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meu invento, porque depois de olhar muito dentro eu

prescindo da imagem e o meu olhar repleto basta, como se


eu fosse cego, mas tivesse guardado todas as imagens: um
cego vê mais que um homem comum porque não precisa
olhar para fora de si, porque o que ele deseja ver está
completamente dentro e é inteiramente seu”, escreve em
“A chave e a porta”.
A solidão e o desejo de proximidade, a escolha do
parceiro da noite, qualquer parceiro sexual ou não. Como
no final de “Madrugada”, um conto eivado de solidão e um
tipo de camaradagem tão masculina: “Eles não sabiam o
que fazer com as mãos cheias de amizade e lembranças
das mulheres ausentes. Bêbados como estavam, a única
solução seria abraçarem-se e cantarem. Foio que fizeram.
Não satisfeitos com o gesto e as palavras, desabotoaram as
braguilhas e mijaram em comum numa festa de espuma.
Como no poema de Vinícius que não tinham lido nem
leriam jamais. Depois calaram e olharam para longe, para
além dos sexos nas mãos. Nas bandas do rio, amanhecia”.
Em “Um amor urbano”, a vertiginosa expressão de
sua avidez. “O cheiro do teu corpo persiste no meu durante
dias. Não tomo banho. Guardo, preservo, cheiro o cheiro
do teu cheiro grudado no meu. [...] Fico farpa, sede, garra,
prego. Fico tosco e você se assusta com minha boca
faminta voraz desdentada de moleque mendigo pedindo
esmola neste cruzamento onde viemos dar”. A angustiada
constatação da peste. “Pois a cidade está louca, você sabe.
Sim, a cidade está doente, você sabe. Eo vírus caminha em
nossas veias, companheiro”. Desesperado ele apalpa “as
virilhas, o pescoço, sem entender, sem conseguir chorar,
abandonado, apavorado, mastigando maldições, dúbios
indícios, sinistros augúrios [...]“ Quase numa epifania, ele
antecipa o que seriam seus últimos anos: “Viver agora é
tarefa dura. De cada dia arrancar das coisas, com as
unhas, uma modesta alegria; em cada noite descobrir um
motivo razoável para acordar amanhã.”
Numerosas e diferentes análises podem ser feitas
sobre a literatura por assim dizer inicial de Caio E, desde a
influência de Clarice Lispector em “O coração de Alzira” ou
do realismo fantástico em “O ovo”. Porém o que mais me
impressionou na (re)leitura do material contido neste
volume foi uma sensação premonitória. A todo momento
esbarrava com frases que antecipariam o que viria depois,
como se as palavras brotassem de um subterrâneo
conhecimento, aquele de onde provêm os “momentos de
criação, da vibração, da comunicação com o incognoscível
que nos dita as coisas a serem escritas”, conforme ele
escreveu em junho de 1970 numa carta a Hilda Hilst.
“Talvez eu já não esteja completamente aqui. Nem lá,
seja onde for. Antes de viajar, fico pairando. Talvez a alma
parta antes, e não saiba direito para onde ir sem o corpo.
Na morte deve ser parecido”, ele registra a 11 de março,
em “Lixo e purpurina”, depois de dizer “Quero outra vez
um quarto todo branco e um par de asas. Mesmo de
papelão”.
Quando o visitei no Hospital Emilio Ribas em 1994, o
quarto não era tão branco mas Caio tinha asas e não eram
de papelão. “Saio dessa mais humano e infinitamente
melhor, mais paciente — me sinto privilegiado por poder
vivenciar minha própria morte com lucidez e fé”, ele
escreve a sua amiga Maria Lídia Magliani em agosto desse
ano. A confrontação com a morte lhe devolveu a vida em
sua luminosa e frágil contingência. Ele não diria mais “A
cada dia viver me esmaga com mais força” como fez em
“Carta para além do muro”. A perspectiva da morte
transformou seu olhar. Dedicou-se a cultivar flores como se
elas fossem a projeção de sua vida que ele devia zelar.
Livrava os canteiros de caramujos e das ervas daninhas,
movia guerra pessoal e implacável contra as formigas-
cortadeiras que dizimavam as suas rosas. Em 1994, nas
cartas para os amigos e nas crônicas para o Caderno 2, ele
alude à dura batalha que foi combatê-las, mas as flores (e
ele) acabaram por levar a melhor (contra as formigas).
Talvez não sem razão um dos seus poemas preferidos
falasse das rosas e do sentido de cultivá-las. “Segue o teu
caminho! Rega tuas plantas! Ama as tuas rosas! O resto é
sombra! De árvores alheias” (Ricardo Reis!Fernando
Pessoa).
Já estava lá, desde o início de tbtdo, está tudo no Caio
3 D: O essencial da década de 1970. Até a carta pungente
que ele escreveu a José Márcio Penido em dezembro de
1979. “Zézim, ninguém te ensinará os caminhos. Ninguém
me ensinará os caminhos. [...] Não há caminhos a serem
ensinados, nem aprendidos. Na verdade, não há caminhos.
E lembrei duns versos dum poeta peruano (será Vailejo?
não estou certo): “Caminante, no hay camino. Fero
elcamino sehace ai andar’
Ao mesmo Zé Márcio onze anos depois ele escreveria
“Ando apaixonado por viver, com tudo que isso implica”, e
no ano seguinte para Maria Lídia ele completaria, “Tenho
achado viver tão bonito, talvez porque ande como nunca
perto da idéia da morte”. Caio E sabia que estava
contaminado muito antes de fazer o exame que confirmou
o terror de sua suspeita. Mas transmutar, transfigurar não
são apenas palavras freqüentes nos seus textos, mas a
manifestação de um talento muito pessoal para
transformar e transcender adversidades, maus
sentimentos, enfim as doenças da vida, do corpo e da alma.
Caio F., sabemos, fez do seu caminho para o calvário uma
digna e admirável via-sacra. A memória de sua paixão e
compaixão nos entristece e ao mesmo tempo nos conforta
pois nos leva a acreditar que o homem às vezes é um
reflexo de Deus ou da idéia superior que essa palavra
encerra.

MARIA ADELAIDE AMARAL


Nota editorial: as datas da
publicação oriinal dos textos que
aparecem em Caio 3D: O essencial
da década de 1970 – com a
indicação de onde foram primeiro
publicados - são identificadas à
página 357, no texto sobre as fontes
deste volume.

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