Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
São Paulo
2018
Rosilene Moraes Alves Marcelino
São Paulo
2018
Autorizo exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial
desta Tese de Doutorado por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos.
Assinatura:
Data:
E-mail:
Rosilene Moraes Alves Marcelino
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________________________
Orientador e Presidente da Banca
Prof. Dr. José Amálio de Branco Pinheiro (PUC/SP)
____________________________________________________________
Avaliadora Externa
Profa. Dra. Maria Aparecida Baccega (ESPM/SP)
____________________________________________________________
Avaliador Externo
Prof. Dr. João Osvaldo Schiavon Matta (ESPM/SP)
____________________________________________________________
Avaliador Externo
Prof. Dr. Silvio Koiti Sato (ESPM/SP e FAAP)
____________________________________________________________
Avaliadora Interna
Profa. Dra. Cecília Almeida Salles (PUC/SP)
Para Carlos José Marcelino.
Esta pesquisa foi desenvolvida com o auxílio de bolsa
CAPES/Módulo Taxa, além do apoio da FUNDASP.
AGRADECIMENTOS
Poeta Nayak.
+++++++++
Natália Martins
MARCELINO, Rosilene Moraes Alves. Comunicação e cultura em filigranas: narrativas e
produção de sentido sobre a Praça Roosevelt. Tese (Doutorado em Comunicação e
Semiótica, Área de Concentração: Signo e significação nos processos comunicacionais) –
Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica, Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC/SP), 2018.
RESUMO
Esta tese tem como tema a narrativa e a produção de sentido a partir de uma fração da cidade
de São Paulo: a Praça Roosevelt. Localizada no coração da urbe paulistana – da não-praça, à
Praça da Consolação, até se tornar a Roosevelt dos dias de hoje –, representa desafio para
quem se lança a estudar sistemas culturais mestiços (GRUZINSKI, 2001), amalgama de
complexidade e de heterogeneidade que coloca em relação, diuturnamente, variadas estruturas
e intensidades, constituindo o que Pinheiro (2015) denomina de terras transbarrocas. Na
condição de transbarroca, configura-se, por assim dizer, como um riscado de chão inacabado,
composto de marchetarias de repertórios alheios, de entrelaçamentos (ao mesmo tempo
inclusivos e tradutórios) de vozes nas culturas. Frente a um sem-número de possibilidades de
aproximação da Roosevelt, a narrativa toma a frente e estabelece-se como vértice a partir do
qual são desenvolvidas as reflexões. Esta escolha envereda a investigação para um tom
qualitativo no qual interessa apreender o que para a Praça conflui e o que dela coloca-se em
relação a outras esferas sociais, tornando-nos pesquisador-membrana-tradutória-interpretativa
de formas de vida social, discursiva e cultural. Neste sentido, o primeiro capítulo – Roosevelt:
assombro, escombro, promessa, quimera –, contemplando pesquisas documental e
bibliográfica, tem a narrativa fílmica como centro e os documentários Palco Roosevelt (2007)
e Roosevelt: uma praça além do concreto (2008) como corpora. O objetivo é conhecer os
sentidos oferecidos pelas produções audiovisuais sobre a praça antes de sua principal reforma.
Para tal, as obras são decompostas em tessituras textuais, imagéticas, sonoras e situacionais e
autores como Pinheiro, Salles, Delgado e Sousa Santos são trazidos à reflexão. O segundo
capítulo – Para além da concretude, quiproquós citadinos – intenciona tomar contato com a
história mais recente da Praça, elegendo para tal duas narrativas audiovisuais concebidas após
a principal reforma da Roosevelt, finalizada em 2012: Praça Roosevelt (documentário de
2016) e O estilo de vida no centro (episódio de uma websérie de 2018). O tópico, pautando-se
em uma estratégia metodológica composta por pesquisas documental e bibliográfica, articula
considerações a partir de autores como Certeau, Ferrara, Laplantine, Lotman, Martín-Barbero,
Morin, Pinheiro e Salles. Já o terceiro capítulo – Alegria, alegria: a mosca na sopa –, ratifica
o esforço em busca de fios discursivos sobre a Praça Roosevelt, tendo o objetivo específico de
partilhar – de modos ora descritivo e ora interpretativo – as impressões do campo advindas,
direcionando atenção aos discursos institucionalizados e aos relatos de moradores. Para esta
etapa, entre os autores mobilizados, estão: Brockmeir, Harré, Certeau, Delgado e Elias. Com o
quarto capítulo – “Andar com fé eu vou, que a fé não costuma faiá” –, dedica-se atenção a
refletir sobre a produção de sentido emanada por certas esferas constitutivas da Praça
Roosevelt. O olhar, especificamente, volta-se à Igreja Nossa Senhora da Consolação a partir
de empreitadas de campo realizadas ao longo do primeiro semestre de 2018. Nesta inspiração
etnográfica, houve a oportunidade, por exemplo, de aproximação de histórias de moradores
em situação de rua, população flutuante, constitutiva e constituinte da Praça Roosevelt. Em
termos metodológicos, esta etapa encontra ancoragem na grounded theory e nas pesquisas
bibliográfica e documental que o contato com o campo suscita. Sousa Santos (2008) e Lotman
(1996) são bases para pormenorizar a realidade, dadas suas perspectivas sobre desigualdade,
exclusão, desarme semiótico. Por fim, o quinto capítulo – “Sãopauleando”: prosa, verso,
música e zine –, procura apresentar os aprendizados junto aos jovens frequentadores da
Roosevelt a partir de suas histórias de vida. O tópico partilha conversas na ordem em que as
pessoas foram sendo conhecidas, sem roteiro. Trata-se da narrativa daqueles que, como
população flutuante da Roosevelt, colocam em circulação narrativas sobre a praça. Em cada
pessoa, um mundo. Em cada uma, muitas Roosevelts. O viés qualitativo é transversal e os
autores os autores utilizados são García Canclini, Morin e Santos.
ABSTRACT
This thesis subject is the narrative and production of meaning from a fraction of the city of
São Paulo: Praça Roosevelt. Located in the heart of the biggest city in Brazil - from the non-
square to Praça da Consolação, until becoming the Roosevelt as we know it today - it
represents a challange for those who studies this mix of cultures system (GRUZINSKI, 2001),
an amalgam of complexity and heterogeneity that puts in relation, day and night, many
scructures and intensities, becoming a land that Pinhiero (2015) identifies as trans-baroque.
This trans-baroque conditions constitutes themselves as an unfinished delimited area,
composed by marquetries of foreign repertoires and intertwining (at the same time inclusive
and translucent) of the voices of culture. Facing a myriad of possibilites for approaching
Roosevelt square, the narratives takes its place and stablishes itself as the apex from which the
reflections are developed. This choice leads this research to a qualitative tone in which it is
interesting to capture what, for the Roosevelt square, converges and which of its places are in
relation to other social spheres, leading us to be membrane-researchers-interpretative-
translators of ways in a social, discursive and cultural life. In that matter, the first chapter -
"Roosevelt: assombro, escombro, promessa, quimera" - a documental and bibliographical
research, contemplates the film narrative as its center and the documentaries "Palco
Roosevelt" (2007) and "Roosevelt: uma praça além do concreto" (2008) as its corpora. The
main goal is to get to know the meanings offered by the audiovisual productions about the
square and its biggest renovation. For such, the works are decomposed into textual, imagery,
sound and situational aspects, and situations and authors such as Pinheiro, Salles, Delgado
and Sousa Santos are brought to reflection. The second chapter - "Para além da concretude,
quiproquós citadinos" - intends to get in contact with the square's most recent history, electing
two audiovisual narratives conceived after its main reform, completed in 2012: "Praça
Roosevelt" (2016 documentary) and "O estilo de vida no centro" (a webseries episode
produced in 2018). The topic, based on a methodological strategy composed by documental
and bibliographic research, articulates considerations from authors such as Certeau, Ferrara,
Laplatine, Lotman and Martín-Barbero, Morin, Pinheiro and Salles. The third chapter -
"Alegria, alegria: a mosca na sopa" - confirms the effort in search of discursive threads about
Praça Roosevelt, having its specific aim of sharing - in both descriptive and interpretative
ways - the impressions of the field, paying attention to institutionalized speeches and reports
from the residents of the square. For this step, among the authors, we have Brockmeir, Harré,
Certeau, Delgado e Elias. At the fourth chapter - “Andar com fé eu vou, que a fé não costuma
faiá” - we are dedicating our attention to reflect about the production of meaning emanating
from certain constuitive spheres of Praça Roosevelt. Here, we look specifically to the Nossa
Senhora da Consolação church, based on fieldwork carried out during the first half of 2018. In
this ethnographic inspiration, there was the opportunity, for example, to approach stories of
the homeless a floating population, constitutive and constituent of Praça Roosevelt. In
methodological terms, this step finds anchoring in the grounded theory and bibliographical
and documentary research that the contact with the field provokes. Sousa Santos (2008) and
Lotman (1996) are the bases tor detailing the reality, given their perspectives about inequality,
exclusion and semiotic disarmament. Finally, the fifth chapter - "'Sãopauleando': prosa, verso,
música e zine" - seeks to present the lessons learned with the young people that go to Praça
Roosevelt from the perspective of their life stories. This topic shares conversations in the
order people were known, no scripts were involved. It is about the narrative of those who, as
the floating population of Roosevelt, put into circulation narratives about the square. In each
person, a different world. In each one, a lot of Roosevelts. The qualitative perspective is
transversal and the authors used here are García Canclini, Morin and Santos.
Keywords: Communication and culture; city and urban space; baroque and transbaroque;
Praça Roosevelt.
LISTA DE FIGURAS
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 17
1 ROOSEVELT: ASSOMBRO, ESCOMBRO, PROMESSA, QUIMERA ...................... 27
1.1 Palco Roosevelt: zumzumzum, ziriguidum, nheco-nheco e rapa rapazaziada ................... 30
1.2 Roosevelt: além do concreto, muita memória .................................................................... 41
1.3 Roosevelt: uma quimera que só .......................................................................................... 52
2 PARA ALÉM DA CONCRETUDE, QUIPROQUÓS CITADINOS .............................. 56
2.1 Praça Roosevelt: arquitetando o cotidiano ......................................................................... 57
2.2 A [glamourizada] vida no centro paulistano....................................................................... 68
2.3 Quiproquós danados de rococós ......................................................................................... 84
3 ALEGRIA, ALEGRIA: A MOSCA NA SOPA ................................................................ 93
3.1 Nas trincheiras da alegria, o que explode? ......................................................................... 94
3.2 Rooseveltianos: a relação de moradores com a Praça Roosevelt ..................................... 103
3.3 A Roosevelt é (praticamente) a Winston Parva brasileira ................................................ 111
4 “ANDAR COM FÉ EU VOU, QUE A FÉ NÃO COSTUMA FAIÁ” ........................... 115
4.1 A Grounded Theory .......................................................................................................... 115
4.2 “A fé tá na mulher, (...) Na cobra coral, (...) Num pedaço de pão, (...) Na maré, (...) Na
lâmina de um punhal, (...) Na luz, na escuridão ..................................................................... 121
4.3 “E há tempos nem os santos têm ao certo a medida da maldade” .................................... 132
4.4 “Não sei o que fazer comigo” ........................................................................................... 138
5 “SÃOPAULEANDO”: PROSA, VERSO, MÚSICA E ZINE ....................................... 145
5.1 Rvolução: um sempre olhando pelo outro ........................................................................ 147
5.2 Na labuta, pouca conversa e muita luta ............................................................................ 149
5.3 Olhe para as suas sobras, transforme-as em luz ............................................................... 151
5.4 De um tudo para sobreviver ............................................................................................. 155
5.5 A vida é poesia telúrica .................................................................................................... 159
5.6 Claves, soldas e quitutes ................................................................................................... 163
5.7 Déjà vu: o momento da virada .......................................................................................... 164
5.8 Ordinária, roosevelt, ordinária .......................................................................................... 170
CONSIDERAÇÕES FINAIS: MESMO QUE SEJA RUIM, ESCREVA-ME,
ESCREVA-ME ..................................................................................................................... 173
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 180
17
INTRODUÇÃO
1
Disponível em: http://www.viradacultural.prefeitura.sp.gov.br/. Acessado em: mai. 2016.
19
Parlapatões, mas também o que podiam comprar nos bares ao redor. Também havia aqueles
que traziam sua própria bebida, como um casal que se sentou no banco em frente ao espaço e
abriu seu vinho, tomando-o no gargalo. Havia ainda alguns meninos que – de um lado a outro
da rua – circulavam com garrafas que não davam pistas do que bebiam. Na praça em si,
assistimos ao vaivém dos skatistas. Vimos jovens vencidos pelas drogas e sutileza de policiais
ao abordar um deles, que, caído, preocupava.
Quando nos demos conta, soou o primeiro tilintar do sino anunciando que a peça
estava para começar. Fomos para a fila e observamos que poucos se juntaram a nós. Ao todo,
13 pessoas esperavam o princípio da peça. Quando o sino tocou pela terceira vez adentramos
o teatro. Recebidos pela atriz – Cristiane Tricerri – nua e cantarolando, os parcos espectadores
acomodaram-se. Interpretamos naquele nú a maneira como a personagem colocava-se em
relação ao seu público: despida de filtros e de preconceitos, pronta para externar o que lhe
afligia, partilhar sonhos e dissecar a sua realidade.
Cristian Ceresoli é o autor da peça traduzida para o português, espanhol, francês,
sérvio, alemão e inglês. O monólogo conta os dilemas enfrentados por uma mulher, que muito
embora se dê no contexto italiano, tem frentes discursivas além-fronteiras. A narrativa nos
provocou (e nos colocou em posição de desconforto e reflexiva) ao trazer temáticas como a
bulimia, o abuso sexual, a pedofilia, a coragem e a resistência de uma jovem que, ao pensar
alto, confidencia aos presentes seus problemas, que tomam proporção exponencial em uma
sociedade calcada no espetáculo e no consumo, como outras partes da trama dão pistas.
A aspereza das palavras da protagonista foi interrompida em dois momentos. A certa
altura da peça, notamos, além da luz irradiada sobre a atriz, outra, advinda da plateia. Na
primeira fila, à esquerda, um jovem passou a filmá-la e por mais que ela o olhasse
diretamente, insistia naquele gesto desagradável. Apenas quando ela o apontou e fez sinal de
negativo com os dedos, o rapaz deixou a sala e, ao sair, deixou a porta aberta, expondo tanto a
atriz como fazendo o ambiente ser contaminado pela luz e pelos sons advindos da antessala.
Neste momento, um rapaz levantou-se e fechou a porta e a peça prosseguiu; até que duas
mulheres, que continuaram bebendo durante a peça ficaram embriagadas e deixaram o lugar
entre tropeços, murmúrios e risadas. Ao menos, fecharam a porta.
Ao final, ainda processando o texto da peça, tomamos a calçada e nos deparamos com
uma noite que ainda começava. A rua fora fechada, sem aviso prévio, por alguns
frequentadores que com variados instrumentos marcharam no sentido Consolação-Augusta.
Apesar do frio, alguns jovens acompanhavam o movimento, dançando sem blusa e com
maquiagem dramática em torno dos olhos, que lembravam a de um indígena. O lugar era pura
20
festa. Enquanto observávamos, a atriz nos viu na calçada, nos reconheceu do espetáculo e nos
abordou para comentar como, naquele dia, se sentiu exposta, violentada pelo gesto do rapaz
que a filmara. Havia sido difícil se concentrar, desabafou e logo depois se despediu.
Com a rua ainda interditada, para conseguirmos alcançar nosso táxi, tivemos de
atravessar a praça e caminhar até a Augusta. No trajeto para casa, já no carro, deparamo-nos
com briga de punks e outras ruas que começavam a ser tomadas.
Neste ponto, enquanto mudava a paisagem pela janela do táxi, relembramos Latour
(2011, p. 47) ao afirmar que quanto “menos os modernos se pensam misturados, mais se
misturam. Quanto mais a ciência é absolutamente pura, mais se encontra intimamente
relacionada à construção da sociedade. A Constituição moderna acelera ou facilita os
desdobramentos coletivos, mas não permitem que sejam pensados”. Para além do embate
modernidade e pós-modernidade, sedimenta-se em nós uma inclinação em observar a cultura
mobilizada em meio a essa paisagem paulistana, prenhe, antevemos, de significados.
Neste ponto, se faz interessante a acepção de Salles (2013) acerca do que ela designa
como ato criador. Ao aprofundarmos em um fragmento da cidade, a Praça Roosevelt,
entendemos o seu caráter “processual inferencial e contínuo” (p. 107), um ato criador
cotidiano. Como nos afirma Salles (2013, p. 94): a “natureza inferencial do processo significa
a destruição do ideal de começo e fim absolutos (...) o movimento criador (...) [é] uma
complexa rede de inferências”. Deste modo, nos surge o seguinte questionamento: o que seria
a Praça Roosevelt senão um complexo conjunto de experiências, informações, imaginações,
que estão disponíveis a transformações e criações de novas redes a qualquer instante?
Entregar-se à cidade envolve o anseio de questionar o chamado imprinting cultural
(MORIN, 2011), conceito este arquitetado sobre a matriz estrutural do conformismo atribuído
pela normalização. Assim, partindo das ideias de Morin (2011), podemos pontuar que existe
um universo cultural que fora elaborado antes dos sujeitos e que se desdobra para além deles,
moldando-se de modo coercitivo ou mesmo opressor, propõe a normalização como regra. O
amortecimento do imprinting, da normalização, da invariância, da incomplexidade, da
reprodução se dá no bojo do denominado calor cultural. Sob esse viés, entendemos a Praça
Roosevelt como um lócus privilegiado do calor cultural, já que se apresenta de modo instável
e móvel; propício a uma “intensidade/multiplicidade de trocas, confrontos, polêmicas entre
opiniões, ideias, concepções” (MORIN, 2011, p. 35).
A Praça Roosevelt, supomos, é lócus privilegiado do chamado calor cultural,
apresentando-se, pelo relato pouco antes feito, de modo instável e movediço; propício a uma
“intensidade/multiplicidade de trocas, confrontos, polêmicas entre opiniões, ideias,
21
concepções” (MORIN, 2011, p. 35). Neste sentido, nossa suposição é que a Roosevelt,
enquanto esfera cultural e produtora de narrativas, é palco do embate entre discursos
hegemônicos e subalternos (MARTÍN-BARBERO, 2009), fértil às mediações.
Também temos em mente a proposição de Wagner (2010) de que ao procurar
compreender uma dada cultura, acabamos por colocar na condição de experimento a nossa
própria. Os próprios objetos de estudo “podem [em certa medida] ser vistos como ‘controles’
na criação de nossa cultura” (p. 61). Neste sentido, para Salles (2013), quanto mais nos
aproximamos do outro, mais nos aproximamos de nós mesmos, em termos de percepção e de
autoconsciência. Construímos, em certa medida, uma representação da cultura investigada ao
mesmo tempo em que este gesto se configura como possibilidade de experimentação de nossa
própria cultura.
Entre o exercício reflexivo de apreender uma dada cultura e, neste movimento,
ressignificar a nossa, primamos, para não ser, como já colocamos, mera descrição, por uma
investigação pautada pela sinestesia, deixando esta realidade contar-nos o que para ela conflui
e o que de lá coloca-se em relação com outras esferas sociais. Esta tese, portanto,
intenciona compreender a cultura no seio dos processos comunicacionais entretecidos a partir
narrativas emanadas por e sobre uma parcela do coração da cidade de São Paulo, a Praça
Roosevelt. Narrativa. O que vem a ser narrativa? E qual a sua importância para este – e quiçá
outras – pesquisas? Brockmeier e Harré (2003) dão conta de evidenciar como o estudo da
narrativa tem intensificando-se como objeto de interesse em investigações. Para além de um
movimento linguístico, semiótico e cultural, a veemência em se crescer olhos na narrativa,
explicam os autores, a colocou em processo de metástase em outras frentes do saber, o que
vem sendo chamado, por alguns, de transformação ou virada discursiva e narrativa. Trata-se,
por assim dizer, de um horizonte aberto na direção de, no lugar de se buscar leis do
comportamento humano, dedicar-se às “investigações interpretativas que se concentram nas
‘formas de vida’ social, discursiva e cultural” (BROCKMEIER, HARRÉ, 2003, p. 525).
É oportuno, pois, esclarecer que, narrativa, de modo mais corrente e geral,
(composta por ruídos, trilha sonora, sons característicos do ambiente) e situacionais. E essa
descostura de tessituras, expressa no capítulo em um jogo de descrição e interpretação,
permite entender como cada uma das partes tornam-se cúmplices no surgimento de um
significante (VANOYE, GOLIOT-LÉTÉ, 2012). Em termos de estratégia metodológica, para
esta etapa, combinamos pesquisas documental (obras fílmicas do gênero documentário) e
bibliográfica, recorrendo a autores como Bakhtin, Certeau, Delgado, Orlandi, Pesavento,
Pinheiro, Salles, Sousa Santos. Delgado (2007), por exemplo, ajuda-nos a compreender como
o espaço urbano representa terreno multidimensional, repleto de tensões e instabilidade,
transversalmente constituído também por um sem-número de acontecimentos e de expressões
coletivas. Na voz de Sousa Santos (2008), temos explicações para desigualdade, diferença e
exclusão. Sendo que, alerta-nos o autor, extermínio representa o grau máximo de exclusão. O
desejo de extermínio nos documentários é cristalizado em narrativas cujo objetivo é colocar
para longe, bem longe, da Praça Rooosevelt, os peladeiros, os skatistas, a cachorrada, os
moradores em situação de rua, os drogados; sendo que estes últimos sequer são representados
por imagens, sendo excluídos visualmente das narrativas fílmicas. Advém de discursos como
este o processo de gentrificação experimentado nos últimos anos evidenciado pelo aumento
triplicado do valor do metro quadrado dos apartamentos da região. Estas e outras questões são
postas de modo escamoteado, em meio a vieses que se pretendem verdadeiros e que
escancaram, na urbe, profusão de estratégias e de táticas que compõem o cotidiano, inventado
diuturnamente, como nos coloca Certeau (2005). A palimpséstica Roosevelt é uma terra
barroca composta de temporalidades, processos tradutórios, colocando em xeque progressão e
linearidade, como explica Pinheiro (2013). Da não-praça para a Praça da Consolação e, daí,
para Praça Roosevelt, texturas urbanas postam-se feito cabo de força pelo direito de significar
aquela parte do coração da cidade de São Paulo. Deste modo, como aponta Delgado (2007),
uma coisa é a cidade da prancheta dos arquitetos, outra questão é o espaço urbano, que se
origina a partir da fruição da cidade pelos sujeitos. Deste modo, a urbe é pleno experimento
que reflete e refrata indivíduos e é atravessado pelos imperativos de cada momento. Para guiar
nossa reflexão, desenvolvemos este capítulo sob os seguintes tópicos: (a) Palco Roosevelt:
zumzumzum, ziriguidum, nheco-nheco e rapa rapazaziada; (b) Roosevelt: além do concreto,
muita memória; (c) Roosevelt: uma quimera que só.
No segundo capítulo, chamado Para além da concretude, quiproquós citadinos, a
intenção é tomar contato com a história mais recente da Roosevelt. Deste modo, objetiva-se,
neste momento da pesquisa, conhecer as narrativas audiovisuais oferecidas sobre a Praça
Roosevelt após a sua principal reforma, finalizada e entregue à população em Setembro de
24
2012. Para além da explanada que, a partir de então, ligava a Augusta à Consolação, afora os
bancos e os estreantes canteiros com árvores com a promessa de vingar, que particularidades
citadinas a praça passaria a simbolizar e colocar em movimento nesta reinauguração? Nesta
direção, os corpora elegidos são duas produções audiovisuais: o documentário Arquiteturas:
Praça Roosevelt (2016), episódio de uma série mais ampla produzida pela SescTV; e (b) O
estilo de vida Centro de São Paulo2, uma websérie que procura mostrar como é a vida de
pessoas que moram no Centro de São Paulo produzida pela página A vida no centro3,
plataforma digital de um projeto que se coloca como “hub de inovação e cultura sobre o
centro de São Paulo”. Portanto, este capítulo segue por uma iniciativa composta de pesquisas
documental e bibliográfica. Os produtos audiovisuais mostram-nos múltiplos relatos, dos
expressos aos escamoteados, anunciam relações constituídas no âmbito do cotidiano e da
ordem da cultura, como colocam Pinheiro e Salles (2016). Há na variedade de testemunhos
uma autoria que se dá de modo coletivo. E o diálogo entre passado e presente, mostra, na
perspectiva de Ferrara (1988), como a transformação urbana passa pela memória dos
depoentes e como também o contexto urbano se desdobra de circunstâncias espaciais e
conjunturas sociais. Diversidade e pluralidade composta pelos atores da vida urbana
(DELGADO, 2007) vertem em uma memória discursiva que expressa a Praça como espaço de
fervo, de luta, de efervescência cultural, de pensamento crisíco (MORIN, 2011). A cultura
entendida como algo vivo, possui interstícios, por meio dos quais perpassam palimpsesto de
alteridades, diante das quais códigos antes ditos inimigos, passam a se aproximar, a se tocar a
se traduzir e se entre-espelhar, como apresenta Pinheiro (2016). Muito embora os materiais
audiovisuais tragam múltiplos relatos, destaca-se o fato de que estes, em sua maioria, são
compostos por dramaturgos, artistas, moradores, arquitetos, documentaristas, fotógrafos,
skatistas profissionais, evidenciando um etnocentrismo de classe. Os tópicos deste momento
da discussão encontram-se da seguinte maneira: (a) Praça Roosevelt: arquitetando o cotidiano;
(b) A [glamourizada] vida no centro paulistano; (c) Quiproquós danados de rococós.
Em Alegria, Alegria: a mosca na sopa, que compreende o terceiro capítulo deste
estudo, seguimos em busca de fios discursivos sobre a Praça Roosevelt, tendo a intenção de
partilhar – de modo ora descritivo e ora interpretativo – as impressões do campo advindas.
Nesta direção, são apresentadas as perspectivas sobre a região da Praça Roosevelt tanto a
partir de autoridades (discursos institucionalizados) como de moradores (relatos de sujeitos
2
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?time_continue=125&v=wdXoz-yYA. Acesso em: jul. 2018.
3
Disponível em: http://avidanocentro.com.br/. Acesso em: jul. 2018.
25
Quando criança, passava boa parte dos finais de semana no interior de São Paulo, em
uma cidade chamada Itu, tarimbada pela sua mania de grandeza, exagero em tudo que pudesse
– nas coisas, nas comidas, nas histórias, nas pessoas. Naqueles (bons e saudosos) anos 1980, o
destino geralmente era o sítio Dona Gabriela, lugar para a molecada desafiar a gravidade
colhendo frutas direto do pé; puro convite aos sentidos, no qual os nossos pés – muitas das
vezes descalços – mapeavam a geografia de um chão acidentado (ora capinado, ora em estado
bruto, ora com formigueiro). O sol beliscava a pele sem piedade e o ar trazia o perfume
daquela senhora manga coação-de-boi, comida truculentamente ao pé da mangueira, deixando
fiapos na boca e as mãos e os antebraços caprichados e besuntados no caldo grudento que por
eles escorria.
A distração preferida, pode pasmar, era o lago. Das duas uma: ou pescava peixinhos e
lhes tirava as tripas brincando de conhecer a anatomia dos pobrezinhos, ou, em momentos
menos encapetados (raridade), tirava mais de hora, sozinha ou acompanhada, jogando
pedrinhas no lago, observando e tentando compreender como aqueles pequenos objetos eram
capazes de provocar ondinhas que iam e vinham, vinham e iam, iam e vinham. Hipnotizantes
e tranquilizadoras, ainda mais quando acompanhadas do som do vento botando em chacoalho
os galhos das árvores, pondo em reverência flores delicadas, refrescando a pele castigada e
esmerada na vermelhidão. Boas e doces lembranças chegam de mansinho ao encontro de
quem experimenta como sina a vida calcada na pesquisa.
Neste momento, em especial, após o exame de qualificação e diante da mudança de
objeto de pesquisa – da dramaturgia do espaço teatral Os Satyros para a Praça Roosevelt em si
e as narrativas que a atravessam e constituem-na –, parte daquela criança diante do lago deu
as caras. A bárbara, obcecada por vísceras, hoje busca dissecar uma dada realidade; e aquela
mais serena, que jogava pedras no lago, atenta-se ao movimento. Penso nas pedrinhas que,
dependendo de como lançadas ao lago (intensidade, inclinação, sua própria densidade),
provocavam certas ondulações em forma de circunferência, em um vaivém em velocidade,
forma e tempos variados. É como se este vaivém, das bordas ao centro, do centro as bordas,
representasse a dinâmica experimentada pelo pesquisador no movimento de aproximação e
distanciamento diante de seu objeto de estudo: ora, por exemplo, buscando fontes
secundárias; ora ancorando-se nas primárias; ora flertando mais com o passado do objeto; ora
escancarando a infidelidade ao cair de amores e namoro com o presente que o circunda e o
atravessa. Ora olhando coisas; ora mirando gentes; ora atenção voltada a eventuais produtos
28
culturais cujo fulcro é o objeto estudado; ora escutando histórias e mais histórias no cochicho
de um personagem-entrevistado. Ora atentando à espacialidade; ora garrando nas
materialidades – reconhecendo, principalmente, a expansão e a contração, como movimentos
constitutivos e igualmente valorosos, necessários. Bem-vindos à pesquisa.
Licença para, neste capítulo, expandir. Buscar o que antecede o momento (e o
movimento) vivido pela Praça Roosevelt nos dias de hoje. Brincar com o tempo. Viajar ao
passado. Escarafunchar no chamado trompe-l’oeil de Santos (2006), crescendo, assim, olhos
em algo talvez aparentemente superado pelo tempo (o registro da praça em um dado período
de sua história), mas que, eventualmente, pode lançar algo novo ao presente do objeto
estudado. Xeretando aqui e acolá, encontra-se uma profusão de produtos audiovisuais sobre o
objeto desta tese. Em meio a tal variedade, chamam atenção os documentários, recorte que
neste capítulo encontra lugar. Deste modo, esta seção, a partir de um levantamento
documental, propõe lançar ancoragem na produção audiovisual, tomando, não sem dúvidas,
como objeto dois documentários cujo mote é a Praça Roosevelt antes de sua reforma.
Os tipos de documentários problematizados flertam com duas modalidades deste estilo
de produção audiovisual: a observativa e a reflexiva. No modo observativo, há um esforço
para captar a realidade tal qual como se apresenta, sem praticamente notar-se o
documentarista e a equipe envolvida na produção. Já o viés reflexivo deixa claro ao
espectador como se dá a “filmagem, evidenciando a relação estabelecida entre o grupo
filmado e o documentarista. Nos filmes em que esse modo de representação prevalece, nota-se
como é a reação do grupo pesquisado diante da câmera e do seu realizador”4.
Entre os objetos deste capítulo, estão os documentários: (a) Palco Roosevelt, de 2007,
dirigido por Rafael Rolim e produzido por Flávia Person, publicado na página CurtaDoc5 e na
plataforma Vimeo6, com duração de 21 minutos. Este produto audiovisual se propõe a mostrar
a praça não como mero lugar de passagem, mas como espaço dinâmico e culturalmente ativo,
procurando evidenciar a pluralidade urbana e apresentar ao espectador tanto o prisma social
quanto algumas reflexões sobre o espaço cotidiano e o espaço público; (b) Roosevelt: uma
praça além do concreto7, de 2009, produzido e dirigido por estudantes da Anhembi Morumbi
(Amanda Santana, Ana Cristina Vasconcelos, Érika Valois, Luiz Mazetto, Maria Joyce
4
Disponível em: https://portaldocurta.wordpress.com/2012/03/documentario-e-seus-tipos-segundo-bill-nichols/.
Acesso em: mai. 2018.
5
Disponível em: http://curtadoc.tv/curta/urbanidade/palco-roosevelt/. Acesso em: abr. 2018.
6
Disponível em: https://vimeo.com/14375744. Acesso em: mai. 2018
7
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=sa6P-rVQPI8. Acesso em: abr. 2018.
29
Com o badalar do sino da Nossa Senhora da Consolação, como que para convocar a
atenção do espectador, o nome do documentário é anunciado e são mostradas quinas da
concretude da praça enquanto um homem inaugura uma sequência de entrevistas solidárias à
praça como ela é, preservando as formas e os contornos de sua inauguração. O primeiro
entrevistado agradece por estar vivo e pela dádiva de a cada dia ter a oportunidade de
encontrar ângulos diferentes em meio aos “buracos” e “entranhas” da praça (Figura 2), bem
como a comodidade de “ter tudo”, “tudo, tudo”, naquele lugar. O depoimento seguinte coloca
a Roosevelt como “província” na qual, pela manhã, é possível sair dando “bom dia!” a todos.
O entrevistado atesta o bem-estar relacionado a conhecer todas as pessoas por ali: “conheço
todo mundo, né. Isso dá um orgulho muito grande!”. Neste ponto, as imagens (Figura 3)
utilizadas para ratificar a praça-província (no bom sentido, pelo que o entrevistado diz)
compreendiam a abertura da floricultura pela manhã, destacando o colorido das flores de seu
interior e os funcionários colocando um banco de madeira do lado de fora sobre um chão de
paralelepípedo para provável contemplação do interior da loja e entorno. Já a voz de uma
senhora anuncia, com entusiasmo, a autonomia e a segurança desfrutada para sair e encontrar
tudo e todos por perto: mercados, feira livre, pessoas conhecidas (Figura 4).
e eu chamei os dois e disse assim: olha, no dia em que vocês quiserem (...), pode deixar que
eu vou lá na praça Roosevelt (...) Eu vinha comprar aqui”.
A criticidade mais carregada nas tintas sobre a praça é inaugurada com o entrevistado
11, para quem não têm vez aqueles que simplesmente estão “afim de passear” –
principalmente “pais de família” e “garotinhos” com suas motozinhas, já que não lhes restam
muitas opções de se apropriar do lugar senão dando, à revelia, dribles nos meninos e
homarada donos das peladas. Os peladeiros, por assim dizer, não têm o direito de se apossar
da praça como campinho: “tem menino jogando futebol! E, pior ainda, chega e vão tomando
espaço e bola para lá e para cá... não que eu tenha nada contra futebol. Eu gosto de futebol pra
caraca, né. Mas não é o local, não é o local”. Para esta corrente de moradores, não apenas os
peladeiros devem ser extirpados do pedaço como também os skatistas. Além da tentativa de
moradores proibir a prática do skate, até uruca os jovens skatistas relatam receber de algumas
“mulheres”, “senhoras” e “velhos”: “vai quebrar o pé, moleque!!!”. Mas este movimento de
erradicar o skate é, para os praticantes, natimorto, porque “sempre colam umas pessoas
diferentes, entendeu”.
Os próprios skatistas dão sua opinião de quem deveria ser dizimado do pedaço: os
nóias, os drogados. Nas palavras dos dois jovens skatistas, “quem estraga a praça Roosevelt
35
não (...) [são] eles, tá ligado?” O que estraga é que “sempre tem um usando droga (...) no
canto ali e pá”. O entrevistado 13 corrobora esta perspectiva e escancara sua indignação com
o uso de drogas em espaço público: “No outro dia eu estava na Praça com os cachorros,
passeando, e veio três meninas... foram lá no cantinho na maior cara de pau! Enrolaram o
fuminho delas, fumaram e foram embora! Nem se tocou. Mas nem se tocou!”. Outro
depoimento mostra que o banimento deve ser dos cachorros para que seja aberto espaço para
as crianças: “Crianças que estão nos prédios aqui em volta, trancados dentro de quitinetes, não
têm nada! Eles abandonaram a Praça! (...) o playground que tem está privatizado! Aonde as
crianças podem jogar, está TRANCADO para cachorro fazer cocô!”. O que as pessoas se
esquecem, ponderam os entrevistados skatistas, é que “a Praça Roosevelt é muito grande...
muito grande”, portanto tem lugar para a “delegacia de polícia”, para os “guardas”, para os
“cachorros” e o “cachorródromo”, para o “campinho de futebol”. Afinal, a praça é “bem
grande, em cima e embaixo, entendeu? Espaço sobra nessa praça para ser ocupado”.
Junto com imagens que sugerem declínio da praça (vigas enferrujadas, concreto quase
despencando do teto, “pixo” e grafite) vem a preocupação de outra leva de entrevistados sobre
aqueles que têm procurado privatizar aquele espaço público para segregar: “Antes de mais
nada, a privatização. Em segundo lugar, a segregação. Eu sou contra todo o tipo de
segregação! Nem os cachorros devem ser segregados!”. A prioridade da pauta sobre a praça é
contundentemente questionada: “Os caras vão discutir cachorródromo, meu... Vão discutir o
morador de rua... Porra, meu!!! Traz... é aliado, cara!!!” Outro morador, indignado, chama à
atenção para o projeto formalizado de higienização da região com a retirada dos moradores
em situação de rua: “O primeiro documento que a gente recebe é a retirada dos mendigos da
Praça. É mole? Higienização mesmo!” (Figura 10). Sousa Santos (2008) alerta em sua obra
para o fato de que “o grau máximo de exclusão é o extermínio” (p. 282). A fala destes
entrevistados corroboram tal perspectiva e, ao mesmo tempo, demonstram a convulsão social
agonizante vivida pela parte da urbe explorada nesta reflexão. Na Figura 10, a seguir, é
apresentado um conjunto de imagens daqueles que, pelos relatos de alguns dos entrevistados
do documentário, devem ser banidos, exterminados da Praça Roosevelt. O ápice da exclusão
nesta narrativa fílmica do Palco Roosevelt são os drogados que, embora muito mencionados,
encontram-se destituídos visualmente de representação. Trata-se dos “não vistos”.
36
Drogados:
mencionados, mas sem
imagem para representá-
los. Os não representados.
O sexo ganha ares jocosos nesta narrativa fílmica: “O engraçado é que ficou uma
coisa, assim, meio eclética a praça, né? Tinha os moradores de rua, tinha as travestis, tinha as
garotas de programa...”. Outro entrevistado complementa: os “michês para homens também!”.
E o escândalo e a indignação assolam as expressões ao se descrever a busca por pretendente-
cliente e o sexo em pelo e em pleno ar livre: “no meio da praça eles faziam programas,
cassação... assim... Então era comum... quando começava a escurecer, o pessoal trepava em
cima e tal”. O 13º entrevistado, escandalizado que só, trata de acrescentar que o sexo também
era praticado pela manhã: “lá em cima tem um jardinzinho assim e tudo... e é meio
escondidinho. 9h da manhã e o pessoal fazendo sexo! 9h da manhã fazendo sexo”, repete. “E
o pessoal dos prédios tudo assistindo!”. Outra entrevistada revela que no seu prédio fazia uma
fila de 16 a 18 homens, que “subiam até o vigésimo andar e viviam transando”. Com a
resolução do proprietário do edifício de colocar à venda as unidades apenas para famílias,
uma síndica assumiu o controle e, paulatinamente, os imóveis foram convertendo-se apenas
para fins residenciais, proibindo de se “fazer dali um ponto profissional”, não podendo “subir
mais de um namorado por noite”. Contudo, quando “entra uma tribo, sai outra” – alerta e, em
certa medida, alfineta a mesma entrevistada, enquanto as imagens vão mostrando pichadores e
grafiteiros (Figura 12), putas, michês e travestizaiadas para o lado de fora, famílias do lado de
dentro.
Enquanto isso, os teatros – como Os Satyros e depois o Parlapatões – tentam, sem
sucesso, como o tempo vai dizer, não expulsar ninguém: “A gente não queria expulsar
38
ninguém. A gente tinha de ser inserido nesse lugar, sabe. A gente não queria que ninguém
fosse inserido ao nosso mundo”. O simples fato das companhias teatrais estarem naquele
lugar já mudara o seu significado. Quer queira ou não, as membranas filtrantes, de um lado e
de outro, estavam em pleno movimento de traduções, como o juízo de valor destacado na
sequência demonstra: “A gente tinha de se inserir e conhecer esses códigos todos desses caras,
desses mundos de malucos, desses universos que a gente, puta, sequer imaginava como seria”.
Como outro entrevistado expõe, por mais que se tente ruir fronteiras, há uma “separação
muito grande na praça entre aquilo que os moradores fazem e o que as lojas e bares fazem”. E
avança dizendo que “formiguinhas moradoras entram de noite pra algumas outras pessoas
serem atraídas para a rua... as cigarras” [risos] (Figura 13). Os teatros aparecem para outros
entrevistados como uma grande promessa para a Roosevelt: “A praça, em função dos teatros
que estão aqui agora, pode vir a ser um grande núcleo de teatros”. E avança: “A Praça é do
povo, tá?! A Praça é do povo, como o céu é do condor, tá? A Praça é de todos nós. E se a
Praça tem um teatro, todo o pessoal que faz arte tem que defender”.
Aqueles que frequentam a praça e o seu entorno acabam por ter uma aura sedutora e
mágica, relata o entrevistado 24, e qualquer um que esteja abaixo desta régua, não se dá bem:
“É mágico. As pessoas que passam por aqui têm muita personalidade e qualquer figura que
tenha menos personalidade que as figuras fortes que existem aqui, dança”. Mas a então
promessa com a chegada dos teatros se estilhaça: “hoje, teatros, artistas são os vilões da
história. São os baderneiros. São os bagunceiros. São os caras que acabam com a ordem”. Isso
porque, para alguns, a população flutuante do lugar, derivada dos teatros e demais
estabelecimentos, é puro “desrespeito”. O entrevistado 12 cutuca e dá a cara a tapa:
Eles não podem excluir 832 apartamentos que moram aqui, que significa, mais ou
menos, 2.500 pessoas. Eu reclamei com nome, sobrenome, assinatura, endereço e
telefone. Então eles sabem muito bem que eu reclamei sim. Porque eu acho que é
um desrespeito muito grande ficar fazendo chacrinha até seis horas da manhã.
Quebrando garrafa e cantando ‘atirei o pau no gato’. O pior é o ‘atirei o pau no
gato’, entendeu? [risos] O maior desaforo. Esgoelando.
Para colocar por terra tanta problemática, seria a demolição da praça a saída? “Quando
tinha mais banco lá, tinha muita gente morando lá. [Tinha] os aposentados... até namorado.
Tudo ficava nos banco. Mas nem banco tem mais”. Nesta direção, a entrevistada 12
40
complementa, afirmando que demolir faz parte do processo de extirpar da realidade o que se
deseja longe do alcance dos olhos:
Tinha um pombal. Um objeto de arte, vamos assim. Os pombos são daninhos, então
o que é que se faz? Faz a demolição do pombal. Os moradores de rua dormem em
cima dos bancos, então vamos demolir os bancos. Agora, vamos demolir a praça. E,
daqui a pouco, eu não sei se... Eu tenho a impressão que vão demolir os prédios e o
teatro municipal, né?
E a finitude é amplificada pelo entrevistado 23, que afirma: “tudo vai acabando. A
gente acaba também. Vai acabar apagando, apagando, né? Porque a gente não é nada nesse
mundo, né? Que que a gente é desse mundo? Hoje a gente tá aqui e quando vem amanhã, já
foi pro buraco”. Nas entrelinhas destas últimas constatações, reside de modo mais
contundente uma parcela da provocação dos idealizadores deste documentário: a convivência
agonizante do social, o mal-estar de não se aceitar o fato de todos serem diferentes, mas iguais
em termos de direitos. Fica, desta forma, frouxo o abraço à diversidade e aparentes os cabos
desencapados quanto à violência a que certos grupos se encontram suscetíveis, podendo, por
assim dizer, ser gerado a qualquer momento um curto circuito calcado no preconceito
estruturante do social. Para debaixo do tapete, tudo aquilo com que certas pessoas, a
intelligentsia, não sabem lidar. Mesmo o documentário, visualmente, tem suas limitações: não
mostra as putas, os michês, os drogados. No lugar disso, no arremate da narrativa fílmica –
que por sinal não dá nome aos entrevistados –, a arte é exaltada como a única capaz de trazer
estas personagens desacreditadas na sociedade para o centro. Sendo assim, enquanto cenas de
um espetáculo realizado no meio da praça são mostradas (Figura 15), enfatizando a ideia de a
praça ser um palco, é colocado textualmente que não se fala em movimento artístico, fala-se
em resistência: “O movimento artístico começa a acontecer a partir de agora (...) Tá começando
alguma coisa que pode fazer história”. Mas, em meio ao movimento cotidiano, questões sociais
continuam postas, ainda que se faça vista grossa, conforme as Figuras 16 e 17 evidenciam.
8
Disponível em: https://jornalggn.com.br/noticia/baiuca-o-templo-da-boemia-na-praca-roosevelt. Acesso em:
jun. 2018.
42
época e como a Bossa Nova “tava praticamente começando” (Figura 19). Mas, o gênero
preferido do momento, esclarece, era o Jazz, música americana.
A cantora Claudette Soares (Figura 20), por exemplo, deixa o Rio de Janeiro e chega a
São Paulo nos anos 1960, aconselhada pelo amigo Ronaldo Bosco, visto que na capital
carioca a Bossa Nova já tinha território demarcado. O amigo recomenda: “São Paulo é um
país. Larga sua praia (...) vai embora para São Paulo”. E, assim, a cantora chega para cantar
na casa Baiúca, de propriedade de Heraldo Funaro: “Casa maravilhosa, com piano. Inclusive
um ponto de encontro... Talvez tenha sido a primeira casa que era o ponto de encontro onde
todos os cantores que vinham para São Paulo tinham que dar uma canja na Baiúca (...) Todos
que se possa imaginar”. A Baiúca é “ponto de boa música, bons clientes, bom jantar, boas
bebidas, tudo (...) respeitado. Isso tudo acontecia na Praça Roosevelt. “Tempo áureo com a
Baiúca”, completa Edras Vassalo. Mesmo após os shows, Rubinho revela a vocação
agregadora do local, “um lugar de encontro” até quando as portas dos estabelecimentos
43
baixavam: “Sabe, as vezes é engraçado (...) [artistas] falavam: vamos fazer um vocal aqui, tal.
E distribuíam as vozes (...) e a gente, ao lado de um poste, pahhhh, fazia os acordes tal
cantando né. Então era um lugar de encontro até pra isso”. Loyola Brandão arremata dizendo
que se tratava de “uma reunião de músicos, de boêmios, de jornalistas, de... de vagabundos,
porque também tinha os que não faziam nada. E de socialites... que eles frequentavam”.
Figura 23: Colégio Porto Seguro, por tempos, a única construção da praça
A atriz Phedra de Córdoba alegra-se por ter conhecido a praça no “seu auge”, no
tempo em que dizer “eu moro na Praça Roosevelt” equivalia-se a dizer, nos dias de hoje,
“moro nos Jardins”. “Era um lugar de encontro”, acrescenta Rubinho, do Zimbo Trio. Para
além da Baiúca, também é trazido à tona o Cine Bijou (Figura 25), que, no off, é apresentado
como o espaço reservado aos “apaixonados pela sétima arte”. O diretor de teatro Gabriel
45
Catellani coloca que, nos tempos de ditadura, o Cine Bijou “foi o grande polo centralizador de
toda a inteligência nacional”. De Fernando Henrique a Silvio Santos, relata, “eles
frequentavam esse espaço para falar sobre o Brasil, pra pensar política e pra, através dos
filmes que aconteciam naquela época, ficarem informados do cinema de arte mundial”. Dulce
Muniz, do Teatro 184, que ocupa hoje o endereço do Cine na Martinho Prado, ressalta que
todos os jovens ou, ao menos, “uma parte da juventude da época”, costumava ir muito a este
cinema, porque ali “se passava o que hoje se chama de cinema cult ou filme cabeça, era
chamado filme de arte”. Loyola Brandão complementa: “O Cine Bijou na época também
marcou presença, porque foi o primeiro cinema de arte mesmo. Só passava filme de arte. Não
passava tranqueira”.
No entanto, Ignácio de Loyola Brandão coloca que, naquele momento, a praça já não
era mais sua e já não era de mais ninguém. Nas suas palavras, “aquela Praça que foi feita, não
era mais a minha Praça. Não era nossa Praça. Não era Praça mais de ninguém”. Deste modo,
“após anos de efervescência cultural, a Roosevelt (...) [passa] por um período de degradação e
abandono”, no qual o primeiro sinal dado é o fechamento de estabelecimentos do entorno,
como conta Renato Orbetelli (Figura 28): “Porque fechou tudo aqui. Só ficou aberto eu, que
eu meu lembre. Eu e acho que, se não me engano, uma papelaria. Que era uma livraria
antigamente a papelaria, né. Cabou tudo. Fechou tudo aqui”. Gual recorda que “antigamente...
Nove horas da noite essa praça era intransitável”. Bartira Cataldi rememora que sua mãe
chega a ser assaltada dezoito vezes nesta época: “roubavam coisas da velhinha”. Até que um
dia, aos 84 anos e cansada das abordagens, “saiu correndo atrás do ladrão (...) Correu o boato
e, então, por incrível que pareça, depois disso ela não foi mais assaltada”. Gual, na livraria,
experimenta algo que, como coloca, é “hilário”: “a pessoa veio assaltar minha sócia e minha
esposa (...). Ela conseguiu explicar pra ele que não tinha dinheiro e que ele poderia levar o
livro. O cara levou o livro, né”. A professora Sandra Trabucco impressiona-se com a
47
O sinal de alguma melhora, segundo o seu Renato Orbetelli, foi dos anos “1990 pra cá,
(...) quando os teatros vieram” (Figura 29). Gabriel Catellani, do Teatro do Ator, afirma que,
quando a companhia chegou, em 1999, colocou fim a “uma etapa aqui da Praça, aonde (...)
tinha chegado quase que no limite da degradação”. A narração em off coloca a chegada da
Companhia Teatral Os Satyros, em 2000, como um dos marcos da revitalização da Praça
Roosevelt. Muito embora outros teatros já existissem no entorno, “nenhum havia percebido a
Praça como um lar”. Rodolfo García Vásquez, um dos idealizadores do espaço Os Satyros,
expressa que a chegada da trupe à praça nem sempre foi tranquila: “em 2005, a gente recebeu
uma ligação (...) [de] um traficante que dizia que haveria um derramamento de sangue na
porta do teatro se a gente continuasse, porque a gente tava atrapalhando as atividades deles”.
E a ameaça no sentido de que a companhia teatral “deveria pagar um aluguel (...), uma
mensalidade pro tráfico de 15 mil reais por mês”. Valor que o Os Satyros não dispunha. A
atriz Phedra de Córdoba coloca que não passava pelo lugar de noite: “era tudo escuro (...)
Tinha prostituta, travesti, que inclusive os travestis... Teve uma que me parou e falou: Tu é
mulher ou travesti? (...) Não soube o que responder (...). Eram marginais, entende?” A raiva
da travesti que a parou se dá porque Phedra era conhecida por ser uma transex, “mas que era
muito fina, que era atriz”. E isso, segundo ela, “chocava”.
Rodolfo García Vásquez conta que o lugar é de “bandidagem pura”. Contudo, o grupo
teatral não se deixou intimidar e fincou-se na região por entender como fatores importantes a
localização, “o astral” do lugar e a crença de que “poderia se relacionar (...) e mudar um
pouco essa atmosfera”. Ivam Cabral, também um dos idealizadores do Os Satyros, coloca que
é mérito da arte: “acho que a arte ela produz isso. E não precisa ser nem um grupo muito
fantástico (...) A gente sabia... A gente partiu desse princípio que... onde tem luz... onde tem
gente, não tem problema. Não vai acontecer nada de grave”. O fotógrafo Walter Antunes,
expõe que a “partir do momento que a Praça vira um espaço de lazer e de cultura efetivo”, as
pessoas enxergam “com bons olhos e procuram tá na Praça, sejam nos espetáculos, sejam nos
bares (Figura 30). Eu vejo essas pessoas, que são os bandidos, deixando a cena”. O professor
de Yoga e frequentador da praça, Alex Ruiz, revela que “as pessoas ficam preocupadas em
guardar a bolsa, guardar o celular”. Para ele, “tá tudo bem (...) não tem problema”.
Somando-se ao Os Satyros, abre as portas o grupo de teatro Parlapatões. Na
inauguração, conta Hugo Possolo, “os Satyros fizeram uma homenagem pra gente, porque a
gente foi lá pedir xícaras de açúcar como bons vizinhos. Então, o açúcar tem uma simbologia,
uma superstição teatral, né? Que se você joga açúcar na porta do teatro, o teatro lota”. Para a
jornalista Maria Antônia Demasi, a praça deve ser usada por todos. E o “papel do artista (...).
Porque, além de botar no palco, no caso, no teatro a arte deles (...), estão influenciando a
comunidade, né. E eu acho que eles estarem aqui, e (...) permitirem que estejamos aqui, é
muito legal para você rever esse pedaço da cidade”.
Com a chegada dos grupos de teatro, a Praça Roosevelt vira uma espécie de ponto
turístico, como conta Rodolfo García Vásquez. Junto com esta condição, chegam a população
flutuante, o barulho e a reclamação de moradores. “Alguns moradores novos, também antigos,
49
começaram a reclamar dessa efervescência. Eles preferiam (...) o barulho dos tiros e tal da
madrugada? Não sei, é uma questão de gosto pessoal. (...) A gente incomoda algumas
pessoas”, ironiza o dramaturgo. A moradora Bartira Cataldi expõe que o problema não são os
teatros, mas sim os bares dos teatros. Este sim é um “tormento insano”, porque vendem
cerveja até “cinco e meia da manhã”. Maria Victória Vaz, também moradora do entorno da
Roosevelt, pondera:
Eu falo francamente, pra mim não me incomoda. Mas há pessoas que moram, por
exemplo, nesse São Lucas. Até são nossos amigos, mas eles reclamam muito.
Porque, às vezes, a pessoa sai do teatro... Você sabe, às vezes a pessoa sai em
companhia, não é? Ou conhecidos, ou pessoas que se conheceram no momento, eles
gostam de conversar um pouco, não é? E incomoda as pessoas no dormir, que tem
que dormir pra amanhã levantar cedo e trabalhar [risos].
Há uma especulação imobiliária muito grande que também atrapalhou todo o nosso
processo de trabalho, porque essas travestis que viviam aí não tem mais dinheiro
para pagar. Então, a gente acabou afugentando todo mundo e veio um monte de
burguezinho falido para a Praça Roosevelt. Tipo, nossa... Tomara que eles não me
ouçam. Meu Deus, tô falando isso. Mas, enfim. É o... São os moradores hoje. São as
pessoas que... né?
A metragem quadrada triplicada coloca em relevo outro ponto destacado por Delgado
(2007), que é o processo de gentrificação, afastando para longe os indesejáveis (os pobres e os
ingovernáveis). E a presença dos teatros, que na voz da corretora assume o caráter de
50
“retomada da vocação cultural” da Roosevelt, acaba por evidenciar a reapropriação que, neste
caso, se dá sutilmente por vias de dinâmicas capitalistas que espreitam a tematização do lugar.
Na cidade, onde reside o mais feroz dos liberalismos, é possível perceber o estímulo à
propriedade de certos grupos e a restrição de outros, diminuindo para esta segunda parcela a
possibilidade de apropriação. Desordem especuladora frutificada também do abandono da
administração pública de planejar a cidade, o que acaba por convertê-la, ao sabor de certos
grupos, em produto a ser consumido.
As condições da praça à época colocavam-na não como um bem público, mas como
um mal público. Nesta toada, de mal público, também está Loyola Brandão: “odeio como
projeto arquitetônico e urbanístico. Mesmo porque, que que era? A Praça era um ponto de
encontro (...) Era uma coisa aberta, né? Virou uma coisa fechada (...) sufocante. A própria
igreja, né, desapareceu (...) era um monumento da cidade. Agora tá ali”. Maluf, o prefeito que
inaugurou a praça, coloca-se contra a reforma-demolição: “acho que esse país não tem
orçamento para demolição. O orçamento tinha que ser para gerar emprego e pra construção.
Sou contra. Contra”. E provoca: “Onde é que está a verdade? Naquele arquiteto que projetou
há 40 anos ou no arquiteto que quer hoje demolir para ganhar eventualmente um honorário.
Não, nós temos que construir. Temos que demolir nada”.
Gualberto Costa diz que há “lendas” dizendo que a praça é um projeto experimental,
cujo objetivo era “não concentrar pessoas e, consequentemente, [não] concentrar ideias e virar
uma coisa que acabou virando. A gente retomou a nossa democracia indo para as ruas, indo
para as praças, nas Diretas Já”, defende. Para Maluf, esta é uma grande piada. Ele ri da
“lenda” de que o projeto praça-edifício teria sido concebido para impedir manifestações
populares: “O Brasil tem oito e meio milhões de quilômetros quadrados, então você pode
fazer manifestação popular onde você quiser. Não precisa ser especificamente na Praça
Roosevelt”. Loyola Brandão solapa ao dizer que o projeto dos anos 1970 “não tem nada que
ver com ditadura. Tem que ver com burrice”. Para o arquiteto Cláudio Teodoro, o projeto-
demolição está tramitando desde os anos 1980 e a diretriz para retirar a laje de cima da praça
tem mais a ver com a capacidade de “zeladoria” e “controle” do lugar. Bartira Cataldi
desconfia: “Não existe vontade política para isso. De maneira nenhuma eu acredito que eles
vão fazer alguma coisa”. Para Rodolfo García Vásquez, “o projeto, ele tem que valorizar as
pessoas do cotidiano, as vontades das pessoas e que seja um espaço democrático, né. Que a
Praça merece e que a cidade precisa”. Para o dramaturgo, “construímos na calçada um espaço
52
democrático, livre e seguro. E seria maravilhoso que a gente pudesse expandir essa calçada
para o meio da Praça”.
9
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?time_continue=125&v=wdXoz-yYA. Acesso em: jul. 2018.
10
Disponível em: http://avidanocentro.com.br/. Acesso em: jul. 2018.
57
Ferrara (1988) –, como espaço de fervo, como lugar de luta, como ambiente de efervescência
cultural de que nos fala Morin (2011) no qual perfila com gingas e matizes as conjunturas
sociais, algumas das quais insistentemente varridas para debaixo do tapete por discursos
pretensos a hegemônicos. As conjunturas postas tapete abaixo levantam lombos que colocam
em tropeços esnobismos, modas, superficialidades. Neste aspecto proposto por Morin (2011),
ao qual este texto solidariza-se, os confrontos de visões do mundo, os desvios, as
transgressões, as perdas de energia, os debates abertos e a livre reflexão são caros a lugares
como a Roosevelt, cujo vértice encontra-se no pensamento crisíco, nascido e mergulhado na
crise. Neste sentido, exibindo cenas do Palco Roosevelt (Figuras 37 e 38), chega o
depoimento do documentarista e fotógrafo Rafael Rolim, relatando que, em 2008, quando fez
o documentário, a ideia inicial era falar sobre o “off sampa”, “como é conhecido (...) teatros,
esse espaço cultural” da Roosevelt; contudo, a pauta muda quando se depara com “a
diversidade e pluralidade de pessoas e ocupações da praça (...) Então, o filme passou a olhar
para a praça, e não só para a cena cultural”. Estrutural e espacialmente falando, “era uma
coisa sem manutenção nem nada, infiltrava, escorria água (...) nada aprazível... você olhava
para a praça e não era um lugar que te estimulava a ficar. Mas, arquitetonicamente, ela era
muito bonita, muito interessante”. O arquiteto Luis Felipe Abbud acrescenta que a praça foi se
tornando “um local meio underground” e, deste modo, a Roosevelt passa a ser associada com
“pessoas do submundo, marginais da cultura paulistana”. Entre as pessoas do dito
“submundo”, para o entrevistado, estão os traficantes, os mendigos, as prostitutas e os usuário
de drogas. Com estes habitantes, a “praça foi ficando um lugar abandonado. E a estrutura (...)
foi contribuindo para (...) [a] degradação”. Isto porque, justifica, as lajes eram amplas e havia
muitos lugares escuros, facilitando para “que as atividades ilícitas fossem acontecendo
naquele espaço e a população fosse criando um certo medo”. Este receio de estar na praça
encontra eco na voz de um morador, Luis R. Barbieri: “Quanto mais próximo você chegava
da praça, mais medo você tinha de estar na rua. Era mais sombrio, mais duro, mais
apavorante”. A presidente do Programa Ação Local Roosevelt, Marta, coloca que
a primeira Praça Roosevelt deveria ser para trazer o pessoal para fazer teatro,
atividades diurnas. Não foi cuidada da primeira vez, foi depredando-se também e
terminou abandonada. Como tinha um teto, ainda tinham muitas pessoas que se
refugiavam para cometer crimes nos espaços que não estavam muito, assim, para
visão facilmente.
62
aparências como também sua moralidade. E, neste caso dos teatros, a dramaturgia da vida
pública ganha o palco das companhias chegadas à Roosevelt.
Figura 39: Cartazes de peças do espaço Os Satyros que levam o nome da Roosevelt no título
Diego Bernardino Fontes, skatista profissional, chega ao “pico” pela primeira vez em
2007. “Era a Roosevelt antiga ainda. Eu andava bastante (...) no Vale do Anhangabaú e aí,
quando chovia (...) eu vinha para a Roosevelt, porque tinha a parte debaixo que era coberta. E
isso salvava o rolê, na época”. Depois da reforma, revela, deixa de vez o Vale e passa a
frequentar a Roosevelt todos os dias.
Figura 40: Praça Roosevelt – Manobras do skatista profissional Diego Bernardino Fontes
Em busca de determinar um marco de “salvação” para a praça, Ivam Cabral, diz que as
melhoras independeram do poder público. As melhoras, defende, foram sendo realizadas
pelas pessoas. O “poder público (...) passou à deriva. Nunca a gente teve, de fato, uma
64
interlocução bacana. A gente nunca foi ouvido (...) pelo poder público. Então, toda essa
conquista (...) independeu do que o poder público acabaria fazendo pra gente”.
Marta, a presidente do Programa Ação Local Roosevelt, relembra que na condição em
que a praça se encontrava, não havia alternativa senão fechar tudo “porque os problemas de
que provavelmente caíssem pedaços da Praça [nas pessoas] eram contundentes”. Após uma
“demora” de cinco anos para reconstruir a Praça, a Roosevelt entregue, lamenta, passa longe
da promessa feita pela administração anterior da cidade, isto é, de que seria “uma praça
ecologicamente correta, autossustentável...”. Até o momento da gravação do documentário,
afirma, os moradores continuavam atrás do projeto por eles aprovado. Insatisfeita, revela:
Para a nossa surpresa, quando abriram as portas, muito antes de terminar a obra, não
era nada do que tinham prometido [(Figura 41)]. Eles mudaram o piso: de ecológico
passou a ser um piso super barato, que somente aguenta o passo de rodinhas de
skate. As árvores que foram tiradas, que estavam antes, não foram recolocadas.
Colocaram árvores que até dão alergia às pessoas. E no cachorródromo, espaço
especial para os cachorrinhos, colocaram plantas que são venenosas.
De acordo com Rafael Rolim, a Roosevelt “melhorou, (...) mudou pra melhor”,
comparando-a com a época da idealização de seu documentário; muito embora sua produção
de 2008 tenha tomado o partido a favor “da manutenção da praça como ela era”, visto ser
“realmente um espaço muito interessante, que poderia ser recuperado”. Para Ivam Cabral, a
“Praça Roosevelt nunca poderia deixar de ser um monte de concreto, porque passa (...) por
debaixo da Praça Roosevelt a Radial”. Há “vários estacionamentos, (...) vários níveis e só
poderia ser reformada com concreto”. O dramaturgo afirma que em meio a sua concretude, a
Roosevelt “tinha que ser um lugar que pudesse acomodar as vocações (...) [daquele] lugar (...)
Que é a periferia”. Sem ter a certeza de que foi proposital ou não, os skatistas, que “eram os
65
caras que viviam (...) na praça durante todo esse processo de abandono”, tem na nova
geografia do lugar um espaço no qual podem se “legitimar”. Perspectiva não comungada por
outros moradores que afirmam que a “modalidade skate street, (...) é aquela (...) tão criticada
no mundo inteiro, que é a destruição do lugar onde (...) estão” (Marta). Diego, skatista
profissional, mesmo quando coloca o skate de lado, vai para a Roosevelt, porque naquela
praça tem “vários amigos, várias pessoas, vários profissionais”. E, às vezes, quando não está
com vontade de andar, observa as manobras sendo feitas para ter “inspiração”, na “casa do
skate”. Marta Lilia Porta, critica de modo contundente a presença dos skatistas, como quem
deseja transformar a Roosevelt no quintal da casa de moradores apenas:
Como não foi feito um regimento, nenhum regulamento nem nada da Praça (...) Aí,
de repente, apareceram trezentos, quinhentos skatistas pro final de semana e a
pessoa que vinha tomar sol ou sentar-se para ler um jornal praticamente foi corrida
do lugar. São pessoas que não são moradoras da região, geralmente... temos poucos
skatistas que moram aqui na praça. São pessoas que vem até de lugares tão
remotos, como Caieiras... e ficam o dia inteiro aqui... se são adolescentes, deveriam
ter pelo menos um período na escola. Chegam às 8h da manhã e vão embora às 11h
da noite. Então, a Praça se converteu em um espaço – pela força – só apenas de um
grupo (grifo nosso).
No Rio, tem o mar. Aqui, tem o movimento da cidade, né? Então, acho que não me
incomoda para estar aqui, na sala, para jantar, para estar com os amigos, para ler um
livro... não me incomoda! Mas, acho que, na hora de dormir, o sono precisa de
silêncio, né? Então, para dormir, eu coloquei uma janela antirruído para evitar
qualquer barulho.
Ivam Cabral afirma que é “prazeroso olhar hoje para a história e ver que há uma
apropriação legítima da Praça Roosevelt pelo skate, por exemplo... porque, quando a gente
chegou na Praça Roosevelt, todo mundo tinha abandonado a Praça, menos os skatistas”. O
ator coloca que gosta “de dizer que antes do teatro, antes da cultura, a Praça Roosevelt é, de
forma legítima e por direito, dos skatistas”.
Não apenas os skatistas incomodam aqueles que pretendem converter o espaço público
em privado. Mas aqueles que, entre as 18h e as 19h, começam a se achegar de mansinho e a
se acomodar nas escadarias, por exemplo, com seus violões, pandeiros e outros equipamentos
como caixas de som (Figura 42). “Ontem, por exemplo, estava tendo um ensaio da Vai-Vai
aqui! Às 7h da noite. E daí, tinham centenas de pessoas, que vinham de milhões de lugares,
desde o executivo até a baiana!”, comenta e celebra no tom e na expressão o ator Ivam Cabral.
Neste fio desencapado do diz-que-disse, é interessante retomar Laplantine (1993) que,
em conjunto com Olievenstein, constitui um ensaio (incompleto, como assumido na obra) de
perambulantes pela metrópole paulistana, cujos ingredientes são pitadas de subjetividades e
sensações dando sabor às suas reflexões. Descentralizada, de cabo a rabo, a cidade – cutuca
Laplantine – parece não ter sido pensada e seus eixos principais desorientadores levam a ruas-
labirintos e, consequentemente, põe-se diante daqueles que a experimentam, o seu gigantismo,
as suas misturas e as suas contradições verticalizadas. Cá, em São Paulo, junta-se o que
algures, eventualmente, separa-se. Mestiçagens – desejadas ou não – são produzidas. A
antropofágica urbe cristalizada, entre outras frentes, desde o movimento modernista – dando
até nome a revistas –, insiste, avança, coloca-se a misturar e conjugar o seu jeitão ora
retilíneo, ora curvilíneo, ora ortogonal, ora sinuoso, ora sobre um planalto, ora sobre colinas
de onde despontam extremas riqueza e pobreza. Polimorfa, contraditória e plural que é e
reinventada diuturnamente, São Paulo tem, aos olhos do autor, exuberância barroca.
Em dias (mais) cheios dos balangandãs, de samba na praça, “tem que negociar com o
skatista, porque aquele espaço é dele”. “Agora mesmo, a gente está aqui e os caras estão
pulando... A gente tem que falar: dá um tempo pra gente poder fazer o nosso trabalho e tal”.
Geralmente, afirma Ivam Cabral, tudo isso se faz “com muita amabilidade (...) porque (...) as
pessoas perceberam que esse espaço é multiuso, ele tem muitas funções”.
E é genial, porque a Lei... por exemplo... eu posso fazer uma roda de violão aqui,
pela Lei, e a Polícia não pode me tirar... Isso é genial! Porque as pessoas vão
percebendo como que elas podem se apropriar da cidade dentro da Lei! Então, nos
últimos tempos, tem aparecido muito isso: roda de violão, pessoas que vêm com
música... grupos, inclusive, que vêm tocar, ou cantar, ou dançar na Praça às 3h da
manhã! E a Polícia não pode tirar eles dali!
A Praça é povoada e, obviamente, vai causar grandes transtornos, né? Porque eu
acho que o morador comum quer que o mundo seja moldado à experiência dele, ou
seja, “eu quero dormir, eu quero ter tranquilidade...” e imaginar que ele não vive em
São Paulo, que é uma das maiores metrópoles do mundo. Então, ele faz de conta que
está numa cidade do interior de Minas Gerais, ele não assume de verdade a realidade
dele, que é estar nesse lugar efervescente, que... imagina... TODO cheio de concreto!
Você olha pra Praça Roosevelt e você só vê concreto!
Nós não podemos ter, aqui, a mesma linha de discussão pra uma cidade do interior
de Minas Gerais. Nós não podemos pensar que, às 22h, vai ter silêncio na Praça
Roosevelt e as pessoas vão dormir! Você está na ágora de uma das maiores cidades
do mundo, a maior da América Latina, eu acho... e que tem particularidades que têm
que ser defendidas.
Para Luis R. Barbieri, o grande desafio é como “tratar a acústica da Praça”. A “praça é
um caldeirão acústico, porque ela é fechada por todos os lados por prédios e o som sobe. Aqui
tem um paredão! Então, ela é um lugar propício pro som reverberar”. Uma alternativa,
defende Ivam Cabral, tal como no bairro da Lapa, no Rio de Janeiro, é assumir a vocação
68
boêmia do espaço isentando moradores do IPTU para que invistam em janelas antirruído. De
todo modo, coloca o morador Luis R. Barbieri, “tem que se aprender a conviver”. “Faz parte
da Praça (...) do (...) é positivo da Praça, (...) ter uma vida “dioturnamente”:
você tem a coisa do skate, que é um esporte na Praça, que é um movimento saudável
na Praça, e você tem a coisa do teatro e dos bares, que também é um movimento
alegre, que traz gente, que faz com que as pessoas frequentem a Praça. Acho que a
gente tem que ter um amadurecimento desse convívio, né?
A Vida no Centro é uma produção de março de 2018, idealizada por Clayton Melo e
Denize Baccocina, cujo objetivo, como a própria sinopse do material divulgada no Youtube
explica, é mostrar o estilo de vida daqueles que tem o centro paulistano como endereço. A
obra, ao mesmo tempo, acaba se propondo a colocar em evidencia o que o centro da cidade de
São Paulo tem de melhor: “as pessoas e como elas aproveitam as inúmeras oportunidades de
cultura, lazer e convivência do Centro”. Entre os entrevistados estão Débora Suconic
(acupunturista), Celso Fonseca (jornalista), Ivam Cabral (ator e dramaturgo) e Lorena Garrido
(atriz e advogada). A seleção deste material se dá pelo fato de abranger depoimentos de
moradores da região da Praça Roosevelt e pela sua atualidade.
A websérie é iniciada com uma vista do alto da cidade de São Paulo, que possibilita a
identificação de alguns pontos emblemáticos da paisagem paulistana como é o caso da
Avenida Consolação, do edifício Copan à beira da Avenida Ipiranga, das antenas iluminadas
da Avenida Paulista e do mural A cidade é nossa, concebido pela artista Rita Wainer em
parceria com o Acadêmicos do Baixo Augusta, em 2017. Enquanto a imagem mostra a
passagem do entardecer para o anoitecer, desponta o primeiro testemunho, que é do ator e
dramaturgo Ivam Cabral. Em sua fala, torna-se evidente que o personagem é íntimo da cidade
quando diz “eu caminho por todos os lugares”. E estes lugares não são apenas os mais óbvios,
mas também aqueles considerados pelo entrevistado como “improváveis”; sendo que “nunca,
nunca” se sentira “ameaçado” de nenhum modo. É interessante atentar para o fato de que
quando Ivam Cabral diz passar por lugares improváveis, a imagem encontra-se em transição
do enquadramento amplo da cidade para uma cena dele atravessando a Praça Roosevelt, de
noite, na companhia de seu cachorro; e a sensação de segurança é ratificada pelo posto
policial apresentado atrás do personagem, enquanto desce a escadaria da Praça, na direção da
Rua Martinho Prado.
69
Figura 43: Sequência de imagens de abertura da websérie com Ivam Cabral e textos correspondentes
“E eu nunca sofri...”
Figura 45: Sequência de imagens e texto de apresentação de Celso Fonseca – destaque para o apartamento
“O centro,...”
Figura 46: Sequência de imagens e texto de apresentação enaltecendo a mobilidade graças à proximidade de
estações de metrô no Centro de São Paulo
A atriz e advogada Lorena Garrido partilha que, via de regra, seu trânsito pela cidade
de São Paulo se dá mais do teatro para a sua casa e alguns programas de lazer. Nota-se, mais
uma vez, a força da profissão na narrativa desta personagem. O espaço aberto à websérie e ao
espectador é a coxia, são os bastidores do espetáculo. Ou, ainda, o próprio palco do teatro
apropriando-se, neste caso, da cena de uma peça e de uma passagem de texto interpretada por
Edu Chaves convidando ao riso. E este momento da produção é justamente encerrado com
risos da depoente Lorena.
Risos
Em off, Lorena destaca o gosto por andar “sem compromisso” pela cidade e destaca
suas preferências de lugares, como o Viaduto do Chá, o Largo Paissandú, o “miolão” mesmo,
como destaca. Nesta incursão, se deixa seduzir pela arquitetura de alguns prédios: “fico
bestificada às vezes com aqueles prédios”.
76
Figura 51: Gosto por andar no miolão e pela arquitetura dos prédios
Já o jornalista Celso, enquanto passeia com seu cachorro, fala em off de seu fetiche por
morar na São Luis, bem como de seu entusiasmo com relação à ideia dos “apartamentos
grandes”, com “pé direito alto”. Como acertado por um golpe de sorte, afirma que o
apartamento em que mora frutifica do acaso: “a gente bateu aqui por acaso, e o zelador falou
que tinha um pra vender”.
77
A acupunturista Débora Suconic, mais uma vez, ressalta a mobilidade. Afirma que
morar no centro torna-se interessante na medida em que, de qualquer lugar, você consegue
uma condução, exemplifica, para a Praça da República. É uma despreocupação a questão do
transporte, porque “tem ônibus pro centro”.
78
Ivam Cabral recorre à memória ao afirmar que centro paulistano o faz se lembrar da
“cidade pequenina” em que nasceu, no interior de São Paulo (Figura 54) e essa lembrança
atina enquanto as imagens da websérie mostram este personagem, de noite, na praça, jogando
79
bola ao alto para o seu fiel labrador. Para Lorena, o centro representa segurança, o que, para
ela, é sinônimo de bem-estar (Figura 55).
Celso, afirma que recorrentemente é feita uma confusão entre bandido e pobreza, o
que descortina, no seu modo de ver, o preconceito. Este borramento de linhas coloca, não é
algo caro apenas do Centro, mas característica de São Paulo como um todo. Com este
exemplo de quiproquó citadino, muito embora sua fala tenha sido uma crítica potente, as
imagens mostradas são alienantes no sentido de não irem ao encontro de sua colocação.
Mostra-se o depoente em um cruzamento de São Paulo enquanto passeia com seu cachorro e
aparece a vista aérea de uma fração do centro da cidade.
80
Moradores como Ivam Cabral, estão há tanto tempo no centro que, muito antes de
virar moda, alfineta, o Minhocão já integrava sua incursão pela cidade.
Anunciando o “calor cultural” (MORIN, 2011) do centro de São Paulo, Celso enumera
e sugere alguns programas pela cidade, associando, neste ponto, qualidade de vida,
urbanidade e o centro paulistano.
82
“dentro de um contexto...”
83
Ivam Cabral, por fim, destaca a happy hour, no centro de São Paulo, para aqueles que
deixam os seus trabalhos e entregam-se a molhar a palavra tomando a sua cerveja e a
participar de uma roda de samba.
Fechando a websérie, Débora Suconic, diz que o centro tem charme para aqueles que
não são de lá. Enquanto isso, imagens de uma tarde de sol e de garoa é mostrada, tendo a
Praça Roosevelt como cenário e destacando, ao fim, o topo da igreja Nossa Senhora da
Consolação e o painel entregue pelo Acadêmicos do Baixo Augusta, no Carnaval de 2018,
intitulado É proibido proibir, é uma obra dos artistas Carlos Delfino, Ciro Cozzolino e Zé
84
Carratu e faz alusão aos cinquenta anos de Maio de 1968, retratado na música de Caetano
Veloso.
Figura 60: “Há um charme para quem não é do centro” (Débora Suconic)
que implicam “conversões que ocorreram ao longo do percurso criador, de uma linguagem
para outra: percepção visual se transformando em palavras; ou palavras surgindo como
diagramas, para depois voltarem a ser palavras por exemplo” (p. 118). No caso dos corpora,
palavras vertem fotogramas, elementos visuais assumem planos, ideias tomam forma de
movimentos, efeitos, cortes, enquadramentos e a paisagens – textuais, imagéticas e sonoras –
se fazem dizer ou se desdizem em meio a diálogos, ruídos e trilha sonora. Tais movimentos, a
um só tempo, tradutórios e criadores, sem nada de espontâneo, escancaram uma complexa
tessitura de inferências implicada.
Pinheiro (2016, p. 26), entendendo a cultura como algo vivo, chama a atenção aos
interstícios “das inúmeras camadas relacionais” capazes de romper fronteiras que separam
obras umas das outras. Muito embora fale do jornal, a perspectiva do autor pode ser trazida à
análise de produções audiovisuais, dado o fato de ambos – reconhecidos como produtos
culturais midiáticos – encontrarem-se constituídos pela e para uma cultura marcada por
“camadas em palimpsestos de alteridades” (p. 27), como as exploradas nos tópicos anteriores,
cristalizadas – por exemplo – pelas vozes e posicionamento dos depoentes e da própria
estrutura espacial em que questão, a Roosevelt. Para Pinheiro (2016, p. 27), encontra-se em
aberto “um caminho para os estudos relacionais das linguagens e formas mestiças de cultura e
dos processos criativos na arte e na comunicação”. E o autor complementa ao afirmar que a
noção de processo se constitui por meio de “ligações membranosas e miniaturiais que fazem
os códigos, antes distantes e inimigos, se aproximarem, se tocarem, se traduzirem e se entre-
espelharem” (p. 27). Esta proposição de aproximação revela o cuidado sugerido pelo autor
quando se pretende conjugar perspectivamente os “bordados de mestiçagem tradutória” (p.
27). Em meio às misturas textuais encontram-se relações “entre o extensivo e a compactação
intensiva, por meio de nós e nexos sintático-construtivos, destinados a impelir, pela prática
material dos objetos, que a teoria recaia em afirmações vagas, vazias ou generalizantes” (p.
27).
Nesta direção, experimentando estados de vulnerabilidade em maior ou menor grau, a
multiplicidade acaba por amalgamar, em meio a alteridades diversas e variantes, um
“pensamento de inclusão interagente dos múltiplos fatores construtivos” (PINHEIRO, 2016).
Deste modo, um texto transita entre outros textos, enxertando-se uns dos outros, de modo que
– em variadas gradações e graus de interatividade – um texto acaba dentro de outro texto,
sejam estes textos da ordem que for: “literários, artísticos, culturais e comunicacionais” (p.
28). Para tangenciar, faz-se oportuna a partilha dos excertos a seguir:
86
Olhar a coisa com a palavra, como se se permutassem palavra e coisa, para que a
palavra não esteja suspensa no ar nem a coisa seja nua: conciliá-las, confundi-las
fraternalmente.
[...]
Quais são os temas que conduzem à colisão entre o verso e a coisa? Antes de tudo a
peregrinação, o nascimento junto do verso e da coisa
(TINIANOV apud PINHEIRO, 2016, p. 31).
Neste ponto, Martín-Barbero (2009) volta-se à cultura de massa e como esta, via de
regra, amalgama estreiteza e contradição em sua trama; assim como a ideia de indústria
cultural é infligida por maniqueísmos. Mas para além de binarismo – é isso ou é aquilo –, o
autor volta-se a Hoggart, que em sua obra The uses of literacy, aproxima-se de Gramsci e do
alemão Benjamin. Neste trabalho, Hoggart problematiza como a cultura de massa lança mão
da cotidianidade popular e de que maneira a experiência operária percebe a cultura de massa.
A vida cotidiana da classe operária inglesa é o mote do primeiro capítulo da obra e, nele, o
mundo vivo da experiência popular recebem especial atenção. Etnografia e fenemologia, de
mãos dadas, é a operação metodológica adotada por Hoggart para se embrenhar na cultura,
que não se dá fora das condições materiais de sua existência. Martín-Barbero (2009), ao
recorrer a esta gama de autores, esforça-se em colocar por terra perspectivas de
homogeneidade e coerência excessivas nas práticas populares responsáveis pela concepção da
ideia de um universo social bipartido – ‘eles e nós’. A indústria cultural inscreve-se e
transforma a experiência popular.
Para pensar a complexa dinâmica cultural na atualidade, Martín-Barbero (2009)
aproxima-se e dialoga com Williams, acadêmico que traslada o conceito de hegemonia de
Gramsci para a teoria cultural. Este deslocamento conceitual retira a cultura de um âmbito
ideológico de reprodução e a coloca como fomentadora de transformações sociais e reconhece
seu caráter processual constitutivo. Metodologicamente, Williams propõe que a formação
cultural é constituída a partir de três estratos: o arcaico, o residual e o emergente. No arcaico
encontra-se tudo aquilo que sobrevive ao passado, tudo aquilo que é rememorado. O residual,
por seu turno, muito embora seja forjado pelo passado, encontra-se no presente e, imbricado
ao processo cultural, torna-se
camada pivô, (...) a chave do paradigma, já que o residual não é uniforme, mas
comporta dois tipos de elementos: os que já foram plenamente incorporados à
cultura dominante ou recuperados por ela, e os que constituem uma reserva de
oposição, a impugnação aos dominantes, os que representam alternativas”
(MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 118).
89
utensílios para sua família, ao mesmo tempo em que liberam a criatividade castrada pela
divisão e pelo trabalho em cadeia” (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 121-122). O paradigma
desta lógica, para Certeau, está na cultura popular. “A cultura a que se refere Certeau é a
impura e conflitiva cultura popular urbana (...) Cultura popular fala então não de algo
estranho, mas de um resto e um estilo” (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 122). Aqui resto
espreita saberes marginalizados que carregam e convertem a cotidianidade em gesto criador
(mudo?) e coletivo. Já estilo tem a ver como jeitos: “modo de caminhar pela cidade, habitar a
casa, de ver televisão, um estilo de intercâmbio social, de interatividade técnica e resistência
moral” (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 122). “As táticas do consumo, engenhosidades do
fraco para tirar partido do forte, vão desembocar em uma politização das práticas cotidianas”
(CERTEAU, 2014, p. 44).
Quando neste trabalho colocam-se lentes na cultura popular urbana, emerge a
percepção de que a cada quina, a cada curva, a cada investida, a cada depoimento, a cada
camada palimpséstica é possível se deparar com a transformação da história da cidade pela
sua fruição, pelo seu uso, pelo seu consumo. A cidade, enquanto organismo vivo, é capaz de
dar pistas acerca do que pensa seus atores sociais, quais são suas escolhas, quais são suas
inclinações e prazeres, o que desejam ou mesmo desprezam (FERRRARA, 1988). E este
processo, que se dá de modo relacional, posto a vista pelos documentários, sugerem
contaminações entre séries vizinhas de que fala Lotman (1996), evidenciando a complexidade
implicada.
Neste ponto, é interessante recorrer a Martín-Barbero (2004), quando baseado na obra
La globalización imaginada, de Canclini, mostra como a
Procurando as narrativas dos outros – “o olhar dos outros” –, esta cartografia se depara
com roteiros atravessados por rotas, derrotas, encruzilhadas e trajetos múltiplos, como
sugeridos por Martín-Barbero (2004). Nesta cartografia, é preciso, veja bem, empenho para
92
carregar nas tintas de uma reivindicação pela reversão da tendência à privatização (dos
espaços públicos, de uma praça, no caso deste texto). Nesta cartografia, o objetivo do mapa
não deve ser o de fuga, tampouco deve ser para a ação de seguir os outros; mas deve ser a
busca por um espaço, por brechas, para se fazer novos questionamentos que sejam capazes de
colocar em observação aquilo que se move debaixo de pés. Para além de binarismos de
plantão, reside aí a oportunidade de enfatizar que todos são sujeitos-cidadãos constituídos e
constituintes na/pela trama cultural (MARTÍN-BARBERO, 2004).
93
Lá pelo final dos anos 1970 e ao longo dos anos 1980, recordo, havia uma disputa
pífia (aos meus olhos) na escola estadual em que estudava: quem fosse o melhor aluno teria o
(duvidoso, cutuco) privilégio de hastear a bandeira brasileira enquanto seus coleguinhas,
enfileirados, com mão ao peito, cantarolavam desafinados que só e com tropicões na letra o
Hino Nacional Brasileiro. Era só depois disso, ainda devidamente enfileirados e ordeiros, que
íamos para a sala de aula. E, trinta e tantos anos depois, lá estava eu presenciando um
auditório inteiro levantado, boa parte com a mão ao coração, de frente à bandeira e de frente
para uma tela na qual um DVD rodava com imagens de paisagens brasileiras e a letra
(garrafal) do hino, representando estratégia para não deixar margem a qualquer pobrezinho
erro e eventual vexame. Ai de quem escorregasse (parecia estar nas entrelinhas da situação).
Reparar ao redor não provocava menos angústia. Pompas davam pistas de uma formalidade
rococó, datada e brega. O arranjo de flores brancas e vermelhas boiando sobre uma mesa
coberta por uma toalha branca ao lado direito do palco era a prova de um mungunzá fora do
ponto e danado de azedo. Em busca de fios discursivos sobre a Praça Roosevelt, cheguei à
Rua Nestor Pestana, a um dos andares da ACM (Associação Cristã de Moços), para uma
reunião realizada por um Conselho da região. Fui convidada gentilmente pelo capitão da
Guarda Civil Metropolitana (GCM), conhecido dias antes. E a intenção neste capítulo é
partilhar – de modo ora descritivo e ora interpretativo – as impressões advindas deste campo,
bem como apresentar as conversas tidas com os moradores conhecidos durante este evento e
que, posteriormente, dispuseram de seu tempo nos dias 11 e 18 de abril de 2018. Deste modo,
94
Pouco antes do momento do hino, foram dadas as boas-vindas aos presentes e a mesa
com as autoridades (formal e devidamente?!) apresentadas ao público pelo presidente da
reunião, também morador. Entre as autoridades presentes, integravam a mesa o representante
da Delegacia do 4º Distrito policial, o delegado titular; o tenente da 1º Companhia; o Inspetor
da GCM e o comandante da inspetoria da Consolação; o colaborador da inspetoria da Av.
Paulista; o representante da prefeitura regional para assuntos de zeladoria; e o representante
da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET). A mesa composta por estas autoridades e os
grandes prismas reforçando seus nomes e cargos conferiam, nas entrelinhas, ares de uma
trincheira, na qual de um lado estavam as vozes institucionalizadas e, de outro, os sujeitos
ordinários, condescendentes ou não... Assimetria de vozes.
A abertura do evento também reservara espaço à apresentação dos novos
empreendedores do bairro para que as boas-vindas fossem dadas aos mesmos. Parafraseando
o presidente da mesa, para toda pessoa nova que chega à região tem de se abrir os braços,
principalmente por aquele conselho, já que o mesmo procura atrair toda a comunidade. O
primeiro a ser apresentado foi o diretor titular da Escola Estadual Caetano de Campos11.
Postando-se de pé, recebeu um cálido aplauso e o convite para falar brevemente sobre sua
recém-chegada à direção do colégio. Há 20 dias no cargo, empossado, portanto, desde 7 de
fevereiro, o jovem anuncia que havia feito concurso em 2017 e sua titularidade publicada em
dezembro daquele ano. Para o diretor, a Caetano de Campos é uma escola das mais
tradicionais da cidade, mas que tem passado por um processo de degradação estrutural, sendo
necessário – convoca – o empenho do poder público, dos gestores públicos para que esta
11
A tradicional Escola Caetano de Campos nasce em 1856, batizada como Escola Normal. Na atualidade, isto é,
mais de 170 anos depois de sua fundação, a Caetano de Campos divide-se em dois campi, um na Praça da
República e outro na Praça Roosevelt. No livro Caetano de Campos, a escola que mudou o Brasil, lançado em
2016, por uma arquiteta e ex-aluna do colégio, Patrícia Golombek, conta-se como uma escola pública
brasileira, que formara personalidades como Lygia Fagundes Telles, Oswald de Andrade, Mário de Andrade,
Cecília Meireles e Sérgio Buarque de Holanda, encontra o princípio de sua decadência em 1975, alegando ser
aquele espaço elitista por demais. Disponível em: http://portal.aprendiz.uol.com.br/2016/03/05/livro-conta-
historia-de-170-anos-da-caetano-de-campos-escola-que-era-praca/. Acesso em: out. 2018.
95
situação seja revertida. E dá um tom de ultimato à sua fala no sentido de dizer que ou a escola
volta a ser padrão, tida como referência, ou a mesma deve ser fechada, visto que a
comunidade não precisa ter mais um problema. Portanto, é preciso colocar em ordem algumas
coisas na comunidade. Brada avidamente que, em 20 dias de gestão, providências foram
tomadas de imediato. Primeiramente, o jantar dos alunos do período noturno passou das
18h30 para 20h30. Ou seja, se antes a refeição era oferecida antes da aula, agora, passa a ser
no intervalo das aulas, momento em que efetivamente apenas quem é aluno está dentro da
instituição. A ideia do diretor é afastar a entrada no prédio de “um monte de pessoas” que não
são parte da comunidade escolar e que, como aponta ter descoberto, iam à instituição para
pegar a marmita e vender fora depois: “Pegavam da merenda pública e revendiam”. Outra
determinação foi a fixação da chamada dos alunos às 22h para que, como uma escola regular
que é, o aluno tenha hora para entrar e para sair. Antes disso, afirma, parecia “casa da mãe
Joana”. Na véspera da reunião daquela reunião com o conselho, afirma ter feito uma limpeza
na chamada, tirando nomes da lista de modo que em algumas salas sobraram apenas cinco
alunos. O próximo passo, diz firmemente, é encaminhar tais apontamentos à Coordenação de
Educação Básica para compatibilizar os espaços, porque, para ele, trata-se de improbidade
manter nome de pessoas fantasmas dentro de uma lista de chamada. E especula se não é o
caso de alguns fazerem matrícula apenas para ter o cadastro no Bilhete Único e que não
pactuaria com este tipo de situação. Outra iniciativa do recém-chegado diretor é a volta da
Ronda Escolar que, ao seu ver, tem de estar dentro da escola, visto que a polícia militar (PM)
deve ser considerada parceira da escola e não inimiga do aluno. É a polícia quem confere
segurança, porque, afinal de contas, provoca, quando se tem um problema, não é para o chefe
da biqueira que as pessoas ligam, é para a polícia militar. E, celebra, tem contado com dois
soldados muito competentes e com amplo acesso à escola. O diretor diz ter se deparado com
verbas importantes frente à escola e que é importante usar bem os recursos públicos a partir
de uma ordem daquilo que é considerado prioritário. Ao todo, tem em mão R$55 mil reais,
sendo R$49 mil para a manutenção do prédio e R$6 mil que, não sendo usado pela gestão
anterior (sabe-se lá porque, cutuca o recém chegado), foram reprogramados para este período
letivo. Questiona-se como, até hoje, a escola não tem iluminação externa e como se amontoou
um bambuzal em frente à instituição que é mais um esconderijo de gente. Em reunião com a
Associação de Pais e Mestres e a PM, sendo esta última uma instituição que manda dinheiro
para a escola, foi definido que serão instaladas câmeras de segurança em 23 pontos
estratégicos, dentro e fora do prédio. “Então esses lugares que eram filmados por moradores
dos nossos condomínios vizinhos, onde alunos praticavam atos obscenos, alunos fazendo uso
96
de tabaco e outras substâncias que não podemos afirmar o que é porque não somos peritos.
Então esses espaços estratégicos serão monitorados por câmeras que ficará sempre à
disposição da autoridade policial”. Deste modo, se algum vizinho decidir fazer alguma
denúncia, a imagem será prontamente disponibilizada pela escola. Além das câmeras, a
promessa é a instalação de uma iluminação de cima para baixo para dar visibilidade ao prédio
tombado pelo patrimônio. Refletores também devem ser instalados para acabar com áreas
escuras e facilitar a observação do trânsito de pessoas. A ideia, conta, é não facilitar “a
presença de meliantes ou de pessoas que queiram fazer mal a alguém”. Em termos estruturais,
ainda, a arquiteta responsável pela reforma já fora contatada para que o atendimento da
comunidade escolar não seja mais “deprimente” e a secretaria volte para dentro da escola.
Deste modo, a parte que fica entre os muros do condomínio e do estacionamento voltará a ser
um espaço pedagógico: “o importante é que eu não quero mais ver cadeiras nos telhados dos
prédios vizinhos, isso eu não posso admitir”. O diretor diz também não admitir mais ter um
espaço escolar chamado de “canto (...) [inaudível]”. Para isso, passou de sala em sala
rememorando aos estudantes a existência de uma lei do fumo e, depois do aviso, alunos pegos
são autuados e recebem medidas socioeducativas previstas no Estatuto da Criança e do
Adolescente. Gestores públicos devem aplicar as devidas penalidades ou medidas
socioeducativas que devem ser aplicadas. O diretor afirma estar aberto a críticas e a sugestões
e pede, aos presentes, parceria para transformar essa escola da comunidade. Tem de lidar pela
frente com demandas que, segundo ele, foram abraçadas pela gestão anterior sem que
houvesse estrutura espacial e de corpo profissional para tal. Entre as demandas, estão os
alunos recebidos por motivo de migração, estudantes transexuais e dependentes químicos. Em
busca de parcerias para dar conta de tais exigências, o diretor afirma que o poder público deve
ocupar o espaço que é público. Afirma que aquele lugar não é zona e não é pardieiro, mas sim
uma escola pública regular. E convoca, falando na primeira pessoa do plural, que ou se faz
daquele espaço um ambiente público ou, caso contrário, perderá seu sentido. Questionado por
estudantes sobre o que faria caso um aluno invadisse a escola porque ele não deixou entrar,
revela aos presentes, em tom grave, que sua reação seria chamar a polícia. E, questionando o
estudante que o interpelara, provoca com muitas interrogações. Por que não se invade a base
da polícia militar? Por que não se invade o fórum ao lado? Por que então a escola seria
invadida? Todos são departamentos públicos, defende. Para defender a escola, partilha que
precisa de muita coragem, boa vontade e muito trabalho. Sua jornada na instituição,
escancara, é de 14 horas quase todos os dias. Entrando às 7h e saindo às 23h, não pretende
colocar-se como Deus, mas como alguém que anseia colocar tudo no eixo, em ordem. Com tal
97
dedicação, acredita que aqueles que não pertencem à comunidade escolar, como os
responsáveis pelo comércio ilícito, vão tomar distância aos poucos. Para isso, conta com a
ajuda de todos.
Enquanto os aplausos acalorados constituíam uma paisagem sonora, o pensamento ia
para longe repassando as falas que acabara de ouvir. Bisbilhotando a memória, escancara-se o
quão negligenciado encontra-se o aspecto didático nesta fala. O que em termos
metodológicos, afinal de contas, poderia ser feito para converter a escola em um espaço
efetivamente acolhedor, agradável e contributivo para a formação e transformação dos
sujeitos? O não dito, neste caso, escancara uma hierarquia valorativa na qual a questão
educacional, a alma de uma escola, é relegada ao fim da fila. O pensamento voltou ao
presente com a fala do presidente da mesa afirmando que o diretor precisaria muito da ajuda e
do apoio de todos, pois, quando começasse a mexer com certas pessoas, essas pessoas iriam
mexer com ele. Então, aqueles presentes com um pouco de dignidade, força e coragem
deveriam dar apoio à iniciativa daquele cidadão, que tem a missão de tirar o Brasil da
ignorância que tem levado a lugares não imaginados por ela quando chegara ali há vinte anos.
A reunião prosseguiu com a apresentação de membros da mesa que chegaram
atrasados e com o agradecimento pela presença de outras pessoas da plateia. Entre os recém-
chegados, estavam o representante do conselho participativo, o presidente do conselho dos
Jardins, a assessora parlamentar de um deputado estadual e o major do corpo de bombeiros do
estado de São Paulo.
Muito embora vários assuntos tenham sido trazidos à tona durante a reunião, recebem
destaque aqui aqueles que dizem respeito à Praça Roosevelt, o seu entorno e os embates daí
advindos. Neste sentido, toma centro o Carnaval de rua, em especial o Bloco Acadêmicos do
Baixo Augusta (Figura 61), cuja história encontra-se entrelaçada ao processo de retomada do
carnaval de rua da cidade de São Paulo. O Bloco – gerido por uma ONG sem fins lucrativos, a
Associação Cultural Bloco Acadêmicos do Baixo Augusta – tem em sua essência o ativismo.
Esta postura ativista volta-se à luta pelo direito à cidade e à ocupação cultural das ruas: o
desfile de 2018, afirma o bloco, reuniu mais de 1 milhão de pessoas. E, já como uma espécie
de tradição, ao final dos últimos desfiles, painéis de arte urbana são entregues à cidade, em
uma tentativa de perdurar por mais tempo a luta da ONG. Entre os painéis, estão “A Cidade É
Nossa”, de Rita Wainer (Figura 62) e “É Proibido Proibir”, do coletivo Os Tupys12 (Figura 63).
12
Disponível em: https://www.facebook.com/pg/academicosdobaixoaugusta/about/?ref=page_internal. Acesso
em: jul. 2018
98
Fonte: #StreetArtSP14
13
Disponível em: facebook.com/academicosdobaixoaugusta/photos/p.10156312089432456/106/?type=theater.
Acesso em: jul. 2018.
14
Disponível em: http://streetartsp.com.br/artista/desconhecido/compartilhado-por-tonyteofilo-em-jun-19-2017/.
99
Fonte: TWGRAM15
15
Disponível em: https://www.twgram.me/media/1791657372240591999_192314336.
16
Disponível em: http://avidanocentro.com.br/o_que_fazer/proibida-de-usar-a-praca-roosevelt-satyrianas-
discute-democratizacao-de-espacos-publicos/. Acesso em: jul. 2018.
17
Disponível em: http://avidanocentro.com.br/cidades/praca-roosevelt-contra-violencia-policial-carnaval/.
Acesso em: jul. 2018.
100
Figura 64: Carta aberta – A Praça Roosevelt pede paz! – e texto publicado ao lado da carta aberta protocolada
na página do Facebook do Coletivo Praça Roosevelt de Todxs
— em Praça Roosevelt.
A queda de braço entre estas frentes também tem como palco a reunião do conselho.
Durante o encontro, o presidente da mesa afirma ter “toda a documentação sobre o carnaval
de rua... especialmente o Bloco Acadêmicos do Baixo Augusta, tudo muito bem
documentadinho” e que o pedido de multa contra o referido bloco já havia sido solicitado à
prefeitura e que ansiava por sua concretização. Neste momento, um morador da região da
Praça Roosevelt lança uma questão aos órgãos presentes (conselhos, corpo de bombeiros,
GCM, prefeitura, CET): “Gostaria de saber qual o protocolo para os tratamentos e construções
que ocupam a Praça Roosevelt em eventos como o Carnaval, pré-carnaval também, uma vez
que bombas de gás chegaram nas casas do moradores?”
101
Em resposta, o presidente da mesa responde não ter recebido nenhuma denúncia sobre
gás na casa dos moradores e que, nestas situações, é importante denunciar para que não se
fique “só no blá blá blá”. Quanto aos caminhões que entraram na praça, esclarece, tinham
autorização para a colocação dos cavaletes. O tenente da polícia militar assume que houve
intervenções no período do evento carnavalesco, sendo a maioria nas intermediações da Praça
Roosevelt, porque a situação foi uma “balburdia”:
Teve um momento em que nós precisávamos esvaziar um pouco para que as pessoas
pudessem diminuir o ruído, houve a necessidade do controle de estudos civis. No
uso desse controle de estudos civis nós utilizamos munição química, que é o gás.
Efetivamente pode ter acessado alguma residência. Como ele tende a ir com o ar,
pode ter desencadeado isso, mas foi utilizado de uma forma segura, não houve
nenhum tipo de pessoa ou usuário da praça que tenha sido ferido ou tenha passado
mal sensibilizado pelo gás. Basicamente foi isso.
O morador argumenta que naquele sábado, como é alérgico e mora de frente para a
praça, acabou indo parar no hospital, na Santa Casa, depois que as bombas foram lançadas. E
insiste, provocativo: “qual é o protocolo para esse tipo de dispersão?” “Como a gente faz?”
“Não existe uma outra forma de se conseguir com que as pessoas dispersem de uma forma
menos violenta?”. “Não sabia como fazer a denúncia da minha situação”, desabafa.
O protocolo, esclarece o Tenente, é uma progressão do uso da força. Primeiro, tenta-se
conversar. Contudo, com “os ânimos acentuados pelo uso de bebidas e entorpecentes”, as
pessoas “não dão ouvidos”. Exaurida a tentativa de diálogo, a tropa é posicionada e mais uma
vez, explica, tenta-se “verbalizar”. Caso não haja sucesso, parte-se para a dispersão. O
Tenente diz: “tivemos que dispersar essa população, essa turma, e a única forma que tínhamos
de fazê-lo era com uso de munição química e aí a pessoa sai do local”.
O Tenente coloca que o morador, dada sua questão de saúde, poderia chegar naquele
momento “em qualquer policial e pedir para que fosse socorrido”. E avança dizendo que “ele
mesmo solicitaria a unidade de resgate pra dar esse suporte, efetivamente até porque (...) [o
senhor] não fazia parte da turma para o efeito colateral” (grifo nosso). Neste ponto, a fala do
policial evidencia a desigualdade, o tratamento diferenciado, de acordo com o lugar de fala de
cada um na sociedade.
Outro morador, incomodado com a colocação que acabara de ouvir e em solidariedade
ao morador que havia se manifestado, provoca: “Também moro em frente à praça e eu não vi
essa tentativa anterior de dispersão, não ouvi nada verbal, inclusive nas noites anteriores
também”. E prossegue:
102
Aí, no fim de semana anterior, com muita gente na praça, não vi nenhuma tentativa
de dispersão. Pelo contrário, o que eu vi foi o seguinte: a polícia ocupando a praça,
deixando a rua como opção das pessoas ficarem, quando devia ser o contrário, a rua
devia ser liberada. Carros que não conseguiam passar tinham que dar ré, e a praça
ocupada por várias viaturas.
E o bate-boca sem fim continua com o Tenente defendendo a iniciativa dadas as 439
denúncias da Praça Roosevelt por perturbação do sossego: “Tudo foi filmado em várias
ocasiões para justamente o ministério público intervir e, tanto assim, o ministério público
abriu inquérito não contra a PM, mas contra os blocos que propiciaram essa situação”. Afirma
que “jamais foi jogada uma bomba na Praça Roosevelt se não depois de no mínimo 100
ligações de perturbação de sossego. Isso está documentando e, lamentavelmente, o Carnaval
dos outros acabou com o descaso do resto” (grifo nosso). E diz que “quando a polícia militar
joga bomba de gás na Praça Roosevelt, precisa assegurar que esta é a última tentativa, porque
o último que eles querem é ter imprensa viva para depois falar que a polícia é truculenta”.
Enquanto preocupa-se em se defender por ter seguido o protocolo, uma inconsistência
aparece: o número de reclamações salta da casa dos 400 para quase mil ocorrências. Além
disso, para o oficial, a perturbação do sossego público não é cara ao período do Carnaval, mas
alastra-se noutros períodos pela Roosevelt, Peixoto Gomide e Augusta. O Tenente afirma
tentar exaurir, ao máximo, tentativas de apaziguamento diante daqueles que perturbam o
sossego público e que o último recurso, como os policiais são orientados, é jogar bomba.
Ainda assim, lamenta, seus oficiais estão respondendo por situações de abuso de autoridade
sem ter um porquê.
Na sequência, um terceiro morador interfere e faz uma defesa da Polícia Militar,
afirmando ter visto em um domingo, às 7h da manhã, na Fernando de Albuquerque, uma
moça partir para agressão física contra um PM. “Os valores estão tão invertidos que o rapaz
da PM não sabia o que fazer. Ele recuou e depois a algemaram, de tão absurda que está a
coisa”. E, enquanto os presentes na reunião se manifestavam na troca de olhares, fico me
perguntando: qual seria o valor “adequado” na situação relatada? Seria o policial agredir a
manifestante?
O Tenente aproveita o momento para trazer à tona que, na Peixoto Gomide, policiais
nunca jogaram bomba. Recorda-se de que, certa vez, foi realizada uma dispersão de mais de
600 pessoas por 7 policiais. Os sete policiais “fizeram toda a dispersão e tiraram 8 camelôs
que tinham carros de dog, 12 camelôs com carrinhos. Eles foram de pessoa em pessoa
pedindo pra se retirarem. Retiraram várias caixas de som” (grifo nosso). Complacente com o
Tenente, o presidente da mesa diz que esta é a alternativa, que às vezes se consegue. E reforça
103
endereço em janeiro de 2017. Trata-se de uma mudança orquestrada por diferentes variáveis
e, dentre as principais, estão o desejo de estar perto de seu namorado, residente em São Paulo,
e a rotina recém-instaurada de poder trabalhar de casa, que culmina com flexibilidade e
mobilidade, tão necessárias para o retorno à cidade. A decisão de morar no centro de São
Paulo surge quando passa a ouvir que “o centro tá muito legal” e que as pessoas estavam
optando por morar no coração da cidade. A primeira opção vista era na São Luiz, mas o
apartamento era “muito barulhento”, “porque lá tem muito ônibus” e barulho de ônibus é algo
que o entrevistado não suporta. No Copan, segunda opção, não encontrou nada legal. E, como
terceira opção, surge o apartamento em que hoje reside. “Não conhecia a Roosevelt, porque
eu tava fora de São Paulo (...) e ela ficou legal desse jeito nos últimos anos, quando eu não
tava morando aqui. E aí, quando eu vi, e a luz que tem, e tal, e depois eu fui vendo, me
apaixonei, assim”. O sujeito 1 afirma que pôde constatar aquilo que as pessoas andavam
dizendo: que a Roosevelt “tava ficando legal”. Conseguiu perceber no dia a dia, participando
de atividades, “que o centro, hoje, é o lugar mais vibrante de São Paulo. E a Roosevelt é o
lugar mais vibrante” do centro. Vibrante pela “diversidade enorme” que apresenta,
principalmente durante a noite: “você na rua aqui à noite, [vê] toda essa discussão de gênero”,
“na prática, em perfeita harmonia, assim, convivência total das pessoas mais diferentes”.
Durante o “dia é tranquilo, mas também tem isso. À noite é muita diversidade. E é muito legal
isso, bem interessante. É muito vibrante”. Cada dia, a praça proporciona algo diferente: “Não
sei que dia que é, mas eu vejo, da janela, (...) tem dia que tem malabarista, tem dia que tem
bastante skate, tem dia que tem ioga, tem aula de ioga também aqui. Dá pra ver que não é
todo dia que tem a mesma coisa”. O sujeito 1 complementa dizendo que às vezes tem grupo
de teatro ensaiando, “aí tem sempre músicos mais sozinhos, assim, tocando, num cantinho ali.
As pessoas fazem uma ocupação, um uso bem legal”. Nesta fala, é possível notar a vibração e
a diversidade contempladas à distância, do alto, da janela, da sacada. E este distanciamento –
eles lá, eu cá – fica elucidado, em certa medida, nas fotos tiradas e partilhadas pelo sujeito 1
como emblemáticas daquele lugar. Na sequência de imagens recebidas (Figura 65), uma
mirada da praça pequenininha, lá embaixo, quase sem gente; e horizontes.
105
Fonte: Sujeito 1
O sujeito 1 alega adorar ver “a praça sendo usada por todo mundo”. Contudo, à noite,
espera que “se faça silêncio” para que haja convivência. Na sua concepção, “as pessoas
podem fazer festa de dia, não sei o quê, mas a gente também quer dormir à noite. Então, a Lei
do Psiu também vale pra gente”. Mal termina sua frase e pondera: “por outro lado, a gente
também não pode querer silêncio absoluto dia e noite, não pode achar que isso aqui tem que
estar vazio, tem que estar com gente, né? É muito legal isso aqui cheio de gente, eu acho
muito legal os skatistas, cachorro”.
A população da praça, observa o sujeito 1, obedece a certos horários. De manhã,
cachorros; no final da tarde, crianças: “Agora nesse horário não tem, mas se você vier de
manhã tem muito cachorro, aí daqui a pouco tem criança (...) pra andar de bicicleta”, talvez,
especula, por causa do sol e porque noutros horários os pais devem estar trabalhando: “Aí
quando os pais saem do trabalho é que podem. Aí, é criança com skate, bicicleta, ou correndo,
assim. É muito legal, é uma praça que tem vários grupos, cada horário é um grupo diferente.
E, de dia, é normalmente bem sossegado, bem tranquilo, bem silencioso”.
Já o sujeito 2 afirma que morar na Martinho Prado, beirando uma das facetas da
Roosevelt, é consequência, primeiramente, do quanto gosta de morar no centro. Ele revela ter
morado praticamente a vida toda no centro, próximo à Paulista – às vezes mais para baixo;
outras, mais para cima – e próximo à Rua Estados Unidos, na região do Jardim Paulista.
Depois de casado, morou por um tempo na Granja Viana, “num esquema tipo chácara” para
poder ter seus filhos, seus cachorros, enfim, “uma vida mais saudável em termos de espaço”.
No Morumbi, permaneceu muito tempo pela proximidade que sua casa tinha da escola de seus
filhos e, também, para evitar o famigerado trânsito paulistano. Além disso, experimentou um
tempo fora do Brasil. Mas, enfatiza, o que gosta mesmo, desde muito jovem, é do coração de
São Paulo:
106
O sujeito 2 confessa ser engenheiro civil, um arquiteto frustrado, que, depois de sua
separação, pegou-se pensando “onde que eu vou morar?” Depois de um déjà vu na região dos
Jardins, chegou ao Copan para “sentir São Paulo na veia” e lá residiu por quase três anos.
Como o apartamento não era exatamente o que queria, porque tem lá “suas críticas ao
Niemeyer”, morou um tempo na Marquês de Itu, mas de olho na Roosevelt: “já gostava da
praça, acompanhei aqui um pouco a reforma, um pouco à distância porque eu não morava
aqui na época da reforma, mas achei legal o que tavam fazendo”. Com o fim da reforma,
entendera que havia chegado o momento de comprar um apartamento na região. Hoje, seu
apartamento com vista para a Roosevelt é, em sua opinião, “o prédio mais bonito da praça,
(...) um marronzinho, tem uma varandinha, tem um apartamento legal de dois dormitórios,
mas enorme, tem 150 metros”. Dessa metragem, o sujeito 2 revela usar no máximo uns 30%
do apartamento, mas que gosta da sensação de ter espaço: “gosto dessa coisa de espaço, e aí
vim morar aqui. E acho maravilhoso, adoro”.
Quando passa a residir à beira da Roosevelt, o sujeito 2 tem a impressão de que:
A praça nova trouxe uma vida muito mais vibrante praquele ambiente. Já não eram
só os dois cinemas, nem tem mais os cinemas. Os cinemas viraram teatro, mas aí já
tinha vindo Parlapatões, já tinha vindo Satyros, tinham vindo todos aqueles
barzinhos que tão lá embaixo, então ela tem um dinamismo de vida que é
maravilhoso, porque ela tá pulsando o tempo inteiro. De manhã você vê o pessoal
acordando com os cachorros, pra sair e passear com o cachorro. Vai chegando a
tarde, começam a chegar os skatistas, então é aquela zoeira de skate, de patins, de
não sei o quê, porque eu até patinei um pouco. (...) E aí, quando passa esse horário,
porque o skate termina às dez horas da noite (eles têm um acordo lá com o pessoal
da polícia), aí fica um pouco o pessoal dos bares, até meia-noite, acho que fizeram
uma estupidez de fechar os bares à meia-noite, porque eu nunca entendi isso aí
direito.
como não há transporte público neste horário – fecha metrô, ônibus –, o que acontece é que
estes jovens ficam na praça “comprando de ambulante, jogando as garrafas no meio da rua,
sujando tudo porque não tem nem cesta de lixo pra dar conta do que eles consomem e
mijando no meio da rua porque não tem banheiro. Não era mais legal deixar os bares
abertos?”
Para o sujeito 2, este é um exemplo de decisão “burra” e partilha que já aconteceu de o
pessoal fazer muito barulho na praça e que, após uma conversa, tudo foi resolvido:
Teve uma vez (...), era umas três horas da manhã, tinha um grupo tocando música,
um garoto tocando violão e um outro, completamente bêbado, músicas do Raul
Seixas... Sei lá, ele gritava histericamente, completamente desafinado (...) No meio
da música, falava palavrão, aí eu desci do meu apartamento, fui lá pra eles e falei
“você pode fazer o favor, eu tô querendo dormir lá em cima, deve ter mais gente
querendo dormir”, ele deu uma resmungada lá, mas pararam. O que tava tocando
violão e a menina que tava junto estavam sóbrios, então encerraram ali a cantoria e
ficou por isso.
gente, mas não tava tendo confusão, nada, as pessoas só tavam na rua”. Não era preciso,
defende, jogar bomba. A PM podia ter falado “gente, vamos liberar a rua, vamos pra praça”,
porque a praça é um lugar de pessoas, né? A rua, enfim, a rua tem que estar liberada pros
carros. É só você ir direcionando, né? Falando “ó, vamos liberar a rua, vamos lá pra praça”.
Isso aconteceu na semana seguinte ao Carnaval, portanto, de acordo com o sujeito 1, não
havia tanta gente e este ato foi um tanto quanto “violento”: “Pra quem tá perto, essa bomba,
sei lá, pode até causar uma intoxicação, é uma coisa que pode ser séria, né? É uma medida
extrema (...) Não era o caso, só tinham pessoas conversando na rua, só isso”.
O sujeito 2 diz tentar se controlar nestas reuniões do Conselho, mas que tem um
“sangue italiano que ferve de vez em quando” e aí ele acaba falando umas. Em um encontro
do conselho, houve uma “mulher que entrou em desespero por causa do Carnaval”. Neste
momento, o sujeito 2 afirma ter dito o seguinte para ela: “olha, minha senhora, eu entendo o
seu desespero, mas sabe o que a senhora devia fazer? Vende o seu apartamento na praça e vai
morar em outro lugar, porque praça central de cidade, ela é assim em São Paulo, no Brasil
inteiro, em qualquer lugar do mundo, porque é onde as coisas acontecem”. O sujeito 2
relembra de uma fazenda de café que teve em Rio Claro, uma cidade localizada no interior de
Minas Gerais. Muito embora tenha vendido a fazenda, continua frequentando a cidade pela
relação afetiva que tem com o lugar. A praça de Rio Claro, quando tem carnaval, é fechada
por inteiro, porque o “carnaval é na praça” e “quem mora na praça ou vai dormir em outro
lugar, ou não dorme”. Para a senhora da reunião do Conselho, recorda ter dito: “se a senhora
não gosta dessa vibração da praça, dessa coisa dinâmica da praça, mora em outro lugar. Tem
Higienópolis aqui do lado, que tem um monte de rua tranquila. Sai da praça e vai morar em
Higienópolis”. Contudo, lamenta, essas pessoas não deixam a praça: “Elas compraram ou
alugaram apartamentos na praça e acham que isso deu o direito a elas de ter um pedaço da
praça. A praça é de quem tá olhando pra praça, não é da cidade, faz parte do condomínio”. “É
complicado”, lamenta enquanto balança a cabeça desacorçoado. “E aí tem as pessoas que são
mais conservadoras nesse sentido”.
Para o sujeito 1, o posicionamento de uma minoria, conservadora, dá pistas de quem
pretende “sequestrar o espaço público”.
Esta minoria, que pensa a Roosevelt como quintal de suas casas, “pretende restringir o
uso público da praça”. E esta minoria, de acordo com o sujeito 1, tem acesso aos espaços
institucionais. “O (...) [Conselho] é dominado por essa visão e existe uma associação de
moradores da Consolação, que não é [de moradores] da Roosevelt, (...) que quer administrar a
praça”. Isso é o que o sujeito 1 denomina como sequestro dos “espaços públicos”, pois estas
pessoas, embora componham uma minoria, têm acesso a “vias institucionais, (...) têm
interlocução com prefeito, com a polícia. E conseguiram, já no ano passado, proibir qualquer
evento público na praça”.
Por trás do fechamento da praça, das iniciativas de tomar o espaço público para si,
encontra-se uma realidade áspera: o preconceito social. O sujeito 1 afirma não ser raro, entre
as justificativas para o fechamento da praça, colocações como “mas o cara vem da periferia”,
“o cara é da periferia”. Neste ponto, ancora-se em uma passagem do documentário
Arquiteturas: Praça Roosevelt: “O vídeo não é enviesado (...) tem os dois lados”. E, em uma
parte, traz claramente o preconceito na fala de uma entrevistada, quando diz: “ah, a pessoa
vem, nem sei de onde, não mora aqui, vem lá da periferia”. Ao fazer uma afirmação como
esta, esquece-se o fato de a Roosevelt ser uma área pública, coloca o sujeito 1. Para o sujeito
1, “o preconceito é porque o cara vem da periferia, é porque o cara é pobre”.
O sujeito 2, indignado, relembra que esta pequena parcela “quer cercar a praça, quer
colocar grade. Colocar grade... É uma coisa maluca, eu não sei o que têm na cabeça, elas são
loucas. Porque é isso... na verdade, elas querem colocar grade pra elas terem a chave”.
Recordando-se de quando mudou para a Martinho Prado, diz que, “ingênuo” e na ânsia de
querer se envolver e contribuir para os assuntos do entorno, acabou entrando para um grupo
no WhatsApp, mas logo percebeu encontrar-se em meio a um “grupo super reaça”. Decidiu
parar de opinar, passou a observar mais o conteúdo das mensagens e, muito de vez em
quando, colocava alguma pergunta aos integrantes. Sobre a ideia de fechamento da praça, por
exemplo, expressou no grupo:
Olha, fechar a praça com grade, a gente tem que considerar que vai desvalorizar os
nossos imóveis, porque vai ficar muito feia a praça, e vai perder justamente essa
coisa aqui, essa valorização que teve depois que reformaram a praça e trouxe essa
vida pra cá (...) Vai voltar a ser como era antes, uma coisa meio soturna, obscura. É
isso que vocês querem mesmo?
110
Tinha uma moça que ficou aqui um tempo e (...) ela acabou ficando bem agressiva,
até chamaram a polícia já duas vezes. Agora faz tempo que eu não vejo ela aí. Mas,
no começo, ela não era agressiva. A única coisa que eu achava engraçado, que me
chamava a atenção era assim: ela dormia na calçada – normalmente eles dormem
no canto, aqui na calçada paralela à rua –, ela dormia perpendicular, tipo
atrapalhando totalmente o caminhar das pessoas na calçada; um pouco isso: ‘eu
quero ser vista, eu quero ser notada, eu não vou ficar aqui no cantinho pra você não
me ver, não. Eu vou deitar na perpendicular, então você vai ter que ou circundar o
meu corpo, ou você vai ter que pular por cima de mim, senão você não passa’.
A moça do corpo perpendicular à calçada é feito a mosca de Raul Seixas, que pousa na
sopa da gente. Mosca que deu ares para abusar, perturbar o sono de quem quer que seja, que
não para de zumbinar. Trata-se de uma mosca que não adianta tentar dedetizar, porque nem
111
assim será exterminada. Quem sabe sua presença, feito água mole na pedra dura, algo faça
mudar (e para melhor!). Seu corpo já não é mais corpo, seu corpo é protesto. E você não é
apenas você. E você não está só. São muitas moscas: A mosca-morador-em-situação-de-rua, a
mosca-skatista, a mosca-haitiana, moscas-imigrantes-em-geral, a mosca-Carnavalesca, a
mosca-jovem, a mosca-juventude-periférica; a mosca-caminhando-contra-o-vento; a mosca-
sem-lenço-nem-documento, a mosca-beijos-de-amor, a mosca-alegria-e-preguiça, as moscas-
cheias-de-amores. Moscas-porque-não?
Urbe, como defendido noutros cantos neste texto, refere-se à fruição da cidade pelos
atores sociais que por ela perfilam (DELGADO, 2007). Implica dinâmicas de ocupação,
espreita processos de apropriação; expressa modos de certos grupos sociais de produzir e
reproduzir palcos citadinos (MARTINS, 2012). E isto não é novo. Lá pelos idos dos anos
1950, na obra de Elias e Scotson (2000) intitulada Estabelecidos e outsiders: sociologia das
relações de poder a partir de uma pequena comunidade, o cotidiano de um povoado
industrial da Inglaterra, Winston Parva (nome fictício), constitui-se arena na qual os autores
concebem os conceitos para expressar aqueles que ocupam posição de prestígio e poder
(establishment e established) e aqueles que são considerados os não-membros de uma dada
sociedade (outsiders). Neiburg (2000), no prefácio da edição brasileira, preocupa-se em
deixar claro que:
praticado, como coloca Delgado (2007). Este corpo-protesto-arte – ainda que temporariamente
estatelado na transversal da calçada – mostra como lugar e não lugar não são termos
dicotômicos, mas que coexistem, em uma relação que se dá a partir de continuidades e de
fragmentações (DELGADO, 2007). Para o autor, Marc Augé se equivoca quando concebe o
não lugar “como um lugar de passagem e não como uma passagem de um lugar” (p. 69).
Avançando, Delgado (2007) propõe que o “não lugar não é um lugar atravessado, mas a
travessia que desmente o lugar, posto que é um mero intersectar, topografia móvel
[(outsiders)] que se limita a transpassar outras topografias estáveis [(estabelecidos)]” (idem).
115
Este capítulo objetiva refletir sobre a produção de sentido emanada por certas esferas
constitutivas do objeto de estudo em questão, a Praça Franklin Roosevelt, localizada no
coração de São Paulo. Para isso, autores como Sousa Santos (2008) e Lotman (1996),
representam lentes a partir das quais a realidade é pormenorizada, trazendo-nos lastros em
torno de conceitos e ideias como desigualdade, exclusão, desarme semiótico. Em termos de
desenvolvimento, a proposta metodológica desta etapa encontra ancoragem na Grounded
Theory e nas pesquisas bibliográfica e documental que o contato com o campo suscita. Antes
de avançar, soa pertinente, no tópico a seguir, esclarecer as engrenagens daquela que é
principal estratégia metodológica desta fase, reconhecendo e problematizando também suas
limitações em termos de compreensão do campo. Para guiar, o olhar do leitor, é importante
elucidar que este capítulo se encontra redigido sob os seguintes subtítulos: (a) A Grounded
Theory; (b) “A fé tá na mulher, (..) na cobra coral, (...) num pedaço de pão, (...) na maré, (...)
na lâmina de um punhal, (...) na luz, na escuridão”; (c) “E há tempos nem os santos têm ao
certo a medida da maldade”; (d) “Não sei mais o que fazer comigo”.
Um traço peculiar, que não pode faltar nessa abordagem, é o de manter e preservar
um forte enraizamento da conceituação nos dados empíricos. A intuição, que nasce
da constante comparação e leva a pôr em luz os processos sociais e psicológicos de
base, deve ser sempre enraizada nos dados, e o percurso deve ser sempre traçado de
119
4.2 “A fé tá na mulher, (...) na cobra coral, (...) num pedaço de pão, (...) na maré, (...) na
lâmina de um punhal, (...) na luz, na escuridão
Você já teve a impressão de que por mais planejado que algo seja, intempéries e
contratempos insistem em pregar peça sem corar, em qualquer um, a qualquer momento, em
variadas situações? E entre infindáveis possibilidades de circunstâncias inesperadas, o
acontecimento daquele dia, parecia, não podia ter sido mais infeliz: a morte da mãe de um
amigo de longa data. Não se trata, de modo algum, de vitimização; mas de franca partilha de
que naquela véspera de ida a campo – e no próprio dia de campo –, certos sentimentos e
memórias tornaram-se insistentes companhias e misturaram-se à Roosevelt. Dona Eva morreu
depois de um longo, impiedoso e devastador processo de Alzheimer. Naquele ponto, não se
tratava apenas da Dona Eva, mas do meu sogro – seu Ari – que morrera da mesma
enfermidade em 2016. O estágio avançado da doença, de solavanco apresenta a quem for a
impotência e convoca a rudeza de ter de tomar certas decisões ditas racionais enquanto o
coração apequena. Naquela casa de repouso (eufemismo para lugar tão desolador), impossível
esquecer a sua mão deslizando em vaivém pela nuca enquanto buscava algum sinal de
lembranças e, simultaneamente, ensinando a quem o visitasse (e disposto estivesse) de que o
homem não é troço algum, nadinha. O corpo, cada vez mais franzino, de quando em quando
murmurava “mineirices”: a vaca Estrela, o cão Valente, o cozido de tatu. Saudade dá de bica.
Todos os velhos fincados no chão. A lágrima, a lágrima, a lágrima... não cai mais, secou. O
rombo no peito, ah, esse fica. Velhos plantados nas dobras d’alma. Bote reparo, o tempo
122
avança e a certeza cresce: a gente passa a ser tão eles quanto a gente mesmo. Então, naquele
domingo, 21 de Janeiro de 2018, o relógio tocou às 6h30. Às 8h o abraço (ambicioso que só)
queria amenizar no amigo o próximo turbilhão de emoção. Dos cafundós da dor até a saudade,
o caminho é longo e o passo (pode ser) curto. Cada um no seu tempo. Não desmarquei o
campo. Às 9h em ponto, Do Cemitério Parque Jaraguá, na beira da Rodovia Anhanguera, à
Roosevelt, pensamentos em plena maceração. Macerava a última preocupação do amigo e o
que para aquele dia de campo, dias antes, havia planejado. O amigo estava aflito para
conseguir um padre para uma última benção de sua mãe. E para aquele dia de campo a
escolha havia sido assistir a uma missa para tomar contato com mais uma esfera produtora de
sentido sobre a praça, a Igreja Nossa Senhora da Consolação. A paróquia é uma construção
principiada em 1799 e, hoje, margeada por um aspirante parque infantil, uma zona, a priori,
reservada às manobras dos skatistas e, ao fundo, mais praça. Entre um extremo e outro – a
ânsia do amigo em encontrar um padre para encomendar o corpo da Dona Eva e o local
elegido para campo naquele dia de pesquisa – lá estava o flerte da fé, da relação do homem
com Deus. E, enquanto as faixas do asfalto entorpeciam o olhar, a música de Gilberto Gil, de
décadas atrás (1982, tempos de piazinha ainda), pululava na cabeça:
Andá com fé eu vou / Que a fé não costuma faiá / Andá com fé eu vou / Que a fé
não costuma faiá / Andá com fé eu vou / Que a fé não costuma faiá / Andá com fé eu
vou / Que a fé não costuma faiá / Que a fé tá na mulher / A fé tá na cobra coral / Oh!
Oh! / Num pedaço de pão / A fé tá na maré / Na lâmina de um punhal / Oh! Oh! / Na
luz, na escuridão / Andá com fé eu vou / Que a fé não costuma faiá / Olêlê! / Andá
com fé eu vou / Que a fé não costuma faiá
O pensamento chiclete habitado por aquela música foi interrompido com o susto de
um ciclista, todo na estica, tirando (irresponsavelmente) uma fina com o carro a poucos
metros do farol que desemboca próximo ao estacionamento da Nossa Senhora da Consolação.
Neste ponto, desculpa aí Deus, escapa desgovernado um sonoro palavrão que irradia sobre
aquele “cadim” do contexto urbano paulistano e, junto, vem uma buzinada caprichada. Rindo
e lembrando Ferrara (1988), naqueles segundos, de modo torto talvez, quer queira ou não, foi
constituída uma dada percepção urbana; isto é, aquele urro muito do mal-educado, bem como
a prolongada buzina, gerou uma informação urbana, uma faixa de linguagem que em um
tilintar rompeu o sossego dominical até então hegemônico e instalado. A cidade, como bem
diz a autora, é organismo vivo e sua transformação se dá na tessitura da história do uso
urbano. Nas palavras da Ferrara (1988, p. 4), a vitalidade da cidade “nos ensina o que o
usuário pensa, deseja, despreza, revela suas escolhas, tendências e prazeres”. Naquele
123
momento, pensava “maldito ciclista”, desejava não ter tomado aquele susto, desprezava a
imprudência daquele sujeito por transitar entre as faixas de carro enquanto havia uma faixa
exclusiva para ele e sua bicicleta. Ao mesmo tempo, saindo do umbigo, vocifera Foucault
(2010) sobre a moralidade incutida naquela expectativa tida sobre aquele corpo do ciclista no
espaço urbano. São séculos de estruturas e estratégias disciplinares incutidas nas entranhas
para procurar tornar plástica e racional as massas, ordenando, por exemplo, espacialmente os
corpos citadinos. E, viajando muito nas ideias, lá estava o ciclista representando um protesto à
famigerada ordem?
E com esse bololô nas ideias acontece o desembarque no estacionamento da paróquia.
E a braveza cede de vez ao riso diante do painel hipnotizador de pombo (Figura 66) colocado
acima da porta de entrada e composto por círculos coloridos tal qual como um alvo.
Pesquisando depois, de acordo com a empresa responsável pela instalação, a imagem do
apetrecho, instalado em Junho de 2017, provoca sensação de mal-estar e náuseas nos pombos,
que passam a rejeitar o local. Xeretando uma matéria da BBC , antes disso, os fiéis, entre uma
palavra e outra da escritura proferida pelo padre e seus ministros, esquivavam-se de
aventureiros rasantes e tinham rezas e cânticos inconvenientemente adornados por sonoros
arrulhos, na melhor das hipóteses. Pombas, para estes devotos, não são da paz, não são não;
são infernais, fazem ninho e cocô em tudo quanto é canto. Sem falar em pena que voa para
todo lado. Mas isto é algo superado. Hoje, os pombos, hipnotizados, fogem da igreja como o
diabo da cruz. Nas palavras de José Roberto Pereira, padre responsável pela bicentenária
igreja em entrevista ao veículo supracitado, os "pombos ficavam procriando e faziam muito
barulho na hora da missa. Mas o trabalho teve um sucesso de 100% e nunca mais nenhum
pombo entrou na igreja. Antes, um casal voava de um lado para o outro na hora da missa”. À
técnica de hipnose pombal, somam-se outras estratégias: operação tapa buraco para garantir
que as aves não entrassem por lugar algum e uma completa dedetização. A arquitetura hostil –
corporificada em telas e espículas (espetos não afiados) – impede hoje o pouso e os ninhos. E
assim, custeada por um incomodado e anônimo fiel, foi a cabo a empreitada contra a ave
símbolo da Santíssima Trindade. Pombos só nos paninhos da celebração, adornos
eucarísticos, e auto lá. Ratos de asas.
124
Fonte: A autora
O arrulho nas ideias que descambava para a boca em meio sorriso foi interrompido
pelo susto da recepção de duas senhoras que trataram de saber se iria mesmo à missa; caso
contrário, sutilmente passaram o recado de que deveria parar noutro lugar. O ar de
desconfiança daquelas mulheres de que iria mesmo entrar na paróquia foi companheiro até o
primeiro passo naquele solo dito sagrado. Missa. Qual a última ida a uma missa? O hiato da
memória denuncia uma religiosidade que se sobrepõe a quaisquer tipos de gesso ou amarra
institucional e que se alimenta sem cerimônia de santos, exus, arcanjos, chama violeta, raios
solares, nossas senhoras, Iemanjá. Fé barroca. Mas lá estava em mão o folheto Povo de Deus
em São Paulo e, enquanto olhava o passo-a-passo, impossível não se lembrar da fala de um
amigo seminarista (até os idos dos anos 1960, quando fora gentilmente convidado a deixar a
ambiência clerical), de estar diante de uma estrutura de um rito que vem da necessidade de a
igreja sistematizar e controlar os seus fiéis e permitir, em certo tipo de culto, o acesso a
determinadas informações e evitar, por outro lado, outras questões ou mesmo que outros
grupos tenham acesso às mesmas. Escarafunchando na memória, basta recordar de como as
missas originalmente em latim faziam emblemática distinção; afinal, para boa parte dos fiéis,
a função cabida era repetir, sem compreender, o dito. E o padre, ora, o padre capitaneava uma
espécie de advogado de Deus. Folheando o áspero e malcheiroso panfleto há pistas de que o
rococó das palavras, ainda que não mais em Latim, continua a relegar a certas pessoas a
posição de papagaio. Enquanto a palavra inicial é proferida e o canto de abertura ecoa nas
ruidosas caixas acústicas, um arremesso de olhos ao alto e ao redor finda captando que aquela
grandiosidade materializada pretende fazer sentir que se está em uma estrutura superior, que é
a presença invocadora de Deus. E o vaivém dos corpos ora em pé, ora sentados, ora
ajoelhados, joga com a música, joga com os salmos, joga com o evangelho, joga com a
125
liturgia eucarística, joga com a comunhão. Entre os cânticos, impossível não crescer olhos e
perceber o descompasso dos cantores voluntários destoando entre graves, agudos e coros-
murmúrio da plateia engajada para não “dar ruim”; sem falar do único jovem naquele espaço
todo tentando acompanhar a cantoria com seu violão e trejeitos rock’n roll. Entre as oferendas
e o rito da comunhão, salta aos olhos três baús (Figura 66) postados ao lado esquerdo do altar.
De um lado, os dois reservados ao dízimo e, de outro, o destinado a pedir oração, graças,
benção, milagres, ajuda da ordem que fosse. Mas, na real, o que chama mais à atenção – e até
mesmo intriga – é a transparência da caixa de pedidos adornada com uma imagem de Jesus
em tons pastéis emanando luz do peito e apontando para o alto com a mão direita. Feita em
plástico cristalino, permite ao caminhante mais curioso e menos apressado até mesmo a
possibilidade de ler muitos dos nomes a serem abençoados e conhecer algumas súplicas tão
clementemente feitas em festival de letras, cores de tinta de caneta, carnaval de tipos de papel,
caligrafias múltiplas de garrancho à primazia. Os pedidos pretensos a velados, por sua vez,
guardados em uma multiplicidade de jeitos de dobrar tal qual origamis, conferia ali uma
celebração particular de descontinuidades ao olhar. Desordem desgovernada visualmente
ruidosa devidamente acomodada naquele baú, naquela caixinha que alça a ânsia de um papo
reto com o divino, como o indicador de Jesus lá estampado sugeria. Ao lado, duas imponentes
caixas de madeira escura, com letras douradas garrafais e em caixa alta, sinalizavam o lugar
destinado ao depósito das contribuições. Moedas, notas de 10, 20, 50, 100 reais não davam as
caras, estavam apenas na imaginação e no interior daquele móvel que lembra, quem sabe,
tempos de orgulho à pátina, da marca deixada pelo tempo nos objetos que lhes conferia ainda
mais valor na passagem de geração para geração. Por quanto tempo, afinal, estariam as arcas
naquela sucursal de Deus? Quantas pessoas não deixaram naquela fenda superior o sebo de
seus dedos? Ali, no lustro tinindo sobre a madeira, reside opacidade interessada em minguar
olho grande de toda ordem. O segredo diante destas urnas também aparece nos gestos dos
fiéis. Convocados a contribuir, fazem verdadeiros malabares para sacar o dinheiro do bolso,
da bolsa, da carteira. Notas emboladas nas mãos e moedas encobertas até o derradeiro
momento do depósito sugerem suspense sem igual e deixam à imaginação: Notas graúdas?
Trocados? Quem dá mais? Quem ali encobre a vergonha por dar menos? Vai saber?!... Ah, o
não dito..., o não dito diz muita coisa (ORLANDI, 2009).
126
Fonte: A autora
Fato também curioso são as plantas. Muito embora distribuídas por toda a Igreja, atrás
destes três baús encontravam-se, amontoadas mesmo, uma flor tradicionalmente usada para
decorar espaços nos arredores do Natal. Poinsétia é uma flor originária do México que,
popular e imaginativamente, é conhecida em solo tupiniquim sob vários nomes como bico-de-
papagaio, rabo-de-arara, papagaio, cardeal, flor-do-natal, estrela-do-natal. Aquela reunião de
vasos atrás das urnas parecia tentar esconder naquele espaço a planta, pobrezinha, já démodé.
Aparentemente murchas, à mingua d’água, loucas para quem lhe fizesse a poda por uma
sobrevida, estavam lá, rejeitadas e muito das mal escondidas. Lembra até brincadeira de
criança que no esconde-esconde coloca apenas a mão na face e se dá por desapercebida.
Enquanto isso, orquídeas muito das faceiras, brancas e amarelas, hegemonizavam pedestais,
escadas, altar. Duas, veja só, estavam bem aos pés da Nossa Senhora da Conceição,
presentificando-a, parece. Flores – rejeitadas ou em voga – lá se postulavam como fração
permitida e controlada da natureza. E Latour (2009, p. 38) dá as caras nas caraminholas e, de
passagem, provoca: “Ninguém é realmente moderno se não aceitar afastar Deus tanto do jogo
das leis da natureza quanto das leis da República”.
A tecnologia, bem mais discreta, também repousa naquele riscado de chão sob a forma
de velas eletrônicas (Figura 67). Parafernália com tecnologia bluetooth, está dito
expressamente lá, capaz de destinar num só golpe (somente) moedas para (a) Nossa Senhora
das Graças, sagrada família, São Judas Tadeu, São Benedito, São José, Santo Antônio; (b) São
127
José, Santo Antônio de Sant’Ana Galvão, Santa Paulina; (c) Bom Jesus de Pirapora, São
Vicente de Paulo, Beato Anchieta, Santa Gemma Galgani. E, dependendo do montante
depositado, sua vela pode ficar acesa por quinze ou trinta minutos, ou mesmo por 1 hora.
Cabra de tecnologia tão boa da peste que o merchandising da JBN Eletrônics, lá do Pari, fica
estampado na placa metálica tomando mais espaço que praticamente qualquer outra
informação. Assimetria de vozes. Esta lembrança high-tech veio à memória em rodamoinho e
no bojo de um zás-trás, enquanto o olho escapava dos três baús e o canto chamado Ofertório
era entonado; no momento em que as pessoas se enfileiravam no corredor principal e
secundário para fazer sua (discreta) doação... Neste ponto, em desafino sofrido, ecoava
Minha vida tem sentido / cada vez que eu venho aqui / e te faço o meu pedido / de
não me esquecer de ti / Meu amor é como este pão / que era trigo, que alguém
plantou, depois colheu / e depois tornou-se salvação / e deu mais vida e alimentou o
povo meu / Eu te ofereço este pão / Eu te ofereço o meu amor (bis) Minha vida tem
sentido / cada vez que eu venho aqui / e te faço o meu pedido / de não me esquecer
de ti / Meu amor é como este pão / que era trigo, que alguém plantou, depois colheu
/ e depois tornou-se salvação / e deu mais vida e alimentou o povo meu / Eu te
ofereço este pão / Eu te ofereço o meu amor
Fonte: a autora
Igreja ostentava a fama de nunca fechar as portas. Noite e dia; dia e noite. Em tempos de
ditadura, um amigo das antigas sempre tratava de rememorar, quantos não foram aqueles que
no seu interior buscaram acolhimento e abrigo para fugir da perseguição ensandecida das
ruas? E, agora, lá estavam as grades. Materialidade arquitetônica hostil ao que está fora, mas
que, no espaço entre uma barra e outra, é incapaz de fazer frear as mensagens advindas destas
brechas. Do outro lado da rua, a faixada de um antigo prédio anuncia o pé de guerra. Um
mural pintado de cabo a rabo em chamativas cores afronta as cores contidas de sua vizinha de
frente. O gigante painel tem ao fundo matizes azuis e esboça um labirinto que lembra um jogo
de vídeo game dos anos 1980, chamado Pacman ou, abrasileirando, Come-come. Na
dinâmica daquele game, o desafio era enfartar-se de bolinhas amarelas piscantes na tela e, ao
mesmo tempo, dar conta de escapar do seu inimigo, fantasminhas que ficavam tremelicando
na tela aqui, lá e acolá em surpreendentes direções. Na base deste afresco, um robô preto – de
olhos cuja esclera é tomada por um vermelho intenso fazendo lembrar a zanga de quem tem
sangue nos olhos – leva, no peito, uma frequência ziguezague, simulando o desenho de ondas
sonoras de um grito. Grafitado pouco acima está uma espécie de cachorro (muito louco) com
língua roxa de gritar ininterruptamente Baixo Augusta, que vibra em tom amarelo no balão de
diálogo saindo da boca (e goela) do totó dentuço. Mais acima, um contorno negro lembra
alguém que, com fones de ouvidos, não escuta o que se dá para além da proteção acústica
daquele acessório. Os olhos compostos por duas pequenas bolotas brancas mostram alguém
que mira distraído ou despretensiosamente o horizonte e segue, na sua própria vibe. A boca
em vermelho-berrante e os traços que adornam essa parte da imagem passam a impressão de
alguém que canta o seu ritmo e ponto, doa a quem doer. Mais acima uma mão branca
esquartejada quase toca uma panela de pressão que, pelo seu bico-válvula, deixa escapar uma
frase como se fosse um sinal de trânsito: É proibido proibir. No topo, findando o afresco, sai
pelos ares uma órbita amarela que remete ao surdo, instrumento musical. Sobre este
instrumento está uma figura azul e suas baquetes amarelas em formas de raio como quem diz
que vai tocar o terror.
Este sugestivo campo de disputa imagético (fachada da igreja versus fachada do prédio
da consolação com a Rua Rêgo Freitas) coloca os miolos numa vibe do Boaventura Sousa
Santos (2008) e as considerações por ele feitas sobre a construção intercultural da
desigualdade e da diferença, bem como as questões da acerca da exclusão, aspectos aqui tão
salutares. É na modernidade que a tríade igualdade, liberdade e cidadania – entendida como
potência de princípio emancipatório – passa a ser elemento constitutivo da vida social. Neste
contexto, a desigualdade e a exclusão, amálgama de exceções e incidentes no interior do
129
processo societal, não desfrutam de reconhecimento e legitimidade no mais das vezes; via de
regra há a concepção de certas “políticas sociais” que capitaneiam a ânsia de minimizar
diferenças. Mas, no bojo daquelas sociedades submetidas ao colonialismo europeu,
desigualdade e exclusão agravam-se porque vigoram como modus operandi da regulação
social; resultado do jogo entre a “violência da coerção e da violência da assimilação”
(SANTOS, 2008, p. 279). O “outro” da modernidade europeia, em meio aos esforços do pós-
colonialismo, quer queira ou não, é compreendido como elemento constitutivo daquela
sociedade. Fracassa, nesta acepção, a ideia do “outro”, fracassa a imagem do outro como
exterioridade colonial. Pensar o “outro” à margem dos processos dialéticos de regulação-
emancipação europeus co-determina o malogro das sociedades europeias. Colocar atenção
neste fracasso processual importa.
uma cultura, por via de um discurso de verdade, cria o interdito e o rejeita” (p. 281). Concebe-
se nestes discursos certos limites, um caráter regulatório e normalizador para além dos quais
reside “apenas” transgressão (delinquência, orientação sexual, loucura, crime) e os sujeitos
categorizados como desqualificados (inferior, louco, criminoso, pervertido). Os
desqualificados, encarnação da periculosidade no discurso normalizador, são excluídos da
normalidade por meio de processos já tão encrustados, socialmente falando, como as regras
jurídicas. Nas dobras, nos vincos, nos interstícios do juridiquês, está a exclusão. Discursos
sociais propõe direções e inclinações limítrofes e fronteiriças a partir do cruzamento das quais
justificam-se significativas fraturas, rejeições e segregações. Tais fraturas, concebidas no
âmbito cultural e civilizatório, incide sobre questões sociais e econômicas “ainda que se não
definam por elas. Aqui a integração não vai além do controle da periculosidade” (SANTOS,
2008, p. 281).
Nas palavras de Santos,
18
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/02/baixo-augusta-reune-multidao-e-grita-
contra-racismo-e-homofobia.shtml. Acesso em: mar. 2003.
132
toda polêmica exige uma linguagem comum entre os adversários: neste caso a
linguagem do adversário passa a ser essa linguagem, porém ao mesmo tempo está
submetida a uma anexação cultural, que traz consigo um desarme semiótico da outra
parte (LOTMAN, 1996, p. 73).
Quem coloca papas na língua do Carnaval? Para além da fala, dos cânticos, dos gestos
criadores daquele contexto, lá estava a presença dos corpos naquele espaço urbano, ainda que
intensamente apenas por um determinado período, como prova de resistência para existência.
Resistir para existir. E a ocupação do espaço urbano por corpos diversos faz sair do armário
uma sociedade preconceituosa dilacerada pelos solavancos da normalidade altamente
estratificada em jogos de subordinação em termos de pertenças e, que sem corar, tenta
extirpar sujeitos dissonantes. Ainda bem que fica no tentar. Porque neste jogo
comunicacional-cultural nenhuma das partes se realiza plenamente no processo, muito embora
o desequilíbrio de forças ainda impere favorecendo um dos lados, o discurso hegemônico.
Mas, “andar com fé eu vou, que a fé não costuma faiá”.
A pressa para colocar os pés para fora do táxi no recuo da Igreja Nossa Senhora da
Consolação dava mostra de um compasso de vida que, de tão naturalizado, passa
desapercebido boa parte das vezes. Ali, naquele momento, contudo, a pressa era sentida e
lamentada. Aquele campo (tal qual como noutros momentos) se dava na base da cotovelada
para ganhar corpo sobre a rotina do trabalho. Brechas ansiadas. E, finalmente, lá estavam
passos firmes sobre o cimento do recuo, depois sobre o mármore da entrada até chegar à
hegemonia do ladrilho no interior daquele solo dito sagrado. Em alguns segundos, o corpo
sente grato o relativo frescor frente ao bafo de um dia ensolarado de Fevereiro e seus
caprichosos trinta e tantos graus. O olhar, para lá e para cá, em busca de captar rostos, gestos,
movimentos, fagulhas esbarra com o olhar de um rapaz esparramado em uma pomposa
cadeira de madeira escura e couro verde, cheia de entelhes, colocada à direita da entrada.
Cabeças levemente inclinadas, levando o queixo ao peito, de um e de outro, dão mostras de
um tímido cumprimento. A decisão de voltar à igreja denota a vontade de atentar mais aos
detalhes, a enxergar e perceber como se dá a rotina em dias úteis e compreender as ações e
irradiação daquele espaço sobre o cotidiano do entorno. Aquela saudação foi a deixa para um
primeiro papo. Iniciado tímido, de lá e de cá, olhares furtivos e já em pé, meio sem jeito, meio
133
sem graça, meio sem o que saber fazer com as mãos, Bastião (nome fictício para preservá-lo),
foi gentilmente cedendo, partilhando, ensinando, dando as primeiras pistas do seu olhar sobre
aquele lugar. Baiano dos cafundós foi logo dizendo para botar reparo nas pessoas que
tomavam o fundo esquerdo da igreja. Ali, amontoados – muito embora houvesse espaço
noutros bancos – estavam alguns moradores em situação de rua ou pessoas nas beiras da
miséria, em vias praticamente de tomar para si o firmamento como teto. O olhar tristonho de
Bastião apontando para o chão é uma mostra de empatia.
As pessoas saem do interior do Ceará, da Bahia e caem aqui nesta cidade com a
promessa de ajuda de parente, com a promessa de emprego, de uma vida melhor e
tudo, tudo, tudo não passa de ilusão. As pessoas são enganadas, isso sim. Família
ajuda nada. Eu mesmo cheguei em São Paulo há 8 anos. Meu irmão disse que ia
ajudar. Ajudou nada. Só não me botou na rua. Tive de me virar, viu. Sorte que
consegui este emprego. Por dois anos trabalhei na limpeza de uma faculdade, a
Belas Artes. Mas, assim né, cada dia era um dia. Tinha dia que ficava num prédio e,
noutro, ficava em outra unidade. Vida de cigano, para lá e para cá, por dois anos. Há
seis, pedi transferência aqui para a Igreja. Ao menos aqui sei que todo dia saio de
casa e venho para cá, sem surpresa. Tive sorte. Consegui emprego e nunca fiquei
sem emprego. Meu irmão, interessado que só, quando vê que estou um pouquinho
melhor, chega junto. Tudo interesse sabe. Agora, este povo que está aí é tudo
coitado, tudo iludido. Daqui a pouco, mais meia horinha, e a irmã Lourdes (nome
também fictício) chega aqui e aí você conversa com ela. Ela é quem cuida deles.
Irmã Lourdes, uma senhora aparentemente lá pela casa dos sessenta, chega acelerada,
em pé de guerra com o tique-taque. Bastião trata logo de fazer a nossa apresentação. Sem
cerimônia – dando pistas de determinação e pulso firme – e, ao mesmo tempo, com doçura no
timbre da sua voz ela pede ajuda naquela tarde para distribuir roupa e sapato às pessoas que lá
estavam. Saca da gaveta de uma escrivaninha rococó papel e caneta e pede a uma voluntária,
que, como quem está numa partida aos quarenta e oito do segundo tempo, chega ofegante e
debulhando-se em suor, para que tomasse nota do nome completo e do RG de quem ali
estava, na ordem de chegada. E passa a instrução: Se não apresentar RG ou outro documento,
nada feito. Numa meia volta, direcionando a palavra para mim, dispara: “você, vem comigo.
Você vai ajudar a separar as roupas”. Num ritmo de marcha miúda e corrida até a portinhola
que dá para o bazar, foi dizendo em tom de desabafo e gratidão: “Vinha rezando para Nossa
Senhora da Conceição para que não me deixasse sozinha e ela me mandou vocês. Tem dias
que sozinha tenho de dar conta de atender a todos”. A porta preta de ferro, destravada, numa
braçada da freira, gruindo, chega ao topo e traz ao nariz uma mistura nada harmoniosa de
naftalina, cheiro de roupa guardada há tempos, odor de bolor, chulé. As roupas, numa
primeira vista, sem ordenação, penduradas em araras, largadas em cestos, amontoadas em
pilhas nas prateleiras, colocadas em sacolas no chão. Bijuterias dependuradas na quina que
134
desse. Sapatos, tênis, chinelos de adulto, criança, masculinos, femininos, espalhados pelo
chão, ofereciam também um olor nada convidativo. Cintos, à mingua, suspensos em ganchos.
De sopetão a ordem:
Separa na mesa que vou colocar lá fora, calça, bermuda. Na arara, vai camiseta,
camisa de manga curta; pendura os cintos também. Os sapatos devem ser
acomodados debaixo da mesa. Hoje, não tem meia, não tem peça íntima. Cada um
tem direito a pegar uma calça ou bermuda, uma camiseta ou uma camisa, cinto
enquanto tiver. Você viu que tem 4 mulheres lá fora? Então escolhe roupa para
elas... Ai meu Deus, uma é gorda, sempre digo para ela me ligar quando vem para
que eu consiga algo para ela. Na numeração dela, é bem mais difícil... Ai meu Deus.
O que vou fazer? Vem comigo, vou fazer uma abertura e você me ajuda aqui depois.
cadastro para conseguir uma vaga de emprego; a vaga que fosse. Mas, ao encostar o umbigo
no balcão, uma pergunta o levava a dez casas atrás no jogo: “qual o seu endereço?”.
Revoltado, o morador em situação de rua avança: “Falam que vão dar emprego para a gente,
mas pedem endereço? Sabem que a gente mora na rua. Então não basta ter documento. Se
você não tem um CEP, não tem nada. A gente está sendo enganado”. Irmã Lourdes pede para
que ele procure depois a secretaria para ver no que é possível ajudar, convida todos para rezar
um Pai Nosso e uma Ave Maria e anuncia que a distribuição das roupas já começaria. Ao
pedir que os primeiros quatro a acompanhasse, uma briga se instaura. Dois homens
disputavam, na bronca e na marra, a ordem de chegada. A queda de braço, mesmo com a
senha em mão, com o terceiro e o quarto lugares na distribuição, evidenciava que a hierarquia
da chegada representava mais de meio caminho na possibilidade de pegar as melhores roupas
e sapatos. Daí o borogodó todo, aquela ginga de corpo que põe em rota de colisão e, num triz,
desvia e volta a juntar, numa aproximação de quem deseja mesmo é se atracar. A encarada
tensa da freira, com as sobrancelhas em vê e com vincos na testa, faz natimorto o mal-
entendido.
Enquanto os quatro primeiros da fila eram guiados até o espaço da doação, Lourdes
disse:
Muitas das pessoas que estão aí são velhas conhecidas não só desta paróquia, mas de
outras que, assim como a gente, ajuda de algum modo. Não é só moradores em
situação de rua que vem conseguir doação. Tem gente que mora de aluguel, gente
que mora nos cortiços da região e que vem aqui conseguir algo para si. Então a gente
não atende apenas quem está nos arredores da Roosevelt, mas uma porção de gente
carente do centro e arredores.
Olho vivo, eles tentam levar mais do que o permitido e isso não pode acontecer. As
sacolas e as mochilas que eles trazem tem de ficar longe do alcance das mãos; senão
você vai ver... você dá uma bobeada e eles te passam a perna. Não acredita nestas
136
caras de bonzinhos não. Eles aprontam. Ah, tem mais uma coisa: se homem quiser
levar sapato, tem de pagar cinquenta centavos pelo par. Caso contrário, não tem para
todo mundo. Mulher não paga. Você vai pegando o que eles escolhem e vai
colocando em uma sacolinha.
Numa fração, lá estavam as primeiras pessoas diante das araras. Primeiro, uma
passada de olhos geral; depois, escarafuncho ligeiro. O primeiro pega uma camiseta pela
marca dizendo em interjeição: “Nossa, Reebok, que dá hora”. Contudo, quando pega o cabide
pela mão, rosto feito decepção. A camiseta era do São Paulo que teve a marca como
patrocinadora por seis anos até os idos de 2013. E o camarada, chapa corinthiano, bufando,
larga mão. “Aqui é Corinthia, se é doido, cara”, diz para si balbuciando enquanto com feição
de desdém devolve o cabide para a arara. Namoro rompido e, sebo nas canelas, para alcançar
um achado dos bons. Vira e revira e o que resta é um abadá de muitos carnavais. Se você
leitor, tem alguma dúvida de para onde vão os abadás; hoje, martelo, vem para cá peculiar
proliferação de cores, formatos, personalizações. O outro senhor, em busca de uma calça
arruína com a separação entre jeans, sarja e tecido social. E como numeração é uma questão
de sorte e provador não há, as cinturas das calças abraçam o pescoço do homem. Dizem que
se dá na circunferência do pescoço, a calça serve. Os outros dois, meio enrolados para
escolher, recebem uma bronca da freira: “vamos lá, andem logo porque ainda tem muita gente
para ser atendida”. Enquanto o calor minava deslizando suor pelo corpo todo, outro grupo é
chamado chega ao lugar da distribuição. Nesta leva, dois homens experimentam sapatos e um
deles, triste, confessa em tom de lamento para o colega ao lado que não tem cinquenta
centavos para dar pelo par. O colega estica o olho para o tênis que o homem usava e vê que
estava pela hora da morte, tomado por buracos na sola e uma lona deformada. A solidariedade
mesclada com um lugar de fala de quem tá podendo aparece no sacar de dois contos do bolso
enquanto estica o braço para dar o valor à irmã Lourdes: “Freira, pode cobrar dois pares
aqui”. O homem retribui com um sorriso e os dois saem juntos de lá, conversando, se
conhecendo. Outro senhor, bem envergonhado, cabelos e barba grisalhos e compridos, tenta
também achar um sapato; mas sem sucesso. Não era apenas o tamanho do seu pé, mas
também a folga que qualquer caçado precisaria ter para dar conta da deformação provocada
pela geografia das feridas que iam de sua canela até os pés. A vergonha, fica claro, não era
apenas timidez, mas receio do que sua enfermidade poderia provocar nos que ali estivessem.
Então o tira-põe de sapatos era feito dando as costas para as pessoas, em um cantinho do
lugar. A privacidade mequetrefe daquele lugar não lhe dava, obviamente, intimidade alguma.
A extimidade percebia, lhe solapava e lhe dava uma postura cada vez mais envergada; até que
137
se deu por demovido de continuar tentando achar algo. Sem delongas, pega uma camisa e uma
calça e zarpa do lugar e, mais ainda, dos olhares estrangeiros sobre o seu corpo. A freira
chama de canto e diz: “Conversa ali com aqueles dois porque eles estão demorando muito.
Fala para acelerar”. Sem jeito, toco nas costas de um e peço para que abrevie sua escolha dada
a fila que ainda há. Em reposta, sua cabeça sinaliza um sim. Já o outro homem, vira, olha
firme e solta a desconcertante frase: “a gente não tem nada, nem mesmo a gente pode escolher
com calma?! Fala sério, cada uma”. E ali, qual escolha tinha de fato? Algumas roupas são
deixadas para doação lá sujas, sem lavar mesmo, na cara de pau. Outras peças têm o zíper
estourado. E há ainda aquelas rasgadas. São doados, pense só, sapatos femininos com salto
(alguns do tipo agulha). O que passa na cabeça destes abençoados doadores? Representam
doadores ou pessoas que simplesmente querem se livrar de algo? Doação ou livramento?
Antes que qualquer resposta pudesse ser problematizada na cabeça, outro grupo chega ao
local. Desta vez, são as mulheres, as quatro: uma mãe e duas filhas e a senhora, a recém-
contratada pela rede de fast food Habib’s. Muito embora tivesse selecionado com carinho as
roupas para elas, nada havia agradado. No caso delas, a freira permitiu que a mãe e as duas
filhas experimentassem as mudas de roupa no banheiro da paróquia. Duas abasteceram-se de
roupas bem mais da conta porque saíram com algumas camadas extras de panos, ligeiras e
antes que fosse possível dizer qualquer coisa. Outra permaneceu no lugar porque nada servira.
Assim como a senhora do Habib’s, a jovem era gorda. A única roupa para mulher obesa que
havia era uma blusa de manga comprida e uma calça, ambos do mesmo tecido (bem grosso).
O conjunto, debaixo daqueles trinta e tantos graus, foi dado à senhora. Desde o pensamento
alto da freira enquanto procurava algo para gente gorda e a mingua de opções ali constatadas,
expõe-se uma ferida: a margem da margem. A mulher, a mulher-pobre, a mulher-pobre-negra,
a mulher-pobre-negra-gorda. E de modo tangenciável, diante dos olhos, lá estava a negação
da diferença. E, por falar da borda da borda, noutro dia de doação, apenas uma mulher
apareceu, mas tratou logo de dizer no cadastro que não era mulher. Que não era aquele nome
do RG. Pediu para ser tratada como homem, homem trans, que precisava de um top para
pressionar os seios; e, antes de qualquer reação dos presentes, na tentativa de intimidar,
emenda, dispara: “Sou recém-saído da cadeia. Fiquei lá por 16 anos”. A irmã Lourdes, em
caráter de exceção, trata prontamente de levantar a porta do bazar e faz uma busca por um top.
Ao entrega-lo, o homem deixa o espaço. A freira sussurra:
vira e mexe aparece gente assim. O que ela fez para ficar 16 anos na cadeia? Coisa
boa não foi. Muitas vezes tem gente que vem aqui, na verdade, não para pegar
roupa, mas para aliciar gente para o tráfico. Aí o pessoal acaba fazendo de um tudo
138
por qualquer dois, dez reais. Porque entre aqueles que vem aqui, tem muita gente
drogada. Qualquer dinheiro na mão deles vira droga. Parece não ter fim.
Muitos afetos foram acionados naquelas tardes. Sensações, da mais diversa ordem,
fora transversal àquela pesquisa de campo qualitativa que, de uma hora para outra, tornou-se
observação participante, pura sinestesia. Lá estavam não apenas rostos, corpos,
personalidades, espertezas, roupas, calçados, araras, a fachada da lateral da igreja. Estavam
também o cheiro de corpo (sim, o cecê), o mijo, o cocô, o chulé, o odor do álcool, o sovaco
vencido, a naftalina, o bolor, as tripas feito nó na mistura desse bocado de coisas. Estava lá o
rosto, em esforço para ser impassível de transparecer tais sensações, na empreitada de não dar
pistas do que acontecia fisicamente por dentro, para não fazer com que aquelas pessoas se
sentissem ainda piores. Estava lá a culpa pelo estômago revirado, pelo receio de pegar piolho.
Estava lá o som da fala das pessoas misturadas à sonoplastia dos carros, das motos, dos
ônibus que, apressada e ininterruptamente, percorrem aquele trecho da Consolação. Estavam
o vento tocando a pele e o sol beliscando o rosto e o que mais estivesse descoberto. Estavam
lá a feição já instaurada por aquelas pessoas e um carinho já brotado pela freira dada sua
generosa acolhida. Estava lá, batendo forte nos miolos, o sentimento de impotência.
Impotência não restrita à figura pesquisadora, mas à freira que, em pouco mais de nove anos,
lamenta ter conseguido tirar, de fato, das ruas apenas duas pessoas. Formada também em
Assistência Social sabe que o assistencialismo dali ameniza com prazo de validade algumas
questões, mas dificilmente muda de fato a vida de uma pessoa. Com feição triste, ao final de
uma das distribuições, partilhou que tem seu coração apertado. Já pedira à Nossa Senhora da
Consolação o poder de conseguir saber quando uma pessoa lhe fala pelo coração ou quando
inventa história para tentar ludibriá-la. “Dói muito ser enganada”. Mesmo com a ajuda de uma
psicóloga, o coração acaba endurecendo, desabafa. Naquele dia, na volta para casa, o rádio em
uma coincidência (sabe-se lá) toca uma espécie de música-resposta à freira, Há tempos, do
grupo de pop rock nacional Legião Urbana, de 1989: “E há tempos nem os santos têm ao
certo a medida da maldade”.
que naquele dia haveria a entrevista com o padre e a realização entrevista de fato permitiu que
muito fosse digerido no imaginário sobre aquela (mais uma) tarde junto aos moradores em
situação de rua. Mas, principalmente (e é o que a gente traz aqui), o chá de cadeira – que não
foi proposital porque o padre estava em atendimento a fiéis – abriu possibilidade de notar
outras dinâmicas no interior daquele lugar, mais especificamente, o interior da secretaria da
igreja.
De uma cadeira, era possível observar o comércio da fé. Sempre de passagem por
aquela secretaria-corredor, que conectava igreja-bazar-local de doação, as vistas ainda não
tinham alcançado aquela sacro-esfera da cultura e sociedade de consumo, expressões que
desde meados dos anos 1960 vão sendo cunhadas e que se ocupam de um dos fenômenos-
chave de leitura de realidade; ao menos na visão de autores como Baudrillard, McCraken,
Slater, Lipovetsky, Bauman, Miller, Douglas e Isherwood que dão duro entre descrever,
denunciar, problematizar e refletir certos aspectos decorrentes desta realidade. Realidade na
qual os trecos, os troços e as coisas – para usar expressões caras a Miller – revelam muito de
nossa humanidade e de sistemas hierárquicos e de significação, que colocam nas entrelinhas
as escalas valorativas das sociedades. Ininterrupto sistema no qual, desde uma realidade
moderno-industrial-capitalista (só para estabelecer um recorte), a gente vai significando as
coisas e as coisas vão nos significando. O que é consumido e o modo como é consumido, para
boa parte destes autores, tratam de narrar o mundo vivido. E ai de quem não possa – ou por
vontade própria ou por motivo de força maior – se engajar devidamente nesta engrenagem da
sociedade também batizada de sociedade de consumidores. Consumidores falhos. E, como
uma espécie de cristalização desta cultura e sociedade de consumo lá estavam as bíblias, os
terços multicoloridos; as imagens (de gesso, de madeira, de resina, grandes, médias e
pequenas) de santos; também estavam os santinhos, aqueles panfletos com imagem de santos
e oração para fazer pedidos que, ao final, lá no rodapé do papelzinho, convocam – por assim
dizer – o aflito a imprimir e distribuir (ao menos) um milheiro pela graça alcançada, ajudando,
quem sabe, a tornar o tal santo mais pop e a tornar ininterrupto o ciclo (de consumo, de fé, de
pedidos...). Adornos. Camadas e camadas de significados que vão se adensando aos sujeitos.
Indumentárias de pessoas de fé. Indumentárias constitutivas daquela tessitura religiosa.
Processos comunicativos de quem é mediado pelas coisas (e quem não é?). Mas as prateleiras
e a vitrine do balcão em formato “L” e de madeira escura expondo os adereços e escondendo
o estoque não era a única forma de adquirir os produtos. Ao alto, em cima da escrivaninha e
da cabeça do atendente, estava um suporte com uma televisão plugada na Rede Vida, canal
aberto, comercial e nacional que se autodenomina como o canal da família. Entre os variados
140
Então, [esta] é uma realidade que encontramos muito aqui no centro. Mas ao mesmo
tempo, você encontra muitos skatistas que vem de diversas partes de São Paulo.
Convidados pelos amigos, pessoas de Itapecerica da serra, de Taboão da Serra, nós
temos pessoas que vêm lá de São Miguel Paulista, entendeu... da Penha, de vários
lugares que vem para cá por causa do skate. Só que vem para o skate, mas vem com
o intuito de fumar a sua maconha, trocar um papelote com um outro, então
infelizmente vira uma rotina, porque assim... Por mais que as pessoas falem...
‘Ahhh... maconha é inofensiva’, mas é a porta de abertura para outras drogas,
entendeu. Se você passar à tarde ou à noite aqui, você vai ver que muitas são pessoas
de classe média, média alta, que estão sentadas na escadaria, mas que já estão
ficando degradados até no seu modo de se vestir, porque da maconha passou para a
cocaína, da cocaína para a pedra do crack e fumando debaixo do nariz da polícia, do
guarda civil ou da PM.
141
A inoperância dos policiais é colocada pelo padre como uma decorrência de uma
sociedade de espetáculo que, ao menor titubear, põe em circulação cenas gravadas e as
partilham, em tempo ímpar, via sites de redes sociais afora. Daí, justifica, a falta de
abordagem policial para pôr fim ao consumo de entorpecentes. A fala, carregada nas tintas,
sugere o desejo de extirpar esse jovem skatista dos arredores. Esses jovens, na percepção do
vigário, não respeitam liberdade alheia, de ir e vir, pois largam skates pelo caminho: “uma
senhora de 90 anos na rampa (...) que está andando com o neto, ela não consegue desviar. Nós
tivemos pessoas que deixaram de frequentar a igreja com medo dos skatistas”.
Nas palavras do Padre, sob um tom de discurso de autoridade, “[os skatistas] não têm
respeito, eles não têm limites (...). Eles veem o mundo como deles, então eles sobem nas
pilastras, eles quebram, o corrimão das escadas (...), quebraram todos os bancos da praça”.
Tudo é usado como pista de skate. Para José Roberto, a praça Roosevelt devia ter sido
pensada e concebida como um espaço familiar, que tivesse uma área reservada só para os
skatistas, e que tivesse a área reservada para os idosos e para as crianças. Cada um no seu
quadrado.
É igual esse playground, que era para ser um playground ao lado da igreja, na
descida da rampa. Virou lugar de prostituição, virou lugar de drogas, lugar de
moradia de dormir de moradores de rua. Então assim... Pessoas que vem ali e
abordam você. Já teve dia que eu tive que pedir para o segurança ir até o até o outro
lado da praça porque tinha um homem deitado na calçada, no meio fio, vendo as
mulheres passar de saia, e as mulheres ficam sem graça (...) Fora os assaltos, porque
tem muito assalto nesta região, porque muitos que vem lá da rua Santo Antônio, ali
tem muito cortiço, muitos menininhos que vem com bicicleta, você esta
conversando, por exemplo, eu não aconselho ninguém a sair da paróquia com o
próprio celular no ouvido (...) Aqui em frente da igreja vejo quando eles combinam
o assalto.
Para além dos roubos, outro assombro são os teatros. Trata-se de teatros longe de
serem convencionais ou tradicionais. Na acepção do Padre, convencional ou tradicional
estaria dentro de padrões sociais em que uma criança de seis anos a um idoso de oitenta
pudessem ver. Contudo, nas peças em cartaz, ganham cena o nudismo, o sexo no palco,
tramas que são exibidas depois da meia noite. O pároco reconhece que ali se vive uma
realidade cultural diferente. Margeada por distintos atrativos, como alguns botecos, a área da
Roosevelt, sobretudo nos últimos cinco anos, com a sua reinauguração, tornou-se, nas suas
palavras,
área totalmente de guerra, porque por exemplo, várias caminhadas, várias marchas,
vários protestos vêm e terminam aqui (...) Eles não se preocupam com as
imediações. Nestas imediações da Praça Roosevelt, temos pessoas de oitenta,
142
noventa anos que estão em cima de uma cama, estão em depressão, estão numa
cadeira de rodas, sob a responsabilidade de um cuidador que nestas situações não
consegue sair, dada a violência.
Para fazer frente a esta realidade, José Roberto relata que é necessário unir forças. As
forças reunidas a que se refere tem a ver com a recente parceria estabelecida com a igreja
presbiteriana, que no período de Carnaval, por determinação de seu reverendo, Claudinei,
fechou as portas durante todo o período do Carnaval.
Porque todo carnaval que tem, o povo não tem noção, eles não estão nem ai, vão
beber, vão curtir, só que impede o ir e vir, [fecham] (...) a praça, [colocam] (...)
placas, ninguém podia passar na Rua da Consolação, não podia passar pela rua
Augusta, só que eles esquecem... E os cadeirantes? E os idosos de 80 e 90 anos que
não tem agilidade para passar no meio de uma turma que está usando drogas? Então
é difícil a realidade da Praça Roosevelt nestes últimos anos. Depois da inauguração,
se tornou algo irremediável.
Entre uma colocação e outra, comentou sobre um grupo local que tem defendido a
ideia de se fechar a praça com grades. E, demonstrando preocupação em esclarecer, disparou
que não é a favor de uma iniciativa desta magnitude. E, já com um discurso mais arrefecido,
defende que deve haver lugar para todo mundo: “tem lugar para os skatistas, tem lugar para os
skinheads, tem lugar para os punks, tem lugar para todos os grupos”.
A própria igreja católica, rememora, tem sofrido rejeição. No domingo de ramos de
2017, na saída da procissão, perto de 9h da manhã, ministros e padre fizeram por cerca de
quinze minutos um início de benção ao megafone. Em pouco tempo, a polícia foi chamada
para repreendê-los. Estupefato, questiona: Porque ninguém corrige os protestos que chegam
em grande número na praça? Porque não se faz algo com os Skatistas que vem em grande
número para a Praça? E, finaliza, “agora, para cima de um grupo menor, com 20 pessoas no
máximo, que foi o tanto de pessoas que começaram a procissão, questionam o que a igreja
está fazendo?”, diz escandalizado.
Outro momento de repreensão pela comunidade do entorno ocorreu em 2016, quando
a comunidade católica tentou realizar uma missa pela paz no bairro. Na praça, reunidas, com a
devida autorização da prefeitura, estavam igrejas do centro paulistano – como a São Luís, a
Santa Cecília, a Santa Terezinha, a Divino Espírito Santo. A missa marcada para as 10h da
manhã de um sábado acontecera no centro da Praça, com equipe contratada para o som,
montagem do altar, cadeiras, espaços para o pessoal de idade sentar. Pouco antes de começar
a missa, uma senhora disse para o padre: “O senhor não pode [realizar a missa]. Isso está me
incomodando, isso vai me incomodar, eu moro naquele prédio, naquele apartamento ali, esse
143
barulho está me incomodando”. Ao contar este caso, o Padre relembra que para a Marcha das
vadias, por exemplo, que faz coisas “horrendas”, que
fere muitas vezes o olhar da pessoa que tem muita sensibilidade, (...) ela [a senhora
que reclamou da missa ao ar livre no seio da praça] não consegue ir para falar com
essas pessoas porque essas pessoas já vão para agredir (...) E nós [da igreja] vamos
tentando conciliar, mas não é fácil. É sempre um desafio muito grande. A Roosevelt
é um desafio muito grande.
Com esta colocação sobre a Praça, ou você a ama, ou você a deixa, o vigário deixa
escapar relativo carinho pelo lugar, dado a aspectos que tem em alta conta e que o desafia
também: “Ou você ama demais por causa do jeito e tudo o que ela tem em volta, você tem
acesso a tudo, acesso a Augusta, você tem acesso a Caio Prado, você tem acesso à Nestor
Pestana, você tem acesso à Guimaraes Rosa, um meio cultural eclético muito grande, mas
desafiador”. O maior desafio notado não está relacionado aos projetos sociais quem envolvem
o bazar, o atendimento a famílias carentes, moradores dos cortiços, pessoas em situação de
rua, ou o serviço de escuta realizado por voluntários nas salas da pequena secretaria, ou o
angariamento de fundos para manutenção de tudo isso e da própria igreja. O grande desafio
notado veio nas entrelinhas, quando o padre revelou a dificuldade que enfrenta por não tirar
da fila da comunhão, como desejam algumas carolas (as idosas principalmente), os gays,
pessoas amasiadas. Ou por não fechar as portas da igreja, as segundas, para as putas e
travestis, que veem da Rego Freitas, direto para o velário para fazer suas preces. “Quem sou
eu para tirar estas pessoas da fila? Quem não está em pecado?”, pergunta-se, provocando e
justificando sua postura.
144
Quem é José Roberto? Menino pobre da zona Leste, já teve noiva e trampou em
empresa. Tornou-se seminarista depois de uma decepção amorosa. No seminário, sem poder
trabalhar, tocou seus joelhos no chão para pedir a Deus que cuidasse dos seus; principalmente
de sua mãe, mulher de fé que de certa forma sonhara com um filho padre, mas que no
enfrentamento dos contratempos da pobreza, deixar de contar com uma renda em casa
significava dureza. Homem que olha desconfiado para os skatistas que vem de longe para a
praça, que embora ressabiado e com alguns paradoxos na fala julga que a praça deveria
acolher todos, até mesmo os skinheads, mas com uma parte determinada para cada um.
Homem que compra briga com as senhorinhas por não tirar da igreja o arco-íris e outras
paletas, mas que é o primeiro a defendê-las em meio ao vuco-vuco do coração da praça
tomado por marchas. E tudo isso leva a memória para uma música que revela a infixadez de
quem a gente é; leva a memória para a desgastante missão que é a tentativa de estabelecer
uma identidade, como possível fosse abrir mão da complexidade aí implicada. O grupo
paulistano de pop rock Vespas Mandarinas catalisa esta complexidade e canta Não sei o que
fazer comigo:
Já tive que ir a missa obrigado / Já tentei ser um homem casado / Já aprendi a fingir
meu sorriso / Já fui sincero e já tive juízo / Já troquei de lugar minha cama / Já fiz
comédia, eu já fiz drama / Já ouvi cada voz que me chama / Eu já fui bom e já tive
má fama / Já fui ético, antipático, fui poético, fui fanático / Fui apático, fui
metódico, sem vergonha, fui caótico / Eu já li Paulo Coelho, eu já escutei tudo que
era conselho / Eu já preguei o evangelho / Cheguei a achar que eu era velho / Já fiz
tanta coisa que nem me lembro / Do que eu era contra ou fui a favor / O que me
dava prazer, hoje só me dá dor / Nunca aprendi o que é o amor / E ouvi uma voz,
que diz: "não há razão / Você sempre mudando, já não muda mais" / E já que estou
cada vez mais igual / Não sei o que fazer comigo / Já chorei de tanta mágoa / Já fiz
tempestade em copo d'água / Já tentei a sorte na gringa, já aprendi que não tenho
ginga / Eu já votei em tucano, já fui ovo-lacto-vegetariano / Insano, já fui santo e
profano / Fiz na tua frente e por baixo dos pano / Já estudei teologia e não creio mais
naquilo em que cria / Já sofri de claustrofobia, de teimosia e cleptomania / Já provei,
já fumei, já tomei, já deixei / Assinei, viajei, já peguei / Já sofri, já iludi, já fugi, já
assumi, / Fui e voltei, afirmei e menti / E com toda essa falsidade / Minhas mentiras
já são verdades / Já tive de tudo o que queria, / E já me contentei com mixaria / E
ouvi uma voz, que diz: "não há razão / Você sempre mudando, já não muda mais" E
já que estou cada vez mais igual / Não sei o que fazer comigo / Já fui em cana, já
tive grana / Passei rasteira em muito bacana / Opinei e me equivoquei / Nunca
assumi pra ninguém que errei / Sem diploma, nem salário, já fui sócio majoritário /
Já escrevi tanto nome no braço / Eu já preenchi tudo que era espaço / Fui psicólogo,
fui astrólogo, já fui leigo, fui enólogo / Fui alcoólatra, fui atleta / Fui obeso e já fiz
dieta / Já cuspi e mandei pro caralho / O lugar onde hoje eu trabalho / E agora eu só
me distraio / Fazendo versão de rock Uruguaio / E ouvi uma voz, que diz: "não há
razão / Você sempre mudando, já não muda mais" / E já que estou cada vez mais
igual / Não sei o que fazer comigo / E ouvi uma voz, que diz: "não há razão / Você
sempre mudando, já não muda mais" / E já que estou cada vez mais igual / Não sei o
que fazer comigo.
145
25 de janeiro, feriado, manhã de sol. Naquele 464º aniversário da cidade de São Paulo
(Figura 69), foram dados os primeiros passos na Roosevelt, rotina perdurada por praticamente
todas as quartas-feiras até o início de maio. O primeiro contato, emblemático, revela variados
compassos. A poucos metros da escadaria que dá para a Martinho Prado, de frente para um
dos poucos canteiros, sobre o chão firme da praça, desperta, com sutilezas de movimentos,
uma mulher. Ela revela, de uma manta improvisada, mãos vagarosas e circularmente
dançantes, ora orquestrando, ora riscando o ar. Mão esticada e belas unhas pretas tocam
gentilmente e sem pressa a folhagem diante de si, feito gesto de contemplação. O ritmo
preguiçoso leva mais de hora para colocá-la de pé. Em rodopio vagaroso, confere o entorno,
dando-se conta, parece, de onde está. Sem delongas, ajeita a roupa, pendura a bolsa no ombro
e deixa a praça entre as árvores da rampa da Nossa Senhora da Consolação. Alguns passos
dali, outra jovem, de ar sereno, também desapressada, tem sua bolsa como travesseiro.
Diferentemente da outra jovem, ao acordar, coloca-se sentada ao primeiro degrau, passando,
devagar, os olhos pelo comércio-morto da Martinho Prado e pelas gentes disputando e
revezando os adereços do totem de exercícios da praça. Mais de hora depois, degraus abaixo,
toma a direita, ganha a Augusta. Antes, passando pela beira da Nestor Pestana, esbarra com
uma multidão de corredores, recém-chegada do final da competição organizada pela marca
Adidas (Figura 70). Alguns dos participantes daquele evento, em suas respectivas e
chamativas indumentárias esportivas, partem para a Roosevelt e contrastam com os meninos
descalços, sem camisa e de bermuda jeans empoleirados nas barras da minúscula estação de
ginástica fazendo alongamentos e exercícios de força, sustentando, cada qual, o próprio corpo.
Concomitantemente, faceiros cachorros (Figura 71) acompanhados de seus donos revelam
abanos de rabo, truques, piruetas e corre-corre na caça a bolinhas, gravetos e toda sorte de
badulaques. No parco gramado do miolo da praça, os pets transformam-se em espécie de
passatempo para os frequentadores do Via Roosevelt Café, lugar de onde é possível avistar,
no horizonte, adultos ensinando crianças – algumas de chupeta na boca – a darem as primeiras
manobras no skate. Observar essas tessituras e entrelaçamentos de fruição daquele riscado de
espaço urbano faz surgir a curiosidade da história de cada frequentador e de cada um com
aquele lugar. E esta é a motivação para todas as outras visitas, para todo bate-papo. Em cada
pessoa, um mundo. Em cada uma, muitas Roosevelts. A partilha desses aprendizados da rua
toma espaço aqui, trazendo conversas, sem amarras de roteiros, com aqueles que, como
população flutuante da Roosevelt, colocam em circulação narrativas sobre a praça. Neste
146
sentido, o capítulo encontra-se estruturado nos seguintes tópicos: (a) Evolução: um sempre
olhando pelo outro, (b) Na labuta, pouca conversa e muita luta (c) Olhe para as suas sobras,
transforme-as em luz, (d) De um tudo para sobreviver, (e) A vida é poesia telúrica, (f) Claves,
soldas e quitutes, (g) Déjà vu: o ponto de virada e (h) Ordinária, Roosevelt, ordinária. A
sequência de cada subtítulo reflete a ordem com que as pessoas foram adentrando ao meu
mundo de pesquisadora. Para preservar identidades, tal qual como noutras partes desta
empreitada, os nomes reais das pessoas não são revelados. No lugar, nomes fictícios, batismo
estratégico nesta etapa para esquivo da frieza doutras nomenclaturas (sujeito 1, 2, 3...).
Fonte: A autora
Fonte: A autora
147
Fonte: A autora
Fonte: A autora
148
Assim, a conversa foi puxada com Marcos, para quem a praça é “um lugar perfeito
para ser adolescente”, para “dar um rolê”. Trata-se de um “pico bem mais forte no skate”, no
“skate de rua”, cuja demanda é um solo liso, bancos e bordas “pra mandar as manobras”. Sem
camisa, pingando suor e com a fala ofegante, ressalta, ainda, toda a “parte cultural” oferecida
pelos teatros da Roosevelt e a pizza, que pode ser comprada na praça mesmo, entre um “rolê”
e outro, por apenas dez reais. Dos seus 22 anos, 11 foram vividos na Roosevelt, onde nasceu e
pôde frequentar o Caetano de Campos; a outra metade foi vivida em Ubatuba, onde trabalha
com gastronomia, como “chef” de um restaurante. De passagem por ali, em férias, afirma que
não poderia perder a oportunidade de mais uma vez estar naquele “pico”, que chama de
“melhor lugar”, de “casa”. Afirma que a cena do esporte mais forte na Roosevelt é a do skate,
pois a praça, antiga, “é considerada tipo como se fosse o centro histórico do skate” e sua fama
entre os skatistas se alargou, explica, há três anos, por conta da reinauguração. A praça é
“famosa”, destaca, pelo “chão liso”. E rememora: “E teve campeonatos grandes (...), com
grandes nomes do skate, que reuniu cada vez mais a galera e aumentou muito mais a cena do
skate” na Roosevelt. “Teve até matéria de jornal” na inauguração, recorda.
Segundo Marcos, o skate é uma “família”, “é uma união”, “é como se fosse um ensino
que você não vai aprender em outro lugar”. E, acrescenta, “as pessoas ensinam a maneira
técnica de mandar cada manobra, te apresentam novos amigos de várias cidades, te
apresentam novas pistas”. Além da evolução, que, na gíria do esporte, representa a
transformação ao longo do tempo das manobras que os skatistas são capazes de fazer, há
também o fato de um estar sempre olhando pelo outro. “As peças vão ficando velhas, (...) são
caras, o tênis gasta, mas dependendo daqueles skatistas que também têm o apoio ou o
patrocínio de alguma loja (...), eles até dão de graça pra criançada (...). [E] isso também
incentiva muito a cena do skate aqui em São Paulo”. Além disso, reflete, a criança “já sai de
outro mundo que podia ser pior, sabe?”.
Para falar desse mundo “que podia ser pior”, explica que os skatistas, onde quer que
estejam, levam consigo a identidade “família”. Para exemplificar, recorda que os skatistas não
estão apenas na Roosevelt, mas também em outros picos igualmente respeitados, como é o
caso do Vale do Anhangabaú. Entre seus ídolos, está o Marcelo Amador, o Formiga, “um cara
que é considerado”, que beirou “outro mundo”, mas superou todas as dificuldades nas
manobras do skate. De menino de rua aos 13 anos para skatista premiado em competição,
continua muito presente, ensinando a meninada pelas ruas da capital, olhando para os seus
pares, tal qual uma “família”.
149
Entre suas recordações, muito embora predomine a sensação de que a Roosevelt é “um
lugar tipo livre pra todo mundo, é liberdade de expressão, várias culturas diferentes”, reside
em suas lembranças uma situação dura. O dia em que viu um policial da GCM (Guarda Civil
Metropolitana) agredindo uma menina. Não estavam agredindo “forte assim, mas não era o
certo de fazer”. Para ele, qualquer abordagem deste tipo tinha de ser feita por uma mulher
para assegurar a garota abordada. Naquele dia, lembra, “os skatistas até fizeram uma
rebelião”. Todos começaram a jogar skate e a xingar. Ao final, antes de retomar suas
manobras e deixar a gravação do comercial para trás, pondera: “Essa é uma lembrança triste,
mas, ao mesmo tempo, é boa pra saber como é a união do skate aqui. É o certo pelo certo,
sabe?”.
“Felicidade é mais do que dinheiro”, ratifica. “É você deitar com o pensamento livre, acordar
sem ter nenhuma preocupação. É nunca querer pisar nas pessoas, entendeu? (...) É não querer
lesar as pessoas, conviver com o próprio trabalho”.
E questionando-se sobre o que deseja para o Brasil, retoma sua própria história.
Quando chegou a São Paulo, recorda, “tinha duas bermudas, uma calça, e duas camisetas”. E
defende que, “trabalhando com dignidade”, é possível alcançar “tudo que você quer (...).
Então, minha história de vida foi bem difícil, mas eu nunca desisti”. Recorda que, chegando a
São Paulo, tinha parentes na cidade. Mas, como veio para trabalhar em construção, ficava em
alojamentos nas obras, batalhando dia após dia. Hoje, procura passar para o filho, que também
trabalha em sua loja, um pouco de como foi sua vida: “eu passo pra ele um pouco do que
aconteceu comigo, porque hoje ele vive numa glória, tem de tudo. E antigamente não era
desse jeito, era totalmente diferente”.
Hoje, com a crise política instaurada no Brasil, solidariza-se com aqueles que passam
dificuldade. Incrédulo, questiona o perverso jogo de palavras orquestrado nas manchetes que
usam a expressão “desvio” no lugar de “roubo”. E, deste jeito, de desvio em desvio, conta que
prontos-socorros e creches não saem do papel e que, provavelmente, os políticos só fazem o
que fazem porque não tem ideia do que seja uma dificuldade. Para ele, “só sabe da dificuldade
aquele que tá passando”. Olhando para a praça, em exercício de empatia, especula se uma
pessoa que está sentada ali, bem de frente, comeu naquele dia. E comenta que as pessoas só se
questionam sobre isso às vezes, quando elas próprias estão famintas ou já se encontraram
nesta condição um dia: “Se estiver com fome (...), vai lembrar. Mas, se estiver com uma
barriga cheia, não vai nem saber que a outra pessoa tá com fome. Ou, se ele passou por isso.
Se ele passou por isso, ele vai olhar pra aquela pessoa e vai falar: ‘será que aquela pessoa
almoçou hoje?’”
Esta prática da empatia parece rotina para Maurício. Para ele, se alguma pessoa diz
“ah, tô com fome”, dependendo de quem ouvir o lamento, vai mandar a pessoa trabalhar.
Sequer passa pela cabeça deles que oportunidades simplesmente não existem para certas
pessoas. E explica:
Às vezes você vê uma pessoa na rua aí... você olha pra pessoa: ‘por que aquele cara
forte não vai trabalhar?’ Uma pessoa chega numa empresa, fala assim: “eu tô
precisando de um emprego”. Você vem fazer sua ficha cadastral aqui, a pessoa vai
lá: “onde você mora?”, “ah, eu moro na praça (...) eu tô sem lugar pra morar”. Como
que eu vou te dar emprego desse jeito? Então, cada dia que passa, as portas fecham
pra aquela pessoa, e quem tá empregado não entende esse outro lado. É verdade ou
não é?
151
Como dono de comércio, também explica sua difícil condição de acolher estas pessoas
em situação de rua:
Tenho uma firma de prestação de serviços. Vai acontecer isso comigo também. A
pessoa chega aqui e fala assim “eu tô parado, e eu preciso de um emprego, mas eu
moro na rua”. Você acha que eu vou dar emprego pra uma pessoa assim? Eu não
vou dar. Então, cada dia que passa, as portas tão fechando mais praquelas pessoas,
entendeu? E as autoridades não vê esse lado, entendeu? Que a pessoa precisa de um
comprovante de endereço, precisa de um lugar digno pra sair daquele momento que
tá passando, entendeu? É difícil (...). Se você pensar os dois lados, você vai ver que
muita gente tá jogado não é porque a pessoa quer. É porque as portas vão
fechando, vai se fechando e, quando ele passa a morar na rua, as portas fechou total
pra ele, entendeu? (grifo nosso)
Para Maurício, quem mora na rua, a cada dia que passa, tem sua condição agravada. E
faz uma analogia para explicar o descaso com esta situação. Hipoteticamente, se na frente de
seu comércio um carro quebra, em pouco tempo aparece a CET (Companhia de Engenharia de
Tráfego) para guinchar, multar. Mas se surge um morador de rua, não aparecem agentes de
saúde preocupados com a condição daquele sujeito, interessados em tratar dele. E finaliza a
conversa alfinetando: “Deixa ele aí, entendeu? Porque ele não vai dar lucro nenhum pro
Estado. O que vai dar lucro é um carro, é um imóvel que tá ali com uma fachada que eles vão
multar (...). Então, fica difícil”.
apenas um jovem com expressão triste, desolada e com ar de interrogação. Permaneci ali,
sentada, sem a coragem de admitir que aqueles jovens talvez tenham sido intimidados por
aquela “autoridade” pelas suas roupas simples, chinelos nos pés, por conta de sua pele negra.
Cabisbaixa, fui surpreendida pelo Angelo, que oferecia o seu zine por um real. Zine é uma
possibilidade que se abre para artistas independentes comunicarem suas ideias, ideais e – no
caso de Angelo – de ganhar sem fazer mal a ninguém. Aquele zine, feito à mão, somado ao
sorriso sereno e franco do sujeito 3, iniciou outro viés de conversa naquele fim de tarde.
O rapaz, de 22 anos, explica que seu zine (Figura 73) representa uma resposta à
“comunicação violenta da sociedade”, que, via de regra, as pessoas acabam condicionando
suas necessidades “às exigências da sociedade”. Para ter um conforto – seja social ou
individual –, a alternativa é cada um procurar se conectar “à sua criança interior”, àquilo que
há de mais importante e essencial dentro da gente. Entre o que considera essencial e
importante, destaca o “amor”, a “compaixão” e a “retidão de caráter”. E, sem delongas,
explica: “Retidão de caráter tá relacionada à honra, né? E a honra tá relacionada à confiança,
né? Caráter é tudo aquilo que uma pessoa faz [no cotidiano], (...) o que ela pensa”. E continua,
dizendo que, quando se tem retidão de caráter, se faz tudo reto, se é confiável, é puro. E a
busca do ser humano deve estar centrada nesta pureza de consciência, de modo que “a nossa
alma, nosso coração, nossos sentimentos [devem] sempre serem puros e verdadeiros, porque
assim a gente reflete isso. O que tá dentro te explana pra fora e isso reflete nas pessoas, e as
pessoas refletem na gente, e assim a gente tem uma sociedade justa, uma humanidade
equilibrada”. Uma vez nesta direção, explica, o ser humano não se equilibraria no ódio, na
ambição, na ganância, na vaidade, mas se equilibraria no amor, “em todas as virtudes
elevadas que a gente carrega desde criança”.
Nem sempre pensou desse jeito. Produzir zines, fazendo-os a mão, ilustrando o texto
com desenhos, representa o afastamento de uma fase muito difícil de sua vida. “Tenho uma
história um pouco pesada”, “passei por um relacionamento abusivo”, adianta. Chegou a entrar
para o crime e, quando não sabia mais o que fazer com a sua vida, topa com um amigo poeta
e, sem titubear, abre toda a sua situação. O amigo marca um encontro no bairro em que mora,
na Zona Sul de São Paulo. No dia e hora marcados, encontra seu amigo e, de partida, recebe a
pergunta: “você tem alguma poesia?”. Em resposta, disse: “eu tenho o que eu sinto agora, no
momento”. O amigo-poeta retruca e o convida à ação: “então, escreve o que você sente”.
Naquele momento, Angelo escreveu tudo o que sentia, tudo pelo que estava passando.
Percebeu que aquilo não deixava de ser, também, de outras pessoas com as quais convivia no
seu dia a dia. Sua poesia, portanto, não falava dele, mas daqueles que também compunham
153
quem ele era. Nisto, dá-se conta de que o que sente não diz respeito apenas a ele, mas que
aquilo era, na verdade, um problema social. Desta história e experiência, surgiu o zine: “dessa
experiência ruim, eu tive ajuda desse amigo, que é o poeta Manuel, e ele também faz as
zines”. Para distribuir seus zines, passa a frequentar o centro da cidade de São Paulo,
procurando conversar com as pessoas e a apresentar seu trabalho, naquele momento, em sua
terceira edição.
A sua primeira poesia, alegra-se em lembrar, tem a preocupação de não “deixar que as
flores [‘o amor mais puro que a gente tem dentro da gente’] murchem”. O primeiro zine é
dedicado a ser “sincero consigo mesmo, ser transparente, ser puro consigo (...). Então, pra
você olhar pro outro, você primeiro deve olhar para si”. Tímido, leva um tempo para recitar o
seu primeiro poema, anunciando que é pesado, mas cede e declama: “olhe pra si, procure
olhar pra suas sombras, e clareia suas sobras, transforma suas sombras em luz”. Quando se
propôs a olhar para sua própria sujeira é que teve condições de limpá-la, pôde “vomitar tudo
aquilo” de ruim que estava dentro. E, explica, transformar em luz é sinônimo de “você estar
limpo”, preparado para deixar de ser um ser sem honra e sem rumo. Dali em diante, seu
compromisso, por meio da poesia, é manter-se reto, puro e verdadeiro. Isso porque acredita
que cada pensamento, cada fala e cada agir deve emanar amor. Se esta tríade – pensar, falar e
agir – não emana amor ou justiça, é melhor calar-se. “Se as suas palavras não forem melhor
que o seu silêncio, então prefira se manter em silêncio”.
O rapaz, hoje, reside no Recreio Privavera, em Itapecerica, e se criou no Capão
Redondo, lugar em que sua mãe e seu padrasto, ainda hoje, moram. Aos 22 anos, em sua
página do Facebook, aparece ao lado de colegas (meninas e meninos) que, com ele, integram
um grupo de hip-hop: é um grupo composto por “cinco elementos. Tem escritores, DJs, MCs,
grafiteiros e dançarinos”. Tanto pelas vias da poesia como do hip-hop, pergunta-se sempre: “é
possível amadurecer a mente sem endurecer o coração?” Para ele, amadurecer “é lidar com a
vida com amor. Porque ser duro é muito fácil, qualquer um pode ser duro”. E provoca: “Quem
é que tem coragem de abaixar o seu ego e (...) tem coragem de conversar com o irmão com
amor, sabe? Essa é a maior rebeldia. A maior rebeldia é o amor” (grifo nosso). Ser rebelde é
se comunicar amorosamente com as pessoas. Em busca de partilhar o máximo possível suas
ideias, história e poesia, divide-se. Às segundas, quartas e sextas, dedica-se ao centro de São
Paulo. Às terças e quintas, fica na Zonal Sul paulistana: “gosto de revezar, eu gosto que a
mensagem chegue não só às pessoas aqui no centro, mas eu gosto que cheguem aonde eu
moro também” (...) Pra transformar e me transformar também. Porque eu aprendo muito com
154
as pessoas na rua, sabe?” E continua: “Cada pessoa vem com uma história diferente (...) Cada
uma delas deixa uma parte delas comigo e eu deixo uma parte minha com elas”.
E explica que “todos somos um”, porque “pra alguém morar no prédio que tá aqui na
frente, teve um monte de pedreiro pra trabalhar pra construir. Mas, os pedreiros, pra
construírem o prédio, tiveram que ter as ferramentas e o cimento. Mas quem fez as
ferramentas? (...) O cimento?”. E justifica: “Não há nada que se faça só. A própria natureza é
assim, um elemento surge do outro elemento”. A natureza “tá em sincronia, por que a gente
seria diferente?” E defende que as pessoas, sendo individualistas, vão contra a lei da natureza.
Para tangenciar sua ideia, coloca: “Imagina se a natureza decidisse ter uma mente individual
como a gente? Ela não daria oxigênio, ela não daria alimento pra gente, porque ela pensaria só
nela como indivíduo”.
Angelo afirma dizer isso sem ser hipócrita, porque reconhece que há dias em que age
com seu ego. Reconhece que é errante, mas que está disposto a aprender com os seus erros.
Parece que, olhando para sua história, entende “que corajoso é aquele que erra, aquele que
olha pro seu erro e fala ‘agora é hora de mudar’”. E afirma que “se a gente começar a pensar
como uma mente universal, que tudo e todos estão conectados, ligados, relacionados,
diretamente ou indiretamente, aí sim a gente vai começar a viver num mundo melhor, num
mundo justo, num mundo verdadeiro”. E isso, complementa, não se trata de religião.
Fonte: A autora
155
Noutro dia, sentada em uma mureta mais próxima à Augusta, enquanto manuseava o
caderno de anotações de campo da pesquisa, fui surpreendida pelo Carlos, um jovem de 19
anos, que já se sentando ao meu lado, foi logo perguntando e esticando os olhos: o que você
tanto anota neste caderno? Respondi que tomava nota de algumas coisas e pessoas que
observava na praça, por conta de um trabalho que estava realizando. Ele disse: “entendi”. E
justificou ter decidido me perguntar, porque pouco antes eu o cumprimentara com um aceno
de cabeça. Para ele, aquele gesto foi muito educado. O rapaz vestia calça preta, usava
camiseta verde, calçava um tênis desgastado nas cores azul e amarelo da marca Mizzuno e
carregava, na mão esquerda, um skate de plástico muito acabado e tão pequeno que parecia
mais de criança. O fone branco apoiado no pescoço mostrava muito uso e, com o alto volume,
levava música a quem estivesse do seu lado. A música em questão era um rap. E o rapper era
Djonga. O álbum, recém lançado, chamava-se O Menino que queria ser Deus. Neste álbum,
sua música preferida é Eterno, cuja letra diz:
E o mundo tem sido pequeno demais pra nós, pra nós / E a vida tem dado conquista
demais pra nós / E o mundo tem sido pequeno demais pra nós, pra nós / E a vida tem
dado conquista demais pra nós / Pequeno demais pra tanto ego / E quando acabar
não se remonta / Vida não é Lego / Por isso eu corro igual Légolas / No meu
compasso de tartaruga, lebre te vejo lá / Onde não importa seu hype, seu nickname /
Onde Judas morre antes / É o juízo final / E só agora cê quer começar de novo / E
esses filhos que fizemos, quem vai criar? / Olha como deixamo o mundo / Tudo
explodindo, eu só querendo que ela dê pra mim / Esse mundo deixa a gente assim /
E esse trono de rei do rap, não vale nada / Enquanto morrer o menor pra ser rei na
quebrada / Tipo enquanto alguém for escravo, nenhum de nós é livre / E dessa aí eu
me livrei por pouco19
Carlos diz que Djoga fala sobre ser um menino negro, sobre um mundo que é racista
demais, que não dá oportunidades para as pessoas negras, que é violento demais. Falando em
violência, lembra que, na “favela” onde mora, o enquadramento dos policiais é bem diferente
daquele que vê na praça. “Aqui (...) é uma coisa, lá onde eu moro já é outra”. Na Roosevelt,
há “muito enquadro”, mas, onde mora, os policiais “zoam bem mais”. E denuncia: “se tiver
alguém passando, eles ameaça, mesmo se você não tá com nada. Você pode não estar com
nada: ‘ah, se eu te pegar aqui de novo, tal hora, vai ser isso, isso e aquilo’, entendeu?” E
revela que já “tomou enquadro” sob um facão empunhado por um policial: “Ele abriu um
porta mala e mandou todo mundo entrar. Aí: ‘não, não vamo não’; ‘Não vai entrar não?’;
19
Disponível em: https://www.letras.mus.br/djonga/eterno/. Acesso em: jul. 2018.
156
‘não, não vamo’; Aí, nóis não entrou. E aqui [na Roosevelt] não. Aqui eles sabem trocar uma
ideia, conversar, né?” Carlos comenta que:
Um GCM [(guarda civil metropolitano)] não pode triscar em você. É por lei isso.
Ele tem que levar você pros policiais pra ver no que se enquadra ali, né? Não pode
nem mexer, nem revistar sua bolsa, e eu já vi isso aqui, entendeu? Pessoas que não
sabem aqui, tipo pessoas mais carentes, que não sabem das leis. Mas eu gosto muito
daqui, por mais que tenha isso (grifo nosso).
Cantarolando a letra de Djonga, o garoto conta que já morou no centro de São Paulo
por cerca de 7 anos, na casa do seu tio, na região da Nove de Julho, e frequentou o colégio
Caetano de Campos. Daquele tempo, o que mais fica na sua memória é como as pessoas da
Roosevelt são focadas no esporte: “tem pessoas que eu conheço que, nossa, acorda cinco
horas da manhã só pra fazer esporte. E oito horas já vai pra faculdade, entendeu? Cinco horas,
acorda pra andar de patins, e oito horas já vai pra faculdade”.
Atualmente, há cinco anos morando sozinho na zona oeste, no Jardim João XXIII,
bairro localizado na altura do quilômetro 21 da Rodovia Raposo Tavares, a preocupação que o
interpela é criar condições para sustentar a sua independência e manter o aluguel de R$400,00
por um cômodo na comunidade. Neste sentido, aos sábados e domingos, tem a praça como
ambiente de trabalho, vendendo pizzas aos frequentadores: “eu vendo pizza, tô conseguindo
pagar meu aluguel até”, revela. É nesta atividade que pretende se manter até conseguir “fazer
uma coisa maior, tipo faculdade”. Para isso, planeja comprar uma bicicleta para entregar
comida, “tipo trabalhar com alimentos”, pois um amigo seu afirma ganhar “mais de dois mil
reais, só entregando”.
Revela que começou a trabalhar desde cedo, porque via sua mãe trabalhando muito
para construir a casa deles, para conseguir certo conforto, para tirá-los do aluguel que
abocanhava oitocentos reais da renda familiar. Mesmo com o padrasto ajudando na divisão do
aluguel, com tantas demandas de primeira ordem, não sobrava nada para a mãe gastar com
ele, comprando roupa, por exemplo. Em meio a esta lembrança, outra memória vem à tona: o
abandono do pai quando ainda tinha três anos. Apenas recentemente o pai entrou em contato
com ele. O rapaz diz: “Mó coisa pessoal, ruim. E aí, por eu não ter pai e minha mãe trabalhar,
ser sozinha, falei: ‘não, vou tomar um rumo diferente, quero aprender logo cedo’. Aí eu
comecei na feira, vendendo limão com a mãe do meu padrasto, né?”.
Então, aos 12 anos, começou a trabalhar. Aos 13, começou a andar de skate. Mas, em
pouco tempo, a avó de consideração deixou de ir para a feira, já que o “solzão” lhe rendia
muita dor de cabeça. Com isso, ele também deixou sua primeira ocupação, que pouco rendia:
157
“não ganhava quase nada na feira também, trabalhava pra minha avó mesmo (...), tipo, a mãe
do meu padrasto (...). Ela me ajudava também, era bom”. De vendedor de limões passa a ser
empacotador de um mercado. “Fui empacotador. Também trabalho no Tribunal de Justiça
Militar como auxiliar de corregedor”. Já panfletou. Já foi operador de telemarketing. E, “se
virando”, chegou ao curso de metalurgia do SENAI para operar máquinas de solda. Quando
pegou o certificado, já entregava pizzas na Roosevelt e já conseguia algum dinheiro com a
atividade.
A logística para a venda de pizzas na praça começa com uma passagem pelas pizzarias
da região: “É ali na Treze de Maio. Aí eu pego as pizzas lá, pego por um preço... Pego, vai,
tem pizza de oito reais, que é meio a meio, tem pizza de dez que é bem mais servida... Chega
aqui pra vender por um preço mais justo, sabe (...)? Vender [por] uns 15 reais ou,
dependendo, até uns 20 reais” por “uma pizza da hora aqui”. E a pizza é “da hora”, explica,
por ser recheada. Para aqueles que já o conhecem, basta ligar para ele que o preço sai
camarada. E afirma que, durante o Carnaval, alguns de seus amigos chegaram “a tirar 2 mil
reais só vendendo pizza. 3 mil, 15 mil, tipo, é muito dinheiro (...) Também é sorte, né?”.
Vendedor de pizza é uma função que lhe ocupa as sextas-feiras e os finais de semana, que é
quando a praça mais recebe gente “pra dar rolê”. Os frequentadores, conta o rapaz, tomam
álcool e “essas coisas” e, quando bate a fome, compram pizza mesmo. Quando a venda é
fraca, Carlos não se faz de rogado: leva para casa e come. Trabalhar aos finais de semana nem
sempre é sinônimo de energia boa: “tem dia de sábado que eu chego aqui e sinto umas
energias ruins”. Relata que “tem gente, morador de rua que tá bêbado, que chega pedindo, aí
tem pessoas que não gosta. Tudo bem, pode pedir normal, mas fica pedindo direto, aí, sei lá,
cola de tudo, pessoas da Cracolândia, de tudo mesmo, de tudo um pouco”.
O rapaz surpreende ao dizer que não considera a venda de pizza um trabalho e se
enxerga como “desempregado no momento” e que tem entregado currículo. Ele conta que
comprou um “amarelinho”, publicação com anúncios de emprego, e que lá estava sendo
oferecida uma vaga de emprego para maquinista, “dirigir trem”. Contudo, o candidato tem de
ter um curso básico de energia elétrica. “Aí, pra fazer esse curso, você tem que pagar 15 reais
e fazer uma prova. Se passar, você já começa trabalhando como maquinista ganhando R$ 3
mil de salário inicial, com vale refeição, vale transporte, tal. Eu tava pensando nisso até”.
Mas, enquanto “não tem nada pra fazer”, prefere ler um livro, “dar uma volta na praça”, ou
“compor música”. O livro que tem lido se chama Literatura Alemã. E revela: “muito difícil de
entender às vezes, mas até que dá pra entender um pouco”. Carlos chegou até este livro
“porque as pessoas, às vezes, por ser branco, ela acho que tem meio que um preconceito com
158
você, tipo você ser alemãozinho e a pessoa ser negra, aí, tipo. ela vai ‘e aí, alemão?’. Mas,
tipo, eu não chamo a pessoa pela cor dela, eu chamo ela pelo nome dela, entendeu?”. Então,
tenta explicar que a obra “tem a ver um pouco com isso. Fala um pouco que os alemães, eles
eram muito individualistas por causa da burguesia também. A burguesia é individualista numa
visão ampla, não é? É porque eu sei me comunicar bem, mas eu não sei umas palavras”.
Mudando de assunto, volta ao rap e de como gosta de fazer música e de cantar. E, para
isso, tem a praça que também acolhe batalhas de rap: “Ali, onde aqueles caras tão sentados,
tipo, começa umas oito horas. Aqui atrás tem batalha de rap de quarta-feira. Aí, tipo, vem a
batalha, né? Começa acho que oito horas, nove horas, aí é muito da hora as pessoas”. Carlos
já competiu, mas acha muito difícil a pressão de rimar uma coisa para atacar o outro
competidor. Ataque e defesa o tempo todo no ritmo da batida. E, no improviso, há quem fale
“muita besteira” como “coisas obscenas”. O garoto afirma preferir músicas cujo estilo seja
mais agressivo, “pelo que a sociedade é e pelo que gosta ‘de ouvir e ser’”. E, assim, partilha
uma rima de sua autoria:
Sou carne de pescoço, seu moço. Não me contento com pouco, fechado? Aqui nós
não paga imposto, pau no cú do Estado e dos coxinhas escroto. De quebrada sou, do
esquema eu vim, e o doutor me chamou de delinquente, dou o pacote, mostro o
dente. Sou pixo do mano Thug, vagabundo eficiente pela cidade, faz parte. Bandido
bem vestido porta 18 quilates. Gastar na praça é massa...
Seu estilo, que vai mais para um tom de agressividade, afirma, vem de uma revolta de
como os policiais enquadram as pessoas: “já faltou muito com respeito comigo. Tipo, já teve
amigo meu que morreu, policial matou”.
Para ele, “a segurança é muito precária”, pois “as cadeias não têm espaço”, “é tudo
errado”, “é tudo desorganizado, aí por isso eu já me indispus”. E continua: “Pra que a gente
paga essas pessoas? Pra fazerem o trabalho delas, que é dar a nossa segurança. Sabendo que já
tem casos de milícia, já tem casos de a gente vota num político corrupto que rouba da
gente...Aí, os políticos, né? O desemprego tá aí, a crise tá aí, tá tudo aí”.
Comparando o tempo em que morou no centro com o presente vivido em um bairro da
zona oeste, revela que há diferenças. No Centro, “as pessoas são muito mais nariz em pé”.
Comparando os prédios do centro, diz que o coração da cidade é como se fosse uma
Alphaville. “Lá na quebrada (...), não tem tanto prédio” e as pessoas você se depara o tempo
todo, embora sejam também “um pouco fechadas”. “Ninguém vai parar pra falar com você,
né? Que nem você... você falou ‘oi, tudo bem?' É bem difícil disso acontecer hoje em dia,
né?”.
159
tropeços. Mais para frente, dois jovens acrobatas colocam expressões, gestos e movimentos
em jogo sensual, brincando com a gravidade. Viravam e mexiam, flertavam o chão. Olhares,
sem desvios, apresentavam cumplicidade, confiança e sintonia, tornando-os um só. Na plateia,
matizes de gentes. Um casal ao lado, ouvi, celebrava em agarra-agarra o início do namoro ali,
diante daqueles rodopios. Na outra ponta, três jovens e uma caixinha de som colocavam funk
em mistura à paisagem sonora daquele momento enquanto davam cabo de seu beck e da sua
cerveja. Skatistas, com mochilas de pizza às costas, esgueiravam-se entre os artistas de rua
oferecendo e vendendo suas redondas. Não demora muito e a sobremesa também dá as caras.
Uma jovem de semblante e sorriso serenos pede licença. Levantando a tampa de um pote,
mostra brownies fartos feitos por ela mesma. Cada brownie vendido, explica, a coloca mais
próxima de sua pós-graduação em Psicologia. Pedi dois. Sorrisos francos trocados substituem
os enfadonhos “obrigado” e “de nada”.
Semanas depois, déjà vu. No lugar do brownie, zine a um real (Figura 74). A jovem
Fernanda, de 24 anos, oferece de brinde, pense só, a declamação de um dos poemas da
edição: Sãopauleando, Sem título, Vida utopista, ou Déjà vu... Escolho Sãopauleando, que
acaba por batizar parte do título deste capítulo:
Fonte: A autora
Sãopauleando conta parte de sua história: uma garota de Guarulhos que, sem saber o
porquê, sempre teve muita vontade de vir para São Paulo. Desde criança, para desespero de
sua mãe, dizia a si mesma: “ai, quero andar de metrô; ai, São Paulo; ai, não sei o quê”. Hoje,
formada em psicologia, afirma: “foi aqui que eu conheci todas as coisas que eu tenho
162
conhecido até o momento. Coisas que me expandiram, que me deram vazão pra me conhecer,
sabe?”. Sem se dar conta, explica o seu poema, recitando-o parcialmente: “Então Sãopauleando,
foi aqui que tudo aconteceu. Desde antes de tudo, sonhava em te encontrar. Me perdi nas
lixeiras feito gato molhado na telha, ou seja, eu me perdi em São Paulo, em busca das agulhas
prateadas. Sequer meu eu sabia, desse lixo sobra muito lacrimejo”. A pausa e um respiro
fundo encorajam-na em dizer que, quando fala das lixeiras, fala de ir muito para a noite, de ir
para festas, de álcool, de drogas, uma menina perdida na fase da faculdade: “eu não tinha
muita noção do que eu tava fazendo. Não que eu tenha ainda, mas não tinha nenhuma noção
naquela época, tava só vagando. Só que minha alma tava procurando alguma coisa, aí que eu
encontrei, que é o autoconhecimento. E aí hoje eu tô bem tranquila”.
Formada pela Anhembi Morumbi, divide o seu tempo entre a praça, a arte e o
acompanhamento terapêutico: “você vai dar um rolêzinho com seu paciente. É mais pra
pessoas que têm dificuldade de interação social, fobia, não sai de casa. Pra você apresentar o
mundo pra pessoa mesmo. Às vezes, o encontro fica acontecendo dentro da casa (...) até ela
conseguir dar uma volta”. Acompanhar as limitações do outro faz com que a gente se depare
com as nossas, valoriza. Já a arte, destaca, sempre fez parte de sua vida, mas entra
definitivamente em sua história perto dos dezessete anos, quando cursava o técnico em moda.
As técnicas de aquarela do curso chamaram-na a atenção e lhe mostraram que não era bem
moda o seu caminho. Depois de enfrentar a depressão “por causa de uma paixão idiota”
passou a pintar muito e, depois, começou a escrever também: “aí, às vezes eu pinto, às vezes
eu escrevo, e não para de sair, sabe? Mas, tem fase que eu fico (...) mais intelectual, e tem fase
que eu fico mais telúrica”.
De repente, um buldogue inglês, sem cerimônia, pula e esfrega o focinho na perna da
jovem pedindo carinho: “ele tá sempre aí. Ele gosta de carinho na bunda. É, ele vai
encostando o bumbum dele. Mas, muito legal” (risos). O dono, um boliviano, pede desculpa e
o peludo logo ganha outro rumo. A circunstância faz com que a jovem revele: “adoro
conversar com as pessoas na Roosevelt, tem gente de tudo quanto é tipo, né?”. Para chegar à
praça, de Guarulhos até o centro, leva uma hora e meia de ônibus. E diz, sem o menor
lamento: “é tranquilo até. Eu já tô acostumada porque durante a faculdade toda eu fiz esse
trajeto, eu sempre gostei de São Paulo. Mas, que nem eu falo na poesia, hoje em dia eu só
quero uma mata fria, mas jamais esquecerei do cinza quando bate no verde, porque são
pauleiras as lições que aqui habitam. É isso”. O cinza de que fala é o cinza do céu que,
tocando as árvores, emoldura o verde. E reflete: “O cinza é predominante, às vezes. Mas,
163
também pode ser o cinza da cidade quando bate no verde que é a natureza, né? A nossa
natureza”. Para a jovem, “a vida já é poesia”.
A rotina de viver a praça torna conhecidos rostos e traz para perto os mais recorrentes,
como é o caso de Fernando. O jovem, de 21 anos, começou a fazer malabares “na vila”, com
os amigos de bairro: “um parceiro apareceu com as clave, aí o outro também, aí eles
começaram a ensinar a gente, aí aprendemos, aí hoje, lá na vila, lá bastante gente faz, né?
Começou, tipo, com dois. Hoje, um monte de gente tá fazendo”. A vila a que o rapaz se refere
é Mauá, no ABC. Às quartas-feiras, frequenta a Roosevelt ou para treinar o malabarismo ou
para vender quitutes. Ou, ainda, os dois, como no dia desta conversa.
O malabares, orgulha-se, sempre é carregado na bolsa, porque todo lugar em que para
dá para jogar. Malabares, para Fernando, “é um esporte, uma distração, uma terapia, tudo e
mais um pouco”. A entrada do malabares na sua vida representa, afirma, “muita liberdade”,
quebra de barreira, uma abertura de espaço para que pudesse “viajar, jogar malabares no farol,
se apresentar, conseguir conhecer outras cidades e tudo mais. Tudo através do malabares”.
Entre os lugares conhecidos, em pouco mais de um ano de prática do malabares, o jovem
esteve em Americana, Limeira, Catanduva, São José do Rio Preto, apresentando-se
geralmente nos semáforos e, por vezes, em bares e praças; sempre contando com a
contribuição daqueles que podem.
Muito embora tenha preferência pela arte do equilibrismo, Fernando trabalha como
soldador, maçariqueiro, montador de caçamba, e vendedor de doces: “Me viro assim, faço
essas três coisas. É o que eu tenho feito ultimamente. Tanto vender doce, fazer o malabares no
farol, quanto às vezes fazer um bico como soldador também”. Entre um trabalho e outro, a
Roosevelt, para ele, representa liberdade pela quantidade de pessoas diferentes que ali
praticam atividades variadas, como skate, patins, malabares, passear com o cachorro, escutar
um som, dançar, gravar videoclipe. “É um lugar que, por ser no centro da cidade, a gente tá
perto de tudo. Pode subir a Augusta, cair na Paulista, na República, a Galeria do Rock, tá tudo
perto, né? Então, aqui é bem liberdade, né? De você poder chegar aqui e fazer o que você
quiser, dentro das leis, né?” Complementando, diz: “Então, a Roosevelt, pra mim, representa
bem isso: uma união, a galera bem unida também, né? Todo mundo com a sua arte”.
164
precisava muito colocar para fora o que sentia, começou a conversa falando do ponto de
virada na sua história: o reencontro com seu amigo-poeta. Contudo, parece, o estopim da
mudança já estava provocando uma série de acontecimentos interiores, de questionamentos e
reflexões ao veredito de que as coisas não poderiam continuar tal como estavam. O
questionamento de suas escolhas e o desejo de sair do “mundo ruim” habitavam o seu peito.
“O mundo mundano, ele traz várias oportunidades (...). Então, assim, a gente atrai aquilo que
a gente pensa. Então, o que eu atraí foram pessoas, o que eu atraí foram oportunidades ruins,
foi roubo, tráfico, consumo de drogas, que mais? E aí desunião com a família, briga,
inimizade, ameaça de morte, e aí vai... um monte de coisa”.
Sem refutar a vida pesada, leva-a como experiência e com o veredito de que todos têm
lá suas sombras, que clareá-las só é possível quando as pessoas se dão conta de suas
escuridões: “se a gente já sabe como é a nossa sombra, então procura clareá-la. Foi o que eu
procurei, aí apareceu uma oportunidade, e aí é o que eu procurei fazer: tornar a minha sombra
o mais clara possível”. Aliás, sombra não, sombras. Porque, como diz, todos têm diversas
sombras. Abrindo o coração, partilha:
Foram essas oportunidades ruins que apareceram do crime mesmo, a vida do crime
é suja, é cada um por si, e isso mostra o quanto a gente como humanidade é muito
primitivo, e a gente busca o poder, né? Porque no crime todo mundo quer ter poder.
A verdade é que a vida do crime, todo mundo, o cara que não quer ter poder, ele só
quer ter uma vida melhor pra ele, porque ele não teve quem conversasse com ele, ele
não teve quem ouvisse as angústias dele, as mágoas dele, as feridas dele, ou dela,
também, dela também, que tem muitas. Então é muito fácil julgar, mas é muito
difícil compreender, é muito fácil agir pelo ego, mas muito difícil agir pelo amor,
né? Então quem não tá no crime pelo poder, tá no crime por necessidade. São dois
caminhos: ou é pelo poder, por querer ter poder, ostentar qualquer tipo de poder, ou
porque não teve oportunidade e tá precisando e não encontrou outro caminho
(grifos nossos).
Explicando-se, diz que ninguém é igual a ninguém, que – via de regra – as pessoas não
sabem lidar muito bem com os seus sentimentos, que não têm clareza como aquela que estava
experimentando naquela conversa no meio da praça. Na vida do crime, explica, não tinha
clareza: “Então, no momento não era clareza que eu tava tendo, porque era uma coisa muito
de imediato, pelas necessidades, pelas circunstâncias”. Nessa “outra vida”, buscava dar cabo
de suas necessidades. Desempregado, na busca por oportunidade de carteira assinada,
experimenta por um bom tempo a informalidade vendendo bala em ônibus. Contudo, o ofício
trouxe junto o sentimento de exclusão: “aí a exclusão social ataca a autoestima do indivíduo,
né? O indivíduo com a autoestima atacada, o que ele faz? (...) Como ele vai ter perspectiva de
166
vida, uma perspectiva pro futuro, se nem a autoestima (...) consegue ter? (...) Começa aí a
exclusão social”.
Diversos fatores – principalmente a necessidade e, depois, poder –, conta, levaram-no
“pra esse lado”. Na periferia, desfere, “a molecada já cresce com essa visão de periférico” e
falar sobre isso é complicado porque envolve muitas coisas, “muitas mesmo”, coisas que
sequer as pessoas imaginam. Desviando-se daquilo que lhe é doloroso rememorar, volta à
questão do poder afirmando que o poder é falho, que, na verdade, poder sequer existe. O que
existe é “subjugar o outro (...). Subjugar o outro existe, mas o poder não. O poder é algo que
tá só na nossa mente. A gente tá pra viver a vida (...). O poder que a gente tem que ter é pra
comer, pra se vestir, coisas simples, básicas” (grifo nosso).
Carregar para o centro de São Paulo sua história de periferia, explica, é algo
“diferente”, um “choque cultural”. Isso porque, na periferia:
Você se depara com gente mais simples, né, pessoas que levam a vida delas como
pode e, já no centro, você já encontra aquela coisa da correria, você vê os executivos
indo trabalhar, você vê aquela correria de carro pra lá e pra cá. Na periferia já é mais
calmo, é mais sossegado, né? Essa questão da movimentação, então são vários
fatores que você, no meu caso, eu observo, né, que é um choque de cultura, é
diferente como as pessoas no centro se comportam e como se comportam na
periferia, sabe? Então, pra mim, é um choque de cultura, é um choque cultural,
porque é diferente, né? Já disse o Mano Brown: ‘o mundo é diferente da ponte pra
cá’, né, e o mundo realmente é diferente, né?
Na periferia, pensa, “o povo é mais espontâneo, mais solto (...). É como se fosse a
parte rural de uma cidade”. Na periferia, tudo está à margem, explica. “O Estado é o todo (...)
e o todo se faz centro. Mas, se esse centro tem uma margem, então significa que ele já não é
mais centro” (grifo nosso). Para Angelo, isso é o que acontece em todo o Brasil: as periferias
sempre acabam sendo vistas como a margem de tudo. Reforçando sua perspectiva, o jovem
relembra do filme A margem, em preto e branco, de 1967, sob a direção de Azualdo Candeias,
que narra como surgiram as periferias do Tietê, trazendo à trama às margens do Rio
paulistano, histórias de amor, loucura, prostituição e o contraste de um homem sufocado
vestido de paletó e gravata20. Nas palavras de Angelo:
A margem conta a história das periferias, como elas surgiram, que eram mulheres de
programa que não tinham mais pra onde ir, aí às margens do Tietê elas construíam
essas casas, aí se juntavam com os donos de cabaré, e aí dessa linhagem começou a
surgir, junto com alguns nordestinos que vieram também, aí começou a surgir as
periferias a partir daí. E aí cada periferia tem um histórico, né? Tem os imigrantes
20
Disponível em: http://www.adorocinema.com/filmes/filme-205161/. Acesso em: ago. 2018.
167
italianos que vieram, aí depois eles foram trocados pelos chineses, que os italianos,
eles eram muito exigentes, e aqueles italianos que não tinham mais condições de
trabalhar não tinham mais como morar em lugares de melhor condição, foram indo
pras periferias. Então por isso que você vai na periferia, você encontra
miscigenação, né? É diferente do que no centro. Por que a quantidade de negros na
periferia é muito maior? Por que a quantidade de pessoas com traços italianos na
periferia é muito maior, com traços nordestinos, né? Então você tem que pegar um
histórico de tudo. Então eu entro muito nessa questão do choque de cultura, do
choque cultural, porque eu fui percebendo isso na periferia, essa diferença quando
eu vinha pro centro, quando eu ia pra Santo Amaro. Aí eu falava ‘por que que é
assim?’ Por que aqui em Santo Amaro tem tanto nordestino? Por que no centro tem
tanto angolano? Por que a Bela Vista, que é toda de italiano? Eu sou descendente de
italiano. Por que tem tanto negro, tanto negro, tanto negro, tantas pessoas com traços
negros? Então é por causa disso, esse choque cultural, então eu sinto toda essa
diferença na cor, no comportamento (grifos nossos).
Então a gente pegava, vinha pra cá, vendia maçã do amor na Avenida Paulista, na
Parada Gay, na Copa do Mundo, quando tinha show, no Anhangabaú, aí juntava eu e
ela, aí eu carregava a mochila, aquela mochila pesada, cheia de maçã do amor, e
“Maçã do amor, um real, maçã do amor, dois real”, dependendo da maçã do amor
tinha chocolate ou não, e eu pequeninho “maçã do amor, um real”, e aí de vez em
quando tinha uns problema, né, porque policial não gosta, já naquela época os
policiais já encrencava, né? Então teve uma cena muito forte, assim, que eu tava
vendendo as maçãs do amor, né, e a aí o policial bateu na, eu carregava tipo um
isopor com as maçãs e o policial bateu e caiu no chão as maçãs do amor e trincou. E
aí eu sempre fui uma criança espoleta, eu era desbocado. E aí o policial fez isso e eu
fui desbocado, aí o policial foi e deu um tapa na minha cara, e eu caí no chão com o
resto das maçãs do amor, aí minha mãe foi pra cima do policial, agrediu o policial,
“filho da puta”, então aí juntou, virou aquela bagunça toda, e eu caído no chão, não
168
conseguia ver nada, só via os pés das pessoas, assim. Então a gente passou por essas
coisas também, não era só bom, mas o bom é que a gente chegava, assim, no fim do
dia a gente tinha o dinheiro, a gente contava o dinheiro, aí ia lá, comprava as coisas
pra comer, ou às vezes comprava...Aí quando era comemoração, minha mãe
comprava pizza, né, finalmente. (...) Então eu sempre acompanhei minha mãe.
Em épocas mais duras, quando não sabiam mais o que fazer para sobreviver, iam para
o litoral. A viagem dava até para extravasar um pouco, enquanto recolhiam latinhas na praia,
na rua, principalmente no final de ano, quando “o pessoal bebe muito” e deixa latas para todo
lado. E desse modo conseguiam juntar dinheiro para pagar o aluguel de onde queriam ficar:
“era a única felicidade que a gente tinha, era poder ir pra praia de vez em quando ver o mar.
Era a única felicidade que eu e minha mãe tinha, entendeu?”
Hoje, sua mãe tem a vida dela, mora com o namorado dela e, juntos, viajam de quando
em quando para o litoral. Sua mãe e o pai que o abandonara eram um casal de surfistas, livres,
“meio hippies”, que adorava acampar, relembra. Sua mãe, explica, não perdeu esse hábito,
“então ela vive a vida dela, vai pro litoral, eu vivo a minha”. Aos 22 anos, morando sozinho,
explica ter deixado a casa da mãe por conturbações, intrigas e pelo desejo de buscar a sua
independência, de “fazer a vida do meu jeito”. Hoje, avalia, “foi a melhor decisão”, por ter
encontrado paz com sua mãe. Não que sua vida esteja “100%”, por ter muito o que fazer para
se estruturar financeiramente, mas não corre mais risco de morte, entra em sua casa
sossegado, trabalha vendendo os seus zines por um real, aprende com as pessoas na rua
ouvindo o relato de suas histórias de vida, tudo o que elas têm pra lhe ensinar. “Então minha
mãe vive a vida dela assim e eu vivo a minha. E é isso, e eu vivo assim, eu sou essa pessoa”.
Sua mãe, afirma, o ensinou, por assim dizer, a ser “muito independente”: “Ela viu que meu
pai não ia ser presente, né? Então, ela falou assim: “eu tenho que tornar meu filho um
espartano, tenho que fazer dele um independente”, que a educação do espartano é isso, né, ele
aprende a ser independente. Então, eu aprendi a ser independente desde criança”. E desabafa
que ser filho único, no caso dele, acarreta mais responsabilidade: “me tornei um homem do
lado da minha mãe, tive que ser o guardião dela, e ela o meu, né?”
Para continuar firme em sua jornada, afirma embasar – e muito – a sua vida nos contos
gregos, principalmente nos contos espartanos. Relembra a história de um espartano que, para
se tornar um membro do exército, é jogado na selva e de lá só regressa ao completar 18 anos.
“Eles dão uma lança na mão dele e a capa vermelha com a identificação de que ele faz parte
do povo espartano (...). Ele é um soldado quando ele voltar vivo com 18 anos”. A metáfora do
conto, explica, é para que você seja o seu próprio mestre:
169
As pessoas podem te aconselhar, mas ninguém vai dizer a você o que você deve
fazer, só você sabe o que é melhor pra você fazer na sua vida, né? (...) Eu tô
passando por essa fase de eu ser o meu próprio mestre, (...), mas eu tô passando por
um momento de dificuldade na minha vida, e eu tô passando por um momento
difícil, mas eu tô passando por um momento difícil com a perspectiva de que quando
eu tiver os meus 30 anos lá na frente, eu vou olhar pra esse momento agora que eu tô
conversando com você, eu vou olhar pra trás, eu vou lembrar de tudo que eu vivi, e
aí eu vou poder passar pros mais novos aquilo que eu vivi. Então eu vou poder olhar
lá na frente com 30 anos, ou com 40, ou com 50 anos, e olhar pra trás e falar “ó, eu
não fraquejei, eu não fui medroso”, por mais que às vezes eu não tinha sempre o que
comer com 22 anos, quando eu chego em casa nem sempre eu tenho o que comer, eu
faço o meu melhor, nem sempre eu tenho tudo que eu quero, mas eu não fraquejei
apesar de tudo, entende?
Ouvir a voz interior é a estratégia para não sucumbir, para não fraquejar
independentemente das circunstâncias, como quando quase perdeu a vida em um acidente
sofrido que o deixara em coma. Caminhando na rua para ir fazer um exame, entre quinze e
dezesseis anos, anêmico como estava, desmaiou, bateu a cabeça, fraturou o maxilar, teve um
colapso cerebral. Depois de tantas camadas de conversa, parece ficar claro que, antes do
encontro com o amigo-poeta, esta experiência de quase morte representa o aspecto mais
emblemático de sua transformação. Teve, relata, “experiências, assim, fora do comum (...) de
você se ver fora do seu próprio corpo, você enxergar aquilo dali, você falar ‘opa, o que tá
acontecendo?’, né? Então existe, sim, não é religião, não é nada, tudo é espírito e matéria
mesmo”.
Quando acordou do coma, despertou a verdadeira pessoa que era e que estava diante
de mim naquela praça, afirma com veemência. À época do acidente, sua mãe acabou por
projetar nele uma série de questões, desabafa. O pai ausente desde sempre, deixou de vez de
pagar a pensão e a resposta à situação foi uma relação desgastada com sua mãe: “tudo que era
do meu pai ela começou a projetar em mim”. A rebeldia o fez pular o muro de casa, passar
uma semana dormindo na rua.
Já não bastava tudo da infância, aí foi pra adolescência, aí começou a piorar, o meu
comportamento também. Aí eu meio que tive um stop. Uma força superior deu um
“ó, você tá passando dos limites”, deu um stop, aí que eu tive uma experiência,
depois desse acidente que eu vi algumas coisas, então existe sim, e eu só vejo a cada
dia que nossa humanidade é muito atrasada, a gente tem uma sociedade muito
degenerada, e a gente tem que olhar pra dentro de nós mesmos, não ter medo de
amar, não ter medo de dizer o que sente pro outro, dizer eu te amo, dizer me perdoe,
eu te amo, obrigado, é a melhor coisa que a gente pode dizer. (...) Como eu falei a
importância do instante, como aconteceu comigo, né, eu ia fazer um exame, mas eu
podia ter morrido, porque o que aconteceu foi isso, eu tava dentro da ambulância, e
aí eles começaram a perceber que o meu organismo começou a parar. Então eu
sentia uns choques, não sei se era desfibrilador ou algo do tipo, mas eu sentia uns
choques em mim, dando os choques. Então é isso, a importância do instante, que
esse foi o terceiro zine, a importância do instante, a importância do agora, porque da
170
mesma forma que aconteceu comigo, que eu virei na esquina e entrei no AMA pra
fazer um exame de sangue e caí, poderia ter morrido, né?
Dá-se conta que, naquele dia, saiu de casa sem dizer à mãe que a amava. E se tivesse
morrido? Morto não tem voz: “você querer gritar pro mundo que você ama o mundo. Imagina
você querer gritar, mas não sai, não sai? Quero viver, não sai, entende?”. Longe de ser santo,
assume suas mazelas e dias em que sequer deseja olhar para os seus dois cachorros. “Chego
em casa e eu realmente nem olho (...) pra eles (...), mas também é pra não machucar eles,
sabe? Que eu acho também que a gente é responsável pelo que a gente faz, né? Então não
quero ser uma pessoa má com eles, né? E é isso”. Mas, busca, a cada dia, aprender mais e a
manter a sua espiritualidade: “não busco religião, eu busco a espiritualidade, seja ela
hinduísta, espírita, candomblé, umbanda, evangélica, hare krishna, budista”.
A mestiçagem, tal como a proposição de García Canclini (2015), que procura esquivo
de reducionismos de plantão, não é simplesmente homogeneização e reconciliação
intercultural. A mestiçagem, para além do sentido biológico, implica questão cultural, na qual
bailam, flertam, hibridizam-se hábitos, escalas valorativas, sistemas de crenças, jeitos de
pensar. A ideia de hibridização concebida pelo autor, por assim dizer, privilegia os processos
que se articulam, principalmente, pela via da confrontação, pela via da dialogia, em meio às
tensões das diferenças. Nas palavras do autor, “a hibridização, como processo de interseção e
transações, é o que torna possível que a multiculturalidade evite o que tem de segregação e se
converta em interculturalidade” (GARCÍA CANCLINI, 2015, p. 27). A história, defende, não
deveria ser reduzida a guerras, trincheiras, insularidades culturais (sociais, econômicas, ou de
que ordem sejam). Chegar a este momento do trabalho com a fala dos jovens – Marcos,
Maurício, Angelo, Fernando, Fernanda e Carlos – entremeando as tessituras antes tecidas,
evidencia a complexidade e o caráter processual do tear dos fios discursivos.
A Roosevelt, ordinária que é, não escapa ao sincretismo, à crioulização, à mestiçagem,
à hibridização. Entrelaçam-se adesões a sistemas de crenças (não apenas as religiosas),
misturas interculturais brotadas de variações de vieses culturais, processos sociais de agora e
d’outros tempos. Deste modo, a Roosevelt não é apenas a Roosevelt, mas uma combinatória
que traz consigo outros bairros (Guarulhos, Mauá, Capão Redondo, Recanto Primavera,
Itapecerica da Serra etc.), gentes, prosas, músicas, zines; em profusão de possibilidades para
171
Morena de Angola que leva o chocalho amarrado na canela / Será que ela mexe o
chocalho ou o chocalho é que mexe com ela? / Morena de Angola que leva o
chocalho amarrado na canela / Será que ela mexe o chocalho ou o chocalho é que
mexe com ela? / Será que a morena cochila escutando o cochicho do chocalho? /
Será que desperta gingando e já vai chocalhando pro trabalho? / Morena de Angola
que leva o chocalho amarrado na canela / Será que ela mexe o chocalho ou o
chocalho é que mexe com ela? / Será que ela tá na cozinha guisando a galinha à
cabidela? / Será que esqueceu da galinha e ficou batucando na panela? / Será que no
meio da mata, na moita, a morena ainda chocalha? / Será que ela não fica afoita pra
dançar na chama da batalha? / Morena de Angola que leva o chocalho amarrado na
canela / Passando pelo regimento ela faz requebrar a sentinela / Morena de Angola
que leva o chocalho amarrado na canela / Será que ela mexe o chocalho ou o
chocalho é que mexe com ela? Morena de Angola que leva o chocalho amarrado na
canela / Será que ela mexe o chocalho ou o chocalho é que mexe com ela? / Será que
quando vai pra cama a morena se esquece dos chocalhos? / Será que namora fazendo
bochicho com seus penduricalhos? / Morena de Angola que leva o chocalho
amarrado na canela / Será que ela mexe o chocalho ou o chocalho é que mexe com
ela? / Será que ela tá caprichando no peixe que eu trouxe de Benguela? / Será que tá
no remelexo e abandonou meu peixe na tigela? / Será que quando fica choca põe de
quarentena o seu chocalho? / Será que depois ela bota a canela no nicho do pirralho?
/ Morena de Angola que leva o chocalho amarrado na canela / Eu acho que deixei
um cacho do meu coração na Catumbela / Morena de Angola que leva o chocalho
amarrado na canela / Morena, bichinha danada, minha camarada do MPLA (CLARA
NUNES).
meio a pobreza e a violência –, apesar de tudo, se consegue fazer brotar uma riqueza, a
riqueza da superação de movimentos de oposição e de preconceito. Nesta direção, o que de
início era suspeita, confirma-se: a Praça Roosevelt, instável e movediça que é, dadas as suas
matizes múltiplas, variadas intensidades, ideias plurais circulantes e polêmicas em termos de
opinião, como as neste trabalho apresentadas, postula-se como campo fértil às mediações, no
qual embates pelo direito de significar e valorar certos vieses nos sujeitos se dão nas
filigranas, em um gesto criador cotidiano. Em meio a processos comunicacionais, a aridez
entrelaça-se a imaginativas e fecundas táticas.
A Roosevelt, portanto, é compreendida como espaço comunicacional citadino, como
esfera cultural, como produtora de narrativas (textos, contextos e experiências) que colocam
em circulação significados. Tais significados, por seu turno, principiam antes dos sujeitos e se
estendem para além deles. Como é possível depreender do primeiro capítulo, cujo objetivo
específico é o de conhecer os sentidos oferecidos pela produção audiovisual sobre a praça
Roosevelt antes de sua principal reforma. As primeiras vozes da cultura rooseveltiana
apresentadas são as dos documentário Palco Roosevelt (2007) e Roosevelt: uma praça além
do concreto (2008).
O primeiro, revela a Praça para além de um lugar de passagem, como potência
cultural, cuja dinâmica é capaz de mobilizar no espectador reflexões sobre o aspecto social e a
sua pluralidade urbana fundante. Nas primeiras imagens, da não-praça à Roosevelt entregue
em meados dos anos 1970, um zumzumzum de depoimentos dá o tom de variadas
perspectivas sobre o lugar até que o badalar do sino da Igreja Nossa Senhora da Conceição
enderece a atenção do espectador ao anúncio do título do documentário. A Roosevelt,
multiforme e plástica, passa do posto aparentemente pacato de uma província para um lugar
no qual, embora público, não de ser para todos.
As representações dos moradores em situação de rua mostram-nos marginalizados,
pelas beiras da Igreja, na companhia de fiéis peludos, em busca de lampejo de solidariedade,
na ânsia de serem visto ainda como dotados de humanidade. O que encontram, salvo raras
exceções como a ajuda de um senhor chamado Carlos que leva de sua casa de alimento a
sabonete, é a indiferença, ou, pior, aqueles que desejam bani-los da Praça. Para fora da
Roosevelt, alguns desejam colocar a homarada da pelada, a cachorrada, a putas, os skatistas e
os dependentes químicos; sendo que estes últimos já passam por um apagamento da memória
urbana na medida em que são mencionados na obra fílmica, mas não são mostrados por ela.
Além disso, mesmo na voz de um dos representantes dos teatros, muito embora houvesse o
175
desejo de que ninguém fosse de lá expulso, tentar entender esse “mundo de malucos”
denuncia um relativo juízo de valor sobre o assunto ao ser usada tal expressão.
Os exemplos fazem pulular as explicações de Sousa Santos (2008), para o sentido de
exclusão. O extermínio, explica, representa o ápice da exclusão. O desejo de extermínio no
documentário é cristalizado em narrativas cujo objetivo é colocar bem longe da Praça
Rooosevelt algumas personagens citadinas. Sai uma tribo, entra outra. Neste sentido, como o
aumento exponencial do valor do metro quadrado na região, coloca a distância as putas, por
exemplo, corporificando um processo de gentrificação que tem se verticalizado ao longo dos
anos.
Já no documentário Roosevelt: uma praça além do concreto, os depoentes partilham,
ainda, suas memórias sobre o lugar e despontam saudosismos de certas vivências, como uma
entrevistada, a Bartira Cataldi, que, emocionada, recorda a Roosevelt tornando-se seu
endereço tão logo deixara a maternidade. Também vem nas vozes dos entrevistados a saudade
de certos lugares e de sua aura de outrora como o Bar Papo, Pinga e Petisco, a casa Baiúca e
seu famoso estrogonofe, o Cine Bijou preferido por uma juventude da época para ver filme
cabeça. E há, ainda, a nostalgia da “boa música” por ali circulante como o Zimbo Trio, Elis
Regina, Chico Buarque, Johnny Alf, Cauby Peixoto. Depois de experimentar uma fase
obscura, “de bandidagem pura”, a praça passa a ter, de acordo com um dos depoentes, um
feixe de luz com a chegada dos teatros à região, como o grupo Os Satyros e o Espaço
Parlapatões. Os “bandidos deixam a cena” e o espaço converte-se em espécie de ponto
turístico.
Para além da concretude, quiproquós citadinos é o título do segundo capítulo em que
a intenção é tomar contato com a história mais recente da Roosevelt, conhecendo as narrativas
audiovisuais oferecidas sobre a praça Roosevelt após a sua principal reforma, finalizada em
2012. Neste sentido, a aproximação se dá inicialmente como o documentário Arquiteturas:
Praça Roosevelt no qual, além da pluralidade de seus frequentadores, são colocadas lentes na
questão da qualificação urbana. Parte-se, na obra, do fato de a Praça, que já foi “um asfaltão
imenso” e estacionamento para vinte mil carros, ser, desde sua inauguração nos anos 1970,
um ponto nodal da cidade, sob o qual pulsa a trepidante ligação norte e sul, leste e oeste.
A Roosevelt é, na fala de alguns entrevistados, um complexo viário no qual primeiro
se pensou em um projeto destinado aos carros e, depois, às pessoas. Diego Bernardino, um
skatista profissional, evidencia que ao longo do tempo, quem jamais se afastou da Roosevelt
foi a meninada do skate. Ele próprio, em dias de chuva, ia do Vale do Anhangabaú para a
Roosevelt, o que “salvava o rolê”.
176
impressões do campo advindas. Nesta etapa, são apresentadas as perspectivas sobre a região
da Praça Roosevelt tanto a partir de autoridades (discursos institucionalizados) como de
moradores (relatos de sujeitos ordinários). Na narrativa institucionalizada, de um Conselho da
região, uma trincheira já se estabelece visualmente: Em uma reunião, de um lado mesa
constituída por autoridades e exagerados primas anunciando seus nomes e cargos; de outro, os
sujeitos ordinários. Daí já se pode tangenciar a assimetria de vozes corporificada na estrutura
do evento. Ao longo daquele encontro, atentando-se às demandas que tangenciavam a
Roosevelt, estavam moradores que, por decreto, colocaram por terra As Satyrianas. Em sua
18ª edição, a programação ao ar livre do evento fora cancelada e o debate Porque somos todos
baldios, restrito a um público menor. Pregou-se para convertidos, por assim dizer, visto que a
pauta do debate pairava sobre a democratização dos espaços públicos, a proposta daquela
edição. Já entre os apontamentos feitos pelos moradores do entorno da Praça, um jornalista e
um engenheiro civil, conhecidos na reunião do Conselho da região, outros sentidos sobre
aquele espaço são oferecidos; dentre os quais destaca-se o episódio de uma conversa via
Whatsapp com outros moradores. Um dos integrantes do grupo, relata um dos entrevistados,
externou a aflição de que naquele Carnaval, a bagunça seria grande, mas a confusão seria
maior ainda por conta de a prefeitura ter contratado haitianos para realizarem a limpeza da
praça. A maneira como a questão foi posta, escancarava que o problema não era apenas o
haitiano, sua origem, mas também pela cor de sua pele. Xenofobia e racismo a um só tempo.
A partir das duas narrativas – a institucional e a emanada pelos residentes do entorno da Praça
– o espaço urbano é o resultado da fruição da cidade pelos personagens sociais. Com cuidado,
devido aos distanciamentos históricos, contextuais e temporais, as narrativas apresentadas no
terceiro capítulo aproximam-se da acepção de establishment e established, que, juntos,
compõem os estabelecidos (ELIAS, 2000). Estabelecidos são entendidos pelo autor como
aqueles que ocupam posição de prestígio e poder em uma dada sociedade. Percebemos, deste
modo, como estabelecidos tantos aqueles que compõem o relato institucionalizado (Conselho
da região) como os moradores do entorno conhecidos durante este evento. Falar em
establishment, established, que, juntos, constituem os estabelecidos, é oportuno dizer,
representa estratégia de categorização didática, pois, tal como proposto por Certeau (2014),
refutamos a ideia de atomismo social. Reconhecemos que as relações entre os sujeitos se dão
em meio aos patchworks do cotidiano, determinando os termos das sociabilidades. Para além
disso, a partir do mesmo autor, consideramos que cada individualidade é essencialmente
plural e, por vezes, incoerente e contraditória. Evidenciando tal perspectiva, parte dos que
constituem o grupo dos estabelecidos, por decreto, procuraram colocar para fora da Praça
178
eventos como a Satyrianas, festival idealizado há mais de 18 anos pelo grupo teatral Os
Satyros. A restrição da Roosevelt, fazendo-a feito quintal, cercada por grade é o que desejam
alguns. Sequestro do espaço público, é o que, em tom de denúncia, como a outra parte dos
estabelecidos categoriza esta iniciativa. Para fora da Praça teatro, dança, música, leituras
dramáticas, haitianos e outras “bagaceiras” de gentes. Ainda que seja ruim o que dizem sobre
essas sobre essas ditas “bagaceiras” de gentes e iniciativas, escrevam-nas, escrevam-nas.
Porque este também é uma maneira de conferir-lhes existência; como dá pista o bolero
Escríbeme, de Javier Solis.
No quarto capítulo, “Andar com fé eu vou, que a fé não costuma faiá”, a atenção volta-
se à refletir sobre a produção de sentido emanada por certas esferas constitutivas da Praça
Roosevelt. E o caminhar pela Igreja Nossa Senhora da Consolação foi transformadora.
Transformadora, entre outros aspectos, pela proximidade de histórias de moradores em
situação de rua, população flutuante, constitutiva e constituinte da Praça Roosevelt. Lembro
da alegria de uma senhora que, em uma das tardes de doação, revelou, com relativo
entusiasmo, que havia conseguido emprego no Habib’s e que se houvesse alguém interessado,
bastava ter carteira de trabalho; não havia a exigência de um CEP. Ninguém se entusiasma. E
não é possível julgar este silêncio porque as histórias por trás de cada um são complexas
demais para tal, como aprendi com a freira à frente das ações junto àquelas pessoas. Em anos,
pouca gente ela conseguiu ajudar a sair das ruas. Neste contato, no gesto de separar as peças
para colocar nas pilhas de doação para serem escolhidas, causa ojeriza o fato de que, na
verdade, não se trata de doação, trata-se de se livrar de certas coisas. Livramento de roupas
puídas demais, com zíper estourado, com rasgos; sujas demais. Na margem, da margem,
recordo, o homem trans. De cara, tratou de dizer no cadastro que não era mulher. Que era uma
pessoa diferente a do RG. Pediu para ser tratado no pronome masculino e o seu desejo
naquele dia era um top para pressionar o seu peito. Na América Latina, desigualdade e
exclusão agravam-se porque sofre metástase o perverso jogo da “violência da coerção e da
violência da assimilação” (SANTOS, 2008, p. 279).
No último capítulo, “Sãopauleando”: prosa, verso, música e zine, procura-se revelar
os aprendizados junto aos jovens frequentadores da Roosevelt a partir de suas histórias de
vida. Entre as histórias, a Roosevelt desponta, na visão de Marcos, de 22 anos, como “um
lugar perfeito para ser adolescente”, para “dar um rolê”, pode ser considerada “um centro
histórico do skate”. E, skate, para ele é família, é união. É um esporte por meio do qual um
olha pelo outro. Para Angelo, a praça é seu escritório, no sentido de que ali vende seus zines,
isto é, sua arte em desenhos e poemas manuscritos. E sua poesia traz sua própria história, sua
179
superação e o compromisso de não fazer mal a ninguém para sobreviver. Para ele, o maior
gesto de rebeldia que há é amar. Já Fernanda é pura poesia telúrica, psicóloga formada, vende
brownies e zines para tentar fazer sua tão esperada pós-graduação. Como diz em uma de suas
poesias, “unindo versos despertos ouvintes espertos capturam a cor e agem”. Em cada pessoa,
um mundo. Em cada uma, muitas Roosevelts. Pela fala de cada pessoa, uma multidão. Nas
táticas de sobrevivência – pelos malabares, pela música, pela poesia, pelos desenhos, pela
conversa, pelos zines, encontra-se um jeito político de existir.
Deste modo escamoteado, esta fração da urbe, coloca em circulação vieses que se
pretendem verdadeiros e evidencia uma profusão de estratégias e de táticas constitutivas do
cotidiano, que, como alerta Certeau (2005), é inventado ininterruptamente. A palimpséstica
Roosevelt é uma terra barroca composta de temporalidades, processos tradutórios, colocando
em xeque progressão e linearidade, como explica Pinheiro (2013). Da não-praça para a Praça
da Consolação e, daí, para Praça Roosevelt, texturas urbanas postam-se feito cabo de força
pelo direito de significar aquela parte do coração da cidade de São Paulo. Deste modo, como
aponta Delgado (2007), uma coisa é a cidade da prancheta dos arquitetos, outra questão é o
espaço urbano, que se origina a partir da fruição da cidade pelos sujeitos. Deste modo, a urbe
é pleno experimento que reflete e refrata indivíduos e é atravessado pelos imperativos de cada
momento. Trata-se, por assim dizer, das chamadas formas entrelaçadas que, ao mesmo tempo,
incluem e traduzem, entre outros aspectos, as vozes nas culturas (PINHEIRO, 2015). A
heterogeneidade, por assim dizer, gera conhecimento na movimentação.
180
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AUMONT, Jacques. MARIE, Michel. A análise do filme. Lisboa: Edições Texto & Gráfica, 2004.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e a filosofia da linguagem. 10. ed. São Paulo: Annablume, 2002.
BAUMAN, Zygmunt. Vida para o consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de
Janeiro: J. Zahar, 2008.
BITTENCOURT, Maíra. Grounded Theory como metodologia para estudo das mídias digitais. In:
C&S, v. 39, n. 1, p. 143-161, jan/abr. 2017.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. 22 ed. Petrópolis, RJ: Vozes
2014.
DELGADO, Manuel. Sociedades Movedizas: Pasos hacia uma antropología de las calles. Barcelona:
Anagrama, 2007.
DOUGLAS, Mary. ISHERWOOD, Baron. O Mundo dos Bens: para uma antropologia do consumo.
Rio de Janeiro: UFRJ, 2004.
FERRARA, Lucrécia D’Alésio. Ver a cidade: cidade, imagem, leitura. São Paulo, ed. Nobel, 1988.
FRAGOSO, Suely; RECUERO, Raquel; AMARAL, Adriana. Métodos de Pesquisa para internet.
Porto Alegre: Sulina, 2011.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. In: __________. A importância do ato de ler em três
artigos que se complementam. 9. ed. São Paulo: Cortez, 1983.
GARCÍA CANCLINI, Néstor. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. 4. ed.
7, reimp. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2015.
GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. São Paulo: Cia das Letras, 2001.
LAPLANTINE, Claude; OLIEVENSTEIN, François. Um olhar francês sobre São Paulo. 1.ed.
XXXX. Brasiliense, 1993.
LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.
LOTMAN, Iuri M. La semiosfesra I: semiótica de la cultura y del texto. Madrid: Ediciones Cátedra,
1996.
181
MARCELINO, Rosilene Moraes Alves. Praça Roosevelt: Barroco e Antropofagia no Coração de São
Paulo. In: GP Comunicação e Culturas Urbanas, XVIII Encontro dos Grupos de Pesquisas em
Comunicação, evento componente do 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação.
Joinville, SC: Intercom, 2018.
MILLER, Daniel. Trecos, Troços e Coisas: Estudos Antropológicos sobre a Cultura. Ed. Zahar: Rio
de Janeiro, 2013.
MORIN, Edgar. O método 4: as ideias, habitat, vida, costumes, organização. 6.ed. Porto Alegre, RS:
Sulina, 2011.
NEIBURG, Federico. Apresentação à edição brasileira: A sociologia das relações de poder de Norbet
Elias. In: ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os Estabelecidos e os Outsiders: sociologia das
relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Com os olhos no passado: a cidade como palimpsesto. Santa Catarina:
UFSC, 2004.
PINHEIRO, Amálio. América Latina: Barroco, Cidade, Jornal. São Paulo: Intermeios, 2013.
PINHEIRO, Amálio. SALLES, Cecília Almeida (Orgs.). Jornalismo expandido: práticas, sujeitos e
relatos entrelaçados. São Paulo: Intermeios, 2016.
SALLES, Cecília Almeida. Gesto inacabado: processo de criação artística. São Paulo: Intermeios,
2013.
SANTOS, Boaventura Sousa. A gramática do tempo: para uma cultura nova política. 2. Ed. São
Paulo: Cortez, 2008.
SANTOS, Milton. Por uma economia política da cidade: o caso de São Paulo. 2.ed. 1.reimpr. – São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012.
SILVA, Luiz Antonio Santana. MADIO, Telma Campanha Carvalho. Linguagem cinematográfica e
documentos audiovisuais: compreendendo seus elementos. In: VI SECIN Seminário em Ciência da
Informação: Fenômenos emergentes na Ciência da Informação. Londrina, PR: 2016.
SLATER, Don. Cultura do consumo & modernidade. São Paulo: Nobel, 2002.
VANOYE, Francis. GOLIOT LÉTÉ, Anne. Ensaio sobre a análise fílmica. 7.ed. Campinas/SP:
Papirus, 2012.
Bibliografias consultadas