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Assim como As Cidades Invisíveis de Italo Calvino (1990) podem ser uma só,
pensei em concentrar no pequeno povoado que aparece no curta esses retalhos de
municípios sertanejos que beiram a estrada de ferro.
3.2 A estação
Figura 4 – Trecho do storyboard e cenário: A Estação
Como afirma Berman (1986, p. 17), pode-se inferir isso, na verdade, sobre
qualquer trabalho inserido nessa paisagem que, além das ferrovias, está repleta de
engenhos a vapor, fábricas automatizadas e amplas novas zonas industriais. Ainda de
acordo com o autor, “algumas das mais importantes variedades de sentimentos humanos
vão ganhando novas cores à medida que as máquinas vão sendo criadas" (BERMAN,
1986, p. 24). Mas esse maquinado, que poderia amenizar e aperfeiçoar o trabalho
humano, faz é sacrificá-lo e sobrecarregá-lo e, assim, é possível observar que, no
turbilhão da vida moderna, tudo está impregnado do seu contrário (BERMAN, 1986, p.
18).
Mas não era isso o que pensavam os entusiastas do maquinismo e do futurismo,
para os quais as máquinas não só nos conduziriam rumo ao progresso, como deveriam
servir de modelo para os humanos. Fruto da ciência e do conhecimento, seria por causa
delas que nos tornaríamos um povo moderno, uma nova espécie de seres, mais precisos,
prefeitos e disciplinados. Foi o que desenhou Dziga Vertov na montagem de Um
homem com uma câmera (1929), em que planos que enquadram movimentos de
máquinas são seguidos pelos planos que retratam as ações dos trabalhadores que as
operam, comparando ou até equiparando as duas movimentações (TURVEY, 2011).
Foram essas referências que me provocaram a vontade de vincular Máquina com
Maquinista1. Em versões mais antigas do roteiro, haveria uma voz em off para contar a
história e minha intenção era dar a possibilidade para a voz que narra pudesse ser tanto
do trem Sonho Azul como de seu condutor:
Figura 7 – Trecho do roteiro: versão com voz em off
1
O personagem tem o mesmo apelido do Milton Nascimento: Bituca.
Fonte: Elaborada pela autora.
Fonte: Capturas dos filmes Berlim - Sinfonia de uma Grande Cidade (1927) e Um
homem com uma câmera (1929)
O espaço urbano se mostra como uma aparição ou uma ruína precoce, que
reintroduz o tema hegeliano da reflexão melancólica do espírito que ocorre ao
contemplar os destroços de civilizações extintas (HARDMAN, 1991, p. 30). Pintores e
literatos esboçaram os traços dessa cidade fantasma, formada por manifestações fugazes
que desaparecem na velocidade das novas máquinas e meios de transporte. Nesta
dinâmica de rapidamente aparecer e desaparecer, surgem os cemitérios de trens, que se
impregnam no cenário vazio da cidade fantasma.
“Hoje nem cidade — sem rastros e sem história — nos habita, nem os homens
— que não sabem mais ver — habitam a cidade. A alma dos lugares parece ter-se
perdido para sempre” (BRISSAC; ROUANET, 1992, p. 72). Assim como a Amarcord
(1973), baseada em Rimini, cidade que Fellini viveu na juventude e que já não existe,
pois foi destruída na guerra; a Guaxuma (2018) da infância de Nara Normande que,
feita de areia, foi levada pelo vento; ou a comunidade de Fern em Nomadland (2020),
que vira cidade fantasma após a falência da fábrica que a fez surgir.
No século XIX, época heroica dos engenheiros, tinha-se a estrada e o trem de
ferro como enormes organismos vivos, integrados ao progresso, movimento evolutivo e
uniforme da sociedade em relação à natureza (HARDMAN, 1992). Acabou virando um
grande monstro no final, como podemos ver na animação Body Memory (2011), em que
Ülo Pikkov representa memórias de estonianos, durante a viagem ferroviária que
fizeram ao serem deportados da União Soviética. Em O Menino e O Mundo (Alê Abreu,
2013), embora seja uma animação envolta em um clima de nostalgia, conduzida por
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Em Um coração fraco, Dostoievski (2006) descreve uma dessas cidades fantasmagóricas, em que a
imagem da solidez se esfuma. Seu personagem, talvez um dos alegoristas para Benjamim, mira, ao longe,
o panorama da cidade ao anoitecer, e descreve: “a lonjura fumarenta e brumosa tingida de vermelho pelos
últimos raios do purpúreo e sangrento sol”.
cores e ritmos das músicas de protesto da América Latina (MOGADOURO, 2014),
também podemos ver uma face traumática da memória ferroviária. No enredo, o
comboio é o meio pelo qual o pai do protagonista o abandona, e como ele mesmo, mais
tarde, muda-se para a cidade, onde terá sua força de trabalho explorada.
A partir desses cenários que vão fazer parte do curta-metragem, pode-se fazer
um paralelo com a ferrovia fantasma descrita por Hardman (1991), cujo aspecto da
estação é desolador, assim como o da oficina das locomotivas, da casinha do chefe da
estação, da chaminé da locomotiva e da cabine do maquinista, todos abandonados, com
pedaços de ferro espalhados ao seu redor. O autor também fala da locomotiva triste,
modelo da virada do século, que está repleta de ferrugem e com quase todas as peças
faltando, bem como dos trilhos que, não menos enferrujados, seguem mato adentro,
sabe-se lá por quantos metros, já que a continuação da estrada não é perceptível. A
ferrovia fantasma se desgarra da técnica que a produziu e manifesta sua feição
sobrenatural e a paisagem que cerca os trilhos dela se torna deserta e remota, como se
rompesse com o tempo e o espaço e concebesse uma localidade perdida, de uma época
irresgatável (HARDMAN, 1991).