, 1954), 78;
ênfase no original.

Capítulo 15

1. 1. Cfr. M. Serretti, Natura della comunione: Saggio sulla relazione (Soveria


Mannelli: Rubbettino, 1999), 136 ss.

2. 2. Cf. ibid , 14, 140. O autor deste livro acredita, com razão, que a palavra
“comunhão” indica melhor a relação tripartida que está na origem da pessoa humana. No
entanto, sentimos que o conceito de “comunhão” só pode ser adequadamente
compreendido à luz da Revelação Cristã e, como não podemos explicar aqui os seus
fundamentos teológicos, não o utilizaremos.

3. 3. Cf. P. Donati, Pensiero sociale cristiano e società post-moderna (Roma: AVE,


1997), 20. Heidegger observa que na existência do homem a presença dos outros não é
meramente acidental, algo que pode ser omitido: Até mesmo estar sozinho é um caminho (
uma forma defeituosa) de coexistência com os outros; na verdade, a solidão só pode ser
compreendida com base nesta predisposição inerente à coexistência: cf. M. Heidegger, Ser e
Tempo (Nova York e Evanston: Harper & Row, 1962), § 26, 153–163.

4. 4. Isto é afirmado com base no princípio segundo o qual o todo é anterior às


suas partes. Por esta razão, Aristóteles sustenta que "o Estado é por natureza claramente
anterior à família e ao indivíduo, uma vez que o todo é necessariamente anterior à parte" (
Política , I, 2, 1253a 18-19). Este princípio leva Aristóteles a subordinar a ética à política, e
o bem do indivíduo subordinado ao da sociedade: cf. G. Reale, Introduzione a Aristotele
(Roma e Bari: Laterza, 2002), 101–102, 119–120.
5. 5. Política , I, 2, 1252b 28–1253a 29. Em outro lugar, também, ele diz: “O
homem por natureza é um ser que vive em comunidade” ( Ética a Nicômaco , A, 7, 1097b
11: o adjetivo grego usado é politikòn (. Esta obra contém também, entre outras coisas, a
afirmação de que a amizade é necessária para a felicidade individual). O excerto aqui citado
destaca a passagem da satisfação das necessidades materiais, que está na origem das
pequenas comunidades humanas, para a vida política que está além da espontaneidade
natural: requer o exercício da inteligência e da vontade e uma orientação consciente para
certos valores. Para uma interpretação do conceito aristotélico, ver: S. Vergnières, Éthique
et politique chez Aristote: Physis, Éthos, Nomos (Paris: PUF, 1995), 147-160, e, para
esclarecimentos terminológicos úteis, E. Berti, Profilo di Aristóteles (Roma: Studium, 1979),
281–318.

6. 6. Cf. JC Eccles, Evolution of the Brain: Creation of the Self (Londres e Nova
York: Routledge, 1989), 117–120.

7. 7. Discutindo estas descobertas no livro mencionado na nota 6, Eccles


refere-se aos estudos de J. Goodall, J. Hawkes e RS Solecki.

8. 8. Mencionaremos nove dessas inclinações, que nos parecem as mais


importantes, embora outras possam ser acrescentadas. Teremos presente e procuraremos
organizar as nossas ideias com base nos seguintes livros: J. Choza, Manual de antropología
filosófica (Madrid: Rialp, 1988), 451–453; id ., La realización del hombre en la cultura
(Madrid: Rialp, 1990), 143–159; L. Polo, Quién es el hombre: Un espíritu en el tiempo (Madri:
Rialp, 1998), 76–77, 127–143.

9. 9. Com referência a Aristóteles (cf. Ética a Nicômaco , II, 1103a 18-26), São
Tomás explica que “a aptidão para a virtude está em nós por natureza, mas o complemento
da virtude está em nós através da habituação ou de alguma outra causa. Portanto, é
evidente que as virtudes nos aperfeiçoam para que sigamos de maneira devida as nossas
inclinações naturais” (“ aptitudo ad virtutem inest nobis a natura, licet complementum
virtutis sit per assuetudinem vel per aliquam causam. Unde patet quod virtutes perficiunt nos
ad prosequendum debito modo inclinationes naturales ”) Summa Theologiæ , II-II, q. 108, a.
2; ver também ibid , I-II, q. 95, a. 1.

10. 10. Aparecem, entre outros, em Aristóteles em sua Ética a Nicômaco


(especialmente nos livros IV, VIII e IX); Cícero em De Officiis (especialmente o livro III), que
por sua vez faz referência a Panætius e Posidônio; e São Tomás de Aquino em sua Summa
Theologiæ (em particular qq. 101-117 da parte II-II).

11. 11. Para um estudo das virtudes com referência à moralidade e à natureza
humana, ver as seguintes obras: R. García de Haro, L'agire morale e le virtù (Milão: Ares,
1988); A. Rodríguez Luño, La scelta ética: Il rapporto fra libertà e virtù (Milão: Ares, 1988);
M. Rhonheimer, The Perspective of Morality (Washington, DC: The Catholic University of
America Press, 2011), 188-214. O facto de estas virtudes serem tradicionalmente chamadas
de “virtudes sociais” não deve levar-nos a pensar que existem aspectos exclusivamente
individuais. à existência de uma pessoa, ou seja, daquelas que não têm influência na
sociedade: cf. J. Escrivá, “Virtudes Humanas” em Friends of God , 76 (Londres: Scepter,
1981).

12. 12. Cf. P. Laín Entralgo, Sobre la amistad (Madrid: Espasa e Calpe, 1986),
203–204. Sobre este assunto, o autor refere-se especificamente às ideias de X. Zubiri. Lewis
descreve as implicações do amor pela pátria nos seguintes termos: “Em primeiro lugar, há o
amor pela casa, ou lugar onde crescemos, ou pelos lugares, talvez muitos, que foram nossos
lares, e de todos os lugares bastante próximos. estes ou bastante semelhantes, amor por
velhos conhecidos, por paisagens, sons e cheiros familiares. . . . Com este amor pelo lugar
vem o amor pelo modo de vida: pela cerveja e pelo chá e pelas lareiras, pelos trens com
compartimentos e uma força policial desarmada, e todo o resto, pelo dialeto local e (uma
menos sombra) para nossa língua nativa” (CS Lewis, The Four Loves [Londres: G. Bles,
1960]).

13. 13. Cfr. São Tomás de Aquino, Summa Theologiæ , I, q. 96, a. 4; Aristóteles,
Política , I, 119 (1254a 28). O conceito de autoridade do ponto de vista da filosofia analítica
é examinado por JM Bochenski, Autorität, Freiheit, Glaube: Sozialphilosophische Studien
(Munique e Viena: Philosophia, 1988).

14. 14. Platão, República , I 351 d.

15. 15. Existem duas teorias importantes neste domínio. Uma delas é a de T.
Carlyle (1795-1881) sobre o culto aos heróis como fundamento da ordem social
(especialmente em sua obra de 1841 On Heroes and Hero Worship and the Heroic in History
, que revela uma evidente influência do Romantismo e de uma visão aristocrática da
história); o outro de FE Spranger (1882–1963) sobre o poder educacional dos modelos
vivos. No entanto, considerável importância também é dada a este assunto por, entre
outros, M. Scheler (especialmente no seu Vorbilder und Führer , no qual desenvolve a sua
teoria dos "modelos pessoais"), e H. Bergson (no ensaio Les deux source de la morale et de la
religião ).

16. 16. Cfr. C. Lasch, The Culture of Narcissism: American Life in An Age of
Diminishing Expectations (Nova York e Londres: WW Norton & Co., 1991), 84-86. É feita
referência, entre outros, a J. Henry, Culture Against Man (Nova York: Knopf, 1963), 223,
226, 228-229. Na sociedade moderna, impulsionada pela mídia, o processo de formação
psicológica do self é fortemente influenciado por vários tipos de “relações de distância não
recíprocas”, que dão dão origem a fenómenos como a ideia de proximidade de uma
personalidade televisiva e outras formas de experiência características dos fãs: cf. JB
Thompson, A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia (Stanford, CA: Stanford
University Press, 1995), 207–234.

17. 17. Embora em contextos diferentes e com conclusões diferentes, esta


inclinação é discutida, entre outros, por T. Hobbes e C. Lévi-Strauss.

18. 18. Cfr. São Tomás de Aquino, Summa Theologiæ , II-II, q. 108, aa. 1–2. Ver
também id ., De Malo , q. 12, a. 1 c., que traz uma referência útil à relação entre inclinação e
virtude.
19. 19. Embora de um ponto de vista sociológico, em 1924 M. Mauss
(1872-1950) dedicou a esta questão um importante estudo etnológico, intitulado Essai sur
le don: Forme et raison de l'échange dans les sociétés archaiques .

20. 20. Cf. J. Choza, La realização del hombre en la cultura , op. cit., 154.

21. 21. Cf. Tomás de Aquino, Summa Theologiæ , II-II, q. 109, a. 3, anúncio 1.

22. 22. Cfr. R. Spaemann, Conceitos Morais Básicos , cit., 35–36, 60, 63; C. Taylor,
The Ethics of Authenticity , cit., 43–53. A aceitação e o reconhecimento do próprio papel na
sociedade também contribuem para isso (o que dissemos sobre a honra como uma virtude
social é aplicável aqui).

23. 23. Cf. K. Wojtyła, Perché l'uomo: Scritti inediti di antropologia e filosofia
(Milão: Arnoldo Mondadori, 1995), 95–98.

24. 24. Frankl destaca este ponto com referência à filosofia do diálogo de M.
Buber e F. Ebner: cf. VE Frankl, Una co-esistenza aperta al logos, “Attualità in logoterapia”, 1
(1999), 53–62.

25. 25. K. Wojtyła, Perché l'uomo: Scritti inediti di antropologia e filosofia , cit.,
131.

26. 26. M. Heidegger, Being and Time (Nova York e Evanston: Harper & Row,
1962), § 27, 164, ênfase no original.

27. 27. É útil recordar as palavras de Pareyson: «O respeito pela pessoa é a


própria possibilidade da própria sociedade, porque é a condição de nascimento tanto da
pessoa como da sociedade. A pessoa e a sociedade nascem juntas e não é possível imaginar
a pessoa sem a sociedade nem imaginar a sociedade sem a pessoa” (L. Pareyson, Esistenza e
persona [Génova: Il Melangolo, 1985], 187). Neste contexto, o que Buber escreveu também
permanece muito verdadeiro: “Se o individualismo compreende apenas uma parte do
homem, o coletivismo não compreende o homem senão como uma parte. Nem um nem
outro conduzem à totalidade do homem, ao homem como totalidade. O individualismo
considera o homem apenas na sua condição de relação consigo mesmo. O coletivismo não
vê o homem de forma alguma; não vê nada exceto a ' sociedade '. Num deles, o rosto do
homem está deformado; no outro, está mascarado” (M. Buber, Il problema dell'uomo
[Leumann: Elledici, 1990], 119).

28. 28. Cfr. G. Reale, História da filosofia antiga , Vol. II, (Milão: Vita e Pensiero,
1991), 174–175. No entanto, nem mesmo Epicuro conseguiu evitar admitir a importância
da amizade.

29. 29. Frases atribuídas a Epicuro por Epicteto e Lactâncio, in ibid , 258.

30. 30. Ibid. , 259.

31. 31. Plotino, Enéadas , I, 4, 16. E afirmações semelhantes também podem ser
encontradas em Platão: “Mas quando [ a alma ] retorna para si mesma, ela reflete; então ela
passa para o reino da pureza, e da eternidade, e da imortalidade, e da imutabilidade, que
são seus parentes, e com eles ela sempre vive, quando ela está sozinha e não é deixada ou
impedida; então ela cessa seus caminhos errantes, e estar em comunhão com o imutável é
imutável” (Platão, Fédon , 79 C).

32. 32. Cf. J. Ballesteros, “ La costituzione dell'immagine attuale dell'uomo ” em I.


Yarza (ed.), Immagini dell'uomo: Percorsi antropologici nella filosofia moderna (Roma:
Armando, 1997), 23–37.

33. 33. Cf. ibid , 32–37. Sobre o tema dessas propriedades antropológicas,
Ballesteros menciona M. Buber, E. Lévinas e P. Ricoeur.

34. 34. Cfr. F. D'Agostino, Pluralismo culturale e universalità dei diritti, “Acta
Philosophica”, II/2 (1993), 230–231.

35. 35. K. Marx, “ Thesen über Feuerbach ” in Ausgewählte Schriften in zwei


Bänden (Berlim: Dietz Verlag, 1972), Tape II, 371, n. 6.

36. 36. K. Marx, “ Critica dell'economía politica ” em Le opere (Roma: Editori


Riuniti, 1966), 746–747; citado em C. Tullio-Altan, Manuale di antropología culturale: Storia
e metodo (Milão: Bompiani, 1998), 206.
37. 37. Cf. L. Feuerbach, Princípios da Filosofia do Futuro (Indianapolis, IN:
Hackett Publishing Company, 1986), 72.

38. 38. L. Feuerbach, A Essência do Cristianismo (Nova York: Calvin Blanchard,


1854), 58.

Capítulo 16

1. 1. Cfr. HG Gadamer, Verdade e Método (Londres e Nova York: Continuum,


2006), 8–17.

2. 2. Além dos significados acima mencionados, o verbo colere também significa


viver ou residir, mas não nos deteremos nesta definição, que pode ser considerada como
derivada do primeiro significado indicado no texto.

3. 3. Em alemão, os termos Bild (imagem), Vorbild (modelo), Nachbild


(reprodução) vêm todos da mesma raiz.

4. 4. R. Guardini, Persona e libertà: Saggi di fondazione della teoría pedagogica


(Brescia: La Scuola, 1990), 50.

5. 5. Cf. R. Guardini, Persona e libertà: Saggi di fondazione della teoria


pedagogica , cit., 63. Sobre este assunto Lewis observa que, na educação, não podemos
esperar agir como um avicultor com aves jovens, que são criadas por razões de que eles
nada sabem. É necessário revelar os valores que inevitavelmente passam a ser
considerados importantes, mesmo que sejam apenas o bem-estar e a segurança (cf. CS
Lewis, The Abolition of Man [London: Fount, 1999], 14-18). Discutiremos valores na seção
2.3 deste capítulo e, especialmente, no Capítulo 17.

6. 6. Cf. R. Guardini, Das Ende der Neuzeit: Ein Versuch zur Orientierung (Basileia:
Hess, 1950), 98.

7. 7. Cf. A. Millán-Puelles, Economia e liberdade (Madri: Confederação


Espanhola de Cajas de Ahorro, 1974), 28–36; A. Malo, “ La libertà nell'atto umano: La
tendenzialità dell'uomo come espressione di libertà ”, em F. Russo e J. Villanueva (eds.), Le
dimensioni della libertà nel dibattito Scientifico e filosofico (Roma: Armando, 1995), 75–76.

8. 8. Cf. C. Tullio-Altan, Manuale di antropología culturale: Storia e metodo


(Milão: Bompiani, 1998), 78–79; L. Formigari, Il linguaggio: Storia delle teorie (Roma e Bari:
Laterza, 2001), 185.

9. 9. Cfr. W. von Humboldt, On Language (Cambridge, MA: Harvard University


Press, 1999), 46.

10. 10. Ibid , 33. Von Humboldt destaca a relação entre a linguagem, a cultura de
um povo e a criatividade individual: “Se e em que medida [a linguagem] promove a clareza
e a ordem correta entre os conceitos ou coloca dificuldades no caminho disso? Se retém a
perspicuidade sensorial inerente às ideias transmitidas para a linguagem a partir da
cosmovisão? Se, através da eufonia de seus tons, ele atua de forma harmoniosa e calmante
ou novamente de forma energética e edificante sobre o sentimento e o sentimento? Nestas
e em muitas outras determinações de todo o modo de pensar e modo de sentir reside
aquilo que constitui o seu verdadeiro caráter e determina a sua influência na evolução
espiritual” (ibid, 34 ) .

11. 11. Cf. E. Coreth, Was ist der Mensch? Grundzüge einer philosophischen
Anthropologie (Innsbruck e Viena: Tirolia, 1986), 50.

12. 12. Um estudo etimológico dos sinónimos em várias línguas confirmaria isto.
Von Humboldt examinou os termos usados para indicar a lua em grego e em latim; a
palavra grega ( mên ) indica a função da lua na medição do tempo, enquanto a expressão
latina ( luna , luc-na ) refere-se à sua luminosidade (cf. E. Cassirer, An Essay on Man: An
Introduction to a Philosophy of Human Culture [ Garden City, NY: Doubleday and Co., 1953],
173; ao referir-se a esses estudos, no entanto, Cassirer chega a conclusões questionáveis
sobre a relação entre os nomes e a verdade das coisas).

13. 13. Cassirer menciona o estudo de Hammer-Purgstall de 1855 sobre os


nomes usados em árabe para designar o camelo, segundo o qual há nada menos que cinco
ou seis mil [ sic !] palavras para expressar detalhes específicos sobre a forma, tamanho, cor
daquele animal, idade, marcha, etc. Ele também observa que em diferentes línguas há uma
grande abundância de nomes para cores, muitas vezes referindo-se aos matizes de plantas
e animais, e que as línguas usadas por certas tribos indígenas americanas contêm uma
variedade surpreendente de termos para designar atividades específicas, como caminhar
ou fazer greve (cf. ibid , 174-175).

14. 14. Cf. ibid. , 172.

15. 15. Cfr. ibid. , 168-169.

16. 16. C. Dawson, Religião e a ascensão da cultura ocidental (Nova York:


Doubleday, 1991), 12.

17. 17. Ibid. , 14.

18. 18. Entre os estruturalistas mais famosos estão C. Lévi-Strauss (1908), L.


Althusser (1918–1990) e M. Foucault (1926–1984).

19. 19. Segundo Lévi-Strauss, “É necessário e suficiente fundamentar cada


instituição e cada costume, para obter um princípio de interpretação válido para outras
instituições e outros costumes, desde que, claro, a análise seja levada suficientemente
longe”. (C. Lévi-Strauss, Antropologia Estrutural [Nova York: Basic Books, 1974], 21).

20. 20. Um resumo útil e uma crítica às posições estruturalistas podem ser
encontrados em B. Mondin, Philosophical Anthropology: Man: An Impossible Project? (Roma
e Bangalore: Urbaniana University Press, 1985), 146–149.

21. 21. Cf. KR Popper e JC Eccles, The Self and Its Brain (Nova York: Routledge,
1984), 36–50; JC Eccles, Evolução do Cérebro: Criação do Eu (Abingdon e Nova York:
Routledge, 1991), 73–76, 229–232.

22. 22. Cfr. JC Eccles, Evolution of the Brain: Creation of the Self , cit., 231–232.
Este caso foi estudado em 1977, mas notícias mais recentes também destacaram casos
semelhantes.

23. 23. Cf. R. Guardini, Persona e libertà: Saggi di fondazione della teoria
pedagógica , cit., 197.
24. 24. Veja o relato desta história no livro de JM Itard, The Wild Boy of Aveyron
(Norwalk, CT: Appleton & Lange, 1962).

Capítulo 17

1. 1. Cfr. R. Yepes, Fundamentos de antropología: Un ideal de la excelencia


humana (Pamplona: Eunsa, 1996), 136-151. Estas páginas contêm uma análise clara e
eficaz da relação entre verdade prática, valores e conduta humana.

2. 2. Cf. C. Taylor, A Ética da Autenticidade (Cambridge, MA e Londres: Harvard


University Press, 1992), 37–39.

3. 3. Argumentos eficazes semelhantes podem ser encontrados em R.


Spaemann, Basic Moral Concepts , cit., 26-27; cf. CS Lewis, A Abolição do Homem , cit., 12–18.

4. 4. Vários estudos sociológicos confirmam isto: cf. P. Donati e I. Colozzi,


Giovani e generazioni: Quando si cresce in una società eticamente neutra (Bolonha: Il Mulino,
1997), 16–17, 166–171.

5. 5. R. Spaemann, Conceitos Morais Básicos , cit., 32.

6. 6. Lembre-se do que dissemos sobre autenticidade e autorrealização no


Capítulo 14. Santo Agostinho atribui tal incoerência ao amor por uma falsa imagem da
verdade: “A verdade é amada de tal maneira que aqueles que amam outra coisa além dela
desejam que ser a verdade que eles amam. Visto que não estão dispostos a ser enganados,
não estão dispostos a ser convencidos de que foram enganados. Portanto, eles odeiam a
verdade por causa daquilo que amam em vez da verdade. Eles amam a verdade quando ela
brilha sobre eles e a odeiam quando ela os repreende” (Agostinho, Confissões , 10, 23, 34).

7. 7. Veja o que dissemos no Capítulo 15 sobre a virtude social da dulia e as


teorias filosóficas que enfatizam a sua importância.

8. 8. Cf. R. Spaemann, Conceitos Morais Básicos , cit., 24–32.

9. 9. Ibid. , 49.
10. 10. Scheler era filho de mãe judia e pai luterano. Converteu-se ao catolicismo,
mas depois abandonou-o, voltando-se para o que poderia ser definido como uma espécie
de panteísmo historicista.

11. 11. Der Formalismus in der Ethik und die materiale Wertethik: Neuer Versuch
der Grundlegung eines ethischen Personalismus . A primeira parte desta obra foi publicada
em 1913; a terceira edição apareceu em 1927.

12. 12. A palavra axiologia vem da palavra grega axía (e do seu adjetivo
correspondente axios ), que significa valor ou valor.

13. 13. M. Scheler, Formalismo em Ética e Ética Não-formal de Valores (Evanston,


IL: Northwestern University Press, 1973), 15; ênfase no original.

14. 14. Cf. ibid . Algumas páginas antes, explicando a superioridade e a


inferioridade dos valores, ele escreve: “Parece que os valores são 'mais elevados' quanto
mais duram e menos participam na ' extensão ' e na divisibilidade . Eles são mais elevados
quanto menos estiverem “fundados” em outros valores e mais profunda for a “ satisfação ”
associada a senti-los. Além disso, são mais elevados quanto menos o sentimento deles for
relativo à postulação de um portador específico de 'sentimento' e 'preferência'” ( ibid , 90;
ênfase no original).

15. 15. Cfr. A. Lambertino, Max Scheler: Fondazione fenomenologica dell'ética dei
valori (Florença: La Nuova Italia, 1996), 98.

16. 16. M. Scheler, Formalismo em Ética e Ética Não-Formal de Valores , cit., 17.

17. 17. Cfr. A. Rodríguez Luño, Etica (Florença: Le Monnier, 1992), 132. Para um
exame mais específico, ver K. Wojtyła, Valutazioni sulla possibilità di costruire l'ética
cristiana sulle basi del sistema di Max Scheler (Roma: Logos, 1980 ).

18. 18. R. Guardini, Liberdade, Graça e Destino: Três Capítulos na Interpretação da


Existência (Chicago: Henry Regnery Company, 1965), 88.

19. 19. “Predicamento” é a tradução latina não totalmente precisa do termo


grego “categoria” usado por Aristóteles.
20. 20. Sobre o tema dos transcendentais, consulte a segunda metade de T.
Alvira, L. Clavell e T. Melendo, Metaphysics (Manila: Sinag-Tala, 1991), que também faz uma
breve menção à relação valor-bondade com referência a M. Scheler.

21. 21. Cf. K. Wojtyła, “The Acting Person”, em The Yearbook of Phenomenological
Research 10 , 139–143 (Dordrecht: D. Reidel, 1979). Existe uma “síntese dinâmica e
inclusiva” entre os transcendentais no sentido de que não podemos separá-los uns dos
outros: a beleza é, como tal, bondade e verdade (a bondade e a verdade da beleza, do que é
belo na medida em que é belo ) assim como a bondade é bela e verdadeira e, por sua vez, a
verdade é boa e bela. (cf. MF Sciacca, L'uomo questo “squilibrato” [Palermo: L'Epos, 2000],
18–19).

22. 22. Este argumento foi sugerido, entre outros, por B. Mondin, Philosophical
Anthropology: Man: An Impossible Project? cit., 197-199. Uma análise muito profunda do
valor em relação ao bonum , bonitas e natura boni pode ser encontrada em J. de Finance,
Essai sur l'agir humain (Roma: Presses de l'Université Grégorienne, 1962 ), 79–92.

23. 23. Platão, Simpósio , 210 E– 211 B.

24. 24. Agostinho, De Libero Arbitrio , 2, 14.

Capítulo 18

1. 1. Cfr. L. Polo, Quién es el hombre: Un espíritu en el tiempo (Madri: Rialp,


1998), 68–69.

2. 2. Outro exemplo é a dedicação quase ilimitada ao trabalho, conforme


descrita por Isaac B. Singer no seu comovente conto intitulado “A lavadeira”: “Num
daqueles dias gelados de inverno, a lavadeira, que devia ter quase oitenta anos, veio
visitar-me. nós. . . . Minha mãe ofereceu-lhe um bule cheio de chá para se aquecer e deu-lhe
um pouco de pão. A velha estava sentada numa cadeira da cozinha; ela estava tremendo e
com arrepios. Ela aqueceu as mãos no bule. Seus dedos estavam retorcidos por causa do
trabalho e talvez também da artrite. Suas unhas eram estranhamente brancas. Estas mãos
falavam da teimosia da humanidade, da vontade de trabalhar não dentro dos limites das
próprias forças e possibilidades, mas além delas” (IB Singer, A Day of Pleasure: Stories of a
Boy Growing Up In Warsaw [New York: Farrar, Straus e Giroux, 1986], 80).

3. 3. Cf. T. Melendo, La dignidad del trabajo (Madri: Rialp, 1992), 220.

4. 4. Cf. L. Polo, Quién es el hombre: Un espíritu en el tiempo , cit., 167.

5. 5. No entanto, é importante evitar generalizações porque existem variações


entre diferentes períodos e diferentes autores: cf. A. Negri, Filosofia do trabalho: História
antológica , Vol. I: Dalle civiltà orientali al pensiero cristiano (Milão: Marzorati, 1980),
147–152.

6. 6. J. Pieper, Zustimmung zur Welt: Eine Theorie des Festes (Munique:


Kösel-Verlag, 1964), 19. Citamos esta observação porque a consideramos impressionante e
porque é relativamente recente; teria sido muito mais fácil encontrar afirmações
semelhantes em textos e autores de anos anteriores.

7. 7. Cf. Gn 2: 15.

8. 8. Para uma avaliação da influência dos ensinamentos de São Josemaría


Escrivá ver, entre outros, os estudos de JL Illanes, The Sanctification of Work (Nova Iorque:
Scepter, 2003); “ Lavoro, carità, giustizia ”, em Santità e mondo (Cidade do Vaticano:
Libreria Editrice Vaticana, 1994), 167–196; G. Faro, Il lavoro nell'insegnamento del beato
Josemaría Escrivá (Roma: Agrilavoro Edizioni, 2000).

9. 9. Cfr. Bl. João Paulo II, carta encíclica Laborem Exercens , 4, 9.

10. 10. Cf. T. Melendo, La Dignidad del Trabajo , cit., 127-128. Uma ampla análise
das mudanças na noção de trabalho pode ser encontrada em MP Chirinos, Un'antropologia
del lavoro: Il “domestico” come categoria (Roma: Edizioni Università della Santa Croce,
2005).

11. 11. Isso é explicado de forma convincente na história de Aristóteles sobre “a


pessoa que fez promessas a um tocador de lira, prometendo-lhe que quanto mais, melhor
ele cantava, mas pela manhã, quando o outro exigia o cumprimento de suas promessas,
disse que ele tinha dado prazer por prazer” (Aristóteles, Ética a Nicômaco , IX, 1).

12. 12. Cf. Capítulo 16, seção 3.2.

13. 13. Bl. João Paulo II, carta encíclica Laborem Exercens , 6. Tenham presente
também o que dissemos no capítulo 14 sobre a autorrealização da pessoa, que forja a sua
personalidade através das suas próprias atividades. Com base na distinção clássica entre o
que é transitivo e o que é imanente nos atos humanos, Wojtyła escreve que “tudo o que o
homem faz nas suas ações, qualquer que seja o seu efeito ou ‘produto’, ao mesmo tempo ele
é sempre – por assim dizer – produzindo-se, expressando-se, formando-se, de alguma
forma 'criando-se'” (K. Wojtyła, Perché l'uomo: Scritti inediti di antropologia e filosofia
[Milão: Mondadori, 1995], 182).

14. 14. Ibid ., ênfase no original. Num texto escrito em 1963, São Josemaría
Escrivá diz: “O trabalho em si não é uma pena, nem uma maldição, nem um castigo: quem
fala dele assim não compreendeu bem a Sagrada Escritura. É hora de nós, cristãos,
gritarmos aos quatro ventos que o trabalho é um dom de Deus e que não faz sentido
classificar os homens de maneira diferente, de acordo com sua ocupação” (J. Escrivá, Christ
Is Passing By [New York: Scepter , 1974 ], 47).

15. 15. A pessoa pode, no entanto, superar o condicionamento objetivo do


trabalho se o vivenciar como parte da vocação e da tarefa que Deus lhe confiou. Sobre este
assunto, ver JJ Sanguineti, L'umanesimo del lavoro nel Beato Josemaría Escrivá: Riflessioni
filosofiche, “Acta Philosophica”, II / 1 (1992), 264–278.

16. 16. Na opinião de Pieper, esta abordagem desinteressada, livre de qualquer


desejo de dominar e subjugar, só pode ser plenamente alcançada se o mundo for
considerado como criação de Deus: cf. J. Pieper, Was heißt philosophieren? (Olten: Hegner,
1948), 31-32. Outras observações muito úteis sobre o assunto podem ser encontradas em J.
Ratzinger, In the Beginning. . . Uma compreensão católica da criação e da queda (Edimburgo:
T. & T. Clark, 1995).
17. 17. M. Buber, Entre Homem e Homem (Londres e Nova York: Routledge,
2002), 187.

18. 18. Alguns exemplos destas atitudes podem ser encontrados em G. Deleuze,
Tecnofilosofia: Per una nuova antropologia filosofica (Milão: Mimesis, 2000).

19. 19. Esta é uma das principais teorias apoiadas em J. Pieper, Zustimmung zur
Welt: Eine Theorie des Festes (Munique: Kösel-Verlag, 1964).

20. 20. Ver as interessantes referências históricas contidas em J. Pieper,


Zustimmung zur Welt: Eine Theorie des Festes , cit., 97–104, 111–119.

21. 21. Analogamente, pode-se dizer que os animais (especialmente os filhotes)


brincam e que a brincadeira também se encontra nos fenômenos naturais (por isso falamos
do “jogo das ondas”, do “jogo das cores”, do “jogo da luz”, e assim por diante). Todos estes
fenómenos partilham a característica de serem fins em si mesmos, mas, quando entramos
na esfera da existência humana, devemos ter em conta a consciência e a liberdade com que
o homem age, em virtude da qual ele sabe que está brincando e quer brincar. jogar.

22. 22. J. Pieper, Zustimmung zur Welt: Eine Theorie des Festes , cit., 26; este livro
contém reflexões detalhadas sobre o significado da festa, também com referência à
brincadeira.

23. 23. Cf. L. Polo, Quién es el hombre: Un espíritu en el tiempo , cit., 143–144.

24. 24. Cf. ibid. , 32–33, 70–71.

25. 25. Cf. R. Yepes, “ La región de lo lúdico: Reflexión sobre el fin y la forma del
juego ”, em Cuadernos de Anuario Filosófico 30 , 9 (Pamplona: Serie Universitaria, 1996). O
livro também contém uma bibliografia útil sobre o tema do jogo.

Capítulo 19
1. 1. Por esta razão, os proponentes do historicismo – entre eles W. Dilthey, B.
Croce e A. Gramsci – rejeitam qualquer perspectiva metafísica capaz de abstrair valores
universais e supra-históricos da realidade em mudança.

2. 2. Cf. J. Cruz Cruz, Filosofia de la historia (Pamplona: Eunsa, 1995), 22–23,


123. Como diz Pieper: “Um acontecimento torna-se histórico quando nele entra em jogo o
que é especificamente humano: liberdade, responsabilidade, decisão e portanto, também a
possibilidade de erro intencional e culpa” (J. Pieper, Hope and History: Five Salzburg
Lectures , trad. D. Kipp [San Francisco: Ignatius Press, 1994], 34).

3. 3. Cf. M. Heidegger, Ser e Tempo , cit., §§ 9, 72. Nesse sentido, podemos


afirmar também, como fizemos na seção 2 do Capítulo 13, que só o homem morre no
verdadeiro sentido porque só ele tem consciência de morte, enquanto outros seres vivos
perecem e decaem: cf. MF Sciacca, Morte e imortalidade (Palermo: L'Epos, 1990), 134.

4. 4. Cf. Platão, Timeu , 33 A–38 E.

5. 5. Cf. Aristóteles, Física , 223 b 19.

6. 6. Cf. HG Gadamer, “ Die Kontinuität der Geschichte und der Augenblick der
Existenz ” em Gesammelte Werke , cit., Vol. II, 154.

7. 7. Sobre o tema da periodização circular ou cíclica da antiguidade, ver J. Cruz


Cruz, Filosofia de la historia , cit., 75–79, 91–108; M. Castagnino e JJ Sanguineti, Tempo e
universo: Un approccio filosófico e Scientifico (Roma: Armando, 2000), 67–74.

8. 8. Cf. Agostinho, De Civitate Dei , XII, 20, 2–3.

9. 9. Cfr. K. Löwith, Significado na História (Chicago: University of Chicago Press,


1949), 163–164.

10. 10. Cf. JJ Sanguineti, Scienza aristotelica e scienza moderna (Roma: Armando,
1992), 88.

11. 11. Cf. R. Yepes, Fundamentos de antropologia (Pamplona: Eunsa, 1996),


404–405.
12. 12. Cf. É. Gilson, O Espírito da Filosofia Medieval (Nova York: Charles
Scribner's Sons, 1940), 383–402.

13. 13. Cfr. J. Choza, La realización del hombre en la cultura (Madrid: Rialp, 1990),
127.

14. 14. Cf. L. Polo, Quién es el hombre: Un espíritu en el tiempo (Madrid: Rialp,
1998), 107, 119.

15. 15. J. Cruz Cruz, Filosofia de la historia , cit., 121. Sobre este assunto ver
também M. Castagnino e JJ Sanguineti, Tempo e universo: Un approccio filosofico e Scientifico
, cit., 47–48.

16. 16. Cfr. L. Pareyson, Essere e libertà: Il principio e la dialettica , em “Annuario


filosófico” 10 , 22 (1994); a fonte direta é Santo Agostinho, segundo quem estes três
“tempos” existem e estão presentes apenas na alma humana; assim ele fala de “ præsens de
præteritis memoria, præsens de præsentibus contuitus, præsens de futuris exspectatio ” (“um
presente de coisas passadas, um presente de coisas presentes, e um presente de coisas
futuras”: Confissões , 11, 20, 26 ).

17. 17. Cfr. M. Heidegger, Ser e Tempo , cit., §§ 68–69, 79; S. Vanni Rovighi, Uomo
e natura: Appunti per una antropología filosófica (Milão: Vita e Pensiero, 1980), 161.

18. 18. Marco Túlio Cícero, De Oratore , II, 9, 36.

19. 19. J. Cruz Cruz, Filosofia de la historia , cit., 13–14, 23.

20. 20. Agostinho, De Civitate Dei , VII, 7.

21. 21. É na memória individual que se funda a memória colectiva, como é


evidente na história dos povos que defendem e transmitem o seu passado e os seus
costumes. Um património de memórias representa um recurso mental indispensável na
maturidade, recurso do qual também recorremos para inovar: cf. C. Lasch, A Cultura do
Narcisismo (Londres e Nova York: WW Norton, 1991), XVI– XVIII.

22. 22. Cfr. JC Eccles, Evolution of the Brain: Creation of the Self , cit., 240. Lersch
observa que “a vida mental é assim inteiramente repleta de impulsos que nos induzem a
atingir estados que ainda não possuímos e que constituem, por assim dizer, diretrizes nas
diretrizes e projetos de vida. Cada momento da vida mental contém, portanto, uma
antecipação do futuro, um impulso para tender para algo que pode nem estar na
consciência do sujeito” (P. Lersch, Der Aufbau des Charakters , cit., 134).

23. 23. Cf. JL Borges, “ El imortal ”, em El Aleph (Madrid: Alianza, 2000), 7–31.

24. 24. Cf. R. Yepes, Fundamentos de antropologia , cit., 406.

25. 25. Cf. M. Heidegger, Ser e Tempo , cit., § 40; S. Vanni Rovighi, Uomo e natura:
Appunti per una antropología filosófica , cit., 156.

26. 26. Cf. também as explicações de C. Taylor sobre a identidade do self e o


chamado self “pontual” ou “neutro” em Sources of the Self (Cambridge, MA: Harvard
University Press, 1994), 27–30, 159 – 176.

27. 27. E. Rojas, Una teoria della felicità (Cinisello Balsamo: Paoline, 1989), 225.
A importância da continuidade entre passado, presente e futuro para o sucesso da vida
individual também é destacada por R. Spaemann, Basic Moral Concepts , cit., 27.

28. 28. Cfr. A. Polaino-Lorente, Amore coniugale e maturità personale: Fattori


psicologici e psicopatologici (Cinisello Balsamo: Paoline, 1994), 16–17.

29. 29. Cfr. J. Cruz Cruz, Filosofia de la historia , cit., 123–126, que faz referência,
entre outras coisas, às ideias de M. Eliade sobre o valor do mito, e de U. Eco sobre a
desvalorização do tempo.

30. 30. Cfr. G. Marcel, Homo Viator: Introdução à Metafísica da Esperança


(Gloucester, MA: Peter Smith, 1978), 33–34.

31. 31. Cf. ibid. , 36–39.

32. 32. Cf. P. Laín Entralgo, La espera y la esperanza: Historia y teoría del espera
humano (Madrid: Alianza, 1984), 581. Sobre a antropologia da esperança do
médico-filósofo Laín Entralgo, consultar MT Russo, La ferita di Chirone: Itinerari di
antropología ed ética in medicina (Milão: Vita e Pensiero, 2006), 251–266.
33. 33. Cf. P. Laín Entralgo, La espera y la esperanza: Historia y teoría del espera
humano , cit., 583–584. Aqui há referência explícita à terminologia de X. Zubiri.

34. 34. J. Pieper, Über die Hoffnung (Leipzig: Jakob Hegner, 1935), 15.

Índice

direito autoral
Prefácio
1 | Antropologia Filosófica ou Filosofia do Homem
1. Reflexão Filosófica sobre a Pessoa Humana
2. O Método da Antropologia Filosófica
3. A antropologia filosófica em relação a outros campos da filosofia e da teologia
Resumo do Capítulo 1
2 | A Vida e os Graus da Vida
1. A noção de vida
2. A Vida como Imanência e Transcendência
2.1. Imanência
2.2. Transcendência
3. Características Gerais dos Seres Vivos
3.1. Características constituintes ou estruturais
3.1.1. Unidade
3.1.2. Organicidade
3.2. Características dinâmicas ou operacionais
3.2.1. Automovimento
3.2.2. Adaptação
4. Graus de Vida e Operações de Vida
4.1. Vida Vegetativa
4.2. Vida Sensível
4.3. Vida Intelectiva
4.4. Conclusão: os graus da vida são caracterizados pela “cumulatividade”,
dependendo das operações da vida
Resumo do Capítulo 2
3 | A Alma ou o Princípio Vital
1. Premissa: Forma e Matéria, Substância e Acidentes
2. A Alma como Forma Substancial dos Seres Vivos: Duas Definições de Alma
2.1. O ponto de vista estrutural ou constituinte: a alma como forma do corpo
2.2. O ponto de vista dinâmico ou funcional: a alma como primeiro princípio de
operações
3. Características da Alma
4. A Perspectiva Global
Resumo do Capítulo 3
4 | O Corpo Vivo
1. Matéria Inerte e Corpo Vivo
2. O Corpo como Sistema: A Ideia de Organismo
2.1. O Corpo Animado no Nível Estrutural: “Organicidade”
2.2. O Corpo Animado no Nível Dinâmico: “Intencionalidade”
3. A noção de órgão: anatomia e fisiologia
4. A relação causal entre alma e corpo
5. O Corpo e a Corporeidade
6. Origens e Evolucionismo
7. Cosmogênese, Biogênese e Antropogênese
Resumo do Capítulo 4
5 | As Faculdades, ou Princípios Operativos: Ato e Operação
1. Ato e Potência, Operação e Faculdade
2. Faculdade do Indivíduo ou Faculdade da Alma?
2.1. Ponto de Vista Estrutural: As Faculdades como Propriedades Acidentais da
Alma
2.2. Ponto de Vista Dinâmico: As Faculdades e a Atividade do Indivíduo
3. Tipologia e Interação das Faculdades Humanas
3.1. Distinções entre as faculdades
3.2. A interação das faculdades do homem
Resumo do Capítulo 5
6 | Conhecimento Humano: Os Sentidos Externos
1. Vida Cognitiva
1.1. Ser e Saber
1.2. Ação Transitiva e Ação Imanente
1.2.1. Ações Transitivas
1.2.2. Ações Imanentes
1.3. Atividade Cognitiva
2. Sentir Conhecimento
2.1. Faculdades dos sentidos e conhecimento intelectual
2.2. Os órgãos e faculdades dos sentidos
3. Sentidos Externos
3.1. Tocar
3.2. Gosto
3.3. Cheiro
3.4. Audição
3.5. Visão
4. Sensíveis adequados, comuns e por acidentes
Resumo do Capítulo 6
7 | Conhecimento Humano: Experiência Sensível Interna
1. Sentidos Externos e Sentidos Internos
2. O bom senso
3. Imaginação
4. Poder Cogitativo
5. Memória
Resumo do Capítulo 7
8 | Conhecimento Humano: O Intelecto
1. Conhecimento Intelectual
2. O que sabemos com o intelecto e como o conhecemos
3. Autoconsciência ou Autoconhecimento
4. Inteligência e Fala
5. O problema mente-corpo
Resumo do Capítulo 8
9 | Dinamismo Tendencial e Liberdade
1. Tendências e Instintos
2. A plasticidade das tendências humanas
3. A Vontade, ou Tendência Espiritual
4. A Voluntariedade das Ações e da Liberdade
5. Conceitos Determinísticos
5.1. O Determinismo de Certas Teorias Científicas
5.2. Sociologismo e Psicologismo
Resumo do Capítulo 9
10 | Dinamismo Afetivo
1. Reflexões Filosóficas sobre Afetividade
2. Esclarecimento Terminológico
3. Tendências e Afetos
4. Sensações, sentimentos e humores
5. O Dinamismo dos Sentimentos
5.1. Os afetos como ações sensoriais imanentes
5.2. O valor cognitivo dos sentimentos
6. Tipologia dos Afetos
7. Afetividade e Liberdade
7.1. Os sentimentos e a responsabilidade moral
7.2. A Educação da Afetividade
Resumo do Capítulo 10
11 | Sexualidade
1. Corporeidade e Sexualidade
2. Relações entre homem e mulher
3. Integrando o impulso sexual na ideia de amor como dádiva
4. Sexualidade e amadurecimento da pessoa
Resumo do Capítulo 11
12 | Espiritualidade, Morte e Imortalidade
1. Monismo, Dualismo e Dualidade
2. O problema existencial ou filosófico da morte
3. Mais sobre a relação alma-corpo
4. Imaterialidade e Imortalidade
5. Na origem da pessoa
Resumo do Capítulo 12
13 | Quem é a pessoa?
1. A Centralidade da Pessoa
2. Perspectiva Fenomenológica e Perspectiva Metafísica
3. Análise Metafísica da Noção de Pessoa
3.1. Inalienabilidade
3.1.1. Irrepetibilidade
3.1.2. As consequências da inalienabilidade
3.2. Completude
3.3. Intencionalidade e Relacionalidade
3.4. Autonomia
4. Explicação histórica de como se desenvolveu a noção metafísica de pessoa
4.1. A noção grega e latina de pessoa antes do cristianismo
4.2. A Contribuição do Cristianismo
4.2.1. A Filosofia dos Padres até Santo Agostinho
4.2.2. Definição de Boécio
4.2.3. São João Damasceno e São Boaventura
4.2.4. A Filosofia de São Tomás de Aquino
4.3. O papel do personalismo
Resumo do Capítulo 13
14 | Liberdade e Auto-realização
1. A tarefa da autorrealização
2. Existência Autêntica
3. Coerência e Fidelidade
4. Pessoas e Indivíduos
5. A Experiência da Liberdade
6. A Experiência do Mal
7. O “xeque-mate” da dor
8. Autorealização e Autotranscendência
8.1. Dinamismo e Tensão
8.2. Interioridade e Exterioridade
8.3. Autodistanciamento, amor e doação de si
8.4. Autotranscendência da Pessoa e Transcendência
Resumo do Capítulo 14
15 | A Relacionalidade da Pessoa
1. Originariedade da Relacionalidade
2. O homem é social por natureza
3. Tendências Socializadoras e Virtudes Sociais
3.1. Relações com as Origens, Tradição e Autoridade
3.2. Relações de Reciprocidade e Amizade
3.3. As raízes da sociedade
4. Autorealização Pessoal e Sociedade
5. Concepções Individualistas e Concepções Coletivistas
5.1. Autossuficiência e Individualismo
5.2. Formas de Coletivismo
Resumo do Capítulo 15
16 | Cultura
1. O Significado da Palavra “Cultura”
1.1. Cultivo, Formação e Culto
1.2. Cultura e Existência Humana
2. Três Elementos Fundamentais da Cultura
2.1. Língua e tradições culturais
2.2. Uso e personalizado
2.3. Valores na Cultura
3. Cultura e Sociedade
3.1.A Interacção entre Cultura Pessoal e Cultura Social
3.2. A “Teoria dos Três Mundos” de KR Popper e JC Eccles
Resumo do Capítulo 16
17 | Valores
1. Existência Pessoal Orientada para Valores
1.1. A Hierarquia e Experiência de Valores
1.2. A Transmissão e Reconhecimento de Valores
1.3 Estabilidade de Valores e Auto-realização Pessoal
1.4 A Contribuição da Axiologia de Max Scheler
2. Análise Metafísica de Valor
2.1. Valor e Ser
2.2. Valor, beleza e verdade
Resumo do Capítulo 17
18 | Trabalhar, festejar, brincar
1. A Obra do Homem no Mundo
2. A noção de trabalho
3. Significados subjetivos e objetivos do trabalho
4. Significado Relacional e Significado Ecológico do Trabalho
5. Tecnologia e Relação com a Natureza
6. Festa
7. Jogue
Resumo do Capítulo 18
19 | Tempo e História
1. História e Liberdade
2. Natureza Cíclica e Linear da História
3. Temporalidade Biográfica
3.1. Passado, presente e futuro
3.2. A pressa, a preocupação e o projeto de vida
3.3. A Esperança e o Desejo de Eternidade
Resumo do Capítulo 19
Bibliografia
Notas finais

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