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É MERA DECADÊNCIA
ECDISE
Em outa pele, a mesma serpente.
Um ovo prestes a eclodir.
Sexta-feira.
– Bom dia, seu Roberto! – disse a empregada enquanto colocava à sua frente um
prato com ovos mexidos.
Laís era ainda jovem, com pouco mais de vinte anos. Ele a tinha contratado
principalmente por ter um corpo bonito, recomendada pelo amigo Sandro. Fitou-a
distraidamente e fixou o olhar em sua bunda enquanto a jovem empregada se afastava,
focada nos afazeres matinais. Dava para ver a marca da calcinha sob o short curto. Ela
seguiu pelo corredor, saindo do seu campo de visão, mas Roberto manteve o olhar vago
na mesma direção. Sentia-se solitário pelas manhãs.
No primeiro ano após Helena ter saído de casa levando consigo Thiago, o único
filho do casal, a nova dinâmica da vida o agradou. Sentia-se liberto, como diante de uma
infinidade de possibilidades. Poderia ser quem quisesse. Reinventar-se. Renascer aos
40. Todo o tempo dedicado exclusivamente, exaustivamente, à família, aos problemas
banais de um cotidiano de classe média, soava-lhe como um tedioso desperdício de
vitalidade, de virilidade. Descobriu novos prazeres, reaproximou-se de velhos amigos e
criou novas amizades. Fodeu, sem culpa, com as mais variadas mulheres. Bebia até ficar
totalmente embriagado e cheirava cocaína com frequência. Não tinha a quem dar
satisfação dos exageros, dos vexames. Contudo sempre sentia pesar a solidão pelas
manhãs, principalmente se estivesse de ressaca.
Com o passar dos anos entrou sem perceber numa nova rotina e aquela
expectativa gloriosa do início da separação aos poucos foi arrefecendo. O mundo novo,
de possibilidades ilimitadas, tornava-se gradativamente mais e mais nebuloso. Em breve
completaria meio século de existência sobre a Terra e não conseguia se sentir realizado,
não tinha metas, expectativas ou estímulos a alcançar. Satisfazia-se apenas
momentaneamente em pequenos prazeres fugazes.
Roberto era um homem magro, de altura mediana, sisudo e até mesmo um pouco
austero. Tinha miopia e por isso usava uns óculos grandes, de armação quadrada e
lentes grossas, que vivia ajeitando com o dedo indicador, principalmente quando estava
ansioso, tenso ou nervoso, como quando entrava em algum tipo de discussão ou se
sentia intimidado. Ele era formado em engenharia civil, mas seguiu carreira como
corretor de imóveis. Ainda jovem viu uma oportunidade na área e a abraçou. Durante
anos foi um dos principais negociantes do ramo em Cabo Frio e assim prosperou. Mas
com o desenvolvimento da cidade, com a expansão urbana, aumentou também,
significativamente, a concorrência nos negócios. Abriam novas imobiliárias em todos os
lugares, surgiam corretores sabe-se lá de onde. As dificuldades financeiras realmente o
atingiram a partir da última grande crise no país.
Não havia vaga para estacionar, outro problema recente na cidade. Roberto teve
que parar a três quarteirões de distancia, depois de dar algumas voltas em busca de uma
vaga. Mal deixou o carro, o ar condicionado, e o calor já beirava o insuportável. Entrou
na cafeteria com o suor a lhe marcar a camisa.
Henrique era o mais jovem dos três. Arquiteto. Bem apessoado. Augusto era um
despachante gordo, que exibia sempre um aspecto cansado. A sua idade batia
aproximadamente com a de Roberto. Conheciam-se de longa data.
– Espero que vocês me deem boas notícias hoje. O negócio é certo. Saindo daqui
vou direto me encontrar com o cliente – disse Roberto indo objetivamente ao ponto.
– Bom... Sabe como é... – começou Augusto com ar fatigado. – Num processo
para a legalização de imóvel sempre podem surgir imprevistos. A prefeitura às vezes
dificulta tudo.
– Hmm...
– Sim... Sim, Beto. Mas acontece que o nosso processo entrou em exigência,
sabe? Não contávamos com isso. Teve um problema com a taxa de ocupação e tem
também a questão do sistema sanitário. Você sabe como são essas coisas, trabalhamos
juntos há anos e, pô, já tô resolvendo essa...
– Não dá pra saber ainda. É provável que a gente tenha que esperar a Lei da
Mais Valia. Pode demorar um pouco. Mas ainda não tá nada certo. Cê sabe como é, né?!
– Porra, Beto. Tô puta! Tô com os nervos a flor da pele, caralho. Já não sei o que
fazer com o teu filho. Ele só faz merda, Beto. É uma atrás da outra. Tá foda, tá foda. Já
não sei o que fazer. Tá me entendendo? Eu tento conversar com ele, Beto. Juro que
tento, mas ele só fica com aquele arzinho superior, achando que sabe de tudo, dizendo
que sou antiquada, que eu sou careta. E o pior é que só me responde com sarcasmo.
– Achei maconha nas coisas dele. Ele tá fumando essa merda, Beto! E dessa vez
você que vai falar com ele. Não aguento mais aquele merdinha arrogante.
– Uhum.
– Amanhã ele vai praí. Dá um jeito nessa merda! – Helena desliga bruscamente a
ligação.
Roberto já não consegue ver nela a mulher por quem foi perdidamente
apaixonado, com quem se casou. Era quase como se outra pessoa, outra Helena, vivesse
nas suas lembranças daquele período.
Thiago era ainda adolescente quando sentiu uma dor de dente durante uma visita
à vó Maria Lúcia, mãe de Helena, que morava em Petrópolis. Nesta ocasião Roberto
havia ficado em casa, pois não podia abandonar os negócios para uma visita de três dias,
ou ao menos foi o que afirmou. Helena, preocupada com a dor do filho, resolveu voltar
antes para levá-lo ao dentista. Tomou essa decisão de última hora, sem avisar ao
marido. Chegou cedo ao apartamento em Cabo Frio e encontrou algumas cápsulas de
cocaína abertas sobre a mesa da sala, uns cigarros com marca de batom no cinzeiro
abarrotado e uma blusa feminina pendurada sobre uma cadeira. Pediu ao filho que
esperasse na sala e com o mínimo de ruído entreabriu a porta do quarto, apenas o
suficiente para confirmar o óbvio. Olhou através da fresta: O marido dormia, a
prostituta dormia ao seu lado. Helena pegou o garoto e voltou imediatamente para
Petrópolis.
– Não foi nada, amor. Era uma puta qualquer, não teve sentimento envolvido, foi
só um deslize, uma fraqueza. Eu te amo. Bebi demais, não sabia o que tava fazendo.
Não vai acontecer de novo. Foi um erro, todo mundo erra, você sabe. Eu te amo. Me
perdoa. Eu te amo. Era só uma prostituta...
Roberto já não amava Helena naquele período, apenas estava acostumado a tê-la
ao seu lado, sentia que precisava dela. Não queria a separação, tinham que cuidar do
garoto, eram uma família. Eram uma família! Eram uma família, e isso completava a
imagem, o ideal que nutria de um homem sério, bem sucedido, realizado. As prostitutas
eram frequentes. No entanto, em seu entendimento, isso era natural. Todo homem
casado tem necessidade de putas. Precisa se satisfazer. Trata-se de um fator biológico,
intrínseco à natureza masculina e fundamental para o equilíbrio em qualquer relação
saudável. Basta ser discreto. O problema é que daquela vez ele bebeu exageradamente e
cheirou mais do que devia. Perdeu a cautela. Transgrediu as próprias regras sem se dar
conta do que fazia. Levou a puta para o seu apartamento, transou com ela na mesma
cama que dormia com a esposa e, na embriaguez, acabou adormecendo.
Acordou de ressaca, a cabeça doía, a consciência pesava. Olhou para a ruiva que
dormia profundamente em sua cama, ao seu lado. A cabeça doía, a consciência pesava.
Angústia, náusea, vertigem. Foi um pouco rude ao acordar a moça, pagou outra vez pelo
serviço (não recordava que o tinha feito na noite anterior) e a expulsou. Eliminou
minunciosamente todos os vestígios do apartamento, verificou diversas vezes se não
estava esquecendo algo que o incriminasse e tentou ligar para a Helena. Tentou dezenas
de vezes antes que ela o atendesse. Quando finalmente obteve resposta, mostrou-se
indignado:
– Porra, não atende esse telefone! Aconteceu alguma coisa aí? Estou há uma
hora tentando falar com você.
Ele tentou de todas as formas evitar a separação. Porém, por mais que
argumentasse, implorasse, chorasse, Helena se mostrou firme e decidida: Queria o
divórcio. Queria e o conseguiu.
Parou o carro em frente ao imóvel e observou ao redor. “Parece que ele ainda
não chegou.” Olhou a casa com a placa de “vende-se”, gostava de ver o seu nome nestas
placas. Era uma casa grande, com jardim e piscina. Atravessou a rua e parou sob a
sombra de uma amendoeira. Suava. Pegou o celular e viu que havia uma mensagem do
cliente cancelando o encontro. Achava estranho como ninguém mais fazia ligações.
Tudo era resolvido por mensagens de texto.
Sandro foi o único ao seu lado quando Helena o deixou. Roberto se lembra com
bastante clareza desse período, de como pesou a solidão pouco tempo após o divórcio.
Não só pelo desmoronamento da estrutura familiar a qual estava habituado, mas
também por se romperem bruscamente todas as relações de amizade que manteve
enquanto casado. Não por escolha. Eles simplesmente foram unanimes em condená-lo e
se unirem numa rede de apoio para consolar a ex-mulher, a vítima. A ele, o vilão,
restava o desprezo. Portanto se sentia bastante solitário quando Sandro reatou o contato
após anos sem se falarem.
– Não foi. Ele desmarcou o encontro de hoje. De qualquer forma teria sido uma
merda por causa da sua incompetência. – respondeu em tom de brincadeira.
– Beto, meu amigo, você anda muito tenso. Eu sei que os negócios não andam
bem pra você. Mas é preciso se adaptar, não dá pra ficar estacionado no passado.
– Obrigado pelo conselho, meu amigo. Não sabia que você era um gênio
empreendedor. Achei que tava tão fodido quanto eu.
– Ahh, foda-se. Deixa pra lá. Te aviso se tiver qualquer novidade sobre o
processo de legalização. Se cuida.
Nove horas da noite. O calor ainda intenso, sem trégua. Roberto abriu o frigobar
da sala de visitas, pegou uma long neck de Heineken, envolveu a mão direita na camisa,
tirou a tampa e deu um longo gole no gargalo. Sentou-se e acendeu um cigarro. Uma
bossa nova tocava no rádio. Deixou que o corpo deslizasse um pouco pelo sofá até ficar
mais confortável.
Luís é o mais novo do grupo, com trinta e oito anos. Possui um aspecto
adoentado. Olheiras profundas, magro, alto, um pouco curvado e sempre muito calado.
Sandro por outro lado é um homem corpulento, bem acima do peso, não tão alto quanto
Luís, mas sempre muito bonachão e falador. Ele mantém um bigode aparado que
costuma alisar com os dedos enquanto fala.
– Puta que o pariu! – Sandro entrou falando com estardalhaço como de costume.
– Você tinha que ver a gostosa que veio no elevador com a gente. Um tesão, um tesão!
Não é Luís?!
– Uhum...
Enquanto Sandro ia falando, Luís pegou duas cervejas, abriu, entregou uma ao
amigo, apertou a mão de Roberto e sentou-se ao seu lado em silêncio. Acendeu um
cigarro.
– Eu até tentei puxar assunto, mas não me deu muita bola. Um tesão! Você já
deve ter visto ela por aqui. Disse que mora no número quatrocentos e dois. Moreninha,
peituda, cabelo cortado na altura do pescoço. Ela disse que não te conhece. Até
conversou um pouco comigo, mas não quis me dar o telefone. Vagabunda! – riu
estrondosamente, chacoalhando todo o corpo. Deu um gole na cerveja e continuou. –
Mas tudo bem, ela é muito magrinha, não ia aguentar comigo – desatou a rir outra vez.
– Acho que você está falando da Julia. Ela mora no quarto andar, mas é novinha,
acho que tem só uns dezoito anos.
– A vagabunda não me disse o nome, mas deve ser essa aí. Era novinha, do jeito
que eu gosto. Um tesão, um tesão!
O Coronel era o mais velho do grupo, com pouco mais de 50 anos. Um homem
ainda forte apesar da idade, com a postura sempre ereta e o rosto impecavelmente
barbeado. Gostava de debater temas polêmicos com o grupo e sempre sugeria ideias
radicais com tom grave e sério. Era um saudosista do que chamava de “Revolução de
64”.
– ... mas ela disse que o marido não a deixa sozinha, quer sempre saber onde tá e
com quem... – interrompeu a frase quando o Coronel entrou.
– Fodam-se vocês, idiotas. Não vão fazer piadas quando seus filhos estiverem
dando a bunda e os comunistas tomarem o seu dinheiro.
A risada foi geral. O Coronel colocou uma garrafa de uísque sobre a mesa,
pegou um copo com gelo na cozinha e se serviu. Tomou um grande gole e passou a mão
na testa úmida de suor, secando-a depois na calça. Puxou uma cadeira e se sentou de
frente para o sofá onde estavam Roberto e Luís. Sandro se aproximou um pouco, mas
permaneceu de pé.
– Acho que sim. Não é aquela menina que você me apresentou há umas duas ou
três semanas atrás, quando caminhávamos na orla?!
– Aham. Vocês não vão acreditar... – parou por um instante e levou lentamente o
copo até a boca, dando um grande gole. Ergueu os olhos em direção a Roberto antes de
retomar a fala. Seus gestos tinham um ar teatral. – Estive com Gustavo ontem. Ele foi lá
em casa fazer uma visita. Logo que chegou reparei que tava um pouco nervoso.
Inquieto, sabe?! “O que se passa, Guto?”, perguntei.
Mais uma pausa. O Coronel esticou o braço, pegou a garrafa sobre a mesa e
completou o copo. Luís acendeu outro cigarro. Ao fundo ouvia-se baixinho uma música.
O coronel se levanta, vai até o aparelho de som e o desliga. Olha para cada um
dos três calmamente e diz:
Sandro e Roberto tentaram algumas vezes voltar ao que o Coronel dizia antes de
saírem do apartamento, mas ele desconversou e acabaram deixando pra lá. Os assuntos
corriam sobre temas variados, sempre com Sandro a conduzir a conversa. Nessa altura
estavam todos meio bêbados e riam com frequência. Apenas o Coronel se mostrava um
pouco alheio.
– Olha aquela delícia ali perto do palco – Sandro falava apontando com o olhar
em direção ao interior do bar. – Disfarça, caralho. Não é pra olhar todo mundo junto.
– Não, idiota. A que tá cantando. De vestido azul. Com o otário do lado. Ela tá
olhando pra cá toda hora.
Luís pegou a garrafa para completar o copo e constatou que estava pura. Tirou
da camisinha e acenou para um garçom que imediatamente se aproximou levou a
garrafa vazia.
– Tava reparando aqui, ainda não vi nenhum rosto conhecido hoje. Além de
vocês, claro. Antigamente quando ia pra algum lugar assim quase todo mundo era
familiar.
– ... A questão toda foi que a Dilma não soube ou não quis articular com os
canalhas. Você diz que o golpe foi pra tirar o PT, que as elites não suportam o partido,
mas enquanto Lula estava no poder não aconteceu nada parecido – dizia um dos
rapazes. Um barbudo com camisa preta e calça jeans. – Isso porque ele sabia que não
podia enfrentar de uma vez o que foi construído em séculos de história. Simplesmente
aceitou que era preciso fazer vista grossa e negociar com os ratos.
– Isso é verdade – concordou uma garota negra alta, com voz firme. – Mas por
outro lado não dá pra ignorar o viés misógino do golpe contra a Dilma. Isso fora o
aumento do reacionarismo nos últimos anos, com a Lava Jato e o surgimento desses
grupelhos tipo MBL e Vem Pra Rua. Acontecimentos dessa magnitude são sempre
complexos, com camadas de entendimento. É preciso contextualizar.
– Você tá certíssima, amiga – assentiu uma menina loira. – Mas o pior pra mim
foi ver o Bolsonaro elogiando o torturador... Qual o nome mesmo?
– Brilhante Ustra.
– Vai se foder, fascista! Ninguém aqui falou com você – antes que terminasse a
frase foi atingido no peito por um cigarro aceso, jogado por Luís, que em seguida se
levantou. O Coronel também se levantou.
– Não suporto esses merdinhas comunistas. Não sou obrigado a aturar isso.
– Não foi nada Beto, relaxa. Essa gente precisa entender que o país está
mudando. Vamos voltar aos bons tempos – disse por fim o Coronel em tom conciliador.
– Com licença, senhores. Sou a gerente daqui e preciso pedir educadamente para
que se retirem. Temos um negócio decente e não aceitamos esse tipo de
comportamento. Aqui está a conta – havia dois homens fortes parados atrás dela,
provavelmente os seguranças do lugar.
– Minha querida, isto não vai ser necessário. Peço perdão pelo incidente
desagradável – foi falando o Coronel. – Somos pessoas de bem. Fomos obrigados a agir
dessa forma deselegante por causa daqueles vagabundos. Eles sequer estavam
consumindo aqui, só vieram pra causar problema. Mas, de qualquer forma, peço
desculpas. Sentimos muito pelo ocorrido. Você tem a minha palavra de que isso não vai
se repetir. Como eu disse, somos homens de bem, pessoas honradas. Pode colocar o
copo quebrado na minha conta. Vamos só terminar essa ultima cerveja com dignidade.
Já estávamos de saída.
A mulher olhou para um dos homens que a acompanhava, ele assentiu com a
cabeça.
– Ok. Tudo bem. Podem terminar essa cerveja – concordou a mulher, saindo em
seguida.
– Que porra foi essa? O que que eu perdi? – perguntou Sandro se sentando de
volta em seu lugar.
O carro estava parado numa rua pouco movimentada. O Coronel pegou um livro
no porta-luvas e o colocou no colo. A seguir abriu uma capsula de cocaína e, com a
ajuda de um cartão, montou quatro linhas de pó sobre ele. Enrolou uma nota de cinco
reais no formato de um canudo e inalou a primeira carreira. Passou o livro pra Luís e
começou a falar:
– Eu preciso da ajuda de vocês. Tentei falar mais cedo, mas não era o momento.
Já falei pra vocês várias vezes do Zica, o vagabundo que dorme na minha calçada. Ele
mija e caga no canteiro do meu prédio. Incomoda todo mundo que passa por ali. Mas
agora... Agora ele passou de todos os limites.
O livro chegou à mão de Roberto. Olhou a capa: “O mínimo que você precisa
saber pra não ser um idiota – Olavo de Carvalho.” Sempre o mesmo, pensou.
O Coronel concluiu:
– Vamos dar um susto no filho da puta. Não quero mais ver a cara desse
desgraçado no meu bairro.
– Ééééé.... Ei, ei, que isso gente. Acho que não é uma boa levar isso adiante –
Sandro falou com voz hesitante. Seus olhos demonstravam pânico.
Uma guitarra começou a soar alto dentro do carro. Sandro tentou falar mais
alguma coisa, mas o Coronel aumentou o volume. “Whole Lotta Love”, reconheceu
Roberto. “Led Zeppelin II”. Já haviam escutado esse álbum algumas vezes enquanto
rodavam de carro pela cidade. Mas agora a música parecia diferente, como se contivesse
um simbolismo oculto. Roberto olhou para Luís sem o reconhecer. Sempre o teve como
um homem calado e apático. Um pouco assustador às vezes, claro, mas havia se
acostumado com aquela figura excêntrica. Sempre indiferente a tudo. Não esperava essa
determinação. Luís mantinha um olhar vidrado enquanto dirigia.
Seguiram assim por algumas ruas e então o Coronel baixou o volume da música.
– Encosta na rua lateral. Essa hora ele deve estar dormindo no beco. Vamos a pé
até lá.
Luís saiu em seguida. Roberto fez o mesmo. Sandro ficou parado dentro do carro
por mais alguns segundos e então abriu a porta. Esticou a cabeça pra fora e olhou para
os lados. Não havia mais ninguém na rua. Tudo estava absolutamente tranquilo naquela
madrugada. Saiu. Os quatro caminhavam calados em direção ao beco.
Luís atravessou a rua até uma caçamba de entulho que estava do outro lado.
Fuçou por um instante com o corpo inclinado para o interior. Voltou sorrindo,
segurando uma pequena barra de ferro.
Luís havia batido sem força com a barra de ferro na coxa dele.
Roberto assistia a tudo como se não estivesse presente. Não tinha consciência do
próprio corpo. É provável que tivesse se espantado caso alguém lhe dirigisse a palavra
naquele momento.
Entraram no beco. O lugar era mal iluminado e fedia. Haviam sacos de lixo
empilhados nos cantos. E mais a frente algo estendido no chão.
– Ei, Sujinho! Cala a boca! – disse o homem antes de perceber que não estava
sozinho.
– Levanta!
– É o seguinte, seu merda. Você vai sumir desse bairro, ou melhor, da cidade.
Você é um incômodo para todos os cidadãos de bem que moram aqui. Se quiser
continuar vivo é melhor desaparecer. Tá entendendo?!
O que se seguiu foi muito rápido. O Coronel chutou o cão, que emitiu um
gemido agudo. O homem gritou “Sujinho”, movendo-se bruscamente em direção ao
animal e, no mesmo instante, Luís o atingiu na cabeça com a barra de ferro. Um golpe
forte.
O vira-lata fugiu assustado. O homem estava caído, imóvel, aos pés do Coronel.
– Merda! – esbravejou o Coronel empurrando o homem com a ponta do pé.
Não havia reação. O sangue escorria pelo chão. Luís e o Coronel trocaram
olhares.
Roberto voltou para ajudá-lo enquanto os outros dois entravam no carro. Sandro
chegou ao carro apoiado no amigo. Ao se sentar viu a barra de ferro no chão, aos seus
pés. Algo estava grudado nela, talvez pele e pedaços de carne. Não dava pra identificar.
O carro começou a se mover, enquanto Sandro abria a janela, colocava a cabeça para
fora e começava a vomitar.
– Por que você estava armado? – interviu Roberto. – Que porra foi aquela?
– Oi, pai. Achei que não tava em casa. Que cara é essa?! – riu. – A noite ontem
foi boa, hein?!
– Nem me fale – Roberto estava desnorteado. Sua mente oscilava entre o homem
desacordado no beco e o rapaz barbudo que poderia ou não ser o mesmo da noite
anterior. – Ressaca do caralho.
– Estamos saindo. Vou dar um pulo na praia. Faz semanas que não vejo o mar.
Não precisa me esperar pro almoço, vou comer qualquer coisa na rua.
Os dois jovens saíram. Roberto foi até a geladeira pegar a garrafa de água.
Impossível ficar em casa, queria poder fugir da própria consciência.
Saiu.
Sem se dar conta do rumo que seguia chegou às margens das salinas.
Entrou.
Há anos não entrava nas salinas, apenas as via de longe ao passar pela estrada. E
estar ali, naquele momento, suscitava sentimentos nostálgicos. Tudo naquele lugar
pertencia ao passado. Era como visitar um museu onde estavam expostos os resquícios
da sua infância. Fechou os olhos e inalou com força o ar que pairava sobre o solo inerte,
sentindo-se inebriado pelo cheiro da maresia. Queria poder deslocar-se no tempo, voltar
ao passado.
Sem refletir sobre o que fazia, tirou a roupa e, deixando os seus pertences na
areia, foi em direção ao mar. Entrou na água e nadou até depois da arrebentação.
Esticou os braços e as pernas na horizontal, deixando o corpo boiar. A água estava
gelada e por um momento se sentiu bem, acolhido pelo oceano, num lugar onde seus
problemas pareciam não existir.
Após sair da água e vestir-se, viu no celular que Sandro havia ligado. Três
chamadas perdidas. Olhou a hora: Quinze e vinte e três. Respirou fundo e então ligou de
volta.
– Alô. Beto?!
– Porra, cara. Eu tô pirando. Não tenho com quem falar. Que merda, cara. Que
merda que a gente se meteu.
– A sobrinha do Coronel. É sobre isso que eu queria falar, Beto. Que merda,
cara. Que merda – Sandro deu uma pausa antes de continuar. – Andei investigando e
posso te dizer com certeza: O tal do Zica nunca tentou nada contra a garota. O Coronel
inventou aquela história.
– Como é?
– Sim, isso mesmo. O filho da puta inventou aquela coisa do estupro pra
convencer a gente, Beto.
– Do que cê ta falando?
Thiago.
– Tá sozinho em casa?
Roberto se sente aliviado. Se o barbudo era o mesmo da discussão não deve ter
falado nada. Thiago parece tranquilo. Talvez ele não o tenha reconhecido. Ou pode ser
outro garoto, esses jovens todos se parecem quando tem barba.
– Caralho! – exclama Thiago surpreso ao olhar para o pai – A tua cara tá muito
vermelha! Tava na praia com essa roupa?
Roberto toma consciência de si. Está com o sapato coberto de areia, parte da
calça e a barra da camisa estão úmidas na altura da cintura. Leva a mão ao rosto e sente
a pele arder ao contato.
– Fui dar uma volta pra curar a ressaca. Esqueci de passar protetor.
– Tá vendo o quê?
– Uma série da Netflix, Narcos. Uns amigos me indicaram. Dizem que é boa.
– Aham.
– Não precisa fazer isso porque ela mandou, pai. Sério. Você fica ridículo nesse
papel.
– Não, não. Não tô fazendo nada porque ela mandou. Só quero poder falar com
você abertamente. Não precisamos de tabu. Sei que têm muitas diferenças entre as
nossas gerações, mas eu também experimentei maconha quando era novo...
– Olha pra você. É sério. Com essa cara vermelha, sentado aí todo sujo de praia.
Se alguém aqui precisa de conselhos, esse não sou eu. Tinha que ver o seu estado hoje
de manhã.
Roberto se lembra dos jovens da noite anterior. Thiago se parece com eles.
– Vai se foder, Thiago. Não te criei pra isso, não foram esses os valores que te
ensinei.
Mesmo fadigado não conseguiu dormir. Assim que pôs a cabeça no travesseiro
a consciência passou a atormentá-lo novamente. Sentava-se na cama, fumava um
cigarro atrás do outro, voltava a deitar, sentava novamente, mais cigarros. Um ciclo
infindo, uma noite interminável. Não havia como relaxar. Um fluxo incessante de
pensamentos, um transe do qual tentou sem sucesso escapar.
Certa vez, ainda garoto, estava na igreja com a mãe. O pastor dava o sermão
enquanto o potinho dos dízimos ia passando de mão em mão. A mãe lhe entregou em
silencio uma nota, como sempre o fazia, para que doasse a igreja.
Durante toda a semana Roberto havia pedido dinheiro a ela, queria comprar um
carretel de linha para soltar pipa. O seu estava nas últimas, todo puído e remendado. Ela
negava afirmando não ter dinheiro sobrando para gastar com futilidades. E agora lhe
dava aquela nota, que era mais do que o valor do carretel que tanto queria (com o
restante dava até pra comprar uma pipa nova), para entregar a igreja.
Domingo.
Teve insônia durante toda a noite. Não havia pregado os olhos um minuto
sequer. Foi acometido de febre devido à insolação e sequer se deu conta disso. Precisava
agir, não tinha mais tempo a perder.
– Você liga a tv e tem homem beijando homem, tem todo tipo de perversão.
Tudo, tudo para desviá-los do caminho da graça de Deus. MAS NÃO VAMOS CAIR
NO JOGO DELES! ALELUIA, IRMÃO?
– ALELUIA!
– GLÓRIA A DEUS!
– O QUE É DELES TÁ GUARDADO! O REINO DOS CÉUS, DISSE JESUS,
É DOS QUE TEMEM A DEUS! DOS QUE HUMILDEMENTE SE AJOELHAM EM
NOME DO PAI!
– GLÓRIA AO SENHOR!
O público pulava, gritava, estendia as mãos aos céus com emoção. Roberto
atravessou o salão, espremendo-se entre os fiéis, até ficar diante do pastor, em frente ao
púlpito, onde se recolhia o dízimo.
Roberto entregou todo o dinheiro que tinha consigo. O homem que cuidava do
dízimo agradeceu.
Roberto estava esgotado, mal se aguentando de pé. Não conseguia mais conter
as lágrimas, que escorriam em abundância pela sua face.
– ALELUIA!
– GLÓRIA A DEUS!
Gritavam em coro.
Manhã
Pensava em Marina.
- Qual é, Bolota?!
- Aham. Postei um conto novo essa semana. Depois dá uma olhada lá.
- É uma obra experimental, cara. Não dá pra explicar assim, só você lendo
mesmo.
- Pode crer. Então você finalmente largou aquela obsessão por escritores russos
cristãos, né?! Já tava na hora de seguir em frente.
- Porra, Léo. Claro que não. Dostoievski, Tolstói... Esses são os grandes
romancistas, minhas maiores inspirações. Crime e Castigo e Ana Karenina são obras
imortais.
- Falou, Bolota.
- Coitado, Lu. O Bolota é meio mala, mas se você não levar a sério é até
divertido.
- Deve ter percebido que não cola, com aquela cara de filhinho de papai. Nunca
deve nem ter lavado a própria cueca – disse Luana.
- E quando acendia um cigarro no rolê pra fazer pose?! Não sabia nem tragar –
Fernanda imitou o gesto e concluiu com uma risada.
- Porra, cês tão impossíveis hoje. De qualquer forma é bom ter alguém
movimentando a literatura alternativa por aqui. Ele ainda pode amadurecer.
Silêncio.
- E o que que tem, Lu?! Ser de esquerda é ser contra a intolerância. Liberdade
para as diversas concepções de mundo. Basta viver com respeito e harmonia. Não vejo
contradição.
Leandro não entrou no debate. Sempre que podia evitava esse tipo de discussão.
- Ah, então pra você a esquerda tem que perseguir quem não aceita os seus
dogmas. Vamos voltar ao comunismo soviético stalinista, né?!
- Você podia tentar ser mais positiva. Enxergar o mundo com tanto niilismo
deve ser deprimente às vezes.
- Típica taurina – Fernanda vira-se para Léo enquanto aponta pra Luana.
Haviam chegado ao canto do Forte. Pouca gente na praia, água estava calma e
translúcida. Os três andavam lado-a-lado, compartilhando um deslumbramento
silencioso diante daquela paisagem intimamente conhecida.
Atravessaram a pequena ponte que dava para as pedras e, logo adiante, passaram
sob as correntes que servem de corrimão e delimitam o caminho até a entrada do antigo
forte. Seguiram pelas rochas até a parte conhecida como Robalo.
- O que foi?! Uma preta empoderada te intimida, querido? – riu. – Não é minha
culpa se você leva a maconha pra apertar no rolê. Da ultima vez a gente quase rodou
por conta disso.
Um instante de silencio.
- Bateu.
- Bateu...
Luana se levantou, tirou o short, foi até o ponto em que a rocha se debruça sobre
a água e mergulhou. Os dois ficaram olhando enquanto ela nadava em direção a Pedra
da Baleia.
- Cê sabe que eu amo a Lu, né?! – comentou Léo. – Mas, porra, ela é palestrinha
demais.
- É verdade, ela é sim – respondeu Fernanda depois de uma risada. – E até isso
eu gosto nela.
- E essa banda que vai tocar hoje? Vale a pena? Lá no Don de vez em quando
tocam uns lances bem esquisitos, né?! – Perguntou Fernanda ao reparar que Luana
nadava de volta.
- É o único espaço da cidade que traz som experimental. Mas esse cê vai curtir.
É da galera aqui de Búzios.
Os dois riram.
- “Cê tem que ouvir Led, cara. Creedence, The Doors, Deep Purple, isso que é
música de verdade” – fazia uma voz grave e rouca.
- Mas, pô, pensa bem. Tirando a tendência reacionária dos encontros de moto, é
a mesma coisa que acontece nas rodas de samba. Fica nesse eterno saudosismo, não tem
qualquer espaço para a experimentação, para o novo – ponderou Luana.
Noite
- Pra mim isso não passa de discurso burguês. Eu transcendo ouvindo Racionais,
ou Zeca Pagodinho. Não preciso ver um filme do Lars Von Trier.
- São coisas diferentes, né?! Não desqualifico a cultura popular, mas tá mais pra
entretenimento do que pra arte mesmo, no sentido elevado da palavra.
- Que simi....
- Isso sem falar da noção hierárquica contida na sua fala – interrompeu Luana. –
O burguês é sempre superior, mais sofisticado.
- Saquei. Então é o seu gosto pessoal que define a graaande arte – o tom de
deboche se tornou escancarado. – Já parou alguma vez para se perguntar de que forma
as suas preferências são desenvolvidas?
- Vem cá, Mari! – disse enquanto a abraçava e beijava na bochecha. – Sabe que
eu te amo, né?!
- Porra, o repertório desses bares não muda. Olha o naipe do público – comentou
João.
O músico tocava uma versão de Oceano, do Djavan.
- Aliás, naquela mesa ali parece que é só tiozão reaça – observou Vinicius. – Eu
aposto um baseado que eles são dessa galera com paranoia anticomunista.
- Tá julgando estereótipo, Vini. Nada a ver. São só uns tiozão tomando cerva.
- E tu vai fazer o que pra confirmar? Vai lá perguntar: “Boa noite. Vocês odeiam
comunistas?”.
- Eu sei como fazer isso – interviu Luana. – Vamos conversar mais perto deles.
Eu vou puxar um assunto e vocês dão continuidade, como se eles não estivessem ali.
- A questão toda foi que a Dilma não soube ou não quis articular com os
canalhas. Você diz que o golpe foi pra tirar o PT, que as elites não suportam o partido,
mas enquanto Lula estava no poder não aconteceu nada parecido – dizia Vinicius,
desenvolvendo o tema trazido por Luana.
– Isso porque ele sabia que não podia enfrentar de uma vez o que foi construído
em séculos de história. Simplesmente aceitou que era preciso fazer vista grossa e
negociar com os ratos – ponderou Leandro.
- Isso é verdade – concordou Luana, com voz firme. – Mas por outro lado não dá
pra ignorar o viés misógino do golpe contra a Dilma. Isso fora o aumento do
reacionarismo nos últimos anos, com a Lava Jato e o surgimento desses grupelhos tipo
MBL e Vem Pra Rua. Acontecimentos dessa magnitude são sempre complexos, com
camadas de entendimento. É preciso contextualizar.
- Você tá certíssima, amiga – assentiu Marina. – Mas o pior pra mim foi ver o
Bolsonaro elogiando o torturador... Qual o nome mesmo?
- Brilhante Ustra.
- Vai se foder, fascista! Ninguém aqui falou com... – foi dizendo Vinicius, mas
antes que terminasse a frase foi atingido no peito por um cigarro aceso.
O homem que jogou o cigarro ficou de pé, o que tinha gritado antes também se
levantou. O terceiro deles, por outro lado, permaneceu sentado, sem se envolver. A
situação começava a sair do controle e Vinicius não demonstrava intenção de recuar.
Marina o puxou pela camisa:
Vinicius sentiu o tremor na mão dela. Ele estava de frente para os dois homens,
os quatro amigos estavam logo atrás, sem saber como reagir.
- Ok!
***
- Não fica ali, não, cara – disse Mateus enquanto apertavam as mãos. – O
Alemão do restaurante odeia a galera que vem aqui. Já tava te encarando.
- Ah, sim. E já começou o... – Antes que terminasse a frase, Mateus já havia
sumido dentro do bar.
- Opa!
- Tá 10 conto a entrada.
Pegou a cerveja e o troco. O balcão ficava na entrada, mais a frente havia uma
área aberta, com algumas plantas, uma galera dispersa em pequenos grupos. Entrou por
uma porta e deu na sala, onde o MOS se apresentava. O ambiente estava envolto em
fumaça e a única iluminação vinha de uma mangueira de luz amarelada no chão, aos pés
do trio que tocava concentrado. O público parecia enfeitiçado com o som.
***
O show acabou. O publico foi saindo. As horas passando. E Renato ainda bebia
tentando encontrar coragem.
Estava bastante bêbado, sentado num banco e debruçado sobre o balcão. Tentava
desenvolver uma conversa com Fred, que demonstrava pouco interesse em estender o
assunto. O bar estava vazio, apenas Marina e seu grupo de amigos ainda faziam hora
por ali.
- CARALHO! – Mateus passou por eles andando rápido, foi até a porta de
enrolar do bar e a fechou de uma só vez, com estrondo. – Alemão filho da puta!
- Quem vai salvar? – Mateus se virou rindo, ignorando o que havia acabado de
acontecer.
- A minha também acabou – Mateus colocou a mão na testa. – Tem aí, Vini?
- Ahnn?! Bolota?! Nem vi que tu tava aqui – olhou o papel. – Não é o ideal, mas
vai servir. AQUI! O BOLOTA ARRUMOU UM SEDANAPO – e o entregou para Léo.
- Boa, Renatinho! – Léo olhou para o papel que tinha na mão. – Porra, tem uns
bagulho escrito aqui... Ah, é o que tem, vai assim mesmo!
Renato assistiu incrédulo e sem reação o que se deu a seguir. Leandro cortou o
guardanapo, colocou a maconha desbelotada, enrolou, passou a goma e acendeu.
Sonolento, sem despertar por completo, Fábio estende a mão até o celular e ativa
a função soneca. Mais dez minutos de descanso. Deitada ao seu lado, Carla apenas se
vira e puxa a coberta. Estavam exaustos e naquele momento nada poderia ser mais
atrativo do que permanecer no quarto, com o ar condicionado ligado, debaixo das
cobertas.
Fábio concluiu a ultima aula em Campo Grande às oito da noite, voltou para
Santa Cruz e, chegando em casa, encontrou a esposa a beira de um ataque de nervos.
Sobrecarregada com os preparos da viagem.
- Você não vai levar esse short florido horroroso, né?! – dizia ela revirando a
mala que ele arrumava.
O despertador toca novamente. São cinco horas. Eles haviam ido dormir quase
uma da manhã. Fábio se senta na cama. Zonzo. Fatigado. Pensando em desistir de tudo
e voltar a dormir.
- Adoro essa! – diz e começa a cantar junto, colocando a mão sobre a coxa do
marido.
Caminhando contra o vento
Sem lenço e sem documento
No sol de quase Dezembro
Eu vou
O sol se reparte em crimes
Espaço naves, guerrilhas
Em cardinales bonitas
Eu vou
Em caras de presidentes
Em grandes beijos de amor
Em dentes, pernas, bandeiras
Bomba e Brigitte Bardot
O sol nas bancas de revista
Me enche de alegria e preguiça
Quem lê tanta notícia
Eu vou
Por entre fotos e nomes
Os olhos cheios de cores
O peito cheio de amores vãos
Eu vou
Por que não, por que não
Por que não, por que não
Ela pensa em casamento
E eu nunca mais fui à escola
Sem lenço e sem documento
Eu vou
Eu tomo uma Coca-Cola
Ela pensa em casamento
E uma canção me consola
Eu vou
...
***
Fábio está com trinta e cinco anos e é professor de história. Dá aula em três
escolas diferentes e, entre lecionar, corrigir provas, participar de reuniões e cuidar das
demais obrigações do dia-a-dia, a vida vai passando despercebida. Em algumas noites se
sente ansioso e não consegue dormir. Fica rolando na cama por horas até desistir de
pegar no sono. Acaba passando a madrugada deitado no sofá da sala, com a televisão
ligada.
A esposa, Carla, tem cinco anos a menos do que ele. É concursada na Prefeitura
do Rio como auxiliar administrativo e trabalha num prédio do centro da cidade, o que
torna a sua rotina bastante complicada. Acorda todos os dias às quatro e meia da manhã,
pega um ônibus para Campo Grande e de lá embarca no trem para a central.
Ao falar essa frase a sua voz assume um tom invariavelmente frio, insensível,
inexpressivo. Não soaria diferente se dissesse “acho que vai chover mais tarde” ou “hoje
vi um acidente na Br-101”. São palavras vazias, repetidas várias e várias vezes,
buscando assim torná-las verdadeiras. Mas não questiona a natureza dessa relação.
Estão juntos há doze anos. Conformou-se com esse destino e aguenta a rotina como a
um suplício inescapável.
- O que?
- Pensei em Cabo Frio. Faz anos que não vamos pra lá.
***
Há pouco movimento nas ruas. Atrás do volante, Fábio observa com curiosidade
o bairro tingido de madrugada e aos poucos vai se sentindo mais desperto.
- Tá tendo obra nesse trecho mais a frente – diz ele, mantendo a calma.
Pouco tempo depois o carro para de vez. Carla baixa o vidro e estica a cabeça
para fora, enxergando somente uma fila interminável de carros. Alguns motoristas
buzinam, outros xingam os que estão buzinando. O casal apenas espera. Ela chama um
jovem que passa vendendo guloseimas no corredor entre os carros.
- Oi, dona. Capotou um carro lá na frente onde tá tendo a obra. Acho que o
motorista já era. Vai demorar. Quer uma bala? Um biscoito?
***
- Biquíni novo?
- Não acredito que você veio com esse maldito short florido – ela diz enquanto
estende a canga na areia. – Me passa o protetor.
Ela o encara com raiva por um instante. Depois deita de bruços e fica olhando o
celular.
Encosta os pés na água. Gelada. Fica em dúvida se vai mesmo encarar. Dá mais
uns passos e deixa o mar espraiar sobre os pés, atingir a canela. Hesita. Um passo de
cada vez pra acostumar com a temperatura. Bruscamente uma criança o ultrapassa
correndo. A água gelada espirra nas suas costas, pegando-o desprevenido. Contorce-se e
grita:
- FILHA DA PUTA!
Fica um tempo por ali distraído, curtindo aquela sensação, até que sente algo
tocar o seu braço esquerdo. E logo uma ardência. Contém o berro que ameaça sair e vê,
boiando tranquila, rente a ele, uma água-viva com enormes tentáculos vermelhos.
Afasta-se o mais rápido que consegue em direção a areia. Sente que quer chorar, sem
saber se de frustração ou de dor.
Segura as lágrimas.
- Ei, amor! Carla! – Diz alto enquanto se aproxima apressado. – Uma água-viva
me queimou.
Passa a mão no local da queimadura enquanto fala. Sua voz soa manhosa, um
tanto ridícula, como a de uma criança buscando o consolo da mãe. Carla e o
desconhecido interrompem a conversa e se viram para ele. O homem o olha de cima a
baixo com desdém e, num tom de superioridade e deboche, intervém:
- Eu te ajudo, tio.
O garoto vira o resto da cerveja na areia e, num esforço inútil de ser discreto, se
ajoelha ao lado do cooler. Começa a mijar dentro da lata vazia. Cada vez mais curiosos
chegam pra ver o que está acontecendo. Carla, envergonhada, dá uns passos sutis para
trás, espremendo-se, disfarçando-se, entre os espectadores.
“Teu braço tá vermelho”. “Vai ter febre depois”. “Deixa de frescura”. “É pro teu
bem”. Pressionam os curiosos. Todos solícitos, todos subitamente especialistas em
queimaduras por água-viva. Intimidado, sem ter como escapar, ele cede. O garoto
segura o braço atingido, afastando-o um pouco do corpo. Fábio vira o rosto para o outro
lado e sente o líquido quente escorrer pelo membro.
Ele assente com a cabeça, mesmo sem sentir qualquer alívio. Apenas mais
incomodado agora, tanto pelo odor de urina quanto pela humilhação a que foi
submetido. Os curiosos se dispersam comentando alegres. Alguns riem abertamente.
- Uhum.
O homem coloca sobre a mesa do casal um peixe assado, com alface e um aipim
encharcado de óleo.
- Algo mais?
- Mais uma, por favor – pede Carla, mostrando a garrafa vazia de cerveja. E,
após o garçom se afastar, acrescenta para o marido: - Vai lavar o braço, não vou comer
com esse fedor terrível.
***
Chegando ao quarto, ele foi direto para o banheiro. Sentia-se mal do estômago.
Já não conseguia distinguir a queimadura da água-viva. Todo o corpo estava vermelho e
ardia. Enquanto sofria sentado no vaso, questionava se a culpa era da insolação, da
cerveja ou do peixe que haviam comido. Provavelmente da combinação.
Pancadas na porta.
- Não era pra ter esquecido o protetor. Estamos parecendo dois camarões – disse,
rindo. – Mas pelo menos tô sexy com essa marquinha – acrescentou mostrando o
contraste do peito com a pele do entorno.
- Ainda bem que lembrei de trazer o hidratante, mas primeiro vamos tomar uma
dose – enquanto falava abria a garrafa de tequila e servia. – Hoje vamos celebrar.
Estamos em Cabo Frio, meu bem!
- Sem fazer careta – ela riu. – Agora vamos a isso – pegou o hidratante e
despejou na mão dele.
Ela estava de pé, de costas, na frente dele. Puxou a calcinha até ficar socada e
empinou a bunda bem diante do rosto do marido, que permanecia sentado no sofá e
apenas obedecia, passando a mão com suavidade nas nádegas da mulher. Ela olhava-o
de cima, com o pescoço envergado para trás. Não aguentou ficar nesta posição, se
desequilibrou e caiu sobre ele, rindo.
Viraram os copos.
A princípio ele tentou resistir, estava vestido apenas com aquele short e não
queria ficar pelado. Mesmo com a esposa, jamais se sentia confortável com a própria
nudez.
Ela tentava tirar aquela ultima peça de roupa e ele a segurava firmemente, com
as duas mãos.
Fábio suava, estático, nervoso. Ela insistiu por intermináveis minutos, até aceitar
que não haveria qualquer reação. Mas não pretendia desistir. Queria, precisava, se sentir
desejada.
Pegou a mão direita dele e a trouxe ao meio das suas pernas. Segurava-a com
firmeza e se esfregava, deixando-se envolver numa sensação gostosa de prazer. Estava
de olhos fechados, concentrada, entregando-se aos sentidos, as necessidades do corpo.
- Não, nem começa. Eu não quero ser seu amor agora. Quero ser a sua piranha,
sua vadia. Eu... Eu...
Fábio estava incrédulo. Não imaginava que ela fosse capaz de falar desta forma.
- Eu sou vulgar! É isso o que você não entende! É por isso que você é corno,
benzinho. Eu fodo na academia, no trabalho. Já dei pra vizinhos nossos. Eu tenho tesão,
tesão pra caralho e cansei de reprimir por sua causa.
Ele queria ter algo a dizer. Não conseguia acreditar no que escutava. Era como
se estivesse deslocado da realidade, observando a cena de fora. Um espectador de uma
ficção medíocre num teatro amador. Não, não, aquilo era um pesadelo. Logo iria
despertar.
Depois de começar, Carla não se conteve mais. As palavras jorravam, sem filtro
e sem pudor. Fábio sentia algo obscuro emergindo ao redor, emanando da esposa,
tomando as paredes, os móveis. Aos poucos o desabafo da esposa foi se tornando um
relato das suas experiências extraconjugais, com detalhes sórdidos, sem conter gestos,
exclamações, hipérboles.
- Agora você fica de pau duro, né?! Seu filho da puta! – disse ela
agressivamente, mas transparecendo um fundo de prazer. – Você é um merda mesmo –
e concluiu cuspindo na cara do marido.
Ela o puxou para o chão, sentou sobre o rosto dele e começou a se esfregar com
violência enquanto ele continuava com a punheta. Ambos estavam enlouquecidos,
bêbados, envoltos em um surto de desgaste emocional e excitação.
Na mesma posição que estava, Carla começou a mijar. Ele sentindo aquele jato
quente na cara, gemeu, teve espasmos e gozou. Gozou como nunca antes se havia
imaginado capaz.
- NÃO ERA PRA TER FEITO ISSO AGORA! – E largou um tapa estalado na
cara mijada do esposo.
Ela recolheu o esperma que estava espalhado sobre a barriga dele e o fez engolir.
***
Fábio acordou com dor de cabeça, nauseado e confuso. Demorou alguns minutos
para entender onde estava e o que tinha acontecido. A sala ao redor estava
completamente destruída. Tudo fedia a urina. Seu corpo doía.
Era coisa demais para digerir. Não sabia o que fazer. Não sabia o que deveria
sentir.
Levantou apoiando-se no sofá. Não tinha muito equilíbrio. Era coisa demais...
Barulho de descarga.
Carla
- Te amo.
DIABO
Madrugada de sexta para sábado
Tinha medo.
Ansiedade.
Pensava na sua neta, coitada. Ele já não viveria por muito mais tempo. Sara é
que estaria exposta a esse novo mundo degenerado.
Ela era a única pessoa que o visitava com frequência. E foi quem o alertou sobre
a ameaça comunista latente e o controle que eles têm dos bancos, dos governos, da
ONU, das grandes multinacionais, das universidades, dos meios de comunicação, etc.
Pelo menos a sua sobrinha tinha conseguido escapar. E havia uma esperança.
Essas pessoas estavam se expondo na internet para denunciar o projeto comunista, para
fazer o povo acordar.
Esta noite Alípio viu pela primeira vez um youtuber relacionar a dominação
esquerdista ao satanismo.
“Será possível?!”
O que viu o apavorou. Não conseguia dormir. Apagava a luz. Acendia a luz.
Andava até a cozinha, bebia um copo d’água e voltava para a cama. Depois ia ao
banheiro. Lavava o rosto.
Latidos.
Latidos.
O beco está escuro. Não dá pra saber o que está acontecendo, a sua vista já não
funciona tão bem. Tenta entender o que dizem e não consegue. Mas sabe que algo está
errado. Pressente que um crime está prestes a acontecer.
“Vou ligar pra a polícia.”
No beco se depara com Paulo morto. Uma poça de sangue. Pensa nos
comunistas. “Quem mais faria isso com o pobre Paulo? Nunca fez mal a ninguém.”
Passa horas na janela observando o corpo imóvel estirado no beco. A noite está
silenciosa e o céu estrelado.
Manhã de Sábado
Anda sonolento até a janela e se debruça para fora. A claridade do dia o deixa
atordoado. Mas logo começa a assimilar as coisas. No beco, um policial anda de um
lado para o outro gritando com as pessoas.
Alípio vai tomar banho. Sua cabeça está acelerada. Seu raciocínio, confuso.
- Quem te recomendou isso, vô? – questionou uma tarde ao vê-lo tomar uns
comprimidos.
- O meu psiquiatra. Ele disse que vai me ajudar a me sentir melhor. Os últimos
exames mostraram que tô com um princípio de esquizofrenia. Ele me explicou os
termos técnicos, mas não lembro... Qual é mesmo o nome?... Antipsicótico, eu acho.
- Como assim?
- Florais?
- Sim, florais.
- O que são?
- É um elixir feito à base de flores. Tudo natural e muuuito bem estudado. Nada
dessas químicas tóxicas que você tá tomando.
Na semana seguinte visitou o tal terapeuta. O rapaz o olhou, fez uns sons
esquisitos e uns movimentos teatrais. Disse sentir uma energia positiva reprimida e que
Alípio precisava de uma cura espiritual profunda. A ansiedade, as alucinações, tudo era
fruto do excesso de negatividade que ele vinha absorvendo sem se dar conta.
No mesmo dia Sara jogou fora todos os remédios que ele tinha em casa. O fez
prometer que não voltaria àquele psiquiatra charlatão e que faria o tratamento
homeopático com florais.
Tarde de Sábado
Desperta.
Noite de Sábado
Desconfia que o Diabo possa ter entrado em sua casa. Sente cada vez mais
intensamente a sua presença. Começa a confabular. É possível de que os comunistas
tenham matado Paulo como oferenda, ou em alguma espécie de ritual satânico.
Pega uma faca na cozinha e a coloca por dentro da calça, na cintura. Sai de casa.
Descabelado e com ar desvairado. Desce as escadas, arfando, com manchas de suor na
camisa, sob as axilas. Está sem comer nada desde a noite anterior.
- Lip?
- Tá tudo bem?
- Ele tá me encarando.
Silêncio.
Silêncio.
Desliga.
Entra no café. Está quase vazio. Apenas dois jovens numa mesa. A garçonete o
olha atravessado e leva um instante até reconhecê-lo.
- Ssshhh – faz um sinal de silêncio, com o dedo em frente à boca. Olha para os
lados. Desconfiado. Nervoso. Alerta.
Passa pela moça e senta numa mesa adjacente aos dois rapazes que conversam
indiferentes a sua presença. Atônita, a garçonete vai até ele novamente.
- Meu pai é um merda, cara. Você viu como ele tava de manhã.
Dá um grande gole e larga o copo sobre a mesa. A garçonete volta aos seus
afazeres atrás do balcão.
- Cara, tenho que te contar uma parada. Fiquei sem saber como falar mais cedo.
- Qual foi?!
- Sabe aquela historia que a Lu tava contando hoje mais cedo. Lá na praia. Do
velho que jogou o copo na gente e tudo mais.
- Pô, Thiago, o teu pai é um dos que tava na mesa com os reaça.
- CARALHO, VINI.
- ...
- Mas cara, na real eu nem devia me surpreender. Pelos papos dele ultimamente
já era esperado essas doideiras.
- Sim, é foda. Imagina se ele descobre que eu tô fazendo militância pela UJR lá
na Rural?!
- Pode crer. Mal sabe ele que o próprio filho é um militante comunista.
- Só dá maluco – ri.
Alípio se levanta.
Sorrindo.