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A EXPANSÃO DA FRONTEIRA AGRÍCOLA E A APROPRIAÇÃO DA TERRA POR


GRANDES EMPRESAS NOS CERRADOS DO CENTRO-NORTE

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Marta Inez Medeiros Marques


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X Simpósio Nacional de Geografia Agrária - SINGA 2019

Anais Eletrônicos
Trabalhos Aprovados
ISBN: 978-85-415-1148-3
A EXPANSÃO DA FRONTEIRA AGRÍCOLA E A APROPRIAÇÃO DA
TERRA POR GRANDES EMPRESAS NOS CERRADOS DO CENTRO-NORTE

Marta Inez Medeiros Marques1


Maria de Fátima G. Rodrigues2
Valéria Magalhães Frajuca3

Introdução
Esse trabalho reúne resultados parciais da pesquisa intitulada “A territorialização
do agronegócio nos cerrados do Centro-Norte e a relação entre o capital financeiro e a
terra”, que tem por objetivo o estudo das principais mudanças verificadas nas últimas
décadas nas formas de territorialização do capital no campo na região sob a proeminência
das finanças e seus impactos sobre o uso e a propriedade da terra. Desta forma, temos
acompanhado atentamente o debate sobre as mudanças em curso no autodenominado
“agronegócio”4 brasileiro no período, com atenção especial para a crescente participação
de investidores internacionais - sobretudo aqueles vinculados ao capital financeiro - em
seus vários segmentos de atividade.5

A região estudada corresponde de um modo geral à área delimitada para a


implementação do Plano de Desenvolvimento Agropecuário do Matopiba 6, criado com o
objetivo de promover e coordenar políticas voltadas para o desenvolvimento da

1
Profa. Dra. do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo e coordenadora da pesquisa. E-
mail: mimmar@usp.br.
2
Aluna do curso de Graduação em Geografia da Universidade de São Paulo e membro da equipe de
pesquisa.
3
Aluna do curso de Graduação em Ciências Sociais da Universidade de São Paulo e membro da equipe de
pesquisa.
4
É preciso avaliar criticamente a história da criação e adoção desta denominação, identidade ou “marca”
pelo conjunto de negócios e capitais investidos em cadeias produtivas em que a produção agrícola
desempenha um papel importante. Os capitalistas que atuam nessas cadeias têm buscado se organizar e agir
junto ao Estado brasileiro como um importante bloco de poder, além de desenvolver um esforço coordenado
para a legitimação de suas demandas políticas e econômicas frente à opinião pública. Eles estão
representados no Congresso Nacional pela bancada ruralista e possuem amplas ramificações na economia
nacional. Sobre essa história, ver RIBEIRO Neto, 2018.
5
Essa pesquisa conta com o apoio do CNPq – Edital Universal 2018 e da Universidade de São Paulo –
Editais PUB 2018/2019 e 2019/2020.
6
Embora se reconheça as diferenças conceituais e metodológicas existentes entre as duas regionalizações,
dos Cerrados do Centro-Norte e de Matopiba, estas duas denominações se reportam em linhas gerais à
mesma área e serão utilizadas como sinônimo neste texto. Matopiba é um acrônimo formado com as iniciais
dos quatro estados, cuja parte ou a totalidade de suas áreas, compõem, a região: Maranhão, Tocantins, Piauí
e Bahia.
agricultura capitalista, consolidando um conjunto de ações realizadas pelo Estado na
região. O PDA-Matopiba foi lançado durante o Governo Dilma em 20157 e extinto no
ano seguinte pelo Governo Temer. Quando de sua criação, ele abrangia uma população
com cerca de 6 milhões de habitantes distribuída em 73 milhões de hectares (sendo 66
milhões pertencentes ao domínio original do bioma Cerrado),8 estendendo-se por 337
municípios nos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. Além disso, sua área
engloba 28 Terras Indígenas, 46 unidades de conservação ambiental (ocupando cerca de
12% da área total), 865 assentamentos rurais e 34 territórios quilombolas, bem como
outros territórios indígenas e quilombolas que ainda estão em processo de
reconhecimento, delimitação, demarcação ou titulação. (CPT, 2016 e IPEA, 2018)

A região se destaca por sua grande diversidade sociocultural e por uma economia
de base predominantemente agrária. Contudo, dado o caráter excludente e
concentracionista de terras e de capitais do modelo de produção agrícola industrial que
vem se impondo, o campo tem perdido população enquanto a cidade tem crescido de
forma acelerada, atraindo migrantes também de outras regiões. A análise dos dados dos
últimos censos demográficos (1970 a 2010) referentes ao total dos municípios que
compõem o Matopiba evidencia uma tendência de rápido aumento populacional na
região, com a passagem de 2.834.160 para 5.902.140 habitantes. Entretanto, esse aumento
se deu de modo concentrado nas cidades, tendo havido uma diminuição da população
rural de 2.221.327 para 2.046.666 habitantes.

Gráfico 1: População residente por situação de domicílio no Matopiba

7
Ver Portaria n. 244 de 12 de novembro de 2015 do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.
8
O bioma Cerrado possui 2.036.448 km² de extensão e ocupa cerca de 24% do território brasileiro,
abrangendo os estados de Goiás, Tocantins, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Distrito Federal, Minas
Gerais, Bahia, Maranhão, Piauí, Rondônia, Paraná e São Paulo. Disponível em
https://ww2.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/21052004biomashtml.shtm, acesso em 17/11/2018.
4500000
4000000
3500000
3000000
2500000
2000000
1500000
1000000
500000
0
1970 1980 1990 2000 2010
Rural Urbano

Fonte: Censos Demográficos do IBGE, de 1970 a 2010.


O Gráfico 1, relativo à evolução da população por situação de domicílio no
Matopiba, revela uma inflexão indicativa da aceleração do crescimento da população
urbana a partir de 1980 e a passagem nos anos 1990 de uma população
predominantemente rural, cuja participação na população total em 1970 foi de cerca 78%,
para uma população de maioria urbana.
FAVARETO et al. (2019) apontam no trabalho “Existe mais pobreza e
desigualdade que bem-estar e riqueza nos municípios do Matopiba” que o enriquecimento
observado na região em decorrência da expansão da produção agropecuária não foi
distribuído para a população. Ou seja, os grandes fazendeiros, empresários e investidores
envolvidos com a moderna agricultura realizada na região enriqueceram sem ampliar a
oferta de empregos no espaço rural e sem que as cidades que cresceram por sua causa
oferecessem melhores condições de vida para a maioria de seus habitantes. No presente
artigo, ao analisarmos as formas como se expande o capital monopolista-financeiro, sua
territorialização na produção de commodities agrícolas e seus impactos sobre o uso e a
propriedade da terra, pretendemos contribuir para a compreensão de alguns aspectos em
que se fundamenta o desenvolvimento desigual do capitalismo na região.
Nesse sentido, é preciso destacar que o Estado tem desempenhado um importante
papel na promoção desse desenvolvimento. Desde meados dos anos 1980 a região passou
a receber investimentos públicos em pesquisa e infraestrutura para o estabelecimento de
uma agricultura de base industrial. Merece destaque o Programa de Cooperação Nipo-
Brasileira para o Desenvolvimento dos Cerrados (PRODECER), que teve um papel
importante para o desenvolvimento de técnicas adaptadas para a produção de grãos, em
especial a soja, milho e arroz, considerando as condições edafoclimáticas da área. 9 Em
1985 o PRODECER criou dois projetos de colonização no oeste da Bahia, nos municípios
de Barreiras e Formosa do Rio Preto, e em 1995, mais dois projetos na região Centro-
Norte, um em Gerais de Balsas, no Maranhão, e outro em Pedro Afonso, em Tocantins
(MAPA e JICA, 2002).
Também foram realizados investimentos em infraestrutura pelo Estado que
resultaram na integração do corredor Centro-Oeste com as regiões Norte e Nordeste,
contribuindo para a expansão da produção de grãos nos Cerrados. Na última década, esses
investimentos deram origem ao corredor Centro-Norte, conectando os estados do Mato
Grosso, Goiás, Maranhão, Piauí, Tocantins, Bahia e Pará, e viabilizando o escoamento da
produção para exportação. Além da hidrovia Tocantins-Araguaia, o Corredor Centro-
Norte também se vale dos seguintes eixos de transporte: Estrada de Ferro Norte-Sul,
Estrada de Ferro Carajás, Ferrovia Transnordestina, Porto de Itaqui em São Luís (MA),
bem como de estradas federais e estaduais. (BRANCO et al., 2011). Considerando a
distância absoluta, o Mapitoba está mais próximo de portos do que as principais regiões
produtoras de grãos no Centro-Oeste brasileiro.
A pesquisa se apoia em dados levantados em trabalho de campo e em ampla
revisão documental e bibliográfica, além da análise de dados do censo agropecuário do
IBGE, do cadastro de imóveis rurais do INCRA, da produção agrícola da CONAB e
outros. Vale ressaltar a importância da produção acadêmica recente sobre a temática, da
qual destacamos os trabalhos de ALVES (2009 e 2015), FREDERICO (2018), PITTA e
MENDONÇA (2018), dentre outros.

Em nossa viagem de campo em agosto de 2019 ao Oeste da Bahia e Sul do Piauí10


conhecemos como se organiza a produção de grãos (soja e milho) e algodão nas extensas
chapadas conforme o padrão tecnológico dominante. O cultivo do algodão, que observou

9
O PRODECER foi implantado em três fases. O PRODECER I teve início em 1979 e se deu com a
implantação de 4 projetos de colonização no estado de Minas Gerais. O PRODECER II, iniciado em 1985,
criou 15 projetos distribuídos pelos estados de Minas Gerais, Bahia, Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do
Sul. O PRODECER III iniciou-se em 1995 e atingiu os estados do Maranhão e do Tocantins.
10
Agradecemos a todos que nos receberam e concederam entrevistas nas cidades, fazendas e comunidades
rurais, e especialmente àqueles que de diversas formas contribuíram para a organização do trabalho de
campo, sejam colegas professores que atuam na região como Valney Dias Rigonato da UFOB, sejam
militantes da CPT como Franzé, que nos recebeu e nos apresentou a comunidades do Sul do Piauí, dentre
outros colaboradores.
grande crescimento na região na safra de 2018/19 devido a condições de preço favoráveis,
já se encontrava colhido e enfardado.

Apesar da relativa monotonia da paisagem, onde se vê grandes extensões sob o


domínio de um único cultivo, as chapadas são recortadas pelos vales que constituem áreas
de baixões onde estão situadas inúmeras comunidades com sua agricultura diversificada
baseada numa longa e fecunda convivência com o cerrado. Aí, em vez de monotonia se
vê as pessoas do lugar buscando meios de vida e se organizando para enfrentar os
inúmeros conflitos desencadeados pela expansão da agricultura capitalista e seu modelo
de produção excludente, que avança transformando cerrado, terra e água em recursos
escassos. Um campo diverso, injusto e complexo se apresenta à nossa frente.

Neste artigo vamos analisar relações de produção e processos que caracterizam


momentos do processo de produção de commodities agrícolas no Matopiba e revelam
algumas especificidades da expansão do capital monopolista-financeiro hoje e suas
formas de territorialização na fronteira.

O texto está composto por três partes: (1) A produção de commodities agrícolas
sob a mundialização do capital; (2) A forma de acesso à terra e a condição legal do
produtor e (3) considerações finais.

A produção de commodities agrícolas sob a mundialização do capital

Na região, quem não é profissional quebra (agrônomo e professor da UFPI,


ago/2019).

Tem gente que tem terra, mas não tem a cultura para pegar financiamento para
produzir. O agricultor é empurrado pela a dívida. (produtor de Nova Santa
Rosa - PI, ago/2019).

O grande produtor anda de avião, não faz girar a economia daqui (grande
produtor de soja do Piauí, ao se referir àqueles que classificamos neste trabalho
como muito grande produtores, ago/2019).

O cultivo da soja tem grande destaque na região. Na grande maioria dos casos o
milho ou o algodão é cultivado em rotação com a soja e, com menor frequência, a
depender do uso da irrigação, adota-se a sucessão ou segunda safra com o cultivo do
milho ou do algodão de safrinha. Esboçamos a seguir uma classificação inicial com o
perfil dos tipos de produtores de soja encontrados:

- o pequeno produtor cultiva entre 200 a 500 ha de soja e produz com base no
trabalho familiar e no assalariamento, podendo ser um camponês remediado ou
pequeno capitalista, em geral ele aluga máquinas;

- o médio produtor cultiva entre 1.000 e 3.000 ha, é um capitalista que possui
máquinas próprias e aluga maquinário em caráter complementar;

- o grande produtor cultiva cerca de 5.000 ha ou mais, é um capitalista que, além


de possuir maquinário próprio e alugar máquinas eventualmente, investe na
instalação de equipamentos e em infraestrutura como secadora e silos como
estratégia para livrar-se do jugo de empresas compradoras como as tradings e
comercializar a sua produção em melhores condições, com frequência cultiva em
terras arrendadas;

- o muito grande produtor cultiva numa faixa que vai de acima de 10.000 ha a
mais de 100.000 ha, são em geral grandes empresas de capital monopolista que
frequentemente se inserem em estruturas de holding e se acham vinculadas a
outras frentes de investimento (o que pode incluir a especulação com a terra e a
atuação na comercialização de commodities, entre outros), possuem capital aberto
(sociedades anônimas) ou são sociedades por cota de responsabilidade limitada e
frequentemente contam com recursos de investidores institucionais (como fundos
de pensão ou fundos de investimentos) e podem arrendar terras.

Predomina na região a produção de soja, milho e algodão transgênicos realizada


conforme o padrão tecnológico hegemônico, baseado em pouca mão-de-obra permanente
e no emprego de máquinas potentes. A utilização de pouca mão-de-obra também está
relacionada ao uso do herbicida para dessecar o mato. Um estabelecimento de produção
de soja com 2.500 ha emprega cerca 4 trabalhadores permanentes e contrata mais pessoas
nos períodos do plantio e da colheita.

As máquinas empregadas podem ser próprias ou alugadas, algumas são


desmontadas e transportadas na prancha do Mato Grosso até estados do Matopiba como
a Bahia. O uso de aviões para a pulverização dos campos também pode ser realizado com
máquina própria, alugada de outro produtor ou de empresas especializadas da região e de
outros áreas do país como do MT. A terceirização de máquinas agrícolas tem se
expandido nos cultivos de soja e algodão com a difusão de empresas que alugam
máquinas e o aparecimento de ferramentas digitais para a intermediação do aluguel, o que
alguns chamam de “uber do agronegócio”11.

Variedades de soja, milho e algodão adaptadas às condições locais foram


desenvolvidas por instituições públicas, como a Embrapa, e privadas, como a Monsanto
e outras empresas transnacionais que atuam na produção de transgênicos. Esse fato
resultou em significativos ganhos de produtividade na região, como é exemplo a produção
de soja, que alcança hoje o mesmo patamar médio de produtividade observado
nacionalmente. Porém, comparando-se a outras regiões, o Mapitoba apresenta maior
oscilação da produtividade devido à maior variação verificada em relação às médias
pluviométricas. Períodos de estiagem geram queda considerável na produtividade, mas,
por outro lado, uma menor incidência de chuvas na época da colheita favorece a qualidade
dos grãos (AGUIAR et al., 2013).

A produção média de soja é de cerca de 70 a 80 sacas/ha e a de milho, fica em


torno de 170 a 200 sacas/ha. O milho possui grande procura no mercado local, seja para
o abastecimento de granjas ou para o consumo humano. Já o algodão, além do mercado
externo, também pode ser comercializado com a indústria têxtil local.

Poucos produtores possuem secadoras, aqueles que têm o grão com umidade
acima de 14% precisam realizar a secagem do grão e em geral dependem das instalações
de secagem das tradings (Bunge, ALZ Grãos e outros). Como essas empresas não prestam
serviço, o custo da secagem é calculado na negociação de venda do grão para a trading.
Quando o produtor não tem volume de produção, “a trading joga o preço para baixo”,
segundo relatou um grande produtor de soja.

11
Plataforma que põe em contato produtores com máquinas ociosas, produtores que desejam alugar
máquinas, assim como empresas que alugam maquinário agrícola, e cobra uma comissão sobre o valor da
transação que intermedia.
A agricultura de base industrial está profundamente subordinada às determinações
do capital monopolista-financeiro. Delgado (2012) nos ensina que a modernização da
agricultura brasileira se deu nos anos 1960 com a expansão do capital financeiro apoiada
pelo Estado por meio do Sistema Nacional de Crédito Rural (SNCR), que desempenhou
um papel chave na vinculação da agricultura à indústria e na coordenação dos processos
de acumulação verificados em cada etapa da cadeia produtiva. A partir da década de 1990,
com as oscilações na disponibilidade de crédito público para a agricultura, vão se
estruturando e popularizando novas modalidades de crédito, de origem privada.

A expansão da produção de commodities nos Cerrados do Centro-Norte baseada


na “moderna” agricultura capitalista ganha impulso decisivo nos anos 1990, quando se
verifica o avanço da mundialização do capital na agricultura brasileira proporcionado por
uma maior abertura e liberalização do mercado nacional. 12 O movimento da fronteira na
região tem se dado com o apoio de investimentos públicos e a participação ativa de
agentes do capital mundial como as empresas transnacionais.

Grande parte dessas empresas já atuavam em cadeias produtivas ligadas ao agro


no mercado brasileiro há algumas décadas, mas elas passaram a concentrar maior poder
a partir desse período, inicialmente por meio da compra ou fusão com empresas menores,
muitas delas de capital nacional e, posteriormente, pela centralização de capitais
envolvendo fusões e aquisições de grandes empresas. Essa centralização está relacionada
à oligopolização dos mercados em escala mundial, que continua com grande força até os
dias atuais, como se pode ver pelo exemplo paradigmático das empresas de produção de
sementes e agroquímicos.

Em 2015, após continuados processos de centralização de capitais, restavam seis


grandes empresas no mundo produtores de sementes e agroquímicos - BASF, Bayer, Dow
Química, DuPont, Monsanto e Syngenta -, sendo que, atualmente são apenas quatro e
somente a BASF não passou por novas fusões e aquisições desde essa data. A Dow
Química e a DuPont se fundiram em dezembro de 2015 e criaram a Coterva em 2019
como companhia especialmente voltada para o setor agrícola; a Syngenta foi comprada

12
Sobre a mundialização da agricultura brasileira, ver Oliveira, 2016.
pela China National Chemical Corporation ou ChemChina em 2016; e a Bayer comprou
a Monsanto em 2018 (SEGALLA, 2018 e MACDONALD, 2019).

A Monsanto, atual Bayer, foi quem primeiro desenvolveu um herbicida à base de


glifosato13 em 1970, o Roundup, e sementes Roundup Ready (RR) em 1990, cujas
patentes já expiraram. Em 2013 a empresa lançou a semente Intacta RR2 PRO, que
incorpora à tecnologia da semente RR um novo transgene, que gera toxinas que matam
lagartas (tecnologia BT). Os três principais cultivos do Matopiba, soja, milho e algodão,
são produzidos com base num pacote tecnológico que inclui o uso de sementes
transgênicas RR ou RR2 PRO, ou seja, sementes resistentes ao glifosato, princípio ativo
do herbicida mais vendido no país.

O emprego desses transgênicos associados ao glifosato está relacionado à difusão


da prática do plantio direto, amplamente adotada no país a partir dos anos 1990, que
consiste no plantio efetuado sem as etapas convencionais de preparo do solo de aração e
gradagem. Nessa técnica, o solo deve ser mantido coberto por plantas em
desenvolvimento e por resíduos vegetais com a finalidade de ser protegido do impacto
direto das gotas de chuva, do escorrimento superficial e das erosões hídrica e eólica. O
preparo do solo é realizado em uma única operação e limita-se à sulcagem, semeadura,
adubação e aplicação de herbicidas.

A importância de tal prática para a realização dessas culturas ficou evidente


quando, em 2018, uma juíza federal acolheu uma ação do Ministério Público Federal e
determinou a suspensão do registro de todos os produtos à base de glifosato enquanto a
Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) não concluísse a sua reavaliação
toxicológica. Na ocasião, houve grande contestação dos produtores e até ameaça de

13
“O glifosato talvez seja o agrotóxico mais famoso do mundo. E é, com certeza, o mais vendido. Somente no Brasil,
são 110 os produtos comercializados com glifosato, de 29 empresas diferentes: foram 173 mil toneladas vendidas em
2017, três vezes mais do que o segundo agrotóxico mais comercializado, o 2,4-D.” “Após o desenvolvimento da soja
transgênica, vieram milho e algodão. ‘Passamos de 40 mil toneladas [de agrotóxicos] a 300 mil por ano no Brasil.
Mesmo com o aumento na produção de grãos, o salto no uso desses produtos foi bem maior’, acrescenta Meirelles, da
Fiocruz.” (DOMINGUES, Entenda o que é o glifosato, o agrotóxico mais vendido do mundo, Disponível
em https://g1.globo.com/natureza/noticia/2019/05/26/entenda-o-que-e-o-glifosato-o-agrotoxico-mais-
vendido-do-mundo.ghtml, acesso em 1/11/2019)
desobediência civil de um dos maiores produtores de soja do país e então Ministro da
Agricultura, Blairo Maggi. 14

Estudo recente feito pela CONAB (2017) sobre os preços praticados no Centro-
Oeste e no Sul do Brasil para fertilizantes e agrotóxicos empregados na produção de soja
e milho revela que esses produtos apresentaram em sua maioria uma variação de preços
acima da variação do IPCA entre as safras de 2010/11 a 2015/16, com destaque para o
glifosato e o roundup. Segundo o estudo, tal comportamento tem relação com o fato de
os fornecedores de insumos serem formadores de preços e conhecerem bem o
comportamento do mercado.

O comportamento dos preços reais dos fertilizantes e agrotóxicos indicam que


o fornecedor tem conhecimento do processo produtivo, da rentabilidade e das
necessidades do produtor, o que influencia na formação de preços. Essa
hipótese se confirma na medida em que, com raras exceções, em todas as
unidades da federação houve valorização real dos preços dos fertilizantes e dos
agrotóxicos na safra 14/15 e desvalorização no ano-safra 15/16, sendo que esta
última foi prejudicada por fatores climáticos. (CONAB, 2017, p. 46)

O elevado grau de oligopolização observado no segmento de sementes e


agroquímicos repercute de forma direta no poder que essas companhias transnacionais
possuem para a imposição de seus produtos e dos preços praticados no mercado. Fato que
é agravado pela prática do financiamento da safra por essas empresas em parceria com
empresas compradoras de commodities, quando as primeiras atuam no fornecimento de
insumos via contratos de barter.

A operação de barter (ou permuta) é uma estratégia comercial em que a compra


de insumos (ou maquinário) é paga com a venda de produtos agrícolas com a fixação ou
travamento dos preços negociados. Para que esse tipo de transação aconteça, é necessário
o envolvimento de três partes: o produtor, que fará a troca de seus produtos por insumos;
o fornecedor, que venderá seus produtos como sementes, fertilizantes ou agrotóxicos; e o
comprador dos produtos agrícolas, que pode ser a trading, cooperativa ou indústria
processadora.

14
Ver em CANALAGRO do ESTADÃO, “‘Sem glifosato não há plantio’, diz ministro”, 04/09/2018. Disponível
em https://especiais.estadao.com.br/canal-agro/agrocenarios/maggi-nao-ha-saida-sem-o-glifosato-ou-nao-
planta-ou-havera-desobediencia-de-ordem-judicial/, acesso em 4/11/2019.
Para obter os insumos de que necessita, o agricultor deve assinar um contrato no
qual se compromete a entregar parte de sua próxima colheita. Isso é feito por meio de um
documento chamado Cédula de Produto Rural ou CPR,15 que irá lastrear a operação. A
CPR é uma “promessa de entrega de produtos rurais” e uma garantia para as demais partes
envolvidas na transação. No barter as operações que têm liquidação financeira
diretamente pela parte interessada nos produtos agropecuários

A operação de barter corresponde a uma modalidade de crédito atrelada à


comercialização antecipada da produção, semelhante ao “contrato de soja verde”
realizado diretamente pelas tradings nos anos 1990. A Bunge, a Agrex e a AZL Grãos são
exemplos de tradings que realizam operações de barter hoje.
Essas mudanças se inserem num movimento mais amplo caracterizado pelo
crescimento das transações financeiras e do papel econômico desempenhado pelo capital
portador de juros (também designado capital financeiro), que passa a comandar e a
orientar o funcionamento do capital produtivo, dando origem a um novo período em que
neoliberalismo, precarização do trabalho e mundialização do capital caminham juntos
com a financeirização.

A forma de acesso à terra e a condição legal do produtor

A identificação da presença crescente do capital monopolista no campo no


Matopiba tem sido alvo de inúmeros estudos, sobretudo no que diz respeito ao seu
envolvimento com representantes do capital financeiro, como os investidores
institucionais, e sua participação em processos de grilagem e açambarcamento de terras
tradicionalmente ocupadas. São pesquisas da maior relevância, que têm contribuído para
dar visibilidade e denunciar processos de expropriação em curso.

Partimos do pressuposto de que a intensidade da especulação com a terra que


caracteriza a região hoje se explica por fatores estruturais e conjunturais de alcance
distintos: (1) no nível local, ela se define pela expectativa de precificação da terra

15
A Cédula de Produto Rural foi criada com a Lei 8.929 em agosto de 1994 e, desde então, tornou-se um
elemento fundamental nas relações de crédito na produção de commodities agrícolas.
relacionada à tendência de crescimento da renda da terra decorrente da conjuntura de
expansão da produção de commodities; (2) no nível mais global, ela está atrelada ao
movimento geral de expansão do capital monopolista-financeiro e à sua busca de novas
frentes de investimento em face de um período de crise de sobreacumulação agravada
pela crise financeira de 2008.

Este artigo pretende tratar de aspectos específicos relacionados a esse processo


mais geral de privatização e precificação da terra à luz de dados estatísticos que nos
ajudam a identificar novas dinâmicas que vêm se estabelecendo em torno da propriedade
da terra na região, quais sejam: o crescimento do arrendamento de grandes áreas e o
aumento da participação de empresas de sociedade anônima e sociedade por cotas de
responsabilidade limitada entre os estabelecimentos rurais.

Quando observamos os dados dos Censos Agropecuários do IBGE de 1995 a 2017


expressos no Gráfico 2, verificamos que houve um forte aumento no total de áreas
arrendadas no Matopiba. Em 1995 havia aproximadamente 235 mil hectares arrendados,
passando para cerca de 1,8 milhões de hectares em 2017 16, o que representa um
crescimento de mais de sete vezes a área inicial. Quando analisamos por grupo de área,
observamos que durante todo período já havia uma concentração das áreas arrendadas no

2.000.000
1.800.000
Grafico 2: Área dos estabelecimentos arrendados no Matopiba
1.600.000
1.400.000
hectares

1.200.000
1.000.000
800.000
600.000
400.000
200.000
0
500A100 ACIMA
TOTAL ATÉ 10 10A50 50A100 100A200 200A500
0 1000
1.995 235.278 68.579 6.687 10.748 6.040 22.519 19.314 101.391
2.006 464.146 24.549 44.481 28.496 20.614 61.849 38.383 125.437
2.017 1.804.86 8.851 8.411 5.328 5.913 24.340 28.346 812.542

16
Devido a critérios de desidentificação adotados pelo IBGE, alguns dados referentes a certas faixas de
área são omitidos nas planilhas divulgadas publicamente. Esse fato indica que o número total de áreas
arrendadas em 2017 deve ser ainda maior.
grupo de área acima de 1000 hectares, porém em 2017 essa concentração se acentuou
ainda mais e a área arrendada se tornou oito vezes maior.

Fonte: Censos Agropecuários do IBGE, de 1995 a 2017.

Em relação aos dados referentes ao total de estabelecimentos arrendados, verifica-


se uma grande diminuição, passando de 55.055 estabelecimentos em 1995 para 12.373
em 2017. O grupo de área com até 10 hectares continua a predominar entre os
estabelecimentos arrendados, porém perde importância de forma expressiva, caindo para
menos da metade e passando de 22.790 para 9.799 entre 2006 e 2017; já os estratos
maiores, de 550 a 1000 hectares e acima de 1000 hectares, aumentam uma vez e meia e
cerca de quatro vezes, respectivamente, no mesmo período.

Assim, a análise dos dados sobre arrendamento em combinação com informações


obtidas em pesquisa de campo nos faz concluir que está ocorrendo uma mudança na
função do arrendamento de terras na região, que tem recuado em seu papel tradicional de
abrigar formas de produção camponesa e se tornado cada vez mais uma estratégia da
produção capitalista em situações em que se almeja a ampliação da área cultivada para
além da extensão de terras próprias.

No que diz respeito à participação de sociedades anônimas e por cotas de


responsabilidade limitada entre os estabelecimentos agrícolas na região, os dados do
Censo Agropecuário nos revelam o seguinte17. Dentre os 337 municípios de Matopiba,
133 apresentam registro de área de mil hectares ou mais utilizada por essas sociedades,
mas apenas sete deles tiveram esse valor revelado, e em todos esses casos tal valor
apresentou-se no estrato de 10 mil hectares ou mais. São eles: Barreiras, Luís Eduardo
Magalhães, São Desidério e Jaborandi, da Bahia; Uruçuí, do Piauí; e Peixe e Araguaçu,
do Tocantins. Desses, três municípios chamaram especialmente a nossa atenção: Luís

17
Os dados a respeito de sociedades anônimas e por cotas de responsabilidade limitada, de 2017, em
unidade de área e agrupados por estratos apresentam duras limitações. Como o número de estabelecimentos
por estrato de área é reduzido, o critério de desidentificação do IBGE exige que muitos dos dados não sejam
informados. Portanto, a quase totalidade dos dados municipais e parte significativa dos dados estaduais de
2017 são ocultadas nas planilhas. Por conta disso, as planilhas municipais não puderam ser bem
aproveitadas no estudo estatístico aqui feito, servindo apenas para chamar a atenção para alguns municípios
específicos
Eduardo Magalhães (BA), Jaborandi (BA) e Uruçuí (PI). Isso porque as áreas de 10 mil
hectares ou mais utilizadas por essas sociedades correspondem a um percentual elevado
da área total ocupada por estabelecimentos agropecuários no município: 26,99% em Luís
Eduardo Magalhães (BA), 31,93% em Jaborandi (BA) e 33,69% em Uruçuí (PI).

O que mais chama a atenção em relação a esses dados é como tanto o número
quanto a área de estabelecimentos utilizados por sociedades anônimas e por cotas de
responsabilidade limitada revelam clara concentração das atividades dessas unidades
produtoras nos maiores estratos de área. De 2006 para 2017, elas saíram dos estratos de
área menores e ampliaram sua área em estratos superiores. Além disso, o número de
estabelecimentos tendeu a diminuir ou, onde aumentou, a aumentar menos do que
aumentou a área, o que indica que a já mencionada concentração se intensificou no
período analisado: ou seja, um número menor de estabelecimentos ficaram maiores. Por
fim, percebemos que a área total ocupada por essas sociedades aumentou
vertiginosamente no Maranhão e no Piauí. No Maranhão o aumento foi de 37,47%,
passando de 6,19% para 9,9% da área total dos estabelecimentos, e no Piauí, foi de
41,67%, passando de 5,92% para 10,15%. Nos outros estados, o mesmo não ocorreu, o
que coloca esses dois estados no foco do processo de ampliação da presença de sociedades
anônimas e por cotas de responsabilidade limitada na produção agropecuária.

Essas constatações evidenciam o aumento da presença do capital monopolista em


investimentos diretos na produção agrícola na região, que corresponde à categoria de
muito grande produtores. São empresas que contam com a participação de capitais de
investidores institucionais, o que representa na prática, na grande maioria dos casos um
aumento da participação de capitais estrangeiros. A territorialização de empresas
transnacionais e capitais estrangeiros na fronteira do MATOPIBA ganha maior relevância
com a alta do preço das commodities no mercado mundial entre 2000 e 2014 e o
consequente crescimento das exportações do agronegócio brasileiro.

Considerações finais
A expansão da fronteira do Matopiba é um processo, em andamento, que revela de forma
didática as profundas contradições de um modelo de produção agrícola subordinado ao
capital monopolista-financeiro, que vai imprimindo no campo uma forma de
territorialização cada vez mais concentradora e excludente, agravando imensamente a
questão agrária.

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