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UERJ – UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Claudia Miranda

Narrativas Subalternas e Políticas de Branquidade: O


Deslocamento de Afrodescendentes como Processo Subversivo e as
Estratégias de Negociação na Academia

TESE DE DOUTORADO

Programa de Pós-Graduação em Educação/Proped

Rio de Janeiro
Outubro de 2006
Claudia Miranda

Narrativas Subalternas e Políticas de Branquidade: O


Deslocamento de Afrodescendentes como Processo Subversivo e as
Estratégias de Negociação na Academia

Tese de Doutorado

Tese apresentada ao Programa de Pós-


graduação em Educação da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro como
requisito parcial para a obtenção do título
de Doutora em Educação.

Orientador: Prof. Dr. Pablo Gentili

Rio de Janeiro, outubro de 2006

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3
Claudia Miranda

Narrativas Subalternas e Políticas de Branquidade: O Deslocamento de


Afrodescendentes como Processo Subversivo e as Estratégias de Negociação
na Academia

Tese apresentada ao Programa de Pós-


graduação em Educação da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro como requisito
parcial para a obtenção do título de Doutora
em Educação.

Prof.Pablo Gentili
Orientador
Programa de Pós-graduação em Educação –UERJ

Prof. Jacques Edgard François d’Adesky


Universidade Candido Mendes

Prof. Wilson Roberto de Mattos


Programa de Pós-graduação em Educação - Universidade do Estado da Bahia

Prof.Vânia Penha-Lopes
Bloomfield College

Prof. Inês Barbosa


Programa de Pós-graduação em Educação –UERJ

Rio de Janeiro, 5 de outubro de 2006.

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Claudia Miranda

Graduou-se em Letras (português espanhol) pela Universidade Federal do Rio de


Janeiro (UFRJ) em 1992. Professora das redes estadual e municipal, cursou Mestrado
em Educação na UFRJ defendendo a dissertação em 2001. Participou de diversos
encontros na área de Educação, dedicando-se aos estudos subalternos com especial
interesse para as relações de inspiração colonial tanto no currículo quanto nas práticas
discursivas.

Ficha Catalográfica

Miranda, Claudia

Narrativas Subalternas e Políticas de Branquidade: O Deslocamento de


Afrodescendentes como Processo Subversivo e as Estratégias de
Negociação na Academia

242 f., 30 cm.

Tese (doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Progama de


Pós-graduação em Educação

Inclui referências bibliográficas.

1. Educação – Teses. 2. Estudos Subalternos. 3. Crítica pós-colonial.


4. Sociologia da educação superior. 5. Afrocentricidade

5
Dedico esta tese à minha mãe, Rosa de Lima
ao meu pai, Creso da Silva Miranda e aos seus netos Amir, Berguinho, Junior e Moninha,
por me ensinarem, todos os dias, a ser uma pessoa melhor.

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Agradecimentos
Meu primeiro agradecimento é à Faculdade de Educação da UERJ: aos funcionários e
professores pelo apoio durante o curso. Sou grata, especialmente, à professora Elizabeth
Macedo pelo acolhimento em seu grupo de pesquisa e à companheira de turma, Ozerina de
Oliveira pelas trocas realizadas em diferentes dimensões.
Um agradecimento especial ao meu orientador, professor Pablo Gentili pela ambiência
de produção oferecida no Laboratório de Políticas Publicas, no Programa Políticas da Cor por
cerca de dois anos durante o curso do doutorado e por aceitar negociar comigo.
Aos intelectuais militantes aqui presentes, pela (s) negritude (s) que deixaram dentro
de mim quando da nossa entrevista. Sem a sua generosidade, não poderia saber que o meu
trabalho é fruto de seus esforços. Agradeço também aos intelectuais aparentemente ausentes
pelo exemplo que são para a minha via-crucis.. Agradeço com profundo carinho aos
componentes desta banca.
Aos companheiros de vida Fabiana Peixoto, Viviane de Jesus, Jai, Lenora e David
Kanamua, que muitas vezes distantes, foram parte de minha inspiração. Meu carinho e
agradecimento aos amigos que não cito.
Agradeço especialmente a Fabiana Peixoto pela revisão do texto que realizou de modo
cuidadoso. Aos meus companheiros de pesquisa no PPCOR, Fabiola Camilo e Rogério José,
por serem hoje grandes irmãos e pelos ensinamentos que nossa amizade proporcionou ao
longo de minha pesquisa. Agradeço a Helio Ventura, Carlos Recci, Rogério José, Fabiola
Camilo pelas transcrições realizadas com dedicação e cumplicidade. Às professoras Lucia
Sasse, Maria das Graças Arruda e à Rosa Neves, mulheres parceiras que aceitaram negociar
comigo.
Ao meu parceiro de todas as horas, Augusto Lima, sobretudo pela generosidade. Sem
suas críticas, correções e leituras tão necessárias nesse momento, não avançaria.
Agradeço a Bruno Duarte pelo apoio técnico realizando revisões diversas.
À Secretaria Municipal de Educação pela licença concedida e aos meus alunos do
ensino fundamental pelo carinho diário que me ajudou a caminhar.
À mana Cida, guerreira exemplar que sempre foi minha inspiração. Obrigada pelo seu
colo que me acolhe até hoje. Um agradecimento ao cunhado Carlos Alberto pela felicidade
que trouxe quando já não tínhamos forças. Agradeço a Rosângela Miranda por existir e não
desistir. Obrigada pela organização dos papéis, pelas conversas de mana. Aos meus velhos:
Creso da Silva Miranda, pai amoroso e Rosa de Lima, mãe adorável. Agradeço por estarem
junto de mim a todo tempo mesmo quando distantes.
Por fim, gostaria de agradecer a CAPES, que me auxiliou com uma bolsa de estudos
durante quatro anos.

7
Resumo

Esta investigação tem a ver com a experiência de intelectuais brasileiros situados entre os
grupos não-brancos definidos também como afrodescendentes, afrobrasileiros, negros, pretos
e pardos. Trata-se de um trabalho sobre um grupo de acadêmicos inserido na luta pela
representação política em distintos fóruns de decisão, como foi o III Congresso Nacional de
Pesquisadores Negros (III COPENE, 2004) organizado pela Associação Nacional de
Pesquisadores Negros (ABPN). Partimos das narrativas que constroem sobre táticas de
sobrevivência intelectual e das suas representações sobre o que é a luta retórica a partir da
imersão no mundo acadêmico. Destacamos a experiência subalterna em espaços de prestígio
dando ênfase ao processo de desestabilização da esfera pública tendo como foco o desejo pelo
reconhecimento do seu direito de participar desenvolvendo ciência a partir de uma
racionalidade afrocentrada. A agência (HOMI BHABHA) converte-se numa categoria
fundamental nos estudos sobre cultura e formação da identidade do subalternizado bem como
a ética fanoniana (FRANTZ FANON). Defendemos que na ética de Fanon, é possível
localizarmos uma tradução das possibilidades de pertencer, apontadas primeiro pelo(s)
Movimento(s) Negro(s) visto no âmbito geral e segundo por um movimento em ascensão de
intelectuais-acadêmicos-afrodescendentes no sentido de dar continuidade para as formas de
representação política partindo de uma formação científica tendo em vista o peso da
certificação no nível da pós-graduação. A idéia de “descolonização do pensamento” é atraente
para a perspectiva que cruza o questionamento das narrativas sobre um Outro Colonial e o seu
deslocamento nas relações de inspiração colonial. A centralidade da análise Pós-colonial se
justifica por ser uma perspectiva que foge dos limites impostos pela reflexão pautada apenas
nas relações de poder entre “metrópole” e “colônias” no sentido clássico, oferecendo-nos um
corpo teórico indispensável para produzirmos estudos que vislumbre outras formas de
racionalidade.

Palavras-chave:
Estudos Subalternos, afrocentrismo, universidade pública, negociação

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Resumen

La siguiente investigación se relaciona a la experiencia de intelectuales brasileños ubicados


entre los grupos no-blancos igualmente definidos como afrodescendientes, "afrobrasileros",
negros, "pretos" y "pardos". El trabajo trata del acercamiento a un grupo de académicos
involucrados en la lucha por la representación política en distintos foros de decisión, tal como
fue el III Congreso Nacional de Investigadores Negros (III COPENE, 2004). El estudio se ha
hecho desde las narraciones que construyen esos intelectuales sobre estrategias de
supervivencia intelectual y sus representaciones acerca de lo que es la lucha retórica desde su
inmersión en el mundo académico. Se destaca la experiencia subalterna en espacios de
prestigio con énfasis en el proceso de desestabilización de la esfera pública, con una mirada
centrada en el deseo por el reconocimiento de su derecho a participar en el desarrollo
científico desde una racionalidad afrocentrada. La agencia (HOMI BHABHA) se ha
convertido en una categoría fundamental en los estudios sobre cultura y formación de la
identidad del subalternizado, así como la ética fanoniana (FRANTZ FANON). Defendemos
que desde la ética de Fanon es posible ubicar una traducción de las posibilidades de
pertenecer, señaladas en primer término por el(los) Movimiento(s) Negro(s) en el ámbito
general, y luego por un movimiento en ascenso de intelectuales-académicos-afrodescendientes
en el sentido de dar continuidad a las formas de representación política desde una formación
científica considerándose el peso de la certificación en el nivel del postgrado. La idea de
"descolonización del pensamiento" a que alude la ética de Frantz Fanon resulta atractiva a la
perspectiva que entrecruza el planteamiento de las narrativas sobre el Otro Colonial y su
desplazamiento en las relaciones de inspiración colonial. La centralidad del análisis
Postcolonial se justifica por ser una perspectiva que escapa a los límites que impone la
reflexión basada únicamente en las relaciones de poder entre "metrópoli" y "colonias" en el
sentido clásico, y que por ello nos ofrece un corpus teórico ineludible a la producción de
estudios que aporten otras formas de racionalidad.

Palabras-clave:
Estudios Subalternos, afrocentrismo, universidad pública, negociación

9
Abstract

This research is about the experience of Brazilian scholars that are among the non-white
groups, as well defined as afro-descendents, afro Brazilians, blacks and browns. This research
deals about a group of scholars academics inserted in the struggle for political representation
in diverse decision forums, such as the III National Congress f Black Researchers (III
COPENE, 2004). We arise from the built narratives about strategies of academic survival and
its representations about what is the rhetoric struggle from the immersion in the academic
world.
We highlight the subaltern experience in prestigious scenarios, emphasizing the
destabilization process of the public sphere, having as focus the desire for acknowledgement
of its right to participate developing science from afrocentered rationality. The agency (HOMI
BHABHA, 1998) converts itself into a elemental category in the studies about culture and
development of the subaltern identity as well as the Fanonian ethics (FRANTZ FANON,
1962). We support that is possible, from a Fanon ethics perspective, to determine the
translation of possibilities of belonging, designated firstly by the Black Movement(s), seen in
a general extent and, secondly, by a afrodescendent-academic-scholar rising movement in the
sense of continue the means of political representation, rising from a scientific formation,
also considering the influence of the certification in the pos graduation level. The idea of
“decolonization of the thought”, present in Fanon’s ethics, is attractive to the perspective that
cross the question of the narratives about an Another Colonial and its displacement in the
relationships of colonial inspiration. The centrality of the post colonial analysis is justified by
being a perspective that runs away from the imposed limits by the reflection based only on the
power relationships between “metropolis” and “colonies” in the classic sense, presenting us
an indispensable theoretical body to produce studies that descry other forms of rationality.

Key-words:
Subaltern Studies, afrocentrism, public university, negotiation

10
SUMÁRIO
I. Introdução 12
1.1.Sobre uma perspectiva subalterna afrocentrada 21
1.2. Uma perspectiva deslocada 24
1.3. Processos de descolonização na produção acadêmica: algumas questões de estudo 37
1.4. Fortalecimento de intelectuais afrodescendentes: a universidade “por fora” 40
1.5. Conversas afrocentradas na universidade pública 43
1.6. Contexto, cenário, informantes chaves e o caminho percorrido 46
1.6.1. Objeto de estudo e objetivos da pesquisa 49
1.6.2. Sobre os métodos e técnicas 50
1.6.3. Os espaços de interlocução 51
1.6.4. A entrevista 52

II. Narrativas subalternas e outras racionalidades: afrocentrando o debate 53


2.1. A colonização como um fato social total revigorado (!) 57
2.2. Reivindicando o legado da crítica pós-colonial 62
2.2.1. Alcances pós-coloniais 65
2.2.2. Negritude(s) como bandeira anti-racista 70
2.3. A ética fanoniana 86
2.3.1. A descolonização e a consciência do Outro 94
2.3.2. Combatentes anticoloniais: para entender a perspectiva do Outro 98
2.3.3. Anticolonialismo, espaço acadêmico e entre-lugar 106

III. Uma interpretação subalterna sobre o projeto colonial na universidade 113


3.1. Vozes dissonantes e discursos sobre os insurgentes 118
3.1.1. Para quem a universidade cresceu 122
3.1.2. A patrimonialização e seus reflexos no sistema de ensino superior 134

IV. Divisão de espaços e crise de identidade: outsiders e estabelecidos 138


4.1.Outsiders e a universidade como um desejo sobrante 146
4.2. Identidades na universidade pública: estigma e afrodescendência 155
4.3. Representações acerca dos circulantes 161

V. Outras conversas: entrevistas com intelectuais afrodescendentes 167


5.1. Situações mistas na subalternidade 173
5.1.1. Do Movimento Negro à universidade 174
5.1.2. Da universidade para o Movimento Negro 179
5.2. Ajustes e negociações 186
5.2.1. Estabelecidos e insurgentes: disjunções nas relações mistas 192
5.3. A centralidade da universidade pública para uma agenda afrocentrada 203
5.3.1. Passando fome na universidade 209
5.3.2. Ajuntamento e adoção: idiossincrasias de uma via-crucis 211
5.4. Sobre a infantilização e outros estigmas 218

VI. Itinerário de pesquisa e impressões de estudo: uma pausa 224

VII. Referências bibliográficas 231

11
I. INTRODUÇÃO
Esta investigação tem a ver com um desejo sobrante1 de intelectuais brasileiros
situados entre os grupos não-brancos2. Definidos como afrodescendentes3, afrobrasileiros,
negros, negros e pardos4, pretos e pardos, um grupo de acadêmicos inserido na luta pela
representação política em distintos fóruns de decisão, como foi o III Congresso Nacional de
Pesquisadores Negros (III COPENE, 2004), narra suas representações sobre o que é a luta
retórica a partir da chegada no mundo acadêmico. Destacando sua experiência subalterna
(alunos e/ou professores) em espaços de prestígio - como é o caso dos programas de mestrado
e doutorado de universidades públicas - esse grupo carrega uma bandeira de luta pela
participação na esfera pública, incluindo, em sua agenda, o item “reconhecimento do seu
direito de participar” desenvolvendo ciência a partir de uma lógica afrocentrada e que,
portanto, contempla formas de humanização de multidões que sofrem com o que chamamos
de “injustiça racial”.
Neste trabalho, a agência5,
uma categoria fundamental nos estudos de Homi Bhabha (1998) sobre cultura e formação da
identidade, pode ser uma tradução das possibilidades de pertencer, apontadas pelo movimento
de intelectuais-acadêmicos-afrodescendentes de engrossar as formas de representação política

1
Na definição de Joel Rufino dos Santos (2004), o desejo sobrante é algo fundamental à economia
modernizante já que a exclusão é algo impossível, operando como inclusão que se dá pela condição de ser pobre
e discriminado.
2
A aventura colonial teve como protagonistas os eurodescendentes, portanto, homens e mulheres brancos. A
normalidade, segundo as relações coloniais, é a brancura da cor da pele. Aqueles que têm contato com o
colonizador em suas terras estariam recebendo civilidade, algo que lhes falta. Assim, a brancura da pele é uma
marca da normalidade, pode ser invisibilizada na medida em que não é vista como parte da identidade branca.
Portanto, neste projeto de tese problematizamos o lugar dos grupos reconhecidos e identificados como brancos
para discutir a produção de sua invisibilidade. Isso significa que existe um suposto bônus social dado pelo
sortilégio da cor – neste caso para os que são eurodescendentes – que os invisibiliza, já que socialmente quem é
assim reconhecido desfruta do privilégio simbólico da brancura. Maria Aparecida Silva Bento (2003) afirma que
os privilégios dos grupos brancos não são discutidos, apesar de a escravidão dos povos africanos ter sido
desumana, deixando heranças simbólicas para os brancos. Por isso, tornou-se essencial silenciar em torno do
papel que ocuparam e ocupam na situação de desigualdades raciais no Brasil.
3
No sentido empregado, nos referimos aos grupos ou indivíduos reconhecidos pelos aspectos como os traços
nítidos do fenótipo africano na miscigenação, que se destacam mais pelo formato do rostos, os tipos de cabelo e
ainda pela cor da pele, sem deixar dúvidas de seu pertencimento étnico, sem facilitar as fugas como, por
exemplo, as mudanças corporais produzidas na tentativa de embranquecimento.
4
A introdução da Lei de Reserva de vagas para Egressos de Escolas Públicas e Cotas para Negros, Pardos e
Carentes na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2000), conforme indica o seu próprio nome, parece
inaugurar uma outra forma de classificar os grupos afrodescendentes de maior evidência, tendo em vista aquilo
que já sabemos sobre a conformação da categoria “negro”, que agrupa pretos e pardos num mesmo leque.
Conforme observa Elielma Ayres Machado (2004), em sua tese que documenta e analisa a introdução de tal lei,
tais categorias são interpretadas como categorias sociais acionadas para classificar socialmente esses grupos.
5
Estamos recuperando, nesta tese, o conceito de Agência desenvolvido por Homi Bhabha (1998) por
entendermos que sua conceituação tira as rasuras de nossas hipóteses justamente pela atualidade de seu
argumento sobre as práticas de negociação, de luta pelo direito a estar junto, interagindo, garantindo

12
partindo de uma formação científica, tendo em vista o peso desse tipo de certificação. A
definição de “agência” é atraente para a perspectiva que cruza o questionamento das
narrativas sobre um Outro colonial6 – conseqüentemente em condição de subalternidade – e o
seu deslocamento nas relações coloniais. A definição está afinada com os pressupostos
presentes nos trabalhos sobre o que significa a crítica pós-colonial. A análise pós-colonial
foge dos limites impostos pela reflexão pautada apenas nas relações de poder entre
“metrópole” e “colônias” no sentido clássico, por assim dizer, e persegue a tese da existência
de relações coloniais de poder que inclui relações atuais de dominação entre nações. São
relações próprias de uma situação de exploração econômica mas sobretudo de um
imperialismo cultural (SILVA, 1999, p.125). Agregamos a esta definição a idéia de que
relações coloniais de poder são também apreendidas entre grupos situados em um mesmo
contexto nacional e que conseqüentemente se refletem nas esferas como os centros de
pesquisa reconhecidos como espaços privilegiados de inserção cultural e social.
Para Edward Said7 (1995) a literatura, interpretada como um conjunto de narrativas, é
vista como um veículo conformador de idéias e por isso é justamente a literatura que refletirá
a aventura colonial européia com maior eficácia. Nestes argumentos, a idéia imperial foi
construída antes mesmo da França e da Inglaterra se lançarem às conquistas territoriais no
século XIX e esta ideologia revela que a literatura foi um dos veículos importantes de sua
preservação nos séculos XVIII e XIX, presumindo a submissão dos povos conquistados e

protagonismo. O autor considera que a agência é a possibilidade do retorno do sujeito, e descreve esta forma
especificada de Agência como “um corte profundo do signo e do símbolo” (BHABHA, 1998, p.269).
6
Esta definição foi retirada das observações presentes nos trabalhos sobre o que significa a crítica pós-colonial.
Há indicações de que a análise pós-colonial foge dos limites impostos pela reflexão pautada apenas nas relações
de poder entre metrópole e colônias e persegue a tese da existência de relações coloniais de poder, que inclui as
relações atuais de dominação entre nações próprias de uma situação de exploração econômica e de um
imperialismo cultural (SILVA, 1999, p.125). Agregamos a esta definição a idéia de que “relações coloniais de
poder” são também apreendidas entre grupos situados em um mesmo contexto nacional, desdobrando-se em
situações/relações coloniais no cotidiano, respeitando rituais de subalternização do Outro Colonial dentro de
determinadas esferas, como é o caso dos centros de pesquisa, das universidades, reconhecidas como espaços
privilegiados de inserção cultural e também social. Não obstante, entendemos, inicialmente, que tais noções
acerca das relações e situações coloniais precisam ser investigadas no âmbito das relações hospitalares,
judiciárias etc., tendo como um achado teórico entender os aspectos de um colonialismo interno, um modelo
civilizatório facilitado por instâncias, como as universidades de prestígio.
7
Edward Said marca sua produção intelectual preocupado com a existência dos grupos representados e
ordenados como os “outros”, tendo em vista a sua condição de palestino pertencente à diáspora. Apoiado no
esquema teórico de estudos também herdeiros de uma produção diaspórica, como é o caso de Aimé Cesaire e de
Frantz Fanon, Edward Said é fundamental para compreendermos o discurso colonial e as narrativas construídas
na experiência da condição de subalternidade. Interpretando o papel exercido por John Stuart Mill, Ernesto
Renan, Flaubert, Gobineau, entre outros, Said afirma que a inauguração deste estilo ocidental que pretendeu
dominar, reestruturar e ter autoridade sobre o Oriente ficou definida a partir da hegemonia de idéias criada por
esses produtores de discursos racistas. Por isso, as idéias racistas surgem deste discurso orientalista.

13
relegando-os a um papel meramente secundário nas narrativas em que aparecem apenas para
emoldurar os efeitos dos personagens centrais: sempre europeus e brancos. Os territórios
coloniais são campos de possibilidade e sempre estiveram associados ao romance realista.
Robson Crusoé – uma narrativa importante para as suas análises – é impensável sem a missão
colonizadora (SAID, 1995).
Com essa proposição, Said (ibid) reforça sua intenção de mostrar até onde se deu a
busca da consciência do domínio ultramarino e quão enriquecedora é, para nossa criticidade, a
atenção a essa temática. Este contorno da feitura da história a partir da narrativa dos romances
nos permite interpretar as obras canônicas dos séculos XIX e XX com um outro
comprometimento, reorientando a pesquisa sobre o que é legítimo e o que é legitimado neste
conjunto de procedimentos que registram e recriam o real.
Numa análise extensa incluindo África, Caribe, Austrália e outras áreas do planeta em
que o Ocidente se fez presente, seja na forma de imperialismo ou colonialismo formal, Said
entende orientalismo para além da invenção do Oriente pelo Ocidente. Tornou-se inevitável
nossa aproximação com seu quadro teórico, dando especial mirada para os pressupostos que
dão ênfase a uma lógica sobre a abrangência da noção de orientalismo.
Como invenção, o orientalismo revela o poder da cultura na dominação desses povos e
as formas de resistência dos colonizados à dominação. Em Cultura e imperialismo (SAID,
1995, p.106), o romance é analisado como um artefato cultural da sociedade burguesa e, como
resultado, o imperialismo e o romance se fortaleceram reciprocamente a um tal grau que seria
impossível ler um sem estar lidando de alguma maneira com o outro. Para Said (1990), o
orientalismo é um “discurso poder”, uma idéia que tem uma história, uma tradição de
pensamento, imagens e um vocabulário que lhe concedeu uma realidade e uma presença para
o Ocidente; o orientalismo é um signo do poder do Atlântico Norte sobre o Oriente.
Essas notas podem ser apreendidas para redefinirmos o olhar deste estudo construído
na subalternidade e sobre a representação do subalterno. Buscamos, por isso, captar com
coerência e compromisso teórico a conformação das identidades dos distintos grupos
ordenados pela hierarquia necessária ao modelo de diferentes economias culturais, por assim
dizer. A universidade é uma esfera pública e, ao mesmo tempo, pode vir a ser um território de
negociação entre os distintos grupos nela envolvidos. Pode ser, sobretudo, um locus definidor
de outras formas de produção de saberes. Podemos entender este trabalho como uma
discussão inaugural dos estudos sobre a experiência de pertencimento acadêmico de um grupo

14
subalterno8, marcado pelo enfrentamento em situações mistas9. Situações mistas são situações
que se dão a partir de relações entre sujeitos estigmatizados, de um lado, e, do outro, sujeitos
representados como normais convivendo entre si e enfrentando as limitações impostas pelos
espaços coloniais de poder. O pano de fundo se localiza na hipótese de que, para intelectuais-
acadêmicos-afrodescendentes, é no interior da universidade pública que se promoverá um
fórum indispensável para provocar uma espécie de desestabilização do modelo unívoco de
produção de conhecimento. Essa idéia pode ser mais bem compreendida quando levamos em
conta o significado da presença de um Outro em espaços coloniais: trata-se de algo estranho,
não pertencendo ao grupo estabelecido e, mais instigante ainda, comportando-se como se
pudesse produzir outras teorias, indo além da razão ocidental. Tomando como indispensáveis
experiências nascidas na subalternidade, esse Outro encontra numa suposta trajetória coletiva
argumentos para sua defesa sobre narrativas marginais, um contradiscurso e uma disjunção
teórica.
Nesta tese, a centralidade do enfrentamento assumido por esse grupo de intelectuais é
justamente pelo fato de reconhecermos nuanças de um modo de pertencer ao espaço colonial.
Ou seja, o esforço de manter-se na universidade indo além da formação graduada oferece
algumas pistas sobre a existência de um ativismo acadêmico afrocentrado no sentido de se
alcançar representação política nascida dessa experiência subalterna. Refletindo um desejo
por liberdade − um desejo minimamente satisfeito na medida em que as condições de
participar na esfera pública são garantidas pelas possibilidades de existência de uma agência
política na academia, poder participar confere a esse grupo o poder de representar, falar pelo
seu grupo social/racial.
Interpretando Liberdade e política em Hannah Arendt, Samir Haddad (1999, p.25)
entende que, para a filósofa alemã, “a liberdade não é uma potencialidade da natureza
humana, mas da ação humana, não se encontra dentro do homem mas se dá no convívio e no
espaço entre os homens”. Acrescenta o fato de ser essa uma compreensão localizada no

8
A noção de subalternidade a que nos referimos é retirada dos estudos subalternos e da teoria pós-colonial que
analisam as relações coloniais de poder e projetos de colonização por grupos. Sua abordagem inclui as
conseqüências deixadas pela exploração econômica, a ocupação militar, além da dominação cultural. Na
perspectiva pós-colonial, o foco está nas chamadas “narrativas” sobre nacionalidade e raça sobre o “estranho”
como, por exemplo, o Oriente. Nos estudos na área de análise cultural, entendido como pós-colonialismo, Mary
Pratt (1997) argumenta que o olhar transforma as pessoas em coisas e neste sentido a visão e o poder estão
imbricados e mutuamente se regulam. Esta abordagem nos auxilia no entendimento do que tem sido a
representação do lugar social do homem de cor. No contexto colonial o olhar de quem domina é capaz de
imobilizar e disponibilizar as pessoas transformadas em coisas que podem ser produtos prontos para o consumo.
9
Entre sujeitos vistos como normais e sujeitos vistos como diferentes, segundo Irving Goffman (1988) se
estabelecem situações mistas pelo fato de serem distintos e estarem desfrutando de modo distinto da liberdade de
participação.

15
quadro teórico de Arendt, já que a autora constrói um conceito particular para pensar a
política (HADDAD, 1999, p.27). Hannah Arendt incorpora a noção de ação humana como
uma das três atividades fundamentais do homem. A sua condição é a pluralidade que, por sua
vez, é a condição de toda vida política:

Ação, agir e liberdade são o mesmo, e este é o espaço da política para Hannah Arendt. Entretanto, esta
capacidade de agir que determina a liberdade do homem não se dá internamente mas em conjunto com
outros homens. A natureza do homem não é política mas apolítica. A política não se dá nos homens mas
entre os homens, fora deles, no espaço entre eles, e é aí que podemos falar que são livres, pois há a
possibilidade de agir e de pôr em movimento (HADDAD, 1999, p.27).

Pelo exposto, o debate sobre representação política deve ser aquele que não ignora seu
aspecto filosófico. Conforme veremos ao longo desta investigação, não seguiremos os passos
de Hannah Arendt, sobretudo por ter, esta tese, reflexos da experiência da subalternidade.
Todavia, em alguma medida, as impressões de leitura sobre sua perspectiva de liberdade
podem ser distinguidas e ampliadas com as asserções sobre representação política presentes
no discurso de nossos interlocutores imediatos.
O que destacamos, para localizar a agência afrodescendente, são justamente as leituras
críticas dos estudos pós-coloniais, dos estudos subalternos e aspectos dos estudos das relações
raciais, tendo em conta nosso ponto de partida para entender a participação política como
muito próxima de uma “linguagem ambivalente da emancipação, a linguagem das demandas
do grupo na sociedade global, que faz da comunidade uma superfície de inscrição, uma
condição das possibilidades de representação” (SODRÉ, 1999, p.210). Neste contexto, está
embutida a luta por princípios, e, sendo assim, é impossível não encontrarmos disjunções
entre o modelo tradicional de universidade e um outro modelo que se pretende vigoroso por
exigir uma gestão pública voltada para a abertura ao conhecimento, nascido também das
experiências periféricas e/ou subalternas.
Sobre isso, Souza Santos (2004, p.70) também nos ajuda a ampliar nosso argumento
sobre o debate acerca da democratização da universidade quando afirma que ela “deve dar
uma centralidade muito específica às ações contra a discriminação racial”. O autor reconhece
o elitismo social vigente e responsabiliza a conformação tradicionalista pela perda da
legitimidade social. Como aspecto desestabilizador desta conformação, a racialidade não está
apenas no campo das idéias. Sendo assim, adiar este enfrentamento significa deixar de

16
defender perspectivas de interculturalidade nas quais está apoiado o movimento10 de
intelectuais-acadêmicos-afrodescendentes no Brasil.
Como vertente de grande expressão teórica, é no campo das análises literárias que a
crítica pós-colonial melhor se traduz por examinar produções nascidas do ponto de vista de
quem detém o poder de falar sobre os Outros e por examinar sobretudo a produção desses
Outros, inicialmente os sujeitos que pertencem às nações dominadas. Seria pertinente
recuperarmos aspectos de teses sobre a existência de um tipo de colonialismo interno11, para
apreciar traços de uma organização social empenhada em revitalizar narrativas produzidas em
grandes centros sobre um Outro colonial. Considerarmos os espaços da universidade como
parte da engrenagem desse modo colonial de organização é dar visibilidade à hierarquia
interna bem como aos modos de produção do conhecimento de intelectuais que contemplam a
perpetuação do eurocentrismo12.
Segundo Edward Said (2005), a Europa e o Ocidente perderam a capacidade de
iluminar intelectual e politicamente o que se costumava denominar de regiões obscuras da
Terra, já que não são mais padrões indiscutíveis para o resto do mundo. Como centro, e,
dentro desta perspectiva reprodutora, o ofício da academia, no resto do mundo, tem sido
apoiar a pesquisa do intelectual brasileiro nela inserido, legitimando narrativas construídas
dentro do cânon desejado, pesquisas interessadas e sem qualquer neutralidade. O que
podemos afirmar é que há, no discurso acadêmico proferido a partir deste espaço colonial,
poucas pesquisas sobre a racialidade. Pelo contrário, encontramos indicações de que, na sua
tarefa de alimentar a esfera pública, lideranças, agentes dos movimentos sociais, intelectuais
não-brancos estão fixados na sua condição de periferia. Em Representações do intelectual
(SAID, 2005, p.52), Said lembra que “em tempos difíceis, o intelectual é muitas vezes
considerado pelos membros de sua nacionalidade alguém que representa, fala e testemunha
em nome do sofrimento daquela nacionalidade”. Ao assumirmos esta representação, é
inevitável provocar as bases do pensamento social brasileiro no que se refere ao lugar dado à
“questão do negro”, como se convencionou chamar.

10
O substantivo “movimento” serve para dar ênfase aos diferentes acontecimentos promovidos pela
conscientização das questões que afetam a população negra. Intelectuais afrodescendentes estão produzindo teses
e argumentos sobre suas visões das relações raciais a partir de suas áreas de interesse. Desde a universidade,
provocam as outras visões já estabelecidas a partir do pensamento social fortemente marcado pelo
eurocentrismo. Visando garantir a inserção dos estudantes não-brancos quando docentes em universidades
públicas, lutam para promover o debate universitário sobre a instituição das ações afirmativas no ensino superior.
11
Ver Casanova (2003).
12
Mais atual seria incorporarmos a definição cunhada por Amaury Mendes Pereira (2003) de um
“etno/euro/norteamericanocentrismo”.

17
Uma conduta interessada em examinar produções do ponto de vista dos diversos
Outros em permanente ebulição pode dar visibilidade aos seus instrumentos de luta. Henrique
Cunha Junior13 (2003) apresenta pistas para essa mirada quando aponta o seguinte
pressuposto:

(...) os argumentos da história não são suficientes para a consciência de que existe um erro, se
perpetrado na composição dos corpos de pesquisadores brasileiros nas temáticas elegidas pela ciência
brasileira, sobretudo nas políticas científicas e de formação de pesquisadores no país.(...) num país que
forma seis mil doutores por ano, vemos que 1% é negro, menos de 1% trata de temas de interesse das
populações afrodescendentes (CUNHA JR., 2003, p.156).

A preocupante contradição é que, mesmo em face de inúmeras evidências, muitos


intelectuais situados no interior da universidade consideram que a pesquisa não tem cor. A
investigação científica, quando analisada como uma produção eurocêntrica e, portanto,
branca, perde seu status de neutra. Por esse traço, a formação dos não-brancos passa por
obstáculos do tipo: a sociedade científica é quem detém o poder e os Outros não participam
destas esferas de legitimação de saberes, tendo em vista que não fazem parte da rede dos
grupos de intelectuais já estabelecidos. Conseqüentemente, não interferem nas formas de
produção do conhecimento e também nas formas de condução das políticas universitárias que
definem a inserção das novas gerações. Centro e periferia definem as relações entre
intelectuais acadêmicos estabelecidos pela marca dada pela brancura e todos os Outros
fixados na sua “negrura” (FANON, 1983). Em Tear africano: contos afrodescendentes,
Cunha Junior (2004) faz um esforço poético e, acima de tudo, intelectual no sentido de
desenvolver uma crítica sobre as contradições étnicas tendo como recurso as personagens
construídas. A obra serve como exemplo de sua agência política pelo fato de ser produzida,
através dessa narrativa, uma intervenção cheia de propósitos do seu ativismo como intelectual
acadêmico-afrodescendente.
Entre os professores universitários definidos socialmente como “brancos” de
diferentes instituições de ensino superior, pouco se conhece da produção em curso dos
intelectuais não-brancos. Poderíamos perguntar sobre quais ementas incorporam em suas
referências bibliográficas autores afrodescendentes que desenvolvem pesquisas científicas de

13
Entrevistado para esta pesquisa de tese, Henrique Cunha Junior é um dos raros professores universitários
afrodescendentes com um compromisso político refletido no enfrentamento da racialidade no campo acadêmico.
O mais instigante é observarmos em que medida a centralidade de seus argumentos sobre o que significa a
produção científica hoje no Brasil pode promover uma inversão nos pressupostos sobre esse fazer científico
dentro de uma perspectiva de reconstrução paradigmática. Desde a década de 1970, este pesquisador destaca-se
pelo seu protagonismo por atuar nos movimentos negros e tendo como destaque neste conjunto o fato de ser ele
o primeiro presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN).

18
toda ordem? São raras as vezes que as obras deste segmento figuram como referencial. Diante
deste fato, como atribuir legitimidade poética e política para intelectuais não-brancos
representados na figura de Henrique Cunha Junior? Quem define o que é referência
bibliográfica para os estudantes universitários? Existe uma perspectiva plural neste projeto de
universidade? Em que medida os espaços de legitimação do conhecimento científico perdem
sua força quando ignoram uma produção afrocentrada aqui no Brasil?
É com esse olhar que nos aproximamos dos estudos sobre o campo de poder14, a
universidade pública, a crítica pós-colonial, as políticas de branquidade para conhecer
aspectos da trajetória, na pós-graduação, de intelectuais não-brancos. A agência política vista
como em processo de fortalecimento de uma racionalidade promovida a partir de um contra-
discurso, se constitui no aspecto mais caro para nossa análise. Para usarmos os termos de
Edward Said (2003), estamos interessados em dialogar com a perspectiva subalterna negra e
a crítica pós-colonial com destaque para Frantz Fanon15, Homi Bhabha e Edward Said,
localizando a problemática brasileira sobre as situações coloniais estabelecidas sob imitação16.
Partindo de uma orientação que entende intelectuais não-brancos como um Outro colonial
pertencente aos grupos situados na periferia do conhecimento, analisamos suas narrativas
como discursos de resistência ao olhar e ao poder dos grupos localizados no centro do
conhecimento: a universidade pública.
As concepções geográficas presentes na análise sobre o orientalismo seriam, no
esquema teórico desta tese, ampliadas para localizarmos idiossincrasias do pertencimento
acadêmico dentro deste modelo de ditadura. Discorrendo sobre regiões mais fracas, Said
(1990) trata de dar ênfase à visão protetora e cínica das regiões mais fortes, usando como
exemplo a atuação do Ocidente e de seus visionários. A idéia de descolonizar a produção
científica só poderá ser entendida quando colocarmos no centro de nosso esquema teórico as

14
Para Pierre Bourdieu (1997), o campo de poder se diferencia de outras noções de campo por ser um espaço de
relações de força entre os diferentes tipos de capital, entre os agentes.
15
A crítica pós-colonial é vista como legado fanoniano, na medida em que Frantz Fanon é o primeiro a enfrentar
não apenas teoricamente, mas também no seu ativismo político, a situação colonial. Tal afirmação aparece nas
análises de teóricos como Edward Said, Homi Bhabha, Stuart Hall, entre outros, sem contar os estudos mais
recentes que emergem na tentativa de conhecer o legado de Fanon. Consideramos as contribuições de sua obra
indo além dos argumentos que o fixam como um teórico da guerra, da ética da violência.
16
Imitação, para o desdobramento do nosso quadro teórico, significa um modo de comportar-se daqueles grupos
e/ou sujeitos que se consideram estabelecidos, detentores de uma etiqueta ou de um bônus que permite a
definição de hierarquias nas relações cotidianas com o seu Outro. Quando observamos as nuances dos olhares,
do questionamento realizado sobre o que querem os estranhos ao lugar, mas sobretudo quando examinamos as
imagens produzidas nas formas de representar este Outro, vemos aí um apelo ao sistema colonial clássico que
assegura, a partir de um resgate constante da memória, as práticas de subalternização dos insurgentes. Acionar
esta memória implica escrever a história a partir de romances, materiais didáticos, como os livros, propostas
curriculares, formação de professores, literatura infantil, novelas, comerciais, entre tantas práticas discursivas.
Sobre isso, destaca-se o estudo de Miranda (2005) e de Miranda e Oliveira (2004).

19
relações estabelecidas menos entre os espaços geográficos e mais entre os que representam e
os que são representados numa configuração interna, por assim dizer. Nesta ordem, aqueles
que entram acidentalmente no espaço de poder, numa configuração colonial de poder, tentam
“falar”. Podemos considerar a noção de colonialismo interno para delinearmos esse quadro
propositivo que reconhece uma divisão interna, dentro de um mesmo território e,
posteriormente, dentro de suas instâncias públicas. Na sociedade brasileira, a divisão racial
está garantida pela atualidade da segregação instituída nos espaços de produção do
conhecimento, espaços vigiados pela intimidação que causa a brancura nos não-brancos que
nela penetram. O Outro colonial em destaque é confundido com uma sombra que circula em
um espaço já ocupado. Sua produção, suas questões de estudo, as condições de sua inserção –
acidental – são exemplos dos aspectos de uma passagem, uma concessão com período,
poderíamos arriscar dizer, quase que definido. Analisadas como narrativas de resistência, a
produção acadêmica saída desses lugares indica uma “fidelidade à negrura de Frantz Fanon”17.
No questionamento da crítica pós-colonial, as relações de poder presentes nas obras
literárias são reflexos da imagem que se quer fixar daqueles grupos ou indivíduos vistos como
estranhos aos olhos do colonizador. Portanto, trata-se, sobretudo, de uma dominação cultural
indo além da dominação econômica ou territorial. Em certa medida, o que salta aos olhos na
trajetória desse grupo de intelectuais é justamente nuances do processo de desestabilização
inaugurado pela realização de fóruns sobre a inclusão/exclusão étnica e racial, insistência na
defesa de implementação de ações afirmativas para o ensino superior, entre outras
preocupações. O ativismo afrodescendente na academia parece emergir da experiência de uma
intelectualidade nascida de outros fóruns promovidos ao longo de uma larga inserção em
movimentos sociais com recorte racial. Vista como a base do ativismo acadêmico, esta
inserção anterior impõe uma dimensão política nesse “estar na academia”, fazer parte do
“acontecimento universitário” (THAYER, 2002).
Provocando incômodo e mobilizando a grande mídia, o anúncio da instituição de
ações afirmativas para democratizar o acesso ao ensino superior, nos últimos anos, se deveu à
forte pressão de grupos situados em diferentes organizações dos movimentos negros. Nesta
medida, a agência afrodescendente − dentro e fora da universidade −, em busca de constante

17
Para Frantz Fanon (1983), os brancos estão aprisionados à sua brancura e os negros à sua negrura. A
“fidelidade à negrura de Fanon” significa ter, acima de tudo, o conhecimento do que seja um conjunto de sujeitos
que buscam descolonizar suas consciências, seu modo de produzir cultura. Como intelectual revolucionário,
escreveu para homens de toda espécie, mas dedicou parte de seu discurso aos homens não-brancos em condição
subalterna imposta pela colonização. Neste sentido, Fanon esteve preso ao problema da descolonização da
África, da descolonização da consciência do homem colonizado, à violência e ao ódio provocados pela sua
condição de homem pan-africano.

20
parceria com grupos e indivíduos interessados na justiça racial, tem sido responsável por
práticas que visam descolonizar espaços da esfera pública. É visto por isso como um traço do
ativismo para a libertação no contexto da universidade. Como parte da luta pela humanização
de grupos não-brancos, ações deste tipo passam a definir o perfil da agência política desde a
universidade.
Assim, a universidade pública, analisada como um lugar de onde se anunciam
narrativas particulares, mostra-se identificada com a brancura, e seus espaços estão
organizados para auxiliar a legitimação de visões hierarquizantes. Narrativas particulares
podem ser aquelas narrativas eurodirigidas, coloniais, baseadas em posições subalternizadas e
em posições de domínio. Nesta equação, afrodescendentes podem ser representados como o
Outro colonial: negros, pretos, pardos, insurgentes, corpos circulantes, estranhos, passageiros
sem bilhete fixo, filhos adotivos e, no dizer de Said, sujeitos fora do lugar. Na representação
construída pelos estabelecidos, acerca desses sujeitos, não se sabe até onde agüentarão já que
objetivam pesquisar coisas que não são partes dos eixos já legitimados. Os setores controlados
por uma narrativa ocidentalizada, em detrimento daquilo que se produz em distintos espaços
vistos como Orientais (independente de onde estejam geograficamente localizados), são
setores que fazem parte de uma engrenagem de controle, sendo assim, o orientalismo de
Edward Said pode ser definido como sendo tudo que não é legitimado no campo intelectual e
os paradigmas do cânon ocidental teriam, portanto, reflexo do controle dos meios para narrar.
A ética de Frantz Fanon, os não-europeus, o orientalismo de Said, a agência subalterna
negra, o Tear africano de Henrique Cunha Junior (2004), a presente tese, entre tantas outras
narrativas invisibilizadas, são produções periféricas, sobre os diferentes Outros inventados
pelo trabalho literário, pelo trabalho intelectual de muitos daqueles interessados na economia
das relações coloniais.

1.1. Sobre uma perspectiva subalterna18 afrocentrada

18
A noção de subalternidade a que nos referimos é retirada dos estudos subalternos e da teoria pós-colonial que
analisam as relações coloniais de poder e projetos de colonização por grupos. Sua abordagem inclui as
conseqüências deixadas pela exploração econômica, a ocupação militar, além da dominação cultural. Na
perspectiva pós-colonial, o foco está nas chamadas “narrativas” sobre nacionalidade e raça sobre o “estranho”
como, por exemplo, o Oriente. Nos estudos na área de análise cultural entendidos como pós-colonialismo, Mary
Pratt (apud SILVA, 2001) argumenta que o olhar transforma as pessoas em coisas e, neste sentido, a visão e o
poder estão imbricados e mutuamente se regulam. Esta abordagem nos auxilia no entendimento do que tem sido
a representação do lugar social do homem de cor. No contexto colonial, o olhar de quem domina é capaz de
imobilizar e disponibilizar as pessoas transformadas em coisas que podem ser produtos prontos para o consumo.
Ao mesmo tempo, neste estudo de tese, iremos incorporar a defesa por uma noção de “condição subalterna”,
algo distinto de afirmar que sujeitos sociais podem ser sujeitos subalternos. A condição pode ser alterada, a
agência coletiva ou individual, acreditamos, seria uma das possibilidades de mobilidade, principalmente de

21
Dos referenciais que se destacam nos estudos pós-coloniais, Frantz Fanon19, nascido
em 1925 e falecido em 1961, revolucionário da Martinica conhecido pela sua teoria sobre a
violência e pela luta a favor da descolonização do continente africano, pode ser considerado o
precursor. Vistos como seus principais comentadores e, podemos arriscar dizer, situados entre
os seus principais herdeiros, Edward Said (1990; 1995) e Homi Bhabha (1998) são
interlocutores privilegiados para a elucidação de nossas questões de estudos.
Said (1990; 1995), trabalhando com as realidades coloniais e imperiais, em suas
análises literárias, argumenta que estas recebem pouca atenção da crítica, a qual se ocupa
meticulosamente a encontrar temas de discussão. Em sua obra sobre a dominação cultural, o
autor reforça a intenção de mostrar até onde foi a busca, a preocupação e a consciência do
domínio ultramarino e quão importante e enriquecedora é, para todo trabalho crítico, a
atenção a esse aspecto. Apreendendo estes traços, poderemos interpretar as obras canônicas
dos séculos XIX e XX com um outro comprometimento, um outro interesse. Em sua crítica, a
discussão realizada sobre cultura e império é operada de modo essencialmente narrativo e
descritivo por alguns poucos autores que ignoram o imperialismo.
Dos livros (material privilegiado para a crítica literária), Said destaca a centralidade do
pensamento imperialista na cultura ocidental moderna. Ao reconhecer como a narrativa
construída nos romances opera, argumenta que, sem ele, romance, o imperialismo seria
inconcebível. Sendo um dos artefatos culturais da sociedade burguesa, esse tipo de narrativa
fornecia uma legitimação inconteste para o colonialismo. Assim, o romance é de ocorrência
ocidental e se constitui como um modelo normativo de autoridade social dos mais
estruturados. A função colonizadora lhe permite criar um novo mundo, próprio dos pontos
remotos e agrestes da África, Pacífico e Atlântico. Pelos argumentos sobre a dependência
existente entre imperialismo e romance, supomos que um reforça o outro, o que é confirmado
quando Said (1995) aponta que o imperialismo e o romance se fortaleceram reciprocamente a
um tal grau que é impossível ler um sem estar lidando de alguma maneira com o outro. Por
isso, é uma forma cultural incorporada, de tipo enciclopédico.
Ao aceitarmos a orientação de análise partindo desta vertente, os conceitos de agência
e de representação política ganham um brilho a mais na leitura que se pretende realizar sobre

grupo. Portanto, “sujeitos subalternizados” não seriam considerados como “sujeitos subalternos”. Esta defesa é
para enfrentar as argumentações de Spivak (1989) sobre a inexistência do sujeito subalterno, do não-sujeito.
19
Sua narrativa está influenciada pelas leituras de Karl Marx, pelo contato com o essencialismo de Jean Paul
Sartre, pelas aulas com Áime Césaire e pela luta a favor da descolonização do continente africano. É unânime o
entendimento de ser ele a figura central para os estudos pós-coloniais, sobretudo, pela sua experiência na luta
anticolonial e, para esta pesquisa, esses aspectos orientam a análise da relação colonizador-colonizado nas zonas
de disputa por melhores lugares na produção do conhecimento.

22
a presença do tipo estranho em um espaço de poder colonial. Na análise que anunciamos aqui,
o objetivo é conhecer, a partir da experiência desses intelectuais-acadêmicos, como é ser o
Outro colonial e como o estigma depositado em sua negrura, o que os diferencia de tantos
Outros, interfere na representação que constroem sobre as situações pelas quais passaram e
passam como pesquisadores.
Gostaríamos de chamar a atenção para as principais categorias definidoras de análises
que se pretendem situadas entre a crítica pós-colonial e os estudos subalternos. Fazem parte
de uma perspectiva que confronta o espaço acadêmico e a experiência afrodescendente, com
ênfase nas estratégias de deslocamento a partir de um tipo de insurgência. A dimensão dos
estudos das relações coloniais nas universidades está sendo recuperada numa tentativa de
interpretação de narrativas afrocentradas, ao mesmo tempo que auxilia a apropriação das
chamadas políticas de branquidade (APPLE, 2001; BRITZMAN, 2004; GIROUX, 1999;
RACHLEFF, 2004; WARE, 2004). Na medida em que estas últimas são reconhecidas como
parte da análise das relações assimétricas de poder entre “afros” e “euros”, poderemos
expandir o potencial analítico para o entendimento das políticas de identidade que
influenciam os sujeitos não-brancos fora do seu lugar (SAID, 2004) nos espaços acadêmicos.
A opção por este caminho é relevante quando examinamos o desenvolvimento da discussão
sobre branquidade ocorrendo ao lado dos estudos das relações raciais.
Por outro lado, pode-se considerar que os estudos sobre a racialidade, entendidos
como desdobramento da agência afrodescendente e como elemento de questionamento,
reivindicam “a inclusão das formas culturais que refletem a experiência dos grupos cujas
identidades são marginalizadas pela identidade européia dominante” (SILVA, 1999, p.126). E
se assim pudermos considerar, a abordagem pós-colonial se junta às análises centradas no
questionamento das narrativas sobre a dominação cultural, servindo de escopo para o
entendimento das relações coloniais no campo intelectual.
Notadamente, também o conceito de branquidade revela a predominância de
estratégias de normatização de um modelo de humanidade. Sua eficácia como força política
(APPLE, 2001; BRITZMAN, 2004; GIROUX, 1999; RACHLEFF, 2004; WARE, 2004) é
obtida no esforço discursivo presente nas formas de colonização dos desautorizados para a
obtenção do resultado favorável no que se refere à garantia de posições privilegiadas. Neste
estudo, a branquidade tende a ser definida como uma espécie de “força política” invisível,
acionada por alguns setores em situações de ameaça. Uma provável desestabilização,

23
provocada pela insurgência de grupos historicamente subjugados nos espaços de domínio
colonial, ativa as estratégias hegemônicas vigentes. A insurgência seria, assim, um processo
coletivo na medida em que a desconstrução provocada pelo sujeito colonial passa a ser o foco
das suas análises como intelectual formado ou em formação, contrapondo o seu pertencimento
a partir de narrativas e de peculiaridades na reinscrição da sua história. Neste caminho, o
debate sobre as políticas de branquidade revela que estas afetam diretamente aos que estão
fora da classificação eurodescendente. Por isso, no contexto da universidade, “a idéia de
branquidade como invisibilidade, como algo que não existe, serve idealmente para designar o
grupo social que é tomado como a humanidade comum” (DYER apud APPLE, 2001, p.65).
Existe, nesse entendimento, aspectos reveladores observados no poder diferenciado e
na natureza racializada dos distintos grupos classificados com base no discurso colonial que
os diferencia. Notadamente, a abrangência da análise pós-colonial e dos estudos subalternos é
justamente por não se limitar à problemática das relações de poder entre os da metrópole e
suas colônias. Vistos como duplamente fixados, os afrodescendentes que maior incômodo
causam são aqueles que pouco lembram os europeus. Falamos, por isso, de sujeitos
identificados e que se identificam como pretos e como pardos, “um tipo” de afrodescendente.
Não podem oscilar: hora somos idealmente pretos, hora somos ironicamente também
europeus por conta de “uma avó, de um avô português”. Essa não é uma saída possível. A
insurgência se dá também pela força que os leva a circular nos espaços brancos. A imagem
que provoca incômodo é a de um corpo quase africano na sala de aula. Ser afrodescendente
com algumas possibilidades de negociação da sua imagem física, por conta de traços da
mestiçagem, não tem o mesmo peso de ser aquele que carrega semelhanças e marcas da
herança africana. O dado acima se torna relevante na medida em que não estamos falando de
afrodescendentes de todo tipo, incluindo-se aqueles com aparência européia que reivindicam,
por vezes, sua identidade também africana. Algumas aparências, ou, no dizer de Oracy
Nogueira (1998), marcas afastam e/ou aproximam sujeitos sociais.

1.2.Uma perspectiva deslocada


Uma tese nascida da subalternidade é uma tese deslocada, uma produção que desafia
os cânones aceitáveis e legitimados pela herança eurocêntrica e análises, conseqüentemente,
eurodirigidas20. Tem como característica ser produzida no fervor da descrença e da idéia de
incapacidade – uma visão estigmatizada. Por isso, a sua produção, o processo de aceitação e

20
Ver Muniz Sodré, 2001.

24
de rejeição deste estudo faz parte de nossos argumentos. Merece, por isso, uma leitura a partir
das entrelinhas. Coisas não ditas podem ser, às vezes, as mais valiosas para quem quer
entender e transformar as relações coloniais na universidade. Numa perspectiva deslocada, os
riscos da punição orientam as narrativas construídas pelos seus protagonistas, provocando
angústia e frustrações.
As dores sentidas depois de conhecer Frantz Fanon (1970; 1973; 1979; 1983; 2001)
foram inevitáveis. Imbuído de uma ideologia revolucionária, este homem de cor, nascido na
Martinica e formado em psiquiatria, lutou na guerra colonial da Argélia e na guerra contra a
colonização da consciência do colonizado. Sua teorização sobre a instituição da guerra total é
bastante elucidativa para nossa interlocução com os estudos pós-coloniais. Nela, está presente
o argumento de que o falso-eu deve morrer bem como o colonizador. São processos
mutuamente constituídos. Tentar resgatar a alma do colonizado implicaria a sua capacidade de
reconhecer quem é o inimigo, tendo em vista a situação de infelicidade na qual se encontra e a
necessidade de desencadeamento do poder do seu ódio. Por isso, o colonizado deve cultivar o
ódio deixado de lado porque só neste contexto a violência se transforma em um recurso
necessário à situação de guerra total. Conforme podemos observar, Fanon acreditava na
justiça e na possibilidade de democratização da sociedade. Considerado por Antônio Houaiss
(apud OTO, 2003) como a antena viva da consciência humilhada, destaca-se a intenção maior
de Fanon quando vislumbra a possibilidade de substituição das formas de violência, ou seja,
nas análises que faz dos métodos de tortura dos prisioneiros, da degenerescência espiritual,
física e moral que deles decorrem para os torturadores e ainda o fato de os torturados não se
limitarem a permitir-lhes proferir um acento de rebeldia humanitária. Neste entendimento, a
violência terá de ser proscrita – negativista, imobilista, farisaica – pela violência dos que
querem construir uma vida digna de ser vivida por todos (HOUAISS, apud OTO, 2003).
Achille Mbembe (2003), por sua vez, entende que Frantz Fanon examinava a violência
como um meio e ela aparece no seu corpo teórico representando uma mediação, uma
linguagem, ou uma prática. Somente depois da morte do colonizador, a vida poderia brotar
outra vez. Sobre sua atuação, Fanon afirma: “Se tivesse que me definir, diria que espero,
procuro conhecer o que me circunda, interpreto tudo a partir de minhas descobertas. Tornei-
me um sensitivo.” (FANON, 1983, p.99).
No dizer de Jean Paul Sartre (1968), Fanon fala para seus irmãos de África e Ásia
sobre a urgência de realizarem em conjunto o socialismo revolucionário para paralisar seus
antigos tiranos. Deste modo, considera que Fanon “fala alto” (SARTRE, 1968, p.7) porque
para ele o que importa é que os seus irmãos possam ver os mecanismos de alienação

25
implementados pela Europa. Conforme as observações acima, parece que Frantz Fanon
consegue destacar a tardia presença das marcas da ocidentalização em seus camaradas,
reveladas pela aceitação da solidariedade dos metropolitanos e de seus agentes coloniais.
No Brasil, a produção afrocentrada que explora a escrita desse intelectual não-branco
ainda é tímida, quase inexistente. As proposições advindas dos estudos fanonianos aparecem
em poucos trabalhos encontrados sobre o autor, como é o caso do artigo Franz Fanon:
colonialismo, violência e identidade cultural (CABAÇO & CHAVES, 2004), que chama a
atenção para aspectos-chaves da teoria de Fanon, destacando sua interpretação da divisão da
estrutura social da Argélia bem como do universo colonial até às formas alternativas de
superação com base na “sublevação” (CABAÇO & CHAVES, 2004, p.77). Os autores
destacam a genialidade de Fanon sobretudo por conta do título Pele negra, máscaras brancas,
ao comentarem sobre a sua capacidade de agrupar e sintetizar papéis distintos modulados pela
experiência dolorosa do colonizado.
A produção de Frantz Fanon e a rejeição de sua tese21 de conclusão de curso podem
ser comparadas às situações reveladas nas narrativas afrodescendentes de nossos
entrevistados. Um fragmento da narrativa presente no depoimento de Sales Augusto dos
Santos22 pode ser incorporado aqui para nossa análise:

Contudo, mesmo estando isolado, é possível você encontrar alguns pares, algumas pessoas e conquistar
aliados. Talvez aí, é aquilo que você tinha me perguntado de quais estratégias, não é? Sim, eu fiz
grandes amigos na universidade. Pessoas brancas que eu considero como meus irmãos e quando eu falo
brancas é no sentido de dizer que mesmo estando sozinho é possível. Eu falo pessoas brancas e falo de
pessoas que não discutiam a questão racial. É possível você ganhar um grupo de pessoas que possa
dialogar com você.

Este fragmento serviu para iniciarmos o nosso momento de pausa, ou seja, entender as
relações coloniais a partir da experiência de estar fazendo parte de um programa de mestrado
e doutorado, na universidade pública, é, sobretudo, uma experiência de isolamento em
diferentes aspectos. Construindo a narrativa sobre sua caminhada acadêmica, Ari Lima23
declarou:

21
Após cursar Medicina em 1951 em Lyon, seu trabalho de conclusão não foi aceito. A tese era um estudo
clínico onde Fanon tratava de um duplo narcisismo envolvendo colonizadores e colonizados, pensando as
relações entre os brancos e os negros. Demonstrava que a alma negra é uma criação do branco.
22
Santos é doutorando da Universidade de Brasília (UnB) e oriundo de uma família cujo “chefe”, o pai, foi
operário da construção civil que ajudou a construir a Universidade de Brasília. A mãe, lavadeira, conforme
declara Sales A. dos Santos, “forçou a barra” para que todos os irmãos fossem para a universidade. De um total
de sete filhos, quatro completaram o curso superior.
23
Ari Lima é doutor pela Universidade de Brasília e hoje professor da Universidade do Estado da Bahia.
Destaca-se para nossa reflexão seu artigo A legitimação do intelectual negro no meio acadêmico brasileiro:
negação de inferioridade, confronto ou assimilação intelectual? (2001). Neste trabalho Ari Lima apresenta algo
do seu embate – e de seu orientador, o professor José Jorge de Carvalho - estabelecido com docentes do

26
Na graduação, eu tinha uma professora, inclusive que era uma professora muito querida na faculdade,
todos os alunos viviam, cercavam essa professora e eu também tentei, tentava me aproximar dessa
professora e ela sempre foi muito rude, muito ríspida comigo. Demonstrava que não gostava de mim.
Ela me maltratava, eu fui aluno dela, ela não me dava espaço, quando eu falava, ela ficava
incomodada... até que ela me disse no final do curso que ela não gostava de mim. Porque ela dizia que,
ela disse: “ah! você nem parecia que era preto, tão inteligente tão sofisticado!” Então...a ponto de que eu
era tão ingênuo nesse aspecto que eu nem percebia isso: que ela me tratava dessa maneira porque na
verdade ela era racista. Então ela achava que eu era um negro fora do lugar.

Lima afirma que naquele momento não tinha despertado para o debate da racialidade
e, conseqüentemente, para o reconhecimento de sua negritude. Seu relato mostra uma
atmosfera hostil nas situações em que não-brancos tentam a mobilidade social a partir da
formação acadêmica. Uma questão inevitável é saber o que significou declarar você nem
parecia que era preto!? Nossas hipóteses iniciais estão apoiadas na idéia de que aqueles que
optam pela formação no nível de mestrado e doutorado, no contexto das renomadas
instituições de ensino e pesquisa, estão experimentando situações de isolamento temático,
isolamento físico e um terceiro tipo que pode ser inicialmente caracterizado pelos olhares,
pelas práticas estigmatizantes, por aquilo que depositam na identidade do sujeito fora do
lugar.
No esforço de cunhar uma categoria que defina bem estes efeitos, arriscamos dizer que
este seria um terceiro isolamento, um tipo consentido, um isolamento colonial. Esses sujeitos
seriam, portanto, os causadores do incômodo pelo fato de não serem iguais aos já
estabelecidos e por sequer tentar esconder suas marcas. O cabelo carapinha, as tranças, as
roupas coloridas com motivos africanos, entre outros detalhes, seriam modos de negação e de
resistir à ideologia do branqueamento. Obviamente, esses achados são analisados à luz das
proposições de Fanon, justamente por entendermos que o colonialismo e suas derivações
(como o afastamento, o racismo) provocam desajustes e perturbações mentais em quem
pratica a segregação e também naqueles que sofrem com tais práticas.

Programa de Pós-graduação em Antropologia e Sociologia da Universidade de Brasília (PPGAS da UnB)


quando da sua reprovação na disciplina Organização Social e Parentesco ministrada pelo professor Klaas
Woortmann no ano de 1998. Como o primeiro negro a cursar o doutorado neste programa, Ari Lima enfrentou a
situação de pedir revisão da avaliação do professor, saindo em 2000 a primeira resposta positiva do Conselho de
Ensino e Pesquisa e Extensão, tendo como resultado sua aprovação na disciplina. O professor responsável pela
disciplina citada acima classificou seu aluno doutorando como um estudante medíocre, não passando de uma
nulidade. Ari Lima relata ainda a omissão dos estudantes do programa bem como dos professores. Segundo
Lima, “esses professores perderam a chance de discutir métodos de avaliação, de estabelecer alguma coerência
entre o debate antropológico de sala de aula, no que diz respeito à dignidade, ao reconhecimento da capacidade
intelectual e dialógica de sujeitos marginais, de admitir o fato de que o professor também pode errar” (2001,
p.309-310).

27
Para sermos mais precisos, estamos todos situados e falando de algum lugar. A
declaração da professora de Ari Lima, no curso de graduação, pode ser um reflexo do lugar
que ela ocupa: identifica seu aluno como um desautorizado pelo fato de ser um não-branco.
Entendemos que constranger um estudante no espaço de formação intelectual é praticar um
tipo de violência simbólica24 e manifestar práticas de opressão. Ari Lima não estava
autorizado para falar. Vê-se, por isso, que a condição subalterna é aquela que coisifica grupos
humanos. Quem pode falar? Por que alguns não falam? Quem não fala não existe, não decide,
não participa, não está representado. Neste sentido, Ari Lima, fixado como objeto de
curiosidade e, por isso, inferiorizado diante dos demais alunos, aprendeu que por suas
características físicas ou pelas suas marcas de negrura, estava em condição de subalternidade,
não podendo manifestar-se.
As leituras e os trabalhos realizados para a aplicação desses pressupostos revelaram
que a história dos grupos subalternos é necessariamente fragmentada e episódica, a partir do
momento que estes são sempre subjugados às regras da sociedade, até mesmo quando se
rebelam. Como classe, têm menos acesso aos meios pelos quais podem controlar suas próprias
representações e menos acesso às instituições culturais e sociais.
Para entender a perspectiva afrocêntrica aqui adotada, será necessário admitir a
experiência da dispersão, uma alternativa aos modos de reprodução de “campos intelectuais”.
Por isso, a leitura deste trabalho de tese dependerá de pausas diferenciadas. Uma delas é
quando nos sentimos provocados pela insistente aparição da teoria fanoniana sobre a
descolonização da consciência e, posteriormente, da descolonização do conhecimento.
Perseguindo tais achados teóricos, justificamos nosso explícito posicionamento de sujeitos
subalternizados ao centralizar teorias profanas em detrimento de paradigmas sagrados.
Dispersar-se seria, por isso, ampliar nosso tempo de análise, conhecer outros saberes,
reconhecer a existência de teorias invisibilizadas, profanas e sem credibilidade teórica. A
dispersão teria como função aumentar nossas pisadas ou, em outros termos, nosso modo de
olhar.
Achados teóricos próprios de uma perspectiva afrocentrada fazem parte de um
amontoado de coisas adormecidas e não exploradas. Pela falta de credibilidade, pela sua
característica periférica, esses achados ficam de fora da produção do conhecimento legitimado
socialmente. Por outra parte, é justamente no interior da colonização que nasceram idéias
revolucionárias visando ao protagonismo dos diferentes Outros produzidos por este sistema.

24
Ver Pierre Bourdieu, 1978.

28
As outras racionalidades dão testemunho da força dos insurgentes em todo o mundo. Ao
aceitarmos os desafios de construir um trabalho apoiado no discurso afrodescendente,
conseqüentemente, narrativas de sujeitos em condição de subalternidade, também
experimentamos os dilemas de fazer parte de situações mistas (GOFFMAN, 1988) no campo
intelectual.
Aceitamos também, o fato de estarmos em uma constante busca pela humanização de
grupos não-brancos e, no caso da esfera universitária, a produção dita científica tem sido um
modo de se perpetuar a ordem estabelecida. Como um lugar emblemático para observar as
inter-relações definidas por Irving Goffman (1988), a universidade promoveu, nestas entradas
acidentais, um estrato, um segmento que luta por um hibridismo possível com a presença de
diferentes Outros produzidos nas relações coloniais vigentes nos espaços de poder.
Convencemo-nos de que esses achados teóricos aqui reunidos e as circunstâncias dadas pelas
posições ocupadas, no espaço acadêmico, tendem a indicar os ranços e os avanços advindos
das relações coloniais em constante ebulição.
O fenômeno da fixação deve ser observado a partir dos desdobramentos do
colonialismo. Definidos pela herança colonial, o outro se reduz a corpos circulantes, levados a
participar pela sua não-agência. Sobre isso, Aimé Césaire (1957), um pouco antes de Fanon,
articulava propostas de descolonização traduzidas em outras formas de interpretar as relações
coloniais. Maldonato-Torres (2005) faz uma análise considerando o seguinte aspecto do
protagonismo de Césaire:
El peso de la acusación de Césaire radica en que el fascismo no es único en magnitud ni en perversidad
en la historia de Europa. De aquí su insistencia sobre los lazos del fascismo y el colonialismo. Sujetos
colonizados y racializados fuera de Europa han sufrido el exterminio, el genocidio, la esclavitud, y la
violencia de la misma por varios siglos (MALDONATO-TORRES, 2005, p. 9).

Ao que tudo indica, podemos identificar sujeitos coloniais no mundo contemporâneo a


partir das condições de sua inserção. Dito de outro modo, e para não sentirmos falta de
exemplos, mulheres afrodescendentes definidas como pretas e/ou pardas são fixadas como
serviçais, prostitutas ou mulatas do Carnaval; homens do mesmo grupo racial são fixados
como fora-da-lei, suspeitos, violentos, não sendo pessoas do bem. Os exemplos não podem
parar por aqui, tendo em vista que as micro-realidades estão em uma dinâmica constante. A
diferença é construída para manter um ordenamento com inspiração colonial. Caetana Maria
Damasceno (2000), em seu estudo sobre aparência no Brasil, analisa como as exigências
profissionais, no que se refere à imagem daquele suposto candidato a um emprego, destaca
nuances das representações coletivas, percebendo associações entre a cor e a chamada

29
aparência. Ao preocupar-se com o exame das categorias raciais presentes em anúncios de
emprego, na década de 1940, Damasceno (ibid) conclui que essas categorias foram se
combinando entre si e com a chamada boa aparência. Assim, “essa expressão tornou-se tão
essencializada a ponto de se transformar numa tradução inequívoca de ‘só para brancos’”
(DAMASCENO, 2000, p.192). Dos diferentes anúncios, o que se pode entender na mensagem
a partir do alerta para a necessidade de se ter boa aparência é justamente o fato de pessoas
“não-brancas” estarem fora do processo seletivo.
A prática de instituir lugares sociais com base na racialização revela-se como sendo
uma constante após os nossos 500 anos de formação como sociedade. Pelo exposto, podemos
afirmar existir, nas práticas discursivas veiculadas na esfera pública, se assim pudermos
considerar, um apelo à conservação de lugares fixos no ordenamento da sociedade. No quadro
dos anúncios dos anos de 1940, chama atenção a falta de possibilidade de “negociar com a
aparência” e o que é mais relevante, conforme a autora, é que se tratava de um truque
semântico destinado a minimizar [...] a importância da condição racial justamente ali onde
as regras de sociabilidade mostraram-se especialmente severas para com as pessoas “de
cor”: o mundo do trabalho (DAMASCENO, 2000, p.193).
Nada mais eficaz para políticas de branquidade do que as estratégias para conter, e
fixar socialmente, os grupos racializados. Processos seletivos servem, então, para classificar
pela diferença, definir as hierarquias e monopolizar esferas com missão pública. Caberia,
portanto, observarmos as especificidades das relações coloniais definidas nesta tese como
atuais e mutantes. Para isso, nos apoiamos em Frantz Fanon pela seguinte análise:
La impugnación del mundo colonial por el colonizado no es una confrontación racional de los puntos de
vista. No es un discurso sobre lo universal, sino la afirmación desenfrenada de una originalidad
formulada como absoluta. El mundo colonial es um mundo maniqueo. No le basta al colono limitar
fisicamente, es decir, con ayuda de su policía y de sus gendarmes el espacio del colonizado. Como para
ilustrar el carácter totalitario de la explotación colonial, el colono hace del colonizado una especie de
quinta esencia del mal. La sociedad colonizada no solo se define como una sociedad sin valores. No le
basta al colono afirmar que los valores han abandonado o, mejor aún, no han habitado jamás el mundo
colonizado (FANON, 2001, p.35-36).

Assim, no vocabulário colonial (FANON, 2001, p.37), aparecem tipos diversos da


zoologia. Ou seja, este vocabulário expressa uma linguagem zoológica, fazendo do
colonizado um animal. O indígena é, por definição, impermeável à ética e por isso é um
causador do mal, seja ele qual for. Fanon trabalha com a categoria indígena no sentido dado
pelo colonizador: o índio é qualquer “Outro” dos tantos que as práticas de desumanizar
produziu. Destaca-se do estudo de Fanon a seguinte idéia sobre processos de brutalizar o
colonizado: “Los valores en efecto son irreversiblemente envenenados e infectados cuando se

30
les pone en contacto con el pueblo colonizado. Los costumbres del colonizado, sus
tradiciones, sus mitos, sobre todo sus mitos, son la señal misma de esa indigencia, de esa
depravación constitucional” (FANON, 2001, p.36).
Não seria demasiado ousado localizarmos os grupos racializados, nos nossos dias,
como sendo definidos por um vocabulário colonial, no sentido de se manterem fixados como
animal, como não ser, como incapaz. Ao darmos foco à “política de apenas um”, objetivamos
produzir subsídios para uma sociologia das identidades forjadas por definição pelo recurso da
presença-ausente da raça (APPLE, 2001). A apresentadora e repórter Glória Maria, do
programa Fantástico da Rede Globo, não será, de maneira alguma, representante dos grupos
afrodescendentes do Brasil. Sua presença se constitui como uma exceção, do mesmo modo
que o é a credencial que possui para circular entre os grupos com os quais trabalha, dando-lhe
um bônus especial para fazê-lo. A mensagem nacional implícita na imagem de destaque da
apresentadora é de que ela chegou lá; é uma referência de sucesso pelo esforço, competência
e, acima de tudo, “brilhantismo”. Aferir tais dados oriundos do imaginário coletivo é uma das
metodologias mais simples: em qualquer bar, em qualquer esquina teremos a mesma resposta:
Ela lutou muito pra chegar ali! Quem se esforça consegue!
As narrativas das experiências de pertencimento acadêmico vividas pela grande
maioria dos entrevistados incluem situações de constrangimento por parte dos sujeitos e/ou
grupos estabelecidos25, atingindo sua identidade ao mesmo tempo que reforça sua condição
de circulantes, o que significa ser uma parte desprivilegiada quando comparados ao todo.
Cada relato tem no mínimo um exemplo do que seria sentir-se fixado como fora do lugar.
Afetando suas teorias sobre as relações raciais, podemos deduzir que as situações
mistas promovidas nos espaços acadêmicos são parte de uma espécie de alimento para o
desenvolvimento de suas teses. Assim, o fato de estarem posicionados como subalternos
dentro da universidade parece ter feito com que vivenciassem as conseqüências da força da
violência das relações assimétricas de poder entre colonizados e colonizadores ou entre
estabelecidos no espaço acadêmico e insurgente, pessoas que circulam, podendo, em certas
ocasiões, sentar-se.
O olhar colonial pode ser definido como aquele lançado no momento em que
afrodescendentes pedem a palavra para discorrer sobre determinado tema, acabando por
causar desconforto por isso. O cenário é composto pelas situações de convívio misto como,

25
Ver ELIAS, Norbert & SCOTSON, John L 2000.

31
por exemplo, a sala de aula. É também aquele olhar de curiosidade seguido da pergunta: você
é orientando de quem? Pesquisa o quê?
A subalternidade produziu resistências definidas por Edward Said (2003) como
movimentos revolucionários. Para esse escritor saído da diáspora, longe de ser uma essência
inventada, mas sim o exemplo mais célebre dentre tantos, a Negritude é fruto da
estigmatização sofrida pelos afrodescendentes e, sendo assim, “se os negros foram outrora
estigmatizados e ganharam um status inferior ao dos brancos, então torna-se necessário não
negar a negritude e não aspirar a ser branco, mas aceitar e celebrar a negritude, dar-lhe a
dignidade do status poético e metafísico” (SAID, 2003, p.181). Ele define como inevitável
manifestos que visam fortalecer a identidade de grupo, como é o caso de sujeitos submetidos
ao jogo europeu. Isso mostra claramente que o racismo produz um anti-racismo e outros
modos de resistência e de agrupamento.
Nadando contra a corrente, intelectuais-acadêmicos-afrodescendentes26 estão
posicionados estrategicamente numa luta retórica, em busca de pertencimento humano. Neste
caminho, contam com a interlocução possível de ser estabelecida com alguns agentes ou pares
e, num processo de afirmação de suas identidades deslocadas, fortalecem sua trajetória
preparando-se como pesquisadores acadêmicos voltados para pesquisas de mestrado e
doutorado. A partir desta etapa, seguem sua trajetória obstinados pelo conhecimento
legitimado socialmente como científico para transformá-lo, posteriormente. Em suas
narrativas, revelam a dramática experiência do estigma em situações de convívio. São relatos,
experiências e histórias de sujeitos espalhados pelo país. Assim, observamos o curso do rio e,
para entender histórias globais, desejamos apresentar histórias locais a fim de contemplar uma
demanda sinalizada por diferentes sujeitos – sejam eles pretos ou não – preocupados com a
justiça racial27.

26
Nos últimos anos, a grande mídia, nos seus veículos impressos, como é o caso dos grandes jornais, resolveu
contestar as pesquisas realizadas por pesquisadores como Moema Di Poli, Marcelo Paixão e Luiz Petrucceli no
tocante aos argumentos sobre quem são os negros do Brasil. Com base nesta expressão cínica produzida e
divulgada no sentido de ridicularizar a agenda dos diferentes movimentos negros e de seus pares no que se refere
à luta pela comprovação científica das desigualdades raciais, resolvemos dar ênfase ao fato de que nem todos os
afrodescendentes são vítimas da desigualdade racial, estando no topo os pretos e pardos. Daí a ênfase que
adotaremos ao longo desta pesquisa. Afrodescendentes podem ser aparentemente brancos e fazerem a opção de
manter-se diferenciados como branco e usufruir as benesses de não ser nem preto nem pardo.
27
Uma referência obrigatória, para além dos autores e participantes diretos desta tese, destaca-se o professor
doutor e antropólogo José Jorge de Carvalho da Universidade de Brasília. Ao estabelecer a relação de orientador
com o agora doutor e professor da Universidade Estadual da Bahia, Ari Lima, o professor José Jorge de
Carvalho inicia uma saga dentro da UnB, que culminou na instituição de ações afirmativas naquela instituição.
Fazemos esta observação pelo fato de este professor se autodeclarar “branco” e ser representado socialmente
como tal. Consideramos que, neste contato, Carvalho (2001) passou a vislumbrar as diferenças que definem as
relações entre pretos e brancos na universidade pública. A sua colaboração é substancial, sobretudo no que se
refere à teoria de que existe algo denominado como “racismo acadêmico” (CARVALHO, 2001).

32
Para nosso estudo importa destacar que concordamos com a idéia de que uma das
grandes barreiras para uma intervenção anti-racista no Brasil são as universidades e de um
modo geral a resistência marcante no posicionamento de professores universitários
(CARVALHO, 2001, p.15). Ao cunhar o conceito de “racismo acadêmico”, o pesquisador da
Universidade de Brasília (UnB) José Jorge de Carvalho (2001) coloca no centro de seu
argumento o protagonismo dos docentes visto que, para ele, o Estado entregou cerca de 95%
de poder na mão deste grupo para reproduzir a elite brasileira. Nesta avaliação, o professor,
que propôs a primeira política de cotas para a UnB, apontou que, no projeto dos docentes de
universidades de prestígio, os “negros” podem ser e continuar sendo 1% do corpo docente
universitário sem grandes conseqüências.
Com base nesses pressupostos, entendemos que a presença, ou melhor explicitando, “a
política de apenas um”28, tende a manter a idéia de que existe inclusão racial. Esta asserção
nos sugere a existência de uma prática cínica, onde aquele que entra cumpre o papel de
representar todos os Outros do seu grupo. Os percalços relatados por nossos respondentes,
emblemas na sua trajetória acadêmica, podem ser entendidos como reflexo deste projeto que
depende sobremaneira da universidade. Algumas características do acontecimento
universitário reafirmam os lugares sociais neste campo. Entre o grupo predominante, algumas
experiências devem ser observadas. Conforme Carvalho,
Todos os seus colegas são brancos. A relação que essas pessoas têm com os negros é uma relação
sempre marcada pela desigualdade: o negro é a pessoa que cuida dos seus carros, é o porteiro. Os negros
não fazem sentido para essas pessoas brancas, não habitam a imaginação dos brancos numa situação de
igualdade. Isso foi construído no Brasil principalmente nos últimos 40 anos e para desmontar essa
estrutura não é fácil (CARVALHO, 2001, p.24).

A resistência subalterna afrodescendente ganha fôlego na medida em que já avalia


essas marcas de desigualdade, sustentadas na branquidade, como uma política de identidade
necessária ao quadro acima apresentado. Conforme Michael Apple (2001), devemos indagar
as relações raciais tendo em vista seu dinamismo. Quando um grupo inteiro está em condição
de subalternidade e o outro detém o monopólio de instâncias públicas, que deveriam garantir a
participação de representantes dos distintos sujeitos, é porque as relações raciais estão
definidas pela hierarquia estabelecida.
Tratando das especificidades da educação, o projeto de fortalecimento do Brasil
dependerá sempre do modelo de transmissão do conhecimento a ser adotado. Numa visão

28
Do mesmo modo que a mídia reforça no imaginário coletivo a garantia da diversidade como, por exemplo, no
Domingão do Faustão com a presença de uma bailarina não-branca localizada no centro do palco deste
programa, e mantém, no Fantástico a apresentadora Glória Maria, algumas universidades permitem, às vezes,
um aluno não-branco nos programas de pós-graduação.

33
progressista e crítica, consideramos a problemática da educação e da universidade pública,
hoje no Brasil, uma das mais importantes vitrines, por assim dizer, para se compreender as
hierarquias sociais. Enfrentaremos, por isso, um debate fundamental para pensar o tipo de
política inaugurada com a criação dessa instituição, que, comparada aos centros de formação
no contexto latino-americano, ainda é recente.
Partimos de uma problemática buscando interlocuções com os pensadores da
universidade pública e menos a sua história oficial de instituição de ensino superior. A
participação política, a legitimidade desse espaço público e os modos de exclusão29 de
segmentos inteiros desses espaços estão na agenda de reivindicações de movimentos sociais
com recorte racial. Conforme Pierre Bourdieu (1997, p.63-64) em seu livro Razões práticas,
As estratégias dos agentes e das instituições que estão envolvidos nas lutas literárias, isto é, suas
tomadas de posição (específicas, isto é, estilísticas, por exemplo, ou não-específicas, políticas, éticas
etc.) dependem da posição que eles ocupem na estrutura do campo, isto é, na distribuição do capital
simbólico específico, institucionalizado ou não [...]

Neste sentido, suas observações podem ser incorporadas no exame proposto sobre as
disputas por lugares sociais envolvendo brancos e não-brancos no campo acadêmico. Tornou-
se inadiável produzir estudos sobre o processo pelo qual passa o debate sobre a legitimidade
das políticas voltadas para a emancipação dos grupos afrodescendentes em maior
desvantagem sócio-econômica.
Comungamos da idéia de que é no espaço universitário que se pode vislumbrar a
possibilidade de transformação do conhecimento como bem público. Esse achado teórico
serve ainda para converter o pensamento único em uma pluralidade de pensamentos
alternativos e enriquecer o patrimônio cultural, solidificando o saber científico. Neste sentido,
produzir uma tese é, de certa forma, fazer uma opção. Decerto deixaremos de fora estudos
importantes, mas que não caberiam num estudo de tese que parte da crítica aos cânones
ocidentais em grande medida. Sob a presente perspectiva, a ideologia oficial de tipo
meritocrático deve ser desestabilizada, sobretudo pelo seu caráter cínico, que iguala grupos
inigualáveis no ordenamento colonial vigente.
Notadamente, nossa participação política é estabelecida a partir de estudos que dão
visibilidade às desigualdades e injustiças raciais. A teoria é parte do caminho árduo de
diminuição dessas desvantagens. Falando para os seus pares, escrevendo sobre a experiência
dos colonizados, a partir de estudos clínicos, Frantz Fanon é parte do legado deixado pelos

29
O conceito de exclusão, tendo em vista as suas variedades, terá uma interpretação onde consideraremos às
vezes a participação social também como um modo de exclusão, conforme apontaremos ao longo deste estudo.

34
movimentos de resistência, tendo grande influência no recorte dado a esta tese. Concentramos
grande esforço para estabelecer interlocução sobretudo com sua teoria, dada a abrangência de
suas análises sobre o Nós e os Outros, tendo em vista o peso da aventura colonial no mundo.
Aprendemos a ver sentido na violência, uma das mais importantes categorias de seu
quadro teórico. Descolonizando a consciência, podemos visualizar as conseqüências de ser o
Outro colonial. Por isso, não foi o radicalismo de Fanon que nos tomou de assalto, mas sim as
possibilidades de agência política em sua teoria da descolonização. Insurgir, para ele,
dependerá sempre, em qualquer parte onde se encontrem sujeitos em situação de dominação,
da descolonização, da tomada de consciência, da preocupação em matar o colonizador que
existe em cada um dos colonizados. Assim, sugerimos uma leitura de Frantz Fanon tendo em
conta sua proposta política.
Em nossas proposições, aceitamos a condição de subalternidade como uma categoria
que substitui o sujeito subalterno, o que podemos ampliar ao longo desta apresentação. Na
construção de contradiscursos, é fundamental articular as diferenças tendo em conta que
identidades são depositadas e/ou assumidas. Sobretudo pelo seu potencial de agrupamento
político, devemos reconhecer a existência dessas experiências de ser o outro como uma
estratégia de agregar ações políticas no sentido de minorar as injustiças raciais.
Em seu artigo A política do conhecimento, Edward Said (2003) situa Frantz Fanon
como um dos mais eloqüentes dos três apóstolos da resistência antiimperialista, já que sua
vida política deu testemunho dos propósitos tomados para a própria existência como
intelectual revolucionário. Jean Paul Sartre, ao introduzir a obra de Fanon, Os condenados da
terra (1961), opta por apresentar uma leitura sobre a descolonização como sendo o centro da
retórica fanoniana daquela obra. Neste caminho, Sartre amplia o feito de Fanon quando
aponta que “la violencia colonial no se propone sólo como finalidad mantener en actitud
respetuosa a los hombres sometidos, trata de deshumanizarlos” (SARTRE, 2001, p.14).
A retórica fanoniana nos ensina também a ver, na conformação do espaço público no
Brasil, uma política de branquidade potente e escravizante. Não caberia, portanto, reproduzir
aqui noções sobre quem tem ou não direito a ter acesso ao conhecimento. Para nós este se
constitui como um bem público e a universidade tem, conseqüentemente, uma missão
pública.
Da parte de um estudo afrocentrado, se produzirão contradiscursos, crítica aos teóricos
da desqualificação dos movimentos de resistência e um forte apelo ao pensamento que emerge
da diáspora africana. Em um estudo afrocentrado, a noção do que é periferia e do que é centro

35
fica esvaziada na medida em que sua análise quer interferir, desestabilizando os modos de
ordenamento colonial herdado.
Nas linhas que se seguem, a interlocução privilegiada é, notadamente, com
referenciais mais periféricos que centrais, tratando-se, especificamente, de uma investigação
afrocentrada30. Reconhecemos a centralidade de estudos sobre a trajetória31 de intelectuais
afrodescendentes classificados como pretos e pardos no sentido de ampliar a percepção sobre
o impacto da sua presença no campo acadêmico. A hipótese que adorna nossas intenções de
estudo é de que, com essa experiência de pertencimento na esfera universitária, inaugura-se
uma nova fase na sua trajetória intelectual que pode ser percebida pelo aspecto da criação do
coletivo de pesquisadores afrodescendentes32, como indica a participação de cerca de 600
investigadores reunidos já por três vezes em encontros nacionais.
Supomos que a atualidade das relações coloniais se confirma nas análises produzidas
sobre a branquidade em diferentes contextos. Conforme Ghassan Hage33,

30
Entendemos os estudos afrocentrados como aqueles baseados em teorias que tomam como referencial o
pensamento e a experiência dos herdeiros de filosofias que partem de narrativas africanas, reinscrevendo a
história com base em teorias e visões de mundo produzidas por bases africanas.
31
Consideramos como uma análise fundamental para acompanharmos a tentativa de mobilidade social de
sujeitos subalternizados pelo pertencimento étnico entender os desdobramentos das agendas dos movimentos
negros pelo menos a partir dos anos de 1970. O Brasil vem tentando discutir, assim como outras nações, políticas
de cotas de vagas para o ingresso da população afrodescendente, privilegiando pretos e pardos. A literatura
sobre as condições dos pobres e particularmente desses últimos evidencia a emergência de reparação no que se
refere aos prejuízos que têm sofrido. Nossa perspectiva de investigação se sustenta inicialmente na idéia de que
as representações do afrodescendente preto e pardo são construídas discursivamente dentro da tradição da
exclusão. A ênfase nas análises recai sobre a problematização de categorias como identidade, pertencimento
acadêmico, imbricadas no debate sobre esses sujeitos subalternizados e a Educação no plano mais amplo.
Observando o interior da pobreza, a vida dos indivíduos oriundos dos setores populares – entendida como uma
"corrida pela sobrevivência" –, salta aos nossos olhos a população negra na condição de última colocada. Tal
situação demanda mecanismos que garantam alguma mudança no quadro das "ausências" que atinge
primeiramente pretos e pardos. Um quadro menos desigual em relação às condições gerais dos demais grupos
étnicos em termos de oportunidades de inserção no mundo do trabalho. Observa-se um número expressivo de
afro-brasileiros pobres buscando uma formação nas universidades em faculdades particulares. Torna-se claro que
a busca por um curso particular está relacionada às condições de acesso bem opostas em termos de
competitividade, se comparamos as instituições públicas de ensino superior às instituições particulares. Assim, a
procura por instituições particulares tem a ver com o critério de acesso às instituições públicas. Um dos aspectos
a ressaltar seria a falta de capital – como o "capital cultural" – correspondente à lógica competitiva. Os afro-
brasileiros compõem os setores mais pobres do Brasil (ver HENRIQUES, Ricardo, Texto para Discussão n.807,
IPEA, julho/2001) e, portanto, saem em desvantagem no processo seletivo dos vestibulares das instituições
públicas. Muitas vezes esses candidatos sequer chegam a procurar as universidades públicas. Por tudo isso, a
trajetória de intelectuais afrodescendentes em desvantagem pela marca de cor deve ser examinada tendo todos
esses aspectos acima apontados. O que se pretende enfocar é que não tem quase nada que o ajude a seguir em
frente, estando sempre só, estabelecendo relações circunstanciais na esfera universitária. Há indicações de que
algum professor, no meio do caminho de muitos dos respondentes, pelo fato talvez de ser mais sensível à causa
dos movimentos negros, resolveu lutar por um determinado aluno no sentido de favorecer seu ingresso no curso
pretendido.
32
Pela possibilidade de estranharmos a categoria “negro”, ainda que a aceitemos pela força política que hoje
possui, colocamos em destaque. Para efeito de nossas análises, negros são nomes que racializam assim como o
termo indígena criticado na obra de Frantz Fanon.
33
Ghassan Hage (2004), ao examinar a crise de identificação nacional com base em entrevistas de simpatizantes
do Partido da Nação Única de Pauline Hanson (Austrália), sustenta que ela é, na verdade, uma crise de

36
O que nos mostra a história da construção da branquidade é como esse ‘ser o melhor tipo de ser
humano’ associou-se a ser o europeu branco. Ao mesmo tempo, contudo, é claro que o que se construiu
não foi a identidade de todo e qualquer europeu branco, mas um modelo geral a que aspirar, o qual os
europeus brancos almejavam atingir, alguns com maior sucesso do que outros. A branquidade foi o
meio de obter acesso a esse ideal, e não de conseguir uma identificação completa com ele. Ser branco
significa a possibilidade de aspirar a esse ideal e de ter esperança nele, mesmo que não se estivesse
perto de alcançá-lo. Foi nesse sentido que a branquidade racial funcionou como um mecanismo colonial
de distribuição de esperança (HAGE, 2004, p. 154).

Neste caminho, podemos superar nossas rasuras sobre o significado dado aqui às
políticas de branquidade nos espaços acadêmicos e propor uma investigação que capte os
valores de um grupo34 racial vigente que não admite perder seus privilégios. Uma das
estratégias tem sido manter os lugares, as posições sociais com base na formação dos grupos
oriundos das oligarquias bem como reeditar práticas de segregação dos grupos não-brancos
identificadas no modo de ordenamento das carreiras que neles se legitimam. Tais nuanças são
definidas portanto como relações/situações coloniais estabelecidas sob uma “eurodireção”35 na
universidade.

1.3. Processos de descolonização na produção acadêmica: algumas questões de estudo


Um primeiro objetivo foi analisar as formas de inter-relações construídas no âmbito
dos espaços de intercâmbio de estudos étnico-raciais, percebendo até que ponto a
universidade pública se converte em território de negociação de outras racionalidades. As
perguntas seriam as seguintes: desde quando a universidade pública incorpora a perspectiva
de pesquisas afrocentradas? A universidade pode ser definida como território de sujeitos
coloniais agregando por vezes o Outro colonial? A ausência de grupos “estranhos” poderia ser
definida como uma presença-ausente? Considerando o fato de muitos estudantes de pós-
graduação no nível do mestrado e do doutorado abandonarem (por diferentes razões) as suas
respectivas pesquisas, é possível supor que os sujeitos entrevistados, principalmente pelo
estigma depositado nas suas imagens, entram empurrando a porta da universidade, que não os
incorpora como sendo parte de seu projeto ideológico?

branquidade. Hage considera fundamental partirmos de uma “microperspectiva do trabalho cotidiano de


identificação” (2004, p.153) para darmos conta das possibilidades diversas de relações a serem estabelecidas no
processo de construção social da branquidade.
34
Este grupo não é simplesmente mais um. Pela força do fenômeno da colonização, suas bases estão
estabelecidas e para isso contam com a invisibilidade da identidade branca que é a identidade do “Eu”; a
identidade do colonizador é a identidade branca mantida em segredo, por assim dizer; estando escondida é mais
fácil que o Estado com sua característica patrimonialista ordene e aceite em seus discursos os grupos como
classes dominantes e classes dominadas sem problematizar a questão da racialidade.

37
Um dos objetivos seria compreender, a partir dos depoimentos desses intelectuais, em
que medida sua inserção no espaço acadêmico, na situação em que se deu essa participação,
interferiu ou mesmo reforçou a definição de sua produção intelectual? Em outros termos, a
pesquisa quer auxiliar na feitura de uma sociologia da subalternidade privilegiando as
narrativas construídas por esses sujeitos.
Supomos que suas narrativas incluem uma preocupação com as classes residentes
nesse contexto de pobreza. André Augusto Brandão (2004), analisando o conjunto das
desvantagens socioeconômicas cumulativas que sofrem os negros, vislumbra o seguinte:

Trata-se aqui de uma desvantagem competitiva que é produzida e mantida pela discriminação racial.
Mais especificamente os negros, em maior número proporcional que os brancos, nascem em áreas
pouco desenvolvidas, originam-se de famílias mais pobres, possuem dificuldades de realização escolar
em todos os níveis de ensino e concentram-se em atividades ocupacionais desqualificadas e de baixo
rendimento [...] acreditamos que a questão racial constitui uma variável fundamental para a
compreensão da lógica de produção e de reprodução da pobreza e da exclusão social, no Brasil. A raça,
portanto, relaciona-se diretamente com a distribuição diferencial dos indivíduos nas posições existentes
na estrutura de classe (BRANDÃO, 2004, p.17-18).

O problema não só existe como é profundo e perceptível se olharmos as condições


desses Outros no que se refere à condição sócio-econômica. O desmantelamento deste quadro
dramático não se dará apenas pela educação formal, decerto. O que se pretende de mais
original com a inserção dos distintos Outros nos espaços de poder é dividi-lo. Há indicações
de que a formação intelectual pensada também a partir da universidade pública pode se
constituir como parte de uma experiência de transformação de um desejo sobrante (SANTOS,
2004). Sabe-se que a universidade pública é um dos mais conhecidos objeto de desejo,
todavia de um desejo não satisfeito, que sobra, que frustra. Havendo multidões que não
compram (ou não pagam, ou só podem pagar pouco), se estimula, por tabela, o desejo dos que
compram. O valor social que tem a formação universitária está implicado neste quadro
teórico.
Sendo assim, e, encarando o curso do debate atual sobre a luta pela legitimidade
dessas esferas (SOUZA SANTOS, 2004), o que podemos fazer para provocar mudanças
radicais atingindo este ordenamento? Como imaginarmos a insurgência daqueles que
historicamente foram colocados no lugar fixo de escravo e, portanto, subalterno?
Partimos para o campo de pesquisa munidos destas questões, indo em direção aos
intelectuais-acadêmicos-afrodescendentes, pesquisadores situados no eixo das relações
raciais. Privilegiamos o III Encontro Nacional de Pesquisadores Negros (III COPENE)

35
Adotamos de Muniz Sodré (2002) que define a mídia como uma parte da engrenagem de visões
“eurodirigidas”.

38
realizado no ano de 2004 em São Luiz do Maranhão. Foram 18 entrevistados dentre cerca de
600 participantes, sendo, os nossos eleitos, figuras de expressão nacional tendo em vista a sua
agência política.
Reconhecendo todas as crises36 pelas quais as universidades públicas passaram e
passam, ativistas que migram para a vida intelectual acadêmica têm declarado o quão central é
a sua inserção nesses espaços de formação e representação política. Assim, seu contra-
discurso ganha fôlego e legitimidade a partir das oportunidades que cavam para lutar por
representação. Sobressaem, portanto, argumentos sobre a democratização da universidade no
sentido de favorecer sua missão pública de garantir o ensino, a pesquisa e a extensão. Mas não
apenas para as classes vistas como elites econômicas, oriundas dos colégios de maior
prestígio.
Este modelo de universidade favorável ao ingresso de grupos que não dependem do
Estado é o mesmo modelo que deixa as classes em condição de subalternidade, fora das
oportunidades de luta por lugares sociais mais dignos. Já que na agenda de reivindicações
do(s) Movimento(s) Negro(s) a educação sempre esteve em primeiro plano, somos levados a
crer na relevância dessa bandeira em favor do acesso ao ensino superior como um dos pontos
mais caros para o ativismo acadêmico.
Pode-se considerar que os estudos sobre as relações raciais, hoje, refletem uma outra
perspectiva de construção do conhecimento se comparados às abordagens realizadas quando
do seu surgimento. Desde os anos 70, com a fundação do Movimento Negro Unificado
(MNU), o desdobramento das investigações tem sido marcado pelo olhar de sujeitos
representados como subalternos. O tema tem sido abordado como mais um elemento de
questionamento e, em certa medida, as investigações reivindicam “a inclusão das formas
culturais que refletem a experiência dos grupos cujas identidades são marginalizadas pela
identidade européia dominante” (SILVA, 1999, p.126). Ao aceitarmos tal proposição,
podemos entender como urgente a abordagem de estudos que subsidiem uma sociologia sobre
as diferentes possibilidades de reinscrição do protagonismo, da agência afrodescendente.
Cabe, por isso, admitirmos a relevância de registros das formas atuais de
fortalecimento de sujeitos em posição de subalternidade.

36
O neoliberalismo, iniciado por Margareth Thatcher, atingindo as políticas de financiamento de gestão das
universidades no contexto da América Latina, alcança o Brasil. Tendo como alvo principalmente as políticas
educacionais, essa doutrina altera sobremaneira regras de financiamento e também a hierarquização no seu
interior e entre elas. Por conta disso, os debates em torno da legitimidade dessas instituições estão na ordem do
dia e com toda força. No Brasil, alguns fóruns discutem sobre até que ponto a hegemonia universitária contribui
para este enfraquecimento.

39
A crítica pós-colonial e os estudos subalternos – teorias interessadas na revisão das
narrativas sobre o sujeito colonizado – tocam nossas análises justamente por indagarem sobre
o poder mobilizador do discurso colonial, nesse caso as narrativas sobre os grupos da diáspora
africana. Sobre isso, é preciso lembrar que a literatura e o pensamento social, de modo geral,
promoveram representações sobre os não-brancos fixando seu lugar a partir de visões
exóticas, não palpáveis. Os sujeitos que se constituem como agentes políticos e que têm
origem na periferia constroem estratégias de sobrevivência, definem prioridades, ultrapassam
fronteiras e acreditam na mudança das relações coloniais. Contam ainda com uma rede de
solidariedade entre si envolvendo seus iguais e, às vezes, alguns parceiros não
necessariamente subalternos.

1.4. Fortalecimento37 de intelectuais afrodescendentes: a universidade “por fora”

Os Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros (NEABs) existentes, inclusive localizados nos


espaços das universidades (públicas ou particulares), podem ser interpretados como
promotores de um certo protagonismo dos segmentos afrodescentendes e outros grupos não-
brancos.
Os NEAB’s são esferas que dão visibilidade ao debate sobre as relações raciais e
agregam novos sujeitos à causa. Neste contexto e apesar da falta de recursos financeiros,
iniciativas como o curso de pós-graduação lato sensu, coordenado pelo Programa de
Educação sobre o Negro na Sociedade Brasileira (PENESB) na faculdade de Educação da
Universidade Federal Fluminense (UFF), o Centro de Estudos Afro-Brasileiros38 (UCAM), o
Programa A Cor da Bahia, vinculado ao mestrado de Sociologia da FFCH da Universidade
Federal da Bahia, o Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO) em Salvador, são locus de
enunciação de uma produção afrocentrada. Pode-se constatar, de uma maneira geral, que o
aspecto comum, entre os projetos que visam ao fortalecimento acadêmico de intelectuais

37
Como coletivo, os pesquisadores negros experimentam, na última década, instituir fóruns permanentes,
estendendo a confecção de suas redes na medida em que acolhem intelectuais negros que discutem as relações
raciais bem como intelectuais não-negros que discutem dentro do mesmo eixo. Seus recursos são escassos e às
vezes inexistentes; as instâncias de fomento à pesquisa ainda não estão trabalhando no sentido de estabelecer
parcerias, por exemplo, com a Associação Nacional de Pesquisadores Negros. Sobre aquilo que entendemos
como políticas de branquidade, destaca-se o fato de não existir efetivamente um movimento em favor da
legitimação desses fóruns. Há com certeza indicações de haver uma forte influência do racismo acadêmico na
invisibilização dessas tentativas recentes, sobretudo porque o trabalho dos intelectuais afrobrasileiros está sob
suspeita enquanto saber científico, conforme seus relatos de entrevistas.
38
Este espaço foi extinto no ano de 2005 tendo como justificativa a crise da universidade na qual se localizava.
Conforme sabido no âmbito nacional, o Centro de Estudos Afro-Brasileiro desde o seu início se constituiu como
um dos centros de maior prestígio nacional no que se refere aos estudos sobre as relações raciais.

40
afrodescendentes, é justamente a sua exterioridade, o que se explica pela forte invisibilização
das desigualdades raciais. Em outras palavras, a universidade pública, entendida como espaço
de excelência, não incorpora o recorte racial nos programas de mestrado e doutorado39 a saber.
As experiências que nascem como projetos são assim definidas porque, no âmbito da
esfera acadêmica, ainda não são prerrogativas da universidade pública. Daí o interesse em
examinar como os afrodescendentes podem tocar, via seu interesse de produção de
conhecimento, a cultura universitária, chegando mesmo a desestabilizá-la. Pelo exposto, a
insurgência40 de intelectuais não-brancos tem como referência espaços de formação e pesquisa
que se constituem como esferas alternativas de promoção da perspectiva afrocentrada de
produção de outros saberes. Caberia, então, incorporarmos a idéia de que o debate das
relações raciais vem sendo fomentado via diferentes interseções. Em programas de extensão
organizados pela consolidação de parcerias entre diferentes instâncias interessadas na
formação de uma crescente intelectualidade não-branca, esta interseção não passando
necessariamente pela chancela da universidade pública. Alguns grupos de ativistas e
investigadores vêm conseguindo manter fóruns permanentes de formação nas relações raciais.
Por isso, não seria exagero afirmar que, no campo da Educação, o debate sobre as
relações raciais tem sido enriquecido pela possibilidade de implementação de ações
afirmativas. Sua politização deixa uma contribuição ímpar que é, em primeiro lugar, o fato de
estarmos problematizando o papel que a universidade pública tem no projeto de país. Ao
estendermos nossos campos de possibilidade para abrigar teses periféricas sobre a missão
universitária, observamos que as linhas de exposição do tema têm como uma de suas grandes
forças conferir ao conhecimento universitário o status de verdade. O que denominaríamos
como uma força cultural, dada a sua representação para o imaginário coletivo, tende a ser
atingida pelo abandono aos cânones ocidentais.
Um caminho interessante para a análise da produção que privilegia os estudos das
relações raciais versus Educação foi o levantamento de mais de 500 fontes entre livros, teses,
dissertações e artigos que hoje figuram como referência nos estudos das relações raciais neste
eixo (MIRANDA, AGUIAR e DI PIERRO, 2004). O Congresso Nacional de Pesquisadores
Negros (COPENE), já na sua quarta edição, organizado pela Associação Brasileira de

39
Pela primeira vez no Brasil, se institui, no ano de 2005, um programa de mestrado e doutorado que se dedicará
também aos estudos das relações raciais. Na Universidade Federal da Bahia, foi aprovado o Programa de
Mestrado e Doutorado Sobre Relações Raciais, o Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Estudos
Étnicos e Africanos.
40
Para Homi Bhabha (1998) a insurgência é a possibilidade do retorno do sujeito capaz de provocar um corte
profundo do signo e do símbolo. Sua possibilidade de protagonizar, sua agência, nos termos de Bhabha (1998),

41
Pesquisadores Negros (ABPN)41, reflete a dimensão das mudanças ocorridas no concernente à
intervenção de intelectuais afrodescendentes. É neste contexto que se localiza a chamada
agência subalterna, uma possibilidade de tradução do protagonismo afrodescendente.
COPENE, ABPN e os Núcleos de Estudos Afro-brasileiros (NEABs), estando esses últimos
presentes em mais de 20 universidades do país, são exemplos da insurgência, da agência
afrodescendente, da perspectiva afrocêntrica de interculturalidade na produção de
conhecimento. Não é tarefa isolada a tentativa de responder aos argumentos mais
significativos sobre o que é a fala do subalterno42. Neste caminho, é preciso enfatizar o quanto
a noção de agência de Homi Bhabha (1998) auxilia nossos primeiros esboços a esse respeito.
Reconhecer desdobramentos provocados pelo debate mais amplo sobre o Brasil e suas
instâncias públicas nos levou ao universo da pesquisa sobre relações de poder e educação
encarando questões historicamente conflituosas:
• até onde o avanço dos grupos não-brancos, no que se refere ao acesso aos bens
culturais, pôde contar com o poder do Estado, tendo a chancela da universidade
pública?
• A luta pela representação política dos segmentos não brancos tem sido pensada a partir
desta instituição de prestígio?
• Intelectuais acadêmicos não-brancos inseridos em cursos de mestrado e doutorado
cumprem a função social de iniciar o processo tardio de desestabilização da
universidade pública?
• As identidades formadas a partir da brancura formam o ethos da universidade pública?
• A universidade pública pode ser analisada como privada?
• Em que medida os detentores do bônus dado pela herança da condição colonial estão
favorecidos pelo controle que exercem hoje na produção do conhecimento?
• A universidade também é promotora de um outro coisificado43?

se traduz na criação de novos espaços de negociação bem como na análise dos determinantes da condição de
subalternidade.
41
Atualmente, a presidência da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN) conta com a professora
Nilma Lino Gomes (UFMG) tendo como seu vice, o professor doutor Wilson Roberto de Mattos (Pró-reitor da
UNEB).
42
Gayatri Chakravorty Spivak (1994) chama a atenção para o que define como um truque retórico justamente
por entender que os sujeitos vistos como subalternos não podem falar. Sua argumentação é de que o subalterno
jamais produzirá um discurso já que sua narrativa está contaminada pela sua condição. A autora acredita na
possibilidade de crítica desde que não se negue o discurso, a dialética senhor/escravo.
43
Encontramos este termo no Discurso Sobre o Colonialismo de Aimé Cesaire. Para ele, o processo de
coisificação transforma homens em corpos, em mão-de-obra em detrimento da capacidade de participação social
em termos de poder. Em se tratando dos africanos transformados em escravos, foram milhões de coisificados,
processo que garantiu a depreciação atual bem como o ódio racial do branco para com o preto.

42
1.5. Conversas afrocentradas na universidade pública
Ao contrário do que em geral se crê, produzir uma tese será sempre um trabalho
coletivo construído a partir dos diálogos estabelecidos entre o (a) suposto (a) autor (a) e seus
pares. Neste caso, foi uma oportunidade de irradiar significados e sentidos das experiências de
um outro modo de construir racionalidades incluindo a prática da pesquisa, a experiência de
fazer parte do espaço de produção de conhecimento dos que produziram coletivamente este
trabalho de tese. Decerto, aproveitamos todas as redes (BOURDIEU, 1997) possíveis e
necessárias de serem estabelecidas entre os grupos identificados pelas experiências comuns
de pertencimento acadêmico no sentido de dar outro sentido a esse tipo de fenômeno chamado
capital social.
Ao definir “capital político”, Bourdieu (1997, p.31) diz ser algo que assegura aos seus
detentores uma forma de apropriação privada de bens e de serviços públicos (residências,
veículos, hospitais, escolas etc.), como explica:

Observa-se essa patrimonialização de recursos coletivos quando, como é o caso nos países
escandinavos, uma “elite”social-democrata está no poder há várias gerações: vemos então que o capital
social de tipo político que se adquire nos aparelhos dos sindicatos e dos partidos transmite-se através de
redes de relações familiares que levam à constituição de verdadeiras dinastias políticas.

No Brasil, a privatização das instituições públicas se converteu em algo dado, não se


pode ver tal fenômeno. Sua eficácia é justamente porque aquilo é natural, não é visto.
Mencionar a existência de políticas de branquidade é, portanto, um desafio a ser enfrentado.
Levantar hipóteses sobre a invisibilidade da força da brancura nos espaços de produção do
conhecimento é mais desafiador ainda.
Neste sentido, a pesquisa aqui apresentada se constitui como mais uma dimensão da
perspectiva afrodescendente de produção acadêmica. Conforme dito inicialmente, seu foco
privilegia a trajetória, as formas de intervenção que caracterizam as narrativas construídas por
egressos da universidade pública; insere-se em um campo temático que tem se constituído
como um espaço de produção de sujeitos entendidos como estando fora do seu lugar; visa
ampliar nossa lente analítica para estudar as formas pelas quais sistemas de crenças podem ser
desconstruídos, enfrentados e reconcebidos politicamente a partir de outros espaços de
produção de saberes; sua primazia é o fato de trazer uma contribuição inédita, partindo do
registro e da análise de depoimentos que revelam a experiência de ser um outro na
universidade pública.
Um aspecto de seu desdobramento é apreender em que medida a dimensão da
racialidade vem subsidiando o entendimento dos estudos das relações raciais bem como a
43
tessitura da identidade afrocentrada. Em diferentes aspectos, as escolhas que fazemos deixam
para trás outras possibilidades de compreensão do mundo, cabendo assim assumirmos os
riscos de nossas inclinações, sejam elas quais forem. Ao mesmo tempo em que poderemos
nos situar como fronteiriços, entendemos a opção por um estudo menos eurocentrado e mais
subalterno na medida em que, para nós, os estudos produzidos com base na experiência de um
outro indicam a potência da noção de periferia. Desse modo, é a partir de ícones dos estudos
subalternos e também dos estudos pós-coloniais que formulamos nossas primeiras questões
de estudo e hipóteses sobre a missão pública da universidade.
A experiência nascida da subalternidade é aquela pela qual concretamente nos
sentimos como estranhos ao lugar. Outra experiência associada a essa é de estarmos sendo
avisados, todo o tempo, sobre o fato de aquele lugar pertencer a um grupo que, a partir da
aquisição de um passaporte, uma etiqueta ou ainda um tipo de bônus, se constitui como
coletivo, e que, por isso, tende a não aceitar a presença do estranho, do fora do lugar44. Os
lugares marcados pela brancura são os melhores.
O problema da mobilidade social inclui a dificuldade de integração em igualdade de
condições entre eurodescendentes e grupos definidos como não-brancos, incluindo um dos
fenômenos dos mais desafiadores para o Brasil. Pelo fato de estar naturalizada, é provável
supor que a identidade branca delega plenos poderes aos com ela identificados,
independentemente de sua aparência física. Os identificados podem ser brancos ou não-
brancos. Muito provavelmente, grupos herdeiros das mazelas da escravidão – terminada há
pouco mais de 115 anos – mesmo em condição de subalternidade, sustentam as relações
subalternas entre si e o grupo dominante visto como detentor da etiqueta ou do bônus da
brancura.
Assim, um dos maiores obstáculos para os estudos sobre a sociedade é a intensificação
da idéia de convivência passiva entre ex-colonos e ex-escravos: rodas de samba, carnaval,
conversas em torno da cerveja, a idéia de inclusão pela presença de apenas um são achados
que nos fazem observar mais detalhadamente a falsa noção de que entre tais segmentos não
existe problema. O medo social, ou melhor, o pavor percebido em matérias de jornal sobre a
questão da democratização do ensino público superior nos fez acreditar na existência de uma

44
Os referenciais dos estudos pós-coloniais estão orientados pelo legado deixado por Edward Said, um teórico
nascido na Palestina e preocupado com a condição daqueles sujeitos definidos pelo não pertencimento branco. A
obra de Said gira em torno da posição desses grupos estigmatizados e representados pelo mundo ocidental como
sendo o fora do lugar”, a sombra do homem europeu, o outro colonial. Entendendo as relações coloniais, todos
os envolvidos no processo de colonização são sujeitos coloniais. E, como regra, as distinções estabelecem os
lugares fixos. Normal é quem colonizou tentando o melhoramento das “outras raças” e o “outro colonial” é

44
rede de solidariedade entre os que se identificam com a brancura. Inicia-se, portanto, no
Brasil, um duelo simbólico entre alguns intelectuais que defendem a inserção dos
subalternizados pela pobreza e pelo pertencimento étnico/racial e entre a sociedade.
Invisibilizando os grupos que compõem a África brasileira – termo usado em entrevista ao
Programa do Jô por um ex-presidente do IBGE – a sociedade imaginária é branca e no
máximo morena clara. Pretos são grupos representados com a sua ausência, por exemplo, nos
meios de comunicação. Aparecem como torcedores, notadamente, como massas, corpos
amontoados, espectadores45.
Gostaríamos de chamar a atenção para este fenômeno, que é justamente a invenção do
cotidiano por meio de grupos que privilegiam, na construção da imagem do país, um
comportamento eurodirigido. A ordem e o progresso no Brasil foram bandeiras que
interessaram aos grupos oligárquicos, empenhados na construção de uma imagem do Brasil
favorável ao reconhecimento de sua servidão aos países considerados potência em termos de
detenção de poder bélico e econômico. Esse Brasil do imaginário fez e faz parte de um projeto
de invisibilização das heranças coloniais presentes nas suas raízes. Optar por um estudo
subalterno implicou realizar um mergulho no debate sobre as relações raciais e experimentar o
contato com outros investigadores situados no mesmo eixo. Neste caminho, a participação no
Curso Avançado Fábrica de Idéias46 revelou, por definitivo, os problemas a serem tratados

justamente o colonizado, o diferente, o menos evoluído, aquele que depende do contato com o mundo europeu
para alcançar comportamentos e condutas que o levem para próximo dos grupos detentores da civilidade.
45
Vistos como um grande representante de uma nova ordem social, jornais e emissoras de televisão são
interpretados aqui como mapas políticos e culturais. Ambos devem ser colocados na esfera de discussão pública
e problematizados, já que são reconhecidamente remetidos à esfera privada onde se cultivam interesses
particulares de controle e poder a partir de práticas discursivas. Dessas práticas, entendemos que o espectador é o
povo, um amontoado de corpos; sua participação é definida também com base na sua auto-imagem de torcedor,
espectador de novelas, ouvinte, e nunca como alguém responsável pelas decisões realizadas nas grandes tribunas.
Neste sentido, acreditamos que os jornais produzem narrativas que ressaltam a probabilidade de participação
desse amontoado de corpos que deve ser contemplado pelo sistema de representação. É como dizer que tem
alguém pensando por eles. Este tipo de medium (SODRÉ, 2002) tem legitimado discursos e pré-noções
particulares. Consideramos, com base na teoria da mídia de Muniz Sodré, que nos veículos midiáticos de
comunicação formas grotescas refletem um histérico pacto simbólico e redimensionam o lugar social reservado
aos não-brancos (os outros).
46
O Centro de Estudos Afro-Asiáticos (CEAA) da Universidade Cândido Mendes, uma universidade com
reconhecido prestígio, foi a primeira referência acadêmica especializada em estudos das relações raciais no país
com cerca de mais de 30 anos de atuação e é neste ambiente que se instituiu, em julho de 1998, o Curso Fábrica
de Idéias. Com o objetivo de atender à demanda de alunos negros pós-graduandos interessados em ampliar a
reflexão das relações raciais, o Fábrica é o resultado de uma iniciativa pioneira no âmbito das instituições
universitárias. Quando da sua criação, foi possível apreender os problemas relativos, por exemplo, à orientação,
uma das queixas mais freqüentes entre os selecionados que destacavam a dissonância entre suas opções de
temáticas e as áreas de investigação de seus respectivos orientadores. Mesmo sendo uma demanda restrita, os
temas provenientes do interesse desse grupo na pós-graduação eram efetivamente exteriores aos estudos
desenvolvidos nos programas (FIGUEIREDO, 2003, p.1). Com o Fábrica de Idéias inaugura-se uma nova fase
na trajetória intelectual que pode ser percebida pelo aspecto da identidade coletiva. Favorecendo o mergulho do
debate e na análise de estudos avançados, a perspectiva de investigação tende a ser revitalizada pelos estudantes
pós-graduandos. Nas últimas edições, foram incorporados alunos não-negros interessados em investigar estudos

45
sobre o pertencimento acadêmico de intelectuais iniciados em pesquisa nos programas de
mestrado e doutorado de grandes instâncias no âmbito nacional.

1.6. Contexto, cenário, informantes-chaves e o caminho percorrido


O III Congresso Nacional de Pesquisadores Negros (III COPENE), realizado entre os
dias 6 e 10 de setembro de 2004, figura como o espaço privilegiado para o trabalho de campo
já que, neste contexto, foi possível encontrar os primeiros respondentes, situados em regiões
distintas do Brasil, tendo predominado os estados de Brasília (Salles Augusto dos Santos,
Nelson Inocêncio, João Carlos Nogueira), Bahia (Ari Lima, Silvio Humberto de Passos, Ana
Célia da Silva, Florentina Souza, Wilson Roberto de Mattos e Amélia Vitória de Souza
Conrado) São Paulo (Valter Roberto Silvério, Julvan Moreira de Oliveira, Ivair Augusto dos
Santos e Cirena Calisto), Porto Alegre (Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva e Lucia Regina
Brito Pereira), Santa Catarina (Paulino Cardoso), Paraná (Dora Bertúlio) e Ceará (Henrique
Cunha Junior). Conforme se pode notar, forçosamente, optamos por excluir o grupo de
referência situado no Estado do Rio de Janeiro, o que se deveu à “profunda interlocução”47 já
existente neste espaço, sobretudo no âmbito pessoal. À luz das idéias presentes nos estudos
sobre o processo de mergulhar na observação do familiar, é que justificamos tal opção. No
interior do mundo científico, os confrontos e lutas atingem sobremaneira os que tendem a
divergir do instituído. A definição dos sujeitos entrevistados se constituiu num problema não
apenas metodológico já que, vivendo no cotidiano de um programa (PPCOR) criado para
fortalecer a proposição de ações afirmativas, situado na cidade do Rio de Janeiro, não se pode
escapar do papel de agente neste processo.

étnico-raciais, inclusive nos países da Europa. Com uma carga horária semanal de 40 horas, o curso é ministrado
por professores doutores com reconhecida experiência internacional, incorporando um número considerável de
estrangeiros da África e América Latina. A partir de aulas expositivas, e grupos de estudos, o Fábrica oferece
palestras e seminários temáticos convidando, para além de seus alunos regulares, a comunidade do entorno do
CEAO. Nas aulas ditas fechadas, os participantes são estimulados a incorporar seus temas e interesses de
pesquisa ao curso e, para isso, a participação ativa nas discussões sobre conteúdo, metodologia, paradigma se faz
obrigatória. A participação na sexta edição (2003) se constituiu como o período em que foi possível reunir
bibliografia, desenvolver conceitos e criticar teorias visando reformular/ampliar o escopo dessa pesquisa de
doutoramento e fundamentalmente estabelecer interlocução com os estudos subalternos (SPIVAK, 1989) e com
a crítica pós-colonial (FANON, 1983 e BHABHA, 1998), a base teórica. O ambiente de intercâmbio entre os
novos pesquisadores no âmbito nacional e internacional é, efetivamente, construído numa perspectiva
comparativa com outros países da diáspora africana.
47
Ao longo do desenvolvimento deste doutoramento a autora esteve situada como pesquisadora do Programa
Políticas da Cor (PPCOR), no Laboratório de Políticas Públicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
constando ainda hoje esta referência a sua pessoa. Sua inserção no PPCOR favoreceu desencadeamentos que se
refletem nas opções feitas neste estudo de tese. É também certo que ao lado do esforço de apreensão do discurso
afrocentrado e sua produção no campo científico, seja na Região Sudeste, Centro-oeste ou Nordeste, está a
dificuldade de todo pesquisador oriundo do meio no qual a temática se desenvolve. De certo modo essa é uma
questão imposta pelo objeto de estudo e os objetivos do trabalho.

46
Pelo traço marcante da dispersão de tais sujeitos, explicada a partir de um exame da
situação dos pesquisadores afrodescendentes em geral − estão dispersos porque são poucos –
assumimos o desafio de realizar as primeiras entrevistas48 no III COPENE, porque lá tivemos
oportunidade de encontrá-los agrupados (cerca de mil pessoas). A quantidade do material
analisado foi definida pela saturação da informação, ou seja, na medida em que as perguntas
foram colocadas, os blocos temáticos privilegiados foram dando conta de indicar as nossas
hipóteses, avaliamos em que medida pareciam suficientes os depoimentos coletados.
As hipóteses construídas com base nas narrativas subalternas de intelectuais não-
brancos ganham volume na medida em que reconhecemos na experiência de feitura deste
estudo o olhar vindo da subalternidade. Dar voz a esses personagens históricos que ainda
aparecem como objeto, como uma questão para as ciências sociais, tornou-se vital para a
conformação de outros conhecimentos.
Privilegiamos, ao longo de nossas apreciações, um contradiscurso saído da experiência
de sujeitos representados como não-sujeitos. São saberes construídos por intelectuais que,
dentro da lógica do ordenamento ainda colonial – característico desses espaços públicos –
estão estigmatizados e representados como incapacitados para a produção de conhecimento
científico.
Pelas experiências divididas com pesquisadores em condição de subalternidade,
consideramos fundamental para a formulação das questões de estudo o exame iniciado a partir
da Bibliografia básica sobre educação e relações raciais ((MIRANDA, AGUIAR e DI
PIERRO, 2004), uma produção já mencionada como sendo parte dos resultados da
interlocução com o grupo investigado. A leitura de seus trabalhos, bem como a indicação das
referências sobre pesquisas no eixo das ações afirmativas, desigualdades na educação e o
alerta49 sobre a existência de poucos trabalhos sobre desigualdades no ensino superior foram,
por conseguinte, as primeiras impressões necessárias para a formulação de nossas hipóteses.
O curso do debate ou a intensificação no país da disputa retórica pela democratização
do espaço universitário indica o quão potente pode ser a organização coletiva daqueles

48
Foram realizadas 20 entrevistas por ocasião do III Congresso Nacional de Pesquisadores Negros, privilegiando
o grupo dos intelectuais atuantes em esferas de decisão bem como os professores de universidades públicas. O
próximo grupo será formado por alunos de mestrado e doutorado militantes e possivelmente um quarto grupo de
negros não-militantes, se assim se puder considerar.
49
Sobre isso se faz necessário registrar que o contato com o professor José Jorge de Carvalho (UnB), figura
central das primeiras formulações de propostas de ação afirmativa na Universidade de Brasília, foi, de igual
maneira, fundamental para o convencimento de que seria urgente a produção de pesquisas sobre a trajetória de
intelectuais no espaço das universidades públicas. Para Carvalho (2000), existe nas esferas universitárias um
racismo acadêmico que tem vitimado os não-brancos inseridos principalmente nos programas de pós-graduação
no nível de mestrado e doutorado.

47
ordenados pela condição subalterna, sejam eles mulatos, pretos, negros, pardos,
afrodescendentes, afrobrasileiros, pan-africanos...
Nesse caminho, nossa tese é fruto de uma longa espreitada dos afazeres intelectuais
afrocentrados, privilegiando sua produção e sua intervenção na esfera pública a partir do
embate sobre quem tem direito a freqüentar as universidades públicas, observando as
representações que constroem sobre essa instituição e sua missão pública.
Partindo de hipóteses que incluem a identidade dessas instituições, nossa mirada
alcançou uma observação sobre as articulações presentes na comunidade acadêmica, em
termos das possibilidades de existência de um projeto de capitalização que denunciaria a
lógica de preservação da esfera universitária como um campo de interesse monopolizado por
algumas instâncias representativas da sociedade, por meio de uma política de controle e de
ausência de disputa no que se refere a outros estratos sociais.
Dito isso, as respostas que buscamos encontrar estão especificamente em um
pensamento afrocentrado de sujeitos reunidos pela experiência comum em situações sociais
mistas caracterizadas pela sua inserção na formação pós-graduada. Estamos nos referindo a
uma realidade específica vivida por homens e mulheres estigmatizados em uma sociedade do
tipo que denominamos democrática que, por outro lado, pouco tem conseguido avançar no
que se refere aos modos de perpetuação das desigualdades vigentes.
Reunimos para este estudo um grupo de intelectuais afrodescendentes pretos e pardos
(homens e mulheres) com posição de destaque e que sofreram notória influência do legado de
uma filosofia que vem se reforçando, desde o pensamento da diáspora africana, e que hoje
pode ser definido como uma primeira geração com visibilidade se constituindo como agência
coletiva. Enfrentam, conforme os trabalhos produzidos mostram, o debate sobre políticas de
inserção na universidade como uma proposta de democratização do espaço universitário e que
depende de êxito, diante de exigências impostas pela configuração de uma educação superior
de uma alta cultura. São professores universitários em instituições públicas, gestores nos
espaços governamentais com expressiva produção intelectual e, ao mesmo tempo, ativistas
fora dos espaços da universidade. Pessoas com histórias que se complementam e que se
confundem, sujeitos inicialmente estigmatizados e, portanto, desafiados pelas práticas
discursivas que envolvem o descrédito aos seus pressupostos.
Uma outra hipótese construída é que a presença de intelectuais-acadêmicos-
afrodescendentes pretos e pardos pode ser uma das estratégias de desestabilização
institucional visto que, para aqueles que foram inseridos através da privatização de uma
instituição social, a circulação de corpos não-brancos nesta esfera se constitui como uma

48
possibilidade de ameaça ao ethos acadêmico. Por isso, não se trata de uma investigação
individual. São vozes saídas de territórios que tradicionalmente não aparecem como locus de
enunciação. Como fruto de aflições coletivas, essas experiências podem ser analisadas tendo
em conta as condições nas quais os intelectuais estigmatizados pelo pertencimento
étnico/racial estiveram submetidos.

1.6.1. Objeto de estudo e objetivos da pesquisa


Pensar, afinal, é uma prática social e, não por acaso, a perspectiva coletiva se
configura como o lugar de destino de orientações e de leituras compartilhadas. Para que o
pensamento extrapole no sentido de alcançar a realização do diálogo, ele precisa partir de
alguns procedimentos que o transfira dos fóruns acanhados, passando por várias etapas, e se
converta em um estudo científico. Produzir conhecimento implica, portanto, leituras e
domínio de teorias diversas existentes sobre aquilo que se pretende entender a partir da
pesquisa. Nesta medida, os estudos subalternos, as teorias pós-coloniais, o critical whiteness
studies (estudo crítico da branquidade) e a sociologia das desigualdades estarão orientando os
pressupostos defendidos desde a formulação das primeiras hipóteses. Ou seja, como uma tese
subalterna, as questões orientadoras passam a ser as seguintes: o que significou ser aluno de
mestrado e/ou doutorado em uma instituição de prestígio? Qual é a representação que
intelectuais afrodescendentes construíram sobre sua formação pós-graduada em universidades
públicas com forte apelo aos cânones ocidentais? Que eixos nortearam seus estudos a partir
das experiências de ser o circulante, aquele que não tem lugar fixo nos bancos universitários?
Qual é a missão da universidade pública para tais pesquisadores?
As perguntas formuladas servem para indicar nossas primeiras hipóteses de que a
universidade pública suporta sujeitos que para ela são apenas passageiros que dali não
passam, porque nela não foram formados. O estranhamento causado pela sua presença está
justificado ao considerarmos que não tem tradição de situações mistas desta natureza. Nesta
medida, este trabalho está organizado em quatro capítulos a partir desta introdução, que tem
como finalidade preparar o leitor para entender seus objetivos e justificar a opção por um
trabalho desta natureza.
No capítulo dois, procuramos descrever a centralidade das filosofias produzidas por
sujeitos deslocados, fazendo uma discussão sobre movimentos de resistência ontem e hoje,
observando as estratégias anti-racistas no combate aos grupos estabelecidos. No capítulo três
entra em cena uma interpretação da universidade pública sob o olhar afrocentrado, para fazer
uma discussão teórica sobre o ordenamento colonial no seu interior, considerando o fenômeno

49
das situações mistas envolvendo estabelecidos e insurgentes. O capítulo quatro é uma breve
digressão sustentada pelos conceitos citados acima no sentido de preparar nossa análise
apresentada no capítulo cinco. O capítulo conclusivo apresenta as considerações finais em
relação às questões que orientaram esta pesquisa de tese.
Em linhas gerais, buscamos subsídios para pensar os não-brancos do Brasil a partir das
narrativas subalternas, vislumbrando um diálogo, uma aproximação que privilegia entender
os contatos inter-raciais experimentados por afrodescendentes que passaram pelos programas
de pós-graduação, observando as idiossincrasias de uma hegemonia branca acadêmica.
Objetivamos dar uma contribuição original a partir de suas narrativas, entendidas mais como
narrativas subalternizadas e menos como narrativas subalternas. As representações
construídas/produzidas pelo grupo na sua passagem pela universidade, sua análise acerca dos
desdobramentos das políticas de racialização e de branquidade, são pontos que nos
orientaram. Do mesmo modo, as suas estratégias de negociação implementadas no interior
deste campo aguçaram nosso olhar.

1.6. 2. Sobre os métodos e técnicas


De acordo com o estudo que aqui se coloca, o desenho metodológico adotado foi de
corte qualitativo, razão pela qual os pressupostos e as hipóteses trabalhados na investigação
foram reformulados, ajustados, reencaixados, na medida em que desenvolvemos o trabalho de
campo. A metodologia qualitativa se inscreve numa dimensão epistemológica específica, cuja
intenção não é explicar senão compreender os fenômenos humanos. O pesquisador é um
sujeito ativo frente a seu objeto de investigação, pois, na sua interação com a realidade, se
modificam tanto o produtor da pesquisa quanto o objeto pesquisado. Essa perspectiva supõe
uma postura onde não se parte de elementos teóricos definidos, pois que são redefinidos em
todo o processo de investigação, avaliando constantemente a pertinência teórica dos modelos
a serem utilizados.
A temática proposta requer, também, um desenho emergente e exploratório que possa
dar conta de vozes e práticas culturais, desde a subalternidade, precariamente – ou nunca –
examinadas com caráter científico. Por outra parte, na medida em que o tipo de estudo
adotado é qualitativo, a pesquisa tentará descrever a maneira em que os mesmos sujeitos
entendem as suas práticas e significados que lhes atribuem, negociando, por sua vez, com as
nossas interpretações, categoria de análise e hipóteses.

50
1.6.3. Os espaços de interlocução
Tanto para analisar as representações como para registrar as estratégias dos
intelectuais em questão, na sua passagem pela universidade pública, utilizamos um conjunto
de técnicas de coleta de dados, quais sejam, as de observação participante. Neste eixo,
situamos o Programa Políticas da Cor (PPCOR) situado na Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, pelas oportunidades de dialogar com pesquisadores que nele atuaram.. As
conferências organizadas, as redes de interlocução são também espaços de observação.
A aproximação com pesquisadores de diferentes países que estão trabalhando no eixo
das relações interétnicas no Curso Avançado de Relações Raciais Fábrica de idéias (2003) foi
uma experiência de imersão no debate sobre a crítica pós-colonial e favoreceu tal recorte
temático. A circulação no extinto Centro de Estudos Afro-brasileiros (Universidade Cândido
Mendes) para dialogar em grupos de discussão, lançamento de livros e apresentação de
trabalhos, bem como conferências, favoreceu a observação participante. O Programa de
Educação sobre o Negro na Sociedade Brasileira50 (PENESB) se constitui como um dos
NEABs (Núcleo de Estudos Afro-brasileiros) de referência na cidade do Rio de Janeiro e
figurou como um dos espaços de interlocução. Por último, destacamos o III COPENE (III
Congresso Nacional de Pesquisadores Negros) como definidor de nossa condição de pesquisa.
Nele, alem de um total de 1651 entrevistas, pudemos realizar um relato denso ou, de certo
modo, uma observação de cunho etnográfico, privilegiando a configuração do evento. São
relevantes aspectos como a presença de pesquisadores identificados mais como
eurodescendentes e menos como afrodescendentes, posturas e estratégias de constituição de
redes de apoio político e de intercâmbio, a presença de um número de intelectuais
afrodescendentes de referência nunca vistos juntos antes, a formação de um consórcio de
Núcleos de Estudos Afrobrasileiros (NEABs), entre outros desdobramentos.

50
Este programa é coordenado pela professora da Universidade Federal Fluminense doutora Iolanda de Oliveira,
que conta com um grupo sólido de investigadores que promove um curso de pós-graduação que já alcança
reconhecimento em todo o país, bem como o desenvolvimento de pesquisas sobre o Negro e a Educação
refletido na revista Cadernos Penesb.
51
A esse grupo juntaram-se mais dois sujeitos representativos (Ana Célia da Silva e Silvio Humberto Passos) ,
também por conta da recepção ao tema da tese.

51
1.6.4. A entrevista
A opção pela entrevista semi-estruturada é justificada pela condição que este tipo de
técnica dá ao entrevistado: uma certa liberdade dentro de uma ordem geral estabelecida pelo
entrevistador. Os blocos de questões (três) foram pensados na perspectiva de contemplar este
pressuposto. Foram feitas perguntas gerais com o objetivo de captar as narrativas construídas
sobre a inserção acadêmica do grupo. Os intelectuais-acadêmicos-afrodescendentes foram
agrupados conforme o nível de sua inserção política na academia: docentes e doutorandos. O
critério de seleção dos blocos de perguntas foi definido pela necessidade de aproximação com
o pensamento sobre sua experiência acadêmica, sua percepção sobre estratégias para negociar
a imersão e posteriormente o deslocamento no campo.

52
II. NARRATIVAS SUBALTERNAS E OUTRAS RACIONALIDADES:
AFROCENTRANDO O DEBATE

A independência não é uma palavra a exorcizar mas uma


condição indispensável à existência de homens e mulheres
verdadeiramente libertos, isto é, donos de todos os meios
materiais que tornam possível a transformação radical da
sociedade.
Frantz Fanon

Descolonizar o pensamento, reconhecer as outras formas de interpretação da(s)


história(s) são interesses de nações inteiras fixadas em acordo com o modelo civilizatório do
mundo colonial. A partir deste lugar predefinido, inúmeros grupos foram racializados para
atender à lógica da condição de subalternidade, assim, fixação identitária converteu-se em um
produto da eficácia das relações assimétricas de poder inauguradas com o colonialismo.
Apostar na produção de conhecimentos periféricos como uma modalidade a ser
cunhada, como um locus de enunciação52, implica assumirmos traços das Narrativas
Subalternas que, no caso deste estudo, são as narrativas de intelectuais afrodescendentes53.

52
O sentido de agência presente na teorização de Homi Bhabha em sua obra O local da cultura (1998) implica
uma análise sobre a diferença cultural e sobretudo da proposta de um terceiro espaço da enunciação, um lugar
intermediário, indeterminado dos sujeitos desta enunciação. Bhabha (1998) vem apostando numa teoria da
diferença cultural substituindo a idéia de diversidade cultural. Nela, o “hibridismo” tem assumido outro
significado, ampliando a categoria para “hibridismo cultural” e histórico. Neste caminho, o autor visa examinar
como somos formados nos espaços definidos como “entre-lugares” e como se dá a representação da diferença.
53
Para esta tese, especificamente, não apresentamos, como um termo dado, a categoria negros para definir pretos
e pardos, conforme explicaremos a seguir. Justamente por problematizarmos a potência da Negritude como um
movimento anti-racista que buscou entender o mundo numa perspectiva do Outro racializado, tomamos o
cuidado de estabelecer laços, agora sim, a partir do sentido dado por uma espécie de evolução do termo,
defendendo ser necessário nos afastarmos para, primeiro, promovermos o estranhamento merecido. Isso porque,
num estudo de tese que se pretende afrocentrado, é fundamental questionar abordagens superficialmente
orientadas sobre a tomada do “negros” como objeto de estudo. Dizer que os africanos capturados em terras
africanas foram escravizados e espalhados por todo o mundo – transformando-se em “negros” – passa a ter uma
força incontestável no estudo sobre a crítica pós-colonial bem como para a apreciação dos estudos subalternos.
Descolonizar é um compromisso que demanda a rejeição da perspectiva superficial de pluralidade e diversidade
cultural. Daí o interesse em vincular a categoria “negros”, primeiramente, ao movimento da Negritude de Aimé
Césaire e Leopold Sedar Senghor (entre outros defensores). O objetivo não é nada menos que desnaturalizar
estrategicamente essa apropriação para pensar em termos da identificação que nasce com um propósito ampliado
nas linhas que se seguem. Nos pressupostos da crítica aqui trazida, o uso da noção de Sujeito Colonial, das
categorias do Eu e do Outro é fundamental, indo além da apropriação realizada pelos colonizadores que
nomearam o diferente, identificando-os como Negro e/ou Indígena. Pensando a questão do Brasil nos cinco
últimos anos, essa opção é reforçada para contrapor a forte tendência de intelectuais e formadores de opinião ao
discursarem contra cotas nos jornais de grande circulação. A polêmica inaugurada no suposto debate midiático
(que nada mais é do que desqualificar a agenda do movimento a favor das ações afirmativas) sobre as cotas
raciais inclui, sobretudo, a dúvida sobre quem é preto e/ou pardo, sobre se “negros” são todos os pretos e pardos
juntos, sobre quem pode ser definido como afrodescendente, sobre a legitimidade dos estudos que denunciam as
desigualdades raciais, entre outras polêmicas. Desqualificando a tese que considera o Negro como agregando as
duas categorias – pretos e pardos, os grupos interessados em publicizar a imprecisão dos estudos das relações
raciais apresentam o argumento de que não podemos definir a afrodescendência. Provocando tais visões,
incluímos na categoria de afrodescendentes todos, inclusive os brancos, e logo em seguida especificamos com
uma outra possibilidade de definição que é Afrodescendente em maior desvantagem social, Afrodescendente do

53
Como parte de um quadro panorâmico de um tipo de nomadismo, nosso argumento reflete um
desejo de descentralização da razão ocidental proposta como um modo de elaborar o
conhecimento. Rastrear, desentranhar ou mesmo deslocar focos de outras racionalidades54 seria
uma boa definição para a dinâmica deste texto.
Por tudo isso, o diálogo proposto neste capítulo é sobretudo com os argumentos de
autores que lançam, debatem, analisam, criticam e tentam dar visibilidade a outras
racionalidades, enfrentando, desde o auge do nazismo até a predominância das teorias de
supremacia da raça branca (em todo o mundo). Cabe, neste intercâmbio, entender dimensões
dos discursos que atacam as suas reações anti-racistas. Conforme Kabengele Munanga (1988,
p. 23), “trata-se primeiramente de proclamar a originalidade da organização sócio-cultural dos
negros para, depois, sua unidade ser defendida, através de uma política de contra-aculturação,
ou seja, desalienação autêntica”.
Reafirmar tal anúncio serve para localizar nosso intuito maior que é, em lugar de opor
duas posições, onde de um lado estão os interesses dos que vivem a experiência da plenitude,
da humanidade, da superpotência, e do outro, aqueles que são contados e que experimentam o
lugar da sombra nas situações coloniais, ousamos experimentar uma primeira aproximação
com os achados teóricos daqueles que podem ser definidos como pensadores fronteiriços
influenciados por uma razão afrocentrada. Perseguindo55 a crítica pós-colonial e os estudos
subalternos, encontramos teorias interessadas na revisão das narrativas sobre o sujeito

tipo preto, afrodescendente do tipo pardo, polemizando o cinismo do senso comum de que não se pode
diferenciar os racializados dos não-racializados. Aceitamos a categoria negros na medida em que nos referimos
às Narrativas Negras como sinônimo de Narrativas Subalternas e como parte de um discurso anti-racista. Por
outro lado, estamos observando a possibilidade de reafirmação da expressão Narrativas Subalternas Negras para
uma melhor participação das teorias afrocentradas no Brasil. O valor histórico do termo negros é inegável, tendo
em conta, por exemplo, o que afirma Munanga (1988, p. 44) sobre a palavra que, segundo ele, “foi despojada de
tudo o que carregou no passado, como desprezo, transformando este último numa fonte de orgulho para o
negro”. Nascida numa perspectiva crítica pós-colonial, este estudo de tese quer agregar a discussão racial como
uma das mais significativas questões desta vertente, sobretudo para denunciar a invisibilidade da identidade
branca.
54
Ao investigarmos os mais fecundos autores que discutem os modos de interpretar o mundo e de pensar a
História com suas especificidades, encontramos a definição de “Narrativas Subalternas”, que reflete os interesses
e o olhar daqueles representados como os “Outros” que tradicionalmente não falam de si mesmos, não são
narradores da sua experiência humana. Partindo dessas possibilidades, aceitamos a proposição de que existem
outras formas de pensamento, “outras racionalidades”, questões que interessam aos grupos subalternizados,
cabendo nesse amálgama o pensamento que parte de distintas experiências localizadas fora do espaço dos grupos
que subalternizam os outros grupos.
49
Sendo este o capítulo que oferece o lugar de destaque deste trabalho de doutoramento, no que se refere aos
aspectos da teorização pretendida, antecipamos nossas proposições acerca da retomada necessária dos estudos
das relações raciais, chamando a atenção para as condições de uma reinterpretação de aqui por diante, estando
esta subordinada ao entendimento do modelo civilizatório mundial garantido pelas relações/situações coloniais.
Mais como um resultado, uma conseqüência e menos como uma causa, as relações raciais merecem uma
retomada que contemple sobretudo as indicações dos critical whiteness studies (estudos críticos da
branquidade) que, por sua vez, representam uma completa inversão do modo de abordagem de posturas que
implicam a desumanização de grupos não-brancos em todo o mundo.

54
colonizado e essas tocam nossas análises justamente por indagarem sobre o poder mobilizador
do discurso colonial. A partir dessa perspectiva, a identidade branca está no centro do
desenvolvimento das questões sobre a supremacia colonial que se impõe.
Uma das afirmações que arriscamos fazer aqui é que o colonialismo − um fenômeno
de caráter universal, não acabou com as teorias emergentes que definem sua superação e que
preconizam a idéia de um neocolonialismo (ou pós-colonialismo) como o momento seguinte,
onde as chamadas potências coloniais européias, para manter sua hegemonia nos países
colonizados, tentam conservar mercados e reservas de matérias-primas.
Para Aníbal Quijano (2003, p.220), estamos diante de um fenômeno definido como:

[...] expressão do exacerbado etnocentrismo da recém-reconstituída Europa, pelo seu lugar central e
dominante no capitalismo mundial colonial/moderno, da vigência nova das idéias mitificadas de
humanidade e de progresso, entranháveis produtos da Ilustração, e da vigência da idéia de raça como
critério básico de classificação social universal da população do mundo.

O processo descolonizador e a independência política podem ser vistos como


revigorados, atuando, por último, como ideais, práticas discursivas nos diferentes contextos e
países submetidos ao domínio europeu. O neocolonialismo – no sentido clássico – estabeleceu
estratégias que foram quase sempre parte da contrapartida à atitude dos colonizados que
sonhavam em libertar-se.
Ao localizarmos os modos de invenção do resto do mundo56 com base na crítica de
autores contemporâneos, já não podemos escapar da noção de relações coloniais. A
centralidade do campo intelectual no estudo proposto aqui está justificada pela hipótese de ser
o espaço de produção do conhecimento uma arena política e, portanto, de confrontação.
Instituir um contradiscurso, insistir em pensamentos nômades e interessar-se por sujeitos fora
do lugar fazem parte dos (des)caminhos que desejamos percorrer neste capítulo. Dialogando
com os leitores privilegiados da crítica pós-colonial, a varredura que experimentamos nesta
primeira aproximação com a temática proposta fará emergir conceitos e categorias de grande
expressão para entendermos as práticas de subalternização do diferente.
A partir do conceito de “representação” adotado na análise pós-colonial, o
significante, a linguagem, o discurso, o texto, o conhecimento legitimado nos centros de

56
O mundo não-europeu passou a ser assim definido carregando o estigma do não-lugar. Conforme Edward Said
(2004, p. 52) o principal objetivo de Frantz Fanon “foi acusar o Europeu por ter dividido os seres humanos em
uma hierarquia de raças que desumanizou e reduziu os subordinados, tanto ao olhar científico como ao desejo
dos superiores”. O “resto do mundo” é, notadamente, uma expressão que reafirma a divisão citada por Said, a
partir de uma interpretação que Frantz Fanon faz da falta de visão européia sobre um novo homem que deveria
nascer.

55
pesquisa (e não a imagem mental, tampouco o significado) funcionam como formas de
inscrição, através dos quais o Outro é construído e/ou representado (SILVA, 1999, p.127).
Assim escreveu Homi Bhabha (1998), tecendo sua trama discursiva:

A representação da diferença não deve ser lida apressadamente como o reflexo de traços culturais ou
étnicos preestabelecidos, inscritos na lápide fixa da tradição. A articulação social da diferença da
perspectiva da minoria é uma negociação complexa, em andamento, que procura conferir autoridade aos
hibridismos culturais que emergem em momentos de transformação histórica. O direito de se expressar,
da periferia do poder e do privilégio autorizados, não depende da persistência da tradição de se
reinscrever através das condições de contingência e contraditoriedade que presidem sobre as vidas dos
que estão “na minoria” (BHABHA, 1998, p. 20-21).

É nesse sentido que mergulhamos nos pressupostos da crítica pós-colonial para


alcançar os usos e sentidos dos modos de invenção do Outro. Para alcançar um olhar
afrocentrado acerca da questão das relações/situações coloniais, foram definitivas, sobretudo,
as leituras do quadro teórico de Frantz Fanon (1970; 1975; 1983; 2001) – bem como dos seus
principais comentadores – para captarmos o sentido do colonial seguido do sentido da
descolonização. É ele quem concretiza esses significados quando observa as
relações/situações de subalternização, discorrendo sobre os efeitos da opressão. Justificamos a
centralidade de sua lógica, pelo fato de ser ele apontado como o intelectual que inaugura a
crítica pós-colonial sendo, portanto, uma das maiores expressões entre o grupo de autores que
influenciaram e influenciam os críticos com especial notoriedade, como é o caso de Edward
Said. Inegavelmente, a “invenção do Oriente pelo Ocidente” é tema que nasce dos estudos de
Said (1990) que, por sua vez, realiza grande parte de sua conversa intelectual com Frantz
Fanon.
A produção do conhecimento de toda uma diáspora africana reflete o legado fanoniano
que se fez presente e emerge agora pelo reconhecimento do seu vanguardismo na análise da
situação do Outro racializado. Por isso, o contorno deste capítulo está delineado por uma
lógica fanoniana e dependerá das conversas de seus interlocutores de então (e com os que
tentam entendê-lo hoje), sem deixar de recuperar as pistas dessa ética para enfrentar a questão
cultural e política.
Situando-se também como sujeito colonial, lúcido e firme diante das rejeições que
marcaram sua participação política e intelectual, Fanon enfrentou a con(tra)dição de ser o
Outro, defendendo a busca por uma forma de pertencimento humano para os colonizados57.

57
De antemão, afirmamos nossa interpretação que vê, no legado de Frantz Fanon, indicações sobre a
abrangência de sua teoria da descolonização do corpo e da mente colonizados em toda e qualquer parte do

56
Como ativista político, médico psiquiatra e como um verdadeiro revolucionário, ele confessa
ter encontrado saídas a partir de um novo humanismo e indica que em sua obra o propósito é
“ajudar o Negro a se libertar do arsenal, de complexos germinados no seio da colonização”
(FANON, 1983, p.27). Tais pressupostos refletem a presença dos primeiros movimentos anti-
racistas e de resgate dos racializados. E não é por acaso que, segundo De Oto58 (2003), sua
retórica também está situada como espaço de disseminação (DE OTO, 2003, p.78).
Inegavelmente, o que propõe sobre as formas de reação estabeleceu nosso maior
vínculo com sua perspectiva libertadora. Acertadamente afirma que “o racismo anti-racista, à
vontade de defender a própria pele, que caracteriza a resposta do colonizado à opressão
colonial, representa evidentemente razões suficientes para entregar-se à luta” (FANON, 2001,
p.129). Refletindo a partir de sua trajetória diaspórica e considerando a realidade das Antilhas,
Fanon (1962) tentou dar visibilidade às doenças provocadas por uma não-reação do sujeito em
condição de subalternidade naquele contexto de domínio e de guerra. Com isso, ele inaugura,
de fato, uma forma de analisar as relações coloniais para além da ordem efetiva da dominação
territorial, aludindo a situações diversas que envolvem relações assimétricas de poder.

2.1. A colonização pode ser um fato social total59 revigorado (?)


Notadamente, a situação colonial promoveu relações entre um Eu e um Outro
coloniais. As relações estabelecidas (impostas) entre ambos são relações coloniais, relações de
poder e, conseqüentemente, de subalternização do Outro. Os diferentes sujeitos coloniais
sofrem os efeitos desse fenômeno, que cabe sobremaneira na definição de fato social total
desenvolvida por Marcel Mauss (1974).
Como todas as práticas de significação, nossas identidades estão sujeitas ao jogo das
diferenças e, tendo em vista a dupla dependência60 que esse contato causa na identificação que
constrói, a identidade do Eu se distingue por aquilo que ela não é. Ser um colonizado – em
toda e qualquer parte do mundo – significa ser um “não-europeu”. Por tudo isso, os achados

mundo. Isso porque entendemos que o sujeito em desvantagem colonial está conseqüentemente em toda parte do
mundo ocupada pela aventura colonial européia.
58
Segundo Guillermo Zermeño (2003, p.13-16), o livro de Alejandro J. De Oto (2004) intitulado Frantz Fanon:
política y poética del sujeto poscolonial, é um resgate do pensamento crítico durante o período pós-colonial no
sentido de produzir uma revisão da teoria fanoniana e examiná-la tendo como contraponto as lacunas éticas e
políticas da atualidade.
59
Conforme José Luis Cabaço e Rita Chaves (2004), autores como Aimé Césaire, Albert Memmi, Georges
Balandier e Frantz Fanon comungaram da idéia de que a sociedade colonial é um fato social total. Essa
interpretação implica considerar que existe um destino comum, uma reciprocidade que envolve colonizador e
colonizado. Por isso, a contraposição é marcada por uma interatividade que será resolvida quando um grupo
desaparecer com o outro grupo. Para maiores entendimentos, ver Mauss (1974).
60
Ver Aimé Cesáire (1957).

57
teóricos que vinculam o colonialismo às identidades impostas por uma tradição européia
encontram repouso na definição de Mauss (apud SIGAUD, 1999), ou seja, fatos sociais totais
são “fatos que colocam em marcha, em alguns casos, a totalidade da sociedade e de suas
instituições (potlasch, clãs que se afrontam, tribos que se visitam) e, em outros, somente um
grande número de instituições, quando as trocas e os contratos dizem respeito aos indivíduos”
(MAUSS apud SIGAUD, 1999, p.13). Neste sentido, são fenômenos assíncronos (jurídicos,
econômicos, religiosos, estéticos e morfológicos etc.) e, para usar as palavras de Lygia Sigaud
(1999, p.13), são “mais do que temas, elementos de instituições, como religião, economia,
direito etc., são ‘todos’, sistemas sociais inteiros”. Nessa leitura, Marcel Mauss os descreve
apontando sobretudo seu dinamismo.
Aimé Cesaire (1957, p.11) foi radical ao afirmar que “a colonização desumaniza o
mais civilizado dos homens, a ação colonial, a empresa colonial, a conquista colonial baseada
no desprezo ao homem indígena e justificada por esse desprezo, tende, inevitavelmente, a
modificar aquele que a empreende”. No colonialismo moderno, se estabelecem vínculos com
uma mesma inspiração. Numa palavra, e tentando capturar o sentido desses vínculos, a
universidade batiza seus filhos com um tipo de óleo engessante e faz com que sua
intervenção61, como especialista, se torne colonial. Ainda que tenhamos reconhecido de
público a característica multicultural do Brasil, esse discurso ainda não provocou atitudes que
poderiam ser encaixadas dentro de uma perspectiva intercultural62 na formação científica.
Decifrando os mecanismos de poder e problematizando a colonização como um fato
social total, reconhecemos a forte presença de uma cultura da subalternização dos diferentes
Outros, produzida a partir da Aventura Colonial Européia63. Como um conceito das Ciências
Sociais, o Fato Social Total permite que tomemos um fenômeno social para analisarmos
realidades e situações mais abrangentes, como é o caso da colonização interpretada como uma
aventura nefasta (CÉSAIRE, 1957). O que defendemos, portanto, é o pressuposto da
atualidade das relações de poder implicadas nas relações entre o Eu e o Outro no espaço

55
Não são necessários grandes esforços para ouvirmos relatos de grupos afrodescendentes que dependem do
serviço público de saúde sobre o desprezo dos médicos no que se refere às suas queixas. A médica psiquiatra
Lenora Loureiro, do serviço público do município do Rio de Janeiro, relata a falta de condições de estudantes
residentes em hospitais de grande notoriedade, no que se refere ao trato com o “diferente”. É de praxe, entre eles,
usarem o termo “moribundo” quando se trata de um paciente preto ou pardo.
62
Interessa para novos mergulhos que desejamos realizar, dar ênfase ao pressuposto de uma política de
promoção de práticas efetivas de interculturalidade. Em outros termos, defendemos a concepção de novos
vínculos com diferentes propostas que sejam assíncronas e que respeitem as diferentes demandas
paradigmáticas.
63
Para o aprofundamento, ver Edward Said, 1995.

58
acadêmico. Sugerimos que existem relações/situações coloniais comprovadas nos termos de
Edward Said (1995), quando examina a força da literatura no processo de colonização.
Em Cultura e imperialismo (SAID, 1995), há indicações sobre a característica
histórica da narrativa dos romances. Said chega a afirmar que existe uma perigosa
consolidação da autoridade pelo romance, classificando-os como soberanos e normativos.
Adverte que “isso é paradoxal apenas se esquecermos que a constituição de um objeto
narrativo, por mais anormal ou insólito que seja, sempre é um ato social por excelência, e
como tal carrega atrás ou dentro de si a autoridade da história e da sociedade” (SAID, 1995,
p.117). Tais pressupostos indicam a atualidade de um exame do orientalismo como sendo um
traço da estratégia de perpetuação da visão colonial do resto do mundo, tudo que sobra sem
contar os grandes centros colonizadores. Isso porque “todas as culturas tendem a elaborar
representações de culturas estrangeiras a fim de melhor dominá-las ou de alguma forma
controlá-las” (ibid, p.143). Até aqui, parece impossível escapar das características do
colonialismo moderno que define quem são os Outros no contexto brasileiro.
As impressões de leitura tiradas dos primeiros contatos com os estudos sobre as
representações do Outro (Relações Raciais, Estudos Pós-coloniais, Estudos Subalternos, e
Estudo Crítico da Branquidade), bem como da construção de sua imagem fizeram emergir
traços das formas de sobrevivência do subalternizado que optou por não absorver a doutrina
imposta. Sobre isso, Stuart Hall (2003, p. 61) adverte que as estratégias de différance64
funcionam bem a partir do que Homi Bhabha (1998) tem definido como o “tempo liminar”
das minorias. Ainda que não sejam capazes de inaugurar formas totalmente distintas de vida e
sequer conservar intactas as formas antigas e tradicionais de vida,
essas estratégias surgem nos vazios e aporias, que constituem sítios potenciais de resistência,
intervenção e tradução. Nestes interstícios, existe a possibilidade de um conjunto disseminado de
modernidades vernáculas. Culturalmente, elas não podem conter a maré da tecnomodernidade
ocidentalizante. Entretanto, continuam a modular, desviar e “traduzir” seus imperativos a partir da base.
Elas constituem o fundamento para um novo tipo de “localismo” que não é auto-suficientemente
particular, mas que surge dentro do global, sem ser simplesmente um simulacro deste (HALL, 2003, p.
61).

O modo de refletir adotado por Hall (2003) inclui uma análise sobre as margens do
Centro. Explorando tal quadro teórico, examina o caso inglês, aproximando-se dos
pressupostos de Edward Said (1995; 2004; 2005) pela observação dos modos de a Inglaterra
experimentar a sua auto-imagem a partir da construção da imagem do Outro (países
colonizados). Conforme sua visão, a Inglaterra governou uma variedade de culturas e projetou

64
Stuart Hall tomou a categoria de Derrida que a definiu como “o movimento do jogo que produz (...) essas
diferenças, esses efeitos de diferença” (HALL, 2003, p.60).

59
o Outro como elemento constitutivo da identidade britânica. A engrenagem mencionada
apresenta ligações entre a invenção do Outro próximo aos termos de Said:

Os romances ingleses oitocentistas ressaltam a continuidade (em oposição à subversão revolucionária)


da Inglaterra. Além disso, eles nunca defendem que se abra mão da colônia, mas adotam a visão geral
de que na medida em que elas entram na órbita do predomínio, esse mesmo predomínio é uma espécie
de norma, sendo assim preservado juntamente com as colônias (SAID, 1995, p.113).

Considerando que existe uma continuidade da política imperial, esse último afirma
que, para sua retroalimentação, as narrativas dos romances foram excepcionais; não existe
outra função para a literatura e seus romances que não seja a de manter o império mais ou
menos em seu lugar. A visão nelas contida sobre o resto do mundo (os não-europeus) é de
uma paisagem, algo imutável e tornando “impressionante como esse mundo, no romance,
nunca é visto senão como subordinado e dominado e a presença inglesa vista como normativa
e reguladora (SAID, 1995, p.114).
Depois de mergulharmos nos escritos de Said (1995; 2004; 2005) sobre uma política
da representação literária, passamos a considerar fundamental a estratégia teórico-
metodológica de examinar aspectos da projeção da auto-imagem (dos diferentes sujeitos
coloniais) a partir da formação científica, conforme veremos ao longo deste estudo. Depois
disso, seria razoável afirmar que é na universidade que, a rigor, o Eu colonial tem sido
forjado. A distinção entre o Eu e o Outro coloniais se institui com a presença do Outro
definida na sua ausência. Assim, não estar presente nos espaços de produção da ciência é estar
fixado no lugar daquele que receberá a civilidade. Médicos, juristas, antropólogos, advogados,
sociólogos, economistas, entre tantos outros sujeitos formados (forjados) na universidade,
atuarão a partir de uma orientação eurodirigida.
A teoria adquirida nos centros de pesquisa e desenvolvimento tecnológico é aquela
que tende a ser banalizada, por vezes, apoiando uma visão do senso comum acadêmico.
Portanto, há riscos de vermos numa sociedade organizada ainda a partir dos resquícios da
colonização (um colonialismo moderno), relações coloniais que subalternizam
constantemente grupos inteiros de um mesmo território, que fabricam imagens do Outro.
De tudo isso, o mais instigante na noção de situações/relações coloniais é entender o
que as caracteriza, sobretudo no contexto de legitimação do conhecimento científico. Tratam
daquilo que se convencionou chamar de Relações Raciais, problematizando sobretudo a
identidade branca, dando visibilidade ao fato de ser esta a identidade do colonizador. Por isso
consideramos que a centralidade da identidade branca esteve e sempre estará confundida mais

60
com as situações/relações coloniais e menos com as Relações Raciais: o colonizador é branco
e o colonizado é todo grupo não-branco em qualquer parte do mundo. Perseguindo este
achado teórico, vimos que os resultados dos estudos da branquidade expandem com variadas
reinscrições o campo até aqui definido como campo das Relações Raciais.
Parece haver um descuido no procedimento que dá um lugar fixo e descolado para a
crítica nele presente. Em outros termos, enfatizamos o fato de que a colonização deve ser
necessariamente interpretada como um fato social total. O esforço de traçarmos contornos
mais vivos acerca do paradigma das Relações Raciais é, sobretudo, para pensarmos a gênese
dos estudos que o promoveram. Do mesmo modo que Said (1995) viu na lógica fanoniana as
condições para entender a colonização a partir do discurso das narrativas literárias,
apreendemos, dela, nuances sobre a dependência inevitável entre Relações Raciais e Relações
Coloniais. Assim, as Relações Raciais estão contidas nas Relações Coloniais modernas e a
escravidão foi sobretudo a medida central para a conformação desse fato social total. Só por
admitirmos isso, a proposição acima nos dá a liberdade de descortinar as relações entre um
suposto Centro (a universidade vista como o grande intelectual) e suas Periferias (os
insurgentes que ficam tentando o deslocamento).
O discurso “universitário”, acadêmico e/ou científico passa a ser examinado – bem
como a escravidão – como uma medida central nas relações coloniais, sendo possível
perguntarmos sobre como se estabelecem as relações entre o Eu e o Outro nestes termos em
que são apresentados. Como a sociedade regula essas situações? Como seria tentar fazer
parte de um espaço que produz a imagem do Outro ao mesmo tempo que reforça a identidade
do Eu? A orientação oferecida pela crítica pós-colonial favorece a tentativa de apreendermos
as transformações ativas do presente.
Pensando um pouco com Vron Ware (2004, p.8), “uma vez que a teoria pós-colonial
orienta-se para as transformações ativas do presente, saindo das garras do passado”, ela
proporciona um arcabouço valioso para se examinar e comparar o poder persistente das
“formas de racismo em diferentes locais geográficos”. Entretanto, caberia fazermos uma
ressalva para não perder de vista a guinada pretendida neste apanhado. O poder simbólico do
colonialismo deve ser admitido mesmo a contragosto. Para aqueles que desejam entender as
narrativas subalternas, caberia um enfoque nos argumentos de agentes históricos situados no
chamado “resto do mundo”, como é o caso de José Carlos Mariátegui (1894-1930), na
América Latina. Os ranços desse fenômeno mundial ganham um outro status na medida em
que nos aproximamos das análises dos estudos críticos da branquidade, não por ajudarem a
entender a identidade branca, mas por captar as distintas dimensões de seus efeitos.

61
Analisarmos aspectos da agência afrodescendente – ou como coloca Said (2003), em
Reflexões sobre o exílio, da reflexão subalterna negra – seria uma das possibilidades de
construirmos contradiscursos sobre as relações/situações coloniais tentando uma aproximação
com a questão de Bhabha (1998) sobre como os sujeitos se representam nos interstícios, no
entre-lugar, no terceiro locus. O debate que vislumbramos é sobre quem tem a delegação de
falar e de agir em nome do Outro. Evidencia-se uma tradição de descrição e controle: “quem
fala pelo outro controla as formas de falar do outro” (SILVA, 2001, p. 34). A experiência de
ser o Outro é a experiência do resto do mundo, daquele que foi subalternizado. África,
América Latina, Índia, entre tantos contextos no mundo, tornaram-se parte do “resto”.

2.2. Reivindicando o legado da crítica pós-colonial


Discorrendo sobre uma utópica revolução africana65, sobre os efeitos da exposição do
colonizado aos excessos das práticas da dominação cultural e sobre a própria idéia de
inferioridade daquele representado como o Outro, Fanon pode ser definido, juntamente com
Aimé Césaire e ainda Albert Memmi, como parte da primeira geração dos estudos pós-
coloniais. A imagem sobre o resto do mundo, construída pelo discurso colonial, é objeto de
análise do pós-colonialismo, que “concentra-se no questionamento das narrativas sobre
nacionalidade e sobre raça que estão no centro da construção imaginária que o Ocidente fez –
e faz – do Oriente e de si próprio” (SILVA, 1999, p.127).
Em nota, Fanon afirmou que “seria interessante, com base na noção lacaniana do
estágio do espelho, nos perguntarmos em que medida a imagem do seu semelhante, construída
pelo jovem Branco, desde tenra idade, não sofre uma agressão imaginária com o surgimento
do Negro” (1983, p.133). A partir de um estudo clínico, a preocupação de Fanon envolveu um
exame do duplo narcisismo e das suas correntes:

O homem é um SIM que vibra face às harmonias cósmicas. Arrancado, disperso, confundido,
condenado a ver se diluir, uma após as outras suas verdades, é obrigado a deixar de projetar no mundo
uma antinomia que lhe é coexistente. O Negro é um homem negro; isto quer dizer que, devido a uma
série de aberrações afetivas ele se fixou no centro de um universo de onde é preciso tirá-lo (FANON,
1962, p.13).

65
A teoria fanoniana tem como uma das mais fecundas características permitir que analisemos a insurgência
contra a violência física e a violência simbólica, já que a ética de Fanon sempre partiu de um exame dos
diferentes efeitos da colonização. Seu argumento sobre a guerra deve ser analisado à luz de sua visão de
descolonização. Libertar o colonizador que está dentro de cada colonizado seria tomar consciência da condição
colonial e de suas mazelas, como é o caso do Negro ter como destino o Branco.

62
Ao que tudo indica, seu posicionamento, quando toca as questões do duplo narcisismo
que envolve Negros e Brancos (quando sugere que o indivíduo deve assumir o universalismo
inerente à condição humana), quer ir além dos pressupostos que orientaram o movimento da
Negritude66 articulado a partir das decepções de figuras como Aimé Césaire e Léopold Sedar
Senghor – entre outros – com as práticas de subjugação dos pan-africanos. O argumento
fanoniano tira as rasuras das nossas impressões de estudo sobre os discursos construídos a
favor dos processos de descolonização em diferentes níveis, o que favorece o entendimento
dessa análise como sendo a ponta de lança de uma das vertentes mais significativas dentro dos
estudos sobre o fenômeno da aventura colonial européia.
A hipótese mais significativa, tirada do contato com a produção de Fanon, é sobre as
identidades coloniais, por auxiliar na visibilidade dos efeitos da brancura e da negrura. É
justamente o pressuposto sobre o duplo narcisismo que incomodou nossas rasuras sobre a
agência afrodescendente. Antecipamos a percepção sobre o seu legado, afirmando que a
situação colonial desmonta a questão do negro, do indígena, do indiano, do palestino, do
hindu (entre tantas outras questões no resto do mundo) como eixos paradigmáticos.
Notadamente, a crítica pós-colonial provoca uma revisão no referencial de indigenistas,
africanistas, orientalistas, entre tantos outros “istas” que auxiliaram e auxiliam o projeto de
revitalização das situações coloniais em curso.
O entendimento do esquema teórico de Fanon depende de uma interpretação
minuciosa de muitos dos conceitos presentes em sua ética. Por isso, faremos algumas
referências aos inúmeros traços que afirmam seu legado para as distintas produções
consideradas, hoje, pós-coloniais67. A varredura bibliográfica realizada para este capítulo
indica a influência fanoniana nas propostas de releitura da razão ocidental que se pretendem
pós-coloniais. Nessa direção, está presente um contradiscurso explicado pelo lugar da
enunciação68 e do momento histórico do qual Fanon fez parte. Partindo de uma escrita que

66
A Negritude, definida como uma ideologia, um movimento de resgate dos homens racializados e, portanto, um
movimento de insurgência, tem como uma das suas maiores expressões, Leopold Sedar Senghor, mais conhecido
como “o poeta da Negritude”. Do mesmo modo o nome de Áime Césaire aparece ao lado de Senghor como outro
idealizador. Conforme Kabengele Munanga (1988, p.70), no Brasil, uma referência dos estudos sobre
Negritude, indica a participação de Franz Fanon em um movimento crítico voltado para o reconhecimento da
Negritude, mas que em suas avaliações indicava a sua ineficácia no que se referia a falta de resposta para a sua
questão central. Juntamente com Fanon, estavam Jean-Paul Sartre, Cheikh Anta Diop, Alfredo Margarido,
Marcin Towa e René Ménil.
67
Produções a partir do afrocentrismo e das correntes que nascem do pensamento de teóricos como Edward Said
e Homi Bhabha.
68
Recuperamos esta noção das teorias de Homi Bhabha (1998) e a entendemos como uma compreensão das
narrativas, seja ela de quem for, a partir da posição que grupos ou indivíduos ocupam em uma determinada
sociedade. Assim, estamos falando, sempre, a partir de um determinado interesse. O próprio Franz Fanon, como
homem que viveu na fronteira e que lutou na guerra da Argélia, acreditando ser este momento um divisor de

63
opõe o mundo do colonizado ao mundo do colonizador, ele está estrategicamente colocando-
se como um desagregador das combinações, das idéias européias de conciliação. Em alguma
medida, enxergamos um chamamento à desordem, já que seu contradiscurso, sua narrativa
teve como destinatários, sobretudo, os colonizados, como é o caso dos discursos reunidos em
Os condenados da terra (FANON, 2001). Sua visão histórica, o olhar direcionado para o
mundo colonial lhe proporcionou saber argumentar contra, e é por isso que, a despeito das
relações coloniais, percebemos a força de confrontação de um pensamento coerente sobre a
construção de uma outra razão, sendo isso o mais fecundo dos aspectos reconhecidos no seu
legado para tirar as rasuras de nossas hipóteses sobre a predominância de um modelo
civilizatório de base colonial. Sob essa perspectiva, uma das primeiras tomadas de posição
daqueles que se encontram em desvantagem nesse sistema seria a conscientização da própria
realidade.
Inicialmente, investigando suas proposições acerca do neocolonialismo, da
descolonização e do imperialismo, os estudos de Fanon auxiliam nossas impressões sobre as
formas atuais de estabelecer as relações/situações coloniais. Talvez seja essa a razão pela qual
pode-se reconhecer aqui uma certa contemplatividade aos temas trabalhados na sua ética. Não
se trata apenas de reter seus pressupostos como referência teórica privilegiada, mas situar as
impressões do estudo que realizamos sobre o seu esquema teórico, para enfocar nuances
escondidas nas micro-realidades onde estão manifestas práticas de subalternização que
instituem tais situações.
As vinculações que encontramos para este exame revelam-se nas primeiras tentativas
de renomear as relações de força existentes entre grupos e sujeitos que lutam nos espaços de
legitimação do conhecimento. A perspectiva revolucionária de Frantz Fanon é, sobremaneira,
aquela que adota a violência69 como instrumento de luta, algo que alcança, transforma a
“coisa” (FANON, 2001) em “ser”.

águas no processo de descolonização da África, esteve preocupado em promover uma revolução no continente.
Fanon, vivendo em diferentes países, parece ocupar um lugar de modo estratégico que acaba por favorecer suas
análises sobre as especificidades do mundo colonial. Seja como membro da Frente de Libertação Nacional
(FLN), participante da organização revolucionária argelina, como médico psiquiatra do hospital de Blida ou
como parte da equipe de imprensa, na França da FLN onde publica El Moudjahid – denunciando as mazelas do
sistema colonial – Fanon (1962) escreve aos jovens africanos, fala das ilusões do colonialismo francês, da
questão do racismo e da cultura e dos intelectuais diante da revolução argelina. Assim, Fanon pode ser definido
como “fora do lugar” e, como posição privilegiada, estar na fronteira vai definir os interesses de sua produção. O
lugar da enunciação define os interesses de quem narra suas próprias experiências.
69
Em acordo com o quadro teórico de Frantz Fanon reconhecemos os vários sentidos da violência podendo um
desses ser entendido como uma máquina que impulsiona os povos dominados culturalmente para experimentar
processos de insurgência contra a condição de subalternidade.

64
2.2.1. Alcances pós-coloniais
No Brasil, os estudos sobre a produção de Frantz Fanon são ainda tímidos e, portanto,
inexpressivos. Fizemos, por isso, uma introdução ao capítulo dando ênfase aos
desdobramentos da colonização como fenômeno mundial e como um fato social total, por
acharmos pertinente definir, desde já, as linhas de evolução do exame que se pretende realizar
sobre as mutações coloniais, conceitos orientados pela hipótese de que existe um desejo de
manutenção de um ordenamento marcadamente colonial. Os sinais dessa colonialidade é
justamente a insistência na idéia de que, nos espaços onde se promove o conhecimento
legitimado como ciência, as posições sociais estão garantidas tradicionalmente para aqueles
definidos como brancos70.
A presença não-branca, os interesses de todos os considerados como os Outros,
aqueles que tentam o deslocamento social a partir de uma inserção no mundo universitário,
estariam sendo representados como fora do lugar, uma imagem de inferioridade que é
violentamente construída por parte daqueles que dominam tais esferas.
A condição de subalternidade faz emergir interesses outros, refletindo modos de se
processar práticas de resistência e é nessa medida que nos encontramos com Frantz Fanon e
nos revestimos de sua ética na perspectiva de desarmonizar conceitos e metodologias que
tendem a causar a alienação de nossas proposições sobre relações/situações coloniais (ou
mutações coloniais). Em outros termos, apresentamos uma abordagem relativamente pouco

70
A Branquidade é categoria-chave nesta tese. Como conceito, recebeu uma definição no Dicionário Houaiss da
Língua Portuguesa como sendo uma ideologia dos indivíduos da raça branca. Por extensão, seria “atitude
preconceituosa de quem se acha superior por ser branco”, em diferentes situações. Para nossas análises pós-
coloniais, estamos considerando que ser branco no Brasil é acima de tudo estar convencido de uma postura não-
negra pelo desprestígio que isso significa. Não é apenas pela herança européia que um indivíduo tende a se
identificar como branco, sua opção pela brancura deve ser analisada pelas escolhas que faz, afastando-se ou não
das outras identidades raciais que, no caso do Brasil, não são tão variadas assim.Convém ressaltar que o objetivo
do discurso colonial é apresentar o colonizado como parte de uma população de tipos degenerados com base na
sua origem racial, de modo a justificar a conquista e estabelecer sistemas de administração e instrução. Ele
emprega um sistema de representação, um regime de verdade, que é estruturalmente similar ao realismo. Dessa
forma, podemos supor que este discurso está presente nas diferentes pedagogias culturais privilegiadas, por
exemplo, nos meios de comunicação de massa, e tem superado a invisibilidade da degradação do “homem de
cor” construída na ideologia do racismo. Por razões como essas é que é possível considerar a atualidade das
relações coloniais. Concordamos com Regina Leite Garcia (1995) quando acha possível que haja um tipo de
neocolonialismo interno presente e funcionando em favor da manutenção de privilégios de elites dominantes
formadas por euro-brasileiros dentro de um mesmo Brasil, em detrimento dos direitos dos grupos
minoritariamente representados e desprovidos de poder econômico e político, como é o caso dos afrobrasileiros.
O que acrescentamos é que essas idiossincrasias da realidade brasileira podem ser mais bem situadas num
quadro teórico inicialmente definido como relações coloniais mutantes, que provocam situações de
subalternização, para entender o racismo e sua retroalimentação. Isso porque acreditamos numa retomada das
impressões construídas sobre Relações Raciais. São relações coloniais que visam manter posições hierárquicas
entre aqueles que estão sofrendo com práticas de segregação a partir dos modos de ordenamento interno das
diferentes instâncias sociais. A universidade ganha foco por ser ela uma esfera de forte expressão eurocêntrica,
já que fez sua opção por uma identidade pouco brasileira, abraçando o diferente como passageiro, sem assento

65
explorada sobre as causas e efeitos profundos da divisão social que ainda separa humanos e
desumanizados com base na tradição colonial, sob a sustentação do discurso a favor da
descolonização do conhecimento. O foco está na atualidade das relações entre grupos
Estabelecidos e sujeitos Insurgentes no espaço acadêmico de prestígio71.
Convencemo-nos da insuperável contribuição oferecida pelos seus estudos sobre
colonialismo, formas de dominação cultural no mundo contemporâneo, especificidades das
relações coloniais, formas de dependência dos sujeitos coloniais, reconhecimento,
autoconsciência e processos de insurgência. Também no Brasil os estudos afrocentrados
buscam construir um outro lugar, um espaço de discussão que, conforme se tem afirmado72 ,
“vai ser difícil que o fechem” (CARVALHO, 2001, p.13). Dito isso, nossa questão mais
pungente é sobre as relações coloniais, as táticas, as respostas às atitudes de grupos já
situados, conforme aponta Norbert Elias (2001), como os Outsiders73.
Stuart Hall (2003) complementa nossas asserções no sentido de tirar as rasuras de
nossas hipóteses sobre a “brancura” que caracteriza campos diversos, como é o caso do
mercado editorial, as colunas dos jornais, as salas de aula universitárias, os órgãos de fomento
para pesquisa e muitas outras esferas de decisão de nosso país. A brancura, interpretada como
o elo da colonização, promove um modo de patrimonialização invisível como ela própria o é.
Numa conformação paradigmática inventada para sustentar esse modelo civilizatório, é
provável que passe a figurar um tipo de cinismo que dificulta a problematização do teor da
verdade dos discursos eurocentrados.
Hall (2003) acredita que deve haver um referencial no qual conflitos mais graves
podem ser negociados, e ele não pode ser de apenas um grupo. Há indicações de que na esfera

garantido. Assim, as políticas de branquidade estão sendo analisadas como uma opção também das universidades
públicas brasileiras, afastando o Outro fabricado a partir do colonialismo interno brasileiro.
71
Chamamos a atenção para a divisão social existente entre as diferentes carreiras universitárias e para a
organização interna das universidades públicas. Estar cursando direito, medicina, engenharia, comunicação
social representa status e valor no interior destas instituições bem como na sociedade de um modo geral. O que
não ocorre com os ingressados nos cursos que fazem parte das áreas de humanidades, como é o caso de
pedagogia, serviço social, entre outras carreiras. Não podemos compreender a universidade como uma esfera
pública, porém ocupada por grupos hegemônicos que a dominam e lutam pelos capitais que dela fazem parte
como, por exemplo, as bolsas de mestrado e doutorado, os recursos destinados ao financiamento de viagens para
alunos e professores, entre outros capitais.
72
Na teorização sobre o espaço acadêmico como locus privilegiado para a ascensão de outra racionalidade
menos eurocêntrica, o professor da Universidade de Brasília (UnB) José Jorge de Carvalho exerce um
protagonismo incontestável por ser ele homem branco posicionado como propositor da institucionalização de
ações afirmativas na UnB, uma das mais tradicionais universidades de prestígio. Para ampliar esse entendimento
recomendamos ver José Jorge CARVALHO 2001, 2002, 2003a, 2003b, 2003c e 2005.
73
O livro Os estabelecidos e os Outsiders (ELIAS, 2000) define essa última categoria como sendo aqueles vistos
como não-membros de uma sociedade que, mesmo definidos no plural, não constituem propriamente um grupo
social. Os Outsiders viviam estigmatizados por uma dada anomia marcada pela desintegração social.
Desigualdade social e diferença são traços presentes nas relações entre Estabelecidos e Outsiders.

66
pública, como, por exemplo, a mídia impressa74, está presente um tipo de ironia no que se
refere aos argumentos das agendas dos movimentos negros na luta por representação.
Segundo Muniz Sodré:
A cor branca extrai a sua hegemonia do fato de deixar presente na realidade inteira do indivíduo – seja
ele rico ou pobre – a possibilidade de exercício de uma dominação, já que as identidades constroem-se
no interior de relações de poder assimétricas. Ela tende a esconder, no essencialismo absolutista da pele,
a relação histórica de poder, tanto as situações imperiais ou coloniais quanto as condições sociais para a
hegemonia socioeconômica de um grupo determinado, real ou imaginariamente vinculado à civilização
européia (SODRÉ, 1999, p. 263).

Os setores identificados com a brancura desfrutam o bônus/capital de serem


representados como eurodescendentes sem problematizarem tal fenômeno, tratando sua
posição como estando dentro de uma normalidade. Nos espaços de prestígio, como é o caso
das universidades públicas, seguem em aberto os modos de negociação, porque nela as formas
de resistir ao apelo à sua democratização passam por um recrudescimento inaceitável.
Situações de crise que envolvem o sistema representativo “exige que pensemos para além das
fronteiras tradicionais dos discursos políticos existentes e suas soluções prontas” (HALL,
2003, p.86). Outros discursos políticos tendem a oferecer pistas de que devem emergir
políticas que desestabilizem essa ordem colonial “invisível”, por assim dizer.
Notadamente, o sistema democrático com base na representatividade é imperfeito e,
por essas especificidades que o caracteriza, é necessário realizarmos uma revisão que favoreça
o reconhecimento e a redistribuição, atingindo os grupos colocados à margem de
determinadas instituições. Ampliamos o argumento de Hall para pensarmos a questão da força
criadora da mídia. Sendo assim, essa redistribuição pode incluir os espaços midiáticos, pela
capacidade de antecipar a realidade. Com o seu crescimento bem como o fenômeno da

74
Analisando os textos de dois periódicos de grande circulação, fica evidenciado aquilo que chamamos de
impossibilidade de negociação nos argumentos construídos sobre as reivindicações de democratização das
universidades públicas. No conjunto de quase 80 matérias encontradas no Jornal do Brasil e em O Globo, a
partir dos descritores “cotas para negros”, “cotas nas universidades” e “ações afirmativas”, observamos um
quadro de impressões refletindo o posicionamento de sujeitos considerados formadores de opinião no âmbito
nacional. A partir de uma análise de alguns fragmentos da narrativa presente, sobretudo nos textos dos editoriais,
bem como matérias assinadas por intelectuais legitimados na esfera pública, iniciamos um estudo sobre esse
conjunto de opiniões divulgado no ano de 2004, do que ficou sendo entendido como cotas para negros nas
universidades. Parece-nos que nesse ano as declarações sobre a institucionalização de ações afirmativas
passaram a provocar insatisfação por parte de grupos hegemônicos. Há indicações de que o discurso construído
contra cotas nos periódicos “é de forte conteúdo alusivo e irônico, no fundo uma gozação erudita” (SODRÉ,
2002, p.75). A estética grotesca é reconhecida no formato apresentado pelo rebaixamento, por exemplo, do
conceito de políticas de ação afirmativa que migra para cotas. Empenhados na tarefa de apresentar, neste
processo, uma performance híbrida, o estranhamento, a falta de domínio sobre o tema, denunciam, por outro
lado, que se trata de uma engrenagem marcada pela tentativa de banalização das reivindicações dos negros.
Parece tratar-se de uma “ditadura racial” refletida na desautorização desses atores no tocante à participação em
diferentes dimensões: sua posição não está contemplada nos jornais. Assim, o caráter reivindicatório da luta
iniciada pelos movimentos negros está invisibilizado pela banalização sistemática de suas agendas. Para maiores

67
circulação da imagem, o ser branco está mais bem situado na medida em que a invenção do
seu lugar social é parte da padronização da sociedade racializada.
A obrigatoriedade do ensino de História da África, o início da institucionalização de
ações afirmativas nas universidades públicas e privadas, a veiculação da imagem
afrodescendente nas mídias diversas, numa primeira mirada, são exemplos de desestabilização
das situações coloniais vigorosas. As alternativas pós-coloniais afrocentradas tendem a indicar
práticas interculturais que afetam sobremaneira as relações entre iguais e entre os diferentes.
Sugerem ainda a revisão dos lugares fixos ensaiados nos discursos a favor de um
multiculturalismo discursivo.
Numa proposta afrocentrada de interculturalidade, o conhecimento passa
necessariamente pelos interesses dos grupos periféricos e sua legitimidade está comprometida
quando não se problematiza o lugar da enunciação. Na plataforma dos distintos grupos
organizados do movimento negro que se pretende enunciado nos bancos da academia,
compreende-se a universidade como uma instância importante da sociedade, mas não como a
única instância importante, para os nossos objetivos. Segundo Florentina Souza (2006, p.94),

É importantíssimo que entremos na universidade em todos os níveis, como funcionários, como


professores, como alunos, para fazer dela um espaço nosso também como é nosso o espaço da rua,
como é nosso o espaço da praia, a universidade é nosso espaço também. Então eu vejo a importância da
universidade para os movimentos negros por aí: como espaço de reflexão, de produção de
conhecimento, um espaço que vai incorporar aquele conhecimento que as nossas tradições produziram e
que sempre foram colocados fora; é necessário a gente trazer uma série de questões que sempre foram
ligadas à cultura das folhas, à cultura das relações sociais calcadas em outro modelo e não o modelo da
sociedade judaico-cristã. Importa a gente trazer isso para a universidade como uma forma outra de
pensar o mundo. Eu não vejo muito a universidade como aquele templo sagrado, eu acho que a gente
precisa desmistificar um pouco essa universidade como um templo. A universidade é um espaço que é
fundamental para se pensar a sociedade brasileira e para produzir um conhecimento que vá estabelecer
um diálogo com ela.

Recuperar discursos contra-hegemônicos sobre a situação colonial foi um dos atalhos


percorridos no sentido de evitar os obstáculos teóricos de uma razão centrada nas relações
cordiais entre grupos fixados como colonizadores e colonizados. Aprofundando nossas
reflexões, cabe perguntar como a tentativa de mobilidade dos grupos em desvantagem pode
ser analisada à luz do quadro teórico de Fanon para entender arenas de disputa de poder,
espaços promotores de uma performance híbrida75 dos que neles reagem insurgindo contra o

detalhes, ver Claudia MIRANDA, 28ª Reunião Anual da ANPEd, Grupo de Trabalho 21 Afro-brasileiros e
Educação. Caxambu, 2005.
75
Entendemos por “performance híbrida” o desdobramento da implementação de políticas de democratização
dos espaços de produção do conhecimento, o que significa favorecer as condições de ingresso aos grupos não-
brancos e, uma vez ingressados, garantir a conformação de um leque de possibilidades de investigação.
Pesquisas voltadas para auxiliar as demandas sociais que contemplem os problemas dos discriminados no

68
segundo eu76. Na micro-realidade dos espaços acadêmicos, a regressão, conceito emergente
do Discurso sobre o colonialismo (1957) de Áime Césaire, provoca algo semelhante a
bestialização (ibid) mencionada no seu discurso.
Assim, a universidade que deveria ser promotora de diferentes visões e experiências
humanas refletidas em suas pesquisas científicas estaria revestida por um pensamento
identificado com um modo colonial subalternizante; sua descivilização (CÉSAIRE, 1957)
chega no limiar do século XXI e a própria dinâmica social interna se encarrega de mostrar tais
nuanças. Estamos, em suma, diante de uma esfera que adota formas de intimidação dos não-
brancos, ao ponto destes construírem a representação sobre a universidade como um espaço
para as elites econômicas. Dela sairão médicos, doutores em diferentes áreas prontos77 para
aprisionar e fixar a cultura dos diferentes Outros ao invés de buscar os fatos e conexões que
possam reposicionar suas práticas nos seus respectivos campos de atuação. Numa sociedade
racializada como é a brasileira, não seria muito o esforço para rever as representações
construídas no ordenamento social imposto aos não-brancos.
A negritude, notadamente uma defesa do homem racializado, tende a ser interpretada
como um movimento de insurgência, um desdobramento das análises sobre os nefastos
procedimentos de expropriação sofridos por várias dezenas de nações não-brancas.
Inicialmente, consideramos a negritude e a crítica pós-colonial ocupando espaços bem
próximos numa crítica às relações estabelecidas socialmente a partir de uma racionalidade.
Mobilizando e renovando os estudos sobre cultura e o pensamento construído na
diáspora africana, o exame desses conceitos – colonialismo, crítica pós-colonial africana,
negritude, pensamento de fronteira e narrativas subalternas – tornou-se inevitável e nos impõe
a revisão de aspectos dos pressupostos sobre a violência individual e coletiva que recupera o
Outro colonial descrito por Fanon quando problematiza a transição libertadora. Para ele, este
seria um caminho para o rompimento com a maneira radical de inferiorização. A partir dela, o
Outro colonial recupera sua dignidade e identidade anuladas no colonialismo.

discurso oficial promovido pelas pesquisas já existentes seriam um dos aspectos a serem trabalhados. Dentre as
teses produzidas nos cursos de mestrado e doutorado, em educação, por exemplo, pouco se explora as relações
raciais e os problemas ligados ao desempenho dos alunos negros do Brasil; segundo o levantamento realizado
sobre os estudos das relações raciais e a educação, é ínfimo o número de estudos sobre a desigualdade racial no
ensino superior (MIRANDA, DI PIERRO e AGUIAR, 2004).
76
Definição de Fanon para o colonizador que se instala dentro do indígena e/ou negro (FANON, 2001).
77
A universidade eurodirigida reproduz paradigmas eurocentrados e apronta seus estudantes a partir dessa visão.
Encontrando uma África brasileira, para ironicamente definir a exterioridade que perpassa pela formação nas
diferentes carreiras, os que foram estudar nas melhores universidades do Brasil são surpreendidos por corpos
negros, falantes que não dominam a norma culta e uma imensidão de subempregados pretos, pardos, marrons,
mulatos ou morenos.

69
Entendemos essas interpretações sobre uma violência revolucionária como heranças
descuidadas, tese que deixou de ser vista por ser examinada como tema periférico, não
relacionado com a totalidade. Esse resto de Fanon é o que nos interessa; as outras formas de
racionalidade possíveis a partir de um não-lugar, de um não-ser. Na conformação dessas
outras interpretações do conhecimento, é que focamos o lócus de enunciação do diálogo aqui
presente e nos concentramos na teoria do racismo anti-racista.

2. 2.2. Negritude (s)78 como bandeira anti-racista


Na Europa, a formação intelectual dos pan-africanos, o sentimento de pertença com
relação aos grupos de elites letradas, não garantiu tratamento igual para aqueles sujeitos vistos
como pertencentes às “raças inferiores”. Os estudantes racializados entenderam, pela
representação construída sobre eles, que a erudição não os livraria da experiência da
diferenciação que o racismo provocava. Passaram a enfrentar o fato de estarem fixados como
fronteiriços, rebaixados como “produtos da colonização” e de seus desdobramentos como, por
exemplo, a visível herança escravocrata.
Ao reconhecerem os efeitos do racismo para os grupos fixados pela condição colonial,
esses sujeitos passaram a movimentar-se por uma ressignificação desse lugar que lhes foi
destinado. Havia ali um tipo de consciência coletiva que crescia, dando ênfase ao papel do
intelectual “negro-africano”. A possibilidade de intervenção política a ser desenvolvida pelos
especialistas do saber prático estava associada a uma batalha das idéias que deveria mudar a
realidade.
Os movimentos de libertação africana intimavam, por toda parte, o posicionamento
político daqueles interessados nas formas de descolonização dos países submetidos ao regime
colonial. Em conformidade com essas teorias, idéias e ações estavam intimamente relacionadas
justamente pela convicção no papel dos grupos letrados possuidores de uma espécie de
mandato que os levaria para o espaço público, para participar da construção de um outro
processo civilizatório. Essa foi a experiência de homens como Léopold Sédar Senghor, Aimé
Césaire, entre outros, fundamentais pela experiência de se reconhecerem como que
“fronteiriços” por pertencerem a mais de um mundo ao mesmo tempo.
Em Paris, nos anos de 1930, o encontro com poetas, artistas, a forte presença das
“artes negras” favoreceram o reconhecimento do lugar que o colonialismo lhes reservou. Os

78
Em seu livro Negritude: usos e sentidos, Kabengele Munanga (1988, p.6-7) afirma que a negritude pode ser
definida como uma legítima defesa ou racismo anti-racista sem deixar de ser uma resposta racial negra a uma

70
representados como afro-europeus, pan-africanos e posteriormente como negros,
experimentaram viver em dois mundos, estando dentro e fora ao mesmo tempo.
Ao final, o pensamento dos teóricos da Negritude passa a ser de suma relevância para
a análise que se sucede sobre as “narrativas negras” vistas como narrativas subalternizadas79,
vozes invisibilizadas por processos de rebaixamento80. Por outro lado, discursos insurgentes
provocam “desestabilização” do pensamento social e a reação seguinte tende a ser
avassaladora, numa tentativa de aniquilar os argumentos desenvolvidos na perspectiva contra-
hegemônica. As narrativas dos grupos em condição de subalternidade passam a realizar um
movimento contra-hegemônico porque estão em contraposição às formas dominantes e
eurodirigidas; podem reconhecer as oportunidades de produzir um discurso, uma narrativa de
resistência com o objetivo de examinar as narrativas que constroem o Outro colonial e tentar
desenvolver outras racionalidades a partir de uma condição, do lugar subalterno.
Os processos de resistência dos grupos subalternizados pelos modos de fixação, como
é o caso do racismo, dependem de uma tomada de posição, e os exemplos retirados dos
teóricos da Negritude indicam que o legado colonial, o qual modifica colonizados e
colonizadores, não controla por completo as formas de representação daqueles posicionados
em desvantagem.
A Negritude, no caso dos sujeitos “agrupados”, é reforçada nos fóruns e nos espaços
de promoção do pensamento afrocentrado dos que lutam pelo reconhecimento dos seus
interesses de investigação e pelo lugar da sua produção intelectual, emergindo de discursos
produzidos numa perspectiva contra-hegemônica. Conforme declarou o pesquisador Nei
Lopes81:

o importante é que cada grupo conheça suas especificidades e a identidade que liga, que une
especificidades no âmbito planetário. Existe um modo “afro-originado” de ser e estar no mundo. E isto
foi percebido com os primeiros pan-africanistas e com o movimento da Negritude, nas primeiras
décadas do século XX. O domínio desse patrimônio comum, o amplo conhecimento sobre ele, eu acho,
pode ser utilizado também no combate às desigualdades dos grupos menos pobres para os mais carentes
(LOPES, 2005, p.2).

agressão branca de mesmo teor. Por isso ela “nasceria em qualquer país onde houvesse a presença de intelectuais
negros, como também nas Américas ou na própria África”.
79
Para este estudo, o termo “subalterno” não representa bem o processo ao qual queremos nos referir, tendo em
vista que acreditamos na agência e nos movimentos de deslocamento e insurgência. Com base nisso, o
substituímos e utilizamos “subalternizado” querendo indicar a condição na qual este sujeito está submetido mas
não inerte, sem defesa ou mesmo sem armas para lutar pela sua mobilidade. O termo “subalterno” pode ser
associado à idéia de totalidade, algo impossível de ser superado. Ainda que pareça fazer parte da sociedade,
entendemos que o “sujeito subalterno” é aquele incapaz de descobrir o momento seguinte de libertação desde o
lugar onde foi fixado.
80
Ver Claudia MIRANDA (2005), a pesquisa que faz uma análise das narrativas de jornais sobre ações
afirmativas para o ensino superior.
81
Entrevista ao jornal O Globo (Caderno Prosa e Verso, p. 2, 1º/10/2005).

71
Pelo exposto, pode-se deduzir que a reação dos jovens intelectuais pan-africanos
tornou-se inevitável. Pode-se considerar que, ideologicamente, a Negritude tem criado uma
dependência solidária capaz de afirmar lugares e abolir outros. A irreversibilidade desse
triunfo em termos históricos está indicada nas questões filosóficas disparadas nas narrativas
afrocentradas. Nada menos provável que uma intercultura entre os intelectuais/acadêmicos
afrodescendentes, ampliando o dinamismo do terreno produtivo de seus escritos.
Ao mesmo tempo que se formavam modos de participação intelectual vistos como
legítimos, os pan-africanos na Europa pós-guerra sofriam com a descoberta da sua condição
colonial e/ou subalterna. Num exercício congregador, buscavam desentranhar uma narrativa
que apresentasse uma espécie de “estatuto” indicando a razão orientadora de suas visões de
mundo.
Na contramão da alienação cultural, esses sujeitos, que sofriam as conseqüências
brutais do colonialismo, descobriram sua intelectualidade também colonizada e resolveram
atuar com movimentos de afirmação identitária, figurando, por isso, como privilegiados
interlocutores para compreendermos o “lugar da fronteira”.
Partindo da recuperação de seus pressupostos, guardadas as impossibilidades no que se
refere ao acesso às informações documentais, entendemos que é possível favorecer o
cruzamento de outros modos de compreender a realidade e, para tanto, é importante
considerarmos o político e o cultural com uma historicização produzida por essas vozes
deslocadas, que, para usar os termos de Léopold Senghor (1983), pertencem a sujeitos que
viviam em vários espaços ao mesmo tempo.
Uma das teses de Senghor citada com maior recorrência é a idéia de civilização do
universal. Sobre isso, Munanga concorda com Marcien Towa (apud, MUNANGA, 1988),
quando este segundo autor interpreta tal defesa como uma saída para aquilo que chamou de
civilização mestiça (ibid, p.74), que permitiria, por sua vez, uma mestiçagem cultural. No
estudo de Munanga sobre os usos e sentidos da Negritude, destaca-se o exame feito por Cheikh
Anta Dioph (apud MUNANGA, 1988) e sua análise sobre o deslocamento dos negros de seu
lugar de direito, quando Senghor considera “ciência” e “racionalidade” como sendo
exclusividades dos brancos (ibid, p.72).
Observa-se, nas críticas sobre a Negritude, a não aceitação, principalmente, da
possibilidade de convívio nos termos da suposta civilização universal que tanto desejou
Senghor. Entretanto, quando pensada como um movimento reivindicatório que, somado aos

72
valores africanos e ao desejo de criação de uma ideologia para ser vivida e aplicada, a
Negritude tende a ser declinada como uma práxis.
O mergulho realizado nos esquemas teóricos de autores nada recentes, mas pouco
explorados nos estudos das relações coloniais82, serve para nos aproximarmos dos argumentos
sobre as formas de pertença daqueles submetidos às condições subalternas que, convém
ressaltar, se caracterizam por uma expropriação absoluta da alma humana (FANON, 1962).
Nas obras de Aimé Césaire, Léopold Senghor, Frantz Fanon, entre tantos outros que estiveram
fora do lugar, em diferentes regiões do mundo, estão presentes análises substanciais sobre a
experiência de ser fronteiriço, diaspórico.
O trabalho de Albert Memmi83, Retrato do colonizado precedido pelo retrato do
colonizador (1967), é parte de uma produção insuperável – bem como as críticas de Jean Paul
Sartre o são – que engorda a problemática do colonialismo. Os dois últimos são renomados
pensadores que debatem aspectos da produção de alguns dos primeiros. Nas conclusões de seu
livro, Memmi confessa a despretensão que orientou sua escrita provocada pelo “malogro
aceito” (ibid, p.121). Acertadamente, ele define seu trabalho como uma tentativa de produzir
um diagnóstico sobre a situação colonial. “Nunca haviam mostrado, parece-me, a coerência, a
gênese de cada papel, a gênese de um pelo outro e a coerência da relação colonial, a gênese da
relação colonial a partir da situação colonial” (MEMMI, 1967, p.122).
Sendo a problemática central desta tese perseguir um tipo de crítica pós-colonial,
entendemos que o exame da produção de estudos clássicos, como os aqui recuperados, nos
facilitará na construção de um locus que visa propor uma disposição conceitual sobre outras
formas de percepção dos modos de pertença e da representação dos extratos sociais
historicamente definidos a partir da idéia de um “outro colonial”. Referimo-nos à proposta de
aquisição de outros modos de interpretação das relações humanas, partindo do pensamento de
grupos não-brancos com base nas narrativas de intelectuais fixados como subalternos.

82
A noção de “relações coloniais” tem sido desenvolvida para este estudo considerando as formas atuais de
dominação cultural. A apropriação dessa expressão está orientada pela crença nas políticas de branquidade
desenvolvidas pelas formas como as sociedades complexas, conforme o caso do Brasil, vêm formando
subjetividades e fomentando a subjugação de grande parte da nação. Não caberia sustentarmos que o
colonialismo é uma realidade que se mantém no modo tradicional, mas seria honesto destacarmos como as
posições sociais informam as práticas de submissão e controle cultural. Assim, as relações coloniais estão mais
vinculadas ao modelo de racionalidade que reforça relações assimétricas de poder e menos relacionadas com a
definição clássica de colonialidade.
83
Albert Memmi (1967), teórico adepto de uma reflexão anticolonial, realizou estudos fecundos sobre a
experiência colonial, mantendo-se como um dos ícones do tema justamente por fazer uma abordagem que
considera os motivos econômicos do colonialismo, seu estilo clássico sem deixar de preocupar-se em dar ênfase
aos movimentos de insurreição dos povos submetidos.

73
Aimé Césaire, Léopold Sedar Senghor e, sobretudo, Frantz Fanon, nos permitiram
circular em um território pouco explorado. Seria possível, através de tais percursos,
encontrarmos um modo de nos livrar da exclusividade de um discurso marcadamente colonial
e imprimirmos com isso uma justaposição de racionalidades possíveis de serem
“hibridizadas”? A produção de um estudo sobre as “relações coloniais” não basta para
respondermos tal indagação, mas nos leva a recorrer aos escritos que inauguraram uma crítica
vinda do outro lado da colonização, o que, na verdade, parece orientar novos pressupostos, já
que buscamos um significado possível para o aparecimento de argumentos que nasceram da
escritura de pensadores experimentados nas práticas de subjugação.
O discurso84 de Aimé Césaire (1957) impulsiona nossas impressões de leitura, bem
como nossa análise sobre a primazia do retorno aos pressupostos acerca do problema das
relações de domínio absoluto que envolvem colonizado e colonizador. A perplexidade em que
nos vimos envoltos, quando observamos ações exemplares de um modo colonial de
construção de relações de dominação, nos dá a dimensão das zonas de maior disputa por
deslocamento, como é o caso das universidades públicas. Quando aceitamos a retórica de
Césaire (ibid) sobre o colonialismo, temos indicações de um discurso dirigido aos problemas
vividos hoje e que foram herdados pelo modo colonial de civilização, mantendo aspectos
próprios das relações de expropriação absoluta. Preocupados com as políticas de branquidade
presentes nos espaços que são as zonas de maior disputa social, observamos na história das
instituições públicas, ainda que em níveis diferentes, um modo colonial de posicionamento
dos distintos grupos que ocupam tais esferas.
Césaire (1957) descreve a condição colonial como uma forma de despersonalização,
com uma eficácia que transformou pessoas em “coisas”. Partir de uma expectativa de re-
inscrição da pertença de grupos submetidos às atrocidades das expedições coloniais
significava um caminho de volta aos valores ancestrais:

Eram sociedades não somente ante-capitalistas, como se disse, mas também anticapitalistas, eram
sociedades comunitárias, não de todos para alguns. Eram sociedades democráticas, também. Eram
sociedades cooperativas, sociedades fraternas. Faço a apologia sistemática de sociedades destruídas pelo
imperialismo. Elas, que eram o fato, que não pretendiam no absoluto ser a idéia, que não eram, apesar
de seus defeitos, nem odiosas nem condenáveis. Se conformavam com ser (CÉSAIRE, 1957 p.13-14).

84
O texto consultado é um fragmento do Discurso sobre o colonialismo de Aimé Césaire publicado pelo Centro
de Estudios Latino Americanos de la Unión de Universidades de América Latina (México) e, na apresentação,
destaca-se que foi escrito em 1955, aparecendo na Revista Casa de Las Américas em Havana, Cuba.

74
Nesta passagem do seu Discurso sobre o colonialismo (1955), Césaire evoca os
exemplos de humanização oferecidos por sociedades destruídas pelas formas coloniais de
pleno domínio. Para ele, uma nação que coloniza e justifica a colonização é uma nação
enferma, “uma civilização moralmente minada que, irremissivelmente, de conseqüência em
conseqüência, de negação em negação, clama pelo seu Hitler, ou seja, por seu castigo”
(CESAIRE, 1957, p.10). E é por esse tom do discurso que observamos sua visão implacável,
sua mão de ferro ao escrever e descrever nas linhas de um texto de protesto, um manifesto
sobre as conseqüências nefastas das relações coloniais.
Nos seus argumentos, o colonizador também é afetado e, conseqüentemente, sofre as
mutações das relações coloniais, sendo também desumanizado. Este seria um fenômeno
importante na medida em que Césaire (1957) quer afirmar os danos que não apenas afetam os
dominados. Agindo como bestas e buscando justificar no vazio tais atrocidades, o homem
europeu perdeu-se na violência que inaugurou com a dominação experimentada na aventura
colonial. Seria, portanto, um aspecto da regressão, uma espécie de disfunção dessa forma de
fixar o colonizado. A suposição inicial é de que quem pertence ao lado mais forte do confronto
tem grande possibilidade de sofrer com a experiência nefasta ao negligenciar os efeitos
contrários da conformação colonial.
Qualquer que seja o estilo de domínio, esse não será absoluto porque, sendo domínio,
afetará também o dominador; ambos os lados sofrerão deformações insuperáveis. Assim, o
colonizador é definido por Césaire como uma besta atribuindo a ele a cegueira e o veneno
eficazes para a sua própria descivilização (CÉSAIRE, 1957, p.7).
O regime que fez com que as colônias prosperassem a favor dos colonizadores foi o
Antigo Regime. Nele, a escravidão sustentava um modelo de sociedade baseado na
coisificação85 do Outro colonial. Por isso, ao aceitarmos a idéia de que o colonialismo é a
exploração sistemática de um povo “conquistado” por outro e que esse fenômeno não é uma
etapa histórica necessária, somos levados a dar visibilidade às formas de justificativa desses
argumentos. Sendo considerada um marco entre as ações de insurreição de escravos, a
iniciativa de Toussaint L´Ouverture, um ex-escravo de São Domingos, uma das colônias da
França, passou a orientar outros movimentos de insurgência, mantendo-se como uma pista
para as possibilidades de reinterpretação dos ideais da Revolução Francesa:

85
Aimé Cesáire definiu a colonização como sinônimo de “coisificação” para analisar os efeitos causados aos
milhares de indivíduos e grupos que foram arrancados de seus deuses e de suas terras num processo que violou
os direitos essenciais de existência (1957, p.13).

75
Firme como era a sua posição da realidade, o velho Toussaint olhando para São Domingos com um
arrojo de imaginação que nenhum contemporâneo seu suplantou. Na Constituição, ele autorizava o
comércio de escravos porque a ilha precisava de pessoas para o cultivo. Quando os africanos
desembarcavam, entretanto, tornavam-se homens livres. Mas, enquanto incumbido dos cuidados do
governo, nutriu um projeto de navegar para a África com armas, munições e milhares dos seus melhores
soldados e lá conquistar uma vasta extensão de território, colocando um fim ao tráfico de escravos e
tornando milhões de negros “livres franceses”, assim como a sua Constituição fizera com os negros de
São Domingos (JAMES, 2000, p. 243).

O movimento pela descolonização de São Domingos, as ações de Toussaint


L´Ouverture bem como de seus aliados implicavam a negação da condição dos povos
dominados por processos de comercialização de seres humanos. Ainda que marcadamente
etnocêntrico, o trabalho de C.L.R. James86 (2000) sobre a Revolução de São Domingos
apresenta uma interessante proposta de análise pelas formas de demonstração dos conflitos
que marcaram a experiência das lutas de homens em condição de subalternidade.
No mesmo caminho, considera-se que a guerra da Argélia influenciou os movimentos
de libertação do continente africano pela vivacidade do discurso nacionalista. Grande parte da
África passou a orientar-se pela política experimentada pela Argélia. Jean Paul Sartre87
(1968), ao analisar a situação de insurgência desse país, foi categórico ao declarar que se
tratava de um problema a ser resolvido pelos argelinos. Ou seja, as reformas necessárias, os
caminhos a serem descobertos e percorridos para resolver a situação deixada pela dominação
colonial da França seriam pensados pelos próprios argelinos:

Desejaria fazer-lhe ver o rigor do colonialismo, sua necessidade interna como ele devia conduzir-nos
exatamente, onde estamos e como a intenção mais pura, se nasce no interior desse círculo infernal, é
apodrecida incontinenti. Pois não é verdade que há bons colonos e outros que sejam perversos: há
colonos, é tudo. Quando compreendermos isto, compreenderemos por que os argelinos têm razão de se
oporem de início politicamente a este sistema econômico, social e político e por que a sua libertação e a
da França só podem sair do estilhaçamento da colonização (SARTRE, 1968, 11).

Notadamente, Sartre foi um transgressor ao provocar a ordem vigente numa França


ocupada pelo regime nazista e por esse comportamento. Alguns de seus textos aqui citados

86
O livro de C. L. R. James (2000), intitulado Os jacobinos negros: Toussaint L´Ouverture e a revolução de São
Domingos, foi publicado pela primeira vez em 1938 e é uma radiografia da situação colonial de São Domingos
que, pela rebelião de escravos obstinados pela libertação, passou a sofrer golpes eficazes no processo de
desestabilização da ordem escravocrata. Tudo isso num período em que a realidade da servidão era uma
experiência vivida nos Estados Unidos, Brasil e também em Cuba.
87
As leituras da obra de Frantz Fanon colocaram-nos em contato com os seus maiores interlocutores,
obviamente. E dentre eles Sartre se localiza de modo incontestável. Caberia recuperarmos comentários
produzidos por Edward Said (2004) sobre sua presença nos estudos sobre as mazelas da colonização, bem como
seus modos de perpetuar a injustiça entre os homens. É na obra Cultura e política que Said (2003, p.20) discorre:
“Toda a carreira de Sartre foi ofensiva [...] a imensa abrangência da obra de Sartre como romancista, ensaísta,
dramaturgo, biógrafo, filósofo, intelectual político, ativista engajado, parecia mais repelir as pessoas do que
atraí-las.” Conforme discorreu Said, este perfil de homem público comprometido o fez pagar caro. Definindo
Sartre como um dos grandes intelectuais do século XX, Said (2003) afirma que sua percepção do papel do
intelectual tornou-o um homem comprometido com as coisas do seu tempo, fossem quais fossem.

76
indicam sua defesa pelo movimento de libertação da África, ao chamar a atenção dos grupos
favorecidos pelo colonialismo e para os “efeitos regressivos” desse fenômeno. Para ele, “a
Europa multiplicou as divisões, as oposições, forjou classes e às vezes racismos, tentou
através de todos os expedientes provocar e aumentar a estratificação das sociedades
colonizadas” (SARTRE, 1968, p.40). Em sua percepção, o colonizado não tem outra arma
senão a força para sair da situação de servo.
As análises de Sartre estão, em certa medida, afinadas com o argumento de Césaire
(1957) sobre o aspecto da regressão assinalado por este último, que caracteriza as limitações
das relações de domínio absoluto. O primeiro insiste, apontando que a crueldade que leva o
servo a matar o colono está enraizada na brutalidade que inaugura o colonialismo e, nesta
medida, a chamada selvageria dos grupos oprimidos revela efeitos de uma espécie de tomada
de consciência. Césaire, por sua vez, faz um diagnóstico considerando a deformação também
do colonizador que, ao transformar o indígena em instrumento de produção, se transforma em
um sargento, um vigilante (1957 p.12). Acrescenta a atualidade da barbárie provocada pela
colonização, enfocando mais o papel dos Estados Unidos e menos o da Europa (CESAIRE,
1957, p.15). As atrocidades provocadas pela burguesia, que alavancou o modelo civilizatório
colonial, segundo Césaire, tendem a condená-la: “a burguesia está condenada a ser cada dia
mais impudente, mais bárbara; que é lei implacável que toda classe decadente se veja
transformada em receptáculo para que afluam todas as águas sujas da história” (1957, p.27).
Léopold Senghor (1980) apontou a Conferência de Bandung (1955) como um símbolo
de resistência ao conseguir reunir países como Índia, Paquistão, Indonésia, chegando a
congregar quase 30 dirigentes de Estados da Ásia e África. Como o primeiro presidente do
Senegal, Senghor levou para o âmbito da política sua poética enegrecida, contaminando seu
discurso; sua intervenção política e poética serviu para enfrentar a questão da raça. A
singularidade de Senghor foi justamente o fato de acreditar que a criatividade do homem
deveria ser usada na política do universo. Sua crença na palavra humana, o desejo de intervir
a partir das artes, da poesia, da melodia, do ritmo, foi fundamental na definição que fez de
cidadania do universo. Acreditava na possibilidade de pertencer a mais de um lugar. Do
mesmo modo, manifestou sua crença numa civilização universal.
Percorrendo as trilhas de um intelectual formado na razão ocidental, Senghor desfruta
de um conhecimento legitimado num tempo de rigidez no que se refere ao comprometimento
exigido nas universidades européias. Seu brilhantismo está refletido nas posições que passou a
ocupar: professor nas universidades de Tours e de Paris entre 1935 e 1945, o poeta da
Negritude, como também ficou conhecido, inaugurou um protagonismo caracterizado pela

77
capacidade de combinar o ativismo pela descolonização da África à produção literária e à
pesquisa.
Seus achados teóricos tocam nossas impressões sobre o deslocamento − uma espécie
de subversão dos que estão em estado colonial. Essa definição pode ser interpretada como
uma expressão referente às possibilidades de auto-reconhecimento; um estágio pelo qual
grupos em uma situação de reapropriação de uma espécie de consciência coletiva vislumbram
conseguir uma insurgência, não abandonando a idéia do momento seguinte, que incluiria um
despertar para a sua condição de subalternidade. Definindo Negritude como um projeto de
reabilitação e partindo de uma análise das formas de destruição do domínio ocidental no
continente africano, Senghor esperava mostrar as práticas de desconfiguração do homem
colonizado que dependia de resgate.
Discordando de Karl Marx, Leopold Senghor (1980) não considerou o colonialismo
como sendo um processo de desenvolvimento linear. Para ele, a “totalização do mundo”
(1980, p.10) foi a marca principal, tendo sido considerada como positiva. Assim, a civilização
como processo universal é resultado de fenômenos nefastos:

Na realidade, em qualquer época, a colonização teve aspectos muito negativos. Basta analisar a história
da África, mais concretamente a dos povos africanos negros. Desde o Renascimento até meados do
século XIX, árabes e europeus organizaram um comércio humano chamado “tráfico de negros”. Uns
vinte milhões de negros foram deportados para terras americanas. Como afirma Roger Garaudy, por
cada negro deportado, dez foram mortos. Calcula que este genocídio provocou cem milhões de mortos.
Eu creio que foram duzentos milhões. Trata-se do genocídio mais brutal da história. O mal causado à
África negra é o mais terrível que jamais foi feito a uma etnia. No entanto, insisto no fato de que a
colonização trouxe algo de positivo, pois permitiu aos povos africanos entrar no mundo moderno. O
processo colonizador trouxe-nos aspectos culturais que, apesar de estrangeiros, podem considerar-se
como fecundos. Eu mesmo fiz conferências em que procurava demonstrar quais foram os benefícios que
a colonização francesa nos trouxe a nós, senegaleses (SENGHOR,1980, p.11).

Para compreender um projeto de reabilitação do colonizado, podemos nos apoiar nos


pressupostos acima, partindo do reconhecimento das especificidades das práticas coloniais e
de suas atrocidades. Reabilitar pressupõe um quadro de deficiência generalizada e, no que se
refere à aventura colonial, as seqüelas se converteram em algo capaz de subalternizar toda
uma cultura, bem como ferir os modos de pertencer de sociedades inteiras. O modelo de
reabilitação, se assim pudermos considerar, implica a tomada de consciência e sua matéria-
prima seria a capacidade de análise das formas latentes de expropriação da alma humana. As
sociedades coloniais como um fato social total não estariam, justamente por isso,
desaparecidas em tão pouco tempo. Acreditar nos aspectos fecundos (SENGHOR, 1980) que

78
a colonização nos deixou é, no mínimo, uma forma de não sucumbir diante das práticas da
barbárie colonial.
O espírito contemplativo que orientou a intervenção de Senghor o fez acreditar na
fecundidade, algo mais bem compreendido a partir da idéia do encontro de povos ocorrendo
naturalmente. Sem as formas brutais de aniquilamento do colonizado, o encontro de
civilizações não seria danoso. Ainda assim, Senghor ficaria nos devendo uma explicação
sobre o que “foi bom” na colonização, que por si mesma já indica as bases das relações
estabelecidas.
A crença em uma civilização universal poderia ser interpretada como um modo de
conceber o homem negro-africano como híbrido e necessariamente dependente de uma
identidade universal. Dito de outro modo, Léopold Senghor, formado numa tradição européia
e, portanto, eurocêntrica, passa a ver o mundo como um espaço onde todos poderiam circular
e obter uma “cidadania universal” perdendo, deste modo, o status de colonizado.
Tais hipóteses representam um esforço de aproximação com a teoria senghoriana. O
argumento possível seria incorporarmos a Negritude ao esquema explicativo do colonialismo
no pensamento senghoriano. Há indicações de que sua notável produção literária refletiu o
quão sensível esteve para fortalecer as teses de “reabilitação dos colonizados”.
Sem considerarmos as críticas sobre o romantismo excessivo senghoriano e, em certa
medida, a inocência nas teses sobre a lógica da cultura negra como simpática, e a lógica da
cultura branca apenas como objetiva, e também sobre a associação que fez, diferenciando o
homem negro do homem branco, acreditando em um comportamento sereno por parte dos
negros, podemos supor que Léopold Senghor buscava equilibrar seu pensamento ao trabalho
político, aproveitando o lugar de destaque de um erudito e, ao mesmo tempo, homem público.
Sua defesa pela autonomia dos países africanos é atual e refletiu um comprometimento com a
luta pela libertação de todos os grupos vitimados pelo fenômeno que ele próprio definiu como
de caráter universal.
Em sua definição, o colonialismo deixou marcas profundas e seria urgente criar bases
para uma estratégia de desenvolvimento global:

Eu acredito sinceramente numa civilização universal, e nesse sentido, trabalhamos para criar uma
civilização que abarque todos os continentes, todas as etnias, todas as nações, todas as civilizações,
todas as raças. Neste trabalho é imprescindível a participação de todas as etnias, de todas as raças, de
todas as civilizações, de todos os povos. A edificação dessa civilização universal deverá começar por
atacar os problemas da justiça social e justiça econômica, e as grandes nações e as superpotências
deverão contribuir para essa construção. Para mim, o problema é muito menos político que econômico e
social; e muito menos econômico e social que cultural. Na grave crise que enfrentamos, que mais que
uma crise econômica é uma crise de civilização, os povos do mundo deverão concentrar a sua

79
colaboração e esquecer as suas confrontações. Não há outras vias. Por essa razão nós temos apoiado as
conferências de alto nível que têm tido lugar no seio das Nações Unidas, apesar de que nesta
organização os problemas unicamente se possam afrontar a partir dos próprios princípios em que esta se
baseia. O mais interessante, segundo a minha opinião, seria dialogar no seio de agrupamentos de caráter
inter-regional. (SENGHOR, 1980, p.83).

Senghor, indubitavelmente, é notável pela opção que fez no que se refere a sua ética e
a sua estratégia de intervenção política. O que chamou de crise de civilização é apropriado
para interpretarmos que Aimé Césaire (1957) definiu como um fenômeno nefasto. O
envolvimento de todos os povos, sugerido por Senghor (ibid), reflete a representação que
muitos dos que lutaram pela revolução do continente africano construíram sobre o
colonialismo e suas heranças, como é o caso do neocolonialismo. A crise de civilização
refletida nos debates sobre as saídas das nações destruídas pelo colonialismo sugeriu, para
Senghor, uma interpretação do marxismo segundo a visão dos povos colonizados.
Achille Mbembe (2003) afirma que Leopold Senghor se apropriou da categoria
Negritude e a revestiu com outros elementos, acreditando na noção de raça, declinando-a
como uma realidade que implicava subdivisões, merecendo um entendimento primeiro pela
cor da pele. Conforme Mbembe (ibid), definindo Negritude como um projeto de reabilitação,
Senghor (1980) esforçou-se por resgatar a noção da diferença para pensar a similitude. Para
Achille Mbembe (2001), o poeta e presidente senegalês compartilhou de versões mais leves
sobre o nativismo africano:

Nas versões mais extremas do nativismo, a diferença assim é louvada, não como fonte de qualquer tipo
de universalismo, mas como a inspiração para determinar os princípios e normas que governam as
vidas dos africanos em completa autonomia e, se necessário, em oposição ao resto do mundo. Versões
mais leves deixam abertas a possibilidade de se “trabalhar em direção ao universal” e de enriquecer a
racionalidade ocidental, acrescentando a ela os “valores da civilização negra”, “o gênio peculiar à raça
negra”; Senghor chamou a isto de “rendez-vous du donner et recevoir” (o ponto de encontro entre o
dar e o receber), do qual se supõe que um dos resultados seja a metissage de culturas (MBEMBE,
2001, p.184).

Por tudo isso, Senghor é visto como um dos responsáveis pelos acréscimos ao discurso
de identidade africana quando encara a questão da raça (MBEMBE, 2003). Todavia, Mbembe
(ibid) acrescenta que o status de inferioridade aprisionou o modo de pertença dos africanos e
grupos de toda a sua diáspora. Segundo ele, se o discurso de reabilitação tenta confirmar que
os africanos também pertencem à humanidade em geral, ele não ameaça a ficção da raça
(2001, p.183). Neste argumento, os primeiros pensadores africanos modernos são devedores
no tangente à compreensão das razões da situação de servidão. Ao absorverem categorias

80
como civilização, autonomia e autogestão, permitiram a perpetuação do pensamento que
divide os grupos em humanos e não-humanos.
Conforme as interpretações sobre as críticas ao pensamento de Senghor, o incômodo
está justamente no seu suposto conformismo. Alguns estudos88 chegam a compará-lo a
Gobineau, identificação provocada por algo definido na literatura consultada como uma forma
de conciliação entre Senghor e os impérios, uma certa devoção que invisibilizaria a autoridade
neocolonial e suas formas de controle sobre as antigas colônias.
O manifesto Éloge de la Créolité (BERNABÉ, CHAMOISEAU e CONFIANT, 1989,
p.3) reflete a defesa por um pensamento crioulo, ressignificando a negritude de Cesaire. O
termo crioulo aparece nos argumentos que alicerçam o manifesto para definir uma auto-
representação denominada como uma espécie de invólucro, atitude interior, vigilância.
Autores francófonos (ibid) insistem na idéia de um estado de pré-literatura definido pela falta
de audiência de seus próprios grupos. Conforme o manifesto, tem sido triste reconhecer o
encarceramento das suas próprias verdades, já que o mundo é visto através do filtro dos
valores ocidentais (BERNABÉ, CHAMOISEAU e CONFIANT, 1989, p.3). No bojo de tais
aspectos, a percepção dos avanços e limites propostos pela Negritude – nos termos de Aimé
Césaire – informa nossa análise acerca das heranças deixadas por um pensamento de
fronteira:

A Negritude, salvo o clarão profético da palavra, não expôs nenhuma pedagogia do Belo, e, de fato,
nunca teve esse projeto. Em verdade, a força prodigiosa que emanava dela dispensava uma arte poética.
O fulgor com que resplandecia, balizando com sinais ofuscantes o espaço de nossas indecisões,
esvaziou toda repetição taumatúrgica em detrimento dos epígonos. De maneira que, mesmo
galvanizando nossas energias no ângulo de fervores inéditos, a Negritude não remediou absolutamente
nossa inquietação estética. É possível mesmo que tenha, durante algum tempo, agravado nossa
instabilidade identitária, apontando−nos a síndrome mais pertinente de nossas morbidezas: o exílio
interior, o mimetismo, o natural do próximo vencido pela fascinação do distante etc., todas figuras da
alienação. Terapêutica violenta e paradoxal, a Negritude fez suceder a ilusão africana à da Europa.
Originalmente votada à aspiração de nos domiciliar no aqui de nosso ser, ela foi, às primeiras vagas de
seu desdobramento, marcada por uma espécie de exterioridade: exterioridade de aspirações (a África
mãe, África mítica, África impossível), exterioridade da expressão da revolta (o Negro com maiúscula,
todos os oprimidos da terra), exterioridade da afirmação de si (nós somos africanos). Incontornável
momento dialético. Indispensável trajetória. Terrível desafio o de sair daí para enfim construir uma nova
síntese, ainda provisória, sobre o percurso aberto da História, nossa história (BERNABÉ,
CHAMOISEAU e CONFIANT, 1989, p. 3).

88
Um exemplo é a obra Léopold Sedar Senghor: negritude ou servitude, de Marcien Towa, onde o autor
considera racista o argumento de Senghor (apud MUNANGA, 1988). Para Towa (apud MUNANGA,1988),
Senghor partiu de uma orientação pela qual entende a ciência e a tecnologia vinculadas aos brancos, sendo os
negros necessariamente devedores dessas competências, restando-lhes apenas admitir sua “adaptação” ao mundo
“moderno”.

81
Notadamente, o manifesto caribenho admite a influência da Negritude, por exemplo,
quando situa Aimé Césaire como um antecrioulo (BERNABÉ, CHAMOISEAU e
CONFIANT, 1989, p.2), sem deixar de posicioná-lo como o responsável pelo encontro dos
antilhanos com sua dignidade. Ao reivindicar uma identidade menos africana, menos européia
e mais antilhana, o manifesto dá provas da crença em uma outra racionalidade a partir
inclusive do legado deixado por Aimé Césaire:

Somos fundamentalmente marcados pela exterioridade. Isso desde os tempos de outrora até os dias de
hoje. Temos visto o mundo através do filtro dos valores ocidentais, e nosso fundamento foi "exotizado"
pela visão francesa que tivemos de adotar. Condição terrível a de perceber sua arquitetura interior, seu
mundo, os instantes de seus dias, seus valores próprios, com o olhar do Outro. Sobredeterminados, do
princípio ao fim, em história, em pensamentos, em vida cotidiana, em ideais (mesmo progressistas), em
uma armadilha de dependência cultural, de dependência política, de dependência econômica, temos sido
deportados de nós mesmos a cada palmo de nossa história escritural. Isso determinou uma escrita para o
Outro, uma escrita emprestada, apoiada nos valores franceses, ou, em todo caso, fora desta terra, e que,
apesar de certos aspectos positivos, não fez senão manter em nossos espíritos a dominação de um outro
lugar (BERNABÉ, CHAMOISEAU e CONFIANT, 1989, p.1).

Assim, como os defensores da crioulidade, encontramos outros posicionamentos


acerca do nível de influência desse movimento de resgate do afrocentrismo. Enquanto os
caribenhos argumentam que nem Europa, nem Ásia e nem África devem ser o berço para a
construção de uma identidade antilhana, Munanga (1988, p.57) defende que é possível cada
grupo de negros adaptar-se e reajustar o conteúdo de sua(s) Negritude(s). Chamando a
atenção para a crítica e polêmica em torno deste fenômeno visto como conceito e como
movimento, Munanga (ibid) ressalta aspectos de uma adaptação necessária dos diferentes
grupos africanos, sem negar a necessidade de desenvolver estratégias de solidariedade entre
negros das nacionalidades africanas.

O termo negritude não permaneceu estático. Conheceu várias interpretações, muitas contraditórias,
entre seus estudiosos. A mudança da realidade colonial acompanhou esse ritmo. Enquanto movimento,
desempenhou historicamente seu papel emancipador, traduzido pelas independências africanas e
estendeu-se como libertação para todos os negros na diáspora, ainda vítimas do racismo, por exemplo,
nas Américas (MUNANGA, 1988, p.7).

A concepção que desenvolve é vigorosa no sentido de ajudar a entender a mobilização


de intelectuais convictos, imbuídos por uma identificação pensada no coletivo, no interior da
chamada classe de intelectuais influenciados por movimentos de libertação de toda ordem.
Podemos ampliar esses pressupostos para o entendimento das relações estabelecidas entre os
grupos que se auto-reconhecem como da diáspora africana.

82
Aimé Cesáire, em seu Discurso sobre o colonialismo (1957), afirma que a colonização
desumaniza o mais civilizado dos homens. Segundo ele,

A ação colonial, a empresa colonial, a conquista colonial, baseada no desprezo ao homem indígena e
justificada por esse desprezo, tende inevitavelmente a modificar ao que a empreende; o colonizador que,
para ir se acostumando com a idéia, se habitua a ver no outro a besta e a tratá-lo como besta, tende
objetivamente a transformar-se ele mesmo em besta. É este fato, esta regressão da colonização o que eu
quero assinalar (CESAIRE, 1957, p.11).

Na apresentação da publicação do fragmento89 do discurso de Cesáire, os editores


afirmam que se trata de “um protesto do homem negro contra a Cultura Ocidental que lhe
negou e lhe nega sua qualidade de humano” (1957, p. 3). Nota-se, no discurso, uma retórica
veemente baseada no reconhecimento da responsabilidade da Europa, que deveria encontrar
saídas para o problema colonial e o problema do proletariado. Chamando a atenção para as
atrocidades dos colonizadores, o poeta insiste em argumentar em defesa de uma revisão
dessas heranças da aventura colonial européia, reivindicando sobretudo uma análise das
conseqüências deixadas por este fenômeno. Num texto acusativo e repleto de indignação,
Césaire (1957) reflete a crença em uma saída para uma nova sociedade preocupada com
aspectos sociais de nobreza nas relações humanas deixados no passado.
Na contemporaneidade, vimos populações inteiras em contextos diversos orientadas
numa tradição ocidental, aprendendo, cotidianamente, que ser não-branco é possuir o status de
subalterno. Tendem a aceitar práticas que favoreçam o mascaramento dos fenótipos africanos:

Sem sermos exageradamente pessimistas ou otimistas, precisamos reconhecer que uma das propriedades
fundamentais das culturas humanas é a mudança, a dinâmica. As massas populares africanas
assimilaram alguns elementos da civilização ocidental e os interpretaram para uma melhor integração.
Outros foram rejeitados por terem entrado em choque com a estrutura tradicional. Não percamos de
vista a situação colonial, caracterizada por contatos forçados, numa relação desfavorável ao colonizado.
Neste sentido, muitos traços europeus, considerados como emprestados pelos africanos, foram apenas
impostos e, conseqüentemente, não assimilados. Se houve mudanças, elas não foram suficientemente
profundas para descaracterizar culturalmente o povo negro, ou seja, não criaram crise estrutural. Desse
ponto de vista, as massas africanas não se alienaram no confronto e não podiam ser objeto da negritude,
pelo menos na sua primeira fase. Se naquela época a problemática da negritude não se colocava para
grande parte da África negra, hoje o consumismo veiculado pelos meios de comunicação constitui uma
arma por vezes mais eficaz do que a força bruta que caracterizou a situação colonial. Se na década de
trinta e nos anos seguintes a negritude não sensibilizava as massas negras, hoje a manipulação da
alienação pelos meios de comunicação obriga-nos a recolocar a questão (MUNANGA, 1988, p.69-70).

Certamente, o desprezo pelo corpo não-branco é uma experiência mundial. Ostenta-se


uma aparência branca nas relações coloniais de poder (SILVA, 1999, p.125) e, assim, as
representações reconhecidas nas imagens de grupos ordenados em condição de subalternidade

83
são parte dos exemplos das relações atuais de dominação entre grupos raciais – herança de
um imperialismo cultural.
As narrativas imperiais podem ser identificadas como formas de submissão. Ao
aceitarmos que o texto imagético realça as formas de representação dos grupos fixados como
subalternos, podemos supor que a imagem é a corporificação de narrativas que constroem o
Outro colonial (ibidem) ao mesmo tempo que revigora a imagem do branco superpotente,90
como o Eu colonial.
As narrativas das mídias televisiva e impressa carregam uma das mais eficazes formas
de representação de um ideal subalterno. Seja no continente africano ou em outras partes do
Terceiro Mundo, a imagem dos corpos que circulam nos meios de comunicação, para além
dos recursos televisivos, evidencia um modelo civilizatório a partir das imagens construídas
daqueles representados como fora de uma normalidade. Sobre esta questão, nos debruçaremos
com cuidado, ampliando nossas asserções para apreender as idiossincrasias dos espaços de
legitimação dos saberes no âmbito das universidades. Interpretadas como um outro grande
intelectual91, assim como a mídia o é, ela compõe sobremaneira a engrenagem deste ideal
subalterno. Observamos, no caso da mídia, representações simbólicas eficazes no processo de
convencimento da referência de humanidade.
Nos espaços universitários, por sua vez, nos quais se convencionou lutar pela
produção de uma razão eurocêntrica e, portanto, ainda próxima dos interesses coloniais, há
um forte apelo a uma política de retroalimentação dos pressupostos desenvolvidos hoje sobre
um modo colonial de produção de subjetividades. Em outros termos, o ordenamento dos
grupos humanos implica à esfera acadêmica uma instância promotora de temas direcionados à
esfera pública que, por sua vez, acaba por produzir ressignificações diárias de suas formas de
identificação com os contextos sociais locais e globais.
Uma impressão saída das narrativas dos intelectuais afrodescendentes é a de que um
senso comum acadêmico seria responsável pelo endurecimento das possibilidades de
negociação entre brancos e não-brancos que desejam a promoção de suas investigações.
Arriscamos afirmar que narrativas subalternas são resultado também destas experiências que
partem de um espaço de disputa, como é o mundo acadêmico e as relações estabelecidas em
seu interior.

89
Conforme a apresentação do texto, o trabalho publicado é parte do livro de Aimé Cesáire que apareceu em
espanhol na Revista Casa de las Américas, Havana , Cuba.
90
Ver Kabengele MUNANGA, 1988.
91
Ver Sergio COSTA, As cores de Ercília, 2003.

84
A Negritude pode ser entendida como uma perspectiva híbridizante, porque ela
mesma foi herdeira da influência de outros movimentos culturais como o Surrealismo e o
movimento de grupos de poetas afrodescendentes dos Estados Unidos nas primeiras décadas
do século XX. Qualquer manifestação que parta de contextos de dominação reproduzirá, em
alguma medida, as mazelas destes regimes. Visualizar esse hibridismo nos fez entender que as
inúmeras proposições sobre sua essência dependem do lugar de onde se olham essas teorias
e/ou movimentos. Por exemplo, podemos afirmar que, no Brasil, a emancipação dos grupos
em desvantagem material interessa aos que se incomodam com o modelo de ordenamento
vigente e aos que sofrem e conseguem tomar consciência dessa forma de hierarquia social.
Por isso, lutar por mobilidade implica democratizar os espaços onde a representação é
facilitada, como é o caso da formação acadêmica. Pode ser possível entendermos o
significado da Negritude para aqueles que experimentaram e experimentam92 o lugar de
coisificado nos termos de Áime Césaire. O que desejamos argumentar é que, perceber as
relações coloniais locais ou o colonialismo moderno depende, exclusivamente, de nossa
vontade de ver as táticas de subjugação e de domínio na contemporaneidade.
Sendo assim, consideramos que se trata de algo que tem diferentes etapas, gerações e
formas de concepção e vigência. Pensar as subjetividades presentes no contexto brasileiro e
com especial atenção para a produção cultural midiática – bem como o lugar dado ao Outro
colonial e o público-alvo destes veículos – pode ajudar a entender a persistência das novas
formas de Negritude. No movimento iniciado por intelectuais pan-africanos em formação, na
Europa, o nome dado a uma espécie de atitude identitária virou objeto de investigação e
principalmente de crítica. Em outros termos, para ser não-branco, é necessário lutar por
esse lugar, um espaço necessariamente físico, mental e mais do que isso: um espaço de
negociação, uma definição que merecerá um maior aprofundamento ao longo desta pesquisa.
Entendemos que a maioria dos brasileiros, marcada pelos fenótipos africanos, continua tendo
que negociar com as outras formas de identificação. Quanto mais branca for sua aparência,
mais chances de aceitação social terá. Nas formas de inserção, encontramos indicadores
dessas regras bastante claros que marcaram/marcam as relações na sociedade.

92
O drama dos haitianos residentes na República Dominicana, inclusive de alguns que formaram suas famílias
naquele outro país e que são assassinados – quando não são deportados arbitrariamente de suas casas – é uma
forma de experimentar o não pertencimento em um nível de crueldade que está marcadamente orientado pela
expropriação total do direito à vida e à liberdade de simplesmente ser humano. São bairros inteiros esvaziados
pelas milícias locais que promovem uma limpeza étnica. A República Dominicana está há séculos resistindo à
presença dos haitianos em seu território e tem propagado práticas de segregação e xenofobia por parte da sua
população, que se auto-representa como não-negra. A banalização dessa situação, inclusive pela esfera pública,
como é o caso da mídia, pode indicar ainda a existência de práticas coloniais efetivas, ainda que nessa situação
a República Dominicana não se converta em uma grande metrópole.

85
Aceitamos com Munanga (1988) a apropriação por parte dos interessados na justiça
racial para que, em distintos momentos, possamos usufruir uma solidariedade possível – no
melhor sentido dado às utopias, seria uma solidariedade ideal – entre os que se considerarem
o Outro em qualquer ponto de África ou da diáspora africana. Aproveitamos estas proposições
para chamar a atenção para o aspecto intercultural das relações entre intelectuais preocupados
com a legitimação de um pensamento afrocentrado e insistimos em considerar que as
asserções desenvolvidas desde o movimento da Negritude são devedoras de heranças híbridas
presentes em suas raízes.
Em Peles negras, máscaras brancas (1983), obra definida como um estudo clínico,
Frantz Fanon afirma categoricamente que “O Branco é escravo de sua brancura, o Negro de
sua negrura” (p.11). O aprisionamento de ambos está explicado no fato de a alma negra ser
uma criação de brancos. Interpretando essa sentença como um duplo narcisismo, Fanon faz
uma análise psicológica afirmando que para o negro o único destino possível é o “branco”
(ibid, p.12). Sua única saída seria, então, “uma súbita tomada de consciência das realidades
econômicas e sociais. Se há complexo de inferioridade, este surge após um processo duplo:
econômico inicialmente. Em seguida pela interiorização, ou melhor, epidermização dessa
inferioridade” (ibidem). Ao recuperarmos a teoria fanoniana, propomos um mergulho no
esquema severo proposto por uma ética produzida para afirmar outras formas de
pertencimento, já que o sujeito colonial, quando experimentando o lugar de colonizado, revela
experiências inesgotáveis sobre a falência de sua razão.
Alteridade, raça, identidade, etnicidade marcam as teorias pós-coloniais desenvolvidas
nos anos de 1930 e quase não deixam espaço para o debate sobre classe. Na construção da
teoria pós-colonial, notadamente de orientação africana, “raça versus morte” se constituem
como o centro dessas análises, justamente porque é desse lugar que os intelectuais africanos
estão falando. Para este entendimento, nos apoiaremos nas contribuições de Frantz Fanon.

2.3. A ética fanoniana


No esquema teórico fanoniano, a descolonização ganha relevo porque ele propõe
uma substituição total e não residual: propõe mudanças que precisam ser realizadas a partir
dos sujeitos colonizados com uma consciência política. A colonização é, assim, um papel em
branco que antes continha histórias de grupos humanos, sociedades inteiras; seu processo
nefasto permitiu o recomeço, uma criação. Produziram-se, portanto, homens e sombras.
Organizar e substituir na estrutura social as relações de convívio implicaram a desumanização
de multidões de homens e mulheres.

86
O processo de descolonização é um processo de desordem total, uma política de guerra
que tem como interesse a vontade de provocar a morte. Daí pode-se apreender o radicalismo
de Fanon. A descolonização não é um processo que visa ao fim das guerras, porque é um
processo que desencadeia a própria guerra. Em outras palavras, Fanon (1983) definirá o
processo como a Razão do Homem Colonizado.
Por tudo isso, a linguagem da força implica o uso da mesma violência que caracteriza
a colonização. Traduzir aspectos de sua ética passa a ser nosso passo seguinte: o que
sugerimos é que na luta pela negociação dos espaços de legitimação dos saberes diversos, a
noção de violência é contornada por ações simbólicas de violência. A presença
afrodescendente causa incômodo. Em alguns discursos incomodados, racismo é algo que está
na cabeça do negro complexado e, mais do que isso, para ser feliz não é preciso fazer um
curso superior, muito menos mestrado e doutorado. Para aqueles que exercem a violência
simbólica pelo simples fato de querer estar cursando o mestrado e/ou doutorado, a tarefa do
anti-racismo é diária e deve ser forjada no sentido de não provocar constrangimento aos
outros, vistos como dentro de um padrão acadêmico branco e, portanto, normal, com sentido
de estar ali simplesmente “pertencendo” ao espaço.
A teoria de Frantz Fanon pode ser localizada como desdobramento de sua indignação,
ao reconhecer as mazelas que o colonialismo promoveu em larga escala. Suas preocupações
fizeram com que sua vida estivesse voltada para a produção de diagnósticos dos efeitos do
colonialismo em todo o mundo. A partir do processo colonial, aborda os estilos europeus de
migração forçada e de destruição cultural que transformou a vida de milhões de pessoas em
todo o mundo. Atingidos pelas atrocidades da aventura européia de dominação, homens e
mulheres eram definidos como indígenas e/ou negros, recebendo um primeiro traço de
desumanização, já que ser indígena e/ou negro representava não ser branco e não ser branco
significava não ser humano. Seria inaugurada a experiência dos não-seres.
Um dado interessante, e que se agrega aos argumentos recuperados da ética de Fanon,
pode ser visto na reflexão de Ware (2004, p.7) sobre a emergência do debate sobre ações
afirmativas, alegando que “o que está em jogo nesses debates é a necessidade de reconhecer
os padrões destrutivos de racismo que perpetuam a injustiça social e de eliminar o preconceito
e a discriminação”.
Um dos motivos da centralidade de Fanon é porque, saindo das garras do passado, sua
crítica provoca uma abordagem sobre a divisão provocada pela brancura e pela negrura que
atinge a luta pela legitimação do conhecimento produzido na perspectiva da afrocentricidade
brasileira.

87
Para além das suas obras de referência, como é o caso de Peles negras, máscaras
brancas e Os condenados da terra, a sua fecundidade se expressa nos tantos trabalhos escritos
(como podemos constatar na obra Por la revolución africana publicada no México em 1975)
ao longo da década de 1950 e início da década de 1960 (precisamente até 1961). São trabalhos
publicados em revistas periódicas, como, por exemplo, El Moudjahid, e que acumulam uma
intencionalidade que Fanon nunca deixou escapar: a idéia de descolonização da África, a
insurgência dos colonizados, a conjunção de uma marcha missionária que levaria os países da
África ocidental a estudar as condições de assumir sua unidade pela libertação africana, entre
tantas questões que revelaram sua obstinação como intelectual e como revolucionário. Nesses
trabalhos, Fanon focava as ações políticas no sentido de promover uma intermediação para
ações revolucionárias. Escrevendo sobre os intelectuais de esquerda e a guerra da Argélia, ele
afirma:

Um dos primeiros deveres dos intelectuais, reunidos nas circunstâncias sob o termo de intelligentsia, e
dos elementos democráticos dos países colonialistas, é sustentar sem reserva a reivindicação nacional
dos povos colonizados. Esta conduta se funda em ideais teóricos muito importantes em defesa de uma
idéia do homem, impugnada em país ocidental, abstenção a participar institucionalmente na degradação
e na negação de certos valores, comunidade de interesses entre as classes trabalhadoras do país
conquistado e dominado, enfim, trata de impor ao governo o respeito do direito dos povos para dispor
dos mesmos (FANON, 1962, p. 82).

Neste artigo, Fanon centra-se nos intelectuais alienados em suas produções científicas
e que, portanto, não dialogam com os trabalhadores. Refugiando-se no silêncio diante das
constatações sobre a realidade colonialista, tornam-se impopulares com sua produção em
certa medida artificial, porque não cumprem o papel de intermediar a formação da opinião
pública, bem como contribuir com os grupos em desvantagem política. Notadamente, Fanon
diagnostica uma ausência da participação desses grupos posicionados de forma privilegiada e
que, ao mesmo tempo, não conseguem fortalecer os movimentos populares de insurgência,
com a potencialidade da produção intelectual.
Em Peles negras, máscaras brancas (1983), o seu estudo clínico rejeitado como tese
de conclusão do curso de medicina, Fanon afirma que as nossas conclusões são válidas para
as Antilhas francesas; não ignoramos entretanto que estes mesmos comportamentos se
encontram no seio de toda raça que foi colonizada (p.24). Ao rever seu diagnóstico, ele
aponta para a questão em relevo (especificamente no capítulo um) como sendo a seguinte:

... O Negro Antilhano será tanto mais branco, isto é, estará mais próximo do homem verdadeiro, na
medida em que adotar a língua francesa. Não ignoramos que esta é uma das atitudes do homem em
relação ao Ser. Um homem que possui a linguagem possui também o mundo que esta linguagem

88
abrange e que através dela se exprime. Vê-se onde queremos chegar: a posse de uma linguagem
representa um poder extraordinário... (p.18).

A Fanon, a psiquiatria ofereceu subsídios referentes à deformação da consciência dos


sujeitos coloniais e alavancou seus estudos clínicos, como é o caso de Peles negras, máscaras
brancas93 (1983), permitindo-lhe agregar ao ativismo político essas análises que provocaram
grande impacto em diferentes esferas, como, por exemplo, no mundo acadêmico: como
trabalho de tese de conclusão do curso de medicina, o estudo foi rejeitado. As proposições
apresentadas nestas duas obras citadas por último fazem clara referência à situação colonial e
representam o colonizado como o seu principal canal de interlocução. A introdução de Peles
negras, máscaras brancas faz referência ao Discurso sobre o colonialismo (CÉSAIRE, 1957),
trazendo consigo as influências recebidas, narrativas anteriores à sua, por reconhecer nelas um
outro locus, nesse caso, um discurso de sujeitos também colonizados.
Mereceu destaque o capítulo um de Peles negras, máscaras brancas por apontar os
impasses do narcisismo e o aprisionamento do homem negro e do homem branco, discorrendo
sobre a linguagem. Ao trabalhar esta questão, alguns exemplos saem da experiência dos
recém-chegados da França, alvo de curiosidade local; estes retornados deveriam apresentar
traços de uma espécie de evolução, conforme o imaginário dos antilhanos, própria de quem
foi para o mundo europeu. Neste caminho, Fanon apresenta um diagnóstico, faz um estudo
clínico para compreender a representação construída sobre a França pelos antilhanos, a partir
de situações onde a fala revela o nível de domínio que esses sujeitos têm sobre a cultura
francesa. Seja a partir dos encontros entre família, entre amigos, estudar através da língua do
branco significava receber um tipo de bônus para ser visto como cidadão naquele contexto.
Na problemática do capítulo um, Fanon está atento ao fato de sermos levados, de
modo esquizofrênico, a falar uma língua e assumir a necessidade de dominá-la para
simplesmente ser. A partir desses exemplos de situações do cotidiano e análises pontuais do
condicionamento imposto pela situação colonial, o estudo sobre a linguagem estava apenas
começando (conforme as observações de rodapé de página feitas por Fanon). Nas relações
coloniais, a essência das formas de dominação é marcadamente retocada pela dissociação do
outro colonial – denominado como negros e/ou indígenas entre outros – do seu universo. A
prática de conversão dos hábitos dos grupos em situação de subalternidade aniquilou a
consciência desses sujeitos fixados como não-humanos, não-civilizados, não-prontos.

93
A leitura dessa versão brasileira publicada pela editora Fator é de 1983 e foi acompanhada também pela leitura
da versão da editora Nova Terra (Barcelona) intitulada Escucha Blanco (de 1970).

89
Fanon persegue, em seu estilo livre de escrever, as brechas para visualizar as
idiossincrasias dos processos de aniquilação da alma do Outro colonial. Para ampliar tal
sentido, nos aproximamos de Césaire (1957), quando enfatiza as conseqüências da
bestialização também para os colonizadores refletidas nas formas irracionais de domínio. A
insistente afirmação de que os sujeitos não-europeus deveriam alcançar as condições humanas
dos colonizadores serviu para alimentar todo um imaginário europeu em busca de uma
justificativa para as práticas violentas de racismo e desumanização praticadas contra ele. O
comprometimento da consciência à qual Fanon se refere .diz respeito aos negros e aos
brancos. Ao final do capítulo um ele afirma:

A acareação das raças branca e negra engendrou um complexo psico-existencial de massa. Analisando-
o, visamos a sua destruição. Muitos negros não se reconhecerão nas linhas que se seguem. Assim como
muitos brancos. Para o esquizofrênico ou o impotente sexual é indiferente o fato de eu não ser como
eles. Os comportamentos que proponho descrever são verdadeiros. Eu os encontrei inúmeras vezes. Em
estudantes operários proxenetas de Pigalle ou de Marselha, identifiquei o mesmo componente de
agressividade e de passividade. Esta obra é um estudo clínico. Aqueles que com ela se identificar terão
dado um passo adiante. Quero verdadeiramente conduzir meu irmão Negro ou Branco a libertar-se, com
firmeza, da lamentável libré tecida através de séculos de incompreensão (FANON, 1983, p.13).

Observamos a afirmação de que o antilhano é obrigado a se posicionar diante da


linguagem, mas não apenas ele. Todo povo colonizado – isto é, todo povo no seio do qual
originou-se um complexo de inferioridade da cultura local – tem como parâmetro a
linguagem da nação colonizadora, ou seja, a cultura da metrópole (FANON, 1983, p.18).
Poderíamos considerar esta proposição como uma das mais convincentes e reais, porque o
discurso produzido no interior das colônias está marcadamente recheado pelos traços culturais
deformadores da cultura local. Em outros termos, quando alguém fala na colônia, está falando
com base em traços de uma outra forma de codificação lingüística. O diagnóstico sobre o
“Negro” e a linguagem revela traços do seu universo:

Especialmente, quando estudantes antilhanos se encontram em Paris, duas possibilidades se apresentam:


ou sustentar o mundo branco, isto é, o mundo verdadeiro, e o francês então empregado lhes dá a
possibilidade de enfrentar qualquer problema e tender suas conclusões a um certo grau de
universalismo; ou rejeitar a Europa, “Yo” e se unir através do patoá, instalando-se bem
confortavelmente no que chamaremos o umwelt martinicano; queremos dizer com isto – e dirigimo-nos
principalmente a nossos irmãos antilhanos, que, quando um dos nossos camaradas, em Paris ou em
qualquer outra cidade universitária, tenta considerar com seriedade um problema, acusam-no de se
julgar importante, e o melhor meio de desarmá-lo é curvar-se ao mundo antilhano que brandindo o
crioulo. Esta é a causa de muitas amizades desmanchadas, após algum tempo de vida européia
(FANON, 1983, p.32-33).

Nesta passagem, torna-se explícita parte de seu diagnóstico, considerando que falar o
francês (grifos nossos) significa poder defender-se. Certamente, essa tendência é percebida

90
entre os grupos da elite local. A visão pragmática da função da linguagem seria fruto de uma
consciência coletiva influenciada por uma tradição castradora nas Antilhas, tendo em vista
que mais humilhante que falar o francês é falar a língua materna. Segundo Fanon (1962), a
burguesia nas Antilhas não fala o crioulo, salvo nas suas relações com os domésticos (p. 19).
Sua análise é psicológica e nela julga que a verdadeira desalienação do negro supõe uma
súbita tomada de consciência das realidades econômicas e sociais. Se há complexo de
inferioridade, este surge após um processo duplo que implicaria o econômico e, em seguida,
um processo de interiorização, de epidermização dessa inferioridade (FANON, 1983, p. 12).
Supomos que falar o francês pode se traduzir em outros termos. Isso seria possível
quando observamos as relações de domínio abrangendo experiências semelhantes de
imposições coloniais. Para os grupos em condição de subalternidade, a linguagem seria
aquilo que normalmente está posto como traço de equivalência. Neste sentido, quando
estamos lutando por outros espaços de representatividade como grupo em desvantagem,
somos levados a acreditar que estamos submetidos a formas de comunicação impostas pelos
modelos de “ordenamento colonial”. Ao insistirmos nessa categoria, afirmamos que somos
levados a participar a partir de lugares fixos, restando-nos apenas a opção de estar a partir das
regras ou simplesmente não estar, nos termos de Fanon (1962). Por isso seus diagnósticos
podem ser traduzidos para uma análise das relações coloniais locais e das situações
provocadas por elas. Intelectuais/acadêmicos afrodescendentes querem alcançar as formas
legitimadas de fazer ciência com base nos seus interesses, nas interrogações promovidas pela
experiência da subalternização. Podemos supor que sua perspectiva de inserção nos espaços
de legitimação do conhecimento científico serve para dar visibilidade a outros interesses.
Trata-se daquilo que tem sido considerado o resto, temas menores, sem relevância para o
todo.
A experiência subalterna dos intelectuais/acadêmicos afrodescendentes tende a
emergir como parte de uma outra versão que se dá à ciência, uma contranormatividade, um
contradiscurso, assim como a produção de Frantz Fanon, Homi Bhabha, Edward Said, Stuart
Hall, Mariátegui... Uma contra-supremacia, uma condução de experimentos subalternos em
prol da emancipação política do Outro colonial, nos termos encarnados para esta investigação.
Nas arenas políticas, o diálogo está marcado pelas especificidades das relações
assimétricas de poder entre sujeitos coloniais, e também por uma lógica de um colonialismo
moderno, atual, nos microespaços onde estão presentes tais relações de subalternização. Ao
visualizarmos as relações coloniais, encontramos as provocações do discurso fanoniano. Em
Peles negras, máscaras brancas, em lugar de dissertar apenas para os seus pares, Fanon

91
(1962) amplia sua retórica, voltando-a para a libertação dos grupos que dominam e os que são
colocados em desvantagem colonial. Preocupa-se em argumentar sobre o aprisionamento dos
brancos na sua brancura e dos negros em sua negrura, dando um diagnóstico final para aquilo
que analisamos como parte do desdobramento do colonialismo, ou seja, a idéia de que a
brancura, a identidade do homem europeu, herdeiro do legado colonial seria o padrão da
existência, uma representação construída agora por todos.
Ao mesmo tempo, quando se refere à negrura, Fanon diz que “muitos Negros querem
demonstrar aos Brancos, custe o que custar, a riqueza de seus pensamentos, a força
comparável de seus espíritos” (1962, p.11). Numa análise psicológica, ele afirma
categoricamente que o objetivo do homem negro é ser o homem branco e que, para se libertar,
ele deve tomar consciência das realidades econômicas e sociais. As raízes de seus complexos
são encontradas, como já mencionamos, nos processos econômicos e naquilo que definiu
como epidermização da inferioridade (ibid, p.12).
Na política, o médico psiquiatra experimentou todas as formas de ativismo e buscou o
convencimento de muitos jovens através de seus escritos e de seus discursos. Como vimos,
seu empreendimento não seria organizado nos moldes acadêmicos, sendo, ao contrário, uma
produção marcada pela preocupação com as conseqüências deixadas pelas relações de
dominação do homem pelo homem. Na sua interpretação psicanalítica das conseqüências do
colonialismo, acreditava que o destino do neurótico estava em suas próprias mãos. Sua
abordagem sobre a linguagem ajuda a pensar o empreendimento dos grupos que lutam pela
legitimação de sua participação como humano. Conforme sua argumentação “falar uma
língua é assumir um mundo, uma cultura” (FANON, 1962, p.33). O impasse colocado para
nossas reflexões de estudo seria também tomar parte desse argumento. O que podemos
começar a examinar é: em que medida a condição subalterna nos limita ou nos impulsiona
para a insurgência?
Ocorre que, para pensarmos as relações coloniais, devemos recuperar as proposições
sobre a condição do subalterno. Merece ainda que destaquemos as oposições suscetíveis de
abrir as fronteiras daquilo que previmos como as práticas de racismo com alto grau de
violência, no interior das esferas com as quais estamos ocupados neste estudo, como é o caso
das universidades.
A violência do racismo acadêmico (CARVALHO, 2001), conforme dados presentes
nas narrativas dos entrevistados, pode ser analisada como um modo de ressignificação das
práticas coloniais, próprias de situações de tentativa de insurgência dos colonizados. O fato de
uma professora negra migrar da graduação para a pós-graduação pode causar mudanças

92
radicais nas relações cordiais antes estabelecidas entre professores brancos e não-brancos.
Conforme Ana Célia da Silva94, alguns de seus companheiros de trabalho passaram a referir-
se a ela como “menina”, expressando frases como Oi, menina, nos corredores da
universidade, deixando de lado a formalidade que caracteriza, em certa medida, o tratamento
entre professores. Por isso, acreditamos que a infantilização presente na frase é característica
das formas de coisificação dos indivíduos.
Isso nos remete ao que observamos das análises iniciais sobre a hierarquização dos
grupos envolvidos nas relações coloniais localizadas no interior das universidades. Segundo
Achille Mbembe95 (2003), é no Atlântico – analisado como um local de práticas coloniais, um
elo dos três pontos geográficos – que a vida é coisificada. Sujeitos do continente africano
serão convertidos em mercadoria, escravos, bens negociáveis.
Desestabilizar os espaços acadêmicos passou a ser, por isso, uma bandeira de luta para
aqueles intelectuais-acadêmicos comprometidos com outras racionalidades, com outras
formas de compreender e produzir conhecimento. Em outros termos, acredita-se num modo
afrocêntrico de experimentar “desde a universidade”. Estar em espaços de prestígio, como é o
caso dos alunos afrodescendentes nos cursos de mestrado e/ou doutorado, tem significado
nadar contra a maré, causar incômodo aos brancos, lutar por representação política, criar uma
cultura de insurgência e, mais do que tudo, garantir a produção de outras formas de
racionalidade.
Levando-se em conta o quadro teórico de Fanon, os lugares na universidade estariam
definidos a partir da brancura. São aprisionamentos refletidos nas imagens de quem entra e de
quem sai nos corredores dessa esfera: ser branco na universidade é estar dentro de uma
normalidade; ser não-branco na universidade é não ter lugar marcado, sentar onde tem lugar;
estar de passagem, por acaso e por descuido de quem os deixou entrar.
O “chamamento” de Fanon está presente neste exame da universidade na medida em
que ilumina a hipótese de que esse espaço pode ser examinado como um grande Centro. Têm
sua vigência garantida pelas representações construídas sobre os intelectuais não-brancos que
buscam formação acadêmica, conforme a fala dos próprios respondentes. Uma hipótese que
emerge, a partir de tais questões, é de que a perspectiva que se pretende lançar com base nos

94
Ana Célia da Silva é doutora e professora concursada da Universidade Estadual da Bahia e professora
convidada no programa de pós-graduação da Universidade Federal da Bahia.
95
Por ocasião do Curso Avançado Fábrica de Idéias, o professor sul-africano Achille Mbembe ministrou, na
Universidade Federal da Bahia no ano de 2003, o curso sobre crítica pós-colonial africana, situando o
pensamento de Franz Fanon como fundamental para quem quer conhecer as teorias pós-coloniais na sua
essência.

93
estudos afrocentrados no Brasil está relacionada com uma possibilidade de experimentar um
tipo de interculturalidade.

2.3.1. A descolonização e a consciência do Outro


O processo de descolonização, conforme a defesa de Frantz Fanon, é um processo de
“desordem” total. Não cabe, por isso, a idéia de diálogo entre grupos colonizados e
colonizadores. Seu discurso quer atingir os colonizados: trata-se de um chamamento, uma
reivindicação de bravura. A luta por uma consciência coletiva é interpretada a partir daquilo
que chamou de sociodiagnóstico. Tal definição pode ser extraída do seguinte fragmento: “O
problema negro não se limita aos Negros que vivem entre os Brancos, mas sim dos Negros
explorados, escravizados, humilhados por uma sociedade capitalista, colonialista,
acidentalmente branca” (FANON, 1983, p.164).
A ética fanoniana é, por isso, a ética da cura da história, da vida das pessoas, do
sistema; implica o reconhecimento da responsabilidade da morte do Eu, da morte do Outro; é
necessário matar o indígena, matar o colonizador para nascer de novo. Encarando o racismo
como forma de aniquilamento do outro, o associa à morte − uma noção-chave no seu esquema
teórico. O racismo é reconhecido por um conjunto característico: “el de la explotación
desvergonzada de un grupo de hombres por outro que há llegado a un estadio de desarrollo
técnico superior. Devido a esto la opresión militar y economica precede la mayor parte del
tiempo, hace posible, legitima, al racismo” (FANON, 1975, p.45).
Em um processo mutuamente constituído, matar o próprio eu e matar o colonizador
implica, para o colonizado, reconhecer quem é o inimigo, reconhecer a sua situação de
infelicidade e, por último, desencadear o poder do ódio. Nesta sentença, o colonizado deve
cultivar o ódio, deixando de lado sua falsa alegria para que a violência se transforme em um
recurso. A culminância deste processo deve ser a instituição da guerra total, tudo pode
acontecer, sendo necessário o uso de todos os meios disponíveis. Isso é sem dúvida a lógica
da guerra absoluta: ou eles ou nós. Nela, não é permitido apelar para o diálogo, já que o ponto
de partida da teoria da violência é a constatação de que o sistema colonial obriga os sujeitos
colonizados a indagar sobre quem sou, sendo, por isso, um ato mais reflexivo e menos
dialógico. Por outra parte, a colocação desta pergunta já constitui uma injúria ao colonizado
porque ele nunca vai saber quem ele é e a única maneira de obter uma reposta satisfatória é
pela violência.
A descolonização dependerá da razão do homem colonizado, uma razão a serviço da
desordem. A desordem converte-se em uma ferramenta para se atingir o êxito de perturbar a

94
psicologia do colonizador. Isso seria inevitável já que a totalidade que marca a situação
colonial desconstruiu a subjetividade do indígena, expropriando os grupos explorados. Assim,
tal conduta implica uma política de guerra, ou seja, descolonizar não é um caminho que visa
ao fim das guerras, mas sim um processo que desencadeia a própria guerra. No bojo dessas
inquietações, a guerra é uma concepção política, porque tem o interesse de provocar a morte,
que, como já foi enfatizado, é uma categoria central no esquema teórico de Fanon. Mas quem
será libertado de quê ou de quem? Quem é o sujeito que precisa ser descolonizado nas
relações/situações coloniais vigentes?
Relacionamos esses achados teóricos com as possibilidades de divisão de poder. A
morte defendida por Fanon é a morte do Eu, de uma não-consciência, logo, matar tudo isso
seria, em princípio, tomar consciência da situação colonial e de seus desdobramentos. Após
esta morte, a agência pode ser instituída como parte de um movimento. A idéia de
deslocamento seria, por assim dizer, um princípio norteador desta tomada do poder. O lugar
do Outro colonial ou do não-branco nas relações coloniais é definido pela sua performance,
pela sua agência.
A teologia fanoniana é contrária à teologia bíblica, porque, na primeira, a linguagem
da força da violência implica o uso da mesma violência. Na tese fanoniana, o único ser
autêntico é o ser que é livre e sua busca é por um processo que nos leve a nos tornar seres
humanos de verdade; o poder de participar seria, então, nosso alvo. As formas de resistência
são pensadas na perspectiva de se converter grupos coisificados em libertos, ou seja, em seres
de verdade. Tomar consciência desses lugares e de sua própria condição e ainda do que isso
significa para toda uma sociedade fez com que Fanon teorizasse, defendendo a insurgência
pela guerra.
Suas teses, numa primeira leitura, podem parecer limitadas ao processo de ocupação e
dominação européia. O radicalismo de suas proposições pode ser justificado pela experiência
da guerra propriamente dita. A visão de descolonização parece atrelada a uma interpretação
circunscrita à descolonização de territórios ocupados. Contudo, é possível uma outra análise,
agora ligada aos apelos apresentados sobre o comportamento, a conduta, as formas de
descolonização do conhecimento etc.
Destacamos, da leitura realizada, nossas análises sobre haver inúmeras indicações de
que, no livro Peles negras, mascaras brancas, Fanon apresenta uma preocupação com a
descolonização da consciência do Outro colonial. Por isso, a perspectiva que aparece em

95
alguns estudos96, como limitando suas teses sobre o desejo de resistência e de defender a
revolução africana, deve ser criticada. Podemos considerar que a ética fanoniana é um motor
que persegue as trilhas da revolta contra as formas de dominação herdadas da aventura
colonial européia. Nela, está presente um contradiscurso destacando a falta de fraternidade, o
racismo e seus modos de aniquilar o Outro colonial.
Tratando a poética da vida num contexto colonial, essa ética nos auxilia nas análises
sobre as relações assimétricas de poder e sobre os grupos subalternizados, cuja vida não
conta. O aniquilamento do Outro colonial seria um desejo atual que salta aos olhos, dado o
abandono das possibilidades de negociação. Em outras palavras, a cultura da segregação, da
manutenção das posições de prestígio, dos modos de selecionar os melhores lugares na
estrutura social são perceptíveis quando encaramos a falta de espaço, por exemplo, nos
estudos sobre pobreza, sobre violência e sua relação com aspectos das injustiças raciais, mas
sobretudo seus efeitos no campo da Educação97. Como um pensador que vivencia a sua
própria guerra, Fanon está fazendo a história ao mesmo tempo que a desconstrói. A idéia de
“cura” desenvolvida por ele seria baseada na oposição entre colonialismo e medicina e, neste
sentido, sua filosofia de descolonização é uma filosofia de saúde mental e física. Como
médico, esteve voltado para os estudos dos distúrbios psicológicos causados pela condição
dos colonizados. O nativo98 é definido como um corpo humano coisificado, uma entidade
psíquica sob a dominação da magia. Seu estado é de permanente mal-estar, uma condição que
se perpetua tendo em vista que a brutalidade colonial influencia o sistema cerebral dos nervos.
A pergunta possível de ser formulada, a partir da abordagem revolucionária de Fanon, é sobre
como os intelectuais-militantes-acadêmicos afrodescendentes enfrentam sua própria guerra.
Acreditamos por isso que a universidade tem sido um espaço de referência para o seu
imaginário, visando à conformação de um locus pautado na afrocentricidade. Como parte do
suposto acontecimento universitário (THAYER, 2002), a insurgência tende a revelar as
possibilidades de atrito entre “Estabelecidos” e “Outsiders”, se quisermos antecipar o sentido
dado por Norbert Elias (2000).
O racismo emerge como uma chave, quando analisado dentro de uma perspectiva que
o apresenta como um fenômeno produtor de uma divisão que separa os grupos entre

96
Sobre essa vertente crítica, conferir o livro Frantz Fanon: política y poética del sujeto poscolonial de
Alejandro J. De Oto (2003).
97
Nota-se, a partir das análises estatísticas de todos os órgãos mundiais que avaliam as taxas de desenvolvimento
humano, a indicação de que é via o acesso à educação formal que muitos problemas relacionados com a
desigualdade podem deixar de ser tão graves. Os países que dificultam o direito à educação estão sujeitos a
índices desfavoráveis para seu próprio desenvolvimento.

96
colonizadores e colonizados. Inicialmente, esta divisão salta aos olhos por ajudar a pensar os
lugares e as esferas sociais nas quais estamos posicionados de forma desigual. A riqueza dessa
análise tornou-se devastadora no sentido de desarrumar a visão dos distintos processos de
diferenciação social. Discorrendo sobre o seu papel como político, faz o seguinte comentário:

Sou um homem e devo remontar ao passado do mundo. Não sou apenas responsável pela revolta de São
Domingos. Todas as vezes que um homem fez triunfar a dignidade do espírito, todas as vezes que um
homem disse não a uma tentativa de escravização de seu semelhante, senti-me solidário com seu ato. De
modo algum devo tirar do passado dos povos de cor minha vocação original. De modo algum quero
ressuscitar uma civilização negra injustamente ignorada. Não sou homem de passados. Não quero cantar
o passado às custas de meu presente e de meu futuro [...] Se decidi a um certo momento ser solidário
com um determinado passado, fi-lo na medida em que me engajei comigo mesmo e com meu próximo
para combater com toda a minha vida, com toda a minha força para que nunca mais haja povos
escravizados na terra (FANON, 1983, p.185-186).

O argumento acima, posto que é reflexo do seu protagonismo, evidencia a demarcação


que impulsionou suas pretensões de descolonização. A insurreição dos escravos em São
Domingos é um fenômeno dos mais emblemáticos na retórica a favor da descolonização.
Centramo-nos na tentativa de refletir como se estabelece uma concepção significativa para
orientar uma desordem, nas propostas de análise da condição humana dos subalternizados.
Seguir a orientação da desordem pode significar reconstruir a experiência de sujeitos que
possivelmente provocaram, em proporções menores, situações de constrangimentos ao Eu
colonial. O objetivo da principal pergunta da teoria da violência é atingir a vida. Como forma
de mediação, a violência é uma linguagem para responder à indagação do ser e isso, para
Fanon, é a própria vida. Somente depois da morte do colonizador, a vida poderia brotar outra
vez. Não haveria outro caminho: o colonizado tem a obrigação de matar o colonizador.
O indígena – uma invenção do colonizador – que está dentro do colonizado e que foi
posto neste lugar pelo colonizador deve ser putrificado antes dele matar o colonizador: matar o
falso-eu para depois matar o colonizador. O enfrentamento, o nadar contra a corrente, são
marcas deixadas nas narrativas subalternas. A universidade estaria, por tudo isso, eurodirigida,
pensada a partir das demandas das oligarquias brasileiras e nada interessada em incluir nos
seus quadros mais concorridos os não-brancos.
Achille Mbembe (2003) considera que Fanon pode ser interpretado como um teórico
da guerra, mas esse aspecto ainda não foi suficientemente explorado. Quando Aimé Césaire
(1957) escreve seu discurso sobre o colonialismo, deixa, no centro de sua retórica, as vias de
acesso para o entendimento do que foram os aniquilamentos nefastos da aventura colonial.

98
Nos estudos sobre colonialismo de autores que trabalham na perspectiva do colonizado, é freqüente o uso dos
termos “nativo”, “indígena” para substituir “colonizado”.

97
Em outros termos, Fanon recupera tal noção para iniciar suas análises clínicas sobre a
mente do colonizado na Martinica. Diante desse quadro, a desorientação presente em sua ética
é fruto de suas denúncias anticoloniais antes anunciadas pelos idealizadores da Negritude.
Incorporamos sua teoria para alimentar as possibilidades de agência dos grupos ordenados
pelo colonialismo e fixados como “indígena”. Este indígena é então aquele outro colonial
desfigurado, que, no máximo, será a sombra do colonizador.
As experiências de deslocamento, tentativas de garantir a representação dos grupos
marcadamente deixados de fora, de grupos que definimos aqui como colonizados no interior
dos centros de pesquisa, são movimentos de toda ordem que precisam ser contextualizados.
No caso do Brasil e dos grupos fixados – aqueles com maior notoriedade −, a luta pela
participação e o reconhecimento está sendo iniciada discursivamente, caracterizando-se por
uma luta retórica. Ao conectarmos a teoria de Fanon e os movimentos dos insurgentes
orientados por uma bagagem conceitual comum, percebemos uma fase de elaboração de um
projeto compartilhado entre diferentes sujeitos de um mesmo grupo, identificados com a luta
pela representação e reconhecimento do coletivo.
Assim, descobrir a maneira “grupal” de agir, que tem seu reflexo tanto nos espaços de
militância política como nos interesses de pesquisa e de produção de conhecimentos, é o que
tem marcado essa fase na qual se encontram os intelectuais afrodescendentes que discutem
relações raciais e os direitos dos subjugados pelas formas atuais de colonização.

2.3.2. Combatentes anticoloniais: para entender a perspectiva do Outro


Não por acaso, Jean Paul Sartre é parte das conversas com Fanon, sobretudo por
figurar como um dos mais importantes intelectuais do mundo, interessando-se pelo diálogo
com os pensadores do colonialismo, estabelecendo interlocução também com Albert Memmi.
Edward Said, em seu artigo Meu encontro com Sartre (2003, p.21), faz a seguinte
afirmação sobre a sua performance intelectual:

Para minha geração, ele foi sempre um dos grandes heróis intelectuais do século XX, um homem cuja percepção e
talentos intelectuais estiveram a serviço de quase todas as causas progressistas de nosso tempo. Ainda assim ele não
parecia nem infalível nem profético. Pelo contrário, admirava-se Sartre pelo esforço que fazia para compreender
situações e, quando necessário, oferecer solidariedade a causas políticas. Nunca era condescendente ou evasivo,
ainda que fosse propenso ao erro e ao exagero. Quase tudo que escreveu é interessante por sua pura audácia, sua
liberdade (mesmo sua liberdade de ser verborrágico) e sua generosidade de espírito (SAID, 2003, p.21).

Recuperar nuances da análise de Sartre (1960) sobre o sentido dado à descolonização é


reconhecer o esforço empreendido na interlocução com os jovens pan-africanos, entre tantos
outros em desvantagem política. Segundo Munanga (1988, p.70), seu ensaio Orfeu negro

98
(SARTRE, 1960) “deu à teoria da negritude seu estatuto filosófico e significado político e
revolucionário, enquanto instrumento de combate à dominação colonial”. Partindo de críticas
ao conceito e ao movimento de Senghor e Césaire, esteve voltado para um trabalho de análise
dessas idéias, juntamente com Frantz Fanon, pensando formas de ruptura com o colonialismo
do branco para com o “negro”. Pelo observado, ele figurou como um dos interlocutores
privilegiados no período da formação de Fanon fora da Martinica e esteve interessado em
examinar suas teses bem como a produção de outros grupos com os quais conviveu. Seu texto
chama a atenção para a riqueza e a legitimidade desses trabalhos e, ocupando-se de análises
fecundas sobre as idéias que problematizavam a condição colonial – como é o caso do seu
trabalho realizado para criticar o livro de Albert Memmi –, recupera e assimila a retórica de
Fanon.
Para os principais comentadores dos combatentes anticolonialistas, Léopold Senghor
pode ser associado à filosofia de Frantz Fanon (MBEMBE, 2003), além de ser considerado
como aquele que “conseguiu, ainda que circunstancialmente, unir sua mensagem poética a
uma outra de conteúdo filosófico-político, sustentada, em grande parte, com certeza, pela
condição de chefe de governo do seu país natal” (OLIVEIRA, 2001, p. 419). Situado como o
responsável pelos desdobramentos fecundos do conceito de Negritude e como o primeiro
presidente do Senegal, Senghor aparece associado ao nome de Aimé Césaire no processo de
construção de um estatuto recuperador das origens africanas. Por tudo isso, seu movimento
tem sido examinado como uma tentativa de resgate da dignidade do homem africano – ou pan-
africano – e, por isso, o ideário desses jovens os aprisionou na busca da essência negro-
africana para redimensionar as suas heranças culturais numa luta por representação.
Simbolicamente, a libertação que visavam dependia de alternativas e de uma bandeira.
Viver como racializados significava ver-se desumanizado, perder a autoridade para
“participar”, exercer o direito político. Esses desdobramentos nos colocam diante dos efeitos
da expropriação absoluta mencionada por Aimé Césaire (1955, p.12) numa análise definitiva:

Entre colonizador y colonizado no hay lugar sino para la servidumbre, la intimidación, la presión, los
policías, el impuesto, el robo, la violación, las culturas obligatorias, el menosprecio, la desconfianza, la
altanería, la suficiencia, la grosería de elites descerebralizadas y masas envilecidas. Ningún contacto
humano, sino relaciones de dominación y de sumisión que transforman al hombre colonizador en
vigilante en sargento, en mayoral, en azote, y al hombre indígena en instrumento de producción
(CESAIRE, 1957, p.12).

Um estado de insurgência, uma bandeira de luta pela humanização são corporificados


nos veículos criados no sentido de fomentar um discurso reabilitador e consciente da pertença

99
também africana; aquilo que se cristalizou como uma espécie de consciência negra coletiva
seria, de tal modo, uma bandeira do movimento de intelectuais, que partiu da experiência de
sentir os efeitos das práticas de subalternização pelo pertencimento colonial. Supomos que
esses aspectos devem ser recuperados também com base no reconhecimento da abrangência e
circulação efetiva dessa produção.
A pesquisa de Pires Laranjeiras (1995) sobre o material produzido pelos idealizadores
da Negritude indica a falta de consulta aos textos dos periódicos e, conseqüentemente, a
ausência de exames substanciais sobre tais fontes, a saber:

O jornal L'Etudiant Noir foi editado na cidade universitária internacional de Paris por Léopold Senghor
(senegalês), Aimé Césaire (martinicano) e Léon Damas (franco-guianês), entre outros, como órgão da
Associação dos Estudantes Martinicanos em França, mas dedicando-se a temas e problemas dos
estudantes negros francófonos. Relembro que movimentos e publicações muito importantes surgidos
nas colônias portuguesas de África tiveram estudantes e ex-estudantes do secundário como fautores,
porque não tinha sido criada qualquer universidade até 1963. É compreensível, portanto, que o que
poderia ser um mero jornal corporativo de estudantes universitários negros em França se tornasse numa
publicação incontornável da negritude (LARANJEIRAS, 1995, p.2).

Na tese de Pires Laranjeiras (1995) sobre “Negritudes”, o autor se ocupou das


literaturas africanas, interpretando o conjunto desse ideário como movimento político. Para
ele, o jornal L´Etudiant Noir é obra citada recorrentemente no mundo lusófono mas isso não
significa que da consulta aos artigos se possa dizer o mesmo. Afirma ainda que poucos
investigadores tiveram acesso ao material e “também nesta matéria, se construíram correntes
doutrinais, culturais e estéticas não inteiramente devedoras dos modelos fundacionais, fossem
eles francófonos ou anglófonos” (LARANJEIRAS, 1995, p.1).
Em sua reflexão, está presente o problema da invisibilidade e do afogamento das
referências saídas da Negritude. Consideramos que o pouco interesse pela consulta aos
escritos de autores africanos ou pan-africanos, nesse período, não se constitui uma novidade.
As conclusões de Laranjeiras apenas reforçam a atualidade da defesa pela recuperação de um
pensamento esquecido e, em muitas partes do mundo, pouco explorado. Representados como
intelectuais preocupados com questões periféricas, suas teses estavam localizadas como
recalcadas, pressupostos que não influenciariam a razão helênica.
O que impressiona e, ao mesmo tempo, seduz, nos estudos de Léopold Senghor, Aimé
Césaire e posteriormente de Frantz Fanon é a atualidade de suas proposições. Ao capturarmos
os dilemas coloniais presentes e revigorados, somos levados a aceitar o que conclui
Kabengele Munanga (1988), quando afirma que os desafios impostos pelas mídias, as quais
ditam modelos civilizatórios, convidam-nos a refletir intervindo nos modos de representação

100
dos grupos não-brancos no Brasil. Notadamente, os não-brancos são aqueles grupos para os
quais as formas de assimilação cultural estão voltadas.
Nesse sentido, caberia não desprezarmos o fato de as revoltas políticas, culturais e
artísticas terem influenciado muitas bandeiras levantadas para defender movimentos
populares que se insurgiram em favor de práticas sociais mais justas. Enfrentar o pensamento
de fronteira, o lugar diaspórico significa retornar aos primeiros movimentos insurgentes.
Inevitavelmente, as relações coloniais impõem, aos que desejam compreender as heranças
coloniais como um modelo civilizatório da experiência humana no mundo, a formulação de
outras interpretações, a busca de outras racionalidades.
O sistema colonialista visto como modelador das relações humanas é revigorado a
partir de mutações sofridas a favor de sua perpetuação. Como já defendido aqui, o
pensamento científico está intimamente relacionado com uma política de colonialidade do
saber99, e a universidade é um espaço no qual as lutas pelas posições sociais se estabelecem.
Assim como Léopold Senghor, Aimé Césaire e Frantz Fanon figuram como ícones dos
primeiros movimentos afrocentrados de disseminação intelectual, observamos nas narrativas
dos afrodescendentes que se deslocam para as universidades não ser possível escaparmos do
chamamento de Fanon no sentido de garantir a negociação sugerida por Homi Bhabha (1998).
Ao situarmos a branquidade como a condição das pessoas de “raça” branca orgulhosas
desse pertencimento, é fundamental que, em seguida, assumamos a eficácia das políticas de
branquidade nos espaços acadêmicos. O deslocamento e a luta pelo direito de humanização
dos não-brancos devem ser examinados através de uma perspectiva intercultural afrocentrada
que implica, sobremaneira, a ressignificação do espaço de produção de saberes. Uma das
indagações feitas por Homi Bhabha (1998) merece destaque:

De que modo se formam sujeitos nos entre-lugares, nos excedentes da soma das partes da diferença
(geralmente expressas como raça/classe/gênero etc.)? De que modo chegam a ser formuladas estratégias
de representação ou aquisição de poder no interior de pretensões concorrentes de comunidades em que,
apesar de histórias comuns de privação e discriminação, o intercâmbio de valores, significados e
prioridades pode nem sempre ser colaborativo e dialógico, podendo ser profundamente antagônico,
conflituoso e até incomensurável? (BHABHA, 1998, p.20)

99
Segundo Aníbal Quijano (2003), “todos os avanços em termos políticos e civis pretendidos até aqui, visando a
uma redistribuição do poder e a descolonização das sociedades latino-americanas têm sido arrasados em um
processo de reconcentração do controle do poder no capitalismo mundial e com a gestão dos mesmos
funcionários da colonialidade do poder. Assim, a colonialidade deve ser examinada no âmbito de uma realidade
onde a América admitiu a ideologia eurocêntrica sobre a modernidade como uma verdade universal. Em suas
palavras, até o começo do século XX, caso se tenha em conta que aqueles que se arrogavam de modo exclusivo o
direito de pensar-se e de apresentar-se como representantes dessa América eram, precisamente, os dominadores
coloniais, ou seja, europeus". Assim, a modernidade foi também colonial desde o seu ponto de partida. Sua
análise incorpora uma visão autêntica sobre um padrão de poder mundial capitalista, desmascarando a
ambigüidade que cerca o conceito de modernidade.

101
O espaço para a construção dos saberes afrocentrados é o espaço de negociação de
instâncias contraditórias, o qual produz lugares e objetivos híbridos100 de luta, bem como
destrói as polaridades negativas entre o saber e seus objetos. E, neste caminho, a luta é
sobretudo dos não-brancos de todos os tipos na universidade (um bem público), que passa a
ser devedora de uma outra perspectiva de conhecimento científico.
A Negritude, como movimento de insurgência, exerce simbolicamente uma força
inconteste, principalmente na diáspora africana, já que foi um movimento transnacional,
ganhando centralidade na análise de estudantes de países colonizados. A partir da influência
de outros movimentos culturais e políticos, passou a ser definida como o conjunto de valores
culturais e espirituais da civilização negro-africana. Caberia ainda observarmos outras
definições:
a) o principal instrumento ideológico de libertação dos negros colonizados;
b) um projeto de reabilitação;
c) a essência de ser negro.
A expropriação absoluta é, incontestavelmente, a máquina condutora das práticas
coloniais e define, no dizer de Jean Paul Sartre (1968), os gritos da Negritude. O fato de
falarem francês limitou as práticas de insurgência, já que a dominação, a alienação cultural
definem os modos de expressão; são intelectuais colonizados e que preservam as marcas do
colonialismo na sua produção retórica. Sartre parte da seguinte idéia quando se reveste de
Fanon:

[...] Fanon é o primeiro desde Hegel a esclarecer o parto da História. E não vão pensar que um
temperamento sanguíneo ou que as infelicidades da infância lhe tenham dado não sei que gosto singular
para a violência: ele se faz apenas o intérprete da situação, nada mais que isso. Mas isso é suficiente
para que ele constitua, etapa por etapa, a dialética que a hipocrisia liberal lhes esconde e que, não
obstante, nos produziu tanto quanto ele (SARTRE, 1968, p.143).

A importância dessas questões não é somente para entendermos o que pensava Sartre
sobre Frantz Fanon, mas sobretudo para observarmos o quanto este último despertou em seus

100
Para localizar esta proposição de Homi Bhabha (1995), dependemos de um mergulho em seu quadro teórico
nada sucinto. O momento híbrido é um conceito fundamental em sua análise sobre um lugar transdisciplinar
também definido como um entre-lugar. Promotor das transformações de estruturas que reside na rearticulação
(tradução) de elementos que não são nem o Um e nem o Outro, mas sim algo mais que contesta os termos e
territórios de ambos, este momento facilitará o processo de tradução e transferência de sentido. A indagação de
Bhabha (1995) é elucidativa para este entendimento. Em O local da cultura, a presença do argumento da
negociação faz referência a processos de tradução e transferência de sentido ao mesmo tempo que sua opção por
trabalhar a partir da diferença cultural é o mesmo que promover o processo de enunciação da cultura que
pretende abrir caminho para uma reflexão sobre a cultura na inscrição do hibridismo, negando o exotismo do
multiculturalismo ou da diversidade cultural (SCHAFFER, 1998).

102
interlocutores a reflexão acerca da variedade de práticas de eliminação do homem pelo
homem. O que seu argumento produziu está refletido nas teses sobre os que estão fora do
lugar. Buscamos recuperar nuances da visão de Sartre (1968) sobre o movimento de
descolonização, considerando a implicação de sua retórica como crítico privilegiado de Frantz
Fanon e Albert Memmi. A famosa análise da produção sobre o movimento da Negritude
(Orfeu Negro) deve emergir entre nós, para que possamos ampliar as leituras sobre
referenciais afogados pela ameaça que prometem, provocando controvérsias.
Kabengele Munanga (1988) discorre sobre algo que reconhece na África e no Brasil,
depois de observar que, também aqui, a questão deve ser recolocada pela atualidade das
formas coloniais de dominação:

Se culturalmente a africanidade pode ser defendida, ideologicamente não, pois introduz a idéia de uma
divisão do continente africano baseada na cor da pele. Estamos falando de uma unidade cultural, com
coincidência entre a biologia e a cultura, entre a raça negra e a africanidade. Por isso, alguns críticos
preferem a idéia do pan-africanismo, que além de unir politicamente todo o continente, não cria
distinção racial nem instiga nenhuma cultura particular a defender-se (MUNANGA, 1988, p. 66).

Esse argumento parece indicar o sentido e a atualidade das formas de se ver como
diaspórico. É possível lermos sua reflexão em Negritude, usos e sentidos (1988) como uma
análise substancial do debate mais fecundo sobre o tema quando vai de Senghor a Sartre,
apresentando, com perspicácia e criticidade, aquilo que ainda servirá de referência para
distintos trabalhos sobre as relações hierarquizadas pela situação colonial. Decerto, Munanga
(1988) provocou nosso interesse por uma leitura mais afinada sobre o que Sartre produziu
acerca do colonialismo:

Nos próprios fatos, nas instituições, na natureza das trocas e da produção, o racismo está inscrito; os
estatutos político e social se reforçam mutuamente: já que o indígena é um sub-homem, a Declaração
dos Direitos do Homem não lhe diz respeito; inversamente, já que não tem direitos, ele é abandonado
sem proteção às forças desumanas da natureza, às “leis de bronze” da economia. O racismo já está aí,
levado pela práxis colonialista, engendrado a cada minuto pelo aparelho colonial, mantido por essas
relações de produção que definem duas espécies de indivíduos: para uns, o privilégio e a humanidade
não são senão um; eles se tornam homens pelo livre exercício de seus direitos; para outros a ausência
de direito sanciona sua miséria, sua fome crônica, sua ignorância, enfim sua subumanidade. Julguei
sempre que as idéias se desenham nas coisas e que já estão no homem, quando ele as desperta e as
exprime para explicitar sua situação. O “conservadorismo” do colono, seu “racismo”, as relações
ambíguas com a Metrópole, tudo é, de início, permitido, antes que os ressuscite no “complexo de
Nero” (SARTRE, 1968, p. 43-44).

Ao analisar o estudo Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador


(1967), Sartre (ibidem) conclui que o esforço de Memmi (1967) nos fez aprender que existe

103
uma impiedosa reciprocidade, prendendo o colonizador ao colonizado, e que o sistema
colonial é, de fato, uma forma em movimento, produzindo a sua própria destruição.
Um outro ponto no qual devemos nos deter é o fato de Sartre observar o colonialismo
como sistema opressivo, servindo para promover o patriotismo do colonizado e produzindo
alguma forma de reivindicação de sua condição subumana. A opressão que o coloca ao nível
de um animal será transformada em coragem. Aponta para a seguinte questão:

Quando um povo não tem outro recurso senão escolher seu tipo de morte, quando não recebeu de
seus opressores senão um único presente, o desespero, que lhe resta perder? É sua desgraça que se
transformará em sua coragem; essa eterna rejeição que a colonização lhe impõe, fará dela a
rejeição absoluta da colonização. O segredo do proletariado disse Marx um dia, é que ele traz em si
a destruição da sociedade burguesa. É preciso agradecer a Memmi, por ter-nos lembrado que o
colonizado tem ele também seu segredo, e que assistimos à atroz agonia do colonialismo
(SARTRE, 1968, p.46).

Neste fragmento fica evidente um certo otimismo. Podemos melhorar estas


impressões, afirmando que a época era de otimismo para a luta anticolonial. Os dilemas
vividos ainda no início do século XXI e que refletem as relações coloniais são
desdobramentos de um modo concreto de produzir conhecimento, “uma perspectiva cuja
elaboração sistemática começou na Europa Ocidental antes de meados do século XVII”
(QUIJANO, 2003, p.218).
Albert Memmi (1967) partiu da experiência de ser ele o Outro colonial e exprime, na
sua retórica, uma lucidez admirável, aos olhos de Sartre. Os comentários e análises de sua
obra indicam o quão referenciado tal estudo, inspirado nessa perspectiva, tornou-se.
Recuperarmos esses achados teóricos de Sartre e de Memmi nada mais é do que nossa
tentativa de reconhecer a desestabilização que os estudos sobre a colonização e a
descolonização provocaram.
O fim do colonialismo é, notadamente, o fim de um tipo de colonialismo: aquele
tradicional, da prosperidade e euforia da metrópole. Assumindo novas formas e roupagens,
mantém-se atual e vigoroso como fenômeno histórico, influenciando e intervindo nas relações
de desumanização. São, conforme já afirmamos aqui, mutações e, por isso, seria apropriado
falarmos de “metamorfoses coloniais”, “modos coloniais” de ordenamento social. Essa
hipótese sugere que a descolonização foi em certa medida uma prática discursiva inventada
para conter a insurgência dos colonizados, implicando a oposição vida e morte. As estratégias

104
de controle político, econômico e cultural provocaram lesões101 visivelmente incuráveis na
civilização universal.
Ao considerar que existe um problema para o colonizado, ao identificar-se em
oposição ao colonizador, Memmi (1967) destaca que um dos aspectos é que o primeiro
continua a definir-se em oposição ao segundo. Adverte que o colonizador enfrentará, antes
disso, a questão da colonização quando perceber seu verdadeiro sentido:

É em outro nível que se vai apresentar o verdadeiro problema do colonizador: uma vez que se descobriu
o sentido da civilização e tomou consciência de sua própria situação, da situação do colonizado, e de
suas necessárias relações, irá aceitá-las? Irá aceitar-se ou recusar-se como privilegiado e confirmar a
miséria do colonizado, correlativo inevitável de seus privilégios? Aceitar-se-á como usurpador e
confirmará a opressão e a injustiça em relação ao verdadeiro habitante da colônia, correlativas de sua
excessiva liberdade e do seu prestígio? (MEMMI, 1967, p.32)

Como desdobramento das relações coloniais, o racismo resume e simboliza a relação


fundamental que une colonialista e colonizado (1967, p.68). Como elemento consubstancial
do colonialismo, este fenômeno “é a melhor expressão do fato colonial e um dos traços mais
significativos do colonialista” (MEMMI, 1967, p.71). Sua percepção é de que a imutabilidade
é garantida a partir de uma discriminação essencial ao regime colonial.
Agindo externa ou internamente, o colonialismo renovado perdura refletido nas
formas de segregação racial no interior de uma nação. Deste modo, é possível acreditar na
atualidade dos esquemas teóricos que vinculam as heranças coloniais, a análise da atualidade
das relações coloniais e seus desdobramentos, como é o caso dos debates sobre o direito ao
acesso a bens materiais e culturais no final do século XX.
Um leitor pouco experimentado nos estudos da crítica pós-colonial poderia olhar os
argumentos de Memmi (1967) e supor que a colonização tradicional ficou para trás e que seus
pressupostos tornaram-se obsoletos, criando, no máximo, comportamentos nostálgicos e
recalcados. Ou ao contrário: reconhecer que se trata de uma reação que se traduziu em
formato de retórica provocada pela mesma crise que moveu os pan-africanos da Negritude.
Afinal, não podemos esquecer o lugar do qual fala Albert Memmi. Quando a consciência
entra em crise, a reação é inevitável, provocando um tipo de aprisionamento como aquele
definido por Frantz Fanon. Assim, o racismo anti-racista figura como um modo de defesa e
ainda como desdobramento da tomada de consciência da condição de subalternidade.

101
Desde a opção por uma política educacional que se aproxima do status quo, legitimando os conhecimentos e
os saberes dominantes no currículo, indo até a promoção de um determinado tipo de subjetividade em detrimento
do interesse da maioria, as lesões acima citadas deformam para sempre, tendo como gestores dessas ideologias
os sujeitos formados nas universidades eurodirigidas.

105
2.3.3. Anticolonialismo, espaço acadêmico e entre-lugar
Kabengele Munanga (1988) nos alerta para as formas atuais de se produzir
subjetividades pautadas na idéia do homem branco superpotente. Em seu argumento, o
contexto é diferente, mas os problemas provocados por um modo neocolonial de alienação
devem orientar a revitalização do estatuto da Negritude. A representação do branco
superpotente nos dias atuais é produzida pela mídia televisiva, impressa, entre outros
formatos, tratando-se de modos sutis de fixação dos grupos brancos e não-brancos.
Nossa tentativa, neste momento, está limitada a uma apreensão das possíveis
argumentações sobre o aprisionamento também provocado por um grande colonizador − a
universidade pública. A luta pela democratização do seu espaço se constitui como o elo entre
a história dos jovens estudantes pan-africanos influenciados por um modo europeu de se
produzir conhecimento e por um modo de reagir ao lugar de subjugação cultural e a
descoberta, por parte do “negro intelectual” (MUNANGA, 1988), das condições de
insurgência, na retomada de si mesmo, na aceitação de sua herança sociocultural.
A possibilidade de agência reconhecida nas narrativas subalternas analisadas aqui é
concebida a partir da definição de Homi Bhabha (1998). Em outros termos, são as formas de
enunciação de grupos marcadamente em situação de subalternidade. A agência seria resultado
de um provável estado de subversão de grupos em condição de fixados, de dominados. Ao
trabalharmos com as formas de subversão e com as representações da imagem dos que são
tomados como o outro colonial, devemos incorporar as visões que desencadearam e lideraram
a insurgência de grupos organizados pela crença na reinvenção do seu lugar e,
conseqüentemente, de uma outra forma de fazer ciência, oferecendo caminhos para a
construção de um outro locus.
Ao programar as posições sociais, o ordenamento dos grupos humanos, as formas de
colonização identificam, nessa possibilidade de fixar grupos inteiros, uma eficácia
incomensurável; são estratégias paralisantes capazes de redimensionar os efeitos daquilo que
podemos chamar de processos atuais de desumanização. Em outras palavras, esses processos
podem ser entendidos como aqueles que tiram de um determinado grupo seus instrumentos
vitais de luta por representação.
A colonização não será dissolvida com acordos entre potências européias e com a
autodeterminação das ex-colônias. A filosofia anticolonialista não definiu a independência
dos países expropriados. Do mesmo modo, o ordenamento programado a partir de
mecanismos que convertem pessoas em coisas é capaz de forjar seu pertencimento humano.

106
A descolonização, já em outros termos, pode ser desmascarada no âmbito da esfera
acadêmica e, para isso, tiramos nossas rasuras, atendendo ao chamamento da lógica
fanoniana. Encara-se no interior das universidades um tipo de guerra, uma luta pela
mobilidade de um grupo dentre os subalternizados relacionados com sua presença nos seus
microespaços. Nos nossos termos, as relações coloniais são aquelas que comprometem o
direito ao pertencimento humano tendo em vista o fato de o poder colonialista poder ser
reconhecido nas reservas feitas aos segmentos não-brancos de toda uma diáspora africana.
As relações entre movimentos negros102 e o Estado, as ações de grupos isolados que
permitiram o acesso a uma parcela ínfima de estudantes não-brancos, hoje em busca de seu
direito à representação nos espaços de construção do conhecimento, são tentativas de luta pela
institucionalização de políticas de reconhecimento. Acreditamos, assim como Muniz Sodré
(2000), que democracia política e ascensão econômica em si mesmos nada podem contra a
discriminação racial. Por isso, as ações dos grupos organizados nos movimentos negros
interessam na medida em que apontam um desejo pela legitimação de outras racionalidades103.
Há indicações fortes de que levar indivíduos e instituições a incorporarem o princípio da
diversidade humana como uma anterioridade simbólica para o desenvolvimento jurídico,
político e econômico, que possam intervir na desigualdade entre os homens (SODRÉ, 2000,
p.264), implica os espaços de legitimação do conhecimento como as universidades públicas.
A luta pelo pertencimento acadêmico dos não-brancos, inseridos como investigadores, torna-
se um ponto alto desta tese, tendo-se em vista que vislumbram rejeitar a condição de
coisificados. Objetos são coisas e podem ser negociados, servem como barganha ou, até
mesmo, para serem atirados ao lixo; recebem essa denominação porque fazem alusão aos
diferentes seres inanimados de natureza corpórea ou incorpórea.
A violência simbólica104, um conceito interessante para o debate sobre relações
assimétricas de poder, ajuda na análise sobre aquilo que se observa da ausência de grupos
não-brancos no espaço universitário. Os grupos de pesquisadores afrodescendentes que se
encontram por ocasião de fóruns sociais, os quais envolvem diferentes regiões do país, podem
ser definidos como grupos desde que observemos as condições deste agrupamento. Em um
mesmo programa de pós-graduação é provável encontrarmos um ou dois, diante de uma
média de vinte pesquisadores brancos. Os reflexos do ordenamento colonial que fixa os

102
Para este estudo, também achamos pertinente definir no plural ações dos ativistas de movimentos negros
organizados, por acreditarmos na interculturalidade presente entre aquilo que podemos chamar de segmentos
dentro de um mesmo fórum permanente de discussão/reivindicação.
103
O eurocentrismo é, antes de qualquer outra definição, uma perspectiva de conhecimento cuja elaboração e re-
elaboração estabeleceu mundialmente sua hegemonia, afastando e deslegitimando as outras racionalidades.

107
lugares coloniais, sobretudo no interior das universidades, fazem sentido se entendemos a
universidade na perspectiva de Aníbal Quijano (2003), ou seja, como perspectiva de
conhecimento, a elaboração intelectual do processo de modernidade conhecida como
eurocentrismo se desdobra numa colonialidade das relações de dominação/exploração/conflito
entre brancos e não-brancos.
Ainda podemos fazer o seguinte questionamento: se examinarmos o fenômeno do
agrupamento dos não-brancos à luz da idéia de ser este uma atitude psicológica frustrada de
intelectuais vindos das minorias, não estaríamos limitando os sentidos da Negritude?Ao
aceitarmos as orientações de Munanga (1988) sobre as possibilidades de defendermos tipos de
Negritude, esbarramos nos atalhos deste tema, que é sobretudo analisar os motivos pelos quais
os pan-africanos se agruparam naquele momento. Por que a necessidade de se criar um grupo
de trabalho na Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisadores em Educação
(ANPEd)? Na mesma perspectiva, a criação da Associação Nacional de Pesquisadores
Negros, o congresso organizado por ela (Congresso Nacional de Pesquisadores Negros)
estariam refletindo a necessidade de representação política, num espaço instituído para a
circulação de outras demandas teóricas?
A luta por representação no contexto baiano é particularmente interessante como
exemplo de insurgência dos intelectuais acadêmicos interessados na circulação de suas teses
privilegiando o acontecimento universitário. Tendo em vista as especificidades daquele
contexto, de estar constituído por um percentual de 80% da população não-branca, a
intervenção dos intelectuais militantes que ali atuam mereceria uma fundamentação que por
ora não temos condições de realizar. Por isso, nossa mirada inicial é favorecida por relatos da
experiência baiana sobretudo quando dialogamos sobre a pós-graduação.
Wilson Roberto de Mattos105, um dos responsáveis pela publicização do caso das ações
afirmativas na Universidade do Estado da Bahia (UNEB), destaca o seguinte argumento:
Embora não se deva hierarquizar os efeitos negativos – em grande parte, nefastos – que quaisquer das
desigualdades sociais produzem no interior dos seguimentos populacionais não hegemônicos ou
subalternizados, os efeitos da desigualdade racial, incidindo negativamente, e de modo quase exclusivo,
sobre a população afrodescendente, merecem destaque uma vez que essa desigualdade se reproduz em
qualquer indicador social que possamos isolar para uma avaliação comparativa em termos raciais, seja
um indicador social pontual, contemporâneo, como, por exemplo, a posse de bens duráveis, seja um
indicador social disposto em um espectro histórico-temporal mais extenso como a evolução da
escolarização média do brasileiro ao longo do século XX.

104
Ver Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, A reprodução (1970).
105
Wilson Roberto de Mattos é paulista, historiador e doutor pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
e, por ocasião da entrevista para este estudo de tese, exercia a função de professor da Universidade do Estado da
Bahia (UNEB) e vice-presidente da Associação Nacional de Pesquisadores Negros. Hoje, Mattos é pró-reitor da
UNEB, tendo atuado como docente no departamento de Ciências Humanas e como Coordenador do Programa de
Mestrado em Educação.

108
Em entrevista, Wilson Roberto de Mattos reforçou a idéia presente em sua análise
acima quando afirma que existe um compromisso social que “funciona como um imperativo
moral, um imperativo político”. Este compromisso é refletido na atividade prática – atividade
de pesquisa e atividade profissional. Destaca que, como historiador, a sua preocupação não
tem sido com a escravidão em si, mas com as formas de resistência à escravidão. Destacamos
o seguinte:
o que está acontecendo é que nós estamos pressionando as elites, sobretudo as elites acadêmicas, que
são quem controlam o poder nas universidades, a inverter essa concepção de liberdade e incluir na
concepção de liberdade a construção de cidadania , a inclusão cidadã. Então é isso que a gente está
querendo, isso vai causar uma revolução na história do Brasil, porque as elites estão acostumadas à
expectativa da subordinação, a expectativa das elites é da subordinação, é que nós nos subordinemos o
tempo todo e agora nós nos insurgimos e então por isso que não é à toa, que é, sobretudo no meio
universitário, é do meio universitário que partem as principais reações a qualquer tipo de ação
afirmativa no interior das universidades, sobretudo as cotas. Isso não é à toa, porque as elites não vão ter
mais essa expectativa da subordinação no médio e no longo prazo, porque hoje um menino branco, uma
pessoa branca qualquer, eles se relacionam conosco na expectativa da subordinação, eles não sabem
quem nós somos.

A Universidade de Brasília (UnB) tem no seu corpo docente apenas 1% de


professores afrodescendentes do tipo preto e/ou pardo, conforme os dados levantados por
José Jorge de Carvalho (2001). Por outra parte, são raros os casos dos pesquisadores
“aparentemente” brancos que pesquisam as relações raciais, podendo ser mapeados, inclusive,
pelo número reduzido ao extremo. Conhecidos em todo o Brasil, a grande maioria não faz da
sua abordagem teórica algo que ajude a mudar o quadro das injustiças raciais. Em entrevista,
Valter Silvério destacou:

com o aumento da massa crítica negra nas instituições publicas e privadas ocupando cargos na docência
e na pesquisa, a gente deve avançar para a formação de redes mais consistentes. Elas existem mas ainda
são informais. E a outra coisa é que disputamos o tempo todo; quem vai para esse campo está
disputando uma interpretação do Brasil e é uma interpretação sobre o Brasil. Estamos num campo
absolutamente ideológico no sentido de que estamos discutindo idéias, representações sobre. Ou seja: o
que foi, o que é e o que será este país. Eu não tenho duvidas da importância de nos mantermos nestas
linhas de pesquisa aprofundando-as para recontar algumas histórias que, penso, são mal contadas sobre
o Brasil.

Também a partir dessas evidências, observamos um quadro de ausência-presença


(APPLE, 200l) no que se refere aos temas com os quais trabalharam e trabalham
pesquisadores afrodescendentes. Tendo em vista esta conclusão, pesquisar as relações raciais
tem significado manter interlocução, no que se refere à orientação, fora do espaço dos
programas nos quais esses pesquisadores estiveram inseridos. Em outras palavras, a pesquisa
não esteve circunscrita aos seus respectivos orientadores.

109
Esses aspectos da experiência de pertença no espaço acadêmico não são percebidos
apenas na vida intelectual-acadêmica: professores universitários não são pessoas que
priorizam a orientação de estudos desenvolvidos por mestrandos e/ou doutorandos. E, no bojo
desses dilemas acadêmicos, entendemos a situação dos afrodescendentes como sendo
emblemática. Neste caso, seus professores não orientam porque não dominam a temática que
os orientandos desejam investigar. Quem sabe, esse não seria um primeiro motivo para
legitimar a agenda de reivindicações dos Movimentos Negros sobre a desestabilização da
esfera universitária, como argumentou Valter Silvério. Os pesquisadores que nadam contra a
corrente e que terminam suas teses e dissertações de modo rigoroso (tendo em vista os níveis
de exigência e o apelo à manutenção de uma alta cultura) deveriam ser inseridos para ganhar
visibilidade no sentido de auxiliar a reconfiguração dos espaços de produção do saber
científico?
Tais proposições fazem emergir, com uma força incontestável, a hipótese de a
universidade estar estabelecida, neste início do século XXI, como um espaço colonial, um
grande Centro. Professores, conselhos deliberativos, coordenadores de programas de mestrado
e doutorado, reitores, pesquisadores estariam desfrutando de um lugar definido no passado
para os sujeitos coloniais que detêm o poder, o controle, a normalidade, o modo de
civilização. O Outro colonial seria aquele que entra para legitimar a conformação necessária:
o colonizador não existe sem o colonizado. O quadro de professores afrodescendentes –
apenas 1% – apresentado por Carvalho (2001) bem como o relato dos pesquisadores em foco
estão indicando um ordenamento que passamos a interpretar como mantenedores dos lugares
coloniais: o Outro colonial é, notadamente, o não-branco106.
O ideal de jovens intelectuais preocupados com a afirmação de suas teorias sobre uma
nova inspiração – uma inspiração afrocentrada – serviu de base para a ampliação do conceito
de Negritude. Não se pode ignorar seu empreendimento: enfrentando uma representação
negativa da imagem e das capacidades intelectuais dos considerados como não-humanos,
contestavam radicalmente a situação na qual estavam submetidos. As influências recebidas de
outros grupos que ideologicamente se agregavam pela identificação coletiva fazem com que
este movimento, ainda em curso, seja considerado marcadamente híbrido, intercultural.

106
Convém destacar que sujeitos coloniais são todos os envolvidos nas relações coloniais e são afetados por ela.
Sujeitos não-brancos, por sua vez, são independentes de sua cor, de sua marca de cor, aqueles que não
comungam de um ideal colonizador; afrodescendentes podem ser inclusive aparentemente brancos. Nestes casos
podem escolher sua identidade racial, por assim dizer. Neste estudo estamos interessados em apresentar a
situação como sendo de desvantagem para aqueles que se definem como não brancos e que repartem essa
experiência com os demais. Afrodescendentes pretos e pardos, decerto, estão em pior condição de desigualdade
social.

110
Então, estão apontadas outras possibilidades, para confirmar a supremacia do ideário de
Negritude(s) como movimento identitário numa diáspora em constante atrito.
Conforme nos alertou Frantz Fanon, o racismo é o desejo de aniquilar o Outro e, por
isso, a justificativa para este mergulho que iniciamos seria no sentido de chamar a atenção
para os traços mais fecundos no pensamento revolucionário que os não-brancos precisam
seguir fomentando. Conforme nos indicam os dados iniciais das entrevistas, o enfrentamento
nos departamentos das diferentes disciplinas da graduação, bem como nos bancos
universitários, é visto como um modo de se insurgir diante das resistências aos corpos não-
brancos que circulam no interior da esfera acadêmica.
Mais do que fomentar um tipo de resistência, guerreando contra políticas de
branquidade, intelectuais-militantes-afrodescendentes, participantes do III Congresso
−desigualdades promovidas pelas relações/situações coloniais e tentam propor políticas
públicas para negociar suas agendas, bem como suas teorias científicas. A tese de
doutoramento de Silvio Humberto Passos ajuda a proposição de uma perspectiva intercultural
afrocentrada em curso:

Quando eu falei de “OGUNIZAR”, era também para ir de contraponto a essa idéia de que o
contraponto, na verdade, sempre é utilizado como referência − até nós mesmos −, a mitologia greco-
romana: os minotauros da vida, os filhos de Ariadne; fala-se da cultura negra, mas sempre explicando a
si mesma, sempre como o referencial dela própria. Então por que não utilizá-la? Usar os seus
arquétipos para além dela? Então foi isso que eu fiz. Acho que a figura de Ogum tem esse papel: de ir
abrindo os caminhos para novas discussões. Tem tudo a ver com ele. O que eu coloquei como trabalho
foi isso. E isso se refletiu na própria apresentação, onde eu procurei trazer também figuras negras e os
Orixás. Inclusive o título da tese finalmente ficou “Um retrato fiel da Bahia: sociedade-racismo-
economia, da transição do trabalho livre no recôncavo açucareiro−1871 a 1902”, que eu terminei
discutindo a idéia da falta de braço. Essa que justifica a entrada dos imigrantes. E foi importante que eu
fui desconstruindo isso: se havia, como é que se deu esse processo? Como o processo de imigração se
deu na Bahia, também; as tentativas de imigração, então foi algo localizado no Rio e São Paulo e isso
também foi importante. E, como o trabalho discute também estratégias de sobrevivência dentro dessas
estratégias eu cheguei a uma conclusão sobre o papel que tem a “democracia racial”. Mas pra entender
isso eu fui discutir entendendo a escravidão como expressão do racismo. Porque se é o contrário, por
que quando a escravidão acaba o racismo não vai embora já que ela é a matriz geradora?

Suas preocupações são mais do que teorizar. Intelectual afrodescendente situado na


universidade como professor, Passos quer representação política no sentido de desestabilizar a
situação atual na qual as multidões afrodescendentes se encontram na Bahia, no Brasil e em
toda a diáspora africana. Ao justificar a escolha do tema, acentua seu compromisso com a luta
anti-racista e a “inconformidade com o tratamento dispensado, ou melhor, com o “não lugar”
ocupado nos estudos econômicos pela rica experiência da escravidão e do pós-abolição
vivenciados pelos negros. Passos pretendeu “investigar como os controles sociais e raciais,
progressivamente, construíram barreiras quase intransponíveis ao acesso coletivo desses

111
homens e mulheres ao exercício pleno da cidadania”. No bojo de tais proposições, seria
fundamental observarmos a interlocução que desejou estabelecer com os diferentes agentes
políticos no sentido de promover diálogos interculturais para pensar a questão da injustiça no
campo intelectual. Ogunizar, numa análise fiel ao pressuposto de Passos, pode ser
“enegrecer”, captar uma outra forma de filosofar sobre quem é Ogum, como aparece na
história dos Orixás, observar onde está a sua força. Podemos entender o argumento de seu
trabalho como reflexo de um fazer científico afrocentrado que começa a emergir de uma
perspectiva subalterna. Neste caminho, intelectuais não-brancos convertem-se no Outro
colonial e lutam, sobretudo, pela reinscrição da História.

Conforme apontamos no início desta tese, uma das nossas hipóteses é que os sujeitos
investigados estão privilegiando a universidade como um dos lugares a partir do qual querem
falar, como o espaço para construir o terceiro locus. Até aqui, entende-se que as questões
nefastas problematizadas por Aimé Césaire (1957) sobre o empreendimento colonial estão
refletidas nas relações que tentaremos apreender das narrativas de intelectuais
afrodescendentes – um discurso já não tão deslocado, desta vez, proferido do Centro para o
Centro tentando narrar a Periferia bem como o Centro.
Mais do que qualquer intenção, sustentamos que o legado da intervenção política, de
uma crítica nomeada pós-colonial, nasce como resposta ao não-lugar dos contextos
nomeados como periféricos, vistos como o resto do mundo, gerando uma análise construída
da experiência dos tantos Outros que o colonialismo produziu.

112
III. UMA INTERPRETAÇÃO SUBALTERNA SOBRE O PROJETO COLONIAL NA
UNIVERSIDADE

Intelectuais de toda cor no Brasil devem parte significativa de suas visões de mundo e
das relações entre os grupos humanos aos escritos nascidos das teorias que inauguraram o
pensamento social brasileiro. Seja nas universidades católicas, na Universidade de São Paulo,
Universidade de Brasília, Universidade Federal do Rio de Janeiro ou em qualquer outra
universidade pública do Nordeste, do Centro-Oeste ou do Norte, as teorias sociais foram
ensinadas como um caminho para se compreender e “transformar” a sociedade.
Entre os anos de 1930 e 1960, o pensamento social brasileiro se consolidou com base
numa tradição européia, claramente de herança positivista. Nesse sentido, é importante observar
as especificidades deste campo do conhecimento como sendo o ponto de partida para as grandes
transformações das relações entre grupos sociais. No âmbito restrito, Anísio Teixeira, Paulo
Freire, Durmeval Trigueiro, Florestan Fernandes, Demerval Saviani (entre outros) aparecem
como exemplos de grandes nomes do pensamento educacional que, entre as décadas de 1950 e
1980, figuraram como intelectuais que conseguiram estabelecer ligação entre a reflexão e as
lutas pela construção da democracia no Brasil (FÁVERO & SEMERARO, 2002). Assim, a
noção de democracia se encontra com o projeto educacional em direção ao caminho que nos
orientaria para um projeto de país efetivamente promotor da diminuição da desigualdade de
classes.
Como um dos temas candentes da batalha das idéias, é possível observar a
minimização do sentido de “democracia” quando examinamos um outro encontro, desta vez com
a racialidade. É instigante, para esse debate, a confusão promovida por práticas discursivas
promotoras de um simbolismo favorável ao senso comum quando da sua apropriação do termo
“democracia”. Como algo virtuoso107, a defesa de uma sociedade democrática aparece em bocas
que emitem discursos consagrando o estado de direito por entenderem a força deste capital – o
discurso favorável. Expressar-se a favor seria, portanto, uma atitude inteligente já que “falar”,
“emitir mensagens de apoio”, “defender discursivamente” não significa instituir tais desejos
manifestos. Assim, o campo da teorização tem se confundido com o campo da proposição e luta
pelo reordenamento das posições sociais e conseqüentemente raciais.

107
Sobre o imaginário coletivo, não se pode considerar que haja discordância sobre como é vista a questão do
atraso que representa as manifestações discursivas que refletem o racismo do branco para com o negro. Neste
sentido, fala-se em absurdos, situações inaceitáveis que vitimam jogadores de futebol agredidos por
chamamentos racistas, consumidores em shoppings abordados como suspeitos, abusos de poder que apelam para
a “ofensa racial”, entre outros exemplos.

113
“Democracia versus Racialidade” tende a ser definida como uma problemática recém-
nascida108 já que, na produção dos intelectuais de esquerda, de formação humanista e defensores
do estado democrático de direito, pouco se produziu fora de uma visão folclorizada do
pertencimento humano de um grupo específico de não-brancos, refletida nas Ciências Sociais a
partir da “Questão do negro”109. Essa é uma das vertentes que ordenaram a agenda de trabalho da
Antropologia brasileira juntamente com a “Etnologia indígena” (SCHWARCZ, 1999).
Entendemos essa tradição como sendo algo que reflete a coisificação tanto do indígena quanto
dos afrodescendentes, dois grupos não-brancos existentes no Brasil.
Consultando os trabalhos que orientam sobre o que se deve ler em Ciências Sociais
(MICELI, 1999), entendemos, em certa medida, quais foram os rumos dados ao debate que
incluiu a racialidade110 nas três últimas décadas. A partir de estudos sociológicos, Carlos
Hasenbalg (1979) e Nelson do Valle e Silva (1980), por exemplo, participaram sobremaneira do
desmonte da imagem de uma discriminação suave já que seus esforços incluíam a análise das
desigualdades e do componente racial inegável para quem desejava compreender os fenômenos
sociais.
Da sociologia da educação, não poderíamos deixar de apreender idiossincrasias dos
estudos sobre a educação e as relações raciais (MIRANDA, PIERRO e AGUIAR, 2004). Dentre

108
Para definir o pressuposto ao qual nos referimos aqui, partimos, sobretudo, do trabalho de Lilia Schwarcz
intitulado Questão racial e etnicidade, uma parte da obra O que ler na Ciência Social brasileira: 1970-1995,
organizada por Sergio Miceli e publicada em 1999. Há indicações sobre a ênfase dada aos estudos localizados
neste eixo. No estudo de Schwarcz, que recupera a produção registrada nos catálogos da ANPOCS, a autora
destaca a presença regular da temática, alternando seus enfoques e títulos, a saber: “Temas e problemas da
população negra no Brasil” (1985, 1986, 1987, 1988, 1989); “Futuro da população brasileira: cor e identificação”
(1990); “Relações raciais no Brasil contemporâneo” ( 1990, 1991); Raça e mestiçagem no pensamento social
brasileiro” (1993); “Relações raciais e etnicidade” (1994, 1995); “Arte e estética do negro brasileiro” (1996);
“Discriminação e discriminações: debatendo a ação afirmativa” (1996); “Cor, etnicidade e ascensão social”
(1997).
109
É possível supor que a manutenção das péssimas condições dos grupos afrodescendentes vem alimentando o
campo que investe nos estudos sobre “A questão do negro” através dos quais, ao que tudo indica, os cientistas
sociais querem fazer crer que ainda é algo “lá fora” a ser descoberto. Situados como objetos de investigação, os
afrodescendentes estão fora de qualquer processo de humanização. Como coisas, não devem ser inseridos no
debate, apenas estudados, observados como se faz em laboratórios, a partir de microscópios. Essa seria uma
experiência total dos estudos antropológicos, sobretudo no que se refere às manifestações de humanização vistas
como equivocadas. A emergência desse outro estágio da tematização das relações raciais pode ser um desses
exemplos. Sobre a Etnologia indígena as representações não são muito distintas.
110
A introdução sistematizada por Lilia Schwarcz (1999, p.268) no trabalho Questão racial e etnicidade afirma
que “desde os primeiros ´estudos de negros´, ainda em finais do XIX, entender a ´questão racial´ significou
enfrentar o tema da identidade; pensar nas particularidades locais”. Citando desde a obra Bibliografia sobre o
negro brasileiro faz um estado da arte da produção sobre a temática, afirmando inicialmente que neste primeiro
levantamento de Solange Martins Couceiro (1974) foram computados 857 livros; já o trabalho de Barcelos,
Cunha e Araújo (1991), intitulado Escravidão e relações raciais no Brasil: cadastro da produção intelectual
(1970-1990), indicou haver uma produção considerável nos estudos de teses e dissertações. Acrescentou que
dentre os trabalhos cerca de 10,9% foram sobre RELAÇÕES RACIAIS E DESIGUALDADES enquanto que
“escravidão e abolição” somariam 47%, o maior percentual. Apreendemos, destes dados, a ausência de estudos
sobre a perspectiva democratizadora e de emancipação dos grupos afrodescendentes. Os estudos sobre o
“passado” escravocrata parecem figurar como o mais sedutor para aquele período investigado.

114
os últimos, são incipientes os trabalhos sobre as desigualdades raciais no ensino superior,
demonstrando que o lugar dado a esse tema situa-se entre aqueles com status de fenômeno
social. Miranda (2004) afirma o seguinte:

Cruzando os descritores desigualdades raciais e ensino superior, encontramos estudos que privilegiam a
ausência de políticas específicas para a inclusão dos afrodescendentes no ensino superior e os dados que
comprovam a necessidade de ações voltadas para a busca de um equilíbrio educacional entre os grupos
étnicos do Brasil (MIRANDA, 2004, p.29).

Perseguindo os argumentos sobre as linhas de ação dos intelectuais acadêmicos


afrodescendentes, e considerando sua agência como parte de um outro estágio da tematização111
das relações raciais, é que passa a ser fundamental darmos ênfase aos desdobramentos do papel
intelectual112 de alguns pensadores preocupados com a educação, privilegiando a Questão
Universitária.
Entendendo a universidade como um corpus, um espaço configurado a partir de um
Estado democrático de direito, é de se estranhar, com base nesse pressuposto, a incapacidade,
por assim dizer, dos seus gestores de promover sua democratização113. Conforme o relato de
Wilson Roberto de Mattos114 (hoje pró-reitor da Universidade do Estado da Bahia), sobre sua
experiência de estudante de graduação em História, por ocasião de nossa entrevista,

[...] teve alguns problemas de relacionamento porque o número de estudantes negros na PUC era
pequeno, sempre foi assim, um número considerável em relação a outras instituições lá em São Paulo,
mas ainda era pequeno. Então eu tinha alguma dificuldade de integração àquele mundo acadêmico.

111
Convém ressaltar que na análise deste outro estágio, a agência afrodescendente ultrapassa a luta retórica, indo
além de estudos científicos, passando a ser proponente de políticas de inclusão, com destaque para a
institucionalização de ações que visem desestabilizar os espaços de formação universitária. Em outros termos, já
podemos iniciar a ampla definição de ativismo acadêmico afrocentrado. Não opinando sobre a discriminação
racial, a universidade conta a história a partir de uma visão particular e, por isso, privilegiando um olhar sobre os
tantos outros produzidos neste discurso universalizado. Qual seria então o papel do ativismo acadêmico
afrocentrado? Buscar desestabilizar a tradição científica enfrentando o fato de ser o racismo acadêmico seu
maior obstáculo. Importa, daqui para a frente, entendermos as estratégias de intelectuais acadêmicos
afrodescendentes para construir o terceiro locus, o espaço de negociação para uma convivência entre os sujeitos
coloniais.
112
Ver Edward Said (2005).
113
Já se sabe que sobre o sentido deste fenômeno – democracia – muitos teóricos criticam o uso indiscriminado
do termo. Caberia, por isso, observarmos a partir das entrelinhas dos metatextos de referência sobre o tema, em
que medida o pensamento social brasileiros tem apresentado tal noção.
114
Wilson Roberto de Mattos é mestre e doutor em História pela PUC - São Paulo, vice-presidente da
Associação Nacional de Pesquisadores Negros, professor de História na Universidade do Estado da Bahia e
professor do Mestrado em Educação, tendo sido chefe de departamento. Estudante de graduação na mesma
universidade, formou-se em História interrompendo o curso por duas vezes pelas dificuldades de trabalho e de
financiamento do curso. Segundo seu relato, as dificuldades foram não apenas de ordem financeira; trabalhando
em banco dividia o tempo com dificuldade; beneficiou-se por um esquema de bolsas restituíveis da PUC-São
Paulo que cobriam 80% dos custos com a mensalidade; segundo Mattos, pagar os outros 20% tornava-se
também impossível para sua realidade.Os gastos com xerox dos textos indicados na bibliografia, translado,
alimentação, livros, entre outros itens.

115
Porque eu vinha de um bairro popular, de manifestações bastante populares, era de escola de samba,
essas coisas todas. E de repente o mundo universitário tem uma outra lógica de funcionamento, uma
outra lógica relacional. São outros códigos e aí para aprender tais códigos você não aprende de uma vez,
você tem que ir devagarzinho e tentando decodificar esses códigos e você passa a se adaptar a eles, mas
na verdade essa adaptação nunca é uma adaptação integral, mas sim parcial, meio estratégica, muito
mais no sentido de facilitar a sua vida ali do que uma integração mesmo, uma digamos, aculturação. Eu
acho que no meu caso foi deliberado, eu não tinha nenhuma intenção de me aculturar mas acabei
identificando esses códigos para poder viver tranqüilamente nesse espaço da academia.

A universidade católica, no Brasil, tem promovido, faz alguns anos, iniciativas de


apoio aos universitários pobres, acolhendo representantes de movimentos sociais e jovens
oriundos das comunidades de base. Como espaço de prestígio, figurando ao lado das
universidades públicas, mantém seus rituais e, conforme acentua Wilson Roberto de Mattos,
seus códigos internos, não fugindo ao modelo de cultura universitária. A absorção de estudantes
das camadas populares parece não significar garantir seu acolhimento. Conforme Mattos, “os
códigos da academia são outros, a linguagem acadêmica é outra, a forma de promoção das
relações interpessoais e relações institucionais é outra, e se não aprendemos esses códigos nos
damos mal, evadimos”. Essa disjunção faz emergir uma hipótese cara para todos os promotores
do acesso ao conhecimento universitário, porque coloca em pauta o sistema ideológico dos seus
gestores. Ao aceitarmos este dado, o passo seguinte seria indagarmos sobre o sentido da
gramática social que perpassa pelas relações “intra-universitárias”.
Um aspecto interessante, e que está presente no discurso de Willy Thayer115 (2002),
refere-se ao lugar de onde se fala (a universidade é o Centro). Para ele, falar não
universitariamente da universidade é quase impossível. Seria preciso “adquirir autonomia
discursiva” a esse respeito. O caminho está cheio de percalços porque a universidade tende a não
aceitar ou respeitar outros códigos que não sejam os seus. A interpretação que podemos iniciar
sobre este aspecto serve para confirmar nossas hipóteses de que a perspectiva dos não-brancos
(subalterna) representa um Conhecimento Periférico e, por isso, não legitimado socialmente.
Florentina Souza, professora da Universidade Federal da Bahia, congressista no III
COPENE, foi uma de nossas respondentes. Quando indagada sobre qual seria a centralidade do
espaço universitário público no processo de luta e de encaminhamento das proposições saídas
dos fóruns dos quais vem participando, ao lado de outros intelectuais ativistas no campo
universitário, apontou:

115
Willy Thayer é diretor da escola de filosofia da universidade de ARCIS e professor de filosofia da
universidade Metropolitana de Ciências e Educação, ambas em Santiago do Chile. Em sua obra “A crise não
moderna da universidade moderna”, Thayer (2002) afirma que, juntamente com outros aparelhos ideológicos do
Estado, a universidade perdeu sua capacidade crítica e está alienada na “heteronomia global do processo do
capital’ (p.9). Para ele, a universidade é alienada na luta de classes e a luta de classes é o capital.

116
Toda discussão quanto ao acesso, permanência, criação de bolsas, projetos, quer dizer: tudo isso é uma
forma de alguns setores da universidade pública entenderem que o objetivo da universidade é se voltar
para a sociedade e se voltar numa relação dual. Se voltar enquanto alguém que reflete sobre a sociedade,
mas também, enquanto alguém que tem no seu conjunto os componentes dessa sociedade. Então essas
políticas que algumas universidades começam a estabelecer hoje são políticas que no meu entendimento
vão obrigar a universidade a discutir com os pesquisadores negros que universidade nós queremos, a
pensar que os pesquisadores negros precisam ter espaço, podendo testar novas metodologias, testar
objetos diferentes daqueles que costumeiramente aparecem nos cursos de pós-graduação, testar algumas
outras conquistas teóricas que nós já temos e que em geral são deixadas de lado porque se prefere uma
bibliografia americana, uma bibliografia inglesa, uma bibliografia européia. Vai ser uma oportunidade
também de favorecer a ampliação do número de bolsas, porque como orientadora eu vejo às vezes as
dificuldades dos meus alunos de fazerem um curso de pós-graduação melhor.

Como parte da universidade e ensaiando sua crítica sobre a codificação interna, a


pesquisadora da Universidade Federal da Bahia defende a criação de alternativas que permitam
que os alunos das escolas públicas (que no caso baiano são na sua maioria alunos
afrodescendentes), tenham oportunidade de chegar ao curso de graduação. No seu discurso, há
indicações de que o ativismo acadêmico é, sobretudo, o compromisso com o sucesso dos
graduandos não-brancos bem como com a luta pela instituição das políticas para sua
permanência.
Essa narrativa é representativa e por isso coletiva; pode ser situada como que
engrossando a perspectiva afrodescendente de interculturalidade, sobretudo pelo fato de
considerar a garantia da qualidade da universidade como sendo um critério para a sua
legitimação. A defesa por uma universidade organizada nas bases de um sistema heterogêneo
será possível entre aqueles intelectuais que conseguem enfrentar a diversidade e,
necessariamente, esta postura estará refletida no contradiscurso comprometido com as
diferentes agendas dos movimentos sociais. Tudo isso pressupõe admitirmos nossos desafios no
que se refere ao enfrentamento do problema da injustiça colonial no ensino superior.
Não são raros os argumentos sobre os ganhos de uma perspectiva intercultural no
espaço de construção de saberes científicos. Segundo José Jorge de Carvalho (2005), é preciso
realizar conjuntamente “uma revisão radical dos modelos de interpretação da convivência étnica
e racial no Brasil baseada na observação direta e na acumulação de dados sobre a condição
excludente das nossas universidades e da dinâmica da discriminação vigente em praticamente
todas elas” (CARVALHO, 2005, p.10).
Em outro lugar, Carvalho (2001) alertou para a força e os desdobramentos do racismo
acadêmico, inaugurando uma categoria analítica radical e definitiva para quem quer
compreender e transformar os “códigos internos” (Wilson Roberto de Mattos) da universidade.

117
Situando a realidade racista brasileira num quadro comparativo onde incluiu a experiência sul-
africana e estadunidense, Carvalho afirmou:

Na África do Sul, qualquer campus universitário é mais multirracial do que a UnB, do que a UFG, do
que a Unicamp, do que a USP. Imediatamente após o apartheid, os campi se tornaram multirraciais. Isso
é fácil de vocês constatarem, é só entrar em qualquer site das universidades sul-africanas, acessar
determinado departamento, e verão nomes de origem holandesa e inglesa, nomes de origem africana e
indiana (CARVALHO, 2001, p.18).

Carvalho (ibidem) situa a postura de tais centros de excelência, lembrando que a


perspectiva multirracial é uma questão de moral e de prestígio, ou seja: nesses projetos de
universidade, ser diverso, incluindo as chamadas minorias étnicas, é ter garantido o status de
legítimo.
Conforme já apontamos, a referência indispensável para a proposição de ações –
sobretudo de políticas públicas para a educação nos seus diferentes níveis – tem sido, de modo
incontestável, o pensamento progressista e de esquerda. Entretanto, a questão das relações
raciais – um ponto incômodo e caro no debate sobre as desigualdades sociais – tem sido afastada
do mesmo modo que ocorre com a produção afrocentrada emergente, nas últimas décadas.
Como um debate de impacto que inclui a racialidade, a brancura e a visão do Brasil como uma
sociedade polarizada nas áreas de poder, as análises e dados acima recuperados implicam as
posturas dos cientistas sociais de renome, desta vez aparecendo como discursos que mentem116 e
que ajudaram o Brasil a construir “uma auto-representação falsa acerca das nossas relações
raciais” (CARVALHO, 2001, p.22).

3.1.Vozes dissonantes e discursos sobre os insurgentes


Notadamente, os eurodescendentes no Brasil não podem e não devem ser vistos como
um grupo coeso porque do seu interior caberia observarmos vozes dissonantes pela não-
identificação com as benesses de um sistema promotor de relações coloniais. Nossa questão
inicial seria avaliar em que medida os interessados na democratização dos espaços de produção
do conhecimento legitimado socialmente foram orientados por um pensamento fronteiriço, que,
independente de ser de esquerda ou de direita, desejaram dar visibilidade ao fenômeno da
desigualdade racial.

116
Fazendo referência ao grupo de intelectuais brasileiros, concentrado nas Ciências Humanas, o professor José
Jorge de Carvalho (UnB) , um ativista no processo de instituição das cotas na UnB, denuncia um tipo de cinismo no
modo de produção da imagem do Brasil no exterior. Segundo sua tese, existe uma narrativa sobre o Brasil que é
particular, produzida por uma elite branca que é, acima de tudo, mentirosa (2001).

118
Destacamos aqui aspectos da intervenção de alguns educadores, filósofos e sociólogos
atuantes no mesmo campo, a partir de produção divulgada nos fóruns e demais espaços de
replicação para a opinião pública, com significativa influência nos estudos de muitos intelectuais
afrodescendentes, inclusive, no momento da primeira graduação. De acordo com Alfredo
Mendes Catani (1998, p.134), Florestan Fernandes, no artigo Os dilemas da reforma
universitária consentida (1989), defendeu a criação de uma universidade que pudesse operar
objetivando realizar uma revolução democrática. Desse propósito destaca que quase nada ficou:
“À reforma universitária crítica e democrática sucedeu-se a anti-reforma, obscurantista,
derrotista, repressiva e fascista em muitos de seus aspectos” (CATANI, 1998, p.135). Sobre a
crise117 da universidade agravada pela sua natureza autocrática o próprio Florestan apontou:

A universidade adere à internacionalização, deslocando para o plano ideal e abstrato a confrontação


crítica com a sociedade, perdendo densidade e substância, como se a história a partir de dentro fosse
extemporânea e marginal. Ocorreram enormes saltos quantitativos e qualitativos, porém sem
amadurecimento da consciência militante de que o Brasil não é um comensal passivo da civilização
consumida aqui dentro. A revolução cultural deixa de ser o alvo histórico e a ambição de inventar o
saber original, de resolver o sistema universal da ciência, da arte, da filosofia,da educação e da
tecnologia se perde pelos meandros de um colonialismo camuflado, que circula na direita, no centro e
na esquerda. Daí resulta uma consciência pesada, pois um país pobre só pode extrair da miséria o
financiamento de uma universidade anêmica e paralítica (FERNANDES, 1989, p.84).

Apelando para o humanismo socialista, como se pode observar, Florestan Fernandes


denuncia a desnacionalização do pensamento crítico e a sua independência. Entre tantas
bandeiras, combatia a idéia de neutralidade do cientista afirmando que “há que expandir
alternativas de produção cultural que não nasçam somente da imitação, da importação de
pacotes universitários, do prestígio do padrão internacional dos professores” (FERNANDES,
1989, p.85). Agregado a isso, está a sua convicção na necessidade de questionar o estatuto da
Ciência Social do folclore atacando contundentemente a própria Antropologia (SCHWARCZ,
1999, p.284).
Conforme se vê, sua defesa pela educação pôs em destaque um posicionamento
favorável ao processo de democratização na formação universitária. Considerou, portanto, a
missão pública da universidade118 e, indo além desse propósito, seu perfil de intelectual refletia o
compromisso com uma teoria nascida da realidade brasileira. Notadamente, seu perfil é o de um
intelectual engajado do tipo que se envolve com os problemas de seu tempo, tocando inclusive a
racialidade. Conforme Schwarcz (1999, p.272), Florestan Fernandes (1949, 1952) esteve
empenhado em desmontar o discurso do mito da “democracia racial” destacando:

117
Para Florestan Fernandes, a crise da universidade estava relacionada com a ausência de recursos materiais e
humanos (1989).
118
Ver também o texto A questão da USP, de Florestan Fernandes (1965).

119
[...] dois autores marcaram sobremaneira os rumos dessa discussão. De um lado, Gilberto Freyre, ao
formalizar, ainda nos anos 30, uma certa concepção culturalista; uma determinada releitura positiva do
mito das três raças formadoras da nação. De outro, Florestan Fernandes que, em finais de 1950, tendo
por base uma perspectiva sociológica, refletiu sobre as falácias do mito. (SCHWARCZ, 1999, p.274-
275).

Conforme a autora, Florestan Fernandes (1965) é responsável pela retomada da forma


mais evidente dos impasses da situação racial do Brasil. Influenciado pelo materialismo
histórico e as então novas vertentes sociológicas, Florestan Fernandes (1965, p.282) estabeleceu
“relações entre o processo de formação de uma sociedade de classes e a manutenção de
mecanismos de discriminação ainda vigentes no país”.
Há que se destacar a centralidade desse intelectual nos primeiros debates sobre a
educação e os afrodescendentes. A partir de uma inserção na esfera acadêmica, Florestan
Fernandes foi um intelectual enquanto figura pública, alguém que visivelmente representou um
certo ponto de vista, articulando representações a um público, mesmo diante dos obstáculos
impostos por essa forma de intervir nos problemas de uma sociedade. Tocar no problema da
injustiça racial não é o mesmo que enfrentá-lo. Suas contribuições pouco influenciaram na
implementação de políticas educacionais no sentido de influenciar ações efetivas que
contemplassem uma revisão nas políticas públicas universalistas. Como uma voz dissonante,
esse teórico faz de sua produção intelectual uma arena política no sentido de rever a produção do
conhecimento com vistas a fortalecer um pensamento social brasileiro.
Analisado como um produto de relações coloniais, o sistema de ensino superior
brasileiro tem como significativo o fato de ter sido desenvolvido a partir de um processo tardio,
quando comparado ao contexto latino-americano, e também por apresentar uma outra
especificidade que orienta nossas impressões do estudo: quando da sua tão festejada expansão,
não reviu, no debate e muito menos na execução desse processo, as desigualdades no ensino
superior. Quem sabe, talvez por uma prática política cínica ou mesmo por uma identidade
intelectual fracassada119?
A hipótese de enxergarmos uma conformação colonial na universidade pública, uma
organização de controle da distribuição dos lugares sociais ou de divisão de classes, emerge
justamente por entendermos seu projeto como um projeto de um grupo para ele mesmo;
atenderia a um grupo já estabelecido e orientado por uma política de manutenção desse aspecto

119
Refletindo sobre a figura do intelectual em diferentes contextos, Edward Said (2005) lhe confere uma tarefa,
mostrando que sua carreira depende de uma vocação para representar. Temendo pela sua performance, Said
argumenta que há o perigo de que sua figura desapareça em função das especificidades em detrimento de uma
representação fundamental para o avanço de um grupo social.

120
identitário. Daí a colonialidade do poder funcionando a partir do aniquilamento do Outro
Colonial do espaço acadêmico: sua ausência é uma presença para a interpretação dessas relações
coloniais.
Como reflexo das mutações do colonialismo, seria um projeto de perpetuação de
arranjos coloniais adotados para organizar a distribuição de diplomas dentro do modelo das
relações assimétricas de poder. Caberia, portanto, vê-lo como um modelo de transmutação da
ordem colonial robusta, que localiza na universidade e nas suas formas de operar um caminho
para conservar o modelo de fixação dos grupos humanos.
Florestan Fernandes estaria certo quando problematizou o conformismo universitário e
as estratégias de guardar os seus bens culturais. Ao aceitarmos essa hipótese, estamos nos
referindo a uma universidade de natureza autocrática e conservadora da ordem. Nesse sentido, o
que Florestan Fernandes considerou sobre o projeto de instâncias públicas ajuda a situar a
presença/ausente (APPLE, 2001) da racialidade, visando compreender os pressupostos que
balizam o contradiscurso dos sujeitos afrodescendentes que tentarem nela se manter.
Intelectuais situados como estabelecidos no campo e diretamente ligados aos meios de
legitimação do saber acadêmico acreditam que a sociedade é responsável pela seleção natural
feita na universidade pública e que esse fenômeno penaliza os mais empobrecidos oriundos do
setor público de ensino básico (BOSI, 2000).
Há indicações de que, para alguns deles, a falta de qualidade da escola pública é o
motivo para a ausência de sucesso dos estratos empobrecidos (BOSI, 2000; CHAUÍ, 2003;
CUNHA, 1983) quando da tentativa de ingresso na formação universitária. Sobre isso, convém
destacarmos as controvérsias em torno do pressuposto, as quais têm provocado intenso debate.
Combatido com freqüência nos fóruns realizados sobre a utopia120 da ação afirmativa no Brasil,
o apelo que marca o discurso daqueles que são contra cotas raciais está fundamentado na idéia
de que temos que aguardar a melhora da qualidade do ensino básico oferecido aos pobres.
Por tudo isso, esse é um dos temas favoritos de parte da grande mídia interessada em
opor-se aos projetos de democratização do ensino superior público. A partir de uma narrativa
grotesca presente nos Cadernos de Opinião, com base em textos que visam criticar os
argumentos sobre a necessidade do ensino de História da África, por exemplo, percebe-se uma

120
Aqui, o sentido dado à “utopia” é de uma mola que anima nossas crenças, nossas condutas a partir de um
ativismo e de uma inserção social orientada para a prática da representação política.

121
noção particular sobre o significado de se instituir, no Brasil, medidas para minimizar a injustiça
curricular121.
Além do evidente imobilismo dos discursos sobre as causas e os efeitos das heranças
subalternizantes, podemos supor que não discutir a racialidade é, no campo intelectual, um
modo de não enfrentar um dos maiores desafios para o pensamento social brasileiro. Lidar com
a diferença, com a cor da pobreza, com o fosso existente entre eurodescendentes e os diversos
Outros, converte-se em subversão (SANTOS, 1987). Em outras palavras, em um país com um
número elevado de não-brancos, a discussão e a formulação de políticas de inserção social para
contemplar os diferentes não são um traço do qual a esquerda progressista pode se orgulhar
muito menos reivindicar futuramente. Mesmo sob sua influência, os pensadores não-brancos do
Brasil se ocuparam com uma constante releitura dos pressupostos saídos do pensamento social
sobre os fenômenos sociais. A chamada “encruzilhada” (SCHWARCZ, 1999) deixada pelas
duas principais interpretações sobre as relações raciais no Brasil – Gilberto Freyre e Florestan
Fernandes – serviu para instigar o crescimento dos estudos122, ainda que tutelados, sobre as
desigualdades raciais.

3.1.1. Para “quem” a universidade cresceu?


No dizer de Haroldo Abreu (1993), ao discutir o sentido das políticas públicas, o
Estado tende a ser considerado como um bem público, mesmo quando uma de suas maiores
características é ser aparelhado por uma única vontade política. Em sua análise, o Estado
aparece como responsável pelas articulações que deixaram de fora os não-proprietários, os não-
escolarizados, os não-brancos e ainda aqueles que não se enquadram no perfil dos detentores do
poder. Ao desenvolver tal idéia argumenta:

[...] a afirmação de uma esfera pública efetivamente pública exige uma mediação pactuada entre os
múltiplos interesses, opiniões e vontades articulados na sociedade civil. Interpretado deste modo, o

121
Para o caso brasileiro, pensar a injustiça curricular implica o reconhecimento da implementação da Lei n° 10639
como sendo uma ação afirmativa que contemplará uma leitura (tardia) das culturas silenciadas no projeto educativo
de nossa sociedade. Ainda que tenhamos um percentual de 45% de afrodescendentes, as culturas, a História do
continente africano, para ser contada, precisam ser facilitadas por uma imposição legal.
122
Sobre as práticas de negociação no que se refere aos temas escolhidos para desenvolver as pesquisas no nível do
mestrado e/ou doutorado, calculamos que a grande maioria de nossos respondentes passou e passa boa parte deste
estágio da pesquisa sem diálogo com os respectivos orientadores. Não seria demais afirmarmos que os
afrodescendentes com os quais estamos dialogando não recebem orientação nos estudos que desenvolvem e, quando
contemplados, pouco podem receber numa situação de “relações mistas”. Conforme relata Valter Silvério, professor
do departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos, quem quisesse ler sobre a temática
racial, em sua época de graduação, deveria buscar sua literatura, visto que no espaço da formação no nível da
graduação o tema não aparecia. Em seu dizer “na pós-graduação isso era mais complicado ainda. Eu entrei num
programa de pós-graduação em que... eu fui avisado que não tinha quem me orientasse em função do tema”
(Entrevista).

122
espaço público transcende o Estado, incorporando a sociedade civil, publicizando os espaços ditos
“privados” e politizando as relações sociais em suas diversas dimensões. Neste sentido, a ampliação da
esfera pública confunde-se com a democratização da sociedade (ABREU, 1993, p.7).

Em sua crítica aos modos de interpretação do papel do Estado, Abreu (1993) adverte
que a esfera pública, longe de ser apenas espaço de conflitos e pactos sociais, deve se configurar
como esfera plural, deixando que se choquem as estratégias, os valores nos quais estamos
mergulhados desde o passado. Para o autor, ”é neste sentido, que as políticas públicas e a
participação cidadã são objetos de disputas hegemônicas” (ABREU, 1983, p.7). Recuperamos
essas leituras, porque a teoria sobre as relações estreitas entre participação política e
legitimidade de processos democráticos prolonga nossas impressões de estudo.
Notadamente, esse é um discurso que resgata a luta de classes123, a problemática em
torno de quem ganha com a ocupação das instâncias governamentais e sobretudo sobre a esfera
pública. Do mesmo modo o é sua afirmação, quando ressalta os modos de transmutação das
chamadas tradições que, pelo apreendido, não passam de aspectos da herança elitista que
conseguiram se manter sólidas: um passado que se adequou ao presente.
A partir de uma orientação alemã e francesa, a cultura letrada e hegemônica dos
modelos ocidentais deu o tom para a constituição do ensino superior brasileiro. No início do
século XX a expansão desse segmento é acompanhada pela necessidade de formação
profissional em consonância com a industrialização em larga escala. A formação de
profissionais implicou a convocação de um quadro de pesquisadores estrangeiros, que
inauguraram o pensamento científico no que se refere ao desenvolvimento da pesquisa no Brasil.
Alfredo Bosi (2000) chama a atenção para o início dessa mudança:

Para quem conhece o que significou, em relação ao ensino superior e médio das disciplinas básicas, a
instituição das faculdades de filosofia a partir dos anos 30 e 40, salta aos olhos o papel insubstituível
que exerceram pesquisadores-docentes europeus, do porte de Roger Bastide, para o ensino básico de
sociologia; de Lévi-Strauss, para o ensino de antropologia; de Braudel, para o de história; de Monbeig,
para o de geografia; de Dreyfus, para a biologia; de Fantappiè e Albanese, para a matemática; de
Rheinboldt, para a química; de Rawitscher, para a botânica; de Ernst Marcus, para a zoologia; de
Wataghin, para a física, entre outros, todos convidados pela universidade de São Paulo (BOSI, 2000,
p.10).

Como um reflexo das preocupações mais recorrentes entre as pesquisas acerca do


sistema de ensino superior, está presente um discurso de defesa da função da universidade de

123
A categoria classes pode ser ampliada quando entendemos as disputas no espaço universitário marcadas pela
presença de um outro grupo que inaugura sua participação política e científica no enfrentamento imposto pelas
situações mistas no âmbito do espaço universitário. Por isso, em certa medida, classes servirá para diferenciar os
afrodescendentes e seu movimento em direção à universidade pública.

123
desenvolver ciência e tecnologia na busca de qualidade. Outro ponto que se destaca na
investigação que desenvolvem intelectuais dedicados ao tema (BOSI, 2000; CANEN, 2004;
CARVALHO, 2005; CARVALHO & SPAGNOLO, 1997; CHAUÍ, 2003; CUNHA, 1983;
GILES, 1987; LEVY, 1995; MANCEBO, 2004; MORAIS, 1995; SOUZA SANTOS, 1995 e
2004; THAYER, 1998, 2002 e 2003; TRINDADE, 2003; VELHO, 1998, VELLOSO, 1998), é a
aproximação da universidade com a sociedade mais ampla.
No livro La educación superior y el Estado en Latinoamérica, Daniel Levy (1995),
situando a história da criação das universidades públicas brasileiras, nos apresenta, em extensa
análise, um panorama bastante elucidativo no que se refere aos determinantes da situação do
ensino superior, com destaque para a trajetória do México. O que nos ajuda nesta aproximação
com outras realidades no contexto latino-americano são as categorizações utilizadas. A palavra
“onda” empregada por Levy (ibid) tende a mostrar uma evolução ou fase, indicando um
fenômeno agitado que ocorre por partes que não são uniformes nem completamente discretas.
Para cada onda se considera tanto a criação do setor como o seu crescimento posterior. Levy
classificou essas ondas em cinco, quais sejam: a) surgimento de universidades coloniais, mistura
de públicas e privadas; b) surgimento de monopólios públicos; c) surgimento de universidades
religiosas privadas; d) surgimento de universidades privadas seculares de elite e, ainda, e)
surgimento de instituições privadas e seculares, mas não de elite. Logo a seguir, diferencia as
três ondas do crescimento privado como sendo: a) a acatólica, b) a “de elite” e c) que absorve
uma demanda que não é elite. Os padrões diferentes estão associados com diferentes misturas de
ondas. As duas primeiras ondas produziram os padrões historicamente dominantes.
As universidades coloniais criadas como entidades mistas dominaram a educação
superior durante séculos. De igual maneira, o padrão de monopólio público dominou durante a
maior parte do século XIX e parte do XX. O segundo padrão substituiu o primeiro e, como
somente Cuba e Uruguai detêm hoje o monopólio público, o autor não dá especial atenção aos
dois primeiros modelos de ondas. Para o caso mexicano, as chamadas ondas influenciaram os
padrões contemporâneos de educação pública e privada (no que se refere a financiamento,
governo e função).
Levy (ibid) observou que, dentre os países da América Latina, o Brasil inaugurou um
padrão diferente de natureza do público e do privado. É o único colocado numa condição de
depender ferozmente do setor privado para atender as demandas crescentes de serviços de
educação superior. Assim, até a década de 1980 reuníamos mais da metade de toda a matrícula
privada da América Latina (LEVY, 1995, p.339). Enquanto que em países como o México e o
Chile o Estado desempenhou um papel ativo nos assuntos sociais, onde as políticas de expansão

124
universitária, ainda que contemplassem a abertura para o setor privado, garantiram a
transformação do setor público.
Conforme o autor, “en Brasil, el Estado no he permitido jamás una transformación
igual al sector público, y usa en cambio al sector privado para fines diferentes de los habituales
para la mayor parte de Hispanoamérica” (1995, p.340). Uma das explicações para esta
configuração parece ser o fato de que na colônia portuguesa não havia motivo para se criar
universidades coloniais de educação superior. Suas elites tinham a opção de sair do Brasil para
ter sua formação na universidade de Coimbra (LEVY, 1995, p.344), por exemplo.
A constituição de 1891 fez uma indicação ao Congresso Nacional para que se criassem
instituições de ensino superior. Entretanto, não foi essa uma forma de fomentar a emergência de
universidades no contexto brasileiro. Conforme Paulo Pereira da Silva (2001, p.13), foi em São
Paulo, que “se ensaiou a primeira organização da universidade digna desse nome, com a
formulação da USP”. O decreto n° 19.851, baixado pelo governo provisório de Getúlio Vargas,
tendo como inspiração as proposições do ministro Francisco Campos, recebeu o nome de
Estatuto das Universidades Brasileiras. Assim, como decorrência da Reforma Campos, ele foi
criado para instituir o regime universitário. Por ele, “o ensino universitário tem como finalidade:
elevar o nível da cultura geral; estimular a investigação científica em quaisquer domínios dos
conhecimentos humanos; habilitar ao exercício de atividades que requerem preparo técnico e
científico superior; concorrer, enfim, para a educação do indivíduo e da coletividade” (GILES,
1987, p.292).
Há quem afirme que a regra, nesse período histórico, nunca foi a universidade e sim os
institutos isolados (CUNHA, 1983; SOUZA, 2001), tendo em vista a sua forte tradição. São
aspectos que favorecem a suposição de haver desde sempre uma dificuldade na democratização
do acesso ao ensino superior. Portanto, para tirar do papel o projeto das universidades,
problemas como a ausência de uma cultura de campus, por exemplo, deveriam ser enfrentados.
Segundo Luiz Antônio Cunha (1983, p.14), o ensino superior de qualquer estabelecimento era
tratado como universitário e tendo isso apreendido, foi possível considerar no campo da
pesquisa sobre o tema o sentido da categoria como que denotando o conjunto de instituições de
ensino superior e ainda das instituições organizadas conforme os requisitos estabelecidos em lei
para serem formalmente reconhecidas como universidades. Assim, as rápidas mudanças no
espaço universitário definiram as profundas transformações impressas ao ensino superior dos
anos 60 (CUNHA, 1998, p.75).
Segundo esse especialista do tema, “os prédios de departamentos de faculdade, de
institutos, de escolas e de centros foram distribuídos num espaço recriado, de modo que

125
expressavam claramente a hierarquia de poder e prestígio” (CUNHA, 1998, p.75). O fato de a
organização espacial estar relacionada a uma gestão universitária situada numa lógica
econômica a favor de um tipo de organização por campus universitário é mais um dado
relevante percebido nos discursos que polemizam a conformação das universidades. Haveria
uma relação entre a transferência das universidades para o campus e um movimento de
integração e de segregação. Essa solução estava relacionada com os modelos de campi das
universidades norte-americanas, um modelo visto como dentro de moldes urbanísticos do
capitalismo avançado. Como se pode presumir, a modernização universitária não foi uma
negociação tranqüila muito menos consensual.
O aspecto da organização espacial cabe sobremaneira nas asserções sobre a replicação
de um modelo de produção de conhecimento para o mundo não-europeu. Na década de 1930, o
ensino superior estava concentrado na formação de engenheiros, médicos, advogados,
agrônomos. Seu objetivo de formação sempre foi para reproduzir os cânones europeus. Dito de
outro modo, o conhecimento científico legitimado no centro do capitalismo expandiu, por assim
dizer, para o resto do mundo, fazendo perpetuar um modo de compreensão da humanidade nas
bases de uma dominação européia, sobretudo no entendimento do que deve ser a transmissão
cultural e dos saberes ditos “científicos”.
Ao aceitarmos o que menciona Edward Said (2005) acerca da atuação de intelectuais
em diferentes contextos, passa a interessar a sua crítica fundamental realizada para o chamado
resto do mundo sobre as representações do intelectual:

A questão central para mim, penso, é o fato de o intelectual ser um indivíduo dotado de uma vocação
para representar, dar corpo e articular uma mensagem, um ponto de vista, uma atitude, filosofia ou
opinião para (e também por) um público. E esse papel encerra uma certa agudeza, pois não pode ser
desempenhado sem a consciência de se ser alguém cuja função é levantar publicamente questões
embaraçosas, confrontar ortodoxias e dogmas (mais do que produzi-los); isto é, alguém que não pode
ser facilmente cooptado por governos ou corporações, e cuja raison d´être é representar todas as
pessoas e todos os problemas que são sistematicamente esquecidos ou varridos para debaixo do tapete.
Assim, o intelectual age com base em princípios universais: que todos os seres humanos têm direito de
contar com padrões de comportamento decentes quanto à liberdade e à justiça da parte dos poderes ou
nações do mundo, e que as violações deliberadas ou inadvertidas desses padrões têm de ser
corajosamente denunciadas e combatidas (SAID, 2005, p. 25-26).

Conforme posto em destaque acima, a crítica de Said (ibidem) é a crítica de um


intelectual que visivelmente representa um certo ponto de vista e que encara as situações de
vulnerabilidade. Como uma voz periférica contestando o Centro, justamente a partir do

126
Centro124, Said problematiza a questão da imagem do intelectual bem como características
pessoais e estratégias para a sua intervenção efetiva. Na sua concepção, é justamente esse debate
ousado, que enfrenta riscos e todo tipo de barreiras, que é parte do compromisso e da missão do
intelectual moderno (SAID, 2005, p.27).
No campo intelectual, a vida universitária garante as condições mínimas de exposição
ou de fuga quando nos referimos ao perfil do acadêmico. Poderíamos arriscar indagar sobre
aqueles que defenderam um projeto de universidade que até hoje guarda ranços de um elitismo e
de uma visão eurocêntrica de produção da ciência, no sentido de entender como constroem suas
identidades como intelectuais mergulhados em pressupostos herdados dessa conformação: a
universidade tem servido como um espaço privado para a intelectualidade brasileira? Seria ela
constituída por um corpus impregnado pela lógica da privatização do bem público?
Sem tecermos críticas imediatas sobre as idéias que norteiam o debate sobre o que
significa um regime universitário, observamos as análises de Willy Thayer (2002) para provocar
nossas próprias hipóteses acerca da relevância da inserção dos subalternizados no mundo
acadêmico. Segundo Thayer,

Houve um tempo em que o nome “universidade” conduziu, por todos os lugares, o ânimo épico à casa
do intelecto. O sábio, o universitário, como herói e sacerdote da história. Sem dúvida, a importância do
que sob esse nome se conjugava, tornava-a meritória de tão exclusivo reconhecimento: autonomia do
Estado e da sociedade; arquivo, centro do saber universal; educação e construção do espírito do povo;
qualificação das forças de trabalho; fonte do saber nacional; “saber” do saber ou reflexividade e
interrogação da verdade da ciência, da justiça da lei; guardiã e reguladora do progresso; superação das
desfigurações da humanidade por meio da educação do “gênero humano [...] e assim, a múltipla série de
elementos que diz respeito à ‘missão’ da universidade, portanto da universidade missionária” (2002, p.
30-31).

Essas idéias refletem, sem dúvida, uma perspectiva que ultrapassa questões sobre a
autonomia da universidade e sua reforma curricular. De cunho mais filosófico que político, sem
deixar de sê-lo, o exame de Thayer (2002) perpassa por sentidos mais “dispersos” e nos
encaminha para a idéia de que “a universidade se constitui como instituição promíscua que,
paulatinamente, tornará explícita a lógica do ‘tras’” (p.22). Dando continuidade ao seu quadro

124
Sobre a influência de Edward Said nos Estudos Culturais, o artigo de Aijaz Ahmad (2002) intitulado
Orientalismo e depois: ambivalência e posição metropolitana na obra de Edward Said destaca a primazia de sua
produção reconhecendo, entretanto, alguns problemas classificado às vezes como sendo de confusão teórica.
Chega a afirmar que “Said parece não conhecer as comunidades imigrantes em nome das quais fala e é preciso
uma grande distância da realidade dessas ‘viagens’ feitas esmagadoramente em busca de sucesso material e
profissional, para ser realmente capaz de formular a seguinte declaração: a controvérsia a respeito da
descolonização mudou das periferias para o centro” (AHMAD, 2002, p.155). A primeira formulação que
podemos construir é sobre em que medida, tendo como exemplo, o protagonismo do próprio Said, é possível
buscarmos legitimidade para falar fora dos “grandes centros”. Notadamente Aijaz Ahmad (2002) o acusa de
desfrutar das benesses oferecidas pelo seu lugar de professor em centros de pesquisa de grande prestígio nos
EUA.

127
teórico, Thayer apresenta uma vigorosa crítica sobre as raízes filosóficas, por assim dizer, do
projeto, do “acontecimento universitário”, tecendo proposições acerca da deslegitimação da
idéia de ordenamento do ensino superior. Sendo assim, um dos aspectos criticados diz respeito à
crise da sua missão formadora:

A universidade não projeta o universitário mais além da tradução da rotina curricular em rotina
profissional, a manipulação acertada e eficaz do processo auto-referido do trabalho técnico e da
reprodução de um “si mesmo” melhorado no standing; não outorga futuro, além das datas limites do
endividamento creditício e não abre expectativas maiores frente às da aquisição de códigos, chaves e
cosméticos de entrada e saída do mercado absoluto (THAYER, 2002, p.32).

Na Periferia do mundo, bem distinto do que ocorre no Centro do capitalismo, a vida


universitária tem o seu limite definido pelos modelos que instituíram a lógica deste ordenamento
da formação de terceiro grau. Aproveitando os apontamentos de Regis de Morais (1995, p.27),
“as universidades ainda não despertaram para a sua verdadeira natureza (ou proposta) e para as
suas tarefas. Elas ainda permanecem como arquipélagos, nos quais os institutos e faculdades são
ilhas às vezes mesquinhas”.
O que já sabemos é que, na história da educação superior do Brasil, as universidades
estão situadas, assim como todo o sistema de ensino, como parte de uma engrenagem
indispensável à feitura de um projeto civilizatório modernizante, adotado internamente, mas
baseado nos modelos avançados do centro do capitalismo. Reconhecendo tais aspectos,
gostaríamos de dar continuidade a este debate dentro de uma concepção de universidade
contrária ao projeto civilizatório modernizante o qual estamos criticando.
No imaginário coletivo, a universidade é um lugar de prestígio, um lugar onde os
pobres não têm vez. Aceitar ou rejeitar essas representações, na atualidade, implica tomarmos
posicionamentos acerca da validade da cultura universitária no Brasil. Caberia, por isso,
insistirmos com uma outra indagação, que seria: a universidade trabalha a favor de quais
grupos? Essa reflexão acontece no desvelamento da razão de ser do Estado conforme o que se
segue.
No esforço de iniciarmos – ou na melhor das hipóteses engrossarmos – uma sociologia
que, de modo provisório, podemos definir como sendo sobre as narrativas, sobre os dilemas da
universidade pública hoje, diante das agendas e da agência dos grupos historicamente alijados
do “acontecimento universitário” (THAYER, 2002): teria algum sentido inserir-se na cultura
universitária, provocar seus cânones e descompor o já instituído? Seria essa uma disputa pela
legitimidade na/da esfera pública? E, se assim for possível definir, aceitando esta última
hipótese, seria o mesmo que afirmar: não existe debate quando os grupos interessados e

128
implicados diretamente pelos prejuízos impostos ficam de fora dos espaços de decisão? Ainda
há tempo para essa “universidade mentirosa”? A noção de conhecimento pluriversitário
(SOUZA SANTOS, 2004) caberia para pensarmos os dilemas da universidade brasileira? O que
pressupõe a perspectiva intercultural afrodescendente no âmbito da universidade pública?
O trabalho de Hélgio Trindade (2003), intitulado O discurso da crise e a reforma
universitária necessária da universidade brasileira, é elucidativo na medida em que destaca,
como parte desse movimento de problematizar a universidade, o processo de massificação e
privatização. Pelos dados apresentados, o Brasil é um dos países com menor concentração de
estudantes, variando entre 30 mil e 50 mil universitários, enquanto no México as instituições
chegam a agregar cerca de 100 mil estudantes. Também na Argentina estes dados são
aproximados. Guatemala, Panamá e Venezuela aparecem como situações intermediárias, ou
seja, agregam em torno de 50 mil e 100 mil. Ao lado do Brasil estão Costa Rica, Equador,
Honduras, Santo Domingo e El Salvador. Convém destacar que até 2003, o estado de São Paulo
pode ser considerado um ícone desses índices, porque tanto uma das maiores universidades
privadas (UNISP) do país como a maior dentre as públicas (Universidade de São Paulo) estavam
localizadas na capital econômica do Brasil (TRINDADE, 2003, p.168). O exame da expansão da
universidade pública mostra os últimos 40 anos como o período mais significativo.
Os dados de Mozart Neves Ramos (2000, p.28-29) indicam que em 1960 tínhamos em
torno de 95.691 matrículas e no ano de 1999 este número chegou a 2.377.715. Entre 1995 e o
ano de 2000, o número de matrícula aumentou 43,1%. Também nesse período, as universidades
federais imprimiram um esforço no sentido de aumentar o número de vagas a partir da criação
de cursos noturnos. Além disso, até o ano 2000, as federais respondiam por 19% das matrículas
do ensino de graduação. As universidades públicas paulistas juntamente com o setor público
federal estão situadas como responsáveis pela maior parte da produção científica e tecnológica
do país. O autor afirma que seriam um total de 80 mil novas vagas e destaca: “Dessas vagas
quase 25 mil foram destinadas ao período noturno, demonstrando-se a preocupação com o
aluno-trabalhador e reafirmando-se o compromisso com a democratização do acesso às
universidades públicas para o aluno de baixa renda” (RAMOS, 2000, p.29).
Trindade (2003), em seu estudo, é cuidadoso ao vincular o quadro atual de crise com a
política educacional do Banco Mundial, tendo em conta os desdobramentos dessa doutrina no
contexto da América Latina. Todavia, o ponto elucidativo para nossa análise é quando se apóia
em Souza Santos (1994), admitindo ser fundamental um enfrentamento estratégico por parte da
universidade:

129
Na sociedade contemporânea, conhecimento e poder se interpenetram em todos os níveis, da esfera
pública ao mercado, redefinindo o significado do espaço público nas universidades e afetando na raiz
sua “missão social”. Esta questão, além de interferir na lógica da produção do conhecimento e suas
formas de aplicação em benefício da sociedade, coloca também, para a comunidade universitária e seus
dirigentes, uma questão central de natureza ética: uma instituição pública não pode se deixar dominar
pela lógica do mercado ou do poder (TRINDADE, 2003, p.175).

Não seria provável que nos diferentes estudos sobre a administração e ordenamento
das universidades públicas o tema das políticas educacionais impostas pelos órgãos
internacionais de regulação nos contextos da periferia ficasse de fora. Assim, nossas leituras
indicam que a década de 1990 se destaca como sendo o período no qual a doutrina neoliberal
ganhou terreno, tendo em vista o fortalecimento de um modelo institucional gerencialista para se
administrar a universidade (MANCEBO, 2004). Em outros termos, refere-se à
institucionalização de uma lógica empresarial e competitiva na conformação da cultura
universitária.
Examinando as temáticas recorrentes na reflexão sobre o sistema de ensino superior,
podemos afirmar existir uma tensão sobre a mudança estrutural em termos da localização −
principalmente aquela que transforma faculdades e institutos em um único organismo,
inaugurando o acontecimento universitário −, a reforma curricular, a briga pela autonomia
universitária e ainda o difícil debate sobre a reforma da universidade pública.
Nesse caminho, os autores de maior relevância no debate sobre o papel da
universidade pública estão situados pela sua visão progressista e emancipatória no que se refere
aos benefícios que uma universidade pública pode proporcionar à sociedade. Por outra parte, o
pensamento educacional é alimentado por uma elite intelectual responsável pela conformação da
universidade pública. Seria o mesmo que dizer: a universidade fala de si mesma e por isso a
criticidade, embora presente, parece superficial, deixando de fora a problemática de ser ela
mesma seu maior crítico. A visão de democracia no campo da educação apresenta
especificidades próprias de um sistema organizado tardiamente, conforme apontam as pesquisas
de Daniel Levy (1995).
O estudo de Chaves, Medeiros e Vasconcelos (2004, p.228), que analisa o debate
sobre a política de financiamento da educação superior, revela que “os textos produzidos no
período de 1996 e 2000 e publicados na revista Universidade e Sociedade refletem questões
recorrentes e emergentes desse período histórico, expressando importantes aspectos da
conjuntura política e econômica que o país atravessa”. Das conclusões da pesquisa chama a
atenção as seguintes preocupações dos investigadores do tema:

130
Observamos, nas linhas e entrelinhas dos artigos, o aprofundamento da crise econômica que remete ao
sucateamento das universidades públicas, asfixia às instituições de pesquisa, fazendo emergir com
maior vigor o discurso da auto-sustentabilidade e do ensino superior pago. Ao mesmo tempo é
revigorada a luta da comunidade científica em defesa da autonomia das universidades, bem como de
uma política científica e tecnológica que oriente e dê base ao processo de desenvolvimento econômico,
político e social do país (CHAVES, MEDEIROS e VASCONCELOS, 2004, p. 228-9).

Encerrando a apresentação das pesquisas, Chaves Medeiros e Vasconcelos (2004)


salientam a postura de Miriam Limoeiro Cardoso (1998), por reconhecer a função controladora
das avaliações das universidades públicas. Para esta última, tal conduta “é incompatível com as
conquistas no campo da democratização da universidade” (CARDOSO apud MEDEIROS,
2004). Sobre esse fenômeno da missão da universidade, Erasto Fortes Mendonça (2001, p.84)
afirma: “A educação brasileira experimentou uma democratização tardia. Criada e cevada para
servir à elite, chegou ao fim do século XX empunhando bandeiras há muito superadas em países
de tradição democrática.” Agregado a isso, entendemos como substancial focar a discussão
sobre o sistema educacional tendo em conta, sobretudo, as contradições e as crises do ensino
superior como um subsistema. Enxergamos contudo contradições também nas narrativas de
defesa da universidade vista como um direito universal.
No dizer de Marilena Chauí (2003, p 2), “a educação superior pública tem sido
conivente com a enorme exclusão social e cultural dos filhos das classes populares que não têm
condições de passar da escola pública de ensino médio para a universidade pública”.
Destacamos o seguinte fragmento da sua conferência de abertura da 23ª Reunião Anual da
Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa (ANPEd):

A legitimidade da universidade moderna fundou-se na conquista da idéia de autonomia do saber em face


da religião e do Estado, portanto, na idéia de um conhecimento guiado por sua própria lógica, por
necessidades imanentes a ele, tanto do ponto de vista de sua invenção ou descoberta como de sua
transmissão. Em outras palavras, sobretudo depois da Revolução Francesa, a universidade concebe-se a
si mesma como uma instituição republicana e, portanto, pública e laica (CHAUÍ, 2003, p.1).

Chauí provoca impacto pela sua crítica e proposições sobre o sentido da formação
universitária e o papel de gestores e pesquisadores. Em sua proposta sobre as mudanças da
organização da universidade pública sob a perspectiva da formação e da democratização,
encontram-se alguns itens que devem ser recuperados para nossa problemática, a saber:
entende como fundamental para a universidade pública um posicionamento do intelectual,
devendo colocar-se claramente contra a exclusão como forma da relação social definida pelo
neoliberalismo e pela globalização; tomar a educação superior como um direito do cidadão;
defender a universidade pública tanto pela ampliação de sua capacidade de absorver

131
sobretudo os membros das classes populares, quanto pela firme recusa da privatização dos
conhecimentos; romper com o modelo proposto pelo Banco Mundial; definir a autonomia
universitária pelo direito e pelo poder de definir suas normas de formação, docência e
pesquisa; desfazer a confusão atual entre democratização da educação superior e
massificação; reformar as grades curriculares atuais e o sistema de créditos; revalorizar a
docência, revalorizar a pesquisa. Destacamos outro aspecto de sua proposta:

a universidade pública tem que se comprometer com a mudança no ensino fundamental e no ensino
médio públicos. A baixa qualidade do ensino público nos graus fundamental e médio tem encaminhado
os filhos das classes mais ricas para as escolas privadas e, com o preparo que ali recebem, são eles que
irão freqüentar as universidades públicas, cujo nível e cuja qualidade são superiores aos das
universidades privadas (CHAUÍ, 2003, p.7).

Conforme essa visão, é a reforma da escola pública responsável pelo ensino


fundamental e médio que promoverá a democratização da universidade pública. A visão de
Chauí é sobre uma herança de falta de qualidade no ensino básico com ressonância no
processo de inserção universitária. Considerando o quadro de exclusões sociais e culturais
quanto ao acesso à universidade, a defesa clara pela qualidade da universidade é um reflexo
da sua preocupação com as crises subseqüentes enfrentadas ao longo da história do ensino
superior.

Agregamos aos pressupostos de Chauí (2003), as recomendações de análise sobre a


elitização da universidade, construídas por Alfredo Bosi (2000) um pouco antes:

Foi a sociedade brasileira – e, com ela, o Estado – que descumpriu a sua função de preparar o estudante
de baixa classe média com o mesmo empenho que caracteriza as escolas particulares de bom padrão.
Culpar a universidade pública pelo fraco aproveitamento dos candidatos de origem modesta é culpar os
efeitos em vez de atacar as causas desse desequilíbrio crescente do ensino médio (BOSI, 2000, p.23).

Para Bosi (ibidem), chamar a universidade de elitista se constitui em um equívoco e,


citando dados apresentados pelo Núcleo de Pesquisas sobre Ensino Superior da USP (NUPES),
ele destacou como sendo uma prova do desempenho democrático das universidades o argumento
de que “são as universidades públicas que mais formam estudantes negros ou pardos (20,1%). Já
nas universidades privadas, o percentual de formandos negros e pardos é de ordem de 12%”
(BOSI, 2000, p.24).

132
Logo na apresentação do livro Universidade: políticas, avaliação e trabalho docente125
(MANCEBO E FÁVERO, 2004), fica explicitado que se trata do exame de alguns resultados
das pesquisas sobre a produção científica e educação superior no Brasil, entre o período de 1968
e 2000. Sendo um projeto desta monta, a leitura nos proporcionou uma visão panorâmica do que
entra e do que fica de fora nos estudos sobre a educação superior. Apenas o trabalho de Ana
Canen (2004, p.111-126), intitulado Novos olhares sobre a produção científica em educação
superior: contribuições do multiculturalismo, tenta situar a questão da visão monolítica e seus
prejuízos quando comparada às potencialidades multiculturais.
Conforme Canen, seria urgente considerarmos “os potenciais multiculturais” (2004,
p.112) para analisar temas mais convencionais dentro da produção do conhecimento no campo
da educação superior. “Numa ótica crítica, emancipatória, o multiculturalismo encontra campo
fértil, embora ainda pouco explorado, na área da educação superior.” Apesar do esforço
empreendido em sua vasta produção sobre educação e multiculturalismo, a autora não avança na
problematização das desigualdades promovidas no ensino superior. Entretanto, o que deixa
como contribuição são indicações de que:

Importa notar certo silêncio com relação a temas com potenciais multiculturais [...] de fato questões
ligadas à representação das identidades de raça, gênero, e outras no âmbito do ensino superior, não
parecem constituir foco de preocupações das discussões da área a partir do jornal em pauta.
Considerando-se, no entanto, que a análise efetuada incidiu sobre os periódicos somente até o ano de
2000, cabe levantar a hipótese de que esses temas poderão vir a ter maior visibilidade neste novo
milênio, particularmente quando se considera o impacto de movimentos sociais (de negros, indígenas,
mulheres e outros), organizações não-governamentais (ONGs) e de conferencias nacionais e
internacionais, no sentido de incluir, nas pautas de discussões sobre educação superior, questões sobre
reparação de desigualdades de acesso e retenção com relação a identidades plurais marginalizadas no
sistema educacional (CANEN, 2004, p.117).

As reivindicações que se apóiam em projetos de democratização educacional, levando


em conta a racialidade, estão à margem dos interesses das pesquisas sobre o ensino superior.
Nem mesmo conferências como a de Durban, as polêmicas dos jornais entre grupos oligárquicos
atacando as propostas de institucionalização de políticas de ação afirmativa para o ensino
superior, mereceram destaque no âmbito maior das produções sobre educação superior nos
fóruns já estabelecidos. Essa dimensão – descuidada nos estudos localizados no âmbito da
Educação Superior – encontra-se, como vimos, mais bem representada, (ainda sendo um

125
A partir de periodizações, os resultados estão organizados em um Banco de Dados do “GT” 11 (Grupo de
Trabalho Política de Educação Superior da ANPEd) e sobre o segundo subperíodo compreendido entre 1980 e
1990, os organizadores do livro afirmam que nele, a produção “escrita” aumenta e o fluxo editorial se beneficia da
abertura política ao mesmo tempo que serve para engrossar a defesa do ensino superior de qualidade. Entendemos
que o livro reflete as lacunas que promovem a injustiça curricular na medida em que constatamos a ausência de

133
percentual mínimo) nos campos da Antropologia, Sociologia, Estudos Culturais e também dos
Estudos Pós-coloniais. Por outra via, cruzando os descritores relações raciais e educação126,
destaca-se um número incipiente de trabalhos que contemplam esta temática. O que nos faz
afirmar que existem lacunas significativas como a pouca produção de estudos sobre
Desigualdades Raciais e Ensino Superior.

3.1.2. A patrimonialização e seus reflexos no sistema de ensino superior


A patrimonialização serve para explicar as relações de poder entre brancos e não-
brancos. Funcionando como uma espécie de governo central, a apropriação das esferas coletivas
transformadas em bens particulares pode ser uma conduta que se explica, no caso brasileiro,
justamente por ter facilitado o acúmulo de capitais. Mais interessante ainda é que, quando
aceitamos a teoria de Bourdieu (1997) sobre capital político como uma espécie de capital social,
percebemos nela a explicação, em certa medida, para as outras formas de vida “em rede”, por
assim dizer. Isso porque com base no capital social do tipo “político”, se reforçam as redes já
estabelecidas e, por essa força e por esse reforço, o volume de capitais é aumentado e
assegurado para as novas gerações.
O conceito de capital político – um tipo de patrimonialização de recursos coletivos e
um tipo de capital social – de Pierre Bourdieu (1997, p.31) parece estar relacionado ao fato de
que para criar estratégia de diferenciação e ocupar esferas públicas é fundamental restringir a
aquisição e o acúmulo de capitais – econômico, cultural e social. Ao validarmos essas asserções,
voltamos ao ponto alto de nossa pesquisa sobre as narrativas construídas pelos afrodescendentes
a partir da universidade. Seus relatos deixam evidenciado o quanto acreditam na eficácia da
formação de redes que deixam do lado de fora os não-brancos.
Sobre a existência de um ordenamento colonial cabe tecermos algumas apreciações.
Nele, os diferentes outros são, primeiramente, não-europeus, sobretudo quando projetamos sua
imagem − um aspecto robusto que deve estar a serviço dos estudos das relações coloniais
estabelecidas nos espaços universitários. Erasto Fortes Mendonça (2001) acentua a advertência
já conhecida de que o estamento burocrático é gerado e nutrido por um modelo patrimonialista
que lhe dá condições de mutação, tornando-o imperceptível. Sendo a colonização um fato social

diálogo entre o Grupo de Trabalho de Políticas para o Ensino Superior e os estudos em curso sobre injustiça
curricular, desigualdades raciais etc.
126
A possibilidade de realizar um primeiro exame da produção teórica sobre Educação e Relações Raciais
extrapolou o objetivo de conhecer a produção desenvolvida por um determinado campo temático e de estudos. É
claro que não deixamos de reconhecer a importância dessa intenção, mas, talvez, o aspecto mais interessante a ser
destacado seja poder perceber como se deu o delineamento de uma trajetória histórica na configuração desse campo

134
total, está confirmada nossas hipóteses de que o afastamento dos sujeitos não-brancos das
instituições de prestígio esteve garantida por práticas coloniais mutantes e, dessa forma, o
modelo patrimonialista ganhou normalidade. Sendo a universidade um projeto colonial, de
relações coloniais, a sua privatização, por parte daqueles identificados pela brancura, se justifica.
Como em todo espaço promotor de relações coloniais, a brancura confere à universidade as
regras do jogo: por ela, sabemos quem são os estabelecidos e quem são os insurgentes, quem
pode se constituir como parte do Centro e quem faz parte da Periferia.

Podemos superar outras hipóteses, bem como descobrir possibilidades novas relendo o
argumento de Pierre Bourdieu (1998) sobre as redes sólidas de relação que pode ou consegue
mobilizar o volume de capitais. O autor faz referência a um vínculo em que os agentes se
reconhecem porque são dotados de propriedades comuns. Suas relações sólidas e permanentes
são úteis, sobretudo pela possibilidade de perpetuação de práticas garantidoras do acúmulo de
bens. Por isso, Bourdieu (1998) nos auxilia na medida em que toca nossas questões quando
discorre sobre “propriedades comuns” e modos de ligação permanentes. Ao enfrentarmos a
questão da brancura, neste trabalho de tese, podemos apreender propriedades comuns, incluindo
a racialidade como traço de solidificação. Nossos entrevistados afirmam a necessidade urgente
da agência coletiva ao explicarem a instituição de fóruns de debate entre intelectuais-
acadêmicos ativistas.
A defasagem entre essas aspirações e o quadro no qual se encontra a universidade
seria o mote para se estruturar espaços de representatividade. As chamadas ligações
permanentes devem ser tratadas com maior apreço. Dependemos da defesa por uma
universidade democrática no sentido de Boaventura de Souza Santos (1995, 2004) para
desenvolver uma outra sociologia da educação, desta vez incorporando a racialidade e os
problemas detectados na produção sobre a universidade e sua missão. A formação e o
desempenho profissional das novas gerações são tratados de modo a desconsiderar tais aspectos.
Souza Santos (1995) nos lembra o seguinte:

A universidade foi criticada quer por raramente ter cuidado de mobilizar os conhecimentos acumulados
a favor de soluções dos problemas sociais, quer por não ter sabido ou querido pôr a sua autonomia
institucional e a sua tradição de espírito crítico e de discussão livre e desinteressada a serviço dos grupos
sociais dominados e seus interesses (SOUZA SANTOS, 1995, p.178).

temático e, mais ainda, a descoberta de possibilidades inovadoras de pesquisa na área a partir do conhecimento de
novos trabalhos.

135
Ao tocar em questões ocultas sobre o desempenho descuidado da universidade, Souza
Santos (2004) está tratando da abertura necessária da universidade para Outros atores que, na
sua tradição, ficam de fora. Por isso, podemos crer na defesa de uma outra ordem interna desta
instituição pública, uma configuração com reflexos da perspectiva afrodescendente de
interculturalidade. Os diferentes movimentos negros impulsionam, há décadas (principalmente
nos últimos 40 anos), a luta retórica visando aumentar sua participação na esfera pública – um
lugar de legitimação. Notadamente, as redes entre aqueles grupos identificados na brancura
estão solidificadas e os Outros deste suposto ordenamento colonial, fixados na subalternidade.
Assim como está localizado o continente africano na ordem colonial total, como um não-lugar,
a presença não-branca é uma não-presença, algo invisibilizado. Por um descuido,
afrodescendentes estão ali, causando incômodo e constrangimento ao grupo estabelecido.
Veremos, na seqüência de nossas análises, como é possível interpretarmos os
desdobramentos da patrimonialização127, ao aceitamos a existência de tal fenômeno, observando
seus vínculos com as relações coloniais mutantes. Partimos dos indícios de que o fato de o
Brasil ainda deixar que se estabeleçam efetivas relações escravocratas (conforme as denúncias
de trabalho forçado e subseqüente comprovação) deixa pistas para apreendermos a atualidade da
patrimonialização numa terra de ninguém.
Ao privilegiarmos uma história sumária, decerto, o intuito foi de iniciar a reflexão
sobre o discurso afrocentrado acerca da universidade, tendo sido, por isso, fundamental
examinarmos aspectos de proposições já consolidadas sobre a sua missão pública. Em lugar de
discutir e comparar semelhanças e diferenças entre distintas abordagens, o objetivo foi nos
atermos aos principais alcances das diferentes conceituações sobre quem ganha e quem perde
com o modelo vigente de democratização do espaço universitário.
Na varredura realizada, os estudos que afirmam incluir a racialidade são sobre A
questão do negro e, portanto, figuram como um traço da exterioridade, justamente por se
constituir como um problema a ser resolvido, uma questão epistemológica em aberto.
Aparecendo como residual, a racialidade está presente, ao que tudo indica, justamente quando
canais abertos por pessoas físicas, atuando no espaço da universidade, favoreceram, no escopo
de suas demandas por produção científica, uma possibilidade de incluir alunos com o interesse
pela temática das relações raciais. Considerando esse fenômeno, o que chamamos aqui de
resíduo pode ser mais bem entendido como aquilo que vem por último, factível de

127
O estado de direito, o sistema representativo, não incorpora sujeitos não-brancos, com pouca escolaridade,
nascidos nos espaços da periferia do país. Esses aspectos da governabilidade deixam de fora os diferentes Outros

136
esquecimento. Assim, a questão racial no espaço da pesquisa torna-se uma moeda que oscila
entre muito cara e/ou sem qualquer valor de troca.
Nesta tese, adquirimos moedas antes dispensadas no descuido das investigações sobre
o Outro, o que se justifica pelo grande volume de “capitais”128 já acumulado. Esse aspecto pode
ser analisado como um tipo de privatização: a quem interessa discutir relações raciais, ações
afirmativas, desigualdades raciais, justiça curricular? Quando interessa? O passo seguinte é
compreender como os sujeitos em condição de subalternidade estão lutando pelo terceiro locus
(BHABHA, 1998).

produzidos por esta força invisível que é a brancura: como superpotente (MUNANGA 1988), o homem branco
tende a permanecer como sujeito colonial dependente de um Outro colonial, o não branco.
128
Para este debate, nos apoiamos e ampliamos as teorias de Pierre Bourdieu sobre o capital acumulado nas
relações em sociedade (1997).

137
IV. DIVISÃO DE ESPAÇOS E CRISE DE IDENTIDADE: OUTSIDERS E
ESTABELECIDOS129
A análise sobre as razões da queda da hegemonia e a busca de legitimidade das
universidades brasileiras é um dos pontos instigantes e necessários a qualquer interpretação
dos efeitos da presença/ausente130 (APPLE, 2001), nessa esfera, de segmentos cuja história de
pertencimento humano não inclui participação política nos fóruns de decisão de diferentes
naturezas. Na última década, sob um novo olhar131 acerca das injustiças autorizadas pela

129
O título deste capítulo tem como referência a problemática trabalhada por Norbert Elias (2000) sobre um
estudo etnográfico – o único realizado pelo autor – onde observa as relações de poder a partir de uma pequena
comunidade. Interpretando as fontes escritas, Os estabelecidos e os outsiders é o resultado de um trabalho de
campo realizado num período de três anos. Explorando estatísticas oficiais, relatórios do governo, documentos
jurídicos bem como entrevistas, o trabalho é adornado pela observação participante. Apresentando a obra,
Federico Neiburg (2000, p. 9) considera o seguinte: “Elias não só demonstra que existe uma afinidade entre o
ponto de vista de algumas teorias sociológicas e, por exemplo, as fofocas dos estabelecidos sobre os recém-
chegados (analisadas especificamente em um dos capítulos), mas também considera alguns dos canais que
comunicam esse ponto de vista: a presença de outros agentes sociais que contribuem para a naturalização dessas
diferenças sociais e das formas de percebê-las, como os sociólogos aplicados, os jornalistas e os elaboradores e
implementadores de políticas (no duplo sentido de públicas e de partidárias).” Segundo o próprio Elias: “Os
estudos empíricos de casos têm, para os sociólogos, uma importância comparável à que os experimentos têm
para os físicos.”(2000, p.200). Elias acrescenta que a apreensão dos casos singulares ajuda na interpretação de
figurações maiores do mesmo tipo que dificilmente seriam comprovadas.
130
Michael Apple, em Políticas de direita e branquidade: a presença ausente da raça nas reformas
educacionais (2001), apresenta um argumento que acredita na eficácia dos discursos raciais nos Estados Unidos,
porque através dele somos levados a ver teorias e instituições capazes de agregar a todos, reduzindo a construção
social da raça. O mais alarmante seria o fato de não se conseguir vislumbrar um mundo racialmente definido, já
que afirma que para desafiar o problema da raça é preciso enfrentá-lo. Para desafiar o Estado, as instituições da
sociedade civil e a nós mesmos é preciso colocar a raça em lugar central, admitindo acima de tudo a sua força.
Neste caminho, Apple definiu raça como algo não estável, uma construção social e um conjunto inteiro de
relações sociais. São dinâmicas raciais que formam e são formadas .Entendemos, por isso, que a presença
ausente da raça é um fenômeno necessário ao mascaramento do racismo. As dinâmicas raciais provocam
desigualdades contínuas que são transformadas nas estruturas sociais e que, ao mesmo tempo, são diluídas por
sorrisos e discursos que defendem a igualdade entre negros e brancos. A invisibilidade da brancura, interpretada
como o orgulho de ser branco, torna-se o grande nó: quem é branco não é racializado e por isso está dentro da
normalidade. A branquidade é invisível. Os grupos sub-representados, ao reivindicarem maior participação
política na esfera pública, são ridicularizados. Para Michael Apple, “a política da branquidade tem sido enorme
e, por vezes, terrivelmente eficiente na formação de coalizões que unem as pessoas, atravessando diferenças
culturais, relações de classe e de gênero mesmo contra os seus interesses. Esta seria, por tudo isso, uma dinâmica
central. Nessa perspectiva, entendemos que a presença dos segmentos empobrecidos, privilegiando os
afrodescendentes, no campo acadêmico é de fato a sua ausência. No Brasil, quando algum pesquisador de outro
país chega num campus universitário de uma determinada instituição pública de ensino superior, tem subsídios
para analisar a condição dos afrodescendentes por esse aspecto; sua presença é definida pela presença da
brancura marcante dos ali inseridos; podemos supor que a inserção dos não-brancos é pela sua ausência. Nas
formas de ordenamento social, os que estão fora também são parte deste modo de organização desigual e
hierárquico. Por tudo isso, perguntas do tipo “onde estão os pretos do Brasil?” são recorrentes por parte de
pesquisadores que observam as relações raciais no Brasil. Do mesmo modo, em “situações mistas” (GOFFMAN,
1988) que incluem os não brancos como estigmatizados pelo fato de não estarem tradicionalmente presentes nos
campi universitários, é comum que se pergunte, aos estigmatizados, “você é de que país?” como se não fosse
possível um não-branco cursar uma pós-graduação no nível do mestrado e/ou doutorado. Pelo suposto, a
presença destes Outros se converte em um incômodo já que não fazem parte do grupo de origem, são corpos
circulantes estranhos ao ambiente.
131
Embora a referência à produção de intelectuais não-brancos, como é o caso dos grupos afrodescendentes no
Brasil, não apareça nas ementas e currículos dos diferentes cursos (educação básica e universitária), o Brasil
conta com uma produção significativa de pensamento afrocentrado que tende à consolidação do Grupo de
Trabalho Afrodescendentes e Educação (n° 21) na Associação Nacional de Pós Graduação e Pesquisa (ANPEd),

138
perspectiva monolítica de produção de conhecimento, essa análise busca retratar as
conseqüências de uma inspiração, no campo da pesquisa, marcadamente eurocentrada.
Entram em jogo o conceito de representação, nuances sobre as relações raciais,
políticas de valorização da brancura e, do mesmo modo, um conjunto de teorias defendidas
sobre o pertencimento humano de sujeitos invisibilizados por políticas de desvalorização dos
não-brancos.
Gostaríamos de destacar o que Michel Apple (2001, p.63) define como uma presença
ausente da raça implicada nas metas de distintas políticas educacionais, já que, para ele,
questões de branquidade se encontram no âmago dessas políticas. A partir de seus
argumentos, entendemos que a branquidade precisa ser estranhada porque corremos riscos
(todos os subgrupos) quando deixamos cristalizar posições ativas que sustentam a
colonialidade do poder:

A restauração conservadora tem tido muito sucesso em criar ativas posições de sujeito que incorporam
vários grupos sob o guarda-chuva de uma nova aliança hegemônica. Ela tem sido capaz de assumir uma
política dentro e fora da educação, na qual o medo de um outro racializado está associado a medo que
diz respeito a nação, cultura, controle e declínio – e a medos pessoais intensos sobre o futuro dos filhos
numa economia em crise. Tudo isso está associado a uma maneira tensa, criativa e complexa (APPLE,
2001, p.66-67).

Apple (2001) é contundente quando define as questões sobre branquidade como


estando no âmago das políticas educacionais. E assim, passa a ser fundamental considerarmos
marcas de tensões e lutas envolvendo o conhecimento legitimado e, por conseguinte, oficial.
A partir de sua orientação, é possível observar, nas políticas educacionais, estreitas relações
com a eugenia132. Comprometido com as práticas e com políticas educacionais, Apple quer
alertar para o risco de ignorarmos a visão desse tipo de política enraizado no olhar da
branquidade. Encontramos eco no pressuposto de Vron Ware (2004) ao sugerir o
estranhamento da branquidade para fazê-la perceptível. Isso porque sua força está justamente
na sua invisibilidade. Ware afirma que nos estudos críticos da branquidade as investigações

desde o ano de 2002, sob a coordenação da professora doutora Iolanda de Oliveira, da Universidade Federal do
Rio de Janeiro. Do mesmo modo, tem levado à consolidação da Associação Nacional de Pesquisadores Negros e
o Congresso Brasileiro de Pesquisadores Negros.
132
Por definição, segundo o dicionário Houaiss (2001), eugenia é uma teoria que busca produzir uma seleção
nas coletividades humanas baseada em leis genéticas; seria uma busca pelo aperfeiçoamento da espécie via
seleção genética e controle da reprodução. Giralda Seyferth, (1998), em seu trabalho intitulado Construindo a
nação: hierarquias raciais e o papel do racismo na política de imigração e colonização, enfatiza que é a partir
dos anos de 1800 que no Brasil os estudos sobre raça passam a ganhar volume, sendo sistematizados com mais
força nos estudos da Antropologia Física, ciência ministrada no Museu Nacional. Tendo como premissa a
desigualdade racial, os estudos realizados sob a supervisão de João Batista de Lacerda, de modo eficaz,
legitimaram a supremacia da raça branca lançando mão de pressupostos que os antropólogos brasileiros seguiam
a rigor.

139
têm como premissa a crença em que o pensamento racial está tão profundamente inserido
nas estruturas sociais, culturais e psicológicas, que constitui um dado fixo e indelével de
nossa vida (2004, p.9). Não obstante, sua defesa é pela desconstrução de suas bases. As
proposições de Michael Apple, ao que nos parece, se aproximam dessa teoria já que para ele
raça é uma categoria usualmente aplicada a pessoas não brancas. As pessoas brancas
usualmente não são vistas nem nomeadas. Elas estão posicionadas no centro como a norma
humana (APPLE, 2001, p.65).
Convém observarmos também que como um modo eficaz de ressignificação133 de
ideais homogeneizantes, a imagem de um Outro racializado representado como perigoso, em
distintas situações de convívio – situações definidas por Erving Goffman (1988) como
situações mistas, que envolvem os chamados normais e os estigmatizados – é construída por
uma representação que se retroalimenta.
Para Joel Rufino dos Santos (2004, p.39), quando a escravidão começou a se
decompor (ou seria se recompor?) a partir dos anos de 1850, homens forros e libertos, ao se
tornarem pobres, dão outra pigmentação à pobreza, inaugurando a hierarquização pela cor
também entre os pobres. Ascendendo à pobreza, ou seja, passando de um bom escravo a um
mau cidadão, o homem de cor escravizado tem sua imagem deteriorada de modo permanente.
Problematizar fenômenos dessa monta, hoje, suscita uma varredura que não se encerra
em um só referencial. Por isso, encontramos nos estudos críticos sobre branquidade (APPLE,
2001; FRANKENBERG, 2004; ROEDIGER, 2004; WARE, 2004) um modo de descortinar
as identidades raciais envolvendo a brancura e assumindo que o que defendemos está
inspirado nos estudos críticos sobre identidade branca. A discussão emergente a partir da
publicização de estudos recentes reforça a teorização sobre a dinâmica dessa suposta
supremacia nas suas diversas dimensões e sobre as formações particulares da branquidade.
Caberia, portanto, uma mirada em alguns dos pressupostos que norteiam as condições de
análise do pensamento subalterno.
Para esta tese, esses pressupostos estão relacionados aos intelectuais que trabalham na
perspectiva afrocentrada e que nos informam sobre a luta pela mobilidade social a partir das
possibilidades de sua participação política. Os espaços de produção do conhecimento, como é
o caso das universidades públicas, são analisados como espaços de grande prestígio e que, no

133
No quadro teórico de Frantz Fanon, a ênfase na necessidade de reconhecimento da condição colonial seria o
caminho para a promoção de resistência e, assim, a consciência dos colonizados promoveria um saber e uma
força transformados em violência. É com base nesse pressuposto que acreditamos na existência de um
conhecimento descolonizado, uma idéia interessante para pensarmos as inclinações dos estudos produzidos em
lugares periféricos como é o Brasil ao lado da visão monolítica da ciência.

140
plano simbólico, não concorrem com outras instituições de educação formal, porque aquelas
esferas no Brasil definem não só carreiras mas também posições sociais.
Ao examinar estratégias de reconversão, pelas quais os indivíduos, bem como suas
famílias, visam manter ou melhorar sua posição, Pierre Bourdieu (1998) argumenta que tais
estratos da sociedade francesa travam em torno do diploma uma verdadeira luta para sua
classificação, com o objetivo de não se desclassificarem ou para se reclassificarem no espaço
social. Ao aceitarmos tal argumento, o espaço social pode ser definido como um “campo de
disputa” entre alguns subgrupos que concorrem entre si, visando à rentabilidade de seu
“capital cultural institucionalizado”.
Como conseqüência dos esforços de tais segmentos, segundo Willy Thayer (2002), é
fundamental reconhecer os momentos nos quais surgem ameaças à universidade, do tipo:
escassez de seus serviços; diminuição das vagas; deficiência acadêmica. Salvo tais períodos, a
universidade estaria intacta, quase “imexível”, como descreve o autor: “Submergida na
mediocridade de uma maturidade reprodutora, longe do protagonismo teleológico, convertida
em um processo entre processos correntes, produtiva e industrial como nunca, vigorosa e
estável, a universidade passa desapercebida” (THAYER, 2002, p.32). Por isso, a universidade
não tem garantido a formação de uma elite capaz de intervir na emancipação do país. Por isso,
uma reflexão indispensável seria a seguinte:

Ser universitário equivale, então, a estar equipado com um conjunto de hábitos que facultam e dão
direito, ainda que não assegurem, de fato, um bom salário. Ser universitário: possuir um meio de vida.
Mas, antes disso, cumprir com a condição suficiente para se enraizar no contexto. Esse é, estritamente, o
privilégio (2002, p.33).

No exame realizado sobre a estrutura universitária moderna, Thayer (2002) argumenta


ser inevitável criticar o processo de perda de sua potência. Assegura que existem condições
invisíveis e, pelo exposto, concorda com a perda de sua legitimidade, quando reconhece a
emergência de uma outra configuração nas relações entre os sujeitos e o conhecimento
universitário. Ao destacar a característica ritualística, por assim dizer, da universidade,
provoca a reflexão sobre o autoconceito produzido pelos seus ideólogos: já é muito estarem
aqui.
Examinando hierarquias ocupacionais, Bourdieu (1998) problematiza a contingência
do capital cultural, ou seja, a intensificação da utilização das instituições de educação formal
por parte de categorias que tradicionalmente freqüentam-nas, além de discutir aspectos da

141
desilusão por parte dos novos utilizadores no que se refere às aspirações que nutrem em
relação às credenciais obtidas pelo diploma. Problematizar o capital cultural no estado
institucionalizado134 é relevante porque mostra como os fenômenos ligados à classificação e à
reconversão do diploma podem ser observados como um fato social indo além da realidade
francesa. Pudemos incorporar nuances da temática da certificação em Bourdieu para examinar
aqui no Brasil argumentos acerca da luta retórica sobre quem tem direito a entrar na
universidade. Para isso, ampliamos as categorias desse esquema agregando a tese da fixação.
Isso porque as noções de capital cultural, estratégias ideológicas, manutenção do capital de
relações sociais e ainda a análise sobre a certificação como capital cultural institucionalizado
convertem-se em achados indispensáveis ao exame que se pretende fazer sobre as
representações construídas acerca das instituições de ensino superior de prestígio por sujeitos
incluídos a partir da subalternidade.
Como se pôde observar, por exemplo, a partir da situação relatada pelo professor
Valter Silvério – quando da sua participação no processo seletivo para professor na
universidade em que leciona – as resistências podem ser identificadas, em primeiro lugar,
como estratégias individuais e de mobilidade. Um homem afrodescendente do tipo preto se
apresenta como candidato em um processo seletivo para docente de uma universidade federal
em São Carlos (UFSCAR) e alguém da banca examinadora declara assustado: o que que esse
negão está fazendo aqui?, olha só!!
A característica patrimonial da universidade é aquela que inaugura as relações
intersubjetivas de poder e, não tendo como ser diferente, seus ritos incluem situações onde o
poder que alguém possui é a contrapartida do fato de que alguém não o possui. Nas relações
coloniais (pensando a partir da noção de colonialismo interno) reforçadas cotidianamente,
destacam-se a autoridade, as formas de coerção, bem como a lógica de uma cultura
universitária fundadora de um modelo visto como atrelado à democracia, conforme indica
Thayer ( 2002).
Hoje, reconhecido como figura política e legítimo defensor da educação pública de
qualidade também para os grupos afrodescendentes, o professor Valter Roberto Silvério atuou
como membro da coordenação geral de ações educativas complementares na SECAD/MEC.
Segundo ele, o episódio vivido acontece com várias pessoas em distintas situações sendo
óbvio “uma trajetória muito complicada do ponto de vista do suporte emocional que você

134
Capital cultural no estado institucionalizado é aquele que está consolidado em títulos, certificados escolares
que podem ser comparados ao dinheiro porque guardam uma independência relativa em relação a quem o possui.

142
precisa ter para superar a tensão antes, durante e após você ter cumprido, digamos assim, as
exigências formais”.
Nesta experiência de “manipulação das identidades deterioradas” (GOFFMAN, 1988)
seria, conforme nossa interpretação, reflexo de uma auto-imagem de intelectuais brancos
como sendo brancos superpotentes, para usar o termo de Munanga (1988). Os sujeitos
estigmatizados em “situações mistas” (normais e estigmatizados) experimentam momentos
angustiantes no sentido de ter que reagir e confrontar-se com os normais – os grupos
estabelecidos pela brancura e vistos dentro de uma normalidade. No relato de Valter Silvério
evidencia-se a manipulação da sua identidade, conforme afirma Goffman (1988), por parte de
um dos membros do processo de seleção.
Entre os grupos identificados com a brancura que os torna superpotentes, às vezes, tais
declarações são construídas sem que se perceba a gravidade, o peso de práticas discursivas
interpretadas pelos afrodescendentes em desvantagem pela racialização como racistas. Essa
postura própria do primeiro grupo seria parte de uma espécie de “romantismo cínico” diante
de dados incontestáveis sobre a condição humana dos racializados.
A situação de acesso ao capital cultural e ao capital econômico dos grupos
afrodescendentes em pior situação de inserção social leva-nos a supor que esses grupos
brancos que falam a partir da universidade, como parte do pensamento universitário, ainda
estão identificados com um modelo de sociedade escravocrata e, portanto, desumana, não
interessando acolher grupos em condição de subalternidade no sentido de transformar tal
quadro. Sobre isso, José Jorge de Carvalho (2001) reforça:

Nos anos 50 e 70 os nossos cientistas sociais, os nossos ideólogos, sempre diziam que o Brasil era um
lugar integrado, um lugar multirracial que tinha democracia racial enquanto os Estados Unidos eram um
país de segregação racial, racista, intolerante, violento, que linchava negros; logo os negros não tinham
acesso a nada naquele país. Todavia, o que estamos vendo concretamente é o seguinte: como diz
Thomas Skidmore, os Estados Unidos estão se transformando em um país multirracial, onde o tempo
todo se fala numa perspectiva que visa contemplar os latinos, os mexicanos, os indígenas, os negros, os
asiáticos e os brancos. Eu não estou dizendo que aquilo seja um paraíso, mas em amplos setores da
sociedade há opressão para que haja uma integração ao mercado de trabalho, acesso aos benefícios,
acesso aos cursos superiores, possibilidade de ascensão social, possibilidade de uma maior
rentabilidade, possibilidade de acesso aos espaços de poder da sociedade (2001, p.19).

Pensando um pouco com Carvalho, pesquisadores afrodescendentes que ingressam nos


programas de pós-graduação e que desenvolvem uma produção afrocentrada têm suas
imagens representadas como estando fora do lugar (SAID, 2004), tendo em vista que produzir
conhecimento, nos centros acadêmicos, implica reunir competências e habilidades diversas
para privilegiar os cânones europeus, coisa que os não-brancos não estão autorizados a fazer.

143
Sua produção é fruto de sua subalternidade, uma perspectiva periférica que pode ser
reconhecida nas suas teses bem como nas suas histórias de inserção no mundo acadêmico e no
ativismo.
Por outro lado, dentre as proposições de autores que revelam sua preocupação com os
prejuízos causados pelo modelo de universidade, encontra-se a idéia de que essas esferas
deveriam ser entendidas como “identidades plurais, constituídas pelas interações, conflitos,
choques e entrechoques culturais, a nível de organização”(CANEN, 2004, p.121). Esta é,
portanto, uma defesa explícita por uma “ciência multicultural”. Neste caminho, concordamos
com a teoria dos estudos subalternos e nos apoiamos em sua defesa pela consciência
descolonizada, para captarmos nuances de outras racionalidades possíveis. Numa visão
multifacetada para a ciência, por isso desafiadora, incluem-se práticas discursivas na
contramão de clamores homogeneizantes.
Argumentos a favor de experiências interculturais na produção do conhecimento
apontam para possibilidades significativas na luta pela representação que se quer nos sistemas
ditos democráticos. Instâncias públicas se convertem em arenas de luta política no sentido de
garantir a representação dos grupos sociais em maior desvantagem política. A universidade
pública é potencialmente um dos espaços onde se legitima o conhecimento que passa a ser
considerado científico. Nela, a ausência de disputa territorial se constitui como uma ameaça
aos princípios de sistemas representativos.
Parece relevante realizar uma retomada dos argumentos sobre os agentes que fazem
parte da história do “desencantamento social” (SOUZA SANTOS, 2001). O que se pretende
apontar é que, determinados grupos, por mais empobrecidos que estejam no que se refere aos
capitais acumulados, absorvem a lógica de que o curso universitário é um caminho para
mudança de status. Figurando como parte de um sonho inalcançável, o curso superior
realizado em uma “federal” – expressão que inclui as universidades públicas de um modo
geral – é um projeto que, para milhares de pessoas, não tem passado de mais uma frustração.
Assim, estamos diante da conjugação de processos representativos fundamentais para quem
deseja entender os reflexos da patrimonialização do espaço público.
Notadamente, camadas empobrecidas da sociedade brasileira construíram no seu
imaginário a representação de uma educação como direito de todos, incluindo o curso
universitário. Com base nisso, acredita-se que, mesmo não encontrando os caminhos que
convertam projetos de formação superior em realidade, muitos grupos fixados por
mecanismos de diferenciação hierarquizantes – que conseqüentemente têm suas tentativas de
mobilidade social frustradas – conseguem avaliar como aspectos ligados aos modos de

144
classificação dos grupos e subgrupos definem a seleção a partir do vestibular. Ao fazerem
isso, concordam com o fato de que na universidade pública de prestígio só entra quem tem
dinheiro porque aquele lugar não é feito para pobre.
As oportunidades de inserção social que também se definem por uma legítima
formação superior podem ser interpretadas como parte da missão pública dessas esferas. Com
base em Souza Santos (2001), é possível vislumbrarmos um contexto de mudanças onde se
enfrente a crise da universidade, dispondo de estratégias e táticas para compensar as perdas
que afetam o futuro de gerações inteiras de jovens frustrados. Souza Santos (2001) menciona
um reencantamento da universidade como uma via de simbolizar o futuro perdido.
Por tudo isso, uma reforma universitária verdadeiramente democrática levaria em
conta o fato de que distintos segmentos depositam seus sonhos sobre “ter chances de
mobilidade social” também a partir da formação superior. Sobre essas representações,
podemos supor que está implícita a idéia de que é no espaço universitário que se pode
promover o conhecimento como bem público. Mesmo para os setores que não se aventuraram
a enfrentar o vestibular135, ele é parte de um ideal de pertença e que, de alguma maneira,
aparece como desejo sobrante (SANTOS, 2004) nas narrativas sobre inserção social em
sentido mais amplo.
Incluindo a iniciação à pesquisa, a experiência em projetos de extensão e o ensino,
embora as universidades não tenham sido criadas para acolher os diferentes segmentos da
sociedade, está no seu imaginário, representada como tal. Portanto, nas representações sociais
elas têm uma missão pública, devendo renunciar a projetos ocultos, do tipo que se costura nos
corredores, projetos que se caracterizam por uma “presença ausente da raça” (APPLE, 2001).
O ensino deve ser público e gratuito, conforme o que se escreve e se defende na perspectiva
dita democrática. Os esforços para que isso aconteça no interior da universidade praticamente
não são identificados enquanto políticas. Como um discurso oculto e forjando uma política
oficial para funcionar desde o seu início, a perspectiva da universidade que privatiza o saber
acadêmico se coaduna com a busca pela diferenciação na estrutura social. É inegável sua
característica de ser um espaço possível de negociação. Contestar o seu ordenamento interno é
parte de uma perspectiva afrocentrada preocupada com o regulamento, as práticas de
violência e a fixação de uma hierarquia de cargos, funções e, sobretudo, dos lugares sociais.
Sua estrutura burocrática, seus ritos e modos de dominação tradicional do saber científico

135
Visto como um ritual de passagem – e é aí, supomos, que se produzem explicações para a defesa do mérito
daqueles que o enfrentam e são brindados com a classificação – o vestibular é parte de um processo seletivo

145
fazem parte da tematização em curso a partir do olhar afrocentrado. De maneira semelhante, a
própria noção de presença/ausente deve ser agregada a este modelo de fixação. Parece
necessário reconhecer pistas dadas pela busca incansável do ativismo acadêmico de
intelectuais afrodescendentes.

4.1. Outsiders e a universidade como um desejo sobrante:


No imaginário de uma sociedade em que a conformação hierárquica está legitimada
pelos modos de seleção e classificação de seus participantes, não é interessante desestabilizar
a ordem vigente. Ao reconhecermos tal fenômeno, devemos admitir a potencialidade dos
discursos a favor da desestabilização do espaço universitário, o que implicaria a preparação
dessa esfera no sentido de criar condições para acolher outras participações políticas. Nesta
medida, a universidade teria, pelas suas características fundadoras, condições de favorecer o
deslocamento daqueles setores com histórica desautorização no que se refere às possibilidades
de mobilidade social, pela sua experiência de “não-pertencimento” humano.
Para Joel Rufino dos Santos (2004a), a definição de uma espécie de desejo não
satisfeito como sendo um desejo sobrante, inclui o argumento de que este é parte de uma
engrenagem social cuja finalidade tem sido, ao longo da história da sociedade brasileira,
garantir vantagens materiais para “grupos” oligárquicos em detrimento da justa distribuição
desses bens para multidões historicamente incluídas pela condição de subalternidade. A
dualidade presente entre tais estratos sociais seria, por definição, o fato de um se alimentar do
outro. Assim, “só havendo multidões que não compram (ou não pagam, ou só podem pagar
pouco), se estimula, por tabela, o desejo dos que compram” (SANTOS, 2004a, p.30).
Muito antes de Santos (2004), Oracy Nogueira136, outro homem público interessado em
entender as relações entre grupos humanos debruçou-se nos estudos de comunidade para
produzir um marco nas pesquisas antropológicas que é Preconceito de marca: as relações
raciais em Itapetininga (1998). Segundo ele,

O preconceito racial, como parte integrante do sistema ideológico do grupo branco, contribui para a
manutenção do status quo, nas relações entre os elementos brancos e de cor da população, pela sua
dupla atuação: 1. sobre o conceito e a utilidade dos primeiros em relação aos últimos; e 2. sobre a
autoconcepção e o nível de aspiração destes últimos. Já nos primeiros anos de vida, tanto as crianças

legitimado socialmente e que historicamente, apesar das contestações sobre sua função de diferenciar os
socialmente em desvantagem, converteu-se em instrumento, por princípio, incontestável.
136
Conforme Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti (1998), Oracy Nogueira era homem branco que
ingressou na Escola Livre de Sociologia e Política (ELSP) em 1940. Foi a partir da inspiração favorecida no
contato com Donald Pierson, Radcliffe-Brown, entre outros, que Nogueira interessou-se pelos estudos das
relações raciais. Por conta dos estudos realizados a partir de observação participante, o legado de Nogueira
deixa como principal aspecto o conceito do “preconceito de marca” (1954).

146
brancas como as de cor aprendem a valorizar a cor clara e os demais traços ‘caucasóides’ e a
menosprezar a cor escura e os demais traços ‘negróides’ ” (NOGUEIRA, 1998, p.197).

Na experiência subalterna, como é o caso das relações sociais entre famílias e


indivíduos moradores de favelas e morros, é muito comum a depreciação de uns para com os
outros. Entre grupos fixados como pretos, mulatos, morenos, marrons, a claridade da pele
converte-se em moeda sobretudo no campo afetivo. Esse exemplo serve como ilustração para
entendermos os modos de identificação a partir de uma ideologia brasileira de relações inter-
raciais. Torna-se atual a observação de Oracy Nogueira quando ratifica:

Na vida social, em geral, os caracteres negróides implicam preterição de seu portador quando em
competição, em igualdade de outras condições, com indivíduos brancos ou de aparência menos
negróide. Conseqüentemente, o status ou o sucesso do indivíduo negróide depende, em grande parte, da
compensação ou neutralização de seus traços – ou de seu agravamento pela associação com outras
condições, inatas ou adquiridas, socialmente tidas como de valor positivo ou negativo – grau de
instrução, ocupação, aspecto estético, trato pessoal, dom artístico, traços de caráter etc.
(NOGUEIRA,1998, p.200).

Norbert Elias (2000), em sua investigação sobre grupos “estabelecidos” socialmente e


aqueles chamados outsiders, mostra, a partir de estudos de caso, uma enorme possibilidade de
entendermos os brancos como estabelecidos e os não-brancos como outsiders, em situações
em que os brancos, ainda que pobres e analfabetos, gozam de privilégios quando comparados
aos não-brancos pelo menos em condições iguais. Interessante é notar seu argumento sobre
como armadilhas assim como coerções sociais podem ser bem investigadas por se
converterem em fontes de análises privilegiadas. Elias (ibid) afirma que, em um dos contextos
analisados, “as pessoas não podiam tomar em suas mãos o direito, ou, em outras palavras,
utilizar a violência física, sem correr o risco de ser castigadas” (p.206). Em um segundo caso,
isso era completamente diferente:

Todos os membros do establishment, todos os homens brancos, tinham acesso a armas de fogo. Seu
modo de vida requeria intimidade com a luta física. Para os outsiders negros, por sua vez, o acesso a
armas de fogo era quase sempre vedado, quaisquer que fossem seus patrões, e a prática de luta física
entre eles era severamente controlada. O privilégio da posse e do emprego mais ou menos permitido de
armas dava ao grupo superior, como em todos os casos, desse tipo, a possibilidade de tomar decisões
sobre a vida e a morte de outros cidadãos do Estado que não eram privilegiados da mesma maneira,
obtendo assim chances de poder que estavam completamente fora do alcance dos grupos não-
privilegiados (ELIAS, 2000, p.206).

Notadamente, trata-se de uma realidade definida pelas relações de força clássicas,


como é o caso das experiências de conflito armado. A igualdade simbólica – ao contrário do
que pregam os defensores de sistemas representativos – não funcionava quando a convivência
era entre grupos tradicionalmente em posição de comando e o outro grupo, dos que foram
147
ordenados como mão-de-obra escrava. Os privilégios dos primeiros, enquanto participantes
do establishment, permaneciam firmes e inabaláveis. Igualmente claros, são os símbolos da
posição outsiders no que diz respeito aos negros como indivíduos ou grupos familiares.
Ainda no argumento de Norbert Elias (2000, p.208), aqueles que monopolizam o
acesso a informações e decisões asseguram, para si mesmos, certas fontes de superioridade
em termos de poder e de status. Em outras palavras, “a destreza necessária para a aquisição de
saber é uma dessas fontes. Segundo uma tradição antiga, o saber, inclusive o saber de como
adquiri-lo, é visto apenas em sua qualidade de meio de conhecimento”. Elias (2000),
destacando os ganhos da pesquisa sobre estabelecidos e outsiders, para a sociologia de um
modo geral, enfatiza que é fundamental examinarmos as necessidades de alguns grupos se
destacarem de outros. No bojo dessas manifestações está caracterizada uma busca por
diferenciação na estrutura social que, segundo o autor, não deve ser restrita a particularidades
econômicas (ELIAS, 2000, p.209).
Com base nos pressupostos sobre o desejo não satisfeito, a universidade, pelo fato de
também aparecer como objeto desse desejo sobrante – e diante de tantas provocações
recebidas no que tange à sua missão pública – é uma esfera que reúne condições para abrigar
movimentos e formulações de políticas de identidade multifacetadas. Espera-se que se
converta em uma arena de contestação, de atritos naturais, que fomente os sistemas de
representação.
Por outro lado, a insolubilidade dos problemas da disputa por melhores posições que
envolvem a esfera universitária é, sem dúvida, uma das estratégias de monopolização dos
melhores lugares da sociedade. Interpretamos que o desejo de ordenar hierarquizando,
conforme destaca Norbert Elias (2000), tem dependido da conservação das estruturas sociais,
como é o caso do ordenamento dado à universidade pública. Mais instigante ainda e que
merece destaque é que no Brasil o curso efetivo dos acontecimentos na esfera pública
envolveu, nos últimos anos, o pressuposto de que a universidade pública está relacionada ao
projeto de país, seja ele qual for.
Como palco de tensões entre os que defendem o acesso aos bens culturais para todos e,
por outro lado, aqueles que acreditam no discurso do mérito, a esfera pública vem aos poucos
assumindo sua função de fomentar a participação política. Como argumenta Carlos Alberto
Medeiros (2004, p.166), “nos últimos anos, propostas do movimento negro têm sido adotadas
pelo Brasil afora, em âmbitos federal, municipal e estadual”. Podemos supor que essa agência
tardia e ainda restrita pode ser repensada com a maior participação política de sujeitos não-
brancos.

148
Nessa perspectiva, torna-se indispensável recuperarmos a confirmação de que, no
Brasil, a esfera pública é definida como um mercado de opiniões orquestrado por grupos
interessados em garantir o seu controle. Conforme anuncia Sergio Costa (2002, p.18),

Mesmo considerando que a esfera pública é um fórum de debate, estabelece-se uma


diferenciação funcional rígida entre os porta-vozes de partidos, de grupos organizados etc. e os
meios de comunicação, por um lado, e o público (no sentido da platéia) por outro. Enquanto os
primeiros são, em última instância, os atores da esfera pública, o público é mero destinatário das
mensagens, sem voz pública efetiva.

Na discussão sobre a rejeição da alteridade (SODRÉ, 2000b), importa entender, como


aponta Ware (2004, p.9), “que forças históricas e contemporâneas sustentam as formações
particulares da branquidade no Brasil e que estratégias anti-racistas seriam apropriadas para
subvertê-las”. Tal convergência implica ações políticas no que concerne às agendas dos
outros grupos que lutam por representação na sociedade. Assim, as respectivas demandas
podem ser expostas e defendidas com a promoção de suas reivindicações na esfera pública
(COSTA, 2002).
Deslocar o foco de interpretação do mundo, produzir novos argumentos sobre as
condições de diminuição da desigualdade, a formulação de políticas sociais, entre tantas
outras demandas, são agendas que dependem de um debate que, acima de tudo, deve acolher
os interesses dos distintos segmentos da sociedade. Na constituição do conhecimento como
bem público – uma tarefa desafiadora em um contexto de sucessivas remediações no que se
refere ao reconhecimento de quem são esses sujeitos da sociedade – é urgente que se
desestabilize o modelo de institucionalidade vigente.
O apelo presente nas narrativas sobre a primazia da universidade pública construídas
por intelectuais em condição de subalternidade – no caso deste estudo de tese, os
afrodescendentes – é de que se tornou urgente a configuração de uma “outra universidade”,
aquela que incorpora distintas formas de produção do conhecimento e que, para tanto, deve
assumir a desestabilização de parâmetros conceituais, no que tange à produção de saberes
ditos “científicos”. Gostaríamos de antecipar um fragmento do depoimento do professor
Valter Silvério137:

Nós estamos num campo absolutamente ideológico no sentido de que nós estamos discutindo idéias,
representações sobre o que seja, o que foi, o que é e o que será este país. Então, eu não tenho dúvidas
da importância da gente manter estas linhas de pesquisa e aprofundá-las e recontar algumas histórias
que, penso, são mal contadas sobre o Brasil .

137
Nosso primeiro respondente é professor da Universidade Federal de São Carlos tendo sido membro da
SECAD/MEC.

149
A noção de conhecimento pluriversitário desenvolvida por Souza Santos (2004b)
assume a confrontação do conhecimento científico com outros conhecimentos. Essa
configuração demandaria um conjunto de práticas, visando promover uma nova convivência
ativa entre saberes para o enriquecimento do diálogo. Por isso, as relações unilaterais que
marcam a sua fundação devem se reconfigurar dando lugar a uma interatividade
potencializada pelas novas entradas que a universidade pública pode construir. Acreditando
na perda do encantamento que pode ajudar a mover toda e qualquer inserção política pelo
desejo de representar, principalmente por parte de setores em condição de maior pobreza,
podemos nos apoiar no argumento de que é também através das universidades públicas que o
Brasil promoverá uma retomada nas relações sociais entre movimentos populares,
movimentos de base e instâncias públicas fundamentais na reconstrução de uma esfera
pública.
Intelectuais que trabalham para os pobres são sujeitos envolvidos com a tarefa
visceral que consiste em ajudar a promover a justiça, isso inclui diminuir as desigualdades de
toda ordem. Intelectuais que emergem dos setores mais empobrecidos são, potencialmente,
sujeitos que reúnem condições para defender uma construção de processos mais democrática
no sentido de se promover o acesso aos bens culturais. Por afinidade, tendem a problematizar
a injustiça sofrida, conforme afirmou Valter Silvério, no sentido de promover políticas
reparadoras.
É crucial, para este trabalho, entendermos as idiossincrasias que caracterizam as
relações de força, no plano simbólico, entre grupos “instituídos” e um movimento de
insurgência caracterizado pelas tentativas de conformação de uma Outra intelligentzia por
assim dizer, justamente pelo seu vanguardismo em termos de intervenção política na luta por
representatividade no cenário nacional. Em suas práticas discursivas, fica evidenciada a
aproximação com uma produção de sentidos que parte do reconhecimento da condição de
subalternidade dos grupos afrodescendentes nos diferentes contextos regionais do país
(MIRANDA, 2004).
Podemos afirmar que esses discursos se constituem como forças históricas em um
cenário recente que ultrapassa a idéia de ser urgente a formação de uma postura defensiva dos
que sofrem com a doutrina neoliberal atingindo o sistema de ensino superior. Em outros
termos, a recente guinada na produção intelectual afrocentrada, no Brasil, é reflexo de uma
inclinação para as lutas anti-racistas que almejam expurgar políticas de identidade

150
eurocentradas que, conseqüentemente, são políticas de branquidade. A visibilidade dos
discursos anti-racistas depende da legitimidade dessa agenda na esfera pública.
Em sentido mais amplo, esse debate ainda está circunscrito aos fóruns tímidos que
congregam intelectuais preocupados com a inserção social de sujeitos representados como
não-brancos, cuja imagem tem agredido os setores oligárquicos que não admitem conviver em
“situações mistas” (GOFFMAN, 1988).
A agenda de reivindicação dos movimentos anti-racistas conta com inúmeras questões
em aberto, como é o caso do extermínio dos jovens pobres, na sua maioria não-brancos. A
situação carcerária no Brasil é visivelmente uma questão racial. Em outras palavras, o
protagonismo de intelectuais não-brancos militantes é insuficiente em termos de participação
política na defesa desses grupos submetidos aos desdobramentos de políticas de
embranquecimento.
Quando observamos as ações necessárias nessa luta por justiça social para os não-
brancos, pensamos nas teses e teorias com as quais os pensadores brasileiros, os intelectuais
acadêmicos estiveram ocupados desde a história da sociedade brasileira. Há indicações de que
por uma espécie de romantismo cínico, já mencionado aqui, intelectuais “estabelecidos” na
academia não foram capazes de dialogar com grupos em desvantagem política. Para essa
análise, ajuda examinarmos os temas e textos sobre “os outros” no Brasil.
Santos (2004), considerando a literatura como uma “inscrição filogenética” (p.35),
desconfia que, em sistemas e regimes desumanos, ela vem exercendo um papel fundamental
no sentido de confeccionar, notadamente a partir da história, um relato daquilo que deve ser
considerado como fato principal. O que interessa conhecer de uma sociedade é aquilo que
ganha visibilidade em detrimento de fatos da vida real de multidões que não são legitimados:

O verdadeiro apagamento da memória não é o da memória historiográfica.Os currículos escolares


maltratam a história, é verdade, mas o problema não é este. O “samba do crioulo doido” soa grotesco ao
misturar fatos, pessoas e datas que realmente estão separados, mas não prova da sanidade mental do
crioulo e, de outro lado, da doidice de quem acredita na ordenação de fatos, pessoas e datas que
chamamos história do Brasil. O denominador comum entre história e literatura, o que as justifica,
independente de quaisquer outros atributos, é apenas a verossimilhança. Na história, os pobres não se
encontram como sujeitos, mas como coisas, emblemas, espécie de lixo pedagógico para exaltação da
ordem e progresso nacionais. A literatura é a única história do pobre – assim como a música popular, o
enredo da escola de samba, a arquitetura e a decoração dos mocambos, o artesanato artístico, futebol-
arte, e a literatura oral – porque o institui como sujeito desejante (SANTOS, 2004, p.34-35).

É apenas na ficção e na poesia que o pobre tende a triunfar já que sobre ele a história
reflete uma coleção de derrotas. Os desdobramentos de fenômenos como esses atingem de
modo desumano os grupos racializados. No interior da pobreza, já não é novidade, brancos e

151
negros vivem em condições materiais também desiguais. Ainda segundo Santos (ibid), o
branco pobre compensa seu fracasso tiranizando o negro e, na literatura, a brancura é o lugar,
por assim dizer, de onde se fala e se lê o mundo:

Menino leitor, durante algum tempo eu mesmo estranhei que só as personagens negras dos nossos
romances fossem identificadas “racialmente” (o negro fulano, a preta sicrana). Acabei me conformando
à idéia de que os romances brasileiros não eram escritos para meninos negros (não sem antes me rebelar
contra o ditado que me atirava um velho parente nordestino quando me surpreendia lendo: “Preto não é
de letras é de tretas”). O branco é o lugar óbvio de onde se fala e se lê no Brasil (SANTOS, 2004, p.39).

A agência afrodescendente, para a plena compreensão dos nossos pressupostos, deve


ser analisada com base nos obstáculos decorrentes do racismo, legitimados sobretudo pelo
Estado. Discussões teóricas, portanto, não podem funcionar sem ações concretas, voltadas
para a institucionalização das políticas focadas no sentido de inserir grupos não-brancos nos
espaços de decisão, de participação política de onde todos podem ter oportunidade de lutar
por um sistema representativo concreto.
Historicamente, movimentos sociais estão desvinculados dos espaços acadêmicos,
ficando restritos aos sindicatos e organizações não-governamentais, por exemplo. No Brasil,
os movimentos negros não têm tido espaço para dialogar em condições iguais na esfera
pública. São fóruns circunscritos aos poucos interessados nas questões que orientam suas
agendas. Representações construídas sobre os sujeitos subalternizados têm o poder de projetar
sua imagem a partir de um processo que controla a subordinação com base em identidades
hegemônicas, como é o caso da branquidade.
Em seu trabalho sobre identidade branca, Liv Sovik (2004, p.384) afirma que o
“interesse em analisar a branquidade não é de traçar o perfil de um grupo populacional até
então ignorado, mas de entender como, há tanto tempo, não se prestou atenção aos valores
que o definem”. Ao nos aproximarmos dessa noção, encontramos eco no argumento da
ditadura racial branca (grifos meus) nos espaços de formação de opinião onde se afirmam as
identidades individuais e de grupos. Para esta pesquisa, a universidade pública é vista como
parte de espaços de formação da opinião pública de modo singular e intransferível, sobretudo
porque as branquidades inquestionadas marcam esses territórios por processos de
colonização e têm orientado culturalmente as estruturas sociais bem como as formas de
definição de discursos neles produzidos.
Conforme se pode entender, o conceito de “branquidade” revela a predominância de
estratégias de normatização de discursos eficazes. Como força política, esta normatização é
obtida no esforço discursivo presente nas formas de representação dos sujeitos colonizados

152
para a obtenção de um resultado favorável no que se refere à garantia de concepções
privilegiadas. A idéia de auto-referenciamento, de fragmentação racial, que mencionamos
aqui, serve para a reflexão sobre a eficácia do silenciamento dos sujeitos subalternizados pelo
pertencimento racial. A visibilidade das agendas dos movimentos negros está comprometida
por não ser devidamente legitimada no debate público.
No debate sobre esfera pública, Muniz Sodré (2000a) considera a mídia como o
intelectual que representa um segmento específico definido como elites hegemônicas do
capital financeiro, e que decisões estratégicas são tomadas por esse bloco do poder, pelo
estamento que está no poder. Sua teoria da mídia inclui o seguinte argumento:

As elites sempre quiseram se ver como cordial. Esse traço da cordialidade contribuiu para
formar uma identidade nacional e que evidentemente é mítica, é fictícia, é construída. Por outro
lado, as palavras também têm força para forjar a realidade, você acaba se comportando dessa
maneira, quando faz cinema, quando faz escola de samba, em função do que se diz que somos.
É assim mesmo, nós somos captados pela linguagem que produzimos. Ora, a mídia é um tipo
de discurso, é um tipo de expressão, que ajuda, digamos assim, a consolidar os clichês, os
estereótipos, os mitos sobre nós mesmos. Portanto é um lugar de confirmação da identidade. E
por que confirmação? Porque eu não vejo luta. (SODRÉ, 2000a, p. 23).

Sendo a mídia “um tipo de expressão”, as informações veiculadas nos seus


instrumentos são particulares e cumprem com eficácia o papel de, em termos políticos, ajudar
a criar consenso sobre a ordem social que sustenta a regulação, entendida aqui como
eurocêntrica e/ou branca. Para Muniz Sodré (ibid), uma das nuances da estética grotesca é a
sua capacidade de ridicularizar o “terrível”. O que o autor chamou de riso cruel para pensar as
formas de sustentação da audiência da televisão, estamos ampliando para analisar o discurso
construído sobre as identidades que marcam os espaços acadêmicos das universidades
públicas. Seria “um tipo de riso massivo, pretensamente democrático, em que antigos objetos
de indignação (miséria, opressão, falta de solidariedade, descaso dos poderes públicos etc.)
recaem na indiferença generalizada” (SODRÉ, 2000a, p.132).
As análises de Sergio Costa (2002) sobre as inovações e transformações sociais e suas
formas de reprodução na esfera pública incluem uma observação elucidativa sobretudo para
ajudar no exame da conformação de espaços públicos:

[...] a relação entre as reconfigurações do espaço público e as mudanças nos padrões de ação
dos diferentes agentes sociais não é direta e linear. O crescimento da importância pública do
movimento negro, do movimento feminista ou do movimento ambientalista, por exemplo, não
tornou os brasileiros imediatamente menos racistas, menos sexistas ou seriamente preocupados
com a sustentabilidade ambiental. Não obstante, parece inegável que, nos últimos anos, o
racismo, o sexismo ou o uso perdulário dos recursos ambientais perderam parte de sua
legitimidade ‘natural’, reduzindo-se correspondentemente os espaços sociais nos quais as

153
manifestações racistas, sexistas ou voltadas para a degradação ambiental não merecem
condenação imediata (COSTA, 2002, p.184).

Este crescimento da importância pública do movimento negro, dentre outros


movimentos, não pode ser analisado do mesmo modo. A agência afrodescendente tem, como
função política, produzir um contradiscurso, enfrentando os obstáculos de um discurso racista
e escravocrata. Trata-se portanto de uma defesa do pertencimento humano de não-brancos.
Como já mencionamos, os estudos sobre relações raciais se converteram em estudos
sobre A questão do negro – o que não deixa de ser uma perspectiva de coisificar esses
sujeitos. Representados como “entrave social”, ou como “problema epistemológico” são
objetos da Antropologia bem como da Sociologia e que, por tradição, estão por aí; são corpos
circulantes sendo observados ainda a partir de seu modo de vida, com ênfase, por exemplo,
nos espaços geográficos que ocupam e também a partir da sua inserção religiosa.
Produzindo um contradiscurso, Carlos Alberto Medeiros (2004) chamou de um “tipo
de etnocentrismo vulgar” posturas que consideram o conhecimento de intelectuais negros
como sandices. Para ele, “é a revolução dos micróbios, da qual a luta pela ação afirmativa,
que tem entre os seus protagonistas a parcela mais atuante da intelectualidade afro-brasileira,
constitui a etapa atual” (p.168).
Conforme apresentado no texto introdutório, esta tese se configura como um estudo
subalterno e, no curso de nossa pesquisa, passou a ser fundamental interpretarmos tais
experiências como sendo marcantes para a grande parte dos grupos inseridos a partir dessa
condição138. O que se pretende neste espaço de investigação será alcançado a partir da
realização de um exercício interpretativo no sentido de apreendermos especificidades de um
duelo simbólico imposto por “situações mistas” (GOFFMAN, 1988) que envolvem aqueles
identificados com a brancura, com a referência de um Brasil eurodescendente e aqueles
representados como “os não-brancos”, por carregarem o estigma de não ser intelectualmente
capazes, já que não são brancos. Não ser branco tem, em sentido amplo, significado de ser
despossuído de capacidade, é, por isso, estar submetido a práticas de manipulação de sua
identidade, é ter a auto-imagem deteriorada.

138
Tanto a autora como os entrevistados fazem parte de uma mesma história, estão partindo de suas lutas
individuais para instituir um coletivo de intelectuais afrodescendentes empenhado na luta por participação
política.

154
4. 2. Identidades na universidade pública: estigma e afrodescendência

Aceitamos a idéia de que se tornou urgente que se assuma a perda da hegemonia no


contexto das universidades e essa conduta pode se configurar como um primeiro passo para
caminharmos, enquanto protagonistas-chaves – capital nacional, minorias organizadas,
pesquisadores – em direção à legitimidade da instituição pública, uma esfera fundamental
para o desenvolvimento de experiências também plurais, ou “pluriversitárias” (SOUZA
SANTOS, 2004b).
Presume-se que uma outra universidade permitirá a expansão dos discursos
necessários no sentido de contemplar sujeitos historicamente alijados dos processos de
decisão na esfera pública. Aquilo que denominamos neste estudo como as “outras vozes”
pode ser traduzido como vozes insurgentes necessárias a esse projeto de país voltado para a
visibilização do que está representado, quando muito, como subalterno. Observamos, nos
argumentos de Souza Santos (2004b), que a formulação de uma reforma progressiva da
universidade passaria pelo modelo de institucionalidade moldado pelo conhecimento
pluriversitário139:

A passagem, como vimos, é de conhecimento disciplinar para conhecimento transdisciplinar; de


circuitos fechados para circuitos abertos; de homogeneidade dos lugares e atores para a
heterogeneidade; da descontextualização social para a contextualização; da aplicação técnica à
disjunção entre aplicação comercial e aplicação edificante ou solidária. Esta passagem é mais evidente
nos países centrais mas é já detectável nos países semiperiféricos ou periféricos, ainda que nestes
últimos a passagem não seja autônoma (SOUZA SANTOS, 2004a, p.97-98).

Entende-se que, pelo instituído, os campos intelectuais são arenas, territórios, espaços
de disputa de bens culturais. Neles, as práticas de diferenciação já são desafiadas pela
presença de corpos não reconhecidos pela comunidade imaginária − o grupo social que
monopoliza os melhores lugares na esfera universitária. Sendo assim, a interlocução com o
grupo estabelecido no espaço acadêmico implica o reconhecimento de algumas
manifestações: ao se reconhecerem como pertencentes àquele grupo e lidando com a presença

139
Conforme os dados já mencionados, o Brasil sustenta cerca de 98% dos sujeitos que, segundo o fenótipo
africano, são classificados como pretos e pardos, fora dos bancos universitários e, para contemplar a visão de um
conhecimento multifacetado, o conhecimento definido como “pluriversitário” (ibidem) poderia ser orientado
tendo em conta as experiências desse “outro” racializado. Agregando às formulações teóricas o que pensam e
produzem grupos representados como “não-sujeitos”, seria, em certa medida, buscar definições ampliadas de
problemas sociais. Com essa possibilidade de agência de grupos em condição de subalternidade, a dinâmica
social converte-se em territórios contestáveis, palco de relações conflituosas necessárias ao sistema
representativo.

155
afrodescendente, lançam olhares, indagações sobre seus temas de pesquisa, representam todos
como outsiders (no sentido de Norbert Elias), confundindo doutorandos com, no máximo,
alunos do mestrado. Entre as práticas de estigmatizar o diferente como incapaz, esse
comportamento faz supor que também no campo intelectual a identidade é uma comunidade
imaginária construída por meio de variadas formas de representação. Como uma invenção, a
identidade não existe naturalmente. Isso porque:

Ela é construída pelo grupo e pelos outros grupos. Não existe nada de “naturalmente” comum ligando
os diversos indivíduos de um determinado grupo. Certamente, existem certas condições “sociais” que
fazem com que os grupos se vejam como tendo características em comum: geográfica, sexo, “raça”,
sexualidade, nação. Mas mesmo essas condições sociais têm de ser “representadas”, têm de ser
produzidas por meio de alguma forma de representação. Aquilo que um grupo tem em comum é
resultado de um processo de criação de símbolos, de imagens, de memórias, de narrativas, de mitos, que
“cimentam” a unidade de um grupo, que definem sua identidade [...] Os diferentes grupos sociais
utilizam a representação para forjar a sua identidade e as identidades dos outros grupos sociais. Ela não
é, entretanto, um campo equilibrado de jogo. Por meio da representação travam-se batalhas decisivas de
criação e de imposição de significados particulares: esse é um campo atravessado por relações de poder.
A identidade é, pois, atividade produzida na e por meio de representação: é precisamente o poder que
confere seu caráter ativo, produtivo (SILVA, 2001, p.47).

Na chamada produção ativa possibilitada pela representação que se constrói sobre o


que é o outro ou si mesmo é que localizamos a força do olhar. Ele pode revelar o
estranhamento e a sensação de incômodo com a presença do corpo estranho. Sendo corpo, não
teria sentido fazer parte das mais altas instâncias acadêmicas – como é o caso dos programas
de mestrado e doutorado. Sendo estranho, não faz parte da normalidade e sua presença, entre
tantas possibilidades, parece ameaçar a identidade do grupo. A primeira atitude seria de tentar
se proteger enquanto grupo.
O incômodo causado pelo olhar, o julgamento manifesto nessa expressão humana
cumpre a função reguladora dos comportamentos e regras diversas. Assim, visão e poder são
mutuamente indissociáveis. Na representação, os olhares exercem a tarefa central que é a de
dizer quem tem o poder. Por tudo isso, devemos tratar aqui de compreender nuances de tais
experiências, encontros entre os representados como “normais” e os “estigmatizados”. A
partir de situações mistas140, sujeitos organizados no coletivo visando fortalecer essa
identidade grupal são desafiados a enfrentar, na universidade, suas diferenças, levando-se em
conta a representatividade em um jogo simbólico por disputa de espaço.
Em cada campo intelectual, conforme nos indica a literatura (BOURDIEU, 2000), a
força da classificação permite constatar, quando observamos o fenômeno que promove os

140
Ver Erving GOFFMAN, Estigma: notas sobre a identidade deteriorada, 1988.

156
grupos autorizados a circular nesses campos, o modo como essas dinâmicas operam.
Acreditando na força desses processos de classificação/diferenciação, é que passa a ser
imprescindível observarmos a crise de legitimação que está no centro das pesquisas
científicas.
Em outras palavras, problematizar a função social das universidades implica
perguntarmos sobre as políticas para a sua desestabilização, dando ênfase à situação daqueles
grupos que foram mantidos fora dos espaços de decisão e de formação de opinião pública. Em
outras palavras, as hipóteses que nos orientam estão relacionadas à força do pertencimento
acadêmico indo além de um projeto individual. Tais proposições servirão para o debate sobre
uma sociologia das “lutas afrodirigidas”, incluindo a universidade pública. Sobre isso, é
necessária uma maior problematização das agendas de pesquisas dos pesquisadores
afrodescendentes.
Neste caminho, as narrativas sobre o pertencimento acadêmico do grupo de
intelectuais não-brancos aqui reunidos se constituem como “espelho” no sentido de nos
fazerem enxergar, nesses discursos, particularidades das suas experiências, principalmente a
percepção dos estigmas que sofrem. Notadamente, suas narrativas refletem a certeza de que
ser “parte” do “todo” implica a garantia de participação política nos diferentes fóruns
instituídos na esfera pública. Assim, o que supomos é que, enquanto grupos subalternizados,
intelectuais afrodescendentes pretos e pardos enfrentam essa condição e assumem uma agenda
coletiva na medida em que sua produção intelectual se caracteriza por uma insistente
reelaboração dos temas localizados no eixo “relações raciais”. Ativistas inseridos em
movimentos diversos, os intelectuais negros com formação pós-graduada constroem suas
narrativas de modo rigoroso, contestando a tradução assumida por políticas de ausência e de
negação, no sentido mais amplo, que atingem a população não-branca. Sua contribuição tem
sido a de referendar o humanismo perdido nos processos de neutralização de multidões.
Opondo-se a discursos que aplaudem a meritocracia e a lógica universalista, o discurso e a
presença afrodescendente, atingida pelos prejuízos da resistência branca, fazem um esforço
do deslocamento, visando sua agência enquanto insurgentes históricos.
O que se presume é que indivíduos com identidade deteriorada enfrentam a
característica central da própria situação de vida, que é lidar com a aceitação (GOFFMAN,
1988, p.18). Isso ocorre porque o pertencimento étnico/racial no passado colonial e no
presente colonial deforma grupos inteiros que têm suas identidades vigiadas. Nossa
abordagem deve apoiar-se na seguinte pergunta: o que podem instituir esses grupos de
afrodescendentes na universidade? Foram depositados, nesses indivíduos “deslocados” de

157
suas bases, estigmas diversos definidores de sua posição em um ordenamento definido como
colonial e fixo desde a senzala; seu “defeito” seria, então, o cabelo, a cor da pele e, no
conjunto, o emblema, a etiqueta, a marca do “outro colonial”. Apenas há cerca de 115 anos,
homens e mulheres de origem africana eram chicoteados e usavam cinto de castidade.
Já no início do século XXI, seus descendentes vislumbram conseguir participação
política, defendendo agendas pautadas com políticas de inclusão e instituindo sua participação
em grandes tribunas onde seu próprio destino é decidido; escrevem livros e produzem teorias
sobre a experiência de “ser” humano, de existir menos como coisa e mais como agente. E
tudo isso pode ser considerado, na melhor das hipóteses, como uma experiência recente, o
que tende a justificar, para o caso do Brasil, a idéia do negro como sendo uma questão a ser
estudada, um problema epistemológico.
Há indicações de que a condição subalterna do grupo de intelectuais não-brancos com
os quais estamos dialogando é aquela onde sujeitos representados como “normais” e sujeitos
estigmatizados pelo fenômeno da racialização realmente se encontram na presença imediata
uns dos outros (GOFFMAN, 1988, p.23). Em sala de aula, nos grupos de pesquisa, nas
reuniões de departamento − para quem já é professor −, no corredor dos programas de pós-
graduação e no cafezinho do intervalo das aulas, acontece o que queremos definir como
“enfrentamento”. São “encontros”, espaços criados espontaneamente para a formação de
“redes de colaboração”.
Neste sentido, a situação social descrita é parte daquela definida por Goffman (1988,
p.26) como uma situação mista caracterizada como encontros de interação angustiantes entre
aqueles vistos dentro de uma normalidade e aqueles estigmatizados. Não é por outro motivo
que muitos alunos abandonaram suas teses e dissertações. Ser pobre, na universidade, é,
seguramente, ser o outro. Ser pobre e não-branco seria passar por “provações divinas”, tendo
em vista aquilo que apreendemos dos relatos de nossos respondentes. Para Valter Roberto
Silvério (nosso primeiro entrevistado), a experiência de concorrer a uma vaga para docência
em universidade pública se constituiu em uma situação desafiadora:

Na atual instituição que eu trabalho hoje, prestei dois concursos. O primeiro concurso, é uma coisa
assim, que eu não esqueço até hoje. Quando um professor da banca dizia, “mas o que que esse negão
assim...”, eu percebi o que que ele tava falando: o que que esse negão está fazendo aqui, olha só!? Isso
num concurso público. Então, quer dizer, eu acho que tem uma... tem aspectos dessa trajetória que são...
que dariam teses interessantíssimas em distintas situações. Eu acho que... isso acontece com várias
pessoas em distintas situações. Mas, por último, mas não em último, eu acho que é uma trajetória muito
complicada do ponto de vista do suporte emocional que você precisa ter para segurar a tensão antes,
durante e após você ter cumprido, digamos assim, as exigências formais. Então é mais ou menos isso.

158
Ao mesmo tempo, acredita que vivemos hoje um momento mais confortável para a
vida acadêmica porque compreende que passamos da fase de mostrar que éramos capazes.
Assim, segundo ele, o que está mudando é que:

Nós, com todas as dificuldades que nos foram impostas, nós criamos um diálogo que não é fraternal
com o outro lado da academia. Com o lado que sempre teve recurso, sempre controlou as agências e
isso eu sinto cada vez mais forte... Pra falar numa linguagem mais comercial, existe um mercado hoje
acadêmico que se configura dentro do campo das relações raciais em que você tem livros, vídeos,
periódicos que passam a dar o tratamento a temas importantes, de uma maneira, um olhar um pouco
distinto. E eu acho que isso tende a se aprofundar.

Ao escrever, dialogar, criar redes de colaboração e confeccionar estas análises,


estamos gerando conflitos ideológicos, ameaçando as contradições do discurso humanista de
uma “universidade para todos”. Há um equívoco, nos parece, nesse slogan humanista. que
talvez tornasse mais clara a idéia defendida aqui e, quem, sabe, esse equívoco tornar-se-ia
mais explícito a partir de uma outra proposição: seria uma universidade “para todos” criada
apenas “para todos os brancos”? Estaria o Brasil, desde sua formação, pensando um projeto
de embranquecimento infinito tendo a universidade pública bem como outras instâncias
públicas mantendo políticas de inclusão pela ausência e não a partir de políticas concretas de
inclusão? Decerto, nossos elementos de análise são indicações fortes no que se refere ao
propósito de comprovar as hipóteses iniciais. No capítulo anterior, examinamos alguns
indícios, nas práticas discursivas legitimadas pelas narrativas saídas do “senso comum
acadêmico”, de que, no espaço da universidade pública, as oportunidades estão limitadas por
conta da crise que a abate. Assim, na defesa de uma reforma das suas bases não está pensada,
ao contrário do que aponta Souza Santos (2004), uma política que acolha o recorte racial. A
agenda dos movimentos negros estaria prejudicada já que não é o momento, não se considera
a universidade implicada no processo de instituir políticas de reparação.
Ainda argumentando sobre as identidades construídas a partir das universidades
públicas, caberia indagarmos sobre a existência ou não de políticas de democratização desse
espaço, para saber sobretudo quem são os grupos contemplados por elas, quando
implementadas. Em que medida o projeto social e educativo brasileiros tem dado visibilidade
à demanda das agendas dos movimentos negros no que se refere à necessidade intercultural da
produção científica? A universidade pública, quando da sua expansão, preocupou-se em
promover outros estratos sociais que não os grupos mais abastados? Quais grupos têm tido
chance de obter mobilidade social a partir de uma formação superior? O que vislumbram os
ingressantes nos cursos de prestígio, como é o caso de algumas carreiras e também nos
programas de pós-graduação? O que querem os não-brancos nesses espaços criados pelo
159
grupo que subalterniza? A criação e o desenvolvimento da universidade pública podem ser
definidos como políticas de branquidade e/ou de colonialidade do saber?
Caso fosse necessário seguir indagando sobre as formas de sustentação de um modelo
civilizatório baseado no ordenamento hierárquico de grupos diferenciados pelos mecanismos
de racialização, caberia ressaltar que este debate é parte de uma agenda construída na
perspectiva de dar visibilidade àquilo que aprendemos a considerar como sendo tema
“menor”, questão periférica para o pensamento social brasileiro.
Estando na periferia da sociologia das desigualdades sociais, os modos de se promover
a fixação daqueles incluídos como subalternos, ou melhor, em condição de subalternidade,
são legitimados justamente pelos mecanismos de invisibilidade dessa condição fixa de estar
representado como o Outro. Sendo instâncias privilegiadas para a conservação de um modelo
subalternizante de sociedade, as universidades públicas consideradas como de prestígio
buscam formar os herdeiros de uma branquidade, os grupos identificados com a divisão social
vigente no Brasil e que desejam, também no espaço acadêmico, construir uma identidade de
grupo não-racializado. Nesse imaginário, está presente a noção de que ser branco é ser eleito
pela contingência e essa representação de pertença dará ao branco uma identidade de
superpotente141. Como parte deste imaginário social e do senso comum acadêmico, a ausência
dos “negros” na esfera universitária se converte em fenômeno aceitável.
Conforme nos indicam os entrevistados, no senso comum acadêmico se considera
como questão resolvida a ausência/presença dos não-brancos principalmente quando um
consegue entrar. Sua entrada é a prova de que estão representados. A presença de uma pessoa
não-branca, alguém dos grupos em condição de subalternidade que entra, fura o cerco e que
consegue passar no processo de seleção para o mestrado e/ou doutorado, torna-se alvo de
especulação e, ao mesmo tempo, referência de sucesso: quem se esforça consegue, está aí o
exemplo! Assim, conforme as narrativas dos sujeitos desta tese, entre os grupos inseridos nos
programas de mestrado e doutorado, fica subentendida a seguinte idéia: você é negro e está
aqui, o que confirma a inclusão, a garantia do lugar dos negros nesses espaços, ou seja: vocês
estão representados.
Dito de outra forma, a fixação, que vem servindo para indicar a condição de
subalternidade aqui enfatizada, tem como culminância provar a representação a partir da
presença de “apenas um”. A imagem, a circulação de um corpo não-branco que, sem exagero,

141
Ver Kabengele MUNANGA, Negritude: usos e sentidos, 1988.

160
incomoda aos não-negros, visa produzir a prova cabal de que não existe racismo naquele
contexto.

4.3. Representações acerca dos circulantes


A presença do professor Kabengele Munanga no Programa de Pós-Graduação em
Antropologia da Universidade de São Paulo (USP) e a presença de todos os nossos
respondentes, bem como da autora desta pesquisa, são exemplos das engrenagens das
políticas de branquidade em curso na sociedade brasileira: são entendidas como
presença/ausência.
A cota de apenas um para provar que existe diversidade na televisão, nos palcos, no
Supremo Tribunal de Justiça, às vezes, nos programas de pós-graduação, entre os discentes e,
mais raro ainda, entre os docentes, se constitui em uma maquiagem ideológica, por assim
dizer. Para o senso comum, isso seria um exemplo de políticas de inclusão. No âmbito restrito,
ou seja, na universidade pública, parece estar instituído, no debate sobre ações afirmativas
e/ou cotas, o incômodo com a presença de mais de um.
Conforme o relato de um de nossos entrevistados, uma professora, em uma aula de
mestrado (primeira semana) pergunta para a mestranda: você é brasileira? A aluna
considerou, por um bom tempo, que a professora esteve incomodada com sua presença no
grupo e, assim, a dúvida sobre o motivo de tal indagação a acompanhou por longos anos: O
que se pode deduzir de tal pergunta? Será por conta do penteado com tranças? Das roupas que
faziam menção à indumentária africana? Ou a pergunta foi uma conseqüência dos estigmas
que foram depositados na imagem do corpo da mestranda?
Sendo apenas um corpo, como fazer parte daquele contexto onde o que se destaca é
justamente o intelecto? O estigma depositado no indivíduo não-branco cumpre o papel de
convertê-lo em “corpo” e, provavelmente, a definição de Goffman (1988, p.24) é pertinente
quando afirma que “normais” e estigmatizados estão desafiados pelas situações de contatos
mistos. A pergunta sobre a nacionalidade da aluna parece refletir a dificuldade de aceitação de
sua presença, tendo em vista que, no Brasil, os negros estão fixados em posições subalternas.
Segundo essa representação, quando conseguem mobilidade social, são atores ou jogadores de
futebol. Não ocorrendo mobilidade, provavelmente não são brasileiros, sobretudo quando
inseridos nesses espaços.
O estranhamento da professora foi seguido de outra manifestação – de um professor
que dividia a disciplina, sendo esta ministrada por ambos. Ao realizar uma prova no final do
semestre, o professor dirigiu-se à mesma aluna e disse: Você me fez uma grata surpresa com

161
essa nota. A mestranda havia obtido nota alta – oito – quando boa parte teve desempenho
médio. É preciso dar ênfase a esse estranhamento provocado pela presença de mais de um na
universidade pública para, em seguida, voltarmos aos sinais da dificuldade de aceitação dos
não-brancos na formação pós-graduada e, posteriormente, no corpo docente da graduação e da
pós-graduação. O fenômeno pode ser justificado pela falta de experiências interculturais na
sociedade como um todo e, conseqüentemente, nos espaços de prestígio ocorre o mesmo.
Experiências interculturais são mais que casamentos interraciais, mais que o convívio
entre vizinhos brancos e não-brancos que promovem festas juntos, indo além das rodas de
samba com seu caráter agregador. Seriam, em certa medida, estruturas sociais que
garantissem, acima de tudo, a formulação e execução de políticas de diversidade,
privilegiando o ingresso daqueles que historicamente ainda não pertencem aos espaços
acadêmicos de prestígio. Ser apenas um significa maquiar políticas de branquidade. Por tudo
isso, a representação daqueles que historicamente estão amargando o lugar fixo definido
socialmente pela racialização deve ser politicamente redefinida. A agenda do(s)
movimento(s) negro(s), quando incorpora a noção de representação, pode ter reforçado, na
luta anti-racista, uma ideologia cínica cristalizada pelos segmentos não-negros preocupados
com a conservação de suas posições sociais.
Situações mistas examinadas para nossas análises estão caracterizadas pela presença
de um não-branco por turma, arriscamos dizer. Nos programas de mestrado e/ou doutorado
essa situação sequer pode ser vista como regra, sobretudo quando consideramos o âmbito
nacional. Assim, não podemos afirmar até que ponto essa definição pode ser estranhada a
partir de agora.
Reconhecemos, a partir de algumas proposições já formuladas anteriormente, que os
espaços de formação superior são organizados para promover alguns segmentos sociais, tendo
em vista a política de diferenciação reforçada nessas esferas. A universidade pública atende a
uma demanda de diplomas, jogando-os no mercado de trabalho e, ao mesmo tempo,
fomentando uma disputa por esse mercado com os modelos de ingresso instituídos por ela e
para ela. O dado que devemos captar dessa disputa é que aqueles grupos que concorrem nos
espaços acadêmicos e, conseqüentemente, no mercado de trabalho, pertencem a um mesmo
estrato social e desfrutam de um mesmo bônus: a brancura. Por várias gerações, estão
iniciados no mundo letrado, tendo garantido o capital cultural e, por conseguinte, o capital
econômico de seus herdeiros e/ou descendentes.
Assim, reconhecer que são grupos que estão situados a partir de heranças comuns que
garantem o acúmulo de bens culturais e materiais se configura como uma possibilidade de

162
entendimento do que são forças coletivas que giram em torno de um objetivo específico: são
grupos que definem esses modos de acumulação de bens de toda ordem, mantendo-se como
grupo hegemônico.
Por isso, caberia enfatizar aquilo que conhecemos, a partir de Pierre Bourdieu (1998),
como sendo o capital social para entendermos os modos de perpetuação dessas heranças.
Considerar que aqueles grupos que herdaram as instituições públicas são os que inauguram a
idéia de capitais, é reconhecer nesta herança o poder totalizante do capital social. Numa
primeira tentativa de interpretar esses capitais − categorias pertencentes ao esquema teórico
bourdieniano −, para nossas interpretações sobre as supostas formas de disputa no campo
acadêmico, caberia chamar a atenção para suas particularidades, já que elas são fundamentais
às invenções promotoras de lugares fixos, os chamados mecanismos de diferenciação em
constante transformação, por assim dizer. Conforme Schwarcz,

Pode-se dizer que a colonização produziu, com base no monopólio da terra, três classes de população: o
latifundiário, o escravo e o “homem livre”, na verdade dependente. Entre os primeiros dois a relação é
clara, é a multidão dos terceiros que nos interessa. Nem proprietários nem proletários seu acesso à vida
e a seus bens depende materialmente do favor, indireto ou direto, de um grande. O agregado é a sua
caricatura. O favor é, portanto, o mecanismo através do qual se reproduz uma das grandes classes da
sociedade, envolvendo também outra, a dos que têm. Note-se ainda que entre estas duas classes é que
irá acontecer a vida ideológica, regida, em conseqüência, por este mesmo mecanismo. Assim, com mil
formas e nomes, o favor atravessou e afetou no conjunto a existência nacional, ressalvada sempre a
relação produtiva de base, esta assegurada pela força. Esteve presente por toda parte, combinando-se às
mais variadas atividades, mais e menos afins dele, como administração, política, indústria, comércio,
vida urbana, corte etc. Mesmo profissões liberais, como a medicina, ou qualificações operárias, como a
tipografia, que, na acepção européia, não deviam nada a ninguém, entre nós eram governadas por ele. E
assim como o profissional dependia do favor para o exercício de sua profissão, o pequeno proprietário
depende dele para a segurança de sua propriedade, e o funcionário para o seu posto. O favor é a nossa
mediação quase universal – e sendo mais simpático do que o nexo escravista, a outra relação que a
colônia nos legara, é compreensível que os escritores tenham baseado nele a sua interpretação do Brasil,
involuntariamente disfarçando a violência, que sempre reinou na esfera da produção (SCHWARCZ,
1999: 25).

A descrição acima, bastante elucidativa, nos aproxima do princípio da formação


daquilo que Bourdieu (1998) define como capital social. A categoria favor, interpretada como
um mecanismo de reprodução de uma das grandes classes da sociedade, se aproxima do
sentido dado na teoria bourdieniana a uma rede durável de relações (BOURDIEU, 1998,
p.67). Fronteiras visíveis e ineludíveis, criadas a partir das relações coloniais, servem para
explicar o crescimento maciço da população iletrada e, em particular, daquela que se
configura como sendo a outra parte. A outra parte é formada pela condição de subalternidade
de quem é pobre e para quem é pobre e preto – ou pardo – essa condição tem um peso duplo.
É preciso enfatizar as diferenciações no interior da pobreza. Os estudos sobre relações
raciais, num futuro bem próximo, não se sustentarão sem este tipo de análise. Acontece que

163
formar este quadro das desigualdades no âmbito restrito não é fácil. Entretanto, sem dados
sobre as dinâmicas raciais sustentadas no universo das “cidades baixas”, dos morros e favelas,
entre outros espaços de concentração da miséria, nosso esforço para mapear tais fenômenos
não produzirá impacto social.
No âmbito maior, pode-se considerar que, enquanto a sociedade cresceu na doutrina
das relações de favor, baseada em um sistema com limites violentamente marcados por
relações de hierarquização, se produziu uma continuidade das formas de aceitar tais limites:
houve uma evolução do modelo social capaz de naturalizar a recusa às concessões de toda
ordem. Joel Rufino dos Santos (2004) vai afirmar que a exclusão é algo impossível e, deste
modo, ela opera como inclusão que se dá pela condição de ser pobre, discriminado e, nos
termos do autor, produz algo fundamental à “economia modernizante” definido como desejo
sobrante:

No Brasil se desenvolveram há pelo menos cento e cinqüenta anos, grosso modo, duas economias. A
mais visível, modernizante, opera com proletários; a outra arcaica, com semiproletários, por vezes
dependentes da economia domiciliar. Ganhando menos por necessitar de menos e, no caso do ex-
escravo, ter se acostumado com menos, foi na exploração do trabalho deles, mais barato, que o
empresário brasileiro acumulou mais. Isso não aconteceu só no Brasil, apenas aqui a multidão de
semiproletários apresentava certa unidade étnica, distinta dos senhores e/ou patrões: criando uma
moldura social, a etnicidade consolidou os padrões estruturais da unidade semiproletária. O interesse
objetivo (taxa de lucro) do empresário capitalista estará, pois, na conservação da outra economia, a
domiciliar etnicizada: o racismo da sociedade brasileira contemporânea é, antes de tudo, como tantos já
observaram, um código de alocação de mão-de-obra (SANTOS, 2004, p.31-32).

Ao considerarmos a fluidez dos termos de Santos, e retomando a idéia do


“favorecimento” como moeda, mencionada por Schwarcz (1999), supomos que as estruturas
do Brasil, sem excepcionalismo, não se situam exatamente onde as Ciências Sociais as
colocaram. O que podemos arriscar afirmar é que o Brasil e suas oligarquias lutaram entre si
pelo monopólio das instituições públicas. A crise do governo Lula não é uma crise provocada
pela gestão desse grupo tradicionalmente de esquerda, que usa o slogan produzido a favor da
luta dos trabalhadores enquanto classe. Configurando-se como um “duelo de oligarquias” que
inclui, obviamente, a grande mídia, pode ser interpretada como uma guerra pelo poder e pelas
melhores posições no conjunto de instituições públicas com maior poder de barganha e de
acúmulo de capital.
Saindo do campo político e indo para os campos intelectuais, seria possível
considerarmos, inclusive, que as práticas discursivas legitimadas pelas Ciências Sociais, por
exemplo, foram eficazes para promover o Brasil como uma representação. A moldura social
marcada pela etnicidade corresponde – conforme vimos afirmado nos discursos históricos

164
oriundos do pensamento social – a uma herança própria de uma sociedade colonial, algo
quase irredutível que desapareceria, quem sabe, segundo tais argumentos, com a evolução do
país em termos econômicos.
Numa produção do romantismo cínico, chamou-se o Brasil de uma democracia racial,
algo quase definitivo para a conformação do imaginário. Quem não acredita, entre os setores
empobrecidos, por exemplo, que tomar cerveja numa roda de samba, um espaço agregador de
pretos e brancos, sambando todos juntos, bem como subir e descer nos elevadores da cidade
sem nenhum tipo de manifestação verbal contra os pretos e pardos, é prova da ausência do
racismo?
Há indicações de que o modelo civilizatório brasileiro construiu um discurso de forte
conteúdo alusivo e irônico, no fundo uma gozação erudita (SODRÉ, 2002, p.75) sobre a
possibilidade de deslocamento dos lugares fixos destinados aos não-brancos. A ditadura racial
se esconde atrás de uma máscara e reflete a atualidade das relações coloniais que desautoriza
esses indivíduos no tocante a sua agência política não apenas nas universidades públicas, mas
sim em diferentes esferas de decisão; sua posição está contemplada, por exemplo, nos
programas de pós-graduação com a presença, às vezes, de apenas um.
O caráter reivindicatório142 da luta iniciada pelo (s) movimento (s) negro (s) sobre a
urgência de convocação das outras vozes nos espaços de produção do conhecimento está
invisibilizado pela banalização sistemática de suas agendas. Dizer que os afrodescendentes
estão representados seria uma estratégia de banalização dessas reivindicações. Afirmações do
tipo quem se esforça chega lá são exemplos de uma lógica no mínimo cínica. Assim, a idéia
de mérito passa a ser o elemento fundador da ideologia de que sempre tem um que consegue,
e o caminho é pelo esforço individual, já provado. Basta seguir os exemplos do rei do
futebol, daquele professor universitário, ícone para os intelectuais em formação também
pretos e/ou pardos, da única reitora preta dentre todos do país, do único médico de um certo
hospital público, do único ator negro de um filme dos mais assistidos na rede aberta de
televisão, do único ministro etc.
Modelos civilizatórios dependem de veículos de circulação de idéias, de aparelhos que
trabalhem a favor de sua causa. Nos jornais, a defesa por políticas de ação afirmativa

142
Convém mencionar que relatos diversos de intelectuais afrodescendentes de grande representação nacional
revelam a dificuldade de publicização de seus argumentos. São poucos os artigos oriundos do movimento negro
incluídos como resposta aos textos publicados que defendem a meritocracia como instrumento de seleção nas
universidades públicas. Encontros periódicos de intelectuais negros que acompanham a implementação das ações
afirmativas nas universidades brasileiras são espaços de interlocução onde se problematizam questões desta
monta: a dificuldade de contra-argumentação na imprensa bem como o diálogo com reitores e diálogos que
incluam os mais interessados na democratização do ensino público.

165
realizada pelos estudiosos de referência no tema é incluída a partir de uma presença-ausente,
se assim pudermos definir. Como isso se manifesta na universidade é o que desejamos saber
dos intelectuais com os quais aprofundaremos o diálogo no capítulo seguinte.

166
V. OUTRAS CONVERSAS: ENTREVISTAS COM INTELECTUAIS
AFRODESCENDENTES

Investigar o movimento desestabilizador do pensamento social brasileiro no tocante à


história da “Questão do Negro”143, situando as representações que agentes subalternos
afrocentrados têm sobre ela, pode ser parte de uma perspectiva pós-colonial. Este tipo de
crítica (pós-colonial) permitiu que conectássemos aspectos de um antes e de um agora,
resgatando a dimensão pedagógica das situações coloniais instituídas na sociedade brasileira
sem deixarmos de observar como, por imitação, a subalternidade é ressignificada entre
estabelecidos e insurgentes – grupos definidos pelo seu pertencimento racial.

Aqui, tal empreendimento implicaria a concepção de um quadro retórico dessas


impressões, o que não permitiria recortes como esses que realizamos por força das
circunstâncias. Dito isto, gostaríamos de justificar o apelo aos fragmentos dos textos
produzidos pelos entrevistados por considerarmos a feitura desta tese um processo coletivo, um
objeto construído com base nas idas e vindas ao contradiscurso, ou a uma contranarrativa.
Também caberia ratificar a natureza da metodologia que tentamos combinar no sentido de
contemplar a representatividade dos sujeitos agrupados. Partindo do fenômeno investigado – a
insurgência afrodescendente rumo à universidade – desde uma abordagem sociológica,
propomos uma análise pautada na construção textual dos respondentes do universo da
pesquisa.

Como se pretendeu problematizar o movimento de sua insurgência via formação pós-


graduada, seria conveniente apontarmos que reconhecemos neste contradiscurso um
compromisso firmado atravessando diferentes estágios e, conseqüentemente, abrigando grupos
etários também distintos. Buscava-se um conjunto de sujeitos com algo de diverso no que se
refere ao contexto de sua chegada na vida acadêmica, mas tendo em comum a experiência da
subalternidade em espaços de disputa de poder. Visamos examinar traços da expectativa em
torno do pertencimento acadêmico em espaços de tempo que se sucedem e se complementam.

143
Produzem-se, na universidade, estudos sobre cultura negra e relações raciais, desde a conformação daquilo
que se convencionou definir como pensamento social brasileiro. Eminentes autores, em obras fundamentais,
reconheceram, inclusive, as condições de precariedade e desumanização dos afrodescendentes, fixando-os como
objeto de pesquisa. Até aqui, o que vimos foi uma fixação para a temática – uma produção eurocentrada e que
não implica a proposição de políticas de reordenamento social contemplando as demandas da população assim
representada. A Questão do Negro, neste estágio, define-se pelo desinteresse político daqueles que a tematizam.
O movimento de insurgência destes segmentos subalternizados − os afrodescendentes − rouba o sentido
tradicionalmente dado a expressão Questão do Negro. Conseqüentemente, o que vem a seguir é a reinscrição
dessa história. Assim, incorporamos a idéia de que há estágios distintos neste campo que tematiza relações
raciais. A partir da idéia de estágio, localizamos um modo de acompanhar as situações mistas num mesmo
espaço que é a academia e seus oradores (estabelecidos e insurgentes na Questão do Negro).

167
A universidade que aceitou Ana Célia da Silva (Universidade Federal da Bahia) como
graduanda (1968) não é a mesma que Ari Lima encontrou (1987) ao iniciar seu curso de
Comunicação Social. Estão em jogo interesses corporativos e, neste sentido, os múltiplos
exemplos enriqueceram nossas reflexões tendo em conta o aquecimento da “Questão do
Negro” com a agência afrocentrada.

Examinamos, no conjunto de entrevistas (18 depoentes), heranças forjadas no


acontecimento universitário, por processos de “reinscrição da Questão do Negro”144, ou seja: as
idiossincrasias da via-crúcis percorrida pelos depoentes por período de chegada no espaço da
universidade passaram a ter fundamental importância, por avaliarmos ser indispensável
entender processos políticos como um caldeirão de atritos enfrentados por eles.
Perguntávamos, depois disso, sobre as mudanças ocorridas na retórica sobre relações raciais: O
que acontece quando subalternos desejam narrar sua própria história de dentro da
universidade? Em que medida sujeitos periféricos podem ir ao Centro para defender um
contradiscurso? Entendemos que a militância, na academia, poderia ser analisada como um
fenômeno recente, cabendo aí examiná-la como, talvez, um processo de militância em
ascensão.

Para ilustrar esta idéia, caberia chamarmos a atenção para a representação construída
por Ari Lima (2001, p.285) sobre sua experiência como doutorando (1999-2004), de ter sido
reprovado numa disciplina obrigatória – decisão malversada, conforme ele mesmo enfatizou.
Visto como um “drama social”, o episódio envolvendo o professor Dr. Klaas Woortmann,
ainda que sufocado pelo Programa de Pós-graduação em Antropologia Social – PPGAS (UnB),
passou a ser, em nossa análise, um marco para aqueles interessados em desvendar fenômenos

144
A “reinscrição da Questão do Negro” ocorre quando intelectuais assim definidos – afrodescendentes do tipo
preto e pardo – iniciam suas teses, teorias e discursos sobre sua própria experiência. Neste sentido, as prioridades
dos especialistas localizados no campo das Ciências Sociais não se confundem com os temas e abordagens
presentes na produção intelectual de pesquisadores não-brancos. A expressão A Questão do Negro aparece como
sendo algo construído de fora para dentro quando a análise parte de alguém que é de dentro, ou seja: os
afrodescendentes. Grupos não-brancos tendem a ser considerados como circulantes, visitantes com hora para
voltar para seus destinos no debate sobre sua própria história de pertencimento social. Por outra parte, há
implícito na postura dos oradores de plantão algo do tipo: “Esta questão não é minha, eu apenas teorizo sobre
ela.” “Não me preocupo com a condição social destes segmentos.” Está implícito o aspecto da exterioridade, por
tratar tais aspectos como se o grupo definido como “O outro”, o “não-branco”, se convertesse em objeto de
pesquisa. Para avaliar este processo no campo da Educação seria enriquecedor mapear este quadro teórico
ampliado a cada ano por força do empenho de intelectuais afrodescendentes já estabelecidos com base na sua
produção dentro do campo das Relações Raciais. O número crescente de dissertações e teses mais recentes sobre
os diferentes temas localizados neste eixo indica o aumento de fluxo, por assim dizer. Sobre isso, sugerimos a
Bibliografia básica sobre relações raciais e educação, um material organizado por Claudia Miranda em parceria
com Maria Clara Di Pierro e Francisco L. de Aguiar, editado pela DP&A em 2004.

168
como o racismo acadêmico145 dentro ou fora da Universidade de Brasília. Reelaborando tal
violência simbólica146, Ari Lima (2001, p. 286) escreveu:

Pensar sobre esta experiência na UnB é tentar historicizar a identidade daquilo ou daqueles que a
produziram, é ordenar e interpretar os domínios e ações sociais que me revelaram como negro inferior,
suspeito, estrangeiro, fora do lugar, desestabilizador. Porém, como pode um intelectual negro articular o
confronto na academia sem confundir sua fala com o discurso militante? Como pode incorporar em
sua fala a ousadia, a criatividade, acuidade que muitas vezes os movimentos negros organizados
demonstram ter, uma vez que sua subalternidade a categorias de gênero, de raça, étnicas e de
pertencimento requer do antropólogo negro, no campo, a categorização antecipada de si mesmo? Ele
provém de um contexto sociocultural, defende uma agenda político-cultural, observa os seus nativos,
informado por um background étnico-racial. Sua consciência ética, lançada tantas vezes de fora para
dentro, visibiliza como pode obscurecer a realidade do seu campo de pesquisa e enunciação.

Juntamente com seu orientador, o professor José Jorge de Carvalho, Ari Lima sofreu
sanções que trouxeram prejuízos imensuráveis naquele período por se tratar de estratégias
óbvias de deterioramento de sua identidade. Ele recebe o estigma que o coloca fora do lugar e,
por isso, a marca da incapacidade: um jovem negro, homossexual e baiano, não poderia
apresentar um desempenho satisfatório na condição de doutorando de um Programa de pós-
graduação de tal monta como é o caso do PPGAS/UnB. No caso de seu orientador, seu
deslocamento (do Centro para a Periferia) se deu por desestabilizar as relações departamentais
dando apoio ao doutorando e, conseqüentemente, “traindo” seus pares. Como parte do corpo
docente, Carvalho está agora desautorizado, carrega o estigma e tem sua identidade deteriorada
por defender “Questões do Negro”, que visam diminuir o poder dos intelectuais já
estabelecidos.

Ambas experiências podem ter ajudado a redefinir a agência política desses sujeitos147.
Por ocasião de nossas entrevistas, Ari Lima destacou o despertar da sua negritude como sendo
a partir das experiências sofridas na sua trajetória acadêmica. A centralidade de sua narrativa
se justifica por apresentar indícios da vivacidade do racismo acadêmico: ser o Outro implica
estar representado a partir da idéia de incapacidade e de degenerescência.

145
Ver CARVALHO, José Jorge de. Inclusão étnica e racial no Brasil: a questão das cotas no ensino superior
(2005).
146
BOURDIEU, Pierre. A reprodução, 1970.
147
Não se pode ocultar o esforço intelectual de José Jorge de Carvalho no sentido de entender a disputa política
e ideológica presente na tematização da “Questão do Negro” bem como o seu lugar de parceiro na luta pela
institucionalização das ações afirmativas nas universidades públicas. Autor da Proposta de cotas para negros e
índios na Universidade de Brasília em 1999, seu papel tem sido de denúncia das formas de se manter a
universidade embranquecida e fechada aos negros e índios. Em seu argumento, professores universitários se
convertem no grande obstáculo para os avanços que a diversidade étnica tem a oferecer na produção do
conhecimento.

169
José Jorge de Carvalho (2005, p.194) é um homem definido socialmente como “branco”.
Analisando a lógica da universidade eurocentrada, declarou:

É extremamente importante etnografar todos esses incidentes e casos de racismo ocorridos nas
universidades, desde este momento inicial de instalação das políticas de cotas, para formar um banco de
dados consistente que nos permita avaliar como evoluem: se mudarão de perfil, se explodirão em
conflitos de grandes proporções ou se declinarão com o tempo como conseqüência do aprofundamento e
da provável generalização do sistema.

Ao que tudo indica, o orientador de Ari Lima foi tocado pela “Questão do Negro” e as
suas intervenções, bem como sua postura intelectual que fala de dentro da racionalidade
acadêmica, indicam haver, a partir de então, um impacto provocado pela experiência de ser
colocado também como um sujeito fora do lugar. A discriminação sofrida por Ari Lima
parece ter sido de suma importância para que Carvalho iniciasse também a sua via-crúcis por
defender a mudança nas formas de acesso à universidade, contemplando negros e índios:

O envolvimento com esse debate significou para mim um grande enriquecimento intelectual e pessoal,
pela oportunidade que tive de conviver intensa e assiduamente com alunos, professores e militantes
negros e indígenas, os quais me ajudaram a entender melhor a dimensão do nosso racismo, inclusive
dentro do espaço acadêmico. Ao longo de cinco anos, participei de debates sobre as cotas para negros e
indígenas no ensino superior em inúmeras universidades federais, estaduais, municipais, comunitárias,
vocacionais e empresariais e também em escolas indígenas, cursinhos pré-vestibulares, sindicatos e
outras instituições públicas e privadas. Em todos esses espaços contei com sugestões, informações,
críticas, referências e o apoio de amigos e colegas professores, estudantes e funcionários.
(CARVALHO, 2005, p.11)

Apreendemos sinais de uma ebulição no “acontecimento universitário” provocada pela


“circulação” do Outro colonial desta vez de “corpo presente”. Sobre isso, gostaríamos de
observar que, entre claros e escuros, o estranho, desta relação, é aceito desde que não fuja do
seu lugar de origem. Muniz Sodré (1999, p.178) nos ensinou que “em todo discurso colonial,
antigo ou recente, o corpo, enquanto máquina produtiva, é considerado único recurso humano
do indivíduo negro”. As relações coloniais são, por isso, relações que garantem a fixação dos
estranhos ao lugar – o Centro.

Diante destes traços, definimos um quadro de depoentes subagrupados pela sua


representatividade junto ao seu coletivo – e pelas suas especificidades – considerando ainda
uma característica relevante que é o período histórico no qual sua agência política pôde ser
desenvolvida.

A saga de Ana Célia da Silva parece estar marcada pela sua designação fortalecida no
seio da pobreza numa família de nove filhos que se juntavam para estudar apoiando uns aos
outros. Ao relembrar a dinâmica intrafamiliar, a professora da UNEB destacou a dificuldade

170
do acesso ao “colegial” (hoje ensino médio) para o segmento ao qual pertencia sua família.
Fazer o curso normal (pedagógico) foi uma conseqüência da falta de oportunidades a todos
para cursar o ensino médio. O que se percebe é o reconhecimento do valor das letras para Ana
Célia da Silva, desde muito cedo. Comprometida com questões sociais, ela inicia sua via-crúcis
inserindo-se na luta social do movimento negro baiano. Sua atuação pode ser entendida como
resultado de uma designação vinda da consciência subalterna experimentada primeiro com os
pais operários, pessoas com pouco ou quase nenhum acesso a bens culturais:

A escola pública naquele tempo era de qualidade. Nós terminamos o chamado ensino primário,
tínhamos uma tal de admissão para o ginásio e fizemos. Todos passamos. Depois terminamos o ginásio
[atualmente 5ª a 8ª série], eu fui fazer pedagógico, que era o que o pobre podia fazer porque era um
turno. Quase ninguém fazia colegial nessa época porque o colegial não dava acesso ao trabalho. Eu
terminei com vinte e três anos [...] tentei fazer o vestibular e passei. Fui classificada em terceiro lugar.
Na época sem pré-vestibular sem nada. Quer dizer: como era boa a escola naquela época. É isso que
justifica hoje a presença de cotas, porque não é aquela escola. Eu tive muita sorte. Em 1965 eu fui
chamada para um concurso. Nem sabia que eu tinha sido aprovada. Era ditadura, chamou todo mundo e
aí comecei a trabalhar no IAPB, Instituto dos Bancários e me deu condição de estudar na UFBA. Fiz
pedagogia, terminei em 1968, foi quando chegou o AI-5. Em 1969 fiz bacharelado, em 1970 eu fiz
concurso para o ensino médio. E fui ensinar numa escola de elite. Na época, só ensinavam professores
de altos... considerados. Eram todos brancos, a maioria branca. Era o Centro Integrado Anísio Teixeira.
Uma escola que fez uma experiência muito boa, que a ditadura encerrou.

Em seguida, Ana Célia da Silva mencionou a insistência de alguns de seus pares,


(familiares, companheiros de trabalho e de militância) para que tentasse maior inserção a partir
da carreira acadêmica, demonstrando, por sua vez, não ser essa a prioridade naquele período. O
intervalo entre o término de um nível de formação para o outro (da graduação para o mestrado
foram 20 anos e, do mestrado para o doutorado, 13 anos) parece indicar que, em sua trajetória,
ir para a pós-graduação foi um plano secundário:

Eu fiquei dezesseis anos participando de sindicato, de outras coisas da política geral e eu me interessei
em fazer mestrado. Em 1985, não sei quem foi, começou a me dizer – vai fazer o cadastro de inscrição –
eu digo, ah! Eu não quero saber disso não! Aí eu fui e passei no mestrado. Aí me chamaram – Ah! Você
passou – eu digo, ah! Foi mesmo?! Eu fiz tão sem...Aí eu fiz o mestrado em Educação na UFBA,
terminei em 1988. Minha dissertação foi a segunda na Faculdade de Educação que fala sobre a questão
do negro. A primeira foi na década de 1970, do professor Leite. Ele fez uma pesquisa sobre “a cor do
aluno e a reação da professora”. Foi uma pesquisa muito interessante, que está neste livro que eu lancei,
esta coletânea, não sei se você viu, O terreiro, a quadra e a roda. Essa pesquisa dele está neste livro. E
depois de muito tempo, ninguém mais falou em negro lá dentro. Aí chegaram eu e Vanda Machado, eu
trabalhando sobre a discriminação do negro no livro didático, e começaram as reações a mim e a meu
trabalho a partir daí, porque as colegas não queriam comentar. Falavam por trás que era racismo às
avessas, que não existia isso. Eu tive a sorte de encontrar o professor “Verraine” esse que é americano
que ensina lá, que disse – Não, isso que ela está dizendo é verdade, eu vejo tudo isso e eu quero que ela
faça essa dissertação e publique, as pessoas precisam saber que existe isso – e também aquele que
faleceu, Felipe Serpa, os dois me deram um grande apoio. Então eu defendi a tese logo depois.

Supomos que, para sua geração, graduar-se representava mudança de status


satisfatória, não cabendo, por isso, inclinar-se em busca de uma certificação pós-graduada. Ana

171
Célia da Silva atribui ao emprego público um lugar central para a sua sobrevivência intelectual
quando afirma que, por conta do emprego, conseguiu completar o curso superior. A
subsistência de sua família dependia da manutenção da atividade laboral. Graduar-se seria algo
que “viria por fora”, não sendo essa a prioridade. Desde que não houvesse comprometimento
de sua dedicação ao trabalho, seu curso superior, uma coisa secundária, passaria a ser uma
realidade. Convém lembrar que sua posição familiar estava entre os mais velhos dos filhos
sendo, portanto, mais uma entre os que poderiam contribuir para a subsistência de todos. Neste
sentido, a proposição que interessa na análise do aspecto geracional, entre os respondentes,
seria as condições de alcance do “desejo sobrante”148 de cada grupo de ativistas.

Nos anos de 1960, uma estudante da periferia baiana idealizava sobreviver com seus
oito irmãos mais o pai e a mãe tendo garantido sua inserção no mundo do trabalho. Neste
contexto, mesmo sendo a educação um desejo a ser alcançado por todos os seus irmãos,
garantir o acesso ao trabalho era a prioridade. Para entendermos melhor sua “circulação149”
posterior, devemos observar o compromisso e a construção de uma identidade grupal. Está
explícito na sua via-crúcis – primeiro rumo ao mestrado – a influência de sua inserção no
movimento negro baiano:

É sempre assim, muito difícil. Por exemplo, tem uma professora loira de currículo, tem eu e a outra
também negra e a outra também é negra: a Jocimara, Elisabeth e eu. Então quando tem qualquer coisa,
que tem que ir uma pessoa de currículo, eles vão buscar essa que já está fora daqui. Manda buscar pra
ela representar, mas não manda nenhuma de nós três. Isso é assim, de uma maneira bem oculta. Agora,
para falar a verdade, entrou uma diretora de departamento, ruiva, branca mesmo, que é Camargo, uma
pessoa que tem relação muito boa, completamente diferente das outras [..] Eu acho muito difícil, muito
difícil mesmo, trabalhar na academia. É a pior militância que existe. Eu devo dizer a você que eu fiz o
mestrado por uma questão mesmo da militância no movimento negro, que na época nós decidimos que
cada pessoa ia atuar dentro da sua área específica de trabalho. E aí eu precisei voltar para a
universidade, pra poder entrar na universidade, trabalhar na formação de professores. Tem outros que
trabalham na área de Direito: Samuel Vida, Wilson Santos, e outros que militam na universidade: Eloísa
Bairro, Siqueira, mas a situação é muito difícil mesmo.

Supomos, também, que a luta pelas ações afirmativas nas universidades públicas
brasileiras pode ser examinada como um redimensionamento do trabalho desenvolvido por
agentes subalternos em distintas regiões do Brasil, que discutem o lugar social dos grupos
afrodescendentes há cerca de quatro décadas.

148
Conforme SANTOS, Joel Rufino dos. Épuras do social: como podem os intelectuais trabalhar para os
pobres (2004).
149
O processo de busca por espaço para pertencer ao meio acadêmico revela, entre as experiências do intelectual
militante nestes espaços de poder, o fenômeno que definimos como “circulação”, e que se justifica quando
consideramos os relatos sobre as angústias sofridas pelos momentos em que o estigma de subalterno se manifesta
nas situações cotidianas vividas por nossos respondentes.

172
Silvio Humberto dos Passos parece considerar uma retroalimentação para entender tais
redes de enegrecimento no contexto de produção dos saberes científicos:

Dêem instrumentos a esses jovens e vocês vão ver que eles vão fazer excelentes coisas. A gente tem que
aproveitar esses talentos, observar o que estamos dizendo para esses jovens que eles podem. Até
desenvolver com outras organizações, tecnologias que essas organizações estão gerando, estão
modificando a cabeça, e eles estão experimentando coisas que eu acho que é a missão da minha geração
a geração que tem 30, que tem 40, porque nós não vimos dentro do movimento negro, formação.
Tivemos informação, mas uma formação comum, tradição da militância que você tome curso disso. Os
jovens hoje tão ganhando para fazer isso, recebendo. O nível de degradação chegou tal que você recebe
e você conta aquilo como uma renda sua e vão fazer coisas. E você está recebendo: é uma bolsa, é um
apoio para justamente dar esse suporte, te proporcionando, eu diria mais até, extrapolando um pouco. O
que é que vem a ser o papel da universidade e essas organizações que têm ensinado, as pessoas que têm
oferecido modelos? As pessoas estão vindo, estão estudando... são campos de investigação. A
universidade precisa deixar de considerar os setores. Já que é uma universidade, os diversos setores
estão lá representados e é legítimo isso, setores populares precisam estar lá dentro representados e todos
estão ganhando.

Assim, estudos sobre a discriminação nos currículos são parte do legado construído
por intelectuais que encontraram a universidade sem o impacto da tematização das relações
raciais. Caberia, portanto, situarmos a produção intelectual de ativistas como Ana Célia da
Silva. Sua produção é referência obrigatória para entendermos processos de fixação grupal.
Daí a relevância de construirmos um quadro, não muito aprofundado decerto, mas elucidativo,
no que se refere ao protagonismo de um segmento mais experimentado pelo seu ativismo fora
dos muros da universidade pública, pensando-a como parte de uma política educacional
indispensável aos grupos afrodescendentes.

Conseqüentemente, localizamos um outro momento de expansão desse locus de


enunciação visando enegrecer o discurso científico. Nele, estão presentes sujeitos que definem
sua militância a partir do reconhecimento das estruturas da universidade, outros que teorizam
com base no afrocentrismo, mas todos, numa agência coletiva, congregados pela garantia da
mobilidade das populações afrodescendentes. Esta agência coletiva parece pretender
desestabilizar o campo das Ciências Sociais compreendendo experiências que se
complementam e que promovem certa ebulição do tema em debate – o acesso aos bens
culturais.

5.1. Situações mistas na subalternidade: as entrevistas

Ao anunciarmos o desenvolvimento de um estudo localizado na subalternidade, nosso


compromisso é acima de tudo com a prudência. Por isso, devemos entender as condições
desta produção. A situação de entrevistas, relatos, depoimentos e memória indica haver uma

173
preparação daquilo que se declara. Pesquisador e pesquisados interagem desta vez, sendo
parte de uma mesma Periferia. No campo das relações raciais, encontramos, por parte do
grupo escolhido, uma predisposição para o diálogo. Realizadas no decorrer do III COPENE,
desfrutou-se de uma atmosfera de contentamento já que o congresso representou avanços
significativos para a agenda do movimento de intelectuais-afrodescendentes-militantes.

Submetidos a determinações sociais mais amplas, o discurso corresponde a uma


produção de bens simbólicos e, se assim for possível considerar, a enunciação é tocada pelos
lugares sociais ocupados por estes intelectuais. Para mencionar Pierre Bourdieu (1983), a todo
campo corresponde um determinado mercado e, por isso, a entrevista como uma situação de
comunicação varia, podendo ser interpretada com base em níveis de formalidade. Processos
discursivos são atravessados pelos lugares sociais e por relações de força. Há que se
considerar como um traço deste momento de comunicação o compromisso de cada um com o
campo das relações raciais. Vimos, nos relatos, no mínimo dois “tempos” da agência
afrocentrada.

Ivair Augusto dos Santos e Ana Célia da Silva sugerem haver modos de negociar
dentro da própria casa, o que significa “negociar com o movimento negro”, a agência
coletiva. Indicando haver variadas movimentações da agenda dos ativistas, Lucia Pereira
destacou seu compromisso com a militância ao aceitar trabalhar junto à Secretaria de
Educação, algo negociado entre ela e o movimento negro de seu estado. Acredita-se que neste
último caso houve um reconhecimento da sua certificação alcançada com o mestrado.
Consideramos haver, na comunicação estabelecida entre entrevistados e entrevistador, modos
de se negociar a construção de uma racionalidade subalterna afrocentrada.

5.1.1. Do Movimento Negro à Universidade

Dando destaque para algumas trajetórias (Ana Célia da Silva, Petronilha Beatriz,
Henrique Antunes Cunha Junior, Ivair Augusto dos Santos e Valter Roberto Silvério) num
conjunto de 18 entrevistados, arriscamos afirmar haver um processo de ascensão que
obviamente não está contemplado neste estudo de tese. São algumas histórias consideradas de
suma relevância para quem deseja compreender etapas do protagonismo dos afrodescendentes
na luta pela democratização do acesso aos bens culturais.

Os sujeitos acima citados foram assim agrupados, primeiramente, para respeitar o


período de sua inserção como ativistas (dentro ou fora dos bancos universitários). Sugerimos

174
que sua agência política ajudou na redefinição de espaços de proposição de uma outra
racionalidade informada pelo afrocentrismo. Estes primeiros agentes possuem formação no
nível da graduação, variando entre o campo das ciências humanas e das ciências exatas e em
alguns casos localizados nas duas áreas. Atuantes como professores de universidades públicas
e/ou como assessores e articulistas em conselhos, secretarias e ministérios, estes são, em certa
medida, agentes inseridos entre os intelectuais com um compromisso político inconteste – o
que se refletiu nas posições que ocupam e/ou ocuparam em cargos de confiança.

Ana Célia da Silva150 é graduada em Pedagogia pela Universidade Federal da Bahia


(1968), mestre em Educação na mesma instituição (1988) tendo se doutorado em 2001. Sua
reconhecida posição como pesquisadora é sem dúvida desdobramento de seu esforço
intelectual refletido também na sua posição social como professora da Universidade do
Estado da Bahia. Dedicando-se à tematização do negro no currículo, e das mudanças das
representações construídas sobre ele nestes textos políticos, ela declara ter migrado para a
universidade por um compromisso social:

No mestrado eu ensinei Currículo e Sociedade, ensinei a Questão da Representação Social e do


Estereótipo na Educação. O resultado foi muito bom. O que tem de bom nesse trabalho, nessa
militância, é um trabalho intencional. Nós fazemos um recorte do que queremos trabalhar, não é um
panfleto. Nós trabalhamos em cima da ciência com autores que nos dão suporte como Henri Giroux,
Stuart Hall, Michael Apple, Willians, Geertz e outros que nos sustentam, todo esse pessoal de estudos
culturais. Então, nós temos um suporte teórico muito bom de pessoas que nos dão todo o embasamento
teórico, que nos sustentam. Mas nós trabalhamos dentro da universidade com a disciplina que nos
oferecem, mas que nós temos, pela militância, pelo conhecimento que a militância nos deu, condição de
transformar aquela disciplina num grande instrumento de explicitação de discriminação racial e das
formas de desconstrução. Eu acho fantástico! Inclusive eu vou largar o mestrado esse ano e vou ficar só
como colaboradora. Vou ficar na graduação porque lá é que está saindo o pessoal que vai ensinar no
Fundamental e no Médio. É um trabalho desgraçado, mas...

Como bem destaca em sua narrativa, a universidade é um locus de enunciação para o


pensamento afrocentrado. Acredita-se, pelo exposto, que o modo de trabalhar adotado por
Ana Célia da Silva, ao lado de outras estratégias, como a criação de linhas de pesquisa
sugeridas por outros agentes no interior da universidade, fazem parte de um conjunto de

150
Destaca-se de sua produção o livro A discriminação do negro no livro didático e Desconstruindo a
discriminação do negro no livro didático. Sobre o reconhecimento de sua atuação, destacamos o recebimento,
em 1996, do “Troféu Clementina de Jesus” da União de Negros pela Igualdade (UNEGRO); conforme consta no
currículo em 2001, a professora recebeu o “Certificado em reconhecimento à excelência de mulheres que se
destacam na luta pela construção de uma sociedade mais justa e mais igual” da Assembléia Legislativa da Bahia
e a “Moção de Aplausos oferecida pela Câmara Municipal de Valença” em 2003. Ana Célia da Silva atuou
também como professora convidada no Mestrado em Educação da Universidade Federal da Bahia.

175
possibilidades de se garantir a formação de novas gerações. Por essas medidas, nos
remetemos às práticas interculturais151 de formação superior.

Petronilha Beatriz152 é licenciada em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande


do Sul (1964) com especialização em Planejamento e Administração pelo Institut
International de Planification de Léducation (1977). Em 1979, concluiu o mestrado em
Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e, em 1987, concluiu o doutorado
na mesma instituição. O pós-doutorado foi cursado na University of South Africa (1996),
onde esteve também como professora visitante. Professora do Departamento de Metodologia
do Ensino e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São
Carlos, coordenou o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros/UFSCar. No governo Lula, foi
indicada para membro do Conselho Nacional de Educação (CNE/MEC). Dos seus trabalhos,
destaca-se o livro De preto a afrodescendente, que organizou juntamente com Valter Roberto
Silvério153, professor da Universidade Federal de São Carlos.

Localizando-se no Departamento de Ciências Sociais, Valter Roberto Silvério é


graduado em Ciências Políticas e Sociais pela Fundação Escola de Sociologia e Política de
São Paulo (1985). Cursou o mestrado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita Filho (1992), doutorando-se em Ciências Sociais pela
Universidade Estadual de Campinas (1999).

Henrique Antunes Cunha Junior154, o primeiro presidente da Associação Nacional de


Pesquisadores Negros (ABPN), tem como característica marcante em sua trajetória a
diversidade no currículo alcançado num percurso que variou entre Ciências Sociais e Ciências
Exatas. Escritor e poeta, graduou-se em Engenharia Elétrica pela Universidade de São Paulo

151
Aqui, compreende-se Intercultura como situações congregadoras de distintas experiências de vida. São
também situações de troca entre sujeitos aparentemente localizados entre um mesmo grupo. Assim, entre
afrodescendentes, coabitam experiências distintas que ao mesmo tempo se alimentam uma das outras. Para a
universidade pública seria fundamental absorver a idéia de universidade privilegiando tais propostas de
experimentar a diferença.
152
Pelo seu comprometimento intelectual, foi homenageada no III Congresso dos Pesquisadores Negros,
conforme destaque dado pela Associação Brasileira dos Pesquisadores Negro (ABPN) sobre sua contribuição
para a população negra ao longo de sua atividade militante. Recebeu, ainda, da Câmara Municipal de São
Carlos/SP, o Diploma público em reconhecimento a serviços prestados na área da Educação.
153
Suas pesquisas são com ênfase em Sociologia do Desenvolvimento, tendo como subáreas relações raciais e
ciências sociais. Também chamado pelo governo Lula, Valter Roberto Silvério coordenou o setor de Articulação
Institucional da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD/MEC).
154
Especialista em Economia pela Conservatoire National des Arts et Metiers (1983), cursou o mestrado em
Historia pela Université de Nancy I (1981) e posteriormente doutorado em Engenharia Elétrica pelo Instituto
Politécnico de Loraine (1983). Como professor titular da Universidade Federal do Ceará, Cunha Junior enfatiza
abordagens sobre etnia e gênero. Como professor no Departamento de Engenharia Elétrica, pesquisa teorias de
sistemas e controle, tendo este segundo campo como mais uma de suas especialidades.

176
(1975) e também em Sociologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
(1979).

Um aspecto a ser destacado na via-crúcis de Cunha Junior é sua aproximação com


histórias sobre uma geração anterior de militantes intelectuais, a geração de seu pai – um
militante intelectual fora da universidade. São informações sobre relações mistas entre
estabelecidos e insurgentes:

Durante a minha infância eu convivi um certo tempo com pesquisadores que estudavam as questões das
relações étnicas, como Florestan Fernandes, Otavio Ianni devido à militância do meu pai. Existia uma
interface entre militantes do movimento negro e acadêmicos das universidades paulistas. O que
acontecia é que esses acadêmicos faziam pesquisas sobre a população negra, mas eles tinham que quase
sempre enfrentar os militantes em discussões bastante acirradas que se davam em jantares e em festas.
Havia uma troca e o pessoal tinha um preparo muito bom, os amigos do meu pai, meu pai... Eram
pessoas que não tinham feito curso superior, mas tinham um embasamento extremamente forte. Eu
gostaria de ter tido, por exemplo, alunos de doutorado que tivessem o embasamento que tinha, por
exemplo, seu Corrêa Leite, seu Jaime de Aguiar, e muitos militantes que eu conheci na infância. Eu via
que esses caras enfrentavam os acadêmicos de igual para igual com críticas e tudo.

A partir delas, consideramos urgente captarmos o locus da subalternidade servindo ao


interesse daqueles que, pela aproximação com os “sujeitos tematizados”, anunciaram, para as
Ciências Sociais, seu pertencimento social como um problema epistemológico a ser
enfrentado. São relações entre um Centro e uma Periferia envolvendo “padrinhos” desejosos
por adotar mais a tematização da “Questão do Negro” e menos os sujeitos em questão. Coube,
ao movimento negro, encontrar seus caminhos no sentido de aprofundar a crítica feita sobre a
qualidade da educação pública, conforme relatou Cunha Junior:

Sobre a educação, o movimento negro dos anos de 1970, fez pros anos 74, 75, uma crítica à Educação
Brasileira e quando nós terminamos essa crítica nós notamos que ela tinha que ser aprofundada. O
grupo criou, o movimento negro dos anos 70 criou, várias experiências interessantes de ensino. Uma
delas da qual eu participei, por exemplo, foi a Escola do Camisa, que é uma escola que se propunha a
fazer um trabalho do artigo 19, como chama no Rio de Janeiro, que é uma dureza em São Paulo. E
trabalhando nessa Escola do Camisa, que a gente trabalha por ideal – camisa, Camisa Verde e Branca, é
uma escola de samba em São Paulo, a gente estudava os cursos à noite e tudo mais – deu para perceber
que a gente tinha deficiência, compreensão do que era a Educação Brasileira aprofundada. Pensamos
num projeto acadêmico de colocar gente nos Mestrados de Educação. Eu comecei também nessa
história, mas depois como eu fui para a França, eu deixei esta história parada. Quando eu voltei para o
Brasil um dos objetivos também era continuar o trabalho. Então, em 85, eu já chegando no Brasil, eu já
me entrosei com o pessoal que tava fazendo as coisas em educação. Aí que eu conheci Petronilha, aí que
eu conheci Ana Célia, aí que eu conheci o pessoal que trabalhava com educação. E eu me predispus a
fazer uma leitura boa da questão da educação e estando nesse fluxo de pessoas fazendo essa coisa. Eu
acho que com um certo autodidatismo, eu consegui ler a literatura básica da educação.

Pelo exposto, podemos supor que a agência coletiva refletida nos trabalhos
acadêmicos, sobretudo no campo da educação, é de responsabilidade do movimento negro
organizado primeiramente fora da academia. A aproximação de intelectuais atuantes fora da

177
universidade pública, onde esteve situado seu pai, entre outros ativistas, definiu o
protagonismo das gerações seguintes que levaram consigo esses interesses:

[...] quando eu cheguei em São Carlos, eu já tinha toda uma série de aparelhamentos, vamos dizer
assim, do próprio movimento negro. Só que eu não tinha ainda encarado a idéia de que eu faria parte do
movimento. Assim, seria um ativista realmente. Eu tinha acompanhado o meu pai em muitas coisas,
tinha participado de outras, tinha feito, por exemplo, parte de grupo de teatro com Ferreira Santos,
grande mestre de teatro do movimento negro paulista nos anos 60 para os anos 70. E a partir de 72,
então, eu entrei num grupo de teatro, criei um grupo de teatro em São Carlos e a gente passou a fazer a
militância dos anos 70 em São Paulo. Aquela militância que tinha alguns “vieses”. Um deles é que a
gente já tinha feito militância, vamos dizer, na entrada da universidade e no colegial da época. A gente
já tinha militância política, já participava de passeata, já corria da polícia, todas essas coisas. Então eu
tava nessa turma aí. A gente correu bastante em 68 e 69, hoje eu penso até que era uma loucura. Mas
nesse caminho todo, você está interessada no que é a nossa formação e eu acho que ela é múltipla. Eu
passei a ler mais por causa da militância política do movimento negro.

A performance dos pesquisadores afrodescendentes combina proposições advindas de


uma experiência periférica entendendo-a como algo denominado por Cunha Junior como uma
espécie de bilingüismo, porque “falamos dois idiomas da cultura. Nós falamos o idioma
europeu e falamos o idioma de base africana, nós conhecemos quase sempre duas culturas e
somos performáticos das duas culturas e eles não conhecem as duas culturas. Então fica difícil
o diálogo”.

A trajetória de Ivair Augusto dos Santos155 está marcada pela sua atuação na política
governamental em sentido amplo. Graduado em Química pela Universidade Federal de São
Carlos (1975) fez, posteriormente, mestrado em Ciência Política pela Universidade Estadual
de Campinas (1991). Em 2005, ingressou no doutorado em Sociologia pela Universidade de
Brasília. Como veremos mais à frente, a universidade aparece, em sua via-crúcis, como uma
questão de sobrevivência material. Como gestor público, viu na universidade caminhos para
“enfrentar a dicotomia entre Movimento e Estado”. Sobre isso, declarou:

[...] atualmente, trabalho na Secretaria Especial de Direitos Humanos como Assessor Especial e na
Secretaria Executiva do Conselho Nacional de Combate à Discriminação. Do ponto de vista do
intelectual, eu tenho, desde a minha experiência de trabalhar em uma instituição como foi o Conselho de
Participação da População Negra de São Paulo, que eu acho que a gente tem de manter um diálogo
permanente com aqueles que estão produzindo, que estão trabalhando na universidade, e aqueles que
estão em plena atividade no poder público. Daí vem o meu interesse em estar trabalhando nessa área.
Ultimamente, eu tenho me debruçado sobre umas questões bastante diversas [...] elaborar uma
publicação sobre direitos humanos, mas levando em conta aspectos da realidade e do desenvolvimento
da História do Direito no Brasil como uma contribuição diferenciada na literatura sobre Direitos
Humanos, e ao mesmo tempo com o recorte racial. Acho que faz falta na literatura textos que falem

155
Ivair Augusto dos Santos tem vasta experiência intervindo politicamente nas políticas de estado (estado de
São Paulo e governo federal) desenvolvendo teorias sobre a história do movimento negro paulista e suas relações
com o Estado, bem como sobre as políticas públicas para a população negra e os processos de discriminação
racial. Como membro da Secretaria Especial de Direitos Humanos ligada diretamente à Presidência da
Republica, desfruta politicamente de um lugar estratégico para sua participação política.

178
sobre os direitos humanos sob a perspectiva daqueles que nunca foram incluídos, que é o caso da
população negra.

Ressalta também a sua atuação docente ministrando aulas de direito – ainda que não
seja essa a sua especialidade comprovada com certificação. De suas características, salta aos
olhos a necessidade de alcançar respostas antes não encontradas na atividade de gestor
público. Sobre isso vimos o seguinte relato:

O que eu sempre procurei fazer é trabalhar em cima da minha experiência profissional [...] eu nunca fiz
um trabalho que fugisse da minha questão. Eu vou fazer um trabalho sobre empresariado? Eu não tenho
acesso aos empresários. Então eu sempre tive clareza que ia fazer o meu trabalho em cima daquele
universo que eu tinha, e conseguiria acumular o maior número de informações para, em um prazo
determinado, realizar meu trabalho.

Assim, foi descobrindo as estratégias para enfrentar os obstáculos reconhecidos na


cultura universitária. Para contemplar sua atuação política, recorre aos saberes
academicamente legitimados aproveitando-se do universo de teorias presentes nos currículos
dos mestrados e doutorados.

Os dados acima servem para apreciarmos o percurso feito com base na certificação
alcançada. Entendemos, a partir das indagações reveladas no formato das entrevistas (blocos
de questões), que existem, nestas experiências, notadamente focada nas Ciências Sociais,
interesses que culminam numa performance afrocentrada. O pensamento assim revelado se
materializa na produção dos depoentes. Poderíamos afirmar que seus trabalhos, os projetos
que apóiam e ajudam a desenvolver no âmbito da academia e/ou da política educacional,
independem do aspecto geracional. Um exemplo seria a atmosfera de interculturalidade
presente no III COPENE. Graduandos, experimentados pesquisadores e jovens intelectuais
investem na conformação de uma racionalidade afrocentrada. Este quadro seria resultado de
negociações156 realizadas no âmbito da militância acadêmica.

5.1.2. Da universidade para o movimento negro

Como se procurará mostrar, identificamos aspectos em comum entre os depoentes. As


narrativas construídas por um segundo grupo (Florentina Souza, Dora Lucia de Lima Bertúlio,
Silvio Humberto dos Passos Cunha, João Carlos Nogueira, Nelson Inocêncio, Ana Amélia,
Wilson Mattos, Paulino Cardoso, Julvan Moreira de Oliveira, Cirena Calisto da Silva, Salles

179
Augusto dos Santos, Ari Lima, Lucia Pereira) revelaram haver um incremento na luta pela
certificação.

Arriscamos afirmar que nele estão situados sujeitos que reforçam mais sua militância a
partir do contato com a academia, e menos a partir dos grupos organizados fora dela. São
argumentos apoiados no relato sobre processos de enegrecimento quando da inserção no
mundo acadêmico, Conforme se vê na narrativa de Paulino Cardoso:

A graduação em História foi uma outra questão. Por exemplo, entrar na história, fazer parte do
movimento negro foi algo vital. Por quê? Porque se por um lado na época eu já era um letrado, o
movimento negro me permitiu enxergar as condições da população negra e ter um discurso. Na época
todo mundo lia José Serra Neto (A história do negro no Brasil), Joel Rufino e muitos autores que, de
certa forma, reforçaram a idéia de que era possível ser um acadêmico, e principalmente formar a idéia
de que a gente poderia ser qualquer coisa. Novamente, a oportunidade, ou seja, eu participei do
movimento negro estudantil durante um bom tempo. Chegou um determinado momento que nós
tínhamos tensões em sala de aula com os alunos.

Por ocasião das entrevistas apenas cinco dos depoentes (Dora Lucia Bertúlio, Ari
Lima, João Carlos Nogueira, Salles Augusto dos Santos e Lucia Pereira) não eram docentes
em universidades públicas. Entre os cinco, pelo menos um deles (Ari Lima) já está exercendo
a carreira docente em universidade pública (UNEB).

Dora Lucia Bertúlio é mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina
(1989) e procuradora da Universidade Federal do Paraná. Seus trabalhos são sobre Direito
Público enfatizando o Racismo, o Direito, as Relações Raciais e as Ações Afirmativas. Pela
construção do seu discurso vimos que aproveita sua posição no campo do Direito para
desestabilizar a visão tradicional nele presente:

Nos meus estudos, eu vou percebendo que o direito é um dos perfeitos produtores e reprodutores dos
valores racistas na sociedade brasileira e que o racismo trabalha com várias estruturas, mas
fundamentalmente valorativa. E esse valor acaba sendo inserido na estrutura do pensamento, no senso
comum, na verdade, da população. E o direito cumpre o papel, na medida dele ser a estrutura do Estado
que é controladora e reguladora, ele também controla e regula as relações raciais especialmente
dirigidas para uma posição racista dessas relações raciais brasileiras.

Recorrendo ao relato construído por ela, entendemos que sua intervenção (procuradora
da Universidade Federal do Paraná) tem implicado numa circulação interessante da defesa das
Ações Afirmativas, pela invisibilidade atribuída a ela no debate público, na temática que
domina: “Direito versus Desigualdades Raciais no Ensino Superior”. João Carlos Nogueira,
Dora Lucia Bertúlio, Valter Roberto Silvério, Petronilha Beatriz e Ivair Augusto dos Santos,

156
À guisa de exemplo, destacamos a instituição dos Núcleos de Estudos Afro-brasileiros em 2002 tendo como
proponentes os docentes e pesquisadores das principais universidades públicas do Brasil.

180
têm, no III COPENE, tarefas insubstituíveis pelo fato de pertencerem a esferas nas quais as
políticas de reparação são discutidas para implementação.

Sendo assim, interessou observar as situações de fortalecimento das redes entre os


grupos posicionados estrategicamente em termos de representação política. Em linhas gerais,
se destacam as representações que esses sujeitos constroem sobre a luta por uma agência
coletiva que não se encerra nos estudos acadêmicos realizados, como podemos ver na sua
trajetória. Trabalhando como subsecretário de Políticas de Ação Afirmativa na Secretaria de
Promoção de Políticas de Igualdade Racial (SEPPIR), João Carlos Nogueira acredita que
“para assessorar uma ação política, é imprescindível o conhecimento e a formação
universitária”. Desde muito cedo se inseriu na pesquisa acadêmica. Em sindicatos, foi
responsável por criar escolas de formação sindical chegando a candidatar-se a vice-prefeito
em cidade do seu estado de origem.

Para o coletivo de pesquisadores afrocentrados reunidos no III COPENE, viu-se,


naquele espaço, as condições para se promover o encaminhamento de propostas de
representação política em prol da agenda de um movimento em ascensão. Daí a centralidade
da interferência a partir das orientações trazidas por João Carlos Nogueira, assim como as
sugestões apresentadas por Ivair Augusto dos Santos, Valter Silvério, Dora Lucia Bertúlio e
Petronilha Beatriz – todos esses atuantes como articulistas e assessores em órgãos
governamentais. Há indicações, pelo conjunto dos depoimentos, de haver, na agenda deste
movimento emergente, uma ética esboçada na perspectiva que entende representação política
definida nos espaços públicos. A dificuldade de organização de fóruns como é o caso do III
COPENE pode ser analisada pela opção que fazem esses intelectuais ao lutarem pelo ensino
superior público e gratuito e lutarem pela circulação de seu posicionamento acerca deste
problema.

Dentro de uma mesma perspectiva, intelectuais não tão experimentados emergem no


contexto da universidade, ratificando as proposições salientadas, por exemplo, por figuras
como Ana Célia da Silva, uma militante que sai do movimento negro indo em direção ao
“movimento acadêmico”.

181
Consideramos que a performance de Wilson Roberto de Mattos157 adquire um sentido
político emblemático pelo ineditismo que ela apresenta, a saber. Professor da Universidade do
Estado da Bahia (UNEB) desde 1994, formou-se em História pela PUC-SP, cursando
mestrado e doutorado nesta mesma instituição. Na implementação do programa de Ações
Afirmativas na UNEB, sua atuação foi de suma importância. Wilson Roberto de Mattos
dirigiu o Departamento de Ciências Humanas (campus V) e coordenou o Programa de pós-
graduação em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional. É conselheiro da FAPESB
(Fundação de Amparo à Pesquisa). Por ocasião do III COPENE, Wilson Roberto de Mattos,
juntamente com Nilma Lino Gomes, é indicado para fazer parte da presidência da Associação
Nacional de Pesquisadores Negros e desde março de 2006 ocupa a função de pró-reitor da
Universidade do Estado da Bahia. Destaca-se, ainda, sua função de membro do Conselho
Nacional de Educação. Cabe aqui em especial a seguinte questão apontada por ele:

[...] Nós sabemos que para a produção do conhecimento, para o exercício da pesquisa (porque ninguém
faz pesquisa sem dinheiro, sem recursos), para canalizar esses recursos, se você não estiver organizado,
se você não tiver projetos consistentes, rigorosos, muito bem fundamentados, se você não dinamizar um
fluxo de relações institucionais em nome de uma associação, que é bem maior do que a sua
individualidade e, digamos, a individualidade dos grupos, você não consegue, você não vai a lugar
nenhum. Estão cada vez mais estreitas as formas de financiamentos de pesquisa, sobretudo dos
organismos públicos, ligados ao Estado.

Wilson Roberto de Mattos estudou na escola pública todo o ensino básico, trancou a
faculdade por duas vezes. Nela, teve alguns problemas de relacionamento, o que se justifica
pelo choque que se toma ao ser apresentado aos “códigos da academia”. Sobre isso
destacamos o fragmento abaixo:

Os códigos da academia nos habilitam em tese, ou pelo menos nos habilitariam a pleitear espaços de
poder, não só no interior da academia, mas na própria sociedade inclusiva de um modo geral, espaços de
poder que podem beneficiar tanto o nosso processo de construção de uma formação individual, quanto
as nossas ações coletivas, porque eu também acho que a função, os compromissos intelectuais, os
compromissos sociais, eles têm essas dimensões. Você tem que ter um forte investimento na sua
formação pessoal, eu não abro mão disso, eu acho que tem que se formar mesmo, tem que estudar.
Agora, essa formação pessoal rigorosa ela não pode se auto-referenciar. Não pode ter como referência a
sua própria individualidade. Aí eu acho que ela tem que se estender. Você investe na sua formação
pessoal que é para servir a uma coletividade mais ampla, que transcenda a sua individualidade,
transcenda o âmbito restrito da sua família, do seu grupo de amigos, eu acho que nisso, nós temos
compromissos sérios. Mesmo porque, se nós chegamos até onde nós chegamos, nós bem sabemos o
quanto de sacrifício as pessoas que nos antecederam tiveram que fazer: nossos pais, nossos avós, nossos
ancestrais de uma maneira geral. Essa questão do compromisso social funciona como um imperativo

157
Como docente, uma das suas prioridades tem sido envolver a prática da pesquisa na formação de graduados e
pós-graduandos como ocorre no Projeto de pesquisa e produção de material didático sobre experiências
históricas de populações negras no Brasil, nos EUA e em países americanos de língua espanhola e o
FROUNEB: Ações Afirmativas, Igualdade racial e compromisso social na construção de uma nova cultura
universitária.

182
moral e um imperativo político. Por isso, que eu não acredito nesse negócio de dizer que: ah! o cara vai
para a academia e esquece as outras coisas, deixa de ser militante. Claro que continua sendo militante.
Nós todos somos militantes, eu penso dessa maneira.

Parte da sua experiência como aluno de pós-graduação, foi compartilhada com Paulino
de Jesus Francisco Cardoso que, apesar de graduado em universidade pública (curso de
História pela Universidade Federal de Santa Catarina − 1988), cursou mestrado (1993) e
doutorado (2004) também pela PUC-SP. Como professor titular da Universidade do Estado de
Santa Catarina participa como membro do Conselho Nacional de Combate à Discriminação,
sendo membro da Comissão Assessora do Ministério da Educação e do Desporto, atuando
também como consultor da Casa das Áfricas. Se no interior da PUC-SP esses sujeitos foram
apresentados às formulações desenvolvidas pelos “pais” da tematização – Florestan
Fernandes, Abdias Nascimento e Otavio Ianni – como acentuou Wilson Roberto de Mattos,
esta aproximação converteu-se em “moeda”, no sentido de possibilitar o redimensionamento
da produção iniciada no pensamento social brasileiro. Daí, defendermos a noção de
“reinscrição da Questão do Negro”.

Com a participação política desses intelectuais que defendem ações, propostas de


mobilidade social para grupos o que se pretende é ultrapassar a postura de intelectuais
preocupados apenas com a questão epistemológica que perpassa esse campo de debate. Não
apenas essa situação exprime a dimensão da agência afrocentrada. A preocupação com as
questões curriculares vem polemizando discursos eurocentrados que forjam as identidades de
milhares de meninos e meninas, professores e professoras em fase de formação. A
obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Africanas (Lei 10.639) reforça nossas
percepções sobre as trilhas percorridas na via-crúcis destes intelectuais.

No Rio Grande do Sul, Lucia Regina Brito Pereira graduou-se em História (1991) pela
Pontifícia Universidade Católica (PUC-RS), cursando posteriormente o mestrado (1995) na
mesma instituição. Professora da rede estadual do Rio Grande do Sul, considera que “é filha
de uma ação afirmativa”. Na PUC-RS, recorreu ao crédito educativo da Caixa Econômica
para finalizar sua graduação. O mestrado foi realizado em seguida por conta da bolsa do
Conselho Nacional de Pesquisa Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

183
Posteriormente, Lucia Pereira foi aceita como bolsista do Programa Internacional de Bolsas
de Pós-Graduação da Fundação Ford158 e vai mais uma vez rumo à PUC-RS:

Fazendo o balanço da minha vida, eu pensei bem, eu vou fazer o quê? Vou estudar, a coisa que mais me
dá prazer. E neste tempo apareceu, em 2000, o Programa de Pós-graduação da Fundação Ford. No
primeiro ano eu não me inscrevi, porque estava muito atribulada, final de gestão, aquela coisa toda. Me
inscrevi para o ano seguinte e tive a felicidade de ser contemplada com uma das bolsas. Isso foi uma
surpresa e ao mesmo tempo, se não fosse isso, não teria como entrar de novo numa universidade. O
número de bolsas é muito pequeno e a concorrência é muito grande. Então, tu tens que ter toda uma
articulação com as pessoas. Mesmo a minha orientadora tendo sido já a minha orientadora no mestrado,
a gente sabe quem as pessoas priorizam, porque a linha de pesquisa que ela está trabalhando hoje, não é
a mesma que ela trabalhava 10 anos atrás. Então, eu teria que conversar muito para trabalhar com a
questão negra. E eu estou na História, não estou nem na Educação, porque na realidade no projeto pra
Fundação Ford que eu fiz foi pra Educação. Então eu tinha que adaptar da História e trabalhar com a
Educação. Bem, então este é um ponto. Eu estou lá em função de todos esses auxílios que me foram
concedidos.

Desta vez, ela deveria, em função do aceite dado pela Fundação Ford, garantir a
entrada no doutorado. Examinando sua trajetória, a trajetória de Wilson Roberto de Mattos e
de Paulino Cardoso, vimos implícitas, na estrutura da Pontifícia Universidade Católica (por
todo o Brasil), vias de acesso para a “Questão do Negro” cabendo nelas não apenas a
tematização mas também o incentivo a sua presença nos diferentes níveis. Sobre isso, Wilson
Roberto de Mattos, que, assim como Lucia Pereira, financiou boa parte de sua graduação com
o salário de bancário, analisa a situação da PUC-SP como tendo sido um locus revestido de
uma atmosfera de negociação da presença afrodescendente:

Ao comparar o valor que a gente pagava em 1983 com o valor das mensalidades que os estudantes
pagam hoje, há uma diferença muito grande. A PUC passou por um processo de elitização muito
grande. Mesmo assim, eu tive alguma dificuldade econômica e trabalhava e estudava à noite, depois que
eu comecei a dar aula, aí eu dividia mais o horário. Mas eu trabalhava em banco, estudava à noite no
primeiro ano. No primeiro semestre eu paguei e no segundo semestre eu já entrei num sistema de bolsas
restituíveis que tinham lá na PUC de São Paulo. Essas bolsas não eram integrais, o máximo que eles
concediam de bolsa era 80% e a gente tinha que pagar os 20% Na verdade eu nunca paguei esses 20%,
eu sempre rolava a dívida, rolava, rolava, rolava e no final eles acabaram me anistiando. Depois de um
longo tempo, tinha que pagar, depois que terminei o curso. Mas aí eles acabaram me anistiando e aí eu
não paguei mais.

Ao discorrer sobre sua experiência de aluno, Wilson Roberto de Mattos destacou o


quanto, naquele espaço, foi possível inserir-se como pesquisador:

158
Conforme apresentação contida no texto do site da Fundação Ford, “o Programa Internacional de Bolsas de
Pós-Graduação da Fundação Ford (International Fellowships Program − IFP) oferece oportunidades para que
mulheres e homens, com potencial de liderança em seus campos de atuação, prossigam em seus estudos
superiores, capacitando-se para promover o desenvolvimento de seus países, bem como maior justiça econômica
e social. O Programa está sendo implementado em 22 países da África, América Latina, Ásia, Oriente Médio e
na Rússia, locais onde a Fundação Ford atua”.

184
[...] O número de estudantes negros na PUC-SP era pequeno. Sempre foi assim, um número
considerável em relação a outras instituições lá em São Paulo, mas ainda era pequeno. Então eu tinha
alguma dificuldade de integração àquele mundo acadêmico. Eu vinha de um bairro popular, de
manifestações bastante populares, era de escola de samba, essas coisas todas. E de repente o universo
universitário tem uma outra lógica de funcionamento, uma outra lógica relacional e tal. São outros
códigos e aí para aprender esses códigos você tem que, você não aprende de uma vez só, de uma vez
única, você tem que ir devagarzinho e tentando decodificar esses códigos e você passa a se adaptar a
eles, mas na verdade essa adaptação nunca é uma adaptação integral, é uma adaptação assim, sempre
parcial, meio estratégica, muito mais no sentido de facilitar a sua vida ali do que uma integração
mesmo. Uma, digamos assim, aculturação. Então eu acho que no meu caso foi deliberado. Eu não tinha
nenhuma intenção de me “aculturar”, mas acabei identificando esses códigos para poder viver
tranqüilamente nesse espaço da academia.

Deste fragmento, destacamos o traço do “isolamento” como sendo emblemático na


análise do conjunto de entrevistados. Tentando manter a inserção dos setores empobrecidos a
partir de ações e teorizações, a PUC- SP parece ter “acomodado”, se assim pudermos
considerar, a “Questão do Negro”. No bojo, aqueles agregados por ela, como é o caso de
Paulino Cardoso e de Wilson Mattos, precisaram buscar apoio entre si. Conforme este último
respondente,
[...] talvez na PUC uma das estratégias adotadas não só por mim, mas talvez por alguns outros
companheiros, foi que nós conseguimos nos integrar rapidamente a grupos de estudantes negros. Porque
a PUC de São Paulo já tem uma tradição antiga de reflexão sobre a questão racial, com alguns dos,
digamos aí, pais fundadores dessa reflexão: Florestan Fernandes deu aula na PUC, Otavio Ianni deu
aula na PUC. Tinha o grupo chamado GN PUC, que foi um grupo importante com estudantes e
militantes do movimento negro, tinha o IPEAFRO com Abdias do Nascimento. Abdias do Nascimento
passou uma época na PUC. Então a PUC já tinha uma certa tradição de reflexão sobre isso, o que de
certa forma atraía calouros ou candidatos negros ao vestibular, a fazer o vestibular da PUC. Quando a
gente chegava lá, lógico que nos períodos iniciais tinha alguma dificuldade de adaptação por conta
disso. Mas uma das estratégias foi os estudantes negros se juntarem. Nós nos valemos dessa tradição,
pelo menos a minha geração, nos juntamos. Tinha um grupo lá de estudantes negros, até um grupo que
depois ele se instituiu, NEAFRO. Várias pessoas participaram desse grupo, pessoas aqui neste
congresso, como Paulino, Acácio, Dagoberto, Álvaro... Várias pessoas participaram desse grupo que era
uma forma de nós, coletivamente, negociarmos a nossa presença no espaço da universidade, já que era
um espaço essencialmente branco. Então essa minoria conseguiu se juntar para negociar os nossos
espaços.

Na sua visão, houve ali um fortalecimento coletivo que os levou a se situarem


posteriormente. Os estudantes eram destacados pelo seu compromisso com a teoria, o que
significava empenho e desempenho satisfatório. Segundo Mattos, “a PUC tem essa espécie de
compromisso institucional com essa questão, mas a gente tinha uma respeitabilidade, pelo
menos a minha geração, junto à reitoria e junto a grande maioria dos professores”.
A partir desses depoimentos sobre os alunos que participaram daquele movimento
estudantil negro da PUC-SP caberia uma formulação159 apurada desta experiência, em
especial. Podemos supor que a participação da Pontifícia Universidade Católica, numa

185
conformação nacional de um quadro de graduados afrodecendentes – independentemente de
suas formas de se auto-identificar – não pode ser desprezada. E se assim pudermos considerar,
este aspecto toca no descompromisso da universidade pública com a “Questão do Negro”,
com base numa perspectiva integradora dos sujeitos indo além da acomodação temática.
Caberia, por isso, a proposição de que, na universidade pública, a “Questão do Negro” esteve
vinculada aos interesses dos intelectuais com posturas eurocentradas, voltados, por exemplo,
para a autopromoção através da garantia de mobilidade contínua do seu grupo racial – os
brancos.
O traço a ser destacado é o “ajuntamento” em oposição ao “isolamento”. Outro
aspecto interessante da narrativa de Wilson Roberto de Mattos diz respeito à decodificação
dos códigos acadêmicos bem como a ênfase dada ao traço da “aculturação” decorrente da
experiência universitária. Também destacamos a superação e o respeito adquirido ao longo de
sua busca pelo pertencimento acadêmico.
Sobre a “acomodação” pela PUC-SP em relação à “Questão do Negro”, gostaríamos
de, em outro espaço, retomar tais nuances. Naquele contexto, o espaço para o estudo sobre as
relações raciais estava dado por contradição do sistema, pela orientação cristã, por receber
verbas federais/públicas, por não apresentar riscos (já que as elites intelectuais iam para a
USP, por exemplo, havendo assim um campo a explorar sem confrontar o status quo da elite
intelectual), ou por uma concentração de estudantes não-brancos que inicialmente não
pensavam em discutir o tema e que pode ter chamado a atenção dos professores ali situados.

5. 2. Ajustes e negociações
No primeiro bloco de questões (da história familiar à trajetória acadêmica), buscamos
mapear os caminhos que levaram nossos depoentes a permanecerem no campo intelectual. Por
ele, compreende-se (das representações construídas sobre os objetivos da inserção acadêmica)
a necessidade de ampliar as oportunidades de mobilidade social. Este dado confere ao projeto
pessoal a primeira motivação para boa parte do grupo. Sobre isto, Ivair Augusto dos Santos
declara:

A carreira política não dá renda estável. Então, em vários momentos você fica desempregado. Quando a
gente vê a academia pela primeira vez é como uma forma de emprego. Ou seja, eu precisava sobreviver
e fiz um concurso para o mestrado, o mestrado dava uma bolsa, e casava as duas coisas: a vontade de
aprender com a vontade de sobreviver. Essa foi a razão.

159
Ao acessarmos a Home Page (www.puc.sp.br) da PUC-SP, encontramos a seguinte definição sobre o seu

186
Da narrativa de Lucia Pereira destaca-se a seguinte declaração:“o nosso primeiro
emprego é o mestrado”, o que parece ter facilitado as próximas inserções pela legitimação
adquirida, a saber:

Eu resolvi fazer vestibular pra ver como é que era [...] Aí peguei os livros, estudei em casa, ia trabalhar,
toda aquela trajetória. Não fiz cursinho. Na minha primeira tentativa eu passei. Foi na PUC, porque se
eu tivesse feito na universidade federal certamente eu teria passado também. E foi direto - “pluft!”,
passei. Aí eu pensei, bem... eu vou. As nossas coisas... nem sempre acontece duas vezes. E a partir daí
fui trilhar a universidade. A partir daí algumas coisas mudaram: entrei em contato com as meninas,
tinha uma colega que era do Maria. Neste tempo o Maria Mulher estava se criando e aí eu tive o meu
debu no movimento negro. A partir daí que eu comecei a militar. E essa militância começou a ficar mais
orgânica a partir do momento que eu terminei a graduação. A graduação e depois o nosso primeiro
emprego, que é o mestrado. Então, a partir daí, eu fiquei aí, por indicação do movimento negro, fui
trabalhar na Secretaria de Educação e aí virou essa bola de neve, que é essa coisa.

Supomos que a experiência na pobreza tende a motivar a inserção de Lucia nos


espaços nos quais declara atuar. O acesso a um certo poder econômico passa a ser um tipo de
retorno do seu empenho. O reconhecimento da legitimidade alcançada com o saber da
academia pode estar refletido nos acontecimentos que fazem de Lucia uma representante em
potencial, ao que tudo indica. Numa inserção nada tranqüila, por indicação do movimento
negro, Lucia fica por quatro anos na Secretaria de Educação de Porto Alegre travando
embates políticos e ideológicos com os seus diferentes. Para ela, “o trabalho em relação à
questão negra na Secretaria de Educação foi muito doído, muito doloroso, porque apesar de
ser uma administração de esquerda, os companheiros ainda têm uma visão muito pequena ou
quase nenhuma dessa questão racial”.

Parece ter havido uma rápida absorção por parte dos representantes de instituições do
movimento negro deste capital adquirido por Lucia Pereira no campo acadêmico. Ela, por sua
vez, aceita o desafio que é estar neste lugar, ao que tudo indica, isolada como a única
representante de uma agenda advinda do movimento negro:

Todos os projetos, tudo que tu querias por mínimo que fosse implementar, tinha que ser na disputa,
tinha que ser no grito, era sempre muito desgastante. E a partir daí, um outro ponto que eu acho que é
uma coisa que a gente tem que ver é que tu ficas muito sozinha. Primeiro, porque os teus pares ali, no
caso da Secretaria, é um problema, tu tens que ficar provando para as pessoas porque tu tens que ter
uma política direcionada pra determinado segmento e acabas fazendo trilhões de atividades. Aí o
movimento fica um pouco fora disso. A gente ainda não sabe como é que vai fazer bem essa articulação.
E aí eu ficava entre a cruz e a caldeirinha. Eu brigava com Deus e o mundo, gritava pra todo mundo –
Olha, a gente precisa, a gente tem que fazer isso, não pode ser assim – e ficava meio solta na história.
Mas, passado um tempo, eu acho que a história está aí pra mostrar o que deu certo, o que não deu certo.

projeto educacional: “A PUC-SP vem contribuindo para a melhoria da qualidade do ensino fundamental no país,
através da formação de professores nas diversas áreas do conhecimento. [...]

187
Chama a atenção na experiência de Julvan Moreira de Oliveira suas tentativas de
negociar no doutorado um referencial da filosofia africana. Graduado em Filosofia pela
Universidade São Francisco (1991), é professor universitário com mestrado pela Faculdade de
Educação da USP/SP (2000). Seu interesse de pesquisa é mitocrítica, africanidades, cultura e
imaginário. De sua fala, destacamos o seguinte:

[...] no mestrado, eu não conhecia ninguém, eu fiz um projeto de mestrado e fui aprovado. Agora
depois, durante o curso, aí sim, tem essas negociações: co-orientadora...Você vai discutindo alguns
referenciais teóricos e há coisas que nós pensamos e que são difíceis de ficar no trabalho porque há
algumas resistências com algum pensamento nosso. Há muitas negociações. E por conta do doutorado,
eu acho que a mesma coisa aconteceu, eu acho que... já passei pela qualificação e foi uma qualificação,
acho que extremamente dura, talvez por conta desse trabalho inovador de pensar uma pedagogia, mas a
partir de um pensamento afro e não dos filósofos ocidentais. Então às vezes você tem que negociar
algumas coisas, nem tudo aquilo que nós defendemos, ou pensamos que podemos fazer, a universidade
não aceita. A banca tem deficiência em compreender até porque não tiveram essa formação ou não
leram os autores que nós lemos e não compreendem.

Em seu relato, reconhece ter sido formado nas bases no pensamento ocidental que
conseqüentemente despreza qualquer outro pensamento, como é o caso da Filosofia Africana,
sendo esta último vista como sem validade. Para Julvan, “esse processo é um processo duro,
de sofrimento, de angústias por conta dessas negociações. Esses acordos, essas negociações
são feitos, isso não tem como”. Pela nossa apreensão, a narrativa de Julvan Moreira de
Oliveira situa sua vivência como noviço, como tendo sido um marco ao aproximá-lo da
questão do Outro (neste caso o pobre). Deste contato, pôde entender as condições nas quais
opera a divisão racial dos grupos que constituem a população empobrecida. Reconheceu que o
intelectual enfrentará dilemas de toda ordem:
[...] eu vejo a minha inserção, por aquilo que eu venho produzindo, eu acho que hoje é algo que eu
procuro pensar que possa contribuir para a educação e principalmente para a nossa população. Pensar
uma outra educação, onde essa nossa população negra possa ser inserida de uma melhor maneira
possível. Uma educação feita a partir de um olhar dessa nossa população negra.

Vimos que para Julvan Moreira de Oliveira sua atuação se dá a partir de uma produção
eminentemente militante. Segundo ele, “a produção teórica que fazemos pode contribuir com
a transformação, se entendemos que a militância tem uma preocupação política de
transformação da sociedade”. Desta perspectiva destacamos:

O pesquisador pode estar inserido em movimentos sociais ou também não precisa estar. Eu não estou
pensando aqui num pesquisador isolado, sozinho no seu quarto, mas a produção dele, aquilo que ele
produz, se ele produz a partir de uma realidade, quer dizer, não desvinculado da realidade, então essa
produção pode ser uma produção eminentemente militante se ele vem contribuir com uma
transformação, uma mudança da sociedade.

188
Muito instigante, também, é o que anuncia sobre as suas tentativas de enfrentar nos
projetos da Igreja Católica, um trabalho religioso considerando o recorte racial. Na vida
religiosa, e aos poucos, no período em que começa a inserir-se formalmente como noviço,
Julvan Moreira de Oliveira passa a aproximar-se da questão racial e passa a enfrentá-la de
modo mais sistemático:
Quando eu estava no Rio fazendo Filosofia, em 1982, aí eu lembro que eu tive o primeiro contato com
essas lutas, questões raciais. Eu acho que até por conta da eleição, tinha algumas candidatas, a Benedita
da Silva foi uma candidata, Lélia Gonzalez. Eu não lembro, mas foi em 82, tinha alguns nomes e alguns
colegas do Rio, que eu acabei conhecendo. Militavam e aí eu comecei a me inteirar. Depois no
noviciado em Juiz de Fora, também participei já com grupos negros em Juiz de Fora, quando fui
transferido pra lá. E depois na Teologia aqui em São Paulo, estava iniciando os agentes de pastoral
negros, uma associação de negros no interior da Igreja Católica. Então iniciando o curso de Teologia,
aqui em São Paulo, na arquidiocese no curso da faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção da
arquidiocese, eu também inicio a participação com os agentes pastorais negros, que foi me dando uma
outra visão com relação à questão racial naquele período, que eu não tinha. E que o curso também não
dava, o curso de Teologia.

Algo deste seu atributo o manteve fiel, chegando mesmo a afastá-lo de sua “vocação”
na Igreja Católica:
Em 82 fui ordenado e trabalhei em São Paulo em algumas paróquias e, por causa da ordem, mas por
divergências internas, do pensamento da congregação do que eu pretendia fazer como trabalho, ligado aí
à questão do negro ou da Teologia da Libertação... Naquele período, eu tive muitos conflitos e saí. Tive
que sair, porque eu não tinha espaço de trabalho mais, por divergências internas, hierárquicas, lá com os
superiores. Eu pedi demissão, eu saí.

O relato de Julvan Moreira de Oliveira nos levou a Edward Said (2005) pela insistente
proposição deste último sobre uma “fidelidade intelectual”, bem traduzida numa vida religiosa
e hoje no campo científico. Para Said, “não existe algo como o intelectual privado, pois, a partir
do momento em que as palavras são escritas e publicadas, ingressamos no mundo público”
(2005, p.26) e no dizer de Julvan, percebe-se os efeitos dos atritos que serviram para seu
fortalecimento como docente e intelectual militando a partir da teorização e da prática. Em
outros termos, podemos supor que, nestes processos de construção identitária, os intelectuais
subalternos precisam negociar consigo mesmos no sentido de suportar estar fora do lugar.
Neste sentido, negociar com o movimento negro, com a auto-imagem deteriorada, com
estruturas sociais rígidas, implicaria, portanto, a opção por sustentar uma causa coletiva mais
importante que a pessoal. Sendo a vida acadêmica primeiro uma ação isolada, em busca da
sobrevivência intelectual que tem como princípio garantir a mobilidade do sujeito que insurge
isoladamente, poderíamos afirmar que o “ajuntamento” é um fenômeno causado pela percepção
de haver um interesse em comum orquestrando a apropriação de sujeitos isolados em diferentes
regiões.

189
A narrativa construída por Nelson Inocêncio tem como centralidade os caminhos
percorridos no ativismo e sua continuidade na prática docente desenvolvida no âmbito da
universidade de Brasília, no curso de graduação em Artes. Vê-se, nas entrelinhas destas
definições, a via-crúcis de um militante marcada pelas condições materiais precárias nas quais a
grande maioria se encontra:

[...] essa tem sido a minha trajetória, quer dizer, hoje eu sou docente também. Eu fiz um concurso em 93
e felizmente consigo equilibrar um pouco essas coisas. Porque também tem uma coisa muito curiosa,
muitas vezes os militantes doam o seu sangue e tudo. Mas a vida material fica muito comprometida.
Então a gente fica muito feliz, quando um companheiro, quando um militante ou uma militante
consegue se estabelecer materialmente. E eu, na verdade, comecei a me estabelecer a partir desse
momento, em que eu venho para a carreira acadêmica e passo a ter condições, de arquitetar, pensar a
minha vida, inclusive materialmente falando. Pensar minha vida de uma forma mais adequada, mais
firme etc. e tal. E tem sido assim.
Ao contrário do discurso de Nelson Inocêncio, daquilo que marcou a experiência, por
exemplo, de Amélia Vitória de Souza Conrado160, que foi uma inserção primeiro em espaços de
“negociação da negritude” (como grupos de dança afro, dança popular), alguns sujeitos
constroem a(s) sua(s) negritude(s) a partir das situações de racismo sofridas no âmbito da
universidade, como é o caso de Ari Lima ou por terem na universidade seu primeiro contato
com o debate. Chama nossa atenção por serem relatos indicando haver uma contaminação (na
sua melhor acepção), a partir da experiência universitária e do posicionamento político que tem
como centralidade as relações raciais. Julvan Moreira de Oliveira e Salles Augusto dos Santos
fazem parte deste segmento. Esses respondentes destacam as condições nas quais passam a
perceber seu lugar como estranhos. Da narrativa de Ari Lima o foco repousa nos aspectos
levantados sobre o período que coincide com a garantia do término e reconhecimento de seu
esforço intelectual no seu doutoramento:

[...] eu decidi fazer o exame lá em Brasília. Aí fiz, passei, e já tinha assegurado a orientação de José
Jorge de Carvalho e aí pronto. Foi um mundo novo pra mim, mais um desafio, uma cidade inóspita,
uma cidade diferente de todas as outras que eu tinha conhecido. Então foi o momento, o início foi de
difícil adaptação e logo no primeiro ano aconteceu aquela tragédia: ser reprovado numa disciplina
obrigatória no Doutorado. Aí isso de novo mudou a minha vida porque até a graduação eu não tinha
identidade racial muito clara, muito afirmativa. Eu sabia que era negro, sabia que em muitas
circunstâncias eu era tratado como tal, mas não era uma coisa que me preocupasse tanto assim nas
decisões que eu tomava, as atitudes que eu tomava, as relações que eu tinha não estavam pautadas por
esta questão.

Na análise apresentada por Salles Augusto dos Santos sobre o peso da militância na
produção intelectual vimos o quanto, no acontecimento universitário, pode haver espaço para
confrontos políticos de toda ordem, chegando mesmo a considerar a criação de locus como

160
Conforme indicamos no primeiro bloco, Amélia Conrado faz parte do grupo que está na faixa etária
intermediária no universo de depoentes.

190
aqueles localizados nos Núcleos de Estudos Afro-brasileiros (os NEABs), como aponta em seu
relato. Os Neabs são “células”, que facilitam a problematização dos referenciais afrocentrados.
Considerando que sua aproximação com o debate das relações raciais se deu no percurso vivido
neste âmbito, enfocou:

Quando eu comecei a militar eu já estava na universidade pública e a militância na realidade é que


redimensionou toda a minha visão do que que eu queria com relação à universidade. Porque a gente
estudava a questão racial, não só era uma questão de prática, a gente estudava os clássicos, escrevia,
produzia textos, quer dizer a militância da gente foi uma militância extremamente organizada, nós
éramos editores do jornal, o jornal Raça e Classe [...] nós pegamos o jornal [...] e fizemos algo coletivo
e a gente tinha curso de formação.

Vários aspectos sobressaem na idéia embutida neste fragmento e um deles seria a


especificidade da interlocução que Salles estabeleceu. Para ele, sua militância acontece quando
do seu ingresso na vida acadêmica. Todavia, isso cabe no argumento que considera a
tematização das relações raciais como um modo de desestabilização do pensamento científico.
A UnB, vista como uma das universidades de maior prestígio nacional, também acomodou a
Questão do Negro. Entendemos que esta acomodação é feita com base no aspecto da
“exterioridade”, ou ainda como sendo este um espaço não-disciplinar que não apresenta riscos.
Havia, naquele contexto, uma leitura iniciada sobre esta área do conhecimento e Salles
Augusto dos Santos foi tocado por ela.

Percebe-se, no seu discurso, uma visão contrária ao discurso weberiano (1982) sobre a
incapacidade do intelectual militante fazer ciência, a visão de que o intelectual inserido numa
causa tende a ser levado pelos objetivos dessa luta. Na ênfase de Salles Augusto, ao destacar
que “era uma militância extremamente organizada” caberia a idéia de que não se sustenta o
argumento de Weber. Sobre a experiência política no ativismo negro Salles declarou:

[...] foi fundamental pra eu reorientar a minha entrada na academia porque na realidade eu só ia ter mais
um curso, só ia fazer a graduação e parar por aí. Com a militância, eu fui estimulado a fazer uma
dissertação sobre a questão racial. Ao ler Florestan [...] a gente falava "não é possível que ele está
falando dos negros! No sentido de que a gente não tinha condições técnicas de competir com os
imigrantes. E falei: "Não, eu vou discutir com esse cara!", o que eu estou querendo dizer é que a
militância, por um lado, interfere no seu tempo, na conclusão de uma graduação ou de uma pós-
graduação. Por outro lado, ela pode te dar ganhos no sentido de te qualificar até mesmo para uma
academia, que foi o meu caso e o caso de muitas outras pessoas.

191
No exame da trajetória de nossos respondentes, a negociação seria, inicialmente, o
traço definidor de sua saga161 caracterizando a busca do seu pertencimento acadêmico. Pelo
conjunto de relatos, essas práticas são de naturezas distintas. Para Julvan Moreira de Oliveira,
combinar o trabalho religioso à racialidade se converteria numa agência interessada em
compreender na vida religiosa de orientações distintas, práticas pedagógicas:

Eu gostava daquele trabalho. Procurava isso, talvez por conta da minha vida como religioso no interior
da Igreja Católica no período passado. Eu tinha, no mestrado, a intenção de fazer uma leitura dos mitos
ocidentais, especificamente religiosos no Ocidente e como estes mitos tratavam a cor preta ou a cor
negra. Não sei se o mestrado tentava responder uma questão pessoal por eu ter vivido tudo isso. Mas
logo após o mestrado, eu começo a ter outras preocupações e tentar pensar uma educação não a partir do
Ocidente, mas a partir do próprio pensamento afro ou africano ou afro-brasileiro. Terminando o
mestrado, então apresento um projeto de doutorado e foi aceito. Quer dizer, entrei no programa e estou
aí concluindo um doutorado, onde eu procuro, a partir de experiências educativas presentes em três
casas de tradições religiosas afro-brasileiras em São Paulo, levantar alguns elementos pedagógicos, que
eu acho que são fundamentais, presentes nessas casas, sistematizar sobre esses elementos centrais. É
uma experiência muito particular da cidade de São Paulo, de casas religiosas. Eu acho que pode
contribuir para uma reflexão de uma filosofia da educação afro-brasileira.

Como intelectual em formação, Julvan Moreira de Oliveira é levado a redimensionar


sua participação política desde a Igreja Católica. A formação intelectual é, por si mesma, uma
etapa vital para a transformação das diversas instâncias nas quais fomos inseridos e, no caso da
vida religiosa, a utopia, podemos supor, repousa na representação que construímos acerca da
missão sobretudo política.

Das possibilidades encontradas pelo grupo, destaca-se o enfrentamento nas recorrentes


situações de negociações envolvendo o espaço da produção de conhecimento(s) e os espaços
onde tradicionalmente repousam a participação política.

5.2.1. Estabelecidos e insurgentes: disjunções nas relações mistas

“Negociar”, no dizer de Dora Bertúlio, é algo que se realiza entre duas partes
funcionando com quem deseja confrontar-se, o que neste caso seria o mesmo que, por um lado,
se dispor a dividir poder e, por outro, experimentá-lo. Sobre a negociação na universidade ela
declarou: “Eu não diria que é um espaço de negociação [...] eu não quero saber se tem
permanência, eu não quero saber se a universidade está boa, eu não quero saber se tem dinheiro,
eu quero saber que ano a ano ‘x’ indivíduos entram na universidade.” Parece haver aí uma
resposta ao discurso que rejeita a agenda que propõe Ações Afirmativas nas universidades. No

161
Conforme definição do verbete saga, este pode ser um termo de caça aplicado ao cão ou a pessoas com “faro
apurado”. Pode ser também uma canção lendária ou heróica; narrativa fecunda em incidentes, o que está

192
sentido de ajustar as armas de uma luta retórica e também por inserção dos grupos interessados
nos resultados práticos, quem sabe tenha sido necessário endurecer a posição afrocentrada.

Também Ana Célia da Silva manifesta sua dificuldade de sustentar este tipo de
negócio. Em sua fala, destacou a postura da intelectualidade já estabelecida com os seguintes
aportes:

Pelo que eu vejo na universidade, ela é um espaço de... não de luta ainda, de afirmação do professor
negro, dos alunos, do negro no Brasil. Quase todos os professores universitários estão sendo contra as
políticas de ação afirmativa, principalmente as cotas. Pessoas que antes escreviam a favor como Peter
Fry, como aquela que escreveu Onda negra, medo branco, eu esqueço o nome dela. Hoje, estão se
colocando contra as cotas dizendo que é racismo nosso. Eu não vejo a universidade como espaço de luta
em favor de nenhuma diferença. Eu vejo assim, a inserção, que é um fenômeno de 1990 para cá, de
militantes das várias áreas: dos homossexuais, das mulheres, dos negros, dos índios, entrando na
universidade para fazer um currículo diferente, mas são ações isoladas. A universidade não muda, ela
continua com um currículo eurocêntrico, ela continua com atitudes racistas, discriminadoras. O que está
havendo é um grande conflito e conflito sempre é bom, a emergência desses militantes lá dentro. Temos
alguns aliados, mas são pouquíssimos. E o geral ainda é mérito: Você não consegue porque você não se
esforça, você não tem capacidade e a universidade está bem preparada. Todo esse discurso racista,
capitalista, esse discurso universalista abstrato, isso continua muito forte, pelo menos na universidade
onde eu trabalho. Na federal, que eu não trabalhava, mas tem uma que eu estudei por quinze anos. Então
eu vejo muito isso, eles são completamente contrários e eles boicotam mesmo, são facções.

Já no relato de Lucia Pereira sobre as diferentes tentativas de assegurar uma


orientação, destaca-se algo examinado aqui como sendo o fenômeno da “rejeição temática”. As
formas de absorção dos insurgentes são definidas na correlação de forças que fazem emergir o
ideário deste coletivo sobre como sua presença é um direito adquirido. Mesmo estigmatizados e
tendo suas identidades deterioradas pela degenerescência, insurgem da Periferia para o Centro
na busca do pertencimento acadêmico.

Com base na trajetória de intelectuais como Ana Célia da Silva, o ativismo acadêmico
seria um dos mais dolorosos. Ao que tudo indica, a convivência está definida a partir de um
“racismo acadêmico”162 (sufocado pelo discurso de ser a universidade um espaço edificante para
todos, haja vista seus projetos de extensão bem como a acomodação dos grupos do seu entorno
que têm permissão para “circular” nesses espaços).

Ainda que Salles Augusto tenha razão sobre as possibilidades de se instituir parcerias
com diferentes sujeitos não adeptos dos estudos das relações raciais, é também nas relações
cotidianas entre professores e alunos dos programas de mestrado e de doutorado que se
escondem as disjunções provocadas pelo fenômeno em destaque. Lucia Pereira conseguiu,
conforme seu relato, uma orientadora com quem compartilhou a feitura do seu trabalho, alguém

adequado aos relatos aqui reunidos. Cf. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001).

193
sensível ao que propunha como temática. Entretanto, sua trajetória esteve marcada por
situações que se converteram em motivos de profunda angústia e desespero:

Eu fui falar com uma professora, foi um dos piores dias da minha vida. Eu pensei que eu ia morrer, foi
horrível (choros). Se eu não soubesse que ela teria vaga, tudo bem. Eu até não ia ficar sentida, mas aí as
pessoas usam diplomaticamente formas de te escantear... Ela disse: Não, eu não posso! Aí a gente se
encontrou no bar – Não, eu não posso. Aí, ia passando outra professora e ela disse – Fulana!,Vem cá.
Dá uma olhadinha no projeto dela, tu vais ter vaga. Ela disse alguma coisa assim. E a outra: Ah não!
Eu até posso olhar, mas eu não te prometo nada. Aí eu agradeci, dei tchau a elas e fui para casa. Chorei
tudo o que eu tinha que chorar. Olha, eu quase que fiquei desidratada de tão mal que eu me senti. Isso
vai ficar marcado acho que para o resto dos meus dias. Mas eu disse, eu vou mostrar pra ela. E essa
professora, que disse que não, um dia nos encontramos na secretaria e ela disse: Ah! Lúcia, nós
precisamos conversar sobre essa questão das cotas na universidade, mas o que eles querem com isso?
Onde se viu, os alunos vão ficar marcados. E aí eu pensei, gente eu vou ter que dizer pra ela, eu vou ter
que sentar e discutir com ela sobre isso. E aí eu disse: outra hora a gente fala sobre isso. Mas eu ainda
vou ter que dizer pra ela o que eu penso das cotas, da ação afirmativa. E que ela não pensou, não quis
ser a minha orientadora e que não sabe que seria um honra para ela ser minha orientadora.

Além do aspecto emocional, a entrevista de Lucia Pereira indica haver o


reconhecimento por parte dos sujeitos em condição subalterna da existência do perigo que
ronda o seu processo de deslocamento e inserção intelectual. Em sua entrevista deixa explícito
seu cuidado com a construção da narrativa. O impacto desta experiência de entrevistá-la nos
mostra o quanto relações mistas são retroalimentadas pelos laços indispensáveis aos espaços
coloniais.

Certamente, o choque de agendas no campo intelectual, envolvendo insurgentes e


estabelecidos, se constitui num rito de passagem para a “Questão do Negro”. Atingida por
mutações que nascem do “acontecimento universitário”, a tematização deste eixo perde o seu
status inicial de afilhada do patrimonialismo justamente pelos processos de ampliação do
campo. A produção realizada por subalternos sobre o que é o Brasil, o que são as relações de
poder envolvendo o racismo, concorre com as teorias desenvolvidas por cientistas sociais que
construíram o campo de discussão. Se Edward Said (1995) está correto ao defender a revisão da
história que cada Outro pode construir sobre si mesmo, então este olhar redefine as
proposições legitimadas como saber científico. Mergulhando no universo dos depoentes,
constata-se que a produção do discurso subalterno é concebida sob algo muito concreto como a
manipulação de uma “identidade deteriorável” (GOFFMAN, 1988).

O Eu colonial, no processo de subalternização do seu Outro, confere à sua existência a


marca da degenerescência. São pautas manipuladas, por vezes ocultando aquilo que defendem.
Salles Augusto revela as bases destas ações engajadas numa espécie de negação disfarçada –
condutas apropriadas às políticas de branquidade. Poderíamos arriscar afirmar que se trata de

162
Ver José Jorge de Carvalho, 2001.

194
uma presença-ausente tendo em vista a engrenagem que dissimula o “racismo acadêmico”
(CARVALHO, 2001). O lugar ocupado por ele no debate sobre as relações raciais é
rapidamente reconhecido, sobretudo em situações de ameaça. Pela descrição de Salles Augusto,
parece haver vozes que clamam: Corra com este assunto daqui!, a saber:

[...] o coordenador da pós, quando surge a discussão sobre ações afirmativas, ele sempre pede pra me
procurar. Ele fala: Eu não entendo do assunto. Algumas vezes ele fez isso: Não é que eu não entenda do
assunto, quem estuda relações raciais aqui é o Salles, aluno do programa de pós-graduação ou então o
Dijaci, procurem eles dois que eles falam sobre esses assuntos. Isso foi especialmente quando teve a
aprovação de cotas na UNB e eles eram procurados para falar sobre esse assunto.

Tratando-se, ao que tudo indica, de “aberrações” quando o propositor da pesquisa é


um subalterno, esses assuntos são “filhos” que, por uma obviedade, devem ser devidamente
identificados com os seus “pais”, os sujeitos responsáveis pela agenda afrodescendente e,
portanto, dono do tema cotas. Não obstante, Salles Augusto preparou-se para negociar esta
fixação no espaço da academia conquistando aliados, haja vista a dificuldade de encontrar seus
pares:

O fato de estar isolado numa sala de aula num programa de pós-graduação ou mesmo de graduação,
isolado racialmente, significa que você vai ter que se virar pra se manter nesse grupo e se virar significa
o seguinte: você vai ter que chorar às vezes sozinho, às vezes você vai ter que sorrir sozinho porque
você não vai encontrar uma solidariedade nos seus momentos de dificuldade ou mesmo de alegrias
pelas suas conquistas.

Assim, Salles Augusto entende que “não é uma presença fácil porque praticamente
você está isolado”. Para ele, uma das formas de manter-se no campo é

[...] procurar outras áreas, outras universidades, outros parceiros de discussão sobre o assunto em outras
universidades. Não é com outras áreas, é em outros campos que estão consolidados. Na sua
universidade você vê os alunos debatendo com outros professores, debatendo com outros alunos sobre o
assunto que eles estudam. Mas por outro lado eu não posso ver isso como impedimento de estudar o que
eu me propus estudar. Não é porque eu estou sozinho que não é possível estudar relações raciais e
defender não só dissertações e teses e escrever artigos sobre o assunto.

Lucia Pereira destacou a atitude da professora que inicialmente se recusou a negociar


sua orientação. Em situação posterior − quando Lucia já havia conseguido sua inserção no
programa de pós-graduação – a mesma tenta aproximar-se para debaterem sobre a problemática
das cotas no ensino superior. Seu intuito, ao que tudo indica, foi especular sobre a visão da pós-
graduanda acerca da “polêmica” em curso.

A presença antes rejeitada (uma presença estranha ao lugar), por fim, deveria servir
para garantir uma aproximação superficial, a partir do contato com Lucia Pereira, com os

195
agentes do movimento pró-cotas. Assim, parece ser uma experiência comum, no acontecimento
universitário, fixarem as indagações e opiniões sobre cotas aos afrodescendentes.

Como representantes do grupo insurgente, agora sim, estariam Lucia Pereira e Salles
Augusto dialogando com os estabelecidos. Entretanto, esta participação é no sentido de celebrar
o exótico, matar a curiosidade daqueles que os acomodam. Estar próximo, é estar ao lado,
posicionados de pé. Coerentemente, partindo de uma imagem construída na degenerescência,
são eles os donos do tema, personagens estranhos com temas degenerados e fora do lugar. A
intenção de manter-se na universidade, quem sabe, pode parecer, aos olhos dos intelectuais
estabelecidos, o desejo de sentar-se junto ao seu Eu – grupo colonizador.

Acrescentamos também o fato das reações recorrentes dos grupos estabelecidos serem
provocadas pelo reconhecimento das ameaças emergentes de um confronto, primeiro retórico,
instituído com a insistência do(s) movimento(s) negro(s) de todas as partes do Brasil.

O conjunto desses fatores caracteriza as relações mistas e, no bojo, revela as dinâmicas


dos atores políticos que suportam as mazelas que afetam a sua agência. A “rejeição temática”
indica que contatos superficiais são admissíveis porque não comprometem relações coloniais.
Assim, parar o pesquisador subalterno, indagar sobre quem é orientador de sua pesquisa, qual é
a sua temática, se encontrou arquivos a serem explorados, a fase em que se encontra o
desenvolvimento da pesquisa, podem ser indícios das dúvidas e suspeitas provocadas com a
presença deste estranho ao lugar, alguém que tem grande probabilidade de não finalizar o seu
trabalho de tese.

Pensando um pouco com os pós-coloniais, vimos no relato de Salles Augusto que


também o pensamento acadêmico e a lógica que orienta as relações instituídas em seu interior
atendem a um projeto colonial. Ainda que por processos de imitação, podem-se reconhecer
colonizadores e colonizados, o Eu e o Outro coloniais, estabelecidos e insurgentes. Nesta
perspectiva, as situações coloniais na universidade e o campo intelectual podem ser percebidos
na dificuldade de interação entre os seus diferentes, quando a centralidade do embate passa a
ser relações raciais. Pelo mito da democracia racial, ou pelo cinismo acadêmico, insurgentes e
estabelecidos pouco dialogaram para enfrentar esta nova configuração do espaço universitário.
Nas palavras de Salles Augusto,

[...] como a sociedade é racista, a universidade faz parte da sociedade, a universidade também tem os
seus mecanismos de discriminação. A gente pode citar vários exemplos. Antes, quando eu entrei na
universidade eu não tinha carro, depois de um tempo, que eu consegui um emprego melhor e tal,
consegui comprar um carro, mas antes quando eu não tinha pegava muita carona na universidade e
quando, a partir do momento que eu comprei um carro eu pensei em dar carona, até pra retribuir aquilo
que tinha acontecido comigo, mas nesse processo todo, de dar carona, as pessoas nunca perguntavam

196
pra mim qual é o curso que eu fazia, porque quando você dá carona as pessoas vão dentro do carro
todas entusiasmadas "Ah, que curso você faz? Eu sou de tal curso não sei o quê". As pessoas nunca
perguntavam qual era o curso que eu fazia, as pessoas olhavam pra mim e perguntavam: “Você trabalha
onde, aqui mesmo?” Quer dizer, o imaginário que eles tinham é de que o negro não podia estudar numa
universidade, o negro era um trabalhador da universidade, e aquilo me angustiava muito.

A experiência da carona indica uma aproximação própria da vida universitária de


alunos de instituições públicas. Para sujeitos experimentados na cultura do campus
universitário, o cotidiano é favorecido pela lógica da interação, tendo em vista, por exemplo, os
projetos de extensão e a pesquisa, modos de se democratizar a universidade, beneficiando a
comunidade do entorno, contemplando estudantes, funcionários e visitantes, por exemplo.

A questão que se coloca para a cultura do campus é pensar justamente a partir do


deslocamento de um segmento, que ressignifica os lugares definidos no seu interior: quem é
“comunidade”, “professor” ou “aluno”? Estariam embutidas, nestas representações que
construímos, as marcas da subalternidade como a cor da pele?

Sobre o acontecimento universitário, o exemplo de Salles Augusto seria mais um traço


de solidariedade, bem como outras condutas favoráveis a uma convivência plural, diversificada,
desta vez no âmbito das diferentes unidades de ensino, podendo ser acolhidos entre os grupos
de alunos e professores. Para Salles Augusto, oferecer a carona tornou-se um processo
angustiante, tendo em vista o seu pertencimento racial. Os caroneiros, na maioria das vezes, o
são pelas precariedades advindas da condição de estudante. Entretanto, podem fazer parte do
grupo de diferentes atores que ali constroem suas vidas (graduandos, pós-graduandos,
funcionários e outros). Certamente, ter um transporte particular, poder desfrutar do conforto
mínimo no ato de ir e vir, é algo que apenas determinados grupos experimentam.

Estar fora do lugar é, por exemplo, um negro dando carona no campus universitário.
Desdobrando, ainda, a situação de desconforto vivida por Salles, caberia indagarmos sobre o
que seriam campi universitários repletos de muitos diferentes, aqueles que, por conta das
políticas de branquidade, quando presentes, estão situados entre os funcionários, ou quem sabe,
inseridos nos projetos de extensão que atendem as comunidades do entorno.

Na medida em que enfrentamos estes modos de resistir à presença do insurgente,


deveríamos observar a força da cultura da sociedade refletida nas perguntas direcionadas a
Salles Augusto. O fenômeno da fixação dos não-brancos no Brasil se definiu inegavelmente por
estas estruturas sociais. Ao entrar no programa de pós-graduação, a sensação de estar fora do
lugar o persegue. Destaca que você não tem pares, você não avança muito sobre o tema, fica

197
numa discussão meio que fechada entre você e o livro. Atingidos diretamente por este projeto
que isola, os não-brancos são assim posicionados ao longo de sua trajetória, independentemente
da posição que ocuparem. Serão, por isso, definidos como, no máximo, “deslocados”. Dirigindo
ao invés de pedir carona, escrevendo para produzir ciência e se fortalecendo como intelectual,
Salles Augusto apropria-se de poder e, assim, negocia a sua identidade manipulável, conforme
os fragmentos de sua narrativa indicaram.

Na apreensão do que seriam os elos entre o grupo investigado, encontramos sentido


em algo denominado como designação. Como um amuleto, ou algo que não permite que se
canse, que se amoleça a luta cotidiana, que implica recolher os pedaços a cada dia, a cada
encontro, a cada situação mista vivida. Isso tem sentido quando se percebe as nuances das falas
sobre avaliar a participação como sendo um projeto coletivo que quer mudar o Brasil.

Cirena Calisto da Silva, professora da rede pública de ensino em São Paulo, tem na
sua trajetória uma ampla dedicação à militância político-partidária e inserção no movimento
negro de São Paulo. Em suas palavras, “a universidade pública representa o funil da exclusão. É
lá que nós estamos em menor número. Pensar políticas públicas que nos coloquem lá e mais do
que isso, pensar os instrumentos que nos mantenham lá, também é tarefa nossa, dessa
organização nacional que é a ABPN”. Ao discorrer sobre o papel dos intelectuais no III
COPENE, confere a eles o papel de pleitear políticas públicas para o povo remanescente de
quilombo, não-letrados, para os que precisam de emprego e de moradia, e outras tantas coisas
relacionadas ao problema da desigualdade crescente:

[...] nesse processo em que houve uma certa abertura para essa temática entrar no universo do poder
maior, instância federal, ou seja, todas essas pesquisas e que agora estão no campo do poder, tem
colocado em pauta, eu acho isso brilhante. E isso aconteceu nesse governo Lula. A abertura desses
espaços... acho isso fundamental. Acho que as coisas estão caindo no colo das pessoas que estão no
campo da pesquisa e elas vão ter que dar conta disso porque uma hora tem que propor alterações
curriculares. Quem é que vai fazer isso? É o pessoal que está na academia. Outra hora você tem que
propor intervenções no campo das ciências tecnológicas pensando a população negra do país.

Cirena Calisto mencionou as disputas internas, chamando a atenção para as


“vaidades”, a busca constante por reconhecimento entre os intelectuais do III COPENE. Chega
a explicitar certo desconforto por viver sucessivas experiências em espaços coletivos que
revelam hierarquias e relações assimétricas de poder nesses contextos:

Se eu estou aqui no Maranhão é porque pagaram minha passagem. Os amigos se dividiram, cada um
deu um pouco, bam bam bam... cheguei. Então você percebe que você é importante não só no campo da
amizade, mas no campo da reflexão nesses momentos. Agora no campo do reconhecimento tem essa
coisa: você é reconhecido ali onde você está atuando, na sua escola, no campo familiar, no campo da
amizade. Agora, no campo da militância, isso não rola. Eu tenho sentido... Onde é que eu tenho

198
militado? Na Associação Brasileira de Pesquisadores Negros, nós temos um grupo de professores
negros municipais que atua dentro do sindicato, que a presidência pertence ao PC do B mas o que que
você assiste no campo da militância? Dependendo do grupo, se ele é um grupo que está disputando
poder, visibilidade, ou essas coisas de financiamento e você não traz contigo uma gama de outras
pessoas juntas, o que você diz tem uma relativa consideração. Isso no campo da disputa política
cotidiana. Dentro da militância, isso é muito grande. Então, dependendo de quem fala, de quem faz a
proposta, de quantas pessoas, ele quer o poder, mesmo político e de espaço, isso é muito presente. Eu
sinto entre nós. Não basta você ser a Claudia. Quem a Claudia representa? Quantos ela traz com ela? A
Claudia está em alguma instância federal, estadual? Qual é o vínculo que a Claudia tem hoje para ela ser
respeitada? Isso está sendo muito forte e eu... é que eu sou um pouquinho ousada!

As hierarquias comprovam que em qualquer movimento social existem lugares


almejados por todos e que provocam embates. Neste sentido, salta aos olhos questões de
desgastes políticos também nestes fóruns. Podemos afirmar que este não tem sido um
“negócio” fácil de se fazer. “Ajuntar-se”, decerto, implica adotar posturas de tolerância e
diálogo constante intragrupal. E, neste sentido, Cirena parece ter encontrado suas estratégias
para pertencer ao “movimento acadêmico”, o que não significa apenas ir ao COPENE e debater
em outros fóruns do(s) movimento(s) negro(s). Ao relatar as questões de estudos desenvolvidas
naquela ocasião, para o projeto do mestrado em educação, destacou:

Ir para um objeto como esse, pensar sobre o meu fazer de dez anos de magistério, de alguém que desde
o início do magistério pega as influências que tem da militância do movimento negro e leva para a sala
de aula. E lá tem todo um movimento: desde sair das aulas de História que recupera elementos de
valorização do nosso povo até propor alterações no projeto político-pedagógico da escola pra ver se
torna uma obrigação. E aí ver se as pessoas fazem alguma coisa juntos. Essa foi um pouco a minha
história. Mas foi um histórico de sofrimento, de estigmatização, muito comum entre as pessoas que
tentam passar esse tema dentro das escolas. Eu fui olhar o que a outra professora que também tem essa
consciência e que propõe e faz a coisa acontecer. Então eu olho o que é feito.

Pensamos um pouco com Pierre Bourdieu (1998) e localizamos as reações advindas


dos estabelecidos na universidade como sendo parte de estratégias de reconversão, que visam
manter as melhores posições sociais. Isso porque é inadmissível que grupos não-brancos
estejam dividindo os espaços do Centro e “circulando entre lá e cá”, no Centro e na Periferia.
Os insurgentes são agora corpos que conseguiram passar para o espaço do colonizador e tentam
manter-se enquanto agentes. Este fato seria pouco ameaçador, como bem definiu Nelson
Inocêncio, justamente por não garantir a instituição da temática reivindicada por este Outro. Em
suas palavras: “Há a necessidade, agora, da gente invadir a academia, no bom sentido, pra que a
gente possa dar a ela também uma outra tônica, essa coisa da diversidade. Porque, no Brasil, eu
costumo dizer que se fala tanto em diversidade, mas não se respeita a diferença.”

Entendemos que a diversidade, vista como um traço da conformação da sociedade


brasileira, seria contemplada com uma reinscrição dos sujeitos sociais indo além do seu papel

199
de espectador. Esferas de poder, como a universitária, ainda não enfrentaram a diferença. Ao
fotografarmos o campus, as imagens revelam tal hipocrisia.

Vimos, até aqui, a insistente proposição observada nos diferentes relatos sobre como é
urgente: a) abrir os olhos, aproveitar o momento que vivemos em termos políticos; b) buscar
fortalecer-se como grupo; c) criar redes de solidariedade, agregar outros intelectuais à luta;
d) enfrentar academicamente as rejeições aos intelectuais negros e e) garantir a agenda
afrocentrada.

Posto isso, há indicações de que o discurso grupal/coletivo se reveste de um cuidado


com o posicionamento, com as colocações publicizadas pelo grupo visivelmente em posição de
embate político.

Julvan Moreira parece traduzir a centralidade da universidade pública como um lugar


que deve congregar cientistas, “puxar” as novas conquistas, pensar as transformações da
sociedade. A sua certificação numa universidade pública (USP) favoreceu uma legitimidade
antes desconhecida. O discurso de Petronilha Beatriz aproxima-se desta proposição quando
declara:

Nós estamos num momento extremamente importante de mudanças e as coisas não vão ser mais como
eram. Os congressos têm mostrado isso, nós temos um corpo de pesquisadores formados e um corpo de
informação e com uma coisa importante que é a militância. E um corpo de pesquisadores que faz da
pesquisa da sua função uma militância e explícita. Porque nos nossos primórdios a gente até fazia isso,
mas era mais ou menos isolado (risos), mais difícil de bater de frente. Então eu acho que é uma situação
irreversível, os estudos que estão sendo feitos e mostra que a gente pode ter. Porque não pode estar em
todos os cantos, são consistentes, nós já temos muitas informações na nossa perspectiva para as políticas
públicas.

A agência coletiva dependerá das relações intragrupais, de sujeitos que vislumbram a


representação fazendo do seu conhecimento o conhecimento universitário. Ao que tudo indica,
a agência afrocentrada caminha na direção da absorção da academia. Instituir estes discursos é
o mesmo que intervir nos currículos definidos no seu interior, nas políticas de contratação de
docentes subalternos. De sua análise o texto a seguir evidencia o foco de sua representação
acerca dos ganhos já alcançados com a prática do “ajuntamento”:

[...] a coisa que nós temos que fazer é justamente agilizar a nossa associação: que a gente se inscreva,
pague e a associação comece a assumir esse papel importante que ela tem que é de nos representar.
Quer dizer, a associação é acadêmica e ela é também movimento negro como nossos NEABS, nós
somos, os nossos NEABS são: grupos acadêmicos do movimento negro, quer dizer, nós fazemos as
duas coisas.
Um ponto alto da ambiência da análise que iniciamos é a idéia presente entre os
entrevistados de estarem intervindo na conformação de um outro país. São expressões como:

200
“O COPENE é fruto de lutas históricas dos movimentos negros”; “Em termos de perspectiva o
COPENE pode ser um dos marcos no sentido de você estar formando uma intelectualidade
negra que possa intervir na academia não de forma isolada como acontece hoje”; “O COPENE
pode ser uma perspectiva de que daqui a uns dez anos, quinze anos passa a ter uma geração de
intelectuais negros que esteja ingressando na universidade de forma massiva e atuando
coletivamente”; “Esse 3° Congresso Brasileiro de Pesquisadores Negros é uma satisfação
muito grande”; “Você vê um conjunto de jovens negros acadêmicos discutindo com a maior
seriedade uma agenda nova de pesquisa, novos temas, novos programas ou revisitando
problemas antigos”; “Acho que nós enquanto entidade civil de pesquisadores negros presentes
nessas universidades [...], podemos fazer essa universidade pública compreender que os
recursos que vão pra ela são recursos públicos, portanto nossos e que a produção que ela venha
a fazer possa voltar-se para a própria população.”
Como um indicativo das disjunções manifestas nas relações mistas163, um outro traço
revelado deste contradiscurso seria a estigmatização do comportamento dos insurgentes na
academia. Ao reagirem com surpresa, os estabelecidos não provocam, com seu espanto, o
mesmo comportamento nos insurgentes. O conjunto dos depoimentos revela o reconhecimento
da dinâmica condizente com as políticas de retração, por assim dizer. Por ele, os
representantes da universidade conseguem desenvolver táticas para manter a presença-ausente
de seu opositor: intelectuais estabelecidos usam da política de patrimonialização para afastar o
seu Outro.

Para pensarmos as políticas de branquidade não devemos deixar escapar talvez aquilo
que seria um dos mais caros aspectos para o deslocamento dos insurgentes: a possibilidade de
discursar apropriando-se dos instrumentos que promovem sua perspectiva intelectual. Mais
como protagonistas e menos como sombras, sua insistente retomada de diálogo pode ser
examinada com base nas ações estratégicas adornadas por uma retórica de equilíbrio que é
sobretudo não-radical, como vimos nos discursos de Lucia Pereira e Salles Augusto. Em outros
termos, uma retórica de equilíbrio seria algo que implica estar predisposto a enfrentar situações
mistas estando na pele do estigmatizado.Por outro lado, uma prática afrocentrada promotora de
constrangimento para o grupo estabelecido está caracterizada por sucessivos episódios que
anunciam pontos de desestabilização das forças coloniais no âmbito da universidade, o que
deve ser mais bem entendido.

163
Cf. Irving GOFFMAN, Estigma (1988).

201
Supomos que a tomada de posição dos intelectuais estabelecidos diante das agendas
do(s) movimento(s) negro(s), sobretudo nos veículos de maior abrangência de comunicação,
pode ser analisada como um sinal do seu “revirar-se” mediante a insurgência afrodescendente.
A pesquisa de Miranda (2005) sobre narrativas sobre cotas nos jornais enfatiza tal tendência.
A mídia aparece como um grande intelectual, uma voz que supostamente defenderia as
posições da opinião pública. Sob uma “estética grotesca” (SODRÉ, 2001), o cenário midiático
transforma ações afirmativas em cotas e converte sua opinião sobre o tema em senso comum.

O discurso subalterno está visivelmente manipulado nesses canais de informação,


interessados em formatar as questões de maior relevância nesta agenda direcionando-as para
um formato “contra” e a “favor”, convertendo-as em temas degenerados. O que vimos sobre o
papel do intelectual, e adotamos como orientação para pensarmos as hierarquias sociais,
confere a ele a tarefa de trabalhar para o seu Outro – sujeitos que, na sociedade, não dispõem
de estruturas importantes de poder e por isso costumam ser silenciados. Ao considerarmos
esta performance, destacamos o pressuposto de Valter Silvério sobre a defesa explícita feita
nos meios de comunicação de massa, que seleciona e manipula o discurso contra a agenda
afrodescendente:

Não será fácil, eu tenho dito em alguns locais que agora que alguns setores da sociedade brasileira
perceberam para onde caminham as ações afirmativas e o caminho que eles estão percebendo é o que
eles não gostam... Ação afirmativa mexe com a estrutura do poder, não transforma a sociedade, mas
mexe com a estrutura do poder, o que pode significar em médio prazo mudanças na sociedade, nos
marcos do liberalismo. Acho que essa percepção é nova e talvez na primeira vez na história do Brasil
nós nos encontramos na situação, numa posição de dizer muito claramente que projeto nós queremos
pro Brasil e que não é o projeto que a maioria das pessoas que hoje estão nas universidades que tem os
principais cargos, a maioria das pessoas que estão no governo de esquerda, de centro, de direita, não é o
projeto que essas pessoas querem.

Por tudo isso, quem sabe, ao problematizarmos estes diferentes campos (o espaço
midiático e o meio acadêmico) fundamentais à atuação de intelectuais subalternos,
deveríamos rever o que diz Dora Bertúlio sobre o compromisso, a postura intelectual diante
da sua tarefa de representar:

[...] entrei para fazer o mestrado e desde esse primeiro momento todo o foco da minha discussão dentro
da área jurídica tem sido relações raciais. Assim, o meu primeiro trabalho foi focado numa introdução
da discussão das relações raciais na estrutura do sistema jurídico nacional e mesmo na própria estrutura
da teoria jurídica, até porque os conflitos de classe é que têm trazido a discussão do direito como uma
crítica ao direito liberal. E o nosso trabalho, na verdade a partir de várias leituras, por óbvio, e a partir
de vários estudos, é introduzir a questão racial como sendo um interferente da própria formação do
direito brasileiro. Neste sentido, eu venho trabalhando, acho que uns 20 anos com essa questão e os
avanços são muito pequenos, mas ao mesmo tempo significativos, na medida em que a gente tem
conseguido trazer essa discussão para um público maior, para a própria academia e tentando aos poucos
introduzir no estudo do direito a discussão das relações raciais. Acho que esse é o trabalho que eu faço
com maior interesse e, como militante do movimento negro que sempre fui.

202
Convém avaliarmos que a insurgência tende a ser encarada como sendo gradativa,
estando focada, restringida, contando com um número reduzido de parceiros em termos de
mudança de retórica. Para Dora Bertúlio, são vinte anos tentando desestabilizar com sua
agência as proposições do direito e as relações raciais. Conforme destacou, são poucos os
intelectuais que no seu campo abrigam essa temática.

Sobre isso, a questão que se coloca refere-se à eficácia das narrativas tradicionais
sobre o Outro colonial e as estratégias de resistir a estes processos de subalternização
explícitos e atuais. Caberia buscarmos apoio na ética de Frantz Fanon (1968), por privilegiar
um problema fundamental que é reconhecer as condições para matar o colonizador
implantado dentro do colonizado e de saber reunir as ferramentas com as quais se pode lutar,
sem descartar as táticas de guerra. No caso de Dora Bertúlio, ela encontrou na sua condição
de procuradora da Universidade Federal do Paraná um caminho que promovesse sua
performance intelectual.

Alguns depoimentos evidenciam uma ordem de razões levantadas inicialmente sobre


as possibilidades de enfrentamento registradas aqui. Uma delas diz respeito à garimpagem, à
busca de uma primeira interlocução, algo que serviria para combater o “isolamento”. Também
entre si, pesquisadores subalternos aprendem a negociar suas diferenças, objetivando uma
agência coletiva.

A enunciação de um discurso afrocentrado, a partir da universidade, constitui-se como


uma prática recente. Tendências mais flexíveis do(s) movimento(s) negro(s) podem ser
responsáveis por esse fenômeno de deslocamento, como vimos no depoimento de Ana Célia
da Silva. Na militância afrocentrada coabitam relações assimétricas de poder. Posicionar-se
favorável à carreira acadêmica demandou, por parte de muitos, a negociação intragrupal. Ivair
dos Santos destaca que quando foi para a universidade foi recriminado pela política estudantil.
Neste processo, descobriu que é necessário “cuidar-se”, para sobreviver naquele contexto:

Eu não fui para a universidade só para fazer o curso, fui para fazer política estudantil. Na política
estudantil, ficam claras as relações de poder, quem tem manda, como é que são as influências e tal. E a
outra coisa que eu descobri, ou seja, nessa convivência com a universidade, é que as relações pessoais
contam muito, ou seja, não basta você ser um bom estudante, você precisa ter alguma relação com
algumas pessoas para poder montar uma estratégia de sobrevivência e superar.

Visando manter as condições de sua militância, Ivair Augusto dos Santos buscou
superar o seu “mal-estar acadêmico” (grifos nossos) ao longo do processo de formação pós-

203
graduada, ao diagnosticar a resistência à presença subalterna. Em sua análise “a universidade,
não sabe como lidar com isso e quem está levando o conhecimento novo somos nós. Ela não
está aberta, pelo contrário, você tem que, muitas vezes, convencer os seus pares à volta para
trazer para o tema, para dar uma resposta àquilo”. Em seguida acrescentou: “Nunca tive
facilidade na universidade para trabalhar os temas que eu queria. Pelo contrário, sempre tive
dificuldade e aí eu sempre tive que abrir os caminhos para poder chegar onde eu queria.”
Quem sabe, esta seria a melhor definição encontrada por ajudar a entender as
possibilidades de pertencimento acadêmico. Na via-crúcis, um artigo de luxo seria, então,
alcançar estabelecer diálogos com os grupos estabelecidos.

5.3. A centralidade da universidade pública para uma agenda afrocentrada

Neste tópico, o interesse repousa na percepção da existência de um argumento coletivo


sobre as estratégias de luta pelo terceiro locus. Assim, uma proposição de certo modo
emblemática nesta etapa de análise localiza-se no recorte apresentado sobre os estigmas e a
construção do estranho. As situações mistas164 cabem sobremaneira nesta reflexão acerca da
presença física de não-brancos. Isso porque a luta retórica agrega a luta pelo espaço físico e
sendo assim, mesmo aqueles que não estão “no campo”165 estão “na torcida”166. Na expectativa
de imersão de novos sujeitos nesta arena de poder, a existência da torcida, a atmosfera de
embate revelam o jogo e a disputa pela mobilidade de um time de pensadores atuando por
designação. Assim, manter-se na academia é ter, é desempenhar um duplo papel, contar com
a torcida, fazer parcerias entre diferentes grupos afrodescendentes. É também assumir a
perspectiva “afro” e conviver com “euros” pensantes. Pelas idiossincrasias do fenômeno do
“preconceito de marca”167, argumentamos que o pensamento eurocentrado independe da cor
do sujeito que se identifica com esse discurso.

164
Cf. Erving GOFFMAN, Estigma:manipulação da identidade deteriorada, 1988.
165
Para nosso pressuposto de investigar a experiência de grupos em condição de subalternidade, o campo está
associado ao movimento de ir à luta, partir para a defesa dos propósitos que cada um aprendeu a ter. Como
conduta disciplinar, este movimento é apoiado por familiares, vizinhos, cônjuges e amigos em geral. O sujeito
que sai para o campo, parece saber que enfrentará “situações mistas”, uma experiência dura e angustiante pelo
estigma que recebe. Colocando-o à margem da sociedade, este modo de manipulação identitária (o estigma) pode
paralisar grupos subalternos antes mesmo de sua decisão de enfrentar esta espécie de fixação. Caso o efeito seja
devastador, quem se considera estigmatizado pode “hibernar” mantendo-se recluso e resignado, desencorajando
quem queira migrar por não aceitar a condenação simbólica.
166
O verbete torcer pode significar ato de manifestar a predileção pela vitória de uma equipe desportiva, uma
agremiação, torcer por uma Escola de Samba, por exemplo. Cf. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa,
2001. As famílias torcem, arriscamos afirmar, porque sofrem o efeito da paralisação ao olharem o quadro de
frustrações colecionado por cada uma delas.
167
Conforme Oracy Nogueira, Preconceito de marca: as relações raciais em Itapetininga, 1998.

204
Ser performático implica, então, atuar em várias frentes e, como num processo de
metamorfose, transformar-se em apoio institucional168. Cirena Calisto, Ivair dos Santos, Silvio
Humberto dos Passos são exemplos deste fenômeno, entre tantos outros intelectuais
militantes, nomes conhecidos entre os militantes dos quatro cantos do Brasil. Intelectuais
acadêmicos afrodescendentes são performáticos por serem poucos. A centralidade deste
pressuposto se fundamenta na representação positiva que ganham ao longo da sua história de
intervenção, como é o caso de Ivair Augusto dos Santos:
Entre as opções mais tranqüilas, tem aquelas que têm maior cobertura na imprensa, tem aquelas, por
exemplo, que viram um ato administrativo, uma lei, um decreto. Mas há algumas que ficam no campo
das idéias, que perpassam o tempo. Aí eu descobri que, por exemplo, você pode dentro do serviço
público estar fazendo isso se você tiver tempo e algumas condições para realizar. E a outra questão que
eu pude descobrir é que nós não encontramos respostas muito fáceis diante do racismo institucional.
Não tem nenhuma resposta para quem trabalha no serviço público. E como trabalhar com o racismo
institucional? Ele não está colocado por aí, para as pessoas. Isto também me motivou muito a ter que
estudar e a conversar com quem estava pesquisando isso. Porque a maior parte das pessoas que
trabalham com relações raciais não dimensiona o tamanho nem a força que o racismo institucional
provoca no nosso cotidiano enquanto cidadãos. Isso me motivou muito a essa busca. Agora, tem
problemas homéricos. É difícil, para mim, conciliar, por exemplo, atividades: eu dou aula, mas as
minhas aulas são no campo de Direito. E aí, por exemplo, eu não sou formado em Direito. Todas as
pessoas me vêem trabalhando em Direito! Eu sou formado em Química. As pessoas levam um susto,
porque toda a minha formação foi em Química, depois eu fiz Mestrado em Ciências Políticas, ideólogo
em Direitos Humanos. É evidente que você exercendo duas atividades... há uma tensão. Eu te digo que
você tem só uma pele aqui. Entre você pesquisar e introduzir alguma coisa, você precisa ter tempo para
poder estudar, poder refletir, poder adquirir, incorporar. Tempo [...] para você trabalhar, analisar e para
você fazer. Quem trabalha na atividade política não tem tempo para isso. E eu resolvi fazer as duas
coisas: dar aula e ao mesmo tempo fazer isso. Evidentemente que aqui vem uma tensão muito grande.

Com base no conjunto dos depoimentos, supomos que, estar na universidade , aparece
como a possibilidade de ter acesso ao poder e de tentar dialogar, ganhando “novos pares”
ampliando os campos de atuação. Para João Carlos Nogueira “se estamos desenhando uma
nova nação, que é justamente um espaço de conhecimento, democratização e de acesso ao
saber, nós não a formamos, se não tivermos a convicção que é necessário que o maior número
possível, tenha o terceiro grau”. Neste relato, Nogueira169 é enfático ao mencionar o

168
O termo apoio institucional é, no momento, aquele que melhor traduz a definição que recebem alguns
personagens de um movimento pró-ações afirmativas que reconhecemos nestes espaços, como foi o caso do III
COPENE. O apoio institucional seria um ativista envolvido com a questão da promoção da igualdade racial
preocupado com o comprometimento da instituição de ensino superior por onde “circula”, às vezes como
docente, às vezes como pesquisador no nível do mestrado e/ou doutorado. O movimento estudantil organizado
com forte protagonismo afrodescendente, como é o caso do grupo Enegrecer, atuante na Universidade de
Brasília, cumpre bem este papel de pressionar as instâncias universitárias bem como governamentais.
169
Como representante do governo Lula, João Carlos Nogueira (o “Nogueira da SEPPIR”) figura como um alvo
aos olhos de todos os outros intelectuais afrodescendentes ativistas. Ser parte do governo, e pertencer a uma
secretaria que politicamente tenta garantir a visibilidade da questão da desigualdade racial, provocará uma
grande expectativa na comunidade interessada. Sua trajetória é interpretada como que fora da normalidade, se
assim pudermos considerar, que caracteriza o grupo entrevistado na sua grande maioria. Sua formação começa
na área técnica em contabilidade. Posteriormente, ingressa no curso de engenharia, mas se forma em Ciências
Sociais pela Universidade Federal de Santa Catarina. Nesta mesma instituição deu início ao seu mestrado e,
posteriormente, desfruta de uma bolsa sanduíche nos Estados Unidos tendo estudado no Estado de

205
envolvimento de todo o sistema de ensino na tarefa de construção de um novo país. Faz
menção ao problema da perspectiva eurocêntrica de manter os lugares privilegiados de poder:
[...] Eu não tenho a menor dúvida de que os estudantes negros e negras, e os homens e mulheres,
precisam passar por essa experiência de alargamento e alavancamento a partir do ensino superior, a
partir da universidade como propulsora de várias outras iniciativas. Não podemos ter medo de pensar
que teremos no futuro 30 a 40 % dos nossos estudantes em áreas de comando no Brasil daqui a cinco ou
dez anos.

Diagnósticos como estes se aproximam do fenômeno do deslocamento do subalterno.


Conforme narra Silvio Humberto dos Passos, dentre muitos desdobramentos, entrar no curso
superior se converte num “efeito multiplicador”, se constituindo numa “onda de
popularização da universidade”. Para ele o grande ganho é que a universidade passa a fazer
parte do desejo das classes subalternas, do subalternizado, e ninguém conseguirá parar essa
tendência. Na experiência de Silvio Humberto como militante na cidade de Salvador, com
destaque para a idealização do projeto que inaugurou o formato dos movimentos dos
cursinhos comunitários – o Instituto Cultural Steve Biko – é comum encontrar pais e filhos
rumo à universidade: Segundo suas palavras, “você vê o exemplo de famílias, mães com 49
anos que dizem: eu estou estudando para chegar ao vestibular”.
A performance do ativista em distintas arenas se define no contato com bases
interessantes de serem observadas na análise do sucesso coletivo. Notadamente, jogadores e
torcida tendem a se influenciar. Seria o mesmo que afirmar: os exemplos no ativismo,
sobretudo quando nos remetemos ao caso baiano, pelo seu contingente expressivo de
afrodescendentes (pretos e pardos), reforçam a perspectiva positiva, por assim dizer, do
deslocamento subalterno. Pensando um pouco com Silvio Humberto dos Passos é possível
acreditarmos no efeito multiplicador, na mudança de retórica presente nas bases que, aos

Massachusetts. Sua formação é basicamente esta e atualmente está na Secretaria de Promoção de Políticas de
Igualdade Racial (SEPPIR), na Presidência da República do governo Lula e é Subsecretário de Políticas de Ação
Afirmativa. Filho de pai militar, letrado, e com uma cultura geral de forte expressão, desfrutou de uma atmosfera
favorável para seu desenvolvimento intelectual desde a primeira infância. De um total de nove filhos, Nogueira é
o mais novo, estimulado a estudar e a envolver-se em atividades culturais que ajudassem sua trajetória. Neste
caminho almejou ingressar na universidade pública tendo tentado vários vestibulares. Declara o desejo, desde
criança, de ser professor e escritor. Destacou ainda a sua admiração pelo pai que, numa cidade onde as pessoas
eram no máximo alfabetizadas, tinha o status de ser uma pessoa letrada. Nogueira fez uma opção por participar
politicamente de outras esferas, declarando: “Eu tive a oportunidade de permanecer na universidade como
professor assistente. No entanto, eu fiz uma opção diferente, na minha carreira acadêmica e profissional. Fiquei
um tempo na universidade, depois fui para outras universidades, preferi a construção no campo da pesquisa, sem
estar vinculado à docência universitária. Eu me tornei dirigente sindical, uma pessoa pública. Fui presidente de
um partido, fui candidato a vice-prefeito de uma cidade. Eu conduzi coisas que tomaram um tempo razoável.
Depois, eu vim ser coordenador, junto com outros amigos meus, que também estiveram em uma escola de
formação sindical. Nesse lugar eu tive toda uma exigência do ponto de vista de pesquisas e metodologias. Tive o
maior preparo como acadêmico, o que depois me levou tanto para um mestrado mais purificado, para a busca
do meu doutoramento.”

206
poucos, é tocada diretamente. Todavia, os efeitos deste deslocamento podem ser reconhecidos
na reação de combate já em curso, com destaque para uma espécie de intelectual170, como é o
caso da mídia.
Alguns jornais171 definem o teor da retórica de determinados temas transformados em
“polêmica”, cristalizam interesses particulares acionando teses para ressaltar o valor do
processo seletivo no ingresso ao ensino superior. Nos veículos midiáticos, a opinião dos que
lutam pela institucionalização das ações afirmativas se configura como parte de uma
engrenagem necessária à imposição do discurso desfavorável, não há novidade sobre isso.
Intelectuais eurocentrados, quem sabe pelo incômodo causado pela “desestabilização da
Questão do Negro”, num movimento alvoroçado, atacam abertamente a agência afrocentrada.
Num suposto debate (contra e a favor) a “intelectualidade midiática” subordina a participação
dos sujeitos inseridos como espectadores forjando modelos de esfera pública. Destas
características, impressiona as condições para o enfrentamento do momento seguinte, ou seja:
a problematização do racismo nas suas diferentes dimensões reconhecendo o Brasil como
produtor de uma África Pequena172, reproduzindo tipos de “apátridas” e mantendo as relações
de inspiração colonial.
Intelectuais afrodescendentes localizados no campo das relações raciais tendem a ser
silenciados no debate sobre o direito ao acesso ao curso superior gratuito. Descrevendo o
“desacreditado”, Goffman (1988, p.51) argumenta: “Quando há uma discrepância entre a
identidade social real de um indivíduo e sua identidade virtual, é possível que nós, normais,

170
Ver Sergio COSTA, As cores de Ercília, 2000.
171
A ênfase repousa no discurso construído para alertar sobre a idéia de irracionalidade presente na defesa da
reserva de vagas (uma concepção injusta e desnecessária). Mais instigante ainda e que merece destaque é o apelo
presente na tentativa de teorizar contra: uma “crença na perda da qualidade da universidade” defendida com base
no seu “caráter imediatista” e a idéia de “inconstitucionalidade” das formas de comprovação do pertencimento
racial.
172
Sendo o Brasil, fora de África, o mais populoso país da diáspora, ao não optar pela inserção dos grupos
afrodescendentes nas esferas que garantam a sua inserção e mobilidade, tende a produzir, por outro lado, a sua
fixação como subalterno, dando-lhes o status de apátrida. Municípios como Helvécia, na Bahia, as periferias de
Salvador, a Baixada Fluminense, as favelas paulistas, os morros cariocas, as palafitas do Maranhão, são “focos”
que agregam a população mantida à margem e, numa visão nada romântica, fora dos espaços de socialização.
Não seria muito afirmarmos que, para esses grupos, o pertencimento humano tem sido a sua maior luta.
Observamos, a partir deste quadro, o retrato fiel de uma África Pequena dentro do Brasil. Torna-se inevitável
interpretar que os poucos sujeitos de cor que circulam nas esferas de poder se convertem em “adornos”,
indispensável ao disfarce brasileiro de que aqui se instituiu desde sempre políticas de inserção para tais sujeitos.
É interessante que se mantenha a política de apenas um na medida em que a população como um todo entenda a
presença negra representada na figura deste um, como é o caso, por exemplo, de Pelé, a repórter apresentadora
de um programa de televisão da Rede Globo, Glória Maria, e a bailarina do Faustão posicionada no centro do
palco aos domingos. O que podemos supor é que a África Pequena serve para reter a mão-de-obra quase
escrava, os não-mestiços (muito parecidos com os africanos pelos seus traços negróides) e, por último, afastar os
medonhos.

207
tenhamos conhecimento desse fato antes de entrarmos em contato com ele ou, então, que essa
discrepância se torne evidente no momento em que ele nós é apresentado.”
Em Inclusão étnica e racial no Brasil, a questão das cotas no ensino superior, José
Jorge de Carvalho (2005) afirma que as cotas ajudarão a instituir no Brasil um clima de real
concorrência na academia e nas profissões. Para tanto, gestores e docentes universitários
deverão aprender a ser “ativamente anti-racistas” (p.175). Sobre isso sugere:
Poderemos usar na pós-graduação a mesma idéia de um Plano de Metas que usamos na Proposta de
Cotas para negros e índios na UnB. Podemos definir que, por 20 anos, a diversidade racial será um
critério importante na avaliação dos programas de pós-graduação no Brasil. Espera-se que esse fator
seja incorporado à nossa cultura acadêmica de modo que daqui a alguns anos seja legítima a pergunta:
que sentido de excelência pode ter um programa de mestrado e doutorado que seja constituído
exclusivamente de professores e alunos brancos, em um país que conta com 47% de negros e com
centenas de sociedades indígenas? (CARVALHO, 2005, p.175)

Já Thayer (2000) é instigante ao observar as formas de legitimação dos saberes de


referência no espaço acadêmico justamente por captar o que ainda está fora do lugar:
O que acontece para que uma coisa ilegítima e estranha, aterradora, culpável e em falta, objeto de
discrímenes e de reticências, converta-se, em um determinado lapso de tempo, em critério institucional
que discrimina e que ordena? Como foi que pontos de vista como os de Copérnico, Galileu, Descartes,
Lavoisier etc. chegaram a configurar parte medular da subjetividade universitária? Como e o que
acontece nessa transição, onde o estranho se familiariza até passar a ser sujeito acadêmico ou clichê
bibliográfico, tornando-se a seguir habitual, corrente ou clássico? De que maneira o lapso torna-se
governo, inscreve-se como lei? Como o fora do contexto hegemoniza o contexto redesignando lugares e
hierarquias? (THAYER, 2000, p.20).

Pelo discurso analisado, é provável que a academia não tenha como meta diversificar-
se. Do mesmo modo que as instâncias promotoras das relações coloniais – como é o caso dos
intelectuais da mídia. Na universidade, isso seria pelo fato dessa esfera não ter conseguido
instituir uma política de edificação dos grupos subalternos no seu interior, indo além da
inclusão nos projetos de extensão. O intelectual, segundo Edward Said (2005), enfrentará
desafios inadiáveis:
A esfera pública na qual os intelectuais fazem suas representações é extremamente complexa e encerra
aspectos pouco confortáveis, mas o significado de uma intervenção efetiva nesse domínio deve resistir
na convicção inabalável do intelectual num conceito de justiça e no respeito à igualdade de direitos que
admitam as diferenças entre nações e indivíduos, sem ao mesmo tempo atribuir-lhes hierarquias,
preferências e avaliações dissimuladas (SAID, 2005, p. 97).

Estamos tratando de posturas antiimperialistas, conforme Said destacou. Mencionando


o protagonismo de Frantz Fanon e de Áime Césaire, ressalta:

[...] De acordo com os pensadores do século XIX, não havia povos independentes africanos ou asiáticos
suficientemente importantes para desafiar a brutalidade draconiana das leis aplicadas unilateralmente
pelos exércitos coloniais às raças negra ou mestiça. Seu destino era serem governados. Frantz Fanon,
Aimé Césaire e C.L.R.James – para mencionarmos três grandes intelectuais negros antiimperialistas –

208
só viveram e escreveram no século XX; assim, o que eles e o movimento de libertação de que
participaram conseguiram culturalmente e politicamente, estabelecendo o direito de povos colonizados a
igual tratamento, não era acessível a Tocqueville ou Mill. Mas essas mudanças de perspectiva estão
disponíveis aos intelectuais contemporâneos (SAID, 2005, p. 96).

Aceitar esse fenômeno tal como ele se apresenta, de fato, como algo inevitável, quem
sabe, inauguraria uma etapa de avaliação do que significa este “modelo de alforria
intelectual”, pensando o caso do Brasil. Intelectuais173 posicionados como o Eu colonial
desqualificam, ao que tudo indica, a agenda dos movimentos insurgentes, conferindo ao
contradiscurso que produzem o traço da degenerescência.
A perspectiva monolítica da conformação de políticas de branquidade no
acontecimento universitário é um ponto a ser considerado nas formas de imitar
cotidianamente relações de inspiração colonial.

5.3.1. Passando fome na universidade


Incorporando o que afirmam Nelson Inocêncio e Dora Bertúlio, sobre “passar fome
dentro da universidade”, supomos que essa condição tem sido enfrentada com uma resposta
coletiva de persistência. No caso de Nelson Inocêncio, ele destaca a dificuldade de
transmissão do conhecimento via currículo:

[...] Eu permaneço no Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros, hoje eu estou no final da coordenação, que
começou em 2002. Venho orientando alguns trabalhos de pesquisa na graduação e tenho tentado, dentro
do meu departamento, flexibilizar um pouco o currículo, considerando que os currículos também na
universidade, e sobretudo nelas, são muito eurocêntricos. Tenho tentado apresentar propostas, discutir
outras disciplinas que possam contemplar a diversidade racial e assim eu vou tocando, vou
encaminhando.

Segundo ele, existe um compromisso de uma intelectualidade de estar se engajando no


propósito de ter uma representação não apartada, dentro da academia. Contradizendo o
argumento de que “os meninos ficarão marcados se entrarem pela reserva de vagas”, Dora
Lucia Bertúlio enfatiza:

173
Sobre tal afirmação, caberia observar a postura tomada por grupos de intelectuais analisados como
estabelecidos com base na sua identidade branca e portanto colonial; tais elites decidem quais discursos podem
circular como legítimos, ganhando esse status por sua deliberação. Decidem o momento de legitimação de um
debate e apóiam-se nas polêmicas para ressurgir com suas teses sobre a desestabilização dos lugares fixados,
inicialmente pela força do colonialismo, mantido agora por “processos de imitação”. Para ilustrar nossa
afirmação, convém destacar que, no dia 30 de junho de 2006, um grupo composto por 114 pessoas, entre elas
indivíduos de grande expressão no campo intelectual e nas universidades públicas – como é o caso de Eunice
Durham, Roberto Romano, Wanderley Guilherme dos Santos, Simon Schwartzman, Mirian Goldenberg, Luiz
Werneck Vianna, Gilberto Velho, Manolo Florentino, Maria Alice Resende de Carvalho, Bolívar Lamounier,
Lilia Moritz Schwarcz, Peter Fry e Ivonne Maggie – lançam manifesto contra cotas, alegando que é
imprescindível observar a adoção de políticas específicas para negros como um modo de acirramento de
conflitos raciais por dar status jurídico ao conceito de raça (O Globo, p.13, 30/6/2006).

209
Eu não quero saber se a universidade está boa, eu não quero saber se tem dinheiro, eu não quero saber
nada. Eu quero saber que, ano a ano, “x” indivíduos, “x” mil indivíduos entram na universidade e dentre
eles não entram negros e é isso que eu estou achando: que a gente tem que estar brigando como luta
primeira. As outras implementações elas vêm na seqüência, mas o meu foco é entrar na universidade,
até porque a pobreza branca entra na universidade com muito sacrifício e se vira. Que de repente, você
tem lá um cara que passou quatro anos comendo pão e depois ele vira médico e depois ele monta a sua
clínica e de repente ele traz a família inteira para uma boa situação. Acho que nós temos essa
competência também, até mesmo de passar fome se for o caso, desde que dentro da universidade.

Sua visão de ativista, que declara não estar negociando com quem não deseja fazê-lo,
inclui a luta pelo espaço de poder no sentido de aumentar, num movimento de abertura
provocado pelas Ações Afirmativas, as chances dos grupos afrodescendentes. Ao longo de
sua narrativa, Dora Bertúlio nos remeteu a sua experiência de aluna e, posteriormente,
funcionária de instituições públicas; parece querer justificar a falta de negociação de sua
parte:

Eu fiz universidade pública, todos os meus estudos têm sido lá. Hoje eu sou procuradora de uma
universidade pública e acho que há uma responsabilidade do governo com a deterioração, com o
sucateamento da universidade pública, que me parece não ingênuo e sim proposital. Nesse movimento a
população negra perde muito mais do que a sociedade branca na medida em que é o setor público aquele
que estaria mais disponível para a sociedade ou para a população negra. Na verdade, nós entramos nessa
guerra contra a privatização, contra o sucateamento da universidade pública, por motivos mil. Mas
muito especialmente porque é a nossa possibilidade.

Interessada na reorientação do espaço acadêmico público, a procuradora Dora Bertúlio parece


diagnosticar, no fragmento acima citado, os custos de uma conformação universitária
organizada com base na lógica patrimonialista.
Também a fala que destacamos de Florentina Souza revela uma tensão própria de algo
que se deseja instituir com urgência:

[...] a gente está tentando fazer com que a universidade hoje seja o que ela nunca foi, porque na verdade
ela atendeu a interesses de classe. Mesmo sendo pública ela sempre atendeu o interesse da classe
hegemônica, que não é só constituída como classe, ela é constituída racialmente também. Então eu acho
que essa questão do papel da universidade, da sua centralidade hoje deve ser discutida nestes termos, ou
seja, não interessa mais pra gente que a universidade tenha algumas atividades de extensão, algumas
poucas atividades de extensão para dizer que a universidade está cumprindo o seu papel social. O papel
social da universidade vai muito além de algumas atividades de extensão que sejam episódicas, ela tem
que ir além disso. Mas agora pra avançar nisso é necessário que a gente interfira na cultura universitária.
Quando eu estou falando em intervir na cultura universitária, eu estou falando em avançarmos a
discussão sobre um currículo que seja, que contemple a diversidade. Um currículo não, currículos,
porque são diversas áreas. Só no momento em que a gente começar a associar as políticas de ações
afirmativas com a mudança curricular, a gente vai poder ter uma mudança sintomática.

A universidade, na “Questão do Negro”, não poderia ser episódica, rebaixando essa


presença (apenas a presença da tematização) a um projeto de extensão, às vezes, interrompido
por dificuldade de acomodá-lo. Mais uma vez, a questão curricular emerge como um divisor
210
de águas. Ana Célia da Silva, Nelson Inocêncio e por último Florentina Souza dão ênfase à
reforma necessária para o currículo eurocentrado.
Destacamos, ainda, um aspecto reconhecido na fala de Florentina Souza como sendo
parte das políticas de branquidade camufladas e que, portanto, é próprio desta perspectiva
conservadora:

História, literatura, cultura... tem um monte de coisas que já foi produzida sobre isso e que poderia
subsidiar e que está circulando somente nas estantes das universidades. Se a universidade tivesse uma
intenção de jogar estes textos todos na rua de 2000 para cá, quanta coisa foi produzida por nossos
estudantes e que não se sabe? Você às vezes vai estudar um autor, vai estudar uma coisa e alguém chega
e diz assim "Ah eu tenho que pegar a partir do zero porque eu não sei se tem um determinado estudo
sobre isso", dois anos depois você vai lá, descobre que alguém já tinha feito a tese que tinha trazido tal
informação e você podia ter usado aquela informação e esse tempo você gastaria para avançar mais e
termina perdendo a oportunidade de pesquisa.

Tais alusões indicam a urgência de se instituir espaços como a Associação Brasileira


de Pesquisadores Negros e o Congresso Nacional de Pesquisadores Negros. Entende-se ser
esta uma tática de guerra, já que fóruns permanentes como esse podem ser modos de se
enfrentar o “isolamento” provocado pela invisibilidade de um movimento em ascensão no
âmbito da universidade. Sobre a realidade baiana da qual a professor Florentina Souza faz
parte, convém destacar:
eu não tenho muita ilusão de que a universidade cria o espaço de intervenção, ela só deixa você ter o
espaço de intervenção se você lutar muito para obter esse espaço lá dentro, o fato de você ingressar na
universidade não lhe garante o espaço de intervenção, você tá lá participa e tal. Uma coisa que eu
durante muito tempo critiquei no meu pai, é que ele dizia "A gente tem que ser o melhor'' e eu sempre
senti um peso muito grande disso porque tinha que tirar notas boas, porque a partir do quarto lugar a
nota já não era boa, primeiro, segundo ou terceiro, então eu levei um monte de tempo contestando isso.
Já na minha juventude, depois na universidade federal da Bahia, eu comecei a perceber que fazia sentido
e me incomoda em determinados momentos, ter que dar razão a meu pai lá atrás. Aí muitas vezes eu
digo: "Eu tenho que fazer isso, porque se eu não fizer isso eu sei que fulaninho vai me cortar lá na
frente.” Então você vai trabalhar mais e trabalha mais do que todo mundo [...] termina sendo uma coisa
extremamente desgastante.

Nesta passagem, Florentina Souza realça a condição do Outro em espaços onde, ao


que tudo indica, não se tem cadeira marcada. O subalterno deverá ser duplamente
performático – para recuperar a fala de Cunha Junior. Assim, na trajetória de Florentina, teve
mais força as convicções de seu velho pai do que as suas. Parece ser impossível fugir do peso
que é estar socialmente fixado como subalterno pelo pertencimento racial.

5.3.2. Ajuntamento e adoção: idiossincrasias de uma via-crúcis


Conforme destacamos a seguir, do relato de Dora Bertúlio, foi na universidade pública
que a grande maioria dos respondentes se graduou. Na representação coletiva, a universidade
promove a mudança de status, e ainda permanece como um desejo sobrante. Isso porque esta
211
esfera é uma das maiores fatias da estrutura do público. Sobre isso destacamos o seguinte
fragmento de sua fala:
[...] eu posso até fazer um depoimento a respeito da minha vida pessoal, em que foi a universidade
pública e foram as estruturas do público na verdade, tanto o emprego público quanto a universidade
pública, que me deram a oportunidade e a chance de desenvolver eventuais talentos que eu poderia ter.
Ou seja, as oportunidades que eu tive para conseguir chegar em alguns espaços, interferir em outros
espaços.

Supomos, por isso, ser indispensável apreender como estes espaços estão permeados
por procedimentos isolados definidos por Dora Bertúlio como as “oportunidades” e “chances”
que gostaríamos de caracterizar como processos de adoção – um procedimento, ao que tudo
indica, já instituído mesmo que inconscientemente por intelectuais presentes no meio
acadêmico. Nele, o “ser adotado” converte-se em alguém em que se pode “apostar”. O caso de
Paulino Cardoso, quando relata algo desta natureza vivido na infância, reforça tal noção:
Eu acho que diferente da maior parte dos meninos e meninas, eu tive algo que eles não tiveram, que foi
oportunidade. Que oportunidade é essa? Mesmo morando no morro, ter tido professoras negras, que
localizavam entre nós os alunos mais promissores e investiam muito nisso, então a professora Zuma
Romão, mãe da pedagoga Gerusa Romão, ela foi fundamental, na medida em que ela investia em mim e
eu correspondia às expectativas que ela tinha. Mas por outro lado eu tive uma trajetória igual a qualquer
outro menino negro que começou a trabalhar muito cedo. Comecei a trabalhar com 7 anos, mas tinha
sonhos. Acho que essa convivência com essas professoras, acho que a oportunidade de ter tido, pelas
relações de compadrio que são comuns, quer dizer, você ter tido um padrinho que em alguns momentos
foi importante em financiar, mesmo timidamente, os meus estudos, mas principalmente meus pais, em
especial minha mãe, sempre teve a convicção que a única saída pra nós, da violência, da discriminação
racial, da miséria, era a educação. Por amor a mim mesmo, mas por amor a ela (risos), eu procurei
atender a todas as expectativas dela. Então o sonho dela era ter um filho doutor, sem mesmo saber
direito o que era isso, então a gente foi seguindo. Fiz as primeiras séries iniciais numa escola que ficava
no morro, em Florianópolis, depois as séries finais numa escola central chamada Lauro Müller, o ensino
médio num colégio público, todos em colégios públicos, a graduação.

O trabalho empírico – não pode ser uma surpresa – nos desafia ao longo de todo o
processo investigativo. Nele, perguntas não elaboradas emergem das vozes insurgentes, dando
o sentido à identidade do pesquisador. Paulino Cardoso nos remeteu ao pressuposto de haver
com grande insistência um fenômeno que denominamos como “adoção”, tendo em vista a
centralidade deste processo em sua narrativa. Nela vimos que também a universidade
dependerá deste recurso para haver-se com a sua missão pública. Em outras palavras, é o
mesmo que tentar pregar: “Nós sabemos o que propomos como intervenção social. Todavia,
não alcançamos assumir publicamente, com políticas radicais, a necessidade de enfrentarmos
a ‘Questão do Negro’.”
Em toda experiência de pesquisa, é possível traçar momentos de ruptura quando
consideramos a problemática e as questões de estudo. Neste caminho, seria honesto
identificarmos os traços marcantes das relações coloniais acomodadas em um dos espaços de

212
produção de saberes dos mais concorridos. Está em jogo a missão pública da universidade,
que lança mão de alguns mecanismos para disfarçar a ausência de política de inserção de um
de seus Outros – os afrodescendentes. Especial atenção deve ser dada na análise das relações
solidárias entre os “pares” agregados pela(s) sua(s) negritude(s) ou por processos de “adoção”
– sendo este último um dos aspectos instigantes do exame sobre as políticas de branquidade –
considerando também os espaços de ruptura e de parcerias no âmbito da universidade,
conforme aponta Ivair Augusto dos Santos:
É... muitas vezes você não adota o professor, o professor é que te adota e se estabelece uma relação de
empatia com você para você avançar no processo e tal. É... e também, na universidade, eu descobri que
você tem que buscar os seus caminhos. Você.. tem que procurar... quando você for impor o seu
mestrado, você tem que saber que você não está lá para fazer curso de mestrado, você está lá para
escrever um trabalho. Você tem que ter clareza disso. E esse trabalho, você precisa de ter um
interlocutor que leia o seu trabalho, que você possa discutir com ele, que você... Se você tem claro...
claro que o objetivo é esse, você pode, você faz uma estratégia, fala assim “vou fazer as disciplinas
voltadas para aquilo, aqueles... e vou fazer a leitura e vou escrever, e vou estabelecer um interlocutor
que possa estabelecer o meu trabalho e possa discutir comigo o que acha de interessante ou não”. Então,
a minha grande conquista foi um interlocutor que pudesse ler o trabalho e discutir comigo. Se ele
falasse “não”, então vamos discutir o quê que é e tal. Essa foi a minha... minha trajetória na
universidade. É... mas percebo que eu tive problemas com o meu orientador... meu orientador e... e tive
sorte no segundo momento que o cara entendeu qual que era o meu perfil, que... o que ele colocou... Eu
não estava querendo impor nada, eu estava querendo alguém que lesse e discutisse comigo o trabalho. E
isso eu consegui achar e foi tranqüilo. Que o grande problema no mestrado é isso: você ter alguém que
possa ler o que você está escrevendo. E alguém que você possa sistematicamente estabelecer um
calendário para trocar... trocar idéias? Que ali não é para fazer curso, é para você escrever um paper que
seja reconhecido na academia, que possa corrigir as coisas que você não percebeu.

Ao que tudo indica, a designação é indispensável aos insurgentes pelos objetivos


políticos identificados a partir de uma experiência grupal, uma das chaves para a resistência
manifesta. O que percebemos, ao longo deste estudo, é que para a elaboração do que
representa o “ajuntamento”, é coerente rejeitarmos o sentido mais clássico deste
comportamento. Isso porque intelectuais acadêmicos não-brancos são também convertidos em
apoio institucional, com raríssimas exceções.
Destacamos o que diz Ivair Augusto dos Santos logo abaixo, tendo em vista a sua
performance como interventor político. São percebidos traços de uma agência também
emblemática pela demanda de representação assumida por ele:
Passei muitos anos tentando descobrir quais eram as formas, a maneira, quais os instrumentos que eu
tinha que utilizar para poder descobrir como enfrentar esta dicotomia entre movimento e Estado. Levei
muito tempo nessa seleção, nessa escolha e tal. Depois que eu consegui, de certa forma, entender esse
processo, eu comecei a buscar formas de definir claramente como é que você define quais são os atores
principais, quais são os principais obstáculos para quem está predisposto a fazer uma política pública de
promoção da igualdade racial. E por último, como na minha trajetória eu passei pelo maior município
do país, no governo municipal de São Paulo, passei pelo maior governo de estado, de São Paulo, e fui
para o governo federal, era claro que a minha experiência era única nesse processo. Eu tinha passado
por todos estes estágios, em termo de município, de estado, de como enfrentar uma política de
promoção da igualdade racial. Então eu me senti à vontade de poder fazer isso. Isso é o que me fez fazer
essa ponte de ida e vinda em relação à universidade.

213
Do grupo de intelectuais com o qual dialogamos poderíamos destacar, de suas
narrativas, o fato de não ter sido difícil localizar os dilemas enfrentados pela sua submissão ao
efeito do “isolamento” nas suas experiências de representação política. Por serem poucos, sua
performance é marcada por sucessivos compromissos com projetos, indo em uma escala que
pode ser desde propostas de políticas sociais até projetos de lei. Suas atribuições incluem
acompanhamento de medidas em curso para regulamentar a inserção da população
afrodescendente. Pareceu-nos que todas as situações conflitantes e que provocaram angústias
na carreira de Ivair Augusto dos Santos são também em função deste lugar que têm ocupado
os intelectuais militantes.
Orientados por estas asserções, parece-nos justificável as proposições rasuradas a
saber. O coletivo de pesquisadores subalternos em foco pode ser interpretado como produto
de um esforço que retroalimenta o exercício intelectual, estimulado, por sua vez, pela força
da(s) negritude(s) negociada(s); reforçar a(s) identidade(s) negra(s) é proporcionar uma
experiência intercultural, tendo em vista a necessidade de negociar internamente uma agenda
comum para a intervenção política que atravessa os muros da universidade.
Vimos que a designação funda-se num processo edificante superando as imposições
do Eu colonial. Dora Bertúlio considera a universidade como um espaço não negociável ao
declarar que “a gente negocia com quem tem, de alguma forma, interesses comuns”. Assim,
entende que a academia brasileira não tem interesse em inserir os afrodescendentes.
Entretanto, afirma que este é, pela sua própria natureza, um espaço de luta com avanços
significativos.
Valter Roberto Silvério reforça tal impressão com a seguinte orientação:
Nós estivemos submetidos, o tempo todo, a essa tensão: por um lado, tentando fazer uma leitura daquilo
que escreviam sobre nós, por outro lado nós tínhamos que nos defrontar com os nossos professores na
sala de aula. Muitos, sem ter as ferramentas intelectuais formais e normais. Então, tínhamos que contar
basicamente com a nossa capacidade de observação e entendimento da realidade e com a nossa retórica
muitas vezes mesclada com graus de emotividade muito forte para mudar algumas situações. Então, o
espaço da nossa militância e, pensando a universidade, o espaço da militância sempre foi algo dado na
nossa experiência.

A emotividade, um aspecto que, em níveis distintos, acompanha o discurso “afro-


acadêmico”, é motivo de sua desqualificação por parte dos “euro-acadêmicos” como se a
produção científica fosse neutra, desconhecendo que, para os afrodescendentes, a “Questão do
Negro” não é apenas temática. A desestabilização do acontecimento universitário, entendida
como um processo longo de negociação, pode levar em conta este modo de participar
(tradicionalmente impensável). Ampliando esta análise, diríamos que, em alguns casos, a

214
perspectiva afrocêntrica está orientada pelo diálogo estabelecido entre as experiências
obtidas primeiro fora dos espaços da academia. Junto com ela, a experiência de Frantz
Fanon, de alimentar o ódio, antes aquecido pela dor do Outro colonial.
O ativismo político percebido no conjunto dos depoimentos pode ser aquele
desenvolvido em agremiações de carnaval, grupos de estudo e debate político, sindicatos
diversos, partidos, grupos religiosos, entre outros. Conforme Valter Silvério,
“a militância não é algo exterior, que se experimenta após a ida para a universidade: trazíamos como
militantes uma outra experiência, uma outra leitura da sociedade [...] de alguma forma, todo mundo é
militante na universidade e militante a partir de um corpo de idéias que configura determinada leitura da
sociedade”.

Na experiência de Salles Augusto dos Santos, como doutorando na Universidade de


Brasília (UnB), vale o reverso. Vimos, primeiramente, a força daquilo que Willy Thayer
(2002) definiu como acontecimento universitário. Nele, um traço marcante é a visão
eurocentrada na análise social. Na formação inicial de Salles Augusto dos Santos ele é tocado
pela dinâmica do acontecimento universitário, incorporando, decerto, o ideário da
Universidade de Brasília. Conforme ele mesmo declara, “estava completamente alienado e
continuava alienado do mundo até ter contato com vários tipos de conhecimento, com
intelectuais e ativistas do movimento negro do Partido dos Trabalhadores atuantes na UnB”.
Por tudo isso, consideramos que na universidade Salles pôde dialogar com outros saberes174, e
não apenas com o acadêmico. Por outra parte, podemos considerar que o conhecimento que se
absorve no âmbito da universidade pública vai depender da dinâmica que este espaço
apresente.
Filho de um operário que participou das obras de construção da Universidade de
Brasília (UnB), Salles Augusto dos Santos não tinha grandes esperanças de ingressar neste
espaço preparado para as elites do Brasil. Ao entrar, ele se apropria do conhecimento
científico e fomenta o debate sobre relações raciais contemplando o ponto de vista dos
subalternos. O processo de fortalecimento da sua identidade enegrecida parece ter resultado
da sua saga pelo pertencimento acadêmico. Não seria muito afirmarmos que, como
pesquisador, definiu e potencializou a tematização desenvolvida até aqui.

174
Ao ingressar na universidade, Salles conhece as teorias de Karl Marx, participa da comissão do negro no
Partido dos Trabalhadores, dialoga com intelectuais de referência, organiza seminários temáticos sobre a luta de
classes e o racismo. Ainda que Karl Marx não tenha tratado desta questão, é no encontro com seus interlocutores
que pode ampliar as asserções conhecidas a partir da doutrina marxista, entre tantos temas estudados na
universidade. Não apenas este conhecimento marxista marca a formação de sujeitos de todas as cores no âmbito
do ensino superior. Saberes científicos, de toda ordem, nos levam a modificar nosso olhar para os fenômenos da
natureza e das relações sociais.

215
Convém destacarmos que, assim como Ari Lima, Salles Augusto não apresenta um
histórico de inserção no(s) movimento(s) negro(s) antes de ingressar na universidade. Ambos
viveram a experiência de serem alunos da pós-graduação e podem ser situados como parte de
uma geração mais acadêmica e menos militante fora do espaço universitário. E que, no
momento seguinte (a partir da formação pós-graduada contemplando a racialidade) devolvem,
jogam para fora um conhecimento acadêmico já enegrecido. Sobre esse “devolver”
destacamos o protagonismo do professor Paulino Cardoso (Universidade Federal de Santa
Catarina). Ao situar a sua inserção fora da universidade, aponta que a “elaboração teórica da
experiência” coletiva é que dá condições de ampliação do entendimento sobre outras
questões: “Isso faz com que a gente tenha a capacidade de ampliar o nosso público, ampliar o
campo anti-racista, ou o campo que queira uma cidadania plena para todos.”
Vimos em sua trajetória um traço da conformação da identidade militante no campo
intelectual mais fecundo. São apreensões sobre como, segundo o contradiscurso aqui trazido,
não se pode desvincular a identidade do ativista da identidade do intelectual acadêmico.
Mais do que isso: observamos que tanto a militância fora da academia tende a enegrecer as
reflexões acerca do conhecimento produzido no seu interior, como o conhecimento científico
pode fomentar a produção afrocentrada. Este último provocará uma intervenção política
afrocentrada na medida em que os sujeitos subalternos forem encontrando o debate instituído.
Isto é, ocorre que, em algumas experiências, o debate já instituído175, bem como a dinâmica
deste fenômeno (a vida no campus), a produção afrocentrada é aflorada pelo debate que
aprendemos a reconhecer como sendo de natureza progressista.
É curioso notar na obra de Pierre Bourdieu176 o espaço dispensado para examinar o
sistema de ensino francês bem como a aquisição dos capitais – econômico, social, cultural e
político. Filho de um modesto funcionário dos correios e tendo ingressado na École Normale
Superieur (França), Bourdieu interessou-se pelos estudos sobre os códigos lingüísticos vistos

175
Neste caso, “sobra”, na melhor das hipóteses, para as novas gerações que herdam este corpo teórico nos
espaços que dão ênfase à racialidade. Não poderíamos dispensar o exemplo dos projetos de formação popular
como é o caso do Instituto Steve Biko, em Salvador, e a proliferação do PVNC (Pré-Vestibular para Negros e
Carentes), no Rio de Janeiro, que inspirou centenas de novas iniciativas.
176
Citamos Pierre Bourdieu pela abrangência de seu quadro teórico, sobretudo a análise sobre campo intelectual,
distinção, heranças e a noção de capital. Aprender a pensar a partir do lugar no qual nos situamos talvez possa
ser uma das justificativas para a interlocução com sua experiência de sujeito oriundo do “andar de baixo”, de
uma Periferia. Seu itinerário incluiu uma parada na Argélia, onde iniciou suas atividades de pesquisa.
Curiosamente, Pierre Bourdieu dedicou-se a estudos sobre etnia e transformações sociais na sua fase de iniciação
à pesquisa. Segundo Afrânio Mendes Catani (2000), seus trabalhos sobre o sistema de ensino francês foram
referências e inspiraram inúmeras teses em diferentes contextos.

216
como traços de uma burguesia francesa, examinando um particular que arbitrariamente era
transformado em universal para os estudantes que ali chegavam.
Pela sua condição privilegiada de ser o Outro no universo acadêmico, o olhar
bourdieniano tentava captar a economia acadêmica (capital cultural) distinta da sua. Bourdieu
destacou que o grupo identificado com estes códigos carregava, desde a esfera doméstica, as
condições necessárias para o sucesso escolar e, posteriormente, inserção para a sua
mobilidade social (CATANI, 1999). Parece-nos que foi a partir de sua experiência subalterna,
que consegue captar o sentido dado às diferenças culturais internas. Aqueles que detêm as
formas de decodificação das relações impostas pelo sistema de ensino francês terão
privilégios adquiridos muito antes do ingresso no espaço de educação formal. Portanto, o
sistema de ensino está organizado para incorporar seus herdeiros que poderão reproduzir a
lógica que inaugura tal modelo de sociedade.
Conforme Paulino Cardoso, a realização do III COPENE não seria possível se os
grupos nele presentes não estivessem na universidade. Em sua visão, o COPENE se constitui
como um espaço que autoriza, que dá condição de negociar com uma série de setores. Neste
caminho, “a universidade nos dá as condições materiais, necessárias para fazer, para formular
políticas, para fazer pesquisa, para tentar entender os problemas das populações afros e
também os problemas da sociedade brasileira da nossa perspectiva”. Ao que tudo indica, o
pertencimento acadêmico é uma experiência que se adquire para além dos espaços da
universidade e que se confunde com o fortalecimento do subalterno no seu movimento de
inserção e mobilidade, favorecendo o acúmulo de capitais indispensáveis nessa caminhada
(econômico, social, cultural e político).
Entendemos que a trajetória de Pierre Bourdieu (1930-2002), juntamente com a
riqueza de sua intervenção intelectual e política, deve ser mais bem observada para os estudos
sobre grupos insurgentes em condição de desvantagem política. A opressão vivida por grupos
que experimentam a subalternidade atinge também o pensamento intelectual. Nos porões,
esses sujeitos enfrentam processos profundos de silenciamento. No processo de deslocamento
da periferia para o centro, deve-se vigiar a impossibilidade de pensar para além do instituído,
para além do estabelecido.
No dizer de Paulino Cardoso, “a tarefa do intelectual, livre-pensador e comprometido
– por incrível que pareça – com o enfrentamento da dominação, é muitas vezes ingrata porque
você acaba tendo que entrar em confronto com alguns instrumentos que são pilares da
intervenção anti-racista”. Encontramos indicações de que é no âmbito da universidade pública
que poderão desempenhar papel central nas lutas pela superação de sua condição intervindo e

217
negociando o terceiro locus. Qualificados a partir de um saber legitimado socialmente,
pensam estar participando dos processos de mudanças estruturais vislumbrando um outro
país, agora mais diversificado e menos monolítico.
Até aqui, uma das primeiras categorias em destaque seria a racionalidade subalterna.
Para examinarmos a negociação, devemos levar em conta a força do título (diploma). As
possibilidades de entrar nas redes de comunicação emergem no diálogo sustentado também no
enfrentamento. Para obter resultados substanciais, são realizados fóruns que reforçam a
identidade do investigador subalterno performático, o que deve ser mais bem entendido. A
universidade é representada como um terreno político e por isso o esforço para ser intelectual
acadêmico está respondendo a um chamamento coletivo, haja vista o volume de teses e
argumentos presentes na produção afrocentrada.
Há indicações de que é preciso estar na continuidade do movimento, tentando
interagir com outras linguagens não acadêmicas, encontrar-se com o povo negro. É possível
levar, devolver o conhecimento acadêmico para as comunidades. Participar numa Escola de
Samba, por exemplo, se constitui num “retorno para o meio da população negra” bem como a
organização de peças teatrais com argumentos que contemplam a racialidade. Seriam
experiências que, segundo Paulino Cardoso, servem para ampliar o público, o campo anti-
racista.
Estar em São Luiz do Maranhão (III COPENE), combinando a experiência intelectual
com a vida cotidiana (trabalho, estudo, filhos e cônjuges), se constituiu num privilégio. Estar
em espaços de produção de conhecimento, considerando o nível das pesquisas acadêmicas,
não é uma tarefa simples, tampouco comum a todos. As possibilidades para se experimentar o
pertencimento acadêmico incluem a reflexão e a elaboração. Em função disso, considera-se
que as condições materiais oferecidas pelas universidades são imprescindíveis. É a partir
delas, que podemos estar “em plena quinta-feira à noite sentados, na escada conversando”,
destacou Paulino Cardoso, referindo-se ao momento de realização de nossa entrevista na
Universidade Federal do Maranhão. Parece vital, na experiência dos subalternizados, que se
garanta sua participação, sendo essa um modo de pertencer à academia.
Insurgentes entendem que estar na academia pressupõe uma disciplina para a reflexão
que se desdobra em produção acadêmica; garante, num primeiro momento, a sobrevivência
material. Sua saga está marcada pela sobrevivência intelectual, conforme acentua Ivair
Augusto dos Santos. Na sua experiência, sentiu a necessidade de agregar outras coisas que
incrementassem o saber acumulado ao longo da militância em espaços não-acadêmicos,
(esfera governamental, militância nos movimentos sociais de base). Declara ter visto no

218
conhecimento acadêmico uma perspectiva de enfrentamento. Sobre estes fragmentos, conclui-
se que o saber científico aparece representado como algo que faltava a sua agência política: o
conhecimento científico é, para Ivair, o “instrumental” para a sua atuação política. Por outro
lado, ele acredita que a universidade não sabe lidar com a nossa presença. O conhecimento
novo estaria sendo fomentado pela militância possível de ser realizada no seu interior.

5.4. Sobre a infantilização e outros estigmas


Notadamente, o atrito entre estabelecidos e insurgentes no espaço físico das
universidades diz respeito, antes de tudo, à circulação do diferente, à presença do corpo
estranho que circula. Fora do seu lugar de origem, sujeitos marcados pela cor e cabelos –
retratos da África – causam constrangimento e em seguida são infantilizados. Sobre isso,
Wilson Roberto de Mattos declara que esta presença é fundamental por ser uma forma de
pressionar as elites acadêmicas que controlam o discurso científico bem como a sua produção.
Diante desta presença, terão que “inverter essa concepção de liberdade e incluir na concepção
de liberdade a construção de cidadania, a inclusão cidadã”. Para ele,
[...] isso vai causar uma revolução na História do Brasil, porque as elites estão acostumadas à
expectativa da subordinação e que nos subordinemos o tempo todo. Agora nos insurgimos e por isso não
é à toa que é, sobretudo do meio universitário, que parte as principais reações a qualquer tipo de ação
afirmativa [...] As elites não vão mais ter essa expectativa da subordinação no médio e no longo prazo.
Hoje, um menino branco, uma pessoa branca qualquer, eles se relacionam conosco na expectativa da
subordinação, eles não sabem quem nós somos.

Da percepção de Mattos vimos uma expectativa de renovação da universidade pública


com relação ao movimento que leva os insurgentes rumo à academia. A partir dela ele tem
defendido, no âmbito do ativismo acadêmico, a institucionalização das ações afirmativas,
sobretudo na Universidade do Estado da Bahia (UNEB), propagando seu discurso nos
diferentes fóruns nacionais e internacionais como representante deste processo, adotando um
posicionamento radical, aproveitando as brechas encontradas para negociar sua agência no
sentido de garantir a institucionalização das políticas de acesso ao ensino superior.
Na qualidade de pró-reitor, desde o início de 2006 Wilson Roberto de Mattos
converte-se num agente de referência pela posição que passa a ocupar, fortalecendo
sobremaneira seu pertencimento acadêmico e o fortalecimento do coletivo: trata-se de um
insurgente fora do lugar de origem, defendendo interesses grupais. Superando o lugar fixo
garantido pelas relações que imitam o sistema colonial, sua designação, a torcida e as
“parcerias locais” e/ou “imediatas” (reitoria, corpo docente e interlocutores de toda parte) o
levam a ressignificar a agência subalterna, aproveitando o momento e construindo o terceiro

219
locus. Não-branco, atuante numa esfera de poder, Wilson Roberto de Mattos é um militante
acadêmico que assume o lugar de onde fala. Sua voz se mantém periférica, está interessado
em democratizar o espaço público.
O acontecimento universitário no qual está imerso tende a modificar-se por essa
perspectiva de um Outro colonial, vislumbrando aquilo que Paulino Cardoso chamou de
“ampliação do campo anti-racista”. No dizer de Wilson Roberto de Mattos, “se nós não
formos para a universidade, a nossa trajetória desta construção vai ser muito mais demorada,
muito mais espinhosa [...] Então, essa nossa luta por inclusão talvez seja, na minha avaliação,
uma das principais lutas sociais no Brasil nas últimas décadas”.
É também nesta esfera pública que Ana Célia da Silva reconhece a dificuldade de sua
agência afrocentrada, descrevendo traços de uma difícil negociação entre estabelecidos e
insurgentes:
Nós mulheres negras somos muito agredidas. Eu digo agredidas mesmo, na universidade! No meu caso
quando eu cheguei, fiz concurso, passei em primeiro lugar e depois adoeci. Quando eu voltei a moça
disse assim (a minha coordenadora de área): ‘Sua vaga foi preenchida.’ Eu disse, não pode ter sido
preenchida porque eu passei em concurso, o concurso tem dois anos. Aí me olhou assim... “Não... quer
dizer, foi substituída porque você estava doente e não podia ficar sem aula.” Eu disse, tudo bem, eu vou
ensinar aonde você quiser, mas quando terminar o semestre eu volto, porque eu tenho direito a essa
vaga, porque eu passei em primeiro lugar, se você colocar outra pessoa eu vou entrar com uma petição
junto ao Estado sobre isso. Aí elas notaram que eu não era fácil.

Por imitação, adultos e crianças retomam comportamentos, hábitos, que revelam sua
compreensão do que seja o pertencimento racial dos não-brancos; por ela, entende seu próprio
pertencimento como dentro de uma normalidade e situa seu Outro na subalternidade por
relações de inspiração hierárquica. A partir dela, procuram e localizam formas de
subalternização, encontram a condição para experimentar o bônus da branquidade. Sobre isso,
entendemos que são reflexos coloniais. Este “ficar à vontade” para fazer o que desejar no trato
com o seu Outro – manifestações entendidas desde a infância – pode ser analisado como um
resultado dos mais perversos das relações coloniais.
Sobre a experiência dos sujeitos caribenhos, Stuart Hall (2004, p.42) destaca a
dimensão das lutas por “redescobrir as ‘rotas’ africanas no interior das complexas
configurações da cultura caribenha e falar, através deste prisma, das rupturas do navio, da
escravidão, colonização, exploração e racialização”. Captamos, em Hall, um agora e um depois
desta experiência para refletirmos o que significou a presença, por exemplo, da ex-reitora da
Universidade do Estado da Bahia (UNEB), a professora Ivete Sacramento e do mesmo modo a
colocação do professor Wilson Roberto de Mattos como pró-reitor da mesma instituição. Sendo
este último, um homem que se auto-representa como um insurgente e que pode vir a ter a sua

220
identidade deteriorada nas relações mistas entre “normais” e “estigmatizados, estabelecidos e
insurgentes”.
Pelos termos de Frantz Fanon, o “medonho”, o “estranho”, o “fora do lugar” são
estigmas facilmente encarnáveis na figura de Wilson Roberto de Mattos nas condições
históricas do Brasil. Para o pró-reitor da UNEB, “os brancos se relacionam conosco na
expectativa da subordinação, porque pressupõem que não somos nada: que nós não somos
médicos, não somos engenheiros, não somos juízes, não somos nada disso”, o que na sua
análise parte da perspectiva da subordinação.
Vimos também no discurso de Ana Célia da Silva sua percepção sobre os mecanismos
coloniais que, insistimos, fazem-se atuais com o agravante de que, na sua experiência inicial de
intelectual subalterna, o debate sobre o negro na universidade ainda não tinha ganhado a força
que apresenta hoje. Segundo Ana Célia da Silva, “houve reações de alguns alunos, inclusive foi
de um aluno negro, que ficava o tempo todo me agredindo, eu me sentia muito mal. Eu entendo
a questão: não é racismo, ele internalizou o auto-ódio e é o auto-ódio a outro semelhante, isso
acontece muito”.
Pelo acúmulo de situações vividas, percebemos a relevância de sua narrativa no que se
refere a participar na luta coletiva pelo pertencimento acadêmico, negociando primeiro consigo
mesmo suas memórias de professora estigmatizada:
[...] aquela questão de desqualificar a sua fala, não deixar você falar, não acreditar no que você disse, é
muito forte em relação a mim. Na academia eu vejo muito isso. Outra coisa que elas fazem muito. É...
não me chamar pelo nome, nem de professora: “Oi, menina!” Tem duas pessoas lá na faculdade, três –
por coincidência eram três psicólogas – que quando elas falam assim “Oi, menina!”, eu digo, olha, eu
tenho um sobrinho neto, que na verdade é meu neto de 26 anos, eu já sou avó, eu já sou bisavó, porque
ainda tem duas filhas, como é que pode ser menina? Você não sabe meu nome? Meu nome é Ana Célia.
Aí elas param de falar comigo. Mas de vez em quando elas passam: “Oi, menina!”. Eu digo, como vai
senhora professora fulana de tal? Falo assim, bem alto. É aquela questão: você está aqui, mas você não é
uma professora, você não é uma doutora. Chamar de doutora... jamais!

Supomos que Ana Célia da Silva apresenta em sua trajetória – a mais longa entre o
grupo – um exemplo dos mais dolorosos de como se pode negociar quando não querem a sua
presença física: negociar sua negritude para combater a “nadificação”177.
Nelson Inocêncio destaca seus dez anos de experiência como professor na
Universidade de Brasília − um espaço recheado de truques retóricos. Ressalta, deste traço, a
diferença radical entre representação dos sujeitos e representação do pensamento desses
sujeitos. Para ele, a representação das pessoas negras não inclui a representação do
pensamento negro. Decerto, a missão de “ogunizar”, sugerida por Sílvio Humberto dos

177
A nadificação seria um processo pelo qual se considera a presença desses intelectuais na universidade como
sujeitos fora do lugar.

221
Passos, implica o enfrentamento deste traço marcante. Encontramos no relato de Valter
Roberto Silvério algumas indicações sobre os modos de desestabilização deste formato.
Considerando a noção de engenharia social ou reestruturação da sociedade a partir de
políticas que produzam alterações nos processos de inclusão social, e relembrando o
compromisso do Estado diante do comprometimento internacionalmente firmado por tantos
intelectuais, ele argumenta:
Eu acho que o Brasil precisa de uma agenda forte na área de direitos humanos que inclua os temas de
todas as minorias, mais especificamente o povo negro que é o qual eu tenho me dedicado a estudar. Eu
tenho a impressão que em termos pragmáticos em relação às agências de financiamento, eu acho que se
nós, intelectuais negros, pesquisadores acadêmicos, não nos organizarmos enquanto grupo e
pressionarmos, a gente corre o risco de nadar e morrer na praia [...] Não é porque eu gosto do meu
colega que é um pesquisador branco solidário que eu acho que ele tem que ocupar a posição de dirigir
um centro de estudos sobre negros. Não, eu acho que estamos no momento em que isso tem que ser
melhor acomodado no ponto de vista dos nossos interesses pois isso implica em mudança de agenda,
tipo de financiamento. E eu acho que a minha opção por ficar algum tempo no governo é exatamente
pela possibilidade que me foi colocada de estar induzindo alguns projetos ou de estar financiando
alguns projetos a partir desse lugar que é na diretoria de diversidade no qual eu tenho uma coordenação
geral. E tem um fato histórico: é a primeira vez que a palavra diversidade aparece numa secretaria do
governo federal, a primeira vez na história do Brasil.

Para intelectuais militantes no espaço acadêmico, indicações de nomes, como o de


Valter Roberto Silvério para a função que exerceu na Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade (SECAD/MEC), implicam a possibilidade de acompanhamento
das resoluções que tendem a problematizar a mudança curricular, por exemplo. Todavia,
conforme se pode observar, não é tarefa fácil porque mais uma vez é preciso enfrentar
situações mistas e de isolamento intelectual. Sugerimos que a experiência de sentir-se mal,
revelada por Ana Célia da Silva, é aquela vivida por cada um dos intelectuais que conseguem
entrar nesta arena. Entendemos que são relatos emocionados que denunciam a violência
simbólica sofrida nestes espaços. Por razões como estas, fica em suspenso a tese de que
emoção e razão não fazem parte da condição do intelectual. Posicionados como docentes ou
estudantes desenvolvendo pesquisas afrocentradas, são sujeitos deslocados que são
degenerados cotidianamente. Primeiro, pela organização da sociedade, que desconsidera a
pertença de um grupo populacional como um todo e, segundo, pelas relações entre grupos
localizados a partir do seu pertencimento racial.
Por essas razões, desde os mais experimentados até os mais novos intelectuais
militantes, o isolamento tem sido indicado como um dos mais graves obstáculos entre aqueles
que atingem os subalternos na luta pela conformação de uma outra racionalidade. Sobre isso
Salles Augusto dos Santos declara:
[...] Me refiro à dificuldade no sentido da angústia de você estar sozinho. Quando você tem muito
poucos alunos negros... e ter alunos negros não significa, necessariamente, discutir relações raciais. Não

222
é porque você é negro que tem que discutir relações raciais. Não é porque eu penso assim que acho que
os outros devem pensar assim. Quando você é negro e percebe que há processos de exclusão e que você
tem uma desconfiança que em função da sua condição racial você não pode relatar isso para a pessoa
que está ao lado – até porque você não vê a possibilidade de ter solidariedade racial – há um sofrimento
enorme!

Este relato nos remete ao que declara Ivair Augusto dos Santos.Visando manter as
condições de sua militância, buscou superar o seu mal-estar acadêmico (grifos nossos) ao
longo do processo de formação pós-graduada ao diagnosticar o fenômeno da resistência à
presença subalterna. Como consta em sua narrativa: “a universidade não sabe como lidar com
isso e quem está levando o conhecimento novo somos nós. Ela não está aberta, pelo contrário,
você tem que, muitas vezes, convencer os seus pares ao redor e trazer para o tema dando uma
resposta àquilo”. Segundo ele, nunca teve facilidade para trabalhar os temas que queria. Pelo
contrário, sempre teve que “abrir os caminhos para poder chegar onde queria”.
Eu vejo a importância da universidade para os movimentos negros por aí, como espaço importante de
reflexão, um espaço de produção de conhecimento, um espaço que vai incorporar aquele conhecimento
que as nossas tradições produziram que sempre foram colocados fora, ajudar a trazer uma série de
questões que sempre foram ligadas a cultura das folhas (cultura das ervas), a cultura das relações sociais
calcadas em outro modelo e não o modelo da sociedade judaico-cristã, a gente trazer isso para a
universidade como uma forma outra de pensar o mundo. A universidade, eu não vejo muito a
universidade como aquele templo sagrado, eu acho que a gente precisa desmistificar um pouco essa
universidade como um templo. A universidade é um espaço que é fundamental pra se pensar a
sociedade, pra se pensar a sociedade brasileira e pra produzir um conhecimento que vá estabelecer um
diálogo com a sociedade. No meu entendimento, a universidade hoje, ela não é uma universidade que
dialoga com a sociedade brasileira. Acho que produz um monte de teses que trazem informações sérias,
importantes, elas ficam lá mofando dentro das universidades e aquilo ali foi um investimento que se
perdeu, quer dizer, você faz a pesquisa, desenvolve a pesquisa a pesquisa fica lá fechada, então a
universidade pública ela teria como obrigação socializar esta pesquisa, tornar essa pesquisa, essas
pesquisas, fonte de outras e principalmente tornar essas pesquisas produtivas para a sociedade, então
interessa é que a produção que nós estudantes fazemos elas vão trabalhar na implantação da lei dez
mil...

Quem sabe, esta seria a melhor definição encontrada para entender as possibilidades
de pertencer à academia. O artigo de luxo seria, então, estabelecer diálogo com os docentes
que atuam produzindo pesquisa.
Como uma primeira experiência de construir uma sociologia focada na realidade dos
subalternizados, o que fizemos foi tentar acompanhar a via-crúcis grupal no sentido de
entender as relações que aproximaram estabelecidos e insurgentes em situações mistas que
revelam táticas de enfrentamento cotidiano necessárias para a sobrevivência intelectual.
Todavia, o mais surpreendente é a força com a qual este fenômeno se realiza nas relações
estabelecidas no âmbito da esfera universitária.

223
VI. ITINERÁRIO DE PESQUISA E IMPRESSÕES DE ESTUDO: UMA PAUSA
Iniciamos este trabalho, baseados em algumas proposições que privilegiam a ética de
Frantz Fanon, observando seus argumentos sobre o aprisionamento do ser negro. Ele afirmou
que o destino do negro é o branco e a primeira vez que lemos tal argumento experimentamos
o ódio pelas estruturas sociais que informam estruturas mentais. Agradecemos a Fanon por
isso. Por discorrer sobre o aprisionamento que nos define como estigmatizados pela herança
colonial, entregando-nos a responsabilidade de tocar em tão amarga realidade. Vimos, com
ele, exemplos de como se transformam “sujeitos” em “objetos”.
Com nossos interlocutores imediatos, buscamos entender como se manifestam as
relações de inspiração colonial no caminho que constroem visando à sobrevivência
intelectual. Sua saga é definida como que pertencendo aos grupos emergentes, se constituindo
numa Pedagogia Subalterna Afrocentrada indispensável na luta pelo deslocamento que se
pretende realizar rumo ao pertencimento humano de cada sujeito transformado em “objeto”.
Sendo assim, justificamos a opção por não ocultar os nomes de nossos respondentes. Quem,
em Salvador, tem a experiência de Ana Célia da Silva ou percorreu o caminho de Wilson
Roberto de Mattos? Quem sabe, tal risco que aceitamos correr seja um dos reflexos de um
estudo subalterno apoiado na crítica pós-colonial. Para nós, ocultar os nomes destes
narradores seria o mesmo que tirar a força das narrativas subalternas.

224
Defendemos que esses relatos apresentam representações que estão a serviço da
agência coletiva inspirada no interior do movimento negro − o agente subalterno responsável
pela emergência de estudos como esta tese de doutorado. Depois deles, não há lugar para
argumentos que separam a identidade do militante e a identidade do intelectual acadêmico,
justamente pela centralidade da crítica oferecida à sociedade sobre a educação pública – fato
ocorrido fora da academia e inaugurado pelo (s) movimento (s) negro (s).
Com base neste argumento, queremos chamar a atenção para as estratégias de
pertencimento acadêmico que já podem ser vistas a partir de um “ajuntamento” definido
provisoriamente como geracional (os contemporâneos de Ana Célia da Silva, Petronilha
Beatriz, Ivair Augusto dos Santos e Henrique Antunes Cunha Junior, por exemplo, não são os
mesmos de Ari Lima, Silvio Humberto dos Passos ou de Salles Augusto). Os mais
experimentados no debate sobre relações raciais apresentam, nas suas narrativas, histórias de
enfrentamentos retóricos, lições que hoje orientam a agência individual e coletiva dos grupos
que pesquisam e militam a partir do afrocentrismo, como é o caso que envolve a feitura desta
tese. Para esses sujeitos que, mesmo pertencendo a diferentes gerações, levantam uma mesma
bandeira, a perspectiva diaspórica tem adornado sua luta pela sobrevivência intelectual.
Definimos, assim, a agência afrocentrada como sendo uma luta por representação política
tendo como desejo sobrante (SANTOS, 2004) a “reinscrição da Questão do Negro”. Para uma
maior apreensão, entende-se que sujeitos subalternos alcançam realizar um ajuntamento
inadiável que toca outras formas de ativismo, como nos revela Cirena Calisto, Julvan Moreira
de Oliveira, definidas como extensões da luta pela educação pública de qualidade para os
grupos afrodescendentes. Neste processo, a negociação é também pela co-existência de
diferentes negritudes. Sobre isso, aprendemos com Munanga (1988) que essa é uma das saídas
possíveis entre os povos da diáspora africana.
No contexto brasileiro, a “insurgência” afrodescendente tem como referência espaços
de formação e pesquisa que se constituem como esferas alternativas de promoção de
perspectiva(s) negra(s) de produção de saberes. Caberia, então, incorporarmos a idéia de que
o debate das relações raciais vem sendo fomentado − via diferentes interseções − em
programas, em certa medida, organizados pela consolidação de parcerias entre diferentes
agências. Em outros termos, são grupos preocupados com a formação de uma crescente
intelectualidade negra, o que não passa, em definitivo, pela chancela da universidade pública.
Em alguns casos, o trabalho está localizado em um endereço que corresponde a espaço físico
de uma certa universidade pública, mas não implicando a acomodação de tal iniciativa em
termos ideológicos. Por parte da burocracia universitária, seria admitir algo como: Eles estão

225
aí. Utilizam nosso espaço físico mas não passa disso. Tal aspecto indica que parece haver
uma forma de acomodação das questões do “Outro” (do intelectual subalterno) à medida que
esta não desestabilize as estruturas tradicionais da universidade. Ao mesmo tempo,
entendemos haver na categoria “pública” uma idéia fictícia – aquela que admite a
universidade como um espaço para apenas alguns grupos se lançarem socialmente.
Como um dado ilustrativo, o Centro de Estudos Afro-Asiáticos178 (CEAA) da
Universidade Cândido Mendes, no Rio de Janeiro (UCAM), uma universidade privada com
reconhecido prestígio, foi a primeira referência acadêmica especializada em estudos das
relações raciais no país, com cerca de mais de 30 anos de atuação. Foi neste ambiente (uma
universidade particular) que se instituiu, em julho de 1998, o Curso Fábrica de Idéias, uma
tentativa de formar novos intelectuais a partir de uma perspectiva afrocentrada. O tipo de
recurso disponível para a realização de experiências dessa monta tem um alcance limitado
estando, tal experiência, marcada pela restrição caracterizada pelo número reduzido do
público-alvo.
O fato de projetos como o Fábrica de Idéias passarem a fazer parte do desejo sobrante
(SANTOS, 2004) de intelectuais que hoje se preparam para cursar mestrado e doutorado
denuncia as formas tradicionais de se acomodar a “Questão do Negro”, o que pode ser
analisado à luz do reconhecimento da “exterioridade” como sendo um fenômeno das relações
de inspiração colonial apreendida no âmbito das propostas que visam formar novos
intelectuais. Ou seja: sua formação acadêmica bem como sua consciência tem sido fortalecida
mais pela iniciativa de outras instâncias (privadas) e menos pela iniciativa das universidades
ditas “públicas”. Salientamos como talvez o mais caro dos resultados desta investigação a
manipulação das identidades dos estigmatizados pelo seu pertencimento racial que, no
conjunto das narrativas, revelam uma trajetória de embates examinada nas suas variadas
dimensões. Em outros termos, o que apontamos é para a condição emocional que a maioria

178
Criado em 1973, o Centro de Estudos Afro-Asiáticos, por uma questão de reorganização de seus eixos de
pesquisa, foi desmembrado, dando origem ao Centro de Estudos Afro-Brasileiro (CEAB-UCAM) e ao Centro de
Estudos Afro-Orientais (CEAO-UFBA), que atuam hoje desenvolvendo pesquisas e projetos em parceria. Nada
mais emblemático do que o desmonte sofrido pelos pesquisadores da UCAM envolvidos nos estudos de relações
raciais com financiamento externo. Este fato deixa uma lição que, como vimos em nossas análises sobre a
trajetória de intelectuais negros em espaços acadêmicos, serve para reforçar o sentido da luta pelo espaço
universitário como sendo para todos. Vimos que a condição subalterna atinge sobremaneira pesquisadores não-
brancos dentro e fora do espaço de produção de conhecimento. Isso porque projetos que nascem por conta das
lacunas deixadas pela perspectiva das não-políticas de democratização do acesso ao conhecimento científico são
experiências desenvolvidas a partir da dotação recebida, na maioria das vezes, de verba externa, de instituições
que financiam algumas temáticas no eixo relações raciais e que um dia podem ser interrompidas. Podemos supor
que a condição de experiências realizadas a partir de recursos externos aponta para a “exterioridade” que marca
tais iniciativas, ainda que tenham como pano de fundo a perspectiva de promoção de outros espaços de
fortalecimento dos intelectuais negros.

226
enfrentou como “filhos da periferia” que dependem das instituições que ainda desempenham
papel fundamental na garantia de alguma mobilidade intelectual para os Outros, como é o
caso das instituições públicas. O acolhimento feito pela Pontifícia Universidade Católica, o
trabalho desenvolvido nos NEABs e iniciativas como o curso Fábrica de Idéias devem receber
destaque pela possibilidade que encontraram para tocar na questão desse Outro. Esta crescente
intelectualidade percorreu sua via-crúcis vislumbrando, primeiro, um projeto, individual e/ou
familiar. Posteriormente, se encontram com a “Questão do Negro”. A consciência
afrocentrada é, portanto, resultado de uma vivência dramática neste lugar social no qual se
localizam, mesmo quando falam a partir da universidade.
Sobre a “emotividade” que marcou nossa jornada, um trabalho coletivo e por isso de
fôlego, não podemos abandoná-la em nome da neutralidade científica. A atmosfera criada em
torno das entrevistas – uma experiência subalterna entre entrevistador e entrevistados
periféricos – permitiu que víssemos quão dolorosa é a condição do Outro colonial nos bancos
universitários: às vezes como alunos, às vezes como docentes. Foram relatos que percorreram
vivências sobre a subalternidade e as situações mistas (estigmatizados e normais) que
aceitaram enfrentar. Assim, nossos depoentes emergem de uma via-crúcis que se aproxima
das dores de Fanon.
É emblemático o episódio narrado pelo professor Valter Roberto Silvério que, aos 17
anos, experimentou o racismo em sala de aula por parte de um professor imigrante que
declarava não gostar de negros. Pelo fato de serem muitos diferentes numa mesma classe,
houve ali um movimento contra o professor, incluindo denúncia. Entretanto, as formas de
resistência apresentadas pelo grupo de estudantes secundaristas não deixaram de provocar na
vítima prejuízos psíquicos. Por causa deste fato, naquele período, o professor passou a
depender de um tratamento especializado no sentido de recuperar sua auto-estima deteriorada
no episódio. Valter Roberto Silvério admitiu como sendo vital, para sua compreensão como
sujeito, buscar entender as manifestações contra ele e contra os grupos fixados como
“diferentes”, como o Outro.
Por esses relatos, não caberia dispensarmos uma análise situada na crítica pós-
colonial e nos estudos subalternos. Quais seriam as explicações cabíveis para a liberdade que
desfruta um professor parecerista de concurso público por ocasião do processo seletivo para
docente na UFSCAR – quando pergunta aos seus botões, o que este negão está fazendo aqui?,
ao ver a imagem de um homem preto, alto, forte, como é a imagem de Valter Roberto

227
Silvério, entrando na sala para fazer sua entrevista? Do mesmo modo, a liberdade de um
professor imigrante declarando não gostar de negros na condição de docente formando
grupos, na sua maioria, de descendência não-européia? As dores de Fanon são as dores de
todos os fixados nas relações coloniais reconhecidas nas esferas de poder como é a
universitária.
Para fazer da UFSCAR uma universidade mais humanizada, é fundamental que entrem
nas bancas de concursos diversos, para docentes, sujeitos com a mesma imagem do professor
Valter Roberto Silvério e que estejam comprometidos com a mudança entre “Centro” e
“Periferia”. A desestabilização do “acontecimento universitário”, ao que tudo indica, depende
de outras formas de inserção dos tantos Outros que o colonialismo produziu.
Em termos de retórica, a universidade pública passa a ser o maior alvo de intelectuais-
militantes-afrodescendentes já que, nela, se legitima e se deslegitima saberes sociais. Por isso,
torna-se inegável a centralidade de estudos sobre a trajetória de grupos em condição
subalterna bem como de suas representações sobre o que é participar do acontecimento
universitário na tentativa de desestabilizá-lo. Na luta pela sobrevivência intelectual, as saídas
encontradas são definidas tendo entre as possibilidades de inserção acadêmica processos
seletivos que implicam a negociação com a própria vaidade, pelo que captamos da narrativa
construída por Lucia Pereira, por exemplo.
Vimos, com Goffman (1988, p.41), que estudos sobre o Eu e o seu Outro não podem
deixar de incluir as experiências de negros e judeus e que “pessoas que têm um estigma
particular tendem a ter experiências semelhantes de aprendizagem relativa à sua condição e a
sofrer mudanças semelhantes na concepção do eu”. Sobre processos de desestabilização do
“acontecimento universitário” localizamos traços do que é um locus de enunciação, para ser
fiel a Homi Bhabha (1998).
Entendemos a formação de alguns intelectuais − já reconhecidos dentro e fora do
debate sobre relações raciais − definida numa atmosfera marcada pela acomodação da
“Questão do Negro”. O foco está, justamente, em sabermos que a decisão de “enfrentar” essa
formação pós-graduada implica vivenciarem tipos de negociação, algo que pode ser
classificado a partir de algumas dimensões, a saber: a) A necessidade de estabelecer uma
“autonegociação” que seria experimentada quando se aceita, mesmo diante de uma situação
pouco ideal, inserir-se num projeto onde se sabe qual é o lugar do não-branco; b) Saber que a
aprendizagem vivida cotidianamente em espaços coloniais implica estar sempre na condição
de estigmatizado pelos processos de subalternização (relações coloniais podem ser
reconhecidas entre orientador e orientando, entre pós-graduandos não-brancos e brancos,

228
entre funcionários e pós-graduandos não-brancos, entre financiador e financiado); c)
Necessidade de criação de táticas de guerra no acontecimento universitário como, por
exemplo, enfrentar o debate com o senso comum acadêmico acerca das formas de disputa pelo
acesso ao curso superior de grupos afrodescendentes.
Concentrando esforços para investigar o que significou em termos de desdobramento a
participação desses sujeitos − desdobramento individual, institucional e grupal −, nossa
análise se insere numa “Sociologia da Subalternidade”. Concluímos que se trata de um
panorama da experiência subalterna tendo como pano de fundo a trajetória de formação de
intelectuais afrodescendentes e das suas estratégias para negociar sua circulação, presença,
acomodação, visão de mundo.
Tentamos analisar as formas de inter-relações construídas no âmbito dos espaços de
intercâmbio de estudos étnico-raciais, quando possível de serem instituídos (como é o caso
do III COPENE). Vislumbramos compreender, a partir de narrativas negras – de intelectuais
formados ou em formação em cursos de pós-graduação –, em que medida sua busca pelo
pertencimento acadêmico reforçou a definição de sua produção e mobilidade intelectual, em
distintos contextos. Observamos as posições que ocupam, as idiossincrasias do ativismo
acadêmico, no sentido de apreendermos como se vivencia, na atualidade, a agência
afrocentrada observando nos relatos, pontos de confluência e de disjunções. Vimos embates
ideológicos e insatisfações diversas.
Pode-se considerar que os estudos sobre as relações raciais, na atualidade, são
desdobramentos de uma agência coletiva – do(s) movimento(s) negro(s) que se voltou para o
problema educacional como elemento de questionamento e tendo como objetivo a “re-
inscrição da Questão do Negro”. Entende-se que o movimento em ascensão privilegia a
garantia do acesso ao ensino superior público, o que parece ser um reflexo do
posicionamento dos intelectuais que se inclinaram no sentido de criar táticas de guerra contra
a má formação das populações afrodescendentes, conforme relatou Henrique Cunha Junior ao
mencionar seu encontro (década de 1980) com Petronilha Beatriz e Ana Célia da Silva.
Entendemos como urgente a abordagem de estudos que subsidiem uma sociologia
sobre as diferentes possibilidades de reinscrição do protagonismo (agência) do(s)
movimento(s) negro(s), ou seja: considerar a construção de sua história, sua presença na
identidade nacional no processo de revisão das políticas educacionais nos diferentes níveis;
abrir mão da idéia de que a universidade afasta estes ativistas de sua causa.
Em seu depoimento, Ana Célia da Silva deixou explícito quais foram os motivos que a
levaram à academia – compromisso com a militância e com a formação de outros professores

229
que pudessem contemplar a demanda dos grupos afrodescendentes. Destaca em diferentes
momentos quão difícil é estar na condição de professora universitária, militante no espaço da
universidade pública. Do seu discurso recheado de exemplos sobre as manifestações de
resistência que tentam colonizar intelectuais subalternos, destaca-se a reação de alunos
também afrodescendentes que se comportam informados pela conformação colonial do corpo
docente. Ana Célia da Silva é implacável em seu relato quando menciona a dificuldade que é
“estar no Centro”. Com esta professora, entendemos que relações de inspiração colonial
podem se dar entre o grupo subalternizado (aluno subalterno e professora subalterna), entre
crianças brancas e adultos não-brancos, entre professora não-branca e aluno não-branco.
Quando abrigamos, aqui, a idéia de ser o colonialismo um fenômeno definido como um fato
social total, tentávamos observar o que poderíamos analisar como episódico nas relações entre
o Eu e o Outro coloniais. O que encontramos, tirou nossas rasuras sobre tal hipótese. Vimos
alunos subalternos colonizando professores subalternos. Entre os estabelecidos, percebemos
que o seu discurso a favor da democracia e do direito ao acesso aos bens culturais não
garantem políticas de acomodação dos segmentos que dependem de mobilidade social via
educação formal − neste caso o curso superior. Aprendemos que o ideário da universidade
pública atinge sobremaneira os que tentam fazer do acesso a ela um desejo satisfeito. São
nuances reveladoras para quem desejar entender por que é necessário que se criem outras
formas de negociar o espaço da universidade pública, como têm feito alguns grupos que se
organizam, como o(s) movimento(s) negro(s) dentro e fora dela.
Por outra parte, sentimos a força da opção por negociar diferentes negritudes.
Consideramos ser esta a negociação mais importante, aquela que vem permitindo o
“ajuntamento”. Por ela, os estigmas e a degenerescência são sufocados cotidianamente com
um suspiro a mais. Um exemplo deste “sufocamento” pode ser a feitura desta tese. Resistimos
por um compromisso coletivo. Não se pode ver porque suas páginas foram secadas antes que
chegasse a hora de imprimi-la.
Interrompemos, agora, nossa via-crúcis. Aprendemos com Fanon sobre as dores do
exílio, aquelas experimentadas por Edward Said, Joel Rufino dos Santos, Ana Célia da Silva,
Petronilha Beatriz, Valter Roberto Silvério, Henrique Cunha Junior, Cirena Calisto, Ari Lima,
Salles Augusto dos Santos, Wilson Roberto de Mattos, Silvio Humberto dos Passos, Paulino
Cardoso, Nelson Inocêncio, Florentina Souza, Julvan Moreira, João Carlos Nogueira, Dora
Bertúlio, Ivair Augusto, Ana Amélia, Lúcia Pereira, Claudia Miranda e tantos outros
deslocados. Entendemos como provável o que afirma Goffman (1988) sobre o dado comum a
todos os que têm um estigma particular. Aprendemos que a universidade pública nunca foi

230
tão particular e tão colonial como é hoje e que a agência afrocentrada pode ser uma pista para
a sua descolonização.

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