Você está na página 1de 64

Copyright © 2011 UFMBB

Todos os direitos reservados a União Feminina Missionária Batista do Brasil.


Proibida a reprodução total ou parcial por quaisquer meios sem permissão por
escrito da editora.

Coordenação editorial, revisão literária e editoração eletrônica:


Celina Veronese
Capa: oliverartelucas

Gonçalves, Margarida Lemos


G635m A missionária que veio para ficar/ Margarida Lemos
Gonçalves .- Rio de Janeiro: UFMBB, 2011.
64p. : Il. ; 21,5cm.
ISBN 978-85-7781-030-7

1. Silva, Beatriz Rodrigues da, 1909-1996 —— Biografia.


2. Biografia missionária. I. União Feminina Missionária
Batista do Brasil. II. Título.

CDD 922

Índice para catálogo sistemático:


1. Batistas: Missões: 266.61

Publicação da União Feminina Missionária Batista do Brasil


Rua Uruguai, 514 – Tijuca – Rio de Janeiro – RJ – 20510-060
Tel.: (21) 2570-2848 Fax: (21) 2278-0561
E-mail: ufmbb@ufmbb.org.br
Homepage: www.ufmbb.org.br
Tiragem: 2.000
Impresso na Sermograf Gráfica

2 A missionária que veio para ficar


Sobre a Autora
Filha de pastor, com a idade de 15 anos, Margarida Lemos
Gonçalves sentiu o primeiro apelo para a obra missionária ao
ouvir Beatriz Silva falar sobre a necessidade de mestres na re-
gião do Tocantins, onde, na época, havia poucas escolas. Com
20 anos, após ouvir outra missionária – Nair Batista – apelar
à juventude que fosse ajudar no interior da Pátria, tomou a decisão final. Assim,
com 21 anos, no dia 4 de novembro de 1948, deixou a Cidade Maravilhosa e foi
para a região do Rio Tocantins.
Começou a trabalhar em Carolina, no Maranhão, desenvolvendo o ensino re-
ligioso para os jovens vocacionados, futuros obreiros do campo. Ali também
iniciou o trabalho de alfabetização de adultos - “A Escola dos Pés Descalços”, que
cresceu e, hoje, tem seu nome - Margarida Lemos Gonçalves.
Após dois anos Maranhão, pediu à Junta de Missões Nacionais, à qual estava
ligada, que a transferisse para Tocantínia, a fim de trabalhar na área do ensino pri-
mário, hoje, fundamental. Seu pedido foi aceito e, em 1951, iniciou o trabalho
ao qual sempre se dedicou atéhoje: o do ensino religioso e secular.
Do Colégio Batista do Tocantins, em Tocantínia, foi diretora durante 32 anos.
Em Santarém, no Pará, por dois anos, foi Diretora do Colégio Batista e dirigiu a
Primeira Igreja Batista de Santarém. Com a criação do Estado do Tocantins, foi
convocada pelo primeiro Governador a ajudar na área da Educação. Foi, então,
Presidente do Conselho Estadual de Educação, no qual atuou por mais de 5 anos.
Recentemente, foi convidada pela Secretaria da Educação do Estado do
Tocantins para assumir a gestão de um Colégio de Tempo Integral
Profissionalizante, exatamente onde existiu o Colégio Batista de Tocantínia, atra-
vés de comodato com a JMN da CBB.
Aos 84 anos, a Missionária continua trabalhando para o Senhor. Recebe muitos
convites para falar em diversos lugares, tanto no Estado do Tocantins como fora dele.

Palavra de Editora
É com alegria que a União Feminina Missionária Batista do Brasil edita esta
biografia de autoria da Professora Margarida Lemos Gonçalves, cuja vida tam-
bém nos inspira sobremaneira.
"A missionária que veio para ficar", uma verdadeira joia da literatura missionária,
é um presente de Deus que chega a nós pela mente e pelo coração da autora.
Celina Veronese

A missionária que veio para ficar 3


Apresentação
Apresento este livro como um presente que recebi do meu
Deus, dando-me o privilégio de escrevê-lo.
Com 15 anos de idade, no cais do porto de Vitória, onde
residíamos ainda, disse a D. Beatriz: ”Eu queria muito ir com
a senhora pra ser missionária no sertão...” Ao que ela res-
pondeu sorrindo e olhando bem nos meus olhos: “Um dia
você vai, um dia você vai... Você precisa estudar mais, se
preparar, e então, vai...”
Seis anos depois eu chegava a Tocantínia, às 2 horas da
manhã. O barco em que eu viajava amarrou sua corda numa
grande raiz de merindiba, onde eu me segurei para subir a
ribanceira barrenta e escorregadia. Em poucos instantes, à
luz de lamparina, abraçava o diácono da Igreja, o irmão Isaías
Siqueira e a minha missionária, cuja visão de tarefa do Rei-
no de Deus me fez escutar o chamado para deixar o Rio de
Janeiro e vir para o sertão.
Desse dia em diante, com eventuais saídas para trabalhos
em outros campos, vivi e convivi com D. Beatriz, dentro de
seu “LAR NO SERTÃO”, por mais de 40 anos. Desse conví-
vio abençoado, aprendi a viver missões todos os instantes
de minha vida.
Assim, escrever este livro era mais que um processo de
profunda gratidão. Era a obrigatoriedade de contar aos ou-
tros como alguém pôde viver neste mundo com o endere-
ço do céu bem vivo em seu rosto e atitudes.
Tudo foi possível porque Deus me deu esta oportunida-
de aos 83 anos de idade, e agradeço de coração a todas as
companheiras missionárias que deixaram suas marcas nos
dias alegres de “Beatriz, a que faz feliz”.
Aqui está. Que Deus abençoe o coração e a mente de
quem o ler, como me abençoou ao escrevê-lo.

Margarida Lemos Gonçalves - missionária

4 A missionária que veio para ficar


Dedicatória
Ao meu Deus, Senhor de todas as benesses e
alegrias;
À União Feminina Missionária Batista do Brasil,
promotora do trabalho de excelência no mundo
feminino;
À Diretora Executiva do trabalho feminino
batista em todo o Brasil, Irmã Lúcia Margarida
Pereira de Brito, missionária como eu;
À Diretoria da UFMBB, que leva adiante com
esmero e amor os propósitos da instituição;
Às companheiras, professoras-missionárias que
ajudaram Beatriz a fazer do Colégio Batista de
Tocantínia uma bênção;
Aos Pastores que foram seus conselheiros e
amigos na sua jornada cristã;
Aos parentes de Beatriz, que já estão na
eternidade e que foram bênçãos em sua vida, e aos
que porventura ainda existam entre nós;
Às Mensageiras do Rei de toda a pátria brasileira,
aguardando-as no Campo Missionário,

Dedico com muito carinho esta obra.


Margarida
Lajeado – Tocantins

A missionária que veio para ficar 5


“Eu vim para ficar!” 7
A volta da guerreira 9
Na terra natal 10
Na terra de adoção 16
Facetas de uma vida 20
Tocantins: o Vale Batista 29
Histórias para contar adiante 32
Testemunhando em terras estrangeiras 43
Coisas que foram acontecendo 50
Merecidas homenagens 58
Considerações finais 61

6 A missionária que veio para ficar


“Eu vim para ficar!”
stas foram as palavras pronunciadas por Beatriz Rodrigues da Silva no
alvorecer do Dia do Ex-Aluno, 15 de julho. A Banda da Polícia do
Tocantins havia acabado de desfilar pelas ruas de Tocantínia e agora
parara em frente à sua casa, o “Lar no Sertão”. Chegaram tocando o hino
“Olhando Para Cristo” e, diante da casa, deram meia-volta, ficando de frente para
a residência da “Velha Mestra”, passando a tocar “Cidade Maravilhosa”, uma ho-
menagem à sua terra natal, o Rio de Janeiro. Por último, entoaram o “Hino do
Colégio Batista de Tocantínia”, letra de seu irmão Carlos Rodrigues da Silva.
O horizonte começava a clarear quando grande parte da população da pequena
cidade já formara um círculo ao redor da professora querida, agasalhada num
casaquinho de lã azul claro e amparada de um lado pelos braços da professora
Luci Rodrigues, que estivera a seu lado desde que a fragilidade atingira as per-
nas, dificultando sua locomoção. Do outro lado estava eu, vivendo intensamen-
te aquele momento.
O dia nascendo, o silêncio na rua, o portão da garagem aberto, e então aquela
voz, que já havia sido muito forte, inicia sua mensagem: uma retrospectiva de
1936, até o instante ali vivido. Impecável como sempre, usando as palavras exatas,
fala com facilidade sobre sua chegada, sua gratidão aos que a recepcionaram e
dela cuidaram através dos anos, e então, com um sorriso muito seu, diz: “Eu vim
para ficar...” Todos os que ali estavam e que a amavam, também sorriram, em-
bora com os olhos cheios de lágrimas. Ali estava traçada toda a trajetória de uma
vida que, bem jovem, havia chegado ao “sertão”, imprimindo à sua chamada a for-
ça de um ideal profundamente humanitário: missionária, mestra, amiga, viven-
do em função dos ideais do Céu.
Naquele momento, D. Beatriz, mais uma vez, definia o propósito de sua vinda
e de sua permanência entre nós: “Eu vim para ficar para fazer deste cantinho
o meu chão, deste povo a minha gente, dos sonhos e anseios deles, os meus pró-
prios.”
Mesmo amando e sentindo saudade de seus entes queridos, logo que foi pos-
sível, construiu a sua residência, usando o barro, a areia, a cal (trazidos em carro
de boi), buscando a madeira extraída do cerrado, as telhas e os tijolos confecci-
onados pelo homem simples que mourejava em olarias no entorno da pequena
cidade. Imprimiu estilo um pouco diferente à sua casa. É que, contrariando o
costume das moradias da região, afastou-a do que seria no futuro um meio fio,
ali plantou um jardim e ao invés de um muro frio e compacto, uma mureta com
vigas de madeira ao longo das quais os amigos se debruçavam observando as flores.

A missionária que veio para ficar 7


A Missionária Beatriz (no centro) na madrugada de seu último discurso

Tinham sido plantadas pela professora e ali cresciam sob os cuidados da querida
companheira de desafios e bênçãos, a Dona Dudu. Alguns amigos diziam: “Pro-
fessora, por que a senhora não planta verdura que sirva para o dicomê?”
Disso tudo se recordava D. Beatriz, no amanhecer de mais um dia de encontro
de seus filhos, que vinham de longe, como o faziam anualmente, para celebrar
seu amor à Escola e aos seus mestres.
Naquela noite houve culto solene no Salão Nobre “David Gomes” do Colégio.
Depois foram entoados cânticos folclóricos, foram apresentados dramatizações
e discursos. Dona Beatriz a tudo assistiu com um semblante feliz, tranquilo,
aplaudindo as “performances” de seus filhos...
Exatamente catorze dias depois, 29 de julho de 1996, em pleno encerramento
da Convenção Batista do Tocantins, com irmãos de todo o Vale e representan-
tes do Brasil batista, por vontade divina, Beatriz Rodrigues da Silva nos deixava.
Partia para a Cidade Celestial.
Ao ensejo da Convenção, que comemorava os 60 anos de trabalho em
Tocantínia, os convencionais fincaram em praça pública, em ato solene presidi-
do pelos governantes do município e assistidos por um grande número de pes-
soas da cidade, uma placa alusiva ao trabalho batista naquele pedaço de Brasil ser-
tanejo.
Beatriz não assistiu ao ato solene. Mas lá de seu “Lar no Sertão”, em sua rede,
ela viveu cada momento.

8 A missionária que veio para ficar


A volta da guerreira
pequena cidade estava em silêncio, o povo assentado nas calçadas,
comentando, em voz baixa, lembranças dos contatos que tiveram
com D. Beatriz, mestra amiga, missionária dedicada e comprome-
tida com o seu Senhor. As crianças não brincavam. Nenhuma espé-
cie de música era tocada. Todos aguardavam a chegada do corpo daquela que por
sessenta anos vivera no seio da comunidade, ensinando, testemunhando, acon-
selhando...
Dias antes sua saúde piorara e foi preciso conduzi-la a Palmas, onde médicos
amigos se juntaram para tentar reverter o quadro. Mas foi em vão. Na madru-
gada do dia 29 de julho ela partiu para estar com o Senhor. Calma e tranquila,
como descreveu a irmã que estivera ao seu lado.
E agora começava o cortejo fúnebre a adentrar a avenida central da pequena
cidade. Os homens, antes sentados em círculo - conversando em voz baixa - se
levantam, segurando seus chapéus e se dirigem lentamente para o Colégio Ba-
tista onde se reuniriam aos demais para o Culto em Ação de Graças pela vida
daquela que por muitos foi considerada a “Mãe de Tocantínia”.
Dali a pouco o carro fúnebre, seguido de muitos outros, penetra a alameda
formada de mungubeiras, atravessa os flamboyants e para à porta principal do
Colégio. Com carinho o caixão é levado ao salão nobre “Pastor David Gomes” onde
o jovem Marcos Fernando Krieger, ao teclado, dedilhava os hinos da fé cristã que
confortam o coração nos momentos de crise. Outras horas a ex-aluna Concita
Sotero também enchia de sons confortadores o salão onde as pessoas se reve-
zavam.
Vários cultos foram realizados, à tarde, na madrugada e pela manhã antes do
féretro, dirigidos por vários ministros do Senhor que ainda não tinham partido
para suas sedes de trabalho. Em todos os momentos obreiros e irmãos apresen-
taram testemunho sobre a vida e obra da missionária Beatriz, ressaltando o
Senhor que ela servia.
Agora descansavam os cansados pés - desbravadores - daquela que não se
poupara no intuito de buscar e ganhar almas para Cristo em todo o Vale do
Tocantins.
A Guerreira voltara ao Lar, nos dois sentidos: Tocantínia, a terra adotada pelo
seu coração, e a Pátria Celeste, onde já estaria, desde a sua partida para a eter-
nidade, a “contemplar os sinais dos pregos” nas mãos do Senhor!

A missionária que veio para ficar 9


Na terra natal
A família e o preparo
menina Beatriz nasceu no dia 15 de novembro de 1909, em um lar
humilde, mas cheio de sonhos de conquistas no terreno intelectual.
O pai, português de “Trás-os-Montes”, simples nas atitudes, mas
muito determinado, Antônio Rodrigues da Silva. A mãe, carioca de
temperamento alegre, vivaz e ao mesmo tempo forte, Feliciana Araújo Lemos.
Ambos católicos que buscavam, à sua maneira, passar aos filhos a sua crença.
A família residia em Osvaldo Cruz, subúrbio do Rio de Janeiro, então capital
federal, a “Cidade Maravilhosa”. Vizinhas amigas e “protestantes” dispuseram-
-se a buscar e levar as crianças para a congregação que frequentavam em Bento
Ribeiro, e os pais permitiram que fossem. Foi ali que Beatriz e seus irmãos ou-
viram as histórias da Bíblia em primeira mão e vieram a aceitar Jesus Cristo como
Salvador e Senhor.
A família era composta de três irmãos e quatro irmãs: Carlos (que aceitou o
ministério da Palavra), Manoel e Samuel, Fernandina, Andréia, Débora e ela,
Beatriz. Exceto Manoel, os demais aceitaram o evangelho e o viveram até quan-
do o Senhor os chamou para morarem com ele no céu. Do lado paterno, nenhum
parente conheceram; do lado materno, tios e primos, muitos deles vieram a
pertencer à Assembleia de Deus. Família unida, sempre se visitavam.
Diz Beatriz nas páginas iniciais de seu diário: “Recordando os tempos da in-
fância, quando era levada por amigas crentes à casa do Senhor, agradeço a
Deus o ter preparado tais pessoas para me encaminharem espiritualmente, não
sendo crentes ainda meus pais. Um pouco mais tarde tive o privilégio de fre-
quentar a Escola Dominical, a Sociedade Juvenil e os trabalhos na Igreja Ba-
tista em Ricardo de Albuquerque, desde quando esta era ainda ponto de pre-
gação da Primeira Igreja Batista do Rio.” E ainda: “Fui batizada em 27 de fe-
vereiro de 1921, pelo saudoso pastor F. F. Soren e continuei a trabalhar na Igreja
em Ricardo, conhecendo pouco do trabalho fora do local em que residia.”
Foi nesse tempo, na Igreja de Ricardo, que os pastores L. M. Bratcher e W. E. Allen
conheceram a adolescente Beatriz e viram nela uma futura obreira. Eles a levaram a
matricular-se na Escola de Obreiras, que funcionava no Colégio Batista, onde ela
começou ver o valor do mundo crente e os desafios missionários do Brasil e do mundo.
Durante sete anos ali esteve em contato com mestres que inspiraram a sua vida
e a de muitos outros jovens, que naquela escola buscavam a instrução para o
intelecto e receberam, ao mesmo tempo, iluminação para sua vida espiritual. Foi

10 A missionária que veio para ficar


nas aulas de Missões, do missionário
Bratcher, que Beatriz veio a conhe-
cer os campos missionários, suas ne-
cessidades e oportunidades. É o que
ela diz adiante: “Estando sempre es-
perando a manifestação da Vonta-
de Divina, acompanhei com oração
e interesse os trabalhos da Junta de
Missões Nacionais, sentindo sem-
pre verdadeira atração pelo desafio
do Interior do Brasil.” Essa Escola de
Obreiras era administrada pela União
Geral de Senhoras do Brasil (hoje,
UFMBB), com vistas à formação de
missionárias, e realmente muitas ali A família de Beatriz
se formaram.
Ao terminar o curso, Beatriz tornou-se a professora amada e elogiada pela
administração e pelo corpo docente da Escola Batista da Igreja de Ricardo de
Albuquerque, onde veio a lecionar. Foi nessa época que se entregou à causa
missionária, oferecendo sua vida para ser usada por Deus pelo tempo que ele a
quisesse. Então, apresentou-se à Junta de Missões Nacionais.
Aceitas pela Junta em setembro de 1935, ela e sua colega de turma Lígia Martins
de Castro foram acolhidas com entusiasmo pelo povo batista. Eram bem jovens, numa
época em que viver na Capital Federal era tudo. Mas ambas haviam abraçado o de-
safio dos sertões brasileiros, sabendo de todas as dificuldades existentes, no desejo
de levar a mensagem de salvação ao Brasil caboclo. Ambas foram pela primeira vez
apresentadas como futuras missionárias em assembleia da Convenção das Uniões de
Mocidade do Distrito Federal, então o Rio de Janeiro. O “Batista Federal” e o “Jornal
Batista” apresentaram, na ocasião, amplo noticiário sobre a nomeação das duas
cariocas que partiam para representar-nos no interior da Pátria. O nordeste, Alagoas,
já havia enviado sua obreira, com curso feito na então Escola de Treinamento Cris-
tão Para Moças, o SEC de hoje, sendo a primeira moça a ir para o sertão.
Em artigo escrito para “O Crisol”, órgão da Mocidade Batista, dizia Beatriz:
“Conhecendo as atuais necessidades do trabalho e sentindo que Deus me
chamava, resolvi me apresentar à Junta, depois de orar e esperar que a minha
igreja orasse, pedindo a direção do Alto. Muitas foram as dificuldades... Mui-
tos são os motivos por que devo dar graças a Deus, sendo o principal a salva-
ção por Jesus. Grata sou ao meu Deus por ter encontrado pessoas crentes que
me levaram à Igreja onde comecei a conhecer o Salvador; pela conversão de
meus pais e irmãos e ainda pelo privilégio de trabalhar na Igreja de Ricardo de
Albuquerque onde ganhei treino de todas as atividades da Causa. Também
agradeço ao Pai Celestial, a oportunidade de observar vidas inspiradoras como

A missionária que veio para ficar 11


as de Dr. Allen e D. Edith, sua esposa, os quais,
durante o pastorado em nossa igreja, nos ins-
piraram com a sua consagração e dedicação ao
Senhor. A todos os irmãos que nos vêm auxi-
liando com orações e ofertas, apresentamos
o nosso sincero agradecimento, esperando
que continuem a nos amparar com as suas
orações, para que juntos possamos apresen-
tar ao Glorioso Senhor, algum fruto do seu tra-
balho iniciado em Piabanha, onde ficarei
aguardando as ordens de meu Senhor.”
No seu diário ainda consta, nesse início, o se-
guinte: “Datas Importantes: Reuniões da
Junta para nossa recepção - 14 e 17 de se-
tembro de 1935. 18/9/35 - Reunião da Con-
venção das Uniões de Mocidade Batista do Casal Allen – segundos pais
Distrito Federal, onde pela 1ª vez fomos apre- de Beatriz
sentadas como missionárias.”
Nos meses de despedida, as missionárias receberam ampla parceria de irmãos
e entidades, que ofertaram objetos de uso pessoal e material para ajudá-las no
campo onde iniciariam sua jornada.

A despedida
Foi na manhã de 25 de janeiro de 1936 que Beatriz deixou seu lar. Ela registra
isso de uma forma bem singular: “Manhã esplendida! Brilhante sol acaricia com
os seus raios, a formosa e minha terra carioca! Em toda a Natureza vi festa,
vida em tudo, alegria, prazer... menos no meu lar!”
A família reuniu-se ao redor da mesa de refeições. D. Feliciana, com coragem, tomou
a Bíblia e, com voz firme, leu o salmo 121. Oraram. Começaram os abraços, as des-
pedidas. Todos os olhos, marejados de lágrimas. Débora, a irmã mais nova, tomada
pela emoção, perde os sentidos. Beatriz corre para acudi-la, mas ouve a mãe dizer:
“Vai, minha filha, vai, segue a tua missão...” É que, naquele tempo, viajar de navio pelo
litoral brasileiro já era uma temeridade. Que dirá subir o Rio Tocantins para alcançar
Carolina, no Maranhão, onde Lígia ficaria, e passar por Piabanha, lugar de índios e feras.
Assim deixou Beatriz o seu lar, “olhando para o invisível”, mas com fé e espí-
rito de submissão. Naquele tempo partir para o interior da Pátria era um ato de
extrema coragem e desprendimento. Os não crentes não entendiam. Por que
sacrificar-se por pessoas que não conheciam? Não entendiam que, sem Cristo,
todos estavam perdidos e que, no interior do Brasil, havia muitas pessoas sem
orientação espiritual. Beatriz escreve, então, em seu diário:
“Depois de bela, porém triste manhã, ouvi soarem as 12 badaladas do meio
dia, estando eu, Beatriz R. Silva, sentada em um dos bancos do hospitaleiro

12 A missionária que veio para ficar


 Bem no centro,
no navio, estão
Beatriz e Lígia
no momento
da despedida.

Porto do Rio, contemplando o movimento de carga e descarga do ITAPÉ, pa-


quete que me havia de retirar do meu mui querido torrão Carioca.
“Ó Terra de minha infância! Não fora o ideal que tenho e a certeza de cum-
prir uma doce quão escabrosa missão, por cousa alguma te deixaria com prazer!
“Meu coração experimentou, ao aproximar-se a hora do embarque, uma
sensação inexplicável...
“Terra de meu povo, berço de meus irmãos! Em ti, Rio querido, vi brilhar o sol
pela primeira vez em minha vida! Em ti conheci, amei a Deus e a Ele me entre-
guei para o seu serviço! Bendita terra Carioca! Venha presto o dia em que o
Senhor seja conhecido por todos que têm a ventura de em ti habitar!
“Embarquei”, diz seu diário, “com o coração apertado, mas com um sorriso
nos lábios.
“Partiu lento o Itapé; parecia-me parado.
“O povo, o querido povo meu conhecido, ia aos poucos se afastando, se afas-
tando... sumindo entre os lenços brancos agitados, rostos lacrimosos, retratos
tirados...
“O Rio vai ficando... O navio muda a posição...
“À distância, o “gigante deitado” da Tijuca... O verde dos montes se foi mo-
dificando, arroxeando, acinzentando... até haver no horizonte uma linha escura
que se foi adelgaçando, afinando, desaparecendo em seguida.”
Entre os presentes recebidos na última hora, uma carta de D. Edith Allen, mestra-
-companheira de Beatriz, desde a sua chamada e preparo, até o tempo dos cabelos
brancos. Com lágrimas nos olhos, Beatriz leu a carta, que transcreveu, depois, no seu
diário. Um trecho dizia: “Você está bem preparada em todo o sentido da palavra.
Há de conquistar o amor do povo tocantino, e, uma vez conquistado, é seu para
sempre. Que há de conquistar esta confiança e amor, não tenho a menor dúvida...”
E ali estava ela, dirigindo-se ao Campo. Sozinha, tendo deixado os familiares,
os amigos e sua amada igreja, mas feliz, porque respondia ao Chamado. Lembrou-
-se, então, do que sua mãe escrevera na carta pela qual, de maneira singela, en-
tregara a filha querida para a obra missionária: “Desejamos ver a nova geração
disposta a erguer bem alto o pendão do Evangelho!”

A missionária que veio para ficar 13


Ao terminar de ler a carta de D. Edith, Beatriz
procurou divisar ainda sua terra natal. Nada! Só mar
muito azul e céu claro, brilhante, cheio de beleza.
A viagem para o campo
missionário
Por 30 dias, as missionárias viajaram rompendo as
águas do Atlântico, no sentido sul-norte, até aportar
em Belém do Pará. O paquete Itapé era razoavel-
mente confortável - mesmo viajando em 2ª classe
- e ali fizeram várias amizades, o que tornou os dias
menos cansativos.
Mas a viagem não foi direta. Houve pausas
muito interessantes, como as que seguem, nar-
Beatriz e sua colega Lígia
radas por ela:
“Uma pequena parada na baía de Vitória, sem que descêssemos. Era um do-
mingo sem ir à igreja, mas lendo a Bíblia e cantando hinos para engrandecer
o nome do Senhor... Estávamos a caminho da seara e tudo nos estimulava a
agradecer e a louvar. E os camareiros foram alvo de nossa mensagem sempre
que oportunidade havia.”
A passagem pela Bahia foi uma ótima experiência para as missionárias. O navio
atracou e elas foram recebidas por irmãos, que tiveram o cuidado de levá-las para
conhecerem prédios, logradouros públicos, o Elevador Lacerda e templos batistas.
Prosseguindo viagem, pararam em Maceió, onde visitaram a Primeira Igreja e
a Igreja Batista do Farol. Ali conheceram parentes e amigos da missionária
Marcolina Magalhães, já no campo desde 1932, para a qual levaram muitos pre-
sentes ofertados por seus irmãos em Maceió.
Chegaram, então, a Recife, onde receberam o carinho de missionários norte-
-americanos e irmãs em Cristo. Visitaram muitas igrejas e foram impactadas com
as bênçãos do trabalho ali realizado.
Em Natal, não esperavam estar com ninguém, mas eis que o irmão Manoel
Santos Oliveira ali esteve, com sua filhinha Raquel, que mais tarde tornou-se
missionária no interior da Pátria.
De Natal foram a Fortaleza, e logo após a São Luís. Nas duas capitais foram
recebidas de maneira fraterna e com gestos de carinho e atenção. Todos queri-
am agradar e ajudar as mensageiras do Senhor que haviam deixado a Cidade
Maravilhosa para levar a Luz do Evangelho aos sertões.
Chegaram ao porto de Belém do Pará 12 dias após terem deixado o Rio. Possi-
velmente seria metade da viagem. Dali subiriam o Rio Tocantins para atingir o sul
do Maranhão e o norte de Goiás, hoje Tocantins, onde receberiam seus campos de
trabalho: Carolina e Piabanha. Em Belém, foram acolhidas pelos pastores Normand

14 A missionária que veio para ficar


Lang e João Manoel, que determinaram, daí para
a frente, os passos da viagem rumo ao interior.
Foi aí que tiveram o primeiro contato com redes
para dormir à noite. Como boas cariocas, forra-
ram o assoalho com jornais e sobre eles esten-
deram as redes, onde dormiram muito bem.
Em Belém tomaram conhecimento de um
alimento regional cuja presença era indicada
por cestos expostos à porta das vendas. Era o
açaí, suco pastoso que, ao ser provado, a prin-
cípio não era aceito. Visitaram as avenidas cheias
de frondosas mangueiras, o que as tornavam
sombrias e tristes, mas o povo era alegre e hos-
pitaleiro, o que lhes fez muito bem. Visitaram
os baixios alagadiços da periferia e se surpre-
enderam ao ouvir os paraenses dizerem que es- Beatriz a bordo do navio Itapé
tavam no inverno em pleno mês de fevereiro!
No dia 9, às 20 horas, despediram-se dos irmãos e amigos e embarcaram no
barco Madeira-Mamoré, retomando a viagem rumo ao campo de Missões Na-
cionais, o Vale do Tocantins.
Agora, deixando a Baía de Guajará, começa a longa viagem rio acima, pelo lindo Rio
Tocantins! Pararam em pequenos lugares, cujos nomes ficaram gravados em seu diário:
“Abaeté, ‘portos de lenha’, Cametá, Mocajuba, Baião, Alcobaça, onde o Pastor
Normand Lang inaugurou o seu barco Evangelina”. No dia 14, passam do barco
Madeira-Mamoré para outro, menor, chamado ‘Couto Magalhães III’.”
E continuam os pequenos lugares das paradas: Samaúma, Jacundazinho,
Jacundá e então Marabá, onde a recepção aos viajantes foi muito efusiva. É que
nessa data seriam empossados o Prefeito e os Vereadores daquele município. A
festa se revestiu de muita pompa, pelo fato de estar presente o Deputado Deodoro
Mendonça que enriqueceu o ambiente com um belo discurso contra o comunismo
que procurava entrar no Brasil naquela ocasião.
Em Marabá, as missionárias se encontraram com o irmão Alfredo Silva, ir-
mão do Pr. Alexandre Gonçalves Silva, grande obreiro leigo do Vale do Tocantins.
Dali, seguiram até Imperatriz, atravessaram a perigosa cachoeira de Santo
Antônio e chegaram a Porto Franco, onde a missionária Marcolina Magalhães as
recepcionou com sua escola, juntamente com o Pr. Alexandre Silva e família. Bela
Vista, hoje Tocantinópolis, na outra margem do rio, foi também visitada, e dei-
xou forte impressão pelo desafio espiritual que apresentava.
Depois, Nova Aurora do Coco e Carolina, onde ficou a missionária Lígia de
Castro, a carioca que, como Beatriz, ali iniciaria sua jornada missionária, repre-
sentando o Senhor Jesus e os batistas brasileiros.

A missionária que veio para ficar 15


Na terra de adoção
iabanha estava bem acima de Carolina, à margem direita do Tocantins.
Era uma pequena vila, que fora fundada pelo Frei Antônio de Ganges
para catequizar os índios xerentes. Seu progresso era lento e deixava
lacunas em vários setores da vida pública.
Para as missões evangélicas, Piabanha foi “descoberta” pelo Dr. Bratcher em
sua célebre visita ao sertão nos idos de 1925. Conhecido pelos sertanejos como
Dr. Luiz, mais tarde apelidado “Apóstolo do Sertão”, ele ficou impressionado com
o grande número de crianças em idade escolar sem escola, e, pressionado pelos
insistentes pedidos de moradores locais, que solicitavam o envio de professoras
para a região, empenhou-se no sentido de atender às necessidades. Bratcher era
o novo Secretário Executivo da JMN e havia sido professor de Beatriz Silva na
Escola de Obreiras. Beatriz foi, portanto, a resposta aos reclamos de Piabanha e
arredores, assim como Lígia, sua colega, foi de Carolina, no sul do Maranhão.
Foi numa sexta-feira, dia 28 de fevereiro de 1936, que Beatriz chegou ao seu
destino. Diz no seu diário:”Bem cedo, sob chuva torrencial, chegamos a
Piabanha. Muitos irmãos e amigos nos estavam esperando. Logo vi o Sr.
Zacarias e sua filhinha Ana. Ao chegar a esta terra meu coração se eleva em
ardente prece: Senhor, já que me trouxeste até aqui em perfeita paz, dá-me
sabedoria e orientação para te servir neste lugar desconhecido!”
O Pr. Zacarias Campelo, sua esposa, D. Orfisa e cinco filhos já moravam ali há
tempos e deram todo o suporte inicial à nova obreira. Beatriz achou tudo “mui-
to melhor do que esperava: casas de telhas, ruas largas, povo alegre, estação
de telégrafo, duas lojas”. Foram dias cheios de surpresas para ela, e o casal de
missionários ajudou-a muito no seu período de adaptação. Começou a arrumar
a bagagem. Estantes foram providenciadas com as tábuas das caixas de mate-
rial e em tudo a nova obreira foi muito abençoada pela atenção e o cuidado do
casal Campelo. No intervalo da arrumação, porém, precisou dar atendimento às
crianças que queriam ver a nova professora!
Nesse mesmo dia, à noite, no pequeno salão da casa adquirida para a escola, foi
realizado um culto, com mais de 50 pessoas. O ponto alto foi a apresentação de
três candidatos ao batismo, que, junto com dois já aceitos, formariam o grupo
que desceria ao Tocantins, no domingo seguinte, para testemunhar a sua fé em
Jesus. Era alegria demais, e Beatriz coloca em seu diário as seguintes palavras: “Por
hoje tenho tido pouco tempo para saudades...”
Dias após a sua chegada, a 2 de março de 1936, foram abertas as portas do
Colégio Batista de Tocantínia. Apresentaram-se 22 alunos. Poderia haver mais,

16 A missionária que veio para ficar


Primeira casa
da Escola

não fosse um certo medo que existia no ambiente. Escola de “protestante”? Será
que daria certo? Também, nesse tempo, as crianças viviam sob os cuidados de
mestres que usavam a palmatória, e a professora crente, como seria? Ela seria
“brava”? Mas os dias se sucediam com trabalhos, aulas, assembleias, e novos alu-
nos foram chegando. Cerca de 50 meninos já estavam matriculados no fim do ano,
assistindo aos cultos que eram dirigidos cada dia, no início das atividades. Logo as
mães descobriram que tal prática não trazia mal algum aos seus filhos.
Uma das mães procurou o Bispo de Porto Nacional e lhe perguntou se deveria
matricular seus filhos na Escola Batista, ao que ele lhe respondeu: “Os batistas
têm bons colégios e ensinam bem. Deixe os meninos na escola e ensine religião
em casa!” Todos os filhos dessa família estudaram na Escola Batista e dali saíram
advogados, médicos, enfermeiras e até um padre!
O chefe dessa família, Sr. Oscar Sardinha, interessado em cooperar com a
professora, ofereceu uma de suas casas para ser comprada pela JMN. O valor pela
compra poderia ser amortizado pela mensalidade de seus filhos. Deu certo! Logo
depois, a União Geral de Senhoras, por meio de sua executiva, Miss Minnie
Landrum, enviou uma mensagem: do total da oferta do Dia Batista de Oração
Mundial, metade havia sido reservada para o trabalho no interior da Pátria e, no
caso, para ajudar na compra de imóvel tão importante. Assim, a Escola Batista
de Tocantínia teve, antes do tempo previsto, sua casa própria: frente para o
nascente, fundos que se estendiam num terreno amplo, até as margens do
majestoso Tocantins, ao poente. Como Deus é bom!
Embora já iniciado, era preciso fortalecer o trabalho evangelístico. E não foi
difícil. Os primeiros crentes já se reuniam e agora, com o acréscimo de alunos que
começaram a se interessar pelo cântico dos hinos e pelas histórias da Palavra de
Deus, logo os cultos foram se impondo na pequena comunidade.
Vale a pena lembrar que o Pr. Zacarias Campelo, obreiro experiente, já havia tra-
balhado com os índios craôs, em Itacajá, e tinha vindo a Piabanha para atender

A missionária que veio para ficar 17


aos índios xerentes. Com o início da esco-
la, foi de suma importância sua presença ao
matricular os alunos e orientar a nova
obreira em sua nova atividade. Só a eter-
nidade poderá contar a bênção que repre-
sentou sua presença em Piabanha naque-
les dias!
Um fato relembra bem o impacto desses
primeiros cultos. Foi assim: Alguém contou
ao Pr. Zacarias que, na boca do povo, havia a
conversa de que a professora trouxera do Rio
de Janeiro caixotes de presentes, que o Papai
Grande (o Presidente Getúlio Vargas) envia-
ra para os índios, mas ela não havia feito a
devida entrega. O Pastor, preocupado, foi sa-
ber melhor sobre o assunto, e lhe explicaram
o perigo da situação. Sugeriram que ela sa- Beatriz após sua primeira visita
ísse do povoado, ao que ela respondeu: “Não, aos índios
eu fico. Vamos ver o que Deus permite.”
Na hora do culto, um punhadinho de interessados sentou no último banco. D.
Beatriz colocou o harmônio de frente para a calçada, suas costas para a parede
e começou a tocar. De repente, porta e janelas foram tomadas por homens
corpulentos, bronzeados, cada um trazendo uma forte borduna (arma indíge-
na) em suas mãos. Era o seu primeiro contato com os xerentes.
O Pastor Zacarias Campelo dirigiu a reunião normalmente. Ao término do culto,
os “caboclos” (como eram denominados os índios nesse tempo) invadiram o
aposento. Um deles, o mais idoso, foi na direção de D. Beatriz. Olhos vermelhos,
chegando perto disse-lhe abruptamente: TOCA O CULTO!
D. Beatriz abriu o cantor e começou a tocar. O índio grunhiu:
– Canta!
Beatriz começou a cantar. Quando parou, o índio disse:
– Mais!
E assim, de hino em hino, o tempo foi passando, o espírito guerreiro acalman-
do, e passava das 10 horas da noite quando todos os índios se retiraram sem fazer
mal algum.
No dia seguinte, os caixotes foram abertos à vista de todos, o material escolar
vistoriado, e assim foi derrubada por terra a lenda do presente do Papai Grande.
Não sabia Beatriz, que cerca de 71 anos depois, haveria igrejas atuantes nas
aldeias xerentes e dezenas de servos de Deus cantando e anunciando que “só Jesus
Cristo salva” na língua indígena!

18 A missionária que veio para ficar


Assim, adaptada ao meio, naquela vila apertada entre o grandioso Tocantins e
a Serra do Carmo, Beatriz iniciou sua tarefa dupla de educadora e missionária,
propagando o evangelho de Cristo em todo o lugar por onde andava. A escola
quadruplicou o número inicial de alunos e muitos foram atraídos pela mensagem
de salvação. Lares foram se formando, nos quais, histórias da Bíblia e cânticos
passaram a ser valorizados.
Beatriz viveu com toda intensidade o período de adaptação. Anotou várias
situações bem interessantes, diferentes da vida a que estava acostumada. Obser-
vou que os açougues não funcionavam todos os dias. Quando alguém matava uma
rês, vinha para o mercado (uma casa diferente só por ter cargas de diferentes
donos ao redor de um salão), avisando a chegada da carne através do som de uma
buzina, dessas que se usa nos rodeios. E então, saía-se de casa, segurando nas mãos
um gancho de arame forte com duas pontas, parecendo um anzol, no qual a carne
era colocada até chegar a casa. Durante o dia inteiro, em voz alta, pessoas pas-
savam oferecendo os mais variados produtos, desde o azeite extraído das amên-
doas de suas matas, até aqueles produzidos nos quintais: cheiro verde, macaxeira,
abóbora, quiabo, dentre outros. As quituteiras faziam doces das frutas comuns,
muito gostosos. Eram servidos às visitas em pires bem bonitos e, ao invés da colher
ou garfo, eram levados à boca na ponta de uma faca. Era costume comum em
todas as casas servir-se um cafezinho adoçado com rapadura, bem gostoso e
quente. Ao longo da bebida do café desenvolvia-se uma conversa alegre e pro-
veitosa. Parecia que uma “rabeira” (panelinha usada somente para fazer o café)
estava sempre a aquecer a água, tão rápido era servida a especial bebida ao se
chegar às casas... Era hábito, onde havia muitas pessoas, as senhoras ficarem de
pé e todos os homens sentados... Era muito comum as crianças pedirem “bên-
ção” não somente aos pais, tios e avós, mas a todos os mais velhos e principal-
mente aos mestres, num sentido de profundo respeito...
Pensando ainda sobre Tocantínia, sua terra de adoção, seria interessante al-
guns detalhes de sua história.
Tocantínia era, em sua origem, uma fazenda, propriedade do Capitão Sebas-
tião Lopes de Almeida. O povoado teve seu surgimento com a chegada do
Capuchinho italiano Frei Antônio de Ganges, com a intenção de organizar a
catequese dos índios Xerentes. O núcleo populacional foi chamado, inicialmen-
te, de Piabanha, nome do peixe que havia com fartura no ribeirão do mesmo nome.
Passou a ser Tocantínia em 20 de janeiro de 1936, e foi elevado à categoria de
Município pela Lei Estadual no 798, de 7 de outubro de 1953, sendo instalado o
município, solenemente, em 1º de janeiro do ano seguinte. Estava, portanto,
montado o palco sobre o qual se desenvolveria uma história de beleza incompa-
rável que trouxe diferença sensível à vida de muitos.
Daí em diante, palmilharemos a vida de Beatriz Rodrigues da Silva, carioca que
se tornou sertaneja, andando passo a passo através de 16 diários que ela nos legou.

A missionária que veio para ficar 19


Facetas de uma vida
lhar para a vida de D. Beatriz é estar pronto para admirar várias facetas de
uma só pessoa. Foi missionária itinerante (visitadora de igrejas e congrega-
ções), educadora, pacificadora, oradora, musicista e administradora. Co-
ração generoso, mente privilegiada, imaginativa nas conversas, alma sim-
ples e habituada à presença de Deus. Dedicada à música, “escrevia o som” de modo
fácil e apreciável. Versejava, discursava, observava com rigor as regras do requinte e
da ética. Seus sermões vinham do alto! Perfeita? Não, mas com múltiplas expressões
de beleza e de firmeza moral. Quem dela se aproximava era influenciado para o bem.
Poderíamos analisar vários ângulos da vida de D. Beatriz, sempre aprendendo
lições de valor incomparável. Uma de suas alunas disse certa vez: “O que eu mais
admirava em D. Beatriz era a sua sabedoria. Sabia organizar situações, cha-
mava a atenção de quem precisava, sem magoar, sem ferir. Nunca a vi nervo-
sa, extrapolando. Era sempre polida, tranquila, ponderada. Algumas vezes eu
me perguntava, junto às colegas: ‘Será que D. Beatriz pede a Deus perdão pelos
pecados? Ela não peca...’”
Manipulo, portanto, com profundo respeito, os seus diários, todos naquela letra
firme e forte, num português sem erros e rico, contendo informações úteis,
preciosas e, muitas vezes, prosaicas.
A vida social
Foi ainda no Rio de Janeiro que ouvi as histórias que cercavam a família. O Sr.
Antônio Rodrigues da Silva veio de Portugal para incrementar as hortas da Corte
durante o Primeiro Reinado no Brasil. Sua função principal era fornecer as hor-
taliças comuns ao europeu, assim como as frutas que enriqueciam suas mesas,
dando-lhes boa qualidade e beleza, sem descuidar do fator nutritivo necessário.
Sua atividade se desenvolveu na residência imperial de Santa Cruz, subúrbio do
Rio, onde eram extensas as terras apropriadas para o plantio. Foi ali que ele co-
nheceu a jovem Feliciana Araújo Lemos.
Feliciana, de família humilde, era inteligente, idealista e de aparência agradá-
vel. Por isso tornou-se protegida de alguém importante na época. É que uma das
filhas de um diretor inglês da Central do Brasil escolheu a menina Beatriz como
preferida sua, e tornou-se sua madrinha em seu batismo católico. Isso alterou
significativamente o seu futuro.
O Sr. Antônio deixou as hortaliças um pouco mais tarde, quando recebeu a
função de manobrista de trilhos na Central do Brasil, e, de uma cabine a cava-
leiro da paisagem, alterava a direção dos trens.

20 A missionária que veio para ficar


Sr. Antônio e D. Feliciana formavam um par simpático. Ele, com a pele bem alva,
olhos azuis, bem claros, sotaque confuso, introvertido, meditativo. Ela, bem mo-
reninha, olhos brilhantes, exteriorizava sentimentos com facilidade, era alegre,
extrovertida, simples, mas caprichosa na maneira de educar os filhos, de modo que
todos tiveram bom êxito na vida. Ele, tranquilo, trabalhador incansável, calmo nas
lutas em prol do bem estar de todos. Ela, agitada, lutadora, ia em todas as direções
para conseguir melhor escola, melhores mestres, melhor situação para os filhos.
Por isso todos conseguiram estudar e assumir posições condizentes com os anseios
da mãe e a dedicação do pai. Ingressaram no mundo do estudo: os rapazes, um,
Carlos Rodrigues da Silva, Pastor no Rio de Janeiro por muitos anos; outro, Samuel
Rodrigues da Silva, fez o curso do Seminário Betel, mas a guerra o tirou do lar,
tornando-o Expedicionário Brasileiro na Itália. Apenas um, o Manuelzinho, não
estudou. As filhas, todas prendadas professoras: Fernanda, governanta do Colé-
gio Batista Shepard, no Rio de Janeiro; Andréia, funcionária da Secretaria de Saú-
de no Rio de Janeiro; Débora, a caçula, professora da rede municipal.
Os pais eram católicos fervorosos. Ela, mais dedicada que ele, não aceitava
qualquer intromissão dos crentes em seus arredores. Certa vez, um colportor
bateu palmas ao portão da residência. Ao ver que era um “protestante”, D.
Feliciana foi grosseira com ele e disse-lhe que não voltasse a procurá-los porque,
se voltasse, ela soltaria o cachorro em sua direção. Foi o que aconteceu quando
ali voltou aquele irmão. O cachorro avançou contra o indefeso homem, que,
machucado, afastou-se, mas voltou após algumas semanas. D. Feliciana espan-
tou-se ao vê-lo, mais uma vez, solicitando sua atenção para o livro que trazia,
dizendo ser ele a Palavra de Deus! Impactada pela coragem e perseverança do
colportor, mandou-o entrar, ouviu-o e comprou um exemplar da Bíblia. Daí em
diante, aceitou a visita, passou a ler a Bíblia, permitiu que seus filhos frequentas-
sem, com vizinhas crentes, uma igreja evangélica.
Foi assim que tudo começou. Esse fato foi muitas vezes narrado por D. Felícia
em situações de perseguição e violência. “Eu entendo”, dizia ela, “este gesto dos
senhores. Eu também fiz coisas tremendas. Perseguia as pessoas e as maltra-
tava, até receber Jesus em minha vida. Ele encheu meu coração de amor e tudo
ficou diferente!”
O Sr. Antônio também se converteu e cresceu ali uma família sólida, unida, em-
preendedora. Entre todos eles, pessoas amáveis e estimadas, foi se ressaltando
a pessoa de Beatriz: professora eficiente, diretora considerada competente pelos
pais que levavam seus filhos a ela. Sua escola ficou conhecida como escola-modelo
nos subúrbios do Rio de Janeiro.
Muito do que Beatriz recebeu em sua infância, levou vida afora. Toda a sua
conduta era pautada por um profundo respeito ao próximo, atitudes de contí-
nuo zelo pelos menos favorecidos, respeito às autoridades, profundo amor à sua
pátria e aos objetivos de uma comunidade cheia de necessidades.

A missionária que veio para ficar 21


Por ter crescido no ambiente da alta sociedade do Rio de Janeiro, D. Feliciana
imprimira ao seu lar os hábitos e costumes da chamada “classe alta”. Etiqueta na
maneira de se comportar à mesa, tratamento às visitas, esmero no vestir, mesmo
sendo modesto o traje, limpeza em tudo, e zelo pela conversação correta e sem gírias.
Foi nesse berço que Beatriz recebeu as definições para a vida. Ela sempre pautou
seu relacionamento, dentro e fora do lar, por atitudes gentis, firmes e nobres. Não
gostava de comentar a vida alheia, evitava dar parecer sobre assuntos que não co-
nhecia. Sabia fazer amigos e conservá-los. Tinha um porte de rainha!
A vida intelectual
Vários contemporâneos de Beatriz, em sua vida escolar, são unânimes em di-
zer que ela possuía uma percepção intelectual invejável. Sua professora de por-
tuguês, vinda de Portugal, com seu sotaque carregado, exigia o máximo das
alunas. Nunca dava a nota 100 porque, segundo ela, 100 era a nota do profes-
sor. Mas Beatriz sempre ficava beirando a nota do mestre! Seus textos eram
impecáveis, tanto na ortografia, quanto nas ideias e nos detalhes.
Também não ficava devendo nas ciências exatas. Dominava todas as áreas da
matemática. Conduzia bem os seus alunos nas equações de todos os tipos, fa-
zendo-os trabalhar formas e conceitos sem pressa e com segurança.
Aquilo que os alunos aprendiam nas ciências biológicas, manipulavam com
firmeza, empregando as ciências físicas e naturais para determinar ações sobre
o meio, vivenciando, já nos idos de 1940, aquilo que seria a preocupante ciência
ambiental, tão focalizada hoje. Tanto que, quando cheguei a Tocantínia, em 1948,
já encontrei os alunos cantando com entusiasmo: “Plantemos árvores, plante-
mos, / Cuidemos do chão do país, / Benefícios colheremos, / Nossa vida será mais
feliz!” E, se dependesse dos alunos daquela escola, não haveria queimadas, nem
derrubada desnecessária de árvores, nem entupimento de mananciais. Tais coi-
sas eram ensinadas na teoria e obedecidas na prática. Alunos de sua escola eram
conhecidos por respeitarem a natureza, tratando-a com carinho e amor.
D. Beatriz expressava seus pensamentos e versejava com facilidade. Seus dra-
mas e poemas, usados nas festividades escolares, alegraram muita gente.
Na escola, o nome de Beatriz é uma legenda, pois para muitos aquela era a es-
cola de D. Beatriz. Sabiam que a mantenedora era a JMN, que a obra era susten-
tada pelos batistas, mas continuavam dando o nome de D. Beatriz à instituição.
Houve quem dissesse: “Se não houvesse a Dona Beatriz e a sua escola, Tocantínia
teria desaparecido do mapa!”
A missionária-professora mantinha na Escola:
1. O Pelotão de Saúde, responsável pela higiene do aluno (do corpo e dos uten-
sílios escolares), bem como da sala de aula e até do ambiente em que o aluno se
envolvia no lar. A Escola exigia, por meio de seu Pelotão, que os alunos conser-
vassem limpos os quintais de suas casas e as instalações sanitárias, que, naquele

22 A missionária que veio para ficar


Plantio no Dia da
Árvore - alunos com
a Professora

tempo, eram buracos reforçados por madeira no assoalho, cercados de paredes


de palha, no fundo dos terrenos. Anualmente, no dia 1º de maio, os alunos do
Pelotão saíam a fiscalizar os lares, dando uma nota, que seria entregue aos pro-
fessores para ser somada às notas das provas mensais. No dia da reunião, eram
dados os relatórios. Alguns, elogiosos e até cômicos pelos detalhes; outros, sé-
rios por apontarem falhas na execução de tarefas.
Certa vez, uma senhora, mãe de muitos filhos na escola, interrompeu-me muito
agressiva, dizendo: “Não admito que a escola interfira nos assuntos de minha
família! Os meninos não param de limpar o quintal e a frente da casa, e até
criticam se eu derramo água do lavatório da cozinha lá no quintal!” Eu lhe
expliquei que fazia parte do ensino sobre a higiene do ambiente em que viviam.
Dois dias depois, ela me parou, quando eu ia para a Escola. Abraçou-me e, em
lágrimas, disse: “Ah! Professora, como eu agradeço o que o Pelotão de Saúde
fez em minha casa... Se não tivessem capinado e tirado o capim da frente, tal-
vez tivesse acontecido uma fatalidade. Pois não é que eles mataram uma cas-
cavel com cinco “enrugas” na cauda que estava bem ali, esperando para dar
o bote? Muito obrigada, professora!”
Em outra ocasião, em Tocantínia, um caminhoneiro, vendo uma mangueira
carregada de frutas bem em cima do lava a jato, pegou umas pedras e começou
a atirar na árvore. O dono do posto, de trinta e poucos anos, parou o homem e
lhe disse: “Não faça isso, moço. Se você quer manga, eu mando um garoto subir,
balançar os galhas e então você terá frutas à vontade. Eu aprendi na minha
escola que não se deve jogar pedras em árvores. Elas também sofrem e, além
disso, quando a pedra volta, pode cair na cabeça de alguém.” Era a lição de ontem,
servindo de norma no presente.
2. O Grêmio Lítero-Esportivo Rui Barbosa, que cuidava da vida intelectual dos
alunos, incentivando a leitura, organizando festas, criando músicas, promovendo
competições literárias, tudo com o objetivo de trabalhar a vida dos cidadãos de
amanhã. Por muito tempo não houve eleições no Brasil. Mas o Grêmio Rui Bar-
bosa as utilizava anualmente na escolha da nova diretoria. Era dado o direito de
palavra a todos os candidatos, em reunião administrativa da qual participavam
todos os alunos e às quais, muitas vezes, os pais compareciam para observar a

A missionária que veio para ficar 23


Alunos votando
na eleição da
diretoria do
Grêmio

postura dos filhos. Quando a democracia foi restaurada no País, eles estavam pre-
parados. Em Tocantínia, dois eram os partidos. Eles dividiam o espaço do fundo do
palco e ali colocavam, de um lado e do outro, fotografias dos candidatos e forma-
lizavam um convite aos mesmos para, em dias diferentes, virem à escola e ali apre-
sentarem sua plataforma de governo. No dia da eleição, a maioria dos alunos ain-
da não votava, mas acompanhava o processo todo com inteligência e civismo.
3. O Grêmio de Ex-Alunos, que passou a se chamar Beatriz Silva, cuja diretoria era
escolhida pelos que já haviam passado pelo Colégio e que se reuniam uma vez por ano,
quando voltavam e participavam de um programa de festividades que acontecia
sempre no primeiro sábado de julho. Era interessante ver pessoas idosas, alguns já com
netos na escola, revivendo suas aparições no palco! Seu hino oficial é de autoria de
Myrtes Mathias, que ali trabalhou meio ano, como professora de Francês.
4. A “Associação de Alunos Evangélicos”, que surgiu após a implantação do Curso
Fundamental e do Médio, cuja função era não apenas aperfeiçoar a vida cristã dos
alunos crentes, mas também evangelizar os que não conheciam Jesus. Isto, porém,
sem qualquer obrigatoriedade de assistir a seus encontros na hora do recreio.
Eram reservados 15 minutos para orar, ler um texto e compartilhar experiênci-
as com Deus! Foi uma bênção na instituição!
D. Beatriz e as diretoras que a sucederam davam cobertura a esses trabalhos,
colocando ao lado dos presidentes um mestre que os ajudava a “pensar” e a não
cometer erros que prejudicassem o todo. Eram denominados Coordenadores.
Quando os alunos saíam de Tocantínia para o sul do Estado, estavam preparados
para entender um pouco o mundo dos lugares grandes.
A vida espiritual
D. Beatriz deixou marcas profundas nesta área. Sua aceitação do Evangelho
quando criança foi marcante para seus irmãos e mais ainda para seus pais, que
até então seguiam a religião tradicional de Portugal e do Brasil. Beatriz logo se
tornou comprometida com o Senhor, influenciando os demais. Vale a pena des-
tacar as facetas coloridas de seu modo de ser na área espiritual.

24 A missionária que veio para ficar


Inauguração
do templo da
Primeira Igreja
Batista de
Tocantínia

Primeira faceta: Tinha um profundo amor à Santa Trindade. Referia-se ao Deus


Pai com profunda reverência e adoração. Jesus era o eleito de sua alma e nada
conseguia afastá-la do desejo de servi-lo. O Espírito Santo era invocado com
confiança e certeza de sua presença santa.
Segunda faceta: Tinha profundo amor à sua Igreja. Colocava o programa de ati-
vidades da Igreja acima de seus interesses pessoais. Procurava descobrir que orga-
nizações poderiam torná-la mais eficaz no seu relacionamento com o mundo sem
Cristo. Realçava sua tarefa energizadora. Tinha um jeito especial de colocar todo
mundo para trabalhar, por meio de um planejamento contínuo e direcionado. As
atividades da União Feminina eram o carro-chefe de sua vida. Com 12 dias de sua
chegada ao campo, estudou o Manual de Senhoras com as mulheres que congre-
gavam ali, e assim a Sociedade de Senhoras (MCA) logo começou a funcionar. A
Igreja de Tocantínia foi também uma das primeiras no Campo a organizar as Men-
sageiras do Rei, num tempo quando havia poucas organizações no Brasil. É que, tão
logo soube da existência dessa organização para meninas, solicitou material e,
mesmo sem ter visto uma ao vivo, colocou em funcionamento as MR e os ER. Isso
foi no dia 7 de outubro de 1951! A Escola Bíblica Dominical sempre recebeu de sua
liderança especial atenção. Às quartas-feiras, após o culto de oração, realizava o es-
tudo da lição do domingo seguinte, apenas com os professores. Trocavam ideias,
tiravam dúvidas e faziam daquele período um tempo de aprendizado. Aos domin-
gos, antes do culto da noite, havia a Escola de Treinamento, em que todos apren-
diam a falar, a dirigir reuniões e a assumir seu lugar no Reino.
Terceira faceta:: A comunhão com os irmãos em Cristo era parte importante de
seu ministério. Amava-os , visitava-os, participava de seus receios e de suas alegrias.
Tinha anotadas as datas dos aniversários e, ao menos um cartãozinho, preparava com
carinho para dar aos aniversariantes. Muitos a procuravam para aconselhamento ou
para dividir apreensões. Muitos casais buscavam seu parecer sábio para suas dificul-
dades. Tal maneira de ser fez com que a Escola e a Igreja se mesclassem em ações
abençoadoras. Todos os professores eram dedicados às atividades da igreja, fazen-
do do evangelismo na escola um canal para edificação e conversão de crianças e jovens.

A missionária que veio para ficar 25


A Sociedade Feminina
(MCA) de Tocantínia
em 1937

Quarta faceta:: Tinha profundo apego à Bíblia. Mesmo em idade avançada, era
costume seu, bem cedinho, após o banho, sentar-se na cadeira de balanço com
o Livro nas mãos, antes de tomar o café. Ao lado da leitura, em várias páginas,
palavras esclarecedoras ou exclamações sobre a bênção do texto. Lia a Bíblia toda
pelo menos uma vez por ano. Por isso a ensinava com autoridade, como alguém
que conhecia muito bem o seu Autor.
Quinta faceta:: Era fiel às doutrinas bíblicas. Centrava toda a sua vida nos
conceitos estabelecidos pela doutrina dos apóstolos, deixando sempre aparecer
a sua confiança nas Escrituras. Isto deu firmeza doutrinária à sua igreja e os
pastores que a dirigiram não tiveram dificuldades em administrar o rebanho.
Amava os princípios batistas e sempre os defendia com mansidão e firmeza,
dizendo: “...porque eles saem diretamente da Palavra de Deus!”
Sexta faceta:: Tinha paixão pelos perdidos, o que a tornava constante ganha-
dora de almas. Não conversava com qualquer pessoa sem lhe falar de Jesus. Em
seu tempo iniciou atividades práticas de evangelização, levando a igreja a dividir
e mapear seu campo de trabalho evangelístico, dividindo os pontos pelas orga-
nizações. Ao todo, havia 72 pontos de pregação. Até 1968 viajávamos em bur-
ros, bicicletas e, por um tempo, em charrete. Em 1968, a IB de Itacuruçá nos
enviou um jipe verde, zerinho, que veio do Rio de Janeiro até Tocantínia dirigido
pelo Pr. Samuel Mitt (então Executivo da JMN) e pelo diácono José Linhares, da
IB em Piedade e fotógrafo da Casa Publicadora Batista. A estrada Belém-Brasília
ainda não chegara até o norte de Goiás, e tiveram de atravessar longos caminhos
de barro, cheios de buracos e outros perigos.
Sétima faceta:: Era bem firme nas doutrinas e nos princípios batistas, mas
convivia bem com não crentes e irmãos de outras denominações. Mostrava-se
sempre compassiva, sem criar dificuldades no relacionamento por divergir na
crença, na fé. Amiga compreensiva, em suas amizades, falando sempre de Jesus,
criava laços de ternura, que a levavam a ganhar almas para Cristo.

26 A missionária que veio para ficar


Mensageiras do Rei de Tocantínia em 1956
Por causa de tudo isso, o trabalho tornou-se abrangente em todas as áreas. D.
Beatriz interessava-se pelo bem-estar de todos, procurando atender às necessida-
des sociais do ambiente em que vivia. Ela teve sempre ampla aceitação de todos. Vários
fatos chamavam a atenção, principalmente seu amor às crianças e sua comoção diante
de suas atitudes espontâneas. Lembro-me de certa vez em que ela chegou a casa com
um pedaço de papel de caderno bem amassado, contendo um pedaço de pão. Con-
tou que os alunos, por ser Dia do Mestre, trouxeram-lhe pequenos presentes: sabo-
netes, perfumes, coisas simples, com frases carinhosas escritas. Mas um menino muito
pobre, que só tinha sua merenda, um pedaço de pão, ofereceu tudo o que tinha. Com
lágrimas nos olhos, pensou: “Ele deu tudo o que tinha. Deve ter ficado com fome...
Aquelas mãozinhas me ofereceram um pedaço de pão, a mim, missionária, que
tenho como tarefa maior entregar-lhe o Pão da Vida!”
O lado musical não foi esquecido. No dia 15 de março, nos primeiros quinze
dias de sua chegada, os congregados se reuniram para ensaio de hinos. O Cantor
Cristão tornou-se conhecido e seus belos hinos começaram a ser entoados nos
lares. “Deixa a luz do céu entrar, / abre bem a porta do teu coração, / deixa a luz
do céu entrar!” – tornou-se a música das lavadeiras, esfregando as roupas; dos
lavradores, carpindo as suas roças; dos carpinteiros, aplainando a madeira; das
donas de casa, cortando a carne de sol.
As crianças receberam especial atenção da nova missionária. Junto a Constância
e Orfisa Campelo, irmã e esposa do Pastor, começou a implantar várias ativida-
des: Sociedade Juvenil, pequenos corais, classe bíblica e, no tempo próprio, a
Escola Popular Batista, hoje Escola Bíblica de Férias. Há em seu diário uma longa
lista de EBFs realizadas. A primeira, em Tocantínia; a segunda, em Pedro Afon-
so; a terceira, na Aldeia Porteira, dos xerentes. Ao todo, 20 EBFs em seu primei-
ro período no campo, cinco anos de trabalho.
Não parou aí. Incentivou o departamento masculino e ajudou na organização
da Sociedade de Homens. Eles se reuniam no mesmo dia e horário em que se

A missionária que veio para ficar 27


reuniam as senhoras. As
duas organizações torna-
ram urgente o avanço mis-
sionário dos membros da
congregação, que come-
çava a dar sinais de uma
igreja viva. Com a compra
de vários animais, alguns
doados por igrejas e ami-
gos e pela JMN, começa-
ram a alcançar moradores
de cima das serras, das áre-
as ribeirinhas, ao longo das
estradas vizinhas. Havia ur-
gência nisso.
Impressionava-me a ma-
neira gentil e respeitosa
com que tratava os pasto-
res. Havia poucos obreiros Beatriz falando a uma igreja
naquele início de trabalho.
Houve uma grande lacuna em Tocantínia depois que o Pr. Zacarias Campelo dei-
xou o campo para atender às necessidades dos filhos em idade escolar, o que exigia
um lugar com mais recurso educacional. Ele liderou aquela igreja desde sua organi-
zação, em 23 de junho de 1936, e ali estava quando a Escola foi inaugurada, par-
ticipando de suas primeiras atividades. Sempre teremos de nos lembrar de sua
importante atuação no Vale do Tocantins, entre os craôs, os xerentes e na igreja de
Tocantínia. Após a sua saída, a missionária ficou por muito tempo só, cuidando da
igreja e solicitando a vinda de pastores da região para batismos e ceia. A JMN tinha
poucos obreiros para atuar nas áreas sertanejas.
Mas há ainda outro aspecto interessante da atuação de D. Beatriz que merece
ser destacado.
Oitava faceta: Nutria profundo interesse no preparo de obreiros. Nos anos 40,
respondendo a um apelo do Pr. Bratcher, deixou Tocantínia e trabalhou no Ins-
tituto Teológico Batista de Carolina, ajudando no preparo dos primeiros
vocacionados do Vale do Tocantins. Foi uma bênção, pois suas convicções cris-
tãs foram imitadas pelos novos obreiros que chegaram a ser consagrados ao
ministério. Além disso, vendo a necessidade de capacitar os membros da igreja,
organizou um Curso de Educação Religiosa, que funcionava durante a semana,
à noite, com um currículo semelhante ao de um seminário menor. Exigia-se muito
estudo da Bíblia, leitura de muitos textos, estudo de música, atividades práticas
na igreja e no evangelismo. Resultado: Deu tão certo, que alguns desses alunos,
mais tarde, receberam crédito no Instituto de Carolina.

28 A missionária que veio para ficar


Tocantins:
o Vale Batista
ssim foi apelidado, por um tempo, o Vale do Tocantins - Araguaia
quando, nas cidades existentes ao longo do rio, uma pequena esco-
la surgiu e, mais tarde, uma igreja batista ali teve início. De Porto
Franco a Dianópolis, os batistas passaram a ser veiculados a um povo
diligente, amigo do saber e amante das coisas de Deus, primeiro por causa de suas
escolas, que a todos interessavam por causa do fator educativo, e então pela beleza
e singeleza de suas pequenas grandes igrejas batistas!
Em Porto Franco, Marcolina Magalhães firmou seu trabalho. Sua escola for-
mou a primeira geração de líderes na comunidade. Em Carolina, sob a liderança
de Lígia, criou-se uma escola que abençoou a muitos. Em Itacajá, Beatriz Cola-
res realizava trabalho idêntico com os filhos da terra e os índios craôs, que ocu-
pam a área. Em Araguatins, no Araguaia, o Sr. Alfredo Silva fez da escola um degrau
para alcançar o povo para Cristo. Em Natividade, implantou-se um colégio cuja
influência existe até hoje. Em Araguacema, Eunice e sua irmã Zezita estabelece-
ram atividades ambulatoriais e de escola. Em Pedro Afonso, Sarah Cavalcanti fixou
seu ambulatório, que atendia a toda a região. Eis o quadro do movimento batis-
ta, no início, por meio de escolas e ambulatórios, que procuravam dar a todos a
capacidade de serem dignos cidadãos brasileiros, ao mesmo tempo em que os
preparavam para, pela aceitação de Cristo, andar nas ruas de ouro da Nova Je-
rusalém, como cidadãos do Céu!
Muitas das conquistas desse tempo tiveram a atuação dos missionários que fo-
ram chegando: pastores, professoras e enfermeiras, que espalharam as boas novas
entre os índios e o povo da região, geralmente chamados de sertanejos pelo fato
de viverem no Brasil interiorano, no chamado sertão, longe dos grandes centros
urbanos. Alguns eram autodidatas de notável saber, musicistas de valor, embo-
ra nunca tivessem saído do lugar onde nasceram. Livros faziam parte de seu dia
a dia, e revelavam o conhecimento deles em conversas de fim de tarde sob man-
gueiras centenárias.
Uma cidade, de modo especial, nasceu por influência do interesse pelo social
da JMN. É o que narra, conforme segue, o filho do Pr. Francisco Colares, Samuel
de Almeida Colares, em seu livro “Meu Pai, apenas um Servo”.
“Em uma de suas muitas viagens pelas matas, ao se aproximar de um case-
bre de palha perto do Rio Vermelho, encostou o cavalo e chamou da forma cos-
tumeira: ‘Ô de casa...’ – a fim de pedir um copo d’água. Chamou novamente:
‘Ô morador!!!...’ Lá de dentro, respondeu uma voz bem fraquinha: ‘Ô de fora...’
Ele esperou alguns minutos para que alguém aparecesse para atendê-lo. Ficou

A missionária que veio para ficar 29


em silêncio e pôde ouvir somente gemidos que vinham do interior do casebre.
Desceu do cavalo e foi em direção aos ruídos. Uma criança o recebeu, trêmu-
la, amarela, coberta apenas pela sujeira do corpo.
“Colares perguntou:
“Onde está teu pai, menina?
“Foi para o Jacundá (o garimpo-eldorado dos aventureiros naquela época).
“E tua mãe?
“Mãe morreu depois que o pai saiu...
“Está sozinha?
“Lá dentro tem minhas duas irmãzinhas menores que eu... Tem três dias que
estou tão fraca que não posso me levantar, e nós não temos nada para comer
e beber...”
O missionário Francisco Colares sentiu o desejo de socorrer as crianças. Já tinham
em casa Noemi-I-krá, que teria sido enterrada com a mãe falecida na aldeia dos
craôs se não tivessem interferido, além de outras crianças sem lar, desabrigadas.
Decidiram assim – ele e a esposa, Beatriz Colares – fundar um orfanato. A JMN, com
a ajuda de algumas igrejas, providenciou o dinheiro necessário e o prédio, bem
modesto, foi erguido. Ao redor cresceu o povoado, e então ali nasceu a bela Itacajá.
Enquanto escrevo esta página, cerca de 60 anos depois, o Lar Batista Francis-
co Fulgêncio Soren é ainda o único em todo o Estado. Recebeu este nome em
homenagem ao Pr. Soren, da PIB do Rio de Janeiro, parceira nesse investimento
da Junta nos anos 40. Em 2010, os batistas brasileiros trouxeram para os arre-
dores da nova capital do novo Estado - Tocantins - o seu Lar Batista. Ficou loca-
lizado em frente a Palmas, do lado esquerdo do grande Lago, em local ainda pouco
conhecido, chamado Luzimangues. Lá estão edificadas casas-lares, além de pré-
dios necessários à administração e manutenção.
Outras bênçãos foram acontecendo com a chegada de várias entidades: escolas
batistas (cerca de 30 em todo o Vale), ambulatórios (em Pedro Afonso,
Araguacema e Natividade - com enfermeiras), trabalho entre os índios de várias
tribos, o Instituto Teológico em Carolina, além do Orfanato. Todos trouxeram
força e beleza ao trabalho. Muitos homens de Estado de hoje estudaram em
nossas escolas; muitos receberam socorro e ajuda de nossas enfermeiras; mui-
tas crianças se livraram da solidão, vivendo em nosso Lar; muitos se prepararam
para o ministério em nosso Instituto Teológico.
Quantos obreiros tivemos nessa região, considerada por muitos “o corredor
da miséria” ou “o corredor da fome”. Das cidades que temos hoje no Tocantins,
nem todas já eram conhecidas no início do novo Estado. Aquelas que hoje levam
à frente a economia do Tocantins surgiram depois. Algumas até pleiteavam ser
a capital, contudo o Governo desejava uma capital no centro do Estado para
facilitar o desenvolvimento de todos os municípios. Surgiu, então, Palmas.

30 A missionária que veio para ficar


Assim, quando o Vale do Tocantins teve sua área delimitada pelo novo Estado
que surgiu – o Tocantins , já havia marcos da presença batista desde o Bico de
Papagaio até o Paralelo 13, que nos separou de Goiás. Muitos municípios ainda
mantêm suas escolas batistas, principalmente onde há grandes igrejas. Em alguns
lugares, porém, o Estado ampliou sua rede escolar, e nossos colégios cessaram
suas atividades. Nunca se poderá contar o valor da atuação dessas instituições –
colégios, ambulatórios, orfanato, seminário. Onde o trabalho foi organizado há
mais de 70 anos, as igrejas batistas continuam firmes, pregando que SÓ JESUS
CRISTO SALVA! São luzes que brilham em todas as direções, reconhecidas por
aqueles que escrevem a história e por aqueles que governam o belo e novo Es-
tado do Tocantins. Sim, esse é um “Vale Batista”, no qual a missionária Beatriz
Rodrigues da Silva estava sempre presente. Por isso ela sempre é lembrada como
heroína da Educação no Tocantins.
Dona Beatriz também foi homenageada pelos dois primeiros governadores, que
lhe concederam duas comendas da Ordem do Mérito do Estado do Tocantins: ela
é COMENDADORA E CAVALEIRA, e recebeu o título de Cidadã do Estado do
Tocantins e o de Cidadã de Tocantínia.
Quando lidávamos para conseguir terreno para nossas igrejas e outras entidades
na nova Capital, o primeiro Governador, Sr. José Wilson Siqueira Campos, nos
disse: “É interesse nosso facilitar a aquisição de locais para os senhores, por-
que o Tocantins nunca poderá pagar o que deve aos batistas.” E em outra oca-
sião, olhando o mapeamento da Convenção Batista do Tocantins, disse: “Os se-
nhores deram a forma de nosso Estado!” Isto porque nossa área de atividades
ia de Marabá, PA, até Porto Franco e Carolina, MA, descendo no sentido Norte-
-Sul, até Porangatu, GO, dando o formato geográfico do Estado que surgia, na-
turalmente sem as terras maranhenses, nem as paraenses.
D. Beatriz trabalhou com afinco na formação de nosso espaço convencional.
Como Secretária ou como Diretora de Missões e Evangelismo, visitou todo o campo.
Mesmo no Maranhão e no Pará, que continuam formando o Vale, deu assistência
de maneira carinhosa e constante. Durante a comemoração do Centenário Batis-
ta, em 1982, promoveu o que outras convenções promoveram: a Corrida da Tocha.
Mobilizou todas as igrejas da Convenção, formando um grupo de 50 atletas em cada
uma. Foi alugado um caminhão para transporte dos corredores, e os obreiros do
nosso campo participaram com seus carros. Desse modo, saindo de Itinga, MA, até
Porangatu, GO, a Tocha do Evangelho de Cristo foi levada, parando em praças,
postos de gasolina, prefeituras, e o Evangelho era pregado e milhares de folhetos
eram distribuídos. Houve alguém em Guaraí, que não sabendo da razão do vozerio
e dos cânticos que ouviu enquanto tomava banho, deixou o hotel para descobrir
se era o fim do mundo. Foi ao culto na praça e aceitou a Jesus! Foram registrados
muitos casos semelhantes a esse. Beatriz, na direção do Departamento de
Evangelismo e Missões, contou com total participação de todas as igrejas e de seus
pastores, e com a ajuda de irmãos até de outros estados.

A missionária que veio para ficar 31


Histórias para contar
adiante
A história das duas velhinhas
ra uma jornada longa, de Tocantínia a Corrente do Piauí, atravessando
chapadões imensos, matas nas quais as onças, à noite, soltavam urros.
Alimento? Só o que levavam no alforje, pois a região era muito pobre,
sem possibilidade de obterem comida. À noite era preciso pousar em qual-
quer lugar que oferecesse alguma segurança.
Foi assim que ficaram, certa noite, numa casinha de palha onde duas senho-
ras bem idosas residiam. Embora frágeis, tinham uma aparência que chamava a
atenção. Olhos brilhantes, talvez. Pareceram contentes ao abrir a porta para a
missionária, sua companheira de viagem, Cosma Costa (Dudu) e o arreeiro
(tropeiro), um rapazinho de 18 anos de nome Alexandre.
Alexandre dormiu fora, onde guardara os burros. D. Beatriz e Dudu foram
levadas a um quarto e ali ataram suas redes para dormir. Mas como dormir, se
as velhinhas conversavam sem parar? Parecia que tramavam alguma ação. Dudu
sussurrou: “Beatriz, elas estão combinando alguma coisa contra nós. O arrieiro
está lá fora e essas velhinhas não parecem de confiança...”
Então passaram a noite conversando também, dando a entender que estavam
acordadas. Nada aconteceu com elas, mas, dias depois, souberam que um boiadeiro,
de passagem por lá, havia se hospedado naquela casa e, durante a noite, enquanto
dormia, as duas senhoras o atacaram na cabeça, matando-o para roubá-lo. Nada
encontrando, arrastaram-no para o quintal onde o enterraram com botas e tudo!
Ao meio dia, o peão chegou procurando pelo patrão e, não o encontrando, descon-
fiado, viu uma mancha parecendo sangue no chão do alpendre. Procurou polici-
ais, voltaram e desenterraram o corpo já em decomposição, mas com as botas cheias
de dinheiro. Bem que desconfiara D. Dudu. O Senhor havia livrado as suas servas.
A história de um homem que lia, e lia, e lia...
Outras vezes, as jornadas traziam muitas surpresas agradáveis, como na ida ao
Rio Araguaia, saindo de Tocantínia, que fica na margem direita do Rio Tocantins.
Perderam-se no cerrado, havendo um desvio muito grande do alvo almejado. Já
exaustos, ela, o diácono Cícero, sua esposa Josefa e o estudante Darciso Medeiros
(hoje Pastor), ouviram o martelar de um ferreiro. Saíram naquela direção, orien-
tando-se pelo barulho e então chegaram em frente a uma oficina. Um homem de
baixa estatura, compleição forte deixou o malho, afastou-se da bigorna, tirou os
óculos da testa e colocou-os nos olhos, olhou longamente para Dona Beatriz.

32 A missionária que veio para ficar


– “A senhora é a professora-missionária de Tocantínia, não é? Eu estive com
a senhora uma vez, lá pelos idos de 1936, logo que a senhora chegou. Lembra?”
– disse o homem.
Em seguida, chamou seus familiares, que chegaram alegres. Uma das senho-
ras disse:
– “Eu sabia que Deus não deixaria de ouvir minha oração! Eu pedi a Deus que
mandasse aqui um obreiro para nos ensinar, e desde cedo eu senti que seria hoje!”
Ali a missionária ficou um tempo. Havia 18 convertidos a Cristo. Mas como? É que
o respeitável Sr. Manoel Ferreira havia levado com ele, daquela visita a Tocantínia, um
pequeno Novo Testamento e vários exemplares de “O Jornal Batista”. D. Beatriz lhe
falara longamente sobre o plano de salvação. Os demais temas, ele havia extraído do
jornal e de textos que encontrara ao folhear o Novo Testamento. Tudo havia sido
repetido até decorarem. Ele reunia os filhos e lia as mensagens vindas dos amarelecidos
exemplares do jornal, buscando levar todos a uma convicção espiritual que alicerçasse
a fé . Mais tarde, alguém que passava por ali lhe dera uma Bíblia, que fez desse ho-
mem simples um autêntico sacerdote, instruindo “o menino no caminho em que deve
andar”! Todos obedeciam com determinação aos temas do jornal.
Para ajudar aquele grupo de crentes, Beatriz voltou alguns meses depois, tra-
zendo consigo o Pr. Francisco Colares, nesse tempo residente em Porto Nacio-
nal. Dízimos e ofertas estavam separados, retirados de toda a produção da fa-
zenda, e foram entregues a Beatriz para que levasse à Igreja de Tocantínia. Vinham
com ela, além do Pastor, alguns membros daquela igreja. Eles foram com a in-
cumbência de tomar as profissões de fé e batizar os novos convertidos. Os obreiros
contaram que foi uma bênção para o coração.
Não houve uma profissão de fé formal, com perguntas e respostas. Cada um
preferiu falar de seus erros e pecados anteriores à conversão e de seus propósi-
tos de viver o evangelho e divulgá-lo. Foram batizadas 18 pessoas no ribeirão que
passava ali perto, num verdadeiro ambiente de festa espiritual.
A história da irmã Chiquinha
Entre os convertidos e batizados, havia naquele grupo, perto de Dois Irmãos,
uma senhora chamada Francisca Barbosa. Tinha a fisionomia tostada pelo sol, os
cabelos lisos, meio grisalhos, presos num coque, e um sorriso perene nos lábios.
Deu sua profissão de fé em termos profundamente sinceros, utilizando diminu-
tivos afetuosos ao se referir a Deus Pai ou a Jesus Salvador.
Os dias e os meses passaram. Um dia, D. Beatriz estava viajando. Em sua casa, o “Lar
no Sertão”, eu ouvi um ruído de caminhão, que parou à nossa porta. O motorista veio
até nós e disse haver alguém que vinha de mudança lá de Dois Irmãos para Tocantínia.
Levantei-me, e quem vejo? A velhinha mais simpática que eu já havia visto em toda
a minha vida. Abraçou-me à maneira sertaneja, apertando uma vez, peito contra peito,
afastando-se e abraçando de novo, demorando-se mais no segundo abraço.

A missionária que veio para ficar 33


– “Adeus (era costume dizer-se ‘adeus’ na hora da chegada), minha irimãzinha”
– disse ela. – “Ainda que male pregunte, a senhora é a missonária que mora com
a irimã Biatriz?”
Ao dizer que sim, ela começou a falar, enquanto mostrava os objetos que
haviam sido tirados do caminhão: uma rede já bem gasta, dois potes com peque-
nas vasilhas em seu interior, um pilão com a respectiva mão e dois costais gran-
des (cestos de bambu que eram amarrados dos dois lados do burro de carga). Em
um dos costais, havia frangos e galinhas, apertadinhos. No outro, suas roupas e
pertences pessoais. Enquanto ia apresentando cada um de seus pertences, fala-
va de sua fé e esperança. Dizia:
– “Minha irimãzinha, eu aceitei Jesuis num tempo quando foram lá falá dele
prá nóis. O Pastor Colar me batizou lá no ribeirão da Vila. Me dissero que em
Tocantínia ficava a nossa Igreja e entonce eu vim pra conhecê ela e ficá traba-
lhando nela. Eu num queria parti pra morá com meu Deusinho lá no céu, sem
conhecê a casa dele aqui na terra!”
Como foi bom verificar, nos dias que se seguiram, a alegria da irmã Chiquinha,
como ficou sendo conhecida em toda a redondeza. Sim, porque ela começou a
trabalhar mesmo e a convidar os amigos para irem ao templo, e muitas pessoas
aceitaram Jesus por causa de seu testemunho.
A irmã Chiquinha abraçou o trabalho da Sociedade de Senhoras (hoje, MCA)
e pediu a D. Beatriz que lhe fizesse um cartãozinho em que pudesse marcar suas
atividades. A missionária grampeou umas folhas de papel, prendeu um lápis e, em
cada página, havia um desenho: em uma, um bonequinho, em outra, uma bone-
quinha. Ela riscava um tracinho abaixo de cada figura, indicando cada conversa
evangelística que havia mantido. Em outra página, o desenho de um folheto.
Nessa, fazia um tracinho para cada folheto entregue. Também havia uma folha
para colocar o total da oferta para sua igreja. E assim por diante. Como D.
Francisca valorizava esse caderninho!
A irmã Chiquinha não tinha certidão de nascimento, nem se referia a parentes
próximos. D. Beatriz e o Pastor tentaram descobrir sua idade. A única informa-
ção que ela deu sobre sua infância foi que se lembrava da avó, contando que uma
Princesa, lá no Paço Real, assinara uma lei, e que por isso não havia mais escra-
vos no Brasil. Sem terem qualquer ideia de datas, ela ficou registrada como ani-
versariando no mesmo dia da Igreja Batista de Tocantínia e de Educação Cristã
Missionária, as quais tanto amava: 23 de junho. O ano tirou-se da informação da
assinatura da Lei Áurea, provavelmente 1890, dois anos depois.
Difícil foi fazer a irmã Chiquinha entender que poderia ser aposentada como
trabalhadora rural. Após os trâmites legais, com certidão de nascimento em mão,
foi fácil conseguirmos sua aposentadoria. Mas ela nunca apreciou tal dinheiro.
Dizia que era do Governo, e não dela, que o dinheiro que podia usar era aquele
que ganhava pelo suor de seu rosto.

34 A missionária que veio para ficar


Como a irmã Chiquinha amava missões! Ela ia trabalhar nos pântanos, à pro-
cura de buritis, e dali trazia suas ofertas, que não eram pequenas, não. E ninguém
se esquece do seu sorriso desdentado ao dizer: “As oferta tão pindurada lá nos
pau (árvores)... Só percisa a gente i buscá elas...”
A história do culto que não era para ser um culto
Em outra ocasião, chegamos a uma fazenda. O fazendeiro recebeu muito bem
D. Beatriz, que conhecia como a Professora da Escola Batista de Tocantínia. Afá-
vel, ele nos levou à “sala da fumaça” (a cozinha), como sinal de confiança. Lá estava
sua esposa, a quem D. Beatriz se apresentou como professora batista e perguntou:
– “A senhora permite que nós façamos um culto aqui em sua casa? Em to-
das as casas onde paramos nós tiramos um instrumento musical do costal do
burro e temos feito um culto...”
A dona, quase sem deixar que terminasse, lhe disse:
– “Deus e Nossa Senhora me livrem de ter um culto dos protestantes aqui!
O vigário passou outro dia aqui em desobriga e disse que nóis num aceitasse
porque era coisa do diabo!”
– “Mas a senhora já assistiu a algum culto?” – indagou a missionária.
– “Não, nunca e, enquanto eu viver nesta casa, não se faz um culto, não...”
E fazia o sinal da cruz a cada passo que dava na cozinha.
– “Bem, a senhora se incomodaria se eu explicasse como é um culto? Se a
senhora não se incomodar eu posso dizer como é...” – disse-lhe Beatriz.
– “Ah, dizê como é, pode...”
E assim, D. Beatriz começou a dirigir um culto a Deus em meio à fumaça de uma
cozinha de palha e cheiro de gordura e temperos, mas onde havia um coração
sedento que “não queria assistir a um culto”.
Cantamos, lemos, recitamos textos bíblicos, sempre explicando. Dizer como
era não fazia mal, o que fazia mal era o livro da capa preta, era fazer um culto.
Ao final, oramos pedindo a Deus que ampliasse a visão daquela senhora.
Quando abrimos os olhos, ela veio até nós, lá do fundo da cozinha, enxugando
as mãos no avental e dizendo:
– “Ô vigário mentiroso... Ele me enganou... Ele disse que quando os protes-
tantes rezam a reza deles, fecham os olhos, e o capeta fica pulando ao redor.
E eu não vi nada disso!”
Beatriz não fez comentários, mas, com os olhos úmidos, perguntou-lhe:
– “Então, o que a senhora achou desse modelo de culto que nós apresenta-
mos aqui?”
– “Achei até bonito, dona. Mas Deus que me livre de desobedecer às ordens
do padre, fazendo um culto em minha casa!”

A missionária que veio para ficar 35


A história de Dudu
Outra história merece destaque. Tudo começou quando um senhor bem edu-
cado, funcionário público do Estado de Goiás, veio transferido para o norte. Mais
tarde, fixou residência em Miracema do Norte, com muitos filhos e filhas, já adul-
tos. Quando jovem, ele havia sido seminarista católico e conhecia a Bíblia. Foi nes-
sa sua estada no norte goiano que aceitou Jesus como Salvador e Senhor. Em
Miracema, começou a trabalhar. Evangelizava, ensinava na EBD e participava das
atividades da Igreja de Tocantínia. Por muito tempo, foi o único evangélico na fa-
mília. Na intenção de oferecer instrução religiosa aos filhos menores, colocou-os
internos na Escola Batista, do outro lado do Tocantins. O Sr. Dico Costa e D. Lídia
deixaram muitos marcos preciosos, sempre lembrados por Beatriz. Pois bem, dentre
as filhas, uma se destacava por sua dedicação aos familiares, deles cuidando com
carinho. Era a mais velha e também a mais frágil, mas, ao falecer sua mãe, passou
a tomar conta dos irmãos. Quando D. Beatriz a conheceu, diziam que ela teria pouco
tempo de vida. Então, foi preciso que alguém lhe aplicasse injeções, mas nesse tempo
ninguém havia em Miracema que pudesse fazer isso. Foi quando se lembraram de
D. Beatriz, a professora “sabida” que viera do Rio de Janeiro. Convocada pelo pai
de Dudu e diante do fato de não encontrar outra pessoa, dispôs-se a atravessar o
rio todos os dias para ajudar a moça, que se chamava Cosma, apelidada de Dudu.
Dudu, “filha de Maria”, não aceitava a Bíblia nem qualquer palavra de crente.
Não assistia aos cultos que os membros da igreja realizavam em sua casa, a pe-
dido do pai, Sr. Raimundo Costa, “seu” Dico. Tudo fazia para afastar do evange-
lho seus irmãos menores. Contou ela mesma que, quando D. Beatriz virava as
costas, após os cultos, fazia caretas e xingava-a, o que só acabou ao terem início
as sessões de injeções. Por gratidão, perdoou o “pecado” de D. Beatriz ser “pro-
testante”. Mas continuava a não dar atenção aos cultos.
Acontece que, ao chegar o tempo das chuvas, tornou-se difícil a travessia do
rio. Então, D. Beatriz ofereceu sua casa para Dudu ficar até o fim do tratamen-
to. Ela aceitou a oferta, mas, a princípio não assistia os trabalhos. Escondia-se dos
crentes. Depois começou a murmurar os cânticos. Depois participava do culto
doméstico, lendo um trecho bíblico e, por obra e graça do Senhor, enquanto
recuperava a saúde física, pelo desvelo de Beatriz e de outros irmãos, foi desven-
dando o mundo da fé. Até que um dia Cosma Nunes Costa teve seu encontro com
Cristo. Eis o que diz Beatriz em seu diário: “Hoje, graças a Deus, foram batizados
os dois primeiros crentes de Bela Vista (hoje Miracema do Tocantins): Dudu
Costa e Dico Costa”. Havia um asterisco ao lado de seu nome e, ao final da pá-
gina, Beatriz escreveu a seguinte nota: “Muito inimiga do Evangelho!”
Dudu foi uma extraordinária aquisição para o Evangelho em Tocantínia, tanto
para a igreja quanto para a escola. Foi inseparável companheira de D. Beatriz, e é
impossível falar de uma sem mencionar a outra. Nessa função, tornou-se sua
parceira nos ideais e propostas para abençoar vidas. Iniciou uma classe de alfabe-

36 A missionária que veio para ficar


tização de adultos, que fez muitos enxergarem
melhor seu mundo, ao mesmo tempo em que
lhes ensinava sobre Deus e a salvação em Jesus.
Cuidou da saúde de D. Beatriz, cultivando em seu
próprio quintal hortaliças não encontradas ain-
da na região, e supria-a de companheirismo nos
tempos de enfermidade e solidão. Quando as
grandes viagens chegaram, em todas as direções
do “sertão”, lá estava Dudu. Ao contrário de D.
Beatriz, que aprendera a montar no campo mis-
sionário, Dudu, desde a infância, cavalgava com
destreza. Assim, facilitava as idas e vindas de D.
Beatriz. E mais, foi expressiva colaboradora na
vida cristã, nos momentos devocionais do lar e
no testemunho à comunidade. Da mesma ma-
neira que odiara a Igreja Batista, passou a amar
seu programa, estando sempre ao lado de D.
Dudu – o presente que Beatriz
Beatriz. Pelas atividades que exercia com firme-
ganhou no sertão za e carinho, foi aceita como missionária da JMN,
com a qual trabalhou até que Deus a levou.
Quando Deus a convocou, algum tempo depois de Beatriz, Dudu foi levada à
sepultura por muitos que a amavam: irmãos e filhos na fé, uma filha de criação
(Biatriz Virgínio) e uma netinha pelo coração (Odany Cristina), colegas missio-
nários, amigos que com ela aprenderam a ler e a escrever! Ali estávamos ao seu
lado, e louvamos a Deus por sua vida, dedicada e fiel a ele.
Cosma Nunes Costa parecia ter tão pouco a oferecer, mas aquilo que o Senhor
colocou em suas mãos, foi usado para abençoar muitas vidas. Que Deus nos supra,
constantemente, de pessoas assim: violetas que levam o seu perfume muito
adiante do local onde estão. Seu corpinho frágil foi colocado num túmulo ao lado
da sepultura de Beatriz. Um dia as reencontraremos.
A história de um “time de ouro”
Outra história a ser contada envolve a Escola. A professora do colégio adver-
sário trouxe seus alunos para jogarem com os “batistenses”. O jogo começou ani-
mado, os rapazes dando o máximo de si. “Mas”, disse alguém, “o outro time joga
com um profissional de Belém. Não é possível!” Mesmo assim, o jogo aconte-
ceu. Torcida daqui, torcida dali... Cantavam: “O batista é time de ouro; o batis-
ta, para mim, é um tesouro! O batista nunca joga pra perder. Por quê? Porque
o batista só sabe vencer!” Mas o batista não venceu. E a professora do outro
colégio ouviu, estarrecida, meninos e meninas, jovens aos montes, camisa sua-
da, cabelos ensopados de suor, cantando entusiasmados: “O batista sempre joga
pra vencer, mas o batista também sabe perder!”

A missionária que veio para ficar 37


Faixa da vitória de
um campeonato
Norte-Goiano

Ao ver esse grande número de alunos, por si mesmos, levando os “adversários” vi-
toriosos até a beira do rio Tocantins, numa despedida cheia de gratidão, a professo-
ra disse aos que estavam ao seu lado: “Nunca vi isto em lugar algum. Estes meninos
são mesmo diferentes!” É que o “Grêmio Lítero-Esportivo Rui Barbosa” primava por
atitudes, gestos e práticas dentro da moral e dos bons costumes. Sua divisa era “Mente
sã em corpo são”, e muitos de seus sócios praticavam as normas da ética cristã.
A história de um milagre
Mais uma Escola Bíblica de Férias era realizada pela missionária, agora numa
aldeia indígena. Vieram para a matrícula não só indígenas, mas também famílias
da vizinhança, adultos e crianças. Todos queriam marchar, desenhar e usar, em
todos os momentos, o chapeuzinho com as letras EPB, sigla de Escola Popular
Batista, hoje, Escola Bíblica de Férias. Havia até mesmo o momento do lanche,
quando bolachas eram recebidas com muita euforia.
Dentre os alunos, uma menina entre sete e oito anos destacava-se: era alegre e bem
ativa, parecendo ser muito inteligente, líder no grupo. Uma tarde, após as atividades
e despedida a turma, tudo parecia em paz, quando se ouviu grande alarido da crian-
çada. Uma cascavel havia atravessado a estrada e dera um bote rápido e certeiro justo
naquela menina. Com o grito da criançada, os homens chegaram e mataram a co-
bra, mas nada puderam fazer além de levar a garota ao local em que eram realizadas
as reuniões. Sua situação era terrível: olhos pastosos de sangue, não falava, dentes
cerrados, convulsões, seu caso parecia sem esperança. Socorro humano, impossível.
D. Beatriz orou em silêncio: “Pai do Céu, esta menina estava há pouco em
nossa EPB, cantando e aprendendo a te louvar. O que dirão os nossos inimi-
gos se ela perecer? Senhor, ajuda-nos! Salva-a!”
Dali a pouco chega a mãe da criança. Desesperada, corre para a missionária e
lhe diz: “Salva a minha filha, D. Beatriz!” Isto num tempo em que não havia
qualquer clínica ou hospital num perímetro de mil quilômetros!
De repente, D. Beatriz teve uma ideia, que compartilhou com aquela mãe aflita.
– “Olha, dona, eu tenho um remédio que um amigo me deu para picada de
cobra em caso de animais ofendidos por ela, mas nem sei se calomelano pode
ser usado em ser humano, nem sei em que quantidade poderia ser usado, mas,
se a senhora acha que sim, nós vamos experimentar” – disse D. Beatriz.

38 A missionária que veio para ficar


– “Ah! D. Beatriz, minha filha está quase morta, use o seu remédio, use!” –
concordou a mãe aflita.
Uma colherinha com limão e um pouquinho daquele pó, uma faca descerrando
os dentes da garota e fé, muita fé, fizeram o milagre! E assim, no outro dia, mes-
mo manquejando, lá estava a menina de novo na EPB, cantando com entusiasmo:
“A porta é uma só, / porém dois lados há. / Eu já estou dentro / e você, onde está?”
A história do menino que cantava, cantava e cantava...
Orientadas pelo Dr. Bratcher, então Secretário da JMN, saímos de Tocantínia no
dia 21 de novembro de 1951, pretendendo visitar fazendas de pessoas conhecidas
e lugares onde deveríamos abrir novos trabalhos. Fomos até Porangatu, nesse tempo
chamada de Descoberto, estabelecendo ali as bases de uma congregação. D. Beatriz
juntou a meia dúzia de crentes, foi à Prefeitura e solicitou a utilização de uma sala
na escola da cidade. Então, desafiou aqueles irmãos a prosseguirem no trabalho. Foi
o que aconteceu. Hoje, existe ali uma forte igreja, no Estado de Goiás.
Essa viagem levou muito tempo, a ponto de estarmos de volta apenas a 7 de feve-
reiro do ano seguinte e termos percorrido cerca de 301 léguas (uma légua equivale
a 6 quilômetros) a cavalo! Nessa volta, certa manhã, saindo da cidade de Peixe, rumo
a Porto Nacional, nos perdemos nas diversas estradinhas da região. Depois de
andar a manhã inteira, cansados, nós e os animais, chegamos a uma palhoça. Os
proprietários nos disseram que estávamos fora da rota, cerca de 5 léguas. Pedi-
mos orientação e seguimos viagem, até que chegamos a um rio muito largo e
avistamos, do outro lado, uma canoa e um garoto lá em cima da ribanceira.
– “Garoooto, você pode trazer a canoa aquiiiii!” – gritamos esticando as
palavras, pois a distância era grande.
– “Não posso. Papai não deiiixaaaa...” – respondeu ele.
Então, resolvemos utilizar a força e a destreza dos dois rapazes que nos acom-
panhavam: atravessariam eles a nado, trariam a canoa e, depois, explicaríamos
ao dono e lhe daríamos uma gratificação pelo uso da mesma.
Os rapazes aceitaram o desafio e, embora a correnteza fosse violenta, busca-
ram a canoa. Na primeira travessia, nós conduzimos as selas e outras bagagens.
Ao fim de tudo, os dois jovens e o Pr. Francisco Colares, chefe de nossa jornada,
atravessaram a salvo. Agradecemos ao Senhor.
Chegamos à praia e subimos o barranco do rio. Lá em cima, encontramos uma casa
de palha. Pedimos licença para entrar e, na sala, havia uma senhora parecendo mui-
to doente, que nos recebeu com delicadeza, mas sem entusiasmo. Falamos-lhe so-
bre a travessia, pedimos desculpas por termos assumido aquela postura. Então nos
apresentamos como missionárias – Beatriz, Lídia Colares e eu, e dissemos que logo
chegariam os dois jovens e o Pastor. Ao ouvir as palavras pastor e missionárias, ela
sorriu, sentou-se na cama e disse:
– “Eu sabia que ‘vancês’ eram gente de Deus!”

A missionária que veio para ficar 39


Então ela nos contou que aquele rio era muito perigoso. Que ali havia uma
“besta-fera” que sumia com qualquer animal ou gente que entrasse em suas
águas. Que eles nem usavam a água para lavar roupa ou assear a louça.
Agradecemos a Deus por nada ter acontecido aos rapazes, que nadaram bus-
cando a canoa, nem com os animais na última travessia. Então, quando estáva-
mos meio zonzas de emoção, ouvimos um som meigo e tranquilo que nos vinha
de trás da parede de palha. Beatriz me perguntou:
– “Você está entendendo?”
Levantei-me, rodeei a tal paredinha. Do outro lado, estava um garoto de seus
oito anos, com um largo sorriso no rosto. Ele cantava e cantava. Beatriz, musicista,
logo entendeu o cântico. Eu custei mais. É que ele cantava com um perfeito
sotaque americano do Texas. Perguntei-lhe, então, a razão do cântico e sua
maneira de cantar. Ele respondeu:
– “É que nós aqui em casa somos crentes, todos nós. A gente aprendeu a
cantar desse jeito lá em Anápolis. Era uma dona bem gorda que tocava um
instrumento na praça e cantava desse jeito.”
E a dona da casa, que já estava assentada, completou:
– “Nós estávamos na Praça, já prontos para vir para o norte, quando ouvi-
mos o culto. Eu e o meu velho aceitamos Jesus. As crianças também. A gente
não sabe muita coisa, mas sabemos que precisamos de Jesus. Então eu ado-
eci e lembrei que a gente podia orar e pedir coisas difíceis. Pedi que Deus man-
dasse alguém seu, para nos ajudar a saber mais. Quando vocês atravessaram
o rio e não aconteceu nada, eu soube que vocês eram de Deus. Agora, quando
meu marido chegar, ele vai ficar bem satisfeito!”
E logo nós começamos a entender tudo. Primeiro, o garotinho queria que
soubéssemos que Jesus estava no coração dele e dos demais queridos. Segundo,
nosso caminho não era errado não. Deus nos havia enviado para aquele endere-
ço. Em terceiro lugar, ali estava a oportunidade de ajudar aqueles novos conver-
tidos a se fortalecerem na fé.
Aquele garotinho cantava em alto e bom som, e imitava a maneira como cantava
a querida missionária Alma Jackson, nas praças das cidades de Goiás: “Jesâs me ama
e querrr salvarr-me...” Bendito menino que não deixou de testemunhar de sua fé!
Ali ficamos e cantamos hinos do Cantor Cristão até de madrugada. Sempre
pediam mais e, enquanto a garganta aguentou, nós fomos cantando.
Pela manhã, após o desjejum, animais selados, fomos montando um a um. Então,
a dona da casa, nossa nova irmã em Cristo, disse com carinho:
– “Vão com Deus e nossa Senhora!” – D. Beatriz apeou e conversou carinho-
samente com ela sobre a expressão que havia usado, que demonstrava claramente
que desconhecia o fato de ser Jesus nosso único e bastante Salvador, sem que
fossem necessários intermediários.

40 A missionária que veio para ficar


– “Bem, irmã, vamos nos demorar mais um pouquinho...” – disse-lhe D. Beatriz.
E então, começou a lhe falar sobre Maria, a doce mãe de Jesus, sua importância para
os cristãos, seu único mandamento: “Fazei tudo quanto ele vos disser” (João 2.5)...
E ela entendeu aquilo que, através da visão que nos dá a Palavra de Deus, precisamos
crer: que a mãe de Jesus é bem-aventurada, amada, reverenciada por todos que
vieram a aceitar Jesus, mas nunca como intercessora, advogada ou corredentora...
A história dos folhetos
Em cinco pessoas, viajávamos a cavalo à margem esquerda do Tocantins. Ao
anoitecer, uma chuva de verão vinha em nossa direção. Foi quando avistamos a
fumaça da chaminé de uma casa. Fomos para lá, cavalgando rápido. Ao chegar,
pedimos licença para aguardar, no interior da casa, até que a chuva passasse. A
senhora nos recebeu bem, e nós a amamos assim que a vimos. Nos seus setenta
anos, sorriso franco e desdentado, deixou-nos à vontade. Então passamos a lhe
falar de Jesus. Ela não sabia quase nada, além do fato de chamar Jesus de
“nossusenhô”. Pareceu entender, dizendo que queria seguir esse Jesus, mas que
vivia ali no sertão, sem poder ir à rua (como chamavam as cidades) para visitar
os crentes. Dissemos-lhe que lá mesmo poderia seguir Jesus e procuramos alertá-
-la para as verdades da fé. Foi quando percebemos que a força da chuva havia
passado. Agradecemos a acolhida e, ao nos despedir, lhe demos folhetos de vá-
rios tipos, que ela recebeu sorridente, dizendo:
– “Mas eu num enxergo, gente, eu num seio lê as letrinha...”
Dissemos-lhe que esperasse chegar uma neta, uma vizinha, alguém que pudesse
ler para ela.
– “Tá bem, mas vocemessê podia me dá mais uns papelinhos desses?” –
indagou ela.
Escolhi uma série de folhetos diferentes e lhe dei, pensando que ela os queria
para dar a conhecidos que por ali passassem. Mas, curiosa, perguntei:
– “Para que a senhora quer tantos? Alguns são repetidos, mas a senhora pode
entregar a pessoas diferentes...”
– “É que, cumade, esse papelinho é bom dimais pra fazê um cigarrinho...” –
respondeu ela sorridente.
É claro que D. Beatriz ali ficou mais um pouco para explicar-lhe sobre o uso de
cigarros e sobre a importância de conservar o corpo saudável.
A história de um homem muito manso
Ele era pastor. Diziam os que o conheciam que era manso e humilde de cora-
ção. Trabalhava entre os craôs e, mesmo sem escolaridade, falava, além de por-
tuguês e craô, um pouco de inglês, que aprendera com missionários norte-
-americanos. Era alto, pele tostada, dentes alvos e olhos sorridentes. Sobre ele,
Beatriz contava, exemplificando a sua mansidão, a história que segue.

A missionária que veio para ficar 41


Um dia o Pr. Joaquim Lopes Leão, como se chamava, viajava num daqueles
barcos que nos levavam até o Maranhão, levando uma pequena mala, feita de
papelão bem forte, mas que se amassava facilmente. Por ser emprestada, colo-
cou-a num canto, supondo ser bem seguro. No meio da viagem, quando olha, um
senhor forte estava sentado na frágil mala. “O que fazer? E se ele se zangar e criar
caso?” - pensou consigo. Pensou e orou, pedindo sabedoria a Deus. Então, apro-
ximou-se do homem, olhou fixo para a mala e disse:
– “Minha malinha, você não sabe que é muito fraquinha e que não me perten-
ce? Como foi se colocar debaixo desse cidadão? Não vê que não daria certo?”
O senhor, todo sem graça, levantou-se, tentou desamassar a maleta e saiu para
o convés do barco.
A história de uma carona
Em uma de nossas viagens evangelísticas, passamos por um povoado chamado
Mansinha, onde não nos receberam bem, por sermos crentes. O Professor nos disse:
– “Aqui ninguém assiste a culto dos crentes, não. Nós somos da religião da
maioria, e até lá na Irlanda sabem que aqui só existem católicos.”
Dissemos-lhe o que pensávamos sobre isso, e que não faríamos nenhum tra-
balho sem que eles consentissem. Ele disse, então, que poderíamos usar a sala da
escola, mas que ninguém deles iria assistir. Nós agradecemos, e fizemos um culto
debaixo das mangueiras da praça, bem no centro do povoado.
Tempos depois, estávamos reunidos para planejar uma nova viagem naquela
mesma direção. Nós nos lembrávamos de todos os detalhes daquela desagradá-
vel recepção, quando D. Beatriz disse:
“Mas nós vamos voltar lá, não?”
Ainda conversávamos, quando uma pessoa bateu à porta e perguntou se ha-
veria um lugar no jipe para ela ir até Mansinha. D. Beatriz permitiu, e assim le-
vamos a mãe de um aluno de nossa escola em Tocantínia. Em Mansinha, deixa-
mos a senhora em casa de sua mãe, que convidou-nos para um jantar no outro
dia, quando fomos bem recebidas. Perguntamos, então, se podíamos cantar hinos
dos crentes e ler um texto bíblico. A dona da casa permitiu. Mais tarde, ela se
converteu na Assembleia de Deus. Mas foi ela, por interferência divina, quem nos
abriu as portas. E assim, onde haviam sido rejeitados, os crentes foram aceitos.
Daí em diante tivemos vários encontros. D. Beatriz pregou um de seus mais belos
sermões na calçada da capela, num domingo da ressurreição.
Foi ali perto, em Lizarda, que quando chegávamos, as crianças gritavam: “O
jipe crente chegou!” E dali a pouco, tínhamos conosco mais de 100 crianças. E um
dia, o sacristão da Igreja Católica me procurou e disse: “Professora, vamos
combinar uma coisa? Eu bato o sino antes da hora, às seis e meia, e às sete já
posso estar lá no culto de vocês, tá?”

42 A missionária que veio para ficar


Testemunhando em
terras estrangeiras
Uma visita às terras platinas
m julho de 1967, em Buenos Aires, realizou-se o “10 Congresso da Ju-
ventude Batista Latino-Americana”. Beatriz, conselheira dos jovens do
Tocantins, inscreveu-se e dele participou.
Saiu do Rio de Janeiro acompanhada de outros três irmãos em Cristo,
rumo a Porto Alegre, de onde saiu, de ônibus, a caravana brasileira. Ao chegarem
à Ponte Internacional, já no Uruguai, ficaram parados durante certo tempo por
exigência da alfândega daquele país. Com isso, chegaram a Montevidéu apenas às
7 horas de domingo. Ficaram acomodados por algum tempo na Associação Cristã
de Moços, aguardando ordens para prosseguir até o destino. Ali ficaram o dia todo,
passearam conhecendo as praias e as praças importantes. Visitaram as colinas
artificiais e o “Cêrro de los Pirineus”, o único monte natural naquele país vizinho.
As chuvas foram muito fortes e alteraram o tempo de viagem. Do Rio de Ja-
neiro a Buenos Aires, levaram 45 horas e meia. Assim, perderam o primeiro dia
do Congresso. Foram hospedados nas dependências dos templos. Beatriz e seus
companheiros ficaram a 30 minutos do local do Congresso.
Beatriz resolveu descobrir sozinha como se locomover na grande capital.
Sertaneja esperta, “decorou” a posição do local de hospedagem, anotou uma banca
de jornal, bem na esquina, um grande anúncio de CINZANO e foi para o local de
reuniões. Mais tarde, ao voltar, notou que havia bancas de jornal em todas as es-
quinas, e letreiros de CINZANO dispostos praticamente no início de todas as
quadras. Felizmente havia anotado o número da casa.
Durante o Congresso, várias vezes Beatriz falou sobre o que Deus vinha rea-
lizando através da JMN em terras brasileiras, principalmente nos sertões.
Momento especial aconteceu no Estádio de Atlanta, com capacidade para 40
mil pessoas. Embora a lotação não fosse completa, ali se reuniram milhares para
ouvir a mensagem de salvação em Jesus, havendo muitas decisões. “Nossa espe-
rança está no Fundamento: Cristo” – foi o tema do último sermão.
Na volta para o Brasil, passaram por Punta Del Este, no Uruguai. Ali, gostaram
demais das flores e das praias, e visitaram a Primeira Iglesia Evangélica Bautista,
“La Iglesia em el corazón de la ciudad com el corazón del Evangélio para el
corazón del hombre.”
A entrada em terras brasileiras se revestiu de festa, cânticos patrióticos, fol-
clóricos, em tudo extravasando a alegria dos que voltavam, após colherem bên-
çãos incontáveis em terras irmãs de língua hispânica.

A missionária que veio para ficar 43


Do Brasil Amazônico até a Bolívia e o Peru
Em 1975, Beatriz Silva recebeu de seu ex-aluno do Instituto Batista de Caro-
lina e agora pastor no Amazonas, Pr. Darciso Medeiros de Souza, um convite para
visitar o seu campo de trabalho, em Rio Branco, Acre.
Beatriz sabia que as estradas eram de barro na maior parte dos trechos, onde a
insegurança rondava. Já com 66 anos, não dispunha de muita facilidade de locomo-
ção, mas continuava disposta a enfrentar desafios. Foi assim que teve a ideia de convidar
Dilene Nascimento Rodrigues, sua colega missionária, para acompanhá-la. Dilene
aceitou o desafio e a JMN a liberou para sair de seu campo por um tempo. Dilene nos
ajuda a descrever vários lances da trajetória que fizeram, saindo de Miracema, Norte
de Goiás, cidade que fica em frente a Tocantínia, no outro lado do Rio Tocantins.
Inicialmente, foram a Cuiabá, onde encontraram vários obreiros, conhecen-
do alguns e revendo outros. De Cuiabá foram de avião para Rio Branco onde
encontraram, depois de alguma dificuldade, o Pastor Darciso, sua família e a
igreja, que as recepcionaram com fraternal carinho.
Em Rio Branco, cidade que completava 15 anos de existência, havia só uma
igreja batista e muitos trabalhos foram realizados. Ali foram surpreendidas com
a visão de uma fotografia de um abacaxi gigante, da altura do espaldar de uma
cadeira, cuja produção existia apenas na cidade de Tarauacá.
Mas a intenção era de avançar além. Assim, dias depois, atravessaram a fron-
teira e foram a Cobija, na Bolívia, onde a Junta de Missões Mundiais mantinha um
casal de obreiros, pastor Horácio e Ana Maria Wanderley. Dali foram a Brasiléia,
fronteira com Cobija, trabalho da JMN. Por não ser dia de culto, tiveram apenas
a visão do belo templo que ali havia.
O trabalho em Cobija foi edificante. A família do pastor e os irmãos foram muito
afetuosos e tudo fizeram para aproveitar cada minuto da visita das obreiras.
Após uns dias de chuva, foram a Assis Brasil, de onde se enxerga, num verdadei-
ro triângulo: Bolpedra, na Bolívia; Inhapari, no Peru; Assis Brasil, no Brasil. Ali havia
um casal de obreiros, formados pelo Instituto Teológico Batista de Carolina.
Em Inhapari tiveram de atravessar uma “ponte internacional”, do Brasil para
o Peru. Era feita de tabocas (bambus) amarradas, algumas bem frouxas, com um
pega-mão mambembe. Foi um ato heroico atravessá-la, e D. Beatriz o fez sem-
pre com seu humor apreciável, animando os demais. Essa viagem foi muito pe-
rigosa. A chuva havia desfeito a estrada e ladeiras tornavam quase impossível
prosseguir. Deus supriu todas as necessidades, pois conseguiram ajuda de um
grupo de pessoas que estava parado na estrada.
Realizaram várias atividades em Bolpedra, Bolívia, falando a pessoas de três
países. A volta foi muito perigosa por causa da estrada cheia de desníveis, ladei-
ras escorregadias, além de estarem viajando numa caminhonete sem qualquer
segurança. Chegaram em paz porque o Senhor as guardou.

44 A missionária que veio para ficar


Na Ponte
Internacional: a
travessia para o
Peru

Beatriz e sua companheira Dilene voltaram ao lar felizes, gratas a Deus pelo
privilégio que lhes foi concedido graças ao convite do Pr. Darciso. Tiveram opor-
tunidade de falar, não apenas no Acre, mas também na Bolívia e até no Peru, de
organizar trabalho infantil, o de educação cristã e o feminino em várias locali-
dades em terras brasileiras, e de ajudar no ministério de obreiros queridos em terras
estrangeiras. Tudo isso deixou um saldo de bênçãos.
Visita à pátria norte-americana
Os brasileiros nunca poderemos nos esquecer de que recebemos o Evangelho
de nossos irmãos norte-americanos. Para cá vieram os Bagbys e muitos outros.
Legaram-nos hábitos e costumes, que inserimos em nosso dia a dia. Traziam uma
cultura rígida quanto à maneira dos crentes se conduzirem. Eram sóbrios,
contemplativos e moderados e incentivavam nossos pais a viverem assim. Fumo,
bebidas alcoólicas, bailes, jogos de azar, consultas a mortos, domingo sem Deus,
tudo isso era evitado mesmo. Quaisquer que sejam as implicações de tudo isso,
eu agradeço a Deus os costumes que incutiram em nossas famílias, que nos fo-
ram tão úteis e que recebemos como herança!
Pois bem, tendo na outra América missionários muito queridos, já aposenta-
dos, D. Beatriz projetou visitá-los. Juntei-me a ela nesse propósito. Começamos
a fazer os planos e as malas. Assim, no dia 03 de julho de 1975, deixávamos o Brasil
rumo aos Estados Unidos. Pegamos um voo que levou 10 horas, com 150 turis-
tas a bordo, para a Disney World, na Flórida. Havíamos contratado deixá-los em
Miami, seguindo um roteiro diferente daquele. Assim, descemos em Miami e dali
fizemos nosso próprio itinerário.
Em Miami, todos sabem, há muitos brasileiros e cubanos andando pelos longos
corredores do aeroporto. Foi aí que D. Beatriz fez uma descoberta interessante e tomou
uma atitude ímpar. Vendo que a maioria dos que por ali caminhavam usavam san-
dálias havaianas, retirou de sua sacola um par de chinelos já bem usados, guardou os
sapatos que lhe maltratavam os pés, já bem inchados, e calçou um velho par de

A missionária que veio para ficar 45


chinelos usados em casa. Mas, para surpresa sua, pensando que tal gesto passa-
ria despercebido, fez o maior sucesso! Muitos a paravam e perguntavam:
– Em que loja comprou esses chinelos?
Foi difícil explicar que havia adquirido os chinelos no sertão do Brasil, ao longo do
Rio Tocantins. Pudera, eram bem bonitos, embora já gastos, feitos de um lustroso
couro de caça, farto em pelo marrom e branco!
De Miami, fomos a Atlanta. Enfrentamos outros longos corredores, outras
perguntas sobre o chinelo, cansaço com o peso da bagagem, até que chegamos
a Charlotte, onde esperávamos encontrar alguém que nos levasse à residência do
casal Allen, em Wingate, Estado de Carolina do Norte.
Nossa espera em Charlotte foi longa. O número de telefone dos Allens que
tínhamos estava com um dígito trocado, e assim foi impossível entrar em con-
tato com eles para dizer que já estávamos no aeroporto. Então eu me lembrei da
Polícia. Deixei Beatriz acomodada com nossas bagagens e fui ao Posto Policial.
Lá me identifiquei e apresentei nossa necessidade. Eles entraram em contato com
o Dr. Allen, que disse enviar logo alguém. Após uns 30 minutos, chegou a irmã
Helena Cowsert, da família Cowsert, missionários no Brasil. Professora de
castelhano em uma escola local, ela falava bem o português.
Ao voltar do Posto Policial, descobri que Beatriz, sozinha ali por alguns minu-
tos, foi interrogada por muitos que passavam e lhe pediam informações sobre onde
era a saída, onde ficavam os sanitários, e assim por diante. Respondia com bom
humor e gentileza, às vezes brincando com as palavras. Ouvi-a dizer a um casal: “I
am sorry, but... eu não sou daqui, nem de Niterói...” Esta última parte, em portu-
guês bem carioca, o que espantava os que ouviam tais palavras sem saber quão
brincalhona era aquela senhora de cabelos grisalhos e com chinelos tão atraentes!
Chegamos, finalmente, ao lar dos missionários. Ele, Pr. Allen, muito enfraque-
cido, falando baixinho. Ela, D. Edith, bem forte, mas utilizando um andador, que
a ajudava a se locomover dentro de casa após uma queda. Ambos estavam feli-
zes, querendo saber das coisas do Brasil, perguntando pelas igrejas e irmãos
conhecidos, relembrando o passado.
Inicialmente, fomos conduzidas a Ridgecrest, talvez o maior Acampamento
Batista, onde são realizados encontros de organizações batistas de todo o mundo.
No acampamento estava a família Cowsert, passando férias ali. Foi bom revê-los
e dali em diante a família tomou conta de nós.
Quando ali estive, como seminarista estagiária do Seminário Batista do Su-
doeste dos Estados Unidos, nos anos 60, participei de grandes reuniões, nas quais
sempre estavam presentes missionários do Brasil em seus períodos de férias. E
como foi bom seguir a regência de Bill Ichter, dirigindo a imensa congregação
de cantores de todos os cantos do mundo! Certo dia eu o ouvi dizer: “O brasi-
leiro é um povo dos mais musicais que eu conheço, pois até de uma caixa de
fósforos faz um instrumento musical!”

46 A missionária que veio para ficar


Dessa vez, fiquei hospedada com os Allens e gostei quando o Pastor me pediu
para cozinhar um arroz bem brasileiro (com muita cebola e alho) e a temperar
de novo o feijão. Era bonito ver sua satisfação e seu sorriso.
Nossa cicerone, nessa viagem com Beatriz, foi D. Hilda Cowsert, estimada
missionária que, no Brasil, já estivera trabalhando em vários campos, e visitou-
-nos até mesmo no sertão do Tocantins. Ela passava férias com a família, próxi-
mo ao Acampamento, e com ela participamos de reuniões em Ridgecrest e fi-
zemos bons passeios nos arredores. Com ela e seu esposo, o Pr. George, fomos
assistir a uma belíssima programação da Mocidade Batista no auditório central
do Acampamento. Visitamos, ainda, todos os pavilhões, conhecendo grande
número de irmãos de vários países.
Chegou a vez de conhecermos a maior cidade das imediações – Asheville,
Carolina do Norte. Linda, espaçosa, com amplos shoppings, lindos jardins e
hospitais. Toda aquela região era muito bela, com muitos pinheiros espalhados
pelas montanhas, as Blue Ridge, que se estendiam a perder de vista.
Foi aí que Deus operou de maneira visível, mais uma vez, ensinando-nos aonde ir.
Desejávamos rever um casal de amigos, ele médico, mas não tínhamos onde buscar
informações. Fomos, então, a um shopping onde havia uma grande loja de calçados.
Pedi emprestado o catálogo telefônico, com mais de um palmo de grossura. Está-
vamos a procurar o nome do amigo, quando um empregado perguntou: “Posso ajudá-
la?” Expliquei-lhe sobre o médico amigo, o desejo que tinha de estar com ele, recor-
dar alguns fatos tão preciosos para o coração. Ele então me perguntou alegre:
– “É o Dr. Jesse Chapman, cirurgião do coração? Eu sei quem é! Uma de minhas
irmãs fez uma cirurgia com ele e ficou curada. Espere aí que eu tenho o núme-
ro do telefone em minha agenda pessoal.”
E assim, dentre os milhares de Chapmans do catálogo telefônico, encontra-
mos o nosso amigo facilmente. Pouco tempo depois, estávamos em sua linda
mansão, construída num bosque refrescante e acolhedor. Lá estava sua esposa,
a querida irmã Francis. Foi uma tarde feliz, eles conhecendo Beatriz, fazendo-lhe
perguntas, pois de sua vida já sabiam muito pelas histórias que eu contara no
passado. D. Beatriz, usando as palavras do vocabulário comum que já manejava,
conversou com o Dr. Chapman, grande organista, que nos encantou com sua
interpretação de “Jesus, Alegria dos Homens”.
A irmã Hilda Cowsert participou desse momento alegre e, por várias vezes,
serviu de intérprete para as “sertanejas do Tocantins”. Sim, ali estava um homem
reconhecido como dos melhores cirurgiões daquela parte dos Estados Unidos,
mas cuja alegria maior era pertencer a uma igreja batista, onde era solista no
grande coral, diácono e assíduo professor da EBD. Abençoada família, amigos
íntimos de Billy Graham cuja casa visitamos, ali perto.
De volta a Wingate, fomos localizadas, por telefone, pelas filhas do Pr. Loren
Reno, missionário no Espírito Santo. Residiam perto de Nova Iorque, e nos ofe-

A missionária que veio para ficar 47


receram passagem para irmos a Dallas e arredores, no Texas, para abraçarmos as
obreiras que ali residiam, duas das quais haviam sido nossas professoras na Es-
cola de Obreiras. Arrumamos a bagagem para fazer essa viagem e de lá voltar para
o Brasil. Não foi fácil a despedida do casal Allen, mas queríamos rever as queri-
das missionárias. Também iríamos ao Seminário do Sudoeste dos Estados Uni-
dos, em Fort Worth, Texas, onde eu havia estudado.
Foi bom ver Beatriz abraçar as irmãs que haviam se dedicado ao preparo de
jovens para servir a Deus nos campos missionários, e que agora estavam aposen-
tadas da Junta de Richmond: duas residiam num lar para idosos, onde as visita-
mos. Outra, ainda dirigindo seu carro, levou-nos à Primeira Igreja de Dallas e a
outros locais, apresentando-nos como suas “filhas brasileiras”.
Beatriz se encantou com o templo e o ministério da Primeira Igreja de Dallas,
na época, a maior igreja batista do mundo. Escreveu em seu diário:
“Visitamos o lindo templo com inúmeras dependências, ocupando um quar-
teirão inteiro no centro da cidade. Havia até um túnel passando de um prédio para
o outro, por baixo da rua, que protegia da chuva e da neve e facilitava o movi-
mento de pessoas em determinadas horas do dia. Tudo é tão lindo! Fomos apre-
sentadas pelo Pastor, na hora do culto, como missionárias brasileiras visitando
os Estados Unidos e, como qualquer igreja batista, vieram, após o culto, nos cum-
primentar afavelmente. Fiquei impressionada com o grande número de saídas
do santuário, havendo em cada banco um indicador do lugar por onde se deve-
ria sair, a fim de evitar atropelos .Havia mais de um serviço (culto) pela manhã,
pois a Igreja contava com quase 20 mil membros em seu rol. Impressionou-nos
a rapidez com que distribuíam a ceia. Contei pelo menos 24 diáconos!
“Falamos na classe de homens que sustentou Miss Letha, nossa professora
no Brasil, por 15 anos, e ela quis que eles conhecessem suas “filhas” brasilei-
ras do trabalho de missões nacionais. Foi essa classe, também, que havia dado
uma grande oferta para construir o Instituto Teológico de Carolina na ocasião
em que Miss Letha era Secretária Adjunta da JMN. Foi um dia memorável em
minha vida, visitar a maior igreja batista do mundo.”
Em Dallas, tivemos ainda o privilégio de lanchar com a mãe de um grande can-
tor batista, Frank Boggs, e depois fomos passear pelo Lago White Rock, onde, na-
quele tempo, ficavam as mais opulentas e belas mansões de Dallas.
Era uma segunda-feira, dia 14 de julho, quando viajamos a Fort Worth para
visitar o Seminário, o maior do mundo nos anos 70. Visitamos os velhos e os novos
prédios, a biblioteca com mais de 300 mil títulos, onde trabalhei em troca de bolsa,
o edifício de Educação Infantil, e tantas outras instalações.
No dia seguinte, já estávamos em Miami, em um hotel de frente para o Pací-
fico, oceano de estonteante tonalidade azul. Ali reencontramos os companhei-
ros que haviam viajado do Brasil conosco. Todos tinham muito a dizer, mas nin-

48 A missionária que veio para ficar


guém tinha tantas bênçãos a contar quanto nós duas! A visão que tivemos do
trabalho dos irmãos norte-americanos e do que eles construíram para o Senhor
foi gratificante. Beatriz agradeceu a Deus todas as bênçãos!
Uma das experiências que me fizeram rir foi quando, em Wingate, fomos a uma
padaria com ampla oferta de pães, doces, enlatados, dentre outros itens. Para
comprar café, Coca-Cola ou outro refrigerante, era preciso usar máquinas se-
melhantes às que já existem no Brasil, nas quais se aperta um botão para esco-
lher o que se quer, e logo outro botão para fazer a coisa acontecer. Beatriz, a
carioca com mais de 50 anos no sertão, segredou-me, enquanto olhava com
repulsa as máquinas que substituíam pessoas: “Não gosto disso. A gente não
pode nem pregar o evangelho, nem mesmo entregar um folheto!”
Memórias ao sabor de uma visita
Foram muito bons esses contatos com missionários norte-americanos que
trabalharam no Brasil. Eles nos fizeram lembrar de muitos fatos e agradecer a
Deus a vida de obreiros que cuidaram de nós no início da evangelização da Pá-
tria. Beatriz anotou muitas apreciações em seus diários. Destaco estas:
1. Agradecemos a firmeza doutrinária com que conduziram nosso povo, tão
simples e tão apegado a superstições advindas da religião oficial, tão misturada
com os credos místicos, herança de nossos ancestrais africanos.
2. Agradecemos os Seminários que edificaram, as “Casas de Profetas”, em
lugares estratégicos (Belém, Recife, Rio de Janeiro); a maneira como ensinaram
nossos primeiros pastores, criando, para a glória de Deus, um número conside-
rável de pregadores eloquentes na palavra e dignos no testemunho.
3. Agradecemos os Colégios Batistas que foram erguidos em cidades onde
antes o ensino estava completamente ligado à religiosidade sem Cristo (...).
4. Agradecemos as “Casas de Obreiras” – ETC (SEC) e ITC (CIEM), que forma-
ram trabalhadoras para a seara, esposas de pastor, professoras nas igrejas e nos
colégios que surgiram em campos missionários. (...) É bom sempre lembrar que,
do SEC, saiu Marcolina Magalhães, a primeira missionária solteira que foi aos
sertões de nossa pátria, escrevendo uma linda página de abnegação e serviço ao
Mestre. E que dizer do IBER, (...) de onde vieram à luz missionárias de umas es-
tirpe verdadeiramente bibliocêntricas e que ajudaram a formar caracteres cris-
tãos onde quer que estivessem?
5. Agradecemos os casais que estabeleceram aqui os hábitos e costumes de uma
família cristã. Sem dúvida, eles ostentam uma linda galeria em nossa história
batista. Mas a recordação mais comovente que tivemos, sem dúvida, foi obser-
var a vida de missionárias solteiras que deixaram suas terras na outra América e
vieram ao Brasil trabalhar em todas as regiões, enfrentando muitas vezes a
incompreensão de alguns, falta de conforto, em tempos tão difíceis.

A missionária que veio para ficar 49


Coisas que
foram acontecendo
Depois de partir, Beatriz ainda fala.
jornal “A Voz do Tocantins”, de 1996, apresenta a última mensagem de
Beatriz ao povo de seu campo missionário. Ela recebeu a tarefa de trazer a
mensagem oficial à Assembleia da UFMB do Tocantins. Já debilitada, pediu-
-me que a ajudasse. Assim, fui escrevendo o que ela dizia. No dia 25 de ju-
lho de 1996, apresentei a mensagem em seu lugar. O salão David Gomes estava lotado
de irmãs de todas as igrejas do Vale, obreiros de outras regiões e amigos. Dizia ela:
“Mistura de regozijo e memória estão comigo neste momento. Quase não
acredito que 60 anos se passaram desde aquela manhã ensolarada quando,
em Ricardo de Albuquerque, me despedi dos queridos para vir ao interior de
minha pátria. Ainda ouço a voz de minha mãe lendo o salmo do viajante:”...o
Senhor te guardará de todo o mal; ele guardará a tua vida. O Senhor guarda-
rá a tua entrada e a tua saída, desde agora e para sempre” (Salmo 121. 7 e 8.)
“E assim foi. Recordo-me daqueles que foram até o porto, levando ainda pre-
ciosos presentes, a promessa de que orariam por nós, e dando aquele abraço tão
cheio de afeto que foi de grande conforto para nós que estávamos saindo de casa,
de nossas amadas igrejas, do seio de nossos amigos. Ainda trago na retina a
imagem dos lenços brancos agitados contra a silhueta de minha terra natal, que
pouco e pouco se distanciava. E então, no bojo do ITAPÉ, deixamos para trás todos
aqueles que nos ajudaram em nosso dia a dia a viver felizes e tranquilas. Lygia
de Castro e eu, observando a linha do horizonte que se afinava ao longe, restan-
do apenas o mar, agradecemos a Deus por nos ter chamado para trabalhar na
sua Seara. 1936... Olhar para o sertão pátrio era como enxergar o invisível...
“Veio, então, a viagem pelo litoral. Paramos em quase todas as capitais, encon-
trando a juventude crente que, aliada às lideranças dos campos, vinha entregar uma
palavra de conforto e ânimo, colocando-se ao nosso lado, mesmo a distância, num
ativo ministério de oração. E, então, chegando a Belém do Pará, e dali, deixando o
mar, começamos a nossa aventura ao longo do esplendoroso TOCANTINS. Uma
sequência de nomes interessantes se foram sucedendo aos nossos olhos:
Abaeté, Cametá, Macajuba, Baião, Alcobaça (hoje Tucuruí), Samaúma,
Jacundazinho, Jacundá, Marabá, Imperatriz, Santo Antônio, Porto Franco, onde
demos um apertado abraço em Dona Marcolina Magalhães. Depois, Nova
Aurora do Coco e Carolina - A PRINCESA DO SERTÃO - como era chamada
naquele tempo. Continuamos a subir o rio e, numa sexta-feira chuvosa, do dia
28 de fevereiro, cheguei aqui, na pequena Piabanha, chão onde piso há 60 anos. Aqui
assentei a minha tenda de trabalho. Daqui me tornei cidadã muitos anos atrás.

50 A missionária que veio para ficar


“Ao sair do Rio de Janeiro impelia-me o desejo de atender à Chamada do Se-
nhor, para ser sua testemunha no Brasil Central, região considerada terra de
índios, de onças e de um povo necessitado tanto das coisas materiais quanto das
intelectuais e muito mais das espirituais. E eu estava feliz pois atendia a dois
reclamos de meu coração: 1°) estava obedecendo à Chamada do Mestre; 2º) Podia,
através de meu compromisso com Deus, também ajudar a pátria terrestre, en-
sinando e ajudando a juventude a conhecer Jesus e a buscar a Pátria Celestial.
Foi por isto que não doeu muito deixar a “Cidade Maravilhosa”. Eu estava bus-
cando o “meu obscuro lugar” na seara. E daí para cá, embora houvesse momentos
de lágrimas, na realidade eu só podia contar as bênçãos porque são muitas.
“No dia 1º de março, logo após minha chegada, presenciei os primeiros batismos;
no dia 2 iniciamos o Colégio Batista. No mês de abril, logo no dia primeiro, tive meu
primeiro encontro com os índios e meu coração se propôs, muito intimamente, a
ajudá-los a se tornarem cidadãos do Céu, por aceitarem a Jesus. No mesmo mês,
no dia 12, reuni pela primeira vez as senhoras de Tocantínia no intuito de estudar
o Manual da União Geral de Senhoras, com vistas à organização de nossa socie-
dade. Estas mesmas senhoras foram companheiras de planejamento da EPB (hoje
EBF), e depois ao instalarmos a primeira que houve em nosso Campo. No dia 13 de
junho, andei pela primeira vez de burro, atividade que se tornou, depois, comum na
minha vida missionária. No dia 23 de junho foi organizada a nossa querida igreja,
e todos os planos de expansão do trabalho se tornaram reais. Ainda no mês de junho,
tivemos a alegria de reunir aqui em Tocantínia, começando no dia 27, a COLIGA-
ÇÃO BATISTA DO VALE DO TOCANTINS, em sua primeira reunião, embrião de nossa
querida Convenção Batista do Tocantins. Éramos 22 mensageiros: Marcolina Ma-
galhães, Alexandre Silva, Normando e Anaídes Lang, Lygia de Castro, Pr. Francis-
co Colares, Joaquim Leão e 15 membros da igreja local, entre os quais eu estava.
Foram reuniões muito abençoadas e um dos itens de discussão era: Urgentes Ne-
cessidades do Campo do Tocantins.
“Falo a uma Assembleia de Senhoras e com muita alegria me recordo que até
agosto a nossa humilde Sociedade já tinha três Pontos de Pregação organiza-
dos e tem levado a sério a sua tarefa...
“Este é o retrato de nossas igrejas no cenário de um Campo que começava a
crescer. Ao chegar ao Campo, tínhamos apenas três igrejas: a de Araguatins, a
primeira; a de Carolina, a segunda; a de Porto Franco, a terceira. A de Tocantínia
foi a quarta. Depois tivemos a de Pedro Afonso, a de Itacajá e a de Natividade.
“Em todos esses lugares e naqueles que foram surgindo adiante, as senho-
ras sempre assumiram um compromisso sério de testemunhar e de espalhar
a mensagem do Salvador Jesus.
“O que alegra o coração é poder olhar para trás e verificar, como disse o Após-
tolo Paulo: “...Não fomos indiferentes à visão celestial.” Quando o Estado de
Goiás foi dividido, e nasceu formalmente o nosso Tocantins, o povo batista já

A missionária que veio para ficar 51


estava aqui, nas cidades ribeirinhas e nos entroncamentos das pequenas es-
tradas. E as senhoras, com as organizações filhas, já haviam assumido sua po-
sição de obreiras do Senhor, servas para levar adiante a obra.
“Diletas irmãs do amado Campo do Tocantins, muitas vezes tenho levanta-
do minha voz para conclamá-las a um viver de contínuo serviço, de constante
prece, de perene dedicação Àquele que na cruz sofreu as mais tristes humilha-
ções para fazer-nos livres. E, que organização tem sido mais ciosa de seus
deveres para com o Senhor da Seara? Temos procurado evangelizar, admoes-
tar, repreender a tempo e fora de tempo, as crianças, as meninas, as jovens e
as outras senhoras... Os tempos são maus. Há muitas nuvens nos cercando...
“Minha palavra hoje, portanto, é de recordação e de ânimo: continuemos, le-
vemos a Palavra, tenhamos uma vida de testemunho vivo e, quando o Senhor nos
chamar, estaremos seguras nas mãos dAquele que nos garantiu um lugar na
Casa do Pai. A ele seja dada toda a glória e toda a honra para sempre. Amém.”
Na madrugada do dia 29, quatro dias depois, a Missionária partiu para estar com
o Senhor. Os que ouviram sua mensagem no salão do Colégio Batista, com os
olhos lacrimejantes, ajudaram a levar o seu corpo à sepultura, lá na margem direita
do Tocantins, bem perto da praia, com vista para o poente.
Reflexos de uma caminhada
Do punho da Missionária Beatriz, Tocantínia, 19 de agosto de 1971:
“Parei para agradecer, meu grande Senhor!
“Sou missionária-professora da Junta de Missões Nacionais há 35 anos e tra-
balhei como professora 33 anos. Hoje, resolvi parar e recordar os começos e
me vi sentada atrás de uma tosca mesinha, com um pequeno número de alu-
nos à frente, no meu primeiro dia letivo em Tocantínia.
– “Por favor, repitam seus nomes porque desejo gravá-los na mente – pedia
eu aos alunos. ‘ Eu me chamo Pedro Soares e meus irmãos são Acyolina, Donato
e Otília.’ ‘Eu me chamo João Reis’ - disse outro – ‘e meus irmãos são Marina,
Maria, Artur e Jessina.’ Ana Campelo, filha dos missionários Zacarias e Orfisa
Campelo, foi logo apresentando a turma de sua casa. Foi assim que travei co-
nhecimento com esse abençoado grupo de jovens sertanejos. Mais tarde fo-
mos visitá-los em seus lares. Alguns moravam do outro lado do Tocantins, onde
havia meia dúzia de casas de palhas e só uma de telha.
“Olhando agora uma amarelecida foto daquele primeiro dia de aula, vejo no
centro o venerando obreiro da Junta, Pr. Zacarias Campelo. O menino ao seu
lado é o irmão João Reis, atual sustentáculo do trabalho em Cristalândia. Outro
bem perto, é o Artur, irmão de João, esforçado membro da Igreja de Marabá;
Ana Campelo, atual professora de música no Seminário Teológico do Sul do
Brasil. Observo ainda o prédio que os acolheu, marco existente do Trabalho da
Escola Batista em seu início. Olho para aquele portal rústico e penso nos inúme-

52 A missionária que veio para ficar


Primeiro dia de aula - 2 de março de 1936

ros pés que o cruzaram. Olho aquele teto, aquele piso envelhecido e penso nos
muitos que ali ouviram pela primeira vez a nova do evangelho. Como sou feliz
em ter sido missionária-professora nesses 33 anos! Aparece-me, de quando
em quando, alguém que diz: ‘Eu sou Fulano, a Senhora não se lembra mais de
mim. Mas fui aluno da sua Escola Batista e dela não me esqueço. Aqui está meu
filhinho. Gostaria muito de poder mandá-lo para Tocantínia. Naquele tempo
eu não dava muita importância ao que a Senhora ensinava nas Assembleias,
mas agora sou crente em Jesus por causa do que aprendi lá...’ Muitas vezes
chorei emocionada ao ouvir estas palavras no Entroncamento de Fátima e
também ao ouvir palavras semelhantes dos lábios de uma senhora que se de-
cidiu em uma das últimas reuniões convencionais.
“O que me fez parar hoje, para pensar e agradecer ao Senhor, foi uma coisa
muito simples que aconteceu ontem, em nossa Igreja. Era dia de oração no qual
todos os membros da Igreja têm oportunidade de treinamento. Corre a esca-
la em ordem alfabética, dando a alegria de dirigir a reunião a todos os mem-
bros. Uma jovem muito tímida se levantou pela primeira vez e seguiu até a frente
para dirigir a reunião. Joana Lira, convertida em nossa escola ali estava, entre
trêmula e alegre, embora estivessem presentes o pastor Clóvis e professoras.
Pensei nela, na sua família tão descrente. Que seria dela hoje, se não tivesse um
dia ingressado na Escola Batista? Dei louvores ao Senhor, com muita gratidão
e resolvi parar, relembrar e escrever os nomes de alunos que se converteram
por causa da existência de nossa humilde escolinha, que é hoje o abençoado
Ginásio Batista de Tocantínia, até agora o único da JMN.
“Vejamos mais alguns nomes que alegram o nosso coração: Cosma Costa, na
intimidade chamada de Dudu, converteu-se dentro de nossa Escola e depois veio
ajudar-me. Depois de convertida, foi a Carolina estudar em nosso Instituto
Teológico, e depois voltou para tornar-se a professora do Curso de Alfabetização,

A missionária que veio para ficar 53


que a tantos tem pregado as Boas Novas! Pr. Euclides Rodrigues, estudando atu-
almente no Seminário do Sul, que se refere a D. Dudu, sua professora na alfabe-
tização, como sua “mãe na fé”. Ricardo e Fausta Pires, de tradicional família não
crente, e hoje são membros de igrejas do sul do estado. Maria José Rios, fez o curso
aqui, depois foi ao Seminário Betel, no Rio, e voltou para ser missionária da Junta
de Missões Nacionais na cidade de Tocantinópolis. Ainda temos: Almerinda San-
tos, missionária da Missão Novas Tribos. Por muito tempo foi a única da família
a aceitar o Evangelho. Depois vieram seus irmãos Narciso e Adercília, também
convertidos na escola. Oneide Fonseca, que após converter-se em nossa escola, foi
continuar seus estudos no Rio, em Volta Redonda e continua como professora ali.
Oneide teve a alegria de ver, anos depois, sua mãe aceitando o Evangelho.
“Natividade Araújo Fernandes é, até hoje, a única crente em sua família. Ela
pretende entregar-se ao trabalho missionário da Junta de Missões Nacionais.
Brevemente deverá estar estudando no Seminário Teológico de Vitória.
“São tantos, tantos, mas estes nomes eu coloquei no papel...” E prossegue a
missionária, relacionando vários outros nomes.
“Esta recordação, que me é muito preciosa, me anima a incentivar as cole-
gas que chegam para prosseguirem na Obra. Antes de fechar, quero lembrar
de Margarida Aguiar Natividade, já falecida, que se converteu em nossa esco-
la e foi instrumento nas mãos de Deus para a conversão de Valnice Milhomens,
a pedra preciosa que os batistas brasileiros ofereceram à África. Em que ga-
rimpo foram todas estas joias encontradas? Numa humilde escola batista, no
Campo de Missões Nacionais. Margarida Natividade, a nossa Caíta, partiu,
mas deixou em seu lugar alguém que continua o seu ministério.
“Atualmente, a idade me faz frágil e não posso continuar me dedicando à edu-
cação formal. Fico em disponibilidade, porém recebo de Deus contínuo incentivo
para continuar servindo-o com a força que tenho. E foi assim que senti uma ale-
gria imensa, escutando o garoto da vizinha, aluno de nossa escola, repetindo
mesmo agora, versículos da Bíblia que ele “teimava” em aprender porque a pro-
fessora havia ensinado ... Agradeci a Deus, pois num lar incrédulo, como nesse de
meus vizinhos, alguém estava lendo a Bíblia, decorando os versículos, e sei que tais
ensinos trarão como consequência a conversão de minha vizinha. E então eu oro:
“Deus amado, abençoa a nossa JMN, Senhor, e todas as suas escolas. Aben-
çoa as professoras que nas assembleias têm sempre um grande auditório para
ouvir a mensagem que pode conduzir muitos aos pés de Cristo. Agradeço a Ti,
Senhor, porque ensinei durante 33 anos. Parei, agora, um trabalho que fazia,
para te agradecer, Senhor! Obrigada.
“(Ass.) Beatriz”
Abaixo desse escrito havia muitos outros nomes, dos quais ela ainda se lem-
brou, anos depois... Ela se lembrou dos que com ela estavam naqueles primeiros
anos. Muitos mais foram chegando depois... e depois...

54 A missionária que veio para ficar


Assim era D. Beatriz...
Uma das características de D. Beatriz que me impressionavam era a maneira como
conduzia seus relacionamentos. Ela conseguia pregar o Evangelho de Cristo “a tempo
e fora de tempo”, sem constranger as pessoas e sem provocar ódio e malqueren-
ças. Todos os dias, na escola, havia um momento de culto, quando histórias bíblicas
eram contadas, sempre visando a apresentar a salvação em Cristo. Ela sozinha fez
isso por muitos anos, e depois as professoras-missionárias que chegavam conti-
nuaram esse ministério. Todas têm histórias pessoais de bênçãos alcançadas. Ha-
via ali filhos de lares não evangélicos, em sua maioria, que assimilavam a mensa-
gem e muitos a receberam intimamente. Várias foram as experiências. Inúmeros
os resultados. Vejamos alguns fatos, resultados e consequências:
Natividade Araújo Fernandes era uma mocinha de família modesta. Sua mãe,
sozinha, cuidava de muitos filhos. Natividade era a mais velha e desejou estudar no
Colégio Batista. Recebida por D. Beatriz, foi aceita e ali fez todos os estudos que a
escola mantinha. Nesse tempo, aceitou Jesus como Salvador, o que ocasionou sua saída
de casa, porque sua mãe, a princípio, não aceitava tal decisão. Natividade foi morar
com a missionária Dudu Costa. Ao terminar os estudos no Colégio Batista de
Tocantínia, desejou continuar seus estudos e nessa intenção, ajudada por amigos em
Vitória, foi cursar o Seminário Teológico Batista do Espírito Santo. Ao encerrar seus
estudos ali, três anos depois, foi a oradora de sua turma e voltou à sua cidade de
origem, pronta, disposta a trabalhar na Causa. A Igreja de Tocantínia convidou-a para
ser a professora de sua pequena escola na Congregação do Lajeado. Ali ela firmou a
sua tenda, tanto na escola anexa, quanto na rede de ensino do Estado, para a qual foi
convidada. Assim, aquela menina modesta, simples, meio encabulada, tímida, exer-
ceu um grande ministério numa pequena cidade, onde dirigia a Congregação e en-
sinava várias crianças no Colégio. Foi eficiente no seu trabalho, cumpridora de seus
deveres e encargos, sempre falando de Cristo e cantando os hinos de salvação.
Tempos depois, fui chamada por duas amigas suas do Lajeado, que me disseram
estar Natividade muito mal, em um hospital. Levaram-me até ela e pude presenciar
a sua partida para estar com o Senhor. Pouco lhe pude falar, mas o suficiente para
enxergar seus olhos bem abertos, sem medo, parecendo que estava confiante!
O importante foi participar do culto fúnebre realizado no salão de sua escola -
Colégio Estadual Nossa Senhora da Providência. Alunos e mestras, todos ouvindo
respeitosamente as mensagens que foram proferidas e cantando os hinos e acom-
panhando os salmos que ela, através dos tempos, lhes havia ensinado. E como foi
bom ouvir algumas freiras que ali estavam, dando testemunho da conduta ilibada
daquela querida “filha” de D. Beatriz! Hoje, no Lajeado, existe um prédio com o seu
nome: “Escola Natividade Araújo Fernandes”. Como isto nos alegra.
A escola de D. Beatriz era realmente uma agência do Reino de Deus. Sua men-
sagem não estava baseada em catecismos ou credos. Antes, era a própria Pala-
vra de Deus, apresentando Jesus como Salvador Único e Bastante. Não se fazia
qualquer referência ao fato de ser batista, senão naquilo que se tornava neces-

A missionária que veio para ficar 55


sário para a identidade formal da Junta Missionária que mantinha o colégio. Mas
pessoa alguma se sentia pressionada a aceitar aquilo que lhes era ensinado nas
assembleias. O resultado aparecia com o passar dos tempos.
Um dia, D. Beatriz recebeu uma carta, vinda do Rio de Janeiro, na qual a mãe
de um futuro padre a convidava para a solenidade de ordenação sacerdotal. Junto
com a carta, vinha o convite, acompanhado de uma palavra de gratidão: “...é
apenas um sinal de minha eterna gratidão pela educação cristã que aí recebi.
Ruy Virgolino.”
D. Beatriz era muito grata à família do Sr. Oscar Sardinha e D. Aroca. Eram pais
de muitos filhos, que haviam estudado no Colégio Batista desde o seu início.
Mariinha, uma das filhas, foi sua ajudante na escola desde o princípio. Dois se tor-
naram médicos, o Dr. Quincas e a Dra. Ana. Esta sempre a visitava quando vinha ao
sertão. Outras duas, Amujaci e Wilma, são enfermeiras. Um deles, o Dr. Oscar,
chegou a deputado. Todos bem sucedidos na vida, deram orgulho a seus pais. Um
deles tornou-se bem conhecido na região como sacerdote íntegro e dedicado, o
Padre Jacinto. A família sempre tratou Beatriz com muito carinho, os pais sempre
agradecidos pelo que a escola fizera a seus filhos. D. Beatriz sempre pregou o evan-
gelho com toda a força de seu coração, e sempre soube mostrar o amor de Cristo
no seu relacionamento com a família. Seus alunos podem não ter recebido Jesus
para serem membros de uma igreja batista, mas muitos o aceitaram como Senhor,
e isto os fez mais compreensivos com aqueles que não tinham a mesma crença que
eles. Onde eles estavam, as igrejas evangélicas eram protegidas e defendidas em
qualquer dificuldade. Cidadãos do Reino de Deus? Não sei. Mas sei que poderão
ainda, até o último momento da vida, relembrar João 3.16 e entrar no Céu!
O “Diário da Tarde” de Manaus, no dia 12 de maio de 1968, apresentou uma
notícia escrita pelo Pastor Gorgônio Barbosa Alves, com o seguinte título: Deu
a Vida e a Casa Também. Diz assim:
“Certa feita, uma jovem partiu do Rio de Janeiro para o interior do Brasil. Havia
terminado o seu curso de professora e queria exercer a sua profissão. Tomou um
navio com destino a Belém do Pará. Até a capital levou mais de duas semanas.
“Dali tomou um barco com destino a Tocantínia. Por onde passava podia ver
somente ranchos e casebres. O ambiente era completamente diferente daquele
que ela havia deixado na metrópole. Mas, a jovem prosseguia rumo ao interi-
or desconhecido, qual bandeirante em busca de novas terras.
“Depois de exatamente 33 dias de viagem, desceu do barco em um lugar cha-
mado Piabanha. Estava ali o seu novo mundo. Foi recebida por algumas pes-
soas que lhe deram as boas-vindas.
“Na semana seguinte aquela jovem já estava exercendo a sua profissão como
professora. Reuniu alguns meninos que já estavam matriculados, pelo missi-
onário que ali residia, Zacarias Campelo, e deu início a sua escola.

56 A missionária que veio para ficar


D. Beatriz e Margarida
Lemos Gonçalves na
frente do “Lar no
Sertão”

“O nome da jovem era Beatriz Rodrigues da Silva. Naquele lugarejo ela fez
seu ‘habitat’. Amou a terra e o povo. Ali se radicou. Aprendeu os costumes e
feições do ambiente. Perdeu o seu sotaque carioca e assimilou as caracterís-
ticas da fala sertaneja.
“Aquela pequenina escola foi crescendo até que se transformou num ginásio. Há
hoje em Tocantínia um viveiro de cultura e progresso. Vários prefeitos da cidade pas-
saram por aquele estabelecimento de ensino. No dia 2 de março de 1966 foi come-
morado festivamente o 30oaniversário da fundação da pequena escola que deu ori-
gem ao ginásio. Beatriz estava presente e recebeu justas homenagens dos profes-
sores da casa, de alunos e autoridades da região.
“Há poucos dias a Junta de Missões Nacionais, organização que a enviou há
30 anos passados ao sertão, recebeu dela uma carta na qual dizia o seguinte:
“‘Hoje, quando empregamos a melhor parte de nosso tempo em ação de gra-
ças pelo que o Senhor tem feito em nosso favor, e em oração para que suas ricas
bênçãos continuem sobre sua OBRA, venho confirmar o que disse em relação
à casinha que o Senhor me deu aqui no sertão. Construída para servir à Cau-
sa, nela tenho residido até agora, sempre lembrando que é uma dádiva de Deus.
Foi o Senhor que me proporcionou recursos para a construção, ajudando-me
a economizar pouco a pouco, até poder realizar o plano. Quando eu vim para
o campo, vim para ficar, se o Senhor permitisse. Assim foi meu plano ter uma
casinha, para chamá-la de meu LAR NO SERTÃO.’
“‘Esta casa agora é do Senhor. Dela tenho tomado conta e o farei enquanto
aqui me mantiver, desejando que minha pequena oferta seja usada sempre
para o seu serviço. Esta carta confirma o que verbalmente já fiz.’”
A casa da Missionária era, naquele tempo, a melhor da cidade. Sua fachada apre-
sentava a frase de seu coração: “Lar no Sertão”. Hoje, Tocantínia não é mais sertão.
Virou cidade asfaltada e arborizada. Mas a casinha de Beatriz ali continua e seus ex-
- alunos, quando voltam, sempre tiram fotos em frente da querida casa de D. Beatriz.

A missionária que veio para ficar 57


Merecidas
homenagens
o longo de sua abençoadora jornada missionária, pelos relevantes
serviços prestados, a Missionária-Professora Beatriz Rodrigues da
Silva recebeu muitas e merecidas homenagens. Destaco algumas
delas a seguir.
Uma palavra de reconhecimento
Em 1992, sabendo que a chegada de D. Beatriz havia acontecido no dia 28 de
fevereiro, há muitos anos, o Secretário de Estado de Educação e Cultura do
Tocantins quis apresentar-lhe seu carinho e apreciação. Dizia assim:
Palmas - TO, 28 de fevereiro de 1992.
Respeitável Senhora,
Tenho o raro prazer, como Secretário de Educação, de cumprimentar uma
professora que, como a Senhora, tenha percorrido uma trajetória tão longa e
difícil, concluindo-a com tanta proficuidade aliada à felicidade, em consequência
do expressivo desempenho de sua vida em proveito da formação de nosso povo.
Considero a sua figura um paradigma de abnegação, que desejo ver mirado
pelos nossos professores.
Faço votos que a sua vida se prolongue por mais tempo, a fim de que possa
continuar transmitindo fé e coragem às novas gerações.
Com os meus protestos de admiração e respeito, sou,
Atenciosamente,
(Ass.) Prof. Ruy Rodrigues da Silva,
Secretário de Estado da Educação, Cultura e Desporto
Feriado municipal
O jornalzinho “Missões Brasil”, da JMN, de abril de 1986, dá esta notícia:
“No dia 28 de fevereiro de 1986 foi decretado feriado municipal em Tocantínia,
GO. O motivo foi a comemoração dos 50 anos da chegada de D. Beatriz
Rodrigues da Silva, que, naquela ocasião, fundou o hoje Colégio Batista do
Tocantins.
“A homenagem se estendeu por todo o dia, quando o povo da cidade expres-
sou o seu reconhecimento aos batistas de todo o País que, através da JMN a
enviaram ali. À noite foi realizado o Culto de Gratidão a Deus pela sua bênção
sobre a vida e o ministério de D. Beatriz.”

58 A missionária que veio para ficar


As comendas
“Ordem do Mérito do Tocantins” foi a comenda que a Missionária Beatriz Sil-
va recebeu do primeiro Governador do Estado do Tocantins.
O segundo Governador do Estado, três anos depois, conferiu à Missionária outra
comenda, a “Comenda da Ordem do Mérito do Tocantins, no grau Cavaleiro”.
“Prefeito Jahara inaugura escola-modelo”
Esse foi o título de manchete principal de um jornal da cidade de Teresópolis,
RJ, o “Teresópolis Jornal”, de 25 de fevereiro de 1987, apresentando uma foto
em que aparecem D. Beatriz, o Diretor da nova escola e autoridades presentes.
A notícia iniciava assim:
“Na tarde de sábado passado, o Prefeito Jahara acompanhado de seus asses-
sores, presidiu a solenidade de inauguração do moderno Centro Educacional
Beatriz Silva, que abrigará mais de mil alunos, no populoso Bairro do Imbuí.
“Presentes prestigiando o ato, grande público, assessores do Prefeito, autori-
dades, convidados, vereadores, além da Professora Beatriz Silva, missionária da
Igreja Batista no sertão goiano, cujo nome foi dado à escola.
“Falaram a homenageada, o Vereador Izequiel Amaral (representando os seus
colegas de Câmara) e o Prefeito Jahara.”
Destaque em revista de educação
A Professora foi destaque na revista “Tempo Integral”, da Prefeitura Municipal de
Palmas, TO. De autoria da Presidente do Conselho Estadual de Educação, Marilha dos
Santos Maciel, sob o título “Beatriz Rodrigues da Silva, a educadora carioca que es-
colheu ser tocantinense”, a matéria narra sua trajetória, tendo esta introdução:
“A professora Beatriz Rodrigues da Silva é um nome a ser lembrado quando
se fala em educação em nosso Estado. Num tempo quando poucos colégios
existiam no norte do então Estado de Goiás, essa obreira do saber deixou o Rio
de Janeiro para fundar uma escola singela, modesta, mas que assumiu um
papel relevante no ‘sertão’ daquela época.”
Escola Municipal Beatriz Silva
Dez anos após a sua morte, começou a funcionar, em Palmas, capital do
Tocantins, a “Escola Municipal Beatriz Silva.” Aí está para sempre inserido o nome
da Carioca que deixou o Rio para ser uma sertaneja. Que Deus abençoe o Gover-
no da capital do Estado que ela ajudou a criar e a construir.
A voz de um “filho pelo coração”
Sob o título “Dez anos sem Beatriz Rodrigues da Silva”, em “O Jornal de Miracema”,
na primeira semana de agosto de 2006, foi publicada uma matéria escrita pelo jor-
nalista Júnior Maciel, ex-aluno da Professora. Seguem trechos dessa matéria.

A missionária que veio para ficar 59


Dez anos após a morte da Missionária, começou a funcionar em Palmas,
capital do Tocantins, a Escola Municipal Beatriz Silva.

“Durante as comemorações dos 60 anos do trabalho Batista em Tocantínia,


nos dias 24 a 28 de julho de 1996, Beatriz Silva, protagonista desta história, estava
enferma. Sendo transferida para uma clínica em Palmas, sofreu uma cirurgia de
vesícula sendo bem sucedida. Talvez pelo cansaço da idade já avançada, aos 87
anos, não resistiu e faleceu na madrugada de 29 de julho de 1996, sendo sepul-
tada em Tocantínia, atestando o que sempre disse: “Eu Vim Para Ficar”. A cida-
de parou! Tudo ficou em silêncio. O Brasil batista alegra-se porque “fica apenas
a saudade em todos que foram inspirados por essa vida dedicada inteiramente
à expansão do Reino de Deus no interior de nossa pátria.
“(...) Ao chegar a Tocantínia, elevou uma ardente prece: ‘Senhor, já que me
trouxeste aqui em perfeita paz, dá-me sabedoria para Te servir neste lugar
desconhecido.’
“Em 1976, a missionária recebeu o título de ‘Cidadã Tocantiniense’ e em gra-
tidão ofereceu à cidade um hino de sua autoria que foi oficializado pela Câmara
de Vereadores, tornando-se o hino oficial do Município. É o ‘Hino a Tocantínia‘.
“Agora, dez anos após a sua morte, vale a pena ressaltar as palavras expres-
sas na ocasião pela ex-diretora do Colégio Batista de Tocantínia, a missionária
Tilda Evaristo da Silva: ‘Só a eternidade tem registrado todos os seus feitos, sua
influência. Estava aposentada e nem tinha forças para ir à igreja. Sua mente
estava falhando, seu andar trôpego, mas sua fé estava muito firme naquele
Senhor da seara que um dia a convocou para a obra e que agora a recebe no
céu. Louvado seja Deus pela vida preciosa de Beatriz Silva.’”

60 A missionária que veio para ficar


Considerações finais
emo que aqueles que conheceram Beatriz, ao lerem estas simples
páginas, venham a comentar: “Ainda há muito para se dizer...” E
estarão certos. Escrever sobre Beatriz Silva é muito difícil. Sua vida
era muito rica em beleza e grandeza. Há muitos fatos que deveriam
aparecer dentre estas informações. Contudo, com os seus diários em mão, creio
que no futuro aproveitaremos muito mais das preciosidades que ali estão
registradas.
Aqueles que procuraram Beatriz viram que, cada vez mais, sua vocação
missionária se abria num leque de diversificada visão de um mundo carente. Sua
mensagem era muito semelhante à do Dr. Bratcher, que, no leito de morte, dis-
se ao Pr. José de Miranda Pinto: “Diga aos jovens que ainda há muitíssima ter-
ra para ser possuída!”
Assim foi Beatriz. Uma DESBRAVADORA em todos os sentidos. Os seus lega-
dos aí estão, prestigiando os novos obreiros, incentivando-os a abrir novos cam-
pos, a restaurar os que se tornaram frágeis, a ampliar a obra, multiplicando igrejas.
Igrejas que vão adiante. Que estão tão interessadas em ganhar almas, que têm
pouco tempo para sofrer com os rigores de um tempo difícil, quando precisa-
mos de fato vestir a armadura do cristão para sobreviver. Não foi ela, num tem-
po quando muitos ficavam inertes por não terem recursos, sim, não foi ela quem
levou sua igreja a sustentar 72 pontos de pregação e a erguer pequenos templos
em lugares ermos, que se tornaram, depois, cidades de referência? Pois bem,
agora é outro tempo. Somos um grupo maior de missionários, temos mais par-
ceiros no sustento da obra. Os campos continuam brancos para a ceifa. Sigamos
o exemplo da Missionária, e que para isso Deus nos ajude.
Três dos muitos legados que Beatriz deixou
Primeiro legado: Para a sua Terra de Adoção, TOCANTÍNIA, escreveu a letra
e a música de um hino dedicando-o à sua cidade, o qual foi aprovado oficialmente
pela Câmara Municipal na mesma ocasião em que lhe ofereceram o título de
Cidadã Tocantiniense. A letra encontra-se na terceira capa deste livro.
Segundo legado: Na área do ensino, deixou-nos o perfil de uma escola batista. O
Colégio de Tocantínia foi um exemplo de excelência numa região difícil e pioneira.
Eram poucas as escolas. Pouca influência exerciam as Delegacias de Ensino e outras
entidades afins. Num tempo como aquele, nada era acessível. Apesar disso, era uma
escola que possuía seu regimento escolar, suas diretrizes, que promovia reuniões de
planejamento e de pais e mestres, na qual havia grêmios e eram promovidas ativida-

A missionária que veio para ficar 61


Colégio Batista de Tocantínia: perfil
de uma escola batista

des extracurriculares anualmente. Para fortalecer


a criança no seu conhecimento geral, ensinou-a a
construir uma casa (passando pelo amassar do bar-
ro e queima no forno); a reproduzir, em talos de
buriti, aviões (como os que desciam no campo de
pouso da cidade), esqueletos, barcos, móveis de
todo tipo. E mais: a plantar pequenas roças (de ar-
roz, milho e macaxeira) e a cuidar do solo e das
aguadas. No Colégio, a criança aprendia bem a lín-
D. Beatriz ao lado de sua fiel
gua pátria (não se apreciava a gíria), a conduzir-se
auxiliar: Cosma Nunes Costa
bem na matemática, a vivenciar os conteúdos da
Biologia. Era uma escola, no dizer de hoje, ecológica, que ensinava a respeitar o mundo
de Deus, procurando ajudá-lo a sobreviver no meio dos vândalos que foram apare-
cendo. Mas, sobretudo, era uma escola que colocava Deus em primeiro lugar! Nas
assembleias e nas classes, os valores espirituais eram sempre transmitidos com muito
amor. Grande legado, D. Beatriz!
Terceiro legado: Uma IGREJA viva, que proclamava a glória do Deus Vivo. Todos
os que se acolheram nessa igreja, por muito ou pouco tempo, aprenderam a
trabalhar para o Mestre, a servi-lo e a MISSIONAR em todas as circunstâncias.
Mesmo não sendo uma pastora (ela não buscava tal posição), Beatriz deixou
marcas de um ministério completo. Em meio a tantos rebanhos perturbados por
novidades e mudanças, a Igreja de Tocantins conseguiu formar homens e mu-
lheres que se espalharam pelos sertões e cidades, levando a mensagem da Cruz
com propriedade. Um dia, andarão felizes nas ruas de ouro e cristal da nova
Jerusalém. Obrigada, Missionária!
Antes de colocar o ponto final, com emoção, saudade e profunda admiração,
repito mais uma vez:
OBRIGADA, BEATRIZ, OBRIGADA, MISSIONÁRIA MUITO QUERIDA!

62 A missionária que veio para ficar


Hino a Tocantínia
Letra e música: Beatriz Silva
O Tocantiniense à terra tem amor,
Formosas Palmeiras, o rio, o céu;
A linda cachoeira, o gado, o campo em flor,
Enfeitam esta terra que mana leite e mel.
C Levanta bem alto teu lindo pavilhão
O Nas serras e no grande Tocantins,
R E canta alegre, entoa esta canção:
O Vivemos bem felizes em PAZ e UNIÃO.
O Tocantiniense deseja ver crescer
A humilde cidade, seu torrão natal.
Entre outras tão garbosas, tão cheias de poder,
Seu povo, pelo estudo, constrói-lhe um pedestal.
Aos muitos que lutaram, vivendo antes de nós,
Em árduas tarefas e sem condições,
O amor a Tocantínia souberam transmitir,
A eles a homenagem dos nossos corações.
C Ó Deus, abençoa a terra do Brasil!
O Conserva sobre nós a tua mão.
D Que ao mundo cantemos pra sempre esta canção:
A Vivemos bem felizes em PAZ e UNIÃO!

A missionária que veio para ficar 65

Você também pode gostar