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Desenvolvimento desigual e o campo brasileiro / Uneven development and the Brazilian countryside View project
All content following this page was uploaded by Marta Inez Medeiros Marques on 09 August 2020.
Anais Eletrônicos
Trabalhos Aprovados
ISBN: 978-85-415-1148-3
A EXPANSÃO DA FRONTEIRA AGRÍCOLA E A APROPRIAÇÃO DA
TERRA POR GRANDES EMPRESAS NOS CERRADOS DO CENTRO-NORTE
Introdução
Esse trabalho reúne resultados parciais da pesquisa intitulada “A territorialização
do agronegócio nos cerrados do Centro-Norte e a relação entre o capital financeiro e a
terra”, que tem por objetivo o estudo das principais mudanças verificadas nas últimas
décadas nas formas de territorialização do capital no campo na região sob a proeminência
das finanças e seus impactos sobre o uso e a propriedade da terra. Desta forma, temos
acompanhado atentamente o debate sobre as mudanças em curso no autodenominado
“agronegócio”4 brasileiro no período, com atenção especial para a crescente participação
de investidores internacionais - sobretudo aqueles vinculados ao capital financeiro - em
seus vários segmentos de atividade.5
1
Profa. Dra. do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo e coordenadora da pesquisa. E-
mail: mimmar@usp.br.
2
Aluna do curso de Graduação em Geografia da Universidade de São Paulo e membro da equipe de
pesquisa.
3
Aluna do curso de Graduação em Ciências Sociais da Universidade de São Paulo e membro da equipe de
pesquisa.
4
É preciso avaliar criticamente a história da criação e adoção desta denominação, identidade ou “marca”
pelo conjunto de negócios e capitais investidos em cadeias produtivas em que a produção agrícola
desempenha um papel importante. Os capitalistas que atuam nessas cadeias têm buscado se organizar e agir
junto ao Estado brasileiro como um importante bloco de poder, além de desenvolver um esforço coordenado
para a legitimação de suas demandas políticas e econômicas frente à opinião pública. Eles estão
representados no Congresso Nacional pela bancada ruralista e possuem amplas ramificações na economia
nacional. Sobre essa história, ver RIBEIRO Neto, 2018.
5
Essa pesquisa conta com o apoio do CNPq – Edital Universal 2018 e da Universidade de São Paulo –
Editais PUB 2018/2019 e 2019/2020.
6
Embora se reconheça as diferenças conceituais e metodológicas existentes entre as duas regionalizações,
dos Cerrados do Centro-Norte e de Matopiba, estas duas denominações se reportam em linhas gerais à
mesma área e serão utilizadas como sinônimo neste texto. Matopiba é um acrônimo formado com as iniciais
dos quatro estados, cuja parte ou a totalidade de suas áreas, compõem, a região: Maranhão, Tocantins, Piauí
e Bahia.
agricultura capitalista, consolidando um conjunto de ações realizadas pelo Estado na
região. O PDA-Matopiba foi lançado durante o Governo Dilma em 20157 e extinto no
ano seguinte pelo Governo Temer. Quando de sua criação, ele abrangia uma população
com cerca de 6 milhões de habitantes distribuída em 73 milhões de hectares (sendo 66
milhões pertencentes ao domínio original do bioma Cerrado),8 estendendo-se por 337
municípios nos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. Além disso, sua área
engloba 28 Terras Indígenas, 46 unidades de conservação ambiental (ocupando cerca de
12% da área total), 865 assentamentos rurais e 34 territórios quilombolas, bem como
outros territórios indígenas e quilombolas que ainda estão em processo de
reconhecimento, delimitação, demarcação ou titulação. (CPT, 2016 e IPEA, 2018)
A região se destaca por sua grande diversidade sociocultural e por uma economia
de base predominantemente agrária. Contudo, dado o caráter excludente e
concentracionista de terras e de capitais do modelo de produção agrícola industrial que
vem se impondo, o campo tem perdido população enquanto a cidade tem crescido de
forma acelerada, atraindo migrantes também de outras regiões. A análise dos dados dos
últimos censos demográficos (1970 a 2010) referentes ao total dos municípios que
compõem o Matopiba evidencia uma tendência de rápido aumento populacional na
região, com a passagem de 2.834.160 para 5.902.140 habitantes. Entretanto, esse aumento
se deu de modo concentrado nas cidades, tendo havido uma diminuição da população
rural de 2.221.327 para 2.046.666 habitantes.
7
Ver Portaria n. 244 de 12 de novembro de 2015 do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.
8
O bioma Cerrado possui 2.036.448 km² de extensão e ocupa cerca de 24% do território brasileiro,
abrangendo os estados de Goiás, Tocantins, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Distrito Federal, Minas
Gerais, Bahia, Maranhão, Piauí, Rondônia, Paraná e São Paulo. Disponível em
https://ww2.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/21052004biomashtml.shtm, acesso em 17/11/2018.
4500000
4000000
3500000
3000000
2500000
2000000
1500000
1000000
500000
0
1970 1980 1990 2000 2010
Rural Urbano
9
O PRODECER foi implantado em três fases. O PRODECER I teve início em 1979 e se deu com a
implantação de 4 projetos de colonização no estado de Minas Gerais. O PRODECER II, iniciado em 1985,
criou 15 projetos distribuídos pelos estados de Minas Gerais, Bahia, Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do
Sul. O PRODECER III iniciou-se em 1995 e atingiu os estados do Maranhão e do Tocantins.
10
Agradecemos a todos que nos receberam e concederam entrevistas nas cidades, fazendas e comunidades
rurais, e especialmente àqueles que de diversas formas contribuíram para a organização do trabalho de
campo, sejam colegas professores que atuam na região como Valney Dias Rigonato da UFOB, sejam
militantes da CPT como Franzé, que nos recebeu e nos apresentou a comunidades do Sul do Piauí, dentre
outros colaboradores.
grande crescimento na região na safra de 2018/19 devido a condições de preço favoráveis,
já se encontrava colhido e enfardado.
O texto está composto por três partes: (1) A produção de commodities agrícolas
sob a mundialização do capital; (2) A forma de acesso à terra e a condição legal do
produtor e (3) considerações finais.
Tem gente que tem terra, mas não tem a cultura para pegar financiamento para
produzir. O agricultor é empurrado pela a dívida. (produtor de Nova Santa
Rosa - PI, ago/2019).
O grande produtor anda de avião, não faz girar a economia daqui (grande
produtor de soja do Piauí, ao se referir àqueles que classificamos neste trabalho
como muito grande produtores, ago/2019).
O cultivo da soja tem grande destaque na região. Na grande maioria dos casos o
milho ou o algodão é cultivado em rotação com a soja e, com menor frequência, a
depender do uso da irrigação, adota-se a sucessão ou segunda safra com o cultivo do
milho ou do algodão de safrinha. Esboçamos a seguir uma classificação inicial com o
perfil dos tipos de produtores de soja encontrados:
- o pequeno produtor cultiva entre 200 a 500 ha de soja e produz com base no
trabalho familiar e no assalariamento, podendo ser um camponês remediado ou
pequeno capitalista, em geral ele aluga máquinas;
- o médio produtor cultiva entre 1.000 e 3.000 ha, é um capitalista que possui
máquinas próprias e aluga maquinário em caráter complementar;
- o muito grande produtor cultiva numa faixa que vai de acima de 10.000 ha a
mais de 100.000 ha, são em geral grandes empresas de capital monopolista que
frequentemente se inserem em estruturas de holding e se acham vinculadas a
outras frentes de investimento (o que pode incluir a especulação com a terra e a
atuação na comercialização de commodities, entre outros), possuem capital aberto
(sociedades anônimas) ou são sociedades por cota de responsabilidade limitada e
frequentemente contam com recursos de investidores institucionais (como fundos
de pensão ou fundos de investimentos) e podem arrendar terras.
Poucos produtores possuem secadoras, aqueles que têm o grão com umidade
acima de 14% precisam realizar a secagem do grão e em geral dependem das instalações
de secagem das tradings (Bunge, ALZ Grãos e outros). Como essas empresas não prestam
serviço, o custo da secagem é calculado na negociação de venda do grão para a trading.
Quando o produtor não tem volume de produção, “a trading joga o preço para baixo”,
segundo relatou um grande produtor de soja.
11
Plataforma que põe em contato produtores com máquinas ociosas, produtores que desejam alugar
máquinas, assim como empresas que alugam maquinário agrícola, e cobra uma comissão sobre o valor da
transação que intermedia.
A agricultura de base industrial está profundamente subordinada às determinações
do capital monopolista-financeiro. Delgado (2012) nos ensina que a modernização da
agricultura brasileira se deu nos anos 1960 com a expansão do capital financeiro apoiada
pelo Estado por meio do Sistema Nacional de Crédito Rural (SNCR), que desempenhou
um papel chave na vinculação da agricultura à indústria e na coordenação dos processos
de acumulação verificados em cada etapa da cadeia produtiva. A partir da década de 1990,
com as oscilações na disponibilidade de crédito público para a agricultura, vão se
estruturando e popularizando novas modalidades de crédito, de origem privada.
12
Sobre a mundialização da agricultura brasileira, ver Oliveira, 2016.
pela China National Chemical Corporation ou ChemChina em 2016; e a Bayer comprou
a Monsanto em 2018 (SEGALLA, 2018 e MACDONALD, 2019).
13
“O glifosato talvez seja o agrotóxico mais famoso do mundo. E é, com certeza, o mais vendido. Somente no Brasil,
são 110 os produtos comercializados com glifosato, de 29 empresas diferentes: foram 173 mil toneladas vendidas em
2017, três vezes mais do que o segundo agrotóxico mais comercializado, o 2,4-D.” “Após o desenvolvimento da soja
transgênica, vieram milho e algodão. ‘Passamos de 40 mil toneladas [de agrotóxicos] a 300 mil por ano no Brasil.
Mesmo com o aumento na produção de grãos, o salto no uso desses produtos foi bem maior’, acrescenta Meirelles, da
Fiocruz.” (DOMINGUES, Entenda o que é o glifosato, o agrotóxico mais vendido do mundo, Disponível
em https://g1.globo.com/natureza/noticia/2019/05/26/entenda-o-que-e-o-glifosato-o-agrotoxico-mais-
vendido-do-mundo.ghtml, acesso em 1/11/2019)
desobediência civil de um dos maiores produtores de soja do país e então Ministro da
Agricultura, Blairo Maggi. 14
Estudo recente feito pela CONAB (2017) sobre os preços praticados no Centro-
Oeste e no Sul do Brasil para fertilizantes e agrotóxicos empregados na produção de soja
e milho revela que esses produtos apresentaram em sua maioria uma variação de preços
acima da variação do IPCA entre as safras de 2010/11 a 2015/16, com destaque para o
glifosato e o roundup. Segundo o estudo, tal comportamento tem relação com o fato de
os fornecedores de insumos serem formadores de preços e conhecerem bem o
comportamento do mercado.
14
Ver em CANALAGRO do ESTADÃO, “‘Sem glifosato não há plantio’, diz ministro”, 04/09/2018. Disponível
em https://especiais.estadao.com.br/canal-agro/agrocenarios/maggi-nao-ha-saida-sem-o-glifosato-ou-nao-
planta-ou-havera-desobediencia-de-ordem-judicial/, acesso em 4/11/2019.
Para obter os insumos de que necessita, o agricultor deve assinar um contrato no
qual se compromete a entregar parte de sua próxima colheita. Isso é feito por meio de um
documento chamado Cédula de Produto Rural ou CPR,15 que irá lastrear a operação. A
CPR é uma “promessa de entrega de produtos rurais” e uma garantia para as demais partes
envolvidas na transação. No barter as operações que têm liquidação financeira
diretamente pela parte interessada nos produtos agropecuários
15
A Cédula de Produto Rural foi criada com a Lei 8.929 em agosto de 1994 e, desde então, tornou-se um
elemento fundamental nas relações de crédito na produção de commodities agrícolas.
relacionada à tendência de crescimento da renda da terra decorrente da conjuntura de
expansão da produção de commodities; (2) no nível mais global, ela está atrelada ao
movimento geral de expansão do capital monopolista-financeiro e à sua busca de novas
frentes de investimento em face de um período de crise de sobreacumulação agravada
pela crise financeira de 2008.
2.000.000
1.800.000
Grafico 2: Área dos estabelecimentos arrendados no Matopiba
1.600.000
1.400.000
hectares
1.200.000
1.000.000
800.000
600.000
400.000
200.000
0
500A100 ACIMA
TOTAL ATÉ 10 10A50 50A100 100A200 200A500
0 1000
1.995 235.278 68.579 6.687 10.748 6.040 22.519 19.314 101.391
2.006 464.146 24.549 44.481 28.496 20.614 61.849 38.383 125.437
2.017 1.804.86 8.851 8.411 5.328 5.913 24.340 28.346 812.542
16
Devido a critérios de desidentificação adotados pelo IBGE, alguns dados referentes a certas faixas de
área são omitidos nas planilhas divulgadas publicamente. Esse fato indica que o número total de áreas
arrendadas em 2017 deve ser ainda maior.
grupo de área acima de 1000 hectares, porém em 2017 essa concentração se acentuou
ainda mais e a área arrendada se tornou oito vezes maior.
17
Os dados a respeito de sociedades anônimas e por cotas de responsabilidade limitada, de 2017, em
unidade de área e agrupados por estratos apresentam duras limitações. Como o número de estabelecimentos
por estrato de área é reduzido, o critério de desidentificação do IBGE exige que muitos dos dados não sejam
informados. Portanto, a quase totalidade dos dados municipais e parte significativa dos dados estaduais de
2017 são ocultadas nas planilhas. Por conta disso, as planilhas municipais não puderam ser bem
aproveitadas no estudo estatístico aqui feito, servindo apenas para chamar a atenção para alguns municípios
específicos
Eduardo Magalhães (BA), Jaborandi (BA) e Uruçuí (PI). Isso porque as áreas de 10 mil
hectares ou mais utilizadas por essas sociedades correspondem a um percentual elevado
da área total ocupada por estabelecimentos agropecuários no município: 26,99% em Luís
Eduardo Magalhães (BA), 31,93% em Jaborandi (BA) e 33,69% em Uruçuí (PI).
O que mais chama a atenção em relação a esses dados é como tanto o número
quanto a área de estabelecimentos utilizados por sociedades anônimas e por cotas de
responsabilidade limitada revelam clara concentração das atividades dessas unidades
produtoras nos maiores estratos de área. De 2006 para 2017, elas saíram dos estratos de
área menores e ampliaram sua área em estratos superiores. Além disso, o número de
estabelecimentos tendeu a diminuir ou, onde aumentou, a aumentar menos do que
aumentou a área, o que indica que a já mencionada concentração se intensificou no
período analisado: ou seja, um número menor de estabelecimentos ficaram maiores. Por
fim, percebemos que a área total ocupada por essas sociedades aumentou
vertiginosamente no Maranhão e no Piauí. No Maranhão o aumento foi de 37,47%,
passando de 6,19% para 9,9% da área total dos estabelecimentos, e no Piauí, foi de
41,67%, passando de 5,92% para 10,15%. Nos outros estados, o mesmo não ocorreu, o
que coloca esses dois estados no foco do processo de ampliação da presença de sociedades
anônimas e por cotas de responsabilidade limitada na produção agropecuária.
Considerações finais
A expansão da fronteira do Matopiba é um processo, em andamento, que revela de forma
didática as profundas contradições de um modelo de produção agrícola subordinado ao
capital monopolista-financeiro, que vai imprimindo no campo uma forma de
territorialização cada vez mais concentradora e excludente, agravando imensamente a
questão agrária.
Referências bibliográficas:
AGUIAR, Gustavo et alii. A última fronteira agrícola. Agroanalysis, maio, 2013, p. 15-
16.
FAVARETO, Arilson. Existe mais pobreza e desigualdade que bem-estar e riqueza nos
municípios do Matopiba. Revista NERA, v. 22, n. 47, Dossiê 2019, p. 348-381.