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UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO


DOUTORADO EM EDUCAÇÃO

CAIO TEIXEIRA BRANDÃO

A CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA INFANTIL ENQUANTO


FENÔMENO DE REPRESENTAÇÃO SOCIAL:
EXPERIÊNCIAS EM FORMAÇÃO E PARTICIPAÇÃO

RIO DE JANEIRO - RJ
2022
1

UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
DOUTORADO EM EDUCAÇÃO

CAIO TEIXEIRA BRANDÃO

A CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA INFANTIL ENQUANTO


FENÔMENO DE REPRESENTAÇÃO SOCIAL:
EXPERIÊNCIAS EM FORMAÇÃO E PARTICIPAÇÃO

Tese apresentada ao curso de Doutorado em


Educação do Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Estácio de Sá, como
requisito parcial para obtenção do título de
Doutor em Educação. Linha de pesquisa:
Representações Sociais e Práticas Educativas.
Orientadora: Profa. Dra. Edna Maria Querido
de Oliveira Chamon.

RIO DE JANEIRO - RJ
2022
2

CAIO TEIXEIRA BRANDÃO

A CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA INFANTIL ENQUANTO


FENÔMENO DE REPRESENTAÇÃO SOCIAL:
EXPERIÊNCIAS EM FORMAÇÃO E PARTICIPAÇÃO

Tese apresentada ao curso de Doutorado em


Educação do Programa de Pós-graduação em
Educação da Universidade Estácio de Sá em
exame de Qualificação, como requisito parcial
para obtenção do título de Doutor em Educação.
Linha de pesquisa: Representações Sociais e
Práticas Educativas.
Orientadora: Profa. Dra. Edna Maria Querido
de Oliveira Chamon.

Aprovada em 26 de agosto de 2022

BANCA EXAMINADORA

Profa. Dra. Edna Maria Querido de Oliveira Chamon - Presidente


Universidade Estácio de Sá

Profa. Dra. Patrícia Diana Edith Belfort e Camargo Ortiz Monteiro


Universidade Estácio de Sá

Prof. Dr. Felipe da Silva Triani


Universidade Estácio de Sá

Profa. Dra. Maria da Glória Marcondes Gohn


Universidade Estadual de Campinas

Profa. Dra. Daniela Barros da Silva Freire Andrade


Universidade Federal de Mato Grosso

Prof. Dr. Pedro Humberto Faria Campos


Universidade Salgado de Oliveira
3

Esta tese é dedicada à Idelzuite Barbosa Teixeira (in


memoriam), mulher nordestina, mãe de onze filhos e avó
de outros tantos que, apesar da pouca instrução, tinha o
sonho de ter um filho Doutor e apoiou os estudos de uma
família inteira. A ela, meu amor e gratidão eternos.
4

AGRADECIMENTOS

A meus pais, Maria da Conceição Barbosa Teixeira e Luiz Carlos Kopes Brandão, que
têm me apoiado na decisão de seguir uma carreira acadêmica, apesar de todos os obstáculos.

A meus avós maternos, Idelzuite Barbosa Teixeira e João Teixeira Moura (vulgo
Jurema), minhas referências de garra e dedicação.

À minha avó paterna, Beatriz Kopes, pelo carinho com que sempre me acolheu, e ao Zé,
pelo cuidado dedicado à ela.

À minha orientadora, profa. Dra. Edna Chamon, pela paciência em aceitar mais um
orientando no meio do caminho, e pelas contribuições para a finalização da pesquisa.

Ao prof. Dr. Pedro Humberto Campos, por ter viabilizado a realização do doutorado
sanduíche na França, junto ao IEA de Paris, e por confiar que eu era capaz de mudar
completamente o tema da minha pesquisa.

Ao professor PhD Saadi Lahlou, por me ensinar a importância da gestão do tempo e


mostrar que a valorização da ciência e da pesquisa é um sonho possível.

À profa. Dra. Rita de Cássia Lima, pelos esforços em tentar compreender o momento
social e político em que vivemos, que serviram de inspiração para muitos de nós.

Às professoras Maria da Glória Gohn, Daniela Silva Freire Andrade e Patrícia Ortiz
Monteiro, pelas inúmeras contribuições na qualificação.

À minha amiga, Patrícia Peres, por ouvir minhas inquietações ao longo desses quatro
anos, independente da distância e do fuso-horário.

A meus amigos, Eliane e Paulo Chagas, por me receberem em sua casa e me tratarem
como parte da família.
5

A meus amigos, Bruno Viviani, Marianna Jannuzzi e demais colegas do(s) grupo(s) de
pesquisa, sempre disponíveis para trocar conhecimento e experiências.

À minha namorada, Lara Diniz Herbster, que tem me fascinado pela capacidade de lidar
com as pessoas, independente das divergências de pensamento e opinião.

Ao Instituto Federal do Amapá (IFAP) que, por meio do afastamento, permitiu que eu
me dedicasse integralmente durante quatro anos ao Doutorado em Educação.

À equipe do Institut d’Études Avancées (IEA) de Paris, por tornar minha estadia na
França uma experiência memorável de aprendizado profissional e acadêmico.

À Maison du Brésil (MdB), por ser uma referência de convivência entre brasileiros e
pesquisadores de todas as nacionalidades.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pela


realização e concessão de bolsas do Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior (PDSE) e
o Programa de Suporte à Pós-graduação de Instituições de Ensino Particulares (PROSUP), que
possibilitam os recursos necessários aos estudantes brasileiros para o aprendizado da pesquisa
e da carreira acadêmica.

A todos que contribuíram direta ou indiretamente para a concretização do sonho de


concluir o doutorado. Sem vocês, essa tese não teria sido possível. Muito obrigado.
6

“É preciso respeitar os direitos humanos. Essa é


a lei. Acaso não somos homens?
Toda pessoa tem direito à vida. Essa é a lei. Acaso
não somos homens?
Toda pessoa tem direito a se expressar livremente.
Essa é a lei. Acaso não somos homens?
É preciso fortalecer a democracia. Essa é a lei.
Acaso não somos homens?”
(trecho de Adela Cortina, 1997 - adaptado da obra
A Ilha do Doutor Moreau, de H.G. Wells).
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RESUMO

O objetivo desse trabalho foi investigar a cidadania infantil enquanto fenômeno de


representação social, a partir da interação entre crianças e adultos. Para investigar esse
fenômeno, realizamos dois estudos: um estudo etnográfico com crianças de um projeto piloto
de formação cidadã na França; e uma pesquisa exploratória com professoras de Educação
Infantil da Rede Municipal de Cuiabá. Utilizamos a Etnografia Baseada em Evidência Subjetiva
(SEBE) como forma de investigar a experiência das crianças parisienses na formação para a
cidadania e realizamos entrevistas semiestruturadas com as professoras brasileiras, na tentativa
de contrapor as significações compartilhadas pelos grupos em contextos sociais distintos. A
infância, enquanto categoria social, tem sido vítima de um processo histórico de invisibilização
cívica, política e científica. As imagens sociais da infância compartilhadas nos grupos, refletem
o processo de representação da criança como um Outro estranho, o que implica na
implementação de práticas de controle e disciplinamento das crianças, como forma de garantir
sua preparação para vida em sociedade. A cidadania infantil tem sido apontada pelos Estudos
Sociais da Infância como uma alternativa à perspectiva de cidadania adultocêntrica, que toma
o adulto como ideal de desenvolvimento a ser alcançado. Entendemos que a cidadania infantil,
enquanto possível fenômeno de representação social, está integrada a um sistema de
representação do qual fazem parte a democracia, os direitos e a participação social. Sua
construção requer a implementação de dispositivos de participação que permitam às crianças a
vivência da democracia, dentro e fora da escola. Os resultados da pesquisa indicam que a
interação dialógica, fundamentada na confiança interpessoal e epistêmica, permitiria a ambos,
crianças e adultos, o exercício da cidadania e o desenvolvimento de uma cultura democrática.
As crianças do primeiro estudo apontam as inconsistências no comportamento dos adultos como
obstáculo para a confiança e buscam na interação o reconhecimento de seu potencial de atores
sociais competentes. Enquanto as professoras do estudo dois enxergam no projeto de formação
continuada as possibilidades para a transformação das práticas docentes e afirmação da
educação infantil como ambiente educativo, na superação da imagem assistencialista desse
nível de educação. A cidadania infantil é representada como uma possibilidade, um produto do
processo educativo ou ferramenta para reforçar o pertencimento à comunidade. Entendemos
que é a partir da dinâmica do reconhecimento, própria da interação dialógica, que crianças e
adultos podem atuar para a construção da cidadania enquanto prática social ao longo da vida,
fortalecendo seus direitos e a democracia como valor universal na sociedade.
Palavras-chave: Democracia. Cidadania. Participação infantil. Representações sociais.
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LISTA DE FIGURAS

Figura 1. o prisma semiótico .................................................................................................... 50


Figura 2. O modelo "toblerone" ............................................................................................... 50
Figura 3. O modelo "rosa dos ventos" ...................................................................................... 51
Figura 4 - prisma teórico da cidadania infantil ......................................................................... 53
Figura 5 - a representação social da participação dos jovens mexicanos ................................. 56
Figura 6. a ruptura da tríade dialógica ...................................................................................... 72
Figura 7. a tríade dialógica da cidadania infantil...................................................................... 73
Figura 8. Escada de participação de crianças e jovens de Roger Hart (1992) .......................... 83
Figura 9 - Modelo qualitativo de avaliação da participação infantil ........................................ 85
Figura 10. o modelo ternário de Moscovici .............................................................................. 89
Figura 11 - Modelo da Representação Global da Situação ...................................................... 95
Figura 12. Desenho metodológico da pesquisa ...................................................................... 105
Figura 13 - mapa do 4ème arrondissement ............................................................................. 107
Figura 14 - a câmera subjetiva ou subcam. ............................................................................ 108
Figura 15 - cartaz da Semana Parisiense de Engajamento ..................................................... 111
Figura 16 - reunião inaugural do projeto P'tits Volontaires ................................................... 114
Figura 17 - confecção do acróstico ......................................................................................... 116
Figura 18 - treinamento em primeiros socorros...................................................................... 120
Figura 19 - ateliê "faça você mesmo" ..................................................................................... 124
Figura 20 - atividade de desenho do projeto de vegetalização ............................................... 125
Figura 21 - visita à casa de repouso Ave Maria ...................................................................... 126
Figura 22 – aprendendo sobre compostagem ......................................................................... 128
Figura 23 - imagem do bueiro feita com a subcam ................................................................ 129
Figura 24 - atividade de coleta de lixo ................................................................................... 130
Figura 25 - apresentação do CME .......................................................................................... 131
Figura 26 – exemplo de uma replay interview ....................................................................... 138
Figura 27 - a construção do projeto coletivo .......................................................................... 141
Figura 28 - revendo a construção do projeto .......................................................................... 142
Figura 29 - antes e depois do projeto ...................................................................................... 143
Figura 30 - abertura da tampa de esgoto ................................................................................ 145
Figura 31 - a diversão de levantar a tampa de esgoto ............................................................. 145
Figura 32 - massagem cardíaca. ............................................................................................. 147
Figura 33 - o movimento da massagem cardíaca. .................................................................. 147
Figura 34 - a criança e a mãe observam a atividade. .............................................................. 148
Figura 35 - o torneio de videogame no Abrigo Ave Maria. ................................................... 149
Figura 36 - a Talita se vangloria de um strike. ....................................................................... 149
Figura 37 - Imitando o jogo de Tênis. .................................................................................... 150
Figura 38 - Sofia fala sobre a construção do projeto. ............................................................. 153
Figura 39 - vantagens da subcam. .......................................................................................... 154
Figura 40 - as crianças retiram o lixo do esgoto. .................................................................... 155
Figura 41 - Sofia se vira para à mãe e sorri. ........................................................................... 155
Figura 42 - Sofia e Renato revezam as pinças. ....................................................................... 156
Figura 43 - Sofia aparenta estar surpresa................................................................................ 157
Figura 44 - confecção de esponjas de material reciclável. ..................................................... 159
Figura 45 - a expressão de preocupação de Sofia. .................................................................. 160
Figura 46 - exemplo de registro da câmera da participante. ................................................... 160
Figura 47 - apresentando a rua de Petit Musc. ....................................................................... 164
9

Figura 48 - aprendendo a usar um desfibrilador. .................................................................... 165


Figura 49 - Bombeiro explica a função do bombeiro-mirim. ................................................. 166
Figura 50 - Ingrid fala sobre o valor de algumas ocupações. ................................................. 166
Figura 51 - o que as crianças aprenderam com os bombeiros. ............................................... 167
Figura 52 - a expressão de surpresa de Ingrid. ....................................................................... 167
Figura 53 - partes de um todo. ................................................................................................ 168
Figura 54 - a Ressourcerie l'alternative. ................................................................................. 170
Figura 55 - o uso de uma estratégia cognitiva. ....................................................................... 171
Figura 56 - expressando a oposição interior/exterior. ............................................................ 171
Figura 57 - passo a passo da massagem cardíaca. .................................................................. 175
Figura 58 - preparar uma apresentação sobre a formação. ..................................................... 176
Figura 59 - a surpresa de Érica. .............................................................................................. 176
Figura 60 - o que fazer com o lixo.......................................................................................... 177
Figura 61 - a posição lateral de segurança (PLS). .................................................................. 178
Figura 62 - Érica usa a imagem para reforçar seu argumento. ............................................... 179
Figura 63 - a sensação da urtiga. ........................................................................................... 179
Figura 64 - Érica imita a foto do pesquisador. ....................................................................... 180
Figura 65 - a coleta de lixo na prefeitura. ............................................................................... 183
Figura 66 - Érica mostra a atividade para a mãe. ................................................................... 183
Figura 67 - escolha dos objetos para a maraude. .................................................................... 184
Figura 68 - a criança se vê no vídeo. ..................................................................................... 185
Figura 69. a representação global da cidadania ativa ............................................................. 193
Figura 70 - roteiro Cribiás 300+ ............................................................................................. 196
Figura 71 - nuvem de palavras ............................................................................................... 203
Figura 72. Amontoado de pedra canga ................................................................................... 215
Figura 73 - A dupla estrutura da representação ...................................................................... 217
Figura 74. a metáfora da janela .............................................................................................. 220
Figura 75. A luta pelo reconhecimento das TDI .................................................................... 228
Figura 76. O sistema de representações sociais da cidadania infantil .................................... 229
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LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1. Classes geradas pela CHD 209

Gráfico 2. Distribuição dos vocábulos no plano fatorial 210

Gráfico 3. Disposição das classes no plano fatorial 213


11

LISTA DE QUADROS

Quadro 1. Arquitetura global do pensamento social 86

Quadro 2. Participantes do projeto P’tits Volontaires 115

Quadro 3. Participantes do projeto P’tits Volontaires 120

Quadro 4. Exemplos de acrósticos das crianças 126

Quadro 5. Exemplo de acróstico espontâneo 142

Quadro 6. Perfil das participantes do estudo 2 209


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LISTA DE SIGLAS

BNCC - Base Nacional Comum Curricular


CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
CDC – Convenção sobre os Direitos da Criança
CIRS - Conferência Internacional sobre Representações Sociais
CME - Conseil Municipal des Enfants
CMDCA - Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente
CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
CONANDA – Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
DUDH - Declaração Universal dos Direitos Humanos
ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente
EJE - Escola Judiciária Eleitoral
INPS - Instituto Nacional de Previdência Social
MST - Movimento dos Trabalhadores Sem Terra
PNLD - Plano Nacional do Livro e Material Didático
SGD - Sistema de Garantia de Direitos
SME - Secretaria Municipal de Educação
STPP - Service Technique de Propreté de Paris
TRS – Teoria das Representações Sociais
TSE - Tribunal Superior Eleitoral
TDI - Técnico em Desenvolvimento Infantil
ONU – Organização das Nações Unidas
UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
UNICEF - Fundo das Nações Unidas para a Infância
13

Sumário
APRESENTAÇÃO ..................................................................................................... 14
1. INTRODUÇÃO .................................................................................................. 17
2. CIDADANIA E PARTICIPAÇÃO INFANTIL ....................................................... 24
1.1 Panorama dos trabalhos acadêmicos no Brasil ............................................................... 34
1.1.1 Pesquisas sobre a cidadania de crianças .................................................................. 38
1.1.2 Pesquisas com crianças sobre a cidadania ............................................................... 43
1.2 Investigar a cidadania por meio da participação ............................................................ 49
2 DEMOCRACIA, CIDADANIA E PARTICIPAÇÃO................................................ 59
2.1 A construção da cidadania nacional ............................................................................... 62
2.1.1 A redemocratização ou construção da democracia.................................................. 64
2.3 Participação, reconhecimento e responsabilidade .......................................................... 70
2.3 A cidadania enquanto processo psicossocial .................................................................. 74
2.4 A Sociologia da Infância ................................................................................................ 77
2.4.1 A emergência da Participação infantil no contexto político mundial ...................... 79
2.4.2 Modelos de avaliação da Participação Infantil ........................................................ 83
3 PERCURSO TEÓRICO-METODOLÓGICO .......................................................... 88
3.1 As diferentes abordagens em Representações Sociais ................................................... 90
3.2 A relação entre experiência/vivência e representações sociais ...................................... 92
3.3 Os Sistemas de Representação Social ............................................................................ 94
3.4 A pesquisa sobre a cidadania infantil ............................................................................. 98
4. OS PEQUENOS VOLUNTÁRIOS DE PARIS ...................................................... 107
4.1 Os Conselhos de Crianças e Jovens (CMEJ) e o contexto francês ............................... 109
4.2 Observação de um projeto piloto de educação para a cidadania .................................. 111
4.3 A perspectiva das crianças sobre o voluntariado e a formação cidadã ......................... 137
4.4 Considerações sobre os Pequenos Voluntários de Paris ............................................... 187
5 CRIBIÁS, CRIANÇAS SABIDAS E A EDUCAÇÃO INFANTIL COMO ESPAÇO DE
PARTICIPAÇÃO .................................................................................................... 195
5.1 A educação cidadã no Brasil ........................................................................................ 199
5.2 Como se estrutura o discurso das professoras sobre o projeto Cribiás ......................... 203
5.3 O que nos dizem as professoras Cribiás ....................................................................... 210
5.3 A cidadania infantil como metáfora ............................................................................. 216
5.4 A cidadania infantil: um fenômeno interacional e dialógico ........................................ 228
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 233
REFERÊNCIAS....................................................................................................... 238
14

APRESENTAÇÃO

Sou servidor público federal desde 2013 e atuo como psicólogo em uma instituição da
Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica no estado do Amapá, onde faço parte de
uma equipe multiprofissional, composta por psicólogos, assistentes sociais, técnicos em
assuntos educacionais e pedagogos, responsável pela coordenação da Política de Assistência
Estudantil. No ano de 2017, fui aprovado num processo seletivo para a concessão de
afastamento para os servidores que pretendessem realizar pós-graduação stricto sensu dentro
do país, e assim obtive as condições para me dedicar integralmente ao doutorado do Programa
de Pós-graduação em Educação (PPGE) da UNESA.
Já no início do doutorado, em 2018, manifestei o interesse em realizar parte dos estudos
no fora do país, como forma de aprimorar meus conhecimentos enquanto pesquisador e me
familiarizar com as metodologias de pesquisa utilizadas no exterior. Com o auxílio do meu
orientador, na época o prof. Dr. Pedro Humberto Faria Campos, estabelecemos contato com o
professor PhD Saadi Lahlou, do departamento de Psicologia Social da London School of
Economics and Political Sciences (LSE), para discutir a possibilidade de realizar um estágio
doutoral. Nosso objetivo era aprender a Etnografia Baseada em Evidência Subjetiva (no original
em inglês Subjective Evidence Based Ethnography - SEBE) e a Teoria da Instalação,
desenvolvidos pelo professor Lahlou ao longo de sua trajetória acadêmica e profissional.
Após ser beneficiado com uma bolsa do Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior
(PDSE) da CAPES, no ano de 2019, realizei um estágio de seis meses no Instituto de Estudos
Avançados de Paris (IEA), na França, supervisionado pelo professor Saadi Lahlou. Durante
esse período, atuei como facilitador do projeto P’tits Volontaires de Paris, em parceria com a
Mairie du 4ème Arrondissement. Esse projeto piloto consistia em formar crianças para a
cidadania ativa, por meio da pesquisa-ação. Um grupo de crianças de 9 a 11 anos, membros do
Conseil Municipal des Enfants (CME), todas escolarizadas no 4º distrito de Paris, participaram
da formação para a construção de um projeto coletivo e a atuação em âmbito local.
Durante as atividades do projeto, realizado em parceria com associações da sociedade
civil parisiense, utilizamos a SEBE, uma metodologia de etnografia digital que utiliza vídeos
na perspectiva em primeira pessoa, para auxiliar as crianças do CME na reflexão acerca da
cidadania e do engajamento em prol da coletividade. Infelizmente, devido à pandemia de
Covid-19, que tem mudado a nossa forma de enxergar a educação e a cidadania, as atividades
do projeto P’tits Volontaires foram interrompidas por tempo indeterminado. Na época, as
15

crianças estavam preparando a apresentação final do projeto coletivo, que aconteceria em uma
sessão plenária, no dia 25 de março de 2020, com a participação do prefeito do 4ème
Arrondissement e os representantes das escolas da região.
Com o auxílio da CAPES, pude efetuar a remarcação da passagem e retornei ao Brasil
no dia 18 de março, cerca de 15 dias antes do previsto para o término das atividades do
doutorado sanduíche. As atividades vivenciadas no doutorado sanduíche me inspiraram a
refazer meu projeto de tese e iniciar esta pesquisa acerca da construção da cidadania infantil
enquanto fenômeno de representação social, considerando a participação infantil como aspecto
fundamental nesse processo.
Iniciamos uma busca sobre as iniciativas de educação cidadã e fomento ao protagonismo
infantil no contexto educativo brasileiro e, por intermédio da profa. Dra. Daniela Barros da
Silva Freire Andrade, coordenadora do Grupo de Pesquisa em Psicologia e Infância (GPPIN)
da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) entramos em contato com as professoras do
coletivo Cribiás, crianças sabidas, uma iniciativa de formação docente pautada na concepção
da “Educação Infantil como espaço narrativo”. O projeto iniciou como uma parceria da UFMT
com a Secretaria Municipal de Educação de Cuiabá, em 2009, fundamentado na Psicologia da
Infância e na Pedagogia da Participação, no reconhecimento da criança enquanto ator social.
Acreditamos que iniciativas como essa constituem verdadeiros espaços de fomento à
participação, além de permitir ao adulto reconhecer o seu próprio potencial enquanto cidadão
ativo, transformando as representações a respeito da infância e do papel da educação.
Encerramos essa apresentação com uma metáfora do professor Saadi Lahlou (2014, p.
124), com quem tive a oportunidade de conviver brevemente no período anterior à pandemia.
Ele nos surpreende com sua sagacidade e pragmatismo ao falar do papel da tese no processo de
doutoramento, não apenas como mera formalidade, mas como validação e reconhecimento da
capacidade do pesquisador.
A tese é uma espécie de licença para fazer pesquisa na comunidade científica, tal como
a carteira de motorista é uma licença para viajar de carro na estrada. Ao fazer a prova
para tirar a carteira de motorista, o importante é mostrar que podemos dirigir, e não
conduzir o examinador a um lugar qualquer.

Tendo essa metáfora como fundamento, esta pesquisa se propôs a investigar a


construção da cidadania infantil enquanto fenômeno de representação social por meio da
experiência/vivência da participação social. O paradigma da cidadania infantil é considerada
por Tomás (2017) uma possibilidade teórica e simbólica que pressupõe o reconhecimento de
que as crianças, enquanto grupo social minoritário, são capazes de exercer direitos e
16

responsabilidades, construindo suas próprias representações sociais, embora necessitem da


colaboração do adulto para a criação de espaços participativos.
Ao longo do doutorado, tive algumas oportunidades de observar o potencial das crianças
enquanto atores sociais, mas não é preciso ir longe, basta escutar o que uma criança tem a dizer,
para comprovar que ali já existe uma subjetividade em construção, com vontade e desejos
independentes.
Acreditamos que a evolução da democracia enquanto sistema social implica a
transformação dos direitos e deveres que compõem a cidadania, sendo necessário repensar qual
o papel da escola e da sociedade civil na constituição de uma nova cidadania, que envolva tanto
crianças quanto adultos. A luta pelo ideal democrático é diária e necessita da colaboração de
todos, cada qual a sua maneira, para que possamos manter os direitos conquistados a duras
penas e avançar na construção de uma sociedade verdadeiramente igualitária.
17

1. INTRODUÇÃO

As crianças costumam ser evocadas no discurso público como uma geração potencial,
uma espécie de investimento no futuro da sociedade, principalmente quando pensamos em que
condições o planeta estará daqui a alguns anos. Certamente já ouvimos a pergunta “que planeta
queremos deixar para nossos filhos?”, mas nem sempre esse discurso de proteção do futuro se
reflete em igual preocupação com as condições em que as crianças vivem no presente.
A própria etimologia da palavra infância, do latim infans - aquele que não fala, mostra
que a posição ocupada pelas crianças, desde a antiguidade clássica, é muito mais a de objeto do
que de sujeitos ativos. Sarmento (2007) afirma que as crianças, ao longo da história, assim como
outros grupos minoritários, tem sido vítimas de um processo de invisibilização, não tendo voz
nas discussões acerca dos rumos da nossa sociedade.
Para Casas (2006), a concepção de infância é um fenômeno historicamente construído,
o que dificulta falar em infância no singular. Mesmo a preocupação com as crianças e a
produção de conhecimento sobre a infância é um fenômeno consideravelmente recente, que
data do final do século XIX, como mostra a obra do historiador Philippe Ariès (1981, p. 10),
responsável pelo termo “sentimento da infância”.
O autor contrapõe esse termo ao fato de que “a passagem da criança pela família e pela
sociedade era muito breve e muito insignificante para que tivesse tempo ou razão de forçar a
memória e tocar a sensibilidade” e relata que durante a modernidade houve uma mudança
significativa na forma como a sociedade ocidental lida com a categoria social da infância e seus
membros, as crianças, concomitante à ascensão da imagem social da família tradicional
burguesa e sua moralização.
Por se tratar de um fenômeno social e histórico, as mudanças na forma de representar a
infância acompanham a dinâmica da transformação social e cultural da sociedade
(CHOMBART DE LAUWE; FEUERHAHN, 1989). Das imagens nostálgicas aos riscos
civilizatórios evocados pela literatura, as autoras atribuem à Rousseau os primeiros estudos
sobre a infância enquanto categoria social.
Por infância entendemos o grupo que reuniria os indivíduos em determinadas condições
etárias (comumente aqueles abaixo da maioridade penal, cerca de 21 anos). Até o século XVIII
não havia uma separação entre infância e adolescência e, mesmo no século XX, existem
documentos que não fazem essa divisão, como é o caso da Convenção dos Direitos da Criança.
18

A criança e o adolescente eram definidos como o não-adulto (SARMENTO, 2007),


reproduzindo o que o autor denomina de princípio de negatividade.
O sentimento da infância teria justificado o surgimento da escola na modernidade,
enquanto instituição dedicada à socialização das crianças, no intuito de isolar e preparar para a
integração no mundo dos adultos. Para Ariès (1981, p. 277), [...] passou-se a admitir que a
criança não estava madura para a vida, e que era preciso submetê-la a um regime especial, a
uma espécie de quarentena antes de deixá-la unir-se aos adultos”.
No entanto, o reconhecimento da infância enquanto fenômeno social é algo mais
recente, que tem sido pleiteado pelos movimentos sociais em defesa da infância e teorizado pela
Sociologia da Infância ou Estudos Sociais da Infância (JANS, 2004; SARMENTO, 2012;
QVORTRUP, 2014; GAITÁN MUÑOZ, 2020), desde o final da década de 1980. Os autores
que compõem esse grupo afirmam que as crianças fazem parte de uma categoria social
minoritária, semelhante a outras minorias, submetida às relações de dominação implementadas
pelos adultos como formas de controle e disciplinamento.
A infância é, simultaneamente, uma categoria social, do tipo geracional, e um grupo
social de sujeitos activos, que interpretam e agem no mundo, Nessa acção estruturam
e estabelecem padrões culturais. As culturas infantis constituem, com efeito, o mais
importante aspecto na diferenciação da infância (SARMENTO, 2007, p. 36)

Dentre os grupos sociais, as crianças seriam as mais afetadas pelas crises humanitárias
e desastres ambientais, especialmente porque não se produzem estatísticas sobre o impacto das
crises sobre os membros dessa categoria. Sarmento (2007) fala de diversas formas de
invisibilidade que afetam a infância, dentre elas a invisibilidade histórica, que resulta na
ausência das crianças em documentos e registros, estando presentes apenas nas memórias ou
relatos autobiográficos dos adultos, com um viés de nostalgia; e a invisibilidade cívica, que
resulta da naturalização dos processos de exclusão e a separação da criança do espaço público.
A infância, enquanto categoria social e geracional, seria vítima de um processo de
exclusão, estando marginalizada no presente, ao ser considerada apenas em sua potencialidade,
em seu devir, sendo invisibilizada e privada do seu direito de participação. O acesso à cidadania
tem como condição a escolarização e a chegada à vida adulta (SARMENTO, 2007).
Se considerarmos a relação entre crianças e adultos enquanto uma relação entre grupos
com motivações e objetivos distintos, circunscrita em determinadas condições sociais e
históricas, a Teoria das Representações Sociais (MOSCOVICI, 2012) pode nos oferecer
subsídios teórico-metodológicos para investigar os fundamentos simbólicos dessa relação. As
representações sociais são uma modalidade de conhecimento específico, também denominado
de senso comum, que orienta as condutas dos sujeitos na vida cotidiana.
19

A relação que se estabelece entre os grupos tem como base as representações construídas
acerca da realidade e dos objetos sociais. Dessa forma, não existe uma realidade objetiva a
priori, mas uma realidade social compartilhada, construída por grupos que convergem em torno
de um sistema de valores, crenças e ideologias. No caso das relações intergeracionais, “[...] as
representações sociais amplamente compartilhadas sobre a infância nos ajudam a compreender
as relações e interações sociais que estabelecemos em cada sociedade com o subconjunto da
população que denominamos infância” (CASAS, 2006, p. 29, tradução nossa). As
representações concorrem com as imagens sociais da infância identificadas pelos sociólogos e
historiadores.
Ao investigar as imagens e representações sociais na produção cultural sobre a infância
ao longo do século XX, na literatura, arte, cinema e televisão, Chombart de Lauwe (1986)
identificou elementos que compõem uma espécie de núcleo da representação. Esse núcleo
consiste em um par de elementos valorizados, porém opostos: a imagem da criança autêntica,
positiva, em oposição a uma imagem negativa da sociedade engessada, restritiva. O que
separaria a criança do adulto é a interiorização das normas e valores da sociedade, por meio da
escolarização, tendo como consequência a perda de seu potencial imaginativo.
Para Sarmento (2007), o conhecimento científico produzido sobre a infância, mais do
que esclarecer, tem ocultado os saberes das próprias crianças. Ao se referir a esse conhecimento,
o autor utiliza a metáfora do candeeiro, de Walter Benjamin, que se refere à luz focada em
determinado ponto, que produz sombras em todo o entorno (numa dinâmica de iluminação-
ocultação). A Psicologia seria uma das principais ciências a produzir esse efeito, ao propor
modelos estruturados de desenvolvimento da criança, tendo o adulto saudável como ápice do
desenvolvimento.
É necessária uma ruptura epistemológica com a ciência adultocentrada, uma inversão
de perspectivas, que possa considerar a infância na forma como ela é concebida pelos seus
próprios sujeitos, as crianças. Essa ruptura exige uma mudança do paradigma da proteção,
construído ao longo do último século, para a participação (SOARES, 2005) de forma que os
direitos das crianças sejam entendidos a partir daquilo que elas são capazes de fazer, não daquilo
que se espera que elas aprendam. Assim, as culturas infantis podem ser reconhecidas enquanto
conhecimento legítimo, produzido na interação entre pares de uma categoria social.
Se pensarmos um fenômeno como a cidadania da infância, a questão é ainda mais
complexa. A concepção clássica de cidadania, atribuída a Marshall (1967), diz respeito ao
conjunto de direitos, civis, sociais e políticos, alcançados pelos trabalhadores por meio de lutas
20

e movimentos sociais organizados. A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH),


proclamada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1948, seria o marco da luta pelo
reconhecimento de direitos. No entanto, essa concepção clássica, propõe os direitos da criança
como forma de garantir ao adulto as condições necessárias para se tornar um bom cidadão,
delegando à escola a responsabilidade de preparar esses cidadãos.
[...] Assiste-se, desde então, a uma inversão de perspectivas: se antes a cidadania só
era outorgada aos que davam garantias suficientes de civismo, agora é preciso
preparar para ser bons cidadãos todos aqueles que se tornarão “simples cidadãos” sem
nada terem pedido. Quanto mais o círculo se amplia às classes populares e às pessoas
nascidas em outros lugares, aparentemente menos se confia em sua educação familiar.
Daí o desafio de instrução e de socialização que ultrapassa a família e está na origem
da educação cívica conferida à escola (PERRENOUD, 2005, p. 21).

Nas sociedades democráticas, podemos afirmar que a cidadania se inscreve num sistema
mais amplo de crenças e valores, fundado em condições de suposta igualdade entre os seres
humanos, e num conjunto de direitos universais e inalienáveis. Moscovici (1992) considera a
redescoberta dos Direitos Humanos a grande revolução do século XX, que permitiu a ascensão
da democracia como valor e sua constituição enquanto sistema de crenças ou instituição
simbólica. Esse sistema de crenças e valores constitui a base das relações entre as nações, mas
como a igualdade de direitos é representada pelos indivíduos nas interações cotidianas? De que
forma a cidadania é experimentada ou vivenciada no cotidiano?
A noção de cidadania infantil requer que a cidadania seja considerada enquanto um
processo ao longo da vida (JANS, 2004), não apenas um estatuto ou conjunto de direitos e
deveres. O conceito emerge na Sociologia da Infância como forma de representar a mudança
na concepção da infância, enquanto fenômeno histórico, que se desenvolve no bojo das relações
intergeracionais e como possibilidade de exercício dos direitos nos mundos de vida
(SARMENTO, 2007). O objetivo é o reconhecimento da agência e do protagonismo das
crianças, para além dos direitos e instrumentos legais, na construção de espaços participativos
e de relações menos hierarquizadas.
A Teoria das Representações Sociais, proposta por Moscovici (2012) na década de 1960
como forma de superar a dicotomia entre sujeito e objeto presente na Psicologia Social, reafirma
a importância do senso comum. O autor investigou a maneira pela qual o conhecimento
reificado é apropriado pelos grupos e integrado ao pensamento social. Nessa transição de uma
modalidade de conhecimento para outra, a comunicação desempenha um papel fundamental,
pois é na interação cotidiana que as representações são construídas e compartilhadas.
Considerando o processo de invisibilização que caracteriza a infância, enquanto
categoria social, podemos afirmar que a cidadania infantil tem sido apropriada e representada
21

pelos grupos que desenvolvem práticas na atuação com as crianças e as práticas desenvolvidas
pelas próprias crianças como forma de resistência à dominação. Nesse sentido, destacamos a
importância da participação infantil (BROSTOLIN, 2021) como principal forma de
concretização e exercício da cidadania.
Embora o direito à participação esteja presente na Convenção sobre os Direitos da
Criança (ONU, 1989) e no Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), integrado
ao direito de livre associação, pouco se tem avançado para a sua efetivação, tendo em vista que
o espaço público ainda é ocupado eminentemente pelos adultos.
Considerando o exposto, o objetivo deste trabalho foi investigar a cidadania infantil
enquanto possível fenômeno de representação social para crianças e adultos, por meio da
participação cidadã e da experiência/vivência em projetos de formação. A pesquisa se baseou
em dois estudos empíricos, um estudo etnográfico no contexto associativo francês, e um estudo
exploratório com um coletivo de professoras, surgido da parceria entre a Universidade e um
grupo de professoras do município de Cuiabá, por meio de um projeto de extensão de formação
docente.
Com esses estudos, discutimos a possibilidade de construção da cidadania infantil como
representação social, numa articulação da Teoria das Representações Sociais e dos Estudos
Sociais da Infância. Para tal, nos propusemos a responder as seguintes questões de estudo:
considerando o papel da escola na socialização e desenvolvimento da cidadania, quais
significados são atribuídos à cidadania infantil no âmbito escolar? Como as professoras de
educação infantil representam a relação entre cidadania e a participação infantil? Quais
condições psicossociais favorecem a participação e o engajamento de crianças e adultos em
atividades de educação e formação cidadã? Nossas questões de estudo deram origem aos
seguintes objetivos, como forma de orientar e sistematizar o trabalho de coleta e análise dos
dados a respeito do possível impacto da formação e da experiência/vivência da participação na
construção de elementos simbólicos relacionados à cidadania infantil.
1. Analisar o conteúdo e as significações atribuídas por crianças à participação e
cidadania infantil, no âmbito do projeto de formação cidadã P’tits Volontaires, realizado em
parceria com a Prefeitura do 4ème Arrondissement de Paris; e de professoras de Educação
Infantil, membros do coletivo Cribiás, no município de Cuiabá - MT; 2. Identificar e
caracterizar os tipos de participação infantil no âmbito das ações desenvolvidas pelas
professoras do Cribiás, crianças sabidas, e nas formações do projeto P’tits Volontaires; 3.
Descrever as condições psicossociais que favorecem ou dificultam o engajamento de crianças
22

em programas e ações de educação para a cidadania, no discurso dos participantes, de forma a


pensar alternativas para incentivar o engajamento.
O trabalho está organizado da seguinte forma: no primeiro capítulo apresentamos uma
revisão de literatura sobre as pesquisas em cidadania e participação infantil, a partir da busca
nas principais bases e repositório acadêmicos. Encontramos uma diversidade de trabalhos sobre
o tema da participação e protagonismo da criança e do adolescente, mas a cidadania infantil
ainda não compartilha do mesmo interesse de pesquisa, principalmente no âmbito da Teoria das
Representações Sociais. Dividimos os achados em pesquisas sobre crianças e pesquisas com
crianças, no sentido de que o uso de metodologias participativas na pesquisa pode constituir um
espaço de envolvimento dos sujeitos e de respeito ao direito de participação.
Baseado em nossa revisão de literatura, entendemos que há uma pluralidade de sentidos
atribuídos à cidadania, mas a noção presente nos trabalhos que utilizam a TRS como
fundamento ainda se apresenta como um conjunto de direitos e deveres, percebidos e
representados pelos sujeitos como objeto abstrato, alheio à vida cotidiana e as práticas sociais.
Não se constata uma relação direta entre a cidadania, que se concretiza em ações como o voto,
e a participação política, com as práticas de formação realizadas no âmbito escolar e fora da
escola, ainda que a cidadania seja identificada pela Base Nacional Comum Curricular
(BRASIL, 2018) como uma competência transversal.
No capítulo sobre Democracia, Cidadania e Participação Social, apresentamos um breve
apanhado histórico da constituição da cidadania e das formas de participação na sociedade
brasileira, entre avanços e retrocessos que culminaram na institucionalização da participação
social na década de 1990, a partir da redemocratização e da promulgação da Constituição
Federal de 1988 e o possível esgotamento dos dispositivos participativos, com o surgimento de
novos atores e movimentos sociais, sem suposta vinculação partidária, que retomam as ideias
autonomistas e não correspondem à definição clássica de movimento social.
Trazemos o referencial da Sociologia da Infância para fundamentar o reconhecimento
da criança enquanto sujeito ativo na construção da realidade social e a ampliação da noção de
cidadania enquanto processo ao longo da vida, que envolve a mudança das relações entre
crianças e adultos, na busca por condições sociais menos desiguais. Apresentamos dois modelos
de avaliação da participação infantil, a escada da participação de Hart (1992) e o modelo
qualitativo de Trilla e Novella (2001), para embasar nossa investigação sobre as experiências
de participação e formação no contexto formal e não-formal e os impactos para o exercício da
cidadania de crianças.
23

No capítulo sobre a Teoria das Representações Sociais, resgatamos a noção de sistemas


de representação social presente nos estudos de Codol (1974) e Campos (2021) como forma de
ampliação do olhar sobre os objetos sociais que, por não se encontrarem isolados na realidade,
necessitam ser investigados numa perspectiva holística (GARNIER, 2015), em contraposição
aos estudos de representações sociais “individualizadas”. Partilhamos da proposta de Jodelet
(2018) do estudo dos fenômenos representativos, que visa integrar à pesquisa em representações
sociais as diferentes formas simbólicas: conhecimentos, atitudes e imagens; e da perspectiva
dialógica de Marková (2018) na compreensão das relações entre os grupos sociais na construção
de uma realidade compartilhada.
Sarmento (2012) afirma que é na relação entre crianças e adultos que se constroem as
possibilidades de exercício da cidadania infantil. Em nosso estudo, a cidadania infantil se
aproxima da noção de projeto representacional, da forma como entendem Bauer e Gaskell
(2008), um futuro antecipado, comum, que orienta a relação entre os sujeitos da relação na qual
a representação é construída e comunicada. Para esses autores, o sujeito de uma representação
social é sempre um “nós”, na medida em que a comunicação é um processo dialógico.
Apresentamos os resultados de dois estudos empíricos, realizados em contextos sociais
distintos, um projeto de formação cidadã com crianças em Paris e um projeto de formação
docente tornado coletivo de professoras de educação infantil num município brasileiro.
Buscamos as possibilidades de constituição da cidadania infantil como um fenômeno de
representação social, para crianças e adultos, a partir do discurso e das práticas dos sujeitos em
ambientes de formação e fomento à participação.
A despeito dos limites da tese, construída em meio à pandemia de covid-19 que assolou
o mundo nos últimos dois anos, consideramos necessário investigar a cidadania infantil a partir
das relações intergeracionais, na interação dialógica entre crianças e adultos, com base no
reconhecimento da capacidade de ambos como sujeitos de transformação social. É nessas
relações que acreditamos ser possível a cidadania se constituir enquanto fenômeno e objeto de
representação social.
24

2. Cidadania e Participação Infantil

Neste capítulo apresentamos o contexto de popularização dos direitos da criança, mais


especificamente do direito à participação, no final da década de 1980, e a revisão de literatura
acerca dos trabalhos em Representações Sociais que abordam o tema da cidadania e da
participação infantil. Observamos um crescimento nos estudos sobre a infância nos últimos 20
anos, como possível reflexo da discussão a respeito dos direitos da criança e do adolescente,
devido a promulgação de leis e normativas no âmbito nacional e internacional. Nesse mesmo
período, Oliveira e Corsetti (2018) afirmam ter havido uma retomada do discurso sobre a
cidadania no Brasil, com o fim da ditadura militar e a redemocratização.
É importante definir, logo de princípio, que não se pode falar em infância como um
fenômeno universal, pois enquanto categoria social, ela está condicionada às condições sociais
e econômicas onde ocorre. Qvortrup (2014, p. 25) fala sobre a ambiguidade e os diferentes usos
dos termos criança, crianças e infância, empreendendo um esforço para esclarecer o que o
campo dos Estudos Sociais da Infância entende por essas categorias.
[...] por ‘criança’ aqui se entende o sentido psicológico (e biológico) da criança
individual, definido em termos de disposições psicológicas (e biológicas), cujos
valores se modificam ao longo da infância individual da criança. Essa perspectiva –
infância pertencendo “à criança” –significa um período específico ou estágio de seu
curso de vida. Por ‘crianças’ entende-se uma pluralidade de crianças como um grupo,
ou uma coletividade, mais ou menos coesa, incluindo o conjunto estatístico ‘crianças’.
Por fim, a ‘infância’ é definida em termos sociológicos como uma categoria
permanente, isto é, como um segmento estrutural, que é o resultado da ação recíproca
entre parâmetros sociais – econômicos, políticos, sociais, tecnológicos, culturais, etc.
Ao contrário da infância individual, a infância sociológica é muito mais suscetível a
mudanças históricas, enquanto a dinâmica da infância individual pode ser encontrada
no desenvolvimento da personalidade.

O autor fala sobre um movimento de privatização da infância, acompanhado da


privatização dos meios de produção e das instituições, como consequência de um processo
histórico que vai na contramão da democratização das sociedades, não apenas no que diz
respeito à infância, mas na dicotomia público/privado que compreende a abertura do espaço
público e ampliação das liberdades individuais, com a conquista de direitos civis, sociais e
políticos, que não se reflete na ampliação dos espaços de participação das crianças.
Com base em autores dos Estudos Sociais da Infância (JANS, 2004; QVORTRUP,
2011; 2014; SARMENTO, 2007; 2012; SARMENTO; FERNANDES; TOMÁS, 2007;
SOARES, 2005; TOMÁS, 2007; BARBOSA, 2020) é possível afirmar que a construção da
infância enquanto fenômeno social com características próprias é um fato relativamente recente,
25

projeto de um campo de estudos que almeja dar visibilidade à essa parcela da população,
equiparando-a a outras categorias minoritárias.
Até o final do século XIX, a criança era considerada um adulto em miniatura e
propriedade privada dos pais, sendo submetida ao trabalho nas mesmas condições precárias que
os adultos, não havendo uma preocupação da sociedade com o cuidado ou a preservação dos
seus direitos. A criação ou invenção da infância durante a modernidade foi documentada pelo
historiador Philippe Ariès (1981), considerado um dos autores fundamentais para a
compreensão das mudanças na concepção da infância ocorridas a partir do século XVIII.
Para Qvortrup (2014, p. 29), “[...] um dos paradoxos do trabalho de Ariès é que a
ausência de consciência das crianças as tornava muito mais visíveis quando a infância não
existia”, no sentido de que na pré-modernidade, as crianças ocupavam os espaços públicos de
forma indiscriminada, presenciando a vida pública na companhia do adulto. Ariès (1981)
denomina o fenômeno de "sentimento da infância”, na medida em que passa a haver uma
particularização e moralização dos costumes, espaços e vestimentas direcionados à criança.
Jans (2004) afirma que a escolarização compulsória e a proibição do trabalho infantil
são os principais marcos na separação entre os espaços da criança e do adulto, que tiveram
como consequência a ressignificação das relações intergeracionais e a construção da infância
enquanto categoria social. Ao sair do mercado de trabalho, a criança passa a ser “cultivada” e
protegida pelo sistema educacional, tendo garantido na escola o espaço propício para o seu
desenvolvimento. A criança torna-se então um objeto de estudo das ciências sociais em seu
ofício de aluno e o processo de socialização passa a ser a função principal da escola.
A Convenção sobre os Direitos da Criança - CDC, assinada na Assembleia Geral da
Organização das Nações Unidas (ONU) em 20 de novembro de 1989, é um marco na luta pelos
direitos da criança e do adolescente, uma consequência direta da promulgação da Declaração
Universal dos Direitos Humanos (DUDH) de 1948, que reconheceu a igualdade entre os seres
humanos como princípio social fundamental. A CDC é composta por 54 artigos, que versam
sobre os direitos específicos da criança, assim considerado todo ser humano de zero aos dezoito
anos de idade, e foi ratificada por 196 países, inclusive o Brasil, onde entrou em vigor no ano
seguinte, com a promulgação do Decreto nº 99.710, de 21 de novembro de 1990 (BRASIL,
1990)1.

1
No Brasil, a CDC resultou na construção e promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei nº
8.069, de 13 de julho de 1990 (BRASIL, 1990). Segundo o Art. 2º do ECA “considera-se criança, para os efeitos
desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade”
(BRASIL, 1990).
26

O que se observou a partir da assinatura da CDC foi a criação e a ampliação de


dispositivos de participação e controle social voltados para a garantia de direitos das crianças e
adolescentes, condizentes com a realidade dos países signatários. Segundo Qvortrup (2011), em
suas “Nove teses sobre a infância como fenômeno social”2, a convenção permitiu avançar em
direção à consolidação da infância enquanto categoria social, objeto de estudo e de produção
de conhecimento.
Para Soares (2005), as disposições da CDC podem ser agrupadas em três grandes
categorias: 1. direitos de provisão, da qual fazem parte os direitos sociais fundamentais, como
o direito à saúde, à vida e à educação; 2. direitos de proteção, que agrupam o direito da criança
de viver em um ambiente saudável, resguardada de violência e discriminação; e 3. direitos de
participação, que são expressos pelos direitos civis e políticos, incluindo o acesso à informação
e a liberdade de expressão.
Na opinião da autora, predomina ainda hoje um discurso ambivalente sobre a infância,
consequência do paradigma protecionista construído ao longo do século anterior. A criança é
considerada ao mesmo tempo sujeito e/ou beneficiária de direitos, ou seja, há um impasse sobre
o reconhecimento de sua posição enquanto agente social, que deve ser ouvido, principalmente
nos assuntos que lhe afetam; e enquanto sujeito que necessita de proteção por parte do adulto e
do restante da sociedade.
[...] por um lado, a defesa de uma perspectiva da criança, como dependente da
protecção do adulto e incapaz de assumir responsabilidades, por outro lado, uma
perspectiva da criança como sujeito de direitos civis básicos, incluindo aí o direito de
participação nas decisões que afectam as suas vidas (SOARES, 2005, p. 8).

Essa ambivalência explicaria por que há uma prevalência de instituições na promoção e


garantia do direito à proteção, enquanto ainda se buscam formas de implementação do direito
à participação. O paradigma de proteção vem sendo construído legalmente desde a publicação
da Declaração dos Direitos da Criança, em 1924, e as mudanças instituídas pela CDC ainda não
obtiveram sucesso em garantir a participação de crianças e adolescentes nas decisões que os
afetam. Como avaliado por Landsdown (1999; 2001), o compromisso dos Estados com a
convenção não foi suficiente para engendrar práticas e ações concretas de mudança.

2 Artigo publicado inicialmente em 1993, como parte da revista Eurosocial Report Childhood as a Social
Phenomenon: Lessons from a International Project, resultado de um grande projeto de pesquisa internacional a
respeito da situação da infância ao redor do mundo.
27

Proteção e participação não são ideias opostas (BROSTOLIN, 2021), elas podem ser
complementares, como trata o Artigo 12 da CDC3, sendo necessário avançar no reconhecimento
do potencial da criança enquanto ator social competente, de acordo com sua idade e maturidade.
Para Sarmento (2012, p. 45, grifo do autor), a “[...] criança é tida como um cidadão sob
tutela, ou um ser humano em vias de se tornar cidadão”, e, embora nos últimos 30 anos a
infância passe a ser valorizada enquanto categoria social, ao menos no âmbito acadêmico, o
fato de ser um sujeito em formação, tornaria a criança incapaz de opinar quanto aos fatores que
têm impacto em sua vida, cabendo ao adulto decidir o que é melhor para ambos. Landsdown
(2001) aponta como obstáculos para implementação da participação, a crença de que a criança
carece de experiência para participar da vida em comunidade, bem como necessita aprender a
ter responsabilidade, antes de exercer os seus direitos.
Se consideramos o adulto como modelo do desenvolvimento a ser alcançado, a
constituição da infância se dá a partir de um princípio de negatividade,
[...] um conjunto de interdições e prescrições que negam ações, capacidades ou
poderes às crianças: elas não votam, não podem ser eleitas, não sabem e, por isso, têm
de estudar; elas não se casam, não pagam impostos, não trabalham, não tomam
decisões relevantes e não são puníveis por crimes (DELGADO; MÜLLER, 2018, p.
24).

Qvortrup (2011) se refere à ausência de estudos até a década de 1990 que mostrem a
repercussão dos eventos sociais, econômicos e políticos que afetam o cenário mundial sobre as
crianças. Embora o impacto de fenômenos como a globalização e o crescente individualismo
da sociedade capitalista sejam sentidos na mesma medida por adultos e crianças, o autor afirma
que os últimos, ao serem negligenciados pelos estudos científicos, têm sido invisibilizados e
marginalizados. Na tese de número 9 sobre a infância enquanto fenômeno social, o autor propõe
considerar a infância como categoria social minoritária, sujeita à dominação dos adultos. Essa
afirmativa significa o reconhecimento da desigualdade nas relações intergeracionais,
caracterizadas pelo paternalismo, atitude que pressupõe a superioridade do adulto sobre a
criança, na condição de guardião ou protetor.
Independente do quantitativo de crianças e jovens que compõem a população de um
país, a infância permaneceria enquanto categoria social. No Brasil, por exemplo, os dados do

3
O Artigo 12 da Convenção sobre os Direitos da Criança estabelece:
1.Os Estados Partes devem assegurar à criança que é capaz de formular seus próprios pontos de vista o direito de
expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados a ela, e tais opiniões devem ser
consideradas, em função da idade e da maturidade da criança.
2.Para tanto, a criança deve ter a oportunidade de ser ouvida em todos os processos judiciais ou administrativos
que a afetem, seja diretamente, seja por intermédio de um representante ou de um órgão apropriado, em
conformidade com as regras processuais da legislação nacional (ONU, 1989).
28

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2021) mostram uma reconfiguração da pirâmide


etária, com uma tendência de envelhecimento da população e a diminuição da taxa de
natalidade, o que significa que, em breve, o número de crianças pode ser menor do que as
demais categorias geracionais. No entanto, a infância deve ser considerada não apenas como
período de transição, mas como uma categoria social estrutural, com necessidades específicas
de desenvolvimento e socialização (QVORTRUP, 2011).
Jans (2004) se refere à necessidade de construção de um conceito de cidadania
apropriado à infância, que se baseie não somente nos direitos e deveres, mas nas potencialidades
da criança, tais como a capacidade de associação entre pares e a elaboração do mundo a partir
do brinquedo e do brincar. Ao tratar da concepção de cidadania infantil que resulta da CDC,
Sarmento (2012, p. 48) salienta o paradoxo estabelecido no discurso oficial:
[...] fala-se da cidadania da infância sem se levar verdadeiramente a sério a ideia de
que toda a cidadania implica participação e esta é a acção influente na sociedade e, no
mesmo movimento, obscurecem-se as potencialidades das crianças como seres sociais
plenos, perante quem se assumem obrigações e se aceita a autonomia de pensamento
e ação.

Falar em cidadania da infância é ressignificar a lógica de um conceito, que desde sua


concepção clássica, vem sendo tratada a partir da perspectiva adultocêntrica, tendo como única
referência o homem adulto. Charlot (2014, p. 121) afirma que “[...] a cidadania é definida pelo
respeito ao interesse geral, determinado pelo sufrágio do povo, sendo este esclarecido pela
razão. Portanto, a cidadania requer a instrução do povo, em escolas públicas”. Segundo o autor,
a tendência de responsabilizar a escola pela solução dos problemas sociais acompanha o debate
público e a criação das políticas educacionais. Sempre que um novo problema social surge, a
escola e as crianças são vistas como a esperança para gerar resultados a médio e longo prazo.
O direito da criança à educação se dá, então, pela importância de educar os futuros
cidadãos, os adultos que irão decidir os rumos da comunidade. Essa perspectiva fica clara nos
estudos clássicos de Marshall (1967, p. 73) sobre o impacto da cidadania e dos direitos sociais
na sociedade capitalista do início do século XX.
[...] as crianças, por definição, não podem ser cidadãos. Mas tal afirmativa é enganosa.
A educação das crianças está diretamente relacionada com a cidadania, e, quando o
Estado garante que todas as crianças serão educadas, este tem em mente sem sombra
de dúvida, as exigências e a natureza da cidadania. Está tentando estimular o
desenvolvimento de cidadãos em formação. O direito à educação é um direito social
de cidadania genuíno porque o objetivo da educação durante a infância é moldar o
adulto em perspectiva. Basicamente, deveria ser considerado não como o direito da
criança frequentar a escola, mas como o direito do cidadão adulto ter sido educado.

Por meio do processo de socialização, caberia à escola transmitir os valores necessários


às crianças e jovens para o futuro exercício da cidadania. No entanto, nesse processo de
29

aprendizado, as crianças não podem ser consideradas como sujeitos passivos, sendo necessário
reconhecer sua capacidade de agência e resistência na apropriação dos valores e normas
inculcados pelas instituições (SARMENTO et al, 2007).
Se considerarmos a criança enquanto ator social e a cidadania enquanto processo
formativo contínuo, numa perspectiva da educação ao longo da vida, o que se estabelece é uma
relação de interdependência entre a criança e o adulto. É nesse contexto de conflito
intergeracional que se dá a interação entre crianças e adultos, e onde se encontram as
possibilidades de construção da cidadania infantil.
[...] a criança-cidadã, nas formas múltiplas, fragmentárias e difusas, em que se
exprime a cidadania infantil, não o poderá ser sozinha. Depende do adulto para a
construção do universo de referências, de direitos e de condições sociais em que pode
ocorrer a cidadania plena (SARMENTO, 2012, p. 49) .

No aprendizado contínuo da cidadania, adultos e crianças estão sujeitos aos mesmos


desafios. Esse aprendizado perpassa pela construção dos elementos necessários para se pensar
a cidadania de uma forma geral: um conjunto de direitos e responsabilidades; a identidade,
associada ao pertencimento local e nacional; e a possibilidade de participação ativa na
comunidade (DELANTY apud JANS, 2004). Mais do que a internalização de valores e normas
sociais, o que os autores propõe é uma ressignificação da noção de cidadania, em sua
multiplicidade de contextos e sentidos, para que possa abarcar tanto adultos quanto crianças na
totalidade da vida social.
[...] Cidadania como aprendizagem coletiva que se dá através da experiência e
participação em múltiplos espaços e tempos, não sendo, portanto, uma vivência
singular nem um dado adquirido a partir do nascimento ou do local onde se vive.
Cidadania assente na análise e questionamento da realidade e que supõe um
posicionamento político, não sendo, pois, um conceito neutro ou inócuo que procura
ocultar as relações de poder. Cidadania orientada para a reivindicação de direitos, não
sendo, por isso, uma forma de garantir cidadãos “mais civilizados” e integrados numa
sociedade injusta. Cidadania que vê na diversidade (de condições, de ideias, de
posicionamentos) material bruto para trabalhar e não um obstáculo a abater. Cidadania
que busca a autonomia e a liberdade, não sendo, portanto, uma competência adequada
para servir o mercado de trabalho (BARBOSA, 2020, p. 84).

Ainda que a criança não tenha direitos políticos, isso não a impediria de participar da
tomada de decisão na comunidade, principalmente sobre os assuntos que lhe afetam
cotidianamente. Trilla e Novella (2001) citam o exemplo das crianças do Conselho Infantil de
Cardedeu4, que se organizaram para solicitar a mudança do horário de irrigação de um parque
próximo à escola, pois devido as máquinas serem ligadas todos os dias no horário em que saíam
da escola, o parque estava sempre encharcado, impedindo-as de brincar após as aulas.

4
Pequeno povoado na Espanha, próximo à Barcelona, com uma população de cerca de 11 mil habitantes.
30

O relatório publicado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância - UNICEF para
celebrar os 30 anos de promulgação da CDC (UNICEF, 2019) fala sobre os avanços produzidos
pelo reconhecimento dos direitos das crianças no Brasil, inclusive de participação, embora estes
ainda sejam insuficientes, devido ao alto número de crianças fora da escola, os índices de
trabalho infantil e o aumento da violência que acomete crianças e jovens.
Oliveira e Reis (2013) citam o exemplo da cidade de Barra Mansa, que no período de
1997 a 2000 manteve um conselho orçamentário participativo que envolvia crianças na
deliberação e alocação dos recursos destinados a ações para esse público como um exemplo de
pioneirismo no país. As autoras também citam o Orçamento Participativo Criança, realizado
em São Paulo nos anos de 2003 e 2004, como uma das iniciativas que “[...] mudam o foco sobre
a criança, considerando-a cidadã capaz de participar da vida política da sociedade” (p. 85). Para
elas, há uma necessidade de promoção da participação nos diferentes espaços ocupados por
crianças e jovens, como forma de exercício e vivência da cidadania.
[...] Promover a participação na sociedade em geral, e nas escolas em específico, é
experimentar um sistema complexo de interações que se configura em torno da
iniciativa, das responsabilidades compartilhadas, da distribuição da informação e,
principalmente, do compromisso que grupos de pessoas, crianças e adultos, podem
assumir durante a condução do processo decisório na gestão de atividades em aulas e
em projetos (OLIVEIRA; REIS, 2013, p. 86).

Para Soares (2005), vivemos hoje uma transição entre o paradigma da proteção e o da
participação. O reconhecimento do direito das crianças à participação precisa se refletir na
criação de espaços e práticas que garantam sua efetividade. A autora salienta que a dificuldade
na implementação da participação infantil é consequência do discurso paternalista presente nas
políticas de defesa dos direitos da criança. Para a autora, fala-se em dar voz às crianças,
reforçando o direito delas de se expressarem e serem ouvidas, mas é indispensável fomentar a
autonomia e o protagonismo infantil.
A defesa de um paradigma que associe direitos de protecção, provisão e
participação de uma forma interdependente, ou seja, que atenda à indispensabilidade
de considerar que a criança é um sujeito de direitos, que para além da protecção,
necessita também de margens de acção e intervenção no seu quotidiano, é a defesa
de um paradigma impulsionador de uma cultura de respeito pela criança cidadã: de
respeito pelas suas vulnerabilidades, mas de respeito também pelas suas
competências (SOARES, 2005, p.9).

No Brasil, a Constituição Federal de 1988 recebeu a alcunha de Constituição Cidadã


por ter incluído em seu texto diversos dispositivos de participação social, resultado das lutas da
sociedade civil organizada em favor da redemocratização do país, nos anos de ditadura militar
(GOHN, 2019). O texto do Artigo nº. 205 da Constituição Federal (BRASIL, 1988) deixa
31

transparecer a concepção de cidadania enquanto produto da educação, responsabilidade do


Estado e da família, com a participação de outras instituições da sociedade civil.
Art. 205. a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida
e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da
pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), promulgado em 1990, é o principal


instrumento legal dos direitos da criança e do adolescente no país, que deu origem aos órgãos
responsáveis por assegurar os direitos, e formular e acompanhar a execução de políticas
públicas voltadas para a infância e a adolescência, como os Conselhos Tutelares e o Conselho
Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA). A articulação das
organizações voltadas para os direitos das crianças e adolescentes em um Sistema de Garantia
de Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA), que têm como principais eixos: defesa dos
direitos humanos; promoção dos direitos humanos; e controle da efetivação dos direitos
humanos, é considerado um dos grandes avanços na efetivação de uma política de proteção
integral nacional.
No que diz respeito ao direito da criança e do adolescente à participação social e política,
este é expresso no Artigo n.º 16 do ECA como uma consequência do direito à liberdade
(BRASIL, 1990, grifo nosso), ainda que o documento não especifique as formas em que a
participação pode ocorrer.
Art. 16. O direito à liberdade compreende os seguintes aspectos:
I - ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários, ressalvadas as
restrições legais;
II - opinião e expressão;
III - crença e culto religioso;
IV - brincar, praticar esportes e divertir-se;
V - participar da vida familiar e comunitária, sem discriminação;
VI - participar da vida política, na forma da lei;
VII - buscar refúgio, auxílio e orientação.

Segundo Gohn (2019), a participação tem figurado desde o final da década de 1980
como uma “medida de cidadania”, ao ser apontada como uma alternativa no combate à exclusão
social. A exclusão se define no binômio exclusão-inclusão (ou integração), ou seja, um grupo
social é considerado excluído frente à existência de grupos integrados ou incluídos. Assim,
quanto mais cidadãos têm acesso às instâncias democráticas de participação, maior seria a
integração e mais forte a democracia.
Embora o direito à participação seja garantido por lei, ainda não se observa no Brasil
uma equivalência em ações que promovam a participação de crianças e jovens em âmbito local.
O Plano Nacional dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes, com vigência de 2014 a
2024, avança no sentido do aumento da participação infantil, no entanto, este plano deveria se
32

converter em ações nos âmbitos municipais e estaduais, por meio de discussões em comissões
intersetoriais e a formulação de planos locais, tendo assegurada a participação efetiva de
crianças e adolescentes nessas comissões, conforme o disposto na Resolução nº. 171 do
CONANDA, de 4 de dezembro de 2014.
Em uma análise das reformas educacionais ocorridas no Brasil desde a promulgação da
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) de 1996, Silva (2018) afirma que o
papel da escola na formação para o exercício da cidadania, tem tomado uma dimensão política
e social no país. A cidadania deveria estar integrada ao currículo, como competência transversal
a ser desenvolvida na educação básica, com base no reconhecimento dos direitos das crianças
e adolescentes. Caberia à escola conscientizar os educandos sobre o papel dos cidadãos na
superação das desigualdades sociais, não apenas por meio do voto, mas pela participação na
vida democrática.
Gohn (2010) se refere à mesma LDB de 1996 como o instrumento legal que abriu
caminho para o reconhecimento da educação não-formal e seus processos educativos devido à
definição ampla de educação apresentada no art. 1º “[...] processos formativos que se
desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino
e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações
culturais” (BRASIL, 1996).
A autora afirma que a educação não-formal “[...] capacita os indivíduos a se tornarem
cidadãos do mundo, no mundo. Sua finalidade é abrir janelas de conhecimento sobre o mundo
que circunda os indivíduos e suas relações sociais” (GOHN, 2010, p.19) devido à flexibilidade
e independência que esta possui, comparada à estrutura rígida de currículo e conteúdo que é
característica da escolarização formal.
Trilla e Ganem (2008) advertem sobre confiar a responsabilidade de preparar os
cidadãos unicamente à escola, considerando as mudanças no âmbito familiar decorrentes da
divisão do trabalho e o recente enfraquecimento, principalmente da escola pública, devido à
falta de investimentos e de uma política nacional consolidada. Os autores propõem a
necessidade de um sistema educativo que integre as instâncias de educação informal, formal e
não-formal, de forma complementar, embora reconheçam que muitas vezes o que ocorre é uma
relação de substituição, onde as Organizações Não-governamentais (ONGs) e os Projetos
Sociais atuam para suprir as lacunas do Estado. A criação de espaços de participação deveria
contemplar todos os indivíduos, independente de status ou classe social. No entanto, sabemos
que existem barreiras que inviabilizam o exercício da cidadania, principalmente das minorias.
33

O papel conferido à escola na formação de cidadãos, em oposição ao exercício da


cidadania, implica no conflito entre projetos pedagógicos de dominação e de emancipação da
infância, pois “a escola foi sendo historicamente tematizada pela modernidade como o lugar da
formação de jovens cidadãos, plenos de direitos, capacidade e competência, para competirem
e/ou se solidarizarem numa sociedade com igualdade de oportunidades” (SARMENTO, 2007,
p. 40). O discurso da igualdade de oportunidades, entretanto, não tem se refletido em igualdade
social, mas no consentimento implícito das desigualdades (CHARLOT, 2014).
Apesar das conquistas de direitos das minorias por meio da ação coletiva, a infância
ainda é a única categoria social privada de direitos políticos, apartada do mundo do adulto e da
esfera política sob a justificativa da proteção. Esse afastamento ocasiona uma invisibilidade do
impacto das decisões políticas sob as crianças e adolescentes, paralelo à exclusão que afeta esse
grupo geracional, consequência de fatores sociais e econômicos.
A concepção moderna de cidadania (também chamada de cidadania liberal) atribuída a
Marshall (1967), apresenta uma visão evolucionista da ampliação de direitos civis, políticos e
sociais, e recusa o estatuto político às crianças ao considerar apenas a relação de pertencimento
dos sujeitos a uma comunidade nacional e a titularidade de direitos como requisito para o ser
cidadão, e impõe às crianças a condição de futuros cidadãos, estabelecendo critérios de idade e
escolaridade para o usufruto de direitos plenos.
A cidadania da infância, neste contexto, assume um significado que ultrapassa as
concepções tradicionais, na medida em que implica o exercício de direitos nos mundos
de vida, sem obrigatoriamente estar subordinada aos dispositivos da democracia
representativa (ainda que estes não sejam, por esse facto, menos importantes). Tão
pouco, o reconhecimento dos direitos de cidadania – em que a dimensão da
participação das crianças assume um relevo crescente – implica, por esse facto, uma
restrição nas exigências de protecção das crianças pelos adultos, nomeadamente pelas
famílias e pelo Estado (SARMENTO, 2007, p. 42).

É justamente no equilíbrio entre proteção e participação que se encontram as


possibilidades de exercício da cidadania da infância, no respeito aos direitos das crianças e
adolescentes, e no reconhecimento de seu potencial enquanto sujeitos ativos. É necessário
superar a negatividade instituinte que caracterizou historicamente a infância, reconhecendo suas
expressões características, para além da ausência daquilo que caracteriza o adulto. Incentivar
metodologias participativas na pesquisa com crianças seria uma forma de combater essa
negatividade, mas isso requer criatividade para a construção de estratégias que permitam a
expressão da alteridade infantil, naquilo que é característico da criança, descontruindo as
imagens de ausência ainda compartilhadas na sociedade.
34

1.1 Panorama dos trabalhos acadêmicos no Brasil

Com o objetivo de investigar a forma como a cidadania e a participação infantil tem


sido abordadas na literatura acadêmica, bem como as experiências concretas de participação
relatadas por pesquisadores e educadores, fizemos uma revisão de literatura incluindo teses e
dissertações, além de artigos publicados em periódicos nacionais e internacionais, de forma a
identificar possíveis tendências na produção sobre o tema da cidadania e da participação
infantil. Esse levantamento foi iniciado em junho de 2020, sendo complementado e atualizado
ao longo da pesquisa.
Nosso recorte para a busca das teses e dissertações nas bases de dados nacionais seguiu
o critério de conveniência. Optamos pelos últimos 20 anos, período que compreende os
trabalhos do ano 2000 em diante, aproximadamente, com exceção de uma dissertação de
mestrado defendida no ano de 1998, incluída no levantamento devido à pertinência do tema e
da metodologia utilizada, capaz de dialogar com a pesquisa em representações sociais,
embasamento teórico que adotamos neste estudo.
As bases de dados consultadas foram o Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES e
a Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD), que têm por objetivo dar
visibilidade às pesquisas realizadas no âmbito da pós-graduação nacional, por meio da
integração com os sistemas de informação das instituições de ensino e pesquisa, tais como os
repositórios institucionais; a Scientific Electronic Library Online – SciELO, biblioteca digital
que reúne uma diversidade de periódicos científicos brasileiros e internacionais; e o Portal de
Periódicos da CAPES que permite às instituições que compõem a Comunidade Acadêmica
Federada (CAFe), o acesso remoto à plataforma e seu acervo digital.
Utilizamos os seguintes descritores para a busca nas plataformas: representações sociais,
cidadania infantil e participação infantil. Os termos foram combinados por meio do uso do
operador booleano AND e o filtro utilizado foi o de Educação como área de conhecimento.
No Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES, a busca utilizando simultaneamente os
descritores “representações sociais”, “cidadania infantil” e “participação infantil”, resultou num
total de 41 trabalhos, a maioria dos trabalhos anterior à implementação da Plataforma Sucupira,
o que dificultou o acesso aos arquivos digitalizados. Enquanto na Biblioteca Digital Brasileira
de Teses e Dissertações (BDTD), utilizando os mesmos descritores, encontramos apenas 4
trabalhos, o que pode indicar que os temas da cidadania e participação infantil não têm sido
comumente investigados a partir do referencial teórico das representações sociais.
35

Já a busca com os descritores “representações sociais” e “participação infantil”, resultou


num total de 30 trabalhos, que tratam principalmente de temas relacionados à educação infantil
e o contexto escolar, enquanto a busca por “representações sociais” e “cidadania infantil”
resultou em 18 trabalhos, que compreendem, em parte, os mesmos trabalhos identificados com
o tema da participação infantil. Efetuamos também a busca a partir das palavras-chaves de
forma isolada, cidadania infantil e participação infantil, como forma de identificar a
proeminência dos temas na literatura acadêmica. Foram encontrados 1155 trabalhos utilizando
o descritor participação infantil, 100 aplicando o filtro de educação como área do conhecimento,
enquanto o termo cidadania infantil resultou em 238 trabalhos, 16 quando utilizado o filtro de
educação como área do conhecimento.
A busca no Portal da Scielo pelo tema da participação infantil resultou em três artigos,
dois deles escritos pelos mesmos autores (PIRES; BRANCO, 2007; PIRES; BRANCO, 2008),
enquanto a busca pelo tema da cidadania infantil não resultou em nenhuma publicação. Já a
busca no Portal de Periódicos da CAPES, resultou em 3.621 resultados para o tema da
participação infantil, 242 aplicando o filtro da educação como tópico, o que inclui artigos e
capítulos de livros, enquanto o tema da cidadania infantil resultou num total de 1.746 trabalhos,
110 quando aplicado o filtro da educação. A busca simultânea pelos termos participação infantil
e representações sociais resultou em 770 resultados, 35 no tópico da educação, enquanto a busca
por cidadania infantil e representações sociais não teve resultados, bem como a busca
simultânea pelos três termos.
Os resultados da revisão de literatura sinalizam a fecundidade do tema da participação
infantil na literatura acadêmica nos últimos 20 anos, que compreende o relato de experiências
no contexto escolar ou associativo, consequência do amadurecimento das discussões sobre o
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) desde sua promulgação no início da década de
1990. No entanto, a noção de cidadania infantil, que vem sendo desenvolvida como alternativa
à concepção tradicional de cidadania (que considera crianças e adolescentes apenas como
futuros cidadãos), aparenta não ter a mesma repercussão.
O referencial dos Estudos Sociais da Infância, surgido nos contextos europeu e norte-
americano, tem aos poucos alcançado o meio acadêmico brasileiro, por meio de parcerias
institucionais, em especial com pesquisadores portugueses, como Manuel Sarmento, Natália
Fernandes Soares e Catarina Tomás (2007). Esse referencial teórico e seus desdobramentos
para a pesquisa em educação foram abordados na coletânea organizada por Rego (2018) e são
tratados na seção 2.4, dedicada à cidadania e participação infantil.
36

O critério que utilizamos inicialmente para a seleção dos trabalhos considerados nessa
pesquisa foi a presença de pelo menos dois dos descritores como palavras-chave na indexação
dos trabalhos. Identificamos em uma parcela dos trabalhos que termos como participação
infantil, protagonismo e agência da criança são utilizados como equivalentes, de acordo com a
concepção teórico metodológica adotada (MELO, 2010; PALOCCI, 2003; ISAIA, 2007). Esses
termos são empregados no sentido de reconhecer crianças e adolescentes enquanto agentes
sociais e sujeitos de direitos, como membros que colaboram na construção da cultura, inclusive
com direito à participação nas decisões coletivas.
Segundo Mayall (apud GAITÁN MUÑOZ, 2020, p. 100) há uma divergência no uso
dos termos ator e agente, “um ‘ator’ faz algo, talvez algo que surge de um desejo subjetivo,
enquanto o termo ‘agente’ sugere uma dimensão maior, ou seja, uma negociação com os outros,
que produz diferenças na relação, ou em decisões que possam resultar dessa interação”.
Pires e Branco (2007) argumentam que a opção pelo termo participação diz respeito à
alusão a um processo que ocorre no nível coletivo, enquanto o termo protagonismo correria o
risco de ser tomado no nível individual. Os autores também apontam duas vantagens no uso do
termo participação infantil, que dizem respeito ao seu uso cotidiano pelos sujeitos.
Apesar da polêmica em relação ao emprego dos termos participação e protagonismo,
parece haver duas vantagens óbvias quanto à utilização preferencial da palavra
participação. A primeira se refere à facilidade do emprego do vocábulo por crianças,
uma vez que, em uma primeira análise, a palavra participação é um termo de uso
corrente na língua portuguesa. A segunda vantagem se refere a maior facilidade para
explicar o que é participação (com o significado de protagonizar) para as crianças, no
contexto de programas ou campanhas que visem promover o seu envolvimento nos
processos decisórios para transformações sociais (PIRES; BRANCO, 2007, p. 312).

É justamente a inscrição do termo participação na linguagem de uso corrente o que


permitiria sua maior circulação nas interações e comunicações cotidianas, tornando-a um
possível objeto de representação, principalmente entre os grupos que tem por objetivo
implementar um processo democrático, seja no contexto da educação formal, em escolas e
creches, como no âmbito da educação não-formal, em projetos sociais e ONGs, o que nos
permitiria investigar esses processos por meio do referencial da Teoria das Representações
Sociais.
A partir da leitura e sistematização das teses e dissertações realizamos uma identificação
de áreas de convergência e divergência acerca da promoção da participação infantil e da
cidadania, o que nos permitiu construir a seguinte hipótese: a possibilidade de construção da
cidadania infantil enquanto fenômeno de representação social, ocorreria por meio da
experiência/vivência em ambientes de participação e formação. É na participação direta na
37

tomada de decisões que os sujeitos constroem um senso de pertencimento, bem como a


autonomia e a responsabilidade pelo coletivo. Esta premissa vai ao encontro dos estudos de
autoras como Gutierrez (2011) e Ortega Rubí (2019), que utilizaram a participação como via
de acesso à construção da cidadania e suas representações, no contexto latino-americano.
As teses e dissertações selecionadas para esta revisão de literatura compõem o quadro
apresentado no Apêndice A. Também foram incluídos artigos sobre a temática da participação
infantil e da cidadania, como parte do trabalho de revisão inerente à pesquisa, identificados pela
busca dos termos no Portal de Periódicos da CAPES.
A leitura atenta do material nos permitiu categorizar os trabalhos em duas classes:
pesquisas sobre a cidadania de crianças e pesquisas com crianças sobre a cidadania. Essa
distinção se baseia na inclusão ou não de crianças e adolescentes como participantes da
pesquisa, a partir do uso de metodologias participativas e da adesão aos pressupostos teórico-
epistemológicos que reconhecem o potencial de ação e de transformação social dessa
população, tais como a Sociologia da Infância e a Pedagogia da Participação. Embora saibamos
que existem diferenças significativas entre crianças e adolescentes, optamos por agrupar as
pesquisas com crianças e adolescentes, partindo da definição da CDC de criança como o ser
humano até os 18 anos de idade.
Destacamos a pequena parcela dos trabalhos que utiliza a TRS como fundamentação
teórica, aliada ao uso de metodologias participativas, como a pesquisa-ação ou a etnografia
(CARDOSO, 1998; PALOCCI, 2003; GOMES, 2014). Acreditamos que essa articulação
teórico-metodológica pode servir de base para os autores empreenderem uma intervenção nas
condições concretas, criando a partir da pesquisa espaços de formação e vivência da
participação.
Por se tratar de uma teoria do conhecimento e da mudança social, a Teoria das
Representações Sociais possibilitaria um olhar psicossocial (ABDALLA; VILLAS BÔAS,
2018) sobre os fenômenos da cidadania e da participação, no sentido de compreender como se
dá a produção histórica e coletiva dos significados que orientam a comunicação e a ação dos
indivíduos no cotidiano, bem como as crenças e os valores que fundamentam a ação dos grupos
que atuam a favor da educação e dos direitos das crianças e adolescentes. A compreensão dos
sentidos e significados atribuídos à cidadania e à participação configuraria o primeiro passo
para a mudança de práticas e representações, por meio de ações educativas.
38

1.1.1 Pesquisas sobre a cidadania de crianças

Nessa seção listamos algumas das pesquisas que foram desenvolvidas acerca dos temas
da cidadania e da participação infantil, tais como teses e dissertações (NEVES, 2004; ROSA,
2007; SILVA, 2006; OLIVEIRA, 2009; PESSANHA, 2017; ROCHA, 2011), que optaram por
metodologias não-participativas, como a pesquisa bibliográfica e documental, ou que não
envolveram as crianças como participantes ativos da pesquisa, bem como artigos que relatam
pesquisas sobre a participação de crianças e adolescentes em dispositivos institucionalizados
(SOUZA et al, 2010; BARBOSA; VOLTARELLI, 2020; VIEIRA; COSTA; OLIVEIRA,
2021). Isso não significa que elas tenham menor relevância na discussão do tema, apenas que a
pesquisa em si não configurou um ambiente de promoção e exercício da cidadania, da forma
como entendemos que seria possível por meio da vivência da participação.
A partir das representações sociais de familiares de crianças atendidas no Laboratório
de Desenvolvimento Infantil (LDI) e dos profissionais que trabalham nessa instituição, Neves
(2004) investigou a relação entre família e escola, objeto de tensão e conflitos. Por meio da
análise do histórico da instituição e de entrevistas semiestruturadas, a autora observou que a
relação família-escola está condicionada pelas representações que os grupos têm dos papéis
atribuídos na interação (o papel do eu e do outro), que se dá num determinado contexto histórico
e social. Embora os funcionários da instituição relatem pouca participação das famílias, estas
apresentam uma demanda por maior participação, o que demonstra o conflito identificado pela
autora nas concepções de participação que orientam as ações tanto da família quanto da escola.
A proposta de construção do processo de participação de forma conjunta, por meio da gestão
participativa, é apresentada pela autora como uma alternativa para alinhar as expectativas na
interação família-escola.
Rosa (2007) realizou uma pesquisa bibliográfica e documental para reconstruir a relação
histórica entre educação para a cidadania e democracia nos instrumentos legais no Brasil, tais
como a Constituição Federal de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de
1996 (Lei n. 9394/1996), a partir da noção de Estado Democrático de Direito e do direito à
educação. A autora identifica a cidadania enquanto tema transversal ao conteúdo curricular e
propõe a criação de uma disciplina denominada Educação Jurídica Básica, como forma de
contemplar a questão da cidadania na organização curricular da Educação Básica.
Ao analisar a concepção de cidadania infantil presente nos documentos oficiais
referenciados pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC), mais especificamente o
39

Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (BRASIL, 1998) Silva (2006)
identifica o que Brayner (2001) denomina de fenômeno de institucionalização do discurso, que
consiste na apropriação de conceitos e sua ressignificação pelo Estado, em função de objetivos
econômicos ou burocráticos. A autora ressalta a polissemia tanto da infância quanto da
cidadania, reconhecendo seu caráter de construção histórica, afirmando a necessidade de
esclarecimento dos conceitos utilizados quando da formulação dos documentos oficiais, e se
baseia em autores da Sociologia da Infância para afirmar a possibilidade de construção de uma
noção de cidadania que seja apropriada à infância.
Se existe uma falta de clareza na concepção de cidadania aplicada à infância nos
documentos oficiais, Oliveira (2009) identificou que a noção de formação cidadã presente nos
documentos que regulamentam o ensino médio, última etapa da educação básica no país, se
inscreve numa relação estreita entre escolarização e mercado de trabalho. A autora faz uso da
Teoria das Representações Sociais para categorizar os elementos referentes à cidadania
presentes na legislação, delimitando três possíveis classes que estariam ligadas ao papel
legitimador que o trabalho ocupa em nossa sociedade: o cidadão-trabalhador, o cidadão-flexível
e o cidadão-produtivo, termos que aglutinam os conteúdos considerados necessários para uma
formação que prepare para o exercício da cidadania, conforme o disposto na Constituição
Federal de 1988.
Nesse sentido, o trabalho seria pré-requisito para o estatuto de cidadão e integração na
sociedade (CHARLOT, 2014), o que reforça não apenas a polissemia do conceito, mas a
necessidade de construção de uma nova cidadania, que possibilite ampliar a discussão sobre a
atuação e participação coletiva dos jovens e se transforme em práticas sociais mais abrangentes,
não restritas ao mercado de trabalho formal.
Pessanha (2017) investigou a cidadania a partir do direito à Educação Infantil e a
participação dos familiares das crianças no processo de escolarização, considerando a família
como beneficiária indireta da escolarização. Ao relatar a participação e a luta das famílias por
uma educação pública de qualidade, a autora identificou as expectativas colocadas sobre a
educação e sobre os professores, responsáveis pelo futuro das crianças. A educação infantil se
inscreve como a primeira etapa de um longo processo de mobilidade e ascensão social,
considerando o papel da escola na formação dos futuros trabalhadores. Nesse contexto, a
cidadania aparece como condição restrita ao usufruto de direitos sociais universais, tais como
o direito à educação e o direito ao trabalho, distanciando-se de uma concepção mais abrangente
que compreenda os direitos políticos e de participação.
40

Ao investigar as representações sociais de membros do Conselho Municipal dos Direitos


da Criança e do Adolescente (CMDCA), Rocha (2011) identificou a burocratização dessas
instituições de proteção aos direitos que, embora criadas pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente no início da década de 1990, dependem do poder público na instância municipal
para sua implementação e financiamento, causando grande disparidade entre os municípios. Em
termos de exercício da cidadania, o autor relata a ausência de uma representação social
estruturada sobre o papel do controle social e do conselheiro, indicando a necessidade de
formação, a nível individual e coletivo, para a atuação da sociedade civil em órgãos de controle
e participação social.
O estudo de Souza et al (2010) sobre o direito à participação de crianças e adolescentes,
por meio de pesquisa documental e da análise dos registros das Conferências Nacionais de
Direitos da Criança e do Adolescente5, tendo como base o referencial da Sociologia da Infância.
As autoras identificaram que o tema da participação passou a ter destaque somente a partir da
VI conferência, realizada em 2005, com o título “Participação, Controle Social e Garantia de
Direitos: Por uma Política para a Criança e o Adolescente” e se referem à inclusão de um eixo
específico sobre a participação de crianças e adolescentes na VIII conferência, no ano de 2009.
A pesquisa mostra que houve um aumento da participação de adolescentes nas conferências
enquanto delegados (com direito à voz e voto), no entanto essa participação é restrita aos
maiores de 12 anos, ou seja, as crianças, conforme a definição etária do ECA, ainda estão
impossibilitadas de uma atuação política direta.
Souza et al (2010) mencionam a “Carta Aberta dos Adolescentes Participantes da VI
Conferência ao CONANDA e à Sociedade Brasileira” como exemplo de resistência dos
adolescentes à forma como as Conferências eram realizadas, ao questionarem a linguagem
formal e a distribuição das atividades, eles evidenciam a desigualdade que marca as relações
intergeracionais, sempre pautadas na perspectiva do adulto. Como resposta à demanda de
ampliação da atuação das crianças e adolescentes, as autoras citam a Cidade dos Direitos,
experiência lúdica realizada na VIII Conferência, com o intuito de aproximar o Sistema de
Garantia de Direitos da linguagem dos participantes. As autoras indicam como alternativa à
participação das crianças e adolescentes em espaços formais, como as conferências e conselhos,
a vivência cotidiana da participação no contexto familiar, escolar e comunitário.

5
As conferências são realizadas a cada dois anos, desde 1994, quando foi realizada a primeira Conferência
Nacional, tendo o tema da implantação do ECA.
41

Barbosa e Voltarelli (2020) investigaram a participação de crianças na Plenarinha,


projeto desenvolvido pela Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal, por meio dos
documentos produzidos pela secretaria e das notícias veiculadas no jornal Correio Braziliense.
A Plenarinha é um projeto com crianças de educação infantil, que vem sendo realizado desde
2013, e tem por objetivo simular as atividades de uma assembleia ou plenária, para a discussão
e implementação de ações a partir da escuta das crianças. As autoras identificaram nos
documentos uma mudança no discurso em relação à infância e os direitos das crianças, no
sentido de ampliar a participação das crianças na educação infantil, entretanto, não é possível
observar uma relação direta entre as demandas das crianças e as ações desenvolvidas pela
Secretaria de Educação, na construção das políticas públicas. Quanto às ações desenvolvidas
no âmbito escolar, como consequência do envolvimento dos adultos nas assembleias, elas
dependem da adesão das professoras às práticas docentes de participação infantil, o que nem
sempre se dá de forma coletiva.
A partir da Escada de Participação desenvolvida por Hart (1992), as autoras avaliaram
as ações desenvolvidas com as crianças no âmbito da Plenarinha como parcialmente
participativas, alternando entre ações do tipo decorativo, nas quais não há um envolvimento
efetivo das crianças nas decisões, e ações iniciadas pelos adultos com decisões compartilhadas
pelas crianças, na forma como ocorre a escolha dos temas das assembleias e nas possibilidades
de encaminhamento das demandas levantadas pelas crianças.
A Plenarinha coloca-se como um dispositivo inovador em considerar as crianças
como sujeitos de direitos e protagonistas de suas vidas e insiste no discurso de dar voz
e vez a elas, todavia, por meio dos documentos oficiais, não é possível identificar as
contribuições das crianças enquanto ações efetivas nas instituições de educação
infantil do Distrito Federal (BARBOSA; VOLTARELLI, 2020, p. 15).

Ao desenvolverem uma revisão bibliográfica e documental acerca da participação


sociopolítica de crianças e adolescentes, Vieira, Costa e Oliveira (2021) afirmam que o modelo
adultocêntrico limita as possibilidades de ação das crianças e adolescentes, ao julgá-las
dependentes dos adultos e incapazes de pensamento autônomo. Esse modelo serve para
legitimar e naturalizar a desigualdade das relações intergeracionais, desvinculando o seu caráter
de construção social e histórica. Para as autoras, a educação formal se distanciou do papel de
propiciar às crianças o exercício da cidadania, ao tentar se manter neutra perante as
desigualdades sociais de classe, gênero e raça, sendo necessária uma educação transgressora
que possibilite romper com essas desigualdades.
[...] as crianças e adolescentes somente ocuparão os espaços coletivos de decisão se
forem educadas e estimuladas para a participação. Não basta que esses sujeitos
ocupem os espaços de maneira forjada, é necessária a construção de alternativas que
42

garantam sua real participação em todos os processos (VIEIRA; COSTA; OLIVEIRA,


2021, p.11).

Assim, faz-se necessária a construção de espaços de experiência da participação política,


que não se restrinjam ao direito de votar e ser votado, de forma a oportunizar o exercício da
cidadania e promover o protagonismo desses sujeitos. Como exemplo desses espaços, são
citadas as Conferências Lúdicas, realizadas em âmbito municipal, que antecedem as
Conferências Nacionais de Direitos da Criança e do Adolescente. Esses princípios já estariam
presentes na promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, tendo sido ampliados pela
legislação subsequente.
A dificuldade para a implementação da participação infantil no contexto nacional
aparece como um reflexo do lento processo de redemocratização que o país vivencia desde o
final do século passado, que tem como marco a promulgação da Constituição Federal de 1988,
que não por acaso recebeu a alcunha de Constituição Cidadã. Embora tenham sido ampliadas
as instâncias de participação social, ainda na Assembleia Nacional Constituinte, a participação
não se constitui enquanto prática social comum a todos os grupos da sociedade, inclusive das
crianças.
É a ausência, não de espaços mas de uma cultura de participação, que levaria ao
esvaziamento e à falta de engajamento dos sujeitos no processo de construção da cidadania,
como apontado por Nobre (2013) ao analisar as manifestações populares de 2013 no país,
iniciadas por ocasião do aumento da tarifa do transporte público, mas que tomaram uma
proporção maior na discussão de aspectos como a igualdade de acesso a bens e serviços, e
tiveram a participação na sua maioria de jovens e movimentos autonomistas, diferenciando-se
do cenário dos movimentos sociais tradicionais.
A democracia no país é ainda pouco democrática de fato. Porque democracia não é
apenas funcionamento de instituições políticas formais, não é apenas um sistema
político regido formalmente por regras democráticas. Democracia é uma forma de
vida que penetra fundo no cotidiano, que se cristaliza em uma cultura política
pluralista (NOBRE, 2013, p. 14).

No âmbito da cidadania, é possível perceber que os trabalhos analisam o discurso oficial


institucionalizado em documentos e diretrizes curriculares, nos quais a noção de cidadania tem
funcionado como uma espécie de termo “coringa”, adjetivado para se moldar às diversas
situações, como se o uso do termo fosse suficiente para caracterizar como democrática
determinada ação ou processo. Esse fenômeno de esvaziamento da noção de cidadania, e de sua
subsequente reificação, vem sendo descrito por Carvalho (2018) e Gohn (2019) no processo de
redemocratização do país, desde o final da década de 1980.
43

Já no âmbito da participação, o que se observa é uma divergência entre as expectativas


da população e o espaço disponibilizado pelas instituições, resultando numa cobrança de ambos
os lados pela ampliação das possibilidades de ação e deliberação. Esse conflito também pode
ser resultado de uma valorização desmedida dos processos participativos na gestão das políticas
públicas, a partir de experiências exitosas ocorridas no país, como o Orçamento Participativo
em Porto Alegre (SANTOS, 2002), o que pode ter levado a uma mistificação da participação
social cidadã (MILANI, 2008), desconsiderando-se os limites da atuação comunitária e as
desigualdades e conflitos que persistem mesmo nos dispositivos de participação
institucionalizados.
Essa mistificação da participação cidadã, ainda que restrita às práticas como assembleias
e referendos, parece ter persistido no âmbito educacional. A participação é valorizada enquanto
ação local, como mostra a ampliação das escolas de gestão democrática, embora haja um
distanciamento da comunidade escolar da construção das políticas nacionais, devido à
centralização das decisões e a falta de acesso da população às instâncias deliberativas.

1.1.2 Pesquisas com crianças sobre a cidadania

Nesta subseção listamos alguns trabalhos que desenvolveram estudos sobre cidadania e
direitos de crianças e adolescentes a partir do uso de metodologias participativas, tais como a
pesquisa-ação e a etnografia. Entre teses e dissertações encontradas (CARDOSO, 1998;
PALOCCI, 2003; ISAIA, 2007; GOULART, 2008; MELO, 2010; SEGANFREDO, 2012;
GOMES, 2014), além de artigos que relatam pesquisas com crianças e adolescentes
(CORREIA; GIOVANETTI; GOUVÊA, 2007; PÉREZ et al, 2008), acreditamos que esse tipo
de metodologia possibilitaria à própria pesquisa configurar-se enquanto um espaço de formação
e desenvolvimento da participação infantil, o que as diferenciaria das pesquisas citadas na
subseção anterior.
As referências estão listadas em ordem cronológica, como forma de sistematizar a
revisão e identificar as transformações no campo da pesquisa com crianças ao longo dos últimos
20 anos. Ressaltamos como uma das mudanças ocorridas, a influência do referencial da
Sociologia da Infância e seus conceitos, principalmente de autores portugueses como Sarmento,
Tomás e Fernandes, e do norte-americano William Corsaro, como fundamento para o
desenvolvimento de estudos a respeito de novas práticas e de mudanças nas relações
intergeracionais.
44

Sarmento (2007) fala da transição de uma imagem da criança “pré-sociológica”,


presente na literatura e nas demais produções culturais, à imagem da “criança sociológica”, a
partir do olhar das ciências sociais sobre o fenômeno das infâncias, caracterizado pela
diversidade de sujeitos e culturas que compõem essa categoria social. Apesar dos impactos
causados pela disseminação da Sociologia da Infância desde o final dos anos 1980, “[...] as
imagens sociais produzidas acerca da infância e das crianças exprimem determinadas
concepções sociais e culturais, o que influencia a forma como se trabalha com/para/sobre elas”
(TOMÁS, 2017, p. 13). Essas imagens permanecem no imaginário da sociedade, não apenas no
momento de sua produção, mas nos discursos e práticas dos grupos sociais.
Um dos primeiros estudos que encontramos acerca da cidadania enquanto representação
social, a pesquisa de Cardoso (1998) sobre as representações sociais de cidadania construídas
por jovens egressos de um projeto de educação comunitária realizado no município de Goiânia,
teve por objetivo apreender as consequências da participação em um projeto comunitário para
a construção de significados a respeito da cidadania, considerando a multiplicidade de sentidos
atribuídos ao conceito ao longo da história. A autora optou por analisar os resultados da
pesquisa a partir das seguintes dimensões: sensibilidade à injustiça; capacidade de
autodeterminação; participação; conhecimento dos direitos e deveres; e alteridade (categorias
que foram estabelecidas a priori), como forma de avaliar a possível transformação dos
elementos representacionais após a participação no projeto.
Segundo Cardoso (1998), a experiência de participação comunitária e a convivência no
grupo permitiu aos adolescentes construírem um sentimento de pertença e de alteridade, no
sentido do reconhecimento de si mesmos e dos outros como sujeitos de direitos, o que teve um
impacto positivo na ressignificação da cidadania. Esse reconhecimento dos jovens enquanto
membros de uma comunidade, com valores e responsabilidades compartilhadas, reforçaria um
sentimento de identidade coletiva e aumentaria a demanda por espaços de participação ativa,
não se limitando ao contexto imediato do projeto.
A tese de Palocci (2003) sobre as vivências e representações sociais de alunos do ensino
fundamental no município de Ribeirão Preto sobre a construção da cidadania, apresenta uma
proposta de atuação em nível local, no sentido de considerar a cidadania como um objeto
construído nas trocas e interações cotidianas. A autora levanta a hipótese da “[...] formação do
cidadão se dar no processo de construção da cidadania” (p. 122) e opta pelo quarteirão como
dimensão de intervenção, enquanto um microcosmo da cidade. O quarteirão compreende os
vizinhos mais próximos, e seria o espaço onde ocorre o encontro intergeracional, que
45

possibilitaria às crianças a identificação de problemas comuns à comunidade e a atuação em


prol da reorganização do espaço urbano.
Ao incentivar a participação das crianças na produção de um livro-base de registro,
produzido individualmente e compartilhado com os demais, por meio da investigação do
contexto social local e da construção de materiais sobre as condições e as relações entre os
moradores, a autora reconhece as possibilidades de exercício da cidadania por parte das
crianças, ainda que estes necessitem do adulto para a construção e sistematização das ações,
como demonstrado na construção do livro-base. Ao final da pesquisa, ela identificou um
aumento da demanda pela participação das crianças e preservação da comunidade.
Ao investigar a participação infantil na gestão de uma instituição de educação infantil
do município de Porto Alegre, no estado do Rio Grande do Sul, Isaia (2007) empregou o método
da pesquisa-ação para ampliar as possibilidades de atuação das crianças no contexto
institucional. A autora identificou a tensão que caracteriza as relações intergeracionais, nas
quais a participação das crianças aparece, na visão dos adultos, condicionada à maturidade
biológica, principalmente quando se trata da primeira infância.
Ao observar a forma como as crianças escolhem suas lideranças e aprendem a “ler” os
processos de gestão escolar, que envolve a compreensão da hierarquia entre os membros da
equipe gestora e o reconhecimento das responsabilidades de cada um, percebe-se que a criança
é capaz de influenciar e participar ativamente do contexto institucional. Com base nos
resultados da pesquisa, a autora afirma que o direito à participação requer a construção de
mecanismos para sua efetivação, pois o exercício da participação é fundamental para o seu
aprendizado.
Correia, Giovanetti e Gouvêa (2007) fizeram uma pesquisa etnográfica sobre a
experiência de socialização de crianças em um acampamento do Movimentos dos
Trabalhadores Sem Terra (MST). As crianças da pesquisa, embora estivessem num
acampamento, optaram por frequentar a escola regular e narraram à pesquisadora o conflito
vivenciado com as outras crianças no ambiente escolar. As autoras identificaram a importância
das relações geracionais, principalmente com o grupo familiar, na construção do pertencimento
e apropriação dos valores do movimento social. A luta pela terra, principal causa do MST,
apresenta-se no conflito diário das famílias dos assentamentos e ocupações, sendo incorporada
pelas crianças como parte de sua identidade. A vivência no assentamento, quando comparada
às condições precárias que as famílias encontravam na cidade, apresentava uma dimensão
lúdica, na possibilidade de exploração do espaço e no aprendizado do cultivo da terra.
46

Ao relatar a experiência das crianças do Movimento dos Sem Terrinha, as autoras


reafirmam a diversidade de subjetividades presentes na categoria social da infância, não sendo
possível afirmar a existência de um modelo padronizado de desenvolvimento infantil, devido
às particularidades dos processos de socialização, principalmente em contextos de exclusão
social. Para essa categoria social duplamente excluída, as crianças da classe desfavorecida, a
pesquisa se apresentou como um espaço de participação e de construção de uma imagem social
positiva, a partir da relação afetiva com a pesquisadora e da valorização da experiência
cotidiana.
Num contexto urbano de exclusão social que Goulart (2008) empreendeu uma pesquisa-
ação com as crianças e os facilitadores de uma Organização Social (OS) de promoção e proteção
de crianças e adolescentes. Na implementação da participação infantil numa comunidade da
Zona Oeste do Rio de Janeiro, no âmbito de um projeto social, a pesquisa se mostrou uma
alternativa para o reconhecimento das crianças enquanto sujeitos de direitos, pelas famílias,
educadores e pelas próprias crianças. A autora apresenta os significados associados à
participação pelas crianças e adolescentes, de acordo com a faixa etária, comparando os
resultados e demonstrando uma evolução do conceito ao longo do desenvolvimento.
Por meio do aprendizado e exercício em instâncias participativas, em contraposição ao
modelo clássico de aprendizagem escolar, as crianças passaram a atribuir sentidos mais
complexos à participação, visualizando uma ampliação das possibilidades de ação. Como
resultado desse processo de aprendizado, cresceu a demanda das crianças e adolescentes por
espaços de participação e exercício dos direitos garantidos pelo ECA.
Pérez et al (2008) realizaram um estudo sobre a participação das crianças na cidade e
seu potencial transformador na construção de novos sentidos de cidadania. Por meio da
metodologia da pesquisa-intervenção, as autoras desenvolveram uma oficina com crianças na
faixa etária de 7 e 8 anos, de uma escola da Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, para a
construção de um projeto coletivo, um jornal sobre o bairro onde se situa a escola.
Fundamentadas nos estudos de Marc Jans (2004), as autoras afirmam que “[...] o
exercício da cidadania deve ser um processo contínuo de aprendizagem baseado na experiência
do cotidiano que não está restrito somente à infância” (PÉREZ et al, 2008, p. 183). Esse
processo compreenderia o desenvolvimento de um sentimento de pertencimento a uma
comunidade e o reconhecimento do papel do sujeito enquanto co-construtor desse espaço.
A participação infantil teria então a função de apropriação do espaço público, e
necessitaria do reconhecimento da competência da criança pelo adulto, já que “[...] participa
47

somente quem se acha apto a participar e tem sua participação reconhecida” (PÉREZ et al,
2008, p. 183). As crianças da pesquisa reconhecem os problemas da cidade a partir de sua
inserção social e, consequentemente, dos espaços pelos quais circulam, cada vez mais restritos
nas grandes cidades. As autoras também relatam que as crianças da pesquisa afirmam a
existência de um mundo do adulto, identificado como sério e chato, no qual não há espaço para
o lúdico. É nessa dimensão que estariam assuntos como a economia e a política, espaços aos
quais a criança comumente não tem acesso.
No processo de construção do jornal coletivo, as pesquisadoras levaram as crianças a
conhecerem melhor o bairro, na obtenção de informações das pessoas e do entorno da escola,
por meio do exercício de papeis como fotógrafo e entrevistador, acompanhados de objetos e
funções que reforçaram a caracterização das crianças como responsáveis pelo projeto. A
escolha desses papeis se deu pela identificação das próprias crianças, na negociação dentro do
grupo de quem deveria exercer cada função. Por meio das narrativas, as crianças tiveram a
oportunidade de refletir e ressignificar a experiência vivida coletivamente com o bairro e a
cidade. Ao possibilitar a participação das crianças e a ressignificação da sua relação com a
cidade, a pesquisa promoveu o exercício da cidadania infantil, entendida não apenas como um
conjunto de direitos e deveres, mas como um processo dinâmico que perpassa o pertencimento
e a atuação no âmbito local, em prol da coletividade.
Melo (2010) investigou a agência da criança, entendida como a capacidade de ação e
transformação do ambiente imediato e da comunidade, a partir das narrativas de crianças de
uma creche vinculada a uma universidade, nos pressupostos da Pedagogia da Participação. As
narrativas infantis foram consideradas em sua produção espontânea, caraterísticas da atividade
simbólica das crianças e da produção de significados. A autora fez uso da Psicologia Popular
ou Psicologia Cultural de Jérôme Bruner para analisar as narrativas a partir de três categorias:
sequencialidade, experiências vividas e afastamentos do canônico. Dessa forma, a produção
simbólica da criança no ambiente educacional é considerada a partir de sua vivência cotidiana,
daquilo que constrói e compartilha com seus pares na interação, num movimento dinâmico de
aproximação e distanciamento da cultura do adulto. A Sociologia da Infância e a Pedagogia da
Participação são apontados pela autora como fundamentos para uma práxis inovadora, que
reconheça as crianças enquanto participantes ativas do processo de ensino aprendizagem, desde
a mais tenra idade.
A partir da Sociologia da Infância de William Corsaro, Seganfredo (2012) buscou
identificar os sentidos atribuídos à cidadania pelas crianças do município de Rondonópolis-MT.
48

Reconhecendo a historicidade tanto da infância quanto da cidadania, a autora ilustra a assimetria


na relação entre crianças e adultos, marca da relação intergeracional desigual, nas quais os
adultos são os responsáveis pela construção das leis e a normatização da infância, enquanto as
crianças são objeto de proteção do mundo exterior. Ao equiparar a fala das crianças à fala da
pesquisadora, a autora tenta “dar voz” às crianças, reconhecendo-as como atores sociais que
vivenciam a cidadania no próprio cotidiano, a partir da relação com a família e a sociedade de
consumo.
Em uma investigação sobre a cidadania e as práticas escolares, Gomes (2014) utilizou-
se do grupo focal como estratégia para fomentar a discussão entre jovens, alunos do ensino
médio de uma escola municipal. O autor se remete à trajetória histórica da cidadania para
demonstrar os diferentes sentidos assumidos pelo conceito, passível de ressignificação pela
prática do que o autor denomina de atos de cidadania. A partir da análise das discussões nos
grupos focais, foram delimitadas três categorias: direitos e deveres dos cidadãos; práticas
escolares e ações sociais; e cidadania tutelada. Com base na Teoria das Representações Sociais
de Moscovici, a pesquisa aponta a predominância da noção de cidadania enquanto conjunto de
direitos e deveres, que auxiliam na concretização de um conceito polêmico e virtual. Embora
se reconheçam como sujeitos de direitos, os jovens da pesquisa necessitam de um representante
institucional, normalmente um adulto, para que possam ser ouvidos e tenham seus problemas
resolvidos, indicando uma percepção da escola como ambiente restrito de participação e
decisão.
A escola poderia ser um ambiente de promoção da participação infantil a partir do qual
se reforçaria a capacidade de autonomia das crianças, podendo potencializar o engajamento das
crianças em processos participativos, mas disso depende a atuação dos sujeitos no exercício
cotidiano de práticas participativas (SOUZA et al, 2010).
Nas pesquisas identificadas nesta seção, percebemos a variedade dos conceitos de
cidadania utilizados tanto para a fundamentação quanto para a análise dos discursos e práticas
dos sujeitos, o que concorre para a construção de categorias que permitam delimitar e avaliar o
fenômeno enquanto produto histórico de uma sociedade com valores democráticos, na
referência a direitos fundamentais, comuns a todos os sujeitos, ou na formação para a cidadania
enquanto um processo educativo, no aprendizado de atos de solidariedade e/ou preservação da
comunidade.
A participação aparece ligada à adesão de métodos que permitam aos sujeitos
vivenciarem o contexto ou as práticas, o que realça a máxima de que “há um caráter educativo
49

nas práticas que se desenrolam no ato de participar” (GOHN, 2011, p. 333), ou seja, é
participando que se aprende a participar. Se consideramos a participação como medida de
cidadania, o incentivo às práticas participativas seria uma forma de construir espaços de
exercício da cidadania, como veremos adiante.

1.2 Investigar a cidadania por meio da participação

Segundo Gohn (2019), democracia/participação e cidadania/direitos são binômios


indissociáveis, ou seja, o tema da participação social está diretamente relacionado ao caráter
democrático de um país, como uma medida das possibilidades de atuação dos indivíduos, ao
mesmo tempo em que a participação permitiria avaliar o tipo de cidadania existente, com base
no envolvimento da população na luta pelo reconhecimento dos seus direitos, sejam eles civis,
sociais ou políticos.
Considerando a interseção entre esses dois binômios, o que se estabelece então é uma
relação dialética entre cidadania e participação, pois, “[…] se entendemos por ‘cidadania’ o
conjunto de normas que guiam a relação entre o indivíduo e a sociedade, sua relevância para a
participação é óbvia: a cidadania vem a ser o marco que cria as condições para uma participação
possível” (GUTIERREZ, 2011, p. 5, tradução nossa), ao mesmo tempo em que a participação
passa a ser uma forma de exercício da cidadania.
Optamos nesse trabalho por articular os dois binômios, cidadania/direitos e
democracia/participação em um único modelo ou esquema explicativo, na forma de um prisma
teórico que visa ampliar a compreensão desses objetos enquanto fenômenos psicossociais numa
perspectiva holística ou sistêmica (GARNIER, 2015). Essa perspectiva requer que os objetos
sociais sejam compreendidos em suas relações com outras representações, diferente da noção
de que os objetos de representação existem isolados ou individualizados.
Zittoun et al (2007, p. 209, tradução nossa) falam sobre o uso histórico da metáfora do
triângulo como forma de representar relações triádicas, em oposição a relação estímulo-resposta
(S-R) e analisam as similaridades e distinções dos triângulos construídos nas teorias sobre o
desenvolvimento humano, particularmente nos trabalhos de Freud, Vygotsky e Piaget. O uso
dos modelos triádicos constituiria uma mudança de paradigma, pois, “[...] enquanto modelos
binários da relação pessoa-mundo interpretam a relação como direta, modelos triádicos
enfatizam que alguma coisa ou alguém medeia a ação do agente ou o seu entendimento”.
50

No entanto, os autores também apontam os limites desses modelos que envolvem a


relação entre três termos, principalmente quando se trata da interação social, entre Sujeito e
Outro, que tende a ocorrer em condições específicas, num contexto social e histórico mais
amplo. A inclusão de um quarto termo ampliaria as possibilidades explicativas de um modelo
outrora triádico, como mostra o modelo de prisma semiótico (figura 1), desenvolvido por
Zittoun e Perret-Clermont (2009).

Figura 1. o prisma semiótico

Fonte: Marková (2017).

Nesse modelo são considerados, além do sujeito, o Outro e o objeto (elemento cultural)
envolvidos, o sentido do elemento cultural tanto para a Pessoa quanto para os Outros, além do
“quadro” no qual ocorre a interação, um campo composto pelas regras, papéis e expectativas
sociais. A noção de quadro busca inserir as interações sociais no contexto institucional em que
elas ocorrem, onde os sujeitos tendem a reforçar as normas e os papéis instituídos. Embora não
sejam equivalentes, a noção de contexto proposta por Codol (1974) no modelo da
Representação Global da Situação teria a mesma função do quadro, ao situar a interação entre
grupos em condições sociais pré-determinadas.
A partir da noção de projeto representacional, Bauer e Gaskel (1999) desenvolveram
um modelo que ficou conhecido como “toblerone” (figura 2), pela semelhança com o formato
do chocolate suíço homônimo. Nesse modelo, o triângulo Ego-Alter-Objeto é posicionado
numa linha temporal, compreendendo o processo histórico de transformação da representação,
em passado, presente e futuro. Ao investigarmos uma representação social, o que enxergamos
é um recorte de como a relação entre os sujeitos e o objeto se apresenta no momento da pesquisa,
a superfície do triângulo em um tempo determinado (t).

Figura 2. O modelo "toblerone"


51

Fonte: Bauer e Gaskell (1999)

O modelo toblerone deu lugar ao que os autores denominam de “rosa dos ventos” (figura
3), ao considerar o contexto das relações de resistência e dominação entre os grupos sociais.
“[...] a extensão do modelo toblerone original para o modelo rosa dos ventos evidencia o valor
de tomar emprestado de outras teorias – nesse caso, o comportamento intergrupal e os
movimentos sociais – e demonstra o poder de síntese dessa teoria” (BAUER; GASKELL, 2008,
p. 347, tradução nossa). Para os autores, a TRS possui um poder heurístico ampliado ao ser
articulada com outras teorias, numa realidade que apresenta limites temporais e espaciais.

Figura 3. O modelo "rosa dos ventos"

Fonte: Bauer e Gaskell (2008).

O conflito que se estabelece entre os grupos é representado pela presença de diversos


triângulos, de formas irregulares, com o intuito de ilustrar as desigualdades entre a maioria e a
52

minoria, ou as minorias. Cada triângulo é uma representação distinta, de um grupo distinto, que
está relacionada às demais, circunscrita pelos limites da realidade.
Nosso objeto de estudo, a cidadania infantil, não pode ser entendido de forma isolada,
por se tratar de um objeto fronteiriço (BAUER; GASKELL, 2008), que estaria inserido nas
relações entre objetos de representação mais amplos, tais como democracia, participação e
direitos, produtos das condições históricas e das experiências individuais e sociais. Estes objetos
possuem uma longa história, e a forma como se apresentam na sociedade está diretamente
relacionada às crenças e opiniões dos grupos sociais e ao ordenamento institucional.
A cidadania pressupõe o reconhecimento dos sujeitos como membros de uma
comunidade local e/ou nacional, em igualdade de direitos com os demais, na concepção liberal
(MARSHALL, 1967), ou comprometidos com o interesse geral e o bem comum, na visão
comunitária (CORTINA, 1997). Mais do que um estatuto, neste trabalho propomos tratar a
cidadania enquanto processo psicossocial, que se materializa na institucionalização dos direitos
sociais, civis e políticos, em documentos e regulamentações, mas também no discurso e nas
práticas dos sujeitos.
As bases da democracia enquanto valor universal (COUTINHO, 1979) ou sistema de
crenças (MOSCOVICI, 1992) estariam representadas pelos direitos sociais e políticos, aliados
à participação enquanto prática social. No entanto, a democracia requer a constituição de uma
cultura compartilhada de respeito à liberdade e a diversidade.
[...] o que define a democracia não é, portanto, somente um conjunto de garantias
institucionais ou o reino da maioria, mas antes de tudo o respeito pelos projetos
individuais e coletivos, que combinam a afirmação de uma liberdade pessoal com o
direito de identificação com uma coletividade social, nacional ou religiosa particular.
A democracia não se apoia somente nas leis, mas sobretudo em uma cultura política
(TOURAINE, 1996, p. 26).

Para Canavieira e Coelho (2020), é a capacidade de negociação entre opiniões


divergentes, entre dissensos e consensos, que condicionaria a titularização de direitos e a
participação dos cidadãos nas sociedades democráticas. Tomás (2007) salienta que, no caso da
participação infantil, esta se dá na negociação, o que não significa a eliminação da autoridade
adulta, mas o reconhecimento da agência da criança.
A conquista de direitos é uma luta histórica que necessita ser resguardada pelas
instituições e pela manutenção do Estado Democrático de Direito. No que diz respeito às bases
e pressupostos legais, fundamentamos nossa pesquisa na Constituição Federal de 1988
(BRASIL, 1988), que rege a relação entre os indivíduos e o Estado no contexto brasileiro,
estabelecendo os princípios legais da cidadania nacional; a Convenção sobre os Direitos das
53

Crianças (ONU, 1988) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), que


simbolizam o reconhecimento dos direitos de crianças e adolescentes, inclusive à participação
social e política, no âmbito local e internacional.
A partir da junção dos dois binômios propostos por Gohn (2019), ou seja,
cidadania/direitos e democracia/participação, construímos uma proposta de conjunto ou sistema
de representações na figura de um prisma teórico (figura 4), na qual os termos foram
posicionados em vértices, de forma a representar a existência de triângulos distintos, que
estariam interligados. A depender da face do prisma para a qual olhamos, da posição do
observador, três dos elementos assumem maior visibilidade.

Figura 4 - prisma teórico da cidadania infantil

Fonte: o autor.

A articulação de representações em um sistema implica que mudanças em um dos


objetos tenham consequências nos demais elementos ou objetos do sistema. Desse modo,
mudanças nos direitos titularizados pela população, ou nas formas de participação,
ocasionariam mudanças na democracia e na cidadania, bem como a implementação de sistemas
de governo antidemocráticos implicaria a existência de formas de participação apartadas das
instituições, como ocorreu no Brasil durante a ditadura militar, quando a mobilização social e
articulação política foi taxada de subversiva.
Nossa escolha pelo modelo de prisma/pirâmide, visa ilustrar a hipótese de articulação
dos objetos que comporiam o sistema de representações no qual a cidadania se insere. No caso
da cidadania infantil, enquanto projeto representacional, os direitos se referem às convenções
internacionais e regulamentações locais, engendradas pelos movimentos sociais em defesa da
infância, e a participação diz respeito às possiblidades de intervenção da criança nas tomadas
de decisão dentro da comunidade.
54

A participação infantil se refere ao exercício da cidadania da criança e dos seus direitos,


na articulação entre crianças e adultos na defesa dos interesses próprios da infância como
categoria social. Ressaltamos que a efetivação do direito à participação tem ocorrido de forma
insuficiente, à margem dos mecanismos oficiais, ou apenas no nível do discurso oficial, mesmo
nos países signatários da Convenção sobre os Direitos da Criança (SOARES, 2005).
Assim como a cidadania, de maneira geral, uma cidadania apropriada à infância seria
construída a partir de relações sociais democráticas, não sendo possível sua implementação em
contextos de privação ou violação de direitos. Os trabalhos de Hart (1992) e Landsdown (2011)
vinculados à UNICEF, mostram os desafios para a implementação do direito à participação em
países periféricos, onde muitas famílias vivem abaixo da linha da pobreza, em condições de
extrema desigualdade.
Para Perrenoud (2005, p. 22), “[...] a educação para a cidadania está fortemente
associada a uma nova concepção de sociedade civil. Ela emana do Estado, mas o toma como
objeto”. No intuito de investigar a cidadania, como resultado da interação entre os elementos
que compõem esse sistema sociocognitivo, optamos por considerar a relação entre governo e
sociedade civil, não como polos opostos da estrutura democrática, mas como instâncias distintas
de um mesmo processo de construção de identidade e autonomia nacional.
Concebemos a sociedade civil como autônoma, mas em estreita relação com o Estado
e o mercado, e autolimitada, desde que não busca substituí-los em suas funções
próprias e estabelece para si regras e procedimentos que podem evitar o
corporativismo e os particularismos (TEIXEIRA, 2002, p. 30).

Esta relação entre Estado, sociedade civil e mercado envolve conflitos e tensões que têm
resultado numa crise da representação política (TOURAINE, 1996; CASTELLS, 2019), no
distanciamento da população da esfera pública e na percepção de uma falta de legitimação das
instituições democráticas, que também pode ser entendido como uma crise da autoridade
epistêmica (MARKOVÁ, 2017). A população não confia em suas instituições e não se sente
representada por seus representantes políticos, que constituem uma classe apartada do restante
da sociedade. A autoridade desses representantes não é reconhecida como legítima, não por
descrédito dos mecanismos democráticos, mas pela desconfiança de que esses representantes
atuam apenas em benefício próprio.
A consciência de cidadania enfraquece-se porque muitos indivíduos se sentem mais
consumidores do que cidadãos e mais cosmopolitas do que nacionais ou, pelo
contrário, porque alguns se sentem marginalizados ou excluídos da sociedade – com
efeito, têm o sentimento de que, por razões econômicas, políticas, étnicas ou culturais,
não chegam a participar dela (TOURAINE, 1996, p. 18).
55

Dessa forma, a cidadania que resulta da interação entre a participação, em suas diversas
instâncias; o conjunto de direitos civis, sociais e políticos titularizados pela população; e os
limites da atuação dos agentes sociais, condicionados pelo Estado e as instituições, é fruto de
um processo histórico, característico do cenário político-social contemporâneo, condicionado
pela democracia, sistema de governo e valor social.
[…] na construção da cidadania, a participação cidadã é considerada, na prática, como
o mecanismo essencial que fortalece a democracia e a cultura política. A formação de
uma cidadania ativa e crítica envolve a conversão de indivíduos em agentes sociais
com a possibilidade de projetar uma mudança societal. Em termos participatórios,
uma interação menos hierárquica entre os cidadãos e as instituições do Estado seria
favorecida, alcançando um aperfeiçoamento mútuo que implica um melhor
ajustamento dos processos democráticos e resultados positivos em termos de bom
governo e percepção de governança (ORTEGA RUBI, 2019, p. 7.2, tradução nossa).

Ao investigar a forma como jovens mexicanos representam a participação social (ou


cidadã) e sua relação com a memória social, em um município do norte do México, Ortega Rubí
(2014, p. 12, tradução nossa) afirma que “a representação social da participação se encontra
formada por elementos referidos ao tipo de participação social” exercida pelos cidadãos. Dessa
forma, o exercício ou a prática de determinado tipo de participação determinaria a presença de
elementos no conteúdo e estrutura da representação. Os elementos podem estar relacionados à
caridade ou ao assistencialismo, no caso dos sujeitos que participam de associações ou eventos
beneficentes, ou ao voto, quando relacionada ao envolvimento dos cidadãos nas eleições e
partidos políticos.
A autora se baseou em teorias sociológicas da escolha ou cálculo racional6, que
compreendem o fenômeno de participação cidadã como resultado de uma complexa relação de
custo-benefício, o que explicaria a baixa adesão e o descrédito dos sujeitos, considerando o
histórico de opressão cultural sofrido pela população mexicana.
[...] A participação cidadã requer referências prévias relacionadas à vontade de
participar, considerando fatores psicossociais (compromisso, atitudes, motivação e
identidade), relacionados com o significado social e acessibilidade à participação
(ORTEGA RUBI, 2019, p. 7.6, tradução nossa).

A autora afirma não ter encontrado indícios de uma relação direta entre participação e
memória social, embora tenham sido utilizados instrumentos para investigar a importância da
memória social e de figuras históricas na construção da cidadania local, como forma de apelo à
identidade nacional.

6
Utilizamos a classificação proposta por Gohn (2019b) para distinguir as teorias que abordam o fenômeno dos
movimentos sociais.
56

No contexto mexicano, a representação da participação é composta principalmente por


elementos de participação social, que denotam altruísmo ou filantropia, em detrimento de
conteúdos sobre a mobilização coletiva, como mostra a figura 5. Essa representação permitiria
compreender a relação dos jovens mexicanos com os processos de participação e a desconfiança
nos mecanismos representativos. Para esses jovens, participar seria ajudar ou colaborar com
pessoas em vulnerabilidade social, no exercício da solidariedade, ao invés de assumir
responsabilidade pelo bem comum.

Figura 5 - a representação social da participação dos jovens mexicanos

Fonte: Ortega Rubí (2019).

O modelo proposto na pesquisa supracitada articulou os pressupostos da Teoria das


Representações Sociais e a Sociologia dos Movimentos Sociais. No processo de gênese da
representação, concebido a partir do modelo ternário (Ego-Alter-Objeto), sujeito e objeto se
constituem mutuamente, numa relação mediada pelo outro (real ou internalizado)
(MOSCOVICI, 2012). O sujeito da representação social é sempre coletivo, assim, na construção
da representação social da cidadania, não haveria uma separação entre o cidadão e a própria
cidadania, sendo esta relação mediada pelos grupos ou instituições em interação.
A crença na democracia como valor universal é o pano de fundo dessas relações, pois é
apenas numa sociedade democrática que participação e cidadania podem estar intrinsecamente
ligadas, como possível alternativa de combate à exclusão e as desigualdades sociais. Moscovici
(1992) afirma que a partir da década de 1960 a democracia foi elevada ao estatuto de sistema
de crenças, na medida em que se apresenta como alternativa à ditadura e aos regimes totalitários.
O autor considera a “redescoberta” dos direitos humanos a principal revolução cultural do
57

século passado, responsável pela propagação de valores como liberdade, igualdade e


transparência.
Nos contextos brasileiro e francês, um modelo de democracia emergente, mais
participativo (SANTOS, 2002; GAUDIN, 2009), que requer um envolvimento maior da
população nas discussões e decisões, tem se oposto ao modelo tradicional de democracia
representativa, que pressupõe a escolha de representantes e a delegação de responsabilidades
como a forma de participação predominante.
Os processos participativos pressupõem a mobilização coletiva, tais como a organização
em associações, coletivos e movimentos sociais, em prol do reconhecimento de uma identidade
comum e de direitos coletivos, como tem sido teorizado pela Sociologia dos Movimentos
Sociais (GOHN, 2019a; 2019b). Adicionamos à nossa investigação a noção de engajamento
(SIMONET, 2010), enquanto dimensão relacionada à adesão dos sujeitos aos processos e
práticas participativas, no intuito de avaliar os efeitos da participação na transformação das
significações e representações acerca da cidadania.
La participación ciudadana y política, es una forma de apropiación del espacio
público. Es ser parte, tomar parte y es estar presente activamente en los procesos que
nos preocupan e interesan, es interesarnos en el bien público, influir en los procesos
de la toma de decisiones sobre los recursos sociales (ORTEGA RUBI, 2014, p. 5).

Consideramos que a participação, enquanto prática de exercício da cidadania, é capaz


de ampliar ou democratizar a sociedade, tornando-a mais inclusiva, ao reconhecer a
competência de crianças e adolescentes para a tomada de decisão coletiva. Essa democratização
implicaria na construção de uma cidadania plena, que envolva todos os agentes sociais,
independente de idade, cor, gênero ou etnia.
No caso de crianças e adolescentes, esses atores necessitam do auxílio dos adultos para
ter seu espaço garantido, onde possam manifestar seus interesses e suas opiniões.
[...] Participar significa influir directamente nas decisões e no processo em que a
negociação entre adultos e crianças é fundamental, um processo que possa integrar
tanto as divergências como as convergências relativamente aos objectivos pretendidos
e que resultam num processo híbrido (TOMÁS, 2007, p.49).

Embora as possibilidades de participação infantil tenham sido ampliadas a partir da


Convenção sobre os Direitos da Criança, que resultou numa multiplicidade de iniciativas locais,
não é possível afirmar o caráter efetivo dessas ações, na garantia do direito à participação,
fazendo valer a voz das crianças e adolescentes. O paradigma da proteção se naturaliza na
assimetria das relações, e faz com que as desigualdades entre adultos e crianças persistam
mesmo nas iniciativas de participação, como demonstrado em estudos elencados em nossa
revisão bibliográfica (NEVES, 2004; ISAIA, 2007; GOULART, 2008).
58

A cidadania infantil exige o reconhecimento de crianças e adolescentes enquanto


categoria social minoritária, historicamente excluída, sujeitos de direitos sociais e políticos, no
sentido amplo da palavra, e do seu potencial para a transformação da realidade objetiva, por
meio da participação nas decisões acerca daquilo que lhes afeta, direta e indiretamente, seja na
família, na escola, na comunidade ou na cidade. Acreditamos que a construção da cidadania
infantil está relacionada à ação articulada entre crianças e adultos, numa distribuição de poder
mais equitativa e menos hierarquizada, que permitiria o desenvolvimento de uma cultura de
participação, capaz de transformar a tessitura das relações democráticas.
Um dos obstáculos para o desenvolvimento de uma cultura de participação é a falta de
autonomia de crianças e adultos em suas práticas profissionais, não apenas no âmbito escolar.
A autoridade e legitimidade das instituições é um pressuposto da democracia, mas espera-se
que os sujeitos participem ao atingirem uma idade mínima (16 anos para o voto em eleições
diretas e afiliação política), após um longo processo de socialização, sem haver uma
organização de espaços de formação e exercício da participação cidadã, com exceção de
projetos isolados de ONGs e movimentos sociais.
Embora a participação e o controle social tenham sido ampliados no Brasil nos últimos
30 anos, de forma institucionalizada, o país possui uma herança de regimes autoritários e de
políticas clientelistas que se fazem sentir nas crenças e valores compartilhados pela população.
No próximo capítulo apresentamos um breve histórico do processo de constituição da cidadania
nacional e da participação cidadã.
59

2 Democracia, cidadania e participação

A democracia enquanto regime político é construída por meio da participação social,


que serve como uma espécie de medida do quão democrática pode ser considerada uma
sociedade. “O termo democracia insere-se no contexto da organização de governo, como regime
político, sendo considerada como um processo de convivência social em que o poder é exercido,
direta ou indiretamente, pelo povo e em seu benefício” (OLIVEIRA; REIS, p. 78). Dessa
forma, a participação é o direito fundamental da cidadania, no sentido de que a efetivação dos
direitos que compõem a cidadania se dá principalmente pela participação nos processos
decisórios, sendo necessária a formação dos sujeitos para uma participação ativa.
Entretanto, não se pode falar em institucionalização da participação social e exercício
da cidadania fora do processo de construção ou reconstrução dos regimes democráticos
contemporâneos, ainda que esse processo tenha ocorrido de forma distinta no continente
europeu, onde as Grandes Guerras foram um fator determinante para o surgimento de uma
cultura de direitos humanos, e no contexto sul-americano, afligido por longos períodos de
ditadura caracterizados pela violação dos direitos civis e políticos.
Moscovici (1992) fala sobre a transição da democracia de regime político a sistema de
crenças, ao afirmar que existem objetos sociais que podem se constituir enquanto fato e valor
social. Durante a antiguidade e até a idade moderna, a democracia aparece como uma alternativa
à ditadura, seja em forma de tirania, despotismo ou idolatria de um indivíduo. O autor nos
lembra que a escolha entre democracia e ditadura aparece limitada ao campo político e
econômico, embora os sistemas tenham como base valores e práticas distintas. É apenas na
democracia que se reconhece a possibilidade de contestação e crítica do sistema como algo
legítimo, quiçá desejável.
Ao contrário dos regimes absolutistas, no qual os monarcas são considerados
representantes divinos, a democracia não encontra inicialmente apoio religioso, embora o autor
fale que a igualdade é um valor presente na Bíblia, já que todos os homens foram criados a
imagem de Deus. A democracia apresentaria então um caráter profano, se comparada ao direito
divino dos monarcas, sendo a autoridade de um líder reconhecida como uma constante
(DECONCHY, 1996).
Segundo Moscovici (1992), a transição teria ocorrido ao longo do século XX,
principalmente a partir dos Direitos do Homem (hoje em dia Direitos Humanos) como base
para as relações entre sujeitos e Estados. É no cenário do pós-guerra que isso ocorre, quando
60

cresce o número de expatriados que buscam o direito de se tornarem cidadãos de países


diferentes dos seus, como forma de escapar aos regimes totalitários. Os direitos humanos seriam
a única garantia de uma convivência pacífica, no contexto mundial de conflito entre
superpotências.
É na década de 1960 que o cenário de conflitos e movimentos sociais promove uma
intensificação do processo de democratização do pensamento social. O autor fala em uma
redescoberta dos direitos humanos, no sentido de reafirmação da sua importância para além das
Constituições e tratados, engendrando práticas e uma linguagem comum. A possibilidade de
apropriação dos direitos estava em sua ambiguidade, “[...] nós os considerávamos
suficientemente vagos e relativamente abstratos para considerá-los apenas de maneira seletiva”7
(MOSCOVICI, 1992, p. 39-40 tradução nossa).
A revolução cultural da década de 1960 seria justamente a redescoberta dos direitos
humanos e sua apropriação pelas minorias, na luta pelo reconhecimento e difusão do princípio
democrático. Moscovici (1992) fala de uma “mutação” da Declaração dos Direitos do Homem
(DUDH) para uma representação de mundo enquanto “[...] uma imagem da maneira como os
direitos e os atos devem estar associados uns aos outros e a seus efeitos sobre a vida em comum”
(p. 42). Assim, ao se tornarem crenças, tanto os direitos humanos quanto a democracia deixam
de ser objetos simplesmente racionais, passando a ser objetos de representação social.
Dentro do sistema de crenças que envolve a democracia, o autor atribui à igualdade um
papel fundamental, no sentido de que, embora diferentes em sua individualidade, todos os
homens são iguais. Da democracia também derivaria a crença de que todos têm direito a se
manifestar e expor suas opiniões, além de ter acesso à verdade, a qual estaria fundamentada na
transparência das ações, no direito à informação. Assim como todo sistema de crenças, a
democracia só faria sentido enquanto representação se incorporada pelos indivíduos,
reproduzindo os valores nas interações sociais e transmitindo-os para as próximas gerações.
No entanto, o autor finaliza sua reflexão afirmando que ainda não sabemos o que
caracteriza uma “personalidade democrática”, embora tenhamos estudos da personalidade
autoritária. Deconchy (1996) afirma que, ao longo do século XX, devido à ascensão de
ditaduras e regimes totalitários, os estudos de Psicologia estiveram direcionados à compreensão
da personalidade autoritária. Embora essas personalidades pareçam opostas, o autor sustenta

7
Do original em francês, « On les considérait suffisamment vague et passablement abstraits pour n’en tenir
compte que de manière sélective ».
61

que a oposição autoritarismo/democratismo não se sustenta, pois os valores que compõem a


democracia não se constroem apenas pela negação do autoritarismo e afirmação da liberdade.
Assim como a cidadania, a democracia também pode ser moldada pelos grupos e seus
valores necessitam estar legitimados não apenas nas instituições, mas nas interações e práticas
sociais. A democracia enquanto valor precisa ser vivida no cotidiano, para que deixe de ser uma
utopia e se transforme num sonho realizável. Essa vivência está atrelada à percepção de que a
ação dos indivíduos determina os rumos da sociedade, fator presente nas lutas dos movimentos
sociais pelo reconhecimento de direitos.
No campo sociológico, embasamos a construção desse trabalho nas três premissas
elaboradas por Gohn (2019, p. 8-9) acerca da democracia enquanto construção social e
histórica:
1ª. “[...] a democracia é uma forma de governo construída via processos de lutas e
confrontos, que tanto pode reafirmá-la como pode desconstrui-la ou destruí-la”, ou
seja, historicamente é possível identificar práticas que visam reforçar ou destruir as
fundações desse modelo de governo; 2ª. “[...] O processo de formação da opinião
pública e da vontade política dos cidadãos, nas democracias contemporâneas, interfere
diretamente no desenho institucional do modelo democrático vigente”, o que implica
na possibilidade de mobilização da opinião pública a partir da construção de narrativas
que reforcem o papel de um ou outro segmento na manutenção das instituições; 3ª.
“[...] a democracia possui aspectos educativos, advindos da participação dos
cidadãos(ãs), tanto na esfera pública civil como na esfera pública governamental,
dando fundamentos para o exercício da cidadania”, ou seja, é no exercício da
cidadania que se constrói a cultura política do país, podendo ser mais ou menos
democrática, de acordo com os valores que sustentam a participação.

Acreditamos que as práticas dos grupos sociais, na luta pela construção democrática,
bem como os processos de comunicação que fundamentam a opinião pública, sejam passíveis
de análise por intermédio da Teoria das Representações Sociais. Na história recente do país, o
discurso e a atuação dos movimentos coletivos sobre os direitos sociais e políticos, serviu para
conduzir a população em direção à construção de uma identidade nacional democrática, embora
as desigualdades ainda persistam. Para Teixeira (2002, p. 29) “[...] a cultura política – ancorada
em valores e tradições de solidariedade e de ação coletiva e reforçada na prática cotidiana –
deve ser considerada não como uma variável independente, mas como mais um fator a
impulsionar a participação”.
Na próxima seção pretendemos mostrar de forma breve como se deu essa construção
histórica e quais são os obstáculos para a participação cidadã efetiva, cujos reflexos seriam
sentidos nas crenças sobre a cidadania infantil, entendida como um processo construído na
interação entre crianças e adultos.
62

2.1 A construção da cidadania nacional

A construção de uma sociedade democrática passa pela afirmação de que certos valores
são fundamentais e devem ser garantidos pelo Estado. A relação entre a cidadania, no sentido
do conjunto de direitos titularizados pela população, previsto em documentos legais como a
Constituição Nacional, e a democracia, não apenas como modelo de governo, mas como um
valor indissociável, representado pela participação popular, é uma relação construída
historicamente, entre avanços e retrocessos. Os estudos de Carvalho (2018) sobre o processo
de constituição dos direitos civis e sociais mostram a existência de diferentes concepções de
cidadania ao longo da formação do Brasil enquanto nação.
Isto quer dizer que a cidadania inclui várias dimensões e que algumas podem estar
presentes sem as outras. Uma cidadania plena, que combine liberdade, participação e
igualdade para todos, é um ideal desenvolvido no Ocidente e talvez inatingível. Mas
ele tem servido de parâmetro para o julgamento da qualidade da cidadania em cada
país e em cada momento histórico (CARVALHO, 2018, p. 9).

O desdobramento da cidadania em direitos civis, políticos e sociais, gera a concepção


de que existem cidadãos incompletos, aqueles que não desfrutam de todos os direitos e não-
cidadãos, os que não se beneficiam de nenhum direito dentre os quais a cidadania é pensada.
Enquanto os direitos civis se baseiam na liberdade individual, os direitos políticos têm por
essência o autogoverno, a ideia de que os cidadãos são capazes de escolher representantes livres
e decidir os rumos do Estado. Já os direitos sociais, garantem aos cidadãos a “[...] participação
na riqueza coletiva” (CARVALHO, 2018, p. 10), tendo por base a ideia de justiça social. A
construção da cidadania enquanto fenômeno histórico, ilustrada inicialmente por Marshall
(1967) a partir da Inglaterra da Revolução Industrial, pressupõe a possibilidade de existência
dos direitos civis e políticos de forma isolada, mas a educação popular, principal direito social,
é apontado como pré-requisito para a expansão dos demais direitos.
Ao falar das especificidades desse processo no Brasil, Carvalho (2018) fala da primazia
dos direitos sociais enquanto principal diferença para os outros países. A colonização
portuguesa deixou de herança uma economia baseada na exportação de matéria-prima e no
trabalho escravo. O autor ressalta que, mesmo após a Independência, não havia pátria brasileira
nem cidadãos, e considera a escravidão o principal obstáculo para a cidadania nacional durante
o período colonial, pois “[...] escravidão e grande propriedade não constituíam ambiente
favorável à formação de futuros cidadãos” (p. 21).
[...] considera-se a participação política como um processo que se relaciona ao número
e à intensidade de indivíduos envolvidos na tomada de decisões. Isto porque, desde o
tempo dos antigos gregos, a participação consistiu idealmente no encontro de cidadãos
livres debatendo publicamente e votando sobre decisões de governo. Ela se articula
63

com a questão da democracia em suas formas direta e indireta (representativa)


(GOHN, 2019b, p. 32).

Cidadania, em sua concepção original, diz respeito à possibilidade de homens livres de


participarem nas decisões da cidade-estado, portanto, numa sociedade escravagista, não se pode
falar em igualdade de direitos, ainda que na antiguidade existisse uma parcela da população
excluída da vida política. A abolição tardia da escravatura, ocorrida em 1888, constitui o único
avanço para a cidadania no país até o final do século XIX, por ser o primeiro aceno do Estado
em direção à garantia dos direitos civis.
A Proclamação da República em 1889 não alterou significativamente o cenário da
cidadania no país pois, “[...] As veleidades democráticas de uma República liberal
representativa foram solapadas por um conluio político que limitava a participação política e
condicionava a inserção na esfera da cidadania aos interesses do Estado, que se revigorava”
(ROSEMBERG, 2016, p. 10). Ainda que tenha excluído o requisito de renda mínima para o
voto, a Constituição Republicana de 1891 continuava a impedir a participação de mulheres,
soldados e membros das ordens religiosas nas eleições. Ao Estado Republicano não interessava
garantir a participação dos cidadãos nas eleições, mas as condições para a instalação de um
novo modelo de desenvolvimento, baseado na mão-de-obra estrangeira.
Para Carvalho (2018), os críticos à participação popular da época cometeram vários
equívocos. Primeiro, “[...] O Brasil não passara por nenhuma revolução, como a Inglaterra, os
Estados Unidos, a França. O processo de aprendizado democrático tinha que ser, por força,
lento e gradual (p. 43)”. Não apenas o aprendizado dos eleitores, mas dos próprios
representantes políticos, que abusavam de métodos fraudulentos, para garantir a manutenção
das oligarquias latifundiárias. A corrupção já estava arraigada no sistema eleitoral,
independente da participação popular, sendo a negociação do voto uma forma de exercício do
poder que restava aos cidadãos. O aprendizado da democracia deveria ser garantido por meio
da educação primária e do exercício da participação cívica.
O Código dos Menores, aprovado em 1927, constitui o primeiro instrumento de
legislação a favor dos direitos das crianças e adolescentes, especialmente no que diz respeito à
regulamentação do trabalho infantil, no entanto, não havia obrigação do Estado na Constituição
Republicana de 1891 em fornecer educação primária, nem de intervir diretamente nas relações
trabalhistas. Mesmo com o ingresso do país na Organização Internacional do Trabalho (OIT),
em 1919, os direitos dos trabalhadores, como férias e aposentadoria, ainda estavam restritos a
algumas categorias, avançando de forma tímida.
64

A primeira experiência democrática no país, período que se estende até o golpe militar
de 1964, se encerrou mesmo com o avanço da participação popular nas eleições, em parte pelos
efeitos da polarização e da radicalização dos partidos, atribuída a uma falta de convicção
democrática, mas também pela ausência de instituições capazes de resistir aos conflitos de
interesses das elites dirigentes. A população assistiu ao desenrolar dos eventos sem que tivesse
uma participação direta nas decisões, como se os rumos do país fossem traçados à revelia.
Os anos que se seguiram ao golpe militar, de 1964 a 1985, foram marcados pela forte
repressão aos direitos civis e políticos, censura e violência por parte do Estado. Carvalho (2018,
p. 176-177), relata uma série de ambiguidades durante a ditadura militar, como o aumento
vertiginoso no número de eleitores, mesmo que os resultados fossem manipulados para atender
os interesses do governo, a unificação do regime de previdência social, com a criação do
Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), e a incorporação dos trabalhadores rurais à
previdência, categoria historicamente excluída dos direitos trabalhistas.
[...] A avaliação dos governos militares, do ponto de vista da cidadania, tem, assim,
que levar em conta a manutenção do direito do voto combinada com o esvaziamento
de seu sentido e a expansão dos direitos sociais em momento de restrição de direitos
civis e políticos.

O Movimento das “Diretas Já”, ocorrido em 1984, é considerado o auge da mobilização


popular no país. Estima-se que 500 mil pessoas tenham se reunido no Rio de Janeiro, e mais 1
milhão de pessoas tenham ido às ruas de São Paulo, para pedir o retorno das eleições diretas
para presidente. Ainda que os movimentos sociais estivessem ganhando espaço nos anos
anteriores, a unificação dos diversos setores da população em torno de uma pauta comum foi
uma maneira de mostrar ao governo militar que a redemocratização era uma demanda geral.
Apesar da articulação do movimento e da pressão popular, as eleições diretas não foram
aprovadas pelo Congresso naquele ano (GOHN, 2019b).
Esses eventos mostram que a mobilização e a participação popular no país, até o final
da década de 1980, vinha ocorrendo de forma apartada dos mecanismos institucionais, e sua
efetividade dependia da intervenção ou validação de representantes políticos, tendo suas
consequências minimizadas. Os resquícios dessa participação “tutelada” são a desconfiança da
população quanto às instituições e a falta de envolvimento em conselhos e mecanismos de
controle social.

2.1.1 A redemocratização ou construção da democracia


65

No cenário de luta pela redemocratização do país, Coutinho (1979, p. 41) afirma que
havia várias concepções de democracia, algumas até mesmo contraditórias entre si. Para o autor,
a ditadura militar era uma expressão de uma tendência elitista e autoritária inscrita na história
do país, com mudanças sempre vindo de “cima para baixo”. O autor fala em uma “debilidade
histórica” da democracia, e apontava como prioridade à época “[...] a construção e consolidação
de determinadas formas de relacionamento social que, num primeiro momento, não deverão
provavelmente ultrapassar os limites da democracia liberal” (COUTINHO, 1979, p. 42). A
transição da democracia liberal para uma democracia socialista, ocorreria a partir da
socialização da participação e da ampliação do acesso da população à vida política.
Mesmo após os avanços democráticos a partir da Assembleia Constituinte de 1987, e da
promulgação da Constituição Federal (CF) de 1988, os efeitos da ditadura militar e dessa
tendência histórica ao elitismo observada por Coutinho (1979) permaneceram no país, nas
práticas políticas populistas e na cultura de violência nas instituições de segurança pública,
razão pela qual Carvalho (2018) se refere à década de 1990 não como período de
redemocratização, mas de construção da democracia.
A Constituição Federal de 1988 representa a retomada de direitos civis e políticos, além
da ampliação do papel do Estado como garantidor desses direitos, em oposição ao estado
repressor da ditadura militar. Em detrimento da constituição, “[...] a dinâmica política segue,
contudo, demarcando, para a maior parte da sociedade, uma cidadania tutelada, restrita e
funcional ou de segunda ordem” (DOURADO, 2019, p. 7), ou seja, ainda que a pauta dos
movimentos sociais por direitos sociais e políticos tenha resultado na redemocratização do país,
no quesito da cidadania ainda se observava os efeitos históricos da desigualdade social.
Avritzer (2013, p.11) localiza na Assembleia Nacional Constituinte o início do
aprofundamento democrático, devido à intensa participação de movimentos sociais e de outros
atores, o que levou à “explosão da participação social no Brasil” nos anos que se seguiram. A
partir do processo de redemocratização, no final da década de 1980, foram criados vários
dispositivos de controle social e de aproximação da sociedade civil com a esfera de decisão,
por meio da institucionalização da participação social e popular.
Os movimentos sociais foram uma figura chave na redemocratização do país, e os
efeitos da incorporação desses atores e dos mecanismos de participação foram sentidos à
medida em que se acentuou o distanciamento da classe política, percebida pela população como
um segmento que atua apenas a favor de seus próprios interesses. Foi esse sentimento de
descrédito, aliado à crença na participação popular o que levou os brasileiros às ruas novamente
66

em 1992 para exigir o impedimento do mandato do segundo presidente eleito


democraticamente, Fernando Collor de Melo, devido a escândalos de corrupção noticiados por
membros do próprio governo. O movimento ficou conhecido como “Caras Pintadas”, e era
composto principalmente por jovens, sem necessária filiação partidária.
Segundo Avritzer (2013), a partir dos anos 1990 são três as principais formas que
constituem o tripé participativo no país: os conselhos que constituem o controle social de
políticas em áreas como saúde e assistência social; o orçamento participativo, iniciado em Porto
Alegre em 1988 e adotado por diversos municípios, como forma de aproximar a população da
gestão; e as conferências nacionais, com o intuito de propor uma agenda comum no âmbito da
política nacional. No entanto, apesar dos inúmeros avanços nos direitos civis, políticos e sociais
a partir da redemocratização, a situação de desigualdade social e econômica no país se acentuou.
Mesmo com o crescimento da economia nacional, que chegou a ser a considerada a 8ª maior do
mundo, o país atingiu no ano de 1989 o pior índice no quesito de distribuição de renda. A
ampliação da participação social nos últimos 30 anos de democracia não foi capaz de extinguir
o abismo de desigualdade perpetuado desde os tempos da colonização.
Ao abordar o processo histórico de construção da cidadania a partir das mudanças na
estrutura social e governamental, em direção à democracia, tivemos a intenção de elucidar as
especificidades desse lento processo para o conjunto de direitos que compõem a cidadania e o
reconhecimento da população da legitimidade do Estado. A centralidade do Poder Executivo,
constantemente visto como o único responsável pela ampliação da cidadania, e a legitimidade
do Estado democrático de direito, entre avanços e retrocessos, teve como consequência um
modelo de representação política que caiu em descrédito para grande parte da população.
Tem se verificado no país um alto índice de absenteísmo nas eleições e um esvaziamento
dos dispositivos de participação (LÜCHMANN; BORBA, 2008), o que sinaliza uma falta de
confiança da população nas instituições e nos efeitos da participação.
Na falta de representação respeitável e respeitada, o fortalecimento da república e da
democracia fica dependendo sobretudo do envolvimento dos cidadãos. À primeira
vista, esse envolvimento tem se limitado cada vez mais ao exercício do voto para a
constituição da representação. Ora, o voto é reconhecidamente um mecanismo
participativo necessário, mas insuficiente, como se tem observado em quase todos os
sistemas de representação existentes no mundo. Acresce-se a isso que as ruas têm
praticamente desaparecido do cenário do palco de demonstrações políticas. Mas é
preciso ficarmos atentos para o surgimento de novo instrumento de participação, que
pode adquirir grande importância. Refiro-me, naturalmente, às redes sociais
(CARVALHO, 2018, p. 247).

O documentário “Encantado: o Brasil em desencanto” (2020), produzido por Filipe


Galvon, em parceria com o canal francês Public Sénat, mostra uma geração de brasileiros que,
67

nascida no Brasil democrático, não viu se cumprirem as promessas de que a democracia traria
um fim às desigualdades sociais. Apesar dos avanços nos direitos sociais, como a Lei nº
12.711/2012 (BRASIL, 2012), responsável por destinar 50% das vagas das universidades
públicas para estudantes oriundos de famílias com renda per capita abaixo de um salário-
mínimo e meio8, que tenham sido escolarizados em escola pública, e a expansão dos programas
de transferência de renda, como o Bolsa Família, o índice de desemprego tem crescido
significativamente nos últimos anos, principalmente entre a população mais jovem.
Recentemente, os impactos causados pela pandemia de Covid-199, mostram que a população
mais pobre é a mais atingida pelas crises, sendo encontrado um índice de mortes mais alto entre
a população negra e periférica (MATTA et al, 2021).
No âmbito da participação, o que ocorreu após a redemocratização, mais
especificamente no governo dos presidentes Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Roussef, foi
“[...] o estímulo explícito à diversificação de formas de participação e sua crescente adoção, ao
longo dos anos 2000, observou-se uma mudança impressionante na “porosidade” da ação
governamental às influências dos cidadãos e organizações da sociedade civil” (PIRES, 2013, p.
36), sendo a participação social considerada uma marca da gestão dos governos do Partido dos
Trabalhadores (PT).
Instaura-se um cenário ao mesmo tempo de insuficiência e de esgotamento da
participação social (PIRES, 2013), onde ocorre um duplo movimento, por um lado a ampliação
da participação institucionalizada, na incorporação da participação cidadã como estratégia de
governo, com a criação de diversos conselhos e conferências, paralela à diminuição dos efeitos
da participação social, com a criação de comissões e órgãos técnicos aos quais a população não
tem acesso, responsáveis pela construção de grandes obras de infraestrutura e as ações de
desenvolvimento econômico, apesar dos protestos sociais.
De um lado, as demandas sociais são postas como direitos (ainda que limitados),
abrindo espaço à participação cidadã via ações cidadãs. De outro, há perdas,
principalmente de autonomia dos movimentos e o estabelecimento de estruturas de
controle social de cima para baixo, nas políticas governamentais para
os movimentos sociais. O controle social instaura-se, mas com sentido dado pelas
políticas públicas, ainda que haja a participação cidadã no estabelecimento das
normativas (GOHN, 2011, p. 340).

Ao contrário da desativação dos conselhos e demais mecanismos de participação, como


tem ocorrido nos últimos cinco anos, com a diminuição da transparência das ações
governamentais, a solução estaria na ampliação da participação para o nível local (AVRITZER,

8
O salário-mínimo em vigor no ano de 2021 foi estabelecido no valor de R$1.100.
9
A COVID-19 é uma doença infecciosa causada pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2).
68

2013), compreendendo as populações tradicionais e demais segmentos historicamente


excluídos do processo de deliberação, pois os mecanismos têm reproduzido a desigualdade
verificada na sociedade brasileira, na falta de acesso e de representatividade dos conselhos.
Também seria necessária maior articulação entre os mecanismos de participação em suas
diferentes esferas, municipal, estadual e nacional (PIRES, 2013), pois o que se tem observado
é uma falta de diálogo entre esses níveis, resultando em deliberações contraditórias, ou no
isolamento das ações a nível local.
A construção histórica da cidadania no país se deu de forma desigual, mesmo com a
pressão dos movimentos sociais e da sociedade civil para a promulgação da Constituição
Federal de 1988. A conquista e ampliação dos direitos sociais e políticos, marco do processo
de redemocratização, ainda não foi capaz de alcançar toda a população. Os reflexos desse
processo podem ser sentidos na permanência do populismo e clientelismo nas relações políticas
institucionais. O questionamento dos princípios constitucionais e a fragilidade das instituições
se apresentam como um desafio para a construção de uma cidadania ativa, enquanto processo
psicossocial.
[...] Atualmente, alguns administradores públicos ainda tendem a conduzir as
políticas sociais para o campo da filantropia e da caridade, esvaziando o sentido do
público, do caráter de política pública. Há um esvaziamento da responsabilidade
pública, um apelo à moral conservadora, tradicional, remetendo as ações ao campo
das políticas sociais compensatórias, do burocratismo e até mesmo do velho
clientelismo. Os direitos transformam-se em benefícios concedidos. Os
administradores pouco inovam. A inovação advém das novas práticas geradas pela
sociedade civil (GOHN, 2011, p. 355).

Dito isso, entendemos que a participação social é uma medida da democracia e da


cidadania (GOHN, 2019b), e a partir dos modelos teóricos de avaliação da participação que
mais se aproximam da nossa construção teórica, na concepção de que não existe realidade a
priori, aqui nos interessa não apenas os fatos “objetivos”, mas a forma como os processos são
representados pelos grupos sociais, nas relações com os demais grupos e suas práticas.
Em um ensaio sobre as eleições presidenciais no Brasil em 2018, Guareschi e Guerra
(2019, p. 380) falam sobre a importância do olhar psicossocial sobre os fenômenos políticos,
que constituiria “um espaço localizado ‘entre’ as estruturas econômicas e sociológicas”.
Embasados na Psicologia Social de Moscovici, os autores falam sobre a existência de uma
dimensão subjetiva que se constrói a partir da realidade objetiva, e da necessidade de um olhar
intermediário, que evite tanto o objetivismo quanto o subjetivismo.
Avaliando o contexto de crescimento e propagação de notícias falsas (ou fake news) que
influenciaram o resultado das últimas eleições, semelhante ao que ocorreu nos Estados Unidos,
69

Guareschi e Guerra (2019, p. 368) afirmam que a psicologia social oferece ferramentas para a
compreensão dos efeitos da comunicação e da mídia sobre o discurso público, pois o fenômeno
das notícias falsas atinge a população no nível afetivo e ideológico, contrariando a noção do
sujeito racional da modernidade.
[...] É por esse aspecto que consideramos relevantes as contribuições que a psicologia
social pode somar à busca por compreensão desse processo, oferecendo uma
interpretação que relacione os chamados elementos objetivos (quantitativos,
numéricos, econômicos) aos chamados elementos subjetivos (qualitativos,
discursivos, psicossociais).

A análise política e social do contexto brasileiro desde o impeachment da presidenta


Dilma Roussef em 2016, e da aparente polarização que se instaurou no país desde então, requer
uma análise do psíquico social, para entender o “caldo de cultura” (GUARESCHI; GUERRA,
2019) que resultou na eleição de um presidente de extrema-direita em 2018, sob a influência da
mídia e da justificativa do combate à corrupção. Para os autores, as eleições presidenciais que
elegeram Jair Bolsonaro e as estratégias de comunicação de seu governo ilustram a fragilidade
das instituições democráticas brasileiras, ainda incapazes de lidar com a influência das novas
tecnologias de comunicação, como as redes sociais digitais.
É importante frisar que é nesse contexto social e político que o país tem enfrentado a
pandemia de Covid-19, que aflige o cenário mundial desde o início de 2020. Há uma disputa
de narrativas acerca do vírus e as possíveis medidas de contenção dos impactos econômicos da
pandemia, como o uso de máscaras de proteção facial, o confinamento (lockdown) e a vacinação
em massa. Há um apelo à solidariedade da população, que se contrapõe a argumentos em prol
das liberdades individuais, pois algumas das medidas de proteção estão relacionadas a restrições
que diminuiriam o risco de propagação e de contaminação pelo vírus, que causou a morte de
mais de 650 mil brasileiros.
A democracia brasileira, entre avanços e retrocessos, é representada hoje por um
conjunto de práticas, rituais e instituições, como as eleições diretas, os referendos e consultas
públicas, os sindicatos, os partidos políticos, e as organização da sociedade civil. Concordamos
com as afirmações de Guareschi e Guerra (2019) sobre a necessidade de um olhar psicossocial
sobre os fenômenos, embasadas na relação entre a realidade objetiva e a realidade subjetiva dos
grupos. Aqui nos interessa as crenças e os valores considerados necessários à democracia, como
a tolerância, o respeito à diversidade e ao pluralismo de ideias, que constituiriam o aparato
simbólico a ser trabalhado na educação, por meio dos mecanismos de participação.
Nascemos brasileiros apenas formalmente, mas tornamo-nos, de fato, brasileiros,
como identidade coletiva, quando construirmos paulatinamente através de nossas
70

práticas cotidianas o sentimento de um povo, apesar das diferenças étnicas,


sociais e culturais existentes (CASTRO, 2001, p. 118).

A próxima seção abordará os modelos de participação que serviram de base para a nossa
pesquisa, inclusive os modelos construídos no âmbito da avaliação da participação de crianças
e adolescentes, que consideramos adequados para abordar a cidadania infantil, nosso objeto de
pesquisa. A noção de responsabilidade (MARKOVÁ, 2017), será apresentada como uma
alternativa à concepção da cidadania enquanto um conjunto de direitos e deveres, fundamental
para o ensino e aprendizado de valores e da alteridade.

2.3 Participação, reconhecimento e responsabilidade

Ao observar o processo de construção da democracia e da cidadania no país, é possível


afirmar que, mesmo após a implementação do voto, por muito tempo a participação popular se
deu à margem dos mecanismos institucionais, como forma de resistência ao Estado, que se
utilizava do populismo para apaziguar as demandas da população pela ampliação de direitos.
Como falar em participação política no país, se ao longo da história houve uma concentração
do poder de decisão nas mãos de uma elite econômica, e, mesmo após a Proclamação da
República, o país alternou entre períodos de democracia e ditadura civil-militar?
Se a participação popular está articulada à democracia enquanto forma de governo, a
afirmação de que a democracia no Brasil começa a se desenvolver a partir da segunda metade
do século XX, encontra fundamento no processo de mobilização popular que levou ao fim da
ditadura militar e à promulgação da Constituição Federal de 1988.
A participação tem caráter plural em termos de classes, camadas sociais e perfis
político-ideológicos. Nos processos que envolvem a participação popular, os
indivíduos são considerados como “cidadãos”. A participação articula-se, nesta
concepção, com o tema da cidadania (GOHN, 2019b, p. 35).

Assim como a cidadania, a participação possui um caráter polissêmico, e por meio de


um processo de adjetivação é possível encontrar na literatura o desenvolvimento de diferentes
modalidades de participação: social, popular, cidadã, política etc. Gohn (2019a, p. 54) enumera
os dez modelos teóricos mais utilizados para a análise do fenômeno da participação, a partir da
sistematização dos aspectos que geram o engajamento dos cidadãos, esses aspectos variam
desde as características e disposições individuais, à organização coletiva para o reconhecimento
dos direitos de populações marginalizadas.
71

No campo da Sociologia dos Movimentos Sociais, esses modelos coexistem, apesar de


surgirem em contextos históricos distintos, sendo retomados e aprofundados por autores
contemporâneos, como mostra o ressurgimento dos modelos autonomistas nas manifestações
populares de 2013 no Brasil, caracterizadas pela não vinculação a partidos políticos (GOHN,
2019b). São esses os modelos classificados pela autora:
1, escolha racional; 2, proximidade dos centros de poder e da posição social dos
indivíduos na sociedade; 3, mobilização política institucional; 4, identidade coletiva;
5, teoria crítica e reconhecimento de direitos; 6, engajamento militante ou
neomarxista; 7, decolonial; 8, abordagem relacional ou do cyberativismo; 9, de
gênero, a partir de grupos de mulheres; e 10, autonomistas.

Neste trabalho nos interessam as abordagens de número 4 e 5, conforme identificadas


pela autora, denominados de identidade coletiva (GAXIE, 2001; 2002), e teoria crítica e
reconhecimento de direitos (HONNETH, 2009), pois acreditamos serem as que mais se
aproximam do fenômeno da cidadania infantil e da sua construção enquanto objeto de
representação social. Primeiro, a cidadania infantil requer o reconhecimento da infância
enquanto categoria social minoritária e, segundo, porque a criança é um sujeito social que
necessita do apoio do adulto na luta pelos seus direitos, como mostra a articulação dos
movimentos sociais em prol do direito à educação ao longo do século XX.
Ao falar da abordagem de identidade coletiva, Gohn (2019a, p. 56) afirma que “[...] a
identidade é relacional e construída, no tempo e no espaço. Ela representa a identificação do
“nós” e do “outro”, e, dentro de um conflito social, permite se autoidentificar e identificar o
inimigo”. Ao aproximar esse modelo do nosso embasamento teórico psicossociológico, a
Teoria das Representações Sociais, reafirmamos a importância do modelo ternário
moscoviciano, na forma como este é retomado pela abordagem dialógica (MARKOVÁ, 2008;
2017). Para a autora, a tríade dialógica (Ego-Alter-Objeto) e a alteridade (na relação Ego-Outro)
são condições fundamentais para a ação ética.
O processo de reconhecimento e diferenciação de si e do outro (alteridade) é a base da
construção da subjetividade e da identidade, e, no caso das relações geracionais, o conflito se
dá pela assimetria de poder entre crianças e adultos, numa relação em que a autoridade dá lugar
ao poder, fundamentado na diferença de idade ou experiência de vida. Faz-se necessário
diferenciar autoridade e poder, pois embora os dois sejam fenômenos relacionais, eles são
fundamentalmente diferentes. Enquanto a autoridade envolve responsabilidade epistêmica para
com o Outro, o poder prevê o uso da força e da imposição da vontade.
A assimetria per se não configura conflito nas relações dialógicas. Quando há confiança
epistêmica, “[...] esta se manifesta como disposição das pessoas de aprenderem umas com as
72

outras” (MARKOVÁ, 2017, p. 183). Nesse caso, há o reconhecimento de uma autoridade


legítima, e o Outro é alçado a uma “posição de confiança”, uma fonte confiável de
conhecimento e informação. A autoridade então decorre dessa relação de confiança,
mutuamente dependente, pois ao mesmo tempo em que o Ego acredita na competência do
Outro, há uma confiança na capacidade de aprendizado do Ego.
Na relação intergeracional, a autoridade do adulto estaria comumente baseada apenas
no fator geracional, o que colocaria a criança em uma posição de subalternidade. A autoridade
fundada na confiança epistêmica envolve uma mudança dessas relações, no reconhecimento da
capacidade da criança de participar da construção do mundo social, o que requer uma
negociação da posição que os sujeitos ocupam, tornando as relações menos verticalizadas.
Adultos e crianças estão em posições diferentes na vida. Por ser mais velho no mundo,
o adulto tem uma posição mais favorável para fazer as escolhas em comparação com
a criança, por isso, ele não deve ficar refém das escolhas dos mais novos. O adulto
não pode abrir mão de sua autoridade e, por outro lado, essa autoridade não pode ser
construída a partir de práticas autoritárias. É necessário ouvir as crianças e possibilitar
o protagonismo delas, sem cair na relação de dominação imposta pela intimidação e
imposição, que são características do autoritarismo (NIENOW; LORENSINI, 2017).

Marková (2017) fala sobre uma possibilidade de ruptura da tríade dialógica na educação,
quando a assimetria se dá não apenas entre os participantes das relações, mas entre os objetos
imaginados ou representados por estes. Quando alunos e professores buscam objetos de desejo
(figura 6), tais como fama, dinheiro ou poder, as relações tendenciam para o objeto, em
detrimento de uma aprendizagem dialógica, ilustrada pelo desvio e distanciamento dos vértices
do triângulo. A crise da autoridade e da confiança epistêmica são consequências dessa ruptura,
na busca de satisfação dos desejos na sociedade de consumo.

Figura 6. a ruptura da tríade dialógica

Fonte: Marková (2017).


73

A confiança epistêmica é a base da interação social dialógica (Ego-Alter), pois requer o


reconhecimento de que ambos, o Eu e o Outro, pertencem a um mesmo mundo social, com
valores e normas compartilhadas. Quando falamos sobre um objeto, acreditamos que o outro
nos entende, ao menos temporariamente, pois compartilha desse objeto e da mesma realidade.
Os homens são sistemas abertos únicos e o conhecimento de uns sobre os outros é
sempre incompleto. Em sua tentativa de manter e desenvolver mais ainda as relações
intersubjetivas e o reconhecimento social, eles se esforçam para expandir as fronteiras
do conhecimento apoiando-se na confiança/desconfiança epistêmica e usando suas
capacidades de imaginar e antecipar pensamentos, linguagem, comunicação e ações
de outros (MARKOVÁ, 2017, p. 200).

Acreditamos na possibilidade de horizontalização das relações geracionais, condição


necessária para a ampliação da concepção de cidadania tradicional para uma cidadania enquanto
processo ao longo da vida (JANS, 2004). Isso requer a superação das relações baseadas em uma
autoridade de “cima para baixo”, resgatando a confiança e responsabilidade epistêmica na ética
das relações dialógicas, no sentido de que crianças e adultos confiam na capacidade um dos
outros e se responsabilizam pela construção da cidadania, como ilustra a figura 7.
Tomando a criança como protagonista (o Eu), o adulto se configura como o Outro ideal
na relação em que se constrói a cidadania, enquanto objeto e objetivo da interação dialógica.
Dessa forma, propomos considerar a cidadania como um fenômeno interacional.

Figura 7. a tríade dialógica da cidadania infantil

Fonte: o autor.

A noção de responsabilidade amplia a discussão sobre a cidadania, não limitando o


aprendizado a um conjunto de direitos e deveres, comumente entendidos como opostos.
[...] Trata-se de uma dualidade falsa e prejudicial aos próprios direitos das crianças. É
evidente a simetria entre direitos e deveres. Como qualquer outro coletivo social, a
infância terá que receber, por parte das instituições socioeducativas, respostas
concretas às suas necessidades, estabelecendo-se o compromisso real da sua efetiva
participação, condição para que os seus direitos e deveres sejam reconhecidos e se
transformem em práticas e vivências quotidianas (TOMÁS, 2017, p 15).

Responsabilidade e direitos seriam fenômenos simbólicos das relações interpessoais, a


diferença estaria na forma como são representados pelos grupos sociais. Enquanto os direitos
74

necessitam do reconhecimento da sociedade para serem postos em “prática”, a responsabilidade


é assimétrica, no sentido de não exigir reciprocidade do Outro.
Para Marková (2008), ter e aceitar responsabilidades é um dos direitos humanos
fundamentais, e pressupõe agência e intencionalidade. O senso de responsabilidade pode estar
baseado no bem-estar do sujeito e do grupo, ou no respeito a valores inalienáveis, superiores ao
indivíduo e seus próximos. O que determinaria a responsabilidade é o sentimento de
pertencimento ao grupo, a posição que o sujeito ocupa no espaço social.

2.3 A cidadania enquanto processo psicossocial

Conceber a cidadania enquanto um processo, ao invés de um estatuto, requer uma


mudança na forma como visualizamos o exercício e a formação de novos cidadãos, ampliando
a noção clássica relacionada apenas à titularização de um conjunto de direitos. Nessa nova
concepção, o cidadão não é aquele nascido em determinado Estado ou país, conforme as
determinações legais, principalmente em um momento histórico em que as fronteiras se tornam
cada vez menos restritivas.
O cidadão passa a ser aquele que se identifica enquanto membro de uma coletividade,
caracterizada por compartilhar determinados valores sociais ou políticos, vinculadas a um
território ou não, e que consequentemente age em prol da permanência ou transformação desses
valores, sejam eles hegemônicos ou minoritários.
Assim, tornar-se cidadão não se constitui uma tarefa apenas baseada na aprendizagem
diligente e racional de ideias e valores, mas na projeção afetiva do eu aos espaços, aos
lugares onde a vida humana se constrói através do convívio com o outro. Parece que
tornar-se cidadão – habitante da cidade e senhor de direitos e obrigações engendrados
no âmbito da convivência com os outros – está enredado nos processos de participação
nos destinos da cidade que tornam viáveis os destinos de cada um (CASTRO, 2001,
p. 116).

No âmbito da pesquisa em representações sociais, Gutierrez (2011) afirma que a TRS


permitiria o acesso à cidadania na forma como ela é vivida e percebida pelos cidadãos, seus
valores, crenças e práticas. São as práticas dos cidadãos, nas interações e trocas cotidianas, que
atualizam a cidadania, enquanto processo psicossocial. Isso implica uma ampliação do
fenômeno, de forma a abarcar elementos subjetivos e culturais, característicos de uma
população ou grupo social.
[...] la ciudadanía como una construcción social, es decir, no como una realidad
tangible, preexistente y estática, sino cómo algo que se va construyendo en la
convivencia social. Los seres humanos construimos permanentemente la realidad
mediante la negociación y la interacción. La ciudadanía es una construcción social
fruto de las relaciones que se establecen entre el individuo y el estado, el ciudadano y
las instituciones, el ciudadano y sus allegados (GUTIERREZ, 2011, p. 3).
75

Para a autora, os valores e crenças compartilhados pelos sujeitos são fundamentais para
a compreensão da herança cultural da comunidade, que teria um efeito na construção da
cidadania, das relações de poder e da comunidade política. O compartilhamento dos mesmos
valores e crenças estabeleceria um consenso, permitindo a comunicação entre os membros do
grupo acerca do objeto representado. A desigualdade de poder nas relações entre os grupos
sociais faz com que os valores considerados hegemônicos sejam impostos ao restante da
sociedade por meio da educação e da socialização, como uma visão de mundo dominante, que
ignora as diferenças culturais e identitárias.
los valores son considerados como referentes, pautas o abstracciones que orientan el
comportamiento humano hacia la transformación social y la realización de la persona.
Son guías que dan determinada orientación a la conducta y a la vida de cada individuo
y cada grupo social (GUTIERREZ, 2011, p. 8).

Os valores são um tipo específico de crença, que orienta a ação individual e coletiva ao
oferecer uma direção desejada para o comportamento. Como forma de conhecimento prático,
as representações sociais são construídas tendo como referência os valores do grupo, que
determina a percepção e a ênfase em determinadas características dos objetos, num processo de
focalização, como demonstra a ausência da libido na representação social da psicanálise
identificada por Moscovici (2012) na sociedade francesa da década de 1960.
A cidadania, enquanto representação social, pode ser perpassada por valores
democráticos, como a tolerância e o respeito, ou autoritários, como a força e a competição, de
acordo com o modelo de sociedade historicamente construído. No Brasil, as relações sociais
possuem resquícios das relações autoritárias e da segregação étnico-racial que marcou o país,
desde a colonização portuguesa.
Ortega Rubí (2019) propõe investigar a participação a partir de um olhar psicossocial,
como forma de compreender a construção da cidadania e dos processos democráticos. A autora
denomina esse processo de mudança do paradigma do individual para o social, baseado no
conceito de subjetivação (o processo de tornar-se sujeito). O desafio das sociedades
contemporâneas consistiria na mudança de uma concepção de sujeito enquanto consumidor,
característica do capitalismo de mercado, para um agente de transformação social, por meio de
um contexto de formação e de reflexão acerca das práticas de participação e das subjetividades.
O modelo de investigação desse paradigma requer uma abordagem multimetodológica
e interdisciplinar, devido à complexidade do fenômeno e das consequentes transformações
sociais que uma cidadania mais participativa engendra. A autora também ressalta a importância
da memória social como recurso para compreender o presente e para a constituição de uma
76

identidade comum, a partir dos fatos históricos e da forma como estes permanecem no
imaginário coletivo e nas práticas sociais. O resgate da memória coletiva serviria como
estratégia de fortalecimento da identidade e incentivo ao pensamento crítico.
[…] No processo de construção de uma cidadania ativa, o papel da memória é criar e
renovar os significados, a começar pelas estruturas com as quais os cidadãos se
identificam ao compartilhar determinados valores sociais e fatos históricos aos quais
aderem emocionalmente. A memória favorece a compreensão do que acontece no
presente (ORTEGA RUBI, 2019, p. 7.14, tradução nossa).10

A participação implicaria uma espécie de sincronia entre o que se pensa e o que se faz,
pois, na relação dinâmica entre representações e práticas sociais (ABRIC, 1994; CAMPOS,
2003; WOLTER; SÁ, 2013), os sujeitos e grupos que mais participam são aqueles que possuem
maior incentivo para fazê-lo, que constroem uma atitude favorável sobre a participação cidadã
(ORTEGA RUBÍ, 2019). A percepção dos efeitos positivos da ação social contribuiria para o
aumento da motivação e a adesão aos diferentes estilos de participação, resultando num
aumento do comportamento participativo.
O oposto também é verdadeiro, uma atitude desfavorável seria consequência da
percepção de que a participação não resulta em mudanças significativas na qualidade de vida
dos sujeitos, de que não vale a pena participar, ou de que participar é arriscado, como
identificado pela autora no discurso de alguns jovens mexicanos, quando se referem à violência
urbana e a falta de acesso a serviços básicos (ORTEGA RUBÍ, 2019).
A investigação do paradigma é baseada em três processos contínuos: resistência,
agência e transformação social, A resistência diz respeito à relação do pensamento social com
as formas de conhecimento reificado, como a ciência e a ideologia, de forma que os grupos são
capazes de ressignificar os conhecimentos e integrá-los ao seu sistema cognitivo de forma ativa.
Por agência, entende-se as possibilidades de ação, da forma como são percebidas pelos sujeitos,
tendo como objetivo final a transformação social por meio da ação coletiva.
Nesse processo, “[...] a vida cotidiana, representações sociais, práticas e a memória
social adquirem relevância epistemológica no estudo da participação cidadã e da construção da
cidadania” (idem, p. 7.9, tradução nossa). É importante frisar que o modelo articula
representações, práticas e memória social, como elementos do processo de subjetivação, mas

10
In the process of building an active citizenship, the memory’s role is to create and renew meaning, beginning by
the frames with which citizens feel identified when sharing certain social values and historical stories with which
they adhere emotionally. Memory favors the understanding of what happens in the present (ORTEGA RUBI, 2019,
p. 7.14).
77

propõe o resgate da memória coletiva, como forma de intervenção. O objetivo é a formação do


pensamento crítico, para promover o envolvimento dos cidadãos na vida comunitária.
[…] A formação para a participação no processo de construção de uma cidadania
ativa, é o ápice de um processo de formação do pensamento crítico-social sobre o qual
a mudança social é formulada e as bases culturais são fortalecidas, para que a
democratização se estenda e penetre todos os espaços e tempos da sociedade
(ORTEGA RUBÍ, 2019, p. 7.9)11.

Ressaltamos a importância atribuída à ação docente e a educação formal nesse processo


de formação de cidadãos participativos, que vai ao encontro da necessidade de democratização
da escola e da sociedade, com o reconhecimento de crianças e jovens como agentes
participativos (ORTEGA RUBÍ, 2021). Entretanto, o aprendizado da participação, enquanto
prática social requer, além da ressignificação de representações sociais, a transformação das
relações intergeracionais e a criação de dispositivos onde crianças e adultos possam exercer a
cidadania de forma mais abrangente.
A prática da participação é um dos elementos que concretiza a cidadania enquanto
objeto de representação, bem como outras práticas democráticas, tendo em vista o caráter
simbólico da cidadania. Participar significa “fazer parte”, “tomar parte”, estar implicado num
processo de negociação e decisão pelos rumos de uma coletividade. “Referir ‘a parte’ implica
pensar o todo, a sociedade, o Estado, a relação das partes entre si e destas com o todo e, como
este não é homogêneo, diferenciam-se os interesses, aspirações, valores e recursos de poder”
(TEIXIRA, 2002, p. 27). Neste trabalho, focalizamos a participação infantil como um processo
que envolve crianças e adultos, numa relação dialógica, com interesses distintos, mas tendo por
objetivo final a cidadania.

2.4 A Sociologia da Infância

Em uma conferência no Congresso de Sociologia da Infância de 1937, Marcel Mauss


(2010) apontou o que viria a se tornar as bases da Sociologia da Infância da forma como a
conhecemos atualmente. Ao falar da educação enquanto processo de formação de uma geração
por outra, o sociólogo identifica as particularidades do meio social, historicamente
determinado, como sendo responsáveis pela construção da infância enquanto fato social.

11
Formation of participation in the process of building an active citizenship, is the culmination of a formation
process of social-critical thought from which social change is formulated and cultural bases are strengthened so
that democratization extends and penetrates all spaces and times of society (ORTEGA RUBÍ, 2019, p. 7.9).
78

Ao observar as pesquisas da época, especialmente as de Piaget e Wallon, com quem


teve a oportunidade de dialogar, Mauss relata que a capacidade das crianças em estabelecer
regras próprias para o brincar e o brinquedo, diz respeito ao pensamento moral, o que
posteriormente passou a ser entendido como a capacidade de construção de culturas infantis
(MÜLLER, 2006) que apresentam uma lógica particular de cada infância, enquanto categoria
social.
O problema intergeracional também é identificado com um objeto de estudo da
sociologia da infância, ao reconhecer as diferenças entre as gerações, mais especificamente
entre adultos e crianças, como resultado das relações que estabelecem entre os sujeitos na
educação e na sociedade em geral. Sarmento (2007) fala no surgimento de uma nova Sociologia
da Infância no final da década de 1980, ao propor mudanças na concepção de criança e de
infância, decorrentes do reconhecimento dos direitos das crianças e adolescentes e de sua
condição de atores sociais competentes.
James, Jenks e Prout (apud SARMENTO, 2007) classificam as imagens sociais
produzidas sobre a infância em dois períodos principais: o da “criança pré-sociológica” e o da
“criança sociológica”. No primeiro período, os autores se referem a um trabalho de imaginação
da infância, que desconsidera as condições materiais de existência e de produção da cultura,
mas que foram disseminadas no senso comum a partir da obra de filósofos e romancistas,
enquanto o segundo é caracterizado pelo olhar das ciências sociais sobre a categoria.
A transição de um período para o outro é marcada pela imagem da criança que se
constitui por meio da socialização, processo delegado às instituições sociais como a família e a
escola. As imagens sociais produzidas sobre a infância coexistem na sociedade, não apenas no
momento histórico de sua produção, mas nos discursos e práticas dos grupos sociais. São essas
imagens que servem de substrato cultural e simbólico para a construção de representações
sociais sobre a criança e a infância.
Dentre as imagens da criança pré-sociológica (SARMENTO, 2007), algumas persistem
no discurso do senso comum, tais como a “criança má”, construída a partir da obra de Hobbes
e da ideia do pecado original, com forte cunho religioso; a “criança inocente”, que idealiza a
infância como a época da pureza e identifica a criança como naturalmente boa; e a “criança
imanente”, representada na obra de Locke, tem base na ideia da criança como uma tábula rasa,
caracterizada pela possibilidade de aprendizado por meio da razão e da experiência. Casas
(2006) classifica as imagens sociais da infância em positivas, equivalentes à criança inocente,
79

idealizada; negativas, se aproximam da criança “má”, originadas do âmbito religioso; ou


ambivalentes, nas quais convivem qualidades distintas separadas por um antes/depois.
Já no discurso científico, há um predomínio de imagens sociais derivadas da Psicologia
da Desenvolvimento, como a imagem da “criança naturalmente desenvolvida”, desenvolvida a
partir dos estudos da epistemologia genética de Piaget, com referência ao desenvolvimento
infantil em estágios sucessivos de maturação; e a “criança inconsciente”, presente nos
pressupostos psicanalíticos, que atribui à infância a origem dos traumas e de futuros desvios de
conduta, devido às relações disfuncionais estabelecidas com as figuras parentais.
Diante de todas as formas de invisibilidade às quais a infância tem sido submetida, a
predominância de teorias científicas que consideram as crianças como objeto de estudo e
conhecimento, recusando a elas o papel de participantes ou informantes capacitados, têm
contribuído para o que o autor denomina de invisibilidade científica, ou seja, a construção de
modelos de interpretação que valorizam a criança a partir das expectativas construídas pelo e
para o adulto. Dessa forma, as crianças são vistas como habitantes de um “mundo à parte”
(LANDSDOWN, 2014), sem considerar o impacto que exercem na vida dos adultos e da
comunidade em geral.
As imagens e representações “não são compartimentos simbólicos estanques, mas
dispositivos de interpretação que se revelam, finalmente, no plano da justificação da acção dos
adultos com as crianças” (SARMENTO, 2007, p. 33), ou seja, elas são utilizadas pelos grupos
para justificar práticas e comportamentos para com as crianças. Incentivar metodologias
participativas e a pesquisa com crianças seria uma forma de combater essa negatividade, mas
isso requer criatividade para a construção de estratégias que permitam a expressão da alteridade
infantil, naquilo que é característico da geração, descontruindo as imagens adultocêntricas,
ainda compartilhadas na sociedade.

2.4.1 A emergência da Participação infantil no contexto político mundial

No caso das crianças e adolescentes, houve uma evolução do seu estatuto de cidadãos
ao longo do século XX, passando de cidadãos incompletos, em vias de concretização, a
cidadãos plenos, tendo reconhecidos os seus direitos, inclusive à participação política. Casas
(2006) postula que o processo histórico dos direitos da criança teve seu maior avanço no último
século, quando as crianças ganharam o “direito a ter direitos”. Landsdown (2014) afirma que
até a promulgação da Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC), os direitos civis da
80

criança diziam respeito a ter um nome e uma nacionalidade, embora os direitos de provisão e
proteção já estivessem bem estabelecidos.
A luta em prol dos direitos da infância, desde a primeira conferência da Organização
Mundial do Trabalho, em 1919, que regulamentou o trabalho infantil e garantiu melhores
condições para as operárias, culminou no âmbito mundial na Convenção sobre os Direitos da
Criança (CDC), promulgada em 1989, que consolida a concepção da criança enquanto sujeito
de direitos, após um longo processo de discussões iniciado no Ano Internacional da Criança,
em 1979.
Para Canavieira e Barbosa (2017, p. 373),
[...] o que é premente considerar, a partir dos excertos que se originam da CDC, é o
papel atribuído à participação infantil, enquanto cidadania participativa. Para tanto,
reputa-se à participação valor em si mesma, pois passa a constituir-se como condição
para efetivar o discurso que impulsiona os direitos.

Embora a participação social e cidadã venha sendo teorizada e tenha seus


desdobramentos científicos nas Ciências Humanas e Sociais (TEIXEIRA, 2012; GOHN, 2020),
com ênfase em modelos filosófico-epistemológicos distintos, o conceito de participação está
voltado principalmente para o estudo de grandes mobilizações sociais, como as manifestações
de estudantes ocorridas em maio de 1968, o Movimento “Diretas Já” no Brasil e a Primavera
Árabe, fenômenos onde predominou a participação de adultos e jovens.
A participação infantil, enquanto conceito sociológico, consiste em fenômeno recente,
surgido a partir das mudanças na forma de conceber à infância ao longo do último século e de
“um movimento generalizado em direção ao reconhecimento da participação como elemento
central no conceito de democracia, que inclui cada vez mais camadas da população” (GAITÁN
MUÑOZ, 2020, p. 102). A autora fala no reconhecimento dos direitos de participação de
mulheres, crianças e outras populações minoritárias como parte desse movimento.
O direito à participação, que deriva do Artigo 12 da CDC, obriga os países signatários
a criarem espaços e oportunidades para que as crianças expressem suas opiniões em tudo aquilo
que afeta suas vidas, direta ou indiretamente, não envolvendo limites de idade. Para Landsdown
(2014), esse artigo se refere às crianças enquanto indivíduos e enquanto categoria social,
podendo incluir grupos menores. A autora analisa o impacto da CDC e afirma que apesar dos
avanços, as iniciativas de participação ainda dependem da boa vontade dos adultos e carecem
de financiamento satisfatório.
O direito de participação é comprovadamente o direito com menos progresso e essa
constatação nos permite afirmar a urgente necessidade de envolver a sociedade em
um processo de aprendizagem que reveja a relação assimétrica entre adultos e crianças
81

e permita um compartilhamento de divisão de poder e negociação (BROSTOLIN,


2021, p. 4).

No que tange à participação infantil, esta consistiria numa ampliação da democracia, ao


incluir crianças e adolescentes nos processos de decisão, no compartilhamento de
responsabilidades e no reconhecimento de sua competência enquanto atores sociais. No entanto,
ainda são poucos os espaços destinados à participação de crianças e adolescentes, e há o risco
de descontinuidade das ações devido ao caráter governamental das políticas públicas
(SARMENTO; FERNANDES; TOMÁS, 2007).
A partir da CDC, o que muda é a concepção que se tem das crianças e adolescentes
enquanto sujeitos de direitos, elas passam a ser consideradas a partir de suas próprias
potencialidades, o que implica repensar o exercício da participação sociopolítica e da cidadania
(SARMENTO; FERNANDES; TOMÁS, 2007). Entretanto, Marchi e Sarmento (2017)
chamam a atenção para o paradoxo na construção do documento, pois o processo de negociação
que resultou na promulgação da CDC não incluiu o público-alvo da convenção, as crianças e
adolescentes, reforçando as relações de dominação intergeracional, além da desigualdade entre
os países membros da ONU, na qual predominam concepções dos países que os autores
denominam o Norte Global.
As crianças que “escapam” à norma da infância, ou a infância que não está adequada
à própria norma, são consequência do fato de que a ideia de infância, tal como
modernamente construída, não se constitui como realidade possível para as classes
econômica e politicamente dominadas. Nesse sentido, a desigualdade de condições de
vida e oportunidades entre as diversas crianças, que são normalmente vistas como
“imperfeições” ou “deformações” passíveis de serem “corrigidas” com a atribuição
de “direitos”, são antes características integrantes do processo histórico e social do
desenvolvimento do conceito moderno de infância (MARCHI; SARMENTO, 2017,
p. 956).

Para os autores, a concepção de infância presente na CDC é excludente, ao propor uma


normatividade que estaria baseada na criança europeia de classe média, desconsiderando as
condições de precariedade e subalternidade em que vivem as crianças das classes
desfavorecidas. Haveria um consenso quanto aos elementos simbólicos dos direitos da infância,
mas essas ideias não seriam universalizáveis, no sentido de que as práticas que são
desenvolvidas no âmbito da administração da infância, as políticas públicas e demais ações,
estão condicionadas à cultura local.
As condições em que vivem as crianças em países periféricos foram verificadas por Hart
(1992) e Landsdown (2011) ao investigarem ações de participação em países nos quais os
direitos mais básicos da população sequer estão “garantidos”. Atualmente, a crise dos
refugiados tem afetado milhares de pessoas, mas as crianças são o grupo mais afetado pela
82

guerra e demais conflitos, ilustrando “[...] a violação universal dos direitos da criança sempre
que os interesses econômicos ou políticos hegemônicos sobrelevam as necessidades de proteção
e desenvolvimento infantil” (MARCHI; SARMENTO, 2017, p. 960).
O campo dos Estudos Sociais da Infância afirma a necessidade de se avançar de um
paradigma de proteção da infância para o paradigma de participação infantil, pois “ao protegê-
las e garantir-lhes a segurança, simultaneamente, é negado a elas à possibilidade de serem
reconhecidas como participantes ativas das suas vidas e, por isso, cidadãos” (BROSTOLIN,
2021). O desafio consiste em encontrar um ponto de equilíbrio entre participação e proteção.
Nesse sentido, a escola ainda se constitui como principal ambiente de socialização das
crianças, porém em seu cerne persiste uma lógica que reproduz relações autoritárias, ao
contrário do que se pretende em uma sociedade democrática. Para Gaitán Muñoz (2020, p. 104),
“[...] os sistemas educacionais enfrentam um paradoxo: por um lado, têm a missão de formar
os alunos nas virtudes da cidadania, mas ao mesmo tempo oferecem pouca chance de praticá-
los, devido à desconfiança institucionalizada que estrutura as interações educacionais”.
A criança não é chamada a participar das decisões no ambiente escolar, exceto em datas
comemorativas e nos momentos de confraternização da comunidade escolar, sendo inserida
num espaço planejado e construído por adultos, que determinam o que se deve fazer e quando
se deve fazer, ou seja, a criança permanece num espaço de participação tutelada.
Embora tenha sido incluído na LDB (2007) um parágrafo sobre a necessidade de
material que verse sobre os direitos das crianças e adolescentes, é necessário ir além da
alfabetização e letramento em direitos. Conhecer os direitos é aspecto fundamental para o
exercício da cidadania, todavia transformar e democratizar a escola é tarefa imperativa.
[...] ela (a escola) deve ser revista na sua estrutura, organização, crenças e valores, de
modo a tornar-se um lugar privilegiado da infância e da criança e de sua participação
enquanto ser social de direitos e cidadã, para que possa melhor distribuir o poder no
seu âmbito e, quiçá, na sociedade (OLIVEIRA; REIS, 2013, p. 77).

Essa democratização das relações escolares exigiria um comprometimento por parte de


todos os atores envolvidos no processo educacional, pais, professores e gestores, numa
distribuição mais igualitária de poder intergeracional. Essa mudança nas relações sociais no
âmbito escolar poderia promover uma ampliação e ressignificação da democracia enquanto
objeto representado pelas crianças e adolescentes, valor social e sistema de crenças.
Canavieira e Barbosa (2017) afirmam que o tema da participação infantil possui duas
portas de entrada: o estudo das categorias sociológicas que deram origem à discussão acerca
das possibilidades da ação social, e a perspectiva dos direitos das crianças, presentes nos
documentos oficiais a partir da CDC. O que estamos a propor nesse trabalho é uma espécie de
83

caminho do meio, uma articulação das categorias sociopsicológicas que permitiriam a


compreensão das crenças e valores que persistem no imaginário social de crianças e adultos,
mesmo com as conquistas no reconhecimento dos direitos da infância.
As iniciativas de formação de professores se constituem como espaços de excelência
para a ressignificação de práticas docentes e representações sociais, devido à reflexão que
podem proporcionar acerca do trabalho docente. No capítulo 5 abordamos um estudo sobre o
projeto de formação docente denominado Cribiás, crianças sabidas, que atualmente se constitui
como um coletivo de professoras embasado nos pressupostos da Psicologia Infantil e da
Pedagogia-em-Participação (ANDRADE; COSTA, 2020; ANDRADE; SILVA, 2021;
ANDRADE, 2021), e tem atuado no fomento à participação infantil e o direito das crianças à
cidade.

2.4.2 Modelos de avaliação da Participação Infantil

A partir dos estudos das diferentes manifestações de participação infantil ocorridas após
a Convenção sobre os Direitos da Criança, em pesquisa para o Fundo das Nações Unidas para
Infância (UNICEF), Hart (1992) criou o diagrama denominado Escada de Participação (do
original Ladder of Participation) (figura 8), a partir de uma adaptação da metáfora criada por
Sherry Anstein em um ensaio de 1979. A escada é considerada o primeiro modelo de avaliação
da participação infantil, sendo composta por 8 degraus, três níveis de não-participação e cinco
níveis de participação. O autor considera que esse modelo poderia ser utilizado para maximizar
as oportunidades de participação em projetos, de acordo com a capacidade de cada criança, ou
na avaliação de ações e políticas públicas.

Figura 8. Escada de participação de crianças e jovens de Roger Hart (1992)


84

Fonte: EIRAS; MENEZES; FLÔR, 2020.

No nível mais baixo da não-participação estaria a manipulação, quando as crianças não


têm conhecimento ou compreensão de suas ações, sendo totalmente guiadas pelos adultos;
seguida da participação decorativa, quando as crianças são usadas para fazer volume em
eventos ou conferências; e do tokenismo, considerada uma espécie de pseudoparticipação, pois,
embora presentes, as crianças não possuem poder de decisão. Nos níveis de participação efetiva
estão a participação designada (ou delegação com informação), quando os sujeitos têm
conhecimento do que acontece, mas participar não é uma escolha; participação consultiva,
quando é dada a oportunidade de manifestação de opiniões; até os níveis que envolvem a
construção de projetos iniciados pelas crianças, iniciativa adulta com partilha de decisões com
a criança e processo iniciado e dirigido pela criança12.
Nos níveis mais altos de participação infantil, ainda que as decisões sejam
compartilhadas com os adultos, há um protagonismo da criança na proposição e condução das
ações. Esses níveis reconhecem a divergência de objetivos que pode haver entre crianças e
adultos no projeto. Para que a participação de crianças e jovens seja considerada efetiva, são
necessários alguns pré-requisitos segundo Hart (1992, p. 11, tradução nossa):
1. que as crianças compreendam as intenções do projeto;
2. que elas saibam quem decidiu envolvê-las e porque estão participando;
3. O papel das crianças no projeto deve ser significativo (ao invés de decorativo);
4. e a decisão de participar voluntariamente nas atividades deve ser das próprias
crianças.

Trilla e Novella (2001) afirmam que, ao utilizar a metáfora da escada, o modelo de Hart
conforma os níveis de participação numa figura evolutiva, como se cada nível fosse

12
Aqui utilizamos a tradução de Brostolin (2021), que por usa vez é embasada em Marques (2013).
85

caracterizado pela superação do anterior. Para esses autores, a participação é um conceito


polissêmico, que pode variar de acordo com o tipo de regulamentação ou metodologia utilizado,
no entanto, a forma mais eficaz de aprender a participar é participando.
O modelo de avaliação da participação infantil desenvolvido por Trilla e Novella (2001)
é composto por quatro classes: participação simples, participação consultiva, participação
projetiva e metaparticipação (figura 9). Diferentemente da escada de participação desenvolvida
por Hart (1992), na qual é possível conceber uma evolução gradual da participação em etapas,
da não-participação até a participação plena, a partir da metáfora da escada, a diferenciação
entre as categorias no modelo de Trilla e Novella é qualitativa, fenomenológica, o que implica
na possibilidade de coexistência das diferentes modalidades de participação. Da primeira à
última classe, o que ocorre é um aumento na complexidade da participação, podendo haver
subníveis ou graus dentro de cada classe.

Figura 9 - Modelo qualitativo de avaliação da participação infantil

Fonte: TRILLA; NOVELLA, 2001.

A participação simples diz respeito às atividades em que a participação é mensurada em


termos quantitativos, quando os sujeitos são contabilizados como espectadores, apenas pela sua
presença em determinado local. Nessa modalidade, os sujeitos não participam da organização,
nem das decisões a respeito do que acontece. Os autores se referem à pedagogia tradicional
como parte dessa modalidade, pois embora os alunos executem tarefas e sejam avaliados, não
cabe a eles decidir a forma nem o conteúdo das aulas.
Na participação consultiva, os sujeitos passam a ser ouvidos, são chamados a opinar ou
dar sugestões, embora estas possam ou não ser acatadas. O maior exemplo dessa modalidade
seriam as eleições ou consultas públicas, nas quais os sujeitos têm a oportunidade de participar,
86

dentro das condições predeterminadas, tais como a escolha de um representante ou posicionar-


se a favor ou contra determinada proposta em um referendo.
O que diferencia a participação projetiva das duas anteriores, diz respeito à condição de
agente que os envolvidos passam a ter. Essa modalidade requer compromisso e engajamento,
no sentido de que os participantes se sintam não apenas usuários, mas protagonistas na
construção do projeto, desde sua concepção à avaliação das ações. Assim, mesmo que o projeto
seja iniciado por adultos, é necessário que as crianças também assumam o projeto como seu.
Para Trilla e Novela (2001), a reformulação e manipulação do projeto é sinal de que ele foi
efetivamente compartilhado pelas crianças.
A última modalidade seria a metaparticipação, na qual os participantes passam a exigir
ou construir novos espaços de participação. Ela ocorre “[...] quando um indivíduo ou coletivo
consideram que não há o devido reconhecimento de seus direitos participativos, ou quando
creem que os canais estabelecidos não são suficientes ou eficazes” (TRILLA; NOVELLA,
2001, p. 150 tradução nossa). Nessa modalidade, o que está em jogo é a luta pelo aumento das
possibilidades de participação, sendo função da educação, em seus diferentes espaços,
desenvolver as competências e preparar os sujeitos.
Para avaliar e mensurar o tipo de participação, no continuum que se estabelece da forma
mais simples à mais complexa, os autores propõem quatro critérios: implicação,
informação/consciência, capacidade de decisão e compromisso/responsabilidade. É a partir da
combinação desses critérios que podemos avaliar o tipo de participação dentro de uma atividade
ou projeto. Esses critérios se aproximam dos requisitos propostos por Hart (1992) para uma
participação efetiva, mas avançam no sentido do compromisso/responsabilidade das crianças
sobre a coletividade, naquilo que é comum a todos.
Aliados aos critérios de avaliação, estão as condições para uma participação efetiva:
“[...] reconhecimento do direito a participar; dispor das capacidades necessárias para exercê-lo;
e que existam os meios ou espaços adequados para torná-lo possível” (TRILLA; NOVELLA,
2001, p. 156 tradução nossa). O referencial teórico da Teoria das Representações Sociais
oferece ferramentas para o estudo do fenômeno de participação, ao possibilitar a compreensão
da dimensão simbólica, dos sentidos atribuídos pelos sujeitos às práticas coletivas, indo além
dos espaços materiais, na busca de condições psicossociais para tornar a cidadania uma
experiência real para crianças e jovens.
Para Brostolin (2021, p. 12),
[...] as competências de participação das crianças estão vinculadas, ora estimuladas,
ora constrangidas, pelas relações sociais que estabelecem com outros, ou seja, família,
87

escola, comunidade; pelas estruturas socioeconômicas e culturais que se referem a


serviços educativos e sociais, a estruturas políticas e outras dos seus mundos sociais
e culturais.

O direito à participação, embora reconhecido na Convenção dos Direitos da Criança e


nas legislações referentes à infância de países signatários, como o Brasil e a França, requer que
sejam desenvolvidas as competências cognitivas e afetivas necessárias para seu exercício, além
da criação de espaços participativos. A escola pode ser um espaço para o desenvolvimento
dessas competências, desde que haja uma transformação das relações sociais e intergeracionais.
Cabe ressaltar que a participação é sempre uma “[...] ação social, coletiva, relacional”
(TRILLA; NOVELLA, 2001, p.159 tradução nossa) e que a ação em âmbito local, nos bairros,
comunidades e municípios, permite exercitar o potencial da participação. A articulação entre
espaços de educação formal e não-formal seria uma forma de complementar a ação da escola,
que passa a ser integrada à vida da comunidade.
Essa articulação seria possível pois a educação não-formal, da forma como é realizada
por associações, ONGs, e movimentos sociais, já se utiliza dos pressupostos da participação
social e cidadã. A integração entre a escola e a sociedade civil, permitiria que os sujeitos
envolvidos tenham espaços para participar e exercitar a cidadania.
A participação e a cidadania infantil, apesar da sua especificidade, são fenômenos que
não podem ser dissociados da participação e da cultura política local, pois uma sociedade
democrática necessita do envolvimento de todos, crianças, jovens e adultos, na construção e
compartilhamento de valores como a tolerância e o respeito à diversidade.
88

3 PERCURSO TEÓRICO-METODOLÓGICO

A Teoria das Representações Sociais (TRS) foi criada há mais de 50 anos por Serge
Moscovici, quando da publicação de seu estudo intitulado “A psicanálise: sua imagem e seu
público”13 (MOSCOVICI, 2012), no qual o autor se baseou na sociologia de Durkheim, mais
especificamente na noção de representação coletiva, para analisar a forma como o
conhecimento científico, no caso a psicanálise, se espalhou pela sociedade parisiense na década
de 1960. O autor observou a difusão do conhecimento científico da psicanálise e sua integração
ao senso comum, na apropriação dos conceitos e noções pelos grupos sociais a partir das
comunicações e interações cotidianas.
Ao abordar o conhecimento construído pelos grupos no cotidiano, o autor observou que
esta modalidade de conhecimento, denominada de senso comum, tem a intenção de criar uma
realidade comum ao grupo social, tornando familiar o não-familiar, permitindo a expressão das
especificidades da relação do grupo com os objetos da realidade social.
Para Palmonari e Cerrato (2011, p. 411), “[...] Moscovici elaborou o conceito de
representação social para explicar o comportamento social de um tipo particular de sociedade,
a sociedade contemporânea, ligada aos processos de comunicação e informação social”. Sua
opção pelo conceito de representação social, se justifica pela afirmação que o conceito de
representações coletivas criado por Durkheim se referia a um tipo de crenças e sistemas de
pensamento social de estrutura rígida, capaz de exercer efeito coercitivo sobre os indivíduos,
na regulação das relações sociais. Na sociedade contemporânea, poucas são as crenças
compartilhadas pela totalidade dos indivíduos e o dinamismo da comunicação e das relações
interpessoais faz com que os sistemas de pensamento estejam em constante transformação.
O caráter híbrido atribuído por Moscovici às representações sociais, na interface entre a
dimensão social e a dimensão psicológica da realidade, explica em parte a longevidade da
teoria, que após cerca de duas décadas de “latência”, tomou uma proporção inimaginável para
o próprio autor, alcançando uma abrangência e importância únicas no âmbito da Psicologia
Social e das Ciências Humanas, devido à flexibilidade dos conceitos e a falta de uma definição
rígida (RATEAU et al, 2012).
Segundo Moscovici (2007), as representações sociais possuem duas funções principais:
convencionalizar os objetos da realidade comum, classificando, categorizando e integrando-os

13
A obra “La Psychanalise: son image et son public” foi publicada originalmente na França em 1961, e passou
por uma revisão do autor em 1976, adquirindo o formato atual.
89

em um sistema interpretativo, no qual prevalece a memória e a experiência do grupo e;


prescrever ações, comportamentos e atitudes em relação a um objeto, permitindo aos indivíduos
compartilharem um universo de pensamento consensual, no qual as representações são
reproduzidas e repensadas.
Na dinâmica da construção das representações sociais, o autor identifica dois
mecanismos principais, que atuam de forma complementar: ancoragem e objetivação. A
ancoragem permitiria a internalização dos objetos e sua classificação em um modelo prévio,
enquanto a objetivação seria responsável por concretizar as representações, transformando-as
em imagens, integrando aspectos cognitivos e afetivos, e dando-lhes um caráter material e
autônomo.
A noção de representação social é uma noção concebida para explicar o que une as
pessoas a um grupo ou a uma sociedade, e os faz agir em conjunto. Com o objetivo
de permanecerem unidas, as pessoas criam instituições e seguem um conjunto de
regras, que demandam um sistema de crenças e de representações
compartilhadas próprias de sua cultura (PALMONARI; CERRATO, 2011, p. 418).

No campo epistemológico, o olhar ternário adotado por Moscovici, ilustrado pelo


modelo triangular Eu-Outro-Objeto ou Ego-Alter-Objeto (Figura 10), simboliza a
interdependência entre os sujeitos na produção do conhecimento sobre a realidade social
(MARKOVÁ, 2008, p. 257). O Eu e o Outro se constroem mutuamente na interação social, e
as representações têm o papel de estabelecer uma realidade comum em relação ao objeto, por
meio da comunicação. O diálogo é a forma de comunicação por excelência, que “demonstra,
ao mesmo tempo em que oculta, formas multifacetadas de interações simbólicas”.

Figura 10. o modelo ternário de Moscovici

Fonte: Jesuíno, 2018.

Nesse contexto, a cultura seria o pano de fundo no qual ocorrem todas as interações
entre os sujeitos, que reconhecem a si mesmos e aos outros tendo como referência uma
identidade social criada a partir de seus grupos de pertença. Diferente da estratificação presente
90

até a sociedade moderna, na contemporaneidade existe certa mobilidade, no sentido de que um


mesmo indivíduo habita diferentes espaços e grupos sociais, sendo a identidade uma soma das
diferentes pertenças que contribuem para a construção de uma subjetividade individual, que é,
por definição, também social.

3.1 As diferentes abordagens em Representações Sociais

Segundo Sá (2002), no âmbito da TRS, a escolha dos métodos e os aspectos da


representação a serem privilegiados na investigação devem ser orientados pelo próprio objeto
de pesquisa, considerando a diversidade de abordagens ou subteorias que surgiram a partir da
grande teoria iniciada por Moscovici. Moliner (2015) identifica três principais abordagens
complementares, sociogenética, estrutural, e sociodinâmica, já consolidadas e amplamente
reconhecidas no âmbito da TRS; e a elas acrescenta uma quarta abordagem, a dialógica.
1) A abordagem sociogenética ou antropológica, desenvolvida por Jodelet e
considerada a mais próxima das ideias de Moscovici, que utiliza métodos e técnicas
derivadas da antropologia, como a observação participante e a entrevista em
profundidade, com foco no estudo da gênese e do conteúdo das representações, a partir
dos elementos imersos na cultura e nas trocas simbólicas;
2) A abordagem estrutural, criada por Abric, Flament e os demais pesquisadores de
Aix-en-Provence, que postulam a estrutura da representação enquanto composta por um
duplo sistema (núcleo central e sistema periférico), cada um com características e
funções distintas. Essa estrutura seria responsável pelo caráter ao mesmo tempo estável
e flexível das representações, capaz de se adaptar às situações e novos contextos. Essa
abordagem propõe a utilização de métodos empíricos para a investigação dos elementos
da representação e sua dinâmica;
3) A abordagem sociodinâmica ou posicional, desenvolvida por Doise e
colaboradores, a partir da aproximação da TRS com a noção de campo da sociologia de
Bourdieu, com foco no estudo das posições dos sujeitos e grupos no campo social,
caracterizado como um campo de forças e interesses distintos, e na categorização dos
diferentes tipos de ancoragem, identificados a partir da adesão dos sujeitos a valores e
conteúdo da representação;
4) E a abordagem discursiva ou dialógica, mais recente que as demais, baseada nos
estudos de Marková (2008; 2017) e Jovchelovitch (2020), com foco na comunicação e
91

interação entre os grupos no espaço público, no resgate da epistemologia dialógica e do


modelo ternário Ego-Alter-Objeto), a partir do triângulo psicossocial de Moscovici.
Essas abordagens têm se desenvolvido a partir do aprofundamento ou foco em diferentes
aspectos do fenômeno das representações sociais. Há um consenso entre os pesquisadores em
relação à necessidade de aprofundamento dos aspectos delineados por Moscovici, no sentido
de que as bases foram traçadas pelo autor, porém é necessário atualizar a teoria para o estudo
dos novos fenômenos que têm surgido com as mudanças causadas pela internet e os meios de
comunicação instantânea.
Além das quatro principais abordagens, é possível identificar o surgimento de outras
micro abordagens, em estudos como os de Duveen e Lloyd (1990), sobre a ontogênese das
representações no desenvolvimento cognitivo da criança, a partir da articulação entre a TRS e
a Psicologia do Desenvolvimento; e os de Lahlou (2017), redimensionando o papel da atividade
e do comportamento na perspectiva da Psicologia da Atividade e da TRS, no âmbito do
treinamento e intervenção profissional. A emergência de novas abordagens é mais um sinal da
longevidade e da transdisciplinaridade alcançados pela teoria desenvolvida por Moscovici
(JODELET, 2016).
Estima-se que o Brasil seja um dos países com o maior número de pesquisas no campo
da TRS e a predominância das abordagens sociogenética e estrutural pode ser explicada em
parte pela participação de pesquisadores franceses e de outras nacionalidades nos eventos
ocorridos em âmbito nacional, como a Conferência Internacional sobre Representações Sociais
(CIRS), principal evento relacionado à TRS, realizada no Rio de Janeiro em 1994 e em São
Paulo em 2014, as Jornadas Internacionais de Representações Sociais (JIRS) realizadas a cada
dois, de forma intercalada aos eventos internacionais, e a publicação de obras clássicas em
língua portuguesa, o que demonstra o interesse crescente dos pesquisadores brasileiros pela
teoria nas últimas décadas, especialmente nas áreas da Educação e Saúde (CAMARGO, 2021).
Jodelet (2011) afirma que é possível observar um verdadeiro movimento brasileiro de
Representações Sociais nos últimos 30 anos, a partir da difusão da TRS no meio acadêmico
nacional. A autora afirma que a teoria foi apropriada pelos pesquisadores brasileiros e sul-
americanos por se mostrar apropriada para o estudo de problemáticas locais e do contexto de
conflitos políticos e sociais do continente, consequência de séculos de colonialismo e de
regimes autoritários.
A noção de thêmata (no singular thema), originalmente empregada por Moscovici e
Vignaux (2007), foi desenvolvida por Marková como formas elementares de pensamento que
92

servem de base para a construção das representações sociais. As thêmata costumam se


apresentar na forma de oposições diádicas, tais como moral/imoral, homem/mulher. Para a
autora, a própria relação Eu-Outro, base da epistemologia dialógica, é derivada das thêmata, ao
estabelecer uma oposição fundante para a construção do conhecimento acerca de si mesmo e
da realidade social. O pensamento por meio de oposições integra o senso comum, mas nem toda
oposição chega a se tornar thêmata.
Thêmata, tanto científicas quanto não-científicas, têm em comum as marcas da
inteligência humana e sua capacidade imaginativa. Thêmata são compartilhadas pelos
membros de uma comunidade, mas cada indivíduo desenvolve um thema de acordo
com a sua capacidade inventiva e experiência idiossincrásica (MARKOVÁ, 2015,
p.4.8, tradução nossa).

Para uma oposição diádica se tornar uma thêmata e gerar representações sociais, ela
precisa ser atualizada no discurso, por meio da linguagem e da comunicação. As representações
sociais produzidas no espaço público são fortemente marcadas pela oposição Eu-Outro. A
interação social se baseia na relação de complementaridade e interdependência entre os grupos,
na qual os conflitos e tensões refletem o posicionamento dos grupos no campo representacional.
A interação social dialógica implica no reconhecimento da interdependência entre o Eu
e o Outro na construção do conhecimento e do objeto, como afirma Marková (2017, p. 132),
[...] A unidade existencial inquebrantável subjacente à dialogicidade compreende o
Ego e o(s) Outro(s) (ou o Ego-Alter). “Outros” podem ser outros homens ou suas
criações como instituições, tradições estabelecidas cultural e historicamente,
costumes morais e assim por diante. Embora se possa argumentar que o Ego não se
comunica diretamente com instituições ou tradições, ele interage com suas
representações sociais e com representantes das instituições. Interpreta normas e
regras, seleciona significados específicos e tenta mudá-los. Nessa medida, o Ego e os
Outros, institucionalmente estabelecidos, formam uma relação de interdependência.

3.2 A relação entre experiência/vivência e representações sociais

É no nível da experiência que se pode pensar a transformação das representações e do


senso comum. Segundo Jodelet (2017, p. 435-436, grifo da autora), a noção de experiência,
inspirada pela tradição da fenomenologia e da etnometodologia, serviria de ligação entre o
individual e o social, o subjetivo e o coletivo, sendo “a maneira como as pessoas vivenciam,
no seu foro íntimo, uma situação e o modo como elaboram, por meio de um trabalho psíquico
e cognitivo, as repercussões positivas ou negativas dessa situação e das relações e ações que
elas desenvolvem na referida situação”.
Seria possível distinguir duas dimensões da experiência: uma do vivido, que remete à
implicação subjetiva, aos afetos e emoções experimentados; e uma dimensão cognitiva, na qual
aquilo que é vivenciado adquire um sentido e significado. Esse processo se dá por meio de um
93

sistema de categorias que, assim como as representações sociais, tem como pano de fundo um
discurso comum, a cultura. Os objetos não existem numa realidade a priori, eles são
representados a partir da experiência que o sujeito estabelece com eles.
É por meio da troca, da partilha com o outro que a experiência individual é validada,
reconhecida. “[...] Assim, a experiência social é marcada pelos enquadramentos da sua
enunciação e da sua comunicação” (JODELET, 2017, p. 438). Portanto, falamos de uma
experiência que é construída socialmente, por meio da intersubjetividade, na comunicação entre
os sujeitos em determinadas condições sociais. A autora fala na reciprocidade entre os atores
sociais, condição necessária para a intersubjetividade, embasada na fenomenologia social de
Schütz. Essa condição se aproxima das noções de confiança e autoridade epistêmica, como
identificados por Marková (2017), base da interação dialógica.
Para Jodelet (2017, p. 445), o uso da noção de experiência articulada às representações
sociais requer alguns esclarecimentos,
[...] a experiência vivida: - remete sempre a uma situação local concreta;- é uma
forma de apreensão do mundo pelos significados que ela lhe atribui ; - ganha
forma na sua expressão e conscientização por meio de códigos de natureza social;
- é analisada mais frequentemente a partir do encontro intersubjetivo que implica
um fundo comum de saberes e significados; - exige a autenticação dos outros; -
tem funções práticas na vida cotidiana, remetendo ao modo de existência dos
sujeitos na sua realidade concreta e viva.

A relação que se estabelece entre representação e experiência seria dialética, pois ao


mesmo tempo que é a partir das representações que o vivido é interpretado e adquire
significado, é a experiência afetiva com o objeto de representação (positiva ou negativa), que
dita a relação dos sujeitos com o objeto. Segundo a autora, essa experiência pode determinar a
constituição da representação, por meio da objetivação, privilegiando determinados elementos,
conforme demonstrado pela ausência de referência à libido no modelo figurativo da Psicanálise
identificado por Moscovici (2012) na sociedade francesa da década de 1960.
O caminho para a mudança de uma representação estaria na transformação da relação
dos sujeitos com esse objeto, por meio da ressignificação da vivência, algo semelhante ao que
ocorre nas psicoterapias. Devido ao potencial criativo da experiência, a mudança da carga
afetiva14, das crenças e valores, por meio de uma vivência positiva com o objeto de
representação, é o que permitiria a reorganização do conteúdo representacional, resultando
numa mudança gradual, porém contínua (CAMPOS; ROUQUETTE, 2003).

14
Jodelet (2017) usa o termo implicação afetiva, sabemos que a noção de ativação de elementos e cognemas está
relacionada a uma visão estrutural da representação social (WACHELKE, 2013).
94

A pesquisa articulando representações sociais e a análise da experiência vivida é capaz


de “[...] intervir na construção imaginária da relação com um objeto do qual ainda não existe
uma experiência concreta e que ainda não penetrou o tecido social nem o campo de debates no
espaço público” (JODELET, 2017, p. 449). Acreditamos que nossa pesquisa se apresenta como
uma oportunidade de refletir sobre a construção da cidadania infantil enquanto fenômeno de
representação social, ao investigar a forma como as concepções e imagens sociais sobre infância
e participação construídas no campo acadêmico, podem ser transportados e operacionalizados
na educação para a cidadania e a formação continuada.

3.3 Os Sistemas de Representação Social

A noção de sistema não é estranha à Teoria das Representações Sociais, embora o estudo
seminal de Moscovici (2012) se refira à constituição de um modelo figurativo da psicanálise,
como resultado do processo de objetivação. O funcionamento da representação social enquanto
produto e processo sociocognitivo, fruto da interação e comunicação entre os membros de um
grupo, prevê uma dinâmica entre os elementos que compõem essa modalidade específica de
conhecimento, na formação de um sistema de crenças descritivas e prescritivas.
Abric (1994) se refere a um sistema de categorização social por meio do qual a
representação operaria a integração de novos objetos sociais ao repertório cognitivo do grupo.
Posteriormente, a categorização foi incluída como parte das funções do sistema central da
representação social. A associação entre objetos de representação social tem sido estudada pelos
pesquisadores da Abordagem Estrutural, em oposição ao estudo de representações isoladas.
Garnier (2015) aponta a necessidade da mudança de um olhar individualista, na medida
em que os indivíduos têm permanecido como a unidade de pesquisa, para uma visão holística
do fenômeno de representação social. Não se pode afirmar que a representação social é a soma
das representações individuais, mas em grande parte das pesquisas, a representação tem sido
inferida a partir da média dos discursos individuais, por meio de técnicas estatísticas
(LAHLOU; ABRIC, 2012).
As representações sociais costumam ser descritas como um conjunto de cognemas,
neologismo cunhado por Codol (2011, p. 21.5, tradução nossa) para se referir a menor e mais
básica unidade cognitiva. O universo cognitivo seria o conjunto de cognemas de um indivíduo,
que possui propriedades específicas e estabelece relações entre o sujeito e o objeto social que
busca representar.
95

[...] chamamos de representação qualquer forma de interdependência entre cognemas


de um indivíduo em relação a determinado objeto (ou classe de objetos). Logo, uma
representação não existe per se; para um indivíduo, uma representação só pode existir
em referência a um objeto15.

Na pesquisa em representações sociais numa perspectiva sistêmica, não se trata apenas


de identificar qual é a representação de um objeto para determinado grupo, mas a investigação
da natureza da relação que o grupo estabelece com o contexto e com os demais grupos, na
tentativa de se apropriar e atribuir sentido aos objetos, construindo uma realidade social comum
aos membros. Concordamos com Codol (2011, p. 21.6, tradução nossa) na afirmação que “[...]
atribuir sentido a um objeto é ao mesmo tempo modificar o sentido que é atribuído a outros
objetos próximos”.
Os trabalhos de Codol (1974) sobre a relação entre os grupos num determinado contexto
social, resultaram no modelo inicialmente denominado Representação Global da Tarefa,
mostrando que a ideia da organização das representações sociais em redes, conjuntos ou
sistemas, não é algo recente, mas devido às implicações teórico-metodológicas, o estudo de
representações individualizadas tem sido predominante.
O modelo desenvolvido por Codol passou a ser denominado Representação Global da
Situação (figura 11) e propõe que “[...] no contexto de uma situação que implique um conjunto
de representações e práticas dadas, a representação global da situação vai determinar a natureza
das relações entre práticas sociais e representações” (CAMPOS, 2021, p. 142).

Figura 11 - Modelo da Representação Global da Situação

Fonte: adaptado de Campos (2021).

Esse modelo requer o reconhecimento de que os aspectos envolvidos numa situação de


interação entre grupos são representados pelos participantes, e essas representações são

15
We call “representation” any form of interdependence between the cognemes of an individual in connection
with a given object (or object class). Therefore, there cannot be a representation per se; for an individual, a
representation can only exist in reference to an object.
96

determinantes para os comportamentos e práticas adotados. Na interação face-a-face, por


exemplo, os sujeitos não se relacionam apenas com o Outro a sua frente, mas com o conjunto
de valores e posições que ele representa.
A interação entre grupos em uma situação real é então o resultado da dinâmica complexa
entre as representações em diferentes níveis: a representação que os sujeitos têm de si mesmos,
a representação do outro grupo, a representação da tarefa e a representação do próprio contexto.
Isto significa que a interação em uma situação complexa é minimamente determinada por esse
conjunto de representações, o que implica uma ampliação do triângulo epistêmico
moscoviciano, Eu (si mesmo) – Outro - Objeto (a tarefa), ao incluir o contexto como um dos
elementos de representação.
Em uma situação real, o que ocorre é uma interação circunscrita em determinadas
condições materiais e históricas, onde a representação é um resultado da dinâmica entre as
crenças e valores simbólicos que o grupo possui sobre si mesmo e o outro. Essas crenças
determinariam o que é desejável, como a interação deve proceder em circunstâncias ditas
“normais”. Uma mudança do contexto ou do Outro em questão, ocasionaria a ativação de
elementos distintos da representação social, resultando em uma nova representação global. Ou
seja, a interação entre os grupos sociais não se dá sempre nas mesmas condições, ela é
condicionada por elementos externos ao grupo, mas que passam a ser representados e integrados
no universo simbólico dos sujeitos.
Nos últimos anos, o emprego da noção de sistemas de representações sociais tem
ganhado maior destaque na literatura nacional e internacional, como aponta a pesquisa de Félix,
Andrade, Santos et al (2016). Essa mudança na pesquisa em representações sociais, da
perspectiva do estudo de objetos isolados para o estudo de conjuntos ou redes de objetos sociais,
é apontada por Garnier (2015) como o movimento de uma visão individualista para uma visão
holística das representações sociais, e tem sido proposta como alternativa para dar conta da
complexidade das interações entre os sujeitos em situações reais.
A noção de sistemas de representações sociais pode ser um recurso para o melhor
entendimento dos fenômenos no campo da educação, compreendendo aquilo que Abdalla e
Villas Bôas (2018) denominam de “olhar psicossocial”, com base no que a psicologia social e
a TRS podem oferecer para o estudo das problemáticas educacionais e da mudança social.
Campos (2021) afirma que o exercício do olhar psicossocial requer considerar a representação
social enquanto forma de conhecimento coletivo e enquanto processo de constituição da
realidade simbólica. A relação entre aquilo que se pensa e aquilo que se faz, ou seja, as
97

cognições e as práticas sociais, são momentos complementares da pesquisa em representações


sociais.
Para permanecer fiel ao “olhar psicossocial” da teoria em questão, uma pesquisa
deveria comportar ao menos dois “estudos”: em primeiro lugar, o estudo das
representações sociais como um conjunto organizado de significados que um grupo
atribui a um objeto (assim seriam os significados que os professores atribuem ao
trabalho docente) e como um conjunto, também organizado, de práticas consensuais
no interior do grupo, que podemos chamar de “práticas grupais”; e, em segundo, um
estudo do contexto, ou da dinâmica do contexto no qual essas representações sociais
emergem e têm funcionalidade, marcando a identidade do grupo e regulando suas
práticas (CAMPOS, 2021, p. 127-128).

Brandão, Benevides e Campos (2020) apresentam algumas contribuições da noção de


sistemas de representações sociais para a investigação dos fenômenos no campo da educação,
este considerado um campo de lutas simbólicas, no sentido atribuído pela sociologia de Pierre
Bourdieu, no qual visões de mundo distintas entram em conflito. Na pesquisa em educação,
diversos grupos como professores, alunos e familiares costumam ser investigados a partir de
critérios definidos pelo pesquisador a priori. É justamente a concepção de que os grupos
representam e são representados o que nos permitiria identificar as convergência e divergências
entre os diferentes atores sociais.
Os sistemas de representação modificam a forma de fazer pesquisa em representações
sociais e de intervir na mudança das práticas, desde que se reconheça as dificuldades para a
identificação das representações que compõem o sistema (PIANELLI; ABRIC; SAAD, 2010).
Pianelli e Saad (2016) relatam como principal obstáculo à pesquisa de representações em
formação (ou em fase de estruturação), a dificuldade para se identificar os objetos de
representação que possivelmente compõem o conjunto ou rede no qual a nova representação
estaria ancorada, sendo necessário um conhecimento prévio do campo do objeto, uma das
dimensões16 preconizadas por Moscovici (2012) no estudo da gênese da representação social.
Ao observar a informação que o grupo possui a respeito, quais características são
omitidas e quais assumem uma função determinante na apreensão do objeto, a construção de
uma atitude (favorável ou desfavorável), com base nos valores morais e ideológicos, e as
tensões que se estabelecem com outros grupos posicionados no campo social, é possível propor
uma hipótese ou modelo sobre como a representação se constitui e passa a operar na realidade.
No entanto, a pesquisa na perspectiva dos sistemas de representação social requer uma
atitude mais flexível do pesquisador, que deve ser capaz inclusive de alterar o curso da
investigação, a partir da investigação da relação do objeto pesquisado com outros elementos da

16
Moscovici (2012) postula que três dimensões influenciam a gênese da representação social: informação,
atitude e campo do objeto.
98

realidade social, que podem ser mais relevantes para o grupo pesquisado. Parafraseando
Flament (apud ABRIC, 1994), mais importante do que descobrir a representação de um objeto,
é saber que objeto está sendo representado.
Ao longo da nossa pesquisa, na tentativa de abordar o fenômeno da cidadania infantil,
realizamos dois estudos, um estudo com crianças e um segundo estudo com adultos, na tentativa
de apreender os significados atribuídos ao fenômeno da cidadania infantil. Devido às condições
em que a pesquisa foi realizada, durante a pandemia de covid-19, não foi possível observar a
interação direta entre crianças e adultos, principalmente no segundo estudo, mas acreditamos
que os grupos fazem referência uns aos outros no discurso, como forma de se identificar e se
posicionar em relação ao objeto. É por meio dessa identificação/diferenciação que os sujeitos
aderem à determinado conteúdo representacional ou prática, como forma de reforçar o
sentimento de pertença.
A forma como a criança se identifica/diferencia do adulto e das demais crianças, a partir
da representação e adesão às práticas de participação e voluntariado, será tratada no estudo 1.
Já as imagens e representações sociais utilizadas pelos adultos, para se referirem à criança, mais
especificamente as professoras de educação infantil da rede municipal de educação, dizem
respeito à posição que estas ocupam no espaço social, como veremos no estudo 2.

3.4 A pesquisa sobre a cidadania infantil

A presente pesquisa teve como fundamentos a Teoria das Representações Sociais


(TRS), numa articulação entre a Abordagem Sociogenética (KALAMPALIKIS;
APOSTOLIDIS, 2016; JODELET, 2006; 2015), no intuito de identificar as condições sociais e
culturais que convergem para a construção e gênese de uma representação social, nesse caso, a
partir da transposição das concepções científicas de infância para o senso comum; e a
abordagem dialógica (MARKOVÁ, 2008; 2017), que nos permite compreender a interação
entre os grupos e os objetos da realidade social, a partir do modelo ternário (Eu-Outro-Objeto)
e da dialogicidade.
Segundo Flament e Rouquette (2003), a delimitação do objeto de pesquisa em
Representações Sociais é um procedimento meramente didático realizado pelo pesquisador,
pois na realidade socialmente construída não existem fronteiras entre sujeito e objeto, estando
ambos imersos em universos de pensamento. Cabe ao pesquisador identificar quais formas de
99

pensamento (opiniões, representações, ideologia) estão sendo evocadas pelos sujeitos para se
referirem ao objeto de pesquisa.
Em oposição aos estudos comumente realizados no âmbito da TRS, cujo foco é a
delimitação da representação de um objeto isolado, da forma como é construída por um grupo
específico, a escolha de uma abordagem sistêmica para o estudo das representações sociais
busca dar conta da complexidade das situações reais, por meio da investigação das relações que
os objetos sociais estabelecem entre si, na articulação de conjuntos ou sistemas de
representação.
A perspectiva sociogenética busca “[...] entender o objeto representacional como
fenômeno dinâmico, sua gênese como uma trajetória no tempo presente e na história, sua
expressão enquanto conhecimento social e prático, fruto das conjunturas históricas, políticas e
culturais e da comunicação social” (KALAMPALIKIS; APOSTOLIDIS, 2016, p. 2, tradução
nossa). Ao identificar as condições de gênese da representação social, considerando o
pensamento social enquanto processo cognitivo e simbólico, essa abordagem se aproxima dos
objetivos estabelecidos por Moscovici (2012) na pesquisa em TRS.
Considerando a transdisciplinaridade da TRS e a ausência de um método específico para
o estudo do fenômeno de representação, os autores recomendam o “politeísmo
metodológico”17, em alusão à diversidade de metodologias disponíveis para a pesquisa e
contrapondo-se aos riscos de engessamento e fetichismo do método. Apenas a utilização de
uma abordagem pluri ou multimetodológica permitiria dar conta da complexidade dos
fenômenos representacionais, pois, a partir do uso de instrumentos complementares, tanto
qualitativos e quantitativos, o pesquisador pode proceder a uma triangulação sistemática,
abordando o fenômeno de representação sob diferentes ângulos.
A triangulação permitiria “[...] estudar a relação entre o processo e o produto da
atividade representacional” (KALAMPALIKIS; APOSTOLIDIS, 2016, p. 10, tradução nossa),
ou seja, as condições sociais e históricas em que emerge o objeto de representação e a dinâmica
entre os elementos na sua possível estruturação. Considerar a representação enquanto processo
significa compreender como essa modalidade de conhecimento social se torna um guia de
leitura da realidade, capaz de produzir condutas e práticas que justifiquem à inserção ou adesão
dos sujeitos a determinadas crenças.
É necessário salientar que nem todo objeto é objeto de representação social e muitas
representações não possuem uma estrutura definida, devido à natureza da relação do grupo com

17
em oposição a ideia de monoteísmo (o culto de um Deus uno).
100

o objeto (FLAMENT, 1994). Essas representações, consideradas não-autônomas, recebem sua


significação a partir de outros elementos de pensamento, como crenças e ideologias. Sá (2002)
afirma que, na pesquisa em Representações Sociais, deve-se tomar cuidado para não afirmar a
existência de pseudo-representações, ao alegar a existência de representações de objetos que
não pertencem ao universo simbólico dos sujeitos, sendo introduzidos nas comunicações do
grupo por meio do contato com o pesquisador.
Desenvolvemos uma pesquisa do tipo qualitativa e exploratória, que teve a etnografia
como estratégia metodológica, para apreender indícios do processo de construção e
compartilhamento da representação social de cidadania infantil. Foram realizados dois estudos
em contextos sociais distintos, envolvendo projetos de intervenção que tem por objetivo a
promoção de mudanças coletivas, com base na Teoria das Representações Sociais, articulada a
outras concepções teóricas. O estudo 1 foi realizado com crianças de um projeto de formação
cidadã vinculado ao Conseil Municipal des Enfants (CME), na cidade de Paris; e o estudo 2,
sobre as representações que professoras de Educação Infantil da Rede Municipal de Cuiabá,
membros do coletivo “Cribiás, crianças sabidas”, constroem sobre a possibilidade de uma
cidadania da infância.
Cientes das especificidades dos contextos em que os estudos foram desenvolvidos,
inclusive das consequências que o contexto de pandemia mundial impôs sobre a realização da
pesquisa de campo, nossa intenção não é de comparar os resultados obtidos, mas de oferecer
um panorama do objeto de pesquisa, a cidadania infantil, que se constrói a partir das relações
intergeracionais, na negociação entre adultos e crianças sobre os objetivos da participação em
ambientes democráticos.
A possível complementaridade dos estudos deve-se ao fato de que os elementos desse
processo de mudança, que se pressupõe ao mesmo tempo local e global, podem ser
compartilhados pelos sujeitos em diferentes contextos, considerando o alcance da Convenção
dos Direitos da Criança, as desigualdades que afetam as diferentes infâncias e o avanço da
concepção de crianças e adolescentes enquanto sujeitos de direitos.
Los proyectos de educación en la ciudadanía tendrían que abordar el sentimiento
de identidad y la percepción de formas potencialmente conflictivas con los demás;
la capacidad de tolerar y trabajar en conjunto con individuos diferentes; el deseo
de participar en los procesos políticos con el compromiso de promover el bien
público; la disposición a ejercer la responsabilidad personal en las decisiones que
afectan la economía, la salud y el medio ambiente (GUTIERREZ, 2011, p. 7)

Os dois projetos que serviram de base para a nossa pesquisa, o P’tits Volontaires de
Paris e o Cribiás, crianças sabidas, em Cuiabá, articulam as dimensões formais e não-formais
101

da educação, tendo como fundamento a concepção da criança enquanto ator social competente,
no fomento à participação e ao protagonismo infantil. Ambos os projetos constituem espaços
de formação que envolvem relações intergeracionais menos hierarquizadas, permitindo a
comunicação entre crianças e adultos, na discussão e proposição de atividades. Acreditamos
que essa experiência de construção coletiva de significados é o que possibilitaria o
desenvolvimento de uma representação de cidadania infantil, ainda que com elementos
simbólicos distintos, próprios ao contexto dos grupos sociais envolvidos.
A opção pela etnografia enquanto estratégia de pesquisa está na possibilidade de
adaptação do método para o campo da educação, como já referenciado por autoras como André
(2005) e Mattos (2011). A etnografia se propõe a reconstruir o universo simbólico de um grupo,
a partir da observação de comportamentos e práticas. Nossa experiência/vivência do doutorado
sanduíche nos permitiu o uso da Etnografia Baseada em Evidência Subjetiva (SEBE)18,
desenvolvida por Lahlou (2011; 2017), que tem como diferencial o uso de recursos tecnológicos
de pesquisa com vídeo, para dar acesso à atividade na perspectiva do próprio sujeito, de forma
complementar à observação participante tradicional.
A etnografia é um esquema de pesquisa desenvolvido pelos antropólogos para estudar
a cultura e a sociedade. Etimologicamente etnografia significa “descrição cultural”.
Para os antropólogos, o termo tem dois sentidos: (1) um conjunto de técnicas que eles
usam para coletar dados sobre os valores, os hábitos, as crenças, as práticas e os
comportamentos de um grupo social; e (2) um relato escrito resultante do emprego
dessas técnicas (ANDRÉ, 2005, p. 24).

A atuação como facilitador do projeto P’tits Volontaires, realizada pelo IEA de Paris
em parceria com associações da sociedade civil, se deu enquanto bolsista no âmbito do
Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior (PDSE), registrado na CAPES sob o processo
de nº 88881.362035/2019-01 (anexo I). A partir dos dados produzidos no âmbito do projeto,
fizemos uma análise da experiência de formação das crianças, com o intuito de identificar
mudanças na forma como as crianças representam a cidadania e a participação.
É importante frisar que o nosso estudo não pode ser caracterizado como um estudo
etnográfico clássico, tal como realizado por Jodelet (2015) no estudo das representações sociais
da loucura. A articulação de instrumentos de pesquisa tais como a SEBE, a observação
participante, entrevistas e pesquisa documental nos permitiu a realização de uma pesquisa do
tipo etnográfico, embora tenhamos que reconhecer os limites da pesquisa empreendida, devido
à redução do tempo da pesquisa de campo e do envolvimento com o grupo pesquisado no estudo

18
Do original em inglês, Subjective Evidence Based Ethnography. Optamos por traduzir o nome da técnica, mas
manter a sigla original, para facilitar a indexação e a busca dos trabalhos.
102

2, de forma remota, realizado com o auxílio de ferramentas de Tecnologia em Informação e


Comunicação (TIC).
No estudo 1, investigamos a produção de significados associados à cidadania, à
participação infantil e as condições de engajamento, por meio de uma pesquisa etnográfica com
crianças do projeto piloto de formação cidadã P’tits Volontaires, realizado pelo Institut
d’Études Avancées de Paris em parceria com a Mairie du 4e no âmbito do Conseil Municipal
des Enfants. O projeto consistiu na formação de crianças das séries de CM1 e CM2 (faixa etária
de 9 a 12 anos) escolarizadas na região, em parceria com associações da sociedade civil, para a
construção de um projeto coletivo para a região do 4ème arrondissement19 de Paris.
O projeto teve como base a pesquisa-ação, no sentido de trabalhar a construção de um
projeto coletivo a partir das demandas das crianças, além de propiciar atividades de formação
com associações da sociedade civil, em diversas temáticas. Os dados que apresentamos neste
trabalho, dizem respeito às notas de campo (ou diário de bordo); e das entrevistas-replay
individuais, ambas realizadas no período entre setembro de 2019 a março de 2020.
Organizamos os dados em ordem cronológica, de forma a relatar o andamento da formação com
as crianças.
No estudo 2, buscamos compreender as representações sociais e as significações
atribuídas à cidadania infantil pelas professoras do projeto Cribiás, crianças sabidas que, a
partir da adesão às práticas docentes num processo de formação continuada, constituíram um
coletivo mobilizado em prol da defesa da concepção de criança enquanto ator social competente
e necessário para a transformação social.
Por meio da pesquisa bibliográfica e documental, compreendendo o período de 2009 a
2019, e das entrevistas com as professoras, buscamos reconstruir um pouco do histórico do
projeto, desde a sua criação enquanto projeto de extensão universitária até a transformação em
coletivo Cribiás, em 2016, com a publicação da Carta Aberta do Coletivo Cribiás (COSTA;
ANDRADE, 2022), evento que consideramos um marco para a mobilização do grupo de
professoras e profissionais da educação infantil na cidade.
O projeto foi cadastrado na Plataforma Brasil e submetido à análise do Comitê de Ética
em Pesquisa (CEP) da Universidade Estácio de Sá (UNESA), registrado sob o número
45389221.2.0000.5284, sendo aprovado pelo parecer consubstanciado de número 4.722.063,
de 19 de maio de 2021 (anexo II). As entrevistas seguiram os protocolos de ética de pesquisa,

19
4º distrito de Paris, que compreende a região central da cidade, onde estão localizados monumentos históricos
como a Catedral de Nôtre-Dame. Recentemente, as subprefeituras do 1° ao 4º distrito passaram por um processo
de fusão administrativa, resultando na criação da Mairie Paris Centre (https://mairiepariscentre.paris.fr/).
103

mediante a aprovação do projeto pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) e a assinatura de


Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) (anexo III), resguardando o anonimato
de todas as participantes.
Foram realizadas 9 entrevistas com professoras do projeto “Cribiás, crianças sabidas”,
de forma remota, entre os meses de maio a julho de 2021, gravadas por meio da plataforma
Google Meet. As entrevistas tiveram uma duração média de 35 a 50 minutos, e posteriormente
foram transcritas, para serem analisadas por meio da técnica de Análise de Conteúdo (BARDIN,
2006), para a identificação dos temas e categorias comuns que organizam o discurso dos
participantes acerca da cidadania infantil.
A análise de conteúdo,
[...] é um conjunto de técnicas de análise das comunicações. Não se trata de um
instrumento, mas de um leque de apetrechos; ou, com maior rigor, será um único
instrumento, mas marcado por uma grande disparidade de formas e adaptável a um
campo de aplicação muito vasto: as comunicações (BARDIN, 2006, p. 31).

O material obtido com as entrevistas semiestruturadas também passou por uma análise
lexical, com o auxílio do software livre IRAMUTEQ20, que permite lidar com grandes volumes
de dados discursivos, por meio de uma série de tratamentos estatísticos do corpus textual, desde
a análise lexicográfica clássica às análises estatísticas multivariadas, incluindo o método de
Classificação Hierárquica Descendente (denominada de Método Reinert, em homenagem a
Max Reinert, criador do software Alceste).
O software tem sido amplamente utilizado nas pesquisas no âmbito da Teoria das
Representações Sociais (TRS), para análise de documentos, entrevistas, artigos e material
discursivo de reportagens de sites de notícias ou redes sociais, como apontam Sousa et al
(2020). Os dados gerados pelo Iramuteq podem complementar a análise de conteúdo,
permitindo ao pesquisador fazer uma triangulação metodológica na produção e análise dos
resultados da pesquisa.
Com o auxílio do IRAMUTEQ, realizamos uma Classificação Hierárquica Descendente
(CHD), no intuito de identificar os núcleos semânticos que estruturam o discurso dos
participantes em relação ao objeto de pesquisa. A CHD consiste em “[...] uma análise de
agrupamentos (clusters) sobre os segmentos de texto de um corpus, de modo que o material é
sucessivamente particionado em função da co-ocorrência de formas lexicais nos enunciados”

20
Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires, sofware livre de código
aberto, desenvolvido por Pierre Ratinaud. O software está disponível para download na página
http://www.iramuteq.org/.
104

(SOUSA et al, 2020, p. 5), para identificar o possível agrupamento do discurso em classes ou
mundos lexicais.
O software também nos permitiu fazer uma análise fatorial de correspondências (AFC),
de forma a observar a distribuição do discurso em um plano fatorial de duas dimensões, no
intuito de identificar oposições e aproximações entre sujeitos, variáveis e elementos
(NASCIMENTO; MENANDRO, 2006). Segundo Sousa e Gondim et al. (2020, p. 6), “quando
utilizada no método Reinert, a AFC relaciona formas linguísticas e variáveis de contexto com
as classes resultantes da CHD”, o que permitiria a visualização da possível relação entre as
classes derivadas do tratamento estatístico da CHD.
De posse dos dados gerados pelo programa, cabe ao pesquisador interpretá-los com base
no referencial teórico, atribuindo sentido ao material e construindo hipóteses explicativas sobre
o fenômeno estudado (KALAMPALIKIS, 2003), pois a organização e distribuição do discurso
nas classes oferece indícios da possível existência de um fundo associativo comum. No entanto,
os resultados não possuem um sentido em si mesmo, sendo necessário um embasamento teórico
bem constituído para interpretar as relações entre o discurso do grupo e o fenômeno investigado.
É importante frisar que as palavras utilizadas pelas participantes para se referirem ao
objeto não podem ser consideradas elementos de representação per se, ou seja, a análise das
classes obtidas com a CHD demanda por parte do pesquisador a construção de hipóteses de
uma possível organização e dinâmica da representação enquanto processo sociocognitivo, mais
do que a simples descrição do conteúdo presente no discurso. O método permite a identificação
de “mundos lexicais”, lugares de referência na produção do discurso do grupo. Não se trata de
repetir o que os sujeitos dizem, mas de analisar a forma como o discurso expressa um processo
de pensamento e a natureza da relação com um objeto social.
A adoção de um olhar multimetodológico (SOTIRAKOPOULOU; BREAKWELL,
1992) nos permitiu fazer uma triangulação dos dados, visando maior fidedignidade ao estudo
na descrição do contexto e da experiência de formação a partir dos próprios participantes. O
uso articulado de métodos, técnicas e ferramentas se faz necessário devido à complexidade dos
fenômenos de representação social. Em nossa pesquisa, a triangulação se deu entre o conteúdo
representacional presente no discurso e nas práticas das crianças e as imagens sociais sobre a
infância e a participação evocadas pelas professoras Cribiás, na tentativa de identificar
elementos comuns entre as representações que orientam à ação de crianças e adultos.
Considerando que nem todo objeto adquire relevância suficiente para ser representado
e integrado ao universo simbólico de um grupo, condição sine qua non para a gênese de uma
105

representação, é importante ressaltar que, ambos os contextos pesquisados dizem respeito à


propostas de intervenção baseadas na Psicologia Social e na TRS, com o objetivo de contribuir
para a ressignificação e transformação das práticas e das representações sociais. Não estamos
propondo aqui a comparação entre contextos e representações, mas a identificação de fatores
que possam favorecer a constituição da cidadania infantil enquanto fenômeno de representação,
para crianças e adultos, entendendo que esse processo ocorre a partir da experiência em
situações de formação e exercício da participação. A figura 12 mostra a articulação
metodológica entre os dois estudos, uma pesquisa com crianças e outra sobre crianças.

Figura 12. Desenho metodológico da pesquisa

Fonte: o autor.

Ao longo do projeto P’tits Volontaires (estudo 1) as crianças que participaram tiveram


contato com voluntários que atuam em associações locais, bem como os facilitadores
responsáveis pela condução das atividades. Na interação entre crianças e adultos, num contexto
educativo, as representações sociais são compartilhadas, na tentativa de dar sentido às
experiências/vivências. Nesse processo, a criança é um sujeito ativo que constrói suas
representações, ao invés de simplesmente absorver o conteúdo daquilo que é transmitido pelo
adulto. A cidadania, o voluntariado e a participação infantil foram objeto de discussão ao longo
do projeto, suscitando a comunicação e o processo de negociação de sentidos entre os
participantes.
Paralelo ao estudo com as crianças no contexto associativo francês, a experiência de
formação continuada e a participação no coletivo Cribiás, crianças sabidas, projeto
106

desenvolvido pela Secretaria de Educação em parceria com a Universidade Federal de Mato


Grosso, com o objetivo de construção de práticas de fomento ao protagonismo infantil foi
condição determinante para a escolha das professoras que atuam na Educação Infantil da Rede
Municipal de Cuiabá (estudo 2), na qual tem sido desenvolvido um projeto político educacional
inovador, com base na noção de espaço narrativo (NIENOW; LORENSINI, 2017).
A vivência das professoras no contexto de formação e atuação político-educativa é o
que lhes permitiria ressignificar a sua prática docente, com base no estudo de teorias
psicológicas e pedagógicas que implicam o reconhecimento da criança enquanto sujeito de
direitos, além da constituição de uma identidade de grupo enquanto um coletivo de professoras
protagonistas, capazes de dialogar com as crianças na construção de um projeto político-
pedagógico inclusivo.
Para Gohn (2011, p.346), “[...] lutas e movimentos pela educação têm caráter histórico,
são processuais, ocorrem, portanto, dentro e fora de escolas e em outros espaços institucionais.
Lutas pela educação envolvem lutas por direitos e fazem parte da construção da cidadania”. A
partir da identificação dos fatores que favorecem a participação infantil e o exercício da
cidadania, nos contextos de educação formal (escola) e não-formal (fora do ambiente escolar,
em práticas de educação para a cidadania), espera-se avaliar a importância das três dimensões
que consideramos atuar na construção da cidadania infantil enquanto representação social:
democracia, participação e engajamento.
A democracia aqui não é apenas forma de governo, mas é tida enquanto valor universal
e princípio educativo; a participação social, como medida de cidadania, no sentido de
representar o acesso e participação da população nas decisões coletivas, seja de forma
institucionalizada ou por entre as brechas do tecido institucional; e o engajamento, dimensão
subjetiva que favorece a adesão do Estado e dos cidadãos às práticas participativas que podem
horizontalizar e diminuir a desigualdade nas relações intergeracionais.
A emergência ou construção de uma representação da criança cidadã perpassa o
reconhecimento da capacidade das crianças e jovens em participarem da vida da comunidade,
não apenas nos moldes e espaços previstos pelo adulto, mas na forma singular com que
concebem o espaço e a realidade social.
107

4. Os pequenos voluntários de Paris

A investigação da cidadania infantil enquanto possível fenômeno de representação se


iniciou com um estudo etnográfico com crianças de um projeto de formação cidadã,
denominado P’tits Volontaires de Paris, realizado no 4ème arrondissement, distrito central que
compreende o bairro histórico do Marais e diversos monumentos da cidade (figura 13).
Participaram do projeto 7 crianças, membros do Conseil Municipal des Enfants durante o ano
escolar 2019-2020, uma de cada escola da região
A formação foi articulada em torno de temas considerados necessários para a cidadania
ativa, com base na estratégia da pesquisa-ação (THIOLLENT, 2019), organizadas por
voluntários das associações parisienses. No período de setembro de 2019 a março de 2020,
foram realizados um total de 11 encontros, com 21duração média de 3 horas, sendo um encontro
para a abertura do projeto e apresentação da metodologia às crianças, mais 6 encontros de
formação e 4 encontros para construção do projeto coletivo. Ao final do período, as crianças
deveriam apresentar o projeto em sessão plenária para o prefeito do 4ème e demais
representantes locais, para discutir a viabilidade de sua execução orçamentária e administrativa.
Figura 13 - mapa do 4ème arrondissement

Fonte: https://planmetro.paris/

Entretanto, devido às medidas sanitárias impostas na França por causa da pandemia de


covid-19, o projeto teve de ser interrompido no início de março de 2020, cerca de um mês antes
da realização da sessão plenária.

21
Cours Moyen (CM) se refere à 3ª etapa de escolarização de base no modelo francês, que antecede o collège, o
que equivaleria no Brasil ao início da segunda etapa do ensino fundamental.
108

Autores como Trilla e Novella (2001), Sarmento, Fernandes e Tomás (2007) e Blatrix
(2009) se referem à iniciativa dos Conselhos de Crianças e Jovens nos países europeus como
uma forma de ampliar as possibilidades de participação política dessa parcela da população que
não possui direito a voto e, portanto, não possui representação na esfera pública. Hart (1992)
cita projetos realizados por Organizações Não-Governamentais (ONGs) com crianças em
condições de marginalização e de violação de direitos que incentivam a autonomia e a
mobilização social como forma de combate à exclusão em países periféricos.
A partir da produção do campo da Sociologia da Infância, as significações atribuídas à
cidadania e à participação infantil foram analisadas, de forma a caracterizar os tipos de
participação presentes no contexto associativo francês, além das condições psicossociais que
favorecem o engajamento das crianças em atividades de formação cidadã.
Optamos por utilizar a SEBE (LAHLOU, 2017) devido ao seu potencial na reconstrução
da experiência subjetiva por meio do uso de gravações em vídeo na perspectiva em primeira
pessoa (first person perspective ou FPP, em inglês), com o auxílio de uma microcâmera,
denominada subcam (figura 14) e da possibilidade de incluir as crian22ças como participantes
ativos na pesquisa.

Figura 14 - a câmera subjetiva ou subcam.

Fonte: o autor.

A técnica permitiria o acesso às duas dimensões da experiência: a vivência, aquilo é


experienciado pelos sentidos, por meio do registro em vídeo da atividade dos sujeitos; e a
reflexão sobre a experiência, quando o sujeito atribui significado ao vivido, ao ser solicitado a
elaborar e comunicar a atividade ao pesquisador, na entrevista replay.
[...] a noção de experiência vai ser marcada por uma dupla reflexão: uma primeira que
se volta para o vivido enquanto tal, explora e reflete sobre os eventos, sua

22
Optamos por traduzir a técnica como Etnografia Baseada em Evidência Subjetiva (CAMPOS; BRANDÃO,
2022), mas manter a sigla no original em inglês.
109

temporalidade, causalidade, efeitos; a segunda se refere a como o “eu” se encontra,


em uma percepção a posteriori das razões, emoções, julgamentos vividos pelo “eu”
durante a experiência (CAMPOS, 2018, p. 199).

A metodologia permite uma mudança na postura epistêmica, ao ampliar a colaboração


entre pesquisador e sujeitos, que passam a atuar como participantes da pesquisa. Na pesquisa
com a SEBE, são os participantes que conduzem a produção de dados, a partir do registro da
sua própria atividade, sendo possível o registro mesmo na ausência do pesquisador. Esse
procedimento visa reduzir a interferência do pesquisador na produção dos dados, colocando-o
em segundo plano na interpretação da atividade e da experiência subjetiva.
Esse é o diferencial da SEBE enquanto técnica do tipo etnográfico, ao subverter a
autoridade etnográfica (JAMES, 2011) historicamente constituída, ela retira do pesquisador a
posição de único autor competente para produzir o relato sobre a atividade do Outro. Por meio
da subcam e da entrevista replay, a técnica se propõe a capacitar os participantes para
produzirem dados sobre o contexto e sua própria atividade.
A SEBE serviu para auxiliar as crianças na tarefa de reflexão acerca da experiência de
formação cidadã no projeto P’tits Volontaires, em discussões coletivas, realizadas durante os
encontros de construção do projeto, utilizando uma metodologia semelhante aos grupos focais.
Posteriormente, a técnica utilizada em entrevistas individuais, seguiu o protocolo da entrevista
replay (replay interview) (LAHLOU, 2017).
Dessa forma, obtivemos dados acerca da experiência subjetiva e dos sentidos
negociados pelas crianças durante a formação, na tentativa de compreender o papel das
associações e dos voluntários no contexto parisiense e como a participação social pode permitir
o exercício da cidadania.

4.1 Os Conselhos de Crianças e Jovens (CMEJ) e o contexto francês

Originalmente criados em comunidades da região do Baixo Reno, na França, no início


da década de 1980, os Conselhos de Crianças e Jovens (CMEJ) têm por objetivo a formação e
preparação de crianças e jovens para a participação política e o exercício da cidadania, tendo
em vista o modelo de democracia representativa, por meio da organização em conselhos e
proposição e votação de projetos de interesse comum em plenárias, semelhante à atividade dos
conselheiros e representantes eleitos pela população por meio do voto direto. A pesquisa de
Koebel (2000) na região da Alsácia, fronteira entre a França e a Alemanha, mostra que o
aprendizado nos CMEJ tem despertado o interesse dos jovens pela vida pública, fazendo com
110

que muitos se candidatem a cargos eletivos quando adultos ou que continuem a se engajar no
processo democrático por meio de associações ou conselhos populares.
O Conseil Municipal des Enfants du 4e (CME) foi uma iniciativa da subprefeitura do 4º
distrito de Paris que permitia às crianças escolarizadas na região, nas classes de CM1 e CM2
(na faixa etária aproximada de 9 a 11 anos), a participação em plenárias e a construção e votação
de projetos para o distrito, principalmente no âmbito do orçamento participativo. A iniciativa
não é restrita ao 4ème, cada um dos 20 distritos da cidade tem autonomia para implementar um
CME. As crianças se inscrevem com a devida autorização dos pais, apresentando ideias para
um projeto que gostariam de realizar, e os conselheiros são selecionados nas escolas por meio
de sorteio ou eleições diretas. A participação das crianças no CME pode ser renovada por até
dois anos, após esse período, é necessária a realização de novas eleições.
Durante as sessões do conselho, as crianças se reúnem para apresentar e defender seus
projetos individuais, escolhendo um único projeto para ser construído e apresentado
coletivamente ao prefeito do distrito em sessão plenária ao final do mandato. Após a união
administrativa das subprefeituras dos quatro primeiros distritos, sob o nome Paris Centre, ainda
não temos notícia de ação equivalente ao CME.
No ano de 2019, a Mairie du 4ème realizou o projeto piloto denominado P’tits
Volontaires (Pequenos Voluntários), que consistiu na formação das crianças do Conseil
Municipal des Enfants (CME), na faixa etária de 9 a 12 anos de idade, para o exercício da
cidadania ativa, por meio de atividades desenvolvidas em parceria com associações da
sociedade civil, tais como a Cruz-Vermelha e a Ressourcerie l’Alternative (uma associação
voltada para a educação ambiental e o reaproveitamento de materiais).
Na cidade de Paris, estima-se que mais de 700.000 pessoas trabalhem ou atuem como
voluntários23 em associações civis e a prefeitura possui um plano de apoio que inclui a
implantação da plataforma digital “Je m’engage” (https://jemengage.paris.fr/) com informações
sobre as associações, sua localização e o procedimento para inscrição de novos voluntários,
além da realização de eventos anuais como a Semana do Engajamento (figura 19), que
permitem aos habitantes conhecerem as ações desenvolvidas pelas associações e ONGs que
atuam na cidade. O objetivo do plano de apoio é ampliar a parceria entre a administração pública
e as associações da sociedade civil por meio da criação de novos espaços e o fomento à
participação popular e o trabalho voluntário.

23
O termo comumente utilizado em francês é bénévole, que tem sua origem nas atividades benevolentes de
instituições religiosas e de caridade.
111

Figura 15 - cartaz da Semana Parisiense de Engajamento

Fonte: Ville de Paris (2019).

Como mostra a figura 15, veiculada para a divulgação da Semana Parisiense do


Engajamento de 2019, o ambiente associativo e o trabalho voluntário são imbuídos de uma
significação extremamente positiva, ao conferir aos cidadãos o superpoder de serem
voluntários, agindo em prol da coletividade e do bem comum. A existência de associações
atuando em diversos níveis e setores da sociedade, tais como a ecologia, primeiros socorros,
auxílio à população em situação de rua e imigrantes, educação popular, incentivo à cultura etc.,
mostra a abrangência das atividades associativas e o aumento de possibilidades para a
construção de dispositivos de participação democrática, por meio da desburocratização do
acesso aos recursos públicos.
Esse processo também é um reflexo do esvaziamento das atribuições do Estado no
contexto neoliberal, no qual os cidadãos são chamados a assumirem as responsabilidades
outrora exercidas pelo estado do bem-estar social (SIMONET, 2010), como uma forma de
garantir a satisfação pessoal de uma parcela da população, por meio da realização de atividades
produtivas voluntárias, num contexto em que o trabalho humano vem se tornando cada vez mais
supérfluo.

4.2 Observação de um projeto piloto de educação para a cidadania

Na primeira reunião com os representantes da Mairie du 4ème, no dia 19/09/2019, fomos


informados que o objetivo do projeto piloto era “formar o cidadão do amanhã”, como parte das
ações da Estratégia de Resiliência de Paris24 (2019). A cidade de Paris integra a rede das 100

24
No original em francês, Stratégie de Résilience de Paris.
112

Cidades Resilientes, criada em 2013 pela Fundação Rockfeller, da qual também fazem parte as
cidades brasileiras de Porto Alegre, Rio de Janeiro e Salvador. A concepção de resiliência
urbana apresentada pelo documento diz respeito a um fenômeno coletivo, definido como “a
capacidade das pessoas, comunidades, instituições, empresas e sistemas dentro de uma cidade
para sobreviver, adaptar-se e prosperar, independente dos tipos de estresse crônico e das crises
agudas que as atinjam” (PARIS, 2019, tradução nossa). Nesse contexto, faz-se necessária a
formação dos atores sociais para o enfrentamento das crises que afetam a cidade, sejam elas
decorrentes das mudanças climáticas ou da ação social. O que significa ser cidadão em Paris?
Essa formação foi pensada como um exercício de cidadania ativa, ao capacitar as crianças para
a atuação local, dentro da própria comunidade.
Nossa proposta foi a realização de uma pesquisa, com o objetivo de identificar os
significados atribuídos pelas crianças à cidadania e a participação, que podem favorecer seu
engajamento em projetos de formação cidadã e democrática, razão pela qual optamos pela
SEBE para coletar dados que nos permitissem investigar a experiência de formação a nível
subjetivo. A cada sessão, uma ou duas crianças utilizariam a subcam para registrar as atividades
de formação, e os vídeos seriam utilizados para a discussão a respeito da experiência formativa.
Dessa forma, decidimos intercalar as sessões de formação e de construção de projeto, dedicando
parte das últimas para a discussão em grupo dos vídeos da subcam. Embora a técnica tenha o
objetivo de estudar a atividade do ponto de vista do sujeito, o estudo de Cordelois (2010)
mostrou que os participantes são capazes de compartilhar a experiência do subcamer (a pessoa
que usa a câmera no momento da atividade) ao assistirem os registros em vídeo, devido à
perspectiva em primeira pessoa.
Para a inscrição no CME, as crianças propuseram temas para a construção do projeto
coletivo, e ao recuperar as fichas de inscrição, identificamos que os temas lidavam com dois
eixos principais: o aumento da quantidade de pessoas em situação de rua e a falta de vegetação
no bairro. Seria necessário optar por um único tema ou propor uma articulação entre os dois,
para facilitar o planejamento das ações. O tema escolhido foi a vegetalização, por oferecer
possibilidades para a discussão do uso do espaço público e do permis de végétaliser, uma
espécie de autorização concedida pela prefeitura de Paris para os cidadãos que desejam cultivar
plantas em praças e ruas da cidade.
Ser um pesquisador estrangeiro foi apontado pelos coordenadores do projeto como um
fator que poderia facilitar a interação com as crianças, no sentido de horizontalizar as relações
e diminuir os conflitos intergeracionais, adotando uma postura de adulto atípico (CORSARO,
113

2005). O papel de facilitador do projeto permitiria o contato direto com as crianças nos
encontros de formação e na construção das ações coletivas. A interação deveria se dar numa
relação de colaboração, de forma a esclarecer os objetivos da pesquisa e os instrumentos que
seriam utilizados, favorecendo o engajamento das crianças.
O primeiro encontro de formação, realizado em 25 de setembro de 2019, apresentou às
crianças as características do projeto, o cronograma das ações e os instrumentos de pesquisa.
Por razões éticas, neste trabalho como forma de resguardar o anonimato dos participantes, que
assinaram um termo de compromisso com a prefeitura, decidimos atribuir um pseudônimo para
cada uma das crianças, como apresenta o quadro abaixo. Ressaltamos que as crianças habitam
uma região central da cidade de Paris, tendo acesso facilitado à cultura e lazer, constituindo
uma parcela reduzida da população francesa. Apresentamos um breve relato das sessões e da
formação realizada ao longo do projeto.

Quadro 3. Participantes do projeto P’tits Volontaires

Pseudônimo Escola que representava Projeto individual

Talita Saint-Louis en l’île Reduzir o consumo de embalagens de plástico.

Sofia Tournelles Vosges Abrir as escolas com campos de futebol aos finais de
semana.
Érica Ave Maria Combater à poluição e a discriminação nas escolas.
Ingrid Neuve Saint-Pierre Ajudar as pessoas em situação de rua e as associações.
Silvia Hospitalière Saint-Gervais Fazer a coleta seletiva de lixo nas escolas.
Cláudia Renard Sensibilizar as crianças para combater a discriminação.
Renato Moussy Distribuição de alimentos não vendidos pelos
estabelecimentos comerciais da região.

25 de setembro de 2019 – Sessão de abertura do projeto P’tits Volontaires

No dia 25 de setembro de 2019, foi realizada a sessão de abertura do projeto. Uma


representante da subprefeitura explicou às crianças sobre a participação popular e o papel dos
membros do CME, seus deveres e responsabilidades enquanto representantes das suas escolas
e das demais crianças. O grupo era composto por 7 crianças, seis meninas e um menino, na
114

faixa etária entre 9 e 11 anos, cada uma representando uma escola do 4º distrito, como mostra
a figura 16.

Figura 16 - reunião inaugural do projeto P'tits Volontaires

Fonte: acervo da pesquisa.

A subcam seria utilizada por uma criança de cada vez, durante os encontros de formação,
para a discussão em grupo nos encontros de construção do projeto. O objetivo era propiciar a
discussão coletiva acerca da experiência de formação vivenciada com as associações locais, na
tentativa de identificar possíveis mudanças de atitude e de conteúdos representacionais no que
tange ao exercício da cidadania e a participação.
As crianças tiveram a oportunidade de conhecer o prefeito do 4º distrito, que lhes falou
sobre a importância do projeto de formação cidadã, em seguida elas conheceram o setor
responsável pelo registro dos moradores, sendo convidados a procurarem as suas certidões de
nascimento e de casamento dos pais. O funcionário do cartório de registro mostrou às crianças
a certidão de nascimento de Serge Gainsbourg, famoso cantor parisiense nascido em 1923,
dizendo orgulhoso que elas moravam no bairro onde o cantor havia nascido.
Ao final do encontro, as crianças fizeram fotos nas escadarias da prefeitura, alternando
entre fotos “sérias” e fotos com “careta”, como forma de registrar o início das atividades do
CME. As crianças se mostraram animadas com o projeto, principalmente aquelas que haviam
se inscrito com a intenção de desenvolver um projeto sobre meio ambiente. Percebemos que
duas crianças tinham autorização para ir embora sozinhas, enquanto as outras deveriam
aguardar a chegada dos pais. Tivemos de entrar em contato com a mãe do menino, que
trabalhava no Hôtel de Ville (onde fica localizada a Prefeitura de Paris), para avisar que o filho
a aguardava.
115

9 de outubro de 2019 – Formação sobre Solidariedade com a Cruz-Vermelha

As crianças do CME se reuniam numa sala reservada do Pôle Citoyen Simon Lefranc
(PARIS, 2019), no prédio da subprefeitura, e, devido à falta de facilitadores no polo, foi
necessário levá-las à sede da Croix-Rouge no 4ème na companhia da secretária. Embora a sede
fosse próxima da subprefeitura, alguns minutos de caminhada, pedimos às crianças para ter
cuidado com o trânsito, para evitar acidentes.
Logo no início da formação, perguntamos às crianças quem gostaria de usar a subcam e
uma das meninas (a mais velha do grupo) se ofereceu para registrar a atividade de formação.
Fomos recebidos por duas voluntárias que fizeram uma pequena apresentação sobre a origem
da Cruz-Vermelha francesa, criada em 1864 como Sociedade de socorro aos militares feridos
(no original, Société de Secours aux Bléssés Militaires – SSBM). Um terceiro voluntário se
apresentou ao grupo e explicou as ações desenvolvidas pela associação para atender as pessoas
em situação de rua (a sigla francesa é SDF - Sans Domicile Fixe), que consistem em doações,
cadastro e acompanhamento dos moradores da região.
As crianças ficaram surpresas com o fato de que os voluntários da Cruz-Vermelha não
recebem qualquer remuneração da associação, a maioria tem um emprego e se dedica à
associação no seu tempo livre. Eles explicaram que para ser voluntário é necessário ter uma
idade mínima de 14 anos, mas que as crianças poderiam ajudar de outras formas, doando
alimentos, roupas e brinquedos para os SDF. Os voluntários propuseram às crianças que
escolhessem alguns produtos, entre itens de higiene e alimentos, para que pudessem ser doados
às pessoas que habitam o entorno da sede, em uma “maraude”, uma caminhada para conhecer
os moradores e levar doações. A atividade de escolha dos produtos foi registrada com a subcam,
para discussão posterior com o grupo a respeito do que é necessário para quem mora na rua.
Uma das questões levantadas pelos voluntários é que, embora sejam feitas várias doações,
dificilmente as pessoas se dispõem a conversar com os SDF, um reflexo da exclusão que atinge
essa população.
Ao sair para a maraude, as crianças vestiam coletes da Cruz-Vermelha, sob a instrução
de uma voluntária, como forma de representar a instituição, razão pela qual as crianças
deveriam estar atentas à forma como se portavam.
“quando vestimos esses coletes, não somos nós mesmos, nós somos a Cruz-
Vermelha” (tradução nossa).

Durante a caminhada, encontramos três senhores em situação de rua, um deles pediu para
não ser incomodado, enquanto o segundo pediu um café para as crianças, relatando que não
116

comia nada há um dia, e as crianças então prepararam um pacote de sopa para lhe dar. O terceiro
senhor se identificou com o nome artístico “Alain du Loin”, um trocadilho com a palavra que
significa longe, distante, e o nome do ator Alain Delon. Esse senhor contou ter imigrado para a
França há alguns anos, mas que não tinha conseguido emprego, razão pela qual morava na rua.
Ele escrevia poemas do tipo “haiku” e contou estórias para as crianças. O senhor Alain deu às
crianças um pacote de palitos de chocolate, como forma de agradecer as doações.
O próximo encontro de formação foi realizado apenas no dia 6 de novembro, por causa
das férias escolares, o que nos deu tempo suficiente para planejar as atividades, rever os
registros da subcam e escolher os trechos para discutir com as crianças. Para o professor Lahlou,
o momento mais importante do registro era quando as crianças escolheram os produtos para
doação, porque nos permitiria discutir sobre como as crianças percebem as necessidades dos
SDF e o que consideram mais importante para quem mora na rua. Também seria uma
oportunidade de discutir porque as pessoas atuam como voluntários em associações, a partir do
relato dos voluntários da Cruz-Vermelha durante o encontro de formação, lembrando as
crianças que elas também eram voluntárias no CME.
O registro da formação foi utilizado para a discussão em grupo acerca da situação dos
SDF, o que leva as pessoas a morarem na rua e o que é possível fazer para ajudá-las, bem como
as formas de mobilizar as pessoas para ajudarem a Cruz-Vermelha. As perguntas que
direcionaram a discussão foram: Por que as pessoas se engajam como voluntários? Se não há
retorno financeiro, que tipo de recompensa é obtida com o voluntariado? Utilizamos um
acróstico como ferramenta para evocar conteúdos associados ao tema da formação, utilizando
duas palavras, solidariedade e voluntário.

6 de novembro de 2019 - Encontro de construção de projeto

Para o primeiro encontro de projeto, arrumamos a sala com antecedência, para garantir
que fosse possível registrar a discussão coletiva e a atividade de confecção do acróstico (figura
17). O polo Simon Lefranc enviou um facilitador para participar do projeto e acompanhar as
crianças do CME, conforme o combinado na primeira reunião com a subprefeitura. Foi
necessário explicar ao facilitador a programação do encontro de projeto e apresentar o
instrumental da nossa pesquisa, para que ele se familiarizasse com a subcam.

Figura 17 - confecção do acróstico


117

Fonte: acervo da pesquisa.

No início da sessão, mostramos uma foto das crianças ao lado dos voluntários antes da
“maraude”, vestindo os coletes da Cruz-Vermelha, para iniciar a discussão sobre voluntariado
e engajamento. Utilizamos um momento da formação, registrado pela subcam, em que uma das
crianças afirmava que as pessoas acreditam que os SDF são loucos, por isso elas evitam se
aproximar das pessoas em situação de rua, para discutir com o grupo sobre as crenças, como
mostra o trecho abaixo, traduzido do francês25.
S: E os voluntários da Cruz Vermelha, na sua opinião, por que eles fazem isso?
E: Para ajudar as pessoas.
C: Para ajudar as pessoas que realmente precisam, elas não precisam de uma
remuneração, ganhar dinheiro, porque elas já têm trabalho e, além disso, fazem outra
coisa que ajuda as pessoas.
I: Talvez porque eles também sejam apaixonados pelo trabalho.
S: Para os outros ou para si mesmos, então. Quando vocês foram à rua com os
voluntários da Cruz Vermelha, vocês tiveram a impressão de que eles estavam se
divertindo?
E: Mm, sim. É, quem gosta, sim.
T: porque muitas vezes, a imagem que as pessoas têm dos SDF é que eles são loucos,
que não têm dinheiro. (E: E que eles bebem muito). Quando você está ao lado deles,
e por exemplo quando você está na rua, você tem mais confiança nessas pessoas. Isso
é o que pode influenciar se ajudamos as pessoas ou não.
E: Geralmente pensamos que eles estão bêbados e que fazem qualquer coisa e que têm
pouco dinheiro. (T: Isso é o que você pensa). Mas, de fato, você pode ver outra
imagem deles durante e após a maraude.
C: Sim, mas também se eles não estiveram em uma maraude, eles vão trazer sempre
a mesma coisa.
I: Há pessoas que vão à escola e depois são voluntárias.
E: Mas se eles virem pessoas indo às ruas.
T: Não, eu sempre cumprimentei Alain.
I: Nós vimos alguém chamado Alain e ele já foi voluntário, é professor e gostava de
ciências.
E: eu o vi esta manhã antes da escola e lhe dei um café da manhã.
C: Ele nos deu Mikados em troca. (E: Isso é bom.)

25
Optamos por traduzir as notas de campo e as falas dos participantes, como forma de facilitar a interpretação
dos dados.
118

T: Podemos dar comida, às vezes os SDF não têm nenhuma. Eu dei comida a um gato,
mas ele não tinha nada pra dar em troca.
C: Algumas pessoas são desabrigadas, depende, todos têm esta imagem de que elas
roubam e bebem e tudo isso. Mas as pessoas podem perceber que elas estão sozinhas,
não têm com quem conversar e é por isso que elas falam consigo mesmas e que não
têm muito o que comer. Então se a pessoas ajudam, elas sabem que as pessoas são
gentis, por exemplo, as associações como a Cruz Vermelha.
E: Porque às vezes eles estão sozinhos e geralmente as pessoas que estão realmente
deprimidas se sentem realmente sozinhas no mundo, eles bebem e isso os deixa ainda
mais tristes e eles recomeçam tudo de novo.

Durante a discussão sobre o registro da subcam, uma das crianças se dirigiu às demais
para perguntar o que significava “ser louco”, na tentativa de trazer o tema ao grupo e buscar um
consenso. Para as crianças, a falta de conhecimento a respeito dos SDF é um dos principais
motivos para a discriminação, na crença de que fatores como alcoolismo e doença mental são
o que levam as pessoas a morarem na rua. Considerando o exemplo da menina que passou a
doar parte do seu café da manhã para o senhor Alain, com quem havia conversado durante a
“maraude”, os voluntários da Cruz-Vermelha realizam um trabalho de sensibilização da
população para as causas sociais, como forma de incentivar a solidariedade.
Pedimos as crianças que escrevessem um acróstico com as palavras Solidariedade e
Voluntário, primeiro individualmente, depois em grupo, para destacar os benefícios do trabalho
em grupo. Individualmente, as crianças levaram mais de 15 minutos para encontrar palavras
que iniciassem com as letras do acróstico, enquanto a atividade em grupo foi concluída em
apenas 3 minutos.
Dissemos às crianças que o grupo é mais eficaz que os indivíduos, porque o grupo é capaz
de continuar a atividade mesmo na ausência de algum dos membros. Perguntamos o que as
crianças preferem, um grupo mais eficaz ou um grupo onde as pessoas se escutam, e as crianças
responderam que preferiam um grupo no qual as pessoas se escutam. A fala das crianças vai ao
encontro dos estudos de representação social sobre o grupo ideal (RATEAU, 1995), no qual a
ausência de hierarquia entre os membros e as relações de amizade são tidos como elementos
centrais. No quadro 2 apresentamos alguns exemplos dos acrósticos individual e em grupo.

Quadro 4. Exemplos de Acrósticos das crianças


Acróstico Individual
S Sûr de soi V Vivant plus que jamais
O Oriental O Orienter le monded à sa façon
L Les amis sont L Livrer l’amitié à tous
I Importants O Honte eu les méchants
119

D Dans la vie N Non au harcelement


A Arrive um jour où la T Titanic est au mer
R Rentrée est A Air
I Indifférente des autres I Irrésonable
T Traditionelle R Rupture des ligaments croisé
É Aimable E Heureux
Acróstico coletivo
S Sensibilité V Vivre ensemble
O Organisation O Obstination
L Logement L Liberté
I Indispensable O Oser
D Dormir/drame N Normal d’essayer
A Aimable T Tous ensemble
R Rigoler A Aimer être volontaire
I Installation I Instruction
T Trouver des idées R Rébellion
É Éducation E Ecologie malgré tous

No primeiro acróstico, escrito por uma das meninas do grupo, é possível perceber a
tentativa de organizar as palavras em um poema, de forma que a leitura vertical das palavras
solidariedade e voluntário adquira um sentido. Ao perguntar à menina, ela nos disse que os
acrósticos de solidariedade e voluntário poderiam ser lidos assim (tradução nossa):
Solidariedade
seguro de si
oriental
os amigos são importantes
na vida chega um dia em que o retorno é indiferente dos outros
tradicional e amável

Voluntário
mais vivo do que nunca
orientar o mundo à sua maneira
distribuir amizade a todos
vergonha têm os malvados
não à discriminação
o Titanic está ao mar
ar
sem razão
ruptura dos ligamentos cruzados
feliz
120

Já as palavras associadas pelo grupo ao termo solidariedade indicam a presença de valores


sociais e sentimentos, tais como a sensibilidade, indispensável, organização e educação, mas
também a situação dos SDF, nas palavras habitação e dormir/drama, na forma como as crianças
vivenciaram a atividade de formação. As características necessárias ao voluntário são
apresentadas pelas crianças nas palavras associadas ao acróstico, obstinação, liberdade, ousar,
todos juntos, amar ser voluntário, instrução e rebelião. A disponibilidade para o voluntariado
é uma decisão pessoal, mas que necessita da ação coletiva para ser reforçadora e eficaz.

20 de novembro de 2019 – Encontro de formação “gestos que salvam” com os Bombeiros

No início da formação, os Sapeurs-Pompiers explicaram para as crianças a diferença entre


os bombeiros voluntários, que atuam em situações de crise, mas não seguem carreira, e os
bombeiros militares, que fazem parte da corporação. Os bombeiros estão distribuídos em 76
quartéis em Paris e nos arredores, atuando no combate a incêndios, socorro às vítimas de
acidentes e intervenção em casos de vazamento de água ou gás. Eles perguntaram se as crianças
conheciam os números para contato em caso de socorro: Bombeiros – 18, Polícia – 17, SAMU
– 15 e o número europeu – 112. Em seguida, foi apresentado um vídeo do que fazer em caso de
incêndio, e as boas práticas para evitar acidentes domésticos.
Para o treinamento em primeiros socorros, pedimos a duas crianças que utilizassem a
subcam, para registrar as atividades de formação e discutir posteriormente. As crianças
aprenderam como ajudar uma pessoa desmaiada, ao colocá-la em PLS (posição que permite à
pessoa respirar e evita uma parada respiratória), praticando com os bombeiros, treinaram a
reanimação cardiopulmonar (RCP ou massagem cardíaca) nos manequins e aprenderam a usar
um desfibrilador automático externo (DEA), instrumento utilizado para identificar arritmias e
parada cardiorrespiratória. Os bombeiros disseram ser importante que as crianças saibam os
gestos de primeiros socorros, assim como os adultos, caso não tenha nenhum adulto responsável
por perto e precisem intervir até a chegada dos profissionais, como mostra a figura 18.

Figura 18 - treinamento em primeiros socorros


121

Fonte: acervo da pesquisa

Após a pausa para o lanche, as crianças encenaram algumas situações para treinar os
gestos de primeiros-socorros e o que fazer em cada tipo de emergência. Perguntamos às crianças
se elas haviam encontrado um lugar para o projeto de vegetalização e uma das meninas sugeriu
fazer na Praça da Bastilha, porque, segundo ela, havia uma grande calçada, mas não havia
plantas, era tudo “vazio e feio”. Alguns dias depois, descobrimos que a região da Praça da
Bastilha fazia parte do 11º distrito e a prefeitura estava prestes a iniciar um projeto de
revitalização no local, com árvores e flores.
Ao final da formação, as crianças pediram para brincar enquanto aguardavam a chegada
dos responsáveis. Elas queriam brincar de Lucky Luke e o facilitador nos explicou as regras do
jogo, que consistia em formar uma roda, com uma pessoa posicionada ao meio, que deveria
girar com os dedos apontados em forma de arma, enquanto os demais deveriam ficar atentos
pois, quando a pessoa parasse girar, a pessoa para quem ela apontasse deveria se esquivar ou
seria atingida e estaria fora da brincadeira. O facilitador também sugeriu brincar de “siga o
mestre” na praça dentro da Mairie, para evitar que as crianças fizessem barulho enquanto
esperavam.
Pensamos ser importante planejar ações e brincadeiras para o final das atividades de
formação, caso sobrasse tempo. Foi possível perceber a importância da brincadeira para as
crianças, que utilizavam todo tempo disponível entre as atividades para interagirem e se
conhecerem (as crianças não tinham contato fora do projeto, pois eram de escolas diferentes).

4 de dezembro de 2019 – Luta contra as discriminações no ambiente escolar


122

A formação foi ministrada por uma representante da Mairie, que havia trabalhado como
professora da educação básica, e uma conselheira técnica. A representante perguntou se as
crianças conheciam algum sinônimo de violência e eles apontaram vários: “s’insulter, se battre,
racketter, se moquer, chamaille, etc”. As palavras indicavam várias formas de agressão que
podem ocorrer no ambiente escolar, e as crianças foram solicitadas a construir uma escala de
tipos de violência, de acordo com o grau de risco. A escala foi escrita coletivamente, no quadro,
e no topo foi colocada a palavra harcèlement, que tem por equivalente em português assédio ou
bullying. A conselheira falou sobre o livro Poil de carotte, romance escrito por Jules Renard
em 1894, que conta a história de um menino ruivo discriminado pela família e por seus pares.
Disseram que o livro foi inspirado na infância abusiva do próprio autor, que se tornou leitura
obrigatória na França.
O harcèlement foi definido pela conselheira como um tipo de violência que consiste em
comportamentos repetitivos de agressão verbal ou física, dirigidos a alguém que não sabe como
se defender, um bode expiatório (souffre-douleur é o termo em francês utilizado no livro
supracitado). As crianças foram solicitadas a propor soluções para os tipos de violência que
indicaram na escala, e como seria possível de combater individualmente a violência na escola.
As crianças contaram alguns relatos sobre a discriminação e a violência que já haviam
presenciado, em diversos ambiente, na creche, em aulas de esporte, e numa competição escolar.
Ao final da discussão, a representante da Mairie perguntou o que as crianças haviam
considerado mais importante na formação, e eles responderam que a escala de violência e as
formas de identificar o bullying.
Como havia tempo até o final do encontro, uma funcionária da prefeitura veio conversar
com as crianças sobre os projetos de vegetalização em Paris. Ela explicou que a cidade iniciou
os projetos como uma forma de amenizar os impactos das mudanças climáticas. Dos vinte
distritos de Paris, o 4ème é considerado o mais arborizado, pois existem cerca de 14 espaços
verdes no distrito. No entanto, devido à localização central, há uma série de critérios a serem
seguidos para a organização de um espaço verde, fiscalizados pelos Architectes de Bâtiments
de la France (ABF), organização responsável pela preservação dos monumentos históricos,
composta em sua maioria por arquitetos. Recebemos um caderno com orientações sobre os
projetos de vegetalização e o orçamento participativo e as crianças ficaram responsáveis por
procurar alternativas de plantas que pudessem ser empregadas no projeto das crianças para o
bairro26.

26
A lista das plantas autorizadas pela prefeitura está disponível no site www.vegetalisons.paris.
123

Havíamos pedido sugestões de jogos e brincadeiras que poderiam ser utilizados para
discutir sobre as formas de discriminação e um dos animadores indicou o “jogo do estrangeiro”,
como forma de refletir sobre a imigração e as dificuldades encontradas pelas pessoas para serem
aceitas pela sociedade francesa. O jogo se assemelhava a uma dança das cadeiras, foram
dispostas várias cadeiras no pátio da Mairie, e a cada rodada uma criança faria o papel do
estrangeiro, cujo objetivo era conseguir se sentar, enquanto os outros tentavam impedi-lo. O
número de cadeiras era igual ao de crianças, mas o estrangeiro só poderia sentar-se em uma
cadeira vazia. As crianças deveriam argumentar durante a brincadeira, dando motivos pelos
quais o estrangeiro não poderia se sentar. Depois da brincadeira, discutimos com as crianças
sobre as discriminações sofridas pelos imigrantes no dia a dia, inclusive na escola.

18 de dezembro de 2019 – Economia social e solidária com a Ressourcerie l’Alternative

As crianças seriam acompanhadas pela equipe até o 2ème arrondissement, na sede da


Ressourcerie l’Alternative, uma associação de reciclagem e reaproveitamento de materiais,
onde aconteceria uma visita guiada pelos voluntários e uma oficina para confecção de esponjas.
O deslocamento seria realizado pelo metrô, mas, devido à greve de transportes na França, não
havia transporte público disponível no horário da formação, e teríamos que levar as crianças a
pé. Além dos membros do CME, também participariam da formação dois estagiários da Mairie,
alunos de ensino médio, sob nossa responsabilidade. Seriam cerca de 30 minutos de caminhada
do 4ème ao 2ème, passando por duas ruas bastante movimentadas, a Rue de Rivoli e a Rue Saint-
Denis.
A caminhada até a Ressourcerie foi tranquila e na chegada os voluntários explicaram às
crianças sobre reciclagem e reaproveitamento. A reciclagem consiste em transformar os
materiais em algo completamente diferente, enquanto o reaproveitamento pode ser parcial ou
integral, no sentido de utilizar parte do objeto para construir algo novo. Segundo os voluntários,
a associação recebe cerca de 3 toneladas de doações por semana, entre roupas, calçados e
demais objetos, sendo necessário fazer uma triagem do que pode ser reaproveitado e o que pode
ser repassado para outras associações, como Emaüs e Croix-Rouge. Após a triagem, apenas 5%
do material é descartado, porque a associação consegue utilizar a maior parte do que recebe.
Uma das crianças perguntou aos voluntários se eles pudessem resumir o papel da
Ressourcerie em duas palavras, quais seriam, o voluntário respondeu que seriam
“reaproveitamento” e “social” (ou laços sociais), porque a associação atua na tentativa de
124

diminuir o consumo excessivo e a poluição e de reforçar os laços sociais entre as pessoas da


comunidade, razão pela qual a associação é aberta a todos. Os voluntários mostraram às crianças
árvores de Natal confeccionadas com livros e materiais reciclados, como alternativa ecológica
aos pinheiros que costumam ser adquiridos no período de festas de fim de ano.
Após a explicação sobre o trabalho da Ressourcerie, as crianças foram levadas a um
ateliê, onde ocorrem as oficinas de “faça você mesmo” (figura 19), para aprenderem a
confeccionar esponjas a partir de meias usadas e embalagens de presente sem papel (furoshiki).
Duas crianças utilizaram a subcam, um menino e uma menina, para registrar as atividades da
oficina. Uma voluntária ensinou as crianças a fazer uma esponja para lavar louça, para tal, era
necessário cortar as meias em tiras e juntar as tiras utilizando uma prancha com pregos dispostos
paralelamente. As crianças confeccionaram pelo menos uma esponja cada, e embalaram-nas
para presente utilizando tecido. Uma das crianças perdeu um elástico e todos os demais
ajudaram a procurar.

Figura 19 - ateliê "faça você mesmo"

Fonte: o autor

8 de janeiro de 2020 – Encontro de construção de projeto

Iniciamos a sessão com uma imagem do outdoor da Semana Parisiense de Engajamento


(figura 14, da página 107), que acontecera em dezembro do ano anterior, com a participação de
diversas associações da sociedade civil. Perguntamos às crianças o que elas pensavam sobre o
voluntariado e mostramos fotos dos encontros anteriores para discutirmos em grupo sobre a
formação. Uma das crianças perguntou qual era o objetivo do encontro de projeto e lhe dissemos
que seria construir o projeto de vegetalização da Rue de Petit Musc (a rua havia sido sugestão
125

dela). O professor Saadi pediu informações sobre a rua e saiu para fazer fotos dos locais onde
as plantas poderiam ser colocadas. Durante o encontro, as crianças conversaram e cantaram ao
microfone que utilizávamos para registrar as atividades, sendo difícil chamar a atenção delas
para os vídeos da subcam. Falamos sobre o permis de végétaliser (a autorização da prefeitura),
e que seria necessário um adulto para assinar e se responsabilizar pelo projeto na prefeitura,
mas as crianças disseram que os pais não poderiam ser os responsáveis, porque eles trabalhavam
muito.
O professor Saadi trouxe as fotos dos lugares indicados pelas crianças e pedimos que elas
desenhassem um croqui de arquitetura para o espaço da Rue de Petit Musc onde o projeto
poderia ser realizado, um amplo calçadão de cerca de 100m². As crianças desenharam as plantas
sobre as fotos, depois apresentaram suas ideias aos demais. A ideia era desenhar as plantas
utilizando cartolina e colar os desenhos na parede onde a foto estava projetada, como se as
plantas fizessem parte do cenário, para ilustrar como ficaria o projeto de vegetalização do
espaço escolhido, como mostra a figura 20.

Figura 20 - atividade de desenho do projeto de vegetalização

Fonte: acervo da pesquisa

Ao analisar a atividade das crianças, percebemos uma dificuldade para o trabalho


coletivo, a maioria havia desenhado sozinha as plantas que lhe agradavam e, no momento de
colar sobre a foto, perceberam que tinham ideias semelhantes sobre o posicionamento dos
canteiros e vasos. Pensamos que seria necessário incentivá-las a trabalharem em grupo, de
forma a compartilhar experiências e conhecimentos na construção do projeto.
Pesquisamos sobre o serviço responsável por instruir os cidadãos de Paris sobre como
conseguir um permis de végétaliser (autorização para vegetalização), denominado Maison du
126

Jardinage, para agendar uma visita do CME no dia 5 de fevereiro, para discutir a possibilidade
de implementação do projeto construído pelas crianças.

22 de janeiro de 2020 – Encontro intergeracional com os moradores da residência Ave Maria

Nos reunimos com as crianças no polo cidadão Simon Lefranc para caminharmos até o
lar para idosos Ave Maria, onde a diretora nos aguardava. Uma das crianças afirmou que sua
escola ficava ao lado da residência e ela poderia guiar o grupo até lá, pois estava familiarizada
com o caminho. Ao chegar à residência de idosos, pegamos o elevador até o quinto andar,
dentro do elevador havia um comunicado avisando que as crianças do CME viriam visitar e
brincar com os moradores naquele dia.
A diretora apresentou a residência e seu regulamento, lá habitavam 75 idosos, pagando
uma pequena taxa para as despesas de alojamento. Os moradores podem sair e entrar quando
quiser, todos possuem a chave dos seus apartamentos. A residência Ave Maria é parceira da
Maison Petit Rémouleur, onde habitam 50 idosos. Na cidade de Paris e no seu entorno, existem
23 residências, que abrigam cerca de 1150 idosos. Após a fala da diretora, a equipe do abrigo
se apresentou e explicou como funciona sua jornada de trabalho, o objetivo da equipe é auxiliar
e criar um bom relacionamento com os idosos, pois muitos acabam ficando isolados, por não
terem família ou não receberem visitas. As crianças fizeram perguntas sobre o trabalho no
abrigo e a menina que havia guiado o grupo mais cedo explicou o que é o Conseil Municipal
des Enfants e qual a função dos conselheiros.
A equipe havia preparado um lanche especial para as crianças e os idosos, e estava
previsto um torneio de jogos de videogame, com boliche e tênis virtual, mas apenas uma das
moradoras participou do torneio, como mostra a figura 21. As crianças tentaram explicar à
moradora como funcionava o jogo, mas ela acabou ficando cansada e desistiu na metade do
torneio. Um dos meninos passou a maior parte do tempo da visita brincando com o celular,
exceto quando estava participando do torneio. Duas meninas pediram autorização para utilizar
o piano, e uma delas disse que estava se preparando para uma audição para o conservatório de
música, que aconteceria em alguns meses.

Figura 21 - visita à casa de repouso Ave Maria


127

Fonte: acervo da pesquisa.

Os moradores do abrigo assistiram as crianças brincarem no videogame, mas não se


interessaram pelos jogos virtuais. Talvez a equipe devesse ter preparado jogos ou brincadeiras
coletivas, que permitissem maior interação entre eles. Durante a atividade, um rapaz veio
conversar com algumas senhoras e a equipe explicou que alguns voluntários fazem visitas
regulares, com o intuito de conversar com os moradores. A diretora deu alguns panfletos para
as crianças e as convidou para visitarem novamente o abrigo, nos dias disponíveis para a
comunidade em geral.

5 de fevereiro de 2020 – Encontro de construção de projeto

Combinamos uma visita com a responsável do ateliê “mãos verdes” para que as crianças
tivessem a oportunidade de aprender a plantar e conhecer um pouco de jardinagem. A Maison
du Jardinage está localizada no Parque Bercy, no 12º distrito, portanto era necessário pegar o
metrô para chegar lá. A responsável da prefeitura não havia comprado os bilhetes do metrô para
as crianças, mas o facilitador disse que depois poderia nos ressarcir. Foi necessário pegar a linha
1 em frente à prefeitura e fazer baldeação para a linha 14 na estação Chatelet, descemos na
estação Bercy e caminhamos com as crianças até o local.
Havia um grupo de adultos participando de um ateliê sobre o permis de végétaliser e uma
pessoa da equipe aguardava as crianças do CME. Ela perguntou sobre o projeto de
vegetalização e mostrou o mapa da cidade na plataforma vegetalison.fr para encontrar a calçada
onde as crianças pretendiam colocar as plantas. Em Paris, nem todas as calçadas são de
responsabilidade da prefeitura, por vezes os edifícios são os responsáveis por cuidar do espaço,
sendo necessário solicitar sua autorização para ocupar arborizar o espaço. Mostramos as fotos
e os desenhos das crianças e eles explicaram que gostariam de usar vasos, construir canteiros e
um caramanchão. A responsável nos disse que não é permitido plantar próximo aos postes e
128

lâmpadas, devido ao risco de pane elétrica, mas que seria possível instalar canteiros junto à
parede e vasos na calçada. Nesse caso, a construção dos canteiros não é responsabilidade da
prefeitura, mas ela poderia doar a terra e as sementes, cabendo aos cidadãos comprarem os
vasos ou construir os canteiros.
O permis de végétaliser é uma autorização com validade de no mínimo um ano, podendo
ser renovada por até três anos. A Maison du Jardinage faz estudos de viabilidade dos projetos
e acompanha a sua execução. O projeto de vegetalização das crianças seria viável, mas seria
necessário um adulto para se responsabilizar e construir os canteiros. Também seria importante
ter a participação dos moradores para cuidar das plantas, pois apenas uma das crianças habitava
na rua onde seria realizado o projeto. Após a discussão, as crianças conheceram o jardim e a
horta, para a aprender algumas técnicas de jardinagem, como a compostagem (figura 22).
Registramos a visita com uma câmera de vídeo, no entanto houve uma falha no microfone e
conseguimos captar apenas imagens.
Figura 22 – aprendendo sobre compostagem

Fonte: acervo da pesquisa

26 de fevereiro de 2020 – encontro de formação sobre ecologia

Nos dirigimos à prefeitura do 4ème para esperar as crianças e os representantes do Serviço


de Limpeza de Paris27, que apresentariam uma formação sobre ecologia e o descarte de lixo na
cidade. Assim que as crianças chegaram, conversamos sobre a preparação da sessão plenária, e
uma das meninas que havia participado do CME no ano anterior explicou como foi a
apresentação do projeto, a partir de um script feito pelos facilitadores. A ideia é que cada criança
deveria apresentar uma parte e os facilitadores organizariam a ordem das apresentações.

27
Le Service Technique de la Propreté de Paris (STPP).
129

Decidimos que cada criança deveria escolher uma associação um encontro de formação para
apresentar, assim, todos teriam oportunidade de falar.
Às 14:30, duas representantes do STPP chegaram para ministrar a formação, elas
iniciaram as atividades com um vídeo curto sobre o ciclo de vida de uma ponta de cigarro,
mostrando a poluição causada pelo descarte inapropriado. No vídeo, em inglês, uma menina
explicava o que havia aprendido durante as férias sobre a poluição, particularmente sobre o
impacto das bitucas de cigarro no meio-ambiente, baseado na quantidade de pessoas fumantes
nos Estados Unidos. Em Paris, o serviço de limpeza da cidade recolhe cerca de 10 milhões de
pontas de cigarro por dia, devido ao grande número de fumantes. As crianças contaram histórias
sobre o cigarro em sua família, uma das meninas disse que os pais pararam de fumar graças aos
seus esforços, mas que ainda havia muitas pessoas na família que fumavam.
Um dos facilitadores contou às crianças sobre a sua primeira experiência com o cigarro,
dizendo que o melhor é não experimentar, para não correr o risco de se viciar. As crianças
disseram conhecer várias pessoas que tiveram câncer (inclusive o avô do pesquisador faleceu
de câncer em 1992). Após a discussão sobre o tabagismo e o descarte de pontas de cigarro, as
representantes deram às crianças luvas, sacolas e pinças para recolher lixo, a exemplo dos
trabalhadores da STPP. A ideia era realizar a coleta de detritos na praça Baudoyer, em frente à
prefeitura, mas havia muito lixo no pátio, plástico, bitucas de cigarro e restos de comida, e as
crianças começaram a limpeza pela área interna. Uma das crianças utilizou a subcam para
registrar a atividade de coleta de lixo.
Enquanto faziam a coleta das pontas de cigarro no pátio da prefeitura, as crianças se
depararam com um bueiro e uma das meninas decidiu abrir a tampa para retirar o lixo
acumulado. Após alguns minutos de tentativa, as crianças conseguiram encaixar as pinças e
levantar a tampa, encontrando uma grande quantidade de lixo. Por iniciativa própria, as crianças
começaram a competir para ver quem conseguia recolher mais lixo, e algumas delas decidiram
coletar na área ao redor da prefeitura, restando apenas duas crianças no pátio, junto com o
facilitador. As crianças encontraram um segundo bueiro, e dessa vez conseguiram retirar a
tampa e fazer a limpeza em apenas alguns instantes (figura 23).

Figura 23 - imagem do bueiro feita com a subcam


130

Fonte: acervo da pesquisa.

Após a atividade, o lixo recolhido foi colocado em um container dentro da prefeitura, para
ser descartado posteriormente. As crianças ganharam alguns brindes, garrafas de água e
lancheiras com o símbolo do serviço de limpeza da cidade de Paris. As responsáveis pela
formação disseram que realizam atividades semelhantes nas escolas da cidade e pediram às
crianças para divulgarem o trabalho da STPP em suas respectivas escolas, para os demais
colegas que não puderam participar do projeto (figura 24).
Durante o lanche, as crianças discutiram e decidiram quem ficaria responsável por
apresentar cada associação durante a sessão plenária, e uma das crianças se ofereceu para fazer
um vídeo de apresentação das atividades do CME no TikTok, aplicativo de celular bastante
utilizado por crianças e adultos para a produção e compartilhamento de vídeos curtos. Criamos
um álbum compartilhado no Google Drive, com as fotos dos encontros de formação (parte das
fotos integra esse trabalho), no intuito de disponibilizar às crianças e os responsáveis.
Figura 24 - atividade de coleta de lixo

Fonte: acervo da pesquisa


131

11 de março de 2020 – encontro de preparação para a apresentação da plenária

Reunimos as crianças no polo cidadão e fomos ao IEA, localizado no Hôtel de Lauzun,


prédio histórico do século XVII, na Île Saint-Louis. As crianças fariam uma visita guiada ao
instituto, para conhecer a história do edifício, onde Baudelaire ficou hospedado durante um
período. Reservamos a sala de reunião no subsolo para preparar a sessão plenária, onde as
crianças deveriam apresentar as atividades do CME e o projeto de vegetalização da Rue de Petit
Musc, construído ao longo dos encontros de formação.
Cada criança deveria preparar um pequeno roteiro da apresentação sobre a associação que
havia escolhido, as atividades de formação realizadas e o que havia aprendido. Em seguida, eles
deveriam apresentar o roteiro ao grupo, para que os demais pudessem fazer sugestões e
contribuir com a apresentação. Caberia aos responsáveis por apresentar as associações refletir
sobre as sugestões do grupo e decidir o que seria acatado. O objetivo era construir uma
apresentação com fotos e o relato das crianças.
A menina que havia se oferecido para fazer um vídeo no TikTok mostrou os três vídeos
que fizera, uma para apresentar os membros do CME e dois para as atividades de formação.
Logo no início, percebemos que as fotos escolhidas para apresentar os facilitadores (os adultos)
mostravam situações de descontração, uma delas fora tirada durante a brincadeira de fazer
caretas no primeiro encontro do projeto (figura 25), enquanto as fotos das crianças aparentavam
certa “docilidade” ou seriedade.
A postura de adulto atípico, referida por Corsaro (2005), identificada pelos responsáveis
da formulação do projeto como estratégia para aproximar os facilitadores dos membros do
CME, parecia ter sido utilizada pelas crianças como uma forma de inverter os papéis, atribuindo
ao adulto características lúdicas, como mostra a figura 27, enquanto a foto das crianças
demonstrava responsabilidade e seriedade na condução do projeto.

Figura 25 - apresentação do CME


132

Fonte: acervo da pesquisa.

Na preparação da apresentação, cada criança estava livre para construir o relato da forma
como preferisse, devendo apenas seguir algumas orientações: falar sobre o papel da associação,
contar aquilo que havia aprendido durante a formação, falar sobre um projeto pessoal e fazer
os agradecimentos. Pedimos ao professor Saadi que interpretasse o prefeito, para que as
crianças pudessem ensaiar a apresentação do projeto.
No relato das crianças, encontramos desenhos sobre as associações, o símbolo da Cruz-
Vermelha e um desenho sobre o perigo das pontas de cigarro (bitucas), repetições das falas dos
voluntários durante as formações, como no caso dos bombeiros, e as orientações sobre
incêndios domésticos e primeiros-socorros.
Também encontramos no material de uma das crianças, um acróstico, estratégia utilizada
no primeiro encontro de projeto (no dia 6 de novembro de 2019) para refletir acerca do trabalho
da Cruz-Vermelha, com as letras iniciais da Maison du Jardinage (quadro 5). O emprego do
acróstico para ilustrar o objetivo da instituição mostra uma apropriação da criança das
ferramentas utilizadas ao longo da formação.

Quadro 5. Exemplo de acróstico espontâneo


J Joie M Monde
A Attention A Autoriser
R Refaire I Imagination
D Danger S Sourire
133

I Imaginer O Opinion
N Naturelle N Nature
A Aménager
G Gagner
E Eménager

Como projeto pessoal, uma das crianças afirmou que pretendia se engajar mais nas
atividades da cidade. Também encontramos relatos sobre a importância de trabalhar em grupo,
mesmo que seja difícil conciliar a vontade de todos, como mostra a fala de uma das crianças.
“quando trabalhamos em grupo, não podemos fazer tudo o queremos, é preciso
aprender a suportar os outros” (tradução nossa).

Esse tipo de fala reaparece durante as entrevistas-replay, quando as crianças discutem as


dificuldades do trabalho em grupo. É importante lembrar que a tolerância é um dos princípios
fundamentais da democracia (COUTINHO, 1979; MOSCOVICI, 1992), como forma de
garantir uma convivência pacífica, o que não significa a ausência de conflitos, mas a negociação
e o uso da razão para solucionar os problemas consequentes dos dissensos.

12 de março de 2020 – Reunião de emergência sobre a pandemia de Covid-19

No dia 12 de março, tivemos uma reunião de emergência no IEA de Paris, pois o


presidente Emmanuel Macron anunciaria uma série de medidas para conter o avanço do novo
coronavírus na França. As recomendações naquele momento eram de evitar o transporte público
e, se possível, fazer o teletrabalho. Os eventos previstos para os próximos meses seriam
cancelados, para evitar aglomerações. Quem precisasse ir ao instituto, deveria avisar com
antecedência, e almoçar dentro do escritório, pois o refeitório seria fechado.
O período de confinamento total na França durou de 17 de março a 11 de maio de 2020.
Nesse período, foi solicitado que todos permanecessem em casa (lockdown), para evitar o
contágio e a propagação do novo coronavírus. Com o auxílio da CAPES, pude retornar ao
Brasil, antes do período inicialmente proposto.

Considerações sobre o projeto P’tits Volontaires


134

A experiência do Conseil Municipal des Enfants du 4e mostra a capacidade das crianças


em perceber e identificar os problemas locais, como a falta de arborização e de espaços lúdicos,
a coleta seletiva, o desperdício alimentar e o combate à violência e discriminação nas escolas.
Esses problemas são percebidos a partir da vivência da própria criança, enquanto membro da
comunidade, e refletem à particularidade da infância e dos espaços disponíveis para atuação,
na família, escola e bairro.
No entanto, a resolução dos problemas da cidade necessita da ação coletiva e do
acompanhamento dos adultos, pois estes são responsáveis pela aplicação e monitoramento dos
recursos, como é o caso do Orçamento Participativo e do permis de végétaliser, que necessitam
de um responsável maior de idade para submissão dos projetos junto com a prefeitura. Essa
exigência de um adulto acaba por ser um entrave, no sentido, de que há uma transferência ao
invés de um compartilhamento da responsabilidade pelas ações, mostrando os limites da
participação das crianças.
As atividades do projeto P’tits Volontaires foram interrompidas em março de 2020, em
função da pandemia de covid-19, antes que as crianças pudessem apresentar seu projeto coletivo
ao prefeito do 4º distrito, o que seria uma oportunidade para observar a forma como as crianças
do CME argumentariam e se mobilizariam para a defesa de seus interesses. Embora o tema do
projeto tenha sido escolhido pelos adultos, baseado nas sugestões e projetos individuais das
crianças, a metodologia da pesquisa-ação permitiu que as crianças tivessem um papel ativo na
escolha do local, do tipo de vegetação e dos responsáveis por cada etapa, considerando as
limitações impostas para a participação cidadã no contexto parisiense.
Na escada de participação (HART, 1992), ações como o projeto P’tits Volontaires
estariam localizadas no nível 6, que compreende as ações iniciadas por adultos, mas que
possuem decisões compartilhadas com as crianças, como ilustra a construção do projeto
coletivo do CME nos encontros de formação. Uma das falas que nos chamou a atenção foi da
pequena Cláudia (nome fictício), logo no primeiro encontro de construção do projeto, quando
ligamos o microfone e pedimos às crianças que falassem a respeito da vivência com a Cruz-
Vermelha. A menina comentou que era extraordinário ser convidada a falar, pois na escola
ocorre o contrário, as crianças são solicitadas a ficarem em silêncio.
Paralelo aos encontros de projeto, as formações com as associações apresentaram níveis
distintos de participação efetiva, como pudemos perceber ao longo do relato. Tomás (2007)
afirma que a principal característica da participação infantil é a negociação de interesses e
objetivos entre crianças e adultos, mas é necessário que o adulto esteja disposto a renunciar ao
135

poder geracional. Essa atitude vai ao encontro à ideia de disciplinamento da infância


(SARMENTO, 2007), que perpassa a escolarização obrigatória. O contexto associativo oferece
possibilidade de ampliação da participação infantil, mas ele ainda é dominado por uma lógica
adultocêntrica, no sentido de que há um limite de idade para a atuação das crianças.
No modelo de avaliação qualitativa proposta por Trilla e Novella (2001), que permite a
coexistência de ações no continuum da participação infantil, consideramos que as ações do
CME variam ora entre a participação consultiva, como por exemplo quando as crianças foram
chamadas a dar opinião a respeito das brincadeiras e da apresentação na plenária, ora na
participação projetiva, quando coube a elas a construção de um projeto para o bairro. No
entanto, as ações do conselho ainda apresentam pouca repercussão local, o que poderia ser um
exemplo da falta de legitimidade atribuída à participação política da criança.
Blatrix (1998) e Koebel (2000) relatam que uma parcela das crianças e jovens que
participam dos conselhos na França tende a continuar atuando como representante em cargos
eletivos, mas se pensamos a cidadania ativa, é necessário que essa atuação não se restrinja aos
mecanismos políticos de representação, mas à participação cidadã na comunidade, seja na luta
por melhores condições de moradia e de trabalho, ou na resolução de crises humanitárias, como
ocorre em guerras e desastres climáticos.
Nossa análise buscou identificar indícios de mudanças no processo representacional dos
objetos cidadania e participação infantil pelas crianças, bem como as condições em que ocorre
o engajamento em atividades de educação cidadã, tema que foi abordado nas entrevistas
individuais. De acordo com o relato das crianças na primeira reunião, a inscrição de cada um
no projeto se deu por motivações distintas, seja por incentivo dos pais ou pela vontade de
participar de uma atividade extraclasse. Considerando a baixa adesão nas escolas ao processo
de escolha dos representantes do CME, a vontade e motivação para participar foi apontado
como um fator comum pelos membros do grupo.
Ao longo do projeto, as crianças esboçaram várias mudanças de atitude em relação ao
voluntariado, como acompanhar as pessoas em situação de rua no bairro e propor doações nas
escolas, como foi o caso da menina que passou a levar café da manhã para o senhor Alan
DuLoin, registrar as atividades de formação com instrumentos próprios (câmera e caderno de
notas), se envolver com a programação do polo cidadão e divulgar as atividades, e incentivar
os pais na adesão à coleta seletiva ou no combate ao tabagismo. Esses são apenas alguns
exemplos de práticas que podem ter um impacto no sistema de representações do qual a
cidadania faz parte e que foram iniciadas pelas crianças.
136

Espera-se que após a pandemia de covid-19, iniciativas de participação como essas


possam ser retomadas, devido aos resultados que vêm sendo observados em pesquisas como as
de Cortessis, Guisan e Tsandev (2009) sobre o voluntariado entre os jovens suíços. As autoras
mostram que o espaço associativo pode se constituir como um ambiente propício de educação
não-formal, pois não requer competências prévias e não há uma exigência de resultados como
ocorre na escola e no mercado de trabalho. A partir do relato de jovens engajados em
associações e coletivos, as autoras identificaram as competências sociais e transversais que esse
tipo de trabalho desenvolve, tais como autoconfiança e organização do tempo, que podem
influenciar positivamente o percurso e a trajetória dos jovens. Existe no referido país uma
iniciativa para o reconhecimento e certificação da experiência no trabalho voluntário como
forma de valorizar a atividades desenvolvidas no ambiente associativo.
A aprendizagem que resulta da participação em movimentos sociais e associações
movimentalistas se articula em torno de diferentes eixos (GOHN, 2011), mas na experiência de
educação cidadã proposta pelo projeto P’tits Volontaires ressaltamos a aprendizagem prática,
no sentido da organização das crianças para a resolução de problemas comuns, na negociação
entre os interesses individuais e os do grupo; a aprendizagem técnica, ao aprender o
funcionamento de órgãos e instrumentos governamentais, como o uso do permis de végétaliser
para a ocupação e apropriação do espaço público; e a aprendizagem simbólica, que resultaria
na construção e ressignificação das representações que as crianças possuem de si mesmas e dos
adultos que atuam como voluntários no contexto associativo parisiense.
A experiência dos Conselhos de Crianças e Jovens (CMEJ) possibilita às crianças o
exercício da cidadania, por meio da participação em dispositivos democráticos, que reforçam a
importância da participação infantil e da atividade coletiva das crianças para a resolução dos
problemas locais. No entanto, esse tipo de dispositivo corre o risco de reproduzir uma noção de
cidadania adultocêntrica, que tenha como fundamento os valores almejados para os futuros
cidadãos, como o aumento da participação em eleições e em conselhos de município, sem
considerar o desejo e a intencionalidade das crianças, a partir daquilo que elas são capazes no
presente.
Estabelecer um percurso organizado de atividades e etapas a serem seguidas permite
acompanhar e avaliar o projeto desenvolvido, facilitando o feedback e a reflexão entre as
crianças e os facilitadores, mas é necessário abrir espaço para que as crianças construam seus
próprios projetos, não apenas nos CMEJ, mas nas escolas e demais associações, valorizando as
competências de cada um, de acordo com a etapa do desenvolvimento.
137

4.3 A perspectiva das crianças sobre o voluntariado e a formação cidadã

No âmbito da nossa pesquisa, a SEBE foi utilizada como ferramenta metodológica para
produção de dados acerca da experiência subjetiva de formação das crianças para a cidadania
ativa, no âmbito do projeto P’tits Volontaires. A proposta de utilizar o material da subcam para
as discussões nos encontros de construção de projeto veio ao encontro do objetivo da
coordenação do CME de propiciar a reflexão das crianças sobre a cidadania ativa. Durante as
atividades de formação, pelo menos uma das crianças portava a subcam, de forma que, ao final
do projeto, todos tinham utilizado a câmera pelo menos uma vez, com exceção de uma criança,
que optou por não usá-la.
O material da subcam foi utilizado para discutir sobre a experiência de formação, durante
os encontros de construção do projeto, inspirado no trabalho realizado por Cordelois (2010)
sobre o sentimento de “volta ao lar”, no qual o autor utilizou os vídeos da subcam, feitos por
duplas de participantes, para a análise e discussão coletiva por meio de um software de
marcação audiovisual (denominado Webdiver), desenvolvido por um laboratório da
Universidade de Stanford. Com o auxílio do software, o autor comparou as anotações e
interpretações dos diferentes participantes, os que usaram a subcam (perspectiva em primeira
pessoa) e os observadores externos (perspectiva em terceira pessoa).
No contexto do projeto, foram realizados três encontros de discussão coletiva, registrados
com auxílio de uma câmera externa e de um gravador, no intuito de investigar como ocorreu o
processo de negociação de sentidos e significados entre as crianças, na partilha da experiência
de formação. Embora os vídeos tivessem sido gravados por uma criança de cada vez,
responsável por conduzir o grupo durante as discussões, buscamos as semelhanças e diferenças
entre as motivações e objetivos relatados pelos participantes enquanto grupo.
Esse material foi utilizado para a realização de entrevistas replay (RIW) com as crianças
do CME ao final do período da pesquisa. Embora tivéssemos agendado com as crianças e os
responsáveis, não conseguimos entrevistar todas as crianças, devido ao clima de tensão que
antecedeu o confinamento sanitário (lockdown) na França. Foram realizadas 4 entrevistas
replay individuais, antes da interrupção abrupta das atividades do projeto.
As entrevistas foram realizadas em idioma francês e seguiram o seguinte protocolo:
selecionamos trechos que ilustrassem momentos de engajamento das crianças nas atividades de
formação. Para cada criança, foram selecionados trechos do momento em que havia portado a
subcam, de forma a garantir a presença de clipes da atividade na perspectiva em primeira pessoa
138

(FPP), necessários para o protocolo da SEBE; bem como vídeos dos encontros de construção
do projeto coletivo, feitos com o auxílio de uma câmera externa, posicionada de forma a captar
todos os participantes. Os clipes foram construídos pelo pesquisador ao longo do projeto, com
o uso de um software editor de vídeo, na seleção de trechos específicos de cada formação, com
base no referencial teórico e nos objetivos da pesquisa.
Durante as entrevistas replay, não houve um roteiro de entrevista, sendo a criança
solicitada a recontar o que havia vivido, assumindo o protagonismo na condução do processo
de produção dos dados. No primeiro momento, mostrávamos trechos de vídeo (clipes)
escolhidos especificamente para a entrevista e pedíamos às crianças que explicassem a sua
atividade em vídeo, fazendo perguntas sobre a motivação e os objetivos durante a formação,
“naquele momento, o que você estava fazendo? Você pode me contar como foi?”. Essas
perguntas nos auxiliaram a entender o processo de construção de significados e incentivaram a
reflexão sobre a experiência, por meio da interação entre o pesquisador e o participante.
Posteriormente, como forma de incentivar a participação infantil, pedimos às crianças que
selecionassem trechos das atividades e explicassem os motivos para a escolha. Os vídeos foram
dispostos em pastas com o nome da formação e receberam títulos autoexplicativos, a partir da
descrição do conteúdo da atividade. Dessa forma, a criança poderia escolher o clipe do
momento específico que gostaria de rever, sem a necessidade de interferência do pesquisador.
Percebemos que, dentre todas as formações, houve unanimidade entre as crianças sobre os
momentos mais lúdicos e divertidos.
As entrevistas foram gravadas com o auxílio de uma câmera externa, posicionada de
forma a captar a tela onde se passava o vídeo, bem como as reações e expressões da criança
enquanto assistia os registros da atividade em primeira pessoa (figura 26), conforme orienta
Lahlou (2017). Nossa proposta foi comparar os fatores que direcionaram a escolha e a
interpretação dos trechos considerados importantes para o pesquisador e a escolha dos
participantes, na relação com a experiência subjetiva da formação, entendendo que a vivência
tem potencial para a ressignificação e transformação das representações.

Figura 26 – exemplo de uma replay interview


139

Fonte: acervo da pesquisa.

As entrevistas foram transcritas, com atenção para a marcação do momento do relato em


que ocorreram reações emocionais à atividade que se passa no vídeo. A análise de cada
entrevista foi realizada individualmente, nos pressupostos da Análise de Conteúdo (BARDIN,
2002; NEGURA, 2006), na tentativa de identificar os principais temas levantados pelas crianças
ao se referirem à cidadania, o voluntariado e a participação. Nosso objetivo foi a busca por
indícios de mudanças no processo representacional de cada participante como possível
consequência da experiência/vivência de formação.
O protocolo de análise das entrevistas replay consistiu nas seguintes etapas: 1. Breve
apresentação e descrição da participação da criança no projeto P’tits Volontaires; 2. Descrição
dos trechos/clipes selecionados para discussão com a criança, bem como os trechos escolhidos
pela própria criança na entrevista; 3. Exemplos de reações da criança à atividade em vídeo,
compreendendo o discurso verbal e as reações emocionais; 4. Síntese dos conteúdos evocados
por cada criança durante a entrevista individual; 5. Análise de conteúdo do conjunto de
entrevistas replay, de forma a identificar os significados comuns atribuídos pelo grupo de
crianças e a possibilidade de constituição da cidadania e participação enquanto fenômenos de
representação.
Para Lahlou (2020), o fato de que as representações sociais são compartilhadas num grupo
não significa que todos possuem a mesma representação de determinado objeto, mas que cada
participante possui uma representação individual com elementos comuns ao todo. É a partir do
estudo do conjunto de representações individuais, no discurso e nas práticas dos sujeitos, que
se pode obter elementos para a construção de uma hipótese de organização da representação
social, que tem por objetivo tornar consensual aquilo que se pensa em relação ao objeto. O autor
afirma que, na realidade social, objetos e representações são indissociáveis, a representação de
cada objeto é adequada as condições materiais e simbólicas por meio da comunicação, passando
por uma espécie de seleção natural ao longo da história do grupo.
140

Com este estudo, buscamos demonstrar os benefícios da SEBE, ainda pouco utilizada no
Brasil, para a pesquisa em representações sociais e educação. Concordamos com Lahlou (2017)
sobre a importância de reconhecer a influência do pesquisador na produção dos dados da
pesquisa, e sobre a mudança que a técnica traz na relação entre pesquisador e pesquisado. No
caso do projeto P’tits Volontaires, as crianças foram treinadas para operar a subcam, e
percebemos uma adesão maior dos participantes à discussão sobre os vídeos que eles mesmos
registraram. Durante a entrevista replay, percebemos que as crianças utilizaram o material de
vídeo para reforçar seus argumentos, a partir das evidências subjetivas.
Estamos chamando de evidências subjetivas as falas, gestos e demais manifestações
afetivas e discursivas que ocorreram em resposta ao que acontece no vídeo, frases como “eu
não lembrava disso”, “foi por “causa daquilo”, “você viu?”, na qual percebemos um esforço
cognitivo da criança para atribuir significado à atividade e comunicar ao pesquisador e o
responsável (algumas crianças participaram da entrevista na presença dos responsáveis). Essas
evidências são indícios de um processo de pensamento, e podem sinalizar as mudanças que
ocorreram ao longo da formação, por meio de comparações temporais, entre o início e o término
do projeto, que teve duração de aproximadamente seis meses.

Análise de Entrevista Replay: Talita - 12/03/2020

Talita (nome fictício) era aluna de CM2 da escola Saint-Louis en l’Ile e na época do
projeto tinha 11 anos (nascida em 14/04/2009). No ato da inscrição para o Conseil Municipal
des Enfants (CME) sua ideia era fazer um projeto para conscientizar a comunidade quanto à
necessidade de redução do consumo de plástico, por meio do uso de embalagens reutilizáveis,
sob a justificativa de ser “mais ecológico e mais econômico”. Era uma das crianças mais velhas
do grupo e tinha autorização para ir sozinha às formações, sem a necessidade de um
acompanhante.
A participante foi bastante presente nas atividades do CME e se ofereceu para fazer o
vídeo de apresentação da equipe que seria utilizado na sessão plenária, usando o aplicativo
móvel TikTok. Foi a primeira criança a utilizar a subcam, por iniciativa própria, sendo a
responsável pelo registro da formação com a Cruz-Vermelha.
Talita foi a primeira criança a participar da entrevista replay individual, que foi realizada
no IEA de Paris, no dia 12/03/2020, na presença da mãe, após o encontro de preparação da
plenária. Na época em que a entrevista foi realizada, a França tinha começado a registrar os
primeiros casos de infecção pelo novo coronavírus.
141

Episódio 1: a construção do projeto coletivo

O primeiro clipe apresentado, feito com o auxílio de uma câmera externa, mostra as
crianças sentadas ao redor da mesa, desenhando o tipo de vegetação que gostariam de utilizar
no projeto coletivo (figura 27). Na parede, está projetada uma foto da Rue du Petit Musc, na
qual um facilitador aparece medindo o espaço disponível na calçada. Um dos pesquisadores
descreve os espaços disponíveis e pergunta às crianças qual gostariam de utilizar para o projeto.

Figura 27 - a construção do projeto coletivo

Fonte: acervo da pesquisa.

Reações Emocionais e evidências subjetivas

Ao assistir o clipe, Talita explica que todos estavam desenhando o que gostariam de ver
no projeto e aponta para a tela para mostrar onde gostaria de colocar a sua ideia, uma ponte de
flores (uma estrutura semelhante a um caramanchão). Ela conta as dificuldades para pôr em
prática aquilo que havia idealizado e gesticula para mostrar o tipo de vegetação e estrutura que
poderia ser utilizado no projeto.
T : nós desenhávamos as coisas que queríamos colocar na Rua de Petit Musc (ela
aponta para a tela), e todos tinham muitas ideias, eu não sei quem foi que teve a ideia
de colocar vasos de flores entre os postes, mas eu disse que podíamos fazer umas
pontes de flores (ela mostra o local na tela), mas isso não daria certo por causa dos
carros, os caminhões grandes poderiam derrubar, então nós tivemos a ideia de colocar
ali, sobre a calçada de 5 metros, eu acho. E houve outras ideias, por exemplo, colocar
grandes vasos ao fundo, como se chamam? arbustos, nós queríamos colocar plantas
entre os postes e desenhávamos o que queríamos fazer.

Talita aponta para a tela sorri (figura 28), contando que, no momento do vídeo, a
diversão das crianças era desenhar o facilitador que aparecia na foto, junto com as plantas que
gostariam de colocar na calçada. No clipe, um dos facilitadores diz às crianças que quer ver os
desenhos ao final da atividade.
142

Figura 28 - revendo a construção do projeto

Fonte: acervo da pesquisa.


Talita: Na verdade, foi muito engraçado porque Thibaut, ele está lá, eles saíram para
medir a calçada, e a gente estava tentando desenhá-lo.

Percebemos que ela aproveita elementos do contexto, como é o caso da foto utilizada
para mostrar o espaço destinado para o projeto, para tornar a atividade de vegetalização mais
lúdica, desenhando o facilitador junto com as plantas.
Durante a entrevista perguntamos quais seriam as dificuldades para a execução do
projeto, Talita pausa o vídeo e se vira para o pesquisador para explicar que o problema não é
orçamento, mas as pessoas que não prestam atenção e podem danificar as plantas.
Talita: é preciso ter um orçamento, pra isso a gente tem um envelope com dinheiro
dentro, mas é preciso também que a gente se esforce para que o projeto não acabe e o
problema é que há pessoas que não prestam atenção e podem pisar as flores ou algo
do tipo.

Quando fala sobre a experiência do trabalho coletivo no Conselho Municipal, Talita


sorri ao lembrar das discussões e divergências entre as crianças. Segundo ela, as discussões
aconteciam sem grandes motivos.
P: Sobre construir um projeto junto com os outros, você gostou?
Talita: sim, foi bom porque nós pudemos trabalhar juntos, aprender a se conhecer, nós
tivemos muitas ideias. Às vezes aconteciam pequenas discussões por coisas
insignificantes, mas foi divertido.

No clipe, após verem as fotos da Rue de Petit Musc as crianças discutem para decidir
qual espaço seria utilizado para o projeto. Após alguns minutos, elas acabam optando apenas
pela calçada maior. Talita sorri quando fala sobre a importância dos projetos de ecologia, como
os projetos de vegetalização, e nos explica os motivos pelos quais considera que a participação
nesse tipo de ação é importante.
Perguntamos à Talita o que mudou após os seis meses no conselho municipal, e qual a
diferença entre o trabalho das crianças no CME e o trabalho dos voluntários nas associações. A
criança dá exemplos daquilo que aprendeu, fazendo uma comparação entre o antes e o depois
do projeto.
143

T: foi um prazer, não é como trabalho ou algo assim, foi prazeroso e divertido. Além
do mais, nós aprendemos muitas coisas, porque não havia apenas o projeto, nós
fizemos uma maraude, e tudo mais, isso me permitiu descobrir as coisas, antes eu não
sabia o que era uma maraude. Então, foi algo bom, antes eu tinha um pouco de medo
dos SDF, mas agora eu entendo várias coisas, como fazer uma esponja com meias e
como reutilizar as coisas, fazer uma árvore de Natal com livros e várias outras coisas.
Mesmo que eu já tivesse feito algumas coisas, me permitiu relembrar ou experimentar,
ou contar tudo que eu havia feito aos outros.

Talita faz uma distinção entre a experiência que teve com o trabalho voluntário,
divertida e prazerosa, na qual houve a possibilidade de um aprendizado coletivo, com a ideia
que possui do trabalho em geral. Os exemplos citados pela criança daquilo que aprendeu
durante o projeto, se referem às atividades práticas, e ela sorria a cada exemplo dado.
Perguntamos à Talita qual o momento que mais lhe agradou dentre todas as atividades
realizadas no CME e qual a diferença entre as atividades propostas pelos voluntários durante as
formações e a produção do vídeo para ser utilizado na plenária, feito por ela no aplicativo
TikTok.
T: talvez seja que, nas outras atividades, exceto na Ressourcerie, nós falamos mais.
Por exemplo, no centro de jardinagem nós falamos mais do que fizemos. Eu prefiro
fazer para ter a minha própria experiência. No centro de jardinagem nós falamos das
plantas e tudo mais, mas poderia ser melhor se, por exemplo, nós plantássemos
qualquer coisa, escolhêssemos uma planta pra fazer um teste de qual tem o melhor
cheiro, ou algo assim. Na Cruz-Vermelha nós realmente fizemos alguma coisa, nós
falamos antes, mas nós fizemos depois. Então é isso.

A fala da criança mostra uma distinção entre as atividades de discussão e as atividades


práticas. Ao reproduzir as práticas dos voluntários ou dos adultos, Talita diz que existe a
possibilidade de uma vivência, de constituir sua própria experiência a respeito de determinado
tema.
Quando perguntamos como poderíamos incentivar as crianças a se inscreverem no
CME, Talita fala sobre a necessidade de explicar melhor do que se trata o conselho e de priorizar
as atividades que podem ser desenvolvidas pelas crianças. Para exemplificar, ela faz uma
comparação entre o que pensava antes de se inscrever e depois da vivência no projeto (figura
29).

Figura 29 - antes e depois do projeto


144

P: se nós quisermos convidar as crianças, se nós quisermos que eles se inscrevam no


projeto, o que você acha que devemos fazer?
Talita: talvez falar mais ou priorizar coisas como as atividades, porque eu pensava que
nós faríamos apenas um projeto, só um projeto e não outras atividades. Então eu penso
que é necessário priorizar as atividades que a gente pode fazer.

O gesto da figura acima (figura 31), aliado à fala da criança, nos dá indícios de um
movimento em direção à mudança de pensamento. Antes de participar do CME, Talita pensava
que as atividades se resumiam à construção de um projeto, este foi um dos motivos pelos quais
se inscreveu, após ter participado das formações, ela mudou sua opinião sobre o conselho, ao
perceber a diversidade de atividades desenvolvidas, principalmente com as associações.

Síntese do episódio 1

Neste trecho da RIW, pode-se perceber que Talita é uma criança que já desenvolveu a
atenção e o cuidado, tanto com a cidade, quanto com a preservação ecológica; ela já apresenta
uma reflexão sobre a participação e a necessidade da ação coletiva. Ela fala de um “aprendizado
real” associado ao projeto e que a interação com outras pessoas, os adultos e demais crianças,
neste aprendizado das práticas de voluntariado é “divertido”; para ela, “fazer junto” é divertido,
pois é uma oportunidade de compartilhar a atividade.
Também encontramos uma reflexão da criança sobre como “influenciar os outros a
participar das ações” é complexo ou difícil. A adesão às práticas pode simbolizar o ingresso,
ou reforçar a pertença do sujeito ao grupo como mostram Andrade e Silva (2021) no caso das
professoras Cribiás, mas o senso comum também possui uma função de resistência (BAUER;
GASKELL, 1999), no sentido de que as representações são mobilizadas pelos sujeitos na
tentativa de conservar um posicionamento ou a tradição.

Episódio 2: a coleta de lixo

No clipe escolhido, as crianças se encontram no pátio da prefeitura, durante a atividade


em conjunto com o serviço de limpeza da cidade28, cujo objetivo era recolher bitucas de cigarro
e outros detritos, quando uma das participantes encontra uma boca de lobo (tampa de esgoto) e
grita para chamar a atenção dos demais, que se aproximam e tentam ajudá-la a abrir.

28
Service de Propreté de la Ville de Paris.
145

As crianças utilizavam luvas e pinças, exceto Talita, que cobria uma das mãos com o
moletom. Sofia (que utilizava a subcam durante a atividade) pergunta se o uso de luvas não era
obrigatório, porque ela também preferiria não usar. Após levantarem a tampa do bueiro (figura
X), as crianças começam a coletar o lixo com a pinça e jogar no saco que está com o facilitador.
Em um determinado momento do clipe, as crianças erram o saco de lixo e acertam o
pesquisador, que reclama de ter se sujado.
No vídeo, Talita aparece contando aos demais que foi a responsável por descobrir como
levantar a tampa (figura 30), embora o pesquisador tenha dito que era algo complicado.
Enquanto recolhem o lixo, as crianças falam sobre a sujeira, o quanto o lixo é nojento, embora
aparentem se divertir.

Figura 30 - abertura da tampa de esgoto

Fonte: acervo da pesquisa


Reações e evidências

Ao relembrar a atividade de coleta de lixo no pátio e ao redor da prefeitura do 4ème


arrondissement, Talita faz um gesto para ilustrar a grande quantidade de lixo encontrada no
esgoto, como podemos ver na figura 31, ao mesmo tempo em que afirma ter gostado da
atividade.

Figura 31 - a diversão de levantar a tampa de esgoto

Fonte: acervo da pesquisa.


146

Enquanto assiste o vídeo do momento em que o grupo encontrou a tampa de esgoto,


Talita começa a rir e explica para a mãe por que achou divertido, pedindo logo em seguida que
lhe enviemos os vídeos da atividade.
T: Você poderia me enviar os vídeos? Tinha muito lixo, era horrível.
P: E no pátio havia duas tampas de esgoto.
T: Não, havia três, nós achamos outra lá (ela aponta para a tela). Pobre Caio. Foi muito
divertido. Depois nós saímos da prefeitura e havia várias (ela se refere às bitucas de
cigarro) dentro das telas ao redor das árvores, havia um buraco com mais de dez, eu
acho. Porque lá fora nós recolhemos cinco e todo mundo foi lá, eu mesma recolhi
quatro.
Mãe: por que você achou divertido?
T: porque é a mesma coisa, foi uma ação, foi divertido, nós usávamos as pinças, os
objetos, nós é que manipulávamos. Era grande (a tampa) mas nós conseguimos
levantar, eu havia esquecido disso. Porque lá dentro havia água (ela faz o gesto de
como levantar a tampa para a mãe), e estava cheio. Você precisa me enviar o vídeo,
foi muito divertido.

A criança se recorda que ao final da atividade todos ganharam brindes, uma garrafa e
uma lancheira com o símbolo da cidade, e escolhe assistir o clipe do momento em que as
representantes do serviço de limpeza da cidade entregam os brindes. Nesse mesmo vídeo, Sofia
convida todos para guardarem os brindes na sala junto com o restante do material. Enquanto
assiste, Talita ri e diz à mãe que foi muito divertido.

Síntese do episódio 2

As reações e falas da criança, neste trecho, apontam uma percepção da construção de


estratégias em grupo para solucionar os problemas das atividades, como forma de ampliação da
ação individual, bem como podemos pensar em um processo de constituição da visão do
coletivo para solucionar os problemas da cidade; há sinais de motivação e prazer, tanto pela e
na convivência com o grupo de crianças e com os “adultos”, sejam eles os facilitadores ou
voluntários, quanto para a busca de soluções.
Também aparece a construção de uma reflexão sobre como aprender “na prática” é
diferente de ficar no discurso, dentro das atividades de formação, classificando as atividades de
acordo com o tipo de ação. As reações da criança mostram que os desafios cognitivos colocados
nas formações, seja pelas situações em si (a coleta de lixo, a vegetalização etc.), seja pelos
facilitadores, são vistos como motivações; ela se “diverte” ao buscar entender e resolver estes
desafios. Ao contrariar as expectativas do adulto, a criança reafirma sua condição de agente, o
que também é apontado por Talita como um fator de diversão.
Lahlou (2010) fala em atratores cognitivos para designar os elementos do contexto que
despertam o interesse e oferecem possibilidades para a realização dos objetivos dos sujeitos. É
147

importante distinguir os objetivos e a motivação das crianças durante as atividades, que se


mostra diferente do adulto. A abertura de uma tampa de esgoto permitiu a coleta de lixo em
maior quantidade, ampliando as consequências da atividade das crianças. É a percepção dessa
consequência e do potencial de mudança do contexto que desperta emoções positivas no grupo.

Episódio 3: os gestos que salvam

No clipe escolhido pela criança, de aproximadamente 3 minutos, os bombeiros ensinam


o passo-a-passo da reanimação cardiopulmonar (massagem cardíaca). Cada uma das crianças
reproduz os movimentos em um manequim, como mostra a figura 32. As crianças perguntam
sobre a respiração boca a boca, mas os bombeiros respondem que a massagem cardíaca é o mais
importante para a reanimação.

Figura 32 - massagem cardíaca.

Fonte: acervo da pesquisa.

Ao final do clipe, os bombeiros utilizam um metrônomo para demonstrar o ritmo da


massagem cardíaca, 120 batidas por minuto, e um dos facilitadores diz que o ritmo de pulsação
é o mesmo da música “Staying Alive”, da banda Bee Gees. Os bombeiros concordam com a
utilização da música para o exemplo, mas a maioria das crianças afirma não conhecer.

Reações e evidências

Ao assistir o vídeo, Talita explica à mãe o que aprendeu durante a atividade,


reproduzindo o gesto da massagem cardíaca e cantando (figura 33). A criança conta que já havia
praticado os gestos de primeiros-socorros em diversas ocasiões, pois frequentemente alguém
os ensina na escola.

Figura 33 - o movimento da massagem cardíaca.


148

Fonte: acervo da pesquisa.


T: eu já havia feito isso várias vezes, porque sempre há alguém que passa nas escolas
pra ensinar. E depois eu fiz isso também no Krav-Maga. Nós usamos uma espécie de
aparelho de cartolina com botões, mas não eram botões de verdade, e nós vimos, por
exemplo, eu te contei que Thibaut nos ensinou que é o mesmo ritmo que a canção “ah,
ah, ah, staying alive” e ele nos explicou o que significava a música e nós aprendemos
muitas coisas.

Durante a formação em primeiros-socorros, os bombeiros ensinaram apenas a


massagem cardíaca e como utilizar um desfibrilador automático, mas ao ver que, em
determinado momento do vídeo Ingrid fez respiração boca a boca no manequim e Silvia decidiu
fazer o mesmo, Talita começa a rir e aponta para a tela (figura 34).
Figura 34 - a criança e a mãe observam a atividade.

Fonte: acervo da pesquisa.

Síntese do episódio 3

Talita se mostra uma criança que busca o lúdico nas atividades formativas, ela ri e se
“diverte” com a “prática”; ela se mostra atenta às reações que suas ações e comportamentos
provocam nas demais crianças e nos adultos, especialmente os mais próximos. A formação
configurou uma possibilidade não apenas de treinar “os gestos que salvam”, mas de mostrar o
conhecimento aos colegas, exercendo a autoridade epistêmica, já que a criança teve
experiências anteriores de formação.
Durante a entrevista, a presença da mãe (um Outro significativo) faz com que a criança
busque o reconhecimento na atividade, mostrando seus “acertos” e apontando os “erros” dos
149

demais. Ela sinaliza o que aprendeu, repetindo os movimentos da formação e música utilizada
para marcar o ritmo.

Episódio 4: torneio de videogame no abrigo

Durante a formação no abrigo Ave Maria, o facilitador do polo cidadão utilizou a


subcam para registrar o torneio de videogame. No clipe, o grupo de crianças está reunido em
frente à televisão, se preparando para participar do torneio. Cada partida era composta por
quatro jogadores, e a ideia é que as crianças competissem com os idosos, mas apenas uma das
senhoras que residia no abrigo aceitou jogar com as crianças (como mostra a figura 35),
enquanto as demais residentes sentaram-se ao redor para assistir.

Figura 35 - o torneio de videogame no Abrigo Ave Maria.

Fonte: acervo da pesquisa.

Embora as crianças tentassem demonstrar os movimentos para a senhora, ela teve


dificuldade em reproduzir os movimentos do boliche com o controle do aparelho de videogame
e não conseguiu pontuar. Após algumas tentativas frustradas, a senhora desistiu do torneio e as
crianças competiram entre si.

Reações e evidências

Enquanto assiste o clipe, Talita conta para a mãe sobre o torneio de videogames e diz
orgulhosa que fez um strike no boliche (figura 36). Ela explica que a senhora do abrigo teve
dificuldade para entender as regras, qual era o seu personagem, e como deveria se movimentar.

Figura 36 - a Talita se vangloria de um strike.


150

Fonte: acervo da pesquisa.


Talita comenta que após algumas tentativas, embora todos tenham sido gentis, a senhora
desistiu e ficou apenas assistindo as crianças jogarem, e sua mãe comenta que é desencorajador
não conseguir acertar.
Talita: esse dia foi do abrigo de idosos, onde nós fizemos um torneio de videogame.
É o abrigo Ave-Maria. Nós jogamos tênis, foi muito divertido, porque foi divertido
jogar com as pessoas idosas, é como uma motivação para eles (os abrigados) fazerem
outras coisas, apenas uma das senhoras jogou um pouco, ela testou, mas havia outros
em volta assistindo. Isso permite a eles se movimentarem e também é legal jogar
videogame. E a ideia é divertida de fazer isso num abrigo de idosos, a gente não espera
(ela começa a rir).
Mãe: os muito jovens e os muito velhos.
Talita: isso, eram os jovens contra os idosos. E nós comemos batata frita.

Talita imita de forma debochada a fala do facilitador de quando fez um strike, “nada
mal”. Em seguida, ela diz que os movimentos da senhora que aparece no vídeo estavam
corretos, porém os comandos nem sempre funcionavam.
Talita: Ela fazia certo, só que nem sempre funcionava... [...] e lá ele vai conseguir (ela
se refere ao facilitador). Então ela parou de jogar e ficou assistindo. Nós ficávamos de
lado porque nosso braço tinha tendência a ir para o lado e isso mudava a trajetória,
então se fosse um canhoto tinha que fazer assim.

No momento em que a criança aparece no vídeo comendo batata frita, enquanto outras
crianças continuam o jogo, a mãe fala que parte do interesse das crianças estava relacionado ao
lanche, e Talita mostra a atividade em vídeo para dizer que o projeto consistia em diversas
atividades além do lanche.
Figura 37 - Imitando o jogo de Tênis.

Fonte: acervo da pesquisa.


151

A criança conta que após a competição de boliche, as crianças jogaram tênis e ela voltou
para casa com os braços doloridos, devido à movimentação do jogo. Ela imita os movimentos
de forma caricata e ri (figura 37), dizendo que foi divertido e ficou com dor no braço.

Síntese do episódio 4

Embora a proposta da atividade tenha sido de incentivar a troca entre crianças e idosos,
sob o tema das relações intergeracionais, o fato de terem escolhido um torneio de jogos
eletrônicos pode ter dificultado o acesso e a participação dos mais velhos, como mostrou o
relato da criança, já habituada com os jogos. Os abrigados assistiram as crianças se divertirem,
mas pouco interagiram.
Segundo Talita, fazer coisas novas, como jogar videogame com pessoas idosas num
abrigo, é uma atividade divertida, não pela questão do voluntariado, ou de fazer uma boa ação,
mas pelo fato de ser algo inusitado. Mesmo que os moradores do abrigo tenham tido dificuldade
para aprender os comandos ou os gestos do jogo, o torneio colocou as crianças na função de
ensinar aquilo que já sabem, invertendo os papéis geracionais. Nesse caso, são as crianças que
detém o conhecimento, o que lhes dá uma vantagem sobre o adulto, ao ter a opção de
compartilhar ou não aquilo que já sabem.
No entanto, a proposta de um torneio envolvendo apenas atividades nas quais as crianças
possuem vantagem, por estarem habituadas com jogos eletrônicos, desequilibra a relação, pois
não há possibilidade real de troca entre as gerações. Se a interação dialógica é baseada na
confiança epistêmica (MARKOVÁ, 2017) o ideal seria que tivessem sido disponibilizadas
atividades que permitissem o aprendizado mútuo, ou a troca de experiências entre as crianças e
os idosos.
Neste trecho da RIW, também encontramos sinais do desenvolvimento de uma postura
de “desafiar” os facilitadores, ou seja, um processo de negociação de papéis entre adultos e
crianças, que aponta a percepção do outro no processo de processo de interação social (suas
intenções, suas regras, sua ação). Podemos pensar que esta atitude de desafio ou de resistência
ao adulto é um sinal da busca de um protagonismo infantil.

Síntese da Entrevista
152

A entrevista aponta que Talita é uma criança que já chegou ao projeto com um olhar
para a cidade, motivada para as atividades voluntárias, e com reflexões sobre o papel e o lugar
do “outro”, as outras pessoas ou agentes, no cuidado com as pessoas, com o meio ambiente e
com a cidade. Ela se mostra curiosa quanto ao lugar, as intenções e ações efetivas destes
“Outros”; bem como encontra prazer em interagir com as diferentes pessoas, especialmente, na
construção de uma lógica social na relação intergeracional, adulto-criança, e na lógica do que
“deveria ser feito”, daquilo que é desejável para a cidade e no cuidado com as pessoas
vulneráveis, um sinal de construção da responsabilidade epistêmica.
Ela constrói raciocínios, cria suas próprias estratégias e interage com os demais para
resolver as atividades e desafios propostos. Particularmente, podemos pensar que a participação
é um desafio cognitivo para ela; pois ela produz uma reflexão, a partir das ações “reais”, de
como influenciar, ou seja, como envolver todos naquilo que é desejável para a cidade. É uma
criança que busca o lado lúdico das atividades e do “estar juntos”, nas atividades do grupo,
porque encontra prazer nas interações e nas experiências inusitadas.
A SEBE permitiu à participante rever a atividade e, mesmo nos momentos em que não
utilizou a câmera, a criança se viu no vídeo e pôde relembrar aquilo que vivenciou. É importante
salientar que ao longo da entrevista, a criança faz uma distinção entre os tipos de atividades
desenvolvidas ao longo do projeto. Para ela, apenas aquelas onde houve um envolvimento
prático, em atividades manuais, configuraria uma participação “real”. Essas atividades são
relatadas como as mais divertidas, mais atrativas, sendo necessário priorizá-las se quisermos
incentivar a participação das crianças.

Análise de Entrevista Replay – Sofia – 12/03/2020

Sofia (nome fictício), nascida em 01/11/2010, era aluna de CM1 à época do projeto
P’tits Volontaires. Sua ideia para o projeto do CME era colocar grades de proteção nas quadras
e abrir as escolas aos finais de semana para que as crianças pudessem jogar futebol, pois a
prática de esportes não é permitida nos parques.
Foi a única criança que utilizou a subcam duas vezes, durante a formação com o serviço
de limpeza da cidade e num dos encontros de construção do projeto coletivo. Sofia era
acompanhada pela avó, que a deixava e vinha buscá-la ao final das atividades. Em algumas
ocasiões, trouxe consigo uma câmera portátil e utilizou para criar seus próprios registros das
formações.
153

A Replay Interview (RIW) foi realizada na presença da mãe, no dia 12/03/2020, e a


criança ofereceu seus registros (feitos com a câmera portátil) para complementar o material da
pesquisa. A criança relatou que, antes de se inscrever, não conhecia o CME e ainda não havia
atuado como voluntária, embora conhecesse algumas associações. Sofia disse que a ideia do
conselho parecia interessante, por isso aceitou o formulário de inscrição na escola.

Episódio 1 – a construção do projeto coletivo

No clipe que abriu a entrevista, as crianças estão sentadas ao redor da mesa e desenham
um croqui para o projeto de vegetalização. Na parede está projetada uma foto na qual um dos
facilitadores aparece caminhando na Rua de Petit Musc, onde seria realizado o projeto. O
facilitador comenta que, por causa das férias de inverno, várias crianças faltaram.

Reações emocionais e evidências subjetivas

Sofia afirma que considera importante o projeto de vegetalização da Rue de Petit Musc,
devido à falta de vegetação em Paris. Quando fala sobre a atividade de desenho do croqui, a
criança aponta para a tela e faz um gesto para mostrar sua ideia para o projeto de vegetalização
(figura 38). Ela interrompe o pesquisador para falar sobre o que estava desenhando.

Figura 38 - Sofia fala sobre a construção do projeto.

Fonte: acervo da pesquisa.


P: Nesse momento, o que você estava fazendo no croqui?
S: eu estava desenhando a rua e eu fazia caixotes com frutas, legumes e flores. Quando
nós fomos à Maison du Jardinage29 eles disseram que não tinham certeza se
poderíamos colocá-los.
P: Se nós implementarmos o projeto, é necessário ter um responsável para assinar,
mas é importante também...
S: ter pessoas que se ocupem do projeto, e não é necessariamente o responsável que
deve fazê-lo, deve ser todo mundo.

29
Instituição localizada no 12ème arrondissement, responsável pelo acompanhamento dos projetos de arborização
da cidade, fornecendo treinamento e os insumos necessários à população.
154

P: você acha que as crianças, as pessoas que moram ao lado, você acha que elas vão
participar?
S: os grandes talvez não façam, mas os pequenos talvez esmaguem as plantas por
diversão.

A criança conta que usou uma câmera para fazer seus próprios registros do CME embora
os óculos da pesquisa (subcam) sejam mais práticos, pois a câmera comum impede que a pessoa
utilize as mãos ao mesmo tempo em que manuseia outros objetos (figura 39), fazendo um gesto
para mostrar as mãos “ocupadas”.

Figura 39 - vantagens da subcam.

Fonte: acervo da pesquisa.

Síntese do episódio 1

No primeiro trecho da entrevista, Sofia relata a motivação para fazer seus próprios
registros das atividades, que serviriam como lembrança do projeto. Essa motivação para criação
(LAHLOU, 2010) representa uma busca da criança por explorar suas possibilidades de atuação
no mundo, na tentativa de satisfazer sua curiosidade e construir suas experiências.
Ela demonstra com gestos que, em comparação com o equipamento da pesquisa
(utilizado à altura dos olhos), a câmera comum atrapalha o manuseio de outros objetos. Nas
fotos e vídeos feitos pela criança, vimos que ela posicionava a câmera voltada para si, de forma
a captar sua própria atividade.
A preocupação de Sofia ao ingressar no CME diz respeito ao espaço reservado para as
crianças na cidade. Sabemos que a infância passou por um processo de privatização ao longo
do século passado (SARMENTO, 2007), sendo as crianças retiradas dos espaços públicos, sob
a justificativa da proteção. A participante questiona o fechamento das escolas, principal espaço
de socialização da criança, durante os finais de semana, momento propício para o lazer e a
prática de esportes.
155

Quanto à vegetalização, ela afirma ser um trabalho de todos, não apenas daqueles que
se responsabilizam pelos projetos, e manifesta desconfiança nas crianças menores, que
poderiam danificar as plantas por diversão. Essa desconfiança pode ser um sinal de que a
criança compartilha da crença da infância como período de imaturidade, no sentido de que
atribui ao mais novos a falta de responsabilidade e de cuidado.

Episódio 2 – a coleta de lixo na prefeitura

Clipe 1

No clipe escolhido, uma das crianças chama a atenção para a tampa de esgoto no pátio
da prefeitura, e Sofia, que utilizava a subcam, corre para se juntar ao grupo (figura 40). As
crianças levantam a tampa para recolher as bitucas (ou guimbas) de cigarro e o lixo dentro do
esgoto, jogando na sacola segurada pelo facilitador. Enquanto recolhem o lixo, as crianças
comentam sobre a sujeira e a falta de cuidado das pessoas com a prefeitura.
Figura 40 - as crianças retiram o lixo do esgoto.

Fonte: acervo da pesquisa.

Reações e evidências subjetivas

Ao encontrar a pasta com os clipes da coleta de lixo, Sofia pergunta por que seu nome
está em todos os vídeos, e respondemos que isso se deve ao fato dela ter sido a responsável
pelos registros usando a subcam. Ao assistir o clipe, a criança se vira para contar à mãe que elas
conseguiram levantar a tampa de esgoto e sorri quando comentamos sobre a reação das crianças
à atividade de coleta de lixo (figura 41).

Figura 41 - Sofia se vira para à mãe e sorri.


156

Fonte: acervo da pesquisa.


S: foi bom porque estávamos todos motivados para achar as bitucas, não tinha um que
não quisesse, mesmo se fosse sujo, estávamos todos motivados.
P: Eu vi, era um pouco nojento.
A criança ri e olha para a mãe.
S: E recolher as bitucas não é ruim, a gente até conseguiu retirar a tampa de esgoto.
P: eu achei interessante porque na primeira vocês não sabiam como levantar a tampa
de esgoto e na segunda vez foi bem rápido.
S: e havia muitas bitucas, as pessoas precisam prestar mais atenção, porque mesmo
com o lixeiro, as pessoas jogam no chão, elas quase nunca recolhem.
P: você me disse que vocês estavam mais motivados.
S: sim, a gente achou divertido, mesmo não sendo muito limpo, nós nos divertimos
(ela sorri). Era sujo, mas nós estávamos motivados, era divertido utilizar as pinças. E
as pessoas realmente não prestam atenção, a gente era obrigado a levantar a tampa de
esgoto para encontrar e recolher. E o pior é que para evitar que elas fiquem no chão,
as pessoas jogam dentro do esgoto, e aí junta água, lama e pontas de cigarro, não é
limpo.

Clipe 2

No vídeo, Sofia segue com as outras crianças até a porta e decide não sair, continuando
dentro da prefeitura. Ela então pergunta ao facilitador se as crianças são obrigadas a sair e se
pode permanecer no pátio, continuando a recolher as bitucas de cigarro da área interna. Ao ver
que Renato está com duas pinças, o facilitador propõe que os dois revezem, para que cada um
possa utilizar duas ao mesmo tempo (figura 42). As crianças comentam sobre a quantidade de
lixo na prefeitura.

Figura 42 - Sofia e Renato revezam as pinças.

Fonte: acervo da pesquisa.

Reações e evidências
157

Perguntamos à Sofia por que continuou dentro da prefeitura, enquanto as demais


crianças saíram para fazer a limpeza do entorno, ela dá de ombros e responde que não estava
com vontade de sair. Enquanto revê o momento exato em que resolveu permanecer no pátio,
ela começa a rir e explica a sua decisão. A criança se mostra surpresa quando falamos sobre a
quantidade de lixo que o grupo recolheu durante a atividade, como mostra a figura 43.
Figura 43 - Sofia aparenta estar surpresa.

Fonte: acervo da pesquisa.


S: Porque não tínhamos terminado no interior e ainda havia uma grande quantidade,
porque se todo mundo saísse, nós não terminaríamos na prefeitura. Porque ainda havia
muito lixo na prefeitura e precisava que alguém permanecesse no interior. Também
teve outro dia que foi bom, na Ressourcerie eles nos ensinaram a fazer várias coisas.
E lá (ela volta a falar do vídeo) nós recolhemos uns trezentos, a gente acha que é
muito, mas tendo em vista o número que eles recolhem por dia é praticamente nada.
P: Eu acho que você recolheu uns 40 ou cinquenta mais ou menos.
S: e as pessoas, para evitar de serem vistas jogando o lixo, elas colocam entre as
madeiras do banco e a gente não consegue pegar.
P: verdade, nós tentamos retirar, eu tentei e você também, mas não conseguimos.
S: e também foi engraçado porque nós pegamos duas pinças e tentamos agarrar o
máximo possível com as duas.

Comentamos que, no dia seguinte, havia duas garrafas de plástico no chão, em frente ao
IEA, e a criança parece surpresa, ao perguntar se todo o lixo que retiraram estava de volta. Sofia
dá de ombros e afirma que as pessoas jogam o lixo no chão porque sabem que outra pessoa vai
recolhê-lo.
P: hoje quando eu estava saindo do metrô eu vi um homem que fazia isso com a pinça
e a lixeira, mas era alguém trabalhando.
S: sim, a gente paga alguém para fazer isso. Mas sobre respeitar a natureza, nós
dizemos que existem problemas com a natureza, e que o aquecimento climático vai
trazer problemas para a Terra, mas as pessoas não respeitam a natureza. É ruim.
P: Se é o meu lixo, algo que eu comi, eu jogo no lixo.
S: eu também. E na prefeitura tinha muitas lixeiras, as pessoas não podem jogar assim.
P: nós encontramos bitucas ao lado da lixeira.
S: na verdade, a maior parte do tempo as pessoas não querem ir até à lixeira, eles
jogam e acaba caindo ao lado. E o pior é que na rua a gente vê vários pontos brancos,
a gente pensa que é da natureza, mas na verdade todo mundo joga chiclete no chão
(ela começa a rir, pois aparece no vídeo falando a mesma coisa). E o pior é que se eles
jogam no chão, algumas pessoas vão pisar e vai grudar no sapato.
158

Comentamos sobre o fato de que Sofia esteve presente em todas as formações do CME,
e ela sorri e responde que não perdeu nenhuma, embora tenha se atrasado para a primeira, por
não saber onde ficava a prefeitura. Perguntamos por que ela participou de todas as formações.
P: Por que você participou de todas as formações?
S: quando você se compromete, normalmente, você vai até o fim, exceto quando você
realmente, mas realmente não pode. Se você sabe que não vai conseguir, você nem
faz.

Quando perguntamos se poderíamos mostrar às demais crianças os vídeos que foram


feitos durante as atividades em que faltaram, Sofia comenta que, se não tivessem faltado, eles
teriam visto o que aconteceu. Ela afirma que Érica se queixa de não ter visto o “salto” e afirma
que era preciso estar lá para ver (a criança se refere ao fato de que os vídeos da formação foram
assistidos por todos posteriormente).
Perguntamos à participante o que devemos fazer para que as pessoas se engajem e ela
responde que é necessário, antes de se comprometer, saber se é algo que nos interessa.
S: a gente verifica primeiro se é algo que gostamos, e uma vez que estejamos certos
de que vai nos agradar e que não vamos desistir logo depois do primeiro encontro, a
gente se inscreve.

Síntese do episódio 2

No trecho acima, Sofia afirma que a atividade foi divertida, mesmo que a coleta de lixo
em si não seja uma atividade agradável. Sofia comenta a falta de cuidado das pessoas com o
espaço público, mostrando-se surpresa com a quantidade de lixo no pátio da prefeitura. Nas
palavras da criança, é uma verdadeira “catástrofe” que as pessoas não respeitem espaços como
a prefeitura da cidade.
Podemos pensar na atitude da criança como um sinal de responsabilidade epistêmica,
no sentido de que ela se posiciona como alguém disposto a contribuir com a melhoria das
condições do Outro (aqui representado pela cidade), ao identificar na limpeza da cidade uma
necessidade coletiva, que estaria acima da vontade individual, o bem-estar comum.
A criança tenta compreender por que as pessoas jogam o lixo no chão e não respeitam
a natureza, e aponta como motivo a falta de responsabilização, justificada pela crença das
pessoas de que outros se implicarão, mais especificamente os funcionários e a administração
pública, aqueles que são pagos para resolver os problemas da cidade. A existência de
trabalhadores responsáveis pela coleta explicaria a falta de cuidado das pessoas com o lixo.
É necessário ampliar a concepção de cidadania, para além dos direitos e deveres, pois a
falta de responsabilidade pelo Outro é uma consequência do individualismo crescente na
159

sociedade capitalista (MARKOVÁ, 2017). Ao pagar os impostos, um dos deveres do cidadão,


as pessoas estariam delegando a responsabilidade pelo cuidado à cidade aos agentes públicos.
Sofia chama a atenção para o fato de que, mesmo com as lixeiras, as pessoas continuam
a jogar lixo na rua. Se pensamos na infância como a geração que mais sofre os impactos das
crises climáticas, a preocupação da criança é justificável, pois, como o impacto no meio
ambiente não é imediato, as pessoas tendem a não se preocupar, visto que as consequências
serão sentidas a longo prazo, por outros.

Episódio 3 – Reaproveitamento de materiais

No vídeo, registrado com a subcam por Renato, cada criança recebeu uma ferramenta
de madeira para trançar os retalhos de meia e confeccionar sua própria esponja. O menino
demonstra dificuldade para executar a tarefa e tenta pedir ajuda a um adulto. Ele é ajudado por
outra criança (figura 44) e, ao perceber a dificuldade da criança, a facilitadora pede que troquem
de lugar, para poder acompanhá-lo.
Figura 44 - confecção de esponjas de material reciclável.

Fonte: acervo da pesquisa.

Reações e evidências subjetivas

Sofia comenta a contradição na ação de reaproveitamento e reciclagem do ateliê “faça


você mesmo” da Ressourcerie, pois, para confeccionar as esponjas, cada criança precisou
utilizar um pedaço quadrado de madeira com pregos. Ela afirma que ser totalmente ecológico
é algo impossível, pois a madeira é retirada das árvores.
A participante questiona as ações de preservação realizadas pela cidade, ao dizer que,
embora disponibilizem locais para o descarte apropriado das árvores de Natal, não há uma
reutilização da madeira.
160

S: e eles também nos disseram para fazer árvores de Natal utilizando livros ou outras
coisas além de madeira. Eles nos disseram para não comprar árvores de verdade
porque depois a gente acaba poluindo.
P: eu penso que o problema é que se todo mundo comprar árvores de verdade, depois
do Natal todas serão jogadas no lixo. Eu vi no Parc Montsouris que há um lugar pra
descartar árvores e a cidade depois recolhe.
S: tem em todo lugar, mas eles não fazem isso (recolher as árvores) eles nos dizem
isso, mas não fazem.
P: eles não reciclam?
S: Não, eles não reciclam. Na verdade, eles deixam lá para que as pessoas que
precisam de madeira venham cortá-la (ela faz o gesto de corte com a mão). E o que
eles poderiam fazer com as árvores? Não se pode colocá-las no fogo, então elas não
servem para muita coisa.

Sofia demonstra preocupação quanto à realização da plenária, pois nem todos os


membros do grupo participaram da confecção da apresentação e da divisão das tarefas (figura
45). Quando comentamos sobre a possibilidade de adiamento da sessão plenária por tempo
indeterminado, devido ao número crescente de infecções pelo novo coronavírus, ela se mostra
preocupada com a conclusão do projeto, pois o pesquisador deveria retornar ao Brasil em breve,
e não havia previsão de retomada das atividades.

Figura 45 - a expressão de preocupação de Sofia.

Fonte: acervo da pesquisa.

Ao final da entrevista, Sofia se levantou para buscar a câmera para que pudéssemos
fazer o download dos registros realizados por ela durante as formações. Como podemos ver n
figura 46, a criança posicionou a câmera de forma a registrar sua própria atividade, inclusive o
espaço das mãos, semelhante ao que fizemos com a subcam ao longo da pesquisa.

Figura 46 - exemplo de registro da câmera da participante.


161

Fonte: acervo da pesquisa.

Síntese do episódio 3

A fala da criança sobre o reaproveitamento dos materiais e a reciclagem mostra que ela
percebe uma contradição entre o discurso de preservação do meio-ambiente e as ações
implementadas pela cidade de Paris, que podem acabar gerando resíduos igualmente poluentes.
No cenário mundial, há uma grande discussão sobre o respeito às metas estabelecidas no
documento denominado Acordo de Paris (ONU, 2015), no qual diversos países se
comprometeram a reduzir a emissão de gases de efeito estufa.
No entanto, ações de preservação e o compromisso assumido pelos países não
necessariamente implicam uma maior conscientização da população ou a transformação efetiva
das práticas, pois a mudança ocorreria apenas a nível do discurso institucional. É necessário
que as ações se convertam em projetos de intervenção e que estes tenham a sociedade civil,
para legitimar a posição em defesa do planeta. As crianças percebem que o discurso dos adultos
(faça o que eu digo, não faça o que eu faço), principalmente nas relações intergeracionais, nem
sempre é revestido de autoridade, pois não há equivalência entre o dito e o feito.
A preocupação em relação à possibilidade de interrupção das atividades reafirma o
compromisso da criança ao se engajar no CME. Sofia identifica no pesquisador um adulto
disposto a ajudar na realização da plenária, pois compartilha do interesse pelo projeto. Na
ausência do adulto, a criança não se sente segura para conduzir a plenária, o que reforça a
importância do adulto na promoção da participação infantil.

Síntese da entrevista replay

Ao longo da entrevista, alguns temas aparecem de forma recorrente, tais como o


engajamento, a comunicação assimétrica e os obstáculos para a execução de um projeto. A
criança aponta como dificuldade para o trabalho em grupo a diversidade de objetivos entre os
162

membros, tal qual ocorreu no CME, onde cada criança possuía um projeto individual. Ao
visualizar a possibilidade de ampliação do conselho, surge o risco de que quanto maior o grupo,
maior a dificuldade de estabelecer um consenso, pois as pessoas precisariam renunciar a suas
aspirações individuais, na busca de um objetivo coletivo.
No conjunto dos sinais encontrados, podemos afirmar que Sofia é uma criança que
apresenta uma reflexão sobre os problemas da cidade e das pessoas, apontando que é necessário
a construção de um “consenso”, um grupo ou coletivo para lidar com estes problemas. Também
encontramos uma reflexão sobre a dificuldades de envolver as pessoas na busca e ação de
soluções; associados às dificuldades ela vê contradições entre o “discurso dos adultos” e a
“prática”, bem como os bloqueios existentes para uma efetiva participação da criança.
A consistência é um fator determinante na mobilização de um grupo em prol de uma
transformação das práticas sociais, como demonstrou Moscovici (2011) nos estudos sobre
influência social e as minorias ativas. No pensamento da criança, uma base dos conflitos sociais
é a barreira entre “os adultos” e “as crianças”. O mundo social, para ela, não parece estar
dividido entre categorias sociais mais marcadas na mídia, como nacionalidade, etnias, religiões,
delinquência ou distinção de classe econômica, nem os “SDF” (Sem Domicile Fixe”, moradores
de rua); e sim na questão intergeracional.
Nesse contexto, participar é uma maneira de estar informado, de saber o que acontece e
de poder decidir os rumos da ação. Se as pessoas não participam, elas não podem reclamar por
ter perdido algo.
Um elemento fundamental para a criança é que as pessoas possam encontrar prazer nas
atividades voluntárias, ao exercitar a solidariedade e construir coisas boas para todos; assim, as
pessoas que participam de uma associação ou de uma ação coletiva são aquelas que, de antemão,
percebem a possiblidade de ter uma experiência agradável e de satisfazer suas aspirações. É
essa possibilidade que determina o compromisso e engajamento, diminuindo as chances de
desistência.
Em seus argumentos encontra-se a visão das dificuldades inerentes à construção de um
projeto, e que as crianças enfrentam ainda o obstáculo da necessidade do suporte de um adulto
que se responsabilize pelas questões burocráticas, como contratos e orçamento, o que restringe
a possibilidade de atuação infantil na comunidade. A assimetria da relação intergeracional é um
tema recorrente nas discussões, pois ela determina os papéis reservados às crianças e aos
adultos, com direitos e responsabilidades específicos, inclusive de participação política
(SARMENTO; FERNANDES; TOMÁS, 2007).
163

Nos relatos e reações encontrados, é essa relação assimétrica que faz com que as
crianças não tenham informações suficientes para avaliar uma atividade antes de se envolver,
pois elas são constantemente convidadas a participar de ações, visitas e projetos, sem que
tenham a real possibilidade de aceitar, discordar, ou decidir sobre os rumos da sua própria
atividade.
É possível perceber uma visão, segundo a qual a participação infantil se dá como uma
forma de resistência ou de desafio, quando a criança busca alternativas próprias para a resolução
dos problemas, independente do adulto, assim como a participação social, em momentos de
cerceamento da liberdade, quando esta ocorre fora dos limites institucionais. As crianças
estabelecem seus próprios objetivos, guiados por uma motivação diferente daquela do adulto, é
necessário que essas motivações sejam consideradas na formulação de políticas e ações para
essa população.

Análise de Entrevista Replay: Ingrid – 12/03/2020

Ingrid (nome fictício), aluna de CM2 da escola Neuve Saint-Pierre, tinha 9 anos à época
do projeto (nasceu em 29/04/2010). Sua ideia inicial para o projeto era ajudar as pessoas em
situação de rua, por meio de uma parceria com as associações. Foi a única participante que
optou por não utilizar a subcam, mas esteve presente em todas as formações.
A criança afirma ter conhecido o conselho por meio de uma amiga que havia participado
no ano anterior, quando os conselheiros apenas votaram projetos. Foi a responsável pela
sugestão da rua de Petit Musc, onde seria realizado o projeto de vegetalização, por ser a rua
onde morava. A criança disse que gostaria que a rua fosse mais bonita e limpa, porque há várias
escolas e lojas.
O contato com os pais foi realizado via e-mail e a entrevista replay foi realizada no dia
12/03/2020. A criança veio acompanhada de um adulto, mas este não participou da entrevista.
Durante as formações, os pais indicaram um responsável para levar e buscar a criança na
prefeitura.

Episódio 1 – a rua de Petit Musc

O clipe escolhido é do encontro de construção do projeto de vegetalização. No vídeo


registrado por uma câmera externa, Ingrid é solicitada a apresentar para o grupo a rua de Petit
164

Musc, onde mora com os pais A criança se dirige ao quadro e começa a desenhar a rua,
explicando para um dos facilitadores a distribuição dos imóveis, como mostra figura abaixo
(figura 47).

Figura 47 - apresentando a rua de Petit Musc.

Fonte: acervo da pesquisa

Reações emocionais e evidências subjetivas

Comentamos que Ingrid mora na rua de Petit Musc e perguntamos se ela conhece algum
morador que poderia auxiliar as crianças do CME na tarefa de vegetalização.
P: você mora na rua de Petit Musc, talvez você conheça algum vizinho ou alguém que
possa ajudar o conselho a executar o projeto.
I: Eu não sei, na verdade são meus pais que conhecem os vizinhos e tendo em vista
que não é no mesmo imóvel, eu não acho que conheçamos alguém. Talvez as pessoas
do nosso imóvel também possam participar.
P: na verdade, nós vimos que a calçada fica em frente a um grande imóvel. Se
perguntarmos às pessoas que moram lá, talvez eles possam ajudar com as plantas.
I: sim, é necessário perguntar.

Quando perguntamos qual foi a formação que mais lhe agradou, Ingrid responde que
foi a formação sobre “os gestos que salvam”, realizada pelos bombeiros. A criança então
pergunta se nós fizemos vídeos da formação e se poderia assisti-los.

Síntese do episódio 1

Ingrid conta que não conhece os vizinhos, mesmo aqueles que moram no mesmo imóvel
que sua família. São os pais quem têm contato com os demais moradores, podendo intermediar
a relação com os potenciais participantes do projeto, embora ela não pareça segura quanto à
possibilidade de conseguir a ajuda dos vizinhos para ajudar no projeto.
O fenômeno de privatização da infância (SARMENTO, 2007) é ainda mais flagrante
nas classes sociais superiores, Ingrid era acompanhada nas atividades do CME por um adulto
165

contratado pela família, relatou ter uma agenda cheia de atividades extracurriculares, e não tem
contato com as pessoas que habitam no mesmo imóvel. O espaço destinado à criança é reduzido,
de forma a garantir que ela alcance as expectativas da família.

Episódio 2 – as profissões que ajudam a cidade

Clipe 1 – desfibrilador elétrico

No clipe escolhido, registrado por Silvia utilizando a subcam, os bombeiros ensinam as


crianças como utilizar um desfibrilador elétrico, disponível em alguns lugares da cidade, caso
alguém tenha uma parada cardíaca. O modelo utilizado para a atividade era feito de papelão,
com os botões posicionados da mesma forma que o aparelho real, como podemos ver na figura
48, que ilustra a posição onde devem ficar os eletrodos.

Figura 48 - aprendendo a usar um desfibrilador.

Fonte: acervo da pesquisa.


Reações e evidências

Enquanto Ingrid assiste o vídeo da atividade, comentamos que ela havia dito durante a
formação que gostaria de ser bombeiro.
P: você disse que também gostaria de ser bombeiro.
I: ah não, quando eu era pequena eu queria ser bombeiro, agora eu não quero mais, eu
quero me tornar médica. Eu queria salvar as pessoas, mas eu não sabia que era tão
perigoso. Hoje em dia eu me pergunto, o que me deu na cabeça de querer ser
bombeiro, então agora eu quero ser médica.
P: mas você pode ser bombeiro-mirim antes de ser médica.

A criança então procura o vídeo no qual os bombeiros explicam sobre a atividade


voluntária de bombeiro-mirim.

Clipe 2 – Jeunes Sapeur-Pompiers


166

No clipe escolhido, registrado por Érica utilizando a subcam, os bombeiros explicam às


crianças que alguns jovens), com idade a partir dos 14 anos, escolhem em seu tempo livre, ao
invés de praticar um esporte ou uma atividade artística, atuar como voluntários no Corpo de
Bombeiros (figura 49). Esses jovens voluntários recebem o título de bombeiro-mirim (no
francês jeune sapeur-pompier).

Figura 49 - Bombeiro explica a função do bombeiro-mirim.

Fonte: acervo da pesquisa.

Reações e evidências

Quando perguntamos à Ingrid por que as pessoas se engajam no trabalho voluntário, a


criança fala sobre solidariedade e a importância de algumas profissões, sem as quais a cidade
estaria perdida. A criança gesticula como forma de representar o movimento de sair de si mesmo
(figura 50), que seria característico dos voluntários.

Figura 50 - Ingrid fala sobre o valor de algumas ocupações.

Fonte: acervo da pesquisa.


P: Na sua opinião, por que as pessoas se engajam para ser voluntários nas associações?
O que você acha?
I: Eu acho que eles querem ajudar as pessoas e eles não pensam apenas em si, eles
querem que o mundo evolua e então eles não querem que todo mundo fique dentro de
si mesmo (ela faz um gesto de sair de dentro para fora de si), eles querem ajudar as
pessoas a crescer, a viver bem, então os bombeiros ou a Cruz-Vermelha eles ajudam
as pessoas, eles salvam, lhes dão de comer. É muito interessante, mesmo os bombeiros
eles podem se machucar ao salvar alguém, ou mesmo morrer, então eles ser arriscam
167

e é muito importante, porque sem eles as cidades pegariam fogo e todos nós
morreríamos.

Quando falamos sobre a prática dos gestos que salvam, ensinados pelos bombeiros,
Ingrid diz que as crianças não devem fazer, mesmo que saibam, sendo algo arriscado (figura
51). A capacidade da criança é colocada em xeque, sendo responsabilidade do adulto assumir
riscos. Na fala de Ingrid, se houver um adulto por perto, a criança não é prioridade.

Figura 51 - o que as crianças aprenderam com os bombeiros.

Fonte: acervo da pesquisa.


P: os bombeiros ensinaram como fazer a PLS, a massagem cardíaca, e se alguém
desmaiar, você também poderia fazer.
I: não, porque na verdade, a gente pode, mas não deve fazer. Na verdade, eu aprendi,
eles nos ensinaram como fazer só que nós não devemos fazer se é uma pessoa
desconhecida. Porque a massagem cardíaca, lá nós fizemos num manequim, mas se é
uma pessoa de verdade, é apenas um segundo de intervalo e o ritmo deve ser constante
(ele faz o gesto com as mãos). A posição de PLS, isso nós podemos fazer, porque nós
sabemos como fazer e é bem simples, mas a massagem cardíaca é alguém que você
precisa salvar e se há algum adulto por perto, você não é a prioridade. Então você só
pode fazer se estiver sozinho em casa, se for apenas você e seu irmão, por exemplo,
que desmaia. Senão, visto que você não é professional, que você ainda não tem
responsabilidade e você não conhece muito bem o trabalho, eu não acho que você
deva fazer, ainda mais se é alguém que você não conhece.

Logo em seguida, ao comentarmos que ficar três ou cinco minutos sem respirar é muito
tempo, e que nem sempre os bombeiros conseguem atender um chamado rapidamente, Ingrid
menciona que há uma diferença entre ajudar um familiar e uma pessoa desconhecida.
I: sim, isso é verdade, se é alguém na rua, eu não ousaria fazer, mas se é alguém da
minha família, não é a mesma coisa, é outro nível, visto que eu não a conheço. Eu
poderia lhe fazer mal, eu não quero, então eu prefiro ligar direto para os bombeiros ao
invés de fazer os gestos.

Quando falamos sobre a possibilidade de anulação da plenária devido ao aumento das


infecções pelo novo coronavírus na França, Ingrid se mostra surpresa (figura 52),
principalmente com a quantidade crescente de casos confirmados no país. Em seguida, a criança
mostra o texto que escreveu sobre a formação com os bombeiros para apresentar na plenária.

Figura 52 - a expressão de surpresa de Ingrid.


168

Fonte: acervo da pesquisa

Perguntamos então à criança o que ela aprendeu durante o projeto P’tits Volontaires, e
sua resposta diz respeito ao papel das associações e dos voluntários no combate às
desigualdades e no desenvolvimento da cidade.
P: de modo geral, durante os encontros do Conselho Municipal de Crianças, o que
você aprendeu?
I: na formação com os bombeiros ou em todas as formações?
P : em geral.
I : Todos os encontros, todas as formações, todas as profissões que nós vimos, elas
ajudam a cidade e as pessoas a crescer, independente do que eles fazem, eles salvam,
eles ajudam, eles refazem os objetos, eles ajudam na limpeza da cidade, eles todos
ajudam uma parte da cidade que é muito importante, seja ao salvar, ao ajudar, ao
plantar, e isso nos serviu de exemplo, pelo menos pra mim, de fazer um desses
trabalhos porque eles nos deram várias ideias e foi muito interessante. Nós vimos e
aprendemos muito, graças ao projeto e a essas profissões, que são muito importantes,
porque se essas profissões ajudam as pessoas e a cidade a crescer, isso as torna
interessantes e eu adorei o projeto. Eu realmente aprendi muitas coisas, me diverti, fiz
amizades, e foi muito bom porque todos os facilitadores eram bons e eles nos
ensinaram em forma de brincadeira ou de lição. Então é muito legal aprender com os
outros alunos, e eu aprendi muito, eu tenho meus souvenirs no caderno.

Nesse momento, a fala da criança remete aos alunos, às formas de aprendizado, seja
lúdica ou como uma lição, o que indica uma possível referência ao ofício de aluno e às
atividades escolares. Ingrid considera a atividade das associações fundamental para o bom
funcionamento da cidade, ideia que pedimos para que ela nos explique melhor (figura 53).
Figura 53 - partes de um todo.

Fonte: acervo da pesquisa.

Ao elaborar o discurso, a criança faz referência à metáfora dos laços sociais, e se refere
à cidade enquanto uma totalidade funcional, na qual cada associação é uma parte responsável
169

pelo bom funcionamento do todo. Na ausência das associações e das profissões capazes de
manter os laços, ocorreria um esfacelamento da cidade, uma característica dos países pobres,
onde o desenvolvimento não foi capaz de garantir qualidade de vida para todos.
P : a Ressourcerie ?
I: a Ressourcerie pega e reformula os objetos, eles os tornam acessíveis e eles fazem
vários objetos, Emmaüs é top, muitas pessoas que eu conheço vão e saem de lá com
boas roupas e todos formam uma pequena parcela pra que a cidade seja inteira, para
religar a cidade e não desmoronar (ela faz um gesto com as mãos, ilustrando as partes
e em seguida as partes se ligam, formando uma totalidade).
I: Por exemplo, em alguns países, não sei bem quais, nos países pobres, talvez eles
não tenham isso e por isso eles sejam pobres. Na verdade, eles eram pobres e não
conseguiram reatar os laços, eles não conseguiram formar essas profissões, eu não sei
se é verdade, mas isso faz com que a cidade não cresça, com muitos monumentos. Por
exemplo, eu não sei bem, mas em alguns países pobres eles não tem carros, não tem
lojas, eles vivem nas ruas e quando eu penso nisso, eu imagino que seja porque eles
não têm essas quatro ou cinco profissões que podem transformar a cidade. E essas
quatro, cinco ou seis, elas são muito importantes, porque eles acrescentam30 coisas à
cidade, não só acrescentam, elas ensinam a cidade, e eu sou muito contente por haver
muitos bombeiros, muitos policiais, muitos voluntários na Ressourcerie e na Cruz-
Vermelha. Eles se multiplicaram e isso ocorre porque os desgastes também
aumentaram, a pobreza se multiplicou, então eles ajudam as pessoas e isso ajuda a
cidade.

Síntese do episódio 2

Percebemos que a criança elabora uma justificativa para o aumento das desigualdades
sociais, relacionando o crescimento e a manutenção da cidade à existência de pessoas e
profissões capazes de manter as pessoas ligadas (uma possível alusão aos laços sociais),
evitando que elas se afastem e a cidade despedace. Essas pessoas e profissões têm em comum
a solidariedade, o fato de que ajudam os mais necessitados, em diferentes aspectos. O que
observamos é a elaboração de um discurso para justificar a existência das desigualdades sociais,
entre povos e países.
Ingrid demonstra ter vontade de ajudar as pessoas, pois considera importante ser
solidária. No entanto, ela procura a melhor forma de ajudar, sem assumir riscos desnecessários,
como quando relata que desistiu da profissão de bombeiro por ser perigosa e, hoje em dia,
afirma ter vontade de ser médica. Ela também realiza uma distinção entre quem está apto a
assumir riscos e quem não deveria fazê-lo.
Quando é confrontada com a necessidade de agir, Ingrid ainda não se sente segura, e
estabelece níveis diferentes de responsabilidade, numa lógica de risco e recompensa. Ajudar

30
A criança utiliza o verbo rapporter, que pode significar trazer, acrescentar, mas também é utilizado quando se
fala de relações pessoais, no sentido de (r)estabelecer vínculos.
170

um desconhecido, por exemplo, oferece um risco maior do que ajudar um familiar, portanto a
criança não deveria assumir tal responsabilidade.
Para a criança, os voluntários são necessários para a cidade, pois são pessoas que não
pensam apenas em si mesmos, ajudando aqueles que têm menos. Os voluntários lidam
diretamente com as desigualdades, e ela associa o altruísmo ao progresso, como forma de fazer
o mundo evoluir. Sem as associações, a cidade poderia se desfazer, morrer. O aumento das
desigualdades sociais requer um aumento na quantidade de associações e na disposição das
pessoas para serem solidárias.

Episódio 3 – a Ressourcerie em duas palavras

No clipe escolhido, registrado por Renato com a subcam, durante a formação com a
Ressourcerie l’Alternative, Ingrid pede aos facilitadores que expliquem a atividade da
associação em duas palavras (figura 54). Os facilitadores respondem que se tivessem que
resumir em apenas duas palavras, seria “reaproveitamento” e “social”, embora preferissem
“laço social”, por causa do trabalho dos voluntários de captação e reaproveitamento dos objetos
para vender à comunidade a preços mais acessíveis.

Figura 54 - a Ressourcerie l'alternative.

Fonte: acervo da pesquisa.

Reações e evidências

Perguntamos à criança por que pediu que aos facilitadores explicarem o trabalho da
associação em apenas duas palavras e, ao assistir o vídeo, ela nos conta que utilizou uma espécie
de estratégia cognitiva para compreender o papel da associação, como mostra a figura (figura
55), no sentido de sintetizar as informações de forma a tornar mais fácil o aprendizado.
171

Figura 55 - o uso de uma estratégia cognitiva.

Fonte: acervo da pesquisa.


P: eu me lembro que houve um momento na Ressourcerie que você pediu à pessoa
que descrevesse a associação em duas palavras, você lembra disso? Eu fiquei surpreso
de você ter pedido que explicassem em duas palavras.
I: foi porque eles explicaram, eu não me lembro especificamente desse momento, mas
eles explicaram muitas coisas e eu queria saber por que eles faziam aquilo, por que
existe a Ressourcerie, o que eles faziam lá, e para que serve (ela então presta atenção
no vídeo). Então eu pensei, o que poderia ser feito, e eu pensei em duas palavras
porque, por exemplo, para os bombeiros eu penso que seria salvamento e ajudar as
pessoas, poderiam ser quatro ou cinco palavras, mas duas palavras é o princípio de
uma frase. E lá ele me explicou que seria social e reutilizar os objetos e isso me
permitiu compreender melhor, porque o social são todas as pessoas que vêm e vão,
são muitas pessoas, os voluntários que fazem o trabalho de verdade, então foi
realmente importante para mim ter explicações como essa, isso me permitiu
compreender o projeto.

Em seguida, perguntamos à criança se ela tinha mais alguma coisa a acrescentar, e ela
afirmou ter esquecido de falar sobre a atividade no abrigo de idosos, relatando que se sentiu
acolhida pelas pessoas que trabalham no abrigo, e que teve a impressão de que os idosos
estavam felizes por ter companhia. Segundo Ingrid, ao ajudar os idosos, os trabalhadores do
abrigo também ajudam a cidade, contribuindo para o ciclo da vida, outra metáfora empregada
espontaneamente pela criança.
I: isso também ajuda a cidade, ajudar os idosos. É o ciclo, jovens, adolescentes, depois
adultos e você começa a envelhecer e graças a eles você pode permanecer vivo e ter
um pouco de alegria. Por exemplo, lá havia jogos, café da manhã, havia várias pessoas
que faziam um torneio de babyfoot31 e isso é muito legal, fazer essas atividades é
muito bom.

Perguntamos à Ingrid por que algumas pessoas se engajam e outras não, principalmente
no trabalho voluntário, comentando que no dia em que as crianças foram ao abrigo Ave Maria,
havia pessoas atuando como voluntários, visitando os idosos com o intuito de conversar e fazer-
lhes companhia.

Figura 56 - expressando a oposição interior/exterior.

31
No Brasil, essa modalidade é conhecida como pebolim ou totó.
172

Fonte: acervo da pesquisa.


Ela expressa uma distinção a partir da antinomia dentro/fora (figura 56), como forma de
se referir às pessoas que decidem fazer algo pelos outros, não ficando em si mesmo. Nesse
momento, a criança utiliza da categorização para atribuir características às pessoas que se
engajam em algum tipo de atividade voluntária. Essa categorização utiliza dois princípios, o
tempo disponível e a vontade para participar, existindo cinco classes de pessoas.
I :depende de quem, depende do quê e depende da sua agenda. Ou você não tem
vontade porque não tem tempo, e você não gosta de se ocupar com isso, mas você
acha que é bom fazer, que a ideia é boa, ou dentro de você, no seu interior parece uma
boa ideia, mas no exterior você não tem vontade, você tem um pouco de preguiça (ela
imita uma pessoa apática), mas você acredita que é bom. Ou você tem uma agenda
muito cheia e você diz “eu adoraria fazer um tempo de voluntariado, mas minha
agenda está muito cheia nesse momento, então eu não poderei fazer”, ou você tem
uma agenda livre e você simplesmente não tem vontade fazer, você pensa “por que
eles fazem isso? Por que eles não ficam em casa? Você tem um coração fechado, ou
você tem uma agenda livre mas você acha melhor ficar sozinho ou a quinta pessoa é
aquela que tem vontade, é aquela que pensa “eu tenho tempo, eu quero ser voluntário,
eu acho bom, eu gostaria de ajudar mais as pessoas, fazer as brincadeiras, eu tenho
certeza que vai ser bom” e eles pensam “ eu não quero fazer só pra ganhar alguma
coisa, eu quero fazer algo pra divertir as pessoas” e essa pessoa que é voluntária ela
pensa no que vai ser prazeroso, ela organiza tudo ciente que vai gostar da atividade,
ela quer alegrar as pessoas. Então, esse tipo de pessoa vai fazer, mas isso não quer
dizer que são apenas essas pessoas que se interessam. Eu penso assim, mas eu não sei
de tudo.

Quando perguntamos à Ingrid o que podemos fazer para incentivar outras crianças a
participarem do CME, ela aplica a mesma estratégia de resumir a atividade em duas palavras,
usando “aprender” e “se divertir”, relatando que o projeto P’tits Volontaires foi uma
oportunidade de aprender coisas novas e divertidas. A criança compara o projeto a outras
atividades extracurriculares como esporte e música, aconselhando a todos que tem tempo e se
interessam em ajudar as pessoas, mesmos para aqueles que são fechados, Ingrid diz que o
projeto poderia ajudar a abrir a mente deles.

Síntese do episódio 3
173

Ingrid fala sobre o papel das associações na manutenção da cidade e dos laços, ao se
referir ao abrigo Ave Maria como responsável por trazer alegria aos idosos. Ela se refere à vida
como um ciclo, que vai da infância à velhice, como algo natural e inevitável, razão pela qual as
pessoas devem se preocupar com o futuro, para ter alguém que os ajude quando forem idosos.
Assim como as crianças, os idosos também são uma categoria que sofre os impactos das crises,
sendo tratados como uma responsabilidade do Estado.
A estratégia de sintetizar o papel das associações em apenas duas palavras ajudou a
criança a reter a informação, permitindo recuperar posteriormente. Aliada à comparação com
outras atividades curriculares, isso aponta que Ingrid reproduz o papel de aluno, mesmo na
formação para a cidadania, no sentido de que se preocupa em memorizar e tomar notas das
atividades, caso precise responder perguntas e fazer apresentações.
Quanto ao engajamento em atividades voluntárias, Ingrid opera uma tarefa de
classificação das pessoas em cinco tipos, a partir dos fatores tempo e vontade. Para ela, o
voluntário é aquele que possui tempo e sente prazer em fazer algo pelas pessoas, sendo alguém
que se organiza para tal. Segundo a criança, essas pessoas não são as únicas que se interessam
por fazer algo pela comunidade, existem outras, mas as que se interessam são as de “coração
aberto”. Essa classificação reforça a lógica do voluntariado enquanto atividade altruísta, pois
ela atribui às pessoas que se engajam nesse tipo de atividade uma qualidade ligada ao coração,
de acordo com o que a disposição da pessoa para “sair de si mesma”.

Síntese da entrevista replay

Na fala da criança, percebe-se que ela ainda não se considera responsável por atuar em
situações de maior complexidade, mesmo que tenha o conhecimento necessário. Se há algum
adulto por perto, a criança não é a “prioridade”. Há um limite para a agência da criança, no caso
dos primeiros socorros, ela deve agir apenas quando estiver sozinha e quando a vítima for
alguém que ela conhece. Na vida “real”, isso pode indicar uma crença na desresponsabilização
das crianças enquanto atores sociais competentes, sendo chamados ou autorizados a participar
apenas na ausência dos adultos.
Participar de uma atividade com outras crianças, tal como o projeto, poderia “abrir o
espírito” de crianças que são fechadas (essa mesma ideia foi relatada pela mãe de uma outra
criança no início do projeto, quando disse ter incentivado o filho a se inscrever para que ele
pudesse sair de casa). Dessa forma, o projeto passa a ser um espaço de socialização (MOLLO-
174

BOUVIER, 2005), e a comparação com as atividades extracurriculares pode indicar uma forma
de ocupar o tempo da criança com algo “produtivo”. Chama a atenção que a criança se refira
aos alunos, não às crianças de maneira geral. Isso sugere uma atuação no projeto como atividade
complementar à escolarização, ainda que o ofício de aluno seja a referência para a aprendizagem
(na forma de lições ou de brincadeiras), ou uma comparação com as demais crianças com quem
Ingrid convive no ambiente escolar.
Os voluntários são pessoas que ajudam a cidade a crescer, independente do que eles
façam, ao se dedicarem à manutenção da comunidade. Sem os voluntários, sem as pessoas que
se dedicam à cidade, há o risco de esfacelamento da comunidade, pois cada associação possui
o seu papel na manutenção do bem comum (essa ideia não é abertamente referenciada pela
criança, mas pode indicar uma pista do que significa a cidade enquanto uma totalidade). A ideia
dos laços sociais emerge, ainda que implícita, no discurso da criança sobre as relações entre os
moradores e o papel dos voluntários.
Na narrativa da criança, a existência de uma grande quantidade de instituições e de
voluntários é o que diferencia a França dos países pobres. A criança constrói uma narrativa a
respeito das desigualdades sociais, ao identificar nas associações o papel de religar as pessoas,
tornando a cidade inteira. A ausência de pessoas dispostas a participar das associações causaria
o rompimento dos laços sociais, motivo pelo qual alguns países continuam pobres. Sabemos
que a criança pertence a uma classe privilegiada, e o seu contato com figura do outro, o
excluído, se dá por meio da presença de pessoas em situação de rua e de refugiados.
A criança identifica um crescimento da quantidade de associações e de voluntários
proporcional ao aumento do desgaste da cidade. Chama a atenção a forma como a criança opera
uma categorização que distingue os países ricos e pobres, tendo tido contato com a desigualdade
e com as associações ao longo do projeto. Existe um nível de desigualdade ou de desgaste
mínimo com o qual é possível conviver no cotidiano, sem que esses laços sociais se desfaçam?
Pensamos que esse aspecto pode ser considerado no estudo das representações sociais sobre a
desigualdade social, no que diz respeito as crenças sobre a origem e perpetuação das
desigualdades.

Análise de Entrevista Replay: Érica – 13/03/2020

Érica (nome fictício), nascida em 04/07/2009, era aluna de CM2 da escola Ave Maria à
época do projeto. Sua ideia inicial era combater o bullying nas escolas, por meio de punições
175

mais severas, construir estratégias para diminuir a poluição na cidade e ajudar as pessoas que
vivem na rua.
Era a única criança que já havia participado do Conselho Municipal, no ano anterior,
quando o tema era a construção de uma rádio comunitária, e tinha autorização para frequentar
o polo cidadão sem necessidade de um acompanhante.
Érica não compareceu a todos encontros de formação, embora tenha se mostrado
empolgada para participar desde o início. Durante as formações, a criança era bastante agitada,
principalmente quando não estava à frente do grupo. A entrevista ocorreu no dia 13/03/2020,
na presença da mãe.

Episódio 1 – os gestos que salvam

Clipe 1 - Tomando nota das atividades

No clipe escolhido, registrado pela própria criança com a subcam, durante a formação
com os Bombeiros, o facilitador explica o que fazer quando uma pessoa tem uma parada
cardíaca. Érica interrompe a fala do bombeiro para perguntar o que se deve fazer, afirmando
tomar nota das etapas (figura 57). O facilitador pega emprestado seu manequim para explicar a
massagem cardíaca, pedindo à criança que preste atenção nas instruções. Enquanto as outras
crianças começam a praticar a massagem cardíaca, Érica reclama que não pode fazê-lo porque
está sem manequim.

Figura 57 - passo a passo da massagem cardíaca.

Fonte: acervo da pesquisa.

Reações emocionais e evidências subjetivas


176

Ao assistir o vídeo, a criança explica o que os bombeiros ensinaram durante a formação,


contando nos dedos as etapas (figura 58). Quando perguntamos por que ela tomou nota das
atividades, Érica responde que pretende fazer uma apresentação na escola sobre o projeto P’tits
Volontaires.

Figura 58 - preparar uma apresentação sobre a formação.

Fonte: acervo da pesquisa.


P : Por que você tomou notas durante a formação?
E: para recordação e porque eu vou fazer uma apresentação.
P: você já fez a apresentação?
E: não, no momento eu estou preparando. Eu faço pequenas folhas com perguntas
para quatro equipes de seis pessoas, na verdade, nós somos 25 na classe, mas
considerando que eu sou a responsável são 4x6=24. Haverá questões que eu vou
perguntar e eles terão que marcar a resposta correta, depois haverá questões que eles
vão ter que escrever e depois nós vamos corrigir oralmente, eu vou mostrar o vídeo,
você sabe, de quando o fogo faz puff (ela faz o gesto de quando o fogo se apaga).

Comentamos que Érica foi a única criança a ter participado do CME mais de uma vez,
e ela explica que, no ano anterior, havia apenas “encontros normais” e algumas vezes as crianças
faziam programas de rádio. Ela comenta que nas fotos das formações do ano anterior, sempre
aparecia fazendo careta, como se alguém fizesse as fotos no momento de suas caretas.
Contamos que durante a formação no abrigo, houve momentos em que ela fez careta nas fotos.
Érica afirma que não conhecia o projeto antes de se inscrever pela primeira vez no CME,
mas que gostou de participar e por isso se inscreveu novamente. Em sua escola, a escolha dos
representantes do conselho ocorreu por meio de um sorteio. De repente, a criança se lembra da
possibilidade de interrupção das atividades (figura 59), devido às infecções pelo novo
coronavírus e pergunta o que vai acontecer com o projeto.
Figura 59 - a surpresa de Érica.
177

Fonte: acervo da pesquisa.


E: espera, quer dizer que se a plenária não acontecer, nós teremos feito um projeto
para não apresentar e deixar largado num canto?
P: Não, nós vamos apresentar, a ideia é que talvez seja necessário adiar a plenária.
E: Sim, porque se não apresentarmos, não vai ser legal, nós teremos feito um projeto
enorme, teremos trabalhado durante três encontros para finalmente não apresentar.

Perguntamos à criança em quantos encontros ela faltou, e ela responde que não pôde
participar de dois dos três encontros de construção do projeto. Ela olha para a mãe e pergunta
porque não pôde comparecer, a mãe responde que foi por causa de uma consulta médica e de
uma reunião escolar. Érica se justifica dizendo que era uma reunião sobre ecologia e que ganhou
um vale de €50, com o qual comprou uma pinça igual à utilizada pelo serviço de limpeza da
cidade.
Quando perguntamos o que deveríamos fazer para apresentar e incentivar a as crianças
a participarem do CME, Érica aplica a mesma estratégia da gincana para a apresentação na
escola. Do contrário, ela afirma que para aqueles que se interessam basta explicar, mas sempre
haverá aqueles que preferem ficar em casa jogando videogame.
P: como você acha que devemos apresentar o CME para as crianças?
E: fazer um jogo, você faz um quis e você faz equipe e escolhe chefes de equipe,
dando tempo para que eles respondam as perguntas. E sobretudo, o que eu faço
quando há pessoas nas equipes que ficam num canto, às vezes quase dormindo, eu
pego essas pessoas e as coloco para serem chefes de equipe. Eles dizem “não, eu não
quero”, mas eu os coloco mesmo assim.

Perguntamos se a criança já utilizou a pinça, e ela afirma que está esperando o pai levá-
la para passear. Quando contamos que havia várias garrafas plásticas na entrada do IEA, pela
manhã, mesmo com a existência de uma lixeira na esquina, a criança encena uma espécie de
vídeo educativo sobre como lidar com o lixo (figura 60).

Figura 60 - o que fazer com o lixo.

Fonte: acervo da pesquisa.


E: nós temos pés e pernas, nós podemos mandar em nossos pés e nossas utilizando
nosso cérebro para andar alguns passos, usar nossa mão que funciona igualmente com
nosso cérebro e nosso braço para pegar a garrafa, jogá-la numa lixeira, que é um saco
com uma tela que serve para que o saco não se rasgue. Vocês entendem o que estou
dizendo? Essa garrafa deve ir para a lixeira.
178

Quando revê o momento em que o bombeiro pega seu manequim (o qual decidiu chamar
de Michel) para exemplificar a massagem cardíaca, Érica olha para o pesquisador e sorri,
falando que o seu manequim foi utilizado várias vezes. Perguntamos por que decidiu chamá-lo
Michel, e ela responde que atribuiu nomes masculinos a todos os manequins, mas não lembra
o motivo para os nomes. Em seguida, ela afirma que se tivessem peruca, poderia ter lhes dado
nomes femininos.
Em determinado momento, a criança pausa o vídeo para ler as notas do seu caderno, e
afirma que quer ver o que escreveu durante a atividade. Perguntamos qual era seu projeto para
o CME, e Érica responde que gostaria de fazer atividades de coleta de lixo e gostaria de
combater o bullying nas escolas. Ela conta que teve um sonho no dia anterior, em que pedia
uma pinça emprestada e a pessoa lhe batia com a ferramenta.

Clipe 2 – a posição lateral de segurança (PLS)

No clipe, o bombeiro simula uma pessoa que não está respirando e Érica pratica a
posição lateral de segurança, recomendada para desobstruir as vias respiratórias (figura 61). A
criança reclama que não tem força suficiente para colocar o facilitador em PLS.

Figura 61 - a posição lateral de segurança (PLS).

Fonte: acervo da pesquisa.

Reações e evidências subjetivas

Ao assistir o vídeo da subcam, Érica afirma que teve dificuldade porque os facilitadores
eram pesados. A mãe afirma que não é uma questão de força, mas a criança diz que quando
alguém está desmaiado, o corpo tende a ficar mais pesado. Ela aponta para a tela (figura 62)
179

para mostrar o momento em que tenta colocar o bombeiro em PLS, reafirmando o argumento
de diferença de peso entre ela e o adulto.

Figura 62 - Érica usa a imagem para reforçar seu argumento.

Fonte: acervo da pesquisa.


Comentamos que durante a visita ao abrigo Ave Maria, uma das facilitadoras perguntou
se Érica é superdotada. A criança olha para a mãe, que afirma não saber, mas diz que ela aprende
mais rápido que outras crianças da mesma idade. Mencionamos que ela pediu para tocar piano
durante a formação, e a criança pergunta se filmamos o momento. Respondemos que sim, e que
seria possível enviar o vídeo ao final da entrevista.
Perguntamos à criança sobre o seu projeto para o CME do ano anterior, que era
relacionado à vegetalização do pátio de sua escola, afirmando que ela já havia executado um
projeto de vegetalização antes do projeto P’tits Volontaires. Ela começa a contar sobre o
cuidado com as plantas do pátio da escola, descrevendo a sensação na pele (figura 63).

Figura 63 - a sensação da urtiga.

Fonte: acervo da pesquisa.


P: se eu entendi bem, você tinha um projeto de vegetalização no ano passado.
E: para o pátio, eles colocaram umas coisas assim (a mãe diz que foram vasos), vasos
grandes para compostagem.
P: você já sabia fazer um projeto de vegetalização?
E: antes, no ano passado, os grandes molhavam as plantas e eu, nas quartas-feiras em
que eu participava do conselho de crianças e das atividades, frequentemente havia
uma atividade para retirar ervas daninhas. Todo mundo usava luvas e eu fazia assim
mesmo, com as mãos nuas, exceto para as ortigas, porque mesmo com luvas elas
machucam. Eu pensei, “ah, tem muita ortiga, não é nada demais, mas machuca”, o
espinho atravessa, mas há uma forma de manusear a folha que não machuca, é como
o veludo, quando você acaricia num determinado sentido, é um pouco áspero, mas
quando você faz noutro sentido é suave.
180

P: se você já sabia como fazer um projeto de vegetalização você poderia nos ajudar.
E: sim, mas eu não estava lá, nós não escolhemos no primeiro encontro, nós falamos
a respeito, mas não decidimos como iríamos fazer.

Falamos sobre a possibilidade de submeter o projeto na plataforma végétalisons.fr e


Érica afirma que ele ainda não está pronto. Perguntamos se ela poderia fazer o croqui do projeto,
e a mãe diz que ela terá tempo, pois haverá uma redução da jornada escolar, devido à pandemia,
mas a criança afirma que precisará estudar 3h30min por dia. Nesse momento, a criança se refere
à escola como seu trabalho, tendo uma jornada a cumprir.
Comentamos que Érica se ofereceu para desenhar o croqui no mesmo dia que Talita
disse que poderia fazer uma montagem com as fotos das crianças para a plenária. A criança
comenta sobre a foto do facilitador no vídeo, na qual o pesquisador aparece fazendo uma careta,
e diz que foi ela quem escolheu. Érica imita a careta da foto (figura 64), e afirma que o
pesquisador aparenta estar gritando, porque está sendo fotografado, o que contrasta com a ideia
de que é gentil (a criança se refere à imagem 27).
Figura 64 - Érica imita a foto do pesquisador.

Fonte: acervo da pesquisa.


Falamos que é necessário um adulto para assinar e se responsabilizar pelo projeto de
vegetalização, e a criança afirma que não deveria ser necessário, pois não é o conselho
municipal dos adultos. Ela pergunta se alguém da prefeitura não poderia se responsabilizar pelo
projeto, porque o facilitador não é parisiense, nem mora na região. Dizemos que a ideia é que
as crianças possam se ocupar do projeto, bem como os moradores da região.
Perguntamos o que seria necessário para realizar o projeto de coleta de lixo idealizado
pela criança, quanto custaria o material e ela fala sobre a dificuldade de custeio dos
equipamentos.
P: o seu projeto para esse ano era com as pinças? Quanto custaria?
E: onde eu comprei custou €30, é caro, mas para uma turma, seria €27,90.
P: mas se você comprar várias talvez não seja tão caro.
E: nós somos 25 na turma, então 27 vezes 25 é mais ou menos €500, 600, 700 euros
(ela faz o gesto com as mãos).
P: não é tão caro para um projeto. O orçamento participativo do 4ème, por exemplo,
havia um projeto do conselho municipal de crianças, não sei se de 2015 ou 2014...
E: Você já participou do conselho municipal de crianças?
181

P: não, mas eu vi que as pessoas fizeram um projeto de 1500 euros, porque eles
precisavam comprar muitas coisas.
E: nós deveríamos ter feito isso, o projeto com as pinças.
P: mas agora você já sabe como fazer. Você pode propor para a sua turma, para a sua
escola.
E: sim, mas não seria melhor emprestar das pessoas que já tem?
P: emprestar 25 pinças? É muito.
E: sim, mas é ainda mais se você comprar.
P: se você comprar para a escola.
E: ou então você compra cinco ou dez e você faz um revezamento. Alguns recolhem
com luvas, outros com as pinças e eles trocam.
Mãe: você também pode fazer um projeto onde você compra 25 pinças ou número
suficiente para uma turma, e você faz um inventário, como uma biblioteca, mas com
os instrumentos e as escolas podem emprestar, todas as escolas, todas as turmas,
quando tiverem necessidade. Você compra apenas uma vez e todas as escolas podem
utilizar.
E: sim, mas é necessário devolver. Precisamos de fichas onde marcamos o nome das
escolas e tempo que eles terão para utilizar, um ou dois meses, depende do tipo de
objeto. Se for uma pinça, seriam uma ou duas semanas.

Perguntamos a Érica se ela pensa que as demais crianças gostariam de fazer parte do
seu projeto, e ela afirma que sonhou que lhe batiam com uma pinça, pois as crianças
reclamavam sobre a atividade de coleta de lixo, dizendo que preferiam jogar videogame. Nós
falamos que as crianças do CME aparentavam ter se divertido durante a coleta de lixo na
prefeitura e Érica lembra de quando acertaram lixo nos facilitadores, dizendo que foi divertido.
Perguntamos à criança qual a diferença entre as atividades do CME no ano anterior e as
atividades envolvendo o projeto P’tits Volontaires, e sua resposta diz respeito à confiança nos
facilitadores, nas pessoas responsáveis pelas formações, e no formato dos encontros.
P: pra você, qual foi a diferença entre o ano passado e esse ano no CME?
E: tudo foi diferente.
P: em geral, participar duas vezes te trouxe algo diferente?
E: na verdade, as formações foram melhores porque nós aprendemos com os
profissionais reais, ano passado também, mas eram menos profissionais e não havia
formações como esse ano.
P: se você aprende com profissionais reais é melhor?
E: sim, porque eles conhecem o ofício melhor que um facilitador, nós confiamos mais
em um bombeiro para ensinar a massagem cardíaca que alguém que trabalha em um
centro de atividades ou algo assim.
P: e se, por exemplo, alguém desmaia perto de você, você pode ligar para os
bombeiros e fazer a massagem.
E: se há outra pessoa, um adulto, alguém maior que eu, é melhor que eu deixe que ele
faça, se ele souber, mas se eu estiver sozinha, posso fazer.
P: Qual a diferença entre um adulto e uma criança, se eles aprenderam com o mesmo
bombeiro, na mesma formação?
E: não muita, mas nós não confiamos nas crianças para fazer isso, nós poderemos
fazer quando formos adultos.

Quando perguntamos sobre as dificuldades do trabalho coletivo, Érica afirma que


prefere trabalhar sozinha, pois consegue se concentrar mais e não incomoda as outras pessoas.
Ao longo das formações, a criança foi solicitada a prestar atenção nos colegas, pois mostrava-
se bastante agitada.
182

Síntese do episódio 1

Érica se mostrou incomodada com a possibilidade de anulação da sessão plenária com


o prefeito e os representantes da cidade. Por causa da pandemia, as atividades foram
interrompidas por tempo indeterminado e as crianças não puderam apresentar seu projeto. A
fala da criança indica a relação entre a participação e os resultados esperados, pois, na ausência
da apresentação, o projeto seria deixado de lado. Isso sugere uma forma de representar a
participação a partir dos efeitos gerados, na ausência de consequências imediatas, a participação
na atividade perderia o sentido.
A criança sugere atividades do tipo gincana para atrair a atenção dos demais, mas afirma
que existem aqueles que não se interessam pelas atividades, mesmo que sejam lúdicas e
divertidas. Na fala da criança, sempre haverá aqueles que preferem fazer outra coisa (ela cita
videogames) e, para os que se interessam, bastaria explicar do que se trata o projeto e eles
estariam dispostos a participar. Novamente percebemos uma classificação entre aqueles que
participam e os que não participam, sendo a vontade um fator determinante para a adesão.
Érica questiona a necessidade de um adulto para se responsabilizar pelo projeto, sendo
que se trata do Conselho Municipal de Crianças, e logo depois fala sobre a falta de confiança
na capacidade das crianças. Segundo o relato, mesmo tendo o conhecimento necessário, na
presença de um adulto, a criança não deveria se responsabilizar. Esse conteúdo sobre a
responsabilidade surgiu nas entrevistas de outras crianças, indicando que há certo consenso
quanto ao fato de que a criança não está preparada ou não deveria agir em situações que
apresentam algum risco.
Embora reclame de aparecer nas fotos das formações fazendo careta, ela afirma ter sido
a responsável por escolher a foto do facilitador. Percebemos que ela faz uma espécie de
inversão, operando uma troca de papéis, colocando o adulto na posição que costuma ocupar, ao
escolher uma foto de careta para ser utilizada na apresentação do CME durante a plenária. Essa
escolha não aparenta ter a intenção de retirar a autoridade do facilitador, mas de aproximá-lo
das crianças.
Ao comparar às atividades do CME no ano anterior (2018-2019), Érica se refere à
vantagem de ter os profissionais “reais” no projeto P’tits Volontaires, aos quais se atribui
confiança no aprendizado de uma atividade. A ideia é de que as pessoas em geral atribuem
183

maior confiança aqueles que possuem formação ou experiência na área, por isso a falta de
confiança na criança, devido à pouca experiência de vida.

Episódio 2 – a coleta de lixo

No clipe escolhido, registrado por Sofia durante a formação com o serviço de limpeza
da cidade, as crianças encontram uma tampa de esgoto no pátio da prefeitura e decidem abri-la
para retirar o lixo (figura 65), como forma de reunir a maior quantidade de lixo possível durante
a atividade.

Figura 65 - a coleta de lixo na prefeitura.

Fonte: acervo da pesquisa.

Reações e evidências subjetivas

Ao assistir o clipe, Érica aponta para a tela e afirma ter adorado a atividade. A criança
pergunta se a mãe quer assistir o momento em que encontraram a tampa de esgoto e vira o
computador para que ela possa ver a tela, como mostra a figura abaixo (figura 66).

Figura 66 - Érica mostra a atividade para a mãe.

Fonte: acervo da pesquisa.


P: por que foi divertido?
E: foi muito bom, porque havia lixo por todo o lado. Olha! (ela aponta para a tela).
P: se você pudesse escolher uma formação, qual seria a mais divertida?
E: não sei.
184

P: dentre todas as formações, qual foi a mais divertida?


E: eu não sei, mas acho que foi essa.

Érica utiliza o mouse para voltar o vídeo e assistir a mesma parte várias vezes. A mãe
diz que a criança já havia utilizado a pinça para recolher lixo no ano anterior, numa atividade
da escola. Ao rever o momento em que o facilitador pede que tomem cuidado, Érica afirma que
as crianças não lhe deram atenção e fizeram do seu jeito. A criança então imita a expressão de
insatisfação do facilitador quando as crianças lhe jogavam o lixo.

Síntese do Episódio 2

Érica relata que a atividade de coleta de lixo no pátio da prefeitura foi a mais divertida
dentre as formações, e mostra à mãe o vídeo de quando encontraram a tampa do bueiro, dizendo
que conseguiram abri-la e retirar o lixo que estava lá dentro, mesmo que os facilitadores tenham
se mostrado contra.
As crianças decidiram mostrar que eram capazes de abrir o bueiro por conta própria e o
relato mostra que elas se divertiram ao desafiar a autoridade do adulto e mostrar competência
para desenvolver a atividade. A resolução do conflito cognitivo, ao contraria as expectativas do
adulto em uma tarefa considerada complexa, mostra-se uma experiência prazerosa para a
criança. É possível que esse tipo de experiência tenha o intuito de buscar o reconhecimento da
capacidade de ação da criança pelo adulto.

Episódio 3 – antes da Maraude

No clipe escolhido, registrado por Talita com a subcam durante a formação com a Cruz-
Vermelha, as crianças escolhem o que vão doar para as pessoas em situação de rua durante a
Maraude (figura 67). Após escolherem os objetos, as crianças discutem sobre as necessidades
de quem mora na rua.

Figura 67 - escolha dos objetos para a maraude.


185

Fonte: acervo da pesquisa.

Reações e evidências subjetivas

Ao assistir o vídeo, a criança chama a atenção para o momento em que aparece com as
mãos cheias de biscoitos (figura 68) e pergunta o que o grupo escolheu para as doações.
Perguntamos se a criança tinha vontade de fazer parte de alguma associação, e ela responde
que, para ser voluntário da Cruz-Vermelha é necessário ter pelo menos 14 anos. Érica afirma
que sua irmã poderia ser voluntária, e pergunta à mãe porque ela não o faz.

Figura 68 - a criança se vê no vídeo.

Fonte: acervo da pesquisa.

A mãe pergunta o que Érica fez após a formação com a Cruz-Vermelha, e a criança
responde que passou a levar café da manhã para o senhor Allan, que havia conhecido durante a
“maraude”, antes de ir para a escola. A mãe explica que não quis que a criança saísse sozinha
à noite, depois das 17 horas, porque o morador poderia estar alcoolizado. Caso quisesse sair à
noite, a criança só poderia fazê-lo na companhia da mãe ou do pai. A criança diz que é
importante conhecer as pessoas que estão na rua, antes de ajudá-las, caso contrário podemos
encontrar alguém que não está “bem da cabeça”.
Perguntamos à Érica o que deveríamos fazer para que as crianças participassem do
CME. Ela responde que é preciso reconhecer que a vida não é fácil, e que algumas questões
necessitam do trabalho de todos.
P: na sua opinião, o que devemos fazer para incentivar às crianças a participarem?
E: fazê-los perceber que a vida não é um “mar de rosas”32, que às vezes há coisas que
não podemos fazer, mas se todo mundo der um pouco de si, nós podemos conseguir.
É verdade que nem sempre é um mar de rosas, não é como se pudéssemos fazer um
arco-íris apertando na barriga e tudo ficará bem.

32
A criança utiliza uma expressão em francês que se refere a fitas e beijos.
186

A criança também diz que podemos utilizar os vídeos do projeto para incentivar outros
a participarem, menos os vídeos em que aparece nomeando os manequins. Ela diz que os vídeos
mostram que o projeto é uma oportunidade de fazer coisas novas, como a “maraude” com a
Cruz-Vermelha e as formações com as demais associações.

Síntese do episódio 3

Érica se mostra interessada naquilo que fez, procurando rever as atividades. No entanto,
a presença da mãe na entrevista faz com que a criança se comporte de forma a chamar a atenção
para os momentos em que aparece no vídeo se comportando de maneira engraçada ou divertida.
Quando fala sobre incentivar a participação de outras crianças no projeto, ela fala sobre
a necessidade de ter uma visão mais realista da vida, ao reconhecer que existem pessoas em
dificuldade, sendo necessário que cada um doe um pouco de si para ajudar as pessoas que
precisam. Isso aponta para a construção de um Outro generalizado e a percepção das diferenças,
embora a criança demonstre dificuldades para trabalhar em grupo.
Marková (2017) fala da concepção de responsabilidade epistêmica de Levinas, na qual
a responsabilidade do Eu independe da ação do Outro, sendo necessário agir de forma ética para
a manutenção das relações sociais. Para esse autor, a ética impulsiona o Eu para agir em defesa
do Outro, especialmente daqueles que sofrem injustiças. Érica afirma que os interessados a
participar se sentirão motivados pelo projeto, ao verem os vídeos das atividades desenvolvidas
pelas crianças, e da chance de se divertir ao doar um pouco de si, por meio do voluntariado.

Síntese da entrevista

Érica faz uma distinção entre aqueles que se interessam em participar de atividades
voluntárias, que percebem a necessidade do envolvimento com a cidade e com as pessoas em
desigualdade, e as pessoas que não possuem interesse em participar, preferindo atividades que
trazem benefício apenas para si. Para a criança, existem pessoas que acreditam em um mundo
ideal, “cor de rosa”, que não possuem noção da realidade, por isso não se movimentam e não
participam da vida comunitária.
A criança se mostra mais preocupada em operacionalizar as ações, por meio da
apresentação das atividades na escola e organização de gincanas, bem como a compra de
material, do que construir o projeto. Ela afirma estar fazendo a sua parte, no sentido de agir
187

para reduzir os problemas da cidade, enquanto outras crianças preferem se divertir. Esse fator
está presente também na fala de outras crianças, como forma de diferenciação entre os que
participam e os que não participam. A participação no CME aparece no discurso como um
reforço de uma motivação prévia para a ação voluntária.
Por ser a única criança a ter participado duas vezes do CME, Érica agia nas formações
como se fosse a mais experiente, sempre se colocando a frente das atividades e da condução do
grupo. Esse comportamento gerou conflito com outras crianças, pois a autoridade de Érica não
era reconhecida pelos colegas como legítima. Se pensarmos que as crianças reconhecem no
profissional e nos voluntários a competência para agir, nem todo adulto e criança teria
responsabilidade de resolver as crises da cidade.
Durante a entrevista, a criança demonstra uma motivação diferente do pesquisador, no
sentido de que busca se divertir com os vídeos das atividades e passar uma imagem positiva de
si mesma para a mãe, procurando os momentos em que os demais aparecem em situações
constrangedoras, e evitando falar de suas dificuldades. O comportamento de Érica reforça o que
afirmam os Estudos Sociais sobre a Infância, de que a participação infantil ocorre mesmo
quando o adulto não solicita ou autoriza, quando a criança exercita a participação como forma
de resistência.

4.4 Considerações sobre os Pequenos Voluntários de Paris

Na comunicação interpessoal, há uma troca constante de valores, crenças e


representações, que podem se refletir na construção de práticas sociais ou comportamentos,
individuais e coletivos. A educação, independente da modalidade, dentro ou fora do ambiente
escolar, se dá principalmente por meio da comunicação dialógica, entre a criança e seus pares,
ou entre crianças e adultos. O contexto associativo, enquanto ambiente de educação não-formal,
oferece a vantagem de mobilizar a produção de experiências/vivências mais democráticas, mas
é necessário que o discurso de incentivo ao associativismo se converta em práticas mais efetivas
de ação coletiva, que ampliem o espaço de participação das crianças e as consequências dessas
ações.
Os Conselhos de Crianças e Jovens constituem espaços propícios para a intervenção e
mudança de pensamento, ao permitir a constituição de grupos e culturas infantis. A formação
proposta pelo projeto P’tits Volontaires estava apoiada no incentivo ao trabalho voluntário, na
interação entre as crianças e os representantes de associações da sociedade civil, como forma
de constituição de uma cidadania ativa. A possibilidade de executar as mesmas atividades dos
188

voluntários, algo inesperado devido às barreiras etárias (a maioria das associações possui uma
idade mínima de 14 anos para a participação nas atividades), despertou a curiosidade das
crianças pelas associações.
É possível evidenciar na atitude das crianças do projeto P’tits Volontaires frente ao
desafio cognitivo representado pelo aprendizado das ações associativas, uma forma de
resistência. Ao contrariar as expectativas do adulto, demonstrando seu potencial para fazer
aquilo que os adultos consideram complicado ou inacessível, as crianças buscam o
reconhecimento de sua capacidade de ação. Em diversos momentos da pesquisa, as crianças
apresentaram soluções próprias para os problemas identificados e, mesmo inspiradas pelos
adultos, ilustram uma apropriação do conteúdo da formação.
Como forma de demarcar o pertencimento grupal, há um distanciamento dos
participantes do CME para os adultos e as outras crianças. Elas se referem ao adulto como
alguém que apresenta um comportamento irracional ou incoerente, demonstrando desconfiança
em relação aos professores e representantes do poder público. Quanto às demais crianças, o
elemento que as diferencia é a preguiça ou falta de vontade, fazendo com que optem pela
diversão ou não se envolvam em atividades associativas.
Para as crianças da pesquisa, o voluntariado e a participação cidadã exigem
responsabilidade pela cidade, indo além da percepção das necessidades individuais. “Sair de si
mesmo”, nas palavras das crianças, significa romper com o individualismo que caracteriza uma
parcela da população francesa e assumir uma postura cidadã mais ativa, no sentido de olhar
para as necessidades do outro. A mudança ocasionada pela vivência da participação está
relacionada principalmente à descoberta dessas necessidades, quando a criança se depara com
uma realidade diferente daquela idealizada (o mundo cor de rosa), na qual a desigualdade se
faz presente, ainda que as crianças não a vivenciem diretamente.
Segundo Emler, Ohana e Dickinson (2008), o conhecimento produzido pelas crianças
depende da sociedade em que vivem e do lugar que ocupam nessa sociedade. O grupo social
em que vivem apresenta problemas e possíveis soluções para os desafios com os quais essas
crianças se defrontam. Nas classes superiores, o processo de privatização da infância é ainda
mais forte. Para essas crianças, há uma série de atividades disponíveis, como música, dança e
teatro, que servem para preencher o tempo, evitando que a criança fique “ociosa”. Desenvolver
projetos no tempo livre é uma forma de ser produtivo, destacando-se daqueles que optam por
permanecer alheios à realidade.
189

Segundo as autoras, no aprendizado do conhecimento sobre as relações sociais as


crianças aprendem não apenas a serem agentes, mas também como reagir, mediante o fato de
que, na maioria das vezes, elas são objeto da ação dos adultos e do meio externo. Para justificar
as desigualdades e a posição privilegiada que ocupam, as crianças fazem uso de representações
sociais sobre o voluntariado e sobre a ação coletiva, utilizando explicações focadas nos
indivíduos, ao invés de se referirem às condições sociais.
Convém questionar as barreiras impostas pelos adultos para a participação das crianças,
comumente embasadas em um discurso psicologizante, de que os estágios de desenvolvimento
e maturação são determinantes para o aprendizado de determinados comportamentos e práticas
e que o modelo de desenvolvimento é universal, independente da cultura e da sociedade. Esse
discurso tem servido para a invisibilização cívica da infância, enquanto categoria social
minoritária, no chamado pacto geracional (SARMENTO, 2007; QVORTRUP, 2014).
As crianças têm demonstrado capacidade de agir e modificar o ambiente em que vivem,
embora suas motivações sejam distintas daquelas do adulto. No contexto do nosso estudo, é
quando a vontade da criança se confronta com as expectativas do adulto, quando ocorre a
divergência de motivações e objetivos, que surge o conflito cognitivo e a necessidade de
mobilizar as representações sociais para exercer sua influência. A criança tem consciência
dessas expectativas e por vezes questiona quais sãos os limites de sua ação, desenvolvendo
argumentos que contraponham a autoridade do adulto.
Se o adulto não estiver disposto a ouvir a criança, se exerce uma autoridade ilegítima,
não souber negociar os objetivos da atividade, não há uma participação efetiva, sendo
perpetuada uma relação de controle e dominação geracional.
[...] Controle não é uma negação da proteção, mas sua versão autoritária e paternalista.
Quando alguém assume essa versão extrema de proteção, está, ao mesmo tempo,
menosprezando a habilidade das crianças de empregar sua capacidade e sua
competência, e reforçando a ausência de confiança, entre adultos, em relação a essas
qualidades das crianças (QVOTRUP, 2014, p.30).

A participação é uma forma de ação coletiva que permite à criança ter a sua própria
experiência. No entanto, a educação formal, principalmente em espaços escolares, costuma
seguir um modelo de “transmissão de conhecimento”, caracterizado pela cópia e reprodução.
No âmbito da educação não-formal, seja em movimentos sociais ou em associações da
sociedade civil, existe uma possibilidade de vivência e exercício da cidadania na prática, em
situações reais (GOHN, 2010). Para nós, a principal diferença entre a educação formal e não-
formal está na possibilidade de implementação de novas práticas, que podem modificar a
190

natureza da relação dos participantes com os objetos de conhecimento, devido à ausência de


um currículo rígido a ser cumprido.
Essa relação é evocada pelas próprias crianças, quando se referem às formações nas
quais houve uma atividade prática, onde puderam realizar as mesmas ações dos voluntários das
associações, compostas em sua maioria por adultos, e se referem a esses momentos como
atividade “real”. No aprendizado e desenvolvimento das práticas sociais cidadãs, tais como o
cuidado com a cidade e a solidariedade com o Outro, existe uma busca da criança pelo
reconhecimento social do adulto, com base naquilo que é capaz de realizar no presente, não
apenas na esperança de desempenhar essas ações enquanto futuro cidadão. A criança demonstra
capacidade em executar as mesmas tarefas realizadas pelo adulto, e questiona a falta de
consciência daqueles que ignoram questões como a preservação ambiental e as mudanças
climáticas, preocupação cada vez maior nas sociedades desenvolvidas.
Nos países europeus, há uma preocupação cada vez maior com as consequências do
aquecimento climático, como mostram as atividades desenvolvidas por algumas associações e
as iniciativas governamentais, como a Rede de Cidades Resilientes. No entanto, há certa
desconfiança das crianças quanto ao discurso ecológico propagado pela cidade, pois este não
corresponde às ações reais de redução da poluição e do consumo de materiais que geram
resíduos para o meio-ambiente, o que as leva a questionar a eficácia dos projetos elaborados
pelos cidadãos, que necessitam da aprovação e financiamento do governo.
Por mais que algumas pessoas se engajem, e as crianças do projeto se incluem nesse
grupo de sujeitos, quando afirmam que a motivação para participar foi um fator determinante
para a inscrição, existem “Outros” para quem a cidade e o bem comum não são prioridades,
como mostra o discurso dos participantes do CME. Esses Outros são identificados como um
grupo generalizado, composto por crianças e adultos, que preferem agir em benefício próprio.
Em oposição a esse grupo, existem os voluntários ou os profissionais que contribuem para a
manutenção da cidade e dos laços sociais. A distinção entre os dois grupos é feita pelas crianças
a partir de fatores como disposição e vontade de participar das ações em prol da comunidade.
A metáfora evocada pelas crianças ao falar dos voluntários, pessoas que estão dispostas
a sair de si para ajudar o outro, vai ao encontro da etimologia da palavra “bénévole” no francês
e das origens religiosas da ação voluntária, tida como um apelo à solidariedade, fazendo parte
de uma norma de utilidade social. Para Simonet (2009), o apelo que se faz na sociedade francesa
aos voluntários é um projeto político, e responde a uma busca pelo sentimento de ser útil à
191

sociedade, aos outros, que vem sendo legitimado no discurso público desde a década de 1990,
como forma de combater os efeitos da globalização e da crise do emprego.
O voluntariado seria uma forma de encontrar reconhecimento social, na fronteira entre
o trabalho salariado e a informalidade. “[...] para aquele que não produz no quadro de uma
atividade profissional, de um trabalho remunerado, o espaço das práticas voluntárias pode
permitir colocar em práticas seus direitos de cidadão... ou talvez de cumprir com suas
obrigações” (SIMONET, 2010, p. 75, tradução nossa).
Salientamos que nosso estudo foi realizado com crianças de classes sociais favorecidas,
que habitam no 4ème arrondissement de Paris e possuem experiência com atividades
voluntárias, porém, os resultados vão ao encontro do estudo de Ortega Rubí (2019) sobre a
representação social da participação em jovens mexicanos, que está organizada principalmente
sobre elementos de ajuda, cooperação e solidariedade.
O estudo de Smith e Joffe (2012) com a população britânica mostra que as
representações sobre o aquecimento global se constroem a partir de três diferentes thêmata:
Eu/Outro, natural/não-natural, e certo/incerto. Aqui nos interessa o fato de que os participantes
da pesquisa supracitada representam as mudanças climáticas, bem como as ações para redução
do impacto causado a nível local, a partir de uma comparação com outros grupos e países.
O discurso de algumas crianças do CME sobre os desgastes sociais e os impactos das
mudanças climáticas vai ao encontro da hipótese dos autores de que as representações servem
como elemento de proteção do indivíduo e do grupo de pertença, nas relações com os demais
grupos sociais, principalmente quando percebemos que a criança tenta elaborar uma
justificativa para a existência e manutenção das desigualdades sociais.
A imagem do cidadão enquanto um indivíduo solidário às mudanças causadas pelos
desgastes naturais e pelos efeitos adversos do desenvolvimento econômico, aparenta ganhar
corpo na figura do voluntário, que ilustra/personifica os valores republicanos. Seguindo o
pressuposto de que a ação cidadã da criança se dá no devir, a infância o momento propício para
o aprendizado dos valores morais e da ética para com a cidade ou a comunidade, instituindo ou
instilando a responsabilidade epistêmica nos membros da sociedade, na construção de uma
cidadania ativa que se baseia no voluntariado e no cuidado. O objetivo da formação cidadã seria
então aumentar a implicação dos cidadãos com os problemas da cidade, fazendo com que essas
questões adquiram relevância para os sujeitos.
Acreditamos que, nesse contexto, apesar dos avanços na concepção das crianças
enquanto sujeitos de direitos, há uma possível manutenção de imagens sociais da infância “pré-
192

sociológica” (SARMENTO, 2007), tais como a “criança imanente”, detentora de um potencial


ilimitado, em oposição ao adulto rígido e inflexível, baseada nas concepções filosóficas de
Rousseau e Locke, e da criança “naturalmente desenvolvida”, que necessita passar por um
processo de amadurecimento para se tornar um ser humano completo e agir em sociedade.
Essas imagens e crenças são reproduzidas inclusive nas falas das crianças, quando estas
afirmam não ter prioridade para agir no contexto real, mesmo após terem sido formadas pelas
associações, nos mesmos moldes dos adultos, e justificariam a iniciativa do poder público em
desenvolver um projeto para formar os cidadãos do futuro, pois a criança tornar-se-ia um
cidadão por meio da experiência do voluntariado e da construção de projetos coletivos.
Gaitán Muñoz (2020, p. 109) se refere aos estudos de Nancy Fraser sobre justiça social,
para propor três dimensões para o estudo da justiça na infância, a saber, a distribuição de
recursos sociais, agência e a participação. Nos estudos sociais da infância, a autora dá ênfase
especial na dimensão do reconhecimento, como forma de combater as injustiças às quais as
crianças, enquanto categoria social, têm sido historicamente submetidas.
[...] ousamos dizer que, no caso das crianças, o reconhecimento seria a dimensão mais
necessária de atenção. Reconhecimento de sua real presença como atores na
sociedade, contribuintes ativos para a mudança social, econômica e política. Por essa
razão, seria também o reconhecimento essencial para expandir substancialmente seu
espaço em termos de paridade participativa em todas as áreas da experiência cotidiana
(incluindo especialmente a da família e da escola) e carregar sua voz, fazê-la ouvir e
ver suas demandas na arena política respeitadas.

Um dos aspectos relevantes para a classificação da participação infantil, diz respeito à


informação e compreensão que as crianças possuem sobre as atividades, que costumam ser
conduzidas pelo adulto, sem que a criança tenha conhecimento prévio, e envolvem o uso de
uma linguagem formal. Sem ter informação a respeito das atividades, a criança se vê
impossibilitada de ter uma noção do todo, o que dificultaria a participação e o engajamento
infantil, como ocorre nos níveis de não-participação, classificados por Hart (1992) em
manipulação e participação simbólica. No âmbito dos Conselhos Municipais de Crianças e
Jovens, os participantes são incentivados a reproduzir um modelo de representação política que
segue regras estabelecidas no âmbito da política partidária, como eleições e consultas públicas.
Para que haja uma participação efetiva, é importante atender os nove critérios apontados
pelo Comitê sobre os Direitos da Criança (LANDSDOWN, 2014), dentre os quais destacamos
esses quatro: transparência, para que a criança saiba do que se trata, quais atividades serão
realizadas e quais são os seus direitos, para que possa avaliar se o projeto vai ao encontro dos
seus anseios; voluntária, que não haja uma obrigação para participar, sendo permitido desistir
da atividade; respeitosa, as crianças precisam ter espaço para expressar suas opiniões, e elas
193

precisam ser respeitadas, o adulto que trabalha com crianças precisa conhecer o contexto social
e cultural das crianças; e relevante, a participação precisa ter consequência reais na vida da
comunidade e nos assuntos que os afetam, baseado no conhecimento e nas habilidades das
crianças.
Acreditamos que a mudança nas práticas relativas à infância pode gerar a transformação
gradativa das representações sobre cidadania e participação infantil, mas é preciso lembrar que
a concepção da criança enquanto sujeito de direitos é recente (QVORTRUP, 2006; 2011; 2015;
SARMENTO, 2007). Crenças como a falta de responsabilidade e a incapacidade das crianças,
baseadas na relação da infância com a maturidade biológica (GAITÁN MUÑOZ, 2020),
persistem mesmo em ações de participação como os Conselhos Municipais de Crianças e
Jovens. Essas crenças inviabilizam a percepção da infância como um fenômeno social e o
exercício da cidadania infantil, reservando à criança o papel de cidadão no devir.
O diferencial da educação cidadã no projeto P’tits Volontaires seria o envolvimento das
associações, referências de educação não-escolar, na complementação da socialização e da
formação no âmbito escolar (figura 69). Assim, o aprendizado da cidadania passa a ser uma
atividade complementar, a ser realizada no tempo livre da criança, em paralelo ao ofício de
aluno, desenvolvido pelas crianças na divisão social do trabalho. O aprendizado da cidadania
enquanto atividade extracurricular requer uma estruturação da aprendizagem e dos conteúdos,
bem como uma avaliação do processo, como mostra a pesquisa de Cortessis, Guisan e Tsandev
(2009), na tentativa de reconhecimento das competências aprendidas pelos jovens no contexto
associativo suíço.

Figura 69. a representação global da cidadania ativa

Fonte: o autor.

Acreditamos que, nesse contexto, o voluntariado assume um papel fundamental na


manutenção das relações sociais, como forma de reparar os laços sociais e o “tecido”
fragmentado. As associações da sociedade civil adquirem então uma autoridade epistêmica no
194

tema da cidadania, tanto quanto os movimentos sociais tiveram no século anterior. No entanto,
é necessário ter cuidado com a instrumentalização dessas associações pelo Estado neoliberal
(SIMONET, 2010), como forma de delegar a responsabilidade pelo bem-comum aos cidadãos,
o que também configura um fenômeno de privatização.
[...] O Estado atua nesses casos como indutor, e de certa forma como ator
impulsionador. Aqui o ativismo dos funcionários públicos (caso exista, pois neste caso
pode estar associado à parceria com Ongs) não é necessariamente um ativismo
engajado em causas, mas em problemas detectados que necessitam ser resolvidos com
a participação da sociedade civil. São ações que poderão resultar em processos de
aprendizagem coletiva e de valores; como exemplo, a empatia e a solidariedade para
com os pobres, com moradores nas ruas etc., numa área que denomino “educação não
formal”. Um problema dos projetos é que o foco está na formação do indivíduo
(participante ou agente receptor em situação de vulnerabilidade) e as causas daquelas
desigualdades, os responsáveis por tais situações, as estruturas econômicas vigentes,
os interesses de políticos nas políticas públicas são “escamoteadas” e nunca
tratadas/abordadas (GOHN, 2022, p. 156).

No caso da formação de crianças à cidadania, há uma transformação apenas dos


participantes que vivenciam essa formação, e corre-se o risco de inviabilizar as culturas e
representações produzidas nesses espaços, considerando a avaliação dos efeitos da política
pública apenas na propensão desses atores à participação e envolvimento futuro em atividades
representativas.
Os Estudos Sociais da Infância se referem às culturas infantis (SARMENTO, 2005)
como uma manifestação particular, que se constrói dentro de uma cultura mais ampla, comum
aos membros de um grupo social, assim como as representações sociais. Essas culturas infantis
são construídas na interação entre a crianças e os seus pares, na negociação de sentidos e
significados, como mostram as estratégias das crianças durante as formações, como levantar
uma tampa de esgoto para recolher uma quantidade maior de lixo, ou o momento em que as
crianças utilizam o microfone para cantar, aproveitando a câmera para registrar a atividade e
ter acesso posteriormente.
Se compararmos as culturas infantis às representações sociais, é necessário avançar no
sentido de identificar quais são as manifestações características das crianças, enquanto categoria
social, cientes das desigualdades de condições econômicas e sociais que permeiam as infâncias,
no plural.
Respeitar os valores e motivações das crianças requer uma renúncia do controle e do
poder, na suposta autoridade do adulto, fundamentada no pacto geracional. A negociação dos
objetivos e a ampliação dos espaços de participação infantil, são fatores que podem aumentar
o envolvimento das crianças em atividades de formação e exercício da cidadania, a partir da
construção de uma experiência positiva de participação.
195

5 Cribiás, crianças sabidas e a educação infantil como espaço de


participação

Nosso segundo estudo consistiu numa pesquisa exploratória sobre os significados


atribuídos à cidadania e a participação por professoras de Educação Infantil, para compreender
como os adultos representam a cidadania infantil. Essas professoras participaram de um projeto
de extensão denominado “Rede de Apoio à Educação Infantil: interfaces com a Psicologia e a
Pedagogia”, realizado pelo Grupo de Pesquisa em Psicologia da Infância (GPPIN), da
Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), em parceria com a Rede Municipal de
Educação de Cuiabá, desde o ano de 2009, sob a coordenação da professora Dra. Daniela Freire
Andrade, que teve por objetivo a formação de docentes da Educação Infantil a partir do
pressuposto “Educação Infantil como Espaço Narrativo” (ANDRADE, 2007).
A expressão Educação Infantil como espaço narrativo sugere a participação nas
práticas educativas, considerando as narrativas autorais de adultos e crianças e a
importância do pertencimento comunitário e cultural nos processos de aprendizagem
e desenvolvimento de crianças e profissionais da Educação (ANDRADE; COSTA,
2020, p. 964).

Esse projeto de extensão teve como resultado a construção de um coletivo de


professoras denominado Cribiás, crianças sabidas. No âmbito do projeto Cribiás, neologismo
criado a partir da junção das palavras crianças e sabiás, já foram desenvolvidas diversas
pesquisas de mestrado e doutorado (ALVES, 2019; COSTA, 2020), além da publicação de
artigos (ANDRADE; COSTA, 2020; ANDRADE; SILVA, 2021) e um livro intitulado “Cribiás
300+: por uma educação patrimonial toda nossa” (ANDRADE, 2021).
A consolidação de uma identidade comum ao grupo, como resultado do trabalho
realizado ao longo de dez anos, culminou na ação denominada Cribiás 300+, com a criação de
um roteiro de educação patrimonial pelo centro histórico da cidade de Cuiabá (figura 70), para
a celebração dos 300 anos de fundação da cidade.
[...] Nesta perspectiva, tendo a cidade como um palco de aprendizagem em sua
dimensão cultural, o coletivo Cribiás iniciou o ato pela infância no Centro Histórico
da Cuiabá 300, na Igreja de Nossa Senhora do Rosário e Capela de São Benedito,
caminhando pelas ruas em direção ao Museu de Imagem e Som de Cuiabá (MISC),
passando pelo Beco Alto, até a Praça da Mandioca, dizendo a todos que a cidade não
é minha não é sua, a Cuiabá 300 é das crianças, dos adultos de todos que aqui vivem
e fazem história! (COSTA; ANDRADE, 2022, p. 136).

O objetivo da ação foi permitir a integração e a apropriação do espaço público pelas


crianças, como cidadãos cuiabanos de fato e de direito. A ação do coletivo foi analisada a partir
da bibliografia e do material audiovisual produzido pelo coletivo, de forma a complementar os
dados das entrevistas realizadas com as professoras.
196

Canavieira e Coelho (2020, p. 56) falam sobre a necessidade de uma constituição


infantil das cidades, no sentido de apropriação do espaço público, entendido como um processo
de territorialização infantil, que “[...] se traduz ao impregnar à vivência no espaço público com
sentido para as práticas e ações cotidianas das crianças”. A Educação Infantil teria o potencial
de constituir um espaço de participação, ampliando a atuação da criança, por meio de um projeto
educativo diferenciado, parte do processo de urbanização e democratização da cidade.

Figura 70 - roteiro Cribiás 300+

Fonte: ANDRADE, 2021.

Para a investigação das significações atribuídas pelas professoras Cribiás à cidadania


infantil e a participação, entendidas em nosso trabalho como objetos sociais intrinsicamente
relacionados, a partir do referencial dos Estudos Sociais da Infância, foram realizadas
entrevistas semiestruturadas com um roteiro definido a priori (anexo II), na tentativa de obter
indícios do conteúdo e elementos de representação compartilhados no discurso das
participantes.
A entrevista qualitativa, para Gaskell (2003, p. 65),
[...] fornece os dados básicos para o desenvolvimento e a compreensão das relações
entre os atores sociais e sua situação. O objetivo é uma compreensão detalhada das
crenças, atitudes, valores e motivações, em relação aos comportamentos das pessoas
em contextos sociais específicos.

O roteiro da entrevista semiestruturada contou com três eixos principais: as mudanças


percebidas a partir da participação no projeto Cribiás, condicionadas ao tempo de duração dessa
participação; a construção de práticas docentes participativas com as crianças e os possíveis
197

benefícios da participação para o desenvolvimento infantil; e o papel do professor, enquanto


adulto e profissional da educação, na construção da cidadania da infância. As entrevistas
também contaram com uma questão para a indução de metáfora, técnica utilizada incialmente
por Andrade (2006), numa pesquisa sobre o feminino na escola, fundamentada nos estudos
sobre o papel das metáforas na gênese das representações sociais.
Para Mazzotti (2002), as metáforas são as figuras de pensamento por excelência na
produção do discurso, devido ao seu potencial de condensar significados, o que as tornaria
verdadeiras analogias condensadas. Na gênese das representações sociais, a partir dos
fenômenos de comunicação, os significados são negociados entre os membros do grupo, e um
objeto adquire concretude a partir da construção de uma imagem ou núcleo figurativo
consensual, consequência do mecanismo de objetivação (MOSCOVICI, 2012). Os significados
que compõem o núcleo figurativo são extraídos de formas de pensamento pré-existentes,
crenças, valores e ideologias, e esse núcleo então passa a servir de referência na produção do
discurso sobre o objeto social representado.
[...] as representações sociais são um conhecimento “que não está pronto na cabeça
dos indivíduos”, elas vão sendo apresentadas, construídas e enunciadas
frequentemente por metáforas durante a situação na qual são solicitadas, por exemplo,
nas entrevistas de pesquisa. Ou seja, os sujeitos vão “elaborando” e manifestando
metáforas sobre o objeto de representação (às vezes resgatando do estoque da
memória coletiva) sob a influência da situação de interlocução que é, no nosso caso,
uma situação de pesquisa (CAMPOS; LEMGRUBER; CAMPOS, 2020, p. 164-165
grifo dos autores).

A questão indutora de metáfora utilizada nas entrevistas com as professoras era expressa
pelo seguinte enunciado: “Se a cidadania da criança fosse uma coisa, um objeto, o que ela
seria?”. A técnica se baseia no fato de que as metáforas têm a capacidade de auxiliar os sujeitos
a organizarem os sentidos da experiência subjetiva em uma narrativa coerente, permeada pelo
conteúdo que integra as representações sociais e o senso comum, sendo uma via de acesso ao
universo simbólico e à memória coletiva do grupo (LIMA; CAMPOS, 2020).
A entrevista configura um tipo de interação social particular, na qual os sujeitos são
solicitados a produzirem sentidos e significados. Embora tenhamos usado uma questão indutora
de metáfora, não negligenciamos as metáforas que surgiram espontaneamente no discurso das
professoras, ao falarem sobre a experiência de formação e atuação com a criança, pois elas
servem para concretizar/objetivar o posicionamento do grupo acerca da cidadania infantil,
objeto que se situa na intersecção entre o conhecimento científico e o senso comum.
Com base no levantamento bibliográfico e no prisma teórico que apresentamos no
capítulo 1, que integra as categorias desenvolvidas por Gohn (2019) em um modelo de sistema
198

de representação, acreditamos que a cidadania infantil enquanto fenômeno de representação


social articula/agrega elementos comuns entre participação e democracia.
A representação, enquanto conhecimento social, possui também uma função identitária
(ABRIC, 1994; 2003; JODELET, 2018), ou seja, ela auxilia na construção de uma identidade
coletiva, própria aos membros do grupo. “As metáforas que condensam um discurso sobre um
objeto social representado são, também, imagens de um “nós” (grupo) em comparação com
outras imagens possíveis do objeto, as quais, por sua vez, são estrangeiras ao grupo” (LIMA;
CAMPOS, 2020, p.12). A partir da representação, os sujeitos são capazes de se reconhecer e
identificar a existência de outras representações, sem necessariamente aderir a elas, o que
ilustraria um processo de diferenciação para com outros grupos (nós - ingroup/eles -outgroup).
Nas metáforas, assim como nas narrativas, é possível observar elementos que
caracterizam a relação com o objeto, resultado do processo dinâmico de interações e trocas
comunicativas pelo qual a representação é construída e atualizada no cotidiano do grupo. Nosso
intuito com o uso da técnica de indução de metáforas foi a identificação de elementos que
organizam o discurso das professoras Cribiás acerca da cidadania infantil. Com base nesses
elementos, intentamos construir um esquema sobre a constituição do fenômeno enquanto
representação social.
Para Lahlou e Abric (2012, p. 20, tradução nossa), “[...] a decomposição de uma RS em
elementos é uma forma de entender a sua natureza em relação a esses elementos”, e esse
processo está sujeito à influência da subjetividade do pesquisador na construção e interpretação
dos dados.
Considerando a relevância que o fenômeno da cidadania infantil pode ter adquirido para
o grupo social pesquisado, ao longo da formação docente, identificado por Andrade e Costa
(2020) como um ambiente de pensamento, condição necessária para a emergência e
transformação de representações sociais, a escolha das professoras do projeto Cribiás, crianças
sabidas se justifica por se tratar de um grupo já constituído, com práticas narrativas construídas
coletivamente no trabalho com crianças na Rede Municipal de Educação de Cuiabá, como
mostra esse trecho da Carta Aberta do Coletivo Cribiás, a respeito do uso de narrativas.
[...] Compreendemos que a narrativa figura como uma modalidade discursiva que
possibilita processos de formação que tomem como referência não apenas os
conhecimentos formais, mas ainda que promovam a apresentação de conhecimentos
que legitimem a realidade social das comunidades tradicionais existentes no
município de Cuiabá, valorizando seus saberes locais e o sentido de regionalidade
presentes em suas tradições culturais, povos e etnias que aqui se firmaram (COSTA;
ANDRADE, 2022, p. 116).
199

Devido à paralisação das atividades escolares presenciais, as entrevistas foram


realizadas de forma remota, seguindo as orientações da Carta Circular nº1/2021 da Comissão
Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP/SECNS/MS). A composição da amostra seguiu o
critério de conveniência, sendo composta por professoras selecionadas com o auxílio da
coordenadora do Grupo de Pesquisa em Psicologia da Infância (GPPIN) e que aceitaram
participar voluntariamente, considerando critérios como o tempo de permanência no projeto
Cribiás, crianças sabidas e a experiência de trabalho na Rede Municipal de Educação.
As entrevistas foram realizadas com o auxílio da ferramenta Google Meet, plataforma
para videoconferências que possui o recurso de gravação de reuniões, facilitando o registro e a
transcrição do material discursivo, de acordo com a disponibilidade das professoras que
aceitaram participar da pesquisa. Após a transcrição das entrevistas e construção do corpus
textual, realizamos uma análise lexical com o auxílio do software Iramuteq, no intuito de
identificar elementos comuns e oposições no discurso das professoras a respeito da cidadania e
da participação infantil.

5.1 A educação cidadã no Brasil

No Brasil, o papel da formação cidadã é comumente atribuído à escola, principal


instituição responsável pela educação e socialização de crianças e jovens, nos termos do art.
205 da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988). Paralelo ao espaço escolar, o contexto
associativo no país é composto em sua maioria por ONGs, coletivos, e demais organizações
que compõem o chamado terceiro setor, que desenvolvem projetos sociais com financiamento
estatal ou privado. Essas organizações atuam principalmente em regiões periféricas, onde a
oferta de serviços públicos, tais como saúde, educação e saneamento, tem sido insuficiente para
atender às necessidades da população (GOHN, 2011).
A parceria entre o setor associativo e as escolas costuma ocorrer na forma da oferta de
atividades extracurriculares de lazer, práticas de esportes, treinamento artístico, e reforço
escolar no contraturno das aulas, na tentativa de combater os altos índices de evasão e abandono
escolar da rede pública.
O Projeto Cribiás, crianças sabidas foi realizado pelo Grupo de Pesquisa em Psicologia
da Infância (GPPIN) e dele participaram professoras, assistentes, coordenadoras e diretoras que
atuam em escolas de educação infantil da rede municipal e acadêmicos de graduação e pós-
graduação da UFMT. Segundo o relato, o próprio nome foi criação das participantes, a partir
da junção das palavras crianças e sabiás.
200

A expressão metafórica Cribiás, é anunciada como objetivação do pressuposto


Educação Infantil como Espaço Narrativo, uma vez que revela, por meio da imagem
de crianças sabiás, uma representação de criança associada a ideia de protagonismo,
conferindo concretude à prática pedagógica proposta (ANDRADE; COSTA, 2020, p.
965).

Cribiás é uma metáfora para representar a imagem de criança defendida neste


trabalho, ela se apresenta sempre no plural porque parte da ideia das singularidades
do ser humano forjadas em diferentes contextos de vida anunciados tanto na dimensão
da historicidade, quando da espacialidade (COSTA; ANDRADE, 2022, p. 113)

O projeto trabalha com a articulação entre os pressupostos teóricos da Teoria das


Representações Sociais, a Psicologia da Infância, a Sociologia da Infância e a Pedagogia em
Participação. Nesse sentido, tem investido no protagonismo infantil e no reconhecimento da
criança enquanto ator social, capaz de influenciar e participar ativamente do processo de
aprendizagem escolar desde a mais tenra idade, no maternal e berçário.
[...] Ao aderirem a representação de criança como sujeitos autorais e protagonistas os
profissionais da educação anunciam as crianças como participantes na construção e
efetivação das práticas pedagógicas, em uma relação que é dialógica e simétrica
(ANDRADE; SILVA, 2021, p.15).

A escolha do grupo de professoras membros do coletivo Cribiás para participarem da


nossa pesquisa se deu a partir do trabalho pedagógico inovador que tem sido realizado, com o
objetivo de “dar voz às crianças”, no reconhecimento do potencial das crianças enquanto atores
sociais. Essa experiência de formação docente e de construção coletiva do trabalho pedagógico
tem permitido a ressignificação das práticas e a valorização da identidade das profissionais da
Educação Infantil (ANDRADE; COSTA, 2020).
Conforme relatado por Andrade e Silva (2021), mais do que um ambiente onde as
crianças são ouvidas, o projeto Cribiás tem se constituído como um ambiente de pensamento,
e nós o entendemos como um ambiente onde a participação das profissionais de educação
infantil é incentivado e valorizado, de forma a gerar mudanças de atitudes e práticas docentes,
fator importante para a transformação de representações sociais.
Ao fomentar o diálogo intergeracional entre crianças e adultos, numa relação menos
verticalizada, por meio da adoção da postura de “adulto atípico” (CORSARO, 2005), e a
construção coletiva de narrativas da comunidade escolar, o projeto Cribiás cria condições
propícias para a emergência de práticas voltadas para a participação infantil e o consequente
exercício da cidadania dentro do contexto da educação formal e não-formal.
[...] deixar que as crianças falem e escutar suas vozes ainda não é o suficiente para o
pleno reconhecimento de sua inteligibilidade para o exercício de sua cidadania - ainda
que nem isso tenhamos conquistado plenamente no campo da ação -, depende-se que
os processos de participação social estejam efetivamente presentes de forma
sistemática na organização do seu cotidiano, em especial no âmbito das instituições
educativas da qual fazem parte, e que podem apresentar contextos privilegiados para
201

o desenvolvimento de uma cultura democrática de respeito à opinião das crianças, já


que, contemporaneamente, são os espaços “privilegiados” de vivência da infância
(CANAVIEIRA; BARBOSA, 2017, p. 365).

Como exemplos da proposta do coletivo, que está sendo levada para além do ambiente
escolar, citamos as atividades de exploração do centro histórico da cidade de Cuiabá, realizadas
na ação Cribiás 300+ (ANDRADE, 2021), no intuito de ocupar a cidade e ampliar o sentido de
pertencimento das crianças, ao questionar o seu papel na construção do espaço público, além
das demais atividades divulgadas nas redes sociais33, como a confecção da Saia Cribiás, a partir
dos retalhos de tecido com as narrativas produzidas pelas escolas participantes; e a construção
de narrativas encorajadoras, tendo como protagonistas versões infantis dos patronos das
instituições de ensino.
[...] cada projeto Cribiás 300 trouxe um jeito próprio de olhar para a Cuiabá
Tricentenária em diálogo com o repertório cultural da cidade, orientando-se pelo valor
do diálogo intergeracional e da escuta sensível às crianças, estabelecida em uma
relação de confiança interpessoal e epistêmica (COSTA; ANDRADE, 2022, p. 125).

Devido à interrupção das atividades escolares presenciais e as medidas sanitárias de


combate à pandemia de covid-19 não foi possível realizar uma observação participante das
atividades do projeto, devido à impossibilidade de acesso às crianças que frequentam as escolas
e creches da Rede Municipal de Cuiabá, que passaram a realizar atividades de forma remota e
assíncrona.
Nosso contato com as professoras Cribiás ocorreu de forma remota, por intermédio da
coordenadora do projeto, que nos forneceu os endereços eletrônicos e auxiliou na adesão das
participantes à pesquisa. Mesmo com a retomada das atividades de forma gradual, a partir do
segundo semestre de 2021, decidimos manter as atividades à distância, de forma a cumprir o
prazo para confecção e conclusão da tese.
Os estudos realizados no âmbito do projeto Cribiás (ANDRADE; SILVA, 2021;
ANDRADE; COSTA, 2020) têm demonstrado o impacto positivo das atividades de formação
na ressignificação das práticas e no fortalecimento da identidade docente, na construção de um
ambiente de pensamento que permite às professoras construírem novas práticas coletivas, a
partir da troca com os membros do GPPIN e a participação das crianças em projetos construídos
pelas professoras de acordo com as demandas apresentadas pelas turmas.
O grupo de professoras, caracterizadas inicialmente pela atuação na Rede Municipal de
Educação, passou a se identificar como professoras Cribiás, produzindo uma narrativa comum

33
O grupo possui uma forte atuação nas redes sociais Instagram, no perfil @cribiascuiaba, e Facebook, na
página Cribiás 300+.
202

que implicou na transformação do projeto em coletivo de professoras, e na expansão das


atividades para o espaço escolar. Essa articulação se deu como forma de garantir a permanência
das ações, quando houve uma ameaça de descontinuidade da parceria entre a Secretaria de
Educação e a Universidade, como acontece com grande parte das políticas públicas.
[...] Para nós, coletivo é um agrupamento sociopolítico e cultural articulado por um
conjunto de ideias e valores, com identidades fragmentárias, pautas e agendas
diversificadas, formas de expressão e repertórios diferenciados, práticas
organizacionais descentralizadas e muitas vezes tendo a horizontalidade como meta
(GOHN, 2022, p. 179).

De acordo com os dados do Censo Escolar 202134, realizado pelo Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), o número total de docentes atuando
na Educação Infantil em Cuiabá é de 1.398 nas creches e 1.021 na pré-escola. Quanto à
distribuição dos docentes da Educação Básica por sexo, 4.881 são mulheres e 1.572 são homens.
A maior concentração de docentes está na faixa etária entre 30 a 49 anos, de ambos os sexos.
Cuiabá apresenta no âmbito da Educação Infantil cerca de 42% de docentes com
formação considerada adequada para a disciplina lecionada e a atuação no nível de ensino,
enquanto 39,1% possuem formação em área diferente a qual atuam, porém apresentam
complementação pedagógica. Apenas 10,1% das docentes que atuam na Educação Infantil não
possuem ensino superior completo, o que pode ser considerado um reflexo da política de
formação implementada no Plano Municipal de Educação, como poderemos ver no relato das
professoras a respeito das oportunidades de formação.
As professoras que aceitaram participar da pesquisa atuam na Educação Infantil, que
compreende desde o berçário, com crianças a partir de 4 meses de idade, aos anos que
antecedem o ingresso no Ensino Fundamental, que deve ocorrer obrigatoriamente aos 6 anos.
O quadro abaixo apresenta o perfil das professoras que participaram da nossa pesquisa, a partir
dos critérios de idade, tempo de formação e tempo de participação.

Quadro 5. perfil das participantes do estudo 2


Sujeito Idade Tempo de formação Tempo de participação no projeto Cribiás
S.1 47 anos 27 anos de formada Mais de 5 anos
S.2 53 anos 21 anos de formada Mais de 5 anos
S.3 42 anos 21 anos de formada Mais de 5 anos
S.4 n/i 12 anos de formada Menos de 5 anos
S.5 n/i Menos de 5 anos
S.6 n/i 16 anos de formada Menos de 5 anos

34
Os dados do Censo Escolar 2021 estão disponíveis no portal do Ministério da Educação, no site
<https://www.gov.br/inep/pt-br/acesso-a-informacao/dados-abertos/sinopses-estatitisticas/educacao-basica>.
203

S.7 n/i 11 anos de formada Mais de 5 anos


S.8 35 anos 11 anos de formada Mais de 5 anos
S.9 38 anos 15 anos de formada Menos de 5 anos
Fonte: o autor.

A proposta de realização de dois estudos em contextos distintos, uma pesquisa com


crianças e outra sobre crianças, foi baseada na ideia de que a participação infantil, como
possibilidade de implementação e avaliação da cidadania infantil, desde a Convenção sobre os
Direitos da Criança, tem aos poucos se revertido em práticas de fomento da criança como sujeito
de direitos, ocasionando mudanças nas concepções acerca da infância.

5.2 Como se estrutura o discurso das professoras sobre o projeto Cribiás

A análise do material discursivo produzido nas entrevistas com as professoras Cribiás


foi realizada com o auxílio do software Iramuteq (versão 0.7 alpha 2), e o material resultou num
número total de 1.399 segmentos de texto, compostos por 48.408 ocorrências, utilizando o
tamanho padrão de 40 palavras para a delimitação dos segmentos de texto. O número total de
formas foi de 4.232 e o número médio de formas por segmento foi de 34,6. O percentual de
hápax (palavras que aparecem apenas uma vez no corpus textual) foi de 4,20% das ocorrências,
2.031 formas, o que está dentro do esperado para o material.
A partir da identificação das palavras mais frequentes no corpus textual, como mostra a
nuvem de palavras gerada pelo Iramuteq (figura 71), podemos dizer que o discurso das
professoras gira em torno de dois vocábulos principais: a gente (o Nós), enquanto o grupo de
professoras Cribiás, e a criança (o Outro), a quem se destina à prática docente da educação
infantil (o objeto). A partir da experiência de formação, a prática docente passa a ser baseada
no diálogo, na produção de narrativas coletivas, como é exemplificado pelo vocábulo falar, na
proposta de ouvir e “dar voz às crianças”.
Neste tipo de representação gráfica, o tamanho e a posição das palavras estão de acordo
com a frequência dos vocábulos no material discursivo, assim, as palavras mais frequentes estão
posicionadas no centro da nuvem, em destaque, como vemos na figura abaixo. A frequência é
apenas uma das características dos elementos centrais da representação (ABRIC, 1994), sendo
necessário uma investigação mais aprofundada do papel que esses elementos desempenham na
dinâmica da representação.

Figura 71 - nuvem de palavras


204

Fonte: o autor, a partir do IRAMUTEQ.

O tratamento do material das entrevistas com o Método Reinert resultou no agrupamento


do corpus textual em cinco classes principais, por meio da operação de uma Classificação
Hierárquica Descendente (CHD). As classes se dividem em dois blocos principais, um bloco
composto pelas classes 1, 2 e 5, que denominamos “Educação Infantil e formação”, e outro das
classes 3 e 4, o qual chamaremos de “Cidadania e pertencimento”. A distribuição do discurso
nas classes é o seguinte: a Classe 1 concentra 27% do discurso das participantes, enquanto a
classe 2 agrupa 24,2%, essas duas classes formam um bloco com a classe 5, que possui 12, 6%
do material discursivo. Esse bloco se opõe às classes 3, com 23,9% das unidades de contexto,
relacionada à classe 4, que aglutina 12,2% do material, como mostra o gráfico 1.
Kalampalikis (2003) afirma que os resultados obtidos pelo emprego do método Alceste
(ou método Reinert) constituem mundos lexicais, por meio do agrupamento dos vocábulos a
partir do léxico. É possível observar a formação de nódulos de significado que indicam a
presença de possíveis elementos de representação para o grupo pesquisado. Para a interpretação
desses mundos lexicais, o pesquisador deve se remeter ao contexto e história do grupo, na
tentativa de identificar a origem cultural desses elementos simbólicos, bem como os
fundamentos teóricos da pesquisa, para a construção de uma hipótese explicativa do fenômeno
representacional.

Gráfico 1. Classes geradas pela CHD


205

Educação Infantil e formação Cidadania e pertencimento

Fonte: o autor, a partir do IRAMUTEQ.

Com base nos gráficos gerados pelo Iramuteq, a partir do material das entrevistas em
articulação com a fundamentação teórica, da Teoria das Representações Sociais e dos Estudos
Sociais da Infância, podemos tecer algumas considerações preliminares acerca do processo de
construção da cidadania na relação dialógica que se dá entre adultos e crianças, no âmbito da
educação infantil, a partir dos elementos identificados principalmente nas classes 3 e 4, além
dos possíveis impactos da experiência de formação vivenciada pelas participantes do projeto
Cribiás, crianças sabidas, principal elemento presente na classe 1.
Ao nos debruçarmos sobre as palavras que compõem as classes, aliadas aos perfis dos
sujeitos e as frases típicas, podemos esboçar algumas interpretações iniciais. A divisão das
classes em dois blocos principais mostra que, na totalidade do discurso, existem temas que se
aproximam e outros que se afastam. O bloco “Educação Infantil e formação” reúne o discurso
acerca da experiência profissional na Rede Municipal, o ingresso por meio de concurso, a
importância das responsáveis pelo projeto de formação na adesão ao projeto Cribiás (elementos
da classe 5), o movimento de mudança de pensamento e o espaço de diálogo estabelecido pelo
projeto (classe 1), cuja metodologia inicial foi a roda de conversa, e a tentativa de
institucionalização das novas práticas enquanto parte do projeto político-pedagógico da
unidade, encabeçado pela gestão (classe 2).
206

No bloco denominado “Cidadania e pertencimento”, as participantes se referem à


cidadania enquanto conjunto de direitos na classe 3, o respeito à autonomia e a liberdade fazem
parte dessa dimensão dos direitos, tão necessários para a vida das crianças. O incentivo à
autonomia foi relatado pelas professoras como parte do trabalho da Educação Infantil, sendo o
voto e o direito de escolha uma forma de exercitar essa autonomia. Na classe 4 aparecem
elementos relacionados ao pertencimento à comunidade, aquilo que é identificado como um
dos principais eixos do projeto Cribiás, o resgate da identidade local, na expressão da
“cuiabania”, expressão cunhada pelo poeta Silva Freire. O pertencimento é um elemento que
objetiva, torna concreta a ação docente, no sentido de que ele reforça o lugar da criança
enquanto membro da sociedade e, mais especificamente, da comunidade local.
A distribuição dos principais vocábulos das classes gerado pela Análise Fatorial de
Correspondência - AFC (gráfico 2) mostra a presença de dois fatores principais que estruturam
as classes, que juntos representam cerca de 58% da variância explicada. Há uma aglutinação
dos elementos das classes 1 e 2, próximos ao centro, e no fator 1 há uma predominância do
conteúdo acerca da Educação Infantil na classe 5 (de um lado), palavra que mais se destaca no
quadrante inferior esquerdo, e as classes 3 e 4 do outro lado, marcam o fator 2. No outro extremo
do plano fatorial, quadrante superior direito, encontram-se os elementos da classe 4, dentro os
quais podemos ver em destaque a palavra “direito”, que reflete o trabalho com a criança como
forma de respeito aos seus direitos, em especial o direito à educação, e no incentivo à autonomia
como forma de garantir o exercício da cidadania, como veremos adiante. No quadrante inferior
direito, vemos as palavras que se referem à classe 3, caracterizada pelo discurso sobre
pertencimento.

Gráfico 2. Distribuição dos principais vocábulos no plano fatorial


207

Fonte: o autor, a partir do IRAMUTEQ.

O bloco sobre Educação Infantil e formação, que se posiciona à esquerda no plano,


atravessado pelo primeiro fator, nos dá indícios da possível articulação entre a experiência
profissional e a vivência no processo de formação, que se constrói a partir do diálogo
estabelecido dentro do grupo, entre as professoras, com os alunos e com a Secretaria de
Educação. No discurso das professoras, o trabalho na educação infantil, e no coletivo Cribiás
aparecem como projeto de educação formal, no qual existe uma tentativa de institucionalização
dos princípios de participação, por meio da construção dos projetos político-pedagógicos que
envolvam as narrativas coletivas.
[...] Viver experiências é uma das grandes fontes de motivação para participar de um
coletivo, e isso pode dar subsídios para mudanças na visão social, política e cultural.
A consciência de algo vai depender do tipo de ação coletiva e do grupo que a compõe;
não é um processo automático (GOHN, 2022, p. 185).

A experiência no coletivo Cribiás é o que permitiria a ressignificação das práticas


docentes e a constituição de uma identidade coletiva pelas professoras, com foco na luta pelo
reconhecimento da educação infantil enquanto ambiente de aprendizagem, não apenas de
assistencialismo, e da importância das professoras enquanto protagonistas desse processo. O
reconhecimento da educação infantil viria acompanhado do reconhecimento profissional,
considerando o trabalho que as professoras vêm realizando na proposta pedagógica da Rede
Municipal de Cuiabá, baseado na noção de espaço narrativo (NIENOW; LORENSINI, 2017).
208

No plano fatorial, encontramos uma oposição no segundo fator entre as classes 3


(23,9%) e 4 (12,2%) no eixo horizontal, ainda que estas classes formem um bloco, que reúne
as falas sobre direitos e cidadania, que se opõe ao bloco composto pelas classes 1, 2 e 5, as
quais somam 63,8% do corpus. Essa distância entre as classes geradas pela CHD nos dá pistas
dos consensos e dissensos presentes no discurso das participantes da pesquisa, e da oposição
que se estabelece entre direitos e participação, na antinomia entre os termos local e global
(TEIXEIRA, 2002).
Uma das questões da nossa pesquisa dizia respeito à experiência de participação e
formação dos sujeitos para a atuação em projetos de educação ou formação cidadã, que seria
capaz de promover mudanças de pensamento, na forma como os sujeitos representam suas
práticas e o significado que atribuem à cidadania da criança. No contexto de formação
continuada do projeto Cribiás, inicialmente proposto como um projeto de extensão
universitária, as práticas das professoras passaram a ser legitimadas pela ação em parceria com
a universidade, por meio da discussão com especialistas e do conhecimento científico produzido
sobre o desenvolvimento e a aprendizagem da criança, fundamentado na Psicologia do
Desenvolvimento e na Pedagogia em Participação.
Para Gohn (2022), diferente dos movimentos sociais, o que agrega os membros de um
coletivo é a defesa de uma causa, no caso das professoras Cribiás, a apropriação do
conhecimento científico e a construção de práticas comuns aos membros do coletivo, foram
responsáveis por ampliar a sua atuação na educação infantil, para além do âmbito escolar, em
manifestações culturais e políticas, reforçando uma identidade coletiva, no sentido de que
formam um conjunto de práticas que são compartilhadas e referenciadas como um aspecto
identitário.
São essas novas práticas que permitem às professoras se reconhecerem enquanto um
grupo de profissionais que promovem e incentivam a participação e a autonomia infantil, a
partir da construção de um projeto representacional, na acepção de Bauer e Gaskell (1999),
aspecto que consideramos crucial para a mudança das representações sociais sobre a infância e
o potencial da criança enquanto cidadão.
[...] a transformação das representações sociais sugere a existência de sub-grupos,
cujos discursos possuem o potencial gerador de novas representações sociais. Grupos
com códigos próprios que compartilham novos significados a respeito da realidade,
tensionando o campo representacional (ANDRADE, 2014, p. 150).

Como mostra a disposição das classes no gráfico 3, as classes 3 e 4, que se referem às


diferentes dimensões do processo de formação cidadã, estão localizadas à direita no fator 1.
Esse processo aparenta ocorrer em duas dimensões, devido à presença de falas que, embora não
209

sejam contraditórias, também não convergem. Essas classes são representadas por sujeitos que
atuam em níveis distintos, por exemplo, S3 é uma professora que fala da cidadania em nível
local, que para ela consiste no reconhecimento da criança enquanto membro de uma
comunidade, e na constituição do sentimento de pertencimento, a partir da interação com os
demais membros da comunidade; e S4 afirma a importância da dimensão legal, da criança
enquanto sujeito de direitos, que devem ser respeitados pela escola, como forma de resguardar
a criança da violência, nos pressupostos da proteção integral, conforme preconiza o Estatuto da
Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990).

Gráfico 3. Disposição das classes no plano fatorial

Fonte: o autor, a partir do IRAMUTEQ.

As práticas docentes relatadas pelas professoras quando se referem a essas duas


dimensões não são as mesmas, o que sugere a existência de duas lógicas distintas no discurso
das professoras a respeito da cidadania, uma normativa, composta pelo conjunto de direitos
expressos em documentos como a LDB e o ECA, que se aproxima da concepção clássica de
cidadania social, no reconhecimento dos direitos da população e do estatuto de cidadania,
inclusive de crianças e adolescentes; e outra funcional ou operacional, que se concretiza no
cotidiano, nas comunicações e interações com os outros, baseada no pertencimento e na
identidade social, aproximando-se da concepção de cidadania intercultural (CORTINA, 1997).
210

No discurso das professoras, os vocábulos utilizados para falar dos direitos refletem um
caráter abstrato, universal, eles são identificados como um horizonte, um ideal a ser alcançado;
enquanto o pertencimento se refere à dimensão concreta, que revela o exercício de um olhar
particular sobre o contexto e a atuação coletiva, na própria comunidade, em relação com os
Outros significativos.

5.3 O que nos dizem as professoras Cribiás

A classe 1 e as frases típicas geradas pelo Iramuteq, a partir dos segmentos de texto com
o maior qui², nos permitem identificar falas das professoras a respeito da experiência de
formação vivenciada no âmbito do projeto Cribiás, e as mudanças na prática profissional
docente, a partir do diálogo entre os profissionais. Antes da criação do projeto, a parceria entre
a Universidade e a Rede Municipal de Educação consistia na realização de atividades de estágio
dos acadêmicos do curso de Psicologia nas unidades de Educação Infantil. O relato das
professoras sobre esse período é de que não havia continuidade das atividades, ou seja, com o
término do semestre e a saída dos estagiários, as atividades lúdicas e de escuta das crianças
eram interrompidas.
Uma das professoras responsáveis pela construção do projeto relata que o intuito inicial
do projeto de extensão era construir um processo de formação que permitisse às professoras
levar as demandas da unidade para a discussão com o grupo e elaborar projetos para a sua
resolução, como mostram as falas dos sujeitos 2 e 7 (as palavras em negrito são aquelas
identificadas pelo software na composição das classes).
[...] e aí nós começamos com alguns projetos e aí já não eram mais os estagiários de
psicologia o desafio era que as coordenadoras dessas unidades que
estavam participando dos estudos mensais conseguissem construir alguns projetos
de escuta das crianças e foi aí que começou a ação (S.2).

[...] porém os profissionais da unidade pouco estabeleciam diálogo e


ficava mesmo no estágio, o estágio acabava, acabava a ação e era muita brincadeira
eram muitas histórias que estavam presentes na escuta das crianças (S.7).

É importante salientar que esse processo de formação envolvia o estudo coletivo e a


construção de projetos de ensino específicos para a demanda de cada unidade, com base na
produção de narrativas coletivas e na perspectiva de que teoria e prática são indissociáveis. Esse
processo de formação no projeto Cribiás, crianças sabidas foi descrito por Andrade e Costa
(2020) e Andrade e Silva (2021), no contexto do Grupo de Pesquisa em Psicologia da Infância
211

(GPPIN). As autoras falam sobre a formação como um ambiente de pensamento, no qual é


possível ressignificar a ação docente e a identidade dos membros.
O diálogo se estabelece como diretiva de trabalho não apenas entre as professoras, mas
também com as crianças, que passam a ser ouvidas e valorizadas na construção das ações
educativas, como na elaboração do plano de aula. Mesmo no período da pandemia, quando as
atividades passaram a ocorrer de forma remota, as professoras afirmam que continuaram a
fomentar o protagonismo das crianças, tendo como referência a premissa da “Educação Infantil
como espaço narrativo”, como mostram os trechos abaixo.
[...] e se esse grupo de adultos vamos dizer assim não funcionar o da criança também
não vai funcionar porque ela se espelha através de nós das nossas ações é isso que
a gente tem que entender enquanto profissionais (S.1).

[...] mesmo nessa dificuldade desse distanciamento quando


a gente estabelece algum diálogo com a criança ela te dá um retorno e
a partir daquele retorno a gente consegue estabelecer alguns planejamentos que
valorizam a fala da criança (S.2).

[...] então eu acredito que com o projeto cribiás com o processo formativo
do cribiás nesse processo de escutar as crianças o ganho que eu tive na
minha ação pedagógica é essa valorização mesmo do pensamento da criança (S.7).

Nesse sentido, podemos afirmar que as mudanças de práticas e ações pedagógicas


ocorreram a partir da vivência coletiva das professoras no processo de formação, que
ultrapassou os limites do projeto de extensão universitária, na fundação do coletivo Cribiás em
2016, ilustrando o engajamento e mobilização do grupo em prol de uma causa, nesse caso, o
reconhecimento da criança enquanto sujeito de direitos e da Educação Infantil enquanto etapa
fundamental da escolarização.
O coletivo Cribiás defende ações educativas emancipatórias, que abram espaço para
a autoria de adultos e crianças, demostrando o potencial de se trabalhar com o
currículo narrativo na perspectiva de uma Educação Infantil como
Espaço Narrativo, um espaço aberto para o imprevisível, que permite muitas
possibilidades de movimento e uso das múltiplas linguagens: gráfica, gestual,
plástica, cinestésica, visual, musical, corporal, poética, científica, ou seja, os diversos
modos do ser humano representar, comunicar e expressar o pensamento (COSTA;
ANDRADE, 2021, p. 115).

Essa concepção da educação infantil como espaço de aprendizagem vai além da


perspectiva assistencialista que historicamente caracterizou as creches, e implica o
reconhecimento do papel próprio das professoras, responsáveis pela realização de um trabalho
que promove o desenvolvimento das crianças, por meio das práticas narrativas, da escuta e da
autoria, como mostra o relato de uma das professoras sobre a origem do “Cribiás, crianças
sabidas”.
212

[...] nós fomos desafiados a fazer uma narrativa, falando um pouco da educação
infantil de Cuiabá. E aí saiu, os pássaros que procuravam um ninho e que antes eles
eram vistos só com uma capacidade de cuidar, mas que agora a gente tava
estabelecendo novas relações de estudos e diálogos, que a gente percebia que esses
pássaros tinham que ter asas, então a gente tava começando a dar asas para os
pássaros, que na verdade eram as crianças e aí uma brincadeira de crianças, sabiás,
porque a gente tem muitos sabiás aqui, ficou Cribiás, aquele título sabia que o sabiá
sabia assobiar, sabia que as crianças sabem pensar? E aí nessa brincadeira com as
palavras nasceu o Cribiás (S9).

A classe 2 se refere a um movimento que se inicia com as mudanças causadas pelo


ingresso das professoras na equipe gestora, ou pela troca de gestores. As professoras atribuem
um papel fundamental à gestão como parceira do processo de transformação da Educação
Infantil, podendo atuar a favor ou contra esse movimento. Segundo as professoras, quando estas
passam a atuar como gestoras das unidades, elas reconhecem a necessidade da mudança na
forma de trabalhar com as crianças, propondo a adesão às novas práticas, que envolvem a escuta
das crianças, a observação da sala de aula, a participação infantil e a construção de narrativas a
nível institucional.
Esse movimento também envolve a reelaboração do Projeto Político Pedagógico (PPP)
da escola ou creche, como forma de garantir a continuidade das ações desenvolvidas. Dessa
forma, as práticas são institucionalizadas, e os novos profissionais que passem a integrar a
equipe da unidade, já deverão atuar com base nessas práticas. Podemos observar então o
exercício da influência social e a inovação (MOSCOVICI, 2011) simultaneamente vinda de
baixo, do grupo de professoras, até então minoria na rede municipal, e de cima, quando estas
se tornam líderes e gestoras das unidades educacionais.
[...] e aí os professores toparam já que a gente não tem nada vamos partir disso e aí
eles toparam e aí em 2016 houve uma reelaboração
do projeto político pedagógico da escola aí sim (S.8).

[...] aí nessa escola em específico eu consegui juntamente com


a equipe a gente conseguiu firmar alguns valores
o projeto político pedagógico então alguns conceitos a gente deixou marcados no
sentido de olha não tem como fugir (S.9).

As professoras relataram nas entrevistas que existem profissionais que desconhecem ou


não reconhecem a importância dessas novas práticas pedagógicas na educação infantil, devido
à formação baseada numa pedagogia “tradicional”, mas que acabam aderindo ao grupo após
perceberem os resultados gerados pelas mudanças. O uso da expressão a gente, locução
pronominal que equivale à primeira pessoa do plural (“Nós”), fala da construção da identidade
do coletivo de professoras. Esse “Nós” passa a delimitar um grupo que se reconhece em
oposição aos Outros (eles), quando se referem às profissionais que perpetuam práticas
213

pedagógicas tradicionais, que se inserem numa concepção da criança enquanto uma tábula rasa
(SARMENTO, 2007), que possui um papel passivo na transmissão do conhecimento.
A classe 5 diz respeito ao percurso profissional das professoras, desde a formação em
Pedagogia ou no Magistério até o ingresso na Rede Municipal de Cuiabá e na Educação Infantil.
Muitas tiveram a oportunidade de cursar a graduação em Pedagogia quando já atuavam na rede
municipal, como parte das ações da Secretaria Municipal de Educação para a valorização da
educação infantil, na perspectiva da Escola Cuiabana (MACHADO; SILVA, 2019).
No entanto, na Rede Municipal de Cuiabá, a denominação atribuída aos profissionais
que atuam nesse nível de ensino é Técnico em Desenvolvimento Infantil (TDI), o que implica
segundo o relato das professoras uma desvalorização do trabalho docente, o pagamento de
menores salários e condições de trabalho inferiores aos profissionais que atuam nos outros
níveis da Educação na Rede Municipal.
[...] eu nem sabia o que era educação infantil pra te falar a verdade mas fiz e passei
fui muito bem colocada no concurso e assumi uma turminha de 3 anos com a cara e
com a coragem (S.2).

[...] eu sou melhor porque eu sou do fundamental ela é menor porque ela está
na educação infantil e não é bem assim às vezes o pedagogo ele tem
mais formação do que quem está no sexto ano (S.6).

As professoras que participaram da pesquisa já atuaram ou atuam na gestão das unidades


escolares, sendo responsáveis pela seleção de novos profissionais e a adesão das unidades à
parceria com a UFMT. Nesse contexto, elas relatam que mobilizam os demais profissionais a
participarem das atividades de formação, por meio de convite e da divulgação das ações em
eventos e produção de materiais como livros e cartilhas.
O percurso dessas profissionais também envolve a defesa da educação infantil enquanto
etapa essencial do processo de escolarização, quando se referem à proteção dos direitos da
criança e a construção da autonomia (classe 4). Paralelo ao reconhecimento da importância da
educação infantil, ocorre a defesa do profissional que atua nesse nível de ensino, pois ele seria
o responsável por mediar o processo de aprendizagem e socialização das crianças. Pensamos
que essa defesa ocorre no sentido de que ambos, professora e criança, podem se beneficiar de
melhores condições de trabalho e de infraestrutura (MACHADO; SILVA, 2019).
É a partir do reconhecimento da importância do Outro (Alter), no processo em que se
constrói a relação com o objeto (o ensino e a aprendizagem), que se reafirma a identidade do
Eu (MARKOVÁ, 2017). A atuação profissional docente envolve a constituição da confiança
interpessoal e da confiança epistêmica, pois as professoras identificam o potencial da criança
214

enquanto ator social e têm sua competência para a condução do processo de desenvolvimento
reconhecidas socialmente, pelas famílias e demais membros da comunidade.
As frases típicas da classe 3 mostram o processo de formação que ocorre em nível local,
no reforço do pertencimento das crianças e professores à comunidade onde habitam, a partir
das relações intergeracionais. Esse pertencimento é representado pela figura da pedra canga,
minério avermelhado, característico do município de Cuiabá, utilizado em construções e na
produção de artesanato (COSTA; ANDRADE, 2021). Uma das professoras (S3) fala do uso
dessa pedra como ferramenta para a construção de narrativas acerca do lugar das crianças na
comunidade do Distrito do Sucuri, localizado na zona rural de Cuiabá, às margens do rio
homônimo.
Ao falar do pertencimento, S3 utiliza como referência a sua própria participação
enquanto membro da comunidade, atuando não apenas nas turmas do CMEI, mas nas
festividades e nas relações comunitárias.
[...] é mais fácil de você fazer mais fácil de você falar que aquela pedra que eu sou
daqui do Sucuri saber que aquela pedra na minha comunidade as casas que a gente
está em cima (S.3)

[...] quando eu fui fazer uma formação com a professora daniela ela trouxe um rapaz
que estava fazendo doutorado ele falava sobre essa cidadania esse pertencimento e
aí falando sobre a pedra canga que ela é nossa daqui ela pertence a nós (S.3).

Para essa professora, falar em cidadania, mais do que falar em direitos e deveres,
significa falar sobre o pertencimento à comunidade, construção de um grupo de referência. É
na relação com os membros da comunidade, no resgate da memória, que a criança conhece a
história do grupo e aprende os valores comuns, podendo assim fazer suas próprias escolhas.
Ressaltamos que toda representação compreende o sistema de valores, de crenças avaliativas,
que sinalizam aquilo que é socialmente desejável na relação com o objeto e com os demais
grupos (JODELET, 2021). Nesse caso, a aprendizagem da cidadania ocorre em nível local,
concreto, no que diz respeito à participação da criança na vida comunitária e nas decisões
coletivas.
[...] eu falo que o cidadão é o pertencimento eu sou um cidadão de direitos e deveres
mas eu pertença a algo seja uma comunidade seja a sua religião seja algo mas que
ele pertença a algo esse pertencimento ele ter uma referência (S.3).

[...] então assim esse pertencimento dentro da comunidade de conhecer e o que


eu falo assim porque eu faço assim com as crianças (S.3).

A narrativa construída a partir da pedra canga, atribui materialidade ao sentimento de


pertencimento à comunidade, pois, assim como a pedra (figura 72), os sujeitos também são da
região de Cuiabá e fazem parte do espaço local. À professora, cabe conhecer o contexto familiar
215

da criança e a sua inserção na comunidade, de forma a construir uma relação de proximidade


com seus alunos. Ao conhecer seus alunos, ela passa a compreender melhor o processo de
aprendizagem de cada um, respeitando a individualidade e singularidade, tornando-se ela
própria uma referência de atuação na comunidade.

Figura 72. Amontoado de pedra canga

Fonte: Leite (2011).

Em contraste com o que é dito na classe 3, a classe 4 se refere à cidadania enquanto um


conjunto de direitos e deveres. Ao professor, caberia respeitar os direitos da criança e auxiliar
na construção de um ambiente educativo que permita à criança desenvolver competências como
autonomia, respeito às diferenças e responsabilidade pelas próprias escolhas.
[...] ao pensar na educação das crianças, o contexto educacional representa um meio
social que contribui para o seu processo de humanização, em que toda a ação
compartilhada entre adultos e crianças e entre as próprias crianças, possibilita que os
envolvidos no processo educativo aprendam, desenvolvam-se, e tornem-se cada vez
mais ativos e autônomos em seus processos de formação humana (COSTA;
ANDRADE, 2022, p. 119).

Um dos maiores exemplos de exercício dessas competências seria a escolha democrática


por meio do voto, quando as professoras organizam uma eleição para determinar a aquisição de
um material ou a construção de uma atividade, como mostram as frases típicas.
[...] o que que vocês acham crianças a gente tem uma verba dá pra comprar um
pula-pula e dá pra comprar um outro brinquedo um escorregador então assim a
gente dá essa autonomia e respeita o direito da criança de escolha falando assim
vamos votar (S.4).

[...] mas eu penso que essa questão da cidadania parte por aí


o respeito aos direitos da criança saber que ela é um sujeito de direito e que nós
enquanto adulto nós temos que proporcionar experiências vivências (S.9).

Nesse sentido, a professora proporciona às crianças a vivência da cidadania nos moldes


democráticos, por meio do respeito às liberdades individuais no contexto da educação infantil,
como é exemplificado nas falas das professoras sobre o direito à alimentação na escola, na
216

quantidade que a criança desejar, a possibilidade de dormir ou não no horário designado pela
escola, embora esse horário seja comum a todas as turmas, e a participação na escolha das
brincadeiras.
[...] como que é a forma que a gente respeita esse direito dela da alimentação do
período também como do sono ela não tem, tem o horário do sono todas
as crianças são obrigadas a dormir naquele horário (S.7).

[...] tudo tem que ter uma estratégia uma carta na manga na alimentação vai ter que
ficar uma ali respeitar o direito dela a individualidade dela ela come mais lento, ela
quer repetir (S.9).

A autonomia é percebida como principal competência a ser desenvolvida pela criança


na educação infantil, por meio do desenvolvimento da capacidade de argumentar, de fazer
escolhas e se responsabilizar por elas, algo que será útil ao longo da vida, não apenas na
escolarização, e permitirá a constituição de um cidadão conceituado, segundo a fala de uma das
professoras.
O respeito aos direitos das crianças, em especial o direito à participação, requer um
esforço maior por parte das professoras e da equipe da unidade, como mostra a fala da
professora sobre a necessidade de uma estratégia ou “carta na manga”, diferente do ensino
tradicional que ocorreria de forma padronizada, mesmo no que diz respeito à rotina escolar,
como os horários de alimentação e descanso.
Criar um espaço de participação e exercício da cidadania é um trabalho conjunto, que
envolve uma mudança epistêmica, no reconhecimento da capacidade da criança de participar
das decisões que a afetam, como a escolha do mobiliário, do cardápio das refeições, das
atividades e do conteúdo a ser desenvolvido. Isso reforça as premissas da Sociologia da Infância
de que a participação infantil é um processo que consiste na negociação entre crianças e adultos
(TOMÁS, 2007), numa horizontalização da relação intergeracional.

5.3 A cidadania infantil como metáfora

As metáforas evocadas durantes as entrevistas, por meio da técnica de “indução de


metáforas” (ANDRADE, 2006; LIMA; CAMPOS, 2020), foram analisadas com base na Teoria
das Representações Sociais (TRS) e na Análise de Conteúdo (BARDIN, 2006). Para Moscovici
(2012, p.60), toda representação possui uma estrutura dupla de figura/significação, “[...]
entendendo com isso que a representação transmite a qualquer figura um sentido e a qualquer
sentido, uma figura” (figura 73), ou seja, todo objeto representado é reconstituído no sistema
217

cognitivo dos indivíduos enquanto figura ou símbolo, ao mesmo tempo que a ele são atribuídos
significados ao longo da história do grupo e da experiência subjetiva.

Figura 73 - A dupla estrutura da representação

Representação Figura
Significação

Fonte: Moscovici (2012).

O uso de metáforas é um recurso investigativo que permite o acesso à forma como os


sujeitos representam, por meio da construção de uma narrativa sobre o objeto, que apresenta
elementos que fazem parte do núcleo ou esquema figurativo (MOSCOVICI, 2012), uma espécie
de protótipo imagético utilizado para a leitura do objeto na realidade.
Mazzotti (2016, p. 105-106) afirma que “o figurativo não é um procedimento aquém ou
além do humano, algo misterioso, ao contrário, é próprio da comunicação, da negociação das
diferenças que permitem a vida em comum”. O uso de figuras de linguagem (ou figuras de
pensamento) é o que auxilia a estruturação do discurso sobre os objetos no senso comum. Para
o autor, são os valores que determinam a adesão do grupo à determinada narrativa.
[...] a análise das metáforas que compõem uma representação social não pode
ser nem somente do tipo figurativo, nem somente do tipo semântico, ou como se ela
fosse “pura figura de linguagem”: aqui, as metáforas têm de ser tratadas como uma
mediação entre o objeto e a ação do grupo aferente ao objeto (CAMPOS;
LEMGRUBER; CAMPOS, 2020, p. 171, grifo dos autores).

As metáforas produzidas pelas professoras Cribiás foram categorizadas a partir dos


elementos comuns com base nas imagens utilizadas, no tipo de objeto evocado, e nas analogias
produzidas para justificar o discurso acerca da cidadania infantil. Essas metáforas se relacionam
com a práticas e a atuação profissional do grupo, seus valores e crenças sobre a criança e a
infância. O quadro 6 apresenta o conteúdo das imagens evocadas pelas participantes (o quadro
completo está no apêndice II), bem como parte das falas que justificam a escolha desses objetos.
As metáforas evocadas pelas professoras foram agrupadas em duas categorias
principais: a cidadania enquanto possibilidade; e a cidadania enquanto instrumento. Essas
categorias apresentam duas formas de representar a cidadania que nos parecem
complementares: enquanto possível produto do aprendizado escolar e enquanto um processo de
busca por melhores condições de vida.
218

Utilizamos como referência para essa classificação, a concepção de cidadania enquanto


prática relacional, proposta por Lawy e Biesta (2006, p. 47), a qual se opõe à noção clássica de
cidadania. Para os autores, “[...] a cidadania enquanto prática envolve as condições de vida das
pessoas jovens, e os processos pelos quais eles aprendem o(s) valor(es) da cidadania
democrática”. Nesse sentido, o aprendizado da cidadania seria uma consequência da
participação em situações e experiências democráticas.

Quadro 6. Metáforas produzidas pelas professoras Cribiás.


Categoria Justificativas Imagens
A cidadania Eu acho que uma bolha de sabão, não porque ela vai Bolha de sabão (S1);
como um sair rápido, mas porque ela tem várias cores, várias janela (S1, S9); livro
possível nuances, várias possibilidades. (S6).
produto da
escolarização. [...] uma janela aberta, ou uma caixa, porque assim, a
criança ela tá sempre aberta pra receber, transmitir,
então dela pode sair, saem muitas coisas importantes, e
entra também, então assim, é uma via de mão dupla.
A cidadania Seriam asas pra que ela pudesse voar, lançar voos, seja Asas, pássaro (S2, S5);
enquanto na fala, seja na ocupação do espaço, na ocupação dos Bola (S4); martelo (S7);
instrumento/ seus direitos ao brincar, à saúde, então eu vejo essa lupa (S8).
processo para questão da cidadania quando eu consigo pensar,
alcançar imaginar, agir, ser ouvido.
objetivos.
[...] essa bola, se essa criança joga longe, é onde talvez
ela queira atingir no futuro, ela pode chegar em algum
lugar que ela deseja e ela vai jogar isso com muita força.

[...] mas é um instrumento (martelo) que faz o prego


ficar firme na parede ou na tábua, ou seja, é tudo ou
nada.

[...] talvez uma lupa, sabe uma lupa? Que ela


conseguisse ver de perto, ver de longe, conseguisse
ampliar os seus horizontes, o seu olhar.

A cidadania da criança não é um objeto de fácil definição, mesmo teoricamente, ela se


apresenta como um objeto polêmico, uma alternativa ao modelo canônico de cidadania social,
que caracteriza os membros de uma comunidade, um território ou nação a partir dos direitos e
responsabilidades compartilhados (CORTINA, 1997). Se pensarmos a cidadania como
resultado de um processo de aprendizagem ou de socialização, nos pressupostos legais da
Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) e da LDB de 1996 (BRASIL, 1996),
encontramos uma diversidade de elementos necessários para que esse produto se concretize.
A metáfora da bolha de sabão ilustra a vivência da cidadania da criança como algo frágil,
que pode se desfazer rapidamente, sendo necessário um esforço contínuo para fazer novas
bolhas. Podemos pensar que essa cidadania é evocada pela professora como resultado da
219

escolarização e do trabalho docente, num “trabalho de formiguinha”, como é relatado por S9.
Nesse sentido, a transformação da concepção da educação infantil enquanto espaço de
assistencialismo, para uma perspectiva mais ampla de espaço de aprendizagem da autonomia e
demais competências socioemocionais (MACHADO; SILVA, 2019), requer fôlego das
professoras.
[...] Então a gente tem esse trabalho de formiguinha com a família, com todo mundo
que julga nosso trabalho como babá, como tia, então a gente já trabalha desde cedo
assim nos grupos, porque eu estou atuando na coordenação da creche, então assim,
a gente abre os grupos, manda as atividades, começa a falar hoje é aula da professora
tal, já tem esse hábito de chamar as pessoas por professora, educadora, não chama
mais de tia (S9).

Essa cidadania que resulta de um trabalho contínuo de desenvolvimento da autonomia,


é de certa forma tutelada pelo adulto, visto como o responsável por criar as oportunidades para
a criança. As professoras relatam que fazem a “ponte” entre a criança, a família e a creche,
atuando como mediadoras no processo de desenvolvimento da criança. A educação infantil
seria então fundamental no aprendizado da cidadania, ao criar as bases para o processo de
escolha e tomada de decisão, características de um cidadão consciente (BRASIL, 2018).
A ênfase das professoras na infância como o período mais importante no
desenvolvimento da criança, tem por objetivo reforçar a importância do trabalho na educação
infantil, que acompanharia o reconhecimento dos direitos da criança. A metáfora utilizada pelas
professoras é a janela que, se fechada, necessitaria de um longo trabalho para reabrir. Essa
metáfora da janela é ilustrada pela tirinha do cartunista espanhol Eneko (figura 74), que mostra
uma professora abrindo uma janela a partir do quadro negro. As professoras Cribiás se
consideram responsáveis por manter a janela da criança aberta e impedir a violação dos direitos,
por meio de uma postura mais democrática (OLIVEIRA; REIS, 2013).
[...] essa janela tá sempre aberta pra ir e pra vir, chegar novos conhecimentos, mas
ela também transmitir, então assim, se a pessoa fechar a janelinha dessa criança, ela
vai ficar impedida de vivenciar, de experienciar muitas coisas que ela, assim, tem
esse direito, então essa janelinha dela tem que estar sempre aberta, então assim,
nunca deixar que essa janela seja fechada por alguém, por uma causa, por uma
injustiça (S9).

O protagonismo da criança (entendido como etapa final da participação) se apresenta


como um objetivo a longo prazo, pois as mudanças geradas pelo projeto Cribiás ainda estariam
no começo, como relatado pelas professoras que participam do projeto há mais de cinco anos.
Ouvir as crianças, naquilo que elas podem contribuir, seria o “primeiro passo” de um processo
de mudança de pensamento, mas a escuta precisa ter algum resultado, ter consequências reais.
Isso requer que o adulto esteja aberto, disposto a romper as barreiras entre a ação docente e o
220

conteúdo determinado pela política de educação, adaptando o ensino à realidade da cultura local
(COSTA; ANDRADE, 2021).

Figura 74. a metáfora da janela

Fonte: https://blogs.20minutos.es/eneko/2012/04/23/la-profesora/

Mazzotti (2002) se refere à metáfora do percurso como elemento central nas teorias
pedagógicas, uma forma de representar a escolarização, ou o processo educativo, que levaria a
criança de um estado de menor educação a um estado de “mais educado”. Essa metáfora
compreende duas posições distintas, uma que afirma a necessidade de um percurso pré-
determinado, que sinaliza as etapas e o resultado almejado, e uma outra posição segundo a qual
o percurso é indeterminado, e o resultado está condicionado às escolhas dos estudantes.
A metáfora percurso foi evocada espontaneamente por uma das professoras, como uma
espécie de jornada vivenciada pelas crianças na vida e na escola, na qual o professor pode atuar
como potencializador do processo de aprendizado da autonomia. Nesse contexto, a cidadania
pode ser concebida como um produto do percurso, que fornece as condições para a inserção do
indivíduo no meio social, como mostra a fala de S4, a qual evidencia a presença de elementos
de uma concepção de cidadania política (CORTINA, 1997), que caracterizaria os indivíduos
efetivamente inseridos na sociedade.
[...] é na Educação Infantil que nós podemos contribuir, enquanto profissionais, de
alguma forma, pra que esse cidadão seja um cidadão com uma formação de caráter,
de personalidade, onde ele tenha todas as condições emocionais, físicas,
psicossociais, pra que ele se torne um adulto, vamos dizer assim, bem-conceituado,
inserido no mercado de trabalho, e no meio social como um todo (S4).
221

Segundo as professoras, a proposta de trabalho com a construção de narrativas,


característica do projeto Cribiás, requer um olhar apurado e uma mudança de posição do
professor, na relação com os alunos. O professor torna-se um observador, um mediador das
interações das crianças, intervindo apenas quando necessário. Para S7, essa mudança de postura
constitui uma metodologia de ensino, ao mudar o foco para as crianças, na relação de
aprendizagem, valorizando a cultura de pares.
[...] então o professor Cribiás, ele é puro observador, porque a gente só intervém no
momento que a gente vê que há necessidade, e a gente vê que a criança vai
interagindo entre si, e aí a gente vê que daí já está uma metodologia de ensino
maravilhoso, porque a gente vê eles aprendendo entre si (S7).

O processo de ensino-aprendizagem na educação infantil não se limita ao aprendizado


de um currículo pré-determinado, cabendo ao professor criar oportunidades para o exercício da
imaginação e da criação, identificando o conteúdo didático na produção das crianças, em suas
diferentes linguagens. Essa flexibilidade seria uma das principais vantagens dessa etapa da
escolarização, ao permitir o exercício da autonomia, não apenas da criança, mas do profissional
em sua ação docente, como mostra este trecho da BNCC “parte do trabalho do educador é
refletir, selecionar, organizar, planejar, mediar e monitorar o conjunto das práticas e interações,
garantindo a pluralidade de situações que promovam o desenvolvimento pleno das crianças”
(BRASIL, 2018, p. 39).
Na relação intergeracional, a criança constrói suas próprias hipóteses, e é capaz de
perceber coisas que o adulto não vê. A educação infantil seria o espaço privilegiado para o
aprendizado das competências que compõem a cidadania, no entanto, os momentos de
participação são restritos. É necessário que a mudança de paradigma apontada por Soares
(2005), da proteção para a participação, se efetue, que a vivência da participação seja ampliada
para os demais espaços sociais, como dentro da família, pois as crianças formadas num
ambiente participativo, tendem a exigir mais espaços ao longo da escolarização (TRILLA;
NOVELLA, 2001).
As professoras percebem as possibilidades de participação, em seus diferentes espaços
de atuação, na família, no trabalho ou na comunidade, porém, o fato de não terem tido uma
vivência durante a formação inicial poderia desacreditar as professoras da importância da
participação, como mostra a fala de S1.
[...] a gente foi tão podado por participar, que hoje a gente não acha que a nossa
opinião faça algum reflexo, mas se ninguém disser, por exemplo, todo mundo quer o
verde, e se ninguém disser ah, mas o amarelo é tão bonito, a gente nem vai pensar no
amarelo. E talvez o amarelo ficaria melhor onde a gente quer pôr (S1).
222

É preciso que o profissional da educação adquira um repertório e tenha espaços de


participação, para poder dialogar com seus pares e criar oportunidades para a criança participar,
como mostra a fala de uma das professoras sobre a importância de ter participado do projeto
Cribiás, para a mudança na forma de conceber a sua atuação profissional. Essa mesma
professora se refere ao trabalho de formação como uma oportunidade de “deixar a criança
interior florir”, no sentido de que o projeto resgata a criatividade do docente, ao adotar uma
metodologia menos restritiva.
[...] Então assim, pra gente contagiar a criança, primeiro nós temos que sentir a
vivência conosco, nós é que temos que participar do Cribiás primeiro pra levar isso
pra criança (S4).

Essa fala da professora vai ao encontro do que Nienow e Lorensini (2017, p. 652)
verificaram na pesquisa sobre a proposta pedagógica da Rede Municipal de Educação de
Cuiabá. As autoras apontam que a proposta favorece o protagonismo dos profissionais da
educação, no trabalho docente e na construção do projeto político-pedagógico das unidades,
porém está limitado às questões estruturais, “[...] na medida em que a cultura institucional se
faz determinante, intensificando princípios homogeneizadores, circunscritos a uma realidade
pedagógica historicamente instituída”.
Para Sarmento (2005, p. 34),
[...] A participação dos alunos adquire, deste modo, um significado múltiplo: é
simultaneamente um dispositivo pedagógico, uma necessidade simbólica e um
processo político. Como dispositivo pedagógico, a participação dos alunos nas
decisões pertinentes relativas à realização do acto educativo corporiza a orientação
consagrada pela inspiração pragmática de formação cívica pela prática do
desempenho democrático em contexto escolar. A aquisição de comportamentos
cívicos não é questão de doutrinação, mas algo que se constrói no exercício dos
direitos e dos deveres de cidadania: aprende-se a democracia, praticando a
democracia.

A nossa hipótese teórica de que a cidadania está relacionada ao exercício da participação


e a titularidade de direitos nas sociedades democráticas, implica uma necessidade de ampliação
dos espaços de participação e a constituição de uma cultura democrática que favoreça o
protagonismo de adultos e crianças na construção de políticas públicas e projetos institucionais.
A representação da criança enquanto o futuro da sociedade, em oposição ao adulto pronto e
acabado (CHOMBART DE LAUWE, 1986) surge como uma justificativa para o investimento
na participação infantil.
[...] Como você pode ser protagonista se você nem decide, precisa fechar pra você,
como a gente tem as nossas leis hoje, pra que que adiantam as nossas leis? A gente
não cumpre, porque a gente não participou delas. Então eu acho que começa com a
criança, depois que a gente já está adulto, isso é possível, a gente faz, mas se a gente
começar com a criança, a gente vai ter muito mais reflexo na sociedade (S1).
223

A participante menciona durante a entrevista o movimento gerado pela formação no


projeto Cribiás, que resulta numa mudança de pensamento e na adesão a uma nova concepção
de educação. Esse movimento é coletivo, pois envolve as professoras e os demais profissionais
da educação. A gestão apresentaria um papel fundamental, pois é quem conduz o movimento,
quem lidera o grupo, que se constitui a medida em que a formação vai tomando “corpo”.
Aos gestores caberia o papel de incentivar as professoras, para que estas desenvolvam
uma cultura de participação, como mostra a fala de S8. Ela parte da premissa que a relação
hierarquizada inviabilizaria o diálogo, tanto entre os adultos, no caso do gestor e o professor,
quanto o diálogo intergeracional, entre o professor e a criança. Ao exercitar a escuta e a
participação entre a gestão das unidades e as professoras, estas estariam mais dispostas a
autorizarem a participação das crianças.
[...] à medida que você fala pra esse professor que ele pode falar, que ele pode
participar, é claro que ele vai entender, eu penso assim, sabe, é um exercício, um
exercício diário, de você se escutar e escutar o outro, participar e deixar que o outro
participe (S8).

Com a mudança de gestão na secretaria de educação, as professoras identificaram uma


restrição nas possibilidades de atuação, elas afirmam estarem “engessadas”, expressão usada
para representar a falta de autonomia docente, principalmente com a adoção de um material
padronizado, como acontece com o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) (BRASIL,
2017). Ao estabelecer uma política em nível nacional, os instrumentos padronizados são
percebidos pelas professoras como limitantes, restritivos.
No discurso das professoras, um dos obstáculos que surge para a viabilização da
participação infantil é a figura de um Outro generalizado, uma concepção ou tradição
assistencialista que desconhece e/ou não valoriza o potencial da criança e a especificidade do
papel do profissional de educação infantil, como mostra a fala de S3.
[...] Porque as pessoas hoje em dia, como a Educação Infantil hoje é olhada com um
olhar bonito, mas há um tempo atrás não era. Era só assistencialismo, era só pro
cuidar. E quando ele sai da creche que começa, porque a escola antigamente era com
6 anos, nessa faixa etária estava em casa, então as professoras parecem que ainda
não estão com isso na cabeça, são poucos (S3).

A imagem desse Outro representa uma concepção de Educação Infantil considerada


antiquada e uma postura docente cristalizada, baseada na ideia de que a educação de crianças
na creche se limita aos cuidados básicos. As professoras se referem à figura do “professor
ditador”, enquanto o detentor do conhecimento, e afirmam ter sido uma postura comum durante
a sua escolarização. A vivência democrática no coletivo Cribiás é identificada como um fator
224

de mudança de pensamento, que permitiu a adesão das professoras às práticas de fomento da


participação e do protagonismo infantil.
Apesar das conquistas sociais vivenciadas desde o final da década de 1980, o Brasil
ainda não possui uma cultura democrática. Caberia a escola oportunizar uma vivência
democrática, que demanda a abertura de um constante processo de diálogo e negociação.
Como se poderia aprender a democracia em alguns minutos por semana, enquanto o
restante do tempo obedeceria a uma outra lógica? Se a escola educa para a cidadania
pela prática, essa prática não pode ficar confinada a alguns momentos de regulação
[...] A democracia retarda as decisões, aumenta o número de etapas, amplia o círculo
de atores envolvidos e, por isso, torna o funcionamento menos eficaz (PERRENOUD,
2005, p. 37).

No relato das professoras, como mostra o trecho abaixo, a vivência da democracia


depende do professor, responsável por coordenar a sala de aula e o ambiente escolar. Se o
professor possui esse valor, da participação democrática, ele é capaz de priorizar esse tipo de
atitude com a criança. Entretanto, a formação universitária aligeirada, descontextualizada,
característica dos dias atuais, é incapaz de incentivar ou de fomentar a participação ou
envolvimento dos profissionais.
[...] E a criança, evidentemente, ela vai ter muito mais condições de aprender, de
assimilar, ela vai ter muito mais condições, muito mais autonomia, mais liberdade
pra agir, pra pensar, por quê? Porque o professor ele vai dar essas condições, ele vai
criar, ele vai estimular essas condições pra que essa criança desenvolva com muita
maturidade, com muita autonomia e sobretudo saudavelmente, vamos dizer assim, em
todos os sentidos (S4).

Já as metáforas que indicam uma concepção da cidadania enquanto instrumento são


utilizadas pelas professoras ao se referirem à cidadania como meio de acesso aos direitos e
melhores condições de vida. Essas metáforas também são usadas para reforçar a identidade
coletiva construída ao longo da formação docente no projeto Cribiás, na escolha das asas como
imagem que simboliza o voo em direção ao futuro.
Há uma oposição entre a cidadania enquanto instrumento que permite a atuação da
criança na comunidade, como forma de ampliar a percepção da criança sobre o espaço e o
sentimento de pertencimento à comunidade, como mostra a fala de S3, “[...] então eu acho que
essa cidadania é você estar na sua comunidade, você opinar sobre e, o que você falar, ter
repercussão”, ou como o instrumento que permite à criança adentrar no mundo adulto, ainda
que momentaneamente, como uma espécie de passaporte, que dá acesso à versões lúdicas dos
mecanismos democráticos.
Nesse contexto, cabe ao adulto criar as oportunidades de participação infantil, como
ilustra a fala de uma professora sobre as técnicas utilizadas para desenvolver a autonomia e o
225

direito de escolha. Ela relata o uso do voto direto para a escolha da compra de um brinquedo,
como forma de exercício da cidadania e de reconhecimento do estatuto de cidadão,
reproduzindo os rituais e as práticas democráticas, inclusive os requisitos legais, como a
necessidade de um documento com foto para acessar o local da votação.
[...] E esses direitos, a gente dá autonomia, aí por exemplo, ah, como você vai dar
autonomia pra criança sem dar preferência pra ela escolher? Ah, por exemplo, as
crianças maiores, ah, a gente quer pintar a sala, por exemplo, a gente não tem que
fazer a nossa vontade, a gente tem que respeitar a vontade da criança, de que forma
que a gente pode fazer isso? Ah, a gente pode fazer uma eleição, a gente já fez aqui
muito isso, eleição, aí como se fosse um conselho da criança, então, vamos fazer uma
votação? [...] então assim, a criança participou, a criança teve o direito dele de
cidadão, de votar, a gente já fez votação mesmo com urna, eu fiz a identidade deles,
assim, trabalhando a identidade, a autonomia, fizemos, mandei fazer, o menino criou
uma identidade igualzinha, colocamos o nome e colocamos a digital deles, eles se
sentiram tudo importante, eu falei não, pra votar tem que fazer a identidade, tem que
ter documento pra registrar [...] dentro duma brincadeira você trabalha todos os
campos de experiência, porque ali, ele teve o direito né respeitado de votar, de ter a
opinião dele, dar a opinião dele (S9).

A “voz” é o instrumento que concretiza a cidadania da criança, permitindo a ela


expressar seus desejos, suas vontades e sua autonomia, no entanto, a efetividade dessa voz está
condicionada à escuta do adulto. Assim, a cidadania da criança é representada como uma etapa
de um processo mais amplo que se desenrola ao longo da vida. Há aqui indícios da permanência
da imagem social da “infância psicológica” (SARMENTO, 2007), dividida em etapas, estágios
de desenvolvimento, que limitariam o exercício da cidadania, de acordo com as condições
sociais, econômicas e biológicas da criança.
Nessa perspectiva de desenvolvimento, somente ao alcançar a maioridade o indivíduo
teria seu estatuto de cidadão pleno, como mostra a fala de uma das professoras.
[...] essa construção de cidadania ele vai ao longo dos anos, são as etapas que a
criança passa, então no momento que a gente tem a fundamentação, baseada no
diagnóstico, da realidade de cada criança, ou da situação, a gente vai trabalhando
com elas, entendeu, todos os conceitos, os valores, e aí a gente vê que as crianças, a
gente, eles conseguem, enquanto estão conosco eles conseguem ser diferentes, aí cabe
também o desenrolar das ações pela, aí já vai pro Infantil 2, e assim por diante, mas
é uma sequência de ações (S7).

É possível perceber o papel que as professoras atribuem a sua atuação no


desenvolvimento da criança, pois elas seriam as responsáveis por estabelecerem os conceitos e
valores que serviriam de base para o desenvolvimento da cidadania. Valores como respeito à
diversidade, tolerância, comprometimento, responsabilidade, são relatados como parte do
processo de ensino-aprendizagem.
O desenvolvimento da criança aparece como meio de valorização da classe docente e
da Educação Infantil, principalmente na fala das professoras sobre as atividades no período da
pandemia, quando elas relatam as dificuldades da família para acompanhar as atividades
226

encaminhadas para serem realizadas no ambiente doméstico. Nesse momento, a família passa
a reconhecer a importância do trabalho das professoras, pois precisa lidar diretamente com as
crianças, em período integral.
A luta pela profissionalização docente e pelo reconhecimento da Educação Infantil é
uma luta histórica, considerando a trajetória desse nível de ensino, que se inicia numa
perspectiva estritamente assistencialista, até o início dos anos 1990, quando é firmada na
legislação enquanto um direito da criança (VIEIRA, 1999). A autora aponta que a valorização
social do profissional da Educação Infantil estaria relacionada à formação crescente e a
qualificação específica, voltada para a amplitude dos conhecimentos que integram as funções
do educar e cuidar.
No contexto da Rede Municipal de Educação de Cuiabá, as profissionais que atuam nas
creches recebem a denominação de Técnicas em Desenvolvimento Infantil (TDI) e há uma
distinção entre a carreira das técnicas e das professoras, apesar dos investimentos em formação
inicial e continuada. As participantes relatam a luta pela valorização da classe profissional das
TDIs, com a criação de um sindicato, e o diálogo com o poder público para a mudança da
nomenclatura das profissionais que atuam nas creches para professoras de educação infantil.
Considerando o caráter estável e dinâmico das formas de pensamento social
(MOSCOVICI, 2012) e os tipos de transformações possíveis que envolvem as representações
e as práticas sociais (ABRIC, 2003), podemos pensar que a representação do cuidado
assistencialista com a criança e as crenças na creche enquanto “depósito de crianças” da classe
trabalhadora não desapareceram do imaginário social, elas permanecem no sistema de
representações e nos elementos simbólicos que caracterizam a Educação Infantil, pelo menos
para uma parte da população, como mostra a fala de uma das professoras.
[...] então assim, a gente tá nessa luta aí pra ser reconhecida como tal, pras pessoas
valorizarem, e enxergar que a educação infantil é o pilar, é o pilar da educação, mas
que é uma luta árdua, mas que a gente tem visto, tem tido bastante resposta positiva
em relação ao respeito à nossa classe (S9).

Marková (2017, p. 153) afirma que, no pensamento dialógico, três elementos estão
interligados: liberdade, ética e reconhecimento social/intersubjetividade35. O reconhecimento
social nas relações dialógicas (que se estabelecem entre Ego e Alter) necessita que os sujeitos
se percebam como livres, e que suas ações sejam pautadas em uma ética compartilhada.
A ética da interdependência do Ego-Alter está inextricavelmente inter-relacionada
com a reciprocidade de reconhecer a liberdade uns dos outros. Significa que cada parte

35
Para a autora, intersubjetividade e reconhecimento social são entendidos como fenômenos mutuamente
interdependentes, sempre em tensão, mas não idênticos. Por essa razão, a autora opta pelo seu uso enquanto um
único elemento.
227

trata o Outro como um ser autônomo que pensa, toma decisões e age segundo sua
própria vontade – ou como veremos adiante – trata o outro como sendo
epistemicamente responsável [...] não se pode falar de reconhecimento social se
houver algum tipo de coerção, em vez de negociação.

Consideramos a luta das Técnicas em Desenvolvimento Infantil (TDI) e demais


profissionais que participam do coletivo Cribiás, crianças sabidas pela valorização e
transformação das representações sociais sobre a Educação Infantil, a partir da construção de
práticas específicas de escuta e participação da criança, enquanto parte de uma estratégia de
reconhecimento social. Nessa estratégia, a criança é o objeto de uma relação dialógica
assimétrica, na qual estão implicados o Eu coletivo, representado pelo grupo de professoras, e
o Outro imaginado, que englobaria a tradição, a cultura e o grupo de pessoas que não valorizam
a ação docente com crianças.
A assimetria estaria na divergência de objetivos entre o Eu e o Outro na relação com a
criança, pois à ação das professoras de valorização da educação infantil e da ação docente, se
opõe um conjunto de crenças assistencialistas sobre o papel social da Educação Infantil. Essas
crenças seriam compartilhadas por uma parcela da comunidade escolar, as famílias das crianças,
e inclusive por professoras “tradicionais”, que não tiveram acesso às práticas do coletivo
Cribiás.
A luta pelo reconhecimento da educação infantil e da classe profissional ocorreria
paralelamente ao movimento de mudança de pensamento das professoras Cribiás e do
reconhecimento da criança enquanto sujeito de direitos e ator social competente, nos
pressupostos teóricos da Psicologia Infantil e da Pedagogia em Participação, conforme relatado
por Andrade e Silva (2021) no estudo sobre a formação docente no projeto Cribiás, crianças
sabidas, que mostra as possibilidades das narrativas para o reforço do protagonismo de
professores e crianças no âmbito da educação infantil.
[...] Considerar a criança como ator social competente, como sujeito de direitos, requer
pensar em práticas pedagógicas, educativas, sociais, culturais e éticas condizentes
com tais conceções, o que implica combater visões pré-determinadas e universais de
criança e infância que se traduzem na estandardização das práticas educativas, mesmo
que os discursos sejam contrários (TOMÁS, 2017, p. 16).

Temos então um duplo movimento pelo reconhecimento social, ilustrado pela figura 75,
na qual as crianças são, ora sujeitos em interação dialógica com as professoras da Educação
Infantil, entendidas como o parceiro ideal na construção da autonomia e da cidadania, como
aparece na fala de uma das participantes; ora objetos de uma interação que se dá entre as
professoras da Educação Infantil e a comunidade mais ampla, que perpetua tradições, crenças
e práticas assistencialistas sobre/com a infância.
228

Figura 75. A luta pelo reconhecimento das TDI

Fonte: o autor.

As professoras identificam no projeto de formação docente Cribiás, crianças sabidas


um espaço de diálogo, no qual o grupo se constitui enquanto apoio para a realização e adesão à
novas práticas, que permitiriam a ação coletiva em prol do reconhecimento social, na
transformação das imagens e significações sobre a infância e a Educação Infantil. Exemplo
desse processo é a criação do coletivo Cribiás, que passa a atuar na ocupação dos espaços e
territórios da cidade com as crianças.
Os coletivos são uma forma de ação social mais horizontalizada, que surge como
resposta da sociedade civil à crise da representação política, e têm se tornado mais expressivos
no país nos últimos anos (THIBES et al, 2020). A organização das professoras em um coletivo
reflete a articulação política em prol da causa da Educação Infantil, que passa a ser
institucionalizada. Acreditamos que essa articulação é uma amostra do potencial da formação
docente enquanto ambiente de transformação das representações sociais, das práticas e das
identidades.

5.4 A cidadania infantil: um fenômeno interacional e dialógico

Com base nos dois estudos que realizamos, o estudo etnográfico com as crianças do
projeto P’tits Volontaires e a pesquisa exploratória com as professoras do projeto Cribiás,
crianças sabidas, formulamos um esquema figurativo (LIMA; CAMPOS, 2020), sobre os
elementos que possivelmente atuam na construção da cidadania infantil como fenômeno de
representação social (figura 76).
229

Nesse esquema, a cidadania infantil emerge da conjugação entre a democracia, a


participação e os direitos, sendo que cada um desses elementos constitui fenômenos e objetos
de representação per se.

Figura 76. O sistema de representações sociais da cidadania infantil

Fonte: o autor.

Cada triângulo do esquema representa um objeto de representação, sob o qual podemos


agregar diversos elementos e conteúdo. A fala das crianças e das professoras a respeito das
relações intergeracionais que ocorrem no ambiente escolar, mostra uma necessidade de
democratização dos espaços educativos, no reforço de valores como a tolerância e o combate
às discriminações, tema do projeto de duas crianças ao se inscreverem Conseil Municipal
d’Enfants. O ambiente escolar ainda é marcado por relações autoritárias, cabendo à criança
reproduzir conteúdo e padrões de conduta, que constituiriam os mundos sociais dos adultos
(SARMENTO, 2005).
Enquanto as crianças afirmam a confiança/desconfiança interpessoal e epistêmica como
fator decisivo para a constituição da autoridade nas interações entre crianças e adultos
(MARKOVÁ, 2017), identificando os profissionais e membros das associações como pessoas
aptas para compartilhar experiências a respeito de determinado tema, como o voluntariado e a
ação coletiva, as professoras relatam no ambiente escolar o enfrentamento de práticas
autocráticas, “ditatoriais”, perpetuadas em visões assistencialistas e na educação de crianças
numa pedagogia tradicional, baseada em uma formação educativa unilateral e na posição de
saber exclusiva do professor (MACHADO; SILVA, 2019).
No contexto brasileiro, os valores democráticos são apontados como uma forma de
resistência a uma tradição autoritária, na qual se inscrevem as relações entre professores,
gestores e demais profissionais da educação. As professoras relatam a vivência de uma
escolarização não-participativa, com a qual tentam romper por meio da formação docente no
projeto Cribiás, a partir das práticas com foco nas narrativas. Essas práticas fortalecem a
230

identidade das professoras enquanto protagonistas de um processo de mudança das


significações atribuídas à infância, que teria como consequência o reconhecimento social de si
e do Outro (ANDRADE; SILVA, 2021).
No contexto francês, os valores republicanos são reforçados de forma ambígua pelo
associativismo civil, na forma como o Estado incentiva e se apropria do trabalho voluntário,
por meio da criação de espaços de participação e da destinação de recursos para o financiamento
de projetos da sociedade civil. Apesar desse incentivo, as crianças identificam uma
incongruência entre o discurso e a prática institucional, quando relatam a desigualdade no
acesso aos recursos disponibilizados pelo Estado e a falta de resultados concretos das ações
realizadas pela população.
A participação é representada pelas crianças e adultos como uma espécie de disposição
interna, ao se posicionarem como membros de um grupo de cidadãos ativos que se opõe à
passividade identificada no Outro generalizado. As crianças usam a participação como critério
para identificação e distinção, quando relatam uma motivação prévia, individual, a vontade para
participar das atividades cidadãs e classificam os voluntários como pessoas dispostas a saírem
de si mesmos para ajudar as pessoas em dificuldade, como os SDF e os refugiados. Nesse
sentido, a cidadania exigiria uma responsabilidade epistêmica pelo Outro, seja a cidade ou a
comunidade, sem esperar reciprocidade ou alguma compensação.
Assim como as crianças, as professoras falam sobre a busca de ferramentas na formação,
quando relatam a adesão ao projeto de formação docente Cribiás, que permitiria reforçar uma
postura participativa previamente desenvolvida. Caberia ao adulto estar atento para perceber e
valorizar as formas de expressão e participação da criança. O projeto seria capaz de
potencializar a ação das professoras, na construção de um grupo que compartilha da mesma
causa, dos mesmos objetivos, a saber, o reconhecimento social da educação infantil e o
protagonismo da criança e do docente.
Embora os direitos da criança sejam amplamente reconhecidos pelas professoras, o
paradigma da proteção se manifesta no discurso das professoras quando estas falam sobre a
educação infantil como o espaço que garante à criança a segurança para se desenvolver de forma
saudável. Qvortrup (2015) alerta para os efeitos negativos da proteção, na restrição dos espaços
disponíveis e a consequente privatização da infância. Para o autor, a vulnerabilidade tem
servido como justificativa para o impedimento da participação da criança.
A autonomia surge nas falas das professoras como principal competência a ser
aprendida durante a Educação Infantil, para que a criança possa exigir que seus desejos e
231

vontades sejam considerados e respeitados. Nas etapas seguintes da educação básica, as


“crianças de creche” (alcunha dada às crianças das unidades que aderiram ao projeto Cribiás)
seriam identificadas pelos demais como mais ativas e falantes, o que poderia trazer melhores
resultados no processo de escolarização, desde que a escola e as professoras saibam acolher
essas crianças, na transição para o ensino fundamental.
As crianças do CME, que desfrutam dos benefícios de um extrato de classe favorecida,
não relatam violação dos seus direitos de provisão e proteção, mas questionam as barreiras
impostas pelos adultos para a participação, tais como a idade mínima para o ingresso nas
associações ou a necessidade de um adulto para se responsabilizar pelo projeto. Isso mostra que
o direito à participação infantil ainda é parcialmente garantido, mesmo no contexto europeu,
pois depende da iniciativa do adulto para a criação e autorização dos espaços.
A cidadania infantil que emerge desse conjunto de elementos é uma cidadania parcial,
que envolve a titularidade de direitos, mas não o seu efetivo exercício. Ela é representada numa
dimensão evolutiva, de duas formas complementares, como uma espécie de etapa para o
desenvolvimento da cidadania plena, ou como valor, nas relações intergeracionais, ao ser
reconhecido e autorizado pelo adulto. É possível que esse aspecto evolutivo esteja relacionado
à representação científica da infância (SARMENTO, 2007), composta por fases de
desenvolvimento psicológico, que tem na cognição o seu principal aspecto.
Para Perrenoud (2005, p. 44, grifo do autor), “[...] A cidadania, em última instância,
depende menos da adesão a grandes princípios do que de uma razão prática, de percepção do
social como equilíbrio instável que deve ser permanentemente reconstruído para que a vida seja
viável”. Se pensarmos a cidadania enquanto processo interacional, relacionada à participação
dos agentes nas discussões e decisões em sociedade, é necessário reconhecer o potencial de
ação e de influência das crianças nas relações intergeracionais (ANDRADE, 2014), e construir
indicativos que possam avaliá-las a partir daquilo que elas são, contrapondo-se a lógica da
negatividade, que caracteriza a infância enquanto idade do “ainda não”.
[...] a categoria social infância como susceptível de ser analisada em si mesma, que
interpreta as crianças como actores sociais de pleno direito e que interpreta os mundos
de vida das crianças nas múltiplas interacções simbólicas que as crianças estabelecem
entre si e com os adultos (SARMENTO, 2005, p. 18).

A cidadania infantil é um fenômeno que somente pode ser entendido a partir das relações
intergeracionais, pois é na interação com os adultos que as crianças constroem um referencial
simbólico de valores democráticos. No entanto, a vulnerabilidade não deveria servir para
justificar práticas de controle e dominação, pois proteção e participação não são atitudes
opostas, sendo capazes de coexistir na educação e nas práticas direcionas à infância.
232
233

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Enquanto finalizávamos a tese, a Agência das Nações Unidas para os Refugiados


(ACNUR) estimava que mais de 4 milhões de pessoas escaparam da Ucrânia, devido à invasão
do território do país pelo exército da Rússia, e que cerca de metade dessa parcela de refugiados
seja composta por crianças, aproximadamente 2 milhões de pessoas.
Como disse Eduardo Galeano (apud TOMÁS, 2017, p. 13) “entre todos os reféns do
sistema, são elas [as crianças] que vivem em pior condição, a sociedade as espreme, vigia,
castiga e às vezes mata: quase nunca as escuta, jamais as compreende”. É inegável que as
crianças são a categoria social que mais sofre o impacto das crises humanitárias e, mesmo
dentro dessa categoria, há uma desigualdade de condições nas quais a infância é vivenciada.
A pesquisa que realizamos sobre a construção da cidadania infantil enquanto um
fenômeno de representação social, a partir da experiência de participação cidadã de crianças e
adultos em projetos de formação, em dois contextos sociais distintos, um projeto de educação
para a cidadania em Paris e um projeto de formação docente na Rede Municipal de Educação
de Cuiabá, nos permite fazer algumas considerações a respeito da forma como o fenômeno de
representar a cidadania ocorre nos grupos pesquisados.
É importante lembrar que nosso estudo não teve por objetivo comparar os contextos
investigados, por entendermos que as representações sociais são uma forma de conhecimento
compartilhado, inscrito nas crenças e práticas de um grupo ou sociedade, porquanto reflete a
forma como os sujeitos constroem uma realidade social comum (JODELET, 2016). A
representação, enquanto modalidade de pensamento social, é um reflexo da posição que o grupo
ocupa nas relações sociais.
Primeiramente, a cidadania é um objeto difuso e polissêmico que, ao longo da história,
recebeu diversos significados, e sua origem remonta à própria concepção de democracia nas
sociedades ocidentais. Entretanto, há um consenso sobre a relação estreita que esta estabelece
com a participação social (GOHN, 2019), especialmente nas sociedades modernas, na medida
em que a igualdade entre os seres humanos é tida como um princípio fundamental, ao menos
no âmbito legal e do direito internacional.
À igualdade de direitos se opõe um conjunto de desigualdades cumulativas, não mais
explicadas pela pertença do indivíduo a uma classe social. Para Dubet (2001), é nesse contexto
de fragilidade das relações sociais que a luta pelo reconhecimento surge como modo de
234

enfrentamento coletivo das desigualdades calcadas na crença no individualismo e na


meritocracia.
A luta pelos direitos da criança, inclusive os de participação, é consequência de um
movimento social mais amplo pelo reconhecimento dos direitos das populações que foram
historicamente invisibilizadas e marginalizadas dos processos de tomada de decisão, mesmo
nas sociedades democráticas, isto é, as mulheres, os negros(as), as populações indígenas e
outras categorias sociais minoritárias. Gohn (2022) afirma que é necessário rever as categorias
pelas quais os movimentos sociais e ação coletiva são analisados, devido às mudanças
decorridas da crise da representação e do fenômeno das Fake News. Os coletivos, em sua
multiplicidade de causas e bandeiras, são novas formas de ação coletiva, que estão ocupando o
espaço público e devem ser objeto de investigação.
Em segundo lugar, a construção da cidadania infantil enquanto fenômeno de
representação social não pode se dar de maneira uniforme, pois ela é determinada pela interação
dos grupos em determinado contexto, seja ele mais ou menos democrático, de acordo com o
incentivo e as possibilidades de participação. A crença em valores como a autonomia ou a ação
coletiva, em prol do bem comum, é fator determinante no exercício de práticas que visam a
formação para a cidadania.
A cidadania infantil é um conceito que teve destaque na produção científica a partir do
final da década de 1980, nos chamados Estudos Sociais da Infância, concomitantemente à
construção da Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC) e demais instrumentos legais. O
conceito aparenta ainda não ter se “infiltrado” nas práticas educativas amplamente realizadas,
tanto no âmbito escolar, como mostra o relato das professoras Cribiás sobre a existência de
uma parcela da comunidade que não reconhece o potencial da criança enquanto ator social;
quanto no âmbito não-escolar, quando percebemos que o objetivo do projeto P’tits Volontaires
de Paris era formar os cidadãos de amanhã, desconsiderando o potencial das crianças para o
exercício da cidadania no presente.
A ausência de práticas educativas majoritariamente participativas e a reprodução de um
modelo hierarquizado da relação intergeracional (adulto-criança), sob a justificativa da
necessidade de proteção da criança, tem dificultado a emergência de novos elementos e a
transformação das representações sociais sobre a infância.
Pensar, promover e defender, paralelamente aos direitos sociais, os direitos políticos
e civis para crianças pequenas origina-se da incorporação da mudança paradigmática
de nossos conceitos e representações de infância, deixando de ter a dependência das
crianças como principal justificativa para todos os nossos atos em sua direção,
passando a considerá-las como sujeitos que pensam, se expressam, tem opiniões
235

próprias, capacidade de agir e de se articularem coletivamente (CANAVIEIRA;


BARBOSA, 2017, p. 371 grifo das autoras).

A representação da criança como um ser incompleto, que se constitui em oposição ao


adulto, tal como identificado por Chombart-de-Lauwe (1986), ainda persiste no imaginário
social, tornando a cidadania infantil uma etapa de um processo de desenvolvimento do cidadão
pleno. Dessa forma, apesar do reconhecimento da criança enquanto sujeito de direitos, a
cidadania infantil continua a ser vista e representada numa perspectiva adultocêntrica.
Para as professoras que participaram da nossa pesquisa, a autonomia é a principal
competência a ser desenvolvida pela criança-cidadã, pois ela permitiria à criança expressar sua
vontade e desejos de forma eloquente, fazendo-a ser ouvida pelo adulto e tornando possível a
luta pelo reconhecimento social e a ampliação dos espaços de participação, um aspecto da
metaparticipação identificada por Trilla e Novella (2001).
A confiança epistêmica (MARKOVÁ, 2017) pressupõe o reconhecimento do Outro
enquanto sujeito livre e autônomo, sendo uma condição sine qua non para a intersubjetividade
e o reconhecimento social. Acreditamos que apenas quando o adulto considera a criança como
parceiro legítimo no processo de construção da cidadania, que ocorre ao longo da vida, na
medida em que ambos exercem suas potencialidades numa relação dialógica baseada em
valores democráticos, a participação infantil pode se efetivar enquanto prática cidadã.
A representação da cidadania enquanto conjunto de direitos e deveres, mesmo com a
popularização dos dispositivos como a CDC e o ECA, aparece fortemente ligada às práticas
como o voto e a deliberação coletiva, percebidas como forma de resolução dos conflitos, ou
estratégia quando há uma diversidade de opiniões sobre um mesmo tema. A democracia
enquanto vontade ou desejo da maioria, é concretizada nesses rituais de escuta e discussão,
como forma de garantir a participação de todos, dando voz e vez às crianças. Parafraseando
Touraine (1996), o maior obstáculo para a democracia é garantir o respeito à individualidade e
a singularidade de todos, numa sociedade que busca a homogeneização da cultura.
Paralelo ao exercício da escolha, o pertencimento aparece como tentativa de construção
de uma identidade comum a crianças e adultos, no sentido do reconhecimento e apropriação do
espaço local. O resgate da memória social, ao aproximar as crianças da história da comunidade
e da unidade educacional, como é o caso das narrativas encorajadoras, geradas a partir dos
patronos, aparece no discurso das professoras Cribiás com o objetivo de fomento ao
pertencimento, elemento que tem se perdido com o processo de globalização e criação de uma
cultura global.
236

No contexto de globalização, as crianças pertencem a todos os lugares, mas não


pertencem a lugar nenhum, pois, embora sejam consideradas sujeitos, continuam a ser
invisibilizadas no processo de tomada de decisão, tendo sua participação tutelada pelos adultos.
O fortalecimento da identidade local surge como estratégia de visibilidade, ao localizar a
criança em um território, parte de um grupo familiar, bairro ou comunidade.
A mudança necessária para a construção da cidadania infantil não diz respeito somente
à transformação das representações de infância, mas à própria concepção de cidadania, para
que esta se adeque às necessidades de todos. Não se trata aqui de desconsiderar as diferenças
que envolvem as categorias geracionais, pois crianças e adultos possuem culturas, motivações
e objetivos distintos nas relações interpessoais, mas de afirmar a cidadania enquanto prática
democrática inclusiva, “[...] consequência da sua participação nas práticas reais que constituem
as suas vidas” (LAWY; BIESTA, 2006, p. 47, tradução nossa).
O contexto de pandemia vivido durante os dois últimos anos, impôs inúmeras restrições
para crianças e adultos no exercício dos direitos e da cidadania. A necessidade de práticas
sanitárias como o uso de máscaras e o distanciamento social tiveram um impacto nas relações
interpessoais, principalmente no ambiente educativo, onde tivemos que recorrer ao teletrabalho
e o ensino de forma remota.
As crianças do nosso estudo reagiram com surpresa à possibilidade da interrupção das
atividades e sabemos que a França passou por diversos momentos de confinamento total
(lockdown) ao longo do período de pandemia, sem contar as dificuldades para implementação
de um programa de vacinação em massa, devido à baixa adesão da população. No Brasil, onde
vivemos além da pandemia do vírus, uma pandemia de notícias falsas, as professoras Cribiás
relataram as dificuldades das famílias em acompanhar o aprendizado das crianças durante esse
período em que as escolas estiveram de portas fechadas.
O retorno presencial tem sido um processo gradativo, as escolas aos poucos estão
recebendo alunos e professores e voltando à rotina “normal”. Ainda não somos capazes de
mensurar as consequências da pandemia para a subjetividade individual e coletiva, mas
sabemos que as condições objetivas são determinantes para a construção de processos
simbólicos e identitários. Acreditamos ser necessário investigar como crianças e adultos
construíram e exerceram a cidadania durante esse momento de “restrição” das liberdades
individuais, nos quais o apelo à coletividade se fez necessário para a manutenção da vida.
Esperamos que a cidadania infantil siga um objeto de investigação da Teoria das
Representações Sociais, nas possíveis articulações com os Estudos da Infância e com as demais
237

Ciências Sociais. As crianças têm muito a nos ensinar e a construção de uma sociedade mais
justa passa pelo reconhecimento de todos enquanto cidadãos livres e autônomos.
238

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252

APÊNDICE I – QUADRO DE REVISÃO BIBLIOGRÁFICA

Autor Título Data tipo palavras-chave


SILVA, Isabel A construção da noção de cidadania 2006 D infância; crianças; cidadania;
Cristina de infantil no referencial curricular direitos das crianças; educação
Andrade nacional para a educação infantil infantil

Método: análise documental


ROSA, Beatriz Educação para a cidadania: uma 2007 D educação; cidadania; emancipação;
de Castro exigência constitucional para a constituição; democracia
efetivação da democracia no Brasil
Método: pesquisa bibliográfica e
documental
SEGANFREDO, Infância e Cidadania: o que dizem as 2012 D infância; cidadania; sociologia da
Nágila de crianças? infância
Moura
Método: pesquisa de campo
(análise do discurso)
NEVES, Naise Instituição de Educação Infantil e 2004 D
Valéria Família: limites e possibilidades de
Método: entrevista semi-
Guimarães um projeto participativo
estruturada.
ISAIA, Clarice A participação infantil nos processos 2007 D educação infantil; gestão
Veríssimo de gestão na escola da primeira democrática; infâncias; pesquisa-
infância ação
Método: pesquisa-ação
CARDOSO, Educação e cidadania: a 1998 D
Norma representação social de jovens com
Método: estudo de caso
Aparecida participação em contexto
comunitário de educação

GOULART, Participação Infantil: experiência de 2008 D criança; direitos das crianças e


Angelica pesquisa realizada em organização adolescentes; direitos humanos;
Moura social na Zona Oeste do Rio de participação infantil; investigação
Janeiro com crianças

Método: pesquisa-ação
experimental
MELO, Narrativas infantis: estudo da 2010 D narrativas infantis; pedagogia da
Ceciana agência da criança no contexto de participação; filosofia da
Fonseca uma creche universitária experiência; jogos e brincadeiras;
educação infantil
Método: observação participante e
narrativas
253

GOMES, Cidadania e práticas escolares: as 2014 D representações sociais; cidadania;


Leonardo representações de um grupo de juventude; práticas escolares;
Teixeira alunos do ensino médio de uma formação cidadã
escola pública paulista Método: grupo focal.
ROCHA, Luis Conselhos Municipais dos direitos da 2011 T estatuto da criança e do
Fernando criança e do adolescente: As adolescente; representações
Representações Sociais dos sociais; cidadania; efetividade;
Conselheiros e a Efetividade do controle social
Controle Social Método: quali-quantitativo,
questionários e observação
participante.
OLIVEIRA, As representações sociais de 2009 D ensino médio; cidadania; trabalho;
Marluce cidadania no Ensino Médio brasileiro representações sociais
Método: pesquisa documental.
PALOCCI, Educação, cidadania e 2003 T cidadãos; interdisciplinaridade;
Heliana da interdisciplinaridade: estudo das cidades; projeto pedagógico
Silva vivências e representações sociais
dos espaços urbanos em Ribeirão Método: pesquisa-ação.
Preto-SP como metodologia de
formação política construída com
alunos da educação Fundamental
PESSANHA, Sentidos de cidadania a partir do 2017 D Vozes das famílias; sentidos de
Fabiana Nery direito à educação infantil: com a cidadania; educação infantil; direito
de Lima palavra os familiares das crianças. à educação
Método: pesquisa qualitativa
dialógica.
254

APÊNDICE II – QUADRO DE METÁFORAS

Objeto Justificativa Imagem


Bolha de sabão, Eu acho que uma bolha de sabão, não
janela (S1) porque ela vai sair rápido, mas porque ela
tem várias cores, várias nuances, várias
possibilidades. Então você se posicionar,
você poder dizer pra sua comunidade o que
você acha interessante, abre a janela pra
várias possibilidades, talvez a janela, mas a
bolha de sabão foi a primeira coisa que me
veio em mente, porque é uma cor que você
não consegue bem definir, porque tem
muitas possibilidades de cores, embora ela
se desfaça rapidamente.
Asas, pássaro Seriam asas pra que ela pudesse voar, lançar
(S2, S5) voos, seja na fala, seja na ocupação do
espaço, na ocupação dos seus direitos ao
brincar, à saúde, então eu vejo essa questão
da cidadania quando eu consigo pensar,
imaginar, agir, ser ouvido, então como um
pássaro que sai voando, ganhando mesmo o
espaço, é as asas, asas pra poder voar e
conquistar, mas sempre no coletivo. [...]
Então eu acredito que só tem sentido a gente
falar em cidadania, quando você fala no bem
comum, de estar bem no coletivo (S2).
Um pássaro, por acreditar que voos altos e
baixos são uma forma de buscar nossos
direitos enquanto cidadãos e que nem
sempre estamos em uma hegemonia... Que
podemos mudar (S5).
Pertencimento eu acho que pertencimento, pertencer a
(S3) algo, esse pertencimento da criança,
enquanto cidadão ele saber que ele pertence
a algo maior, enquanto criança pequena, que
essa cidadania, ele é um cidadão de direitos
e aí vai crescendo mais com deveres, tem
determinada situação, você só sabe que você
tem muitos deveres, o direito você busca
quando acontece algo
Bola (S4) Porque a bola ela pode jogar com o outro,
ela pode jogar, ela pode interagir com o
outro, ela pode jogar sozinha também, se ela
desejar, a bola tem várias faces, ela pode ter
a oportunidade de desenhar, de pintar, de
colorir, de escrever, e essa bola, se essa
criança joga longe, é onde talvez ela queira
atingir no futuro, ela pode chegar em algum
lugar que ela deseja e ela vai jogar isso com
muita força. Então assim, eu acho que a bola
pode simbolizar, pra mim, simboliza muito
essa questão da cidadania, porque ela vai
apresentar todas essas características que o
ser humano precisa pra ele se tornar um
cidadão conceituado [...] um cidadão que vai
ter condições de jogar no meio social, nos
255

diversos segmentos que ele achar


interessante pra vida dele.
Livro (S6) porque um livro, um livro pode te dar asas,
pode te fazer sonhar, fazer acreditar nas
coisas, não sei, nunca tinha pensado nisso.
um aprendizado, muito, eu vejo muito as
crianças nesse sentido de sonho, de
liberdade, de criatividade, é talvez um livro.

Martelo (S7) Se fosse um objeto, algo parecido assim


martelo, se é isso, por quê? Porque
vivenciar a cidadania hoje é muito
complexo, é um direito, são deveres, nós
sabemos que as nossas crianças são
cidadãos de direitos e deveres, a gente sabe
disso tudo, são sujeitos, aliás, então é
martelo. Não tem outra expressão, porque é
duro na queda, sabe, mas é um instrumento
que faz o prego ficar firme na parede ou na
tábua, ou seja, é tudo ou nada.

Lupa (S8) talvez uma lupa, sabe uma lupa? Que ela
conseguisse ver de perto, ver de longe,
conseguisse ampliar os seus horizontes, o
seu olhar, que às vezes a lupa, dependendo
da forma que você a utiliza, ela não, se você
olhar ela da forma contrária, ela não
modifica o tamanho, mas se você olhar ela
da forma correta, ou seja, se você tiver uma
estrutura de oportunidades que te
favoreçam, e você consiga olhar ela da
forma correta, talvez esse horizonte se
amplie, esse olhar, essas vivências.

Microfone (S8) o microfone por conta da voz, de ter voz e


vez, não que a gente precise falar só no
microfone, mas, no caso da criança, eu uso
muito o microfone com eles, de brinquedo,
de papelão, sabe, deles irem na frente
pequeninho mesmo, com 3, 4 aninhos, e
poder falar pra turminha ouvir, e todo
mundo ouvir a opinião dele, a cor que ele
escolheu.
256

Janela (S1, S9) Porque uma janela aberta, no caso seria


porque a gente, ou uma janela aberta, ou
uma caixa, porque assim, a criança ela tá
sempre aberta pra receber, transmitir, então
dela pode sair, saem muitas coisas
importantes, e entra também, então assim, é
uma via de mão dupla, ela tá sempre aberta
pra receber novos conhecimentos, novas
aprendizagens, mas ela também, essa janela
tá sempre aberta pra ir e pra vir, chegar
novos conhecimentos, mas ela também
transmitir, então assim, se a pessoa fechar a
janelinha dessa criança, ela vai ficar
impedida de vivenciar, de experienciar
muitas coisas que ela, assim, tem esse
direito, então essa janelinha dela tem que
estar sempre aberta, então assim, nunca
deixar que essa janela seja fechada por
alguém, por uma causa, por uma injustiça.
257

ANEXO I-CERTIDÃO DE EX-BOLSISTA PDSE/CAPES


258

ANEXO II-PARECER CONSUBSTANCIADO DO CEP


259
260
261
262

ANEXO III-TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Prezado(a),
Gostaríamos de obter o seu consentimento para a participação voluntária na pesquisa A construção da
cidadania infantil enquanto representação social: experiências em formação e participação. O(s) objetivo(s)
deste estudo é investigar o conteúdo atribuído por crianças e adultos à cidadania infantil, na construção de uma
possível representação social e de práticas associadas à promoção da cidadania.
Os resultados nos ajudarão a compreender de que forma as práticas docentes que promovem a participação
podem contribuir no reconhecimento da criança enquanto ator social e cidadão, capaz de exercer sua cidadania
desde a infância, e o papel do adulto na viabilização de espaços de formação e participação infantil, dentro e fora
da escola.
Caso aceite, você será convidado(a) a participar de uma entrevista para relatar a sua experiência com a
participação infantil, no âmbito do Projeto Cribiás, crianças sabidas e na Rede Pública Municipal de Ensino.
Podemos entrar em contato novamente para a realização de um grupo focal, uma discussão em grupo com as
pessoas previamente entrevistadas, caso haja disponibilidade dos participantes. Devido à pandemia de COVID-
19, optamos por realizar todas as atividades de pesquisa de forma remota, utilizando ferramentas de Tecnologia
da Informação e Comunicação (TIC). A previsão de duração de cada entrevista é de aproximadamente 30 minutos,
sendo respeitados os protocolos éticos de pesquisa.
Gostaríamos de deixar claro que a participação é voluntária e gratuita e você poderá desistir de participar
ou retirar o consentimento, sem penalização alguma ou sem prejuízo de qualquer natureza. Seu nome não será
utilizado em qualquer fase da pesquisa, garantindo o seu anonimato e a divulgação dos resultados será feita de
forma a não identificar os participantes. Não haverá gastos decorrentes de sua participação e, se houver algum
dano decorrente da pesquisa, o participante será indenizado nos termos da Lei.
Considerando que toda pesquisa oferece algum tipo de risco, nesta pesquisa o risco pode ser avaliado
como mínimo. Caso sinta-se constrangido(a) e não queira mais participar da atividade ou responder a entrevista
ou a qualquer pergunta, seu direito será respeitado.
São esperados os seguintes benefícios da participação: os dados que serão gerados podem nos dar mais
informações sobre as práticas que promovem a participação infantil e qual o papel que os adultos podem
desempenhar na construção e implementação da cidadania infantil.
O presente documento refere-se também à cessão do direito do uso de imagens na divulgação e publicação
dos resultados da pesquisa nos meios acadêmicos, a saber, congressos, artigos científicos e livros.
Desde já, agradecemos a atenção e a sua participação e colocamo-nos à disposição para maiores
informações.
Esse termo terá suas páginas rubricadas pelo pesquisador principal e será assinado em duas vias, das quais
uma ficará com o participante e a outra com pesquisador principal:

Caio Teixeira Brandão.


caio.brandao@ifap.edu.br
Instituição: Universidade Estácio de Sá – UNESA
Endereço: Av. Mendonça Furtado 992, Centro, Macapá/AP - Telefone: (21) 98256-1342
263

Eu,_______________________________________________________ (nome do(a) participante),


portador do RG nº:__________________________, confirmo que o pesquisador Caio Teixeira Brandão explicou-
me os objetivos desta pesquisa, bem como, a forma de participação. Eu li e compreendi este Termo de
Consentimento, portanto, eu concordo em dar meu consentimento para participar como voluntário desta pesquisa
e autorizo os termos de uso de imagem.
Para esta pesquisa, não haverá nenhum custo do participante em qualquer fase do estudo. Do mesmo
modo, não haverá compensação financeira relacionada à sua participação. Você terá total e plena liberdade para
se recusar a participar bem como retirar seu consentimento, em qualquer fase da pesquisa.

Informações Adicionais:

Se você tiver alguma consideração ou dúvida sobre a ética da pesquisa, pode entrar em contato com o
Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) – da Universidade Estácio de Sá, em horário comercial pelo e-mail
cep.unesa@estacio.br ou pelo telefone (21) 2206-9726. O CEP-UNESA atende em seus horários de plantão, terças
e quintas de 9:00 às 17:00, na Av. Presidente Vargas, 642, 22º andar.

Rio de Janeiro, ____de _________de __________.

_________________________________________
Assinatura do(a) participante

Caio Teixeira Brandão


Psicólogo Escolar CRP10 nº 3250
Doutorando em Educação – PPGE/UNESA
264

ANEXO IV-ROTEIRO DE ENTREVISTA SEMIESTRUTURADA

Nome: Idade:
Sexo:
Escolaridade:
Tempo de Formação:
Tempo de trabalho na instituição:

1. Fale-me há quanto tempo você trabalha na Rede Municipal de Cuiabá. Descreva-me


como é trabalhar na rede.

2. Atualmente, você exerce a função de professor(a) e/ou está em algum cargo de gestão?

3. Diga-me como é exercer sua função numa escola onde se trabalha o projeto Cribiás.

4. Conte-me há quanto tempo você participa do projeto Cribiás, crianças sabidas.

5. Como você vê o projeto Cribiás, crianças sabidas?

6. Conte-me como você tomou conhecimento do projeto? O que te levou a participar do


projeto, fazer parte da formação?

7. Como você avalia suas práticas docentes antes e depois da participação no projeto
Cribiás?

8. Você acredita que houve alguma mudança nas suas práticas docentes? Se sim, descreva-
me quais foram as mudanças. Você poderia me dar algum exemplo?

9. Na sua opinião, de modo geral qual é a principal função da escola? Qual é a função da
escola no projeto Cribiás, crianças sabidas?

10. Diga-me como é a participação das crianças no projeto Cribiás.

11. Você acha que as crianças participam das decisões que envolvem seus processos de
aprendizagem? Como se dá essa participação? Você poderia me dar um exemplo?

12. Você acha que é possível desenvolver a participação das crianças na escola? E no dia a
dia?

13. Você considera que existe alguma idade mínima para participar nas atividades da
comunidade?

14. Ao seu ver, o que é necessário o professor fazer para promover a participação das
crianças?

15. O que leva as crianças a participarem mais ou menos das atividades escolares?
265

16. Diga-me 3 palavras que vêm a sua mente quando você escuta a palavra cidadania?
Justifique a escolha dessas palavras.

17. Ao seu ver, a escola desempenha alguma função na formação do cidadão?

18. Como a escola pode contribuir nesse processo de formação cidadã?

19. Você considera possível desenvolver a cidadania durante a infância? Se sim, como se
dá o exercício da cidadania na infância?

20. Enquanto adulto, você acredita que desempenha um papel na formação cidadã das
crianças? Diga-me como.

21. E como profissional da educação? Em caso afirmativo, como você faz para promover
situações em que seus alunos possam exercer a cidadania?

22. Na sua opinião, existe alguma relação entre cidadania e participação? Como seria essa
relação?

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