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A análise da Toponímia como dimensão


histórica na Geografia Cultural
The Analysis of Toponymy as historical dimension in Cultural Geography

Jörn Seemann
Universidade Regional do Cariri, Brasil

Abstract:

Toponymy is defined as the etymological study of place names. The analysis of toponyms, however, used to
be confined to linguistical and historical aspects of their origin, without taking into account that the denomination of
places is, in fact, a political and cultural process that deserves an approach beyond the names given to a locale. Under a
historical perspective in Cultural Geography, different research foci for toponymy studies can be proposed: 1) The
analysis of place names, their different origins and their spatial distribution in respect to the different scales of analysis
from isolated places as farms to cities, counties, regions or states; 2) The research within the historical context of place
names in order to reveal the dynamics of its naming and renaming in time and space and the reasons and political and
cultural agents behind this process (the example of the territorial policies of the Vargas government between 1930-
1945); 3) The correlation between the toponymy and the map as a legitimizer of name validities; 4) The interpretation
of the meaning of place names in the process of identity and territory shaping in respect to symbolism and place
iconography. The task for cultural geographers should be the investigation, comparison and interpretation of the
meanings of place names and the different versions and visions of their topogenesis in order to contribute to a better
understanding of the relation between space and culture in the past and the present.

Resumo
A toponímia é definida como estudo etimológico dos nomes de lugares. A análise dos topônimos, portanto,
costuma se restringir aos aspectos lingüísticos e históricos da sua origem sem levar em conta que a denominação dos
lugares é, de fato, um processo político-cultural que merece uma abordagem além do nome atribuído a uma localidade.
Sob uma perspectiva histórica na Geografia Cultural, sugerem-se diferentes focos de pesquisa para o estudo da
toponímia que serão ilustrados através de exemplos concretos: 1) A análise dos nomes dos lugares, suas diferentes
origens (por exemplo, tupi, português) e sua distribuição espacial, levando-se em conta as diferentes escalas de análise
desde locais isolados como fazendas até municípios, regiões ou estados; 2) A pesquisa histórica contextualizada dos
nomes dos lugares para revelar a dinâmica da sua denominação e re-nominação no tempo e no espaço e os motivos e
agentes político-culturais atrás deste processo (o exemplo da política territorial de Getúlio Vargas); 3) A correlação
entre a toponímia e o mapa como legitimador da validade dos nomes; 4) A interpretação do significado dos nomes dos
lugares no processo de construir identidades e territorialidades em face do simbolismo e da iconografia do lugar. A
tarefa da Geografia Cultural seria investigar, comparar e interpretar o significado dos nomes dos lugares e as diferentes
versões e visões da sua topogênese para contribuir a uma melhor compreensão da relação entre espaço e cultura no
passado e no presente.
2

Introdução
Espaço e cultura são indissociáveis, porque não há sociedades que vivam sem espaço para
lhes servir de suporte (Claval, 2001, p.207). O ser humano se compreende pelo ambiente que habita,
e habitar um lugar significa conhecê-lo, transformá-lo e humanizá-lo (Bonnemaison, 2000, p.39).
Trata-se de um espaço cultural, “que se determina tanto por sua dimensão territorial como por sua
dimensão histórica” (Bonnemaison, 1981, p.255)1.
Para organizar esse espaço humanizado para fins de orientação, organização e referência, é
necessário registrar e mapear as localidades, atribuindo-lhes nomes. Desta maneira, o “batismo” dos
lugares e o estudo dos nomes dos lugares se tornam um “empreendimento de muitas facetas com
grandes e excitantes potencialidades intelectuais” (Zelinsky, 1997, p.465), que vão além da
toponímia como estudo etimológico dos nomes de lugares. A análise dos topônimos costuma se
restringir aos aspectos lingüísticos e históricos da sua origem, sem levar em conta que a
denominação dos lugares é, de fato, um processo político-cultural que merece uma análise mais
detalhada do que o registro dos nomes atribuído às localidades. Como observa Fair (1997, p.467),
“muitos estudos de nomes de lugares, portanto, continuam com a abordagem antiquada, coletando
topônimos como objetos, utilizando um método tipo ‘alfinete no mapa’ que enfatiza uma coleta
desamparada do contexto ou da textura profunda de uma perspectiva por dentro”. Os nomes das
localidades definem tanto os lugares quanto as pessoas, mas “os esforços dos pioneiros tinham
basicamente como foco coletar, classificar e procurar origens para os nomes, apenas com provas
ocasionais das ligações com a totalidade acompanhante dos fenômenos humanos” (Zelinsky, 1997,
p.465).
Neste sentido, a análise da toponímia merece mais atenção a respeito do seu significado
cultural. O objetivo deste artigo é mostrar as facetas político-culturais da toponímia utilizando-se
como exemplo recortes ilustrativos da toponímia brasileira. Após uma discussão mais geral sobre o
“poder dos nomes”, serão apontadas algumas abordagens como a distribuição espacial dos
topônimos, seu contexto histórico-político e seu significado na representação cartográfica para
apresentar caminhos para uma possível agenda de pesquisas em Geografia Cultural.

Toponímia e o poder dos nomes


Sob uma perspectiva histórico-cultural, Claval (2001, p.189) considera a denominação de
lugares como tomada de posse do espaço e como referência e orientação, afirmando que

“todos os lugares habitados e um grande número de sítios característicos na


superfície da Terra têm nomes – freqüentemente há muito tempo. A toponímia é
3

uma herança preciosa das culturas passadas. Batizar as costas e as baías das
regiões litorâneas foi a primeira tarefa dos descobridores (...). O batismo do
espaço e de todos os pontos importantes não é feito somente para ajudar uns aos
outros a se referenciar. Trata-se de uma verdadeira tomada de posse (simbólica ou
real) do espaço”2.

Paul Carter (apud Jackson, 1992, p.168) considera o batismo dos lugares como “fazer
história espacial” que começa e termina com a língua. Pelo ato de nomear, o espaço é
simbolicamente transformado em lugar, que, por sua vez, é um espaço com história. Para ilustrar
essas reflexões, Carter cita o exemplo da colonização da Austrália:
“Nos setenta anos e tanto depois da chegada da Primeira Frota, o contorno da
costa australiana foi mapeado, seus vazios no mapa sobrescritos, riscados com as
trilhas dos exploradores, gradualmente habitados por uma rede de nomes; a faixa
litorânea da Austrália (...) foi progressivamente sulcada e marcada com limites,
suas planícies dos estuários e dos rios demarcadas para cidades. Os descobridores,
exploradores e colonizadores (...) estavam fazendo história espacial. Eles estavam
escolhendo direções, empregando nomes, imaginando destinos, habitando o país”
(idem, ibidem).

Para confirmar esses laços entre os observadores e a paisagem reconhecida, a “história


espacial” recorre à denominação de referências espaciais.
Como os nomes próprios de pessoas, o batismo dos lugares depende muito dos critérios do
observador que decide o que tem destaque ou não na paisagem e o que merece menção. Segundo a
Encyclopaedia Britannica (1964, p.63D), denominar um lugar geográfico depende de dois fatores:
a) o sentimento que um lugar é uma entidade que possui uma individualidade que a distingue de
outros lugares; e b) a sensação de que um lugar é útil e vale a pena ser denominado. Em resumo, o
que é efêmero, “comum” demais ou igual a outros lugares não valeria a pena ser registrado.
Estas observações se referem às sociedades sedentárias, principalmente as “ocidentais” que
precisam ter uma “toponímia fixa” (Claval, 2001, p.201). Portanto, nem todas as sociedades
precisam nomear os seus lugares, como foi mostrado por Collignon (apud Claval, 2001) através do
exemplo de um grupo inuit (esquimó) no Canadá que, em vez de mapear os vastos espaços do
Ártico, “fotografam” os detalhes do espaço no espírito, atrelando-os à memória das pessoas. Desta

1
As citações tiradas de publicações em inglês ou francês são traduções da minha autoria.
2
Esta explicação reflete muito bem o espírito explorador do Renascimento. “Descobrimento” ganha o significado de
“desvendar” e “tomar conhecimento”, e conhecer significa possuir.
4

maneira, a denominação dos lugares não é uma referência (d)escrita, mas se confunde com a
percepção e a história de vida das pessoas.
Na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira (s/d, mas provavelmente publicada no
início da década de 60), é enfatizada a importância da toponímia nos domínios lingüístico e
histórico, cujos estudos científicos podem ser feitos “metodicamente segundo vários pontos de
vista, desde a classificação por línguas até as causas que promoveram o aparecimento dos
topônimos, isto é, seu sentido” (idem, p.70). Leite de Vasconcelos (citado na mesma Enciclopédia)
propõe uma divisão da toponímia em três seções: 1) lingüística toponímica, 2) gramática
toponímica e 3) proveniência. O primeiro campo trata dos nomes de lugares classificados por
línguas, levando-se em conta que “os nomes de lugar, por isso que fazem parte do léxico português,
se sujeitam às mesmas leis que as palavras da língua comum” (idem, p.82). No segundo campo, o
da gramática toponímica, objetiva-se uma análise dos modos de formação dos nomes de lugares.
Enquanto essas primeiras duas áreas se ocupam com os aspectos formais dos topônimos, o terceiro
campo, o estudo da proveniência toponímica, ganha um caráter mais histórico (e geográfico) ao
analisar os topônimos “segundo as causas que os originaram, que é o aspecto sob que um topônimo
tem interessado mais aos que os pretendem explicar, desde o povo aos eruditos” (idem, p.73).
O estudo da toponímia deve ser visto como um projeto interdisciplinar, como mostrado nos
trabalhos de Dick (1997, 1999), que pesquisou a dinâmica dos nomes na cidade de São Paulo
(1554-1897) e analisou, a partir de 573 cartas municipais, a nomenclatura geográfica dos
municípios paulistas e seus aspectos semânticos, morfológicos e históricos, objetivando a
elaboração de um banco de dados de topônimos estaduais e a preservação da memória onomástica.
A toponímia de um lugar deriva de diferentes proveniências, resultantes de determinantes
como aspectos geográficos, flora e fauna dominantes ou características3, nomes de pessoas etc.
Neste sentido, os mesmos autores subdividem os nomes dos lugares em seis diferentes categorias
toponímicas, mostradas na tabela 1:

Categoria Toponímica Definição Exemplos brasileiros


Antroponímia Nomes de lugares provenientes de João Pessoa (PB)
pessoas Dom Pedro (MA)
Bento Gonçalves (RS)
Biotoponímia Animais ou vegetais dominantes ou Jacareí (SP)
característicos na região; fauna = Formiga (MG)

3
Siderius e Bakker (2003), por exemplo, mostram a relação muito estreita entre a toponímia e a nomenclatura dos solos
na Holanda antes da introdução das taxonomias internacionais. Um estudo pioneiro na área de Geografia é o trabalho de
Waibel (1943) que reconstituiu a vegetação original de Cuba a partir da colocação de nomes.
5

zootoponímia, flora = fitotoponímia Não-Me-Toque (RS)


Geotoponímia Orotoponímia = nomes relativos ao Serra Talhada (PE)
relevo e formas do terreno Cachoeira de Itapemirim (ES)
(cabeceiras, serras); hidrotoponímia Riachão (MA)
(rios, nascentes, riachos); Morrinhos (CE, GO)
litotoponímia (rochedos, aspectos Pedra Branca (CE)
geológicos)
Arqueotoponímia Nomes de sentido arqueológico Esta categoria merece
alusivos a objetos materiais (pedras, pesquisas toponímicas mais
fortificações, utensílios) ou fatos aprofundadas em parceria
costumeiros e institucionais com a arqueologia.
(propriedades rústicas, povoado
indígena antigo)
Hagiotoponímia Devoção e cultos cristãos; deve ser Santa Maria (RS)
diferenciado das designações São Paulo (SP)
puramente eclesiásticas e paroquiais Aparecida (SP)
São José dos Campos (SP)
Etnotoponímia Correspondente a nomes pátrios ou Nomes indígenas antes do
étnicos; fatos de colonização “descobrimento” como
anterior à nacionalidade Campos dos Goytacazes (RJ)
Quixadá (CE)
Tabela 1: Categorias toponímicas (Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, s/d)

Esta classificação não deve ser lida como um conjunto de categorias fixas. Há muitos
exemplos para mostrar que um nome de um lugar pode ser um biogeotopônimo (Poço das Antas,
RS) ou um geohagiotoponômino (São José do Rio Preto, SP). Nem todos os autores utilizam o
termo toponímia para analisar a etimologia dos lugares. Laverdière (1996) fala de coronímia
nominativa, enquanto Costa et al (1975), no Atlas Mirador Internacional, usam a expressão
nomenclatura geográfica ou o neologismo geonímia, que abrange os nomes próprios de lugares e
acidentes geográficos e que podem ser subdivididos, entre muitos outros “ônimos”, em curiosidades
eruditas como nesônimos (ilhas, arquipélagos), eremônimos (desertos) ou quersonesônimos
(penínsulas). Cientes desta burocratização da toponímia, os próprios autores admitem que
“malgrado a utilidade dessa terminologia para certos fins, esta geonímia [do Atlas Mirador] fez
pouco uso dela” (idem, p.152).
6

A denominação de lugares acontece em diferentes escalas e pode afetar um país inteiro ou


apenas uma rua, um morro insignificante ou uma casa. Claval (2001, p.203) usa o termo regionímia
para indicar diferentes níveis de percepção do espaço devido à mudança de escala, desde os nomes
da comunidade e dos microacidentes do relevo até as vilas e cidades e as denominações de regiões e
estados. Desta maneira, o nome oficial da República Centro-Africana foi apenas oficializado em
1979 depois de ter passado pelos nomes Ubangi-Chari e Império Centro-Africano (do coronel
golpista e “imperador” Jean Bédel Boukassa), enquanto Alto Volta tinha seu nome mudado para
Burkina Fasso (república de pessoas íntegras, corajosas e dignas de respeito) depois de um golpe
militar em 1984. Até no Brasil podem ser encontrados vários exemplos como Guaporé (Território
Federal de Rondônia em 1943, Estado em 1956) e Rio Branco (Território Federal de Roraima em
1943, Estado em 1962). Na Alemanha reunificada depois da queda do Muro de Berlim, as
mudanças políticas também trouxeram topônimos novos como, por exemplo Karl-Marx-Stadt
(Cidade de Karl Marx) que voltou a ser chamada de Chemnitz. No processo de renomear
localidades para eliminar a memória do socialismo, houve também mudanças na escala local:
Muitos nomes de ruas na antiga Alemanha Oriental, que antigamente tinham referências a datas
comemorativas e heróis socialistas, foram “neutralizados” e substituídos por outros nomes mais de
acordo com o sistema capitalista4.
Analisar os topônimos pela sua etimologia e pelas causas da sua origem não é uma tarefa
exclusivamente lingüística, mas também sociocultural e geográfica, como será mostrado em
seguida.

Topônimos e sua distribuição espacial


Um trabalho curioso sobre a toponímia brasileira é o artigo “As origens psicossociais dos
topônimos brasileiros” de Oliveira (1970), no qual o autor “visa mostrar quais os nomes que o povo
brasileiro dá preferência para a denominação geográfica, sendo essa escolha um resultado, em nosso
modo de entender, do complexo cultural de que ele é parte integrante” (idem, p.61). Através de
nada menos do que 51 (!) tabelas, Oliveira analisa as origens (português, indígena, africano etc.)
dos 35 326 vocábulos topográficos do índice dos topônimos contidos na Carta do Brasil 1 : 1 000
000, apontando as preferências regionais pelos nomes religiosos, pela hidrografia, vegetação, solos,
relevo, animais etc., chegando à conclusão (não muito científica) de que “de acordo com a
toponímia brasileira, o nosso povo é essencialmente católico, bucólico, otimista e nacionalista”
(idem, p.70).5

4
No Brasil há, diferente da Alemanha, o costume de homenagear pessoas vivas, muitas vezes políticos, prefeitos e
outros “merecedores”.
5
Um exemplo recente são as obras da artista irlandesa Kathy Prendergast que criou um projeto de um “atlas emocional
do mundo”, confeccionando um mapa topográfico dos Estados Unidos no qual ela removeu todas as referências dos
7

Os nomes dos lugares têm origens etimológicas diferentes e podem obedecer a um padrão
espacial dentro de um contexto histórico-político. Enquanto lugares pequenos e insignificantes
como pequenas elevações ou riachos, muitas vezes, preservam seus nomes populares, ruas,
municípios, estados e países não ficam livres de um batismo intencional, de modo que se torna
necessário levantar as seguintes questões: Quem nomeia os lugares? Por que nomeia? Quais são os
efeitos da denominação? A Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira (s/d) utiliza o termo
Geografia toponímica (distribuição de um topônimo) para uma abordagem espacial e afirma que “a
existência de um topônimo implica sempre a existência de quem o aplicou e de quem o conserve; e,
se ele é de incontestável antiguidade, fica manifesta a sua alta importância como lídimo documento
histórico, tantíssimas vezes o único capaz de lançar alguma luz sobre o princípio histórico de um
lugar ou povoado” (idem, p.83).
Para ilustrar este trabalho de Geografia toponímica, será analisada a toponímia dos
municípios do Estado do Ceará em sua distribuição espacial. A figura 1 mostra as origens dos
nomes atuais conforme as suas proveniências (nome indígena, português, nome de pessoa,
religião)6, permitindo as seguintes observações:
Quase a metade dos 184 municípios cearenses têm um nome indígena (tupi-guarani) que se
refere à geografia local, o que se manifesta, entre muitos outros casos, nas sílabas i- (= água,
exemplos: Icó, Iguatu, Ipu), ita- (= pedra, exemplos: Itapagé, Itapipoca, Itarema etc.) ou –tama (=
abrigo, exemplos: Uruburetama, Jaguaretama, Pindoretama). Além dos acidentes geográficos, as
denominações também podem expressar o território de antigas tribos indígenas (como os
municípios com a sílaba quix- = queixada, ou jaguar- = onça), extintas pelos europeus e
homenageadas postumamente. Ter um nome indígena não significa necessariamente que o
município seja muito antigo. Muitos nomes indígenas são resultado da “tupinização” da Era Vargas,
o que será mostrado mais adiante. Quanto aos significados dos nomes indígenas, há muito espaço
para adivinhação e interpretação. O próprio nome do Ceará foi sujeito a inúmeras interpretações
desde a “Terra dos Papagaios” ou “Andar para trás” (caranguejar) até a alusão ao grande deserto
africano do Saara, tanto que o jornalista e escritor Antônio Bezerra (apud Martins Filho e Girão,
1966, p.10) chegou à conclusão de que “o etimologista decompõe a palavra a seu jeito, inventa
radicais e os coloca como bem lhe parece sem se importar se esse arranjo era o seguido na língua
indígena”.

lugares, substituindo-os com todos os topônimos que contêm o adjetivo lost (perdido) como Lost Creek, Lost Island etc.
(Prendergast, 1997).
6
A análise que se segue baseia-se em Martins Filho e Girão (1966), na Enciclopédia dos municípios (IBGE, 1959) e
nos Perfis Básicos Municipais do IPLANCE (2003) e na minha própria interpretação, não objetivando fornecer uma
cobertura completa (e única) do assunto.
8

Um quarto dos municípios cearenses tem um nome com origem na língua portuguesa. Esta
classe inclui nomes próprios de localidades em Portugal (por exemplo, Arneiroz, Chaval ou Crato),
fenômenos geográficos (entre outros, Pedra Branca, Salitre, Massapê, Granja) ou eventos históricos
(Independência, Redenção). Muitas vezes trata-se do nome de um sítio ou uma fazenda que
representava o núcleo inicial de um povoado.
19 municípios cearenses possuem um nome de uma pessoa ou suas modificações. Constam
municípios em homenagem a personalidades públicas como políticos (Senador Sá, Senador
Pompeu, Campos Sales, Deputado Irapuan Pinheiro, Eusébio etc.), historiadores e escritores
(Catunda, Farias Brito, Solonópole = Solon Pinheiro) ou clérigos (Monsenhor Tabosa, Penaforte,
Martinópole = Monsenhor Martins), fundadores do povoado (Quiterianópolis, Palhano), famílias
9

importantes (Alcântaras, Moraújo = Morais + Araújo) ou até engenheiros da Via Férrea (Pires
Ferreira, Piquet Carneiro).
14 municípios cearenses têm uma conotação religiosa, aludindo-se ou ao símbolo da Igreja
(Cruz, Bela Cruz) ou a santos que muitas vezes também são os padroeiros do município. Segundo a
Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira (s/d) deve-se distinguir entre hagiotoponímia
(devoções e cultos cristãos) e as designações puramente eclesiásticas ou paroquiais. Seguindo essa
divisão, O Ceará tem municípios hagiotoponímicos como São Benedito, Santa Quitéria, Milagres
(Nossa Senhora dos Milagres), Boa Viagem (Nossa Senhora da Boa Viagem), Catarina (Santa
Catarina) e Graça (Nossa Senhora das Graças) e também designações paroquiais como Santana do
Acaraú, Santana do Cariri ou São João do Jaguaribe entre outros.
Os municípios restantes não se enquadram nas categorias supracitadas: Chorozinho, por
exemplo, é uma criação do tupi choró (= rio murmurante) com o diminutivo zinho do português.
Mocambo (às vezes, Mucambo = esconderijo de escravos), Mulungu (planta) e Mombaça (Cidade
no Quênia) têm origem africana. O nome Hidrolândia (nome oficial desde 1965, antigamente
Cajazeiras do Timbó e Batoque) “é de formação erudita, para lembrar que o local é a região da
água, no caso as águas medicinais, magnesianas e sulforosas recentemente ali descobertas e objeto
de numerosa afluência de pessoas de municípios vizinhos ou de mais distância na esperança de cura
para suas enfermidades” (Martins Filho e Girão, 1966, p.285). Este último exemplo mostra que as
prefeituras também pensam em uma representação positiva do seu município, começando com o
próprio nome. Outros exemplos de como o nome pode transmitir uma imagem positiva do lugar são
Várzea Alegre e Irauçuba (= amizade em tupi-guarani) sendo este último um “nome muito bem
aplicado por serem os habitantes da povoação dotados de bons sentimentos, alheios a intrigas,
progressistas e amigos da paz” (idem, p.308) – virtudes que quase todos os povoados reclamam ser
as suas!
Por outro lado, também há nomes negativos. O município Jaguaretama, por exemplo, tinha
o apelido nada convidativo de Riacho do Sangue, “em virtude das horríveis carnificinas ai
verificadas entre os índios das duas parcialidades Montes e Feitosa, famílias que durante muitos
anos se digladiaram no interior do Estado” (idem, p.318s). O “buraco da mosca” esconde-se atrás
do nome Meruóca; Itarema significa pedra mal-cheirosa, mas os próprios moradores omitem o
adjetivo; Baixio resultou de uma fazenda de criar gado e “tem sido lembrada a conveniência de
mudar-se esse nome, porém sem melhor resultado” (idem, p.76).
A análise geográfico-cultural dos nomes dos municípios cearenses, portanto,
mostra algumas fraquezas metodológicas, sobretudo quando o geógrafo não consegue descobrir um
determinado padrão na distribuição dos nomes. A figura 1 mostrou os nomes atuais dos municípios
cearenses, sem levar em conta que a toponímia é, de fato, um processo dinâmico. Há municípios
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várias vezes rebatizados antes de terem recebido os seus nomes atuais como Acopiara (= lavrador)
que se denominava Lages e Afonso Pena, Aratuba (antigamente Coité e Santos Dumont), Campos
Sales (antigamente Várzea da Vaca e Nova Roma) ou Palmácia (antes Palmeiras e Silva Jardim)
que rejeitou o nome proposto Pindobal. Outros lugares, por sua vez, mantiveram seu nome original
como o caso de Aquiraz (São José de Ribamar de Aquiraz), fundado em 1699. Por isso, uma mera
análise da toponímia do presente não permite conclusões profundas, se não for levado em conta o
contexto histórico-político.

Topônimos no seu contexo histórico-político: A Era Vargas


Zelinsky (1997, p.465) afirma que “a toponímia é inextricavelmente amarrada na biota, na
fisiografia, na hidrologia e no clima local, nos espaços-ações diários ou sazonais e na ecologia
humana em geral, bem como nas estruturas intrínsecas das línguas em questão”. De certa maneira,
esta observação mostra o batismo dos lugares como decisão espontânea e livre. A análise da
toponímia brasileira, portanto, mostra um constante conflito entre nomes tradicionais e populares de
um lado e denominações (às vezes, imposições) oficiais de outro lado, o que leva a pensar que
“nomear os lugares é impregná-los de cultura e de poder” (Claval, 2001, p.202, grifo meu), porque
os nomes vêm a mudar brutalmente em todo o espaço após a instauração de um novo poder, de uma
invasão, ou do triunfo de novas modas.
Através de um exemplo da História do Brasil, será mostrada a importância da pesquisa
histórica contextualizada dos nomes dos lugares para revelar a dinâmica da sua denominação e re-
nominação no tempo e os motivos e agentes político-culturais atrás deste processo.
A Era Getúlio Vargas (1930-1945) pode ser considerada a iniciativa mais bem sucedida de
formular as regras básicas nacionais de divisão territorial que ainda hoje continuam em vigor
(Veiga, 2001). Getúlio Vargas defendia um nacionalismo ferrenho, tendo como base um Estado
brasileiro centralizado e monolítico “para dominar os regionalismos extremados, para conter o
influxo perigoso das ideologias estrangeiras que ameaçavam corromper o espírito cívico, para
assegurar a unidade do país e lhe coordenar as forças vivas em lamentável dispersão, devia ter o
governante um ardente sentimento não só patriótico, mas sobretudo nacionalista” (Schwartzman,
1983, p.26). Getúlio Vargas se opunha ao extremo regionalismo de alguns Estados brasileiros e,
como observa Skidmore (1969, p.59-60), “apelava para o sentimento mais alto do nacionalismo,
colocando-se assim em posição de superar as paixões regionais em conflito.” Depois do golpe de
1937, Vargas adotou uma tática mais direta: em fins de novembro de 1937, o ditador realizou uma
cerimônia pública, na qual chegou a mandar queimar as tradicionais bandeiras dos Estados.
As conseqüências do nacionalismo getuliano se refletiram no ordenamento do território
brasileiro. Quanto á nomenclatura dos lugares, foi constatado, entre outras “irregularidades” um
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“regime de confusão e arbítrio”, verificando-se a identidade de denominações no mesmo Estado, a


extensão exagerada de muitos topônimos oficiais completos de sete e mais palavras e a diversidade
de designação entre muitas circunscrições e as respectivas sedes (Schwartzman, 1983, p.182).
O caso brasileiro não é o único dessa época. Tort (2003), por exemplo, analisou as
mudanças dos nomes dos municípios e seu caráter transitório na Catalunha durante a revolução e a
guerra civil na Espanha (1936-1939), chegando a conclusão de que 11,6 % dos nomes tradicionais
tinham sido substituídos por topônimos que refletiam, de algum modo, as “inquietudes
reformadoras da nova época”.
O governo Vargas visava a uma normalização, sistematização e padronização da toponímia
brasileira para estabelecer normas precisas para a racionalização do quadro territorial brasileiro7,
tendo essa revisão os seguintes objetivos a respeito da denominação das cidades e vilas:
- a eliminação das duplicatas de nomes em todo o país;
- a redução dos nomes extensos;
- a possível eliminação dos nomes estrangeiros ou de pessoas vivas, respeitados os
imperativos da tradição e da vontade popular, bem como as legítimas homenagens;
- a preferência pela adoção de nomes indígenas ou relacionados a fatos históricos
da região, no caso de substituição de topônimos;
- a conservação dos nomes já consagrados pelas populações das localidades
respectivas, desde que não contrariasse a disposições em cima (Schwartzman, 1983, p.189).

Pompeu Sobrinho (1944) aplica a legislação federal no Ceará8 e relata o trabalho da


Comissão de Revisão da Divisão Administrativa no Estado do Ceará, no qual foram mudados “14
das nossas 79 cidades e 114 das 310 vilas do Estado” (idem, p.30), seguindo as diretrizes nacionais,
já que

“a idéia da modificação do quadro toponímico, sem dúvida, traz, além de um


resultado prático, certa dose de sadia brasilidade porque: concorre para aumentar
o espírito de coesão nacional, lembrando aos brasileiros mais bairristas de cada
província que o seu Estado não está só na comunhão brasileira, que outros existem
com os mesmos direitos políticos, igualmente dignos de todos os respeitos” (idem,
ibidem).

7
O texto mais relevante para essa “racionalização” é o Decreto-lei no.311 de 02.03.1938 que dispõe sobre a divisão
territorial do país.
8
Decreto-lei no. 448 de 20.12.1938, Decreto-lei no. 1.114 de 30.12.1943 e, mais tarde durante o populismo getuliano, a
Lei no 1.153 de 20.11.1951.
12

Desta maneira, “qualquer cidade ou vila ganha um pouco mais de personalidade em


detrimento do prestígio provinciano; qualquer delas antes de ser deste ou daquele Estado é
brasileira” (idem, ibidem). Conforme essa política, os topônimos se tornaram partes integrantes da
formação da nacionalidade brasileira.
Para o fortalecimento deste “espírito nacional”, a Comissão seguiu as recomendações
federais para “crismar” as vilas e cidades: dava-se preferência aos nomes indígenas que deveriam
pertencer à língua dos índios que habitavam a região e “ter significação adequada, ligada a qualquer
circunstância local, tal como sabiam fazer excelentemente os ameríndios”. No ademais, os
vocábulos novos preferivelmente deveriam ser dissílabas, evitando-se “expressões chocantemente
cacofônicas” (idem, ibidem).
No decorrer dessa campanha de tupinização, alguns nomes foram literalmente traduzidos
para o tupi-guarani como Alagoinha para Ipaumirim (1943), Pedro II para Abaiara (1943, a palavra
indígena quer dizer “homem-rei”9), Bebedouro para Aiuaba (1943), Passagem das Pedras para
Itaiçaba (1938), Cachoeirinha para Parambu (1943) e Várzea Formosa para Poranga (= Formosa,
1943). Em outros casos, os nomes sugeridos enfrentaram uma resistência mais forte na população e
na política local. O município de Poranga, por exemplo, recebeu propostas alternativas para sua
denominação: Feitosa e Varmosa (contração esquisita de Várzea e Formosa). O município de Itatira
se opôs aos nomes Braga (primeiros colonizadores) e Deovila (“Cidade de Deus”, tradução
esdrúxula do nome Belém, denominação anterior do povoado). Outras sugestões “cacofônicas”
como Tamboatá (Paramoti), Monteirópolis ou Irapuru (Potengi) ou Rochalândia ou Valdelândia
(Uruburetama) eram resultado de “propostas, insistentes dos prefeitos e pessoas influentes do lugar,
em geral impressionados com uma pretendida eufonia dos vocábulos propostos” (Pompeu Sobrinho,
1944, p.34). Embora os documentos oficiais não revelem quem era o autor das propostas e como os
nomes foram votados, fica evidente um conflito entre autoridades federais, estaduais e a população
para exercer o direito e o poder de nomear as localidades.
Não apenas o ordenamento do território brasileiro, mas também a questão dos topônimos
se tornou um assunto mais burocrático que deveria obedecer a uma padronização oficial. Não
importava apenas a denominação das localidades, mas também a sua grafia, que já era assunto
durante a Conferência de Geografia, realizada no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em
1926. O “Formulário Ortográfico” de 1945, aprovado pela Academia Brasileira de Letras e pela
Academia de Ciências de Lisboa, visava a regulamentar a ortografia dos topônimos, enquanto a Lei

9
Populares do município apresentaram a versão de que o nome derivava de um casal de índios, Aba e Iara, e não da
tupinização getuliana.
13

n° 5.765 de 1971 atribuía à Academia Brasileira de Letras a organização do vocabulário


onomástico.10
Nunes (1951) observa que a questão da grafia dos topônimos brasileiros, particularmente
dos de origem tupi-guarani, é parte integrante da questão geográfica que é só “balbúrdia
ortográfica” para os “rotineiros” e “caturras”, já que se trata de um assunto “em que toda a gente
mete a sua colherada, mesmo sem conhecer os preceitos que a história da Língua impõe”. (idem,
p.118)
Ainda em 1980, Barbosa insiste em uma solução nacional para a padronização de nomes
geográficos no Brasil, exigindo a fundação de uma autoridade nacional em nomes geográficos
legalmente constituídos, “já que os nomes geográficos são partes integrantes da formação da nossa
nacionalidade” (idem, p.151). Por conseqüência, deve ser estabelecida uma autoridade nacional
para oficializar os nomes geográficos. Conforme esta posição, a sociedade organizada tem que
reconhecer e ordenar esses processos normativos” (idem, p.153):

“Embora considerado inconstitucional, a justificativa do projeto realça, muito


propriamente que não temos ainda, neste grande País, uma consciência
toponímica. Qualquer expressão, por mais absurda que seja, se presta para
designar um acidente geográfico ou uma comunidade. Nesse particular, a
impropriedade vem se constituindo em tradição onde impera o mau gosto e a
indiferença dos toponimistas que não conseguiram superar o tempo de renovação
ético-social do setor” (idem, p.152, grifo meu).

Pompeu Sobrinho (1944) observa que a denominação ou renominação dos lugares nem
sempre é uma tomada de decisão em unanimidade, porque

“[e]videntemente, o novo topônimo vai encontrar uma natural resistência para


firmar-se; o fenômeno é a conseqüência de uma força social conservadora, a
inércia social, tão legítima e operante como a inércia em mecânica. Mais ou
menos forte ou resistente, o seu valor proporcional ao peso da tradição local pode
ser capaz de neutralizar a iniciativa do Departamento de Geografia ou pelo menos
modificar a denominação proposta e aceita, mau-grado (sic!) qualquer razoável
justificação” (idem, p.34, grifo no original).

10
Ainda hoje, o tema está ocupando a Academia Brasileira de Letras que tinha como pauta da sua reunião cultural em
08.04.2000 a questão da normalização dos nomes estrangeiros no Brasil, pleiteando uma uniformização da
14

Mais uma vez precisa ser salientado que a denominação de um lugar se torna uma prova de
poder entre as autoridades federais e locais e a população.
À primeira vista, essa tentativa de padronização toponímica parece ser uma herança do
centralismo nacionalista getuliano e da organização “prussiana” da ditadura militar, mas o quadro
atual dos mais do que 5500 municípios brasileiros mostra que a toponímia continua com as suas
ambiguidades. Analisando os nomes, depara-se com denominações repetitivas como Bom Jesus
(nos Estados PB, PI, RN, RS) ou Bonito (BA, MS, PA, PE), nomes excessivamente compridos
como Senador Modestino Gonçalves (MG) ou Vila Bela da Santíssima Trindade (MT) e
denominações de várias palavras como São Sebastião de Lagoa de Roça (PB) ou São José do Vale
do Rio Preto (RJ). Surpreende também que Palmas, a capital recém-construída do Estado do
Tocantins, recebeu o nome de um município paranaense já existente. Por outro lado, há apenas um
município com o nome São José, enquanto existem mais do que 40 cidades que incluíam o nome do
seu padroeiro no seu topônimo, com variações como da Coroa Grande (PE), da Lagoa Tapada
(PR), do Calçado (ES), dos Cordeiros (PB) e do Egito (PE). Outras curiosidades são os nomes de
cidades estrangeiras como Nova Iorque (MA), Barcelona (RN), Buenos Aires (PE), Witmarsum
(SC) ou Mar Vermelho (AL, longe do mar) ou imperativos como Passa e Fica (RN) e Venha-Ver
(RN).
A renomeação de lugares continua sendo uma prática dinâmica em diferentes
escalas. Mudam-se não apenas os nomes de municípios e distritos, mas também nomes de bairros,
avenidas, ruas, praças, sítios etc. A tabela 2 mostra o exemplo da topogênese do município de
Santana do Cariri no Ceará, que representa uma realidade que poderia existir em qualquer outro
município brasileiro.

Distrito Topogênese
Anjinhos Segundo contam os mais idosos, no final do século XIX, foram encontradas
duas criancinhas mortas dentro de dois caçuás num animal, perto do local
onde é hoje o Distrito. (Distrito desde 1963).
Araporanga O nome antigo do distrito era Boa Saúde que foi tupinizado para
Araporanga na Era Getúlio Vargas. O nome popular é Estiva, porque havia
uma ponte de madeira e pau (=estiva) que servia de passagem para as
pessoas que vinham do Piauí e Maranhão em direção de Crato. (Distrito
desde 1951).
Brejo Grande Denominação do vale inteiro. Houve um movimento para a emancipação

nomenclatura toponomástica nacional e estrangeira em língua portuguesa (Academia Brasileira de Letras, 2000).
15

do distrito para criar um novo município com o nome Roquelândia.


(Distrito desde 1951).
Dom Leme Antigamente chamado de Rogério, em homenagem ao seu fundador. A
pedido do “santo peregrino” Frei Damião houve uma mudança de nome
para Dom Leme, bispo de importância regional (Distrito desde 1985).
Inhumas Distrito desde 1941. O nome significa pássaro noturno.
Pontal da Santa Cruz Antes conhecido por Sítio Cancão, ponto mais alto do município. Segundo
populares, uma capela foi construída e uma cruz erguida no alto da serra
para afugentar o demônio e outros “mal-assombros” nas zonas limítrofes
com Pernambuco. Alguns dizem que uma espécie de vulcão vomitava
chamas do alto da serra (Cidrão, 2001). (Distrito desde 1991).
Santana do Cariri Distrito-sede do município. Desde a criação do povoado na primeira
metade do século XIX, o nome mudou várias vezes: como freguesia e vila
(Santana do Brejo Grande, 1896); Santanópole na Era Vargas (1938) para
ser chamado de novo de Santana do Cariri, em 1951.
Tabela 2: Topogênese do município cearense Santana do Cariri (Cidrão, 2001)

A denominação dos distritos de Santana do Cariri mostra a diversidade das origens dos
topônimos como a tupinização getuliana (Araporanga), a lenda popular (Anjinhos) ou a
religiosidade (Dom Leme, Pontal da Santa Cruz). Quanto à denominação de ruas e praças na sede
do município, mostra-se uma preferência pelas personagens locais ou regionais, nem sempre livres
de intenções políticas e sujeitas a mudança quando um prefeito de outro partido assume o poder.
Desta maneira, a planta urbana revela um quebra-cabeça de nomes como mostram os seguintes
exemplos: Há uma praça em homenagem a um agricultor do município (que, por sinal, era o pai do
então prefeito) que foi destruída pela nova administração da prefeitura para construir outra; outra
praça, construída entre 1977 e 1980 foi reservada para o nome de um ex-prefeito que ainda não
tinha sido homenageado, mas “por contingência política” (Cidrão, 2001) foi dado o nome do então
governador do Estado; uma rua foi batizada com o nome de um político do município que,
“representou nossa terra e nossa gente durante 32 anos na Câmara dos Deputados do Estado do
Ceará” (idem, ibidem), tendo como argumento que “nada [é] mais justo do que a denominação da
rua onde este nasceu , com seu nome, em sinal de reconhecimento e profunda gratidão” (idem,
ibidem).
Essa dinâmica toponímica pode ser observada em qualquer município brasileiro. Os nomes
não são simples escolhas aleatórias, mas representações simbólicas política e ideologicamente
planejadas, que ganham seu pleno poder quando se ostentam nos mapas oficiais.
16

Toponímia e mapas
Nomear lugares e registrá-los exige a ajuda de mapas que permitem transferir experiências
diretas dos lugares para a representação cartográfica, oficializando a existência dos topônimos.
Harley (1990, p.4) observa que publicar o nome não é apenas torná-lo permanente, mas também
atribuir-lhe autoridade e legitimação com direito a coordenadas nos mapas oficiais. Uma vez
confirmados estes nomes, denominações alternativas ou populares permanecem apenas como
oralidades. No caso da República da Irlanda, por exemplo, tanto as placas de trânsito quanto os
mapas mostram os nomes das localidades em inglês e irlandês. Onde a consciência irlandesa é mais
forte, existem apenas referências na antiga língua nativa. Desta maneira, os nomes nos mapas
estruturam a consciência e chegam a construir ou destruir identidades. Nos Estados Unidos, por
exemplo, apesar da legislação de 1962 que proibia qualquer tipo de nome ofensivo, existem ainda
hoje topônimos que são testemunhas de preconceitos raciais, como “Niggerhead Creek” (Riacho
Cabeça de Negro) no Alasca ou “Squaw Nipple” (Bico de peito de uma índia) no Estado de
Montana.
No decorrer de uma maior conscientização toponímica, povos e nações, que se
referenciavam e orientavam sem mapas, ganharam o direito de expressar sua toponímia nos mapas
oficiais de vários países. Rundstrom (1993) retrata alguns exemplos destas “cartografias culturais”
nos Estados Unidos. No caso do Zuni (índios Pueblo) em Novo México, os órgãos governamentais
pediram expressões toponímicas dos índios para serem incluídos nos mapas com a finalidade de
melhorar o atendimento pelo sistema de saúde rural. Poucas estradas, portanto, tinham nomes
antigos, a maioria deles em inglês. Alguns nomes indígenas obtidos foram substituídos por
equivalentes toscos em inglês, porque o nome original foi declarado “cômico demais para um nome
de estrada apropriado” (idem, p.22). No caso dos índios Hopi, objetivava-se uma atualização da
carta topográfica da reserva indígena. Como Hopi não é uma língua escrita, foi feita uma adequação
dos topônimos hopi à tipografia romana que continha inúmeros diacríticos que se confundiam com
os símbolos no mapa. Os topônimos também era mais compridos do que permitido pela norma, de
modo que havia texto em excesso no mapa. Um caso extremo desta “toponimização” indígena é
contado por Laverdière (p.271s) quando se refere a uma edição de uma carta topográfica regional
do Canadá, onde se encontrou uma abundância de nomes indígenas criados em um espaço tão
pequeno: “Essa distribuição singular bem como suas formas perifrásticas nos deixam céticos quanto
ao seu valor nominativo: os riachos Ministikukupaau Kauchipasheyach, Uspiseukan Kawimeikacht
Utapepichun Sipi Waskakikaniw, ou o rochedo Kanimitawepapachipiskach11.” Este exemplo

11
Estes exemplos estrangeiros também servem para repensar a toponímia dos povos indígenas no Brasil, paralelamente
à Cartografia indígena, como mostrado por Almeida (2001).
17

mostra que não existem apenas topônimos registráveis e localizáveis nos mapas, mas também outras
maneiras de denominar o espaço que se escondem atrás de “topografias escondidas” (Huber, 1979).

Topônimos sob uma perspectiva geográfico-cultural


Pesquisar a toponímia inevitavelmente inclui investigações históricas. Pelo próprio nome
do lugar não será possível compreender a dinâmica e o poder da toponímia. Por esta razão, torna-se
imprescindível coletar informações além dos dados oficiais dos anuários estatísticos e dos livros de
história. Atrás dos nomes de lugares escondem-se pessoas ou grupos que os inventam, decretam,
aceitam, rejeitam ou mudam. Tanto os acidentes geográficos quanto os topônimos constróem
territórios, territorialidades e identidades, e a tarefa da Geografia Cultural será investigar, comparar
e interpretar o significado dos nomes dos lugares e as diferentes versões e visões da sua topogênese,
sejam do ponto de vista oficial (por exemplo, decretos e leis), sejam a partir da cultura de um
povoado com as suas crenças populares, lendas e “mitos fundadores” que mesclam a reconstrução
do passado com a (re)invenção de tradições. Ao mesmo tempo, essas pesquisas não buscam, ainda
menos encontram, a “verdade única” dos nomes, mas precisam viver com versões contraditórias
como os dois seguintes exemplos. O município de Alto Santo (desmembrado em 1957 de Limoeiro
do Norte) tem dois mitos fundadores do seu nome: Alto Santo da Viúva (em homenagem da viúva
de um coronel) e Utuva (= água abundante). Enquanto isso, a fazenda Quixo-Açu (= caça grande)
ganhou a corruptela Quixoxó que se tornou Caixa-Só, porque “a tradição explica esta última forma
com o fato de ter sido encontrado, debaixo de um pau-d’arco, uma caixa sem coisa alguma dentro”
(Martins Filho e Girão, 1966, p.307). Em 1890, talvez para evitar confusões, o lugar foi renomeado
com o nome Iracema, em homenagem ao escritor cearense José de Alencar.
Nash (2002), por ocasião do Projeto Landing (Royal Holloway College, University of
London) que tinha como objetivo a aproximação entre artistas e geógrafos, comenta que a análise
dos topônimos abre uma vasta gama de reflexões e investigações, que mostram que a toponímia
sempre trata de pessoas e lugares ao mesmo tempo:
“Eu estou interessada na habilidade dos nomes de lugares em sugerir narrativas
parciais do povoamento, do deslocamento, da migração, da posse, perda e
autoridade. Eu gosto da sua natureza tomada como certa e seu peso de
significados. Há algo claro, calmo e sensato na sua referência a locais, mas
também há algo indefinível e infinito sobre eles. Eu gosto da maneira em que eles
fazem parte tanto em histórias pessoais quanto nas grandes narrativas e como eles
relacionam a intimidade de um lugar bem conhecido com a racionalidade do
governo oficial, guardiões dos nomes estandardizados. Eu também estou
interessada em como eles circulam na fala ou como são escritos, mapeados e
18

catalogados, como eles viajam, mudam ou são substituídos por códigos e


números; sua carga ambígua como foco de um intenso debate local; sua potência
como dispositivo para imaginar lugares distantes; sua existência na memória.
Dizer que eles têm poética e política apenas é o começo de traçar seus diversos
registros de significados”.

Esta longa citação resume muito bem como poderia ser a “consciência toponímica” do
geógrafo cultural, que não deve se restringir à análise objetiva dos nomes (se, por acaso, for
possível), mas buscar aproximar-se dos valores humanos, refletidos na Geografia Humanística.

Considerações finais
Este artigo tinha como objetivo indicar caminhos para uma análise da toponímia brasileira
sob uma perspectiva histórica na Geografia Cultural. Vale salientar que o tema mostra uma grande
complexidade, já que “um verdadeiro tapete de nomes recobre a terra que se torna assim objeto de
discurso” (Claval, 2001, p.189). Os nomes se tornam quebra-cabeças, enigmas ou expressões de
posse, poder ou potência. Batizar um lugar não significa apenas posse (captação mental/física),
referência, orientação, mas também ideologia e visão do mundo, e a Geografia Cultural encontra
seu campo de pesquisa na dinâmica do processo da nomeação e renomeação dos lugares, ligando o
passado ao presente. Em resumo, “topônimos são veículo e símbolo de ideologia cultural bem como
artefatos por si mesmos” (Fair, p.468). Ou em outras palavras, “os nomes dos lugares e das
categorias de paisagem permitem falar do mundo e discorrer sobre ele. Eles transformam o universo
físico em um universo socializado” (Claval, 2001, p.207).
Ao mesmo tempo, a análise de topônimos sob uma perspectiva geográfico-cultural não
deve ser sobrestimada nem menosprezada como afirma Jett (1997, p.491): “é fácil omitir o que
nomes de lugares podem revelar. Também é possível ser excessivamente otimista no que concerne
quanto pode ser aprendido dos nomes de lugares”.
Ao prestar mais atenção nos nomes, será possível adquirir mais conhecimentos sobre os
lugares e suas culturas vigentes. Nas palavras do geógrafo cultural Wilbur Zelinsky, as pesquisas
não devem se restringir aos topônimos, mas também devem incluir a exploração dos nomes de
todos os tipos de atividades e artefatos humanas e, muito especialmente, de perscrutar atrás das
superfícies para pegar implicações e questionamentos mais amplos” (Zelinsky, 1997, p.466).
19

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