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RIO DE JANEIRO - RJ
2022
1
UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
DOUTORADO EM EDUCAÇÃO
RIO DE JANEIRO - RJ
2022
2
BANCA EXAMINADORA
AGRADECIMENTOS
A meus pais, Maria da Conceição Barbosa Teixeira e Luiz Carlos Kopes Brandão, que
têm me apoiado na decisão de seguir uma carreira acadêmica, apesar de todos os obstáculos.
A meus avós maternos, Idelzuite Barbosa Teixeira e João Teixeira Moura (vulgo
Jurema), minhas referências de garra e dedicação.
À minha avó paterna, Beatriz Kopes, pelo carinho com que sempre me acolheu, e ao Zé,
pelo cuidado dedicado à ela.
À minha orientadora, profa. Dra. Edna Chamon, pela paciência em aceitar mais um
orientando no meio do caminho, e pelas contribuições para a finalização da pesquisa.
Ao prof. Dr. Pedro Humberto Campos, por ter viabilizado a realização do doutorado
sanduíche na França, junto ao IEA de Paris, e por confiar que eu era capaz de mudar
completamente o tema da minha pesquisa.
À profa. Dra. Rita de Cássia Lima, pelos esforços em tentar compreender o momento
social e político em que vivemos, que serviram de inspiração para muitos de nós.
Às professoras Maria da Glória Gohn, Daniela Silva Freire Andrade e Patrícia Ortiz
Monteiro, pelas inúmeras contribuições na qualificação.
À minha amiga, Patrícia Peres, por ouvir minhas inquietações ao longo desses quatro
anos, independente da distância e do fuso-horário.
A meus amigos, Eliane e Paulo Chagas, por me receberem em sua casa e me tratarem
como parte da família.
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A meus amigos, Bruno Viviani, Marianna Jannuzzi e demais colegas do(s) grupo(s) de
pesquisa, sempre disponíveis para trocar conhecimento e experiências.
À minha namorada, Lara Diniz Herbster, que tem me fascinado pela capacidade de lidar
com as pessoas, independente das divergências de pensamento e opinião.
Ao Instituto Federal do Amapá (IFAP) que, por meio do afastamento, permitiu que eu
me dedicasse integralmente durante quatro anos ao Doutorado em Educação.
À equipe do Institut d’Études Avancées (IEA) de Paris, por tornar minha estadia na
França uma experiência memorável de aprendizado profissional e acadêmico.
À Maison du Brésil (MdB), por ser uma referência de convivência entre brasileiros e
pesquisadores de todas as nacionalidades.
RESUMO
LISTA DE FIGURAS
LISTA DE GRÁFICOS
LISTA DE QUADROS
LISTA DE SIGLAS
Sumário
APRESENTAÇÃO ..................................................................................................... 14
1. INTRODUÇÃO .................................................................................................. 17
2. CIDADANIA E PARTICIPAÇÃO INFANTIL ....................................................... 24
1.1 Panorama dos trabalhos acadêmicos no Brasil ............................................................... 34
1.1.1 Pesquisas sobre a cidadania de crianças .................................................................. 38
1.1.2 Pesquisas com crianças sobre a cidadania ............................................................... 43
1.2 Investigar a cidadania por meio da participação ............................................................ 49
2 DEMOCRACIA, CIDADANIA E PARTICIPAÇÃO................................................ 59
2.1 A construção da cidadania nacional ............................................................................... 62
2.1.1 A redemocratização ou construção da democracia.................................................. 64
2.3 Participação, reconhecimento e responsabilidade .......................................................... 70
2.3 A cidadania enquanto processo psicossocial .................................................................. 74
2.4 A Sociologia da Infância ................................................................................................ 77
2.4.1 A emergência da Participação infantil no contexto político mundial ...................... 79
2.4.2 Modelos de avaliação da Participação Infantil ........................................................ 83
3 PERCURSO TEÓRICO-METODOLÓGICO .......................................................... 88
3.1 As diferentes abordagens em Representações Sociais ................................................... 90
3.2 A relação entre experiência/vivência e representações sociais ...................................... 92
3.3 Os Sistemas de Representação Social ............................................................................ 94
3.4 A pesquisa sobre a cidadania infantil ............................................................................. 98
4. OS PEQUENOS VOLUNTÁRIOS DE PARIS ...................................................... 107
4.1 Os Conselhos de Crianças e Jovens (CMEJ) e o contexto francês ............................... 109
4.2 Observação de um projeto piloto de educação para a cidadania .................................. 111
4.3 A perspectiva das crianças sobre o voluntariado e a formação cidadã ......................... 137
4.4 Considerações sobre os Pequenos Voluntários de Paris ............................................... 187
5 CRIBIÁS, CRIANÇAS SABIDAS E A EDUCAÇÃO INFANTIL COMO ESPAÇO DE
PARTICIPAÇÃO .................................................................................................... 195
5.1 A educação cidadã no Brasil ........................................................................................ 199
5.2 Como se estrutura o discurso das professoras sobre o projeto Cribiás ......................... 203
5.3 O que nos dizem as professoras Cribiás ....................................................................... 210
5.3 A cidadania infantil como metáfora ............................................................................. 216
5.4 A cidadania infantil: um fenômeno interacional e dialógico ........................................ 228
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 233
REFERÊNCIAS....................................................................................................... 238
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APRESENTAÇÃO
Sou servidor público federal desde 2013 e atuo como psicólogo em uma instituição da
Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica no estado do Amapá, onde faço parte de
uma equipe multiprofissional, composta por psicólogos, assistentes sociais, técnicos em
assuntos educacionais e pedagogos, responsável pela coordenação da Política de Assistência
Estudantil. No ano de 2017, fui aprovado num processo seletivo para a concessão de
afastamento para os servidores que pretendessem realizar pós-graduação stricto sensu dentro
do país, e assim obtive as condições para me dedicar integralmente ao doutorado do Programa
de Pós-graduação em Educação (PPGE) da UNESA.
Já no início do doutorado, em 2018, manifestei o interesse em realizar parte dos estudos
no fora do país, como forma de aprimorar meus conhecimentos enquanto pesquisador e me
familiarizar com as metodologias de pesquisa utilizadas no exterior. Com o auxílio do meu
orientador, na época o prof. Dr. Pedro Humberto Faria Campos, estabelecemos contato com o
professor PhD Saadi Lahlou, do departamento de Psicologia Social da London School of
Economics and Political Sciences (LSE), para discutir a possibilidade de realizar um estágio
doutoral. Nosso objetivo era aprender a Etnografia Baseada em Evidência Subjetiva (no original
em inglês Subjective Evidence Based Ethnography - SEBE) e a Teoria da Instalação,
desenvolvidos pelo professor Lahlou ao longo de sua trajetória acadêmica e profissional.
Após ser beneficiado com uma bolsa do Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior
(PDSE) da CAPES, no ano de 2019, realizei um estágio de seis meses no Instituto de Estudos
Avançados de Paris (IEA), na França, supervisionado pelo professor Saadi Lahlou. Durante
esse período, atuei como facilitador do projeto P’tits Volontaires de Paris, em parceria com a
Mairie du 4ème Arrondissement. Esse projeto piloto consistia em formar crianças para a
cidadania ativa, por meio da pesquisa-ação. Um grupo de crianças de 9 a 11 anos, membros do
Conseil Municipal des Enfants (CME), todas escolarizadas no 4º distrito de Paris, participaram
da formação para a construção de um projeto coletivo e a atuação em âmbito local.
Durante as atividades do projeto, realizado em parceria com associações da sociedade
civil parisiense, utilizamos a SEBE, uma metodologia de etnografia digital que utiliza vídeos
na perspectiva em primeira pessoa, para auxiliar as crianças do CME na reflexão acerca da
cidadania e do engajamento em prol da coletividade. Infelizmente, devido à pandemia de
Covid-19, que tem mudado a nossa forma de enxergar a educação e a cidadania, as atividades
do projeto P’tits Volontaires foram interrompidas por tempo indeterminado. Na época, as
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crianças estavam preparando a apresentação final do projeto coletivo, que aconteceria em uma
sessão plenária, no dia 25 de março de 2020, com a participação do prefeito do 4ème
Arrondissement e os representantes das escolas da região.
Com o auxílio da CAPES, pude efetuar a remarcação da passagem e retornei ao Brasil
no dia 18 de março, cerca de 15 dias antes do previsto para o término das atividades do
doutorado sanduíche. As atividades vivenciadas no doutorado sanduíche me inspiraram a
refazer meu projeto de tese e iniciar esta pesquisa acerca da construção da cidadania infantil
enquanto fenômeno de representação social, considerando a participação infantil como aspecto
fundamental nesse processo.
Iniciamos uma busca sobre as iniciativas de educação cidadã e fomento ao protagonismo
infantil no contexto educativo brasileiro e, por intermédio da profa. Dra. Daniela Barros da
Silva Freire Andrade, coordenadora do Grupo de Pesquisa em Psicologia e Infância (GPPIN)
da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) entramos em contato com as professoras do
coletivo Cribiás, crianças sabidas, uma iniciativa de formação docente pautada na concepção
da “Educação Infantil como espaço narrativo”. O projeto iniciou como uma parceria da UFMT
com a Secretaria Municipal de Educação de Cuiabá, em 2009, fundamentado na Psicologia da
Infância e na Pedagogia da Participação, no reconhecimento da criança enquanto ator social.
Acreditamos que iniciativas como essa constituem verdadeiros espaços de fomento à
participação, além de permitir ao adulto reconhecer o seu próprio potencial enquanto cidadão
ativo, transformando as representações a respeito da infância e do papel da educação.
Encerramos essa apresentação com uma metáfora do professor Saadi Lahlou (2014, p.
124), com quem tive a oportunidade de conviver brevemente no período anterior à pandemia.
Ele nos surpreende com sua sagacidade e pragmatismo ao falar do papel da tese no processo de
doutoramento, não apenas como mera formalidade, mas como validação e reconhecimento da
capacidade do pesquisador.
A tese é uma espécie de licença para fazer pesquisa na comunidade científica, tal como
a carteira de motorista é uma licença para viajar de carro na estrada. Ao fazer a prova
para tirar a carteira de motorista, o importante é mostrar que podemos dirigir, e não
conduzir o examinador a um lugar qualquer.
1. INTRODUÇÃO
As crianças costumam ser evocadas no discurso público como uma geração potencial,
uma espécie de investimento no futuro da sociedade, principalmente quando pensamos em que
condições o planeta estará daqui a alguns anos. Certamente já ouvimos a pergunta “que planeta
queremos deixar para nossos filhos?”, mas nem sempre esse discurso de proteção do futuro se
reflete em igual preocupação com as condições em que as crianças vivem no presente.
A própria etimologia da palavra infância, do latim infans - aquele que não fala, mostra
que a posição ocupada pelas crianças, desde a antiguidade clássica, é muito mais a de objeto do
que de sujeitos ativos. Sarmento (2007) afirma que as crianças, ao longo da história, assim como
outros grupos minoritários, tem sido vítimas de um processo de invisibilização, não tendo voz
nas discussões acerca dos rumos da nossa sociedade.
Para Casas (2006), a concepção de infância é um fenômeno historicamente construído,
o que dificulta falar em infância no singular. Mesmo a preocupação com as crianças e a
produção de conhecimento sobre a infância é um fenômeno consideravelmente recente, que
data do final do século XIX, como mostra a obra do historiador Philippe Ariès (1981, p. 10),
responsável pelo termo “sentimento da infância”.
O autor contrapõe esse termo ao fato de que “a passagem da criança pela família e pela
sociedade era muito breve e muito insignificante para que tivesse tempo ou razão de forçar a
memória e tocar a sensibilidade” e relata que durante a modernidade houve uma mudança
significativa na forma como a sociedade ocidental lida com a categoria social da infância e seus
membros, as crianças, concomitante à ascensão da imagem social da família tradicional
burguesa e sua moralização.
Por se tratar de um fenômeno social e histórico, as mudanças na forma de representar a
infância acompanham a dinâmica da transformação social e cultural da sociedade
(CHOMBART DE LAUWE; FEUERHAHN, 1989). Das imagens nostálgicas aos riscos
civilizatórios evocados pela literatura, as autoras atribuem à Rousseau os primeiros estudos
sobre a infância enquanto categoria social.
Por infância entendemos o grupo que reuniria os indivíduos em determinadas condições
etárias (comumente aqueles abaixo da maioridade penal, cerca de 21 anos). Até o século XVIII
não havia uma separação entre infância e adolescência e, mesmo no século XX, existem
documentos que não fazem essa divisão, como é o caso da Convenção dos Direitos da Criança.
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Dentre os grupos sociais, as crianças seriam as mais afetadas pelas crises humanitárias
e desastres ambientais, especialmente porque não se produzem estatísticas sobre o impacto das
crises sobre os membros dessa categoria. Sarmento (2007) fala de diversas formas de
invisibilidade que afetam a infância, dentre elas a invisibilidade histórica, que resulta na
ausência das crianças em documentos e registros, estando presentes apenas nas memórias ou
relatos autobiográficos dos adultos, com um viés de nostalgia; e a invisibilidade cívica, que
resulta da naturalização dos processos de exclusão e a separação da criança do espaço público.
A infância, enquanto categoria social e geracional, seria vítima de um processo de
exclusão, estando marginalizada no presente, ao ser considerada apenas em sua potencialidade,
em seu devir, sendo invisibilizada e privada do seu direito de participação. O acesso à cidadania
tem como condição a escolarização e a chegada à vida adulta (SARMENTO, 2007).
Se considerarmos a relação entre crianças e adultos enquanto uma relação entre grupos
com motivações e objetivos distintos, circunscrita em determinadas condições sociais e
históricas, a Teoria das Representações Sociais (MOSCOVICI, 2012) pode nos oferecer
subsídios teórico-metodológicos para investigar os fundamentos simbólicos dessa relação. As
representações sociais são uma modalidade de conhecimento específico, também denominado
de senso comum, que orienta as condutas dos sujeitos na vida cotidiana.
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A relação que se estabelece entre os grupos tem como base as representações construídas
acerca da realidade e dos objetos sociais. Dessa forma, não existe uma realidade objetiva a
priori, mas uma realidade social compartilhada, construída por grupos que convergem em torno
de um sistema de valores, crenças e ideologias. No caso das relações intergeracionais, “[...] as
representações sociais amplamente compartilhadas sobre a infância nos ajudam a compreender
as relações e interações sociais que estabelecemos em cada sociedade com o subconjunto da
população que denominamos infância” (CASAS, 2006, p. 29, tradução nossa). As
representações concorrem com as imagens sociais da infância identificadas pelos sociólogos e
historiadores.
Ao investigar as imagens e representações sociais na produção cultural sobre a infância
ao longo do século XX, na literatura, arte, cinema e televisão, Chombart de Lauwe (1986)
identificou elementos que compõem uma espécie de núcleo da representação. Esse núcleo
consiste em um par de elementos valorizados, porém opostos: a imagem da criança autêntica,
positiva, em oposição a uma imagem negativa da sociedade engessada, restritiva. O que
separaria a criança do adulto é a interiorização das normas e valores da sociedade, por meio da
escolarização, tendo como consequência a perda de seu potencial imaginativo.
Para Sarmento (2007), o conhecimento científico produzido sobre a infância, mais do
que esclarecer, tem ocultado os saberes das próprias crianças. Ao se referir a esse conhecimento,
o autor utiliza a metáfora do candeeiro, de Walter Benjamin, que se refere à luz focada em
determinado ponto, que produz sombras em todo o entorno (numa dinâmica de iluminação-
ocultação). A Psicologia seria uma das principais ciências a produzir esse efeito, ao propor
modelos estruturados de desenvolvimento da criança, tendo o adulto saudável como ápice do
desenvolvimento.
É necessária uma ruptura epistemológica com a ciência adultocentrada, uma inversão
de perspectivas, que possa considerar a infância na forma como ela é concebida pelos seus
próprios sujeitos, as crianças. Essa ruptura exige uma mudança do paradigma da proteção,
construído ao longo do último século, para a participação (SOARES, 2005) de forma que os
direitos das crianças sejam entendidos a partir daquilo que elas são capazes de fazer, não daquilo
que se espera que elas aprendam. Assim, as culturas infantis podem ser reconhecidas enquanto
conhecimento legítimo, produzido na interação entre pares de uma categoria social.
Se pensarmos um fenômeno como a cidadania da infância, a questão é ainda mais
complexa. A concepção clássica de cidadania, atribuída a Marshall (1967), diz respeito ao
conjunto de direitos, civis, sociais e políticos, alcançados pelos trabalhadores por meio de lutas
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Nas sociedades democráticas, podemos afirmar que a cidadania se inscreve num sistema
mais amplo de crenças e valores, fundado em condições de suposta igualdade entre os seres
humanos, e num conjunto de direitos universais e inalienáveis. Moscovici (1992) considera a
redescoberta dos Direitos Humanos a grande revolução do século XX, que permitiu a ascensão
da democracia como valor e sua constituição enquanto sistema de crenças ou instituição
simbólica. Esse sistema de crenças e valores constitui a base das relações entre as nações, mas
como a igualdade de direitos é representada pelos indivíduos nas interações cotidianas? De que
forma a cidadania é experimentada ou vivenciada no cotidiano?
A noção de cidadania infantil requer que a cidadania seja considerada enquanto um
processo ao longo da vida (JANS, 2004), não apenas um estatuto ou conjunto de direitos e
deveres. O conceito emerge na Sociologia da Infância como forma de representar a mudança
na concepção da infância, enquanto fenômeno histórico, que se desenvolve no bojo das relações
intergeracionais e como possibilidade de exercício dos direitos nos mundos de vida
(SARMENTO, 2007). O objetivo é o reconhecimento da agência e do protagonismo das
crianças, para além dos direitos e instrumentos legais, na construção de espaços participativos
e de relações menos hierarquizadas.
A Teoria das Representações Sociais, proposta por Moscovici (2012) na década de 1960
como forma de superar a dicotomia entre sujeito e objeto presente na Psicologia Social, reafirma
a importância do senso comum. O autor investigou a maneira pela qual o conhecimento
reificado é apropriado pelos grupos e integrado ao pensamento social. Nessa transição de uma
modalidade de conhecimento para outra, a comunicação desempenha um papel fundamental,
pois é na interação cotidiana que as representações são construídas e compartilhadas.
Considerando o processo de invisibilização que caracteriza a infância, enquanto
categoria social, podemos afirmar que a cidadania infantil tem sido apropriada e representada
21
pelos grupos que desenvolvem práticas na atuação com as crianças e as práticas desenvolvidas
pelas próprias crianças como forma de resistência à dominação. Nesse sentido, destacamos a
importância da participação infantil (BROSTOLIN, 2021) como principal forma de
concretização e exercício da cidadania.
Embora o direito à participação esteja presente na Convenção sobre os Direitos da
Criança (ONU, 1989) e no Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), integrado
ao direito de livre associação, pouco se tem avançado para a sua efetivação, tendo em vista que
o espaço público ainda é ocupado eminentemente pelos adultos.
Considerando o exposto, o objetivo deste trabalho foi investigar a cidadania infantil
enquanto possível fenômeno de representação social para crianças e adultos, por meio da
participação cidadã e da experiência/vivência em projetos de formação. A pesquisa se baseou
em dois estudos empíricos, um estudo etnográfico no contexto associativo francês, e um estudo
exploratório com um coletivo de professoras, surgido da parceria entre a Universidade e um
grupo de professoras do município de Cuiabá, por meio de um projeto de extensão de formação
docente.
Com esses estudos, discutimos a possibilidade de construção da cidadania infantil como
representação social, numa articulação da Teoria das Representações Sociais e dos Estudos
Sociais da Infância. Para tal, nos propusemos a responder as seguintes questões de estudo:
considerando o papel da escola na socialização e desenvolvimento da cidadania, quais
significados são atribuídos à cidadania infantil no âmbito escolar? Como as professoras de
educação infantil representam a relação entre cidadania e a participação infantil? Quais
condições psicossociais favorecem a participação e o engajamento de crianças e adultos em
atividades de educação e formação cidadã? Nossas questões de estudo deram origem aos
seguintes objetivos, como forma de orientar e sistematizar o trabalho de coleta e análise dos
dados a respeito do possível impacto da formação e da experiência/vivência da participação na
construção de elementos simbólicos relacionados à cidadania infantil.
1. Analisar o conteúdo e as significações atribuídas por crianças à participação e
cidadania infantil, no âmbito do projeto de formação cidadã P’tits Volontaires, realizado em
parceria com a Prefeitura do 4ème Arrondissement de Paris; e de professoras de Educação
Infantil, membros do coletivo Cribiás, no município de Cuiabá - MT; 2. Identificar e
caracterizar os tipos de participação infantil no âmbito das ações desenvolvidas pelas
professoras do Cribiás, crianças sabidas, e nas formações do projeto P’tits Volontaires; 3.
Descrever as condições psicossociais que favorecem ou dificultam o engajamento de crianças
22
projeto de um campo de estudos que almeja dar visibilidade à essa parcela da população,
equiparando-a a outras categorias minoritárias.
Até o final do século XIX, a criança era considerada um adulto em miniatura e
propriedade privada dos pais, sendo submetida ao trabalho nas mesmas condições precárias que
os adultos, não havendo uma preocupação da sociedade com o cuidado ou a preservação dos
seus direitos. A criação ou invenção da infância durante a modernidade foi documentada pelo
historiador Philippe Ariès (1981), considerado um dos autores fundamentais para a
compreensão das mudanças na concepção da infância ocorridas a partir do século XVIII.
Para Qvortrup (2014, p. 29), “[...] um dos paradoxos do trabalho de Ariès é que a
ausência de consciência das crianças as tornava muito mais visíveis quando a infância não
existia”, no sentido de que na pré-modernidade, as crianças ocupavam os espaços públicos de
forma indiscriminada, presenciando a vida pública na companhia do adulto. Ariès (1981)
denomina o fenômeno de "sentimento da infância”, na medida em que passa a haver uma
particularização e moralização dos costumes, espaços e vestimentas direcionados à criança.
Jans (2004) afirma que a escolarização compulsória e a proibição do trabalho infantil
são os principais marcos na separação entre os espaços da criança e do adulto, que tiveram
como consequência a ressignificação das relações intergeracionais e a construção da infância
enquanto categoria social. Ao sair do mercado de trabalho, a criança passa a ser “cultivada” e
protegida pelo sistema educacional, tendo garantido na escola o espaço propício para o seu
desenvolvimento. A criança torna-se então um objeto de estudo das ciências sociais em seu
ofício de aluno e o processo de socialização passa a ser a função principal da escola.
A Convenção sobre os Direitos da Criança - CDC, assinada na Assembleia Geral da
Organização das Nações Unidas (ONU) em 20 de novembro de 1989, é um marco na luta pelos
direitos da criança e do adolescente, uma consequência direta da promulgação da Declaração
Universal dos Direitos Humanos (DUDH) de 1948, que reconheceu a igualdade entre os seres
humanos como princípio social fundamental. A CDC é composta por 54 artigos, que versam
sobre os direitos específicos da criança, assim considerado todo ser humano de zero aos dezoito
anos de idade, e foi ratificada por 196 países, inclusive o Brasil, onde entrou em vigor no ano
seguinte, com a promulgação do Decreto nº 99.710, de 21 de novembro de 1990 (BRASIL,
1990)1.
1
No Brasil, a CDC resultou na construção e promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei nº
8.069, de 13 de julho de 1990 (BRASIL, 1990). Segundo o Art. 2º do ECA “considera-se criança, para os efeitos
desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade”
(BRASIL, 1990).
26
2 Artigo publicado inicialmente em 1993, como parte da revista Eurosocial Report Childhood as a Social
Phenomenon: Lessons from a International Project, resultado de um grande projeto de pesquisa internacional a
respeito da situação da infância ao redor do mundo.
27
Proteção e participação não são ideias opostas (BROSTOLIN, 2021), elas podem ser
complementares, como trata o Artigo 12 da CDC3, sendo necessário avançar no reconhecimento
do potencial da criança enquanto ator social competente, de acordo com sua idade e maturidade.
Para Sarmento (2012, p. 45, grifo do autor), a “[...] criança é tida como um cidadão sob
tutela, ou um ser humano em vias de se tornar cidadão”, e, embora nos últimos 30 anos a
infância passe a ser valorizada enquanto categoria social, ao menos no âmbito acadêmico, o
fato de ser um sujeito em formação, tornaria a criança incapaz de opinar quanto aos fatores que
têm impacto em sua vida, cabendo ao adulto decidir o que é melhor para ambos. Landsdown
(2001) aponta como obstáculos para implementação da participação, a crença de que a criança
carece de experiência para participar da vida em comunidade, bem como necessita aprender a
ter responsabilidade, antes de exercer os seus direitos.
Se consideramos o adulto como modelo do desenvolvimento a ser alcançado, a
constituição da infância se dá a partir de um princípio de negatividade,
[...] um conjunto de interdições e prescrições que negam ações, capacidades ou
poderes às crianças: elas não votam, não podem ser eleitas, não sabem e, por isso, têm
de estudar; elas não se casam, não pagam impostos, não trabalham, não tomam
decisões relevantes e não são puníveis por crimes (DELGADO; MÜLLER, 2018, p.
24).
Qvortrup (2011) se refere à ausência de estudos até a década de 1990 que mostrem a
repercussão dos eventos sociais, econômicos e políticos que afetam o cenário mundial sobre as
crianças. Embora o impacto de fenômenos como a globalização e o crescente individualismo
da sociedade capitalista sejam sentidos na mesma medida por adultos e crianças, o autor afirma
que os últimos, ao serem negligenciados pelos estudos científicos, têm sido invisibilizados e
marginalizados. Na tese de número 9 sobre a infância enquanto fenômeno social, o autor propõe
considerar a infância como categoria social minoritária, sujeita à dominação dos adultos. Essa
afirmativa significa o reconhecimento da desigualdade nas relações intergeracionais,
caracterizadas pelo paternalismo, atitude que pressupõe a superioridade do adulto sobre a
criança, na condição de guardião ou protetor.
Independente do quantitativo de crianças e jovens que compõem a população de um
país, a infância permaneceria enquanto categoria social. No Brasil, por exemplo, os dados do
3
O Artigo 12 da Convenção sobre os Direitos da Criança estabelece:
1.Os Estados Partes devem assegurar à criança que é capaz de formular seus próprios pontos de vista o direito de
expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados a ela, e tais opiniões devem ser
consideradas, em função da idade e da maturidade da criança.
2.Para tanto, a criança deve ter a oportunidade de ser ouvida em todos os processos judiciais ou administrativos
que a afetem, seja diretamente, seja por intermédio de um representante ou de um órgão apropriado, em
conformidade com as regras processuais da legislação nacional (ONU, 1989).
28
aprendizado, as crianças não podem ser consideradas como sujeitos passivos, sendo necessário
reconhecer sua capacidade de agência e resistência na apropriação dos valores e normas
inculcados pelas instituições (SARMENTO et al, 2007).
Se considerarmos a criança enquanto ator social e a cidadania enquanto processo
formativo contínuo, numa perspectiva da educação ao longo da vida, o que se estabelece é uma
relação de interdependência entre a criança e o adulto. É nesse contexto de conflito
intergeracional que se dá a interação entre crianças e adultos, e onde se encontram as
possibilidades de construção da cidadania infantil.
[...] a criança-cidadã, nas formas múltiplas, fragmentárias e difusas, em que se
exprime a cidadania infantil, não o poderá ser sozinha. Depende do adulto para a
construção do universo de referências, de direitos e de condições sociais em que pode
ocorrer a cidadania plena (SARMENTO, 2012, p. 49) .
Ainda que a criança não tenha direitos políticos, isso não a impediria de participar da
tomada de decisão na comunidade, principalmente sobre os assuntos que lhe afetam
cotidianamente. Trilla e Novella (2001) citam o exemplo das crianças do Conselho Infantil de
Cardedeu4, que se organizaram para solicitar a mudança do horário de irrigação de um parque
próximo à escola, pois devido as máquinas serem ligadas todos os dias no horário em que saíam
da escola, o parque estava sempre encharcado, impedindo-as de brincar após as aulas.
4
Pequeno povoado na Espanha, próximo à Barcelona, com uma população de cerca de 11 mil habitantes.
30
O relatório publicado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância - UNICEF para
celebrar os 30 anos de promulgação da CDC (UNICEF, 2019) fala sobre os avanços produzidos
pelo reconhecimento dos direitos das crianças no Brasil, inclusive de participação, embora estes
ainda sejam insuficientes, devido ao alto número de crianças fora da escola, os índices de
trabalho infantil e o aumento da violência que acomete crianças e jovens.
Oliveira e Reis (2013) citam o exemplo da cidade de Barra Mansa, que no período de
1997 a 2000 manteve um conselho orçamentário participativo que envolvia crianças na
deliberação e alocação dos recursos destinados a ações para esse público como um exemplo de
pioneirismo no país. As autoras também citam o Orçamento Participativo Criança, realizado
em São Paulo nos anos de 2003 e 2004, como uma das iniciativas que “[...] mudam o foco sobre
a criança, considerando-a cidadã capaz de participar da vida política da sociedade” (p. 85). Para
elas, há uma necessidade de promoção da participação nos diferentes espaços ocupados por
crianças e jovens, como forma de exercício e vivência da cidadania.
[...] Promover a participação na sociedade em geral, e nas escolas em específico, é
experimentar um sistema complexo de interações que se configura em torno da
iniciativa, das responsabilidades compartilhadas, da distribuição da informação e,
principalmente, do compromisso que grupos de pessoas, crianças e adultos, podem
assumir durante a condução do processo decisório na gestão de atividades em aulas e
em projetos (OLIVEIRA; REIS, 2013, p. 86).
Para Soares (2005), vivemos hoje uma transição entre o paradigma da proteção e o da
participação. O reconhecimento do direito das crianças à participação precisa se refletir na
criação de espaços e práticas que garantam sua efetividade. A autora salienta que a dificuldade
na implementação da participação infantil é consequência do discurso paternalista presente nas
políticas de defesa dos direitos da criança. Para a autora, fala-se em dar voz às crianças,
reforçando o direito delas de se expressarem e serem ouvidas, mas é indispensável fomentar a
autonomia e o protagonismo infantil.
A defesa de um paradigma que associe direitos de protecção, provisão e
participação de uma forma interdependente, ou seja, que atenda à indispensabilidade
de considerar que a criança é um sujeito de direitos, que para além da protecção,
necessita também de margens de acção e intervenção no seu quotidiano, é a defesa
de um paradigma impulsionador de uma cultura de respeito pela criança cidadã: de
respeito pelas suas vulnerabilidades, mas de respeito também pelas suas
competências (SOARES, 2005, p.9).
Segundo Gohn (2019), a participação tem figurado desde o final da década de 1980
como uma “medida de cidadania”, ao ser apontada como uma alternativa no combate à exclusão
social. A exclusão se define no binômio exclusão-inclusão (ou integração), ou seja, um grupo
social é considerado excluído frente à existência de grupos integrados ou incluídos. Assim,
quanto mais cidadãos têm acesso às instâncias democráticas de participação, maior seria a
integração e mais forte a democracia.
Embora o direito à participação seja garantido por lei, ainda não se observa no Brasil
uma equivalência em ações que promovam a participação de crianças e jovens em âmbito local.
O Plano Nacional dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes, com vigência de 2014 a
2024, avança no sentido do aumento da participação infantil, no entanto, este plano deveria se
32
converter em ações nos âmbitos municipais e estaduais, por meio de discussões em comissões
intersetoriais e a formulação de planos locais, tendo assegurada a participação efetiva de
crianças e adolescentes nessas comissões, conforme o disposto na Resolução nº. 171 do
CONANDA, de 4 de dezembro de 2014.
Em uma análise das reformas educacionais ocorridas no Brasil desde a promulgação da
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) de 1996, Silva (2018) afirma que o
papel da escola na formação para o exercício da cidadania, tem tomado uma dimensão política
e social no país. A cidadania deveria estar integrada ao currículo, como competência transversal
a ser desenvolvida na educação básica, com base no reconhecimento dos direitos das crianças
e adolescentes. Caberia à escola conscientizar os educandos sobre o papel dos cidadãos na
superação das desigualdades sociais, não apenas por meio do voto, mas pela participação na
vida democrática.
Gohn (2010) se refere à mesma LDB de 1996 como o instrumento legal que abriu
caminho para o reconhecimento da educação não-formal e seus processos educativos devido à
definição ampla de educação apresentada no art. 1º “[...] processos formativos que se
desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino
e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações
culturais” (BRASIL, 1996).
A autora afirma que a educação não-formal “[...] capacita os indivíduos a se tornarem
cidadãos do mundo, no mundo. Sua finalidade é abrir janelas de conhecimento sobre o mundo
que circunda os indivíduos e suas relações sociais” (GOHN, 2010, p.19) devido à flexibilidade
e independência que esta possui, comparada à estrutura rígida de currículo e conteúdo que é
característica da escolarização formal.
Trilla e Ganem (2008) advertem sobre confiar a responsabilidade de preparar os
cidadãos unicamente à escola, considerando as mudanças no âmbito familiar decorrentes da
divisão do trabalho e o recente enfraquecimento, principalmente da escola pública, devido à
falta de investimentos e de uma política nacional consolidada. Os autores propõem a
necessidade de um sistema educativo que integre as instâncias de educação informal, formal e
não-formal, de forma complementar, embora reconheçam que muitas vezes o que ocorre é uma
relação de substituição, onde as Organizações Não-governamentais (ONGs) e os Projetos
Sociais atuam para suprir as lacunas do Estado. A criação de espaços de participação deveria
contemplar todos os indivíduos, independente de status ou classe social. No entanto, sabemos
que existem barreiras que inviabilizam o exercício da cidadania, principalmente das minorias.
33
O critério que utilizamos inicialmente para a seleção dos trabalhos considerados nessa
pesquisa foi a presença de pelo menos dois dos descritores como palavras-chave na indexação
dos trabalhos. Identificamos em uma parcela dos trabalhos que termos como participação
infantil, protagonismo e agência da criança são utilizados como equivalentes, de acordo com a
concepção teórico metodológica adotada (MELO, 2010; PALOCCI, 2003; ISAIA, 2007). Esses
termos são empregados no sentido de reconhecer crianças e adolescentes enquanto agentes
sociais e sujeitos de direitos, como membros que colaboram na construção da cultura, inclusive
com direito à participação nas decisões coletivas.
Segundo Mayall (apud GAITÁN MUÑOZ, 2020, p. 100) há uma divergência no uso
dos termos ator e agente, “um ‘ator’ faz algo, talvez algo que surge de um desejo subjetivo,
enquanto o termo ‘agente’ sugere uma dimensão maior, ou seja, uma negociação com os outros,
que produz diferenças na relação, ou em decisões que possam resultar dessa interação”.
Pires e Branco (2007) argumentam que a opção pelo termo participação diz respeito à
alusão a um processo que ocorre no nível coletivo, enquanto o termo protagonismo correria o
risco de ser tomado no nível individual. Os autores também apontam duas vantagens no uso do
termo participação infantil, que dizem respeito ao seu uso cotidiano pelos sujeitos.
Apesar da polêmica em relação ao emprego dos termos participação e protagonismo,
parece haver duas vantagens óbvias quanto à utilização preferencial da palavra
participação. A primeira se refere à facilidade do emprego do vocábulo por crianças,
uma vez que, em uma primeira análise, a palavra participação é um termo de uso
corrente na língua portuguesa. A segunda vantagem se refere a maior facilidade para
explicar o que é participação (com o significado de protagonizar) para as crianças, no
contexto de programas ou campanhas que visem promover o seu envolvimento nos
processos decisórios para transformações sociais (PIRES; BRANCO, 2007, p. 312).
Nessa seção listamos algumas das pesquisas que foram desenvolvidas acerca dos temas
da cidadania e da participação infantil, tais como teses e dissertações (NEVES, 2004; ROSA,
2007; SILVA, 2006; OLIVEIRA, 2009; PESSANHA, 2017; ROCHA, 2011), que optaram por
metodologias não-participativas, como a pesquisa bibliográfica e documental, ou que não
envolveram as crianças como participantes ativos da pesquisa, bem como artigos que relatam
pesquisas sobre a participação de crianças e adolescentes em dispositivos institucionalizados
(SOUZA et al, 2010; BARBOSA; VOLTARELLI, 2020; VIEIRA; COSTA; OLIVEIRA,
2021). Isso não significa que elas tenham menor relevância na discussão do tema, apenas que a
pesquisa em si não configurou um ambiente de promoção e exercício da cidadania, da forma
como entendemos que seria possível por meio da vivência da participação.
A partir das representações sociais de familiares de crianças atendidas no Laboratório
de Desenvolvimento Infantil (LDI) e dos profissionais que trabalham nessa instituição, Neves
(2004) investigou a relação entre família e escola, objeto de tensão e conflitos. Por meio da
análise do histórico da instituição e de entrevistas semiestruturadas, a autora observou que a
relação família-escola está condicionada pelas representações que os grupos têm dos papéis
atribuídos na interação (o papel do eu e do outro), que se dá num determinado contexto histórico
e social. Embora os funcionários da instituição relatem pouca participação das famílias, estas
apresentam uma demanda por maior participação, o que demonstra o conflito identificado pela
autora nas concepções de participação que orientam as ações tanto da família quanto da escola.
A proposta de construção do processo de participação de forma conjunta, por meio da gestão
participativa, é apresentada pela autora como uma alternativa para alinhar as expectativas na
interação família-escola.
Rosa (2007) realizou uma pesquisa bibliográfica e documental para reconstruir a relação
histórica entre educação para a cidadania e democracia nos instrumentos legais no Brasil, tais
como a Constituição Federal de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de
1996 (Lei n. 9394/1996), a partir da noção de Estado Democrático de Direito e do direito à
educação. A autora identifica a cidadania enquanto tema transversal ao conteúdo curricular e
propõe a criação de uma disciplina denominada Educação Jurídica Básica, como forma de
contemplar a questão da cidadania na organização curricular da Educação Básica.
Ao analisar a concepção de cidadania infantil presente nos documentos oficiais
referenciados pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC), mais especificamente o
39
Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (BRASIL, 1998) Silva (2006)
identifica o que Brayner (2001) denomina de fenômeno de institucionalização do discurso, que
consiste na apropriação de conceitos e sua ressignificação pelo Estado, em função de objetivos
econômicos ou burocráticos. A autora ressalta a polissemia tanto da infância quanto da
cidadania, reconhecendo seu caráter de construção histórica, afirmando a necessidade de
esclarecimento dos conceitos utilizados quando da formulação dos documentos oficiais, e se
baseia em autores da Sociologia da Infância para afirmar a possibilidade de construção de uma
noção de cidadania que seja apropriada à infância.
Se existe uma falta de clareza na concepção de cidadania aplicada à infância nos
documentos oficiais, Oliveira (2009) identificou que a noção de formação cidadã presente nos
documentos que regulamentam o ensino médio, última etapa da educação básica no país, se
inscreve numa relação estreita entre escolarização e mercado de trabalho. A autora faz uso da
Teoria das Representações Sociais para categorizar os elementos referentes à cidadania
presentes na legislação, delimitando três possíveis classes que estariam ligadas ao papel
legitimador que o trabalho ocupa em nossa sociedade: o cidadão-trabalhador, o cidadão-flexível
e o cidadão-produtivo, termos que aglutinam os conteúdos considerados necessários para uma
formação que prepare para o exercício da cidadania, conforme o disposto na Constituição
Federal de 1988.
Nesse sentido, o trabalho seria pré-requisito para o estatuto de cidadão e integração na
sociedade (CHARLOT, 2014), o que reforça não apenas a polissemia do conceito, mas a
necessidade de construção de uma nova cidadania, que possibilite ampliar a discussão sobre a
atuação e participação coletiva dos jovens e se transforme em práticas sociais mais abrangentes,
não restritas ao mercado de trabalho formal.
Pessanha (2017) investigou a cidadania a partir do direito à Educação Infantil e a
participação dos familiares das crianças no processo de escolarização, considerando a família
como beneficiária indireta da escolarização. Ao relatar a participação e a luta das famílias por
uma educação pública de qualidade, a autora identificou as expectativas colocadas sobre a
educação e sobre os professores, responsáveis pelo futuro das crianças. A educação infantil se
inscreve como a primeira etapa de um longo processo de mobilidade e ascensão social,
considerando o papel da escola na formação dos futuros trabalhadores. Nesse contexto, a
cidadania aparece como condição restrita ao usufruto de direitos sociais universais, tais como
o direito à educação e o direito ao trabalho, distanciando-se de uma concepção mais abrangente
que compreenda os direitos políticos e de participação.
40
5
As conferências são realizadas a cada dois anos, desde 1994, quando foi realizada a primeira Conferência
Nacional, tendo o tema da implantação do ECA.
41
Nesta subseção listamos alguns trabalhos que desenvolveram estudos sobre cidadania e
direitos de crianças e adolescentes a partir do uso de metodologias participativas, tais como a
pesquisa-ação e a etnografia. Entre teses e dissertações encontradas (CARDOSO, 1998;
PALOCCI, 2003; ISAIA, 2007; GOULART, 2008; MELO, 2010; SEGANFREDO, 2012;
GOMES, 2014), além de artigos que relatam pesquisas com crianças e adolescentes
(CORREIA; GIOVANETTI; GOUVÊA, 2007; PÉREZ et al, 2008), acreditamos que esse tipo
de metodologia possibilitaria à própria pesquisa configurar-se enquanto um espaço de formação
e desenvolvimento da participação infantil, o que as diferenciaria das pesquisas citadas na
subseção anterior.
As referências estão listadas em ordem cronológica, como forma de sistematizar a
revisão e identificar as transformações no campo da pesquisa com crianças ao longo dos últimos
20 anos. Ressaltamos como uma das mudanças ocorridas, a influência do referencial da
Sociologia da Infância e seus conceitos, principalmente de autores portugueses como Sarmento,
Tomás e Fernandes, e do norte-americano William Corsaro, como fundamento para o
desenvolvimento de estudos a respeito de novas práticas e de mudanças nas relações
intergeracionais.
44
somente quem se acha apto a participar e tem sua participação reconhecida” (PÉREZ et al,
2008, p. 183). As crianças da pesquisa reconhecem os problemas da cidade a partir de sua
inserção social e, consequentemente, dos espaços pelos quais circulam, cada vez mais restritos
nas grandes cidades. As autoras também relatam que as crianças da pesquisa afirmam a
existência de um mundo do adulto, identificado como sério e chato, no qual não há espaço para
o lúdico. É nessa dimensão que estariam assuntos como a economia e a política, espaços aos
quais a criança comumente não tem acesso.
No processo de construção do jornal coletivo, as pesquisadoras levaram as crianças a
conhecerem melhor o bairro, na obtenção de informações das pessoas e do entorno da escola,
por meio do exercício de papeis como fotógrafo e entrevistador, acompanhados de objetos e
funções que reforçaram a caracterização das crianças como responsáveis pelo projeto. A
escolha desses papeis se deu pela identificação das próprias crianças, na negociação dentro do
grupo de quem deveria exercer cada função. Por meio das narrativas, as crianças tiveram a
oportunidade de refletir e ressignificar a experiência vivida coletivamente com o bairro e a
cidade. Ao possibilitar a participação das crianças e a ressignificação da sua relação com a
cidade, a pesquisa promoveu o exercício da cidadania infantil, entendida não apenas como um
conjunto de direitos e deveres, mas como um processo dinâmico que perpassa o pertencimento
e a atuação no âmbito local, em prol da coletividade.
Melo (2010) investigou a agência da criança, entendida como a capacidade de ação e
transformação do ambiente imediato e da comunidade, a partir das narrativas de crianças de
uma creche vinculada a uma universidade, nos pressupostos da Pedagogia da Participação. As
narrativas infantis foram consideradas em sua produção espontânea, caraterísticas da atividade
simbólica das crianças e da produção de significados. A autora fez uso da Psicologia Popular
ou Psicologia Cultural de Jérôme Bruner para analisar as narrativas a partir de três categorias:
sequencialidade, experiências vividas e afastamentos do canônico. Dessa forma, a produção
simbólica da criança no ambiente educacional é considerada a partir de sua vivência cotidiana,
daquilo que constrói e compartilha com seus pares na interação, num movimento dinâmico de
aproximação e distanciamento da cultura do adulto. A Sociologia da Infância e a Pedagogia da
Participação são apontados pela autora como fundamentos para uma práxis inovadora, que
reconheça as crianças enquanto participantes ativas do processo de ensino aprendizagem, desde
a mais tenra idade.
A partir da Sociologia da Infância de William Corsaro, Seganfredo (2012) buscou
identificar os sentidos atribuídos à cidadania pelas crianças do município de Rondonópolis-MT.
48
nas práticas que se desenrolam no ato de participar” (GOHN, 2011, p. 333), ou seja, é
participando que se aprende a participar. Se consideramos a participação como medida de
cidadania, o incentivo às práticas participativas seria uma forma de construir espaços de
exercício da cidadania, como veremos adiante.
Nesse modelo são considerados, além do sujeito, o Outro e o objeto (elemento cultural)
envolvidos, o sentido do elemento cultural tanto para a Pessoa quanto para os Outros, além do
“quadro” no qual ocorre a interação, um campo composto pelas regras, papéis e expectativas
sociais. A noção de quadro busca inserir as interações sociais no contexto institucional em que
elas ocorrem, onde os sujeitos tendem a reforçar as normas e os papéis instituídos. Embora não
sejam equivalentes, a noção de contexto proposta por Codol (1974) no modelo da
Representação Global da Situação teria a mesma função do quadro, ao situar a interação entre
grupos em condições sociais pré-determinadas.
A partir da noção de projeto representacional, Bauer e Gaskel (1999) desenvolveram
um modelo que ficou conhecido como “toblerone” (figura 2), pela semelhança com o formato
do chocolate suíço homônimo. Nesse modelo, o triângulo Ego-Alter-Objeto é posicionado
numa linha temporal, compreendendo o processo histórico de transformação da representação,
em passado, presente e futuro. Ao investigarmos uma representação social, o que enxergamos
é um recorte de como a relação entre os sujeitos e o objeto se apresenta no momento da pesquisa,
a superfície do triângulo em um tempo determinado (t).
O modelo toblerone deu lugar ao que os autores denominam de “rosa dos ventos” (figura
3), ao considerar o contexto das relações de resistência e dominação entre os grupos sociais.
“[...] a extensão do modelo toblerone original para o modelo rosa dos ventos evidencia o valor
de tomar emprestado de outras teorias – nesse caso, o comportamento intergrupal e os
movimentos sociais – e demonstra o poder de síntese dessa teoria” (BAUER; GASKELL, 2008,
p. 347, tradução nossa). Para os autores, a TRS possui um poder heurístico ampliado ao ser
articulada com outras teorias, numa realidade que apresenta limites temporais e espaciais.
minoria, ou as minorias. Cada triângulo é uma representação distinta, de um grupo distinto, que
está relacionada às demais, circunscrita pelos limites da realidade.
Nosso objeto de estudo, a cidadania infantil, não pode ser entendido de forma isolada,
por se tratar de um objeto fronteiriço (BAUER; GASKELL, 2008), que estaria inserido nas
relações entre objetos de representação mais amplos, tais como democracia, participação e
direitos, produtos das condições históricas e das experiências individuais e sociais. Estes objetos
possuem uma longa história, e a forma como se apresentam na sociedade está diretamente
relacionada às crenças e opiniões dos grupos sociais e ao ordenamento institucional.
A cidadania pressupõe o reconhecimento dos sujeitos como membros de uma
comunidade local e/ou nacional, em igualdade de direitos com os demais, na concepção liberal
(MARSHALL, 1967), ou comprometidos com o interesse geral e o bem comum, na visão
comunitária (CORTINA, 1997). Mais do que um estatuto, neste trabalho propomos tratar a
cidadania enquanto processo psicossocial, que se materializa na institucionalização dos direitos
sociais, civis e políticos, em documentos e regulamentações, mas também no discurso e nas
práticas dos sujeitos.
As bases da democracia enquanto valor universal (COUTINHO, 1979) ou sistema de
crenças (MOSCOVICI, 1992) estariam representadas pelos direitos sociais e políticos, aliados
à participação enquanto prática social. No entanto, a democracia requer a constituição de uma
cultura compartilhada de respeito à liberdade e a diversidade.
[...] o que define a democracia não é, portanto, somente um conjunto de garantias
institucionais ou o reino da maioria, mas antes de tudo o respeito pelos projetos
individuais e coletivos, que combinam a afirmação de uma liberdade pessoal com o
direito de identificação com uma coletividade social, nacional ou religiosa particular.
A democracia não se apoia somente nas leis, mas sobretudo em uma cultura política
(TOURAINE, 1996, p. 26).
Fonte: o autor.
Esta relação entre Estado, sociedade civil e mercado envolve conflitos e tensões que têm
resultado numa crise da representação política (TOURAINE, 1996; CASTELLS, 2019), no
distanciamento da população da esfera pública e na percepção de uma falta de legitimação das
instituições democráticas, que também pode ser entendido como uma crise da autoridade
epistêmica (MARKOVÁ, 2017). A população não confia em suas instituições e não se sente
representada por seus representantes políticos, que constituem uma classe apartada do restante
da sociedade. A autoridade desses representantes não é reconhecida como legítima, não por
descrédito dos mecanismos democráticos, mas pela desconfiança de que esses representantes
atuam apenas em benefício próprio.
A consciência de cidadania enfraquece-se porque muitos indivíduos se sentem mais
consumidores do que cidadãos e mais cosmopolitas do que nacionais ou, pelo
contrário, porque alguns se sentem marginalizados ou excluídos da sociedade – com
efeito, têm o sentimento de que, por razões econômicas, políticas, étnicas ou culturais,
não chegam a participar dela (TOURAINE, 1996, p. 18).
55
Dessa forma, a cidadania que resulta da interação entre a participação, em suas diversas
instâncias; o conjunto de direitos civis, sociais e políticos titularizados pela população; e os
limites da atuação dos agentes sociais, condicionados pelo Estado e as instituições, é fruto de
um processo histórico, característico do cenário político-social contemporâneo, condicionado
pela democracia, sistema de governo e valor social.
[…] na construção da cidadania, a participação cidadã é considerada, na prática, como
o mecanismo essencial que fortalece a democracia e a cultura política. A formação de
uma cidadania ativa e crítica envolve a conversão de indivíduos em agentes sociais
com a possibilidade de projetar uma mudança societal. Em termos participatórios,
uma interação menos hierárquica entre os cidadãos e as instituições do Estado seria
favorecida, alcançando um aperfeiçoamento mútuo que implica um melhor
ajustamento dos processos democráticos e resultados positivos em termos de bom
governo e percepção de governança (ORTEGA RUBI, 2019, p. 7.2, tradução nossa).
A autora afirma não ter encontrado indícios de uma relação direta entre participação e
memória social, embora tenham sido utilizados instrumentos para investigar a importância da
memória social e de figuras históricas na construção da cidadania local, como forma de apelo à
identidade nacional.
6
Utilizamos a classificação proposta por Gohn (2019b) para distinguir as teorias que abordam o fenômeno dos
movimentos sociais.
56
7
Do original em francês, « On les considérait suffisamment vague et passablement abstraits pour n’en tenir
compte que de manière sélective ».
61
Acreditamos que as práticas dos grupos sociais, na luta pela construção democrática,
bem como os processos de comunicação que fundamentam a opinião pública, sejam passíveis
de análise por intermédio da Teoria das Representações Sociais. Na história recente do país, o
discurso e a atuação dos movimentos coletivos sobre os direitos sociais e políticos, serviu para
conduzir a população em direção à construção de uma identidade nacional democrática, embora
as desigualdades ainda persistam. Para Teixeira (2002, p. 29) “[...] a cultura política – ancorada
em valores e tradições de solidariedade e de ação coletiva e reforçada na prática cotidiana –
deve ser considerada não como uma variável independente, mas como mais um fator a
impulsionar a participação”.
Na próxima seção pretendemos mostrar de forma breve como se deu essa construção
histórica e quais são os obstáculos para a participação cidadã efetiva, cujos reflexos seriam
sentidos nas crenças sobre a cidadania infantil, entendida como um processo construído na
interação entre crianças e adultos.
62
A construção de uma sociedade democrática passa pela afirmação de que certos valores
são fundamentais e devem ser garantidos pelo Estado. A relação entre a cidadania, no sentido
do conjunto de direitos titularizados pela população, previsto em documentos legais como a
Constituição Nacional, e a democracia, não apenas como modelo de governo, mas como um
valor indissociável, representado pela participação popular, é uma relação construída
historicamente, entre avanços e retrocessos. Os estudos de Carvalho (2018) sobre o processo
de constituição dos direitos civis e sociais mostram a existência de diferentes concepções de
cidadania ao longo da formação do Brasil enquanto nação.
Isto quer dizer que a cidadania inclui várias dimensões e que algumas podem estar
presentes sem as outras. Uma cidadania plena, que combine liberdade, participação e
igualdade para todos, é um ideal desenvolvido no Ocidente e talvez inatingível. Mas
ele tem servido de parâmetro para o julgamento da qualidade da cidadania em cada
país e em cada momento histórico (CARVALHO, 2018, p. 9).
A primeira experiência democrática no país, período que se estende até o golpe militar
de 1964, se encerrou mesmo com o avanço da participação popular nas eleições, em parte pelos
efeitos da polarização e da radicalização dos partidos, atribuída a uma falta de convicção
democrática, mas também pela ausência de instituições capazes de resistir aos conflitos de
interesses das elites dirigentes. A população assistiu ao desenrolar dos eventos sem que tivesse
uma participação direta nas decisões, como se os rumos do país fossem traçados à revelia.
Os anos que se seguiram ao golpe militar, de 1964 a 1985, foram marcados pela forte
repressão aos direitos civis e políticos, censura e violência por parte do Estado. Carvalho (2018,
p. 176-177), relata uma série de ambiguidades durante a ditadura militar, como o aumento
vertiginoso no número de eleitores, mesmo que os resultados fossem manipulados para atender
os interesses do governo, a unificação do regime de previdência social, com a criação do
Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), e a incorporação dos trabalhadores rurais à
previdência, categoria historicamente excluída dos direitos trabalhistas.
[...] A avaliação dos governos militares, do ponto de vista da cidadania, tem, assim,
que levar em conta a manutenção do direito do voto combinada com o esvaziamento
de seu sentido e a expansão dos direitos sociais em momento de restrição de direitos
civis e políticos.
No cenário de luta pela redemocratização do país, Coutinho (1979, p. 41) afirma que
havia várias concepções de democracia, algumas até mesmo contraditórias entre si. Para o autor,
a ditadura militar era uma expressão de uma tendência elitista e autoritária inscrita na história
do país, com mudanças sempre vindo de “cima para baixo”. O autor fala em uma “debilidade
histórica” da democracia, e apontava como prioridade à época “[...] a construção e consolidação
de determinadas formas de relacionamento social que, num primeiro momento, não deverão
provavelmente ultrapassar os limites da democracia liberal” (COUTINHO, 1979, p. 42). A
transição da democracia liberal para uma democracia socialista, ocorreria a partir da
socialização da participação e da ampliação do acesso da população à vida política.
Mesmo após os avanços democráticos a partir da Assembleia Constituinte de 1987, e da
promulgação da Constituição Federal (CF) de 1988, os efeitos da ditadura militar e dessa
tendência histórica ao elitismo observada por Coutinho (1979) permaneceram no país, nas
práticas políticas populistas e na cultura de violência nas instituições de segurança pública,
razão pela qual Carvalho (2018) se refere à década de 1990 não como período de
redemocratização, mas de construção da democracia.
A Constituição Federal de 1988 representa a retomada de direitos civis e políticos, além
da ampliação do papel do Estado como garantidor desses direitos, em oposição ao estado
repressor da ditadura militar. Em detrimento da constituição, “[...] a dinâmica política segue,
contudo, demarcando, para a maior parte da sociedade, uma cidadania tutelada, restrita e
funcional ou de segunda ordem” (DOURADO, 2019, p. 7), ou seja, ainda que a pauta dos
movimentos sociais por direitos sociais e políticos tenha resultado na redemocratização do país,
no quesito da cidadania ainda se observava os efeitos históricos da desigualdade social.
Avritzer (2013, p.11) localiza na Assembleia Nacional Constituinte o início do
aprofundamento democrático, devido à intensa participação de movimentos sociais e de outros
atores, o que levou à “explosão da participação social no Brasil” nos anos que se seguiram. A
partir do processo de redemocratização, no final da década de 1980, foram criados vários
dispositivos de controle social e de aproximação da sociedade civil com a esfera de decisão,
por meio da institucionalização da participação social e popular.
Os movimentos sociais foram uma figura chave na redemocratização do país, e os
efeitos da incorporação desses atores e dos mecanismos de participação foram sentidos à
medida em que se acentuou o distanciamento da classe política, percebida pela população como
um segmento que atua apenas a favor de seus próprios interesses. Foi esse sentimento de
descrédito, aliado à crença na participação popular o que levou os brasileiros às ruas novamente
66
nascida no Brasil democrático, não viu se cumprirem as promessas de que a democracia traria
um fim às desigualdades sociais. Apesar dos avanços nos direitos sociais, como a Lei nº
12.711/2012 (BRASIL, 2012), responsável por destinar 50% das vagas das universidades
públicas para estudantes oriundos de famílias com renda per capita abaixo de um salário-
mínimo e meio8, que tenham sido escolarizados em escola pública, e a expansão dos programas
de transferência de renda, como o Bolsa Família, o índice de desemprego tem crescido
significativamente nos últimos anos, principalmente entre a população mais jovem.
Recentemente, os impactos causados pela pandemia de Covid-199, mostram que a população
mais pobre é a mais atingida pelas crises, sendo encontrado um índice de mortes mais alto entre
a população negra e periférica (MATTA et al, 2021).
No âmbito da participação, o que ocorreu após a redemocratização, mais
especificamente no governo dos presidentes Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Roussef, foi
“[...] o estímulo explícito à diversificação de formas de participação e sua crescente adoção, ao
longo dos anos 2000, observou-se uma mudança impressionante na “porosidade” da ação
governamental às influências dos cidadãos e organizações da sociedade civil” (PIRES, 2013, p.
36), sendo a participação social considerada uma marca da gestão dos governos do Partido dos
Trabalhadores (PT).
Instaura-se um cenário ao mesmo tempo de insuficiência e de esgotamento da
participação social (PIRES, 2013), onde ocorre um duplo movimento, por um lado a ampliação
da participação institucionalizada, na incorporação da participação cidadã como estratégia de
governo, com a criação de diversos conselhos e conferências, paralela à diminuição dos efeitos
da participação social, com a criação de comissões e órgãos técnicos aos quais a população não
tem acesso, responsáveis pela construção de grandes obras de infraestrutura e as ações de
desenvolvimento econômico, apesar dos protestos sociais.
De um lado, as demandas sociais são postas como direitos (ainda que limitados),
abrindo espaço à participação cidadã via ações cidadãs. De outro, há perdas,
principalmente de autonomia dos movimentos e o estabelecimento de estruturas de
controle social de cima para baixo, nas políticas governamentais para
os movimentos sociais. O controle social instaura-se, mas com sentido dado pelas
políticas públicas, ainda que haja a participação cidadã no estabelecimento das
normativas (GOHN, 2011, p. 340).
8
O salário-mínimo em vigor no ano de 2021 foi estabelecido no valor de R$1.100.
9
A COVID-19 é uma doença infecciosa causada pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2).
68
Guareschi e Guerra (2019, p. 368) afirmam que a psicologia social oferece ferramentas para a
compreensão dos efeitos da comunicação e da mídia sobre o discurso público, pois o fenômeno
das notícias falsas atinge a população no nível afetivo e ideológico, contrariando a noção do
sujeito racional da modernidade.
[...] É por esse aspecto que consideramos relevantes as contribuições que a psicologia
social pode somar à busca por compreensão desse processo, oferecendo uma
interpretação que relacione os chamados elementos objetivos (quantitativos,
numéricos, econômicos) aos chamados elementos subjetivos (qualitativos,
discursivos, psicossociais).
A próxima seção abordará os modelos de participação que serviram de base para a nossa
pesquisa, inclusive os modelos construídos no âmbito da avaliação da participação de crianças
e adolescentes, que consideramos adequados para abordar a cidadania infantil, nosso objeto de
pesquisa. A noção de responsabilidade (MARKOVÁ, 2017), será apresentada como uma
alternativa à concepção da cidadania enquanto um conjunto de direitos e deveres, fundamental
para o ensino e aprendizado de valores e da alteridade.
Marková (2017) fala sobre uma possibilidade de ruptura da tríade dialógica na educação,
quando a assimetria se dá não apenas entre os participantes das relações, mas entre os objetos
imaginados ou representados por estes. Quando alunos e professores buscam objetos de desejo
(figura 6), tais como fama, dinheiro ou poder, as relações tendenciam para o objeto, em
detrimento de uma aprendizagem dialógica, ilustrada pelo desvio e distanciamento dos vértices
do triângulo. A crise da autoridade e da confiança epistêmica são consequências dessa ruptura,
na busca de satisfação dos desejos na sociedade de consumo.
Fonte: o autor.
Para a autora, os valores e crenças compartilhados pelos sujeitos são fundamentais para
a compreensão da herança cultural da comunidade, que teria um efeito na construção da
cidadania, das relações de poder e da comunidade política. O compartilhamento dos mesmos
valores e crenças estabeleceria um consenso, permitindo a comunicação entre os membros do
grupo acerca do objeto representado. A desigualdade de poder nas relações entre os grupos
sociais faz com que os valores considerados hegemônicos sejam impostos ao restante da
sociedade por meio da educação e da socialização, como uma visão de mundo dominante, que
ignora as diferenças culturais e identitárias.
los valores son considerados como referentes, pautas o abstracciones que orientan el
comportamiento humano hacia la transformación social y la realización de la persona.
Son guías que dan determinada orientación a la conducta y a la vida de cada individuo
y cada grupo social (GUTIERREZ, 2011, p. 8).
Os valores são um tipo específico de crença, que orienta a ação individual e coletiva ao
oferecer uma direção desejada para o comportamento. Como forma de conhecimento prático,
as representações sociais são construídas tendo como referência os valores do grupo, que
determina a percepção e a ênfase em determinadas características dos objetos, num processo de
focalização, como demonstra a ausência da libido na representação social da psicanálise
identificada por Moscovici (2012) na sociedade francesa da década de 1960.
A cidadania, enquanto representação social, pode ser perpassada por valores
democráticos, como a tolerância e o respeito, ou autoritários, como a força e a competição, de
acordo com o modelo de sociedade historicamente construído. No Brasil, as relações sociais
possuem resquícios das relações autoritárias e da segregação étnico-racial que marcou o país,
desde a colonização portuguesa.
Ortega Rubí (2019) propõe investigar a participação a partir de um olhar psicossocial,
como forma de compreender a construção da cidadania e dos processos democráticos. A autora
denomina esse processo de mudança do paradigma do individual para o social, baseado no
conceito de subjetivação (o processo de tornar-se sujeito). O desafio das sociedades
contemporâneas consistiria na mudança de uma concepção de sujeito enquanto consumidor,
característica do capitalismo de mercado, para um agente de transformação social, por meio de
um contexto de formação e de reflexão acerca das práticas de participação e das subjetividades.
O modelo de investigação desse paradigma requer uma abordagem multimetodológica
e interdisciplinar, devido à complexidade do fenômeno e das consequentes transformações
sociais que uma cidadania mais participativa engendra. A autora também ressalta a importância
da memória social como recurso para compreender o presente e para a constituição de uma
76
identidade comum, a partir dos fatos históricos e da forma como estes permanecem no
imaginário coletivo e nas práticas sociais. O resgate da memória coletiva serviria como
estratégia de fortalecimento da identidade e incentivo ao pensamento crítico.
[…] No processo de construção de uma cidadania ativa, o papel da memória é criar e
renovar os significados, a começar pelas estruturas com as quais os cidadãos se
identificam ao compartilhar determinados valores sociais e fatos históricos aos quais
aderem emocionalmente. A memória favorece a compreensão do que acontece no
presente (ORTEGA RUBI, 2019, p. 7.14, tradução nossa).10
A participação implicaria uma espécie de sincronia entre o que se pensa e o que se faz,
pois, na relação dinâmica entre representações e práticas sociais (ABRIC, 1994; CAMPOS,
2003; WOLTER; SÁ, 2013), os sujeitos e grupos que mais participam são aqueles que possuem
maior incentivo para fazê-lo, que constroem uma atitude favorável sobre a participação cidadã
(ORTEGA RUBÍ, 2019). A percepção dos efeitos positivos da ação social contribuiria para o
aumento da motivação e a adesão aos diferentes estilos de participação, resultando num
aumento do comportamento participativo.
O oposto também é verdadeiro, uma atitude desfavorável seria consequência da
percepção de que a participação não resulta em mudanças significativas na qualidade de vida
dos sujeitos, de que não vale a pena participar, ou de que participar é arriscado, como
identificado pela autora no discurso de alguns jovens mexicanos, quando se referem à violência
urbana e a falta de acesso a serviços básicos (ORTEGA RUBÍ, 2019).
A investigação do paradigma é baseada em três processos contínuos: resistência,
agência e transformação social, A resistência diz respeito à relação do pensamento social com
as formas de conhecimento reificado, como a ciência e a ideologia, de forma que os grupos são
capazes de ressignificar os conhecimentos e integrá-los ao seu sistema cognitivo de forma ativa.
Por agência, entende-se as possibilidades de ação, da forma como são percebidas pelos sujeitos,
tendo como objetivo final a transformação social por meio da ação coletiva.
Nesse processo, “[...] a vida cotidiana, representações sociais, práticas e a memória
social adquirem relevância epistemológica no estudo da participação cidadã e da construção da
cidadania” (idem, p. 7.9, tradução nossa). É importante frisar que o modelo articula
representações, práticas e memória social, como elementos do processo de subjetivação, mas
10
In the process of building an active citizenship, the memory’s role is to create and renew meaning, beginning by
the frames with which citizens feel identified when sharing certain social values and historical stories with which
they adhere emotionally. Memory favors the understanding of what happens in the present (ORTEGA RUBI, 2019,
p. 7.14).
77
11
Formation of participation in the process of building an active citizenship, is the culmination of a formation
process of social-critical thought from which social change is formulated and cultural bases are strengthened so
that democratization extends and penetrates all spaces and times of society (ORTEGA RUBÍ, 2019, p. 7.9).
78
No caso das crianças e adolescentes, houve uma evolução do seu estatuto de cidadãos
ao longo do século XX, passando de cidadãos incompletos, em vias de concretização, a
cidadãos plenos, tendo reconhecidos os seus direitos, inclusive à participação política. Casas
(2006) postula que o processo histórico dos direitos da criança teve seu maior avanço no último
século, quando as crianças ganharam o “direito a ter direitos”. Landsdown (2014) afirma que
até a promulgação da Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC), os direitos civis da
80
criança diziam respeito a ter um nome e uma nacionalidade, embora os direitos de provisão e
proteção já estivessem bem estabelecidos.
A luta em prol dos direitos da infância, desde a primeira conferência da Organização
Mundial do Trabalho, em 1919, que regulamentou o trabalho infantil e garantiu melhores
condições para as operárias, culminou no âmbito mundial na Convenção sobre os Direitos da
Criança (CDC), promulgada em 1989, que consolida a concepção da criança enquanto sujeito
de direitos, após um longo processo de discussões iniciado no Ano Internacional da Criança,
em 1979.
Para Canavieira e Barbosa (2017, p. 373),
[...] o que é premente considerar, a partir dos excertos que se originam da CDC, é o
papel atribuído à participação infantil, enquanto cidadania participativa. Para tanto,
reputa-se à participação valor em si mesma, pois passa a constituir-se como condição
para efetivar o discurso que impulsiona os direitos.
guerra e demais conflitos, ilustrando “[...] a violação universal dos direitos da criança sempre
que os interesses econômicos ou políticos hegemônicos sobrelevam as necessidades de proteção
e desenvolvimento infantil” (MARCHI; SARMENTO, 2017, p. 960).
O campo dos Estudos Sociais da Infância afirma a necessidade de se avançar de um
paradigma de proteção da infância para o paradigma de participação infantil, pois “ao protegê-
las e garantir-lhes a segurança, simultaneamente, é negado a elas à possibilidade de serem
reconhecidas como participantes ativas das suas vidas e, por isso, cidadãos” (BROSTOLIN,
2021). O desafio consiste em encontrar um ponto de equilíbrio entre participação e proteção.
Nesse sentido, a escola ainda se constitui como principal ambiente de socialização das
crianças, porém em seu cerne persiste uma lógica que reproduz relações autoritárias, ao
contrário do que se pretende em uma sociedade democrática. Para Gaitán Muñoz (2020, p. 104),
“[...] os sistemas educacionais enfrentam um paradoxo: por um lado, têm a missão de formar
os alunos nas virtudes da cidadania, mas ao mesmo tempo oferecem pouca chance de praticá-
los, devido à desconfiança institucionalizada que estrutura as interações educacionais”.
A criança não é chamada a participar das decisões no ambiente escolar, exceto em datas
comemorativas e nos momentos de confraternização da comunidade escolar, sendo inserida
num espaço planejado e construído por adultos, que determinam o que se deve fazer e quando
se deve fazer, ou seja, a criança permanece num espaço de participação tutelada.
Embora tenha sido incluído na LDB (2007) um parágrafo sobre a necessidade de
material que verse sobre os direitos das crianças e adolescentes, é necessário ir além da
alfabetização e letramento em direitos. Conhecer os direitos é aspecto fundamental para o
exercício da cidadania, todavia transformar e democratizar a escola é tarefa imperativa.
[...] ela (a escola) deve ser revista na sua estrutura, organização, crenças e valores, de
modo a tornar-se um lugar privilegiado da infância e da criança e de sua participação
enquanto ser social de direitos e cidadã, para que possa melhor distribuir o poder no
seu âmbito e, quiçá, na sociedade (OLIVEIRA; REIS, 2013, p. 77).
A partir dos estudos das diferentes manifestações de participação infantil ocorridas após
a Convenção sobre os Direitos da Criança, em pesquisa para o Fundo das Nações Unidas para
Infância (UNICEF), Hart (1992) criou o diagrama denominado Escada de Participação (do
original Ladder of Participation) (figura 8), a partir de uma adaptação da metáfora criada por
Sherry Anstein em um ensaio de 1979. A escada é considerada o primeiro modelo de avaliação
da participação infantil, sendo composta por 8 degraus, três níveis de não-participação e cinco
níveis de participação. O autor considera que esse modelo poderia ser utilizado para maximizar
as oportunidades de participação em projetos, de acordo com a capacidade de cada criança, ou
na avaliação de ações e políticas públicas.
Trilla e Novella (2001) afirmam que, ao utilizar a metáfora da escada, o modelo de Hart
conforma os níveis de participação numa figura evolutiva, como se cada nível fosse
12
Aqui utilizamos a tradução de Brostolin (2021), que por usa vez é embasada em Marques (2013).
85
3 PERCURSO TEÓRICO-METODOLÓGICO
A Teoria das Representações Sociais (TRS) foi criada há mais de 50 anos por Serge
Moscovici, quando da publicação de seu estudo intitulado “A psicanálise: sua imagem e seu
público”13 (MOSCOVICI, 2012), no qual o autor se baseou na sociologia de Durkheim, mais
especificamente na noção de representação coletiva, para analisar a forma como o
conhecimento científico, no caso a psicanálise, se espalhou pela sociedade parisiense na década
de 1960. O autor observou a difusão do conhecimento científico da psicanálise e sua integração
ao senso comum, na apropriação dos conceitos e noções pelos grupos sociais a partir das
comunicações e interações cotidianas.
Ao abordar o conhecimento construído pelos grupos no cotidiano, o autor observou que
esta modalidade de conhecimento, denominada de senso comum, tem a intenção de criar uma
realidade comum ao grupo social, tornando familiar o não-familiar, permitindo a expressão das
especificidades da relação do grupo com os objetos da realidade social.
Para Palmonari e Cerrato (2011, p. 411), “[...] Moscovici elaborou o conceito de
representação social para explicar o comportamento social de um tipo particular de sociedade,
a sociedade contemporânea, ligada aos processos de comunicação e informação social”. Sua
opção pelo conceito de representação social, se justifica pela afirmação que o conceito de
representações coletivas criado por Durkheim se referia a um tipo de crenças e sistemas de
pensamento social de estrutura rígida, capaz de exercer efeito coercitivo sobre os indivíduos,
na regulação das relações sociais. Na sociedade contemporânea, poucas são as crenças
compartilhadas pela totalidade dos indivíduos e o dinamismo da comunicação e das relações
interpessoais faz com que os sistemas de pensamento estejam em constante transformação.
O caráter híbrido atribuído por Moscovici às representações sociais, na interface entre a
dimensão social e a dimensão psicológica da realidade, explica em parte a longevidade da
teoria, que após cerca de duas décadas de “latência”, tomou uma proporção inimaginável para
o próprio autor, alcançando uma abrangência e importância únicas no âmbito da Psicologia
Social e das Ciências Humanas, devido à flexibilidade dos conceitos e a falta de uma definição
rígida (RATEAU et al, 2012).
Segundo Moscovici (2007), as representações sociais possuem duas funções principais:
convencionalizar os objetos da realidade comum, classificando, categorizando e integrando-os
13
A obra “La Psychanalise: son image et son public” foi publicada originalmente na França em 1961, e passou
por uma revisão do autor em 1976, adquirindo o formato atual.
89
Nesse contexto, a cultura seria o pano de fundo no qual ocorrem todas as interações
entre os sujeitos, que reconhecem a si mesmos e aos outros tendo como referência uma
identidade social criada a partir de seus grupos de pertença. Diferente da estratificação presente
90
Para uma oposição diádica se tornar uma thêmata e gerar representações sociais, ela
precisa ser atualizada no discurso, por meio da linguagem e da comunicação. As representações
sociais produzidas no espaço público são fortemente marcadas pela oposição Eu-Outro. A
interação social se baseia na relação de complementaridade e interdependência entre os grupos,
na qual os conflitos e tensões refletem o posicionamento dos grupos no campo representacional.
A interação social dialógica implica no reconhecimento da interdependência entre o Eu
e o Outro na construção do conhecimento e do objeto, como afirma Marková (2017, p. 132),
[...] A unidade existencial inquebrantável subjacente à dialogicidade compreende o
Ego e o(s) Outro(s) (ou o Ego-Alter). “Outros” podem ser outros homens ou suas
criações como instituições, tradições estabelecidas cultural e historicamente,
costumes morais e assim por diante. Embora se possa argumentar que o Ego não se
comunica diretamente com instituições ou tradições, ele interage com suas
representações sociais e com representantes das instituições. Interpreta normas e
regras, seleciona significados específicos e tenta mudá-los. Nessa medida, o Ego e os
Outros, institucionalmente estabelecidos, formam uma relação de interdependência.
sistema de categorias que, assim como as representações sociais, tem como pano de fundo um
discurso comum, a cultura. Os objetos não existem numa realidade a priori, eles são
representados a partir da experiência que o sujeito estabelece com eles.
É por meio da troca, da partilha com o outro que a experiência individual é validada,
reconhecida. “[...] Assim, a experiência social é marcada pelos enquadramentos da sua
enunciação e da sua comunicação” (JODELET, 2017, p. 438). Portanto, falamos de uma
experiência que é construída socialmente, por meio da intersubjetividade, na comunicação entre
os sujeitos em determinadas condições sociais. A autora fala na reciprocidade entre os atores
sociais, condição necessária para a intersubjetividade, embasada na fenomenologia social de
Schütz. Essa condição se aproxima das noções de confiança e autoridade epistêmica, como
identificados por Marková (2017), base da interação dialógica.
Para Jodelet (2017, p. 445), o uso da noção de experiência articulada às representações
sociais requer alguns esclarecimentos,
[...] a experiência vivida: - remete sempre a uma situação local concreta;- é uma
forma de apreensão do mundo pelos significados que ela lhe atribui ; - ganha
forma na sua expressão e conscientização por meio de códigos de natureza social;
- é analisada mais frequentemente a partir do encontro intersubjetivo que implica
um fundo comum de saberes e significados; - exige a autenticação dos outros; -
tem funções práticas na vida cotidiana, remetendo ao modo de existência dos
sujeitos na sua realidade concreta e viva.
14
Jodelet (2017) usa o termo implicação afetiva, sabemos que a noção de ativação de elementos e cognemas está
relacionada a uma visão estrutural da representação social (WACHELKE, 2013).
94
A noção de sistema não é estranha à Teoria das Representações Sociais, embora o estudo
seminal de Moscovici (2012) se refira à constituição de um modelo figurativo da psicanálise,
como resultado do processo de objetivação. O funcionamento da representação social enquanto
produto e processo sociocognitivo, fruto da interação e comunicação entre os membros de um
grupo, prevê uma dinâmica entre os elementos que compõem essa modalidade específica de
conhecimento, na formação de um sistema de crenças descritivas e prescritivas.
Abric (1994) se refere a um sistema de categorização social por meio do qual a
representação operaria a integração de novos objetos sociais ao repertório cognitivo do grupo.
Posteriormente, a categorização foi incluída como parte das funções do sistema central da
representação social. A associação entre objetos de representação social tem sido estudada pelos
pesquisadores da Abordagem Estrutural, em oposição ao estudo de representações isoladas.
Garnier (2015) aponta a necessidade da mudança de um olhar individualista, na medida
em que os indivíduos têm permanecido como a unidade de pesquisa, para uma visão holística
do fenômeno de representação social. Não se pode afirmar que a representação social é a soma
das representações individuais, mas em grande parte das pesquisas, a representação tem sido
inferida a partir da média dos discursos individuais, por meio de técnicas estatísticas
(LAHLOU; ABRIC, 2012).
As representações sociais costumam ser descritas como um conjunto de cognemas,
neologismo cunhado por Codol (2011, p. 21.5, tradução nossa) para se referir a menor e mais
básica unidade cognitiva. O universo cognitivo seria o conjunto de cognemas de um indivíduo,
que possui propriedades específicas e estabelece relações entre o sujeito e o objeto social que
busca representar.
95
15
We call “representation” any form of interdependence between the cognemes of an individual in connection
with a given object (or object class). Therefore, there cannot be a representation per se; for an individual, a
representation can only exist in reference to an object.
96
16
Moscovici (2012) postula que três dimensões influenciam a gênese da representação social: informação,
atitude e campo do objeto.
98
realidade social, que podem ser mais relevantes para o grupo pesquisado. Parafraseando
Flament (apud ABRIC, 1994), mais importante do que descobrir a representação de um objeto,
é saber que objeto está sendo representado.
Ao longo da nossa pesquisa, na tentativa de abordar o fenômeno da cidadania infantil,
realizamos dois estudos, um estudo com crianças e um segundo estudo com adultos, na tentativa
de apreender os significados atribuídos ao fenômeno da cidadania infantil. Devido às condições
em que a pesquisa foi realizada, durante a pandemia de covid-19, não foi possível observar a
interação direta entre crianças e adultos, principalmente no segundo estudo, mas acreditamos
que os grupos fazem referência uns aos outros no discurso, como forma de se identificar e se
posicionar em relação ao objeto. É por meio dessa identificação/diferenciação que os sujeitos
aderem à determinado conteúdo representacional ou prática, como forma de reforçar o
sentimento de pertença.
A forma como a criança se identifica/diferencia do adulto e das demais crianças, a partir
da representação e adesão às práticas de participação e voluntariado, será tratada no estudo 1.
Já as imagens e representações sociais utilizadas pelos adultos, para se referirem à criança, mais
especificamente as professoras de educação infantil da rede municipal de educação, dizem
respeito à posição que estas ocupam no espaço social, como veremos no estudo 2.
pensamento (opiniões, representações, ideologia) estão sendo evocadas pelos sujeitos para se
referirem ao objeto de pesquisa.
Em oposição aos estudos comumente realizados no âmbito da TRS, cujo foco é a
delimitação da representação de um objeto isolado, da forma como é construída por um grupo
específico, a escolha de uma abordagem sistêmica para o estudo das representações sociais
busca dar conta da complexidade das situações reais, por meio da investigação das relações que
os objetos sociais estabelecem entre si, na articulação de conjuntos ou sistemas de
representação.
A perspectiva sociogenética busca “[...] entender o objeto representacional como
fenômeno dinâmico, sua gênese como uma trajetória no tempo presente e na história, sua
expressão enquanto conhecimento social e prático, fruto das conjunturas históricas, políticas e
culturais e da comunicação social” (KALAMPALIKIS; APOSTOLIDIS, 2016, p. 2, tradução
nossa). Ao identificar as condições de gênese da representação social, considerando o
pensamento social enquanto processo cognitivo e simbólico, essa abordagem se aproxima dos
objetivos estabelecidos por Moscovici (2012) na pesquisa em TRS.
Considerando a transdisciplinaridade da TRS e a ausência de um método específico para
o estudo do fenômeno de representação, os autores recomendam o “politeísmo
metodológico”17, em alusão à diversidade de metodologias disponíveis para a pesquisa e
contrapondo-se aos riscos de engessamento e fetichismo do método. Apenas a utilização de
uma abordagem pluri ou multimetodológica permitiria dar conta da complexidade dos
fenômenos representacionais, pois, a partir do uso de instrumentos complementares, tanto
qualitativos e quantitativos, o pesquisador pode proceder a uma triangulação sistemática,
abordando o fenômeno de representação sob diferentes ângulos.
A triangulação permitiria “[...] estudar a relação entre o processo e o produto da
atividade representacional” (KALAMPALIKIS; APOSTOLIDIS, 2016, p. 10, tradução nossa),
ou seja, as condições sociais e históricas em que emerge o objeto de representação e a dinâmica
entre os elementos na sua possível estruturação. Considerar a representação enquanto processo
significa compreender como essa modalidade de conhecimento social se torna um guia de
leitura da realidade, capaz de produzir condutas e práticas que justifiquem à inserção ou adesão
dos sujeitos a determinadas crenças.
É necessário salientar que nem todo objeto é objeto de representação social e muitas
representações não possuem uma estrutura definida, devido à natureza da relação do grupo com
17
em oposição a ideia de monoteísmo (o culto de um Deus uno).
100
Os dois projetos que serviram de base para a nossa pesquisa, o P’tits Volontaires de
Paris e o Cribiás, crianças sabidas, em Cuiabá, articulam as dimensões formais e não-formais
101
da educação, tendo como fundamento a concepção da criança enquanto ator social competente,
no fomento à participação e ao protagonismo infantil. Ambos os projetos constituem espaços
de formação que envolvem relações intergeracionais menos hierarquizadas, permitindo a
comunicação entre crianças e adultos, na discussão e proposição de atividades. Acreditamos
que essa experiência de construção coletiva de significados é o que possibilitaria o
desenvolvimento de uma representação de cidadania infantil, ainda que com elementos
simbólicos distintos, próprios ao contexto dos grupos sociais envolvidos.
A opção pela etnografia enquanto estratégia de pesquisa está na possibilidade de
adaptação do método para o campo da educação, como já referenciado por autoras como André
(2005) e Mattos (2011). A etnografia se propõe a reconstruir o universo simbólico de um grupo,
a partir da observação de comportamentos e práticas. Nossa experiência/vivência do doutorado
sanduíche nos permitiu o uso da Etnografia Baseada em Evidência Subjetiva (SEBE)18,
desenvolvida por Lahlou (2011; 2017), que tem como diferencial o uso de recursos tecnológicos
de pesquisa com vídeo, para dar acesso à atividade na perspectiva do próprio sujeito, de forma
complementar à observação participante tradicional.
A etnografia é um esquema de pesquisa desenvolvido pelos antropólogos para estudar
a cultura e a sociedade. Etimologicamente etnografia significa “descrição cultural”.
Para os antropólogos, o termo tem dois sentidos: (1) um conjunto de técnicas que eles
usam para coletar dados sobre os valores, os hábitos, as crenças, as práticas e os
comportamentos de um grupo social; e (2) um relato escrito resultante do emprego
dessas técnicas (ANDRÉ, 2005, p. 24).
A atuação como facilitador do projeto P’tits Volontaires, realizada pelo IEA de Paris
em parceria com associações da sociedade civil, se deu enquanto bolsista no âmbito do
Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior (PDSE), registrado na CAPES sob o processo
de nº 88881.362035/2019-01 (anexo I). A partir dos dados produzidos no âmbito do projeto,
fizemos uma análise da experiência de formação das crianças, com o intuito de identificar
mudanças na forma como as crianças representam a cidadania e a participação.
É importante frisar que o nosso estudo não pode ser caracterizado como um estudo
etnográfico clássico, tal como realizado por Jodelet (2015) no estudo das representações sociais
da loucura. A articulação de instrumentos de pesquisa tais como a SEBE, a observação
participante, entrevistas e pesquisa documental nos permitiu a realização de uma pesquisa do
tipo etnográfico, embora tenhamos que reconhecer os limites da pesquisa empreendida, devido
à redução do tempo da pesquisa de campo e do envolvimento com o grupo pesquisado no estudo
18
Do original em inglês, Subjective Evidence Based Ethnography. Optamos por traduzir o nome da técnica, mas
manter a sigla original, para facilitar a indexação e a busca dos trabalhos.
102
19
4º distrito de Paris, que compreende a região central da cidade, onde estão localizados monumentos históricos
como a Catedral de Nôtre-Dame. Recentemente, as subprefeituras do 1° ao 4º distrito passaram por um processo
de fusão administrativa, resultando na criação da Mairie Paris Centre (https://mairiepariscentre.paris.fr/).
103
O material obtido com as entrevistas semiestruturadas também passou por uma análise
lexical, com o auxílio do software livre IRAMUTEQ20, que permite lidar com grandes volumes
de dados discursivos, por meio de uma série de tratamentos estatísticos do corpus textual, desde
a análise lexicográfica clássica às análises estatísticas multivariadas, incluindo o método de
Classificação Hierárquica Descendente (denominada de Método Reinert, em homenagem a
Max Reinert, criador do software Alceste).
O software tem sido amplamente utilizado nas pesquisas no âmbito da Teoria das
Representações Sociais (TRS), para análise de documentos, entrevistas, artigos e material
discursivo de reportagens de sites de notícias ou redes sociais, como apontam Sousa et al
(2020). Os dados gerados pelo Iramuteq podem complementar a análise de conteúdo,
permitindo ao pesquisador fazer uma triangulação metodológica na produção e análise dos
resultados da pesquisa.
Com o auxílio do IRAMUTEQ, realizamos uma Classificação Hierárquica Descendente
(CHD), no intuito de identificar os núcleos semânticos que estruturam o discurso dos
participantes em relação ao objeto de pesquisa. A CHD consiste em “[...] uma análise de
agrupamentos (clusters) sobre os segmentos de texto de um corpus, de modo que o material é
sucessivamente particionado em função da co-ocorrência de formas lexicais nos enunciados”
20
Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires, sofware livre de código
aberto, desenvolvido por Pierre Ratinaud. O software está disponível para download na página
http://www.iramuteq.org/.
104
(SOUSA et al, 2020, p. 5), para identificar o possível agrupamento do discurso em classes ou
mundos lexicais.
O software também nos permitiu fazer uma análise fatorial de correspondências (AFC),
de forma a observar a distribuição do discurso em um plano fatorial de duas dimensões, no
intuito de identificar oposições e aproximações entre sujeitos, variáveis e elementos
(NASCIMENTO; MENANDRO, 2006). Segundo Sousa e Gondim et al. (2020, p. 6), “quando
utilizada no método Reinert, a AFC relaciona formas linguísticas e variáveis de contexto com
as classes resultantes da CHD”, o que permitiria a visualização da possível relação entre as
classes derivadas do tratamento estatístico da CHD.
De posse dos dados gerados pelo programa, cabe ao pesquisador interpretá-los com base
no referencial teórico, atribuindo sentido ao material e construindo hipóteses explicativas sobre
o fenômeno estudado (KALAMPALIKIS, 2003), pois a organização e distribuição do discurso
nas classes oferece indícios da possível existência de um fundo associativo comum. No entanto,
os resultados não possuem um sentido em si mesmo, sendo necessário um embasamento teórico
bem constituído para interpretar as relações entre o discurso do grupo e o fenômeno investigado.
É importante frisar que as palavras utilizadas pelas participantes para se referirem ao
objeto não podem ser consideradas elementos de representação per se, ou seja, a análise das
classes obtidas com a CHD demanda por parte do pesquisador a construção de hipóteses de
uma possível organização e dinâmica da representação enquanto processo sociocognitivo, mais
do que a simples descrição do conteúdo presente no discurso. O método permite a identificação
de “mundos lexicais”, lugares de referência na produção do discurso do grupo. Não se trata de
repetir o que os sujeitos dizem, mas de analisar a forma como o discurso expressa um processo
de pensamento e a natureza da relação com um objeto social.
A adoção de um olhar multimetodológico (SOTIRAKOPOULOU; BREAKWELL,
1992) nos permitiu fazer uma triangulação dos dados, visando maior fidedignidade ao estudo
na descrição do contexto e da experiência de formação a partir dos próprios participantes. O
uso articulado de métodos, técnicas e ferramentas se faz necessário devido à complexidade dos
fenômenos de representação social. Em nossa pesquisa, a triangulação se deu entre o conteúdo
representacional presente no discurso e nas práticas das crianças e as imagens sociais sobre a
infância e a participação evocadas pelas professoras Cribiás, na tentativa de identificar
elementos comuns entre as representações que orientam à ação de crianças e adultos.
Considerando que nem todo objeto adquire relevância suficiente para ser representado
e integrado ao universo simbólico de um grupo, condição sine qua non para a gênese de uma
105
Fonte: o autor.
Fonte: https://planmetro.paris/
21
Cours Moyen (CM) se refere à 3ª etapa de escolarização de base no modelo francês, que antecede o collège, o
que equivaleria no Brasil ao início da segunda etapa do ensino fundamental.
108
Autores como Trilla e Novella (2001), Sarmento, Fernandes e Tomás (2007) e Blatrix
(2009) se referem à iniciativa dos Conselhos de Crianças e Jovens nos países europeus como
uma forma de ampliar as possibilidades de participação política dessa parcela da população que
não possui direito a voto e, portanto, não possui representação na esfera pública. Hart (1992)
cita projetos realizados por Organizações Não-Governamentais (ONGs) com crianças em
condições de marginalização e de violação de direitos que incentivam a autonomia e a
mobilização social como forma de combate à exclusão em países periféricos.
A partir da produção do campo da Sociologia da Infância, as significações atribuídas à
cidadania e à participação infantil foram analisadas, de forma a caracterizar os tipos de
participação presentes no contexto associativo francês, além das condições psicossociais que
favorecem o engajamento das crianças em atividades de formação cidadã.
Optamos por utilizar a SEBE (LAHLOU, 2017) devido ao seu potencial na reconstrução
da experiência subjetiva por meio do uso de gravações em vídeo na perspectiva em primeira
pessoa (first person perspective ou FPP, em inglês), com o auxílio de uma microcâmera,
denominada subcam (figura 14) e da possibilidade de incluir as crian22ças como participantes
ativos na pesquisa.
Fonte: o autor.
22
Optamos por traduzir a técnica como Etnografia Baseada em Evidência Subjetiva (CAMPOS; BRANDÃO,
2022), mas manter a sigla no original em inglês.
109
que muitos se candidatem a cargos eletivos quando adultos ou que continuem a se engajar no
processo democrático por meio de associações ou conselhos populares.
O Conseil Municipal des Enfants du 4e (CME) foi uma iniciativa da subprefeitura do 4º
distrito de Paris que permitia às crianças escolarizadas na região, nas classes de CM1 e CM2
(na faixa etária aproximada de 9 a 11 anos), a participação em plenárias e a construção e votação
de projetos para o distrito, principalmente no âmbito do orçamento participativo. A iniciativa
não é restrita ao 4ème, cada um dos 20 distritos da cidade tem autonomia para implementar um
CME. As crianças se inscrevem com a devida autorização dos pais, apresentando ideias para
um projeto que gostariam de realizar, e os conselheiros são selecionados nas escolas por meio
de sorteio ou eleições diretas. A participação das crianças no CME pode ser renovada por até
dois anos, após esse período, é necessária a realização de novas eleições.
Durante as sessões do conselho, as crianças se reúnem para apresentar e defender seus
projetos individuais, escolhendo um único projeto para ser construído e apresentado
coletivamente ao prefeito do distrito em sessão plenária ao final do mandato. Após a união
administrativa das subprefeituras dos quatro primeiros distritos, sob o nome Paris Centre, ainda
não temos notícia de ação equivalente ao CME.
No ano de 2019, a Mairie du 4ème realizou o projeto piloto denominado P’tits
Volontaires (Pequenos Voluntários), que consistiu na formação das crianças do Conseil
Municipal des Enfants (CME), na faixa etária de 9 a 12 anos de idade, para o exercício da
cidadania ativa, por meio de atividades desenvolvidas em parceria com associações da
sociedade civil, tais como a Cruz-Vermelha e a Ressourcerie l’Alternative (uma associação
voltada para a educação ambiental e o reaproveitamento de materiais).
Na cidade de Paris, estima-se que mais de 700.000 pessoas trabalhem ou atuem como
voluntários23 em associações civis e a prefeitura possui um plano de apoio que inclui a
implantação da plataforma digital “Je m’engage” (https://jemengage.paris.fr/) com informações
sobre as associações, sua localização e o procedimento para inscrição de novos voluntários,
além da realização de eventos anuais como a Semana do Engajamento (figura 19), que
permitem aos habitantes conhecerem as ações desenvolvidas pelas associações e ONGs que
atuam na cidade. O objetivo do plano de apoio é ampliar a parceria entre a administração pública
e as associações da sociedade civil por meio da criação de novos espaços e o fomento à
participação popular e o trabalho voluntário.
23
O termo comumente utilizado em francês é bénévole, que tem sua origem nas atividades benevolentes de
instituições religiosas e de caridade.
111
24
No original em francês, Stratégie de Résilience de Paris.
112
Cidades Resilientes, criada em 2013 pela Fundação Rockfeller, da qual também fazem parte as
cidades brasileiras de Porto Alegre, Rio de Janeiro e Salvador. A concepção de resiliência
urbana apresentada pelo documento diz respeito a um fenômeno coletivo, definido como “a
capacidade das pessoas, comunidades, instituições, empresas e sistemas dentro de uma cidade
para sobreviver, adaptar-se e prosperar, independente dos tipos de estresse crônico e das crises
agudas que as atinjam” (PARIS, 2019, tradução nossa). Nesse contexto, faz-se necessária a
formação dos atores sociais para o enfrentamento das crises que afetam a cidade, sejam elas
decorrentes das mudanças climáticas ou da ação social. O que significa ser cidadão em Paris?
Essa formação foi pensada como um exercício de cidadania ativa, ao capacitar as crianças para
a atuação local, dentro da própria comunidade.
Nossa proposta foi a realização de uma pesquisa, com o objetivo de identificar os
significados atribuídos pelas crianças à cidadania e a participação, que podem favorecer seu
engajamento em projetos de formação cidadã e democrática, razão pela qual optamos pela
SEBE para coletar dados que nos permitissem investigar a experiência de formação a nível
subjetivo. A cada sessão, uma ou duas crianças utilizariam a subcam para registrar as atividades
de formação, e os vídeos seriam utilizados para a discussão a respeito da experiência formativa.
Dessa forma, decidimos intercalar as sessões de formação e de construção de projeto, dedicando
parte das últimas para a discussão em grupo dos vídeos da subcam. Embora a técnica tenha o
objetivo de estudar a atividade do ponto de vista do sujeito, o estudo de Cordelois (2010)
mostrou que os participantes são capazes de compartilhar a experiência do subcamer (a pessoa
que usa a câmera no momento da atividade) ao assistirem os registros em vídeo, devido à
perspectiva em primeira pessoa.
Para a inscrição no CME, as crianças propuseram temas para a construção do projeto
coletivo, e ao recuperar as fichas de inscrição, identificamos que os temas lidavam com dois
eixos principais: o aumento da quantidade de pessoas em situação de rua e a falta de vegetação
no bairro. Seria necessário optar por um único tema ou propor uma articulação entre os dois,
para facilitar o planejamento das ações. O tema escolhido foi a vegetalização, por oferecer
possibilidades para a discussão do uso do espaço público e do permis de végétaliser, uma
espécie de autorização concedida pela prefeitura de Paris para os cidadãos que desejam cultivar
plantas em praças e ruas da cidade.
Ser um pesquisador estrangeiro foi apontado pelos coordenadores do projeto como um
fator que poderia facilitar a interação com as crianças, no sentido de horizontalizar as relações
e diminuir os conflitos intergeracionais, adotando uma postura de adulto atípico (CORSARO,
113
2005). O papel de facilitador do projeto permitiria o contato direto com as crianças nos
encontros de formação e na construção das ações coletivas. A interação deveria se dar numa
relação de colaboração, de forma a esclarecer os objetivos da pesquisa e os instrumentos que
seriam utilizados, favorecendo o engajamento das crianças.
O primeiro encontro de formação, realizado em 25 de setembro de 2019, apresentou às
crianças as características do projeto, o cronograma das ações e os instrumentos de pesquisa.
Por razões éticas, neste trabalho como forma de resguardar o anonimato dos participantes, que
assinaram um termo de compromisso com a prefeitura, decidimos atribuir um pseudônimo para
cada uma das crianças, como apresenta o quadro abaixo. Ressaltamos que as crianças habitam
uma região central da cidade de Paris, tendo acesso facilitado à cultura e lazer, constituindo
uma parcela reduzida da população francesa. Apresentamos um breve relato das sessões e da
formação realizada ao longo do projeto.
Sofia Tournelles Vosges Abrir as escolas com campos de futebol aos finais de
semana.
Érica Ave Maria Combater à poluição e a discriminação nas escolas.
Ingrid Neuve Saint-Pierre Ajudar as pessoas em situação de rua e as associações.
Silvia Hospitalière Saint-Gervais Fazer a coleta seletiva de lixo nas escolas.
Cláudia Renard Sensibilizar as crianças para combater a discriminação.
Renato Moussy Distribuição de alimentos não vendidos pelos
estabelecimentos comerciais da região.
faixa etária entre 9 e 11 anos, cada uma representando uma escola do 4º distrito, como mostra
a figura 16.
A subcam seria utilizada por uma criança de cada vez, durante os encontros de formação,
para a discussão em grupo nos encontros de construção do projeto. O objetivo era propiciar a
discussão coletiva acerca da experiência de formação vivenciada com as associações locais, na
tentativa de identificar possíveis mudanças de atitude e de conteúdos representacionais no que
tange ao exercício da cidadania e a participação.
As crianças tiveram a oportunidade de conhecer o prefeito do 4º distrito, que lhes falou
sobre a importância do projeto de formação cidadã, em seguida elas conheceram o setor
responsável pelo registro dos moradores, sendo convidados a procurarem as suas certidões de
nascimento e de casamento dos pais. O funcionário do cartório de registro mostrou às crianças
a certidão de nascimento de Serge Gainsbourg, famoso cantor parisiense nascido em 1923,
dizendo orgulhoso que elas moravam no bairro onde o cantor havia nascido.
Ao final do encontro, as crianças fizeram fotos nas escadarias da prefeitura, alternando
entre fotos “sérias” e fotos com “careta”, como forma de registrar o início das atividades do
CME. As crianças se mostraram animadas com o projeto, principalmente aquelas que haviam
se inscrito com a intenção de desenvolver um projeto sobre meio ambiente. Percebemos que
duas crianças tinham autorização para ir embora sozinhas, enquanto as outras deveriam
aguardar a chegada dos pais. Tivemos de entrar em contato com a mãe do menino, que
trabalhava no Hôtel de Ville (onde fica localizada a Prefeitura de Paris), para avisar que o filho
a aguardava.
115
As crianças do CME se reuniam numa sala reservada do Pôle Citoyen Simon Lefranc
(PARIS, 2019), no prédio da subprefeitura, e, devido à falta de facilitadores no polo, foi
necessário levá-las à sede da Croix-Rouge no 4ème na companhia da secretária. Embora a sede
fosse próxima da subprefeitura, alguns minutos de caminhada, pedimos às crianças para ter
cuidado com o trânsito, para evitar acidentes.
Logo no início da formação, perguntamos às crianças quem gostaria de usar a subcam e
uma das meninas (a mais velha do grupo) se ofereceu para registrar a atividade de formação.
Fomos recebidos por duas voluntárias que fizeram uma pequena apresentação sobre a origem
da Cruz-Vermelha francesa, criada em 1864 como Sociedade de socorro aos militares feridos
(no original, Société de Secours aux Bléssés Militaires – SSBM). Um terceiro voluntário se
apresentou ao grupo e explicou as ações desenvolvidas pela associação para atender as pessoas
em situação de rua (a sigla francesa é SDF - Sans Domicile Fixe), que consistem em doações,
cadastro e acompanhamento dos moradores da região.
As crianças ficaram surpresas com o fato de que os voluntários da Cruz-Vermelha não
recebem qualquer remuneração da associação, a maioria tem um emprego e se dedica à
associação no seu tempo livre. Eles explicaram que para ser voluntário é necessário ter uma
idade mínima de 14 anos, mas que as crianças poderiam ajudar de outras formas, doando
alimentos, roupas e brinquedos para os SDF. Os voluntários propuseram às crianças que
escolhessem alguns produtos, entre itens de higiene e alimentos, para que pudessem ser doados
às pessoas que habitam o entorno da sede, em uma “maraude”, uma caminhada para conhecer
os moradores e levar doações. A atividade de escolha dos produtos foi registrada com a subcam,
para discussão posterior com o grupo a respeito do que é necessário para quem mora na rua.
Uma das questões levantadas pelos voluntários é que, embora sejam feitas várias doações,
dificilmente as pessoas se dispõem a conversar com os SDF, um reflexo da exclusão que atinge
essa população.
Ao sair para a maraude, as crianças vestiam coletes da Cruz-Vermelha, sob a instrução
de uma voluntária, como forma de representar a instituição, razão pela qual as crianças
deveriam estar atentas à forma como se portavam.
“quando vestimos esses coletes, não somos nós mesmos, nós somos a Cruz-
Vermelha” (tradução nossa).
Durante a caminhada, encontramos três senhores em situação de rua, um deles pediu para
não ser incomodado, enquanto o segundo pediu um café para as crianças, relatando que não
116
comia nada há um dia, e as crianças então prepararam um pacote de sopa para lhe dar. O terceiro
senhor se identificou com o nome artístico “Alain du Loin”, um trocadilho com a palavra que
significa longe, distante, e o nome do ator Alain Delon. Esse senhor contou ter imigrado para a
França há alguns anos, mas que não tinha conseguido emprego, razão pela qual morava na rua.
Ele escrevia poemas do tipo “haiku” e contou estórias para as crianças. O senhor Alain deu às
crianças um pacote de palitos de chocolate, como forma de agradecer as doações.
O próximo encontro de formação foi realizado apenas no dia 6 de novembro, por causa
das férias escolares, o que nos deu tempo suficiente para planejar as atividades, rever os
registros da subcam e escolher os trechos para discutir com as crianças. Para o professor Lahlou,
o momento mais importante do registro era quando as crianças escolheram os produtos para
doação, porque nos permitiria discutir sobre como as crianças percebem as necessidades dos
SDF e o que consideram mais importante para quem mora na rua. Também seria uma
oportunidade de discutir porque as pessoas atuam como voluntários em associações, a partir do
relato dos voluntários da Cruz-Vermelha durante o encontro de formação, lembrando as
crianças que elas também eram voluntárias no CME.
O registro da formação foi utilizado para a discussão em grupo acerca da situação dos
SDF, o que leva as pessoas a morarem na rua e o que é possível fazer para ajudá-las, bem como
as formas de mobilizar as pessoas para ajudarem a Cruz-Vermelha. As perguntas que
direcionaram a discussão foram: Por que as pessoas se engajam como voluntários? Se não há
retorno financeiro, que tipo de recompensa é obtida com o voluntariado? Utilizamos um
acróstico como ferramenta para evocar conteúdos associados ao tema da formação, utilizando
duas palavras, solidariedade e voluntário.
Para o primeiro encontro de projeto, arrumamos a sala com antecedência, para garantir
que fosse possível registrar a discussão coletiva e a atividade de confecção do acróstico (figura
17). O polo Simon Lefranc enviou um facilitador para participar do projeto e acompanhar as
crianças do CME, conforme o combinado na primeira reunião com a subprefeitura. Foi
necessário explicar ao facilitador a programação do encontro de projeto e apresentar o
instrumental da nossa pesquisa, para que ele se familiarizasse com a subcam.
No início da sessão, mostramos uma foto das crianças ao lado dos voluntários antes da
“maraude”, vestindo os coletes da Cruz-Vermelha, para iniciar a discussão sobre voluntariado
e engajamento. Utilizamos um momento da formação, registrado pela subcam, em que uma das
crianças afirmava que as pessoas acreditam que os SDF são loucos, por isso elas evitam se
aproximar das pessoas em situação de rua, para discutir com o grupo sobre as crenças, como
mostra o trecho abaixo, traduzido do francês25.
S: E os voluntários da Cruz Vermelha, na sua opinião, por que eles fazem isso?
E: Para ajudar as pessoas.
C: Para ajudar as pessoas que realmente precisam, elas não precisam de uma
remuneração, ganhar dinheiro, porque elas já têm trabalho e, além disso, fazem outra
coisa que ajuda as pessoas.
I: Talvez porque eles também sejam apaixonados pelo trabalho.
S: Para os outros ou para si mesmos, então. Quando vocês foram à rua com os
voluntários da Cruz Vermelha, vocês tiveram a impressão de que eles estavam se
divertindo?
E: Mm, sim. É, quem gosta, sim.
T: porque muitas vezes, a imagem que as pessoas têm dos SDF é que eles são loucos,
que não têm dinheiro. (E: E que eles bebem muito). Quando você está ao lado deles,
e por exemplo quando você está na rua, você tem mais confiança nessas pessoas. Isso
é o que pode influenciar se ajudamos as pessoas ou não.
E: Geralmente pensamos que eles estão bêbados e que fazem qualquer coisa e que têm
pouco dinheiro. (T: Isso é o que você pensa). Mas, de fato, você pode ver outra
imagem deles durante e após a maraude.
C: Sim, mas também se eles não estiveram em uma maraude, eles vão trazer sempre
a mesma coisa.
I: Há pessoas que vão à escola e depois são voluntárias.
E: Mas se eles virem pessoas indo às ruas.
T: Não, eu sempre cumprimentei Alain.
I: Nós vimos alguém chamado Alain e ele já foi voluntário, é professor e gostava de
ciências.
E: eu o vi esta manhã antes da escola e lhe dei um café da manhã.
C: Ele nos deu Mikados em troca. (E: Isso é bom.)
25
Optamos por traduzir as notas de campo e as falas dos participantes, como forma de facilitar a interpretação
dos dados.
118
T: Podemos dar comida, às vezes os SDF não têm nenhuma. Eu dei comida a um gato,
mas ele não tinha nada pra dar em troca.
C: Algumas pessoas são desabrigadas, depende, todos têm esta imagem de que elas
roubam e bebem e tudo isso. Mas as pessoas podem perceber que elas estão sozinhas,
não têm com quem conversar e é por isso que elas falam consigo mesmas e que não
têm muito o que comer. Então se a pessoas ajudam, elas sabem que as pessoas são
gentis, por exemplo, as associações como a Cruz Vermelha.
E: Porque às vezes eles estão sozinhos e geralmente as pessoas que estão realmente
deprimidas se sentem realmente sozinhas no mundo, eles bebem e isso os deixa ainda
mais tristes e eles recomeçam tudo de novo.
Durante a discussão sobre o registro da subcam, uma das crianças se dirigiu às demais
para perguntar o que significava “ser louco”, na tentativa de trazer o tema ao grupo e buscar um
consenso. Para as crianças, a falta de conhecimento a respeito dos SDF é um dos principais
motivos para a discriminação, na crença de que fatores como alcoolismo e doença mental são
o que levam as pessoas a morarem na rua. Considerando o exemplo da menina que passou a
doar parte do seu café da manhã para o senhor Alain, com quem havia conversado durante a
“maraude”, os voluntários da Cruz-Vermelha realizam um trabalho de sensibilização da
população para as causas sociais, como forma de incentivar a solidariedade.
Pedimos as crianças que escrevessem um acróstico com as palavras Solidariedade e
Voluntário, primeiro individualmente, depois em grupo, para destacar os benefícios do trabalho
em grupo. Individualmente, as crianças levaram mais de 15 minutos para encontrar palavras
que iniciassem com as letras do acróstico, enquanto a atividade em grupo foi concluída em
apenas 3 minutos.
Dissemos às crianças que o grupo é mais eficaz que os indivíduos, porque o grupo é capaz
de continuar a atividade mesmo na ausência de algum dos membros. Perguntamos o que as
crianças preferem, um grupo mais eficaz ou um grupo onde as pessoas se escutam, e as crianças
responderam que preferiam um grupo no qual as pessoas se escutam. A fala das crianças vai ao
encontro dos estudos de representação social sobre o grupo ideal (RATEAU, 1995), no qual a
ausência de hierarquia entre os membros e as relações de amizade são tidos como elementos
centrais. No quadro 2 apresentamos alguns exemplos dos acrósticos individual e em grupo.
No primeiro acróstico, escrito por uma das meninas do grupo, é possível perceber a
tentativa de organizar as palavras em um poema, de forma que a leitura vertical das palavras
solidariedade e voluntário adquira um sentido. Ao perguntar à menina, ela nos disse que os
acrósticos de solidariedade e voluntário poderiam ser lidos assim (tradução nossa):
Solidariedade
seguro de si
oriental
os amigos são importantes
na vida chega um dia em que o retorno é indiferente dos outros
tradicional e amável
Voluntário
mais vivo do que nunca
orientar o mundo à sua maneira
distribuir amizade a todos
vergonha têm os malvados
não à discriminação
o Titanic está ao mar
ar
sem razão
ruptura dos ligamentos cruzados
feliz
120
Após a pausa para o lanche, as crianças encenaram algumas situações para treinar os
gestos de primeiros-socorros e o que fazer em cada tipo de emergência. Perguntamos às crianças
se elas haviam encontrado um lugar para o projeto de vegetalização e uma das meninas sugeriu
fazer na Praça da Bastilha, porque, segundo ela, havia uma grande calçada, mas não havia
plantas, era tudo “vazio e feio”. Alguns dias depois, descobrimos que a região da Praça da
Bastilha fazia parte do 11º distrito e a prefeitura estava prestes a iniciar um projeto de
revitalização no local, com árvores e flores.
Ao final da formação, as crianças pediram para brincar enquanto aguardavam a chegada
dos responsáveis. Elas queriam brincar de Lucky Luke e o facilitador nos explicou as regras do
jogo, que consistia em formar uma roda, com uma pessoa posicionada ao meio, que deveria
girar com os dedos apontados em forma de arma, enquanto os demais deveriam ficar atentos
pois, quando a pessoa parasse girar, a pessoa para quem ela apontasse deveria se esquivar ou
seria atingida e estaria fora da brincadeira. O facilitador também sugeriu brincar de “siga o
mestre” na praça dentro da Mairie, para evitar que as crianças fizessem barulho enquanto
esperavam.
Pensamos ser importante planejar ações e brincadeiras para o final das atividades de
formação, caso sobrasse tempo. Foi possível perceber a importância da brincadeira para as
crianças, que utilizavam todo tempo disponível entre as atividades para interagirem e se
conhecerem (as crianças não tinham contato fora do projeto, pois eram de escolas diferentes).
A formação foi ministrada por uma representante da Mairie, que havia trabalhado como
professora da educação básica, e uma conselheira técnica. A representante perguntou se as
crianças conheciam algum sinônimo de violência e eles apontaram vários: “s’insulter, se battre,
racketter, se moquer, chamaille, etc”. As palavras indicavam várias formas de agressão que
podem ocorrer no ambiente escolar, e as crianças foram solicitadas a construir uma escala de
tipos de violência, de acordo com o grau de risco. A escala foi escrita coletivamente, no quadro,
e no topo foi colocada a palavra harcèlement, que tem por equivalente em português assédio ou
bullying. A conselheira falou sobre o livro Poil de carotte, romance escrito por Jules Renard
em 1894, que conta a história de um menino ruivo discriminado pela família e por seus pares.
Disseram que o livro foi inspirado na infância abusiva do próprio autor, que se tornou leitura
obrigatória na França.
O harcèlement foi definido pela conselheira como um tipo de violência que consiste em
comportamentos repetitivos de agressão verbal ou física, dirigidos a alguém que não sabe como
se defender, um bode expiatório (souffre-douleur é o termo em francês utilizado no livro
supracitado). As crianças foram solicitadas a propor soluções para os tipos de violência que
indicaram na escala, e como seria possível de combater individualmente a violência na escola.
As crianças contaram alguns relatos sobre a discriminação e a violência que já haviam
presenciado, em diversos ambiente, na creche, em aulas de esporte, e numa competição escolar.
Ao final da discussão, a representante da Mairie perguntou o que as crianças haviam
considerado mais importante na formação, e eles responderam que a escala de violência e as
formas de identificar o bullying.
Como havia tempo até o final do encontro, uma funcionária da prefeitura veio conversar
com as crianças sobre os projetos de vegetalização em Paris. Ela explicou que a cidade iniciou
os projetos como uma forma de amenizar os impactos das mudanças climáticas. Dos vinte
distritos de Paris, o 4ème é considerado o mais arborizado, pois existem cerca de 14 espaços
verdes no distrito. No entanto, devido à localização central, há uma série de critérios a serem
seguidos para a organização de um espaço verde, fiscalizados pelos Architectes de Bâtiments
de la France (ABF), organização responsável pela preservação dos monumentos históricos,
composta em sua maioria por arquitetos. Recebemos um caderno com orientações sobre os
projetos de vegetalização e o orçamento participativo e as crianças ficaram responsáveis por
procurar alternativas de plantas que pudessem ser empregadas no projeto das crianças para o
bairro26.
26
A lista das plantas autorizadas pela prefeitura está disponível no site www.vegetalisons.paris.
123
Havíamos pedido sugestões de jogos e brincadeiras que poderiam ser utilizados para
discutir sobre as formas de discriminação e um dos animadores indicou o “jogo do estrangeiro”,
como forma de refletir sobre a imigração e as dificuldades encontradas pelas pessoas para serem
aceitas pela sociedade francesa. O jogo se assemelhava a uma dança das cadeiras, foram
dispostas várias cadeiras no pátio da Mairie, e a cada rodada uma criança faria o papel do
estrangeiro, cujo objetivo era conseguir se sentar, enquanto os outros tentavam impedi-lo. O
número de cadeiras era igual ao de crianças, mas o estrangeiro só poderia sentar-se em uma
cadeira vazia. As crianças deveriam argumentar durante a brincadeira, dando motivos pelos
quais o estrangeiro não poderia se sentar. Depois da brincadeira, discutimos com as crianças
sobre as discriminações sofridas pelos imigrantes no dia a dia, inclusive na escola.
Fonte: o autor
dela). O professor Saadi pediu informações sobre a rua e saiu para fazer fotos dos locais onde
as plantas poderiam ser colocadas. Durante o encontro, as crianças conversaram e cantaram ao
microfone que utilizávamos para registrar as atividades, sendo difícil chamar a atenção delas
para os vídeos da subcam. Falamos sobre o permis de végétaliser (a autorização da prefeitura),
e que seria necessário um adulto para assinar e se responsabilizar pelo projeto na prefeitura,
mas as crianças disseram que os pais não poderiam ser os responsáveis, porque eles trabalhavam
muito.
O professor Saadi trouxe as fotos dos lugares indicados pelas crianças e pedimos que elas
desenhassem um croqui de arquitetura para o espaço da Rue de Petit Musc onde o projeto
poderia ser realizado, um amplo calçadão de cerca de 100m². As crianças desenharam as plantas
sobre as fotos, depois apresentaram suas ideias aos demais. A ideia era desenhar as plantas
utilizando cartolina e colar os desenhos na parede onde a foto estava projetada, como se as
plantas fizessem parte do cenário, para ilustrar como ficaria o projeto de vegetalização do
espaço escolhido, como mostra a figura 20.
Jardinage, para agendar uma visita do CME no dia 5 de fevereiro, para discutir a possibilidade
de implementação do projeto construído pelas crianças.
Nos reunimos com as crianças no polo cidadão Simon Lefranc para caminharmos até o
lar para idosos Ave Maria, onde a diretora nos aguardava. Uma das crianças afirmou que sua
escola ficava ao lado da residência e ela poderia guiar o grupo até lá, pois estava familiarizada
com o caminho. Ao chegar à residência de idosos, pegamos o elevador até o quinto andar,
dentro do elevador havia um comunicado avisando que as crianças do CME viriam visitar e
brincar com os moradores naquele dia.
A diretora apresentou a residência e seu regulamento, lá habitavam 75 idosos, pagando
uma pequena taxa para as despesas de alojamento. Os moradores podem sair e entrar quando
quiser, todos possuem a chave dos seus apartamentos. A residência Ave Maria é parceira da
Maison Petit Rémouleur, onde habitam 50 idosos. Na cidade de Paris e no seu entorno, existem
23 residências, que abrigam cerca de 1150 idosos. Após a fala da diretora, a equipe do abrigo
se apresentou e explicou como funciona sua jornada de trabalho, o objetivo da equipe é auxiliar
e criar um bom relacionamento com os idosos, pois muitos acabam ficando isolados, por não
terem família ou não receberem visitas. As crianças fizeram perguntas sobre o trabalho no
abrigo e a menina que havia guiado o grupo mais cedo explicou o que é o Conseil Municipal
des Enfants e qual a função dos conselheiros.
A equipe havia preparado um lanche especial para as crianças e os idosos, e estava
previsto um torneio de jogos de videogame, com boliche e tênis virtual, mas apenas uma das
moradoras participou do torneio, como mostra a figura 21. As crianças tentaram explicar à
moradora como funcionava o jogo, mas ela acabou ficando cansada e desistiu na metade do
torneio. Um dos meninos passou a maior parte do tempo da visita brincando com o celular,
exceto quando estava participando do torneio. Duas meninas pediram autorização para utilizar
o piano, e uma delas disse que estava se preparando para uma audição para o conservatório de
música, que aconteceria em alguns meses.
Combinamos uma visita com a responsável do ateliê “mãos verdes” para que as crianças
tivessem a oportunidade de aprender a plantar e conhecer um pouco de jardinagem. A Maison
du Jardinage está localizada no Parque Bercy, no 12º distrito, portanto era necessário pegar o
metrô para chegar lá. A responsável da prefeitura não havia comprado os bilhetes do metrô para
as crianças, mas o facilitador disse que depois poderia nos ressarcir. Foi necessário pegar a linha
1 em frente à prefeitura e fazer baldeação para a linha 14 na estação Chatelet, descemos na
estação Bercy e caminhamos com as crianças até o local.
Havia um grupo de adultos participando de um ateliê sobre o permis de végétaliser e uma
pessoa da equipe aguardava as crianças do CME. Ela perguntou sobre o projeto de
vegetalização e mostrou o mapa da cidade na plataforma vegetalison.fr para encontrar a calçada
onde as crianças pretendiam colocar as plantas. Em Paris, nem todas as calçadas são de
responsabilidade da prefeitura, por vezes os edifícios são os responsáveis por cuidar do espaço,
sendo necessário solicitar sua autorização para ocupar arborizar o espaço. Mostramos as fotos
e os desenhos das crianças e eles explicaram que gostariam de usar vasos, construir canteiros e
um caramanchão. A responsável nos disse que não é permitido plantar próximo aos postes e
128
lâmpadas, devido ao risco de pane elétrica, mas que seria possível instalar canteiros junto à
parede e vasos na calçada. Nesse caso, a construção dos canteiros não é responsabilidade da
prefeitura, mas ela poderia doar a terra e as sementes, cabendo aos cidadãos comprarem os
vasos ou construir os canteiros.
O permis de végétaliser é uma autorização com validade de no mínimo um ano, podendo
ser renovada por até três anos. A Maison du Jardinage faz estudos de viabilidade dos projetos
e acompanha a sua execução. O projeto de vegetalização das crianças seria viável, mas seria
necessário um adulto para se responsabilizar e construir os canteiros. Também seria importante
ter a participação dos moradores para cuidar das plantas, pois apenas uma das crianças habitava
na rua onde seria realizado o projeto. Após a discussão, as crianças conheceram o jardim e a
horta, para a aprender algumas técnicas de jardinagem, como a compostagem (figura 22).
Registramos a visita com uma câmera de vídeo, no entanto houve uma falha no microfone e
conseguimos captar apenas imagens.
Figura 22 – aprendendo sobre compostagem
27
Le Service Technique de la Propreté de Paris (STPP).
129
Decidimos que cada criança deveria escolher uma associação um encontro de formação para
apresentar, assim, todos teriam oportunidade de falar.
Às 14:30, duas representantes do STPP chegaram para ministrar a formação, elas
iniciaram as atividades com um vídeo curto sobre o ciclo de vida de uma ponta de cigarro,
mostrando a poluição causada pelo descarte inapropriado. No vídeo, em inglês, uma menina
explicava o que havia aprendido durante as férias sobre a poluição, particularmente sobre o
impacto das bitucas de cigarro no meio-ambiente, baseado na quantidade de pessoas fumantes
nos Estados Unidos. Em Paris, o serviço de limpeza da cidade recolhe cerca de 10 milhões de
pontas de cigarro por dia, devido ao grande número de fumantes. As crianças contaram histórias
sobre o cigarro em sua família, uma das meninas disse que os pais pararam de fumar graças aos
seus esforços, mas que ainda havia muitas pessoas na família que fumavam.
Um dos facilitadores contou às crianças sobre a sua primeira experiência com o cigarro,
dizendo que o melhor é não experimentar, para não correr o risco de se viciar. As crianças
disseram conhecer várias pessoas que tiveram câncer (inclusive o avô do pesquisador faleceu
de câncer em 1992). Após a discussão sobre o tabagismo e o descarte de pontas de cigarro, as
representantes deram às crianças luvas, sacolas e pinças para recolher lixo, a exemplo dos
trabalhadores da STPP. A ideia era realizar a coleta de detritos na praça Baudoyer, em frente à
prefeitura, mas havia muito lixo no pátio, plástico, bitucas de cigarro e restos de comida, e as
crianças começaram a limpeza pela área interna. Uma das crianças utilizou a subcam para
registrar a atividade de coleta de lixo.
Enquanto faziam a coleta das pontas de cigarro no pátio da prefeitura, as crianças se
depararam com um bueiro e uma das meninas decidiu abrir a tampa para retirar o lixo
acumulado. Após alguns minutos de tentativa, as crianças conseguiram encaixar as pinças e
levantar a tampa, encontrando uma grande quantidade de lixo. Por iniciativa própria, as crianças
começaram a competir para ver quem conseguia recolher mais lixo, e algumas delas decidiram
coletar na área ao redor da prefeitura, restando apenas duas crianças no pátio, junto com o
facilitador. As crianças encontraram um segundo bueiro, e dessa vez conseguiram retirar a
tampa e fazer a limpeza em apenas alguns instantes (figura 23).
Após a atividade, o lixo recolhido foi colocado em um container dentro da prefeitura, para
ser descartado posteriormente. As crianças ganharam alguns brindes, garrafas de água e
lancheiras com o símbolo do serviço de limpeza da cidade de Paris. As responsáveis pela
formação disseram que realizam atividades semelhantes nas escolas da cidade e pediram às
crianças para divulgarem o trabalho da STPP em suas respectivas escolas, para os demais
colegas que não puderam participar do projeto (figura 24).
Durante o lanche, as crianças discutiram e decidiram quem ficaria responsável por
apresentar cada associação durante a sessão plenária, e uma das crianças se ofereceu para fazer
um vídeo de apresentação das atividades do CME no TikTok, aplicativo de celular bastante
utilizado por crianças e adultos para a produção e compartilhamento de vídeos curtos. Criamos
um álbum compartilhado no Google Drive, com as fotos dos encontros de formação (parte das
fotos integra esse trabalho), no intuito de disponibilizar às crianças e os responsáveis.
Figura 24 - atividade de coleta de lixo
Na preparação da apresentação, cada criança estava livre para construir o relato da forma
como preferisse, devendo apenas seguir algumas orientações: falar sobre o papel da associação,
contar aquilo que havia aprendido durante a formação, falar sobre um projeto pessoal e fazer
os agradecimentos. Pedimos ao professor Saadi que interpretasse o prefeito, para que as
crianças pudessem ensaiar a apresentação do projeto.
No relato das crianças, encontramos desenhos sobre as associações, o símbolo da Cruz-
Vermelha e um desenho sobre o perigo das pontas de cigarro (bitucas), repetições das falas dos
voluntários durante as formações, como no caso dos bombeiros, e as orientações sobre
incêndios domésticos e primeiros-socorros.
Também encontramos no material de uma das crianças, um acróstico, estratégia utilizada
no primeiro encontro de projeto (no dia 6 de novembro de 2019) para refletir acerca do trabalho
da Cruz-Vermelha, com as letras iniciais da Maison du Jardinage (quadro 5). O emprego do
acróstico para ilustrar o objetivo da instituição mostra uma apropriação da criança das
ferramentas utilizadas ao longo da formação.
I Imaginer O Opinion
N Naturelle N Nature
A Aménager
G Gagner
E Eménager
Como projeto pessoal, uma das crianças afirmou que pretendia se engajar mais nas
atividades da cidade. Também encontramos relatos sobre a importância de trabalhar em grupo,
mesmo que seja difícil conciliar a vontade de todos, como mostra a fala de uma das crianças.
“quando trabalhamos em grupo, não podemos fazer tudo o queremos, é preciso
aprender a suportar os outros” (tradução nossa).
No âmbito da nossa pesquisa, a SEBE foi utilizada como ferramenta metodológica para
produção de dados acerca da experiência subjetiva de formação das crianças para a cidadania
ativa, no âmbito do projeto P’tits Volontaires. A proposta de utilizar o material da subcam para
as discussões nos encontros de construção de projeto veio ao encontro do objetivo da
coordenação do CME de propiciar a reflexão das crianças sobre a cidadania ativa. Durante as
atividades de formação, pelo menos uma das crianças portava a subcam, de forma que, ao final
do projeto, todos tinham utilizado a câmera pelo menos uma vez, com exceção de uma criança,
que optou por não usá-la.
O material da subcam foi utilizado para discutir sobre a experiência de formação, durante
os encontros de construção do projeto, inspirado no trabalho realizado por Cordelois (2010)
sobre o sentimento de “volta ao lar”, no qual o autor utilizou os vídeos da subcam, feitos por
duplas de participantes, para a análise e discussão coletiva por meio de um software de
marcação audiovisual (denominado Webdiver), desenvolvido por um laboratório da
Universidade de Stanford. Com o auxílio do software, o autor comparou as anotações e
interpretações dos diferentes participantes, os que usaram a subcam (perspectiva em primeira
pessoa) e os observadores externos (perspectiva em terceira pessoa).
No contexto do projeto, foram realizados três encontros de discussão coletiva, registrados
com auxílio de uma câmera externa e de um gravador, no intuito de investigar como ocorreu o
processo de negociação de sentidos e significados entre as crianças, na partilha da experiência
de formação. Embora os vídeos tivessem sido gravados por uma criança de cada vez,
responsável por conduzir o grupo durante as discussões, buscamos as semelhanças e diferenças
entre as motivações e objetivos relatados pelos participantes enquanto grupo.
Esse material foi utilizado para a realização de entrevistas replay (RIW) com as crianças
do CME ao final do período da pesquisa. Embora tivéssemos agendado com as crianças e os
responsáveis, não conseguimos entrevistar todas as crianças, devido ao clima de tensão que
antecedeu o confinamento sanitário (lockdown) na França. Foram realizadas 4 entrevistas
replay individuais, antes da interrupção abrupta das atividades do projeto.
As entrevistas foram realizadas em idioma francês e seguiram o seguinte protocolo:
selecionamos trechos que ilustrassem momentos de engajamento das crianças nas atividades de
formação. Para cada criança, foram selecionados trechos do momento em que havia portado a
subcam, de forma a garantir a presença de clipes da atividade na perspectiva em primeira pessoa
138
(FPP), necessários para o protocolo da SEBE; bem como vídeos dos encontros de construção
do projeto coletivo, feitos com o auxílio de uma câmera externa, posicionada de forma a captar
todos os participantes. Os clipes foram construídos pelo pesquisador ao longo do projeto, com
o uso de um software editor de vídeo, na seleção de trechos específicos de cada formação, com
base no referencial teórico e nos objetivos da pesquisa.
Durante as entrevistas replay, não houve um roteiro de entrevista, sendo a criança
solicitada a recontar o que havia vivido, assumindo o protagonismo na condução do processo
de produção dos dados. No primeiro momento, mostrávamos trechos de vídeo (clipes)
escolhidos especificamente para a entrevista e pedíamos às crianças que explicassem a sua
atividade em vídeo, fazendo perguntas sobre a motivação e os objetivos durante a formação,
“naquele momento, o que você estava fazendo? Você pode me contar como foi?”. Essas
perguntas nos auxiliaram a entender o processo de construção de significados e incentivaram a
reflexão sobre a experiência, por meio da interação entre o pesquisador e o participante.
Posteriormente, como forma de incentivar a participação infantil, pedimos às crianças que
selecionassem trechos das atividades e explicassem os motivos para a escolha. Os vídeos foram
dispostos em pastas com o nome da formação e receberam títulos autoexplicativos, a partir da
descrição do conteúdo da atividade. Dessa forma, a criança poderia escolher o clipe do
momento específico que gostaria de rever, sem a necessidade de interferência do pesquisador.
Percebemos que, dentre todas as formações, houve unanimidade entre as crianças sobre os
momentos mais lúdicos e divertidos.
As entrevistas foram gravadas com o auxílio de uma câmera externa, posicionada de
forma a captar a tela onde se passava o vídeo, bem como as reações e expressões da criança
enquanto assistia os registros da atividade em primeira pessoa (figura 26), conforme orienta
Lahlou (2017). Nossa proposta foi comparar os fatores que direcionaram a escolha e a
interpretação dos trechos considerados importantes para o pesquisador e a escolha dos
participantes, na relação com a experiência subjetiva da formação, entendendo que a vivência
tem potencial para a ressignificação e transformação das representações.
Com este estudo, buscamos demonstrar os benefícios da SEBE, ainda pouco utilizada no
Brasil, para a pesquisa em representações sociais e educação. Concordamos com Lahlou (2017)
sobre a importância de reconhecer a influência do pesquisador na produção dos dados da
pesquisa, e sobre a mudança que a técnica traz na relação entre pesquisador e pesquisado. No
caso do projeto P’tits Volontaires, as crianças foram treinadas para operar a subcam, e
percebemos uma adesão maior dos participantes à discussão sobre os vídeos que eles mesmos
registraram. Durante a entrevista replay, percebemos que as crianças utilizaram o material de
vídeo para reforçar seus argumentos, a partir das evidências subjetivas.
Estamos chamando de evidências subjetivas as falas, gestos e demais manifestações
afetivas e discursivas que ocorreram em resposta ao que acontece no vídeo, frases como “eu
não lembrava disso”, “foi por “causa daquilo”, “você viu?”, na qual percebemos um esforço
cognitivo da criança para atribuir significado à atividade e comunicar ao pesquisador e o
responsável (algumas crianças participaram da entrevista na presença dos responsáveis). Essas
evidências são indícios de um processo de pensamento, e podem sinalizar as mudanças que
ocorreram ao longo da formação, por meio de comparações temporais, entre o início e o término
do projeto, que teve duração de aproximadamente seis meses.
Talita (nome fictício) era aluna de CM2 da escola Saint-Louis en l’Ile e na época do
projeto tinha 11 anos (nascida em 14/04/2009). No ato da inscrição para o Conseil Municipal
des Enfants (CME) sua ideia era fazer um projeto para conscientizar a comunidade quanto à
necessidade de redução do consumo de plástico, por meio do uso de embalagens reutilizáveis,
sob a justificativa de ser “mais ecológico e mais econômico”. Era uma das crianças mais velhas
do grupo e tinha autorização para ir sozinha às formações, sem a necessidade de um
acompanhante.
A participante foi bastante presente nas atividades do CME e se ofereceu para fazer o
vídeo de apresentação da equipe que seria utilizado na sessão plenária, usando o aplicativo
móvel TikTok. Foi a primeira criança a utilizar a subcam, por iniciativa própria, sendo a
responsável pelo registro da formação com a Cruz-Vermelha.
Talita foi a primeira criança a participar da entrevista replay individual, que foi realizada
no IEA de Paris, no dia 12/03/2020, na presença da mãe, após o encontro de preparação da
plenária. Na época em que a entrevista foi realizada, a França tinha começado a registrar os
primeiros casos de infecção pelo novo coronavírus.
141
O primeiro clipe apresentado, feito com o auxílio de uma câmera externa, mostra as
crianças sentadas ao redor da mesa, desenhando o tipo de vegetação que gostariam de utilizar
no projeto coletivo (figura 27). Na parede, está projetada uma foto da Rue du Petit Musc, na
qual um facilitador aparece medindo o espaço disponível na calçada. Um dos pesquisadores
descreve os espaços disponíveis e pergunta às crianças qual gostariam de utilizar para o projeto.
Ao assistir o clipe, Talita explica que todos estavam desenhando o que gostariam de ver
no projeto e aponta para a tela para mostrar onde gostaria de colocar a sua ideia, uma ponte de
flores (uma estrutura semelhante a um caramanchão). Ela conta as dificuldades para pôr em
prática aquilo que havia idealizado e gesticula para mostrar o tipo de vegetação e estrutura que
poderia ser utilizado no projeto.
T : nós desenhávamos as coisas que queríamos colocar na Rua de Petit Musc (ela
aponta para a tela), e todos tinham muitas ideias, eu não sei quem foi que teve a ideia
de colocar vasos de flores entre os postes, mas eu disse que podíamos fazer umas
pontes de flores (ela mostra o local na tela), mas isso não daria certo por causa dos
carros, os caminhões grandes poderiam derrubar, então nós tivemos a ideia de colocar
ali, sobre a calçada de 5 metros, eu acho. E houve outras ideias, por exemplo, colocar
grandes vasos ao fundo, como se chamam? arbustos, nós queríamos colocar plantas
entre os postes e desenhávamos o que queríamos fazer.
Talita aponta para a tela sorri (figura 28), contando que, no momento do vídeo, a
diversão das crianças era desenhar o facilitador que aparecia na foto, junto com as plantas que
gostariam de colocar na calçada. No clipe, um dos facilitadores diz às crianças que quer ver os
desenhos ao final da atividade.
142
Percebemos que ela aproveita elementos do contexto, como é o caso da foto utilizada
para mostrar o espaço destinado para o projeto, para tornar a atividade de vegetalização mais
lúdica, desenhando o facilitador junto com as plantas.
Durante a entrevista perguntamos quais seriam as dificuldades para a execução do
projeto, Talita pausa o vídeo e se vira para o pesquisador para explicar que o problema não é
orçamento, mas as pessoas que não prestam atenção e podem danificar as plantas.
Talita: é preciso ter um orçamento, pra isso a gente tem um envelope com dinheiro
dentro, mas é preciso também que a gente se esforce para que o projeto não acabe e o
problema é que há pessoas que não prestam atenção e podem pisar as flores ou algo
do tipo.
No clipe, após verem as fotos da Rue de Petit Musc as crianças discutem para decidir
qual espaço seria utilizado para o projeto. Após alguns minutos, elas acabam optando apenas
pela calçada maior. Talita sorri quando fala sobre a importância dos projetos de ecologia, como
os projetos de vegetalização, e nos explica os motivos pelos quais considera que a participação
nesse tipo de ação é importante.
Perguntamos à Talita o que mudou após os seis meses no conselho municipal, e qual a
diferença entre o trabalho das crianças no CME e o trabalho dos voluntários nas associações. A
criança dá exemplos daquilo que aprendeu, fazendo uma comparação entre o antes e o depois
do projeto.
143
T: foi um prazer, não é como trabalho ou algo assim, foi prazeroso e divertido. Além
do mais, nós aprendemos muitas coisas, porque não havia apenas o projeto, nós
fizemos uma maraude, e tudo mais, isso me permitiu descobrir as coisas, antes eu não
sabia o que era uma maraude. Então, foi algo bom, antes eu tinha um pouco de medo
dos SDF, mas agora eu entendo várias coisas, como fazer uma esponja com meias e
como reutilizar as coisas, fazer uma árvore de Natal com livros e várias outras coisas.
Mesmo que eu já tivesse feito algumas coisas, me permitiu relembrar ou experimentar,
ou contar tudo que eu havia feito aos outros.
Talita faz uma distinção entre a experiência que teve com o trabalho voluntário,
divertida e prazerosa, na qual houve a possibilidade de um aprendizado coletivo, com a ideia
que possui do trabalho em geral. Os exemplos citados pela criança daquilo que aprendeu
durante o projeto, se referem às atividades práticas, e ela sorria a cada exemplo dado.
Perguntamos à Talita qual o momento que mais lhe agradou dentre todas as atividades
realizadas no CME e qual a diferença entre as atividades propostas pelos voluntários durante as
formações e a produção do vídeo para ser utilizado na plenária, feito por ela no aplicativo
TikTok.
T: talvez seja que, nas outras atividades, exceto na Ressourcerie, nós falamos mais.
Por exemplo, no centro de jardinagem nós falamos mais do que fizemos. Eu prefiro
fazer para ter a minha própria experiência. No centro de jardinagem nós falamos das
plantas e tudo mais, mas poderia ser melhor se, por exemplo, nós plantássemos
qualquer coisa, escolhêssemos uma planta pra fazer um teste de qual tem o melhor
cheiro, ou algo assim. Na Cruz-Vermelha nós realmente fizemos alguma coisa, nós
falamos antes, mas nós fizemos depois. Então é isso.
O gesto da figura acima (figura 31), aliado à fala da criança, nos dá indícios de um
movimento em direção à mudança de pensamento. Antes de participar do CME, Talita pensava
que as atividades se resumiam à construção de um projeto, este foi um dos motivos pelos quais
se inscreveu, após ter participado das formações, ela mudou sua opinião sobre o conselho, ao
perceber a diversidade de atividades desenvolvidas, principalmente com as associações.
Síntese do episódio 1
Neste trecho da RIW, pode-se perceber que Talita é uma criança que já desenvolveu a
atenção e o cuidado, tanto com a cidade, quanto com a preservação ecológica; ela já apresenta
uma reflexão sobre a participação e a necessidade da ação coletiva. Ela fala de um “aprendizado
real” associado ao projeto e que a interação com outras pessoas, os adultos e demais crianças,
neste aprendizado das práticas de voluntariado é “divertido”; para ela, “fazer junto” é divertido,
pois é uma oportunidade de compartilhar a atividade.
Também encontramos uma reflexão da criança sobre como “influenciar os outros a
participar das ações” é complexo ou difícil. A adesão às práticas pode simbolizar o ingresso,
ou reforçar a pertença do sujeito ao grupo como mostram Andrade e Silva (2021) no caso das
professoras Cribiás, mas o senso comum também possui uma função de resistência (BAUER;
GASKELL, 1999), no sentido de que as representações são mobilizadas pelos sujeitos na
tentativa de conservar um posicionamento ou a tradição.
28
Service de Propreté de la Ville de Paris.
145
As crianças utilizavam luvas e pinças, exceto Talita, que cobria uma das mãos com o
moletom. Sofia (que utilizava a subcam durante a atividade) pergunta se o uso de luvas não era
obrigatório, porque ela também preferiria não usar. Após levantarem a tampa do bueiro (figura
X), as crianças começam a coletar o lixo com a pinça e jogar no saco que está com o facilitador.
Em um determinado momento do clipe, as crianças erram o saco de lixo e acertam o
pesquisador, que reclama de ter se sujado.
No vídeo, Talita aparece contando aos demais que foi a responsável por descobrir como
levantar a tampa (figura 30), embora o pesquisador tenha dito que era algo complicado.
Enquanto recolhem o lixo, as crianças falam sobre a sujeira, o quanto o lixo é nojento, embora
aparentem se divertir.
A criança se recorda que ao final da atividade todos ganharam brindes, uma garrafa e
uma lancheira com o símbolo da cidade, e escolhe assistir o clipe do momento em que as
representantes do serviço de limpeza da cidade entregam os brindes. Nesse mesmo vídeo, Sofia
convida todos para guardarem os brindes na sala junto com o restante do material. Enquanto
assiste, Talita ri e diz à mãe que foi muito divertido.
Síntese do episódio 2
Reações e evidências
Síntese do episódio 3
Talita se mostra uma criança que busca o lúdico nas atividades formativas, ela ri e se
“diverte” com a “prática”; ela se mostra atenta às reações que suas ações e comportamentos
provocam nas demais crianças e nos adultos, especialmente os mais próximos. A formação
configurou uma possibilidade não apenas de treinar “os gestos que salvam”, mas de mostrar o
conhecimento aos colegas, exercendo a autoridade epistêmica, já que a criança teve
experiências anteriores de formação.
Durante a entrevista, a presença da mãe (um Outro significativo) faz com que a criança
busque o reconhecimento na atividade, mostrando seus “acertos” e apontando os “erros” dos
149
demais. Ela sinaliza o que aprendeu, repetindo os movimentos da formação e música utilizada
para marcar o ritmo.
Reações e evidências
Enquanto assiste o clipe, Talita conta para a mãe sobre o torneio de videogames e diz
orgulhosa que fez um strike no boliche (figura 36). Ela explica que a senhora do abrigo teve
dificuldade para entender as regras, qual era o seu personagem, e como deveria se movimentar.
Talita imita de forma debochada a fala do facilitador de quando fez um strike, “nada
mal”. Em seguida, ela diz que os movimentos da senhora que aparece no vídeo estavam
corretos, porém os comandos nem sempre funcionavam.
Talita: Ela fazia certo, só que nem sempre funcionava... [...] e lá ele vai conseguir (ela
se refere ao facilitador). Então ela parou de jogar e ficou assistindo. Nós ficávamos de
lado porque nosso braço tinha tendência a ir para o lado e isso mudava a trajetória,
então se fosse um canhoto tinha que fazer assim.
No momento em que a criança aparece no vídeo comendo batata frita, enquanto outras
crianças continuam o jogo, a mãe fala que parte do interesse das crianças estava relacionado ao
lanche, e Talita mostra a atividade em vídeo para dizer que o projeto consistia em diversas
atividades além do lanche.
Figura 37 - Imitando o jogo de Tênis.
A criança conta que após a competição de boliche, as crianças jogaram tênis e ela voltou
para casa com os braços doloridos, devido à movimentação do jogo. Ela imita os movimentos
de forma caricata e ri (figura 37), dizendo que foi divertido e ficou com dor no braço.
Síntese do episódio 4
Embora a proposta da atividade tenha sido de incentivar a troca entre crianças e idosos,
sob o tema das relações intergeracionais, o fato de terem escolhido um torneio de jogos
eletrônicos pode ter dificultado o acesso e a participação dos mais velhos, como mostrou o
relato da criança, já habituada com os jogos. Os abrigados assistiram as crianças se divertirem,
mas pouco interagiram.
Segundo Talita, fazer coisas novas, como jogar videogame com pessoas idosas num
abrigo, é uma atividade divertida, não pela questão do voluntariado, ou de fazer uma boa ação,
mas pelo fato de ser algo inusitado. Mesmo que os moradores do abrigo tenham tido dificuldade
para aprender os comandos ou os gestos do jogo, o torneio colocou as crianças na função de
ensinar aquilo que já sabem, invertendo os papéis geracionais. Nesse caso, são as crianças que
detém o conhecimento, o que lhes dá uma vantagem sobre o adulto, ao ter a opção de
compartilhar ou não aquilo que já sabem.
No entanto, a proposta de um torneio envolvendo apenas atividades nas quais as crianças
possuem vantagem, por estarem habituadas com jogos eletrônicos, desequilibra a relação, pois
não há possibilidade real de troca entre as gerações. Se a interação dialógica é baseada na
confiança epistêmica (MARKOVÁ, 2017) o ideal seria que tivessem sido disponibilizadas
atividades que permitissem o aprendizado mútuo, ou a troca de experiências entre as crianças e
os idosos.
Neste trecho da RIW, também encontramos sinais do desenvolvimento de uma postura
de “desafiar” os facilitadores, ou seja, um processo de negociação de papéis entre adultos e
crianças, que aponta a percepção do outro no processo de processo de interação social (suas
intenções, suas regras, sua ação). Podemos pensar que esta atitude de desafio ou de resistência
ao adulto é um sinal da busca de um protagonismo infantil.
Síntese da Entrevista
152
A entrevista aponta que Talita é uma criança que já chegou ao projeto com um olhar
para a cidade, motivada para as atividades voluntárias, e com reflexões sobre o papel e o lugar
do “outro”, as outras pessoas ou agentes, no cuidado com as pessoas, com o meio ambiente e
com a cidade. Ela se mostra curiosa quanto ao lugar, as intenções e ações efetivas destes
“Outros”; bem como encontra prazer em interagir com as diferentes pessoas, especialmente, na
construção de uma lógica social na relação intergeracional, adulto-criança, e na lógica do que
“deveria ser feito”, daquilo que é desejável para a cidade e no cuidado com as pessoas
vulneráveis, um sinal de construção da responsabilidade epistêmica.
Ela constrói raciocínios, cria suas próprias estratégias e interage com os demais para
resolver as atividades e desafios propostos. Particularmente, podemos pensar que a participação
é um desafio cognitivo para ela; pois ela produz uma reflexão, a partir das ações “reais”, de
como influenciar, ou seja, como envolver todos naquilo que é desejável para a cidade. É uma
criança que busca o lado lúdico das atividades e do “estar juntos”, nas atividades do grupo,
porque encontra prazer nas interações e nas experiências inusitadas.
A SEBE permitiu à participante rever a atividade e, mesmo nos momentos em que não
utilizou a câmera, a criança se viu no vídeo e pôde relembrar aquilo que vivenciou. É importante
salientar que ao longo da entrevista, a criança faz uma distinção entre os tipos de atividades
desenvolvidas ao longo do projeto. Para ela, apenas aquelas onde houve um envolvimento
prático, em atividades manuais, configuraria uma participação “real”. Essas atividades são
relatadas como as mais divertidas, mais atrativas, sendo necessário priorizá-las se quisermos
incentivar a participação das crianças.
Sofia (nome fictício), nascida em 01/11/2010, era aluna de CM1 à época do projeto
P’tits Volontaires. Sua ideia para o projeto do CME era colocar grades de proteção nas quadras
e abrir as escolas aos finais de semana para que as crianças pudessem jogar futebol, pois a
prática de esportes não é permitida nos parques.
Foi a única criança que utilizou a subcam duas vezes, durante a formação com o serviço
de limpeza da cidade e num dos encontros de construção do projeto coletivo. Sofia era
acompanhada pela avó, que a deixava e vinha buscá-la ao final das atividades. Em algumas
ocasiões, trouxe consigo uma câmera portátil e utilizou para criar seus próprios registros das
formações.
153
No clipe que abriu a entrevista, as crianças estão sentadas ao redor da mesa e desenham
um croqui para o projeto de vegetalização. Na parede está projetada uma foto na qual um dos
facilitadores aparece caminhando na Rua de Petit Musc, onde seria realizado o projeto. O
facilitador comenta que, por causa das férias de inverno, várias crianças faltaram.
Sofia afirma que considera importante o projeto de vegetalização da Rue de Petit Musc,
devido à falta de vegetação em Paris. Quando fala sobre a atividade de desenho do croqui, a
criança aponta para a tela e faz um gesto para mostrar sua ideia para o projeto de vegetalização
(figura 38). Ela interrompe o pesquisador para falar sobre o que estava desenhando.
29
Instituição localizada no 12ème arrondissement, responsável pelo acompanhamento dos projetos de arborização
da cidade, fornecendo treinamento e os insumos necessários à população.
154
P: você acha que as crianças, as pessoas que moram ao lado, você acha que elas vão
participar?
S: os grandes talvez não façam, mas os pequenos talvez esmaguem as plantas por
diversão.
A criança conta que usou uma câmera para fazer seus próprios registros do CME embora
os óculos da pesquisa (subcam) sejam mais práticos, pois a câmera comum impede que a pessoa
utilize as mãos ao mesmo tempo em que manuseia outros objetos (figura 39), fazendo um gesto
para mostrar as mãos “ocupadas”.
Síntese do episódio 1
No primeiro trecho da entrevista, Sofia relata a motivação para fazer seus próprios
registros das atividades, que serviriam como lembrança do projeto. Essa motivação para criação
(LAHLOU, 2010) representa uma busca da criança por explorar suas possibilidades de atuação
no mundo, na tentativa de satisfazer sua curiosidade e construir suas experiências.
Ela demonstra com gestos que, em comparação com o equipamento da pesquisa
(utilizado à altura dos olhos), a câmera comum atrapalha o manuseio de outros objetos. Nas
fotos e vídeos feitos pela criança, vimos que ela posicionava a câmera voltada para si, de forma
a captar sua própria atividade.
A preocupação de Sofia ao ingressar no CME diz respeito ao espaço reservado para as
crianças na cidade. Sabemos que a infância passou por um processo de privatização ao longo
do século passado (SARMENTO, 2007), sendo as crianças retiradas dos espaços públicos, sob
a justificativa da proteção. A participante questiona o fechamento das escolas, principal espaço
de socialização da criança, durante os finais de semana, momento propício para o lazer e a
prática de esportes.
155
Quanto à vegetalização, ela afirma ser um trabalho de todos, não apenas daqueles que
se responsabilizam pelos projetos, e manifesta desconfiança nas crianças menores, que
poderiam danificar as plantas por diversão. Essa desconfiança pode ser um sinal de que a
criança compartilha da crença da infância como período de imaturidade, no sentido de que
atribui ao mais novos a falta de responsabilidade e de cuidado.
Clipe 1
No clipe escolhido, uma das crianças chama a atenção para a tampa de esgoto no pátio
da prefeitura, e Sofia, que utilizava a subcam, corre para se juntar ao grupo (figura 40). As
crianças levantam a tampa para recolher as bitucas (ou guimbas) de cigarro e o lixo dentro do
esgoto, jogando na sacola segurada pelo facilitador. Enquanto recolhem o lixo, as crianças
comentam sobre a sujeira e a falta de cuidado das pessoas com a prefeitura.
Figura 40 - as crianças retiram o lixo do esgoto.
Ao encontrar a pasta com os clipes da coleta de lixo, Sofia pergunta por que seu nome
está em todos os vídeos, e respondemos que isso se deve ao fato dela ter sido a responsável
pelos registros usando a subcam. Ao assistir o clipe, a criança se vira para contar à mãe que elas
conseguiram levantar a tampa de esgoto e sorri quando comentamos sobre a reação das crianças
à atividade de coleta de lixo (figura 41).
Clipe 2
No vídeo, Sofia segue com as outras crianças até a porta e decide não sair, continuando
dentro da prefeitura. Ela então pergunta ao facilitador se as crianças são obrigadas a sair e se
pode permanecer no pátio, continuando a recolher as bitucas de cigarro da área interna. Ao ver
que Renato está com duas pinças, o facilitador propõe que os dois revezem, para que cada um
possa utilizar duas ao mesmo tempo (figura 42). As crianças comentam sobre a quantidade de
lixo na prefeitura.
Reações e evidências
157
Comentamos que, no dia seguinte, havia duas garrafas de plástico no chão, em frente ao
IEA, e a criança parece surpresa, ao perguntar se todo o lixo que retiraram estava de volta. Sofia
dá de ombros e afirma que as pessoas jogam o lixo no chão porque sabem que outra pessoa vai
recolhê-lo.
P: hoje quando eu estava saindo do metrô eu vi um homem que fazia isso com a pinça
e a lixeira, mas era alguém trabalhando.
S: sim, a gente paga alguém para fazer isso. Mas sobre respeitar a natureza, nós
dizemos que existem problemas com a natureza, e que o aquecimento climático vai
trazer problemas para a Terra, mas as pessoas não respeitam a natureza. É ruim.
P: Se é o meu lixo, algo que eu comi, eu jogo no lixo.
S: eu também. E na prefeitura tinha muitas lixeiras, as pessoas não podem jogar assim.
P: nós encontramos bitucas ao lado da lixeira.
S: na verdade, a maior parte do tempo as pessoas não querem ir até à lixeira, eles
jogam e acaba caindo ao lado. E o pior é que na rua a gente vê vários pontos brancos,
a gente pensa que é da natureza, mas na verdade todo mundo joga chiclete no chão
(ela começa a rir, pois aparece no vídeo falando a mesma coisa). E o pior é que se eles
jogam no chão, algumas pessoas vão pisar e vai grudar no sapato.
158
Comentamos sobre o fato de que Sofia esteve presente em todas as formações do CME,
e ela sorri e responde que não perdeu nenhuma, embora tenha se atrasado para a primeira, por
não saber onde ficava a prefeitura. Perguntamos por que ela participou de todas as formações.
P: Por que você participou de todas as formações?
S: quando você se compromete, normalmente, você vai até o fim, exceto quando você
realmente, mas realmente não pode. Se você sabe que não vai conseguir, você nem
faz.
Síntese do episódio 2
No trecho acima, Sofia afirma que a atividade foi divertida, mesmo que a coleta de lixo
em si não seja uma atividade agradável. Sofia comenta a falta de cuidado das pessoas com o
espaço público, mostrando-se surpresa com a quantidade de lixo no pátio da prefeitura. Nas
palavras da criança, é uma verdadeira “catástrofe” que as pessoas não respeitem espaços como
a prefeitura da cidade.
Podemos pensar na atitude da criança como um sinal de responsabilidade epistêmica,
no sentido de que ela se posiciona como alguém disposto a contribuir com a melhoria das
condições do Outro (aqui representado pela cidade), ao identificar na limpeza da cidade uma
necessidade coletiva, que estaria acima da vontade individual, o bem-estar comum.
A criança tenta compreender por que as pessoas jogam o lixo no chão e não respeitam
a natureza, e aponta como motivo a falta de responsabilização, justificada pela crença das
pessoas de que outros se implicarão, mais especificamente os funcionários e a administração
pública, aqueles que são pagos para resolver os problemas da cidade. A existência de
trabalhadores responsáveis pela coleta explicaria a falta de cuidado das pessoas com o lixo.
É necessário ampliar a concepção de cidadania, para além dos direitos e deveres, pois a
falta de responsabilidade pelo Outro é uma consequência do individualismo crescente na
159
No vídeo, registrado com a subcam por Renato, cada criança recebeu uma ferramenta
de madeira para trançar os retalhos de meia e confeccionar sua própria esponja. O menino
demonstra dificuldade para executar a tarefa e tenta pedir ajuda a um adulto. Ele é ajudado por
outra criança (figura 44) e, ao perceber a dificuldade da criança, a facilitadora pede que troquem
de lugar, para poder acompanhá-lo.
Figura 44 - confecção de esponjas de material reciclável.
S: e eles também nos disseram para fazer árvores de Natal utilizando livros ou outras
coisas além de madeira. Eles nos disseram para não comprar árvores de verdade
porque depois a gente acaba poluindo.
P: eu penso que o problema é que se todo mundo comprar árvores de verdade, depois
do Natal todas serão jogadas no lixo. Eu vi no Parc Montsouris que há um lugar pra
descartar árvores e a cidade depois recolhe.
S: tem em todo lugar, mas eles não fazem isso (recolher as árvores) eles nos dizem
isso, mas não fazem.
P: eles não reciclam?
S: Não, eles não reciclam. Na verdade, eles deixam lá para que as pessoas que
precisam de madeira venham cortá-la (ela faz o gesto de corte com a mão). E o que
eles poderiam fazer com as árvores? Não se pode colocá-las no fogo, então elas não
servem para muita coisa.
Ao final da entrevista, Sofia se levantou para buscar a câmera para que pudéssemos
fazer o download dos registros realizados por ela durante as formações. Como podemos ver n
figura 46, a criança posicionou a câmera de forma a registrar sua própria atividade, inclusive o
espaço das mãos, semelhante ao que fizemos com a subcam ao longo da pesquisa.
Síntese do episódio 3
A fala da criança sobre o reaproveitamento dos materiais e a reciclagem mostra que ela
percebe uma contradição entre o discurso de preservação do meio-ambiente e as ações
implementadas pela cidade de Paris, que podem acabar gerando resíduos igualmente poluentes.
No cenário mundial, há uma grande discussão sobre o respeito às metas estabelecidas no
documento denominado Acordo de Paris (ONU, 2015), no qual diversos países se
comprometeram a reduzir a emissão de gases de efeito estufa.
No entanto, ações de preservação e o compromisso assumido pelos países não
necessariamente implicam uma maior conscientização da população ou a transformação efetiva
das práticas, pois a mudança ocorreria apenas a nível do discurso institucional. É necessário
que as ações se convertam em projetos de intervenção e que estes tenham a sociedade civil,
para legitimar a posição em defesa do planeta. As crianças percebem que o discurso dos adultos
(faça o que eu digo, não faça o que eu faço), principalmente nas relações intergeracionais, nem
sempre é revestido de autoridade, pois não há equivalência entre o dito e o feito.
A preocupação em relação à possibilidade de interrupção das atividades reafirma o
compromisso da criança ao se engajar no CME. Sofia identifica no pesquisador um adulto
disposto a ajudar na realização da plenária, pois compartilha do interesse pelo projeto. Na
ausência do adulto, a criança não se sente segura para conduzir a plenária, o que reforça a
importância do adulto na promoção da participação infantil.
membros, tal qual ocorreu no CME, onde cada criança possuía um projeto individual. Ao
visualizar a possibilidade de ampliação do conselho, surge o risco de que quanto maior o grupo,
maior a dificuldade de estabelecer um consenso, pois as pessoas precisariam renunciar a suas
aspirações individuais, na busca de um objetivo coletivo.
No conjunto dos sinais encontrados, podemos afirmar que Sofia é uma criança que
apresenta uma reflexão sobre os problemas da cidade e das pessoas, apontando que é necessário
a construção de um “consenso”, um grupo ou coletivo para lidar com estes problemas. Também
encontramos uma reflexão sobre a dificuldades de envolver as pessoas na busca e ação de
soluções; associados às dificuldades ela vê contradições entre o “discurso dos adultos” e a
“prática”, bem como os bloqueios existentes para uma efetiva participação da criança.
A consistência é um fator determinante na mobilização de um grupo em prol de uma
transformação das práticas sociais, como demonstrou Moscovici (2011) nos estudos sobre
influência social e as minorias ativas. No pensamento da criança, uma base dos conflitos sociais
é a barreira entre “os adultos” e “as crianças”. O mundo social, para ela, não parece estar
dividido entre categorias sociais mais marcadas na mídia, como nacionalidade, etnias, religiões,
delinquência ou distinção de classe econômica, nem os “SDF” (Sem Domicile Fixe”, moradores
de rua); e sim na questão intergeracional.
Nesse contexto, participar é uma maneira de estar informado, de saber o que acontece e
de poder decidir os rumos da ação. Se as pessoas não participam, elas não podem reclamar por
ter perdido algo.
Um elemento fundamental para a criança é que as pessoas possam encontrar prazer nas
atividades voluntárias, ao exercitar a solidariedade e construir coisas boas para todos; assim, as
pessoas que participam de uma associação ou de uma ação coletiva são aquelas que, de antemão,
percebem a possiblidade de ter uma experiência agradável e de satisfazer suas aspirações. É
essa possibilidade que determina o compromisso e engajamento, diminuindo as chances de
desistência.
Em seus argumentos encontra-se a visão das dificuldades inerentes à construção de um
projeto, e que as crianças enfrentam ainda o obstáculo da necessidade do suporte de um adulto
que se responsabilize pelas questões burocráticas, como contratos e orçamento, o que restringe
a possibilidade de atuação infantil na comunidade. A assimetria da relação intergeracional é um
tema recorrente nas discussões, pois ela determina os papéis reservados às crianças e aos
adultos, com direitos e responsabilidades específicos, inclusive de participação política
(SARMENTO; FERNANDES; TOMÁS, 2007).
163
Nos relatos e reações encontrados, é essa relação assimétrica que faz com que as
crianças não tenham informações suficientes para avaliar uma atividade antes de se envolver,
pois elas são constantemente convidadas a participar de ações, visitas e projetos, sem que
tenham a real possibilidade de aceitar, discordar, ou decidir sobre os rumos da sua própria
atividade.
É possível perceber uma visão, segundo a qual a participação infantil se dá como uma
forma de resistência ou de desafio, quando a criança busca alternativas próprias para a resolução
dos problemas, independente do adulto, assim como a participação social, em momentos de
cerceamento da liberdade, quando esta ocorre fora dos limites institucionais. As crianças
estabelecem seus próprios objetivos, guiados por uma motivação diferente daquela do adulto, é
necessário que essas motivações sejam consideradas na formulação de políticas e ações para
essa população.
Ingrid (nome fictício), aluna de CM2 da escola Neuve Saint-Pierre, tinha 9 anos à época
do projeto (nasceu em 29/04/2010). Sua ideia inicial para o projeto era ajudar as pessoas em
situação de rua, por meio de uma parceria com as associações. Foi a única participante que
optou por não utilizar a subcam, mas esteve presente em todas as formações.
A criança afirma ter conhecido o conselho por meio de uma amiga que havia participado
no ano anterior, quando os conselheiros apenas votaram projetos. Foi a responsável pela
sugestão da rua de Petit Musc, onde seria realizado o projeto de vegetalização, por ser a rua
onde morava. A criança disse que gostaria que a rua fosse mais bonita e limpa, porque há várias
escolas e lojas.
O contato com os pais foi realizado via e-mail e a entrevista replay foi realizada no dia
12/03/2020. A criança veio acompanhada de um adulto, mas este não participou da entrevista.
Durante as formações, os pais indicaram um responsável para levar e buscar a criança na
prefeitura.
Musc, onde mora com os pais A criança se dirige ao quadro e começa a desenhar a rua,
explicando para um dos facilitadores a distribuição dos imóveis, como mostra figura abaixo
(figura 47).
Comentamos que Ingrid mora na rua de Petit Musc e perguntamos se ela conhece algum
morador que poderia auxiliar as crianças do CME na tarefa de vegetalização.
P: você mora na rua de Petit Musc, talvez você conheça algum vizinho ou alguém que
possa ajudar o conselho a executar o projeto.
I: Eu não sei, na verdade são meus pais que conhecem os vizinhos e tendo em vista
que não é no mesmo imóvel, eu não acho que conheçamos alguém. Talvez as pessoas
do nosso imóvel também possam participar.
P: na verdade, nós vimos que a calçada fica em frente a um grande imóvel. Se
perguntarmos às pessoas que moram lá, talvez eles possam ajudar com as plantas.
I: sim, é necessário perguntar.
Quando perguntamos qual foi a formação que mais lhe agradou, Ingrid responde que
foi a formação sobre “os gestos que salvam”, realizada pelos bombeiros. A criança então
pergunta se nós fizemos vídeos da formação e se poderia assisti-los.
Síntese do episódio 1
Ingrid conta que não conhece os vizinhos, mesmo aqueles que moram no mesmo imóvel
que sua família. São os pais quem têm contato com os demais moradores, podendo intermediar
a relação com os potenciais participantes do projeto, embora ela não pareça segura quanto à
possibilidade de conseguir a ajuda dos vizinhos para ajudar no projeto.
O fenômeno de privatização da infância (SARMENTO, 2007) é ainda mais flagrante
nas classes sociais superiores, Ingrid era acompanhada nas atividades do CME por um adulto
165
contratado pela família, relatou ter uma agenda cheia de atividades extracurriculares, e não tem
contato com as pessoas que habitam no mesmo imóvel. O espaço destinado à criança é reduzido,
de forma a garantir que ela alcance as expectativas da família.
Enquanto Ingrid assiste o vídeo da atividade, comentamos que ela havia dito durante a
formação que gostaria de ser bombeiro.
P: você disse que também gostaria de ser bombeiro.
I: ah não, quando eu era pequena eu queria ser bombeiro, agora eu não quero mais, eu
quero me tornar médica. Eu queria salvar as pessoas, mas eu não sabia que era tão
perigoso. Hoje em dia eu me pergunto, o que me deu na cabeça de querer ser
bombeiro, então agora eu quero ser médica.
P: mas você pode ser bombeiro-mirim antes de ser médica.
Reações e evidências
e é muito importante, porque sem eles as cidades pegariam fogo e todos nós
morreríamos.
Quando falamos sobre a prática dos gestos que salvam, ensinados pelos bombeiros,
Ingrid diz que as crianças não devem fazer, mesmo que saibam, sendo algo arriscado (figura
51). A capacidade da criança é colocada em xeque, sendo responsabilidade do adulto assumir
riscos. Na fala de Ingrid, se houver um adulto por perto, a criança não é prioridade.
Logo em seguida, ao comentarmos que ficar três ou cinco minutos sem respirar é muito
tempo, e que nem sempre os bombeiros conseguem atender um chamado rapidamente, Ingrid
menciona que há uma diferença entre ajudar um familiar e uma pessoa desconhecida.
I: sim, isso é verdade, se é alguém na rua, eu não ousaria fazer, mas se é alguém da
minha família, não é a mesma coisa, é outro nível, visto que eu não a conheço. Eu
poderia lhe fazer mal, eu não quero, então eu prefiro ligar direto para os bombeiros ao
invés de fazer os gestos.
Perguntamos então à criança o que ela aprendeu durante o projeto P’tits Volontaires, e
sua resposta diz respeito ao papel das associações e dos voluntários no combate às
desigualdades e no desenvolvimento da cidade.
P: de modo geral, durante os encontros do Conselho Municipal de Crianças, o que
você aprendeu?
I: na formação com os bombeiros ou em todas as formações?
P : em geral.
I : Todos os encontros, todas as formações, todas as profissões que nós vimos, elas
ajudam a cidade e as pessoas a crescer, independente do que eles fazem, eles salvam,
eles ajudam, eles refazem os objetos, eles ajudam na limpeza da cidade, eles todos
ajudam uma parte da cidade que é muito importante, seja ao salvar, ao ajudar, ao
plantar, e isso nos serviu de exemplo, pelo menos pra mim, de fazer um desses
trabalhos porque eles nos deram várias ideias e foi muito interessante. Nós vimos e
aprendemos muito, graças ao projeto e a essas profissões, que são muito importantes,
porque se essas profissões ajudam as pessoas e a cidade a crescer, isso as torna
interessantes e eu adorei o projeto. Eu realmente aprendi muitas coisas, me diverti, fiz
amizades, e foi muito bom porque todos os facilitadores eram bons e eles nos
ensinaram em forma de brincadeira ou de lição. Então é muito legal aprender com os
outros alunos, e eu aprendi muito, eu tenho meus souvenirs no caderno.
Nesse momento, a fala da criança remete aos alunos, às formas de aprendizado, seja
lúdica ou como uma lição, o que indica uma possível referência ao ofício de aluno e às
atividades escolares. Ingrid considera a atividade das associações fundamental para o bom
funcionamento da cidade, ideia que pedimos para que ela nos explique melhor (figura 53).
Figura 53 - partes de um todo.
Ao elaborar o discurso, a criança faz referência à metáfora dos laços sociais, e se refere
à cidade enquanto uma totalidade funcional, na qual cada associação é uma parte responsável
169
pelo bom funcionamento do todo. Na ausência das associações e das profissões capazes de
manter os laços, ocorreria um esfacelamento da cidade, uma característica dos países pobres,
onde o desenvolvimento não foi capaz de garantir qualidade de vida para todos.
P : a Ressourcerie ?
I: a Ressourcerie pega e reformula os objetos, eles os tornam acessíveis e eles fazem
vários objetos, Emmaüs é top, muitas pessoas que eu conheço vão e saem de lá com
boas roupas e todos formam uma pequena parcela pra que a cidade seja inteira, para
religar a cidade e não desmoronar (ela faz um gesto com as mãos, ilustrando as partes
e em seguida as partes se ligam, formando uma totalidade).
I: Por exemplo, em alguns países, não sei bem quais, nos países pobres, talvez eles
não tenham isso e por isso eles sejam pobres. Na verdade, eles eram pobres e não
conseguiram reatar os laços, eles não conseguiram formar essas profissões, eu não sei
se é verdade, mas isso faz com que a cidade não cresça, com muitos monumentos. Por
exemplo, eu não sei bem, mas em alguns países pobres eles não tem carros, não tem
lojas, eles vivem nas ruas e quando eu penso nisso, eu imagino que seja porque eles
não têm essas quatro ou cinco profissões que podem transformar a cidade. E essas
quatro, cinco ou seis, elas são muito importantes, porque eles acrescentam30 coisas à
cidade, não só acrescentam, elas ensinam a cidade, e eu sou muito contente por haver
muitos bombeiros, muitos policiais, muitos voluntários na Ressourcerie e na Cruz-
Vermelha. Eles se multiplicaram e isso ocorre porque os desgastes também
aumentaram, a pobreza se multiplicou, então eles ajudam as pessoas e isso ajuda a
cidade.
Síntese do episódio 2
Percebemos que a criança elabora uma justificativa para o aumento das desigualdades
sociais, relacionando o crescimento e a manutenção da cidade à existência de pessoas e
profissões capazes de manter as pessoas ligadas (uma possível alusão aos laços sociais),
evitando que elas se afastem e a cidade despedace. Essas pessoas e profissões têm em comum
a solidariedade, o fato de que ajudam os mais necessitados, em diferentes aspectos. O que
observamos é a elaboração de um discurso para justificar a existência das desigualdades sociais,
entre povos e países.
Ingrid demonstra ter vontade de ajudar as pessoas, pois considera importante ser
solidária. No entanto, ela procura a melhor forma de ajudar, sem assumir riscos desnecessários,
como quando relata que desistiu da profissão de bombeiro por ser perigosa e, hoje em dia,
afirma ter vontade de ser médica. Ela também realiza uma distinção entre quem está apto a
assumir riscos e quem não deveria fazê-lo.
Quando é confrontada com a necessidade de agir, Ingrid ainda não se sente segura, e
estabelece níveis diferentes de responsabilidade, numa lógica de risco e recompensa. Ajudar
30
A criança utiliza o verbo rapporter, que pode significar trazer, acrescentar, mas também é utilizado quando se
fala de relações pessoais, no sentido de (r)estabelecer vínculos.
170
um desconhecido, por exemplo, oferece um risco maior do que ajudar um familiar, portanto a
criança não deveria assumir tal responsabilidade.
Para a criança, os voluntários são necessários para a cidade, pois são pessoas que não
pensam apenas em si mesmos, ajudando aqueles que têm menos. Os voluntários lidam
diretamente com as desigualdades, e ela associa o altruísmo ao progresso, como forma de fazer
o mundo evoluir. Sem as associações, a cidade poderia se desfazer, morrer. O aumento das
desigualdades sociais requer um aumento na quantidade de associações e na disposição das
pessoas para serem solidárias.
No clipe escolhido, registrado por Renato com a subcam, durante a formação com a
Ressourcerie l’Alternative, Ingrid pede aos facilitadores que expliquem a atividade da
associação em duas palavras (figura 54). Os facilitadores respondem que se tivessem que
resumir em apenas duas palavras, seria “reaproveitamento” e “social”, embora preferissem
“laço social”, por causa do trabalho dos voluntários de captação e reaproveitamento dos objetos
para vender à comunidade a preços mais acessíveis.
Reações e evidências
Perguntamos à criança por que pediu que aos facilitadores explicarem o trabalho da
associação em apenas duas palavras e, ao assistir o vídeo, ela nos conta que utilizou uma espécie
de estratégia cognitiva para compreender o papel da associação, como mostra a figura (figura
55), no sentido de sintetizar as informações de forma a tornar mais fácil o aprendizado.
171
Em seguida, perguntamos à criança se ela tinha mais alguma coisa a acrescentar, e ela
afirmou ter esquecido de falar sobre a atividade no abrigo de idosos, relatando que se sentiu
acolhida pelas pessoas que trabalham no abrigo, e que teve a impressão de que os idosos
estavam felizes por ter companhia. Segundo Ingrid, ao ajudar os idosos, os trabalhadores do
abrigo também ajudam a cidade, contribuindo para o ciclo da vida, outra metáfora empregada
espontaneamente pela criança.
I: isso também ajuda a cidade, ajudar os idosos. É o ciclo, jovens, adolescentes, depois
adultos e você começa a envelhecer e graças a eles você pode permanecer vivo e ter
um pouco de alegria. Por exemplo, lá havia jogos, café da manhã, havia várias pessoas
que faziam um torneio de babyfoot31 e isso é muito legal, fazer essas atividades é
muito bom.
Perguntamos à Ingrid por que algumas pessoas se engajam e outras não, principalmente
no trabalho voluntário, comentando que no dia em que as crianças foram ao abrigo Ave Maria,
havia pessoas atuando como voluntários, visitando os idosos com o intuito de conversar e fazer-
lhes companhia.
31
No Brasil, essa modalidade é conhecida como pebolim ou totó.
172
Quando perguntamos à Ingrid o que podemos fazer para incentivar outras crianças a
participarem do CME, ela aplica a mesma estratégia de resumir a atividade em duas palavras,
usando “aprender” e “se divertir”, relatando que o projeto P’tits Volontaires foi uma
oportunidade de aprender coisas novas e divertidas. A criança compara o projeto a outras
atividades extracurriculares como esporte e música, aconselhando a todos que tem tempo e se
interessam em ajudar as pessoas, mesmos para aqueles que são fechados, Ingrid diz que o
projeto poderia ajudar a abrir a mente deles.
Síntese do episódio 3
173
Ingrid fala sobre o papel das associações na manutenção da cidade e dos laços, ao se
referir ao abrigo Ave Maria como responsável por trazer alegria aos idosos. Ela se refere à vida
como um ciclo, que vai da infância à velhice, como algo natural e inevitável, razão pela qual as
pessoas devem se preocupar com o futuro, para ter alguém que os ajude quando forem idosos.
Assim como as crianças, os idosos também são uma categoria que sofre os impactos das crises,
sendo tratados como uma responsabilidade do Estado.
A estratégia de sintetizar o papel das associações em apenas duas palavras ajudou a
criança a reter a informação, permitindo recuperar posteriormente. Aliada à comparação com
outras atividades curriculares, isso aponta que Ingrid reproduz o papel de aluno, mesmo na
formação para a cidadania, no sentido de que se preocupa em memorizar e tomar notas das
atividades, caso precise responder perguntas e fazer apresentações.
Quanto ao engajamento em atividades voluntárias, Ingrid opera uma tarefa de
classificação das pessoas em cinco tipos, a partir dos fatores tempo e vontade. Para ela, o
voluntário é aquele que possui tempo e sente prazer em fazer algo pelas pessoas, sendo alguém
que se organiza para tal. Segundo a criança, essas pessoas não são as únicas que se interessam
por fazer algo pela comunidade, existem outras, mas as que se interessam são as de “coração
aberto”. Essa classificação reforça a lógica do voluntariado enquanto atividade altruísta, pois
ela atribui às pessoas que se engajam nesse tipo de atividade uma qualidade ligada ao coração,
de acordo com o que a disposição da pessoa para “sair de si mesma”.
Na fala da criança, percebe-se que ela ainda não se considera responsável por atuar em
situações de maior complexidade, mesmo que tenha o conhecimento necessário. Se há algum
adulto por perto, a criança não é a “prioridade”. Há um limite para a agência da criança, no caso
dos primeiros socorros, ela deve agir apenas quando estiver sozinha e quando a vítima for
alguém que ela conhece. Na vida “real”, isso pode indicar uma crença na desresponsabilização
das crianças enquanto atores sociais competentes, sendo chamados ou autorizados a participar
apenas na ausência dos adultos.
Participar de uma atividade com outras crianças, tal como o projeto, poderia “abrir o
espírito” de crianças que são fechadas (essa mesma ideia foi relatada pela mãe de uma outra
criança no início do projeto, quando disse ter incentivado o filho a se inscrever para que ele
pudesse sair de casa). Dessa forma, o projeto passa a ser um espaço de socialização (MOLLO-
174
BOUVIER, 2005), e a comparação com as atividades extracurriculares pode indicar uma forma
de ocupar o tempo da criança com algo “produtivo”. Chama a atenção que a criança se refira
aos alunos, não às crianças de maneira geral. Isso sugere uma atuação no projeto como atividade
complementar à escolarização, ainda que o ofício de aluno seja a referência para a aprendizagem
(na forma de lições ou de brincadeiras), ou uma comparação com as demais crianças com quem
Ingrid convive no ambiente escolar.
Os voluntários são pessoas que ajudam a cidade a crescer, independente do que eles
façam, ao se dedicarem à manutenção da comunidade. Sem os voluntários, sem as pessoas que
se dedicam à cidade, há o risco de esfacelamento da comunidade, pois cada associação possui
o seu papel na manutenção do bem comum (essa ideia não é abertamente referenciada pela
criança, mas pode indicar uma pista do que significa a cidade enquanto uma totalidade). A ideia
dos laços sociais emerge, ainda que implícita, no discurso da criança sobre as relações entre os
moradores e o papel dos voluntários.
Na narrativa da criança, a existência de uma grande quantidade de instituições e de
voluntários é o que diferencia a França dos países pobres. A criança constrói uma narrativa a
respeito das desigualdades sociais, ao identificar nas associações o papel de religar as pessoas,
tornando a cidade inteira. A ausência de pessoas dispostas a participar das associações causaria
o rompimento dos laços sociais, motivo pelo qual alguns países continuam pobres. Sabemos
que a criança pertence a uma classe privilegiada, e o seu contato com figura do outro, o
excluído, se dá por meio da presença de pessoas em situação de rua e de refugiados.
A criança identifica um crescimento da quantidade de associações e de voluntários
proporcional ao aumento do desgaste da cidade. Chama a atenção a forma como a criança opera
uma categorização que distingue os países ricos e pobres, tendo tido contato com a desigualdade
e com as associações ao longo do projeto. Existe um nível de desigualdade ou de desgaste
mínimo com o qual é possível conviver no cotidiano, sem que esses laços sociais se desfaçam?
Pensamos que esse aspecto pode ser considerado no estudo das representações sociais sobre a
desigualdade social, no que diz respeito as crenças sobre a origem e perpetuação das
desigualdades.
Érica (nome fictício), nascida em 04/07/2009, era aluna de CM2 da escola Ave Maria à
época do projeto. Sua ideia inicial era combater o bullying nas escolas, por meio de punições
175
mais severas, construir estratégias para diminuir a poluição na cidade e ajudar as pessoas que
vivem na rua.
Era a única criança que já havia participado do Conselho Municipal, no ano anterior,
quando o tema era a construção de uma rádio comunitária, e tinha autorização para frequentar
o polo cidadão sem necessidade de um acompanhante.
Érica não compareceu a todos encontros de formação, embora tenha se mostrado
empolgada para participar desde o início. Durante as formações, a criança era bastante agitada,
principalmente quando não estava à frente do grupo. A entrevista ocorreu no dia 13/03/2020,
na presença da mãe.
No clipe escolhido, registrado pela própria criança com a subcam, durante a formação
com os Bombeiros, o facilitador explica o que fazer quando uma pessoa tem uma parada
cardíaca. Érica interrompe a fala do bombeiro para perguntar o que se deve fazer, afirmando
tomar nota das etapas (figura 57). O facilitador pega emprestado seu manequim para explicar a
massagem cardíaca, pedindo à criança que preste atenção nas instruções. Enquanto as outras
crianças começam a praticar a massagem cardíaca, Érica reclama que não pode fazê-lo porque
está sem manequim.
Comentamos que Érica foi a única criança a ter participado do CME mais de uma vez,
e ela explica que, no ano anterior, havia apenas “encontros normais” e algumas vezes as crianças
faziam programas de rádio. Ela comenta que nas fotos das formações do ano anterior, sempre
aparecia fazendo careta, como se alguém fizesse as fotos no momento de suas caretas.
Contamos que durante a formação no abrigo, houve momentos em que ela fez careta nas fotos.
Érica afirma que não conhecia o projeto antes de se inscrever pela primeira vez no CME,
mas que gostou de participar e por isso se inscreveu novamente. Em sua escola, a escolha dos
representantes do conselho ocorreu por meio de um sorteio. De repente, a criança se lembra da
possibilidade de interrupção das atividades (figura 59), devido às infecções pelo novo
coronavírus e pergunta o que vai acontecer com o projeto.
Figura 59 - a surpresa de Érica.
177
Perguntamos à criança em quantos encontros ela faltou, e ela responde que não pôde
participar de dois dos três encontros de construção do projeto. Ela olha para a mãe e pergunta
porque não pôde comparecer, a mãe responde que foi por causa de uma consulta médica e de
uma reunião escolar. Érica se justifica dizendo que era uma reunião sobre ecologia e que ganhou
um vale de €50, com o qual comprou uma pinça igual à utilizada pelo serviço de limpeza da
cidade.
Quando perguntamos o que deveríamos fazer para apresentar e incentivar a as crianças
a participarem do CME, Érica aplica a mesma estratégia da gincana para a apresentação na
escola. Do contrário, ela afirma que para aqueles que se interessam basta explicar, mas sempre
haverá aqueles que preferem ficar em casa jogando videogame.
P: como você acha que devemos apresentar o CME para as crianças?
E: fazer um jogo, você faz um quis e você faz equipe e escolhe chefes de equipe,
dando tempo para que eles respondam as perguntas. E sobretudo, o que eu faço
quando há pessoas nas equipes que ficam num canto, às vezes quase dormindo, eu
pego essas pessoas e as coloco para serem chefes de equipe. Eles dizem “não, eu não
quero”, mas eu os coloco mesmo assim.
Perguntamos se a criança já utilizou a pinça, e ela afirma que está esperando o pai levá-
la para passear. Quando contamos que havia várias garrafas plásticas na entrada do IEA, pela
manhã, mesmo com a existência de uma lixeira na esquina, a criança encena uma espécie de
vídeo educativo sobre como lidar com o lixo (figura 60).
Quando revê o momento em que o bombeiro pega seu manequim (o qual decidiu chamar
de Michel) para exemplificar a massagem cardíaca, Érica olha para o pesquisador e sorri,
falando que o seu manequim foi utilizado várias vezes. Perguntamos por que decidiu chamá-lo
Michel, e ela responde que atribuiu nomes masculinos a todos os manequins, mas não lembra
o motivo para os nomes. Em seguida, ela afirma que se tivessem peruca, poderia ter lhes dado
nomes femininos.
Em determinado momento, a criança pausa o vídeo para ler as notas do seu caderno, e
afirma que quer ver o que escreveu durante a atividade. Perguntamos qual era seu projeto para
o CME, e Érica responde que gostaria de fazer atividades de coleta de lixo e gostaria de
combater o bullying nas escolas. Ela conta que teve um sonho no dia anterior, em que pedia
uma pinça emprestada e a pessoa lhe batia com a ferramenta.
No clipe, o bombeiro simula uma pessoa que não está respirando e Érica pratica a
posição lateral de segurança, recomendada para desobstruir as vias respiratórias (figura 61). A
criança reclama que não tem força suficiente para colocar o facilitador em PLS.
Ao assistir o vídeo da subcam, Érica afirma que teve dificuldade porque os facilitadores
eram pesados. A mãe afirma que não é uma questão de força, mas a criança diz que quando
alguém está desmaiado, o corpo tende a ficar mais pesado. Ela aponta para a tela (figura 62)
179
para mostrar o momento em que tenta colocar o bombeiro em PLS, reafirmando o argumento
de diferença de peso entre ela e o adulto.
P: se você já sabia como fazer um projeto de vegetalização você poderia nos ajudar.
E: sim, mas eu não estava lá, nós não escolhemos no primeiro encontro, nós falamos
a respeito, mas não decidimos como iríamos fazer.
P: não, mas eu vi que as pessoas fizeram um projeto de 1500 euros, porque eles
precisavam comprar muitas coisas.
E: nós deveríamos ter feito isso, o projeto com as pinças.
P: mas agora você já sabe como fazer. Você pode propor para a sua turma, para a sua
escola.
E: sim, mas não seria melhor emprestar das pessoas que já tem?
P: emprestar 25 pinças? É muito.
E: sim, mas é ainda mais se você comprar.
P: se você comprar para a escola.
E: ou então você compra cinco ou dez e você faz um revezamento. Alguns recolhem
com luvas, outros com as pinças e eles trocam.
Mãe: você também pode fazer um projeto onde você compra 25 pinças ou número
suficiente para uma turma, e você faz um inventário, como uma biblioteca, mas com
os instrumentos e as escolas podem emprestar, todas as escolas, todas as turmas,
quando tiverem necessidade. Você compra apenas uma vez e todas as escolas podem
utilizar.
E: sim, mas é necessário devolver. Precisamos de fichas onde marcamos o nome das
escolas e tempo que eles terão para utilizar, um ou dois meses, depende do tipo de
objeto. Se for uma pinça, seriam uma ou duas semanas.
Perguntamos a Érica se ela pensa que as demais crianças gostariam de fazer parte do
seu projeto, e ela afirma que sonhou que lhe batiam com uma pinça, pois as crianças
reclamavam sobre a atividade de coleta de lixo, dizendo que preferiam jogar videogame. Nós
falamos que as crianças do CME aparentavam ter se divertido durante a coleta de lixo na
prefeitura e Érica lembra de quando acertaram lixo nos facilitadores, dizendo que foi divertido.
Perguntamos à criança qual a diferença entre as atividades do CME no ano anterior e as
atividades envolvendo o projeto P’tits Volontaires, e sua resposta diz respeito à confiança nos
facilitadores, nas pessoas responsáveis pelas formações, e no formato dos encontros.
P: pra você, qual foi a diferença entre o ano passado e esse ano no CME?
E: tudo foi diferente.
P: em geral, participar duas vezes te trouxe algo diferente?
E: na verdade, as formações foram melhores porque nós aprendemos com os
profissionais reais, ano passado também, mas eram menos profissionais e não havia
formações como esse ano.
P: se você aprende com profissionais reais é melhor?
E: sim, porque eles conhecem o ofício melhor que um facilitador, nós confiamos mais
em um bombeiro para ensinar a massagem cardíaca que alguém que trabalha em um
centro de atividades ou algo assim.
P: e se, por exemplo, alguém desmaia perto de você, você pode ligar para os
bombeiros e fazer a massagem.
E: se há outra pessoa, um adulto, alguém maior que eu, é melhor que eu deixe que ele
faça, se ele souber, mas se eu estiver sozinha, posso fazer.
P: Qual a diferença entre um adulto e uma criança, se eles aprenderam com o mesmo
bombeiro, na mesma formação?
E: não muita, mas nós não confiamos nas crianças para fazer isso, nós poderemos
fazer quando formos adultos.
Síntese do episódio 1
maior confiança aqueles que possuem formação ou experiência na área, por isso a falta de
confiança na criança, devido à pouca experiência de vida.
No clipe escolhido, registrado por Sofia durante a formação com o serviço de limpeza
da cidade, as crianças encontram uma tampa de esgoto no pátio da prefeitura e decidem abri-la
para retirar o lixo (figura 65), como forma de reunir a maior quantidade de lixo possível durante
a atividade.
Ao assistir o clipe, Érica aponta para a tela e afirma ter adorado a atividade. A criança
pergunta se a mãe quer assistir o momento em que encontraram a tampa de esgoto e vira o
computador para que ela possa ver a tela, como mostra a figura abaixo (figura 66).
Érica utiliza o mouse para voltar o vídeo e assistir a mesma parte várias vezes. A mãe
diz que a criança já havia utilizado a pinça para recolher lixo no ano anterior, numa atividade
da escola. Ao rever o momento em que o facilitador pede que tomem cuidado, Érica afirma que
as crianças não lhe deram atenção e fizeram do seu jeito. A criança então imita a expressão de
insatisfação do facilitador quando as crianças lhe jogavam o lixo.
Síntese do Episódio 2
Érica relata que a atividade de coleta de lixo no pátio da prefeitura foi a mais divertida
dentre as formações, e mostra à mãe o vídeo de quando encontraram a tampa do bueiro, dizendo
que conseguiram abri-la e retirar o lixo que estava lá dentro, mesmo que os facilitadores tenham
se mostrado contra.
As crianças decidiram mostrar que eram capazes de abrir o bueiro por conta própria e o
relato mostra que elas se divertiram ao desafiar a autoridade do adulto e mostrar competência
para desenvolver a atividade. A resolução do conflito cognitivo, ao contraria as expectativas do
adulto em uma tarefa considerada complexa, mostra-se uma experiência prazerosa para a
criança. É possível que esse tipo de experiência tenha o intuito de buscar o reconhecimento da
capacidade de ação da criança pelo adulto.
No clipe escolhido, registrado por Talita com a subcam durante a formação com a Cruz-
Vermelha, as crianças escolhem o que vão doar para as pessoas em situação de rua durante a
Maraude (figura 67). Após escolherem os objetos, as crianças discutem sobre as necessidades
de quem mora na rua.
Ao assistir o vídeo, a criança chama a atenção para o momento em que aparece com as
mãos cheias de biscoitos (figura 68) e pergunta o que o grupo escolheu para as doações.
Perguntamos se a criança tinha vontade de fazer parte de alguma associação, e ela responde
que, para ser voluntário da Cruz-Vermelha é necessário ter pelo menos 14 anos. Érica afirma
que sua irmã poderia ser voluntária, e pergunta à mãe porque ela não o faz.
A mãe pergunta o que Érica fez após a formação com a Cruz-Vermelha, e a criança
responde que passou a levar café da manhã para o senhor Allan, que havia conhecido durante a
“maraude”, antes de ir para a escola. A mãe explica que não quis que a criança saísse sozinha
à noite, depois das 17 horas, porque o morador poderia estar alcoolizado. Caso quisesse sair à
noite, a criança só poderia fazê-lo na companhia da mãe ou do pai. A criança diz que é
importante conhecer as pessoas que estão na rua, antes de ajudá-las, caso contrário podemos
encontrar alguém que não está “bem da cabeça”.
Perguntamos à Érica o que deveríamos fazer para que as crianças participassem do
CME. Ela responde que é preciso reconhecer que a vida não é fácil, e que algumas questões
necessitam do trabalho de todos.
P: na sua opinião, o que devemos fazer para incentivar às crianças a participarem?
E: fazê-los perceber que a vida não é um “mar de rosas”32, que às vezes há coisas que
não podemos fazer, mas se todo mundo der um pouco de si, nós podemos conseguir.
É verdade que nem sempre é um mar de rosas, não é como se pudéssemos fazer um
arco-íris apertando na barriga e tudo ficará bem.
32
A criança utiliza uma expressão em francês que se refere a fitas e beijos.
186
A criança também diz que podemos utilizar os vídeos do projeto para incentivar outros
a participarem, menos os vídeos em que aparece nomeando os manequins. Ela diz que os vídeos
mostram que o projeto é uma oportunidade de fazer coisas novas, como a “maraude” com a
Cruz-Vermelha e as formações com as demais associações.
Síntese do episódio 3
Érica se mostra interessada naquilo que fez, procurando rever as atividades. No entanto,
a presença da mãe na entrevista faz com que a criança se comporte de forma a chamar a atenção
para os momentos em que aparece no vídeo se comportando de maneira engraçada ou divertida.
Quando fala sobre incentivar a participação de outras crianças no projeto, ela fala sobre
a necessidade de ter uma visão mais realista da vida, ao reconhecer que existem pessoas em
dificuldade, sendo necessário que cada um doe um pouco de si para ajudar as pessoas que
precisam. Isso aponta para a construção de um Outro generalizado e a percepção das diferenças,
embora a criança demonstre dificuldades para trabalhar em grupo.
Marková (2017) fala da concepção de responsabilidade epistêmica de Levinas, na qual
a responsabilidade do Eu independe da ação do Outro, sendo necessário agir de forma ética para
a manutenção das relações sociais. Para esse autor, a ética impulsiona o Eu para agir em defesa
do Outro, especialmente daqueles que sofrem injustiças. Érica afirma que os interessados a
participar se sentirão motivados pelo projeto, ao verem os vídeos das atividades desenvolvidas
pelas crianças, e da chance de se divertir ao doar um pouco de si, por meio do voluntariado.
Síntese da entrevista
Érica faz uma distinção entre aqueles que se interessam em participar de atividades
voluntárias, que percebem a necessidade do envolvimento com a cidade e com as pessoas em
desigualdade, e as pessoas que não possuem interesse em participar, preferindo atividades que
trazem benefício apenas para si. Para a criança, existem pessoas que acreditam em um mundo
ideal, “cor de rosa”, que não possuem noção da realidade, por isso não se movimentam e não
participam da vida comunitária.
A criança se mostra mais preocupada em operacionalizar as ações, por meio da
apresentação das atividades na escola e organização de gincanas, bem como a compra de
material, do que construir o projeto. Ela afirma estar fazendo a sua parte, no sentido de agir
187
para reduzir os problemas da cidade, enquanto outras crianças preferem se divertir. Esse fator
está presente também na fala de outras crianças, como forma de diferenciação entre os que
participam e os que não participam. A participação no CME aparece no discurso como um
reforço de uma motivação prévia para a ação voluntária.
Por ser a única criança a ter participado duas vezes do CME, Érica agia nas formações
como se fosse a mais experiente, sempre se colocando a frente das atividades e da condução do
grupo. Esse comportamento gerou conflito com outras crianças, pois a autoridade de Érica não
era reconhecida pelos colegas como legítima. Se pensarmos que as crianças reconhecem no
profissional e nos voluntários a competência para agir, nem todo adulto e criança teria
responsabilidade de resolver as crises da cidade.
Durante a entrevista, a criança demonstra uma motivação diferente do pesquisador, no
sentido de que busca se divertir com os vídeos das atividades e passar uma imagem positiva de
si mesma para a mãe, procurando os momentos em que os demais aparecem em situações
constrangedoras, e evitando falar de suas dificuldades. O comportamento de Érica reforça o que
afirmam os Estudos Sociais sobre a Infância, de que a participação infantil ocorre mesmo
quando o adulto não solicita ou autoriza, quando a criança exercita a participação como forma
de resistência.
voluntários, algo inesperado devido às barreiras etárias (a maioria das associações possui uma
idade mínima de 14 anos para a participação nas atividades), despertou a curiosidade das
crianças pelas associações.
É possível evidenciar na atitude das crianças do projeto P’tits Volontaires frente ao
desafio cognitivo representado pelo aprendizado das ações associativas, uma forma de
resistência. Ao contrariar as expectativas do adulto, demonstrando seu potencial para fazer
aquilo que os adultos consideram complicado ou inacessível, as crianças buscam o
reconhecimento de sua capacidade de ação. Em diversos momentos da pesquisa, as crianças
apresentaram soluções próprias para os problemas identificados e, mesmo inspiradas pelos
adultos, ilustram uma apropriação do conteúdo da formação.
Como forma de demarcar o pertencimento grupal, há um distanciamento dos
participantes do CME para os adultos e as outras crianças. Elas se referem ao adulto como
alguém que apresenta um comportamento irracional ou incoerente, demonstrando desconfiança
em relação aos professores e representantes do poder público. Quanto às demais crianças, o
elemento que as diferencia é a preguiça ou falta de vontade, fazendo com que optem pela
diversão ou não se envolvam em atividades associativas.
Para as crianças da pesquisa, o voluntariado e a participação cidadã exigem
responsabilidade pela cidade, indo além da percepção das necessidades individuais. “Sair de si
mesmo”, nas palavras das crianças, significa romper com o individualismo que caracteriza uma
parcela da população francesa e assumir uma postura cidadã mais ativa, no sentido de olhar
para as necessidades do outro. A mudança ocasionada pela vivência da participação está
relacionada principalmente à descoberta dessas necessidades, quando a criança se depara com
uma realidade diferente daquela idealizada (o mundo cor de rosa), na qual a desigualdade se
faz presente, ainda que as crianças não a vivenciem diretamente.
Segundo Emler, Ohana e Dickinson (2008), o conhecimento produzido pelas crianças
depende da sociedade em que vivem e do lugar que ocupam nessa sociedade. O grupo social
em que vivem apresenta problemas e possíveis soluções para os desafios com os quais essas
crianças se defrontam. Nas classes superiores, o processo de privatização da infância é ainda
mais forte. Para essas crianças, há uma série de atividades disponíveis, como música, dança e
teatro, que servem para preencher o tempo, evitando que a criança fique “ociosa”. Desenvolver
projetos no tempo livre é uma forma de ser produtivo, destacando-se daqueles que optam por
permanecer alheios à realidade.
189
A participação é uma forma de ação coletiva que permite à criança ter a sua própria
experiência. No entanto, a educação formal, principalmente em espaços escolares, costuma
seguir um modelo de “transmissão de conhecimento”, caracterizado pela cópia e reprodução.
No âmbito da educação não-formal, seja em movimentos sociais ou em associações da
sociedade civil, existe uma possibilidade de vivência e exercício da cidadania na prática, em
situações reais (GOHN, 2010). Para nós, a principal diferença entre a educação formal e não-
formal está na possibilidade de implementação de novas práticas, que podem modificar a
190
sociedade, aos outros, que vem sendo legitimado no discurso público desde a década de 1990,
como forma de combater os efeitos da globalização e da crise do emprego.
O voluntariado seria uma forma de encontrar reconhecimento social, na fronteira entre
o trabalho salariado e a informalidade. “[...] para aquele que não produz no quadro de uma
atividade profissional, de um trabalho remunerado, o espaço das práticas voluntárias pode
permitir colocar em práticas seus direitos de cidadão... ou talvez de cumprir com suas
obrigações” (SIMONET, 2010, p. 75, tradução nossa).
Salientamos que nosso estudo foi realizado com crianças de classes sociais favorecidas,
que habitam no 4ème arrondissement de Paris e possuem experiência com atividades
voluntárias, porém, os resultados vão ao encontro do estudo de Ortega Rubí (2019) sobre a
representação social da participação em jovens mexicanos, que está organizada principalmente
sobre elementos de ajuda, cooperação e solidariedade.
O estudo de Smith e Joffe (2012) com a população britânica mostra que as
representações sobre o aquecimento global se constroem a partir de três diferentes thêmata:
Eu/Outro, natural/não-natural, e certo/incerto. Aqui nos interessa o fato de que os participantes
da pesquisa supracitada representam as mudanças climáticas, bem como as ações para redução
do impacto causado a nível local, a partir de uma comparação com outros grupos e países.
O discurso de algumas crianças do CME sobre os desgastes sociais e os impactos das
mudanças climáticas vai ao encontro da hipótese dos autores de que as representações servem
como elemento de proteção do indivíduo e do grupo de pertença, nas relações com os demais
grupos sociais, principalmente quando percebemos que a criança tenta elaborar uma
justificativa para a existência e manutenção das desigualdades sociais.
A imagem do cidadão enquanto um indivíduo solidário às mudanças causadas pelos
desgastes naturais e pelos efeitos adversos do desenvolvimento econômico, aparenta ganhar
corpo na figura do voluntário, que ilustra/personifica os valores republicanos. Seguindo o
pressuposto de que a ação cidadã da criança se dá no devir, a infância o momento propício para
o aprendizado dos valores morais e da ética para com a cidade ou a comunidade, instituindo ou
instilando a responsabilidade epistêmica nos membros da sociedade, na construção de uma
cidadania ativa que se baseia no voluntariado e no cuidado. O objetivo da formação cidadã seria
então aumentar a implicação dos cidadãos com os problemas da cidade, fazendo com que essas
questões adquiram relevância para os sujeitos.
Acreditamos que, nesse contexto, apesar dos avanços na concepção das crianças
enquanto sujeitos de direitos, há uma possível manutenção de imagens sociais da infância “pré-
192
precisam ser respeitadas, o adulto que trabalha com crianças precisa conhecer o contexto social
e cultural das crianças; e relevante, a participação precisa ter consequência reais na vida da
comunidade e nos assuntos que os afetam, baseado no conhecimento e nas habilidades das
crianças.
Acreditamos que a mudança nas práticas relativas à infância pode gerar a transformação
gradativa das representações sobre cidadania e participação infantil, mas é preciso lembrar que
a concepção da criança enquanto sujeito de direitos é recente (QVORTRUP, 2006; 2011; 2015;
SARMENTO, 2007). Crenças como a falta de responsabilidade e a incapacidade das crianças,
baseadas na relação da infância com a maturidade biológica (GAITÁN MUÑOZ, 2020),
persistem mesmo em ações de participação como os Conselhos Municipais de Crianças e
Jovens. Essas crenças inviabilizam a percepção da infância como um fenômeno social e o
exercício da cidadania infantil, reservando à criança o papel de cidadão no devir.
O diferencial da educação cidadã no projeto P’tits Volontaires seria o envolvimento das
associações, referências de educação não-escolar, na complementação da socialização e da
formação no âmbito escolar (figura 69). Assim, o aprendizado da cidadania passa a ser uma
atividade complementar, a ser realizada no tempo livre da criança, em paralelo ao ofício de
aluno, desenvolvido pelas crianças na divisão social do trabalho. O aprendizado da cidadania
enquanto atividade extracurricular requer uma estruturação da aprendizagem e dos conteúdos,
bem como uma avaliação do processo, como mostra a pesquisa de Cortessis, Guisan e Tsandev
(2009), na tentativa de reconhecimento das competências aprendidas pelos jovens no contexto
associativo suíço.
Fonte: o autor.
tema da cidadania, tanto quanto os movimentos sociais tiveram no século anterior. No entanto,
é necessário ter cuidado com a instrumentalização dessas associações pelo Estado neoliberal
(SIMONET, 2010), como forma de delegar a responsabilidade pelo bem-comum aos cidadãos,
o que também configura um fenômeno de privatização.
[...] O Estado atua nesses casos como indutor, e de certa forma como ator
impulsionador. Aqui o ativismo dos funcionários públicos (caso exista, pois neste caso
pode estar associado à parceria com Ongs) não é necessariamente um ativismo
engajado em causas, mas em problemas detectados que necessitam ser resolvidos com
a participação da sociedade civil. São ações que poderão resultar em processos de
aprendizagem coletiva e de valores; como exemplo, a empatia e a solidariedade para
com os pobres, com moradores nas ruas etc., numa área que denomino “educação não
formal”. Um problema dos projetos é que o foco está na formação do indivíduo
(participante ou agente receptor em situação de vulnerabilidade) e as causas daquelas
desigualdades, os responsáveis por tais situações, as estruturas econômicas vigentes,
os interesses de políticos nas políticas públicas são “escamoteadas” e nunca
tratadas/abordadas (GOHN, 2022, p. 156).
A questão indutora de metáfora utilizada nas entrevistas com as professoras era expressa
pelo seguinte enunciado: “Se a cidadania da criança fosse uma coisa, um objeto, o que ela
seria?”. A técnica se baseia no fato de que as metáforas têm a capacidade de auxiliar os sujeitos
a organizarem os sentidos da experiência subjetiva em uma narrativa coerente, permeada pelo
conteúdo que integra as representações sociais e o senso comum, sendo uma via de acesso ao
universo simbólico e à memória coletiva do grupo (LIMA; CAMPOS, 2020).
A entrevista configura um tipo de interação social particular, na qual os sujeitos são
solicitados a produzirem sentidos e significados. Embora tenhamos usado uma questão indutora
de metáfora, não negligenciamos as metáforas que surgiram espontaneamente no discurso das
professoras, ao falarem sobre a experiência de formação e atuação com a criança, pois elas
servem para concretizar/objetivar o posicionamento do grupo acerca da cidadania infantil,
objeto que se situa na intersecção entre o conhecimento científico e o senso comum.
Com base no levantamento bibliográfico e no prisma teórico que apresentamos no
capítulo 1, que integra as categorias desenvolvidas por Gohn (2019) em um modelo de sistema
198
Como exemplos da proposta do coletivo, que está sendo levada para além do ambiente
escolar, citamos as atividades de exploração do centro histórico da cidade de Cuiabá, realizadas
na ação Cribiás 300+ (ANDRADE, 2021), no intuito de ocupar a cidade e ampliar o sentido de
pertencimento das crianças, ao questionar o seu papel na construção do espaço público, além
das demais atividades divulgadas nas redes sociais33, como a confecção da Saia Cribiás, a partir
dos retalhos de tecido com as narrativas produzidas pelas escolas participantes; e a construção
de narrativas encorajadoras, tendo como protagonistas versões infantis dos patronos das
instituições de ensino.
[...] cada projeto Cribiás 300 trouxe um jeito próprio de olhar para a Cuiabá
Tricentenária em diálogo com o repertório cultural da cidade, orientando-se pelo valor
do diálogo intergeracional e da escuta sensível às crianças, estabelecida em uma
relação de confiança interpessoal e epistêmica (COSTA; ANDRADE, 2022, p. 125).
33
O grupo possui uma forte atuação nas redes sociais Instagram, no perfil @cribiascuiaba, e Facebook, na
página Cribiás 300+.
202
De acordo com os dados do Censo Escolar 202134, realizado pelo Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), o número total de docentes atuando
na Educação Infantil em Cuiabá é de 1.398 nas creches e 1.021 na pré-escola. Quanto à
distribuição dos docentes da Educação Básica por sexo, 4.881 são mulheres e 1.572 são homens.
A maior concentração de docentes está na faixa etária entre 30 a 49 anos, de ambos os sexos.
Cuiabá apresenta no âmbito da Educação Infantil cerca de 42% de docentes com
formação considerada adequada para a disciplina lecionada e a atuação no nível de ensino,
enquanto 39,1% possuem formação em área diferente a qual atuam, porém apresentam
complementação pedagógica. Apenas 10,1% das docentes que atuam na Educação Infantil não
possuem ensino superior completo, o que pode ser considerado um reflexo da política de
formação implementada no Plano Municipal de Educação, como poderemos ver no relato das
professoras a respeito das oportunidades de formação.
As professoras que aceitaram participar da pesquisa atuam na Educação Infantil, que
compreende desde o berçário, com crianças a partir de 4 meses de idade, aos anos que
antecedem o ingresso no Ensino Fundamental, que deve ocorrer obrigatoriamente aos 6 anos.
O quadro abaixo apresenta o perfil das professoras que participaram da nossa pesquisa, a partir
dos critérios de idade, tempo de formação e tempo de participação.
34
Os dados do Censo Escolar 2021 estão disponíveis no portal do Ministério da Educação, no site
<https://www.gov.br/inep/pt-br/acesso-a-informacao/dados-abertos/sinopses-estatitisticas/educacao-basica>.
203
Com base nos gráficos gerados pelo Iramuteq, a partir do material das entrevistas em
articulação com a fundamentação teórica, da Teoria das Representações Sociais e dos Estudos
Sociais da Infância, podemos tecer algumas considerações preliminares acerca do processo de
construção da cidadania na relação dialógica que se dá entre adultos e crianças, no âmbito da
educação infantil, a partir dos elementos identificados principalmente nas classes 3 e 4, além
dos possíveis impactos da experiência de formação vivenciada pelas participantes do projeto
Cribiás, crianças sabidas, principal elemento presente na classe 1.
Ao nos debruçarmos sobre as palavras que compõem as classes, aliadas aos perfis dos
sujeitos e as frases típicas, podemos esboçar algumas interpretações iniciais. A divisão das
classes em dois blocos principais mostra que, na totalidade do discurso, existem temas que se
aproximam e outros que se afastam. O bloco “Educação Infantil e formação” reúne o discurso
acerca da experiência profissional na Rede Municipal, o ingresso por meio de concurso, a
importância das responsáveis pelo projeto de formação na adesão ao projeto Cribiás (elementos
da classe 5), o movimento de mudança de pensamento e o espaço de diálogo estabelecido pelo
projeto (classe 1), cuja metodologia inicial foi a roda de conversa, e a tentativa de
institucionalização das novas práticas enquanto parte do projeto político-pedagógico da
unidade, encabeçado pela gestão (classe 2).
206
sejam contraditórias, também não convergem. Essas classes são representadas por sujeitos que
atuam em níveis distintos, por exemplo, S3 é uma professora que fala da cidadania em nível
local, que para ela consiste no reconhecimento da criança enquanto membro de uma
comunidade, e na constituição do sentimento de pertencimento, a partir da interação com os
demais membros da comunidade; e S4 afirma a importância da dimensão legal, da criança
enquanto sujeito de direitos, que devem ser respeitados pela escola, como forma de resguardar
a criança da violência, nos pressupostos da proteção integral, conforme preconiza o Estatuto da
Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990).
No discurso das professoras, os vocábulos utilizados para falar dos direitos refletem um
caráter abstrato, universal, eles são identificados como um horizonte, um ideal a ser alcançado;
enquanto o pertencimento se refere à dimensão concreta, que revela o exercício de um olhar
particular sobre o contexto e a atuação coletiva, na própria comunidade, em relação com os
Outros significativos.
A classe 1 e as frases típicas geradas pelo Iramuteq, a partir dos segmentos de texto com
o maior qui², nos permitem identificar falas das professoras a respeito da experiência de
formação vivenciada no âmbito do projeto Cribiás, e as mudanças na prática profissional
docente, a partir do diálogo entre os profissionais. Antes da criação do projeto, a parceria entre
a Universidade e a Rede Municipal de Educação consistia na realização de atividades de estágio
dos acadêmicos do curso de Psicologia nas unidades de Educação Infantil. O relato das
professoras sobre esse período é de que não havia continuidade das atividades, ou seja, com o
término do semestre e a saída dos estagiários, as atividades lúdicas e de escuta das crianças
eram interrompidas.
Uma das professoras responsáveis pela construção do projeto relata que o intuito inicial
do projeto de extensão era construir um processo de formação que permitisse às professoras
levar as demandas da unidade para a discussão com o grupo e elaborar projetos para a sua
resolução, como mostram as falas dos sujeitos 2 e 7 (as palavras em negrito são aquelas
identificadas pelo software na composição das classes).
[...] e aí nós começamos com alguns projetos e aí já não eram mais os estagiários de
psicologia o desafio era que as coordenadoras dessas unidades que
estavam participando dos estudos mensais conseguissem construir alguns projetos
de escuta das crianças e foi aí que começou a ação (S.2).
[...] então eu acredito que com o projeto cribiás com o processo formativo
do cribiás nesse processo de escutar as crianças o ganho que eu tive na
minha ação pedagógica é essa valorização mesmo do pensamento da criança (S.7).
[...] nós fomos desafiados a fazer uma narrativa, falando um pouco da educação
infantil de Cuiabá. E aí saiu, os pássaros que procuravam um ninho e que antes eles
eram vistos só com uma capacidade de cuidar, mas que agora a gente tava
estabelecendo novas relações de estudos e diálogos, que a gente percebia que esses
pássaros tinham que ter asas, então a gente tava começando a dar asas para os
pássaros, que na verdade eram as crianças e aí uma brincadeira de crianças, sabiás,
porque a gente tem muitos sabiás aqui, ficou Cribiás, aquele título sabia que o sabiá
sabia assobiar, sabia que as crianças sabem pensar? E aí nessa brincadeira com as
palavras nasceu o Cribiás (S9).
pedagógicas tradicionais, que se inserem numa concepção da criança enquanto uma tábula rasa
(SARMENTO, 2007), que possui um papel passivo na transmissão do conhecimento.
A classe 5 diz respeito ao percurso profissional das professoras, desde a formação em
Pedagogia ou no Magistério até o ingresso na Rede Municipal de Cuiabá e na Educação Infantil.
Muitas tiveram a oportunidade de cursar a graduação em Pedagogia quando já atuavam na rede
municipal, como parte das ações da Secretaria Municipal de Educação para a valorização da
educação infantil, na perspectiva da Escola Cuiabana (MACHADO; SILVA, 2019).
No entanto, na Rede Municipal de Cuiabá, a denominação atribuída aos profissionais
que atuam nesse nível de ensino é Técnico em Desenvolvimento Infantil (TDI), o que implica
segundo o relato das professoras uma desvalorização do trabalho docente, o pagamento de
menores salários e condições de trabalho inferiores aos profissionais que atuam nos outros
níveis da Educação na Rede Municipal.
[...] eu nem sabia o que era educação infantil pra te falar a verdade mas fiz e passei
fui muito bem colocada no concurso e assumi uma turminha de 3 anos com a cara e
com a coragem (S.2).
[...] eu sou melhor porque eu sou do fundamental ela é menor porque ela está
na educação infantil e não é bem assim às vezes o pedagogo ele tem
mais formação do que quem está no sexto ano (S.6).
enquanto ator social e têm sua competência para a condução do processo de desenvolvimento
reconhecidas socialmente, pelas famílias e demais membros da comunidade.
As frases típicas da classe 3 mostram o processo de formação que ocorre em nível local,
no reforço do pertencimento das crianças e professores à comunidade onde habitam, a partir
das relações intergeracionais. Esse pertencimento é representado pela figura da pedra canga,
minério avermelhado, característico do município de Cuiabá, utilizado em construções e na
produção de artesanato (COSTA; ANDRADE, 2021). Uma das professoras (S3) fala do uso
dessa pedra como ferramenta para a construção de narrativas acerca do lugar das crianças na
comunidade do Distrito do Sucuri, localizado na zona rural de Cuiabá, às margens do rio
homônimo.
Ao falar do pertencimento, S3 utiliza como referência a sua própria participação
enquanto membro da comunidade, atuando não apenas nas turmas do CMEI, mas nas
festividades e nas relações comunitárias.
[...] é mais fácil de você fazer mais fácil de você falar que aquela pedra que eu sou
daqui do Sucuri saber que aquela pedra na minha comunidade as casas que a gente
está em cima (S.3)
[...] quando eu fui fazer uma formação com a professora daniela ela trouxe um rapaz
que estava fazendo doutorado ele falava sobre essa cidadania esse pertencimento e
aí falando sobre a pedra canga que ela é nossa daqui ela pertence a nós (S.3).
Para essa professora, falar em cidadania, mais do que falar em direitos e deveres,
significa falar sobre o pertencimento à comunidade, construção de um grupo de referência. É
na relação com os membros da comunidade, no resgate da memória, que a criança conhece a
história do grupo e aprende os valores comuns, podendo assim fazer suas próprias escolhas.
Ressaltamos que toda representação compreende o sistema de valores, de crenças avaliativas,
que sinalizam aquilo que é socialmente desejável na relação com o objeto e com os demais
grupos (JODELET, 2021). Nesse caso, a aprendizagem da cidadania ocorre em nível local,
concreto, no que diz respeito à participação da criança na vida comunitária e nas decisões
coletivas.
[...] eu falo que o cidadão é o pertencimento eu sou um cidadão de direitos e deveres
mas eu pertença a algo seja uma comunidade seja a sua religião seja algo mas que
ele pertença a algo esse pertencimento ele ter uma referência (S.3).
quantidade que a criança desejar, a possibilidade de dormir ou não no horário designado pela
escola, embora esse horário seja comum a todas as turmas, e a participação na escolha das
brincadeiras.
[...] como que é a forma que a gente respeita esse direito dela da alimentação do
período também como do sono ela não tem, tem o horário do sono todas
as crianças são obrigadas a dormir naquele horário (S.7).
[...] tudo tem que ter uma estratégia uma carta na manga na alimentação vai ter que
ficar uma ali respeitar o direito dela a individualidade dela ela come mais lento, ela
quer repetir (S.9).
cognitivo dos indivíduos enquanto figura ou símbolo, ao mesmo tempo que a ele são atribuídos
significados ao longo da história do grupo e da experiência subjetiva.
Representação Figura
Significação
escolarização e do trabalho docente, num “trabalho de formiguinha”, como é relatado por S9.
Nesse sentido, a transformação da concepção da educação infantil enquanto espaço de
assistencialismo, para uma perspectiva mais ampla de espaço de aprendizagem da autonomia e
demais competências socioemocionais (MACHADO; SILVA, 2019), requer fôlego das
professoras.
[...] Então a gente tem esse trabalho de formiguinha com a família, com todo mundo
que julga nosso trabalho como babá, como tia, então a gente já trabalha desde cedo
assim nos grupos, porque eu estou atuando na coordenação da creche, então assim,
a gente abre os grupos, manda as atividades, começa a falar hoje é aula da professora
tal, já tem esse hábito de chamar as pessoas por professora, educadora, não chama
mais de tia (S9).
conteúdo determinado pela política de educação, adaptando o ensino à realidade da cultura local
(COSTA; ANDRADE, 2021).
Fonte: https://blogs.20minutos.es/eneko/2012/04/23/la-profesora/
Mazzotti (2002) se refere à metáfora do percurso como elemento central nas teorias
pedagógicas, uma forma de representar a escolarização, ou o processo educativo, que levaria a
criança de um estado de menor educação a um estado de “mais educado”. Essa metáfora
compreende duas posições distintas, uma que afirma a necessidade de um percurso pré-
determinado, que sinaliza as etapas e o resultado almejado, e uma outra posição segundo a qual
o percurso é indeterminado, e o resultado está condicionado às escolhas dos estudantes.
A metáfora percurso foi evocada espontaneamente por uma das professoras, como uma
espécie de jornada vivenciada pelas crianças na vida e na escola, na qual o professor pode atuar
como potencializador do processo de aprendizado da autonomia. Nesse contexto, a cidadania
pode ser concebida como um produto do percurso, que fornece as condições para a inserção do
indivíduo no meio social, como mostra a fala de S4, a qual evidencia a presença de elementos
de uma concepção de cidadania política (CORTINA, 1997), que caracterizaria os indivíduos
efetivamente inseridos na sociedade.
[...] é na Educação Infantil que nós podemos contribuir, enquanto profissionais, de
alguma forma, pra que esse cidadão seja um cidadão com uma formação de caráter,
de personalidade, onde ele tenha todas as condições emocionais, físicas,
psicossociais, pra que ele se torne um adulto, vamos dizer assim, bem-conceituado,
inserido no mercado de trabalho, e no meio social como um todo (S4).
221
Essa fala da professora vai ao encontro do que Nienow e Lorensini (2017, p. 652)
verificaram na pesquisa sobre a proposta pedagógica da Rede Municipal de Educação de
Cuiabá. As autoras apontam que a proposta favorece o protagonismo dos profissionais da
educação, no trabalho docente e na construção do projeto político-pedagógico das unidades,
porém está limitado às questões estruturais, “[...] na medida em que a cultura institucional se
faz determinante, intensificando princípios homogeneizadores, circunscritos a uma realidade
pedagógica historicamente instituída”.
Para Sarmento (2005, p. 34),
[...] A participação dos alunos adquire, deste modo, um significado múltiplo: é
simultaneamente um dispositivo pedagógico, uma necessidade simbólica e um
processo político. Como dispositivo pedagógico, a participação dos alunos nas
decisões pertinentes relativas à realização do acto educativo corporiza a orientação
consagrada pela inspiração pragmática de formação cívica pela prática do
desempenho democrático em contexto escolar. A aquisição de comportamentos
cívicos não é questão de doutrinação, mas algo que se constrói no exercício dos
direitos e dos deveres de cidadania: aprende-se a democracia, praticando a
democracia.
direito de escolha. Ela relata o uso do voto direto para a escolha da compra de um brinquedo,
como forma de exercício da cidadania e de reconhecimento do estatuto de cidadão,
reproduzindo os rituais e as práticas democráticas, inclusive os requisitos legais, como a
necessidade de um documento com foto para acessar o local da votação.
[...] E esses direitos, a gente dá autonomia, aí por exemplo, ah, como você vai dar
autonomia pra criança sem dar preferência pra ela escolher? Ah, por exemplo, as
crianças maiores, ah, a gente quer pintar a sala, por exemplo, a gente não tem que
fazer a nossa vontade, a gente tem que respeitar a vontade da criança, de que forma
que a gente pode fazer isso? Ah, a gente pode fazer uma eleição, a gente já fez aqui
muito isso, eleição, aí como se fosse um conselho da criança, então, vamos fazer uma
votação? [...] então assim, a criança participou, a criança teve o direito dele de
cidadão, de votar, a gente já fez votação mesmo com urna, eu fiz a identidade deles,
assim, trabalhando a identidade, a autonomia, fizemos, mandei fazer, o menino criou
uma identidade igualzinha, colocamos o nome e colocamos a digital deles, eles se
sentiram tudo importante, eu falei não, pra votar tem que fazer a identidade, tem que
ter documento pra registrar [...] dentro duma brincadeira você trabalha todos os
campos de experiência, porque ali, ele teve o direito né respeitado de votar, de ter a
opinião dele, dar a opinião dele (S9).
encaminhadas para serem realizadas no ambiente doméstico. Nesse momento, a família passa
a reconhecer a importância do trabalho das professoras, pois precisa lidar diretamente com as
crianças, em período integral.
A luta pela profissionalização docente e pelo reconhecimento da Educação Infantil é
uma luta histórica, considerando a trajetória desse nível de ensino, que se inicia numa
perspectiva estritamente assistencialista, até o início dos anos 1990, quando é firmada na
legislação enquanto um direito da criança (VIEIRA, 1999). A autora aponta que a valorização
social do profissional da Educação Infantil estaria relacionada à formação crescente e a
qualificação específica, voltada para a amplitude dos conhecimentos que integram as funções
do educar e cuidar.
No contexto da Rede Municipal de Educação de Cuiabá, as profissionais que atuam nas
creches recebem a denominação de Técnicas em Desenvolvimento Infantil (TDI) e há uma
distinção entre a carreira das técnicas e das professoras, apesar dos investimentos em formação
inicial e continuada. As participantes relatam a luta pela valorização da classe profissional das
TDIs, com a criação de um sindicato, e o diálogo com o poder público para a mudança da
nomenclatura das profissionais que atuam nas creches para professoras de educação infantil.
Considerando o caráter estável e dinâmico das formas de pensamento social
(MOSCOVICI, 2012) e os tipos de transformações possíveis que envolvem as representações
e as práticas sociais (ABRIC, 2003), podemos pensar que a representação do cuidado
assistencialista com a criança e as crenças na creche enquanto “depósito de crianças” da classe
trabalhadora não desapareceram do imaginário social, elas permanecem no sistema de
representações e nos elementos simbólicos que caracterizam a Educação Infantil, pelo menos
para uma parte da população, como mostra a fala de uma das professoras.
[...] então assim, a gente tá nessa luta aí pra ser reconhecida como tal, pras pessoas
valorizarem, e enxergar que a educação infantil é o pilar, é o pilar da educação, mas
que é uma luta árdua, mas que a gente tem visto, tem tido bastante resposta positiva
em relação ao respeito à nossa classe (S9).
Marková (2017, p. 153) afirma que, no pensamento dialógico, três elementos estão
interligados: liberdade, ética e reconhecimento social/intersubjetividade35. O reconhecimento
social nas relações dialógicas (que se estabelecem entre Ego e Alter) necessita que os sujeitos
se percebam como livres, e que suas ações sejam pautadas em uma ética compartilhada.
A ética da interdependência do Ego-Alter está inextricavelmente inter-relacionada
com a reciprocidade de reconhecer a liberdade uns dos outros. Significa que cada parte
35
Para a autora, intersubjetividade e reconhecimento social são entendidos como fenômenos mutuamente
interdependentes, sempre em tensão, mas não idênticos. Por essa razão, a autora opta pelo seu uso enquanto um
único elemento.
227
trata o Outro como um ser autônomo que pensa, toma decisões e age segundo sua
própria vontade – ou como veremos adiante – trata o outro como sendo
epistemicamente responsável [...] não se pode falar de reconhecimento social se
houver algum tipo de coerção, em vez de negociação.
Temos então um duplo movimento pelo reconhecimento social, ilustrado pela figura 75,
na qual as crianças são, ora sujeitos em interação dialógica com as professoras da Educação
Infantil, entendidas como o parceiro ideal na construção da autonomia e da cidadania, como
aparece na fala de uma das participantes; ora objetos de uma interação que se dá entre as
professoras da Educação Infantil e a comunidade mais ampla, que perpetua tradições, crenças
e práticas assistencialistas sobre/com a infância.
228
Fonte: o autor.
Com base nos dois estudos que realizamos, o estudo etnográfico com as crianças do
projeto P’tits Volontaires e a pesquisa exploratória com as professoras do projeto Cribiás,
crianças sabidas, formulamos um esquema figurativo (LIMA; CAMPOS, 2020), sobre os
elementos que possivelmente atuam na construção da cidadania infantil como fenômeno de
representação social (figura 76).
229
Fonte: o autor.
A cidadania infantil é um fenômeno que somente pode ser entendido a partir das relações
intergeracionais, pois é na interação com os adultos que as crianças constroem um referencial
simbólico de valores democráticos. No entanto, a vulnerabilidade não deveria servir para
justificar práticas de controle e dominação, pois proteção e participação não são atitudes
opostas, sendo capazes de coexistir na educação e nas práticas direcionas à infância.
232
233
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ciências Sociais. As crianças têm muito a nos ensinar e a construção de uma sociedade mais
justa passa pelo reconhecimento de todos enquanto cidadãos livres e autônomos.
238
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Método: pesquisa-ação
experimental
MELO, Narrativas infantis: estudo da 2010 D narrativas infantis; pedagogia da
Ceciana agência da criança no contexto de participação; filosofia da
Fonseca uma creche universitária experiência; jogos e brincadeiras;
educação infantil
Método: observação participante e
narrativas
253
Lupa (S8) talvez uma lupa, sabe uma lupa? Que ela
conseguisse ver de perto, ver de longe,
conseguisse ampliar os seus horizontes, o
seu olhar, que às vezes a lupa, dependendo
da forma que você a utiliza, ela não, se você
olhar ela da forma contrária, ela não
modifica o tamanho, mas se você olhar ela
da forma correta, ou seja, se você tiver uma
estrutura de oportunidades que te
favoreçam, e você consiga olhar ela da
forma correta, talvez esse horizonte se
amplie, esse olhar, essas vivências.
Prezado(a),
Gostaríamos de obter o seu consentimento para a participação voluntária na pesquisa A construção da
cidadania infantil enquanto representação social: experiências em formação e participação. O(s) objetivo(s)
deste estudo é investigar o conteúdo atribuído por crianças e adultos à cidadania infantil, na construção de uma
possível representação social e de práticas associadas à promoção da cidadania.
Os resultados nos ajudarão a compreender de que forma as práticas docentes que promovem a participação
podem contribuir no reconhecimento da criança enquanto ator social e cidadão, capaz de exercer sua cidadania
desde a infância, e o papel do adulto na viabilização de espaços de formação e participação infantil, dentro e fora
da escola.
Caso aceite, você será convidado(a) a participar de uma entrevista para relatar a sua experiência com a
participação infantil, no âmbito do Projeto Cribiás, crianças sabidas e na Rede Pública Municipal de Ensino.
Podemos entrar em contato novamente para a realização de um grupo focal, uma discussão em grupo com as
pessoas previamente entrevistadas, caso haja disponibilidade dos participantes. Devido à pandemia de COVID-
19, optamos por realizar todas as atividades de pesquisa de forma remota, utilizando ferramentas de Tecnologia
da Informação e Comunicação (TIC). A previsão de duração de cada entrevista é de aproximadamente 30 minutos,
sendo respeitados os protocolos éticos de pesquisa.
Gostaríamos de deixar claro que a participação é voluntária e gratuita e você poderá desistir de participar
ou retirar o consentimento, sem penalização alguma ou sem prejuízo de qualquer natureza. Seu nome não será
utilizado em qualquer fase da pesquisa, garantindo o seu anonimato e a divulgação dos resultados será feita de
forma a não identificar os participantes. Não haverá gastos decorrentes de sua participação e, se houver algum
dano decorrente da pesquisa, o participante será indenizado nos termos da Lei.
Considerando que toda pesquisa oferece algum tipo de risco, nesta pesquisa o risco pode ser avaliado
como mínimo. Caso sinta-se constrangido(a) e não queira mais participar da atividade ou responder a entrevista
ou a qualquer pergunta, seu direito será respeitado.
São esperados os seguintes benefícios da participação: os dados que serão gerados podem nos dar mais
informações sobre as práticas que promovem a participação infantil e qual o papel que os adultos podem
desempenhar na construção e implementação da cidadania infantil.
O presente documento refere-se também à cessão do direito do uso de imagens na divulgação e publicação
dos resultados da pesquisa nos meios acadêmicos, a saber, congressos, artigos científicos e livros.
Desde já, agradecemos a atenção e a sua participação e colocamo-nos à disposição para maiores
informações.
Esse termo terá suas páginas rubricadas pelo pesquisador principal e será assinado em duas vias, das quais
uma ficará com o participante e a outra com pesquisador principal:
Informações Adicionais:
Se você tiver alguma consideração ou dúvida sobre a ética da pesquisa, pode entrar em contato com o
Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) – da Universidade Estácio de Sá, em horário comercial pelo e-mail
cep.unesa@estacio.br ou pelo telefone (21) 2206-9726. O CEP-UNESA atende em seus horários de plantão, terças
e quintas de 9:00 às 17:00, na Av. Presidente Vargas, 642, 22º andar.
_________________________________________
Assinatura do(a) participante
Nome: Idade:
Sexo:
Escolaridade:
Tempo de Formação:
Tempo de trabalho na instituição:
2. Atualmente, você exerce a função de professor(a) e/ou está em algum cargo de gestão?
3. Diga-me como é exercer sua função numa escola onde se trabalha o projeto Cribiás.
7. Como você avalia suas práticas docentes antes e depois da participação no projeto
Cribiás?
8. Você acredita que houve alguma mudança nas suas práticas docentes? Se sim, descreva-
me quais foram as mudanças. Você poderia me dar algum exemplo?
9. Na sua opinião, de modo geral qual é a principal função da escola? Qual é a função da
escola no projeto Cribiás, crianças sabidas?
11. Você acha que as crianças participam das decisões que envolvem seus processos de
aprendizagem? Como se dá essa participação? Você poderia me dar um exemplo?
12. Você acha que é possível desenvolver a participação das crianças na escola? E no dia a
dia?
13. Você considera que existe alguma idade mínima para participar nas atividades da
comunidade?
14. Ao seu ver, o que é necessário o professor fazer para promover a participação das
crianças?
15. O que leva as crianças a participarem mais ou menos das atividades escolares?
265
16. Diga-me 3 palavras que vêm a sua mente quando você escuta a palavra cidadania?
Justifique a escolha dessas palavras.
19. Você considera possível desenvolver a cidadania durante a infância? Se sim, como se
dá o exercício da cidadania na infância?
20. Enquanto adulto, você acredita que desempenha um papel na formação cidadã das
crianças? Diga-me como.
21. E como profissional da educação? Em caso afirmativo, como você faz para promover
situações em que seus alunos possam exercer a cidadania?
22. Na sua opinião, existe alguma relação entre cidadania e participação? Como seria essa
relação?