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ATENÇÃO

ESTA É UMA OBRA DE FICÇÃO


QUALQUER SEMELHANÇA COM PESSOAS
VIVAS OU MORTAS

É MERA DECADÊNCIA
ECDISE
Em outa pele, a mesma serpente.
Um ovo prestes a eclodir.

Sexta-feira.

Era um dia quente de dezembro. Roberto havia se levantado cedo como de


costume. Arrastou-se sonolento através do corredor, sentou-se diante da mesa posta e
encheu a xícara de café. Seus pensamentos corriam imprecisos, estava prestes a fechar
um contrato importante e tentava em vão focar suas reflexões no trabalho. Da cozinha
ao lado vinha um som agradável de ovos na frigideira e logo o aroma inundou toda a
sala de jantar, abrindo-lhe o apetite.

– Bom dia, seu Roberto! – disse a empregada enquanto colocava à sua frente um
prato com ovos mexidos.

Laís era ainda jovem, com pouco mais de vinte anos. Ele a tinha contratado
principalmente por ter um corpo bonito, recomendada pelo amigo Sandro. Fitou-a
distraidamente e fixou o olhar em sua bunda enquanto a jovem empregada se afastava,
focada nos afazeres matinais. Dava para ver a marca da calcinha sob o short curto. Ela
seguiu pelo corredor, saindo do seu campo de visão, mas Roberto manteve o olhar vago
na mesma direção. Sentia-se solitário pelas manhãs.

Recostado na sacada, fumava o primeiro cigarro do dia. Via com indiferença o


oceano se dissolver no horizonte, os olhos levemente oprimidos pela claridade da
manhã. Sentia a brisa fresca do mar, prevendo mais um dia de calor as vésperas do
verão.

No primeiro ano após Helena ter saído de casa levando consigo Thiago, o único
filho do casal, a nova dinâmica da vida o agradou. Sentia-se liberto, como diante de uma
infinidade de possibilidades. Poderia ser quem quisesse. Reinventar-se. Renascer aos
40. Todo o tempo dedicado exclusivamente, exaustivamente, à família, aos problemas
banais de um cotidiano de classe média, soava-lhe como um tedioso desperdício de
vitalidade, de virilidade. Descobriu novos prazeres, reaproximou-se de velhos amigos e
criou novas amizades. Fodeu, sem culpa, com as mais variadas mulheres. Bebia até ficar
totalmente embriagado e cheirava cocaína com frequência. Não tinha a quem dar
satisfação dos exageros, dos vexames. Contudo sempre sentia pesar a solidão pelas
manhãs, principalmente se estivesse de ressaca.

Com o passar dos anos entrou sem perceber numa nova rotina e aquela
expectativa gloriosa do início da separação aos poucos foi arrefecendo. O mundo novo,
de possibilidades ilimitadas, tornava-se gradativamente mais e mais nebuloso. Em breve
completaria meio século de existência sobre a Terra e não conseguia se sentir realizado,
não tinha metas, expectativas ou estímulos a alcançar. Satisfazia-se apenas
momentaneamente em pequenos prazeres fugazes.

Hoje, oito anos depois de ter se separado de Helena, sentia novamente a


monotonia, o tédio, a angústia. Quando casado, esses eram sentimentos recorrentes.
Usava-os como justificativa para a infidelidade, atribuindo sua origem à vida pacata que
levava com a esposa e o filho. Assim que superou o sofrimento causado pelo divórcio,
acreditou estar curado, supôs-se renovado e disposto a se recriar. Porém essa euforia
inicial foi lentamente cedendo e logo Roberto se viu diante de uma insuperável apatia. E
o pior é que já não havia a quem culpar.

Dos sentimentos surgidos no primeiro ano, após o término do casamento,


somente perdurou a solidão das manhãs.

Enquanto dirigia, observava os prédios ao redor, a grande maioria construída nos


últimos anos. A cidade estava mudando, crescendo rapidamente. “Progresso, inevitável
progresso”, refletia. Não sem uma dose de desgosto, uma nostalgia do que um dia foi à
sossegada cidade do interior onde nasceu e cresceu. Uma saudade romântica de uma
infância idealizada. A urbanização descontrolada deformou a paisagem, as praias
virgens, as dunas de areia branca, a restinga. Modificou também os hábitos e os
costumes.

– O progresso e suas contradições. – Repetia frequentemente para si, como um


mantra. Sem nem mesmo se atentar ao significado da frase.

Roberto era um homem magro, de altura mediana, sisudo e até mesmo um pouco
austero. Tinha miopia e por isso usava uns óculos grandes, de armação quadrada e
lentes grossas, que vivia ajeitando com o dedo indicador, principalmente quando estava
ansioso, tenso ou nervoso, como quando entrava em algum tipo de discussão ou se
sentia intimidado. Ele era formado em engenharia civil, mas seguiu carreira como
corretor de imóveis. Ainda jovem viu uma oportunidade na área e a abraçou. Durante
anos foi um dos principais negociantes do ramo em Cabo Frio e assim prosperou. Mas
com o desenvolvimento da cidade, com a expansão urbana, aumentou também,
significativamente, a concorrência nos negócios. Abriam novas imobiliárias em todos os
lugares, surgiam corretores sabe-se lá de onde. As dificuldades financeiras realmente o
atingiram a partir da última grande crise no país.

Desde meados do ano de 2013 a sua vida profissional vinha piorando


continuamente, num declínio acompanhado de revolta. Estava puto com o governo e, ao
menos no ressentimento, não se sentia sozinho. Acompanhou de longe as manifestações
que ocorriam nas capitais pedindo a queda do Partido dos Trabalhadores e a prisão dos
seus líderes corruptos. As poucas vezes que teve oportunidade, tendo em vista que as
manifestações eram menos frequentes no interior, foi às ruas vestido de verde e
amarelo, extravasando sua profunda indignação, forjando um patriotismo que jamais
sentiu. Compartilhava com seus contatos todas as notícias que lhe chegavam pelo
whatsapp e reafirmavam a sua posição, ignorando quando esporadicamente se via pego
numa mentira, as chamadas fake news. Indignou-se quando Dilma Rousseff ganhou a
última eleição, assim como comemorou a sua queda pelo processo de impeachment
pouco tempo depois. O fato é que a sua vida profissional atingiu um ponto crítico:
Roberto estava devendo ao banco. Por mero orgulho não mencionou nada à ex-mulher,
ao filho ou mesmo aos amigos mais próximos. Precisava ao menos manter uma
aparência de prosperidade.

Lembrou-se do lema do novo presidente: “Não pense em crise, trabalhe”.

– Filho da puta – murmurou.

Não havia vaga para estacionar, outro problema recente na cidade. Roberto teve
que parar a três quarteirões de distancia, depois de dar algumas voltas em busca de uma
vaga. Mal deixou o carro, o ar condicionado, e o calor já beirava o insuportável. Entrou
na cafeteria com o suor a lhe marcar a camisa.

– Bom dia, Augusto. E aí, Henrique?! – cumprimentou secamente a ambos,


puxou uma cadeira e se sentou.

Henrique era o mais jovem dos três. Arquiteto. Bem apessoado. Augusto era um
despachante gordo, que exibia sempre um aspecto cansado. A sua idade batia
aproximadamente com a de Roberto. Conheciam-se de longa data.

– Espero que vocês me deem boas notícias hoje. O negócio é certo. Saindo daqui
vou direto me encontrar com o cliente – disse Roberto indo objetivamente ao ponto.

O arquiteto e o despachante se entreolharam e por um instante ninguém disse


absolutamente nada.

– Bom... Sabe como é... – começou Augusto com ar fatigado. – Num processo
para a legalização de imóvel sempre podem surgir imprevistos. A prefeitura às vezes
dificulta tudo.

– Hmm...

– O cliente certamente vai entender. São questões burocráticas. Coisa que se


resolve. Você sabe como é, né?!

Henrique permanecia em silencio. Bebia o café em pequenos goles, como um ar


indiferente. Roberto começava a se inquietar, seus cacoetes o entregavam. Ajeitou os
óculos. Estava ficando visivelmente irritado.
– Você me disse que o Aceite e Habite-se sairia até o fim do mês passado. O
cliente foi bem explicito ao dizer que só compraria o imóvel com registro em cartório.
Ele quer pagar à vista. Sabe o que é isso?! Alguém comprar uma casa daquelas à vista?!
Ele tem todo o direito de ser exigente nesse sentido. Puta que o pariu!

– Sim... Sim, Beto. Mas acontece que o nosso processo entrou em exigência,
sabe? Não contávamos com isso. Teve um problema com a taxa de ocupação e tem
também a questão do sistema sanitário. Você sabe como são essas coisas, trabalhamos
juntos há anos e, pô, já tô resolvendo essa...

– Qual o novo prazo? – interrompeu.

– Não dá pra saber ainda. É provável que a gente tenha que esperar a Lei da
Mais Valia. Pode demorar um pouco. Mas ainda não tá nada certo. Cê sabe como é, né?!

– MERDA! – esbravejou Roberto olhando o relógio e ajeitando novamente os


óculos com o indicador. – Preciso ir. Marquei as onze com ele lá na casa. Que merda! –
levantou-se e saiu sem dizer mais nada.

Engarrafamento. O telefone toca.

– Oi, Lena. Tudo bem?

– Porra, Beto. Tô puta! Tô com os nervos a flor da pele, caralho. Já não sei o que
fazer com o teu filho. Ele só faz merda, Beto. É uma atrás da outra. Tá foda, tá foda. Já
não sei o que fazer. Tá me entendendo? Eu tento conversar com ele, Beto. Juro que
tento, mas ele só fica com aquele arzinho superior, achando que sabe de tudo, dizendo
que sou antiquada, que eu sou careta. E o pior é que só me responde com sarcasmo.

– O que foi dessa vez?

– Achei maconha nas coisas dele. Ele tá fumando essa merda, Beto! E dessa vez
você que vai falar com ele. Não aguento mais aquele merdinha arrogante.

– Uhum.

– Amanhã ele vai praí. Dá um jeito nessa merda! – Helena desliga bruscamente a
ligação.

Roberto já não consegue ver nela a mulher por quem foi perdidamente
apaixonado, com quem se casou. Era quase como se outra pessoa, outra Helena, vivesse
nas suas lembranças daquele período.

Conheceram-se e passaram a namorar ainda durante os seus anos de


universitário, ela dois anos mais nova do que ele. Roberto se formou primeiro e logo
começou a trabalhar. Pouco tempo depois ela se formou em jornalismo e então se
casaram, tiveram Thiago e tudo mudou. A separação veio a pedido dela. A separação
veio por causa dele.

“Acaso ou carma?”, perguntava-se Roberto, sem querer de fato obter uma


resposta. Uma dor de dente. Tudo por causa de uma simples dor de dente. Ele achava
graça ao pensar em como as coisas se deram. Como um imprevisto insignificante podia
mudar radicalmente as suas vidas.

Thiago era ainda adolescente quando sentiu uma dor de dente durante uma visita
à vó Maria Lúcia, mãe de Helena, que morava em Petrópolis. Nesta ocasião Roberto
havia ficado em casa, pois não podia abandonar os negócios para uma visita de três dias,
ou ao menos foi o que afirmou. Helena, preocupada com a dor do filho, resolveu voltar
antes para levá-lo ao dentista. Tomou essa decisão de última hora, sem avisar ao
marido. Chegou cedo ao apartamento em Cabo Frio e encontrou algumas cápsulas de
cocaína abertas sobre a mesa da sala, uns cigarros com marca de batom no cinzeiro
abarrotado e uma blusa feminina pendurada sobre uma cadeira. Pediu ao filho que
esperasse na sala e com o mínimo de ruído entreabriu a porta do quarto, apenas o
suficiente para confirmar o óbvio. Olhou através da fresta: O marido dormia, a
prostituta dormia ao seu lado. Helena pegou o garoto e voltou imediatamente para
Petrópolis.

– Não foi nada, amor. Era uma puta qualquer, não teve sentimento envolvido, foi
só um deslize, uma fraqueza. Eu te amo. Bebi demais, não sabia o que tava fazendo.
Não vai acontecer de novo. Foi um erro, todo mundo erra, você sabe. Eu te amo. Me
perdoa. Eu te amo. Era só uma prostituta...

Roberto já não amava Helena naquele período, apenas estava acostumado a tê-la
ao seu lado, sentia que precisava dela. Não queria a separação, tinham que cuidar do
garoto, eram uma família. Eram uma família! Eram uma família, e isso completava a
imagem, o ideal que nutria de um homem sério, bem sucedido, realizado. As prostitutas
eram frequentes. No entanto, em seu entendimento, isso era natural. Todo homem
casado tem necessidade de putas. Precisa se satisfazer. Trata-se de um fator biológico,
intrínseco à natureza masculina e fundamental para o equilíbrio em qualquer relação
saudável. Basta ser discreto. O problema é que daquela vez ele bebeu exageradamente e
cheirou mais do que devia. Perdeu a cautela. Transgrediu as próprias regras sem se dar
conta do que fazia. Levou a puta para o seu apartamento, transou com ela na mesma
cama que dormia com a esposa e, na embriaguez, acabou adormecendo.

Acordou de ressaca, a cabeça doía, a consciência pesava. Olhou para a ruiva que
dormia profundamente em sua cama, ao seu lado. A cabeça doía, a consciência pesava.
Angústia, náusea, vertigem. Foi um pouco rude ao acordar a moça, pagou outra vez pelo
serviço (não recordava que o tinha feito na noite anterior) e a expulsou. Eliminou
minunciosamente todos os vestígios do apartamento, verificou diversas vezes se não
estava esquecendo algo que o incriminasse e tentou ligar para a Helena. Tentou dezenas
de vezes antes que ela o atendesse. Quando finalmente obteve resposta, mostrou-se
indignado:

– Porra, não atende esse telefone! Aconteceu alguma coisa aí? Estou há uma
hora tentando falar com você.

– Você é um merda! – ela respondeu quase sem voz.

Ele tentou de todas as formas evitar a separação. Porém, por mais que
argumentasse, implorasse, chorasse, Helena se mostrou firme e decidida: Queria o
divórcio. Queria e o conseguiu.

– Tô atrasado, mas que porra.

Parou o carro em frente ao imóvel e observou ao redor. “Parece que ele ainda
não chegou.” Olhou a casa com a placa de “vende-se”, gostava de ver o seu nome nestas
placas. Era uma casa grande, com jardim e piscina. Atravessou a rua e parou sob a
sombra de uma amendoeira. Suava. Pegou o celular e viu que havia uma mensagem do
cliente cancelando o encontro. Achava estranho como ninguém mais fazia ligações.
Tudo era resolvido por mensagens de texto.

Caminhou dois quarteirões até a Praia do Foguete. Algumas pessoas na faixa de


areia, uns deitados em cangas, outros caminhando, uns poucos se banhando no mar.
Sabia que em poucos dias a cidade estaria lotada de turistas por causa das férias de final
de ano, mas nesta manhã a praia ainda estava agradável. A água exibia um tom azul-
claro, translúcida, convidativa naquele calor. Tentou inutilmente recordar da ultima vez
que entrou no mar. Sentiu um impulso de parar um pouco, esquecer todos os problemas
e passar o restante do dia na praia, submergir na água salgada, gelada.

Lembrou-se da dívida, do empréstimo no banco, dos juros. Sentiu a tensão se


tornar física, o corpo enrijecer. Arrumou os óculos e voltou para o carro. Iria para casa
almoçar rapidamente. A tarde ficaria no escritório onde ultimamente nada acontecia.

A tarde corria monotonamente. Roberto demitiu a sua assistente devido à


necessidade de cortar gastos e agora se via obrigado a passar mais tempo na imobiliária.
O maior problema era ter que fechar as portas da loja sempre que precisava resolver
algo na rua. Mas no ritmo que os negócios estavam não fazia muita diferença,
principalmente porque a maioria dos seus clientes atuais surgia por indicação e o
contato era feito por telefone.
À noite iria se encontrar com os amigos para beber, como faziam regularmente
todas as sextas-feiras. Sentia-se impaciente e a hora custava a passar. Via vídeos na
internet para se distrair. O Coronel havia enviado outro vídeo com falas do deputado
Jair Bolsonaro. “Coronel” era o apelido de Jorge, um militar aposentado e integrante das
bebedeiras semanais. Roberto não sabia qual era a verdadeira patente dele e nem se
tinha servido à marinha, ao exército ou à aeronáutica. Conheceu-o através de Sandro,
um amigo dos tempos de universitário.

Sandro foi o único ao seu lado quando Helena o deixou. Roberto se lembra com
bastante clareza desse período, de como pesou a solidão pouco tempo após o divórcio.
Não só pelo desmoronamento da estrutura familiar a qual estava habituado, mas
também por se romperem bruscamente todas as relações de amizade que manteve
enquanto casado. Não por escolha. Eles simplesmente foram unanimes em condená-lo e
se unirem numa rede de apoio para consolar a ex-mulher, a vítima. A ele, o vilão,
restava o desprezo. Portanto se sentia bastante solitário quando Sandro reatou o contato
após anos sem se falarem.

Sandro sempre foi um adepto do politicamente incorreto. Gostava de implicar


com as feministas e com o pessoal dos centros acadêmicos. Não demonstrava
constrangimento em fazer piadas racistas, machistas ou homofóbicas. Justificava-se
como um defensor da liberdade de expressão. Helena o odiava e não fazia questão de
disfarçar, o que acabou por afastá-lo durante o casamento. Sandro ficou feliz com a
separação, achou graça quando soube da forma como se deu e resolveu mandar uma
mensagem. Não demorou a que os velhos amigos se reaproximassem.

Roberto assistia a uma compilação de falas do Bolsonaro quando Augusto


chegou o interrompendo.

– Como foi com o cliente? – disse enquanto apertavam as mãos.

– Não foi. Ele desmarcou o encontro de hoje. De qualquer forma teria sido uma
merda por causa da sua incompetência. – respondeu em tom de brincadeira.

– Já estou resolvendo isso. Só vamos precisar de um pouco mais de tempo.

– Tempo é precisamente o que não temos.

– Beto, meu amigo, você anda muito tenso. Eu sei que os negócios não andam
bem pra você. Mas é preciso se adaptar, não dá pra ficar estacionado no passado.

Roberto o olhava em silêncio, sem muita paciência.

– As coisas mudaram. Antes havia pouca concorrência e as pessoas te


procuravam porque te conheciam. Confiavam em você por ser um morador antigo da
cidade. Mas agora tem muita gente de fora vindo pra cá, fugindo do inferno que o Rio tá
se transformando, com toda a violência e tudo mais. A dinâmica do setor imobiliário tá
mudando, cara. Estão chegando aqui as grandes construtoras, os grandes investidores, e
se ficarmos parados vamos ser esmagados. Você precisa se atualizar, fazer novos
contatos.

Augusto falava de forma pausada, num ritmo enfadonho, arrastando as palavras.


Como se tivesse dificuldade de se expressar.

– Obrigado pelo conselho, meu amigo. Não sabia que você era um gênio
empreendedor. Achei que tava tão fodido quanto eu.

Roberto, contrariando as próprias regras, tirou um cigarro do maço que estava


sobre a mesa, colocou-o na boca e acendeu dando uma longa tragada. “Não fumar
dentro da loja.” Soprou a fumaça em direção a Augusto encarando-o com certo
desprezo. “Até porque o cheiro pode incomodar alguns dos inúmeros clientes que vêm
aqui diariamente.”

– Ahh, foda-se. Deixa pra lá. Te aviso se tiver qualquer novidade sobre o
processo de legalização. Se cuida.

Nove horas da noite. O calor ainda intenso, sem trégua. Roberto abriu o frigobar
da sala de visitas, pegou uma long neck de Heineken, envolveu a mão direita na camisa,
tirou a tampa e deu um longo gole no gargalo. Sentou-se e acendeu um cigarro. Uma
bossa nova tocava no rádio. Deixou que o corpo deslizasse um pouco pelo sofá até ficar
mais confortável.

Pensava no filho. Sentia-se distante. Thiago havia mudado completamente nos


últimos anos, tornando-se irreconhecível para o pai. A cada novo encontro se
surpreendia diante do rapaz. As roupas, os trejeitos, as convicções, os planos para o
futuro. Cada pequeno detalhe que notava na personalidade que o filho vinha
incorporando chocavam-no. Procurava minuciosamente reconhecer nele traços da
infância ou qualquer resquício de influência da criação, da educação que buscou passar.
Era raro encontrar alguma afinidade e ficava contente ao ver que Thiago ainda escutava
algumas das suas músicas preferidas.

Não se encontravam com muita frequência e essas mudanças pareciam ocorrer


de forma acelerada. Às vezes, em sua presença, Roberto se sentia como diante de
completo desconhecido. Constrangia-se. Ficava desconfortável no papel de pai. E agora
teria que confrontá-lo, encarar o diálogo. Thiago estava fumando maconha, era
inevitável falar sobre isso, acalmar Helena. Mas não queria que tudo se resumisse a um
sermão hipócrita sobre drogas. Vislumbrava na situação uma oportunidade de romper a
frieza na relação com o garoto, um caminho para a reaproximação. Talvez o
estranhamento entre ambos fosse em parte decorrente do conflito natural entre gerações
distintas. Essa reflexão o acalmava. Uma justificativa plausível para as diferenças, para
o que não podia compreender.
Roberto fumava o terceiro cigarro e tomava a segunda cerveja quando escutou o
interfone tocar. Sandro e Luís haviam chegado.

Luís é o mais novo do grupo, com trinta e oito anos. Possui um aspecto
adoentado. Olheiras profundas, magro, alto, um pouco curvado e sempre muito calado.
Sandro por outro lado é um homem corpulento, bem acima do peso, não tão alto quanto
Luís, mas sempre muito bonachão e falador. Ele mantém um bigode aparado que
costuma alisar com os dedos enquanto fala.

– Puta que o pariu! – Sandro entrou falando com estardalhaço como de costume.
– Você tinha que ver a gostosa que veio no elevador com a gente. Um tesão, um tesão!
Não é Luís?!

– Uhum...

Enquanto Sandro ia falando, Luís pegou duas cervejas, abriu, entregou uma ao
amigo, apertou a mão de Roberto e sentou-se ao seu lado em silêncio. Acendeu um
cigarro.

– Eu até tentei puxar assunto, mas não me deu muita bola. Um tesão! Você já
deve ter visto ela por aqui. Disse que mora no número quatrocentos e dois. Moreninha,
peituda, cabelo cortado na altura do pescoço. Ela disse que não te conhece. Até
conversou um pouco comigo, mas não quis me dar o telefone. Vagabunda! – riu
estrondosamente, chacoalhando todo o corpo. Deu um gole na cerveja e continuou. –
Mas tudo bem, ela é muito magrinha, não ia aguentar comigo – desatou a rir outra vez.

– Acho que você está falando da Julia. Ela mora no quarto andar, mas é novinha,
acho que tem só uns dezoito anos.

– A vagabunda não me disse o nome, mas deve ser essa aí. Era novinha, do jeito
que eu gosto. Um tesão, um tesão!

Roberto o achava repulsivo.

– E o Coronel? – perguntou para mudar o assunto.

– Já deve estar chegando – disse Sandro enquanto enxugava os olhos com as


costas das mãos, assim que conseguiu parar de gargalhar. – Falei com ele antes de sair.
Estava um pouco mais revoltado do que o normal hoje.

O Coronel era o mais velho do grupo, com pouco mais de 50 anos. Um homem
ainda forte apesar da idade, com a postura sempre ereta e o rosto impecavelmente
barbeado. Gostava de debater temas polêmicos com o grupo e sempre sugeria ideias
radicais com tom grave e sério. Era um saudosista do que chamava de “Revolução de
64”.

– Vamos preparando o ouvido então – disse Roberto. – Porque quando ele tá


assim é foda. Certamente vai querer nos ensinar como salvar a nossa pátria decadente.
Sandro gargalhou por um momento e logo começou a contar que estava quase
conseguindo comer uma garota que trabalhava no caixa de uma padaria do bairro. Luís
fumava e bebia em silêncio.

Sandro ainda falava quando o Coronel chegou.

– ... mas ela disse que o marido não a deixa sozinha, quer sempre saber onde tá e
com quem... – interrompeu a frase quando o Coronel entrou.

– Boa noite, senhores – disse o Coronel em tom solene.

– Falávamos de você agorinha mesmo – Sandro alisava o bigode, mostrando-se


brincalhão. – Estamos curiosos pra saber como livrar o país da degradação moral. –
Gargalhadas.

– Fodam-se vocês, idiotas. Não vão fazer piadas quando seus filhos estiverem
dando a bunda e os comunistas tomarem o seu dinheiro.

A risada foi geral. O Coronel colocou uma garrafa de uísque sobre a mesa,
pegou um copo com gelo na cozinha e se serviu. Tomou um grande gole e passou a mão
na testa úmida de suor, secando-a depois na calça. Puxou uma cadeira e se sentou de
frente para o sofá onde estavam Roberto e Luís. Sandro se aproximou um pouco, mas
permaneceu de pé.

– Betão, você se lembra da Leticia? Aquela minha sobrinha, filha de Gustavo... –


indagou o Coronel olhando compenetrado para o copo de uísque que segurava.

– Acho que sim. Não é aquela menina que você me apresentou há umas duas ou
três semanas atrás, quando caminhávamos na orla?!

– Aham. Vocês não vão acreditar... – parou por um instante e levou lentamente o
copo até a boca, dando um grande gole. Ergueu os olhos em direção a Roberto antes de
retomar a fala. Seus gestos tinham um ar teatral. – Estive com Gustavo ontem. Ele foi lá
em casa fazer uma visita. Logo que chegou reparei que tava um pouco nervoso.
Inquieto, sabe?! “O que se passa, Guto?”, perguntei.

Mais uma pausa. O Coronel esticou o braço, pegou a garrafa sobre a mesa e
completou o copo. Luís acendeu outro cigarro. Ao fundo ouvia-se baixinho uma música.

“Vou dormir querendo despertar


Pra depois de novo conviver
Com essa luz que veio me habitar
Com esse fogo que me faz arder
Me dá medo e vem me encorajar
Fatalmente me fará sofrer”

O coronel se levanta, vai até o aparelho de som e o desliga. Olha para cada um
dos três calmamente e diz:

– Vamos sair daqui. Tô me sentindo enclausurado nesse apartamento.

O bar está agitado, com quase todas as mesas ocupadas. Há um movimento


constante de garçons e clientes. Num canto do estabelecimento, próximo ao balcão de
atendimento, um homem toca violão e canta músicas populares. Algumas pessoas mais
animadas cantam junto e pedem canções nos intervalos. Os quatro amigos estão
sentados numa mesa sobre a calçada. Escolheram o local mais distante possível do
músico, de forma que o som não chega tão alto até eles e assim conseguem conversar.
Em cima da mesa de madeira há uma garrafa de cerveja dentro do isolante térmico, os
copos com a bebida e um cinzeiro. É uma das principais ruas da cidade e há um trânsito
regular de carros e pedestres. Próximo deles tem um grupo de jovens bebendo em pé na
calçada e conversando. De vez em quando um deles atravessa a rua até um depósito de
bebidas e volta com duas garrafas de cerveja.

Sandro e Roberto tentaram algumas vezes voltar ao que o Coronel dizia antes de
saírem do apartamento, mas ele desconversou e acabaram deixando pra lá. Os assuntos
corriam sobre temas variados, sempre com Sandro a conduzir a conversa. Nessa altura
estavam todos meio bêbados e riam com frequência. Apenas o Coronel se mostrava um
pouco alheio.

– Olha aquela delícia ali perto do palco – Sandro falava apontando com o olhar
em direção ao interior do bar. – Disfarça, caralho. Não é pra olhar todo mundo junto.

– Aquela de preto? – perguntou Luís colocando em seguida um cigarro na boca e


o acendendo, enquanto protegia a chama do vento com uma das mãos em forma de
concha.

– Não, idiota. A que tá cantando. De vestido azul. Com o otário do lado. Ela tá
olhando pra cá toda hora.

– Ah, sim – assentiu Luis desinteressado.

– Gostosa mesmo – disse Roberto. – Mas só em seus sonhos ela se interessaria


por você.
– Aquele viado deve ter muito dinheiro. Porra, com esse corpo a filha da puta
nunca vai precisar trabalhar na vida – gargalhou achando graça do próprio comentário e,
sentindo-se espirituoso, deu um gole na cerveja.

Luís pegou a garrafa para completar o copo e constatou que estava pura. Tirou
da camisinha e acenou para um garçom que imediatamente se aproximou levou a
garrafa vazia.

– Preciso mijar – falou Sandro se levantando e entrando em seguida no bar.

Seguiu-se um curto período de silêncio. E logo Roberto reestabeleceu a


conversa.

– Tava reparando aqui, ainda não vi nenhum rosto conhecido hoje. Além de
vocês, claro. Antigamente quando ia pra algum lugar assim quase todo mundo era
familiar.

– Com licença – o garçom colocou uma nova cerveja na camisinha e saiu.

– É verdade, Beto – falou Luís enquanto pegava a cerveja e completava os


copos. – A gente tá ficando velho, cara.

– Não, o problema não é esse. A cidade tá mudando. Tá tudo mudando. Olha


esses prédios...

– Ssshhhh – fez o Coronel. – Ouve essa merda – falou baixinho aproximando a


cabeça da mesa e apontando com o polegar para o grupo de jovens ao lado. Eram cinco
ao todo, três rapazes e duas garotas.

– ... A questão toda foi que a Dilma não soube ou não quis articular com os
canalhas. Você diz que o golpe foi pra tirar o PT, que as elites não suportam o partido,
mas enquanto Lula estava no poder não aconteceu nada parecido – dizia um dos
rapazes. Um barbudo com camisa preta e calça jeans. – Isso porque ele sabia que não
podia enfrentar de uma vez o que foi construído em séculos de história. Simplesmente
aceitou que era preciso fazer vista grossa e negociar com os ratos.

– Isso é verdade – concordou uma garota negra alta, com voz firme. – Mas por
outro lado não dá pra ignorar o viés misógino do golpe contra a Dilma. Isso fora o
aumento do reacionarismo nos últimos anos, com a Lava Jato e o surgimento desses
grupelhos tipo MBL e Vem Pra Rua. Acontecimentos dessa magnitude são sempre
complexos, com camadas de entendimento. É preciso contextualizar.

– Você tá certíssima, amiga – assentiu uma menina loira. – Mas o pior pra mim
foi ver o Bolsonaro elogiando o torturador... Qual o nome mesmo?

– Brilhante Ustra.

– Isso. Ele fez isso no congresso, naquela situação e...


– EI, IDIOTAS! POR QUE NÃO VÃO DISCUTIR ESSA MERDA EM
CUBA?!

O Coronel elevou a voz interrompendo a conversa. Os jovens olharam para ele


surpresos, assim como Roberto, que não esperava tal reação. Luís permaneceu
tranquilo, fumando o cigarro, aparentando indiferença. O rapaz barbudo assumiu um
sorriso sarcástico e disse:

– Vai se foder, fascista! Ninguém aqui falou com você – antes que terminasse a
frase foi atingido no peito por um cigarro aceso, jogado por Luís, que em seguida se
levantou. O Coronel também se levantou.

A menina loira o segurou pela camisa. Estava visivelmente assustada.

– Deixa isso pra lá. Vambora – choramingou.

– Não gosto de petistas – disse o Coronel encarando o rapaz de forma


desafiadora.

– Vamo, Vini. Deixa isso pra lá – outra voz pedia.

Vini atendeu as súplicas, mostrando-se contrariado. Quase todo mundo no bar


assistia a cena, ao som de “Papel Machê”.

Os jovens caminhavam em direção ao depósito do outro lado da rua, quando o


Coronel arremessou um copo de cerveja que se espatifou com estardalhaço próximo ao
grupo, sem atingir ninguém. Imediatamente os cinco se puseram a correr.

– Porra, Coronel. Você tá maluco?! – Roberto estava estupefato.

– Não suporto esses merdinhas comunistas. Não sou obrigado a aturar isso.

Enquanto falavam, Luís voltou a se sentar calmamente e acendeu outro cigarro.


Roberto fez o mesmo, mas demonstrava um pouco de nervosismo. O Coronel enfim se
mostrou mais calmo e resolveu sentar também.

– Não foi nada Beto, relaxa. Essa gente precisa entender que o país está
mudando. Vamos voltar aos bons tempos – disse por fim o Coronel em tom conciliador.

Uma mulher se aproximou da mesa deles.

– Com licença, senhores. Sou a gerente daqui e preciso pedir educadamente para
que se retirem. Temos um negócio decente e não aceitamos esse tipo de
comportamento. Aqui está a conta – havia dois homens fortes parados atrás dela,
provavelmente os seguranças do lugar.

Sandro vinha se aproximando e parou olhando a cena com ar curioso.

– Minha querida, isto não vai ser necessário. Peço perdão pelo incidente
desagradável – foi falando o Coronel. – Somos pessoas de bem. Fomos obrigados a agir
dessa forma deselegante por causa daqueles vagabundos. Eles sequer estavam
consumindo aqui, só vieram pra causar problema. Mas, de qualquer forma, peço
desculpas. Sentimos muito pelo ocorrido. Você tem a minha palavra de que isso não vai
se repetir. Como eu disse, somos homens de bem, pessoas honradas. Pode colocar o
copo quebrado na minha conta. Vamos só terminar essa ultima cerveja com dignidade.
Já estávamos de saída.

A mulher olhou para um dos homens que a acompanhava, ele assentiu com a
cabeça.

– Ok. Tudo bem. Podem terminar essa cerveja – concordou a mulher, saindo em
seguida.

– Que porra foi essa? O que que eu perdi? – perguntou Sandro se sentando de
volta em seu lugar.

– O Coronel colocou uns petralhas pra correr. – disse Luís sorrindo.

Terminaram a cerveja falando sobre o assunto e enquanto pagavam a conta


Roberto se desculpou mais uma vez em nome do grupo. Caminharam bêbados até o
carro de Luís.

– Abre o porta-luvas, Coronel. Pega aí a parada.

O carro estava parado numa rua pouco movimentada. O Coronel pegou um livro
no porta-luvas e o colocou no colo. A seguir abriu uma capsula de cocaína e, com a
ajuda de um cartão, montou quatro linhas de pó sobre ele. Enrolou uma nota de cinco
reais no formato de um canudo e inalou a primeira carreira. Passou o livro pra Luís e
começou a falar:

– Eu preciso da ajuda de vocês. Tentei falar mais cedo, mas não era o momento.
Já falei pra vocês várias vezes do Zica, o vagabundo que dorme na minha calçada. Ele
mija e caga no canteiro do meu prédio. Incomoda todo mundo que passa por ali. Mas
agora... Agora ele passou de todos os limites.

O livro chegou à mão de Roberto. Olhou a capa: “O mínimo que você precisa
saber pra não ser um idiota – Olavo de Carvalho.” Sempre o mesmo, pensou.

O Coronel concluiu:

– Guto me disse que ele tentou estuprar Letícia.

Roberto inalou a sua parte.

– Que merda, cara!

Todos começaram a entender onde ele queria chegar.

– Estamos com você – disse Luís ligando o carro.


O carro já andava quando o Coronel acrescentou:

– Vamos dar um susto no filho da puta. Não quero mais ver a cara desse
desgraçado no meu bairro.

Roberto estava sendo arrastado pelos acontecimentos. Uma correnteza contra a


qual não conseguia resistir. Sabia que algo estava errado, contudo sua mente vagueava.
Não conseguia formular um pensamento completo, fragmentos de ideias passavam
rápidos pela sua mente e logo se dispersavam, eram sobrepostos por outros. Sentia
adrenalina. Olhou o livro em sua mão. Chegou por um instante a esquecer de onde
estava. Ouviu alguém balbuciar ao seu lado.

– Ééééé.... Ei, ei, que isso gente. Acho que não é uma boa levar isso adiante –
Sandro falou com voz hesitante. Seus olhos demonstravam pânico.

– Isso vai te animar – disse Luís ligando o som.

Uma guitarra começou a soar alto dentro do carro. Sandro tentou falar mais
alguma coisa, mas o Coronel aumentou o volume. “Whole Lotta Love”, reconheceu
Roberto. “Led Zeppelin II”. Já haviam escutado esse álbum algumas vezes enquanto
rodavam de carro pela cidade. Mas agora a música parecia diferente, como se contivesse
um simbolismo oculto. Roberto olhou para Luís sem o reconhecer. Sempre o teve como
um homem calado e apático. Um pouco assustador às vezes, claro, mas havia se
acostumado com aquela figura excêntrica. Sempre indiferente a tudo. Não esperava essa
determinação. Luís mantinha um olhar vidrado enquanto dirigia.

Seguiram assim por algumas ruas e então o Coronel baixou o volume da música.

– Encosta na rua lateral. Essa hora ele deve estar dormindo no beco. Vamos a pé
até lá.

Luís parou o carro. A música foi interrompida e um enorme silêncio se


instaurou. Ficaram assim, sentados, escutando o vazio, por um momento.

– Vamos – disse o Coronel abrindo a porta do carro e saindo.

Luís saiu em seguida. Roberto fez o mesmo. Sandro ficou parado dentro do carro
por mais alguns segundos e então abriu a porta. Esticou a cabeça pra fora e olhou para
os lados. Não havia mais ninguém na rua. Tudo estava absolutamente tranquilo naquela
madrugada. Saiu. Os quatro caminhavam calados em direção ao beco.

– Peraí, peraí. Um minuto.

Luís atravessou a rua até uma caçamba de entulho que estava do outro lado.
Fuçou por um instante com o corpo inclinado para o interior. Voltou sorrindo,
segurando uma pequena barra de ferro.

– Por segurança. Podemos precisar – justificou.


Continuaram a andar. Sandro olhava para todos os lados e seus passos eram
hesitantes. De repente deu um pulo e gemeu.

Luís havia batido sem força com a barra de ferro na coxa dele.

– Pra você ficar ligado – riu da reação do outro.

– Ssshhh – fez o Coronel. – Porra. Cês tão doidos?

Roberto assistia a tudo como se não estivesse presente. Não tinha consciência do
próprio corpo. É provável que tivesse se espantado caso alguém lhe dirigisse a palavra
naquele momento.

Entraram no beco. O lugar era mal iluminado e fedia. Haviam sacos de lixo
empilhados nos cantos. E mais a frente algo estendido no chão.

– Deve ser ele – sussurrou o Coronel apontando.

Aproximaram-se lentamente. Quando chegaram perto puderam distinguir um


homem dormindo enrolado num cobertor velho, sobre pedaços de papelão. Deram mais
alguns passos e ouviram latidos vindos da escuridão. Logo um cachorro de pelo amarelo
apareceu. O homem acordou.

– Ei, Sujinho! Cala a boca! – disse o homem antes de perceber que não estava
sozinho.

O Coronel o cutucou com a ponta do pé.

– Levanta!

O homem se levantou sofregamente, deixando cair o cobertor. Sandro deu


alguns passos para trás e parou num canto um pouco afastado da cena. O cão ainda latia.
O homem ficou de pé de frente para o Coronel que sacou uma arma, segurando-a com o
braço estendido ao lado do corpo. Luís estava em pé ao seu lado segurando o bastão.
Roberto sentiu o corpo enrijecer.

– É o seguinte, seu merda. Você vai sumir desse bairro, ou melhor, da cidade.
Você é um incômodo para todos os cidadãos de bem que moram aqui. Se quiser
continuar vivo é melhor desaparecer. Tá entendendo?!

Enquanto dizia estas ultimas palavras o Coronel levantou a arma em direção ao


peito do homem. Ao fazer esse gesto o cachorro avançou em sua direção.

O que se seguiu foi muito rápido. O Coronel chutou o cão, que emitiu um
gemido agudo. O homem gritou “Sujinho”, movendo-se bruscamente em direção ao
animal e, no mesmo instante, Luís o atingiu na cabeça com a barra de ferro. Um golpe
forte.

O vira-lata fugiu assustado. O homem estava caído, imóvel, aos pés do Coronel.
– Merda! – esbravejou o Coronel empurrando o homem com a ponta do pé.

Não havia reação. O sangue escorria pelo chão. Luís e o Coronel trocaram
olhares.

– Que porra foi essa?! – perguntou Sandro quase sem voz.

– Vamos sair daqui. Agora, caralho! – disse Roberto, como se houvesse


subitamente se materializado no meio daquele inferno. – Vamos sair daqui! – repetiu e
se virou andando a passos rápidos.

Os outros fizeram o mesmo. Na esquina, já chegando ao carro, Sandro parou e se


apoiou na parede, com a cabeça baixa.

– Acho que vou desmaiar.

Roberto voltou para ajudá-lo enquanto os outros dois entravam no carro. Sandro
chegou ao carro apoiado no amigo. Ao se sentar viu a barra de ferro no chão, aos seus
pés. Algo estava grudado nela, talvez pele e pedaços de carne. Não dava pra identificar.
O carro começou a se mover, enquanto Sandro abria a janela, colocava a cabeça para
fora e começava a vomitar.

– Ele... ele... morreu? – balbuciou em seguida.

Roberto notou a troca de olhares entre Luís e o Coronel.

– Não, claro que não – respondeu o Coronel. – Só ficou desacordado. Vai


acordar com uma puta dor de cabeça aquele desgraçado. Aposto que entendeu o recado.
Nunca mais o veremos por aqui – soltou uma risada que soou nervosa.

– Por que você estava armado? – interviu Roberto. – Que porra foi aquela?

– A arma é de brinquedo – disse o Coronel. – É uma dessas antigas, de espoleta.


Era do meu filho. A ideia era criar uma cena pra assustá-lo.

Jogou a arma no colo de Roberto. Era realmente falsa.

– Me passa o Olavo – acrescentou. – Preciso de um estímulo.

Luís religou o som enquanto o Coronel montava as carreiras. Ainda estava na


primeira música. Ele pulou para a segunda e ouviu-se Robert Plant cantando com voz
doce:

“And if I say to you tomorrow


Take my hand, child, come with me
It's to a castle I will take you
Where what's to be, they say will be”

O carro percorria as ruas da cidade e as estrelas permaneciam ignoradas no céu.


Sábado.

Roberto acordou nauseado. Tinha tido um sono pesado e despertou pensando no


que havia ocorrido na noite anterior. A primeira imagem que lhe passou pela cabeça foi
a de um homem caído no chão, desacordado. Em seguida recordou todo o desencadear
dos acontecimentos daquela noite. Não conseguia aceitar os fatos, o que a sua memória
invariavelmente expunha. Esforçava-se em acreditar que aquilo tudo não passava de um
pesadelo. Inútil esperança. Lembrava-se de quase tudo em detalhes.

Olhava para a parede e mesmo estando completamente desperto não encontrava


forças para se levantar. Permaneceu inerte por um tempo indeterminado. Sua mente
vagava num espiral retrospectivo de fatos incompreensíveis.

Escutou barulhos vindos dos cômodos contíguos. Portas abrido e fechando.


Vozes. A realidade do momento presente se impôs, num susto, rompendo bruscamente
com o vórtice de memórias e devaneios confusos. “Thiago já tá em casa”, concluiu.
Esticou o braço e pegou o celular ao lado da cama. Onze e trinta e sete. “Preciso me
levantar.”

Sentou-se na cama e reviu novamente a imagem do beco, o sangue escorrendo.


Foi ao banheiro e lavou o rosto. O enjoo não passava. Viu-se no espelho e se sentiu
velho, muito mais velho do que no dia anterior. Escovou os dentes e foi para a sala.

Thiago estava na cozinha e um amigo na sala, sentado no sofá.

– Bom dia – disse o rapaz ao vê-lo surgir no corredor.

Roberto o achou parecido com o barbudo da discussão com o Coronel na noite


passada. Ficou em dúvida se era o mesmo.

Thiago apareceu em seguida, comendo um sanduiche.

– Oi, pai. Achei que não tava em casa. Que cara é essa?! – riu. – A noite ontem
foi boa, hein?!

– Nem me fale – Roberto estava desnorteado. Sua mente oscilava entre o homem
desacordado no beco e o rapaz barbudo que poderia ou não ser o mesmo da noite
anterior. – Ressaca do caralho.

– Estamos saindo. Vou dar um pulo na praia. Faz semanas que não vejo o mar.
Não precisa me esperar pro almoço, vou comer qualquer coisa na rua.

– Tudo bem. Até mais tarde então.

– Até. Vê se bebe bastante água. Cê tá acabado.

Os dois jovens saíram. Roberto foi até a geladeira pegar a garrafa de água.
Impossível ficar em casa, queria poder fugir da própria consciência.

Saiu.

Caminhava sem rumo pelas ruas da cidade. As mesmas cenas passavam


repetidas vezes pela sua cabeça. Andava a passos rápidos, apressados. Tinha a
impressão que os transeuntes o estavam encarando, como se estivesse sendo julgado,
condenado, aos olhos alheios. “Eles sabem de algo? Mas como?” Imaginou a sua foto
estampada no jornal.

Sem se dar conta do rumo que seguia chegou às margens das salinas.

Entrou.

Enquanto transpassava os imensos quadrados marcados no solo, pode sentir o


vento com mais intensidade. Ainda vestia a mesma roupa da noite anterior e estava
completamente suado. Fazia um calor intenso. Avistou uma casuarina, um pouco mais a
frente, próxima a um moinho de madeira. Seguiu até lá e sentou a sombra da árvore.

O velho moinho emitia um rangido agudo e cadenciado. Suas hélices giravam


lentamente sob a força do vento nordeste. A sua frente havia um pequeno canal com
água estagnada. Olhou para o céu onde algumas nuvens brancas se moviam lentas sob o
azul. Algumas gaivotas voavam distante dali. Acendeu um cigarro apesar de sentir a
garganta seca.

Os mesmos pensamentos continuavam a atormentá-lo.

Ao terminar o cigarro, se levantou e pegou uma estreita trilha arenosa as


margens do canal.

Há anos não entrava nas salinas, apenas as via de longe ao passar pela estrada. E
estar ali, naquele momento, suscitava sentimentos nostálgicos. Tudo naquele lugar
pertencia ao passado. Era como visitar um museu onde estavam expostos os resquícios
da sua infância. Fechou os olhos e inalou com força o ar que pairava sobre o solo inerte,
sentindo-se inebriado pelo cheiro da maresia. Queria poder deslocar-se no tempo, voltar
ao passado.

Logo a paisagem começou a mudar. Os quadrados sem vida, marcados no solo


das salinas, davam lugar a uma vegetação de restinga. Cactos, pequenas palmeiras
guriri, bromélias. E então os arbustos que, pouco a pouco, iam se tornando mais densos.
Calangos fugiam assustados entre a vegetação.

Avistou o asfalto e seguiu andando pelo acostamento. O sol fustigava a pele, os


olhos doíam por causa da claridade. Não demorou a encontrar uma barraca, um
comércio informal, na beira da estrada. Pediu uma garrafa d’água e um salgado.
A sua fuga o levou até a praia. As pessoas ali aproveitavam o dia, pareciam
felizes. Realidades, formas de levar a vida, tão diversas da sua. Roberto não sabia como
alguém conseguia passar um dia despreocupado, simplesmente apreciando aquele
ambiente.

Sentiu um impulso de mergulhar.

Sem refletir sobre o que fazia, tirou a roupa e, deixando os seus pertences na
areia, foi em direção ao mar. Entrou na água e nadou até depois da arrebentação.
Esticou os braços e as pernas na horizontal, deixando o corpo boiar. A água estava
gelada e por um momento se sentiu bem, acolhido pelo oceano, num lugar onde seus
problemas pareciam não existir.

Após sair da água e vestir-se, viu no celular que Sandro havia ligado. Três
chamadas perdidas. Olhou a hora: Quinze e vinte e três. Respirou fundo e então ligou de
volta.

– Alô. Beto?!

– Sim. Pode falar. Você me ligou.

– Porra, cara. Eu tô pirando. Não tenho com quem falar. Que merda, cara. Que
merda que a gente se meteu.

– Aquilo nunca aconteceu, Sandro. Entende. Era um vagabundo, você ouviu o


que o Coronel falou sobre a sobrinha dele. O melhor é esquecer, deixar isso pra lá. Não
precisamos falar sobre isso. Vai ser como se nada tivesse acontecido.

– A sobrinha do Coronel. É sobre isso que eu queria falar, Beto. Que merda,
cara. Que merda – Sandro deu uma pausa antes de continuar. – Andei investigando e
posso te dizer com certeza: O tal do Zica nunca tentou nada contra a garota. O Coronel
inventou aquela história.

– Como é?

– Sim, isso mesmo. O filho da puta inventou aquela coisa do estupro pra
convencer a gente, Beto.

– Como assim? De onde cê tirou isso?

– Fui procurar saber, cara. Eu precisava entender... – ele interrompe a frase e


começa a falar com alguém do outro lado da linha. A voz fica distante e Roberto não
consegue entender o que diz.

– Do que cê ta falando?

– Depois te explico melhor. Preciso desligar.

– Sandro?! Ei, Sandro?!


Sandro havia desligado.

Ao entrar em casa Roberto estranha a televisão ligada.

Thiago.

Havia se esquecido dele outra vez.

– Oi, pai – a voz do filho vem do outro lado do sofá.

Roberto se lembra do rapaz barbudo e se aproxima procurando-o. Apenas


Thiago no sofá. Olha em volta e pergunta:

– Tá sozinho em casa?

– Tô sim. Descansando um pouco, vou dar um role mais tarde. Encontrar a


galera.

Roberto se sente aliviado. Se o barbudo era o mesmo da discussão não deve ter
falado nada. Thiago parece tranquilo. Talvez ele não o tenha reconhecido. Ou pode ser
outro garoto, esses jovens todos se parecem quando tem barba.

– Caralho! – exclama Thiago surpreso ao olhar para o pai – A tua cara tá muito
vermelha! Tava na praia com essa roupa?

Roberto toma consciência de si. Está com o sapato coberto de areia, parte da
calça e a barra da camisa estão úmidas na altura da cintura. Leva a mão ao rosto e sente
a pele arder ao contato.

– Fui dar uma volta pra curar a ressaca. Esqueci de passar protetor.

– Tu tá doidão – diz em tom de troça, rindo. – Tá sujando o chão todo de areia.

Roberto tira o sapato e se senta na poltrona.

– Tá vendo o quê?

– Uma série da Netflix, Narcos. Uns amigos me indicaram. Dizem que é boa.

– Hmm... Ah, é o Wagner Moura ali, né?!

– Aham.

Os dois assistem ao resto do episódio em silêncio.

– Curti – diz Thiago. – Quer ver mais um?

– Uhum. Depois. Preciso falar uma coisa com você.

– Pode falar, pô.


– É um assunto delicado. Não quero que pareça um sermão nem nada disso,
saca? Preciso que você encare isso como uma conversa de homem pra homem. Eu tenho
mais experiência, vivi muita coisa, só quero te dar alguns conselhos.

Thiago olhava curioso.

– A sua mãe me ligou. Ela tá preocupada com você...

– Não precisa fazer isso porque ela mandou, pai. Sério. Você fica ridículo nesse
papel.

– Não, não. Não tô fazendo nada porque ela mandou. Só quero poder falar com
você abertamente. Não precisamos de tabu. Sei que têm muitas diferenças entre as
nossas gerações, mas eu também experimentei maconha quando era novo...

Thiago o interrompe com uma risada.

– Olha pra você. É sério. Com essa cara vermelha, sentado aí todo sujo de praia.
Se alguém aqui precisa de conselhos, esse não sou eu. Tinha que ver o seu estado hoje
de manhã.

– Porra, dá pra parar de me interromper?! – Roberto eleva a voz e arruma os


óculos. Sua mão treme. Tenta em vão se conter, e acaba soando inflamado. - Só não
quero que você, meu filho, vire um desses maconheiros retardados. Além do que, todo
mundo sabe que maconha é a porta de entrada pra drogas mais pesadas.

– Já acabou ou vai mandar algum outro clichê estúpido? Se eu fumar maconha


demais vou acabar virando petista, né?!

Roberto se lembra dos jovens da noite anterior. Thiago se parece com eles.

– Você não me daria essa decepção.

– Em quem você acha que eu votei na ultima eleição? – disse em tom de


provocação. – Cuidado que a ameaça vermelha pode estar na sua própria casa.

– Vai se foder, Thiago. Não te criei pra isso, não foram esses os valores que te
ensinei.

Thiago se levanta e pega a mochila.

– Tô indo pra Seropédica. Você não tá bem, véio. Não tá mesmo!

Sai batendo a porta.

Roberto está exausto.


Sem o filho por perto, cedeu enfim ao cansaço acumulado. A pele ardia
queimada de sol. Os músculos das pernas doíam devido à longa caminhada.
Maquinalmente tomou banho e jantou. Não sabia que horas eram quando foi se deitar.

Mesmo fadigado não conseguiu dormir. Assim que pôs a cabeça no travesseiro
a consciência passou a atormentá-lo novamente. Sentava-se na cama, fumava um
cigarro atrás do outro, voltava a deitar, sentava novamente, mais cigarros. Um ciclo
infindo, uma noite interminável. Não havia como relaxar. Um fluxo incessante de
pensamentos, um transe do qual tentou sem sucesso escapar.

A princípio se recordava dos acontecimentos da noite anterior. Tinha medo de


ser preso, tentava encontrar alguma brecha que os incriminasse. No fundo não se
lamentava pelo homem assassinado. Alguém que vivia em condições sub-humanas,
dormindo na rua, comendo os restos do lixo. A sua existência era um suplício, além de
um estorvo para a sociedade. O que realmente o preocupava era ser descoberto, julgado,
condenado.

As suas reflexões aos poucos foram perdendo a objetividade, tornando-se


gradativamente mais abstratas. Pensava na própria vida, nas escolhas que o levaram até
ali. Surpreendeu-se ao perceber que o seu destino até aquele momento se havia definido
sobre decisões arbitrárias. Não fez mais do que tentar sobreviver, como qualquer outro
animal suscetível a instintos primitivos, reagindo conforme as condições do ambiente.
Qual o propósito de uma existência tão rasteira, afinal? E Deus, como o julgaria?
Provavelmente como ele próprio se julgava agora: uma alma perdida, um pecador.

Lembrou-se de quando era criança e todo domingo ia ao culto. Logo vieram à


mente recordações longínquas.

Certa vez, ainda garoto, estava na igreja com a mãe. O pastor dava o sermão
enquanto o potinho dos dízimos ia passando de mão em mão. A mãe lhe entregou em
silencio uma nota, como sempre o fazia, para que doasse a igreja.

Durante toda a semana Roberto havia pedido dinheiro a ela, queria comprar um
carretel de linha para soltar pipa. O seu estava nas últimas, todo puído e remendado. Ela
negava afirmando não ter dinheiro sobrando para gastar com futilidades. E agora lhe
dava aquela nota, que era mais do que o valor do carretel que tanto queria (com o
restante dava até pra comprar uma pipa nova), para entregar a igreja.

Aquela quantia seria insignificante ao Todo Poderoso, refletiu. Sorrateiramente


guardou o dinheiro no bolso. Quando lhe entregaram o pote, colocou nele a mão vazia,
fingindo depositar ali o dinheiro. A mãe lhe fez um afago na cabeça olhando-o com
orgulho.

Chegando em casa guardou a nota no fundo da gaveta de meias e não teve


coragem de gastá-la. Sentiu-se culpado, chegou mesmo a entrar em pânico temendo ir
para o inferno. Rezou muito nos dias que se seguiram, suplicou a Deus por perdão. Na
mesma semana levou a nota furtada a igreja e a doou.
Lembrou-se do alívio que sentiu naquele ato que simbolizava a sua redenção.
Tinha aprendido a lição. Arrependeu-se e se retificou do pecado cometido, estava a
salvo do inferno. Naquele instante amou e se sentiu amado por Jesus como nunca.

Agora se sentia novamente um pecador. O mesmo garoto de décadas atrás a


procura de salvação. Mas não havia somente um simples pecado a ser corrigido. Não era
mais uma criança ingênua cedendo à tentação. Precisava redimir-se de uma vida inteira
alheia aos desígnios do Senhor.

Domingo.

Teve insônia durante toda a noite. Não havia pregado os olhos um minuto
sequer. Foi acometido de febre devido à insolação e sequer se deu conta disso. Precisava
agir, não tinha mais tempo a perder.

Levantou-se cedo. Estava com enormes olheiras e se sentia fraco, porém


determinado. Abriu a ultima gaveta do armário e retirou de lá todo o dinheiro que
guardava em casa.

Saiu. As ruas estavam pacatas. Tudo calmo e silencioso.

Alguns quarteirões à frente, ao dobrar a esquina, pode ouvir os gritos que


vinham de dentro da igreja. Pombos voaram quando se aproximou. Entrou sem ser
notado e se sentou na ultima fileira. Perto da porta. As pessoas ali dentro estavam de pé
e pareciam agitadas.

– (...) O NOSSO DEUS É UM DEUS MISERICORDIOSO, IRMÃOS!

– ALELUIA! GLÓRIA, SENHOR! – gritavam os fiéis enquanto o pastor


pregava.

– ELE TEM UM PLANO TRAÇADO PRA CADA UM DE VOCÊS QUE SE


REUNE AQUI HOJE! MAS O TINHOSO, AHHHH, O TINHOSO QUER DESVIÁ-
LOS DO CAMINHO DE DEUS, IRMÃOS!

De repente pôs-se a falar baixinho.

– Você liga a tv e tem homem beijando homem, tem todo tipo de perversão.
Tudo, tudo para desviá-los do caminho da graça de Deus. MAS NÃO VAMOS CAIR
NO JOGO DELES! ALELUIA, IRMÃO?

– ALELUIA!

– GLÓRIA A DEUS!
– O QUE É DELES TÁ GUARDADO! O REINO DOS CÉUS, DISSE JESUS,
É DOS QUE TEMEM A DEUS! DOS QUE HUMILDEMENTE SE AJOELHAM EM
NOME DO PAI!

– GLÓRIA AO SENHOR!

– DO QUE VOCE ESTÁ DISPOSTO A ABRIR MÃO POR ELE, IRMÃO?


IRMÃ? QUAL SACRIFÍCIO VOCÊ FEZ POR DEUS ESSA SEMANA? PORQUE
ELE, IRMÃOS, ELE SACRIFICOU SEU PRÓPRIO FILHO NA CRUZ POR CADA
UM DE NÓS!

O público pulava, gritava, estendia as mãos aos céus com emoção. Roberto
atravessou o salão, espremendo-se entre os fiéis, até ficar diante do pastor, em frente ao
púlpito, onde se recolhia o dízimo.

– E OS MESMOS HOMENS QUE O PREGARAM NA CRUZ HOJE ESTÃO


EM BRASILIA. ELES ROUBAM NOSSO DINHEIRO, CONDENAM NOSSO POVO
A MISÉRIA E A FOME!

Roberto entregou todo o dinheiro que tinha consigo. O homem que cuidava do
dízimo agradeceu.

– Deus te abençoe, irmão!

– Amém – respondeu com sinceridade.

– MAS DEUS VAI NOS ABENÇOAR! O NOSSO SENHOR É JUSTO E


MISERICORDIOSO!

Roberto estava esgotado, mal se aguentando de pé. Não conseguia mais conter
as lágrimas, que escorriam em abundância pela sua face.

– EU FUI AGRACIADO COM UMA VISÃO, IRMÃOS! DEUS ME DISSE


QUE NAS PRÓXIMAS ELEIÇÕES TEREMOS UM PRESIDENTE CRISTÃO, UM
HOMEM HONESTO QUE VAI NOS CONDUZIR DE VOLTA AO AMOR DE
CRISTO. ALELUIA?

– ALELUIA!

– GLÓRIA A DEUS!

Gritavam em coro.

Ainda havia esperança de salvação, a fé poderia elevar o seu espírito, afastá-lo


do mau caminho. Roberto sentiu-se iluminado, preenchido pelo amor de Deus. E pôde
enfim encontrar a paz almejada.
FUMAÇA
O poema é volátil
Como uma névoa banca
Que se dispersa no ar

Manhã

Sentado em sua cama, debruçado sobre o notebook, Renato escrevia. Estava


concentrado, inspirado. Apertava cada letra do teclado com determinação. Imaginava
versos carregados de sentimento, metáforas transcendentais, como que psicografadas de
dimensões mais sensíveis. Acreditava-se apaixonado. Buscava a perfeição. Queria
impressionar e, portanto, já havia reescrito o poema dezenas de vezes.

Pensava em Marina.

Marina também gostava de arte, tinham muitos amigos em comum e sempre se


encontravam nos eventos alternativos da cidade. Nunca teve coragem de falar
diretamente com ela, mas pretendia entregar-lhe o poema. Passava horas vendo-a nas
redes sociais e supunha que a conhecia. Tinha-a como uma garota sensível e presumia
que um bom poema seria o primeiro passo para a aproximação.

Pronto, finalmente havia terminado. Releu ainda algumas vezes antes de


transcrever para o papel. Pretendia entregá-lo para Marina no evento desta noite. Sentia-
se bem, resolveu sair. Desceu do prédio na Avenida do Contorno e seguiu caminhando
em direção à praia. Tinha um andar lento, com os pés um pouco voltados para fora.
Havia uma expressão constante de cansaço em seu rosto. Fazia calor e logo o suor
passou a escorrer pela sua face, a encharcar os cabelos curtos. A camisa também
começava a ficar molhada e a colar no peito, na barriga saliente, desenhando a forma do
seu corpo. Renato volta e meia segurava a camisa entre o polegar e o indicador e puxava
para desgrudá-la do corpo suado.

- Qual é, Bolota?!

Renato odiava o apelido. Virou-se para ver quem era.

- Fala aí, Léo – respondeu com indiferença.

Os dois seguiram caminhando juntos.

- Ainda tá escrevendo? – perguntou Léo. – Lembro que você tinha um blog.

- Aham. Postei um conto novo essa semana. Depois dá uma olhada lá.

- Ah, legal. E é sobre o que?

- É uma narrativa experimental. Peguei como referência o estilo de prosa poética


do Raduan Nassar e misturei com traços de surrealismo. O personagem principal é
inspirado ao mesmo tempo no Estrangeiro de Camus e no protagonista da Náusea, do
Sartre.

- Uhum. Parece uma miscelânea de influências sem pé nem cabeça.

- É uma obra experimental, cara. Não dá pra explicar assim, só você lendo
mesmo.

- Pode crer. Então você finalmente largou aquela obsessão por escritores russos
cristãos, né?! Já tava na hora de seguir em frente.

- Porra, Léo. Claro que não. Dostoievski, Tolstói... Esses são os grandes
romancistas, minhas maiores inspirações. Crime e Castigo e Ana Karenina são obras
imortais.

- Eu prefiro Memórias do Subsolo e A Morte de Ivan Ilitch. São mais


undergrounds – riu do próprio comentário. - Falando nisso, vai colar no Don hoje? O
MOS vai tocar.

Renato se lembrou do poema e imediatamente perdeu a confiança. Fora do


conforto do quarto a sua escrita se ressignificava. Tinha medo do ridículo.

- Vou, vou sim.

- A gente se esbarra lá mais tarde então. Eu vou ficar por aqui. A Lu e a


Fernanda tão vindo ali, a gente vai dar um pulo no Robalo pra queimar um. Tá afim?

- Não vai dar. Preciso me adiantar. Valeu, Léo.

- Falou, Bolota.

Renato atravessou a rua um pouco apressado, como se estivesse fugindo das


meninas que se aproximavam pelo calçadão. Após se cumprimentarem, desceram pela
escadaria até a areia.

- Esse cara é um babaca – disse Luana.

- Coitado, Lu. O Bolota é meio mala, mas se você não levar a sério é até
divertido.

- Ele se acha o escritor fodão. O gênio incompreendido. Mas é só mais um nerd


burguês e punheteiro tentando dar uma de Bukowski pra se sentir mais macho.

Os três riram. O calor aumentava enquanto andavam desapressadamente em


direção ao Forte.

- O velho escroto deve estar se revirando no inferno – acrescentou Luana. –


Viveu uma vida inteira de merda às margens da sociedade pra virar a aberração que
virou e agora qualquer idiota se sente legitimado, extraindo da sua literatura apenas o
que convém. Tem até bar de playboy com o nome dele. Parece que o que sofreu em vida
não foi suficiente...

- Carma. Deus é mulher e machista sofre em dobro – brincou Fernanda.

- Vocês não perdoam, né?!

- Não, não mesmo.

- Enfim. Vocês estão desatualizadas. O Bolota já superou essa fase do escritor


rude, viril e, no fundo, sensível.

- Deve ter percebido que não cola, com aquela cara de filhinho de papai. Nunca
deve nem ter lavado a própria cueca – disse Luana.

- E quando acendia um cigarro no rolê pra fazer pose?! Não sabia nem tragar –
Fernanda imitou o gesto e concluiu com uma risada.

- Porra, cês tão impossíveis hoje. De qualquer forma é bom ter alguém
movimentando a literatura alternativa por aqui. Ele ainda pode amadurecer.

- Tem a Rita – pontuou Fernanda.

- A Rita é um amor. Mas uma branca de classe média posando de espiritualizada


e falando sobe ancestralidade na cultura negra... Eu aprendo muito mais tomando um
café com a minha avó.

Silêncio.

- E se colocar como militante de esquerda e escrever sobre astrologia não dá,


né?!

- E o que que tem, Lu?! Ser de esquerda é ser contra a intolerância. Liberdade
para as diversas concepções de mundo. Basta viver com respeito e harmonia. Não vejo
contradição.

- Não vejo contradição entre o que você descreveu e o ideal de democracia


liberal. Qualquer capitalista mais progressista é capaz de defender essa mesma tese.

Leandro não entrou no debate. Sempre que podia evitava esse tipo de discussão.

- Ah, então pra você a esquerda tem que perseguir quem não aceita os seus
dogmas. Vamos voltar ao comunismo soviético stalinista, né?!

- Amiga, não se faça de boba. A ideia é justamente que a esquerda se afirme


como uma força política pautada em construir uma sociedade mais consciente e justa.
Por isso não cabem dogmas. Por isso não cabe fé. Seja a fé cristã, seja a fé em
astrologia, seja a fé na terra plana.
- Aí é que você se engana, Lu. A fé trata de questões metafisicas e existenciais,
são verdades impossíveis de explicar pelo meio convencional. Verdades espirituais. Eu
sei que Deus existe porque tenho experiências íntimas com ele, eu sinto. Não me peça
pra provar isso através do método cientifico. Chega a ser ridículo. Não somos capazes
de explicar tudo o que sabemos. E é aí que entra a fé.

- Quando não conseguimos encarar certas questões damos uma resposta


reconfortante, por mais absurda que seja, e nos apegamos a ela emocionalmente. Isso é
a fé.

- Você podia tentar ser mais positiva. Enxergar o mundo com tanto niilismo
deve ser deprimente às vezes.

- Pelo contrário. O ceticismo é instigante. É ter consciência de que a existência


vai muito além de paradigmas morais maniqueístas – hesitou por um instante antes de
continuar. – Negatividade pra mim é carregar uma réplica de instrumento de tortura no
peito.

Fernanda não entendeu de imediato a referência. Levou a mão ao peito e sentiu o


pingente entre os dedos. Um crucifixo.

- Meninas – interviu Leandro – vocês já tiveram essa discussão dezenas de


vezes. Nunca uma convenceu a outra. E não vai ser hoje, né?!

- Não se trata de convencer ninguém, isso não é um jogo ou uma disputa de


egos. Certo, Fê?

- Verdade – concordou Fernanda.

- Pelo menos nisso vocês concordam.

- Típica taurina – Fernanda vira-se para Léo enquanto aponta pra Luana.

- Nem começa, amiga.

- Eu ainda vou fazer o seu mapa astral, Lu.

Haviam chegado ao canto do Forte. Pouca gente na praia, água estava calma e
translúcida. Os três andavam lado-a-lado, compartilhando um deslumbramento
silencioso diante daquela paisagem intimamente conhecida.

Atravessaram a pequena ponte que dava para as pedras e, logo adiante, passaram
sob as correntes que servem de corrimão e delimitam o caminho até a entrada do antigo
forte. Seguiram pelas rochas até a parte conhecida como Robalo.

Sentaram-se. Luana olhou ao redor, desconfiada. Havia apenas um grupo de


adolescentes um pouco distante. Abriu a bolsa e pegou o baseado.
- Já apertado, como tem que ser – colocou na boca e acendeu. – Né, Léo?! –
acrescentou após soltar a fumaça.

- Cê é foda, Lu. Queria ter metade desse teu amor próprio.

- O que foi?! Uma preta empoderada te intimida, querido? – riu. – Não é minha
culpa se você leva a maconha pra apertar no rolê. Da ultima vez a gente quase rodou
por conta disso.

- É verdade, Léo. Cê dá esse mole direto.

O baseado ia passando de mão-em-mão enquanto conversavam.

Um instante de silencio.

- Bateu.

- Bateu...

- O sol tá torrando. Vou dar um mergulho.

Luana se levantou, tirou o short, foi até o ponto em que a rocha se debruça sobre
a água e mergulhou. Os dois ficaram olhando enquanto ela nadava em direção a Pedra
da Baleia.

- Cê sabe que eu amo a Lu, né?! – comentou Léo. – Mas, porra, ela é palestrinha
demais.

- É verdade, ela é sim – respondeu Fernanda depois de uma risada. – E até isso
eu gosto nela.

Uma gaivota passou planando rente ao mar. Os morros de Arraial do Cabo


preenchiam o horizonte e a Ilha do Farol se destacava, com uma névoa branca
encobrindo o cume. A única nuvem que se via em toda a extensão de céu azul.

Em primeiro plano se via a longa faixa de areia da praia do forte. Na parte


central da cidade os edifícios contrastavam com aquela natureza idílica. Havia uma
brutalidade ameaçadora, hostil, naquelas construções. Como se quisessem avançar mais
e mais, desafiando o próprio oceano.

- E essa banda que vai tocar hoje? Vale a pena? Lá no Don de vez em quando
tocam uns lances bem esquisitos, né?! – Perguntou Fernanda ao reparar que Luana
nadava de volta.

- É o único espaço da cidade que traz som experimental. Mas esse cê vai curtir.
É da galera aqui de Búzios.

- Eu preciso mesmo me abrir um pouco mais. Eu só escuto música antiga...


- Ah, mas a década de setenta foi realmente especial pra música. Todo mundo
deu uma pirada. Secos e Molhados, Clube da Esquina, Mutantes...

- Transa do Caetano, Tim Maia Racional, A Tábula da Esmeralda.

- Copacabana Mon Amour do Gil, Previsão do Tempo do Marcus Valle, Di


Mello...

- Cês tão com um discursinho igual ao desses velhos aposentados que


frequentam encontro de moto – Disse Luana enquanto saía da água, subindo pelas
pedras. – “Antigamente é que tinha música boa. Não era essa merda de Anitta e Pabllo
Vittar”.

Os dois riram.

- “Cê tem que ouvir Led, cara. Creedence, The Doors, Deep Purple, isso que é
música de verdade” – fazia uma voz grave e rouca.

- Smooooke on The Waaaateeeer – Cantou Léo, entrando na brincadeira.

- Mas, pô, pensa bem. Tirando a tendência reacionária dos encontros de moto, é
a mesma coisa que acontece nas rodas de samba. Fica nesse eterno saudosismo, não tem
qualquer espaço para a experimentação, para o novo – ponderou Luana.

- Trem das 11 é o Born To Be Wild da galera cirandeira – concluiu Fernanda.

Noite

- Qual é o teu critério, Marina?! Como definir se uma arte é grandiosa ou


medíocre?

Luana falava com um tom de indisfarçável indignação. As duas estavam


bebendo no depósito, tinham acabado de abrir a primeira cerveja.

- A gente sabe sentindo. A grande arte é transcendente, é profunda.

- Pra mim isso não passa de discurso burguês. Eu transcendo ouvindo Racionais,
ou Zeca Pagodinho. Não preciso ver um filme do Lars Von Trier.

- São coisas diferentes, né?! Não desqualifico a cultura popular, mas tá mais pra
entretenimento do que pra arte mesmo, no sentido elevado da palavra.

- Sentido elevado? A diferença é que se trata de um dinamarquês ególatra que


explora uma estética violenta. Esse tipo de coisa envelheceu mal, cara. Nos últimos anos
a extrema direita voltou a se apropriar da violência como forma de expressão. Não dá
pra ver um filme desses, ou mesmo do Tarantino, e ignorar as similaridades estéticas
com os movimentos reacionários, como o fascismo.

- Que simi....

- Isso sem falar da noção hierárquica contida na sua fala – interrompeu Luana. –
O burguês é sempre superior, mais sofisticado.

- Que similaridades, gata?! Você tá viajando! Eu tô falando de uma coisa e você


de outra, pô!

- O fascínio pelas armas e por soluções violentas para os conflitos.

Marina deu de ombros.

- Ah, eu gosto! – disse buscando por fim ao assunto.

- Saquei. Então é o seu gosto pessoal que define a graaande arte – o tom de
deboche se tornou escancarado. – Já parou alguma vez para se perguntar de que forma
as suas preferências são desenvolvidas?

- Porra, Lu! Tem hora que cê é insuportável. Puta que o pariu!

Luana riu. Nisso ela concordava com a amiga.

- Vem cá, Mari! – disse enquanto a abraçava e beijava na bochecha. – Sabe que
eu te amo, né?!

- OLHA A INDECÊNCIA! – gritou uma voz de homem.

As meninas se viraram assustadas.

- Ah, Vini! Caralho! – disse Marina.

- Assim vocês ofendem a família tradicional brasileira, pô! – Vinicius vinha


rindo, acompanhado de Leandro e João.

- Foda-se a família tradicional! – e deu um beijo na boca de Marina, apertando a


bunda, fazendo graça.

Todos riram. Marina ficou vermelha, sem reação.

- Ué?! Cadê a Fer? Ela não ia vir com você, Léo?!

- Ela furou. Pra variar, né?! Sempre tem uma desculpinha.

Pegaram mais cervejas e atravessaram a rua. Ficaram ali bebendo na calçada, em


frente ao depósito. Ao lado havia um bar mais movimentado, com música ao vivo.

- Porra, o repertório desses bares não muda. Olha o naipe do público – comentou
João.
O músico tocava uma versão de Oceano, do Djavan.

- Aquele gordo com bigode fica me encarando.

- É que você é linda, Mari – justificou João.

- Foda-se. Ele tem uma puta cara de tarado, tá me incomodando.

- Aliás, naquela mesa ali parece que é só tiozão reaça – observou Vinicius. – Eu
aposto um baseado que eles são dessa galera com paranoia anticomunista.

- Tá julgando estereótipo, Vini. Nada a ver. São só uns tiozão tomando cerva.

- Em que país se tá vivendo, Jão?! A aposta tá de pé, se quiser conferir – deu


uma risada pra concluir.

- E tu vai fazer o que pra confirmar? Vai lá perguntar: “Boa noite. Vocês odeiam
comunistas?”.

- Eu sei como fazer isso – interviu Luana. – Vamos conversar mais perto deles.
Eu vou puxar um assunto e vocês dão continuidade, como se eles não estivessem ali.

Enquanto conversavam foram se aproximando mais do bar. A mesa dos supostos


reacionários era a ultima sobre a calçada. Luana iniciou um assunto sobre política,
falando um pouco mais alto do que o normal e deixou a conversa correr naturalmente.

- A questão toda foi que a Dilma não soube ou não quis articular com os
canalhas. Você diz que o golpe foi pra tirar o PT, que as elites não suportam o partido,
mas enquanto Lula estava no poder não aconteceu nada parecido – dizia Vinicius,
desenvolvendo o tema trazido por Luana.

– Isso porque ele sabia que não podia enfrentar de uma vez o que foi construído
em séculos de história. Simplesmente aceitou que era preciso fazer vista grossa e
negociar com os ratos – ponderou Leandro.

- Isso é verdade – concordou Luana, com voz firme. – Mas por outro lado não dá
pra ignorar o viés misógino do golpe contra a Dilma. Isso fora o aumento do
reacionarismo nos últimos anos, com a Lava Jato e o surgimento desses grupelhos tipo
MBL e Vem Pra Rua. Acontecimentos dessa magnitude são sempre complexos, com
camadas de entendimento. É preciso contextualizar.

- Você tá certíssima, amiga – assentiu Marina. – Mas o pior pra mim foi ver o
Bolsonaro elogiando o torturador... Qual o nome mesmo?

- Brilhante Ustra.

- Isso. Ele fez isso no congresso, naquela situação e...

- EI, IDIOTAS! POR QUE NÃO VÃO DISCUTIR ESSA MERDA EM


CUBA?!
Todos se viraram assustados. Por um instante, no calor da conversa, até
esqueceram que haviam iniciado o assunto para tentar provocar. O grito veio da mesa ao
lado. Eram três homens, o mais velho é quem havia reagido e os encarava com ódio no
olhar. O gordo com bigode já não estava mais ali.

- Vai se foder, fascista! Ninguém aqui falou com... – foi dizendo Vinicius, mas
antes que terminasse a frase foi atingido no peito por um cigarro aceso.

O homem que jogou o cigarro ficou de pé, o que tinha gritado antes também se
levantou. O terceiro deles, por outro lado, permaneceu sentado, sem se envolver. A
situação começava a sair do controle e Vinicius não demonstrava intenção de recuar.
Marina o puxou pela camisa:

- Deixa isso pra lá. Vambora.

Vinicius sentiu o tremor na mão dela. Ele estava de frente para os dois homens,
os quatro amigos estavam logo atrás, sem saber como reagir.

- Não gosto de petistas – disse um deles, encarando o rapaz de forma


desafiadora.

- Vamo, Vini. Deixa isso pra lá – pediu João.

Vinicius respirou fundo. O músico cantava “Papel Machê” ao fundo, mas os


fregueses estavam mais interessados em assistir a cena que se desenrolava na calçada.

- Ok!

Virou-se e foi caminhando em direção ao depósito de bebidas, os demais o


acompanharam. Haviam se afastado apenas uns poucos metros quando um dos homens
arremessou um copo de cerveja que, apesar de ter sido jogado em direção ao grupo, se
espatifou contra o asfalto, sem os acertar diretamente. Cacos de vidro e respingos de
cerveja atingiram as pernas de Leandro e Luana, que vinham atrás. Imediatamente
todos se puseram a correr. Vinicius ainda olhou para trás uma última vez, apenas para
mostrar o dedo médio.

Alguns quarteirões à frente eles já diminuíam o ritmo.

- Jão – foi dizendo Vinicius, ofegante, com dificuldade para respirar – cê me


deve um baseado.

***

- Chega aí, Bolota!


Ele estava parado, fumando um cigarro. Mateus o chamava da entrada do Don
Caballero, do outro lado da rua, com um sorriso no rosto. Renato jogou o cigarro na
sarjeta e atravessou em sua direção.

- Não fica ali, não, cara – disse Mateus enquanto apertavam as mãos. – O
Alemão do restaurante odeia a galera que vem aqui. Já tava te encarando.

- Ah, sim. E já começou o... – Antes que terminasse a frase, Mateus já havia
sumido dentro do bar.

Da calçada em frente conseguia ouvir o som da banda tocando. Resolveu entrar.

- Opa!

- Ah, ei! E aí, Fred?! Beleza?

- Tá 10 conto a entrada.

- Aqui. E me vê uma cerva também.

Pegou a cerveja e o troco. O balcão ficava na entrada, mais a frente havia uma
área aberta, com algumas plantas, uma galera dispersa em pequenos grupos. Entrou por
uma porta e deu na sala, onde o MOS se apresentava. O ambiente estava envolto em
fumaça e a única iluminação vinha de uma mangueira de luz amarelada no chão, aos pés
do trio que tocava concentrado. O público parecia enfeitiçado com o som.

Avistou Marina do outro lado da sala, de frente para a banda. Encostou-se à


parede e acendeu um cigarro. Carregava no bolso o poema. O havia transcrito num
guardanapo e pretendia, ao entrega-lo à Marina, encenar tê-lo escrito em súbita
inspiração.

***

O show acabou. O publico foi saindo. As horas passando. E Renato ainda bebia
tentando encontrar coragem.

Estava bastante bêbado, sentado num banco e debruçado sobre o balcão. Tentava
desenvolver uma conversa com Fred, que demonstrava pouco interesse em estender o
assunto. O bar estava vazio, apenas Marina e seu grupo de amigos ainda faziam hora
por ali.

Interagiam animados ao som do Red Albúm do Fugazi.

Renato aguardava uma oportunidade para abordá-la.

- Me vê um Dondrink – disse, decidido a agir logo em seguida.


- Que cheiro é esse? – perguntou João.

- Também tô sentindo! – confirmou Luana.

- Eu conheço esse cheiro... – Léo acrescentou.

- CARALHO! – Mateus passou por eles andando rápido, foi até a porta de
enrolar do bar e a fechou de uma só vez, com estrondo. – Alemão filho da puta!

- É criolina – esclareceu Fred ao grupo que olhava a cena com curiosidade. – O


Alemão do restaurante aqui da frente joga na nossa calçada pra incomodar.

- Quem vai salvar? – Mateus se virou rindo, ignorando o que havia acabado de
acontecer.

Renato engoliu o Dondrink e se levantou para entregar o poema a Marina. De pé


pode sentir o quanto estava bêbado.

- Eu tenho um aqui – disse Léo. – Só estou sem seda.

- A minha também acabou – Mateus colocou a mão na testa. – Tem aí, Vini?

- Aqui, Mari! – Disse Renato baixinho estendendo para ela o poema.

- Ahnn?! Bolota?! Nem vi que tu tava aqui – olhou o papel. – Não é o ideal, mas
vai servir. AQUI! O BOLOTA ARRUMOU UM SEDANAPO – e o entregou para Léo.

- Boa, Renatinho! – Léo olhou para o papel que tinha na mão. – Porra, tem uns
bagulho escrito aqui... Ah, é o que tem, vai assim mesmo!

Renato assistiu incrédulo e sem reação o que se deu a seguir. Leandro cortou o
guardanapo, colocou a maconha desbelotada, enrolou, passou a goma e acendeu.

O baseado foi passando de mão em mão até chegar a sua vez.

Um tanto zonzo, levou o cigarro até os lábios. A fumaça queimou a garganta.


Tossiu, tossiu, tossiu. A pressão baixou, ouviu uma guitarra suja, uns berros tortos.
Sentiu que ia desmaiar, mas teve tempo de ser acometido por uma breve epifania:

Sua poesia era intragável.


INSOLAÇÃO
Sábado

Quatro e cinquenta da manhã. O despertador toca.

Sonolento, sem despertar por completo, Fábio estende a mão até o celular e ativa
a função soneca. Mais dez minutos de descanso. Deitada ao seu lado, Carla apenas se
vira e puxa a coberta. Estavam exaustos e naquele momento nada poderia ser mais
atrativo do que permanecer no quarto, com o ar condicionado ligado, debaixo das
cobertas.

Sentiam-se confortavelmente protegidos. Imunes à realidade, acolhidos por


sonhos. Imersos na dormência da manhã. A única angústia consistia no inadiável
despertar. Queriam dormir, somente. Dormir e sonhar, despreocupados, por mais
algumas horas.

Mas tinham combinado de passar o fim de semana em Cabo Frio.

Há semanas programavam, entusiasmados, a viagem. Ir para o litoral e quebrar a


rotina. Enquanto planejavam tudo parecia maravilhoso: sol, mar, sorrisos de alegria.
Favam com animação sobre o assunto. Devaneavam fantasiando os mais incríveis
cenários. A empolgação, no entanto, não evitou que acabassem deixando tudo para
arrumar na véspera. Após um dia cansativo de trabalho.

Fábio concluiu a ultima aula em Campo Grande às oito da noite, voltou para
Santa Cruz e, chegando em casa, encontrou a esposa a beira de um ataque de nervos.
Sobrecarregada com os preparos da viagem.

Ansiosos. Cansados. Estressados.

Não conseguiam se entender. Discutiam por detalhes fúteis.

- Você não vai levar esse short florido horroroso, né?! – dizia ela revirando a
mala que ele arrumava.

O despertador toca novamente. São cinco horas. Eles haviam ido dormir quase
uma da manhã. Fábio se senta na cama. Zonzo. Fatigado. Pensando em desistir de tudo
e voltar a dormir.

Carla se levanta sem dizer nada e vai direto para o banheiro.

Em vinte minutos os dois estão no carro, um ao lado do outro, em silêncio.


Cansados e de mal humor. Ela tenta se animar pensando no quanto desejou essa viagem.
Ele dá a partida. Carla sorri, liga o som e vai pulando as músicas enquanto o carro
começa a se mover. Procura uma música alegre na playlist conjunta do casal. Quer um
fim de semana feliz e, como é supersticiosa, acredita que a primeira canção do dia é
determinante.

- Adoro essa! – diz e começa a cantar junto, colocando a mão sobre a coxa do
marido.
Caminhando contra o vento
Sem lenço e sem documento
No sol de quase Dezembro
Eu vou
O sol se reparte em crimes
Espaço naves, guerrilhas
Em cardinales bonitas
Eu vou
Em caras de presidentes
Em grandes beijos de amor
Em dentes, pernas, bandeiras
Bomba e Brigitte Bardot
O sol nas bancas de revista
Me enche de alegria e preguiça
Quem lê tanta notícia
Eu vou
Por entre fotos e nomes
Os olhos cheios de cores
O peito cheio de amores vãos
Eu vou
Por que não, por que não
Por que não, por que não
Ela pensa em casamento
E eu nunca mais fui à escola
Sem lenço e sem documento
Eu vou
Eu tomo uma Coca-Cola
Ela pensa em casamento
E uma canção me consola
Eu vou
...

***

Fábio está com trinta e cinco anos e é professor de história. Dá aula em três
escolas diferentes e, entre lecionar, corrigir provas, participar de reuniões e cuidar das
demais obrigações do dia-a-dia, a vida vai passando despercebida. Em algumas noites se
sente ansioso e não consegue dormir. Fica rolando na cama por horas até desistir de
pegar no sono. Acaba passando a madrugada deitado no sofá da sala, com a televisão
ligada.
A esposa, Carla, tem cinco anos a menos do que ele. É concursada na Prefeitura
do Rio como auxiliar administrativo e trabalha num prédio do centro da cidade, o que
torna a sua rotina bastante complicada. Acorda todos os dias às quatro e meia da manhã,
pega um ônibus para Campo Grande e de lá embarca no trem para a central.

Durante a semana só se encontram a noite em casa. Cansados, indispostos. Mal


conversam e mal se tocam. Sexo se tornou um evento raro, triste, sem paixão e sem
vigor. Quase como uma mera necessidade fisiológica inconveniente. Contudo Fábio
sequer imagina a vida de outra forma.

Entrega-se resignado a um cotidiano monótono e desgastante.

- Eu te amo – diz regularmente à esposa.

Ao falar essa frase a sua voz assume um tom invariavelmente frio, insensível,
inexpressivo. Não soaria diferente se dissesse “acho que vai chover mais tarde” ou “hoje
vi um acidente na Br-101”. São palavras vazias, repetidas várias e várias vezes,
buscando assim torná-las verdadeiras. Mas não questiona a natureza dessa relação.
Estão juntos há doze anos. Conformou-se com esse destino e aguenta a rotina como a
um suplício inescapável.

Nos finais de semana fazem churrasco com os amigos, ou encontram a família


dele, ou os pais dela. Tudo dentro do mesmo padrão. Tudo sempre muito parecido.

Fábio se surpreendeu na noite em que, já deitados, prontos para dormir, ela


disse:

- A gente podia viajar, queria passar um fim de semana na praia.

- O que?

- Pensei em Cabo Frio. Faz anos que não vamos pra lá.

***

Há pouco movimento nas ruas. Atrás do volante, Fábio observa com curiosidade
o bairro tingido de madrugada e aos poucos vai se sentindo mais desperto.

Mendigos dormindo nas calçadas, um ou outro bêbado remanescente da noite de


sexta perambulando, duas travestis esgotadas numa esquina. Lixo nas ruas, pichações. O
incipiente alvorecer iluminando a miséria dos subúrbios, como se houvesse uma beleza
profética permeando toda aquela decadência, todo aquele abandono. Na Avenida Brasil
o sol enfim se ergue no horizonte. Uma entidade onipresente, onisciente, onipotente.
Violáceo, místico e sagrado.
Carla está empolgada e conta fofocas sobre os colegas de academia. Fábio finge
interesse no assunto enquanto dirige concentrado. Aos poucos vai sendo contagiado
pelo bom humor da companheira e pela beleza impecável da manhã.

O trânsito se torna mais lento, os carros enfileirando-se. Engarrafamento.

- Tá tendo obra nesse trecho mais a frente – diz ele, mantendo a calma.

Pouco tempo depois o carro para de vez. Carla baixa o vidro e estica a cabeça
para fora, enxergando somente uma fila interminável de carros. Alguns motoristas
buzinam, outros xingam os que estão buzinando. O casal apenas espera. Ela chama um
jovem que passa vendendo guloseimas no corredor entre os carros.

- Ei, garoto! – o rapaz se aproxima. – O que que aconteceu?

- Oi, dona. Capotou um carro lá na frente onde tá tendo a obra. Acho que o
motorista já era. Vai demorar. Quer uma bala? Um biscoito?

- Puta que o pariu! Que merda! – e depois de uma breve pausa. – Me dá um


desse aí.

Comeram o biscoito de polvilho ouvindo o barulho das sirenes distantes.

Horas de engarrafamento. Uma parte da manhã desperdiçada. O desânimo


crescente. Voltam a andar. Quando chegam à ponte Rio-Niterói Carla recobra a
empolgação olhando os barcos na Bahia de Guanabara. Aumenta o volume do som,
cantarola as músicas, batuca nas coxas e beija o rosto de Fábio.

Na Via Lagos está cochilando.

***

Deixam rapidamente as malas na pousada e seguem direto para a praia. Pisam na


areia, aproximadamente em frente ao Malibu, por volta de uma hora da tarde. O céu
azul e o sol pleno.

No seu máximo vigor, esplendor e virulência.

Sentam-se sob o guarda-sol do primeiro quiosque que encontram e pedem um


peixe e uma cerveja. Carla tira a roupa e fica somente de biquíni, um bem fininho,
enfiado na bunda. O marido repara com desconforto e troca com ela um olhar de
desaprovação. Ele sequer havia se dado conta de que a mulher estava com o corpo tão
sarado.

“Também, todo dia passa horas na academia”.


Ele tira a camisa e se estica na cadeira.

- Biquíni novo?

Ela ignora a pergunta.

- Não acredito que você veio com esse maldito short florido – ela diz enquanto
estende a canga na areia. – Me passa o protetor.

- Ué?! Achei que tava com você.

Ela o encara com raiva por um instante. Depois deita de bruços e fica olhando o
celular.

As caixas de som do quiosque têm o grave estourado e emanam um sertanejo


universitário, com um chiado desagradável. Fábio não conhece as músicas. Repara que
a esposa cantarola baixinho, acompanhando. Um grupo de garotos vem se aproximando
com um cooler de cerveja e uma caixa de som tocando um pagode. Param bem ao lado
do casal. A faixa de areia da praia está bem cheia de gente, restando pouco espaço.

As músicas se misturam num barulho incomodo e indecifrável. Carla se mostra


indiferente, concentrada na tela do celular. Fábio percebe que dois dos rapazes olham
para a bunda dela, comentando animados. Constrangido, apenas disfarça e finge não ter
notado. De repete eles começam a brincar de luta, se agarram e caem no chão, jogando
areia pra todo lado. Ele vira o rosto buscando proteger os olhos e, como está suado, a
areia gruda na lateral do seu corpo.

Levanta-se emputecido, mas é ignorado. A sua indignação destoa, solitária e vã,


em meio à alegria geral do entorno. Resolve então mergulhar. Deixa os chinelos ao lado
da cadeira e anda em direção ao mar, sentindo-se um estranho. Os olhos ardendo por
conta da claridade. O sol torrando a pele.

Olha ao redor e pensa: “Porra, só eu que não tô me divertindo aqui?”.

Encosta os pés na água. Gelada. Fica em dúvida se vai mesmo encarar. Dá mais
uns passos e deixa o mar espraiar sobre os pés, atingir a canela. Hesita. Um passo de
cada vez pra acostumar com a temperatura. Bruscamente uma criança o ultrapassa
correndo. A água gelada espirra nas suas costas, pegando-o desprevenido. Contorce-se e
grita:

- FILHA DA PUTA!

A garotinha nem se dá conta e brinca de pular na espuma das ondas. Sente-se um


ranzinza. Respira fundo. Dá uma corridinha e pula de barriga na primeira onda que
aparece. O corpo se contrai ao submergir pela primeira vez na água fria. Começa a
nadar e logo se acostuma com a temperatura. O mar está calmo e translúcido, com
ondas pequenas e sem força. Vai mais para o fundo, a água batendo no peito. Nada.
Afunda.
Sente-se bem, afinal.

Fica um tempo por ali distraído, curtindo aquela sensação, até que sente algo
tocar o seu braço esquerdo. E logo uma ardência. Contém o berro que ameaça sair e vê,
boiando tranquila, rente a ele, uma água-viva com enormes tentáculos vermelhos.
Afasta-se o mais rápido que consegue em direção a areia. Sente que quer chorar, sem
saber se de frustração ou de dor.

Segura as lágrimas.

Vaga desnorteado, procurando Carla entre a multidão. Famílias, vendedores


ambulantes, crianças felizes e agitadas, um grupo jogando altinha, gente correndo de
sunga, jogando frescobol. Avista-a mais a frente. Ao lado dela tem um homem sarado,
de cócoras. Eles conversam se olhando de frente e trocando sorrisos.

- Ei, amor! Carla! – Diz alto enquanto se aproxima apressado. – Uma água-viva
me queimou.

Passa a mão no local da queimadura enquanto fala. Sua voz soa manhosa, um
tanto ridícula, como a de uma criança buscando o consolo da mãe. Carla e o
desconhecido interrompem a conversa e se viram para ele. O homem o olha de cima a
baixo com desdém e, num tom de superioridade e deboche, intervém:

- Não toca. Vai piorar, cara.

A cena desperta a curiosidade. Algumas pessoas se aproximam, se aglomeram


ao redor. Carla se levanta. Ameaça dizer algo, mas é interrompida por um dos garotos
do grupo ao lado, um dos que antes rolava na areia brincando de luta.

- Tem que mijar em cima, moço – afirma.

O rapaz está visivelmente bêbado. Segura uma lata de cerveja.

- O que? – surpreende-se Carla.

- Para de arder na hora, já fiz muito isso – explica o garoto.

- É verdade! – defende o homem sarado, parecendo se divertir com a situação.

As pessoas aglutinadas ao redor começam a defender a tese. Todos dizendo que


Fábio deveria urinar no braço. Ele se sente constrangido, o braço parece arder ainda
mais. Fica sem reação e tenta argumentar:

- Mas eu nem tô com vontade agora...

- Eu te ajudo, tio.

O garoto vira o resto da cerveja na areia e, num esforço inútil de ser discreto, se
ajoelha ao lado do cooler. Começa a mijar dentro da lata vazia. Cada vez mais curiosos
chegam pra ver o que está acontecendo. Carla, envergonhada, dá uns passos sutis para
trás, espremendo-se, disfarçando-se, entre os espectadores.

- Aqui. Agora vai melhorar – volta o menino estendendo a lata em direção a


Fábio.

- Não precisa. Já nem tô sentindo mais nada – mente.

“Teu braço tá vermelho”. “Vai ter febre depois”. “Deixa de frescura”. “É pro teu
bem”. Pressionam os curiosos. Todos solícitos, todos subitamente especialistas em
queimaduras por água-viva. Intimidado, sem ter como escapar, ele cede. O garoto
segura o braço atingido, afastando-o um pouco do corpo. Fábio vira o rosto para o outro
lado e sente o líquido quente escorrer pelo membro.

- Viu, aposto que já tá melhor.

Ele assente com a cabeça, mesmo sem sentir qualquer alívio. Apenas mais
incomodado agora, tanto pelo odor de urina quanto pela humilhação a que foi
submetido. Os curiosos se dispersam comentando alegres. Alguns riem abertamente.

- Tá bem? – pergunta Carla enquanto se aproxima.

Tudo nela transparece desaprovação. A voz, os trejeitos, a expressão facial, o


olhar. Ele se sente culpado, patético.

- Uhum.

- O seu peixe, senhor.

O homem coloca sobre a mesa do casal um peixe assado, com alface e um aipim
encharcado de óleo.

- Algo mais?

- Mais uma, por favor – pede Carla, mostrando a garrafa vazia de cerveja. E,
após o garçom se afastar, acrescenta para o marido: - Vai lavar o braço, não vou comer
com esse fedor terrível.

***

Voltaram para a pousada somente no final da tarde. Apesar de terem


permanecido na praia depois do ocorrido, perdurou uma tensão silenciosa entre o casal.
Beberam mais algumas cervejas e Fábio cochilou deitado na canga.

Chegando ao quarto, ele foi direto para o banheiro. Sentia-se mal do estômago.
Já não conseguia distinguir a queimadura da água-viva. Todo o corpo estava vermelho e
ardia. Enquanto sofria sentado no vaso, questionava se a culpa era da insolação, da
cerveja ou do peixe que haviam comido. Provavelmente da combinação.
Pancadas na porta.

- EI! NÃO DEMORA! PRECISO USAR O BANHEIRO TAMBÉM!

Jogou uma água no corpo rapidamente e saiu. Carla entrou correndo,


empurrando-o, batendo a porta atrás de si.

Abriu uma cerveja e sentou no sofá. Definitivamente a viagem não estava


ocorrendo como imaginou. Só queria um fim de semana especial com a esposa, mas
tudo havia desandado. Estava um pouco bêbado e começava a se sentir deprimido.

Carla saiu do banheiro só de calcinha. Fábio a observava. Ela ligou o celular na


caixinha de som (Sade) e saiu andando e dançando em direção à cozinha. Voltou com
uma garrafa de tequila embaixo do braço, dois copos de dose e, na outra mão, um
hidratante. Parecia genuinamente animada. Ele estava um pouco confuso.

- Não era pra ter esquecido o protetor. Estamos parecendo dois camarões – disse,
rindo. – Mas pelo menos tô sexy com essa marquinha – acrescentou mostrando o
contraste do peito com a pele do entorno.

- Tá um tesão, meu amor – ele estava acuado, desconfiado.

- Ainda bem que lembrei de trazer o hidratante, mas primeiro vamos tomar uma
dose – enquanto falava abria a garrafa de tequila e servia. – Hoje vamos celebrar.
Estamos em Cabo Frio, meu bem!

Brindaram e engoliram a tequila. Sem sal e sem limão.

- Sem fazer careta – ela riu. – Agora vamos a isso – pegou o hidratante e
despejou na mão dele.

Enquanto Fábio acariciava o corpo da esposa, espalhando o creme, ela fazia


trejeitos provocativos. Segurava e apertava o peito, emitia gemidinhos, mostrava o
corpo. Ele estava bêbado e se sentia constrangido. Nunca a tinha visto dessa forma.
Estava irreconhecível.

- Passa mais na bunda, benzinho.

Ela estava de pé, de costas, na frente dele. Puxou a calcinha até ficar socada e
empinou a bunda bem diante do rosto do marido, que permanecia sentado no sofá e
apenas obedecia, passando a mão com suavidade nas nádegas da mulher. Ela olhava-o
de cima, com o pescoço envergado para trás. Não aguentou ficar nesta posição, se
desequilibrou e caiu sobre ele, rindo.

Só então Fábio percebeu o quanto estava bêbada.

- Agora é a sua vez! Mas antes...

Ela pegou a garrafa de tequila e serviu mais duas doses.


- Não sei se é uma boa.

- Cala a boca e bebe!

Viraram os copos.

Carla então começou a passar o hidratante no corpo dele. Primeiro no rosto,


depois ombro, costas, barriga. Desceu para as pernas. Esforçava-se para ser sensual,
dando beijinhos e esfregando os peitos. Fábio se sentia enjoado e desconfortável.

- Agora vamos passar um pouquinho aqui também – e puxou o short dele.

A princípio ele tentou resistir, estava vestido apenas com aquele short e não
queria ficar pelado. Mesmo com a esposa, jamais se sentia confortável com a própria
nudez.

Ela tentava tirar aquela ultima peça de roupa e ele a segurava firmemente, com
as duas mãos.

- Larga, caralho! – impacientou-se enfim a mulher.

Fábio cedeu obediente, submisso, intimidado. Ela tirou avidamente o short e o


arremessou para longe, com satisfação. O membro exposto tinha um aspecto inofensivo.
Estava murcho, molengo, encolhido, como uma presa acuada. Carla colocou um pouco
do hidratante na mão e começou a acariciar o entorno, as bolas e, por fim, aquele pênis
sem vida.

Fábio suava, estático, nervoso. Ela insistiu por intermináveis minutos, até aceitar
que não haveria qualquer reação. Mas não pretendia desistir. Queria, precisava, se sentir
desejada.

Pegou a mão direita dele e a trouxe ao meio das suas pernas. Segurava-a com
firmeza e se esfregava, deixando-se envolver numa sensação gostosa de prazer. Estava
de olhos fechados, concentrada, entregando-se aos sentidos, as necessidades do corpo.

Soltou a mão, acreditando que o movimento continuaria, mas ele a recolheu


imediatamente. Ela o olhou, como se subitamente voltasse à realidade. Fábio estava
com uma expressão de pânico, o pau ainda flácido.

Uma mistura confusa de sentimentos a atravessou. Decepção, dó, humilhação,


frustração, indignação. E subitamente tudo isso convergiu em raiva, no mais límpido
ódio contra aquela figura brocha e ridícula encolhida ao seu lado no sofá.

- NÃO AGUENTO MAIS ESSA MERDA! – explodiu!

Ele arregalou os olhos.

- Eu gosto de sacanagem, porra! Não te entendo, você nunca tá com tesão.


NUNCA! Em todos esses anos não descobri quais são os seus fetiches. Não é possível
que você se sinta satisfeito com esse sexo sem graça que a gente faz uma vez por mês.
Sem uma safadeza, sem uma sujeira, sem qualquer putaria.

- Mas amor... – balbuciou ele.

- Não, nem começa. Eu não quero ser seu amor agora. Quero ser a sua piranha,
sua vadia. Eu... Eu...

Fábio estava incrédulo. Não imaginava que ela fosse capaz de falar desta forma.

- Por que tá dizendo essas coisas? Você tá sendo vulgar! Não tô te


reconhecendo... Acho que bebeu demais.

- Eu sou vulgar! É isso o que você não entende! É por isso que você é corno,
benzinho. Eu fodo na academia, no trabalho. Já dei pra vizinhos nossos. Eu tenho tesão,
tesão pra caralho e cansei de reprimir por sua causa.

Ele queria ter algo a dizer. Não conseguia acreditar no que escutava. Era como
se estivesse deslocado da realidade, observando a cena de fora. Um espectador de uma
ficção medíocre num teatro amador. Não, não, aquilo era um pesadelo. Logo iria
despertar.

Depois de começar, Carla não se conteve mais. As palavras jorravam, sem filtro
e sem pudor. Fábio sentia algo obscuro emergindo ao redor, emanando da esposa,
tomando as paredes, os móveis. Aos poucos o desabafo da esposa foi se tornando um
relato das suas experiências extraconjugais, com detalhes sórdidos, sem conter gestos,
exclamações, hipérboles.

À medida que ela avançava nas confissões, a confusão indistinta de sentimentos


que Fábio experimentava foi se tornando um borrão, apagando-se. Até que se viu
totalmente tomado por uma excitação que nunca havia sentido antes. Tornou-se
subitamente incapaz de raciocinar ou de reagir emocionalmente aos estímulos. Apenas
sabia que precisava de mais daquilo que estava recebendo.

- Agora você fica de pau duro, né?! Seu filho da puta! – disse ela
agressivamente, mas transparecendo um fundo de prazer. – Você é um merda mesmo –
e concluiu cuspindo na cara do marido.

Completamente alucinado de tesão, Fábio queria mais. Queria ser humilhado,


escrachado por aquela mulher que há tantos anos dormia ao seu lado e que ele jamais
tinha conhecido. Sem qualquer controle sobre si, começou a se masturbar.

Ela o puxou para o chão, sentou sobre o rosto dele e começou a se esfregar com
violência enquanto ele continuava com a punheta. Ambos estavam enlouquecidos,
bêbados, envoltos em um surto de desgaste emocional e excitação.
Na mesma posição que estava, Carla começou a mijar. Ele sentindo aquele jato
quente na cara, gemeu, teve espasmos e gozou. Gozou como nunca antes se havia
imaginado capaz.

- NÃO ERA PRA TER FEITO ISSO AGORA! – E largou um tapa estalado na
cara mijada do esposo.

Ela recolheu o esperma que estava espalhado sobre a barriga dele e o fez engolir.

- Eu tava só começando – riu maliciosamente.

E de fato estavam. Passaram o restou da noite experimentando as mais diversas


depravações. Foram até o limite das suas imaginações e corpos, até sentirem-se
completamente exaustos e apagarem no chão da sala.

***

Fábio acordou com dor de cabeça, nauseado e confuso. Demorou alguns minutos
para entender onde estava e o que tinha acontecido. A sala ao redor estava
completamente destruída. Tudo fedia a urina. Seu corpo doía.

Era coisa demais para digerir.

Onde estava Carla?

Era coisa demais para digerir. Não sabia o que fazer. Não sabia o que deveria
sentir.

Levantou apoiando-se no sofá. Não tinha muito equilíbrio. Era coisa demais...

Barulho de descarga.

Achou que ia desmaiar.

A porta do banheiro se abre.

Carla

Coisa demais para digerir.

Ela olha para o marido e sorri.

- Te amo – ela diz.

- Te amo.
DIABO
Madrugada de sexta para sábado

Alípio não conseguia dormir.

Sentia ansiedade e medo. Tentava montar um quebra-cabeça de informações


desencontradas, mas era impossível. Faltavam peças, muitas peças. Passou a noite
assistindo vídeos sobre globalismo, marxismo cultural, ideologia de gênero, comunismo
e pedofilia. Agora tudo estava embaralhado na sua mente. Sentia-se vulnerável e
revoltado. Havia visto em algum lugar que todas essas coisas se emaranhavam numa
enorme trama em que os líderes eram satanistas.

Tinha medo.

Ansiedade.

Pensava na sua neta, coitada. Ele já não viveria por muito mais tempo. Sara é
que estaria exposta a esse novo mundo degenerado.

Ela era a única pessoa que o visitava com frequência. E foi quem o alertou sobre
a ameaça comunista latente e o controle que eles têm dos bancos, dos governos, da
ONU, das grandes multinacionais, das universidades, dos meios de comunicação, etc.

Um mundo cruel, sem valores morais, sem salvação.

Sara dizia-se ANCAP. Para Alípio aquela sigla era novidade.

- ANCAP? Não sei o que é isso, querida.

- Somos anarco-capitalistas, vô.

- Na minha época anarquista era vândalo.

- Não, mas é diferente. A gente é conservador. A gente combate o comunismo e


o estado opressor.

- Não entendo, querida. Não entendo.

- Vou mandar uns vídeos pra você ver.

Assistia aos vídeos.

Esses vídeos levavam a outros e depois a mais outros. As pessoas pareciam


saber do que estavam falando. Bradavam sobre a defesa da família e sobre o combate à
corrupção. Sempre de forma muito enfática, indignada. Alípio ficava impressionado e
queria saber mais. Tudo era muito confuso, mas de alguma forma parecia fazer sentido.
O seu temor aumentava a cada vídeo que assistia. Não sabia quem estava
falando a verdade. Tudo era conspiração. Todos queriam enganá-lo e manipulá-lo.
Marxismo cultural, doutrinação comunista nas escolas.

O mundo estava mesmo perdido.

Pelo menos a sua sobrinha tinha conseguido escapar. E havia uma esperança.
Essas pessoas estavam se expondo na internet para denunciar o projeto comunista, para
fazer o povo acordar.

Esta noite Alípio viu pela primeira vez um youtuber relacionar a dominação
esquerdista ao satanismo.

“Será possível?!”

Aquilo era muito sério.

Precisava saber mais. Digitou na área de pesquisa: Comunismo e satanismo.

O algoritmo o levou as profundezas da internet.

O que viu o apavorou. Não conseguia dormir. Apagava a luz. Acendia a luz.
Andava até a cozinha, bebia um copo d’água e voltava para a cama. Depois ia ao
banheiro. Lavava o rosto.

“Estamos cercados de satanistas.”

Latidos.

Insistentes. Incomuns àquela hora.

“Não deve ser nada.”

Latidos.

“Já estou acordado, não custa dar uma olhada.”

Levanta-se e vai até a janela, mora no segundo andar. Ao se aproximar ouve


vozes. Entreabre a janela e vê um movimento estranho no beco. Dois homens parecem
intimidar um terceiro. Outros dois observam a cena.

Reconhece o que está sofrendo a agressão. É Paulo, um morador de rua que


costuma dormir por ali.

O beco está escuro. Não dá pra saber o que está acontecendo, a sua vista já não
funciona tão bem. Tenta entender o que dizem e não consegue. Mas sabe que algo está
errado. Pressente que um crime está prestes a acontecer.
“Vou ligar pra a polícia.”

Subitamente um dos homens acerta a cabeça de Paulo e logo depois os quatro


desconhecidos vão embora. O corpo fica estendido no chão.

Resolve descer para ver.

No beco se depara com Paulo morto. Uma poça de sangue. Pensa nos
comunistas. “Quem mais faria isso com o pobre Paulo? Nunca fez mal a ninguém.”

Pensa novamente em ligar para a polícia.

“Eles têm infiltrados em toda parte.”

Sente medo e volta apressado pra dentro de casa.

Passa horas na janela observando o corpo imóvel estirado no beco. A noite está
silenciosa e o céu estrelado.

Adormece no sofá da sala.

Manhã de Sábado

Acorda com o barulho das sirenes.

Anda sonolento até a janela e se debruça para fora. A claridade do dia o deixa
atordoado. Mas logo começa a assimilar as coisas. No beco, um policial anda de um
lado para o outro gritando com as pessoas.

- SE ALGUÉM VIU O QUE ACONTECEU AQUI ME FALA. VAMOS


PEGAR ESSES BANDIDOS!

As pessoas estão amontoadas ao redor.

No centro de tudo, o corpo.

Alípio vai tomar banho. Sua cabeça está acelerada. Seu raciocínio, confuso.

Medo. Ansiedade. Paranoia.

Alípio sai do banho.


Achou que se sentiria aliviado, mas nada mudou. Procura seus ansiolíticos no
banheiro e não encontra. Anda pela casa.

“Ah, eu não tomo mais remédios.”

A sua neta o havia proibido.

- Quem te recomendou isso, vô? – questionou uma tarde ao vê-lo tomar uns
comprimidos.

- O meu psiquiatra. Ele disse que vai me ajudar a me sentir melhor. Os últimos
exames mostraram que tô com um princípio de esquizofrenia. Ele me explicou os
termos técnicos, mas não lembro... Qual é mesmo o nome?... Antipsicótico, eu acho.

- Deixa eu ver isso – pegou a caixinha de remédio e passou o olho com ar


compenetrado. – Isso é veneno. Eles tão te manipulando, Líp. Não pode confiar nessa
medicina dita convencional – simulou aspas com os dedos, ressaltando foneticamente a
ultima palavra.

- Mas em quem eu vou confiar então, meu amor.

- Eu conheço um terapeuta holístico MA-RA-VI-LHO-SOO. Amicíssimo. Essas


coisas aí que te passaram vão te deixar pior. Esse meu amigo vai te guiar pra cura
emocional. Autoconhecimento e purificação.

- Como assim?

- Normalmente ele trabalha com meditação e florais.

- Florais?

- Sim, florais.

- O que são?

- É um elixir feito à base de flores. Tudo natural e muuuito bem estudado. Nada
dessas químicas tóxicas que você tá tomando.

Na semana seguinte visitou o tal terapeuta. O rapaz o olhou, fez uns sons
esquisitos e uns movimentos teatrais. Disse sentir uma energia positiva reprimida e que
Alípio precisava de uma cura espiritual profunda. A ansiedade, as alucinações, tudo era
fruto do excesso de negatividade que ele vinha absorvendo sem se dar conta.

No mesmo dia Sara jogou fora todos os remédios que ele tinha em casa. O fez
prometer que não voltaria àquele psiquiatra charlatão e que faria o tratamento
homeopático com florais.

Haviam se passado algumas semanas desde que começou o novo tratamento. A


confusão mental vinha aumentando. Começava a sentir que o Diabo o estava rondando.
Não o tinha visto, apenas sentia a sua presença.
Queria ir até a janela ver o que estava acontecendo. Sabia, porém, que nesse
exato instante ele estava lá, no beco, à espreita, olhando em direção a sua casa.

Tarde de Sábado

Ouve um barulho na cozinha.

Desperta.

Havia pegado no sono novamente. Sem perceber.

Suas mãos tremem.

Levanta. Vai até a cozinha. Nada.

Volta. Olha pela janela.

Calmaria. Apenas uma mancha de sangue solitária.

Noite de Sábado

Desconfia que o Diabo possa ter entrado em sua casa. Sente cada vez mais
intensamente a sua presença. Começa a confabular. É possível de que os comunistas
tenham matado Paulo como oferenda, ou em alguma espécie de ritual satânico.

“Eu não devia ter sido enxerido. Me tornei uma testemunha”.

“E se alguém me viu ali?”

“E se o Diabo leu a minha mente? Ele então sabe que eu sei.”

“Os comunistas virão me pegar.”

“Tenho que sair daqui.”

Pega uma faca na cozinha e a coloca por dentro da calça, na cintura. Sai de casa.
Descabelado e com ar desvairado. Desce as escadas, arfando, com manchas de suor na
camisa, sob as axilas. Está sem comer nada desde a noite anterior.

Para em frente à mancha de sangue.

“Parece uma mancha de óleo de motor.”

Olha fixamente para ela. Sente que ela o encara de volta.

“Óleo do motor humano.”

Sem desviar o olhar, liga para Sara.


Chama uma, duas, três, quatro vezes.

- Lip?

- Oi. Oi. Oi, amor.

- Tá tudo bem?

- Ele tá me encarando.

- Quem tá aí? Tá tudo bem?

- O Diabo. Ele tá me encarando.

- O que? Tá tudo bem aí, vô? Não tô te entendendo.

- Foram os comunistas. Eu vi tudo, querida. Eu vi tudo.

Silêncio.

- Me espera aí no café da esquina. Tô indo praí agora.

Silêncio.

- Lip? Ei, Lip? Tá me ouvindo.

Pisca os olhos, como se despertasse de um transe. Olha ao redor. Perdido.


Percebe uma garotinha parada na porta de uma casa, do outro lado da rua. Ela o observa
com olhar curioso.

- Vô? Ainda tá ai? Fala comigo.

- Oi?! Ah, oi querida. Tá bem. Tô indo pra lá.

Desliga.

Entra no café. Está quase vazio. Apenas dois jovens numa mesa. A garçonete o
olha atravessado e leva um instante até reconhecê-lo.

- Ah, nossa! É você, Alípio. Tá tudo bem?

- Ssshhh – faz um sinal de silêncio, com o dedo em frente à boca. Olha para os
lados. Desconfiado. Nervoso. Alerta.

Passa pela moça e senta numa mesa adjacente aos dois rapazes que conversam
indiferentes a sua presença. Atônita, a garçonete vai até ele novamente.

- Tá tudo bem, seu Alípio? Quer alguma coisa?


- Não, não, não, não, não, não - diz de forma acelerada e piscando os olhos. –
Tô... Tô... Tô... Esperando Sarinha.

- Vou trazer uma água.

Sente a respiração forte. O coração disparado. Tremores.

Ouve a conversa dos jovens. Soa-lhe como se fosse um programa de rádio.

- Meu pai é um merda, cara. Você viu como ele tava de manhã.

- Sim. Tava péssimo.

- Pois é. A tarde ele (...).

Um copo de água aparece na sua frente.

- Bebe isso, seu Alípio.

Dá um grande gole e larga o copo sobre a mesa. A garçonete volta aos seus
afazeres atrás do balcão.

- (...) E ele acha que eu sou petista – continua o jovem.

- Cara, tenho que te contar uma parada. Fiquei sem saber como falar mais cedo.

- Qual foi?!

- Sabe aquela historia que a Lu tava contando hoje mais cedo. Lá na praia. Do
velho que jogou o copo na gente e tudo mais.

- O que que tem?

- Pô, Thiago, o teu pai é um dos que tava na mesa com os reaça.

- CARALHO, VINI.

- ...

- Mas cara, na real eu nem devia me surpreender. Pelos papos dele ultimamente
já era esperado essas doideiras.

- Porra, mó merda né cara.

- Sim, é foda. Imagina se ele descobre que eu tô fazendo militância pela UJR lá
na Rural?!

- Pode crer. Mal sabe ele que o próprio filho é um militante comunista.

Ao ouvir a palavra “comunista” Alípio sente o corpo todo enrijecer.


Automaticamente leva a mão até a faca.
- Comunista?! – diz Alípio, se virando.

- De novo não. Puta que pariu – resmunga Vinicius.

Os dois se viram e olham pra Alípio. Surpreendem-se. Nada do que esperavam.

Mais relaxado, Thiago brinca:

- Sim, somos comunistas – levanta as duas mãos, balançando-as no ar. –


Buuuuuu!

Vira-se e volta a conversar.

- Só dá maluco – ri.

Alípio se levanta.

A primeira facada acerta o pescoço. As outras perfuram indiscriminadamente o


corpo que tomba de lado. Vinicius e a garçonete disparam para a rua.

Somente o Diabo fica para ver a cena.

Sorrindo.

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