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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC/SP

Rosilene Moraes Alves Marcelino

Comunicação e cultura em filigranas:


Narrativas e produção de sentido sobre a Praça Roosevelt

DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

São Paulo
2018
Rosilene Moraes Alves Marcelino

Comunicação e cultura em filigranas:


Narrativas e produção de sentido sobre a Praça Roosevelt

Tese apresentada à Banca Examinadora da


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência para obtenção do título de
DOUTORA em Comunicação e Semiótica,
área de concentração: Processos de criação na
comunicação e na cultura, sob a orientação do
Prof. José Amálio de Branco Pinheiro.

São Paulo
2018
Autorizo exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial
desta Tese de Doutorado por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos.

Assinatura:
Data:
E-mail:
Rosilene Moraes Alves Marcelino

Comunicação e cultura em filigranas:


Narrativas e produção de sentido sobre a Praça Roosevelt

Tese apresentada à Banca Examinadora da


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência para obtenção do título de
DOUTORA em Comunicação e Semiótica,
área de concentração: Processos de criação na
comunicação e na cultura.

Aprovado em: ___/___/_____

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________________________
Orientador e Presidente da Banca
Prof. Dr. José Amálio de Branco Pinheiro (PUC/SP)

____________________________________________________________
Avaliadora Externa
Profa. Dra. Maria Aparecida Baccega (ESPM/SP)

____________________________________________________________
Avaliador Externo
Prof. Dr. João Osvaldo Schiavon Matta (ESPM/SP)

____________________________________________________________
Avaliador Externo
Prof. Dr. Silvio Koiti Sato (ESPM/SP e FAAP)

____________________________________________________________
Avaliadora Interna
Profa. Dra. Cecília Almeida Salles (PUC/SP)
Para Carlos José Marcelino.
Esta pesquisa foi desenvolvida com o auxílio de bolsa
CAPES/Módulo Taxa, além do apoio da FUNDASP.
AGRADECIMENTOS

Bendita hora, querido Ivan Pinto, quando os caminhos da vida, serpenteados e


matreiros que só, colocaram-nos lado a lado, há quinze anos. Não fosse você dar corda, cá não
estaria. Daí o posto de pai acadêmico. Feito de atitude, gentileza, brandura, graça,
sensibilidade e muita genialidade na lida com as palavras, regou sonho em mim. Virei roseira.
Você, os olhos não alcançam mais. Na gratidão, revive em mim.
E a rega, agora, vem pelas mãos do Amálio, o José Amálio de Branco Pinheiro. Para
além d’água, poesia-alimento. De chapéu à cabeça, “artesania” como ofício, brinca de
marchetarias, ginga pensamentos, borda gentes. Ora na boca miúda, ora a plenos pulmões,
apequena o uno, o monocórdico. No jardim das terras barrocas, ensina, floresce o diverso, o
plural, o palimpséstico, os movimentos tradutórios. Gratidão, poeta-jardineiro-artesão-
tradutor-orientador.
E, no meio tempo, bons ventos trouxeram o frescor de gente boa. Corações danados de
largos, sem titubear, a tirar, na vida de todos os dias, na base da enxada, as ervas-daninhas da
ansiedade, da insegurança, do mundo de cabeça para baixo. No lugar, sopros de leveza,
amizade, confabulações, risos. Gratidão Andrey Albuquerque Mendonça, Daniel Gomes (o
Gedai), Emanoel Santos, Marcello Monteiro, Marcos Maurício, Mario Ernesto Renê
Schweriner, Matheus Matsuda Marangoni, Roberta Scórcio Maia Tafner, Tiago Pereira
Andrade, Thais Carrapatoso, Vanessa Clarizia Marchesin. Gratidão aos “fofuchos”-ex-alunos-
monitores-voluntários-amigos Alex de Abreu, Beatriz Aoki, Camilla Rocha, Fernanda
Kushima, Fernanda Melo, Fernanda Politanski, Fernando Matijewitsch, Gabriela Zimberg,
Giuliana Dias Angelini, João Godoy, Lucas Cabrini Tanabe, Sabina Lovato.
Iluminando a jornada, Carlão. Marido, amigo, cúmplice faz de um tudo para deixar
essa “essa metamorfose ambulante” acontecer de quando em quando. Sem corar, gênio forte,
coração pelúcia, bota pra quebrar. Cozinha, faxina, faz mercado, lava roupa, passa, resmunga,
faz sacolão, lava louça, cuida da cachorrada, rala na empresa, assiste Netflix, abastece o carro,
prepara marmita, cuida das contas, caminha ao lado, compreende, fortalece, zanga, ama,
vibra, pulsa, cresce junto. Obrigada pelos (quase) vinte e cinco anos sonhando junto. Amo
você, Carlos José Marcelino. Dias melhores para sempre.
.
“Antes um
Louco
Sincero
E verdadeiro
Do que um
hipócrita
são”

Poeta Nayak.

+++++++++

“Aproveita cada vento


Pois toda célula
Ou brisa
é efêmera
O acaso, ritmo do passado
não pede licença pra passar
Enquanto o coração queima
feito incenso
A vida, não perde a música
Dá luz ao ritmo, responde ao
eco;
desprende um aroma
que damos nome:
Instante”

Natália Martins
MARCELINO, Rosilene Moraes Alves. Comunicação e cultura em filigranas: narrativas e
produção de sentido sobre a Praça Roosevelt. Tese (Doutorado em Comunicação e
Semiótica, Área de Concentração: Signo e significação nos processos comunicacionais) –
Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica, Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC/SP), 2018.

RESUMO

Esta tese tem como tema a narrativa e a produção de sentido a partir de uma fração da cidade
de São Paulo: a Praça Roosevelt. Localizada no coração da urbe paulistana – da não-praça, à
Praça da Consolação, até se tornar a Roosevelt dos dias de hoje –, representa desafio para
quem se lança a estudar sistemas culturais mestiços (GRUZINSKI, 2001), amalgama de
complexidade e de heterogeneidade que coloca em relação, diuturnamente, variadas estruturas
e intensidades, constituindo o que Pinheiro (2015) denomina de terras transbarrocas. Na
condição de transbarroca, configura-se, por assim dizer, como um riscado de chão inacabado,
composto de marchetarias de repertórios alheios, de entrelaçamentos (ao mesmo tempo
inclusivos e tradutórios) de vozes nas culturas. Frente a um sem-número de possibilidades de
aproximação da Roosevelt, a narrativa toma a frente e estabelece-se como vértice a partir do
qual são desenvolvidas as reflexões. Esta escolha envereda a investigação para um tom
qualitativo no qual interessa apreender o que para a Praça conflui e o que dela coloca-se em
relação a outras esferas sociais, tornando-nos pesquisador-membrana-tradutória-interpretativa
de formas de vida social, discursiva e cultural. Neste sentido, o primeiro capítulo – Roosevelt:
assombro, escombro, promessa, quimera –, contemplando pesquisas documental e
bibliográfica, tem a narrativa fílmica como centro e os documentários Palco Roosevelt (2007)
e Roosevelt: uma praça além do concreto (2008) como corpora. O objetivo é conhecer os
sentidos oferecidos pelas produções audiovisuais sobre a praça antes de sua principal reforma.
Para tal, as obras são decompostas em tessituras textuais, imagéticas, sonoras e situacionais e
autores como Pinheiro, Salles, Delgado e Sousa Santos são trazidos à reflexão. O segundo
capítulo – Para além da concretude, quiproquós citadinos – intenciona tomar contato com a
história mais recente da Praça, elegendo para tal duas narrativas audiovisuais concebidas após
a principal reforma da Roosevelt, finalizada em 2012: Praça Roosevelt (documentário de
2016) e O estilo de vida no centro (episódio de uma websérie de 2018). O tópico, pautando-se
em uma estratégia metodológica composta por pesquisas documental e bibliográfica, articula
considerações a partir de autores como Certeau, Ferrara, Laplantine, Lotman, Martín-Barbero,
Morin, Pinheiro e Salles. Já o terceiro capítulo – Alegria, alegria: a mosca na sopa –, ratifica
o esforço em busca de fios discursivos sobre a Praça Roosevelt, tendo o objetivo específico de
partilhar – de modos ora descritivo e ora interpretativo – as impressões do campo advindas,
direcionando atenção aos discursos institucionalizados e aos relatos de moradores. Para esta
etapa, entre os autores mobilizados, estão: Brockmeir, Harré, Certeau, Delgado e Elias. Com o
quarto capítulo – “Andar com fé eu vou, que a fé não costuma faiá” –, dedica-se atenção a
refletir sobre a produção de sentido emanada por certas esferas constitutivas da Praça
Roosevelt. O olhar, especificamente, volta-se à Igreja Nossa Senhora da Consolação a partir
de empreitadas de campo realizadas ao longo do primeiro semestre de 2018. Nesta inspiração
etnográfica, houve a oportunidade, por exemplo, de aproximação de histórias de moradores
em situação de rua, população flutuante, constitutiva e constituinte da Praça Roosevelt. Em
termos metodológicos, esta etapa encontra ancoragem na grounded theory e nas pesquisas
bibliográfica e documental que o contato com o campo suscita. Sousa Santos (2008) e Lotman
(1996) são bases para pormenorizar a realidade, dadas suas perspectivas sobre desigualdade,
exclusão, desarme semiótico. Por fim, o quinto capítulo – “Sãopauleando”: prosa, verso,
música e zine –, procura apresentar os aprendizados junto aos jovens frequentadores da
Roosevelt a partir de suas histórias de vida. O tópico partilha conversas na ordem em que as
pessoas foram sendo conhecidas, sem roteiro. Trata-se da narrativa daqueles que, como
população flutuante da Roosevelt, colocam em circulação narrativas sobre a praça. Em cada
pessoa, um mundo. Em cada uma, muitas Roosevelts. O viés qualitativo é transversal e os
autores os autores utilizados são García Canclini, Morin e Santos.

Palavras-chave: Comunicação e cultura; cidade e espaço urbano; barroco e transbarroco;


Praça Roosevelt.
MARCELINO, Rosilene Moraes Alves. Communication and culture in filigrees: narratives
and production of meaning on Roosevelt Square. Thesis (Doctorate in Communication and
Semiotics, Area of Concentration: Sign and meaning in communicational processes) –
Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica, Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC/SP), 2018.

ABSTRACT

This thesis subject is the narrative and production of meaning from a fraction of the city of
São Paulo: Praça Roosevelt. Located in the heart of the biggest city in Brazil - from the non-
square to Praça da Consolação, until becoming the Roosevelt as we know it today - it
represents a challange for those who studies this mix of cultures system (GRUZINSKI, 2001),
an amalgam of complexity and heterogeneity that puts in relation, day and night, many
scructures and intensities, becoming a land that Pinhiero (2015) identifies as trans-baroque.
This trans-baroque conditions constitutes themselves as an unfinished delimited area,
composed by marquetries of foreign repertoires and intertwining (at the same time inclusive
and translucent) of the voices of culture. Facing a myriad of possibilites for approaching
Roosevelt square, the narratives takes its place and stablishes itself as the apex from which the
reflections are developed. This choice leads this research to a qualitative tone in which it is
interesting to capture what, for the Roosevelt square, converges and which of its places are in
relation to other social spheres, leading us to be membrane-researchers-interpretative-
translators of ways in a social, discursive and cultural life. In that matter, the first chapter -
"Roosevelt: assombro, escombro, promessa, quimera" - a documental and bibliographical
research, contemplates the film narrative as its center and the documentaries "Palco
Roosevelt" (2007) and "Roosevelt: uma praça além do concreto" (2008) as its corpora. The
main goal is to get to know the meanings offered by the audiovisual productions about the
square and its biggest renovation. For such, the works are decomposed into textual, imagery,
sound and situational aspects, and situations and authors such as Pinheiro, Salles, Delgado
and Sousa Santos are brought to reflection. The second chapter - "Para além da concretude,
quiproquós citadinos" - intends to get in contact with the square's most recent history, electing
two audiovisual narratives conceived after its main reform, completed in 2012: "Praça
Roosevelt" (2016 documentary) and "O estilo de vida no centro" (a webseries episode
produced in 2018). The topic, based on a methodological strategy composed by documental
and bibliographic research, articulates considerations from authors such as Certeau, Ferrara,
Laplatine, Lotman and Martín-Barbero, Morin, Pinheiro and Salles. The third chapter -
"Alegria, alegria: a mosca na sopa" - confirms the effort in search of discursive threads about
Praça Roosevelt, having its specific aim of sharing - in both descriptive and interpretative
ways - the impressions of the field, paying attention to institutionalized speeches and reports
from the residents of the square. For this step, among the authors, we have Brockmeir, Harré,
Certeau, Delgado e Elias. At the fourth chapter - “Andar com fé eu vou, que a fé não costuma
faiá” - we are dedicating our attention to reflect about the production of meaning emanating
from certain constuitive spheres of Praça Roosevelt. Here, we look specifically to the Nossa
Senhora da Consolação church, based on fieldwork carried out during the first half of 2018. In
this ethnographic inspiration, there was the opportunity, for example, to approach stories of
the homeless a floating population, constitutive and constituent of Praça Roosevelt. In
methodological terms, this step finds anchoring in the grounded theory and bibliographical
and documentary research that the contact with the field provokes. Sousa Santos (2008) and
Lotman (1996) are the bases tor detailing the reality, given their perspectives about inequality,
exclusion and semiotic disarmament. Finally, the fifth chapter - "'Sãopauleando': prosa, verso,
música e zine" - seeks to present the lessons learned with the young people that go to Praça
Roosevelt from the perspective of their life stories. This topic shares conversations in the
order people were known, no scripts were involved. It is about the narrative of those who, as
the floating population of Roosevelt, put into circulation narratives about the square. In each
person, a different world. In each one, a lot of Roosevelts. The qualitative perspective is
transversal and the authors used here are García Canclini, Morin and Santos.

Keywords: Communication and culture; city and urban space; baroque and transbaroque;
Praça Roosevelt.
LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Abertura do documentário Palco Roosevelt – sequência de imagens ..................... 30


Figura 2: Buracos e entranhas da Praça Roosevelt ................................................................. 31
Figura 3: A província Roosevelt ............................................................................................. 31
Figura 4: Segurança e autonomia emanadas pela praça .......................................................... 32
Figura 5: Religiosidade na praça ............................................................................................. 32
Figura 6: A beleza da Praça Roosevelt.................................................................................... 33
Figura 7: O “pico” Roosevelt .................................................................................................. 33
Figura 8: A pelada no seio da praça ........................................................................................ 34
Figura 9: Samba, vínculo e coletividade ................................................................................. 34
Figura 10: Quem deve ser banido da Praça Roosevelt ............................................................ 36
Figura 11: Representações correlatas aos moradores em situação de rua da Roosevelt ......... 37
Figura 12: Sai uma tribo, entra outra....................................................................................... 38
Figura 13: As cigarras da Roosevelt ....................................................................................... 38
Figura 14: Ocupar a calçada é um ato político ........................................................................ 39
Figura 15: Palco Roosevelt, encenação ao ar livre.................................................................. 40
Figura 16: Questões sociais, pontas soltas .............................................................................. 41
Figura 17: Cotidiano Roosevelt............................................................................................... 41
Figura 18: Roosevelt, memória emocional representada no close dos entrevistados ............. 42
Figura 19: A bossa da Roosevelt ............................................................................................. 42
Figura 20: Claudette Soares e a Bossa Nova na Baiuca .......................................................... 43
Figura 21: Roosevelt no coração de São Paulo ....................................................................... 44
Figura 22: A praça antes de ser praça ..................................................................................... 44
Figura 23: Colégio Porto Seguro, por tempos, a única construção da praça........................... 44
Figura 24: O caótico estacionamento rooseveltiano no filme São Paulo S/A ......................... 44
Figura 25: Cine Bijou, catalizador dos amantes da 7ª arte ...................................................... 45
Figura 26: Roosevelt em obra durante a ditadura militar ........................................................ 46
Figura 27: Inauguração da Praça Roosevelt ............................................................................ 46
Figura 28: Roosevelt, degradação e abandono ........................................................................ 47
Figura 29: A chegada dos teatros, sinal de melhora (?!) ......................................................... 47
Figura 30: E a praça torna-se espaço de lazer e de cultura ..................................................... 48
Figura 31: A valorização dos imóveis do entorno da praça .................................................... 50
Figura 32: A (anti)praça (ainda como) catacumba .................................................................. 51
Figura 33: “A sé da cidade” .................................................................................................... 58
Figura 34: “Quintal de casa” ................................................................................................... 58
Figura 35: “O pior lugar da cidade” ........................................................................................ 58
Figura 36: Praça Roosevelt – Priorização da malha viária...................................................... 60
Figura 37: Frames do Praça Roosevelt – “pluralidade de ocupações chamou a atenção”...... 62
Figura 38: Frames do Praça Roosevelt – lugar “nada aprazível” ........................................... 62
Figura 39: Cartazes de peças do Os Satyros que levam o nome da Roosevelt no título ......... 63
Figura 40: Praça Roosevelt – Manobras do skatista profissional Diego Bernardino Fontes .. 63
Figura 41: Nova Roosevelt – “nada do que tinham prometido” ............................................. 64
Figura 42: Praça Roosevelt – Cena musical ............................................................................ 67
Figura 43: Sequência de imagens de abertura da websérie com Ivam Cabral e textos
correspondentes ........................................................................................................................ 69
Figura 44: Sequência de imagens de apresentação da personagem Lorena – destaque para a
profissão de artista da depoente ................................................................................................ 70
Figura 45: Sequência de imagens e texto de apresentação de Celso Fonseca – destaque para o
apartamento .............................................................................................................................. 71
Figura 46: Sequência de imagens e texto de apresentação enaltecendo a mobilidade graças à
proximidade de estações de metrô no Centro de São Paulo ..................................................... 72
Figura 47: Cotidiano Praça Roosevelt anuncia novo bloco na websérie ................................ 73
Figura 48: Débora Suconic – A intimidade de seu apartamento ............................................. 73
Figura 49: Lorena Garrido – Intimidade até a coxia e convite ao riso .................................... 74
Figura 50: Centros das grandes cidades – humanidade e companhia ..................................... 75
Figura 51: Gosto por andar no miolão e pela arquitetura dos prédios .................................... 76
Figura 52: Fetiche por apartamentos grandes e pé direito alto ............................................... 77
Figura 53: Centro – mobilidade e despreocupação ................................................................. 78
Figura 54: Centro – lembranças de uma cidadezinha do interior ............................................ 79
Figura 55: Centro – segurança é sinônimo de bem-estar ........................................................ 79
Figura 56: Preconceito é quando se confunde bandido com pobreza ..................................... 80
Figura 57: O minhocão na moda ............................................................................................. 80
Figura 58: Centro paulistano – qualidade de vida, urbanidade e calor cultural ...................... 82
Figura 59: Centro paulistano – cerveja e roda de samba depois do trabalho .......................... 83
Figura 60: “Há um charme para quem não é do centro” (Débora Suconic)............................ 84
Figura 61: Bloco Acadêmicos do Baixo Augusta ................................................................... 98
Figura 62: Painel de arte – A Cidade é nossa, de Rita Wainer ............................................... 98
Figura 63: Painel de arte – É proibido proibir, do coletivo Os Tupys .................................... 99
Figura 64: Carta aberta – A Praça Roosevelt pede paz! – e texto publicado ao lado da carta
aberta protocolada na página do Facebook do Coletivo Praça Roosevelt de Todxs .............. 100
Figura 65: Da vibração e diversidade à Praça apequenada e miradas de horizontes ............ 105
Figura 66: Painel hipnotizador de pombo ............................................................................. 124
Figura 67: Baús... pedidos às claras, oferendas às escuras .................................................... 126
Figura 68: Velário tecno-ecológico ....................................................................................... 127
Figura 69: Feriado na Praça, o primeiro dia de campo ......................................................... 146
Figura 70: Competição da Adidas no entorno da Praça ........................................................ 146
Figura 71: Cachorrada faceira ............................................................................................... 147
Figura 72: Comercial de Streetwear...................................................................................... 147
Figura 73: Zine Segredos Inconfessos ................................................................................... 154
Figura 74: Zine Para Mar Nave Gar ...................................................................................... 161
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 17
1 ROOSEVELT: ASSOMBRO, ESCOMBRO, PROMESSA, QUIMERA ...................... 27
1.1 Palco Roosevelt: zumzumzum, ziriguidum, nheco-nheco e rapa rapazaziada ................... 30
1.2 Roosevelt: além do concreto, muita memória .................................................................... 41
1.3 Roosevelt: uma quimera que só .......................................................................................... 52
2 PARA ALÉM DA CONCRETUDE, QUIPROQUÓS CITADINOS .............................. 56
2.1 Praça Roosevelt: arquitetando o cotidiano ......................................................................... 57
2.2 A [glamourizada] vida no centro paulistano....................................................................... 68
2.3 Quiproquós danados de rococós ......................................................................................... 84
3 ALEGRIA, ALEGRIA: A MOSCA NA SOPA ................................................................ 93
3.1 Nas trincheiras da alegria, o que explode? ......................................................................... 94
3.2 Rooseveltianos: a relação de moradores com a Praça Roosevelt ..................................... 103
3.3 A Roosevelt é (praticamente) a Winston Parva brasileira ................................................ 111
4 “ANDAR COM FÉ EU VOU, QUE A FÉ NÃO COSTUMA FAIÁ” ........................... 115
4.1 A Grounded Theory .......................................................................................................... 115
4.2 “A fé tá na mulher, (...) Na cobra coral, (...) Num pedaço de pão, (...) Na maré, (...) Na
lâmina de um punhal, (...) Na luz, na escuridão ..................................................................... 121
4.3 “E há tempos nem os santos têm ao certo a medida da maldade” .................................... 132
4.4 “Não sei o que fazer comigo” ........................................................................................... 138
5 “SÃOPAULEANDO”: PROSA, VERSO, MÚSICA E ZINE ....................................... 145
5.1 Rvolução: um sempre olhando pelo outro ........................................................................ 147
5.2 Na labuta, pouca conversa e muita luta ............................................................................ 149
5.3 Olhe para as suas sobras, transforme-as em luz ............................................................... 151
5.4 De um tudo para sobreviver ............................................................................................. 155
5.5 A vida é poesia telúrica .................................................................................................... 159
5.6 Claves, soldas e quitutes ................................................................................................... 163
5.7 Déjà vu: o momento da virada .......................................................................................... 164
5.8 Ordinária, roosevelt, ordinária .......................................................................................... 170
CONSIDERAÇÕES FINAIS: MESMO QUE SEJA RUIM, ESCREVA-ME,
ESCREVA-ME ..................................................................................................................... 173
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 180
17

INTRODUÇÃO

Essa investida de pesquisa principiada por uma iniciativa de inspiração etnográfica


não se dá ao acaso, mas advém de nosso coro às impressões de Pinheiro (2013), para quem,
ao atentarmos às questões culturais, na América Latina, devemos colocar por terra ideias
binárias de centro e periferia; assombro desbotado – mas ainda presente – proveniente de
certas perspectivas eurocêntricas tecnocientíficas, tecnocapitalistas, eclesiásticas. Em nossa
cultura latino-americana, acepções de progressão e linearidade cedem espaço às
características caras ao nosso processo civilizatório; constituído, historicamente, por
movimentos tradutórios advindos de colisões e trocas culturais dominantes e variantes
periféricas. Da sucessão e oposição, neste estudo, ainda no fio da meada, procuramos atentar
às confluências, aos palimpsestos, às camadas de significados, inexplicáveis por visões apenas
estruturalistas.
Nossa intenção, nesta reflexão, é de nos tornarmos tradutores de nossa cartografia
cognitiva a ser delineada a partir desta tese. Não no sentido de partir e escrever sobre um
mapa delineado e, por isso, redutor, em essência, daquilo que representa (MARTÍN-
BARBERO, 2004). Mas versando sobre um esforço reiterado a cada etapa de nosso estudo
para procurar relatar de modo não cumulativo e sequencial, mas de forma produtiva e reativa
como se dão as nossas traduções científicas e culturais, como proposto por Pinheiro (2013).
Ansiamos o contágio de nossa palavramundo (FREIRE, 1983) pelas linguagens distintas e
pelo que há de diminuto em nossa realidade, que, talvez, de tão cotidiano, passe despercebido.
Colocamos em jogo a nossa capacidade de interpretação. Firmamos olhos na paisagem
urbana, entre discursos hegemônicos e subalternos, denunciativos de uma topografia
movediça, como nos diz Martín-Barbero (2009).
Na paisagem urbana da América Latina, nos bairros ou nas intervizinhanças,
avistamos, de longa data, as variáveis impressas à Modernidade: fragmentação,
simultaneidade, brevidade e instabilidade. Isso torna móvel e instável qualquer pretensão
fronteiriça e evidencia o jogo relacional no qual encontramo-nos imersos, convertendo, a todo
instante, formas urbanas em processos criativos ininterruptos (PINHEIRO, 2013). A cidade,
reconhecida como espaço comunicacional, é, obviamente, lócus de mediações, de circulações
de significados, para os quais, desejamos nos voltar.
Em meio a praticamente um sem-número de possibilidades, não resistimos à poesia
das ruas, amálgama de arte e ciência, na vanguarda do que, logo mais, corporifica-se em
livros, palcos e páginas de jornais (PINHEIRO, 2013). Chegamos – após perambular entre
18

autores, dúvidas, matérias obrigatórias e optativas e orientações – à Praça Roosevelt,


localizada na região dita central de São Paulo, considerada, há pouco, como símbolo de
degradação.
Chegamos à Roosevelt no dia 21 de maio de 2016, um sábado (quase) qualquer. Era
dia de Virada Cultural, evento orquestrado pela Prefeitura de São Paulo1 no qual, ao longo de
24 horas, procura-se oferecer atrações culturais voltadas para uma pluralidade de faixas
etárias, camadas sociais, público e gostos. Sob o mote de fomentar e mobilizar arte, música,
dança e de manifestações populares, o evento tem se cristalizado como uma espécie de
convite à população para que se aproprie dos espaços da cidade. Aceitamos o convite. Fomos
a campo em caráter exploratório. E, nesta edição – caracterizada por uma metástase por
abranger, para além do Centro, as regiões zonas sul, leste e norte – encontramo-nos em plena
Praça Roosevelt, um dos palcos da edição, para assistir à peça A merda, no Espaço
Parlapatões, integrante a agenda do evento.
Por volta das 21h, uma hora antes do início da peça, chegamos ao Espaço Parlapatões
que, inaugurado no dia 11 de setembro de 2006, propõe-se a fazer ruir preconceitos e abrir
portas para um variado público. A pluralidade foi nossa primeira impressão ao chegar a um
lugar no qual, a um só tempo, sentíamo-nos em um lançamento de um livro e na condição de
espectadores de encontros nas mesas ao redor, na calçada ou mesmo na praça, dominada pelos
skatistas.
Debaixo de um teto ornado por guarda-chuvas e cercados por paredes nas quais
imperavam manequins vestidos com figurino puído – ou pelo desgaste do uso ou pela ação do
tempo que ali estão expostos – a informalidade domina o ambiente. Os garçons, entre a
entrega de um pedido ou outro esbarravam-se e, entre si, trocavam olhares e frases para
alfinetar alguns clientes talvez menos acostumados às regras do lugar: “o outro ali pediu mais
um garfo... quero isso quero aquilo é tudo que sabem dizer, vão ficar querendo”, disse um dos
atendentes.
Enquanto isso, a casa começava a abarrotar gente. Quem não conseguiu mesa tomou
um palco pequeno, sentou no chão e tomou, tranquilamente, sua cerveja. Nas mesas ao redor,
risos, muita conversa, romance de toda natureza – dos discretos aos mais acalorados,
homossexuais ou não. Olhares ávidos espreitam-se a todo instante. Mais gente e a calçada
ganha ares de anexo e passa a acolher os que chegam. Até mesmo um aniversário é celebrado
ali, no meio fio, praticamente. As pessoas não consumiam apenas o que era oferecido no

1
Disponível em: http://www.viradacultural.prefeitura.sp.gov.br/. Acessado em: mai. 2016.
19

Parlapatões, mas também o que podiam comprar nos bares ao redor. Também havia aqueles
que traziam sua própria bebida, como um casal que se sentou no banco em frente ao espaço e
abriu seu vinho, tomando-o no gargalo. Havia ainda alguns meninos que – de um lado a outro
da rua – circulavam com garrafas que não davam pistas do que bebiam. Na praça em si,
assistimos ao vaivém dos skatistas. Vimos jovens vencidos pelas drogas e sutileza de policiais
ao abordar um deles, que, caído, preocupava.
Quando nos demos conta, soou o primeiro tilintar do sino anunciando que a peça
estava para começar. Fomos para a fila e observamos que poucos se juntaram a nós. Ao todo,
13 pessoas esperavam o princípio da peça. Quando o sino tocou pela terceira vez adentramos
o teatro. Recebidos pela atriz – Cristiane Tricerri – nua e cantarolando, os parcos espectadores
acomodaram-se. Interpretamos naquele nú a maneira como a personagem colocava-se em
relação ao seu público: despida de filtros e de preconceitos, pronta para externar o que lhe
afligia, partilhar sonhos e dissecar a sua realidade.
Cristian Ceresoli é o autor da peça traduzida para o português, espanhol, francês,
sérvio, alemão e inglês. O monólogo conta os dilemas enfrentados por uma mulher, que muito
embora se dê no contexto italiano, tem frentes discursivas além-fronteiras. A narrativa nos
provocou (e nos colocou em posição de desconforto e reflexiva) ao trazer temáticas como a
bulimia, o abuso sexual, a pedofilia, a coragem e a resistência de uma jovem que, ao pensar
alto, confidencia aos presentes seus problemas, que tomam proporção exponencial em uma
sociedade calcada no espetáculo e no consumo, como outras partes da trama dão pistas.
A aspereza das palavras da protagonista foi interrompida em dois momentos. A certa
altura da peça, notamos, além da luz irradiada sobre a atriz, outra, advinda da plateia. Na
primeira fila, à esquerda, um jovem passou a filmá-la e por mais que ela o olhasse
diretamente, insistia naquele gesto desagradável. Apenas quando ela o apontou e fez sinal de
negativo com os dedos, o rapaz deixou a sala e, ao sair, deixou a porta aberta, expondo tanto a
atriz como fazendo o ambiente ser contaminado pela luz e pelos sons advindos da antessala.
Neste momento, um rapaz levantou-se e fechou a porta e a peça prosseguiu; até que duas
mulheres, que continuaram bebendo durante a peça ficaram embriagadas e deixaram o lugar
entre tropeços, murmúrios e risadas. Ao menos, fecharam a porta.
Ao final, ainda processando o texto da peça, tomamos a calçada e nos deparamos com
uma noite que ainda começava. A rua fora fechada, sem aviso prévio, por alguns
frequentadores que com variados instrumentos marcharam no sentido Consolação-Augusta.
Apesar do frio, alguns jovens acompanhavam o movimento, dançando sem blusa e com
maquiagem dramática em torno dos olhos, que lembravam a de um indígena. O lugar era pura
20

festa. Enquanto observávamos, a atriz nos viu na calçada, nos reconheceu do espetáculo e nos
abordou para comentar como, naquele dia, se sentiu exposta, violentada pelo gesto do rapaz
que a filmara. Havia sido difícil se concentrar, desabafou e logo depois se despediu.
Com a rua ainda interditada, para conseguirmos alcançar nosso táxi, tivemos de
atravessar a praça e caminhar até a Augusta. No trajeto para casa, já no carro, deparamo-nos
com briga de punks e outras ruas que começavam a ser tomadas.
Neste ponto, enquanto mudava a paisagem pela janela do táxi, relembramos Latour
(2011, p. 47) ao afirmar que quanto “menos os modernos se pensam misturados, mais se
misturam. Quanto mais a ciência é absolutamente pura, mais se encontra intimamente
relacionada à construção da sociedade. A Constituição moderna acelera ou facilita os
desdobramentos coletivos, mas não permitem que sejam pensados”. Para além do embate
modernidade e pós-modernidade, sedimenta-se em nós uma inclinação em observar a cultura
mobilizada em meio a essa paisagem paulistana, prenhe, antevemos, de significados.
Neste ponto, se faz interessante a acepção de Salles (2013) acerca do que ela designa
como ato criador. Ao aprofundarmos em um fragmento da cidade, a Praça Roosevelt,
entendemos o seu caráter “processual inferencial e contínuo” (p. 107), um ato criador
cotidiano. Como nos afirma Salles (2013, p. 94): a “natureza inferencial do processo significa
a destruição do ideal de começo e fim absolutos (...) o movimento criador (...) [é] uma
complexa rede de inferências”. Deste modo, nos surge o seguinte questionamento: o que seria
a Praça Roosevelt senão um complexo conjunto de experiências, informações, imaginações,
que estão disponíveis a transformações e criações de novas redes a qualquer instante?
Entregar-se à cidade envolve o anseio de questionar o chamado imprinting cultural
(MORIN, 2011), conceito este arquitetado sobre a matriz estrutural do conformismo atribuído
pela normalização. Assim, partindo das ideias de Morin (2011), podemos pontuar que existe
um universo cultural que fora elaborado antes dos sujeitos e que se desdobra para além deles,
moldando-se de modo coercitivo ou mesmo opressor, propõe a normalização como regra. O
amortecimento do imprinting, da normalização, da invariância, da incomplexidade, da
reprodução se dá no bojo do denominado calor cultural. Sob esse viés, entendemos a Praça
Roosevelt como um lócus privilegiado do calor cultural, já que se apresenta de modo instável
e móvel; propício a uma “intensidade/multiplicidade de trocas, confrontos, polêmicas entre
opiniões, ideias, concepções” (MORIN, 2011, p. 35).
A Praça Roosevelt, supomos, é lócus privilegiado do chamado calor cultural,
apresentando-se, pelo relato pouco antes feito, de modo instável e movediço; propício a uma
“intensidade/multiplicidade de trocas, confrontos, polêmicas entre opiniões, ideias,
21

concepções” (MORIN, 2011, p. 35). Neste sentido, nossa suposição é que a Roosevelt,
enquanto esfera cultural e produtora de narrativas, é palco do embate entre discursos
hegemônicos e subalternos (MARTÍN-BARBERO, 2009), fértil às mediações.
Também temos em mente a proposição de Wagner (2010) de que ao procurar
compreender uma dada cultura, acabamos por colocar na condição de experimento a nossa
própria. Os próprios objetos de estudo “podem [em certa medida] ser vistos como ‘controles’
na criação de nossa cultura” (p. 61). Neste sentido, para Salles (2013), quanto mais nos
aproximamos do outro, mais nos aproximamos de nós mesmos, em termos de percepção e de
autoconsciência. Construímos, em certa medida, uma representação da cultura investigada ao
mesmo tempo em que este gesto se configura como possibilidade de experimentação de nossa
própria cultura.
Entre o exercício reflexivo de apreender uma dada cultura e, neste movimento,
ressignificar a nossa, primamos, para não ser, como já colocamos, mera descrição, por uma
investigação pautada pela sinestesia, deixando esta realidade contar-nos o que para ela conflui
e o que de lá coloca-se em relação com outras esferas sociais. Esta tese, portanto,
intenciona compreender a cultura no seio dos processos comunicacionais entretecidos a partir
narrativas emanadas por e sobre uma parcela do coração da cidade de São Paulo, a Praça
Roosevelt. Narrativa. O que vem a ser narrativa? E qual a sua importância para este – e quiçá
outras – pesquisas? Brockmeier e Harré (2003) dão conta de evidenciar como o estudo da
narrativa tem intensificando-se como objeto de interesse em investigações. Para além de um
movimento linguístico, semiótico e cultural, a veemência em se crescer olhos na narrativa,
explicam os autores, a colocou em processo de metástase em outras frentes do saber, o que
vem sendo chamado, por alguns, de transformação ou virada discursiva e narrativa. Trata-se,
por assim dizer, de um horizonte aberto na direção de, no lugar de se buscar leis do
comportamento humano, dedicar-se às “investigações interpretativas que se concentram nas
‘formas de vida’ social, discursiva e cultural” (BROCKMEIER, HARRÉ, 2003, p. 525).
É oportuno, pois, esclarecer que, narrativa, de modo mais corrente e geral,

é o nome para um conjunto de estruturas lingüísticas e psicológicas transmitidas


cultural e historicamente, delimitadas pelo nível do domínio de cada indivíduo e pela
combinação de técnicas sócio-comunicativas e habilidades lingüísticas – como
denominado por Bruner (1991) – e, de forma não menos importante, por
características pessoais como curiosidade, paixão e, por vezes, obsessão. Ao
comunicar algo sobre um evento da vida – uma situação complicada, uma intenção,
um sonho, uma doença, um estado de angústia – a comunicação geralmente assume
a forma da narrativa, ou seja, apresenta-se uma estória contada de acordo com certas
convenções (BROCKMEIER, HARRÉ, 2003, p. 526).
22

Em busca de se tentar apreender a natureza, bem como as condições de existência dos


sujeitos, a interpretação de narrativas – não sem experimentar eventuais aspectos limítrofes e
riscos potenciais – pode aproximar o pesquisador do entendimento da criação de certos
significados, visto que torna possível a compreensão de textos e contextos (amplos,
diferenciados e complexos) de experiência humana (BROCKMEIER, HARRÉ, 2003).
Eleger a narrativa – plástica em essência, dado o seu caráter aberto e transitório
– como dorsal nesta investigação, implica fincar pés em uma estratégia de pesquisa
qualitativa. Como vértices de narrativa, este estudo abrange os discursos fílmico,
institucionalizado e o de sujeitos que trazem para o seu interior a Roosevelt e projetam-lhe
sentidos.
Brota neste ponto o nosso desafio: ao procurar colocar lentes neste contexto cultural
da Praça Roosevelt, deparamo-nos com dificuldades de análise descortinadas pelos sistemas
culturais chamados por Gruzinski (2001) como mestiços. Temos aí pistas da complexidade e
da heterogeneidade transversal ao contexto cultural, que coloca em relação não apenas
variadas estruturas, mas também intensidades. Temos aí o transbarroco de que nos fala
Pinheiro (2015): resultante de “feitos de contínua e inacabada montagem de materiais e
repertório alheios”. Colocamo-nos diante das chamadas formas entrelaçadas que, a um só
tempo, incluem e traduzem, entre outros aspectos, as vozes nas culturas (PINHEIRO, 2015).
Para Salles (2014, p. 24), a partir do paradigma de rede, de que pretendemos também
nos aproximar aqui, podemos pensar “o ambiente das interações, dos laços, da
interconectividade, dos nexos e das relações, que se opõem claramente àquele apoiado em
segmentações e disjunções. Estamos assim em plena tentativa de lidar com a complexidade e
as consequências de enfrentar esse desafio”.
Na direção de nos embrenharmos por este desafio, a narrativa fílmica é o mote do
primeiro capítulo desta tese – Roosevelt: assombro, escombro, promessa, quimera –, no qual
pretende-se conhecer os sentidos oferecidos pela produção audiovisual sobre a praça
Roosevelt antes de sua principal reforma, entregue à população em 2012. Para isso, em busca
de apreender sobre o passado daquele lugar, o lastro encontra-se em duas obras do gênero
documentário: Palco Roosevelt (2007) e Roosevelt: uma praça além do concreto (2008).
Analisar filme é, pois, decompô-lo, de modo a atentar-se aos elementos constitutivos de cada
obra (VANOYE, GOLIOT-LÉTÉ, 2012) e procurando dar conta de notar nesta descostura o
que a totalidade, eventualmente, joga para debaixo do tapete. No desalinhavo dos
documentários, apresentam-se tessituras textuais (faladas e escritas), imagéticas (inéditas e
tantas outras recuperadas de outras obras em um cerzir de intertextualidades), sonoras
23

(composta por ruídos, trilha sonora, sons característicos do ambiente) e situacionais. E essa
descostura de tessituras, expressa no capítulo em um jogo de descrição e interpretação,
permite entender como cada uma das partes tornam-se cúmplices no surgimento de um
significante (VANOYE, GOLIOT-LÉTÉ, 2012). Em termos de estratégia metodológica, para
esta etapa, combinamos pesquisas documental (obras fílmicas do gênero documentário) e
bibliográfica, recorrendo a autores como Bakhtin, Certeau, Delgado, Orlandi, Pesavento,
Pinheiro, Salles, Sousa Santos. Delgado (2007), por exemplo, ajuda-nos a compreender como
o espaço urbano representa terreno multidimensional, repleto de tensões e instabilidade,
transversalmente constituído também por um sem-número de acontecimentos e de expressões
coletivas. Na voz de Sousa Santos (2008), temos explicações para desigualdade, diferença e
exclusão. Sendo que, alerta-nos o autor, extermínio representa o grau máximo de exclusão. O
desejo de extermínio nos documentários é cristalizado em narrativas cujo objetivo é colocar
para longe, bem longe, da Praça Rooosevelt, os peladeiros, os skatistas, a cachorrada, os
moradores em situação de rua, os drogados; sendo que estes últimos sequer são representados
por imagens, sendo excluídos visualmente das narrativas fílmicas. Advém de discursos como
este o processo de gentrificação experimentado nos últimos anos evidenciado pelo aumento
triplicado do valor do metro quadrado dos apartamentos da região. Estas e outras questões são
postas de modo escamoteado, em meio a vieses que se pretendem verdadeiros e que
escancaram, na urbe, profusão de estratégias e de táticas que compõem o cotidiano, inventado
diuturnamente, como nos coloca Certeau (2005). A palimpséstica Roosevelt é uma terra
barroca composta de temporalidades, processos tradutórios, colocando em xeque progressão e
linearidade, como explica Pinheiro (2013). Da não-praça para a Praça da Consolação e, daí,
para Praça Roosevelt, texturas urbanas postam-se feito cabo de força pelo direito de significar
aquela parte do coração da cidade de São Paulo. Deste modo, como aponta Delgado (2007),
uma coisa é a cidade da prancheta dos arquitetos, outra questão é o espaço urbano, que se
origina a partir da fruição da cidade pelos sujeitos. Deste modo, a urbe é pleno experimento
que reflete e refrata indivíduos e é atravessado pelos imperativos de cada momento. Para guiar
nossa reflexão, desenvolvemos este capítulo sob os seguintes tópicos: (a) Palco Roosevelt:
zumzumzum, ziriguidum, nheco-nheco e rapa rapazaziada; (b) Roosevelt: além do concreto,
muita memória; (c) Roosevelt: uma quimera que só.
No segundo capítulo, chamado Para além da concretude, quiproquós citadinos, a
intenção é tomar contato com a história mais recente da Roosevelt. Deste modo, objetiva-se,
neste momento da pesquisa, conhecer as narrativas audiovisuais oferecidas sobre a Praça
Roosevelt após a sua principal reforma, finalizada e entregue à população em Setembro de
24

2012. Para além da explanada que, a partir de então, ligava a Augusta à Consolação, afora os
bancos e os estreantes canteiros com árvores com a promessa de vingar, que particularidades
citadinas a praça passaria a simbolizar e colocar em movimento nesta reinauguração? Nesta
direção, os corpora elegidos são duas produções audiovisuais: o documentário Arquiteturas:
Praça Roosevelt (2016), episódio de uma série mais ampla produzida pela SescTV; e (b) O
estilo de vida Centro de São Paulo2, uma websérie que procura mostrar como é a vida de
pessoas que moram no Centro de São Paulo produzida pela página A vida no centro3,
plataforma digital de um projeto que se coloca como “hub de inovação e cultura sobre o
centro de São Paulo”. Portanto, este capítulo segue por uma iniciativa composta de pesquisas
documental e bibliográfica. Os produtos audiovisuais mostram-nos múltiplos relatos, dos
expressos aos escamoteados, anunciam relações constituídas no âmbito do cotidiano e da
ordem da cultura, como colocam Pinheiro e Salles (2016). Há na variedade de testemunhos
uma autoria que se dá de modo coletivo. E o diálogo entre passado e presente, mostra, na
perspectiva de Ferrara (1988), como a transformação urbana passa pela memória dos
depoentes e como também o contexto urbano se desdobra de circunstâncias espaciais e
conjunturas sociais. Diversidade e pluralidade composta pelos atores da vida urbana
(DELGADO, 2007) vertem em uma memória discursiva que expressa a Praça como espaço de
fervo, de luta, de efervescência cultural, de pensamento crisíco (MORIN, 2011). A cultura
entendida como algo vivo, possui interstícios, por meio dos quais perpassam palimpsesto de
alteridades, diante das quais códigos antes ditos inimigos, passam a se aproximar, a se tocar a
se traduzir e se entre-espelhar, como apresenta Pinheiro (2016). Muito embora os materiais
audiovisuais tragam múltiplos relatos, destaca-se o fato de que estes, em sua maioria, são
compostos por dramaturgos, artistas, moradores, arquitetos, documentaristas, fotógrafos,
skatistas profissionais, evidenciando um etnocentrismo de classe. Os tópicos deste momento
da discussão encontram-se da seguinte maneira: (a) Praça Roosevelt: arquitetando o cotidiano;
(b) A [glamourizada] vida no centro paulistano; (c) Quiproquós danados de rococós.
Em Alegria, Alegria: a mosca na sopa, que compreende o terceiro capítulo deste
estudo, seguimos em busca de fios discursivos sobre a Praça Roosevelt, tendo a intenção de
partilhar – de modo ora descritivo e ora interpretativo – as impressões do campo advindas.
Nesta direção, são apresentadas as perspectivas sobre a região da Praça Roosevelt tanto a
partir de autoridades (discursos institucionalizados) como de moradores (relatos de sujeitos

2
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?time_continue=125&v=wdXoz-yYA. Acesso em: jul. 2018.
3
Disponível em: http://avidanocentro.com.br/. Acesso em: jul. 2018.
25

ordinários). Nas duas narrativas – a institucional e a emanada pelos residentes do entorno da


Praça – identidades são preservadas. Neste capítulo, o espaço citadino ratifica-se como aquele
depreendido da fruição da cidade pelos personagens sociais que por ela se embrenham. Com a
devida cautela, dado os distanciamentos históricos, contextuais e temporais, as narrativas
apresentadas no capítulo em questão, aproximam-se da acepção de establishment e
established, que, juntos, compõem os estabelecidos (ELIAS, 2000). Estabelecidos são
entendidos pelo autor como aqueles que ocupam posição de prestígio e poder em uma dada
sociedade. Percebemos, deste modo, como estabelecidos tantos aqueles que compõem o relato
institucionalizado (Conselho da região) como os moradores do entorno conhecidos durante
este evento. Falar em establishment, established, que, juntos, constituem os estabelecidos, é
oportuno dizer, representa estratégia de categorização didática, pois, tal como proposto por
Certeau (2014), refutamos a ideia de atomismo social. Reconhecemos que as relações entre os
sujeitos se dão em meio aos patchworks do cotidiano, determinando os termos das
sociabilidades. Para além disso, a partir do mesmo autor, consideramos que cada
individualidade é essencialmente plural e, por vezes, incoerente e contraditória. Evidenciando
tal perspectiva, parte dos que constituem o grupo dos estabelecidos, por decreto, procuraram
colocar para fora da Praça eventos como a Satyrianas, festival idealizado há mais de 18 anos
pelo grupo teatral Os Satyros. A restrição da Roosevelt, fazendo-a feito quintal, cercada por
grade é o que desejam alguns. Sequestro do espaço público, é o que, em tom de denúncia,
como a outra parte dos estabelecidos categoriza esta iniciativa. Para fora da Praça teatro,
dança, música, leituras dramáticas, haitianos e outras “bagaceiras” de gentes.
No quarto capítulo, “Andar com fé eu vou, que a fé não costuma faiá”, intenciona-se
refletir sobre a produção de sentido emanada por certas esferas constitutivas da Praça
Roosevelt. Mais especificamente, a atenção volta-se à Igreja Nossa Senhora da Consolação. E
os relatos trazidos a este momento, revelam as empreitadas de campo realizadas no primeiro
semestre de 2018. Nesta inspiração etnográfica, tivemos a oportunidade de nos aproximarmos
das histórias de moradores em situação de rua, população flutuante, constitutiva e constituinte
da Praça Roosevelt. Em termos metodológicos, esta etapa encontra ancoragem na grounded
theory e nas pesquisas bibliográfica e documental que o contato com o campo suscita.
Recorremos a autores como Sousa Santos (2008) e Lotman (1996) na empreitada de
pormenorizar a realidade, trazendo-nos lastros em torno de conceitos e ideias como
desigualdade, exclusão, desarme semiótico. Antecipamos, pois, que nas sociedades
colonizadas por europeus, como é o caso da América Latina, questões como desigualdade e
exclusão agravam-se porque vigoram como modus operandi da regulação social. E, no bojo
26

do cotidiano, vigora o perverso jogo da “violência da coerção e da violência da assimilação”


(SANTOS, 2008, p. 279). Quanto à organização, este capítulo encontra-se dividido em quatro
subtítulos: (a) A grounded theory; (b) “A fé tá na mulher, (..) na cobra coral, (...) num pedaço
de pão, (...) na maré, (...) na lâmina de um punhal, (...) na luz, na escuridão”; (c) “E há tempos
nem os santos têm ao certo a medida da maldade”; (d) “Não sei mais o que fazer comigo”.
Por fim, o quinto e último capítulo, intitulado “Sãopauleando”: prosa, verso, música e
zine, traz o comprometimento de revelar os aprendizados junto aos jovens frequentadores da
Roosevelt a partir de suas histórias de vida. Observar aquelas tessituras e entrelaçamentos de
fruição daquele riscado de espaço urbano faz surgir a curiosidade da história de cada
frequentador e de cada um com aquele lugar. E esta foi a motivação de todas as visitas, para
cada bate-papo. Em cada pessoa, um mundo. Em cada uma, muitas Roosevelts. Pela fala de
cada um, uma multidão. A partilha desses aprendizados da rua toma espaço neste último
capítulo, trazendo conversas na ordem em que as pessoas foram sendo conhecidas, sem
amarras de roteiros. Trata-se, por assim dizer, da narrativa daqueles que, como população
flutuante da Roosevelt, colocam em circulação narrativas sobre a praça. Este tom qualitativo é
transversal ao capítulo que, entre outros aspectos, traz nomes fictícios para os depoentes,
dando um drible na frieza de expressões como sujeito 1, sujeito 2, sujeito 3... Aumentamos o
tom das vozes destes atores flutuantes e flertamos com dois autores: García Canclini – e suas
ideias sobre sincretismo, crioulização, mestiçagem, hibridização –, e Santos, para quem a
cidade arquitetada erige-se tanto material como socialmente e é capaz de abrir possibilidades
para certas produções, de modo que a concentração urbana acaba por viabilizar o consumo até
mesmo entre os integrantes das camadas mais pobres. Estruturalmente, o capítulo se compõe
da seguinte maneira: (a) Evolução: Um sempre olhando pelo outro; (b) Na labuta, pouca
conversa e muita luta; (c) Olhe para as suas sobras, transforme-as em luz; (d) De um tudo para
sobreviver; (e) A vida é poesia telúrica; (f) Claves, soldas e quitutes; (g) Déjà vu: o momento
da virada; (h) Ordinária, Roosevelt, ordinária.
27

1 ROOSEVELT: ASSOMBRO, ESCOMBRO, PROMESSA, QUIMERA

Quando criança, passava boa parte dos finais de semana no interior de São Paulo, em
uma cidade chamada Itu, tarimbada pela sua mania de grandeza, exagero em tudo que pudesse
– nas coisas, nas comidas, nas histórias, nas pessoas. Naqueles (bons e saudosos) anos 1980, o
destino geralmente era o sítio Dona Gabriela, lugar para a molecada desafiar a gravidade
colhendo frutas direto do pé; puro convite aos sentidos, no qual os nossos pés – muitas das
vezes descalços – mapeavam a geografia de um chão acidentado (ora capinado, ora em estado
bruto, ora com formigueiro). O sol beliscava a pele sem piedade e o ar trazia o perfume
daquela senhora manga coação-de-boi, comida truculentamente ao pé da mangueira, deixando
fiapos na boca e as mãos e os antebraços caprichados e besuntados no caldo grudento que por
eles escorria.
A distração preferida, pode pasmar, era o lago. Das duas uma: ou pescava peixinhos e
lhes tirava as tripas brincando de conhecer a anatomia dos pobrezinhos, ou, em momentos
menos encapetados (raridade), tirava mais de hora, sozinha ou acompanhada, jogando
pedrinhas no lago, observando e tentando compreender como aqueles pequenos objetos eram
capazes de provocar ondinhas que iam e vinham, vinham e iam, iam e vinham. Hipnotizantes
e tranquilizadoras, ainda mais quando acompanhadas do som do vento botando em chacoalho
os galhos das árvores, pondo em reverência flores delicadas, refrescando a pele castigada e
esmerada na vermelhidão. Boas e doces lembranças chegam de mansinho ao encontro de
quem experimenta como sina a vida calcada na pesquisa.
Neste momento, em especial, após o exame de qualificação e diante da mudança de
objeto de pesquisa – da dramaturgia do espaço teatral Os Satyros para a Praça Roosevelt em si
e as narrativas que a atravessam e constituem-na –, parte daquela criança diante do lago deu
as caras. A bárbara, obcecada por vísceras, hoje busca dissecar uma dada realidade; e aquela
mais serena, que jogava pedras no lago, atenta-se ao movimento. Penso nas pedrinhas que,
dependendo de como lançadas ao lago (intensidade, inclinação, sua própria densidade),
provocavam certas ondulações em forma de circunferência, em um vaivém em velocidade,
forma e tempos variados. É como se este vaivém, das bordas ao centro, do centro as bordas,
representasse a dinâmica experimentada pelo pesquisador no movimento de aproximação e
distanciamento diante de seu objeto de estudo: ora, por exemplo, buscando fontes
secundárias; ora ancorando-se nas primárias; ora flertando mais com o passado do objeto; ora
escancarando a infidelidade ao cair de amores e namoro com o presente que o circunda e o
atravessa. Ora olhando coisas; ora mirando gentes; ora atenção voltada a eventuais produtos
28

culturais cujo fulcro é o objeto estudado; ora escutando histórias e mais histórias no cochicho
de um personagem-entrevistado. Ora atentando à espacialidade; ora garrando nas
materialidades – reconhecendo, principalmente, a expansão e a contração, como movimentos
constitutivos e igualmente valorosos, necessários. Bem-vindos à pesquisa.
Licença para, neste capítulo, expandir. Buscar o que antecede o momento (e o
movimento) vivido pela Praça Roosevelt nos dias de hoje. Brincar com o tempo. Viajar ao
passado. Escarafunchar no chamado trompe-l’oeil de Santos (2006), crescendo, assim, olhos
em algo talvez aparentemente superado pelo tempo (o registro da praça em um dado período
de sua história), mas que, eventualmente, pode lançar algo novo ao presente do objeto
estudado. Xeretando aqui e acolá, encontra-se uma profusão de produtos audiovisuais sobre o
objeto desta tese. Em meio a tal variedade, chamam atenção os documentários, recorte que
neste capítulo encontra lugar. Deste modo, esta seção, a partir de um levantamento
documental, propõe lançar ancoragem na produção audiovisual, tomando, não sem dúvidas,
como objeto dois documentários cujo mote é a Praça Roosevelt antes de sua reforma.
Os tipos de documentários problematizados flertam com duas modalidades deste estilo
de produção audiovisual: a observativa e a reflexiva. No modo observativo, há um esforço
para captar a realidade tal qual como se apresenta, sem praticamente notar-se o
documentarista e a equipe envolvida na produção. Já o viés reflexivo deixa claro ao
espectador como se dá a “filmagem, evidenciando a relação estabelecida entre o grupo
filmado e o documentarista. Nos filmes em que esse modo de representação prevalece, nota-se
como é a reação do grupo pesquisado diante da câmera e do seu realizador”4.
Entre os objetos deste capítulo, estão os documentários: (a) Palco Roosevelt, de 2007,
dirigido por Rafael Rolim e produzido por Flávia Person, publicado na página CurtaDoc5 e na
plataforma Vimeo6, com duração de 21 minutos. Este produto audiovisual se propõe a mostrar
a praça não como mero lugar de passagem, mas como espaço dinâmico e culturalmente ativo,
procurando evidenciar a pluralidade urbana e apresentar ao espectador tanto o prisma social
quanto algumas reflexões sobre o espaço cotidiano e o espaço público; (b) Roosevelt: uma
praça além do concreto7, de 2009, produzido e dirigido por estudantes da Anhembi Morumbi
(Amanda Santana, Ana Cristina Vasconcelos, Érika Valois, Luiz Mazetto, Maria Joyce

4
Disponível em: https://portaldocurta.wordpress.com/2012/03/documentario-e-seus-tipos-segundo-bill-nichols/.
Acesso em: mai. 2018.
5
Disponível em: http://curtadoc.tv/curta/urbanidade/palco-roosevelt/. Acesso em: abr. 2018.
6
Disponível em: https://vimeo.com/14375744. Acesso em: mai. 2018
7
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=sa6P-rVQPI8. Acesso em: abr. 2018.
29

Santos) e veiculado no YouTube desde 1º de setembro de 2014. Com duração de 25’50’’,


intenciona colocar a praça como protagonista e costura aspectos do início do século XX à
reforma prometida pela prefeitura paulistana para o ano de 2010.
O tipo de discurso fílmico é bastante singular. Ele espreita tanto a ordem estética como
a linguística, e sua apreciação – objetivo da análise em si – leva a uma melhor compreensão
da obra. Aumont e Marie (2004) apontam que a análise de uma obra fílmica congrega e
engendra uma análise textual, narratológica, icônica (dados visuais e sonoros), mobilizando,
no espectador, efeitos particulares. “O olhar com que se vê um filme torna-se analítico
quando, como a etimologia indica, decidimos dissociar certos elementos do filme para nos
interessarmos mais especialmente por tal momento, tal imagem, ou parte da imagem, tal
situação” (p. 11). A atitude analítica é um olhar pormenorizado – não restrito a críticos e
cineastas, mas extensivo ao espectador considerado minimamente crítico – conjugado à
capacidade interpretativa.
Há uma distância salutar a ser estabelecida neste ponto: entre a análise crítica advinda
de cinéfilos – cujas funções majoritariamente se referem a informar, avaliar e promover – e a
análise calcada e emergida de modo mais sistematizado a partir de singularidades de um dado
fenômeno fílmico. Para esta segunda vertente, isto é, para este olhar que se pretende mais
sistematizado, não há teoria unificada. O que existe são formas de explicar que buscam
racionalizar ao máximo aquilo que se observa nos filmes, tomando caráter descritivo e
explicativo. É franco, pois, admitir que a análise fílmica caminha para uma interpretação e sua
qualidade se dá por meio da evidência daquilo que é apontado. E é mais franco ainda admitir
que o cingir dos fatos pode representar risco de deformá-los ou mesmo implicar risco de o
analista simplesmente parafrasear o filme (AUMONT; MARIE, 2004).
Na tentativa de minimizar riscos de simplificação e de mera paráfrase, a interpretação
do corpora do capítulo – isto é, duas narrativas fílmicas do gênero documentário –, pauta-se
em um olhar que passeia pelo texto falado, pelas imagens (de outrora, do momento flagrado,
do estúdio) e pelos sons (ruídos, som ambiente, trilha sonora), entrelaçando-os enquanto se
almeja o didatismo daquele que lê este trabalho. Para guiar o leitor em termos de organização
do capítulo, há três subtítulos: (a) Palco Roosevelt: zumzumzum, ziriguidum, nheco-nheco e
rapa rapaziada; (b) Roosevelt: além do concreto, muita memória; e (c) Roosevelt: uma
quimera que só.
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1.1 Palco Roosevelt: zumzumzum, ziriguidum, nheco-nheco e rapa rapazaziada

É em meio a um zunzunzum de conversas sobrepostas que o documentário Palco


Roosevelt, de 2007, tem início. Entre um murmúrio e outro, algumas vozes se tornam
audíveis e evidenciam, de partida, uma trama variada de perspectivas sobre o lugar. No
falatório, enquanto uma sequência de imagens antigas daquele lugar perfila em plano
sequencial, desde a vista da não-praça ao enquadramento aéreo do recém armado concreto da
praça-edifício (Figura 1), dão pitacos gente visceral, gente morna, gente de boa. Entre os mais
contundentes, a certeza de que aquele espaço é uma “demolição, não (...) [uma] construção”,
dando sinais da desaprovação da arquitetura do lugar. Ali, “ninguém representa ninguém”,
alfineta outro no sentido de dizer que cada um está por conta própria, anunciando plena falta
de representatividade. Outra sobreposição de voz anuncia que, na geometria daquelas formas
e andares, reside a “ditadura”, como se observá-la diuturnamente representasse um déjà vu do
regime em vigor à época de sua inauguração, pelos idos de 1970. Entre os amenos, a defesa
de que a Roosevelt “é do povo”, é um “espaço público”, das “tribos”, “de todos nós”. Trata-se
de um lugar que “passou por muita coisa” e que a “praça-coisa” “mudou da água para o
vinho” e ainda tem muita “metamorfose” pela frente. Tal profusão de discursos evidencia, de
partida, nesta obra audiovisual, a perspectiva de Delgado (2007), para quem o espaço urbano
– reconhecido como campo de forças em meio a tensões e distorções no âmbito do cotidiano –
apresenta-se, em essência, de modo multidimensional, instável; feito de textos, atravessado
por uma versatilidade inumerável de acontecimentos.

Figura 1: Abertura do documentário Palco Roosevelt – sequência de imagens


31

Com o badalar do sino da Nossa Senhora da Consolação, como que para convocar a
atenção do espectador, o nome do documentário é anunciado e são mostradas quinas da
concretude da praça enquanto um homem inaugura uma sequência de entrevistas solidárias à
praça como ela é, preservando as formas e os contornos de sua inauguração. O primeiro
entrevistado agradece por estar vivo e pela dádiva de a cada dia ter a oportunidade de
encontrar ângulos diferentes em meio aos “buracos” e “entranhas” da praça (Figura 2), bem
como a comodidade de “ter tudo”, “tudo, tudo”, naquele lugar. O depoimento seguinte coloca
a Roosevelt como “província” na qual, pela manhã, é possível sair dando “bom dia!” a todos.
O entrevistado atesta o bem-estar relacionado a conhecer todas as pessoas por ali: “conheço
todo mundo, né. Isso dá um orgulho muito grande!”. Neste ponto, as imagens (Figura 3)
utilizadas para ratificar a praça-província (no bom sentido, pelo que o entrevistado diz)
compreendiam a abertura da floricultura pela manhã, destacando o colorido das flores de seu
interior e os funcionários colocando um banco de madeira do lado de fora sobre um chão de
paralelepípedo para provável contemplação do interior da loja e entorno. Já a voz de uma
senhora anuncia, com entusiasmo, a autonomia e a segurança desfrutada para sair e encontrar
tudo e todos por perto: mercados, feira livre, pessoas conhecidas (Figura 4).

Figura 2: Buracos e entranhas da Praça Roosevelt

Figura 3: A província Roosevelt


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Figura 4: Segurança e autonomia emanadas pela praça

A religiosidade plural também é explorada na medida em que imagens da celebração


de uma missa são passadas enquanto o depoimento – em estúdio – de uma senhora contrapõe
que ela gosta “de ir em toda igreja porque Jesus é um só” (Figura 5). A entrevistada 6, por
sua vez, destaca a beleza enxergada na praça como ela é (Figura 6): “Particularmente falando,
eu acho a praça bonita assim como ela é” e relembra, dando pistas de ser ex-moradora da
região, dos passeios dados com seu “cachorrinho”. Acompanhando seu depoimento, vem à
tona cenas de um homem passeando com um cão e do “cachorródromo”. Ela diz: “lembro que
era muito gostoso frequentar a praça... gente interessante, gente jovem, tinha uns meninos que
ficavam ali de skate (...) Boas lembranças da praça”. Entram em cena manobras de skate e,
junto, as falas de dois jovens skatistas que reconhecem o lugar como um pico (nome dado a
pontos de encontro para os praticantes do esporte), espaço acolhedor para os experimentados
e principiantes: “virou tipo uma união”, diz um dos rapazes. Complementando, o outro jovem
afirma: “a gente se sente mais à vontade, como se fosse apegado à nossa casa” (Figura 7).

Figura 5: Religiosidade na praça


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Figura 6: A beleza da Praça Roosevelt

Figura 7: O “pico” Roosevelt

A pelada da rapaziada (Figura 8) também tem um “cantinho”, no “miolo da praça”,


revela o entrevistado 9, enaltecendo o fato de os meninos tomarem muito cuidado de modo
que nunca viu “ninguém levar bolada nem nada”. Neste ponto, além dos dribles no concreto,
aflora uma paisagem sonora que não é só do atrito dos pés com o chão ou derrapadas com a
bola, mas uma trilha sonora de samba. Isto dá abertura para o próximo aspecto destacado
como positivo, que é, nas palavras da sambista que trabalha na região, a criação de um
“vínculo”, de ser conhecida (“o pessoal sabe quem sou eu”), de as pessoas se
cumprimentarem: “você cria uma coletividade (...) muito legal”. Imagens de gentes na
calçada, molhando a palavra com cerveja, mãos habilidosas tocando pandeiro e dedilhando
violão e cavaquinho ratificam a fala da entrevistada em um esforço de evidenciar o lugar
como acolhedor. Na rua, festiva, sobrepõe-se o coletivo pelo ziriguidum, coagulando em
êxtase, por certo período de tempo, gentes de variadas histórias e origens. Coletivos que, na
acepção de Delgado (2007), são capazes de fomentar intercâmbios enquanto pessoas que
talvez nem voltem a se ver vivam e sintam juntos um estado de excitação (Figura 9). Contudo,
de modo inesperado, até mesmo o fácil acesso a drogas – “tijolinho, tijolão, trouxinha” –
também é destacado pela entrevistada 12 como aspecto positivo. Ela própria afirma ter se
colocado à disposição dos filhos para ir buscar drogas na praça: “Meus filhos tinham 15 anos
34

e eu chamei os dois e disse assim: olha, no dia em que vocês quiserem (...), pode deixar que
eu vou lá na praça Roosevelt (...) Eu vinha comprar aqui”.

Figura 8: A pelada no seio da praça

Figura 9: Samba, vínculo e coletividade

A criticidade mais carregada nas tintas sobre a praça é inaugurada com o entrevistado
11, para quem não têm vez aqueles que simplesmente estão “afim de passear” –
principalmente “pais de família” e “garotinhos” com suas motozinhas, já que não lhes restam
muitas opções de se apropriar do lugar senão dando, à revelia, dribles nos meninos e
homarada donos das peladas. Os peladeiros, por assim dizer, não têm o direito de se apossar
da praça como campinho: “tem menino jogando futebol! E, pior ainda, chega e vão tomando
espaço e bola para lá e para cá... não que eu tenha nada contra futebol. Eu gosto de futebol pra
caraca, né. Mas não é o local, não é o local”. Para esta corrente de moradores, não apenas os
peladeiros devem ser extirpados do pedaço como também os skatistas. Além da tentativa de
moradores proibir a prática do skate, até uruca os jovens skatistas relatam receber de algumas
“mulheres”, “senhoras” e “velhos”: “vai quebrar o pé, moleque!!!”. Mas este movimento de
erradicar o skate é, para os praticantes, natimorto, porque “sempre colam umas pessoas
diferentes, entendeu”.
Os próprios skatistas dão sua opinião de quem deveria ser dizimado do pedaço: os
nóias, os drogados. Nas palavras dos dois jovens skatistas, “quem estraga a praça Roosevelt
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não (...) [são] eles, tá ligado?” O que estraga é que “sempre tem um usando droga (...) no
canto ali e pá”. O entrevistado 13 corrobora esta perspectiva e escancara sua indignação com
o uso de drogas em espaço público: “No outro dia eu estava na Praça com os cachorros,
passeando, e veio três meninas... foram lá no cantinho na maior cara de pau! Enrolaram o
fuminho delas, fumaram e foram embora! Nem se tocou. Mas nem se tocou!”. Outro
depoimento mostra que o banimento deve ser dos cachorros para que seja aberto espaço para
as crianças: “Crianças que estão nos prédios aqui em volta, trancados dentro de quitinetes, não
têm nada! Eles abandonaram a Praça! (...) o playground que tem está privatizado! Aonde as
crianças podem jogar, está TRANCADO para cachorro fazer cocô!”. O que as pessoas se
esquecem, ponderam os entrevistados skatistas, é que “a Praça Roosevelt é muito grande...
muito grande”, portanto tem lugar para a “delegacia de polícia”, para os “guardas”, para os
“cachorros” e o “cachorródromo”, para o “campinho de futebol”. Afinal, a praça é “bem
grande, em cima e embaixo, entendeu? Espaço sobra nessa praça para ser ocupado”.
Junto com imagens que sugerem declínio da praça (vigas enferrujadas, concreto quase
despencando do teto, “pixo” e grafite) vem a preocupação de outra leva de entrevistados sobre
aqueles que têm procurado privatizar aquele espaço público para segregar: “Antes de mais
nada, a privatização. Em segundo lugar, a segregação. Eu sou contra todo o tipo de
segregação! Nem os cachorros devem ser segregados!”. A prioridade da pauta sobre a praça é
contundentemente questionada: “Os caras vão discutir cachorródromo, meu... Vão discutir o
morador de rua... Porra, meu!!! Traz... é aliado, cara!!!” Outro morador, indignado, chama à
atenção para o projeto formalizado de higienização da região com a retirada dos moradores
em situação de rua: “O primeiro documento que a gente recebe é a retirada dos mendigos da
Praça. É mole? Higienização mesmo!” (Figura 10). Sousa Santos (2008) alerta em sua obra
para o fato de que “o grau máximo de exclusão é o extermínio” (p. 282). A fala destes
entrevistados corroboram tal perspectiva e, ao mesmo tempo, demonstram a convulsão social
agonizante vivida pela parte da urbe explorada nesta reflexão. Na Figura 10, a seguir, é
apresentado um conjunto de imagens daqueles que, pelos relatos de alguns dos entrevistados
do documentário, devem ser banidos, exterminados da Praça Roosevelt. O ápice da exclusão
nesta narrativa fílmica do Palco Roosevelt são os drogados que, embora muito mencionados,
encontram-se destituídos visualmente de representação. Trata-se dos “não vistos”.
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Figura 10: Quem deve ser banido da Praça Roosevelt

Drogados:
mencionados, mas sem
imagem para representá-
los. Os não representados.

A solidariedade parca aparece na memória dos moradores em situação de rua (Figura


11), que destacam a iniciativa da igreja Nossa Senhora da Consolação para que tomem banho,
além da generosidade de um senhor chamado Carlos: “É só nessa igreja aqui que a gente toma
banho! (...) Não é nem o pastor, nem ninguém... é o Seu Carlos! Às vezes, ele traz da casa
dele sabonete, macarrão, arroz, feijão, sal...”. Nas entrelinhas dos depoimentos é possível
sentir o peso de uma convocação para que sejam enxergados (ainda) como humanos, como
dignos de humanidade – e não dó – diante do sofrimento vivido. Também se nota a
convocação, entre eles, para que se unam diante da adversidade enfrentada: “A gente tem que
estar em comunhão... todos nós, né? Porque a gente já está no sofrimento... a gente tem que
viver em paz entre a gente, porque é difícil a vida que a gente vive, entendeu?”. Em termos de
narrativa imagética, acompanham os depoimentos dos três moradores em situação de rua
cenas do dia a dia deste grupo na praça e cenas gravadas em um estúdio, com fundo preto e
elementos que remetem ao contexto das ruas: três depoentes sentados, um colchão velho
encostado nos bancos, uma manta fajuta e um cachorro vira-lata faceiro que passeia pelo
estúdio enquanto prosseguem a entrevista. A imagem que mostra as doações amontoadas sem
qualquer organização evidencia o improviso deste tipo de atendimento.
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Figura 11: Representações correlatas aos moradores em situação de rua da Roosevelt

O sexo ganha ares jocosos nesta narrativa fílmica: “O engraçado é que ficou uma
coisa, assim, meio eclética a praça, né? Tinha os moradores de rua, tinha as travestis, tinha as
garotas de programa...”. Outro entrevistado complementa: os “michês para homens também!”.
E o escândalo e a indignação assolam as expressões ao se descrever a busca por pretendente-
cliente e o sexo em pelo e em pleno ar livre: “no meio da praça eles faziam programas,
cassação... assim... Então era comum... quando começava a escurecer, o pessoal trepava em
cima e tal”. O 13º entrevistado, escandalizado que só, trata de acrescentar que o sexo também
era praticado pela manhã: “lá em cima tem um jardinzinho assim e tudo... e é meio
escondidinho. 9h da manhã e o pessoal fazendo sexo! 9h da manhã fazendo sexo”, repete. “E
o pessoal dos prédios tudo assistindo!”. Outra entrevistada revela que no seu prédio fazia uma
fila de 16 a 18 homens, que “subiam até o vigésimo andar e viviam transando”. Com a
resolução do proprietário do edifício de colocar à venda as unidades apenas para famílias,
uma síndica assumiu o controle e, paulatinamente, os imóveis foram convertendo-se apenas
para fins residenciais, proibindo de se “fazer dali um ponto profissional”, não podendo “subir
mais de um namorado por noite”. Contudo, quando “entra uma tribo, sai outra” – alerta e, em
certa medida, alfineta a mesma entrevistada, enquanto as imagens vão mostrando pichadores e
grafiteiros (Figura 12), putas, michês e travestizaiadas para o lado de fora, famílias do lado de
dentro.
Enquanto isso, os teatros – como Os Satyros e depois o Parlapatões – tentam, sem
sucesso, como o tempo vai dizer, não expulsar ninguém: “A gente não queria expulsar
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ninguém. A gente tinha de ser inserido nesse lugar, sabe. A gente não queria que ninguém
fosse inserido ao nosso mundo”. O simples fato das companhias teatrais estarem naquele
lugar já mudara o seu significado. Quer queira ou não, as membranas filtrantes, de um lado e
de outro, estavam em pleno movimento de traduções, como o juízo de valor destacado na
sequência demonstra: “A gente tinha de se inserir e conhecer esses códigos todos desses caras,
desses mundos de malucos, desses universos que a gente, puta, sequer imaginava como seria”.
Como outro entrevistado expõe, por mais que se tente ruir fronteiras, há uma “separação
muito grande na praça entre aquilo que os moradores fazem e o que as lojas e bares fazem”. E
avança dizendo que “formiguinhas moradoras entram de noite pra algumas outras pessoas
serem atraídas para a rua... as cigarras” [risos] (Figura 13). Os teatros aparecem para outros
entrevistados como uma grande promessa para a Roosevelt: “A praça, em função dos teatros
que estão aqui agora, pode vir a ser um grande núcleo de teatros”. E avança: “A Praça é do
povo, tá?! A Praça é do povo, como o céu é do condor, tá? A Praça é de todos nós. E se a
Praça tem um teatro, todo o pessoal que faz arte tem que defender”.

Figura 12: Sai uma tribo, entra outra

Figura 13: As cigarras da Roosevelt


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Aqueles que frequentam a praça e o seu entorno acabam por ter uma aura sedutora e
mágica, relata o entrevistado 24, e qualquer um que esteja abaixo desta régua, não se dá bem:
“É mágico. As pessoas que passam por aqui têm muita personalidade e qualquer figura que
tenha menos personalidade que as figuras fortes que existem aqui, dança”. Mas a então
promessa com a chegada dos teatros se estilhaça: “hoje, teatros, artistas são os vilões da
história. São os baderneiros. São os bagunceiros. São os caras que acabam com a ordem”. Isso
porque, para alguns, a população flutuante do lugar, derivada dos teatros e demais
estabelecimentos, é puro “desrespeito”. O entrevistado 12 cutuca e dá a cara a tapa:

Eles não podem excluir 832 apartamentos que moram aqui, que significa, mais ou
menos, 2.500 pessoas. Eu reclamei com nome, sobrenome, assinatura, endereço e
telefone. Então eles sabem muito bem que eu reclamei sim. Porque eu acho que é
um desrespeito muito grande ficar fazendo chacrinha até seis horas da manhã.
Quebrando garrafa e cantando ‘atirei o pau no gato’. O pior é o ‘atirei o pau no
gato’, entendeu? [risos] O maior desaforo. Esgoelando.

E o receio do fantasma da ditadura volta ao debate na voz do entrevistado 26,


contrapondo que tomar a calçada é um ato político e de direito (Figura 14): “A gente aprendeu
com a ditadura no Brasil que as calçadas não nos pertencem (...) E todo mundo acreditou
nisso, sabe? Só que a gente não acreditou. A gente precisa tomar essas calçadas. A gente
precisa iluminar isso aqui”.

Figura 14: Ocupar a calçada é um ato político

Para colocar por terra tanta problemática, seria a demolição da praça a saída? “Quando
tinha mais banco lá, tinha muita gente morando lá. [Tinha] os aposentados... até namorado.
Tudo ficava nos banco. Mas nem banco tem mais”. Nesta direção, a entrevistada 12
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complementa, afirmando que demolir faz parte do processo de extirpar da realidade o que se
deseja longe do alcance dos olhos:

Tinha um pombal. Um objeto de arte, vamos assim. Os pombos são daninhos, então
o que é que se faz? Faz a demolição do pombal. Os moradores de rua dormem em
cima dos bancos, então vamos demolir os bancos. Agora, vamos demolir a praça. E,
daqui a pouco, eu não sei se... Eu tenho a impressão que vão demolir os prédios e o
teatro municipal, né?

E a finitude é amplificada pelo entrevistado 23, que afirma: “tudo vai acabando. A
gente acaba também. Vai acabar apagando, apagando, né? Porque a gente não é nada nesse
mundo, né? Que que a gente é desse mundo? Hoje a gente tá aqui e quando vem amanhã, já
foi pro buraco”. Nas entrelinhas destas últimas constatações, reside de modo mais
contundente uma parcela da provocação dos idealizadores deste documentário: a convivência
agonizante do social, o mal-estar de não se aceitar o fato de todos serem diferentes, mas iguais
em termos de direitos. Fica, desta forma, frouxo o abraço à diversidade e aparentes os cabos
desencapados quanto à violência a que certos grupos se encontram suscetíveis, podendo, por
assim dizer, ser gerado a qualquer momento um curto circuito calcado no preconceito
estruturante do social. Para debaixo do tapete, tudo aquilo com que certas pessoas, a
intelligentsia, não sabem lidar. Mesmo o documentário, visualmente, tem suas limitações: não
mostra as putas, os michês, os drogados. No lugar disso, no arremate da narrativa fílmica –
que por sinal não dá nome aos entrevistados –, a arte é exaltada como a única capaz de trazer
estas personagens desacreditadas na sociedade para o centro. Sendo assim, enquanto cenas de
um espetáculo realizado no meio da praça são mostradas (Figura 15), enfatizando a ideia de a
praça ser um palco, é colocado textualmente que não se fala em movimento artístico, fala-se
em resistência: “O movimento artístico começa a acontecer a partir de agora (...) Tá começando
alguma coisa que pode fazer história”. Mas, em meio ao movimento cotidiano, questões sociais
continuam postas, ainda que se faça vista grossa, conforme as Figuras 16 e 17 evidenciam.

Figura 15: Palco Roosevelt, encenação ao ar livre


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Figura 16: Questões sociais, pontas soltas

Figura 17: Cotidiano Roosevelt

1.2 Roosevelt: além do concreto, muita memória

Diferentemente do documentário anterior, Roosevelt: uma praça além do concreto


nomeia seus entrevistados e principia fortemente ancorado na tessitura da memória de seus
depoentes, além de pesquisas realizadas pelos idealizadores sobre o passado do lugar muito
antes de ser praça. Entre as memórias emocionais, representadas visualmente por imagens de
close dos entrevistados (Figura 18), está a de Bartira Cataldi, moradora, para quem a praça
torna-se seu endereço tão logo deixa a maternidade. Para Esdras Vassalo, mais conhecido
como Doca, dono do Bar Papo, Pinga e Petisco, a Roosevelt é onde seu filho dá os primeiros
passos. Já o escritor e ex-morador da região, Ignácio de Loyola Brandão, revela seu sonho de
comer um “prato chique”, o “estrogonofe do Baiúca”, conhecido reduto da boemia paulistana,
cujo auge, nos anos 1960, trouxe à casa, geralmente abarrotada, artistas como Zimbo Trio
(formado ali), Elis Regina, Chico Buarque, Dick Farney, Johnny Alf, Sabá, Cauby Peixoto e
seu irmão Araken8. Rubinho, integrante do Zimbo Trio, destaca a boa música circulante na

8
Disponível em: https://jornalggn.com.br/noticia/baiuca-o-templo-da-boemia-na-praca-roosevelt. Acesso em:
jun. 2018.
42

época e como a Bossa Nova “tava praticamente começando” (Figura 19). Mas, o gênero
preferido do momento, esclarece, era o Jazz, música americana.

A gente sempre recebia os músicos americanos que vinham fazer espetáculos,


principalmente no teatro Record que era na rua da Consolação. E eles iam pra lá de
noite tocar com a gente. Foi assim que a gente conheceu uma porção de músicos
bons, né. Tommy Flanagan, vários. E a Baiúca passou a ser um ponto de boa
música, bons clientes, bom jantar, boas bebidas, tudo. Era muito respeitado. Isso
tudo acontecia na Praça Roosevelt.

Figura 18: Roosevelt, memória emocional representada no close dos entrevistados

maternidade primeiros passos do filho sonho de comer o strogonoff do Baiúca

Figura 19: A bossa da Roosevelt

A cantora Claudette Soares (Figura 20), por exemplo, deixa o Rio de Janeiro e chega a
São Paulo nos anos 1960, aconselhada pelo amigo Ronaldo Bosco, visto que na capital
carioca a Bossa Nova já tinha território demarcado. O amigo recomenda: “São Paulo é um
país. Larga sua praia (...) vai embora para São Paulo”. E, assim, a cantora chega para cantar
na casa Baiúca, de propriedade de Heraldo Funaro: “Casa maravilhosa, com piano. Inclusive
um ponto de encontro... Talvez tenha sido a primeira casa que era o ponto de encontro onde
todos os cantores que vinham para São Paulo tinham que dar uma canja na Baiúca (...) Todos
que se possa imaginar”. A Baiúca é “ponto de boa música, bons clientes, bom jantar, boas
bebidas, tudo (...) respeitado. Isso tudo acontecia na Praça Roosevelt. “Tempo áureo com a
Baiúca”, completa Edras Vassalo. Mesmo após os shows, Rubinho revela a vocação
agregadora do local, “um lugar de encontro” até quando as portas dos estabelecimentos
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baixavam: “Sabe, as vezes é engraçado (...) [artistas] falavam: vamos fazer um vocal aqui, tal.
E distribuíam as vozes (...) e a gente, ao lado de um poste, pahhhh, fazia os acordes tal
cantando né. Então era um lugar de encontro até pra isso”. Loyola Brandão arremata dizendo
que se tratava de “uma reunião de músicos, de boêmios, de jornalistas, de... de vagabundos,
porque também tinha os que não faziam nada. E de socialites... que eles frequentavam”.

Figura 20: Claudette Soares e a Bossa Nova na Baiuca

O resgate da história também toma vez na narração em off, quando o documentário


esclarece como a Roosevelt se encontra no coração de São Paulo, no bairro da Consolação e
que seu nome é uma homenagem ao ex-presidente norte-americano Franklin Delano
Roosevelt, aspectos ratificados na Figura 21 (a) por meio de imagem de vista aérea em
movimento da praça; (b) pelo engarrafamento e complexo viário que representa; e (c) pelo
enquadramento de uma das suas quinas, evidenciando certos elementos constitutivos de sua
paisagem, como lixo, carros, pessoas, parco verde, placa de rua, calçada e asfalto. Mas, muito
embora a praça tenha sido nomeada nos anos 1950, a história daquele espaço remonta a muito
antes (sequência de imagens na Figura 22). Tivemos a doação do terreno pela família Prado à
Igreja Nossa Senhora da Consolação e, por um determinado tempo, o colégio Porto Seguro
chega a ser a única construção na praça (Figura 23). Bartira Cataldi diz que “não existia praça
(...) Do lado de lá, chamava Rua Olinda, do lado de cá, Rua Martinho Prado”. Nos anos 1950,
a praça torna-se estacionamento a céu aberto: “meio confuso (...), não tinha flanelinha (...) não
tinha nada. Tinha uns caras que tomavam conta. Então, tinha de saber onde você pôs o seu
carro. Às vezes, tinha alguém que fechou o seu carro”, relata Ignácio de Loyola Brandão,
enquanto imagens do Filme São Paulo S/A, de 1965, são exibidas dando conta de mostrar ao
espectador a vastidão confusa daquele espaço (Figura 24).
44

Figura 21: Roosevelt no coração de São Paulo

Figura 22: A praça antes de ser praça

Figura 23: Colégio Porto Seguro, por tempos, a única construção da praça

Figura 24: O caótico estacionamento rooseveltiano no filme São Paulo S/A

A atriz Phedra de Córdoba alegra-se por ter conhecido a praça no “seu auge”, no
tempo em que dizer “eu moro na Praça Roosevelt” equivalia-se a dizer, nos dias de hoje,
“moro nos Jardins”. “Era um lugar de encontro”, acrescenta Rubinho, do Zimbo Trio. Para
além da Baiúca, também é trazido à tona o Cine Bijou (Figura 25), que, no off, é apresentado
como o espaço reservado aos “apaixonados pela sétima arte”. O diretor de teatro Gabriel
45

Catellani coloca que, nos tempos de ditadura, o Cine Bijou “foi o grande polo centralizador de
toda a inteligência nacional”. De Fernando Henrique a Silvio Santos, relata, “eles
frequentavam esse espaço para falar sobre o Brasil, pra pensar política e pra, através dos
filmes que aconteciam naquela época, ficarem informados do cinema de arte mundial”. Dulce
Muniz, do Teatro 184, que ocupa hoje o endereço do Cine na Martinho Prado, ressalta que
todos os jovens ou, ao menos, “uma parte da juventude da época”, costumava ir muito a este
cinema, porque ali “se passava o que hoje se chama de cinema cult ou filme cabeça, era
chamado filme de arte”. Loyola Brandão complementa: “O Cine Bijou na época também
marcou presença, porque foi o primeiro cinema de arte mesmo. Só passava filme de arte. Não
passava tranqueira”.

Figura 25: Cine Bijou, catalizador dos amantes da 7ª arte

Já enveredando para a inauguração da praça, o documentário rememora que a obra


aconteceu durante a ditadura (Figura 26) e foi entregue aos citadinos paulistanos (Figura 27)
pelas mãos do prefeito da época, Paulo Maluf, para quem “lá foi um bom projeto de
urbanização e um grande projeto viário (...). O dia de inauguração foi dia 25 de Janeiro [de
1970]. Veio um presidente da república para a inauguração: Presidente Médici. Ele fez um
belo discurso”. Loyola Brandão viveu toda a reforma: “Era dia e noite sem parar. Era
impossível dormir. Principalmente quando vinha o vibrador de cimento. Aquilo é uma coisa
terrível”. Gualberto Costa, conhecido como Gual, é dono da livraria HQ Mix na região da
praça e relembra que seu pai o levou à inauguração da Roosevelt, daquele “blocasso de
concreto (...) né. E... do minhocão (...) Eu fiquei impressionado, porque é um volume de
concreto muito grande, né”. O barbeiro Renato Orbitelli, dono do Salão Diplomat, recorda da
pompa do evento: “Teve fogos, teve tiro de canhões. Foi bonita a festa de inauguração da
Praça”.
46

Figura 26: Roosevelt em obra durante a ditadura militar

Figura 27: Inauguração da Praça Roosevelt

No entanto, Ignácio de Loyola Brandão coloca que, naquele momento, a praça já não
era mais sua e já não era de mais ninguém. Nas suas palavras, “aquela Praça que foi feita, não
era mais a minha Praça. Não era nossa Praça. Não era Praça mais de ninguém”. Deste modo,
“após anos de efervescência cultural, a Roosevelt (...) [passa] por um período de degradação e
abandono”, no qual o primeiro sinal dado é o fechamento de estabelecimentos do entorno,
como conta Renato Orbetelli (Figura 28): “Porque fechou tudo aqui. Só ficou aberto eu, que
eu meu lembre. Eu e acho que, se não me engano, uma papelaria. Que era uma livraria
antigamente a papelaria, né. Cabou tudo. Fechou tudo aqui”. Gual recorda que “antigamente...
Nove horas da noite essa praça era intransitável”. Bartira Cataldi rememora que sua mãe
chega a ser assaltada dezoito vezes nesta época: “roubavam coisas da velhinha”. Até que um
dia, aos 84 anos e cansada das abordagens, “saiu correndo atrás do ladrão (...) Correu o boato
e, então, por incrível que pareça, depois disso ela não foi mais assaltada”. Gual, na livraria,
experimenta algo que, como coloca, é “hilário”: “a pessoa veio assaltar minha sócia e minha
esposa (...). Ela conseguiu explicar pra ele que não tinha dinheiro e que ele poderia levar o
livro. O cara levou o livro, né”. A professora Sandra Trabucco impressiona-se com a
47

deterioração do espaço, agravado, segundo ela, na década de 1980: “a gente vê a deterioração


do espaço (...) até então, era muito legal. Era muito gostoso por aqui”.

Figura 28: Roosevelt, degradação e abandono

O sinal de alguma melhora, segundo o seu Renato Orbetelli, foi dos anos “1990 pra cá,
(...) quando os teatros vieram” (Figura 29). Gabriel Catellani, do Teatro do Ator, afirma que,
quando a companhia chegou, em 1999, colocou fim a “uma etapa aqui da Praça, aonde (...)
tinha chegado quase que no limite da degradação”. A narração em off coloca a chegada da
Companhia Teatral Os Satyros, em 2000, como um dos marcos da revitalização da Praça
Roosevelt. Muito embora outros teatros já existissem no entorno, “nenhum havia percebido a
Praça como um lar”. Rodolfo García Vásquez, um dos idealizadores do espaço Os Satyros,
expressa que a chegada da trupe à praça nem sempre foi tranquila: “em 2005, a gente recebeu
uma ligação (...) [de] um traficante que dizia que haveria um derramamento de sangue na
porta do teatro se a gente continuasse, porque a gente tava atrapalhando as atividades deles”.
E a ameaça no sentido de que a companhia teatral “deveria pagar um aluguel (...), uma
mensalidade pro tráfico de 15 mil reais por mês”. Valor que o Os Satyros não dispunha. A
atriz Phedra de Córdoba coloca que não passava pelo lugar de noite: “era tudo escuro (...)
Tinha prostituta, travesti, que inclusive os travestis... Teve uma que me parou e falou: Tu é
mulher ou travesti? (...) Não soube o que responder (...). Eram marginais, entende?” A raiva
da travesti que a parou se dá porque Phedra era conhecida por ser uma transex, “mas que era
muito fina, que era atriz”. E isso, segundo ela, “chocava”.

Figura 29: A chegada dos teatros, sinal de melhora (?!)


48

Rodolfo García Vásquez conta que o lugar é de “bandidagem pura”. Contudo, o grupo
teatral não se deixou intimidar e fincou-se na região por entender como fatores importantes a
localização, “o astral” do lugar e a crença de que “poderia se relacionar (...) e mudar um
pouco essa atmosfera”. Ivam Cabral, também um dos idealizadores do Os Satyros, coloca que
é mérito da arte: “acho que a arte ela produz isso. E não precisa ser nem um grupo muito
fantástico (...) A gente sabia... A gente partiu desse princípio que... onde tem luz... onde tem
gente, não tem problema. Não vai acontecer nada de grave”. O fotógrafo Walter Antunes,
expõe que a “partir do momento que a Praça vira um espaço de lazer e de cultura efetivo”, as
pessoas enxergam “com bons olhos e procuram tá na Praça, sejam nos espetáculos, sejam nos
bares (Figura 30). Eu vejo essas pessoas, que são os bandidos, deixando a cena”. O professor
de Yoga e frequentador da praça, Alex Ruiz, revela que “as pessoas ficam preocupadas em
guardar a bolsa, guardar o celular”. Para ele, “tá tudo bem (...) não tem problema”.
Somando-se ao Os Satyros, abre as portas o grupo de teatro Parlapatões. Na
inauguração, conta Hugo Possolo, “os Satyros fizeram uma homenagem pra gente, porque a
gente foi lá pedir xícaras de açúcar como bons vizinhos. Então, o açúcar tem uma simbologia,
uma superstição teatral, né? Que se você joga açúcar na porta do teatro, o teatro lota”. Para a
jornalista Maria Antônia Demasi, a praça deve ser usada por todos. E o “papel do artista (...).
Porque, além de botar no palco, no caso, no teatro a arte deles (...), estão influenciando a
comunidade, né. E eu acho que eles estarem aqui, e (...) permitirem que estejamos aqui, é
muito legal para você rever esse pedaço da cidade”.

Figura 30: E a praça torna-se espaço de lazer e de cultura

Com a chegada dos grupos de teatro, a Praça Roosevelt vira uma espécie de ponto
turístico, como conta Rodolfo García Vásquez. Junto com esta condição, chegam a população
flutuante, o barulho e a reclamação de moradores. “Alguns moradores novos, também antigos,
49

começaram a reclamar dessa efervescência. Eles preferiam (...) o barulho dos tiros e tal da
madrugada? Não sei, é uma questão de gosto pessoal. (...) A gente incomoda algumas
pessoas”, ironiza o dramaturgo. A moradora Bartira Cataldi expõe que o problema não são os
teatros, mas sim os bares dos teatros. Este sim é um “tormento insano”, porque vendem
cerveja até “cinco e meia da manhã”. Maria Victória Vaz, também moradora do entorno da
Roosevelt, pondera:

Eu falo francamente, pra mim não me incomoda. Mas há pessoas que moram, por
exemplo, nesse São Lucas. Até são nossos amigos, mas eles reclamam muito.
Porque, às vezes, a pessoa sai do teatro... Você sabe, às vezes a pessoa sai em
companhia, não é? Ou conhecidos, ou pessoas que se conheceram no momento, eles
gostam de conversar um pouco, não é? E incomoda as pessoas no dormir, que tem
que dormir pra amanhã levantar cedo e trabalhar [risos].

Andréa Cavalcante, corretora de imóveis e integrante da Ação Local Praça Roosevelt,


“procura apaziguar” os “ânimos” e incentivar “um respeito mútuo”. Otimista, acredita se
tratar de uma “questão de tempo, como tudo na vida”, para chegar ao equilíbrio das coisas. A
chegada da fala de uma corretora de imóveis ao documentário é interessante porque, com a
“retomada da vocação cultural”, revalorizam-se os imóveis do entorno da praça. Ivam Cabral,
rindo, lembra-se dos tempos em que sua companhia de teatro chegou à região – tudo era
muito barato e simples – e diz que, hoje, a qualquer momento, o grupo pode ser “expulso”.
Quando Andréa Cavalcante começou a trabalhar na região há treze anos, a valorização do
lugar era parca, mas, no período da idealização do documentário, os valores do metro
quadrado triplicaram: “Então, os imóveis estão chegando num teto de valores bem altos e a
tendência é aumentar ainda mais essa valorização” (Figura 31), prevê a corretora. Ivam Cabral
denuncia que há uma especulação imobiliária afugentando todo mundo, como as travestis que
não tem mais condições financeiras de bancar seus aluguéis. No lugar delas, entra em cena
uma burguesia falida:

Há uma especulação imobiliária muito grande que também atrapalhou todo o nosso
processo de trabalho, porque essas travestis que viviam aí não tem mais dinheiro
para pagar. Então, a gente acabou afugentando todo mundo e veio um monte de
burguezinho falido para a Praça Roosevelt. Tipo, nossa... Tomara que eles não me
ouçam. Meu Deus, tô falando isso. Mas, enfim. É o... São os moradores hoje. São as
pessoas que... né?

A metragem quadrada triplicada coloca em relevo outro ponto destacado por Delgado
(2007), que é o processo de gentrificação, afastando para longe os indesejáveis (os pobres e os
ingovernáveis). E a presença dos teatros, que na voz da corretora assume o caráter de
50

“retomada da vocação cultural” da Roosevelt, acaba por evidenciar a reapropriação que, neste
caso, se dá sutilmente por vias de dinâmicas capitalistas que espreitam a tematização do lugar.
Na cidade, onde reside o mais feroz dos liberalismos, é possível perceber o estímulo à
propriedade de certos grupos e a restrição de outros, diminuindo para esta segunda parcela a
possibilidade de apropriação. Desordem especuladora frutificada também do abandono da
administração pública de planejar a cidade, o que acaba por convertê-la, ao sabor de certos
grupos, em produto a ser consumido.

Figura 31: A valorização dos imóveis do entorno da praça

Em meio à explosão imobiliária, é anunciada pela Subprefeitura da Sé a reforma da


praça com início previsto para o ano de 2010, duração estimada de 18 meses e um custo entre
40 e 50 milhões de reais, administrado pela EMURB (Empresa Municipal de Urbanização).
Cláudio Teodoro, arquiteto da EMURB, ao apresentar o projeto, mostra a promessa de
demolição de boa parte da área concretada e demonstra preocupação com a acessibilidade e
com o aumento da vegetação, isto é, com o aumento das áreas chamadas ajardinadas, “que são
as áreas verdes sobre lajes”. Ainda por parte da prefeitura, a promessa é de que a área seja
“limpada”, de modo que, em uma das quinas da praça, se tornasse possível visualizar o trecho
da Augusta perto da Consolação, sendo possível estabelecer uma “ligação da praça com seu
entorno”. Dulce Muniz, do Teatro Studio 184, é favorável à demolição porque, como está,
opina, a praça não é ponto de encontro, mas catacumba (Figura 32), repleta de reentrâncias,
sujeita há 40 anos de infiltrações.
51

Figura 32: A (anti)praça (ainda como) catacumba

As condições da praça à época colocavam-na não como um bem público, mas como
um mal público. Nesta toada, de mal público, também está Loyola Brandão: “odeio como
projeto arquitetônico e urbanístico. Mesmo porque, que que era? A Praça era um ponto de
encontro (...) Era uma coisa aberta, né? Virou uma coisa fechada (...) sufocante. A própria
igreja, né, desapareceu (...) era um monumento da cidade. Agora tá ali”. Maluf, o prefeito que
inaugurou a praça, coloca-se contra a reforma-demolição: “acho que esse país não tem
orçamento para demolição. O orçamento tinha que ser para gerar emprego e pra construção.
Sou contra. Contra”. E provoca: “Onde é que está a verdade? Naquele arquiteto que projetou
há 40 anos ou no arquiteto que quer hoje demolir para ganhar eventualmente um honorário.
Não, nós temos que construir. Temos que demolir nada”.
Gualberto Costa diz que há “lendas” dizendo que a praça é um projeto experimental,
cujo objetivo era “não concentrar pessoas e, consequentemente, [não] concentrar ideias e virar
uma coisa que acabou virando. A gente retomou a nossa democracia indo para as ruas, indo
para as praças, nas Diretas Já”, defende. Para Maluf, esta é uma grande piada. Ele ri da
“lenda” de que o projeto praça-edifício teria sido concebido para impedir manifestações
populares: “O Brasil tem oito e meio milhões de quilômetros quadrados, então você pode
fazer manifestação popular onde você quiser. Não precisa ser especificamente na Praça
Roosevelt”. Loyola Brandão solapa ao dizer que o projeto dos anos 1970 “não tem nada que
ver com ditadura. Tem que ver com burrice”. Para o arquiteto Cláudio Teodoro, o projeto-
demolição está tramitando desde os anos 1980 e a diretriz para retirar a laje de cima da praça
tem mais a ver com a capacidade de “zeladoria” e “controle” do lugar. Bartira Cataldi
desconfia: “Não existe vontade política para isso. De maneira nenhuma eu acredito que eles
vão fazer alguma coisa”. Para Rodolfo García Vásquez, “o projeto, ele tem que valorizar as
pessoas do cotidiano, as vontades das pessoas e que seja um espaço democrático, né. Que a
Praça merece e que a cidade precisa”. Para o dramaturgo, “construímos na calçada um espaço
52

democrático, livre e seguro. E seria maravilhoso que a gente pudesse expandir essa calçada
para o meio da Praça”.

1.3 Roosevelt: uma quimera que só

A linguagem, meu caro, nunca é transparente. Analistas de discurso que o digam. De


Bakthin à Orlandi (2002 e 2009, respectivamente), os sentidos, escamoteados, à sorte de
interpretações, precisam ser questionados sem, contudo, a pretensa (e tão arrogante) ideia de
um sentido dito verdadeiro. Tudo se encontra, por assim dizer, praticamente à deriva. À
deriva de sujeitos, memórias, textos, contextos, situações. À deriva da complexidade daquilo
que principia muito antes dos sujeitos e que se estende para além deles em sucessivos,
entrelaçados e ininterruptos fios ideológicos. Fios ideológicos entretecidos (e, por vezes,
emaranhados) nas filigranas do cotidiano.
Cotidiano inventado, lócus de estratégias e táticas, de assimetria de vozes. Na
compreensão dele, do cotidiano, insere-se o interesse de autores como Certeau (2014) em
refletir como se dá a apropriação da cultura de massa pelos sujeitos e a maneira como estes a
(res)significam e reverberam-na. Textos midiáticos – como os documentários neste capítulo
trazidos – e a desconcertante profusão de sentidos propulsionados a agir sobre a vida de todos
os dias, de cada indivíduo e, este, por seu turno, a alimentá-los com o seu ordinário. Simbiose:
a mídia que nos fala e fala de nós. Em meio a variados textos midiáticos, encontra-se a cidade
que, ao seu modo, ventila sentidos e se (re)configura pelo olhar e fruição de flâneurs de toda
ordem: dos proeminentes aos invisíveis; dos apressados àqueles que crescem olhos em cada
detalhe; daqueles que enxergam-na a partir de vidros fumes e blindados aos que a veem – por
gosto ou falta de opção – em todas as nuances; dos que a edificam conferindo-lhe certa
estética aos que, por seus passos, fazem-na pulsar; ou, ainda, como é o caso deste capítulo, há
aqueles que vertem-na em narrativa fílmica, gesto que dá de ombros para tempo e espaço,
oferecendo vieses e exponenciando o jogo dialógico e dialético erigido sob solo tectônico.
A cidade, principalmente uma latino-americana, coloca em xeque ideias de progressão
e linearidade (PINHEIRO, 2013). Daí a ideia, aqui, de que, para compreendê-la, é solidário o
conceito de palimpsesto.

O palimpsesto é uma imagem arquetípica para a leitura do mundo. Palavra grega


surgida no século V a.c., depois da adoção do pergaminho para o uso da escrita,
palimpsesto veio a significar um pergaminho do qual se apagou a primeira escritura
53

para reaproveitamento por outro texto. A escassez de pergaminhos nos séculos de


VII a IX generalizou os palimpsestos, que se apresentavam como os pergaminhos
nos quais se apresentava a escrita sucessiva de textos superpostos, mas onde a
raspagem de um não conseguia apagar todos os caracteres antigos dos outros
precedentes, que se mostravam, por vezes, ainda visíveis, possibilitando uma
recuperação (PESAVENTO, 2004, p. 26).

Como uma espécie de palimpsesto na paisagem urbana, a Praça Roosevelt erige-se


sobre a casa de Dona Veridiana Prado, do Seminário das Educandas, de um estacionamento,
de um projeto desenvolvimentista, da violência, do tráfico de drogas, da prostituição, da
dramaturgia, do riscado do skate sobre o seu concreto. Erige-se sobre gentes e fruições, de
miscelânea entre elites econômica e intelectual e margem; de uma conjunção entre o que
caracteriza sua materialidade arquitetônica e uma paisagem social barroca, com ancoragem na
multiplicidade e na variação de que nos fala Pinheiro (2015). A realidade se apresenta de
modo ziguezagueante, centrípeta e centrífuga, expressa e oculta, relatada por um sem-número
de relatos e notícias (PINHEIRO; SALLES, 2016). Estamos, por assim dizer, em terras
barrocas.
E o barroco a que nos referimos, esclarecemos de partida, distingue-se do dito barroco
ocidental, por não se ancorar em oposições ao que é clássico ou carecer de adorná-lo.
Corporifica-se, sim, de entrelaçamentos e traduções daquilo que advém da natureza, das
materialidades e vozes da cultura, bem como de uma colcha de retalhos de gentes (quaisquer
uns) e épocas; esta última entendida como uma combinatória móvel, capaz de “remexer e
deslocar o grande no mirim e o passado no agora” (PINHEIRO, 2016, p. 8).
Deixamos de lado expressões apressadas em imprimir marcos da superação de uma
época, como é o caso do termo “neobarroco”, por reconhecermos as camadas pluritemporais
que, embebecidas em palimpsestos, enfeixam nossas memórias e modos de ver e ser latino-
americanos. O olhar daquele que se interessa pelo barroco não deve primar por fitar o seu
ressurgimento, como preconizam alguns. Tampouco imaginar que sua renovação se desdobre
de autores, tendências, grupos e escolas. Mas, recomenda Pinheiro (2016), habitar a
sensibilidade de colocar em relação plantas, bichos, objetos e sujeitos. O barroco em questão
entrincheira-se frente ao quarteto capitalismo-riqueza-competição-poder e seus desdobramentos
categorizados como híbridos postiços, como a relação máquina-homem, exemplificada pelo
autor. O barroco põe-se a juntar e religar a demasia dos alógenos, rejeitados mas sempre
constituídos-constituintes nas fissuras de nossa trama cultural.
O barroco arrefece os sujeitos e exponencia as relações natureza-cultura, exaltando a
ação do múltiplo e do variado, de onde quer que venham. Trata-se da tradução fundante,
54

método que privilegia a abertura dentro-fora-fora-dentro, esculpida pela artesania das


marchetarias dos melismas.
No território das traduções barroquizantes, germinadas pela “contribuição de inúmeras
culturas que para cá trouxeram línguas, falas e imagens que se mesclaram às ameríndias”,
gerara-se um vasto e “inacabado processo de trocas e traduções entre linguagens, gestos,
lendas e mitologias” (PINHEIRO, 2016, p. 10). O conceito barroquizante, por assim dizer,
assenta-se sobre as ideias de movediço, do que está em andamento, do inacabado, encontra-se
sobre barroquismos de toda ordem: expandidos, dilatados, saturados. No barroquismo,
encontram-se as “trocas entre culturas dominantes de centro e variantes de periferia” para
além de binarismos (PINHEIRO, 2013, p. 16).
O processo de tradução de uma cidade barroca é serpenteado pelos objetos de sua
cultura. Os textos citadinos dão saltos, têm curvas e exprimem linguagens de sua paisagem
(PINHEIRO, 2016). Muito embora o autor em questão fale da tradução cidade-jornal, em
meio a cartografias cognitivas, encontramos licença para o gesto tradutório cidade-praça-
documentários (São Paulo-Praça Roosevelt-Palco Roosevelt-Roosevelt: uma praça além do
concreto).
Trata-se de se postar diante dos desafios de tecer análises sobre sistemas culturais
mestiços (PINHEIRO, 2013, p. 21), no qual se assenta um “continente em que o pensamento
como crise é permanente”, de modo a não existir “separação possível, nem evolução retilínea
de um termo a outro” (p. 22). Temos imbricadas, na crise, multiplicidades macro e
microscópicas, o que, claro, aumenta a complexidade de análises. A investigação dos
processos mestiços convoca a intertraduções daquilo que se dá, como nos mostra Pinheiro
(2013), nas dobras.
Nas dobras da não-praça à Praça Roosevelt, passando pela Praça da Consolação das
narrativas fílmicas, em meio a um furdunço de tempos, encontram-se texturas urbanas –
expressão cara à Delgado (2007) – em cabo de força pelo direito de significar aquele riscado
de chão. Códigos e linguagens que se pretendem a “distantes, inimigos e forasteiros” são o
fervo da complexidade e dão um chega para lá em desbotadas identidades narcísicas e jogam
luz nas relações processuais, transversais e colaterais entre o que está dentro e o que está fora.
Trata-se, por assim dizer, da tríade categórica migrante/mestiço/externo de que nos fala
Pinheiro (2013) colocando por chão a ideia de obra acabada. Nesta obra inacabada, uma coisa
é a cidade – projetos urbanísticos, construções, infraestruturas, população numerosa, membros
que dificilmente chegam a conhecerem-se entre si. Outra é o urbano, o espaço urbano, as
práticas que o atravessam (DELGADO, 2007). Da prancheta, a Roosevelt enquanto espaço
55

urbano se converte, ao longo dos anos, em pleno experimento cotidiano, refletindo e


refratando sujeitos, coisas, os imperativos de cada época.
56

2 PARA ALÉM DA CONCRETUDE, QUIPROQUÓS CITADINOS

Neste segundo capítulo, é escolhido o avanço na empreitada documental e na intenção


de se atentar à linguagem fílmica, cuja continuidade narrativa, baseada em certos princípios,
sustenta certa forma de comunicação. Como colocado até aqui, um produto audiovisual é
capaz de produzir uma linguagem ao amalgamar elementos como o significante visual
(cenários e iluminação, por exemplo), o significado narrativo (as relações entretecidas entre
imagens, legendas, personagens, história, roteiro), o significante audiovisual (sincronicidade
entre ruídos, palavras, sons), e os vínculos entre olhar, som e movimento (VANOYE;
GOLIOT-LÉTE apud SILVA; MADIO, 2016). Há, por meio destes elementos, a sensação de
realidade, passando ao espectador – a um só tempo – cenas de um cotidiano, uma narrativa e a
liberdade à imaginação humana para interpretar. Como corpora desta etapa, encontram-se dois
produtos audiovisuais: (a) o documentário Arquiteturas: Praça Roosevelt, que é um episódio
de uma série mais ampla produzida pela Sesc TV e toma importância na sequência de análise
deste capítulo na medida em que revela espectros da Roosevelt após a reforma prometida pela
prefeitura de São Paulo; e (b) O estilo de vida Centro de São Paulo9, uma websérie que
procura mostrar como é a vida de pessoas que moram no Centro de São Paulo produzida pela
página A vida no centro10, plataforma digital de um projeto que se coloca como “hub de
inovação e cultura sobre o centro de São Paulo”. Esta websérie, em especial, interessa a este
estudo por sua atualidade (veiculado em 2018) e por colocar como alguns de seus depoentes
moradores do entorno da Roosevelt e seus relatos sobre como é habitar aquela região central
de São Paulo. Deste modo, objetiva-se, neste momento da pesquisa, conhecer as narrativas
audiovisuais oferecidas sobre a Praça Roosevelt após a sua principal reforma, finalizada e
entregue à população em 29 de setembro de 2012. Para além da esplanada que, a partir de
então, ligava a Augusta à Consolação, afora os bancos e os estreantes canteiros com árvores
que prometiam vingar, que particularidades citadinas a praça passaria a simbolizar e colocar
em movimento nesta reinauguração? Para espreitar esta questão, as reflexões do capítulo
encontram-se distribuídas nos seguintes tópicos: (a) Praça Roosevelt: arquitetando o
cotidiano, (b) a [glamourizada] vida no centro paulistano e (c) Quiproquó danado de rococó.

9
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?time_continue=125&v=wdXoz-yYA. Acesso em: jul. 2018.
10
Disponível em: http://avidanocentro.com.br/. Acesso em: jul. 2018.
57

2.1 Praça Roosevelt: arquitetando o cotidiano

Em 2015, três anos depois da reinauguração da Roosevelt, a Sesc TV coloca em


circulação o documentário Arquiteturas: Praça Roosevelt, produção integrante de uma série
mais ampla sobre arquitetura. Nesta produção audiovisual, em especial, muito embora a
proposta seja a retratação de um espaço público na atualidade, a narrativa fílmica remonta ao
passado da Roosevelt por meio das memórias de seus depoentes, esboços antigos, imagens de
época, mostrando-a como uma das principais áreas públicas e de lazer localizada no centro de
São Paulo, entre as Ruas Consolação e Augusta. O episódio dedica-se, por assim dizer, a
mesclar aspectos relacionados ao processo de qualificação urbana da praça e também a
pluralidade de seus frequentadores. De partida, é interessante perceber como alguns dos
entrevistados, revelados nas produções audiovisuais do capítulo anterior, se repetem nesta
nova produção. Do mesmo modo, é oportuno colocar ênfase que entre os depoentes
continuam a prevalecer certas vozes como as de dramaturgos, artistas, representante da Ação
Local Roosevelt, moradores, jornalistas, arquitetos paisagistas, documentaristas, fotógrafos e
skatistas profissionais.
A praça é colocada, logo no início da obra fílmica, como ponto nodal da cidade, por
ligar as regiões norte e sul, leste e oeste. Nas palavras (carregadas nas tintas dado o tom) de
Ivam Cabral, dramaturgo da companhia de teatro Os Satyros, “a sé da cidade é a Praça
Roosevelt” (Figura 33) Diego Bernardino Fontes, skatista profissional, demonstra relação
estreita e carinhosa com o lugar ao afirmar que, nos anos em que está em São Paulo treinando
na praça, a “Roosevelt (...) virou o (...) quintal de casa” (Figura 34). Na direção oposta, está
uma senhora chamada Marta Lilia Porta, presidente do Programa Ação Local Roosevelt,
afirmando que a praça não oferece qualidade de vida e que se trata “do pior lugar da cidade”
(Figura 35). As afirmações dos entrevistados, cada qual com seu norte, evidenciam a
particularidade com que cada vislumbra aquele espaço urbano, dando pistas de uma senhora
complexidade que entretece as relações de apropriação e fruição da praça. Como apontam
Pinheiro e Salles (2016), múltiplos relatos incumbidos de contar histórias dão as caras sempre.
E estas histórias vão desde as expressas às mais escamoteadas. Nesta direção, tanto esta, como
as demais produções audiovisuais retratadas neste texto, corroboram a perspectiva dos autores
no sentido de evidenciar as relações entranhadas e travadas no bojo do cotidiano da ordem da
cultura.
58

Figura 33: “A sé da cidade”

Figura 34: “Quintal de casa”

Figura 35: “O pior lugar da cidade”

Para Pinheiro e Salles (2016), as narrativas, em profusão desmedida – dadas as


possibilidades comunicativas da atualidade – convidam (ou convocam?) os sujeitos a
coparticipar dessas histórias, sejam elas orais, escritas, audiovisuais. E este sentimento de
participação é algo transversal às narrativas apresentadas nos documentários. Em meio a este
59

emaranhado comunicativo que se fragmenta, recompõem-se, dilata-se e supera-se, é possível


colocar em xeque a chamada “razão autoral individual, autônoma e idêntica a si mesmo”
(PINHEIRO, SALLES, 2016, p. 6).
Nesta toada de autoria coletiva, entrelaça-se aos demais depoentes, a voz de Loyola
Brandão. O jornalista conta que chegou em São Paulo em 1957 e entre aos anos 1960 e 1970,
morou no entorno da Roosevelt, e “a praça era uma outra praça”, um “asfaltão imenso”, sem
delineamento de ruas nem nada, que alcançava até a Ipiranga. “Durante o dia, era
estacionamento de vinte mil carros. Aos sábados, era uma feira (...) frequentada por todo
mundo que morava nos arredores”. Entre os moradores e frequentadores, relembra, estavam
personalidades como Jardel Filho, então morador da “Nestor Pestana, o Raul Cortez, o Lennie
Dale (...) a famosa Madalena Schwartz, (...) grande fotógrafa (...) [dona da] lavanderia na
Nestor Pestana (...), jornalistas, publicitários... porque a Standard Propaganda era na Praça
Roosevelt”. Sobre lugares, lembra da boate Zum Zum, da boate Vogue, do “famoso” reduto da
Dona Laura, do Baiuca (“o grande restaurante chique da cidade”), o Cine Bijou (“o primeiro
cinema de arte”), o Teatro de Arena. A praça, entre os anos 1960 e 1970, acredita, “era o
grande teatro social e político. Era um eixo, era tudo ligado!”. A história da Rosa Kliass,
arquiteta paisagista, com a Praça Roosevelt começa nos anos 1950, “quando morava na Rêgo
Freitas e a Praça Roosevelt, (...) [para ela], era o lugar da feira. Logo depois, veio todo o
projeto do Minhocão, da passagem subterrânea...”. O arquiteto Luis Felipe Abbud fala da
praça como desdobramento de um projeto que priorizou o “elemento carro”. Para ele, “o
urbanismo na cidade de São Paulo trocou o protagonista da cidade: não era mais o ser
humano, era o carro” (Figura 36). Ele afirma que “o projeto da Praça Roosevelt parte dessa
conexão viária, que passa por baixo, e cria, logo de cara, dois níveis de estacionamento para
carros. Depois que tudo está ajeitado para os carros, é aí que se pensa no ser humano”. Há,
explica o arquiteto, “de um lado, (...) a via elevada do Minhocão e, do outro lado, (...) a via
elevada da Radial Leste, além de um complexo de túneis por baixo da Praça, que conecta as
duas”. Rosa Kliass relembra que o projeto paisagístico da praça foi protagonizado por
Roberto Coelho Cardozo, professor norte-americano que, nas palavras dela era “profissional
competente”, um “grande arquiteto paisagista”. O projeto sobre laje, revela, “tinha áreas de
plantio, áreas de praça, de pisos... era um projeto completo!”. Contudo, quando executado,
“mal e porcamente”, não foi feito nada do que Coelho Cardozo tivesse sugerido, “foi outra
coisa”. As narrativas destes entrevistados remetem à perspectiva de Ferrara (1988), para
quem, ao se colocarem lentes na transformação urbana, saltam aos olhos memórias de usos
que colocam em diálogo o passado e o presente, abarcando códigos e ordenações que
60

culminam em sínteses singulares. A plenos pulmões, o contexto urbano narrado apresenta-se


como um carrapicho só entre circunstâncias espaciais e as conjunturas sociais. Nas palavras
da autora,

o ambiente urbano recupera-se, renascendo de suas raízes em posturas crítico-


criativas de características diversas. Enquanto recuperação de espaços e/ou
repertórios urbanos perdidos, aquelas posturas têm certa relação com a história
urbana e implicam uma atitude em comparação ao passado, à memória urbana,
porém emitindo juízos sobre o presente (FERRARA, 1988, p. 58).

Figura 36: Praça Roosevelt – Priorização da malha viária

Para Ferrara (1988), a conjuntura espacial da Roosevelt (antes da reforma de 2012) a


coloca como signos agressivo e suicida. Agressivo representa a poluição espacial, dado o fato
de aglomerar, em sua percepção, elementos díspares incapazes de se codificarem por não
resultarem de um sistema ordenado. Suicida porque na tentativa de torná-la resposta à
demanda arquitetônica global, verteram-na em poluição aglomerativa,

multidividida em áreas arbitrariamente destinadas a usos diversos, parque infantil,


estacionamento, supermercado, correio, restaurante, floricultura, praças, caixa
acústica, tudo acumulado no que se chamou de praças principais, em número de três
(Praça Maior, Praça dos Pombos e Antepraça), e mais três secundárias (Esplanada,
consolação, Praça do Mercado de Flores, Páteo Pergolado) que se (...)
[comunicavam] por rampas, escadas de formas diversas, mais ou menos escondidas.
A exploração desordenada de formas variadas, ângulos pontiagudos, formas
arredondadas, elipses, círculos, pentágonos que se (...) [manifestavam]
abruptamente, e de materiais diversos, ou seja concreto aparente, pedra, pastilhas,
mármore, todos em tom cinza, (...) [contribuía] para uma visualização que, quando
existente, desagrada pela rigidez e monotonia, o que (...) [redundava] em estrutura
imbricada que não (...) [permitia] que o usuário dela se (...) [apossasse] rapidamente,
tornando-a, portanto, ininteligível (FERRARA, 1988, p. 46-47).

A diversidade e a pluralidade, aqui convergindo para uma memória discursiva sobre


aquele lugar, mostram-na – para além da concretude (membrana de opacidade) retratada por
61

Ferrara (1988) –, como espaço de fervo, como lugar de luta, como ambiente de efervescência
cultural de que nos fala Morin (2011) no qual perfila com gingas e matizes as conjunturas
sociais, algumas das quais insistentemente varridas para debaixo do tapete por discursos
pretensos a hegemônicos. As conjunturas postas tapete abaixo levantam lombos que colocam
em tropeços esnobismos, modas, superficialidades. Neste aspecto proposto por Morin (2011),
ao qual este texto solidariza-se, os confrontos de visões do mundo, os desvios, as
transgressões, as perdas de energia, os debates abertos e a livre reflexão são caros a lugares
como a Roosevelt, cujo vértice encontra-se no pensamento crisíco, nascido e mergulhado na
crise. Neste sentido, exibindo cenas do Palco Roosevelt (Figuras 37 e 38), chega o
depoimento do documentarista e fotógrafo Rafael Rolim, relatando que, em 2008, quando fez
o documentário, a ideia inicial era falar sobre o “off sampa”, “como é conhecido (...) teatros,
esse espaço cultural” da Roosevelt; contudo, a pauta muda quando se depara com “a
diversidade e pluralidade de pessoas e ocupações da praça (...) Então, o filme passou a olhar
para a praça, e não só para a cena cultural”. Estrutural e espacialmente falando, “era uma
coisa sem manutenção nem nada, infiltrava, escorria água (...) nada aprazível... você olhava
para a praça e não era um lugar que te estimulava a ficar. Mas, arquitetonicamente, ela era
muito bonita, muito interessante”. O arquiteto Luis Felipe Abbud acrescenta que a praça foi se
tornando “um local meio underground” e, deste modo, a Roosevelt passa a ser associada com
“pessoas do submundo, marginais da cultura paulistana”. Entre as pessoas do dito
“submundo”, para o entrevistado, estão os traficantes, os mendigos, as prostitutas e os usuário
de drogas. Com estes habitantes, a “praça foi ficando um lugar abandonado. E a estrutura (...)
foi contribuindo para (...) [a] degradação”. Isto porque, justifica, as lajes eram amplas e havia
muitos lugares escuros, facilitando para “que as atividades ilícitas fossem acontecendo
naquele espaço e a população fosse criando um certo medo”. Este receio de estar na praça
encontra eco na voz de um morador, Luis R. Barbieri: “Quanto mais próximo você chegava
da praça, mais medo você tinha de estar na rua. Era mais sombrio, mais duro, mais
apavorante”. A presidente do Programa Ação Local Roosevelt, Marta, coloca que

a primeira Praça Roosevelt deveria ser para trazer o pessoal para fazer teatro,
atividades diurnas. Não foi cuidada da primeira vez, foi depredando-se também e
terminou abandonada. Como tinha um teto, ainda tinham muitas pessoas que se
refugiavam para cometer crimes nos espaços que não estavam muito, assim, para
visão facilmente.
62

Figura 37: Frames do Praça Roosevelt – “pluralidade de ocupações chamou a atenção”

Fonte: Arquiteturas: Praça Roosevelt (2016)

Figura 38: Frames do Praça Roosevelt – lugar “nada aprazível”

Fonte: Arquiteturas: Praça Roosevelt (2016)

Ivam Cabral, ator e dramaturgo, relata a chegada, em dezembro de 2000, do grupo Os


Satyros à praça e relembra que se depararam com um “terreno devastador” que compreende,
na realidade, todo o centro de São Paulo. “E a Praça Roosevelt, que a gente vai saber depois, é
um dos lugares mais perigosos da cidade de São Paulo, onde no espaço Parlapatões tinha tido
uma chacina”. Enquanto prosseguem cenas do espetáculo A Vida na Praça Roosevelt, o
entrevistado pondera: “No fundo, a Praça Roosevelt é tão boa e tão ruim como qualquer outra
praça dessa cidade”. A alternativa encontrada pela companhia teatral foi incluir – como tema
e como profissionais – pessoas que estavam às margens, como os transexuais e as travestis
(Figura 39). Esta iniciativa teatral, na acepção de Ivam Cabral, integra um movimento maior,
artístico, pois abarca também literatura, cinema e música. Ele determina que, em 2006, com a
chegada dos Parlapatões, “definitivamente, a partir daí, a Praça Roosevelt nunca mais vai ser
a mesma”. Em Sociedades Movediças, Delgado (2007) trata de chamar de gente “los
indiviuos y las agrupaciones humanas que uno puede contemplar desplegando su actividad
hormigueante em los espacios exteriores y acesibles de cualquer ciudad” (p. 37). Essa gente
(transeuntes e eventuais coalisões de caminhantes), no âmbito do espaço urbano, compreende
o que o autor conceitua de atores da vida pública; personagens citadinos que, por meio de
máscaras, almejam ser levados em conta (ou não) colocando em trânsito não apenas suas
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aparências como também sua moralidade. E, neste caso dos teatros, a dramaturgia da vida
pública ganha o palco das companhias chegadas à Roosevelt.

Figura 39: Cartazes de peças do espaço Os Satyros que levam o nome da Roosevelt no título

Fonte: Arquiteturas: Praça Roosevelt (2016)

Diego Bernardino Fontes, skatista profissional, chega ao “pico” pela primeira vez em
2007. “Era a Roosevelt antiga ainda. Eu andava bastante (...) no Vale do Anhangabaú e aí,
quando chovia (...) eu vinha para a Roosevelt, porque tinha a parte debaixo que era coberta. E
isso salvava o rolê, na época”. Depois da reforma, revela, deixa de vez o Vale e passa a
frequentar a Roosevelt todos os dias.

Figura 40: Praça Roosevelt – Manobras do skatista profissional Diego Bernardino Fontes

Fonte: Arquiteturas: Praça Roosevelt (2016)

Em busca de determinar um marco de “salvação” para a praça, Ivam Cabral, diz que as
melhoras independeram do poder público. As melhoras, defende, foram sendo realizadas
pelas pessoas. O “poder público (...) passou à deriva. Nunca a gente teve, de fato, uma
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interlocução bacana. A gente nunca foi ouvido (...) pelo poder público. Então, toda essa
conquista (...) independeu do que o poder público acabaria fazendo pra gente”.
Marta, a presidente do Programa Ação Local Roosevelt, relembra que na condição em
que a praça se encontrava, não havia alternativa senão fechar tudo “porque os problemas de
que provavelmente caíssem pedaços da Praça [nas pessoas] eram contundentes”. Após uma
“demora” de cinco anos para reconstruir a Praça, a Roosevelt entregue, lamenta, passa longe
da promessa feita pela administração anterior da cidade, isto é, de que seria “uma praça
ecologicamente correta, autossustentável...”. Até o momento da gravação do documentário,
afirma, os moradores continuavam atrás do projeto por eles aprovado. Insatisfeita, revela:

Para a nossa surpresa, quando abriram as portas, muito antes de terminar a obra, não
era nada do que tinham prometido [(Figura 41)]. Eles mudaram o piso: de ecológico
passou a ser um piso super barato, que somente aguenta o passo de rodinhas de
skate. As árvores que foram tiradas, que estavam antes, não foram recolocadas.
Colocaram árvores que até dão alergia às pessoas. E no cachorródromo, espaço
especial para os cachorrinhos, colocaram plantas que são venenosas.

Figura 41: Nova Roosevelt – “nada do que tinham prometido”

Fonte: Arquiteturas: Praça Roosevelt (2016)

De acordo com Rafael Rolim, a Roosevelt “melhorou, (...) mudou pra melhor”,
comparando-a com a época da idealização de seu documentário; muito embora sua produção
de 2008 tenha tomado o partido a favor “da manutenção da praça como ela era”, visto ser
“realmente um espaço muito interessante, que poderia ser recuperado”. Para Ivam Cabral, a
“Praça Roosevelt nunca poderia deixar de ser um monte de concreto, porque passa (...) por
debaixo da Praça Roosevelt a Radial”. Há “vários estacionamentos, (...) vários níveis e só
poderia ser reformada com concreto”. O dramaturgo afirma que em meio a sua concretude, a
Roosevelt “tinha que ser um lugar que pudesse acomodar as vocações (...) [daquele] lugar (...)
Que é a periferia”. Sem ter a certeza de que foi proposital ou não, os skatistas, que “eram os
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caras que viviam (...) na praça durante todo esse processo de abandono”, tem na nova
geografia do lugar um espaço no qual podem se “legitimar”. Perspectiva não comungada por
outros moradores que afirmam que a “modalidade skate street, (...) é aquela (...) tão criticada
no mundo inteiro, que é a destruição do lugar onde (...) estão” (Marta). Diego, skatista
profissional, mesmo quando coloca o skate de lado, vai para a Roosevelt, porque naquela
praça tem “vários amigos, várias pessoas, vários profissionais”. E, às vezes, quando não está
com vontade de andar, observa as manobras sendo feitas para ter “inspiração”, na “casa do
skate”. Marta Lilia Porta, critica de modo contundente a presença dos skatistas, como quem
deseja transformar a Roosevelt no quintal da casa de moradores apenas:

Como não foi feito um regimento, nenhum regulamento nem nada da Praça (...) Aí,
de repente, apareceram trezentos, quinhentos skatistas pro final de semana e a
pessoa que vinha tomar sol ou sentar-se para ler um jornal praticamente foi corrida
do lugar. São pessoas que não são moradoras da região, geralmente... temos poucos
skatistas que moram aqui na praça. São pessoas que vem até de lugares tão
remotos, como Caieiras... e ficam o dia inteiro aqui... se são adolescentes, deveriam
ter pelo menos um período na escola. Chegam às 8h da manhã e vão embora às 11h
da noite. Então, a Praça se converteu em um espaço – pela força – só apenas de um
grupo (grifo nosso).

Contrapondo, Diego afirma que é “complicado” “você pegar um determinado local da


Praça e falar: fica só aí!”. Porque a “alma do skate é livre! Então, não adianta, cara!”. Na
praça “antiga”, afirma, “quando eu vinha andar, o chão não era tão bom” e o “que eu via mais
era gente jogada, mendigos, criminalidade até... Hoje em dia, eu venho aqui e está a galera
jovem, a galera do skate”. “Na real”, diz que principalmente “a galera do skate” foi quem
“deu uma vida (...) pra praça. Hoje, o lugar “está liso, tem uma grama”, é “aberto”, “tem
policiamento”. “Isso aí tudo viveu a praça de novo! Então, alguns moradores reclamam... só
que eu acho que outros gostam, sabe? Tem uns até que andam de skate.”
Os novos ares da praça também são celebrados por Luis R. Barbieri, morador da
Roosevelt, para quem, o mais gostoso “é o movimento da rua”, “um lugar aonde você,
qualquer hora do dia, chega e tem alguém na rua, tem um movimento, tem uma vibração na
rua”. Para ele, a praça é “a apoteose da rua, aonde a rua tem a sua potencialidade máxima”.
Morar no centro tem como aspecto positivo a mobilidade, mas como ponto alto também se
encontra a segurança, “porque tem gente o tempo todo, tem um super movimento... então, te
dá uma tranquilidade de ir e vir a qualquer hora do dia ou da noite”, coloca. O barulho do
skate, para ele, não incomoda: “Pra mim (...) é como se fosse mais um ruído da cidade. Acho
que o barulho do skate, no final, é como se fosse o barulhinho do mar, assim... que vai se
misturando e propicia um negócio que é o barulho do ambiente onde você vive”. E avança:
66

No Rio, tem o mar. Aqui, tem o movimento da cidade, né? Então, acho que não me
incomoda para estar aqui, na sala, para jantar, para estar com os amigos, para ler um
livro... não me incomoda! Mas, acho que, na hora de dormir, o sono precisa de
silêncio, né? Então, para dormir, eu coloquei uma janela antirruído para evitar
qualquer barulho.

Ivam Cabral afirma que é “prazeroso olhar hoje para a história e ver que há uma
apropriação legítima da Praça Roosevelt pelo skate, por exemplo... porque, quando a gente
chegou na Praça Roosevelt, todo mundo tinha abandonado a Praça, menos os skatistas”. O
ator coloca que gosta “de dizer que antes do teatro, antes da cultura, a Praça Roosevelt é, de
forma legítima e por direito, dos skatistas”.
Não apenas os skatistas incomodam aqueles que pretendem converter o espaço público
em privado. Mas aqueles que, entre as 18h e as 19h, começam a se achegar de mansinho e a
se acomodar nas escadarias, por exemplo, com seus violões, pandeiros e outros equipamentos
como caixas de som (Figura 42). “Ontem, por exemplo, estava tendo um ensaio da Vai-Vai
aqui! Às 7h da noite. E daí, tinham centenas de pessoas, que vinham de milhões de lugares,
desde o executivo até a baiana!”, comenta e celebra no tom e na expressão o ator Ivam Cabral.
Neste fio desencapado do diz-que-disse, é interessante retomar Laplantine (1993) que,
em conjunto com Olievenstein, constitui um ensaio (incompleto, como assumido na obra) de
perambulantes pela metrópole paulistana, cujos ingredientes são pitadas de subjetividades e
sensações dando sabor às suas reflexões. Descentralizada, de cabo a rabo, a cidade – cutuca
Laplantine – parece não ter sido pensada e seus eixos principais desorientadores levam a ruas-
labirintos e, consequentemente, põe-se diante daqueles que a experimentam, o seu gigantismo,
as suas misturas e as suas contradições verticalizadas. Cá, em São Paulo, junta-se o que
algures, eventualmente, separa-se. Mestiçagens – desejadas ou não – são produzidas. A
antropofágica urbe cristalizada, entre outras frentes, desde o movimento modernista – dando
até nome a revistas –, insiste, avança, coloca-se a misturar e conjugar o seu jeitão ora
retilíneo, ora curvilíneo, ora ortogonal, ora sinuoso, ora sobre um planalto, ora sobre colinas
de onde despontam extremas riqueza e pobreza. Polimorfa, contraditória e plural que é e
reinventada diuturnamente, São Paulo tem, aos olhos do autor, exuberância barroca.

Essa mistura – que integra elementos esparsos, mas também os diferencia e os


hierarquiza – está longe de ser concluída. Está em perpétua recomposição (...) A
variante paulistana da americanidade é essa capacidade de ser duplo, triplo,
quadruplo, cristão e pagão, engenheiro de informática e filho de Xangô, pragmático
e sonhador, disponível para o transe e para as vagabundagens mais loucas da
imaginação e dominando perfeitamente a realidade. A metrópole brasileira consegue
67

conciliar essas contradições sem dissociação esquizofrênica” (LAPLANTINE, 1993,


p. 25).

Em dias (mais) cheios dos balangandãs, de samba na praça, “tem que negociar com o
skatista, porque aquele espaço é dele”. “Agora mesmo, a gente está aqui e os caras estão
pulando... A gente tem que falar: dá um tempo pra gente poder fazer o nosso trabalho e tal”.
Geralmente, afirma Ivam Cabral, tudo isso se faz “com muita amabilidade (...) porque (...) as
pessoas perceberam que esse espaço é multiuso, ele tem muitas funções”.

E é genial, porque a Lei... por exemplo... eu posso fazer uma roda de violão aqui,
pela Lei, e a Polícia não pode me tirar... Isso é genial! Porque as pessoas vão
percebendo como que elas podem se apropriar da cidade dentro da Lei! Então, nos
últimos tempos, tem aparecido muito isso: roda de violão, pessoas que vêm com
música... grupos, inclusive, que vêm tocar, ou cantar, ou dançar na Praça às 3h da
manhã! E a Polícia não pode tirar eles dali!
A Praça é povoada e, obviamente, vai causar grandes transtornos, né? Porque eu
acho que o morador comum quer que o mundo seja moldado à experiência dele, ou
seja, “eu quero dormir, eu quero ter tranquilidade...” e imaginar que ele não vive em
São Paulo, que é uma das maiores metrópoles do mundo. Então, ele faz de conta que
está numa cidade do interior de Minas Gerais, ele não assume de verdade a realidade
dele, que é estar nesse lugar efervescente, que... imagina... TODO cheio de concreto!
Você olha pra Praça Roosevelt e você só vê concreto!
Nós não podemos ter, aqui, a mesma linha de discussão pra uma cidade do interior
de Minas Gerais. Nós não podemos pensar que, às 22h, vai ter silêncio na Praça
Roosevelt e as pessoas vão dormir! Você está na ágora de uma das maiores cidades
do mundo, a maior da América Latina, eu acho... e que tem particularidades que têm
que ser defendidas.

Figura 42: Praça Roosevelt – Cena musical

Fonte: Arquiteturas: Praça Roosevelt (2016)

Para Luis R. Barbieri, o grande desafio é como “tratar a acústica da Praça”. A “praça é
um caldeirão acústico, porque ela é fechada por todos os lados por prédios e o som sobe. Aqui
tem um paredão! Então, ela é um lugar propício pro som reverberar”. Uma alternativa,
defende Ivam Cabral, tal como no bairro da Lapa, no Rio de Janeiro, é assumir a vocação
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boêmia do espaço isentando moradores do IPTU para que invistam em janelas antirruído. De
todo modo, coloca o morador Luis R. Barbieri, “tem que se aprender a conviver”. “Faz parte
da Praça (...) do (...) é positivo da Praça, (...) ter uma vida “dioturnamente”:

você tem a coisa do skate, que é um esporte na Praça, que é um movimento saudável
na Praça, e você tem a coisa do teatro e dos bares, que também é um movimento
alegre, que traz gente, que faz com que as pessoas frequentem a Praça. Acho que a
gente tem que ter um amadurecimento desse convívio, né?

2.2 A [glamourizada] vida no centro paulistano

A Vida no Centro é uma produção de março de 2018, idealizada por Clayton Melo e
Denize Baccocina, cujo objetivo, como a própria sinopse do material divulgada no Youtube
explica, é mostrar o estilo de vida daqueles que tem o centro paulistano como endereço. A
obra, ao mesmo tempo, acaba se propondo a colocar em evidencia o que o centro da cidade de
São Paulo tem de melhor: “as pessoas e como elas aproveitam as inúmeras oportunidades de
cultura, lazer e convivência do Centro”. Entre os entrevistados estão Débora Suconic
(acupunturista), Celso Fonseca (jornalista), Ivam Cabral (ator e dramaturgo) e Lorena Garrido
(atriz e advogada). A seleção deste material se dá pelo fato de abranger depoimentos de
moradores da região da Praça Roosevelt e pela sua atualidade.
A websérie é iniciada com uma vista do alto da cidade de São Paulo, que possibilita a
identificação de alguns pontos emblemáticos da paisagem paulistana como é o caso da
Avenida Consolação, do edifício Copan à beira da Avenida Ipiranga, das antenas iluminadas
da Avenida Paulista e do mural A cidade é nossa, concebido pela artista Rita Wainer em
parceria com o Acadêmicos do Baixo Augusta, em 2017. Enquanto a imagem mostra a
passagem do entardecer para o anoitecer, desponta o primeiro testemunho, que é do ator e
dramaturgo Ivam Cabral. Em sua fala, torna-se evidente que o personagem é íntimo da cidade
quando diz “eu caminho por todos os lugares”. E estes lugares não são apenas os mais óbvios,
mas também aqueles considerados pelo entrevistado como “improváveis”; sendo que “nunca,
nunca” se sentira “ameaçado” de nenhum modo. É interessante atentar para o fato de que
quando Ivam Cabral diz passar por lugares improváveis, a imagem encontra-se em transição
do enquadramento amplo da cidade para uma cena dele atravessando a Praça Roosevelt, de
noite, na companhia de seu cachorro; e a sensação de segurança é ratificada pelo posto
policial apresentado atrás do personagem, enquanto desce a escadaria da Praça, na direção da
Rua Martinho Prado.
69

Figura 43: Sequência de imagens de abertura da websérie com Ivam Cabral e textos correspondentes

“Eu caminho por todos os lugares,


os mais improváveis, inclusive”

“E eu nunca sofri...”

“qualquer ameaça nunca, nunca.”

A segunda personagem é apresentada enquanto se prepara para exercer o seu ofício de


atriz. Neste sentido, a sequência de imagens colocando-a em evidência em um plano mais
fechado apresenta Lorena, nos bastidores, se maquiando, enquanto conta a sua história: uma
nortista que, migrando para São Paulo, elege, desde sempre e em variados endereços, viver no
centro.
70

Figura 44: Sequência de imagens de apresentação da personagem Lorena – destaque


para a profissão de artista da depoente

“Sou natural de São Luiz do


Maranhão, moro em São Paulo há
10 anos...”

“sempre morei no centro, o meu


primeiro endereço foi na Rua Caio
Prado”.

Já Celso Fonseca, jornalista, é introduzido à websérie cercado de livros e, folheando


um deles, em off, sua voz narra a vida no centro de São Paulo como sedutora dadas as
descobertas possíveis a cada passo que se dá pela cidade. As dimensões de seu apartamento
também recebem destaque nesta abertura da produção audiovisual, com uma sequência de
imagens que percorrem um corredor até se chegar no escritório-biblioteca do depoente.
71

Figura 45: Sequência de imagens e texto de apresentação de Celso Fonseca – destaque para o apartamento

“O centro,...”

“... ele irradia uma sedução... ”

“... a cada passo que você da, porque


você descobre muitas coisas”

A mobilidade urbana ganha destaque na voz (e apenas nela) da quarta personagem


apresentada na websérie. Débora é apenas a narradora em off da comodidade que o metrô
representa na vida dos moradores do centro, visto “uma estação (...) [ser] pertinho da outra”.
As sequências de imagens dão a impressão de que se viaja junto até a estação República.
72

Figura 46: Sequência de imagens e texto de apresentação enaltecendo a mobilidade graças à proximidade de
estações de metrô no Centro de São Paulo

“E os metrôs, né? Eu acho que o


centro é o único lugar que tem uma
estação pertinho da outra”

Sem narração, a trilha sonora aqui é


apenas o som contínuo do vagão
deslizando no trilho

A gravação do metrô anuncia:


“Próxima estação, República.
Acesso à linha 4, amarela”.

Há um arranjo musical acompanhado de uma passagem do cotidiano da Praça


Roosevelt com garotas dançando (Figura 47) que aparenta ter a função de anunciar o próximo
bloco de assuntos dentro da websérie, no qual o espectador entra um pouco mais em contato
com a rotina dos personagens. É possível dizer que esta outra etapa da produção passa
também a impressão de intimidade, pois, por exemplo, é “entrando” na casa do jornalista
Celso Fonseca e da acupunturista Débora Suconic, que o espectador se dá conta de tratar-se
de pessoas que moram juntas e que têm a Avenida São Luis como endereço. Os destaques de
se morar no centro nesta passagem vão para a sensação de sentir “junto e misturado” às
73

pessoas, de se sentir à vontade. Contudo, o texto falado é dito do interior do apartamento


destes personagens da vida social, sem matizá-los ao mundo lá porta afora, pondo-os aos
olhos do espectador como água e óleo em relação a outros atores sociais. A imagem passa
uma ideia de que o casal, de sua espaçosa varanda e na companhia de seu cachorro, também
não deixam de ser, eles próprios, espectadores desta cidade.

Figura 47: Cotidiano Praça Roosevelt anuncia novo bloco na websérie

Figura 48: Débora Suconic – A intimidade de seu apartamento

Débora: “E da mistura do centro,


né? De você poder estar um
pouco mais à vontade...”

“...no meio de todo mundo. Não


ter a tribo, né? Aqui, na verdade,
é todo mundo misturado, todo
mundo junto e misturado”.
74

A atriz e advogada Lorena Garrido partilha que, via de regra, seu trânsito pela cidade
de São Paulo se dá mais do teatro para a sua casa e alguns programas de lazer. Nota-se, mais
uma vez, a força da profissão na narrativa desta personagem. O espaço aberto à websérie e ao
espectador é a coxia, são os bastidores do espetáculo. Ou, ainda, o próprio palco do teatro
apropriando-se, neste caso, da cena de uma peça e de uma passagem de texto interpretada por
Edu Chaves convidando ao riso. E este momento da produção é justamente encerrado com
risos da depoente Lorena.

Figura 49: Lorena Garrido – Intimidade até a coxia e convite ao riso

“No centro eu me locomovo muito


mais entre o teatro e a minha casa...”

“...e os programas de lazer”.

Cena do ator Edu Chaves, trazia seu


texto: “Mas como riam com ele, riam
alto, rá rá rá. Riam sem parar, rá rá rá
rá rá”
75

Risos

É da janela de seu apartamento na Martinho Prado, de frente para a Roosevelt e


tomando uma xícara de chá, que Ivam Cabral partilha um pouco de sua esfera privada com o
espectador e divide a sensação de que, para ele, a humanidade é algo muito presente nas
grandes cidades, bem como os centros citadinos exorcizam o sentimento de se estar só.

Figura 50: Centros das grandes cidades – humanidade e companhia

“Eu acho que os centros das


grandes cidades, eles têm em
comum muita humanidade”

“Eu não me sinto sozinho no


centro, nunca”

Em off, Lorena destaca o gosto por andar “sem compromisso” pela cidade e destaca
suas preferências de lugares, como o Viaduto do Chá, o Largo Paissandú, o “miolão” mesmo,
como destaca. Nesta incursão, se deixa seduzir pela arquitetura de alguns prédios: “fico
bestificada às vezes com aqueles prédios”.
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Figura 51: Gosto por andar no miolão e pela arquitetura dos prédios

“Eu gosto muito de andar pelo centro,


sem compromisso também. Ali no
miolão”

“...atravessar o Viaduto do Chá,


atravessar ali o Largo do
Paissandu...”

“...e entrar mesmo, sabe? Eu fico


bestificada às vezes com aqueles
prédios”

Já o jornalista Celso, enquanto passeia com seu cachorro, fala em off de seu fetiche por
morar na São Luis, bem como de seu entusiasmo com relação à ideia dos “apartamentos
grandes”, com “pé direito alto”. Como acertado por um golpe de sorte, afirma que o
apartamento em que mora frutifica do acaso: “a gente bateu aqui por acaso, e o zelador falou
que tinha um pra vender”.
77

Figura 52: Fetiche por apartamentos grandes e pé direito alto

“Eu acho que a São Luiz pra gente


era um pouco de fetiche, tal. Essa
ideia dos apartamentos grandes, pé
direito alto, tal”

“...E a gente bateu aqui por acaso...”

“E o zelador falou que tinha um pra


vender. Quer dizer, foi uma coisa
muito espontânea, assim”

A acupunturista Débora Suconic, mais uma vez, ressalta a mobilidade. Afirma que
morar no centro torna-se interessante na medida em que, de qualquer lugar, você consegue
uma condução, exemplifica, para a Praça da República. É uma despreocupação a questão do
transporte, porque “tem ônibus pro centro”.
78

Figura 53: Centro – mobilidade e despreocupação

“Outra coisa que é muito interessante


no centro é que, morar no centro, ...”

“eu posso estar, sei lá, ...”

“em qualquer lugar tem um ônibus


pra Praça da República”

“Então você pode sair despreocupado


que tem um ônibus pro centro”.

Ivam Cabral recorre à memória ao afirmar que centro paulistano o faz se lembrar da
“cidade pequenina” em que nasceu, no interior de São Paulo (Figura 54) e essa lembrança
atina enquanto as imagens da websérie mostram este personagem, de noite, na praça, jogando
79

bola ao alto para o seu fiel labrador. Para Lorena, o centro representa segurança, o que, para
ela, é sinônimo de bem-estar (Figura 55).

Figura 54: Centro – lembranças de uma cidadezinha do interior

“O centro me faz lembrar a cidade


pequenina que eu nasci no interior”

Figura 55: Centro – segurança é sinônimo de bem-estar

“Traz segurança, na real, sabe? É o


que me dá o bem estar”

Celso, afirma que recorrentemente é feita uma confusão entre bandido e pobreza, o
que descortina, no seu modo de ver, o preconceito. Este borramento de linhas coloca, não é
algo caro apenas do Centro, mas característica de São Paulo como um todo. Com este
exemplo de quiproquó citadino, muito embora sua fala tenha sido uma crítica potente, as
imagens mostradas são alienantes no sentido de não irem ao encontro de sua colocação.
Mostra-se o depoente em um cruzamento de São Paulo enquanto passeia com seu cachorro e
aparece a vista aérea de uma fração do centro da cidade.
80

Figura 56: Preconceito é quando se confunde bandido com pobreza

“O que existe é essa confusão entre


confundir bandido com
pobreza, ...”

“... que eu acho que é um


preconceito. Mas as pessoas de um
modo geral em São Paulo lidam
mal com isso”

Moradores como Ivam Cabral, estão há tanto tempo no centro que, muito antes de
virar moda, alfineta, o Minhocão já integrava sua incursão pela cidade.

Figura 57: O minhocão na moda

“Você tem o Minhocão,


por exemplo, ...”
81

“então muito antes do Minhocão virar


moda, por exemplo, ...”

“...a gente já conhecia o Minhocão,


...”

“eu percorro o Minhocão há, sei lá,


15 anos”

Anunciando o “calor cultural” (MORIN, 2011) do centro de São Paulo, Celso enumera
e sugere alguns programas pela cidade, associando, neste ponto, qualidade de vida,
urbanidade e o centro paulistano.
82

Figura 58: Centro paulistano – qualidade de vida, urbanidade e calor cultural

“Essa semana a gente foi ver a


exposição do Basquiat, entendeu?”

“Então tem o Farol Santander, tem o


Centro Cultural da Caixa...”

“Eu acho que é uma qualidade de


vida boa...”

“dentro de um contexto...”
83

“de urbanidade, assim,...”

“se você espera Alphaville, um


condomínio, não venha pro centro,
entendeu?”

Ivam Cabral, por fim, destaca a happy hour, no centro de São Paulo, para aqueles que
deixam os seus trabalhos e entregam-se a molhar a palavra tomando a sua cerveja e a
participar de uma roda de samba.

Figura 59: Centro paulistano – cerveja e roda de samba depois do trabalho

“Mas você perceber as pessoas que


saíram dos seus trabalhos e tão
tomando a sua cerveja, numa roda
de samba”

Fechando a websérie, Débora Suconic, diz que o centro tem charme para aqueles que
não são de lá. Enquanto isso, imagens de uma tarde de sol e de garoa é mostrada, tendo a
Praça Roosevelt como cenário e destacando, ao fim, o topo da igreja Nossa Senhora da
Consolação e o painel entregue pelo Acadêmicos do Baixo Augusta, no Carnaval de 2018,
intitulado É proibido proibir, é uma obra dos artistas Carlos Delfino, Ciro Cozzolino e Zé
84

Carratu e faz alusão aos cinquenta anos de Maio de 1968, retratado na música de Caetano
Veloso.

Figura 60: “Há um charme para quem não é do centro” (Débora Suconic)

2.3 Quiproquós danados de rococós

É possível, pois, afirmar que a representação se equipara a simulacro e constitui-se de


um sistema de signos. Representação, nesta direção, mostra-se como um gesto codificador do
universo. Deste modo, como destaca Ferrara (1988), o universo, a realidade, o real são
elementos mais que presentes e exigentes em todo processo de comunicação. Visto que todo
percurso comunicacional, se não imperfeito, é parcial, há de se conscientizar de que toda
codificação deve ser compreendida como uma representação parcial do universo, apesar de
sempre pretender esgotá-lo. Essa parcialidade e expectativa vertem em interesse pela ação
interpretante do receptor, compreendido como “uma relação entre uma representação presente
e outras representações possíveis, eventuais e virtuais” (p. 7). Isto posto é possível depreender
os documentários como representações oferecidas sobre uma fração do coração da cidade de
São Paulo à procura de interpretantes, sujeitos-receptores. Portanto, as perspectivas dos
documentários, bem como as observações aqui trazidas nada têm de pretensão a serem
absolutas.
A partir de Salles (2013, p. 118), é mobilizado o conceito de ato criador que “tende
para a construção de um objeto em uma determinada linguagem, mas seu percurso é,
organicamente intersemiótico”. Há aí uma natureza híbrida, como expõe a autora, no sentido
de colocar tanto processo como a própria obra (no caso deste capitulo e do anterior, as
produções audiovisuais) como abarcadores de diferentes códigos. Também por Salles é
possível compreender que esta trajetória é regida por movimentos de tradução intersemióticos
85

que implicam “conversões que ocorreram ao longo do percurso criador, de uma linguagem
para outra: percepção visual se transformando em palavras; ou palavras surgindo como
diagramas, para depois voltarem a ser palavras por exemplo” (p. 118). No caso dos corpora,
palavras vertem fotogramas, elementos visuais assumem planos, ideias tomam forma de
movimentos, efeitos, cortes, enquadramentos e a paisagens – textuais, imagéticas e sonoras –
se fazem dizer ou se desdizem em meio a diálogos, ruídos e trilha sonora. Tais movimentos, a
um só tempo, tradutórios e criadores, sem nada de espontâneo, escancaram uma complexa
tessitura de inferências implicada.
Pinheiro (2016, p. 26), entendendo a cultura como algo vivo, chama a atenção aos
interstícios “das inúmeras camadas relacionais” capazes de romper fronteiras que separam
obras umas das outras. Muito embora fale do jornal, a perspectiva do autor pode ser trazida à
análise de produções audiovisuais, dado o fato de ambos – reconhecidos como produtos
culturais midiáticos – encontrarem-se constituídos pela e para uma cultura marcada por
“camadas em palimpsestos de alteridades” (p. 27), como as exploradas nos tópicos anteriores,
cristalizadas – por exemplo – pelas vozes e posicionamento dos depoentes e da própria
estrutura espacial em que questão, a Roosevelt. Para Pinheiro (2016, p. 27), encontra-se em
aberto “um caminho para os estudos relacionais das linguagens e formas mestiças de cultura e
dos processos criativos na arte e na comunicação”. E o autor complementa ao afirmar que a
noção de processo se constitui por meio de “ligações membranosas e miniaturiais que fazem
os códigos, antes distantes e inimigos, se aproximarem, se tocarem, se traduzirem e se entre-
espelharem” (p. 27). Esta proposição de aproximação revela o cuidado sugerido pelo autor
quando se pretende conjugar perspectivamente os “bordados de mestiçagem tradutória” (p.
27). Em meio às misturas textuais encontram-se relações “entre o extensivo e a compactação
intensiva, por meio de nós e nexos sintático-construtivos, destinados a impelir, pela prática
material dos objetos, que a teoria recaia em afirmações vagas, vazias ou generalizantes” (p.
27).
Nesta direção, experimentando estados de vulnerabilidade em maior ou menor grau, a
multiplicidade acaba por amalgamar, em meio a alteridades diversas e variantes, um
“pensamento de inclusão interagente dos múltiplos fatores construtivos” (PINHEIRO, 2016).
Deste modo, um texto transita entre outros textos, enxertando-se uns dos outros, de modo que
– em variadas gradações e graus de interatividade – um texto acaba dentro de outro texto,
sejam estes textos da ordem que for: “literários, artísticos, culturais e comunicacionais” (p.
28). Para tangenciar, faz-se oportuna a partilha dos excertos a seguir:
86

Eu, borboleta que esvoaça


Na estância da vida humana
Deixarei a escritura da minha poeira
Sobre tristes janelas como assinatura de um prisioneiro
(KHLIÉBNIKOV apud PINHEIRO, 2016, p. 29).

Olhar a coisa com a palavra, como se se permutassem palavra e coisa, para que a
palavra não esteja suspensa no ar nem a coisa seja nua: conciliá-las, confundi-las
fraternalmente.
[...]
Quais são os temas que conduzem à colisão entre o verso e a coisa? Antes de tudo a
peregrinação, o nascimento junto do verso e da coisa
(TINIANOV apud PINHEIRO, 2016, p. 31).

Permeada por uma ebulição múltipla e complexa de possibilidades que interconecta


arte e ciência, as ruas, poesia que só, escancara de antemão tudo aquilo que, cedo ou tarde,
acaba por se corporificar em livros, páginas de jornais, palcos (Pinheiro, 2013) e, em fina
sintonia com os corpora do capítulo, convertem-se também em narrativas audiovisuais. Como
proposto por Pinheiro (2016), nestas variadas instâncias para quais as ruas podem verter,
encontra-se a transversalidade e complexidade de processos de bordados de mestiçagem
tradutória; um percurso, de partida, intersemiótico como defendido por Salles (2013).
Ao se tomar as narrativas constitutivas e constituídas da cultura, ainda que neste
momento a partir das lentes de produtos audiovisuais sobre uma parte do coração da cidade, a
Praça Roosevelt faz-se necessário lançar atenção à tríade cultura, hegemonia e cotidianidade
explicada por Martín-Barbero (2009). Deste modo, esclarece o autor, as ciências sociais
críticas trazem ao seu interior o debate da cultura e é pelas mãos de Gramsci, desde o
paradigma Marxista, que a cultura popular conquista espaço para ser problematizada
academicamente e, deste modo, certas circunstâncias históricas deixam de ser encobertas.
Coloca-se em voga neste período estudos sobre a cultura, direcionando-os à dimensão de
classe no bojo da cultura popular (MARTÍN-BARBERO apud MARCELINO, 2018).
Nesta esteira das reflexões daquele período, debate-se o conceito de hegemonia como
sendo o processo de dominação social que não se dá como uma imposição externa e sem
sujeitos, “mas como um processo no qual uma classe hegemoniza, na medida em que
representa interesses que também reconhecem de alguma maneira como seus as classes
subalternas” (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 112). O na medida destacado em negrito no
excerto anterior objetiva evidenciar que a hegemonia nada tem de cristalizada, mas, ao
contrário, diuturnamente, se constitui-desconstitui-constitui mergulhada em um processo
composto não apenas de força, se não também de sentido, pelas apropriações pelo poder dos
sentidos circulantes, pelo jogo dialógico e dialético embebecido de sedução e cumplicidade.
87

Esta perspectiva leva a cabo a desfuncionalização da ideologia (isto é, os sujeitos não


simplesmente reproduzem o sistema) e a repensar a espessura cultural como “campo
estratégico na luta para ser articulador dos conflitos” (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 112). A
cultura popular coadunada à subalternidade por Gramsci nada tem de simples. Martín-
Barbero (2009), explica que a cultura popular não apenas mobiliza fragmentação, degradação
e o inorgânico, mas, também, tenacidade e espontaneidade que a fazem aderir de modo
particular “às condições materiais de vida e suas mudanças, tendo às vezes um valor político
progressista, de transformação” (p. 112). A popularidade, continua o autor apoiado em Cirese,
não se refere à origem ou um fato dado, mas como um uso, como uma fruição, como uma
posição relacional que se estabelece. O que leva à valoração do popular não está em
adjetivações como autêntico e belo, mas sim na sua representatividade sociocultural e na sua
expressividade que trazem à tona os modos de viver das classes subalternas, as suas
estratégias, os seus jeitos de sobreviver, os seus filtros, como rearranjam o que lhes chega da
cultura hegemônica, como a sua memória histórica integra-funde-rejeita o que da hegemonia
lhes é oferecido.
Há, contudo, de se tomar cuidado com positivismos de plantão. O resgate da cultura
popular dá-se em um período marcado pela crise das esquerdas e essas, por sua vez, carregam
nas tintas no sentido das respostas e resistências das classes subalternas converterem-se na
“verdadeira” propulsão para uma revolução. Há aí o perigo do maniqueísmo: Antes, fatalismo
e classes subalternas passivas e, depois, a sua ilimitada de sua capacidade de impugnar.
Martín-Barbero (2009, p. 113) traz a perspectiva de seu contemporâneo, García Canclini, para
quem

‘instituiu-se tanto na contraposição da cultura subalterna e da hegemônica, e na


necessidade política de defender a independência da primeira, que ambas foram
pensadas como exteriores entre si. Com o pressuposto de que a tarefa da cultura
hegemônica é dominar e da cultura subalterna resistir, muitas investigações não
parecem fazer outra coisa que não seja pesquisar para além das formas como uma e
outra cultura desempenham seus papéis nesta peça’ (CANCLINI apud MARTÍN-
BARBERO, 2009, p. 113).

Martín-Barbero (2009), pondera, distanciando-se em certa medida da contundência de


Canclini, que longe de mostrar limites ao pensamento de Gramsci, há de atentar para
hegemonia e subalternidade, há de se atentar para o uso das expressões como preenchidas de
exterioridades com as quais procuram romper. No lugar de expansão entusiasta, deformação.
E, prossegue,
88

ver o popular a partir da ótica gramsciana redunda totalmente contrário ao


‘facilismo’ maniqueísta que García Canclini critica. Se algo nos ensinou é a prestar
atenção à trama: que nem toda assimilação do hegemônico pelo subalterno é signo
de submissão, assim como a mera recusa não o é de resistência, e que nem tudo que
vem ‘de cima’ são valores da classe dominante, pois há coisas que, vindo de lá,
respondem a outras lógicas que não são as da dominação (MARTÍN-BARBERO,
2009, p. 114).

Neste ponto, Martín-Barbero (2009) volta-se à cultura de massa e como esta, via de
regra, amalgama estreiteza e contradição em sua trama; assim como a ideia de indústria
cultural é infligida por maniqueísmos. Mas para além de binarismo – é isso ou é aquilo –, o
autor volta-se a Hoggart, que em sua obra The uses of literacy, aproxima-se de Gramsci e do
alemão Benjamin. Neste trabalho, Hoggart problematiza como a cultura de massa lança mão
da cotidianidade popular e de que maneira a experiência operária percebe a cultura de massa.
A vida cotidiana da classe operária inglesa é o mote do primeiro capítulo da obra e, nele, o
mundo vivo da experiência popular recebem especial atenção. Etnografia e fenemologia, de
mãos dadas, é a operação metodológica adotada por Hoggart para se embrenhar na cultura,
que não se dá fora das condições materiais de sua existência. Martín-Barbero (2009), ao
recorrer a esta gama de autores, esforça-se em colocar por terra perspectivas de
homogeneidade e coerência excessivas nas práticas populares responsáveis pela concepção da
ideia de um universo social bipartido – ‘eles e nós’. A indústria cultural inscreve-se e
transforma a experiência popular.
Para pensar a complexa dinâmica cultural na atualidade, Martín-Barbero (2009)
aproxima-se e dialoga com Williams, acadêmico que traslada o conceito de hegemonia de
Gramsci para a teoria cultural. Este deslocamento conceitual retira a cultura de um âmbito
ideológico de reprodução e a coloca como fomentadora de transformações sociais e reconhece
seu caráter processual constitutivo. Metodologicamente, Williams propõe que a formação
cultural é constituída a partir de três estratos: o arcaico, o residual e o emergente. No arcaico
encontra-se tudo aquilo que sobrevive ao passado, tudo aquilo que é rememorado. O residual,
por seu turno, muito embora seja forjado pelo passado, encontra-se no presente e, imbricado
ao processo cultural, torna-se

camada pivô, (...) a chave do paradigma, já que o residual não é uniforme, mas
comporta dois tipos de elementos: os que já foram plenamente incorporados à
cultura dominante ou recuperados por ela, e os que constituem uma reserva de
oposição, a impugnação aos dominantes, os que representam alternativas”
(MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 118).
89

O terceiro, o emergente, refere-se ao novo, à inovação processual em meio às práticas


e aos significados circulantes. Diferentemente do arcaico, o residual supera o historicismo e
não anula a história e, longe de representar escapismos e nostalgias, configura-se em dialética
passado-presente. “O emaranhamento de que está feito o residual, a trama nele do que
pressiona por trás e o que o refreia, do que trabalha pela dominação e o que, resistindo a ela,
se articula secretamente com o emergente” (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 118). Estes
estratos podem ser percebidos nas narrativas fílmicas problematizadas quando se dá conta da
herança de instância de calor cultural da Praça (arcaico), quando se assiste às memórias dos
protagonistas conjugando de modo dialético passado e presente (residual) e quando se percebe
as tentativas – como a resultante de instâncias institucionalizadas como o Viva Centro – de
colocar como algo glamourizado o morar no centro (emergente), corroborando, em certa
medida, com o processo de gentrificação daquela parte da urbe paulistana, como também
articulado no capítulo anterior.
Martín-Barbero (2009) também articula Bourdieu em sua reflexão porque este o ajuda
a problematizar a questão da reprodução que, na acepção deste autor-convidado, representa o
esforço pela compatibilidade, dentro do marxismo, de análises culturais para além de
sujeições à superestrutura, mas que, nem por isso, sejam incapazes de desnudar o caráter de
classe. Vem daí o esforço de Bourdieu em cunhar o habitus de classe, conceito inicialmente
usado para expressar como em um dado expediente cultural, certos princípios eram
interiorizados, perpetuando-se nas práticas (maneiras de se relacionar com o entorno que
culminam com distintas formas de adquirir bens culturais). Em outro momento, concebe a
partir do que chama de competência cultural (cujas bases estão nas práticas), uma nova ideia
de habitus, que já não mais é um produto, mas sim ‘um sistema de disposições duráveis que,
integrando todas as experiências passadas, funciona como matriz de percepções, de
apreciações e de ações, e torna possível o cumprimento de tarefas infinitamente diferenciadas.
Sob este novo enfoque, as práticas cotidianas revelam organicidade e sistematicidade. As
práticas e ordem social por elas expressas constituem-se a partir de uma homologia estrutural.
“Nessa estruturação do habitus é que se faz presente a eficácia da hegemonia ‘programando’
as expectativas e os gostos segundo as classes. E por aí passam também os limites objetivos-
subjetivos que produzem as camadas populares” (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 119).
A arte, cujo cerne é a negação do social, é o interstício no qual o habitus funciona de
modo mascarado. Por meio dela, são colocadas em relevo das muitas formas de relação com a
cultura. Distinção e gosto são as duas dimensões da mesma moeda: a competência cultural. A
“distinção, feita de diferenças e de distância, conjugando a afirmação secreta do gosto
90

legítimo e o estabelecimento de um prestígio que procura a distância irrecuperável para


aqueles que não possuem o gosto” (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 119). Contudo, a
distinção também perpassa noutros campos, além-arte. Seja no vestuário, seja na alimentação,
seja no esporte (etc), a distinção perpassa a vida em busca de fincar bandeiras de classe. Daí
depreende-se outro conceito, o de etnocentrismo de classe, que abarca a naturalização de uma
dada maneira de perceber o mundo em meio a outras tantas. Neste conceito nega-se
veementemente o outro para se garantir existência. Quando muito se reconhece o outro, este
adquire sentido pejorativo, desvalorizado, sensibilidade (estética) rechaçada. A cultura que se
postula legítima trata de apelidar o gosto alheio como bárbaro (na acepção Kantiana trazida
por Martín-Barbero). Nos documentários é possível atentar para este relativo etnocentrismo
de classe a começar pelos depoentes elegidos que, como dito ainda no início das
problematizações deste capítulo, compõem-se de dramaturgos, artistas, de representantes de
moradores, moradores, jornalistas, arquitetos paisagistas, documentaristas, fotógrafos,
skatistas profissionais.
O que Bourdieu deixou de fora, para Martín-Barbero (2009), foi a conjunção entre
práticas e situações e o que desse encontro surge em termos de transformação e inovação.
Este é fato é o que leva a introduzir em seu debate Michel de Certeau, empreendedor de
esforços em busca de refletir o ‘outro’ lado das práticas, distanciando-se, deste modo, da ideia
de lógica da reprodução como fulcral para a inteligibilidade destas. Não se trata de uma
oposição à Bourdieu, mas, sobretudo, de uma complementação no que sua teoria deixa
descoberto. Certeau, como exposto por Martín-Barbero (2009), “propõe uma teoria dos usos
como operadores de apropriação que, sempre em relação a um sistema de práticas, mas
também a um presente, a um momento e um lugar, instauram uma relação de sujeito com os
outros”. Na outra face da cotidianidade, a criatividade dispersa, oculta, sem discurso, a da
produção inserida no consumo, a que se faz visível só quando trocamos não as palavras do
roteiro, mas o sentido da pergunta: que fazem as pessoas com o que acreditam? Com o que
compram, com o que leem, com o que veem?
Estatisticamente imensurável, na marginalidade do discurso dominante e sua
racionalidade, está à constatação de que uma lógica não dá conta daquilo que Martín-Barbero
(2009) chama de artes do fazer. Há uma parcela de mundo delineada pelas táticas, pelos
modos de se lutar de uma parte que, via de regra, encontra-se destituída de lugar próprio,
habitante de uma invisibilidade social, sem fronteira que a distingue de outro(s). Como
exemplo desta parcela, Martín-Barbero, fala de operários que, “aproveitando ‘horas livres’
utilizam materiais do lugar onde trabalham e com as máquinas de seu ofício fabricam
91

utensílios para sua família, ao mesmo tempo em que liberam a criatividade castrada pela
divisão e pelo trabalho em cadeia” (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 121-122). O paradigma
desta lógica, para Certeau, está na cultura popular. “A cultura a que se refere Certeau é a
impura e conflitiva cultura popular urbana (...) Cultura popular fala então não de algo
estranho, mas de um resto e um estilo” (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 122). Aqui resto
espreita saberes marginalizados que carregam e convertem a cotidianidade em gesto criador
(mudo?) e coletivo. Já estilo tem a ver como jeitos: “modo de caminhar pela cidade, habitar a
casa, de ver televisão, um estilo de intercâmbio social, de interatividade técnica e resistência
moral” (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 122). “As táticas do consumo, engenhosidades do
fraco para tirar partido do forte, vão desembocar em uma politização das práticas cotidianas”
(CERTEAU, 2014, p. 44).
Quando neste trabalho colocam-se lentes na cultura popular urbana, emerge a
percepção de que a cada quina, a cada curva, a cada investida, a cada depoimento, a cada
camada palimpséstica é possível se deparar com a transformação da história da cidade pela
sua fruição, pelo seu uso, pelo seu consumo. A cidade, enquanto organismo vivo, é capaz de
dar pistas acerca do que pensa seus atores sociais, quais são suas escolhas, quais são suas
inclinações e prazeres, o que desejam ou mesmo desprezam (FERRRARA, 1988). E este
processo, que se dá de modo relacional, posto a vista pelos documentários, sugerem
contaminações entre séries vizinhas de que fala Lotman (1996), evidenciando a complexidade
implicada.
Neste ponto, é interessante recorrer a Martín-Barbero (2004), quando baseado na obra
La globalización imaginada, de Canclini, mostra como a

ruptura com o monoteísmo ideológico, ou da única clave para compreender o todo


unificado pelo motor, o ator e o antagonismo, não serve para mapear a
multiplicidade de processos fortemente articulados entre eles próprios, porém
regidos por diversas lógicas e muito diferentes temporalidades: a homogeneidade e a
velocidade com as quais se movimenta a rede financeira são certas, mas a
heterogeneidade e a lentidão dos modos como operam as transformações culturais
também o são. Para fazer inteligível essa multivocidade de processos e lógicas,
García Canclini opta por construir uma pluralidade de pistas de penetração com duas
figuras: a das perguntas e a das narrativas; a nova forma de gazer o mapa exige a
mudança de discurso e de escrita. O leitor se encontra ante montes de perguntas e de
relatos que des-centram o olhar do investigador, esse que procura os olhares dos
outros, os dos protagonistas (MARTÍN-BARBERO, 2004, p. 15).

Procurando as narrativas dos outros – “o olhar dos outros” –, esta cartografia se depara
com roteiros atravessados por rotas, derrotas, encruzilhadas e trajetos múltiplos, como
sugeridos por Martín-Barbero (2004). Nesta cartografia, é preciso, veja bem, empenho para
92

carregar nas tintas de uma reivindicação pela reversão da tendência à privatização (dos
espaços públicos, de uma praça, no caso deste texto). Nesta cartografia, o objetivo do mapa
não deve ser o de fuga, tampouco deve ser para a ação de seguir os outros; mas deve ser a
busca por um espaço, por brechas, para se fazer novos questionamentos que sejam capazes de
colocar em observação aquilo que se move debaixo de pés. Para além de binarismos de
plantão, reside aí a oportunidade de enfatizar que todos são sujeitos-cidadãos constituídos e
constituintes na/pela trama cultural (MARTÍN-BARBERO, 2004).
93

3 ALEGRIA, ALEGRIA: A MOSCA NA SOPA

Ouviram do Ipiranga as margens plácidas / De um povo heroico o brado retumbante


/ E o sol da liberdade, em raios fúlgidos / Brilhou no céu da pátria nesse instante / Se
o penhor dessa igualdade / Conseguimos conquistar com braço forte / Em teu seio, ó
liberdade / Desafia o nosso peito a própria morte! // Ó pátria amada / Idolatrada /
Salve! Salve! // Brasil, um sonho intenso, um raio vívido / De amor e de esperança a
terra desce / Se em teu formoso céu, risonho e límpido / A imagem do Cruzeiro
resplandece // Gigante pela própria natureza / És belo, és forte, impávido colosso / E
o teu futuro espelha essa grandeza // Terra adorada! / Entre outras mil, és tu Brasil, ó
Pátria amada! / Dos filhos deste solo és mãe gentil / Pátria amada, Brasil! // Deitado
eternamente em berço esplêndido / Ao som do mar e à luz do céu profundo /
Fulguras, ó Brasil, florão da América / Iluminado ao sol do Novo Mundo! // Do que
a terra mais garrida / Teus risonhos, lindos campos, têm mais flores / "Nossos
bosques têm mais vida" / "Nossa vida" no teu seio "mais amores" // Ó, Pátria amada!
Idolatrada! / Salve! Salve! // Brasil, de amor eterno, seja símbolo / O lábaro que
ostentas estrelado / E diga o verde-louro desta flâmula / Paz no futuro e glória no
passado! // Mas, se ergues da justiça a clava forte / Verás que um filho teu não foge
à luta /Nem teme quem te adora a própria morte //Terra adorada! / Entre outras mil,
és tu Brasil, ó Pátria amada! Dos filhos deste solo és mãe gentil / Pátria amada,
Brasil!

Lá pelo final dos anos 1970 e ao longo dos anos 1980, recordo, havia uma disputa
pífia (aos meus olhos) na escola estadual em que estudava: quem fosse o melhor aluno teria o
(duvidoso, cutuco) privilégio de hastear a bandeira brasileira enquanto seus coleguinhas,
enfileirados, com mão ao peito, cantarolavam desafinados que só e com tropicões na letra o
Hino Nacional Brasileiro. Era só depois disso, ainda devidamente enfileirados e ordeiros, que
íamos para a sala de aula. E, trinta e tantos anos depois, lá estava eu presenciando um
auditório inteiro levantado, boa parte com a mão ao coração, de frente à bandeira e de frente
para uma tela na qual um DVD rodava com imagens de paisagens brasileiras e a letra
(garrafal) do hino, representando estratégia para não deixar margem a qualquer pobrezinho
erro e eventual vexame. Ai de quem escorregasse (parecia estar nas entrelinhas da situação).
Reparar ao redor não provocava menos angústia. Pompas davam pistas de uma formalidade
rococó, datada e brega. O arranjo de flores brancas e vermelhas boiando sobre uma mesa
coberta por uma toalha branca ao lado direito do palco era a prova de um mungunzá fora do
ponto e danado de azedo. Em busca de fios discursivos sobre a Praça Roosevelt, cheguei à
Rua Nestor Pestana, a um dos andares da ACM (Associação Cristã de Moços), para uma
reunião realizada por um Conselho da região. Fui convidada gentilmente pelo capitão da
Guarda Civil Metropolitana (GCM), conhecido dias antes. E a intenção neste capítulo é
partilhar – de modo ora descritivo e ora interpretativo – as impressões advindas deste campo,
bem como apresentar as conversas tidas com os moradores conhecidos durante este evento e
que, posteriormente, dispuseram de seu tempo nos dias 11 e 18 de abril de 2018. Deste modo,
94

neste momento da reflexão, são apresentadas as perspectivas sobre a região da Praça


Roosevelt tanto a partir de autoridades (discursos institucionalizados) como de moradores
(vozes de sujeitos ordinários). Nas duas narrativas – a institucional e a emanada pelos
residentes do entorno da Praça – procuramos preservar identidades.

3.1 Nas trincheiras da alegria, o que explode?

Pouco antes do momento do hino, foram dadas as boas-vindas aos presentes e a mesa
com as autoridades (formal e devidamente?!) apresentadas ao público pelo presidente da
reunião, também morador. Entre as autoridades presentes, integravam a mesa o representante
da Delegacia do 4º Distrito policial, o delegado titular; o tenente da 1º Companhia; o Inspetor
da GCM e o comandante da inspetoria da Consolação; o colaborador da inspetoria da Av.
Paulista; o representante da prefeitura regional para assuntos de zeladoria; e o representante
da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET). A mesa composta por estas autoridades e os
grandes prismas reforçando seus nomes e cargos conferiam, nas entrelinhas, ares de uma
trincheira, na qual de um lado estavam as vozes institucionalizadas e, de outro, os sujeitos
ordinários, condescendentes ou não... Assimetria de vozes.
A abertura do evento também reservara espaço à apresentação dos novos
empreendedores do bairro para que as boas-vindas fossem dadas aos mesmos. Parafraseando
o presidente da mesa, para toda pessoa nova que chega à região tem de se abrir os braços,
principalmente por aquele conselho, já que o mesmo procura atrair toda a comunidade. O
primeiro a ser apresentado foi o diretor titular da Escola Estadual Caetano de Campos11.
Postando-se de pé, recebeu um cálido aplauso e o convite para falar brevemente sobre sua
recém-chegada à direção do colégio. Há 20 dias no cargo, empossado, portanto, desde 7 de
fevereiro, o jovem anuncia que havia feito concurso em 2017 e sua titularidade publicada em
dezembro daquele ano. Para o diretor, a Caetano de Campos é uma escola das mais
tradicionais da cidade, mas que tem passado por um processo de degradação estrutural, sendo
necessário – convoca – o empenho do poder público, dos gestores públicos para que esta

11
A tradicional Escola Caetano de Campos nasce em 1856, batizada como Escola Normal. Na atualidade, isto é,
mais de 170 anos depois de sua fundação, a Caetano de Campos divide-se em dois campi, um na Praça da
República e outro na Praça Roosevelt. No livro Caetano de Campos, a escola que mudou o Brasil, lançado em
2016, por uma arquiteta e ex-aluna do colégio, Patrícia Golombek, conta-se como uma escola pública
brasileira, que formara personalidades como Lygia Fagundes Telles, Oswald de Andrade, Mário de Andrade,
Cecília Meireles e Sérgio Buarque de Holanda, encontra o princípio de sua decadência em 1975, alegando ser
aquele espaço elitista por demais. Disponível em: http://portal.aprendiz.uol.com.br/2016/03/05/livro-conta-
historia-de-170-anos-da-caetano-de-campos-escola-que-era-praca/. Acesso em: out. 2018.
95

situação seja revertida. E dá um tom de ultimato à sua fala no sentido de dizer que ou a escola
volta a ser padrão, tida como referência, ou a mesma deve ser fechada, visto que a
comunidade não precisa ter mais um problema. Portanto, é preciso colocar em ordem algumas
coisas na comunidade. Brada avidamente que, em 20 dias de gestão, providências foram
tomadas de imediato. Primeiramente, o jantar dos alunos do período noturno passou das
18h30 para 20h30. Ou seja, se antes a refeição era oferecida antes da aula, agora, passa a ser
no intervalo das aulas, momento em que efetivamente apenas quem é aluno está dentro da
instituição. A ideia do diretor é afastar a entrada no prédio de “um monte de pessoas” que não
são parte da comunidade escolar e que, como aponta ter descoberto, iam à instituição para
pegar a marmita e vender fora depois: “Pegavam da merenda pública e revendiam”. Outra
determinação foi a fixação da chamada dos alunos às 22h para que, como uma escola regular
que é, o aluno tenha hora para entrar e para sair. Antes disso, afirma, parecia “casa da mãe
Joana”. Na véspera da reunião daquela reunião com o conselho, afirma ter feito uma limpeza
na chamada, tirando nomes da lista de modo que em algumas salas sobraram apenas cinco
alunos. O próximo passo, diz firmemente, é encaminhar tais apontamentos à Coordenação de
Educação Básica para compatibilizar os espaços, porque, para ele, trata-se de improbidade
manter nome de pessoas fantasmas dentro de uma lista de chamada. E especula se não é o
caso de alguns fazerem matrícula apenas para ter o cadastro no Bilhete Único e que não
pactuaria com este tipo de situação. Outra iniciativa do recém-chegado diretor é a volta da
Ronda Escolar que, ao seu ver, tem de estar dentro da escola, visto que a polícia militar (PM)
deve ser considerada parceira da escola e não inimiga do aluno. É a polícia quem confere
segurança, porque, afinal de contas, provoca, quando se tem um problema, não é para o chefe
da biqueira que as pessoas ligam, é para a polícia militar. E, celebra, tem contado com dois
soldados muito competentes e com amplo acesso à escola. O diretor diz ter se deparado com
verbas importantes frente à escola e que é importante usar bem os recursos públicos a partir
de uma ordem daquilo que é considerado prioritário. Ao todo, tem em mão R$55 mil reais,
sendo R$49 mil para a manutenção do prédio e R$6 mil que, não sendo usado pela gestão
anterior (sabe-se lá porque, cutuca o recém chegado), foram reprogramados para este período
letivo. Questiona-se como, até hoje, a escola não tem iluminação externa e como se amontoou
um bambuzal em frente à instituição que é mais um esconderijo de gente. Em reunião com a
Associação de Pais e Mestres e a PM, sendo esta última uma instituição que manda dinheiro
para a escola, foi definido que serão instaladas câmeras de segurança em 23 pontos
estratégicos, dentro e fora do prédio. “Então esses lugares que eram filmados por moradores
dos nossos condomínios vizinhos, onde alunos praticavam atos obscenos, alunos fazendo uso
96

de tabaco e outras substâncias que não podemos afirmar o que é porque não somos peritos.
Então esses espaços estratégicos serão monitorados por câmeras que ficará sempre à
disposição da autoridade policial”. Deste modo, se algum vizinho decidir fazer alguma
denúncia, a imagem será prontamente disponibilizada pela escola. Além das câmeras, a
promessa é a instalação de uma iluminação de cima para baixo para dar visibilidade ao prédio
tombado pelo patrimônio. Refletores também devem ser instalados para acabar com áreas
escuras e facilitar a observação do trânsito de pessoas. A ideia, conta, é não facilitar “a
presença de meliantes ou de pessoas que queiram fazer mal a alguém”. Em termos estruturais,
ainda, a arquiteta responsável pela reforma já fora contatada para que o atendimento da
comunidade escolar não seja mais “deprimente” e a secretaria volte para dentro da escola.
Deste modo, a parte que fica entre os muros do condomínio e do estacionamento voltará a ser
um espaço pedagógico: “o importante é que eu não quero mais ver cadeiras nos telhados dos
prédios vizinhos, isso eu não posso admitir”. O diretor diz também não admitir mais ter um
espaço escolar chamado de “canto (...) [inaudível]”. Para isso, passou de sala em sala
rememorando aos estudantes a existência de uma lei do fumo e, depois do aviso, alunos pegos
são autuados e recebem medidas socioeducativas previstas no Estatuto da Criança e do
Adolescente. Gestores públicos devem aplicar as devidas penalidades ou medidas
socioeducativas que devem ser aplicadas. O diretor afirma estar aberto a críticas e a sugestões
e pede, aos presentes, parceria para transformar essa escola da comunidade. Tem de lidar pela
frente com demandas que, segundo ele, foram abraçadas pela gestão anterior sem que
houvesse estrutura espacial e de corpo profissional para tal. Entre as demandas, estão os
alunos recebidos por motivo de migração, estudantes transexuais e dependentes químicos. Em
busca de parcerias para dar conta de tais exigências, o diretor afirma que o poder público deve
ocupar o espaço que é público. Afirma que aquele lugar não é zona e não é pardieiro, mas sim
uma escola pública regular. E convoca, falando na primeira pessoa do plural, que ou se faz
daquele espaço um ambiente público ou, caso contrário, perderá seu sentido. Questionado por
estudantes sobre o que faria caso um aluno invadisse a escola porque ele não deixou entrar,
revela aos presentes, em tom grave, que sua reação seria chamar a polícia. E, questionando o
estudante que o interpelara, provoca com muitas interrogações. Por que não se invade a base
da polícia militar? Por que não se invade o fórum ao lado? Por que então a escola seria
invadida? Todos são departamentos públicos, defende. Para defender a escola, partilha que
precisa de muita coragem, boa vontade e muito trabalho. Sua jornada na instituição,
escancara, é de 14 horas quase todos os dias. Entrando às 7h e saindo às 23h, não pretende
colocar-se como Deus, mas como alguém que anseia colocar tudo no eixo, em ordem. Com tal
97

dedicação, acredita que aqueles que não pertencem à comunidade escolar, como os
responsáveis pelo comércio ilícito, vão tomar distância aos poucos. Para isso, conta com a
ajuda de todos.
Enquanto os aplausos acalorados constituíam uma paisagem sonora, o pensamento ia
para longe repassando as falas que acabara de ouvir. Bisbilhotando a memória, escancara-se o
quão negligenciado encontra-se o aspecto didático nesta fala. O que em termos
metodológicos, afinal de contas, poderia ser feito para converter a escola em um espaço
efetivamente acolhedor, agradável e contributivo para a formação e transformação dos
sujeitos? O não dito, neste caso, escancara uma hierarquia valorativa na qual a questão
educacional, a alma de uma escola, é relegada ao fim da fila. O pensamento voltou ao
presente com a fala do presidente da mesa afirmando que o diretor precisaria muito da ajuda e
do apoio de todos, pois, quando começasse a mexer com certas pessoas, essas pessoas iriam
mexer com ele. Então, aqueles presentes com um pouco de dignidade, força e coragem
deveriam dar apoio à iniciativa daquele cidadão, que tem a missão de tirar o Brasil da
ignorância que tem levado a lugares não imaginados por ela quando chegara ali há vinte anos.
A reunião prosseguiu com a apresentação de membros da mesa que chegaram
atrasados e com o agradecimento pela presença de outras pessoas da plateia. Entre os recém-
chegados, estavam o representante do conselho participativo, o presidente do conselho dos
Jardins, a assessora parlamentar de um deputado estadual e o major do corpo de bombeiros do
estado de São Paulo.
Muito embora vários assuntos tenham sido trazidos à tona durante a reunião, recebem
destaque aqui aqueles que dizem respeito à Praça Roosevelt, o seu entorno e os embates daí
advindos. Neste sentido, toma centro o Carnaval de rua, em especial o Bloco Acadêmicos do
Baixo Augusta (Figura 61), cuja história encontra-se entrelaçada ao processo de retomada do
carnaval de rua da cidade de São Paulo. O Bloco – gerido por uma ONG sem fins lucrativos, a
Associação Cultural Bloco Acadêmicos do Baixo Augusta – tem em sua essência o ativismo.
Esta postura ativista volta-se à luta pelo direito à cidade e à ocupação cultural das ruas: o
desfile de 2018, afirma o bloco, reuniu mais de 1 milhão de pessoas. E, já como uma espécie
de tradição, ao final dos últimos desfiles, painéis de arte urbana são entregues à cidade, em
uma tentativa de perdurar por mais tempo a luta da ONG. Entre os painéis, estão “A Cidade É
Nossa”, de Rita Wainer (Figura 62) e “É Proibido Proibir”, do coletivo Os Tupys12 (Figura 63).

12
Disponível em: https://www.facebook.com/pg/academicosdobaixoaugusta/about/?ref=page_internal. Acesso
em: jul. 2018
98

Figura 61: Bloco Acadêmicos do Baixo Augusta

Fonte: Facebook (Acadêmicos do Baixo Augusta)13

Figura 62: Painel de arte – A Cidade é nossa, de Rita Wainer

Fonte: #StreetArtSP14

13
Disponível em: facebook.com/academicosdobaixoaugusta/photos/p.10156312089432456/106/?type=theater.
Acesso em: jul. 2018.
14
Disponível em: http://streetartsp.com.br/artista/desconhecido/compartilhado-por-tonyteofilo-em-jun-19-2017/.
99

Figura 63: Painel de arte – É proibido proibir, do coletivo Os Tupys

Fonte: TWGRAM15

Nesta nova trincheira que se apresenta, de um lado, encontram-se alguns moradores


que, por meio de um decreto municipal de fevereiro de 2017, conseguem proibir a realização
de eventos na praça, seja de dia ou de noite, como foi o caso das Satyrianas. O festival,
idealizado pela companhia teatral Os Satyros, tida por muitos como uma das responsáveis
pelo processo de revitalização da Roosevelt, pela primeira vez em 18 anos teve sua
programação ao ar livre cancelada. O mote das Satyrianas daquele ano foi perspicaz. Porque
somos todos baldios tratava de colocar em debate – por meio de teatro, dança, música e
leituras dramáticas –, a democratização dos espaços públicos paulistanos16.
Do outro lado do fronte, estão coletivos, ativistas, moradores, políticos e blocos de
Carnaval que, por meio de uma carta aberta (Figura 64), divulgada às vésperas do Carnaval
2018, clamava pela liberdade e pela paz, já temendo e condenando, de antemão, qualquer tipo
de ação violenta que pudesse ocorrer durante o período daquela festividade17.

15
Disponível em: https://www.twgram.me/media/1791657372240591999_192314336.
16
Disponível em: http://avidanocentro.com.br/o_que_fazer/proibida-de-usar-a-praca-roosevelt-satyrianas-
discute-democratizacao-de-espacos-publicos/. Acesso em: jul. 2018.
17
Disponível em: http://avidanocentro.com.br/cidades/praca-roosevelt-contra-violencia-policial-carnaval/.
Acesso em: jul. 2018.
100

Figura 64: Carta aberta – A Praça Roosevelt pede paz! – e texto publicado ao lado da carta aberta protocolada
na página do Facebook do Coletivo Praça Roosevelt de Todxs

Segundo o Artigo 5° da Constituição Federal, inciso XVI -


"todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em
locais abertos ao público, independentemente de
autorização, desde que não frustrem outra reunião
anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas
exigido prévio aviso à autoridade competente". Com base
nisso, e no nosso direito à cidade, percorremos hoje as
principais instâncias e órgãos protocolando nossa carta
manifesto contra o uso abusivo da força policial para a
dispersão em grandes eventos, principalmente no carnaval,
especialmente na Praça Roosevelt e entorno. Cobramos a
responsabilidade dos órgãos competentes para evitar que o
pior aconteça, novamente. Mais de 100 instituições e
personalidades assinam o documento, recebido por:

Gabinete do Prefeito João Dória. Câmara Municipal.


Ministério Público. Defensoria Pública de São Paulo.
Secretaria de Segurança Pública (SSP). Ouvidoria da
Polícia. Coordenadoria Estadual dos Consegs. Coordenação
de políticas para diversidade sexual da Secretaria de Justiça
e Defesa da Cidadania do Estado de SP. Guarda Civil
Metropolitana. Polícia Militar.

Somos terminantemente contra qualquer tipo de violência,


ou incitação à ela. Chega de proibicionismo e
conservadorismo! Não pararemos até ter
um #carnavalsembomba, #paznocarnaval e
uma #praçarooseveltparatodxs

— em Praça Roosevelt.

A queda de braço entre estas frentes também tem como palco a reunião do conselho.
Durante o encontro, o presidente da mesa afirma ter “toda a documentação sobre o carnaval
de rua... especialmente o Bloco Acadêmicos do Baixo Augusta, tudo muito bem
documentadinho” e que o pedido de multa contra o referido bloco já havia sido solicitado à
prefeitura e que ansiava por sua concretização. Neste momento, um morador da região da
Praça Roosevelt lança uma questão aos órgãos presentes (conselhos, corpo de bombeiros,
GCM, prefeitura, CET): “Gostaria de saber qual o protocolo para os tratamentos e construções
que ocupam a Praça Roosevelt em eventos como o Carnaval, pré-carnaval também, uma vez
que bombas de gás chegaram nas casas do moradores?”
101

Em resposta, o presidente da mesa responde não ter recebido nenhuma denúncia sobre
gás na casa dos moradores e que, nestas situações, é importante denunciar para que não se
fique “só no blá blá blá”. Quanto aos caminhões que entraram na praça, esclarece, tinham
autorização para a colocação dos cavaletes. O tenente da polícia militar assume que houve
intervenções no período do evento carnavalesco, sendo a maioria nas intermediações da Praça
Roosevelt, porque a situação foi uma “balburdia”:

Teve um momento em que nós precisávamos esvaziar um pouco para que as pessoas
pudessem diminuir o ruído, houve a necessidade do controle de estudos civis. No
uso desse controle de estudos civis nós utilizamos munição química, que é o gás.
Efetivamente pode ter acessado alguma residência. Como ele tende a ir com o ar,
pode ter desencadeado isso, mas foi utilizado de uma forma segura, não houve
nenhum tipo de pessoa ou usuário da praça que tenha sido ferido ou tenha passado
mal sensibilizado pelo gás. Basicamente foi isso.

O morador argumenta que naquele sábado, como é alérgico e mora de frente para a
praça, acabou indo parar no hospital, na Santa Casa, depois que as bombas foram lançadas. E
insiste, provocativo: “qual é o protocolo para esse tipo de dispersão?” “Como a gente faz?”
“Não existe uma outra forma de se conseguir com que as pessoas dispersem de uma forma
menos violenta?”. “Não sabia como fazer a denúncia da minha situação”, desabafa.
O protocolo, esclarece o Tenente, é uma progressão do uso da força. Primeiro, tenta-se
conversar. Contudo, com “os ânimos acentuados pelo uso de bebidas e entorpecentes”, as
pessoas “não dão ouvidos”. Exaurida a tentativa de diálogo, a tropa é posicionada e mais uma
vez, explica, tenta-se “verbalizar”. Caso não haja sucesso, parte-se para a dispersão. O
Tenente diz: “tivemos que dispersar essa população, essa turma, e a única forma que tínhamos
de fazê-lo era com uso de munição química e aí a pessoa sai do local”.
O Tenente coloca que o morador, dada sua questão de saúde, poderia chegar naquele
momento “em qualquer policial e pedir para que fosse socorrido”. E avança dizendo que “ele
mesmo solicitaria a unidade de resgate pra dar esse suporte, efetivamente até porque (...) [o
senhor] não fazia parte da turma para o efeito colateral” (grifo nosso). Neste ponto, a fala do
policial evidencia a desigualdade, o tratamento diferenciado, de acordo com o lugar de fala de
cada um na sociedade.
Outro morador, incomodado com a colocação que acabara de ouvir e em solidariedade
ao morador que havia se manifestado, provoca: “Também moro em frente à praça e eu não vi
essa tentativa anterior de dispersão, não ouvi nada verbal, inclusive nas noites anteriores
também”. E prossegue:
102

Aí, no fim de semana anterior, com muita gente na praça, não vi nenhuma tentativa
de dispersão. Pelo contrário, o que eu vi foi o seguinte: a polícia ocupando a praça,
deixando a rua como opção das pessoas ficarem, quando devia ser o contrário, a rua
devia ser liberada. Carros que não conseguiam passar tinham que dar ré, e a praça
ocupada por várias viaturas.

E o bate-boca sem fim continua com o Tenente defendendo a iniciativa dadas as 439
denúncias da Praça Roosevelt por perturbação do sossego: “Tudo foi filmado em várias
ocasiões para justamente o ministério público intervir e, tanto assim, o ministério público
abriu inquérito não contra a PM, mas contra os blocos que propiciaram essa situação”. Afirma
que “jamais foi jogada uma bomba na Praça Roosevelt se não depois de no mínimo 100
ligações de perturbação de sossego. Isso está documentando e, lamentavelmente, o Carnaval
dos outros acabou com o descaso do resto” (grifo nosso). E diz que “quando a polícia militar
joga bomba de gás na Praça Roosevelt, precisa assegurar que esta é a última tentativa, porque
o último que eles querem é ter imprensa viva para depois falar que a polícia é truculenta”.
Enquanto preocupa-se em se defender por ter seguido o protocolo, uma inconsistência
aparece: o número de reclamações salta da casa dos 400 para quase mil ocorrências. Além
disso, para o oficial, a perturbação do sossego público não é cara ao período do Carnaval, mas
alastra-se noutros períodos pela Roosevelt, Peixoto Gomide e Augusta. O Tenente afirma
tentar exaurir, ao máximo, tentativas de apaziguamento diante daqueles que perturbam o
sossego público e que o último recurso, como os policiais são orientados, é jogar bomba.
Ainda assim, lamenta, seus oficiais estão respondendo por situações de abuso de autoridade
sem ter um porquê.
Na sequência, um terceiro morador interfere e faz uma defesa da Polícia Militar,
afirmando ter visto em um domingo, às 7h da manhã, na Fernando de Albuquerque, uma
moça partir para agressão física contra um PM. “Os valores estão tão invertidos que o rapaz
da PM não sabia o que fazer. Ele recuou e depois a algemaram, de tão absurda que está a
coisa”. E, enquanto os presentes na reunião se manifestavam na troca de olhares, fico me
perguntando: qual seria o valor “adequado” na situação relatada? Seria o policial agredir a
manifestante?
O Tenente aproveita o momento para trazer à tona que, na Peixoto Gomide, policiais
nunca jogaram bomba. Recorda-se de que, certa vez, foi realizada uma dispersão de mais de
600 pessoas por 7 policiais. Os sete policiais “fizeram toda a dispersão e tiraram 8 camelôs
que tinham carros de dog, 12 camelôs com carrinhos. Eles foram de pessoa em pessoa
pedindo pra se retirarem. Retiraram várias caixas de som” (grifo nosso). Complacente com o
Tenente, o presidente da mesa diz que esta é a alternativa, que às vezes se consegue. E reforça
103

que, para além do Carnaval, a “perturbação de sossego na Praça Roosevelt é permanente” e,


até onde saiba, não se joga bomba todo dia. “A primeira bomba (...) foi no carnaval anterior
(...). Então, são situações extremas. Durante 1 ano, se você joga bomba uma vez, significa que
realmente a situação foi extrema”.
O quarto morador se manifesta, anunciando ainda no início de sua fala que é sociólogo
e residente da Praça Roosevelt há mais de um ano. Na sua percepção, “uma ocorrência de
bomba já é um absurdo”. Para este morador, “da mesma forma que o Carnaval traz a suposta
perturbação da ordem, atacar uma bomba na proporção que foi feita, também. Eu me assustei,
os meus vizinhos se assustaram e a gente sempre estava muito preocupado com a segurança
dos moradores e dos usuários da praça”. Para o morador 4, bomba é algo reservado para uma
“guerra civil” e olha lá.
O debate é finalizado pelo presidente da mesa informando que o conselho não
funciona assim. Que o “conselho serve para fazer denúncias de tudo que seja relativo a outros
tipos de polêmicas desse assunto”. E, de certo modo, constrangendo aqueles que tocaram no
tema Carnaval, explica que:

O conselho serve para tratar as denúncias, os problemas de elencar a segurança, mas


não somos mantidos aqui para terminar escuta de outros ambientes. Se eu começo a
abrir o diálogo para falar sempre do mesmo tema, o resto das pessoas não pode
falar. Por isso, eu estou exigindo a palavra, que é para uma pessoa e somente para
uma pessoa (...) Antes de você, eu tinha umas 10 para falar. Só isso para que você
saiba como funciona (grifos nossos).

3.2 Rooseveltianos: a relação de moradores com a Praça Roosevelt

Em busca de conhecer a narrativa dos moradores sobre a Praça Roosevelt, sem o


atravessamento do contexto de uma instituição, este tópico traz o depoimento de pessoas
conhecidas durante a reunião do conselho relatada no tópico anterior e que se colocaram à
disposição para conversarem sobre a história e a relação de cada um com a praça. Portanto,
este tópico advém de uma estratégia qualitativa que recorre à técnica da entrevista em
profundidade, sem roteiro estruturado. No sentido de manter uma conduta ética de pesquisa –
preocupação sempre presente neste estudo –, os nomes dos depoentes são preservados e são
substituídos pelas expressões sujeito 1 e sujeito 2. As conversas foram realizadas, na própria
Roosevelt, nos dias 11 e 18 de abril de 2018.
O sujeito 1, depois de residir em Cordeirópolis (interior de São Paulo), Londres,
Higienópolis e por cerca de dez anos morar em Brasília, passa a ter a Roosevelt como
104

endereço em janeiro de 2017. Trata-se de uma mudança orquestrada por diferentes variáveis
e, dentre as principais, estão o desejo de estar perto de seu namorado, residente em São Paulo,
e a rotina recém-instaurada de poder trabalhar de casa, que culmina com flexibilidade e
mobilidade, tão necessárias para o retorno à cidade. A decisão de morar no centro de São
Paulo surge quando passa a ouvir que “o centro tá muito legal” e que as pessoas estavam
optando por morar no coração da cidade. A primeira opção vista era na São Luiz, mas o
apartamento era “muito barulhento”, “porque lá tem muito ônibus” e barulho de ônibus é algo
que o entrevistado não suporta. No Copan, segunda opção, não encontrou nada legal. E, como
terceira opção, surge o apartamento em que hoje reside. “Não conhecia a Roosevelt, porque
eu tava fora de São Paulo (...) e ela ficou legal desse jeito nos últimos anos, quando eu não
tava morando aqui. E aí, quando eu vi, e a luz que tem, e tal, e depois eu fui vendo, me
apaixonei, assim”. O sujeito 1 afirma que pôde constatar aquilo que as pessoas andavam
dizendo: que a Roosevelt “tava ficando legal”. Conseguiu perceber no dia a dia, participando
de atividades, “que o centro, hoje, é o lugar mais vibrante de São Paulo. E a Roosevelt é o
lugar mais vibrante” do centro. Vibrante pela “diversidade enorme” que apresenta,
principalmente durante a noite: “você na rua aqui à noite, [vê] toda essa discussão de gênero”,
“na prática, em perfeita harmonia, assim, convivência total das pessoas mais diferentes”.
Durante o “dia é tranquilo, mas também tem isso. À noite é muita diversidade. E é muito legal
isso, bem interessante. É muito vibrante”. Cada dia, a praça proporciona algo diferente: “Não
sei que dia que é, mas eu vejo, da janela, (...) tem dia que tem malabarista, tem dia que tem
bastante skate, tem dia que tem ioga, tem aula de ioga também aqui. Dá pra ver que não é
todo dia que tem a mesma coisa”. O sujeito 1 complementa dizendo que às vezes tem grupo
de teatro ensaiando, “aí tem sempre músicos mais sozinhos, assim, tocando, num cantinho ali.
As pessoas fazem uma ocupação, um uso bem legal”. Nesta fala, é possível notar a vibração e
a diversidade contempladas à distância, do alto, da janela, da sacada. E este distanciamento –
eles lá, eu cá – fica elucidado, em certa medida, nas fotos tiradas e partilhadas pelo sujeito 1
como emblemáticas daquele lugar. Na sequência de imagens recebidas (Figura 65), uma
mirada da praça pequenininha, lá embaixo, quase sem gente; e horizontes.
105

Figura 65: Da vibração e diversidade à Praça apequenada e miradas de horizontes

Fonte: Sujeito 1

O sujeito 1 alega adorar ver “a praça sendo usada por todo mundo”. Contudo, à noite,
espera que “se faça silêncio” para que haja convivência. Na sua concepção, “as pessoas
podem fazer festa de dia, não sei o quê, mas a gente também quer dormir à noite. Então, a Lei
do Psiu também vale pra gente”. Mal termina sua frase e pondera: “por outro lado, a gente
também não pode querer silêncio absoluto dia e noite, não pode achar que isso aqui tem que
estar vazio, tem que estar com gente, né? É muito legal isso aqui cheio de gente, eu acho
muito legal os skatistas, cachorro”.
A população da praça, observa o sujeito 1, obedece a certos horários. De manhã,
cachorros; no final da tarde, crianças: “Agora nesse horário não tem, mas se você vier de
manhã tem muito cachorro, aí daqui a pouco tem criança (...) pra andar de bicicleta”, talvez,
especula, por causa do sol e porque noutros horários os pais devem estar trabalhando: “Aí
quando os pais saem do trabalho é que podem. Aí, é criança com skate, bicicleta, ou correndo,
assim. É muito legal, é uma praça que tem vários grupos, cada horário é um grupo diferente.
E, de dia, é normalmente bem sossegado, bem tranquilo, bem silencioso”.
Já o sujeito 2 afirma que morar na Martinho Prado, beirando uma das facetas da
Roosevelt, é consequência, primeiramente, do quanto gosta de morar no centro. Ele revela ter
morado praticamente a vida toda no centro, próximo à Paulista – às vezes mais para baixo;
outras, mais para cima – e próximo à Rua Estados Unidos, na região do Jardim Paulista.
Depois de casado, morou por um tempo na Granja Viana, “num esquema tipo chácara” para
poder ter seus filhos, seus cachorros, enfim, “uma vida mais saudável em termos de espaço”.
No Morumbi, permaneceu muito tempo pela proximidade que sua casa tinha da escola de seus
filhos e, também, para evitar o famigerado trânsito paulistano. Além disso, experimentou um
tempo fora do Brasil. Mas, enfatiza, o que gosta mesmo, desde muito jovem, é do coração de
São Paulo:
106

Sempre gostei do centro. E eu sempre frequentei muito o centro. Na época que eu


era adolescente, que eu tava na faculdade, era época de ditadura ainda, e tinha uma
coisa de resistência meio que na Praça Roosevelt, tinham dois cinemas que era o
Bijou 1 e o Bijou 2, que passavam os filmes alternativos, passavam filme do
Bergman, do Costa-Gravas, do Kubrick, enfim, de uma galera que tinha uma
proposta de uma coisa diferente, de um mundo diferente, e a gente vinha muito aí.
Mas era a praça antes de reformar, né? A praça era feia, ela tinha um ambiente meio
obscuro, meio soturno, uma coisa meio estranha. Mas a gente ficava do lado de cá,
nos cinemas, tal, e era legal.

O sujeito 2 confessa ser engenheiro civil, um arquiteto frustrado, que, depois de sua
separação, pegou-se pensando “onde que eu vou morar?” Depois de um déjà vu na região dos
Jardins, chegou ao Copan para “sentir São Paulo na veia” e lá residiu por quase três anos.
Como o apartamento não era exatamente o que queria, porque tem lá “suas críticas ao
Niemeyer”, morou um tempo na Marquês de Itu, mas de olho na Roosevelt: “já gostava da
praça, acompanhei aqui um pouco a reforma, um pouco à distância porque eu não morava
aqui na época da reforma, mas achei legal o que tavam fazendo”. Com o fim da reforma,
entendera que havia chegado o momento de comprar um apartamento na região. Hoje, seu
apartamento com vista para a Roosevelt é, em sua opinião, “o prédio mais bonito da praça,
(...) um marronzinho, tem uma varandinha, tem um apartamento legal de dois dormitórios,
mas enorme, tem 150 metros”. Dessa metragem, o sujeito 2 revela usar no máximo uns 30%
do apartamento, mas que gosta da sensação de ter espaço: “gosto dessa coisa de espaço, e aí
vim morar aqui. E acho maravilhoso, adoro”.
Quando passa a residir à beira da Roosevelt, o sujeito 2 tem a impressão de que:

A praça nova trouxe uma vida muito mais vibrante praquele ambiente. Já não eram
só os dois cinemas, nem tem mais os cinemas. Os cinemas viraram teatro, mas aí já
tinha vindo Parlapatões, já tinha vindo Satyros, tinham vindo todos aqueles
barzinhos que tão lá embaixo, então ela tem um dinamismo de vida que é
maravilhoso, porque ela tá pulsando o tempo inteiro. De manhã você vê o pessoal
acordando com os cachorros, pra sair e passear com o cachorro. Vai chegando a
tarde, começam a chegar os skatistas, então é aquela zoeira de skate, de patins, de
não sei o quê, porque eu até patinei um pouco. (...) E aí, quando passa esse horário,
porque o skate termina às dez horas da noite (eles têm um acordo lá com o pessoal
da polícia), aí fica um pouco o pessoal dos bares, até meia-noite, acho que fizeram
uma estupidez de fechar os bares à meia-noite, porque eu nunca entendi isso aí
direito.

Em uma reunião do conselho com a promotoria, o sujeito 2 se pronunciou dizendo que


não compreendia, sinceramente, certas tomadas de decisão, como a questão dos horários de
fechamento dos estabelecimentos. Para ele, a “garotada” que está nos bares bebendo e se
divertindo “está – perdão da brutalidade da expressão – mijando nos banheiros”. Com a
determinação de um horário para o fechamento dos bares, a “molecada” vai para a rua e,
107

como não há transporte público neste horário – fecha metrô, ônibus –, o que acontece é que
estes jovens ficam na praça “comprando de ambulante, jogando as garrafas no meio da rua,
sujando tudo porque não tem nem cesta de lixo pra dar conta do que eles consomem e
mijando no meio da rua porque não tem banheiro. Não era mais legal deixar os bares
abertos?”
Para o sujeito 2, este é um exemplo de decisão “burra” e partilha que já aconteceu de o
pessoal fazer muito barulho na praça e que, após uma conversa, tudo foi resolvido:

Teve uma vez (...), era umas três horas da manhã, tinha um grupo tocando música,
um garoto tocando violão e um outro, completamente bêbado, músicas do Raul
Seixas... Sei lá, ele gritava histericamente, completamente desafinado (...) No meio
da música, falava palavrão, aí eu desci do meu apartamento, fui lá pra eles e falei
“você pode fazer o favor, eu tô querendo dormir lá em cima, deve ter mais gente
querendo dormir”, ele deu uma resmungada lá, mas pararam. O que tava tocando
violão e a menina que tava junto estavam sóbrios, então encerraram ali a cantoria e
ficou por isso.

O “burburinho da praça”, preocupa-se em enfatizar, não o incomoda. Diz que sequer


seu quarto tem vidro antirruído, que dorme de boa. Para o sujeito 2, o barulho, o movimento,
incomoda menos do que se morasse em uma rua que passasse ônibus, por exemplo. Para ele,
“ônibus é um inferno de barulho, trepida, (...). Se for subida, então, cada vez que passa um
ônibus, você acorda. Então, esse murmúrio de pessoas conversando (...) não me incomoda em
nada (...). Me dá a sensação de que aqui é São Paulo, aqui vibra”. Na Roosevelt,
complementa, você “tem a sensação de (...) que não tá sozinho, você tá sozinho sem estar
sozinho”. Para o sujeito 2, a praça tem uma característica “super interessante”: ser o
“cruzamento total da cidade, porque ela cruza o Leste com o Oeste e o Sul com o Norte. Cara,
é the place to be, né? Como dizem os britânicos. Então, meu, perfeito”.
Tocando na questão debatida no Conselho, o sujeito 1 relembra que está “rolando um
papo de que não vai mais ter carnaval aqui no centro ano que vem” e parece que o Ministério
Público se encontra envolvido neste esforço. Para o sujeito 1, o lugar do carnaval é no centro,
desde que “resguardado o direito de ir e vir do morador”. Ele diz que teria de ser como em dia
de feira livre: sabe-se que acontece toda semana, que a rua fecha. “Mas a pessoa já sabe. Ela
já sabe que ela vai ter que deixar o carro pra fora se ela tiver que sair”. Em tom de lamento,
afirma haver um grupo “que acha que essa praça é o quintal deles. Não é! A praça é pública”.
Quando houve bomba na Roosevelt no último Carnaval, o sujeito 1 estava dando uma festa
em casa e afirma que, sem aviso prévio, “do nada, a polícia jogou uma bomba”. O sujeito 1 e
seus convidados levaram um susto porque o barulho é alto. E relembra: “a rua tava fechada de
108

gente, mas não tava tendo confusão, nada, as pessoas só tavam na rua”. Não era preciso,
defende, jogar bomba. A PM podia ter falado “gente, vamos liberar a rua, vamos pra praça”,
porque a praça é um lugar de pessoas, né? A rua, enfim, a rua tem que estar liberada pros
carros. É só você ir direcionando, né? Falando “ó, vamos liberar a rua, vamos lá pra praça”.
Isso aconteceu na semana seguinte ao Carnaval, portanto, de acordo com o sujeito 1, não
havia tanta gente e este ato foi um tanto quanto “violento”: “Pra quem tá perto, essa bomba,
sei lá, pode até causar uma intoxicação, é uma coisa que pode ser séria, né? É uma medida
extrema (...) Não era o caso, só tinham pessoas conversando na rua, só isso”.
O sujeito 2 diz tentar se controlar nestas reuniões do Conselho, mas que tem um
“sangue italiano que ferve de vez em quando” e aí ele acaba falando umas. Em um encontro
do conselho, houve uma “mulher que entrou em desespero por causa do Carnaval”. Neste
momento, o sujeito 2 afirma ter dito o seguinte para ela: “olha, minha senhora, eu entendo o
seu desespero, mas sabe o que a senhora devia fazer? Vende o seu apartamento na praça e vai
morar em outro lugar, porque praça central de cidade, ela é assim em São Paulo, no Brasil
inteiro, em qualquer lugar do mundo, porque é onde as coisas acontecem”. O sujeito 2
relembra de uma fazenda de café que teve em Rio Claro, uma cidade localizada no interior de
Minas Gerais. Muito embora tenha vendido a fazenda, continua frequentando a cidade pela
relação afetiva que tem com o lugar. A praça de Rio Claro, quando tem carnaval, é fechada
por inteiro, porque o “carnaval é na praça” e “quem mora na praça ou vai dormir em outro
lugar, ou não dorme”. Para a senhora da reunião do Conselho, recorda ter dito: “se a senhora
não gosta dessa vibração da praça, dessa coisa dinâmica da praça, mora em outro lugar. Tem
Higienópolis aqui do lado, que tem um monte de rua tranquila. Sai da praça e vai morar em
Higienópolis”. Contudo, lamenta, essas pessoas não deixam a praça: “Elas compraram ou
alugaram apartamentos na praça e acham que isso deu o direito a elas de ter um pedaço da
praça. A praça é de quem tá olhando pra praça, não é da cidade, faz parte do condomínio”. “É
complicado”, lamenta enquanto balança a cabeça desacorçoado. “E aí tem as pessoas que são
mais conservadoras nesse sentido”.
Para o sujeito 1, o posicionamento de uma minoria, conservadora, dá pistas de quem
pretende “sequestrar o espaço público”.

O espaço é de todo mundo, é da cidade. É claro que ele tá sujeito às regras de


convivência, né? Então, não é legal que as pessoas achem que elas podem de
madrugada fazer barulho. Não pode, porque tem gente dormindo. Tem que ter uma
regra, tem que ter uma convivência, um respeito. Mas, é de todo mundo, de todo
mundo que se proponha a respeitar o outro. Tem moradores da Roosevelt que
acham que a praça é o quintal deles, que ela é dos moradores. Ela não é dos
109

moradores, ela é da cidade. E não é só da cidade, enfim, ela é dos brasileiros,


também dos estrangeiros, é até difícil delimitar, né? Ela é de todo mundo, é um
espaço público, né? (grifos nossos)

Esta minoria, que pensa a Roosevelt como quintal de suas casas, “pretende restringir o
uso público da praça”. E esta minoria, de acordo com o sujeito 1, tem acesso aos espaços
institucionais. “O (...) [Conselho] é dominado por essa visão e existe uma associação de
moradores da Consolação, que não é [de moradores] da Roosevelt, (...) que quer administrar a
praça”. Isso é o que o sujeito 1 denomina como sequestro dos “espaços públicos”, pois estas
pessoas, embora componham uma minoria, têm acesso a “vias institucionais, (...) têm
interlocução com prefeito, com a polícia. E conseguiram, já no ano passado, proibir qualquer
evento público na praça”.
Por trás do fechamento da praça, das iniciativas de tomar o espaço público para si,
encontra-se uma realidade áspera: o preconceito social. O sujeito 1 afirma não ser raro, entre
as justificativas para o fechamento da praça, colocações como “mas o cara vem da periferia”,
“o cara é da periferia”. Neste ponto, ancora-se em uma passagem do documentário
Arquiteturas: Praça Roosevelt: “O vídeo não é enviesado (...) tem os dois lados”. E, em uma
parte, traz claramente o preconceito na fala de uma entrevistada, quando diz: “ah, a pessoa
vem, nem sei de onde, não mora aqui, vem lá da periferia”. Ao fazer uma afirmação como
esta, esquece-se o fato de a Roosevelt ser uma área pública, coloca o sujeito 1. Para o sujeito
1, “o preconceito é porque o cara vem da periferia, é porque o cara é pobre”.
O sujeito 2, indignado, relembra que esta pequena parcela “quer cercar a praça, quer
colocar grade. Colocar grade... É uma coisa maluca, eu não sei o que têm na cabeça, elas são
loucas. Porque é isso... na verdade, elas querem colocar grade pra elas terem a chave”.
Recordando-se de quando mudou para a Martinho Prado, diz que, “ingênuo” e na ânsia de
querer se envolver e contribuir para os assuntos do entorno, acabou entrando para um grupo
no WhatsApp, mas logo percebeu encontrar-se em meio a um “grupo super reaça”. Decidiu
parar de opinar, passou a observar mais o conteúdo das mensagens e, muito de vez em
quando, colocava alguma pergunta aos integrantes. Sobre a ideia de fechamento da praça, por
exemplo, expressou no grupo:

Olha, fechar a praça com grade, a gente tem que considerar que vai desvalorizar os
nossos imóveis, porque vai ficar muito feia a praça, e vai perder justamente essa
coisa aqui, essa valorização que teve depois que reformaram a praça e trouxe essa
vida pra cá (...) Vai voltar a ser como era antes, uma coisa meio soturna, obscura. É
isso que vocês querem mesmo?
110

A defesa da praça-gradil apoiava-se na tentativa de afugentar “bandidos”, “gente que


vinha de fora” e o “pessoal da periferia”. O sujeito 2, por mais difícil que fosse para ele, não
respondia nada. O seu silêncio teve fim quando uma pessoa do grupo assumiu uma “postura
xenófoba”. Era época de Carnaval e a pessoa “fez uma crítica super contundente de que o
Carnaval, claro, ia ser uma bagunça e uma confusão porque a prefeitura tinha contratado os
haitianos pra cuidarem da limpeza da praça”. E, relembra, “o jeito que ela colocou ficou bem
claro que não era só o haitiano por ser do Haiti. Era por causa da cor da pele que os haitianos
têm”. O sujeito 2 não se conteve e aconselhou: “cuidado com os comentários”, os “haitianos
têm o direito de trabalhar, assim como todo mundo têm o direito de trabalhar. Eu sou
descendente de italianos e eu fico muito feliz que os meus avós, quando vieram aqui, alguém
deu trabalho pra eles (...) porque senão não teria sido educado”. Por fim, rememorou que o
presidente daquele grupo era da Argentina, então achava “estranho” se “ter uma posição
contrária a estrangeiros desenvolverem trabalhos no Brasil”. Como resposta, foi expulso do
grupo. De acordo com o sujeito 2, a administradora respondeu que aquele “grupo não é para
ter este tipo de discussão” e que ele estava expulso. “E me expulsou”, recorda e complementa:
“Todo mundo que entra lá e questiona alguma coisa do que eles fazem é (...) [expulso por esta
pessoa]. Porque eles querem aquele pensamento conservador, reacionário e monocórdicos. Só
eles têm razão. Não estão abertos a discussão”. Opiniões, naquele grupo de WhatsApp, só se
forem “do lado conservador”. Sobre esta minoria, o sujeito 2 afirma ter se defrontado com
“pessoas loucas” e exemplifica: “o jeito que eles querem resolver os moradores de rua é fácil:
mata todos eles e pronto. Ou, entã,o coloca tudo num caminhão e despeja lá em Guaianazes e
proíbe eles de virem pra cá, sabe? Um negócio maluco”. Ao mencionar os moradores em
situação de rua, relembra de uma jovem cuja posição do corpo, na perpendicular da calçada
quando ia dormir, parecia um protesto e um gesto para ser notada:

Tinha uma moça que ficou aqui um tempo e (...) ela acabou ficando bem agressiva,
até chamaram a polícia já duas vezes. Agora faz tempo que eu não vejo ela aí. Mas,
no começo, ela não era agressiva. A única coisa que eu achava engraçado, que me
chamava a atenção era assim: ela dormia na calçada – normalmente eles dormem
no canto, aqui na calçada paralela à rua –, ela dormia perpendicular, tipo
atrapalhando totalmente o caminhar das pessoas na calçada; um pouco isso: ‘eu
quero ser vista, eu quero ser notada, eu não vou ficar aqui no cantinho pra você não
me ver, não. Eu vou deitar na perpendicular, então você vai ter que ou circundar o
meu corpo, ou você vai ter que pular por cima de mim, senão você não passa’.

A moça do corpo perpendicular à calçada é feito a mosca de Raul Seixas, que pousa na
sopa da gente. Mosca que deu ares para abusar, perturbar o sono de quem quer que seja, que
não para de zumbinar. Trata-se de uma mosca que não adianta tentar dedetizar, porque nem
111

assim será exterminada. Quem sabe sua presença, feito água mole na pedra dura, algo faça
mudar (e para melhor!). Seu corpo já não é mais corpo, seu corpo é protesto. E você não é
apenas você. E você não está só. São muitas moscas: A mosca-morador-em-situação-de-rua, a
mosca-skatista, a mosca-haitiana, moscas-imigrantes-em-geral, a mosca-Carnavalesca, a
mosca-jovem, a mosca-juventude-periférica; a mosca-caminhando-contra-o-vento; a mosca-
sem-lenço-nem-documento, a mosca-beijos-de-amor, a mosca-alegria-e-preguiça, as moscas-
cheias-de-amores. Moscas-porque-não?

3.3 A Roosevelt é (praticamente) a Winston Parva brasileira

Urbe, como defendido noutros cantos neste texto, refere-se à fruição da cidade pelos
atores sociais que por ela perfilam (DELGADO, 2007). Implica dinâmicas de ocupação,
espreita processos de apropriação; expressa modos de certos grupos sociais de produzir e
reproduzir palcos citadinos (MARTINS, 2012). E isto não é novo. Lá pelos idos dos anos
1950, na obra de Elias e Scotson (2000) intitulada Estabelecidos e outsiders: sociologia das
relações de poder a partir de uma pequena comunidade, o cotidiano de um povoado
industrial da Inglaterra, Winston Parva (nome fictício), constitui-se arena na qual os autores
concebem os conceitos para expressar aqueles que ocupam posição de prestígio e poder
(establishment e established) e aqueles que são considerados os não-membros de uma dada
sociedade (outsiders). Neiburg (2000), no prefácio da edição brasileira, preocupa-se em
deixar claro que:

As palavras establishment e established são utilizadas, em inglês, para designar


grupos e indivíduos que ocupam posição de prestígio e poder. Um establishment é
um grupo que se autopercebe e que é reconhecido como uma ‘boa sociedade’, mais
poderosa e melhor, uma identidade social construída a partir de uma combinação
singular de tradição, autoridade e influência: os established fundam o seu poder no
fato de serem um modelo moral para os outros.

Na língua inglesa, o termo que completa a relação é outsiders, os não membros da


boa sociedade, os que estão fora dela. Trata-se de um grupo heterogêneo e difuso de
pessoas unidas por laços sociais menos intensos do que aqueles que unem os
established. A identidade social destes últimos é a de um grupo. Eles possuem um
substantivo abstrato que os define como um coletivo: os establishment. Os outsiders,
ao contrário, existem sempre no plural, não constituindo propriamente um grupo
social.

Os ingleses utilizam os termos establishment e established para designar a “minoria


dos melhores” nos mundos sociais mais diversos: os guardiães do bom gosto nas
artes, da excelência científica, das boas maneiras cortesãs, dos distintos hábitos
burgueses, a comunidade de membros de um clube social ou desportivo (NEIBURG,
2000, p. 7).
112

Guardadas as devidas distâncias históricas, contextuais e temporais, ao observarmos as


narrativas deste capítulo, nos deparamos, em certa medida, com relatos que se aproximam da
acepção de establishment e established, que compõem, juntos, os estabelecidos. Os outsiders
são retratados nos dois próximos capítulos, mas, neste, temos pistas de quem sejam: os vindos
da periferia, os meliantes, os migrantes, os skatistas, só para mencionar exemplos salpicados
nesta etapa. Retomando a questão conceitual, é oportuno dizer que tal divisão – estabelecidos
e outsiders – representa neste trabalho uma categorização didática, visto que, aderindo à
perspectiva de Certeau (2014), o atomismo social deve ser refutado e as relações entre os
sujeitos, em meio aos patchworks do cotidiano, é que determinam os termos das
sociabilidades. Para além da complexidade das relações, deve ser considerado ainda o fato de
que cada individualidade carrega, em essência, pluralidade; esta, muitas das vezes, incoerente
e contraditória (CERTEAU, 2014).
A sociedade, pois, é entretecida por texto, pela arte de conversar, na qual:

As retóricas da conversa ordinária são práticas transformadoras ‘de situações de


palavras’, de produções verbais onde o entrelaçamento das posições locutoras
instaura um tecido oral sem proprietários individuais, as criações de uma
comunicação que não pertence a ninguém. A conversa é um efeito provisório e
coletivo de competências na arte de manipular ‘lugares comuns’ (CERTEAU, 2014,
p. 49).

A intencionalidade dos personagens-autores-narradores sociais, como as vozes das


autoridades que se revezam na reunião do Conselho, aponta para uma tentativa de, sobretudo
narrativamente, monopolizar possibilidades de poder. Tal monopolização ambiciona, mais
que tudo, colocar à margem e, sem se dar por satisfeita, estigmatizar integrantes de outras
esferas sociais. Ao narrar sobre suas perspectivas, colocam os “outros” como personagens
relegados. Exemplo disso é a fala do diretor da Escola Caetano de Campos de afastar a
entrada no prédio de pessoas que não são parte da comunidade escolar. Pessoas que, segundo
ele, iam à instituição para pegar a merenda pública para vendê-la fora depois. Ainda há salas
em que realizou uma limpeza na chamada, tirando nomes da lista de modo que em algumas
classes restaram cinco estudantes. Estas e outras iniciativas, disse, estão sendo colocadas em
prática para afastar “meliantes”, contando, para isso, com o sugestivo poderio da polícia
presente na instituição.
Nesta toada discursiva de quem pode ou não pode fruir da Roosevelt (e de suas quinas
e ramificações), vem à tona também o que pode ou não acontecer naquele espaço. Nesta
direção, foliões e Carnaval não são nada bem-vindos, incomodam a ordem, põem de cabeça
113

para baixo os incautos, os imaculados, os pudicos, os cidadãos que se dizem de bem, de


estirpe. E nesta vida que é feita de um viver para atribuir significados (BROCKMEIR e
HARRÉ, 2003), estão, por decreto, destituídas da agenda da cidade, sejam de dia ou de noite,
outras iniciativas como o Satyrianas, festival idealizado pela companhia teatral Os Satyros,
que teve cancelada pela primeira vez, em 18 anos de existência, sua programação ao ar livre.
Este gesto coloca para fora da Praça os baldios e a proposta de colocar em debate, por meio da
arte, a democratização dos espaços públicos. Arreda pé do povo do teatro, da dança, da
música e das leituras dramáticas. Exorcizada seja, na perspectiva dos estabelecidos, essa
bagaceira de gentes e suas firulas, a custo de bomba e decreto, se carecer. Para quem não faz
parte da turma do efeito colateral, até ambulância há. Bonzinhos até esses sujeitos do
establishment, não é?
Para os sujeitos 1 e 2, entendidos como established, a narrativa de uma minoria
considerada conservadora, como a dos integrantes do Conselho, desnuda a intenção de
sequestrar o espaço público, na medida em que sua proposta é o de restringir o uso da
Roosevelt, fazendo-a feito quintal, cercada por grade se preciso for. A xenofobia e o racismo
também são outros pontos expostos nos depoimentos desses sujeitos. Em um grupo de
WhatsApp, um integrante profetizou que o Carnaval seria uma bagunça e confusão maiores
porque a prefeitura havia contratado haitianos para limpar a praça. E, mais, o problema para
esta pessoa não era apenas o fato de serem pessoas do Haiti, mas, principalmente, o problema
era a cor da pele destas pessoas. Embora o posicionamento preconceituoso tenha sido alertado
pelo sujeito 2, a resposta do grupo foi a sua expulsão por conta deste aviso. Os monocórdicos,
os reacionários, os conservadores, provoca, tem um jeito “fácil” de resolver certas questões:
no caso dos moradores de rua, basta matar todos e tudo bem; ou colocar todos em um
caminhão e despejá-los em Guaianazes, proibindo-os de voltar a virem para a Praça
Roosevelt.
O sopro questionador vem pelo gesto de incômodo aos estabelecidos por um corpo
que se coloca na perpendicular da calçada, quando uma jovem, em situação de rua,
decide/tenta dormir. Parece protesto, uma tática para ser vista, notada e até respeitada no
momento em que os transeuntes tem de desviar de seu corpo para não tropicarem. Parece
protesto atrapalhar o caminhar das pessoas. Nesta direção, retoma-se Certeau (2014, p. 83),
para quem a “ordem efetiva das coisas é justamente aquilo que as táticas ‘populares’ desviam
para fins próprios, sem a ilusão que mude proximamente. Enquanto é (...) negada por um
discurso ideológico”, o corpo-protesto-arte da moradora em situação de rua põe-se a se
vingar, a afrontar, a incomodar, a questionar, a escancarar o espaço urbano como um lugar
114

praticado, como coloca Delgado (2007). Este corpo-protesto-arte – ainda que temporariamente
estatelado na transversal da calçada – mostra como lugar e não lugar não são termos
dicotômicos, mas que coexistem, em uma relação que se dá a partir de continuidades e de
fragmentações (DELGADO, 2007). Para o autor, Marc Augé se equivoca quando concebe o
não lugar “como um lugar de passagem e não como uma passagem de um lugar” (p. 69).
Avançando, Delgado (2007) propõe que o “não lugar não é um lugar atravessado, mas a
travessia que desmente o lugar, posto que é um mero intersectar, topografia móvel
[(outsiders)] que se limita a transpassar outras topografias estáveis [(estabelecidos)]” (idem).
115

4 “ANDAR COM FÉ EU VOU, QUE A FÉ NÃO COSTUMA FAIÁ”

Este capítulo objetiva refletir sobre a produção de sentido emanada por certas esferas
constitutivas do objeto de estudo em questão, a Praça Franklin Roosevelt, localizada no
coração de São Paulo. Para isso, autores como Sousa Santos (2008) e Lotman (1996),
representam lentes a partir das quais a realidade é pormenorizada, trazendo-nos lastros em
torno de conceitos e ideias como desigualdade, exclusão, desarme semiótico. Em termos de
desenvolvimento, a proposta metodológica desta etapa encontra ancoragem na Grounded
Theory e nas pesquisas bibliográfica e documental que o contato com o campo suscita. Antes
de avançar, soa pertinente, no tópico a seguir, esclarecer as engrenagens daquela que é
principal estratégia metodológica desta fase, reconhecendo e problematizando também suas
limitações em termos de compreensão do campo. Para guiar, o olhar do leitor, é importante
elucidar que este capítulo se encontra redigido sob os seguintes subtítulos: (a) A Grounded
Theory; (b) “A fé tá na mulher, (..) na cobra coral, (...) num pedaço de pão, (...) na maré, (...)
na lâmina de um punhal, (...) na luz, na escuridão”; (c) “E há tempos nem os santos têm ao
certo a medida da maldade”; (d) “Não sei mais o que fazer comigo”.

4.1 A Grounded Theory

De início, Glaser e Strauss apresentaram a Grounded Theory (GT) como método em


1967, na obra The Discovery of Grounded Theory. Tal pensamento é decorrente de uma forma
indutiva de assimilar o processo de pesquisa, buscando, no campo empírico, os alicerces de
uma teorização derivada da apreciação e das ordenações sistemáticas dos dados investigados
(FRAGOSO, RECUERO e AMARAL, 2011). O propósito dos autores era o de configurar
uma proposta de método geral, apto a ser empregue em diversas áreas do conhecimento e
solver a clássica cisão entre o empírico e o teórico.
Dessa maneira, a característica fundamental desse método foi a profunda inversão do
que seria a lógica tradicional de uma pesquisa: normalmente, temos uma pergunta-problema
que é confrontada com um determinado conjunto de referências bibliográficas, gerando a
produção de hipóteses que serão colocadas à prova em campo. Enquanto isso, na GT,
“teorização e observação empírica andam juntas. Espera-se que o pesquisador vá a campo [...]
e deixe que os dados empíricos lhe forneçam as ideias” (ibid., p. 84).
116

De acordo com as autoras, a Grounded Theory é uma proposta metodológica com


assimilações muito pertinentes para aqueles pesquisadores que lidam com muitos materiais
empíricos ou com um campo de pesquisa complexo, visto que propicia certa liberdade ao
analista para trabalhar com os dados e criar um vínculo maior com todas aquelas ideias
suscitadas pela empiria. A concepção central da GT é, justamente, calcada no entendimento
de que “a teoria deve emergir dos dados, a partir de sua sistemática observação, comparação,
classificação e análise de similaridades e dissimilaridades” (ibid., p. 83). Um pensamento
bastante parecido é apresentado por Tarozzi (2011), que estabelece que a natureza desse
método consiste em dois pontos principais: (1) a oportunidade de arquitetar categorias de
análise baseadas no campo empírico e, portanto, respeitar o fenômeno observando os traços
que derivam do mesmo; e (2) a oportunidade de harmonizar pesquisa empírica com reflexão
teórica.
Por conseguinte, a teoria na Grounded Theory aflora exclusivamente dos materiais do
campo da pesquisa, não sendo desenvolvida pelo convencionado padrão de contemplação
bibliográfica, elaboração de hipóteses e subsequente apuração dos objetos de estudo. Ela
viabiliza ao pesquisador a oportunidade de vivenciar o campo empírico, ponderar sobre os
seus princípios e estruturar suas sensações através do processo de coleta e de codificação dos
dados existentes no contexto estudado (FRAGOSO, RECUERO e AMARAL, 2011).
Descortinamos, assim, o significado intraduzível de grounded – palavra de origem
inglesa que pode ser descrita, simultaneamente, como: “enraizada”, “embasada”, mas também
como “encravada”, “firme a terra”. Em vista disso, a sustentação nos dados defendida pela
Grounded Theory é tanto um denso enraizamento na experiência dos acontecimentos quanto
um enraizamento categórico, que servirá como apoio para sucessivas estruturações teóricas na
parte final da pesquisa (TAROZZI, 2011).
Segundo os estudiosos da GT, a aderência aos dados defendida por esse método sugere
que o analista não deve sobredeterminar o objeto a um quadro teórico específico, nem eleger
apenas aqueles materiais empíricos que coincidem exatamente com o espectro desse
referencial bibliográfico. “Numa GT as categorias interpretativas que constituem a teoria
devem conformar-se aos dados” (TAROZZI, 2011, p. 29). É interessante observar que este
viés faz com que a Grounded Theory esteja organizada para tratar de fenômenos dinâmicos,
procurando sempre a legitimidade de tipo conceitual nos objetos a serem examinados.

A peculiaridade da GT [...] é [...] a de buscar regularidade de tipo conceitual entre


fenômenos a serem analisados. Por conseguinte, seus êxitos fornecem uma
interpretação teórica densa e sistemática do que acontece num certo fenômeno.
117

Nesse sentido, um traço peculiar (apesar de ambicioso) da GT é o de ser


particularmente apta à exploração, não de fenômenos estáticos, mas dos processos
subjacentes a tais fenômenos e de suas dinâmicas percebidas em seus respectivos
contextos (TAROZZI, 2011, p. 22, grifo do autor).

O método da Grounded Theory implica, originalmente, na concepção de uma nova


teoria depois de toda a análise dos dados encontrados no campo. Entretanto, não nos cabe aqui
tal pretensão. Em primeiro lugar, a GT é um agrupamento de procedimentos, uma maneira de
refletir (ou de configurar) a realidade social, um conjunto de técnicas para lidar com os dados
de uma pesquisa empírica. E é isso o que servirá de guia para a nossa reflexão: a Grounded
Theory como o “olhar teórico sobre o recolhimento e análise de dados” (ibid., p. 18). Nesse
sentido, como destaca Bittencourt (2017, p. 165), “é também possível utilizarmos os
conhecimentos da GT apenas para fazer uma análise de material empírico”. A seguir,
evidenciaremos os processos fundamentais do método e a maneira pela qual eles são
executados em nossa pesquisa.
A Grounded Theory sugere uma forma específica para que os trabalhos acadêmicos
sejam iniciados. Para o método, é importante não possuir um problema de pesquisa fechado,
mas uma indagação mais ampla: olhar para o campo e questionar “o que está acontecendo
aqui?” (BITTENCOURT, 2017). Esse começo, portanto, compreende uma abordagem
indutiva, que busca fazer com que os dados expressem a si mesmos, assumindo as respostas
adquiridas na pesquisa empírica como ponto inicial de todo o estudo (FRAGOSO,
RECUERO e AMARAL, 2011).
Sendo assim, um instrumento de grande auxílio quando estamos aplicando a Grounded
Theory são os memorandos. Eis a grande base do processo de pesquisa. Aqui, falamos dos
comentários escritos durante toda a vivência no campo, “desde as primeiras ideias da
pesquisa, passando pelas observações, insights do pesquisador, percepções sobre as
entrevistas até o acompanhamento da análise do corpo de dados” (BITTENCOURT, 2017, p.
162). Ou seja, falamos do diário de campo do analista. Percebemos, portanto, que a
individualidade e a subjetividade do pesquisador estão inclusas em todo o processo de coleta
de dados. Os memorandos são ferramentas de reflexão que acompanham, sustentam e
orientam tanto o olhar analítico como a posterior emersão teórica da fase final da pesquisa.

Os memos são observações de campo, escritos durante o processo de análise de um


corpo de dados. Podem aparecer como anotações a respeito do campo, como, por
exemplo, observações que serão, posteriormente, codificadas, anotações de código,
ou observações a respeito do processo de codificação e das categorias que estão
sendo criadas e, finalmente, anotações teóricas, que estão refletidas na discussão de
118

como os códigos, conceitos e categorias relacionam-se com a literatura (FRAGOSO,


RECUERO e AMARAL, 2011, p. 94).

Eles são indispensáveis para compilar as escolhas metodológicas e assegurar o


acompanhamento de todo o processo. São partes essenciais para constatar a confiabilidade da
pesquisa e ajudar diretamente na produção do texto final. Neles, também podem estar inclusos
os preconceitos, as preocupações e os eventos relacionados da vida do pesquisador, uma vez
que isso tudo também faz parte do processo de coleta da complexidade e da dinamicidade do
campo por meio do olhar de um analista que também é sujeito. Assim, é fundamental que a
redação de memorandos se dê de forma regular.
Desse modo, os dados utilizados no processo da Grounded Theory podem ser oriundos
de várias fontes e angariados das mais diversas formas possíveis, tanto qualitativa quanto
quantitativamente (FRAGOSO, RECUERO e AMARAL, 2011). Diante disso, até o
momento, as reflexões emergidas neste capítulo desdobram-se de sete visitas realizadas à
Praça Roosevelt e seu entorno, realizadas nos dias 21 e 25 de Janeiro; 7, 21, 27 de Fevereiro;
e 21 de Março. Como procedimento de coleta de dados há o desenvolvimento de relatórios
descritivos de campo, bem como a realização de entrevistas não estruturadas com personagens
citadinos conhecidos nesta etapa do trabalho, recorrendo à transcrição daquelas que houve
autorização para gravação. Por isso, a estrutura dessa tese apresenta, em primeiro lugar,
nossas impressões sobre o campo, sempre calcadas nos memorandos realizados durante a
pesquisa empírica. Concomitante ou posteriormente, é feito o trabalho de amarrar todas essas
observações em apenas um continuum teórico, discutindo as narrativas produtoras de sentido
sobre esta fração do coração da cidade de São Paulo.
Porém, os memorandos não são apenas os únicos instrumentais da GT. Como vimos, a
Grounded Theory defende que a coleta e a análise dos materiais empíricos devem sempre ser
processos simultâneos, realizando-se conjuntamente durante toda a pesquisa. Segundo
Bittencourt (2017, p. 155), “a percepção do que é mais importante para a pesquisa vai emergir
desse primeiro trabalho de campo. Isso significa que a base primordial estará na coleta e
análise de dados para, depois de todo o processo, confrontar o novo material com bases
teóricas”. Logo, a organização dos dados identificados no campo empírico consiste num dos
fatores mais importantes da GT.

Um traço peculiar, que não pode faltar nessa abordagem, é o de manter e preservar
um forte enraizamento da conceituação nos dados empíricos. A intuição, que nasce
da constante comparação e leva a pôr em luz os processos sociais e psicológicos de
base, deve ser sempre enraizada nos dados, e o percurso deve ser sempre traçado de
119

modo a justificar e explicitar de maneira transparente a sua conexão com os dados


dos quais foi gerado. [...] Por isso, a codificação deve proceder em maneira lenta e
progressiva, sem nunca perder a ligação com a base empírica. A codificação é
estratificada em níveis sucessivos. [...] Tal maneira gradual e progressiva de
codificar é necessária para manter a evidência e os traços do percurso (TAROZZI,
2011, p. 25-26).

A codificação já tange, em si, uma forma de análise e consiste na organização dos


materiais empíricos, de modo a reconhecer padrões e componentes significativos para a
pesquisa e para a pergunta-problema. “O processo de codificação dá-se basicamente através
da construção de categorias a partir da sistematização da análise dos dados e da construção de
memos teóricos a partir das observações de campo e das próprias categorias geradas”
(FRAGOSO, RECUERO e AMARAL, 2011, p. 94).
Outro ponto relevante é a ocasião em que a coleta de dados precisa ser encerrada.
Podemos dizer que uma categoria chegou à sua saturação quando, no retorno ao campo,
acumulamos respostas muito similares àquelas que foram colhidas anteriormente, ou seja,
“quando os dados se tornam redundantes, no sentido de que, para qualquer direção que se
prossiga na coleta de dados confirmem-se constantemente aquelas mesmas categorias”
(TAROZZI, 2011, p. 152). É importantíssimo que novas idas a campo sejam realizadas e que
se procure a saturação de cada uma das categorias. Isso certificará que não pensemos sobre
uma circunstância pontual do fenômeno estudado, mas sobre materiais com várias incidências
comuns.
A codificação, na Grounded Theory, ocorre em três etapas distintas. A codificação
aberta abrange a primeira parte da análise e deve incluir a identificação, a delimitação e a
categorização do fenômeno detectado durante a pesquisa empírica. “Esta fase fragmenta os
dados e permite que sejam identificadas categorias, propriedades e dimensões. […] A
codificação aberta, assim, foca principalmente os procedimentos de comparação, classificação
e questionamento dos dados” (FRAGOSO, RECUERO e AMARAL, 2011, p. 96). É
necessário que estejamos acessíveis e alertas ao que veremos no campo: tal processo inicial de
codificação deve estar diretamente relacionado aos dados coletados. É apoiado neles – e
apenas neles – que devemos conceber categorias e etiquetas. Como adverte Bittencourt (2017,
p. 159), nesta fase do estudo, “é provável que o número de categorias seja bastante amplo,
visto que na codificação aberta o processo não é o de resumir categoria ou atribuir sentido
único para categorias com o mesmo tom de discurso, e sim criá-las”.
Entramos, então, na segunda fase – a codificação focalizada. Aqui, dois
procedimentos são fundamentais: articular as categorias existentes e criar, assim,
120

macrocategorias de análise. Na procura por essas macrocategorias, temos de organizar os


códigos por semelhanças, com o único objetivo de gerar etiquetas precisas que consigam
denotar e qualificar os fenômenos encontrados. Quando tratamos da concatenação dos dados
que despontaram da empiria, o propósito é o de contrapor, entre si, os rótulos provenientes do
processo de codificação aberta, realizando-se a “comparação entre códigos e, posteriormente,
entre conceitos” (FRAGOSO, RECUERO e AMARAL, 2011, p. 94). De acordo com Tarozzi
(2011, p. 74), o resultado dessa fase é “a emersão das principais direções, os temas, as
categorias interpretativas que os dados indicam”.
No entanto, é importante destacar que as macrocategorias levantadas nessa etapa da
codificação não precisam ser estanques. Pelo contrário, quase sempre o diálogo e o
atravessamento de elementos estão presentes na articulação entre umas e outras. O que
precisamos levar em consideração para definir as macrocategorias são os elementos que mais
se evidenciam na formulação intrínseca a cada um dos materiais identificados.
Realizado o delineamento das macrocategorias, a codificação focalizada também nos
leva ao aperfeiçoamento da pergunta de pesquisa, conforme Bittencourt (2017). Nesse
momento, já conhecemos melhor o campo empírico e podemos, dessa maneira, lapidar a
problemática a ser investigada e chegar às nossas principais questões de estudo.
A terceira – e última – etapa é denominada de codificação teórica. “Em particular é o
nível de análise em que se delineiam e se qualificam as relações que subsistem entre as
categorias que emergiram da codificação focalizada” (TAROZZI, 2011, p. 77). Isto é, o foco
nesse momento é incorporar todas as macrocategorias em uma única categoria medular, que
corresponderá com o fenômeno central da pesquisa em questão. Devemos realizar as
seguintes indagações: o que todas as categorias descritas partilham entre si? Qual é a principal
noção a ser empenhada em nosso estudo? Aqui, devemos buscar o que os teóricos da
Grounded Theory intitulam de core category: “a core category é a ponta da pirâmide, é a
categoria central, o conceito-chave. A ela todas as outras categorias devem estar ligadas”
(BITTENCOURT, 2017, p. 160). Assim, as reflexões bibliográficas que emergirão em torno
dessa categoria central serão responsáveis por desenvolverem nossa compreensão acerca do
fenômeno investigado em suas mais variadas ramificações.

Essa abordagem [da Grounded Theory] é interessante porque permite ao pesquisador


focar inicialmente nos dados, libertando-o da necessidade de criar um referencial
teórico a priori e ser obrigado a criar hipóteses e questões de pesquisa antes de ir a
campo. A proposta da TF [Teoria Fundamentada, ou Grounded Theory] valoriza a
experiência empírica e, por isso, proporciona uma forma única de perceber a
121

emergência da teoria a partir dos dados (FRAGOSO, RECUERO e AMARAL,


2011, p. 110).

Por fim, precisamos ressaltar que, embora acolhamos os procedimentos teórico-


metodológicos da Grounded Theory, não podemos afirmar que estamos totalmente
desprendidos de quadros e referenciais teóricos no olhar inicial para o campo empírico de
nossa pesquisa. Acreditamos que todo analista parte de um lugar de fala específico, inspirado
pelas suas disciplinas formadoras, pelo campo de estudos no qual está incluído e, até mesmo,
pela perspectiva teórica de seu programa de pós-graduação. É impossível se livrar plenamente
dessas lentes. A assimilação da experiência empírica, nessa tese, sempre ocorrerá pelo viés do
programa de Comunicação e da Semiótica, da PUC-SP, sob o eixo da linha de pesquisa
Processos de criação na comunicação e na cultura.

4.2 “A fé tá na mulher, (...) na cobra coral, (...) num pedaço de pão, (...) na maré, (...) na
lâmina de um punhal, (...) na luz, na escuridão

Você já teve a impressão de que por mais planejado que algo seja, intempéries e
contratempos insistem em pregar peça sem corar, em qualquer um, a qualquer momento, em
variadas situações? E entre infindáveis possibilidades de circunstâncias inesperadas, o
acontecimento daquele dia, parecia, não podia ter sido mais infeliz: a morte da mãe de um
amigo de longa data. Não se trata, de modo algum, de vitimização; mas de franca partilha de
que naquela véspera de ida a campo – e no próprio dia de campo –, certos sentimentos e
memórias tornaram-se insistentes companhias e misturaram-se à Roosevelt. Dona Eva morreu
depois de um longo, impiedoso e devastador processo de Alzheimer. Naquele ponto, não se
tratava apenas da Dona Eva, mas do meu sogro – seu Ari – que morrera da mesma
enfermidade em 2016. O estágio avançado da doença, de solavanco apresenta a quem for a
impotência e convoca a rudeza de ter de tomar certas decisões ditas racionais enquanto o
coração apequena. Naquela casa de repouso (eufemismo para lugar tão desolador), impossível
esquecer a sua mão deslizando em vaivém pela nuca enquanto buscava algum sinal de
lembranças e, simultaneamente, ensinando a quem o visitasse (e disposto estivesse) de que o
homem não é troço algum, nadinha. O corpo, cada vez mais franzino, de quando em quando
murmurava “mineirices”: a vaca Estrela, o cão Valente, o cozido de tatu. Saudade dá de bica.
Todos os velhos fincados no chão. A lágrima, a lágrima, a lágrima... não cai mais, secou. O
rombo no peito, ah, esse fica. Velhos plantados nas dobras d’alma. Bote reparo, o tempo
122

avança e a certeza cresce: a gente passa a ser tão eles quanto a gente mesmo. Então, naquele
domingo, 21 de Janeiro de 2018, o relógio tocou às 6h30. Às 8h o abraço (ambicioso que só)
queria amenizar no amigo o próximo turbilhão de emoção. Dos cafundós da dor até a saudade,
o caminho é longo e o passo (pode ser) curto. Cada um no seu tempo. Não desmarquei o
campo. Às 9h em ponto, Do Cemitério Parque Jaraguá, na beira da Rodovia Anhanguera, à
Roosevelt, pensamentos em plena maceração. Macerava a última preocupação do amigo e o
que para aquele dia de campo, dias antes, havia planejado. O amigo estava aflito para
conseguir um padre para uma última benção de sua mãe. E para aquele dia de campo a
escolha havia sido assistir a uma missa para tomar contato com mais uma esfera produtora de
sentido sobre a praça, a Igreja Nossa Senhora da Consolação. A paróquia é uma construção
principiada em 1799 e, hoje, margeada por um aspirante parque infantil, uma zona, a priori,
reservada às manobras dos skatistas e, ao fundo, mais praça. Entre um extremo e outro – a
ânsia do amigo em encontrar um padre para encomendar o corpo da Dona Eva e o local
elegido para campo naquele dia de pesquisa – lá estava o flerte da fé, da relação do homem
com Deus. E, enquanto as faixas do asfalto entorpeciam o olhar, a música de Gilberto Gil, de
décadas atrás (1982, tempos de piazinha ainda), pululava na cabeça:

Andá com fé eu vou / Que a fé não costuma faiá / Andá com fé eu vou / Que a fé
não costuma faiá / Andá com fé eu vou / Que a fé não costuma faiá / Andá com fé eu
vou / Que a fé não costuma faiá / Que a fé tá na mulher / A fé tá na cobra coral / Oh!
Oh! / Num pedaço de pão / A fé tá na maré / Na lâmina de um punhal / Oh! Oh! / Na
luz, na escuridão / Andá com fé eu vou / Que a fé não costuma faiá / Olêlê! / Andá
com fé eu vou / Que a fé não costuma faiá

O pensamento chiclete habitado por aquela música foi interrompido com o susto de
um ciclista, todo na estica, tirando (irresponsavelmente) uma fina com o carro a poucos
metros do farol que desemboca próximo ao estacionamento da Nossa Senhora da Consolação.
Neste ponto, desculpa aí Deus, escapa desgovernado um sonoro palavrão que irradia sobre
aquele “cadim” do contexto urbano paulistano e, junto, vem uma buzinada caprichada. Rindo
e lembrando Ferrara (1988), naqueles segundos, de modo torto talvez, quer queira ou não, foi
constituída uma dada percepção urbana; isto é, aquele urro muito do mal-educado, bem como
a prolongada buzina, gerou uma informação urbana, uma faixa de linguagem que em um
tilintar rompeu o sossego dominical até então hegemônico e instalado. A cidade, como bem
diz a autora, é organismo vivo e sua transformação se dá na tessitura da história do uso
urbano. Nas palavras da Ferrara (1988, p. 4), a vitalidade da cidade “nos ensina o que o
usuário pensa, deseja, despreza, revela suas escolhas, tendências e prazeres”. Naquele
123

momento, pensava “maldito ciclista”, desejava não ter tomado aquele susto, desprezava a
imprudência daquele sujeito por transitar entre as faixas de carro enquanto havia uma faixa
exclusiva para ele e sua bicicleta. Ao mesmo tempo, saindo do umbigo, vocifera Foucault
(2010) sobre a moralidade incutida naquela expectativa tida sobre aquele corpo do ciclista no
espaço urbano. São séculos de estruturas e estratégias disciplinares incutidas nas entranhas
para procurar tornar plástica e racional as massas, ordenando, por exemplo, espacialmente os
corpos citadinos. E, viajando muito nas ideias, lá estava o ciclista representando um protesto à
famigerada ordem?
E com esse bololô nas ideias acontece o desembarque no estacionamento da paróquia.
E a braveza cede de vez ao riso diante do painel hipnotizador de pombo (Figura 66) colocado
acima da porta de entrada e composto por círculos coloridos tal qual como um alvo.
Pesquisando depois, de acordo com a empresa responsável pela instalação, a imagem do
apetrecho, instalado em Junho de 2017, provoca sensação de mal-estar e náuseas nos pombos,
que passam a rejeitar o local. Xeretando uma matéria da BBC , antes disso, os fiéis, entre uma
palavra e outra da escritura proferida pelo padre e seus ministros, esquivavam-se de
aventureiros rasantes e tinham rezas e cânticos inconvenientemente adornados por sonoros
arrulhos, na melhor das hipóteses. Pombas, para estes devotos, não são da paz, não são não;
são infernais, fazem ninho e cocô em tudo quanto é canto. Sem falar em pena que voa para
todo lado. Mas isto é algo superado. Hoje, os pombos, hipnotizados, fogem da igreja como o
diabo da cruz. Nas palavras de José Roberto Pereira, padre responsável pela bicentenária
igreja em entrevista ao veículo supracitado, os "pombos ficavam procriando e faziam muito
barulho na hora da missa. Mas o trabalho teve um sucesso de 100% e nunca mais nenhum
pombo entrou na igreja. Antes, um casal voava de um lado para o outro na hora da missa”. À
técnica de hipnose pombal, somam-se outras estratégias: operação tapa buraco para garantir
que as aves não entrassem por lugar algum e uma completa dedetização. A arquitetura hostil –
corporificada em telas e espículas (espetos não afiados) – impede hoje o pouso e os ninhos. E
assim, custeada por um incomodado e anônimo fiel, foi a cabo a empreitada contra a ave
símbolo da Santíssima Trindade. Pombos só nos paninhos da celebração, adornos
eucarísticos, e auto lá. Ratos de asas.
124

Figura 66: Painel hipnotizador de pombo

Fonte: A autora

O arrulho nas ideias que descambava para a boca em meio sorriso foi interrompido
pelo susto da recepção de duas senhoras que trataram de saber se iria mesmo à missa; caso
contrário, sutilmente passaram o recado de que deveria parar noutro lugar. O ar de
desconfiança daquelas mulheres de que iria mesmo entrar na paróquia foi companheiro até o
primeiro passo naquele solo dito sagrado. Missa. Qual a última ida a uma missa? O hiato da
memória denuncia uma religiosidade que se sobrepõe a quaisquer tipos de gesso ou amarra
institucional e que se alimenta sem cerimônia de santos, exus, arcanjos, chama violeta, raios
solares, nossas senhoras, Iemanjá. Fé barroca. Mas lá estava em mão o folheto Povo de Deus
em São Paulo e, enquanto olhava o passo-a-passo, impossível não se lembrar da fala de um
amigo seminarista (até os idos dos anos 1960, quando fora gentilmente convidado a deixar a
ambiência clerical), de estar diante de uma estrutura de um rito que vem da necessidade de a
igreja sistematizar e controlar os seus fiéis e permitir, em certo tipo de culto, o acesso a
determinadas informações e evitar, por outro lado, outras questões ou mesmo que outros
grupos tenham acesso às mesmas. Escarafunchando na memória, basta recordar de como as
missas originalmente em latim faziam emblemática distinção; afinal, para boa parte dos fiéis,
a função cabida era repetir, sem compreender, o dito. E o padre, ora, o padre capitaneava uma
espécie de advogado de Deus. Folheando o áspero e malcheiroso panfleto há pistas de que o
rococó das palavras, ainda que não mais em Latim, continua a relegar a certas pessoas a
posição de papagaio. Enquanto a palavra inicial é proferida e o canto de abertura ecoa nas
ruidosas caixas acústicas, um arremesso de olhos ao alto e ao redor finda captando que aquela
grandiosidade materializada pretende fazer sentir que se está em uma estrutura superior, que é
a presença invocadora de Deus. E o vaivém dos corpos ora em pé, ora sentados, ora
ajoelhados, joga com a música, joga com os salmos, joga com o evangelho, joga com a
125

liturgia eucarística, joga com a comunhão. Entre os cânticos, impossível não crescer olhos e
perceber o descompasso dos cantores voluntários destoando entre graves, agudos e coros-
murmúrio da plateia engajada para não “dar ruim”; sem falar do único jovem naquele espaço
todo tentando acompanhar a cantoria com seu violão e trejeitos rock’n roll. Entre as oferendas
e o rito da comunhão, salta aos olhos três baús (Figura 66) postados ao lado esquerdo do altar.
De um lado, os dois reservados ao dízimo e, de outro, o destinado a pedir oração, graças,
benção, milagres, ajuda da ordem que fosse. Mas, na real, o que chama mais à atenção – e até
mesmo intriga – é a transparência da caixa de pedidos adornada com uma imagem de Jesus
em tons pastéis emanando luz do peito e apontando para o alto com a mão direita. Feita em
plástico cristalino, permite ao caminhante mais curioso e menos apressado até mesmo a
possibilidade de ler muitos dos nomes a serem abençoados e conhecer algumas súplicas tão
clementemente feitas em festival de letras, cores de tinta de caneta, carnaval de tipos de papel,
caligrafias múltiplas de garrancho à primazia. Os pedidos pretensos a velados, por sua vez,
guardados em uma multiplicidade de jeitos de dobrar tal qual origamis, conferia ali uma
celebração particular de descontinuidades ao olhar. Desordem desgovernada visualmente
ruidosa devidamente acomodada naquele baú, naquela caixinha que alça a ânsia de um papo
reto com o divino, como o indicador de Jesus lá estampado sugeria. Ao lado, duas imponentes
caixas de madeira escura, com letras douradas garrafais e em caixa alta, sinalizavam o lugar
destinado ao depósito das contribuições. Moedas, notas de 10, 20, 50, 100 reais não davam as
caras, estavam apenas na imaginação e no interior daquele móvel que lembra, quem sabe,
tempos de orgulho à pátina, da marca deixada pelo tempo nos objetos que lhes conferia ainda
mais valor na passagem de geração para geração. Por quanto tempo, afinal, estariam as arcas
naquela sucursal de Deus? Quantas pessoas não deixaram naquela fenda superior o sebo de
seus dedos? Ali, no lustro tinindo sobre a madeira, reside opacidade interessada em minguar
olho grande de toda ordem. O segredo diante destas urnas também aparece nos gestos dos
fiéis. Convocados a contribuir, fazem verdadeiros malabares para sacar o dinheiro do bolso,
da bolsa, da carteira. Notas emboladas nas mãos e moedas encobertas até o derradeiro
momento do depósito sugerem suspense sem igual e deixam à imaginação: Notas graúdas?
Trocados? Quem dá mais? Quem ali encobre a vergonha por dar menos? Vai saber?!... Ah, o
não dito..., o não dito diz muita coisa (ORLANDI, 2009).
126

Figura 67: Baús... pedidos às claras, oferendas às escuras

Fonte: A autora

Fato também curioso são as plantas. Muito embora distribuídas por toda a Igreja, atrás
destes três baús encontravam-se, amontoadas mesmo, uma flor tradicionalmente usada para
decorar espaços nos arredores do Natal. Poinsétia é uma flor originária do México que,
popular e imaginativamente, é conhecida em solo tupiniquim sob vários nomes como bico-de-
papagaio, rabo-de-arara, papagaio, cardeal, flor-do-natal, estrela-do-natal. Aquela reunião de
vasos atrás das urnas parecia tentar esconder naquele espaço a planta, pobrezinha, já démodé.
Aparentemente murchas, à mingua d’água, loucas para quem lhe fizesse a poda por uma
sobrevida, estavam lá, rejeitadas e muito das mal escondidas. Lembra até brincadeira de
criança que no esconde-esconde coloca apenas a mão na face e se dá por desapercebida.
Enquanto isso, orquídeas muito das faceiras, brancas e amarelas, hegemonizavam pedestais,
escadas, altar. Duas, veja só, estavam bem aos pés da Nossa Senhora da Conceição,
presentificando-a, parece. Flores – rejeitadas ou em voga – lá se postulavam como fração
permitida e controlada da natureza. E Latour (2009, p. 38) dá as caras nas caraminholas e, de
passagem, provoca: “Ninguém é realmente moderno se não aceitar afastar Deus tanto do jogo
das leis da natureza quanto das leis da República”.
A tecnologia, bem mais discreta, também repousa naquele riscado de chão sob a forma
de velas eletrônicas (Figura 67). Parafernália com tecnologia bluetooth, está dito
expressamente lá, capaz de destinar num só golpe (somente) moedas para (a) Nossa Senhora
das Graças, sagrada família, São Judas Tadeu, São Benedito, São José, Santo Antônio; (b) São
127

José, Santo Antônio de Sant’Ana Galvão, Santa Paulina; (c) Bom Jesus de Pirapora, São
Vicente de Paulo, Beato Anchieta, Santa Gemma Galgani. E, dependendo do montante
depositado, sua vela pode ficar acesa por quinze ou trinta minutos, ou mesmo por 1 hora.
Cabra de tecnologia tão boa da peste que o merchandising da JBN Eletrônics, lá do Pari, fica
estampado na placa metálica tomando mais espaço que praticamente qualquer outra
informação. Assimetria de vozes. Esta lembrança high-tech veio à memória em rodamoinho e
no bojo de um zás-trás, enquanto o olho escapava dos três baús e o canto chamado Ofertório
era entonado; no momento em que as pessoas se enfileiravam no corredor principal e
secundário para fazer sua (discreta) doação... Neste ponto, em desafino sofrido, ecoava

Minha vida tem sentido / cada vez que eu venho aqui / e te faço o meu pedido / de
não me esquecer de ti / Meu amor é como este pão / que era trigo, que alguém
plantou, depois colheu / e depois tornou-se salvação / e deu mais vida e alimentou o
povo meu / Eu te ofereço este pão / Eu te ofereço o meu amor (bis) Minha vida tem
sentido / cada vez que eu venho aqui / e te faço o meu pedido / de não me esquecer
de ti / Meu amor é como este pão / que era trigo, que alguém plantou, depois colheu
/ e depois tornou-se salvação / e deu mais vida e alimentou o povo meu / Eu te
ofereço este pão / Eu te ofereço o meu amor

Figura 68: Velário tecno-ecológico

Fonte: a autora

Na saída daquela celebração, outra já se formava. Os primeiros integrantes do bloco


carnavalesco Baixo Augusta já se aglomeravam nas escadarias ao lado esquerdo da grade da
paróquia. Grade? Grade. Outro membro anônimo da comunidade, tempos depois veio à cabo
nesta pesquisa, doou aquelas imponentes grades; pretas em boa parte e dourada n’alguns
detalhes. Isso, deu tilt. Isso mesmo, tal qual como nos anos 1960 e 1970 em que esta palavra
passara a ser empregada para dar conta das saídas de prumo das máquinas de fliperama, a
expressão serve aqui para mostrar a pane na memória quando, ao olhar para o passado, aquela
128

Igreja ostentava a fama de nunca fechar as portas. Noite e dia; dia e noite. Em tempos de
ditadura, um amigo das antigas sempre tratava de rememorar, quantos não foram aqueles que
no seu interior buscaram acolhimento e abrigo para fugir da perseguição ensandecida das
ruas? E, agora, lá estavam as grades. Materialidade arquitetônica hostil ao que está fora, mas
que, no espaço entre uma barra e outra, é incapaz de fazer frear as mensagens advindas destas
brechas. Do outro lado da rua, a faixada de um antigo prédio anuncia o pé de guerra. Um
mural pintado de cabo a rabo em chamativas cores afronta as cores contidas de sua vizinha de
frente. O gigante painel tem ao fundo matizes azuis e esboça um labirinto que lembra um jogo
de vídeo game dos anos 1980, chamado Pacman ou, abrasileirando, Come-come. Na
dinâmica daquele game, o desafio era enfartar-se de bolinhas amarelas piscantes na tela e, ao
mesmo tempo, dar conta de escapar do seu inimigo, fantasminhas que ficavam tremelicando
na tela aqui, lá e acolá em surpreendentes direções. Na base deste afresco, um robô preto – de
olhos cuja esclera é tomada por um vermelho intenso fazendo lembrar a zanga de quem tem
sangue nos olhos – leva, no peito, uma frequência ziguezague, simulando o desenho de ondas
sonoras de um grito. Grafitado pouco acima está uma espécie de cachorro (muito louco) com
língua roxa de gritar ininterruptamente Baixo Augusta, que vibra em tom amarelo no balão de
diálogo saindo da boca (e goela) do totó dentuço. Mais acima, um contorno negro lembra
alguém que, com fones de ouvidos, não escuta o que se dá para além da proteção acústica
daquele acessório. Os olhos compostos por duas pequenas bolotas brancas mostram alguém
que mira distraído ou despretensiosamente o horizonte e segue, na sua própria vibe. A boca
em vermelho-berrante e os traços que adornam essa parte da imagem passam a impressão de
alguém que canta o seu ritmo e ponto, doa a quem doer. Mais acima uma mão branca
esquartejada quase toca uma panela de pressão que, pelo seu bico-válvula, deixa escapar uma
frase como se fosse um sinal de trânsito: É proibido proibir. No topo, findando o afresco, sai
pelos ares uma órbita amarela que remete ao surdo, instrumento musical. Sobre este
instrumento está uma figura azul e suas baquetes amarelas em formas de raio como quem diz
que vai tocar o terror.
Este sugestivo campo de disputa imagético (fachada da igreja versus fachada do prédio
da consolação com a Rua Rêgo Freitas) coloca os miolos numa vibe do Boaventura Sousa
Santos (2008) e as considerações por ele feitas sobre a construção intercultural da
desigualdade e da diferença, bem como as questões da acerca da exclusão, aspectos aqui tão
salutares. É na modernidade que a tríade igualdade, liberdade e cidadania – entendida como
potência de princípio emancipatório – passa a ser elemento constitutivo da vida social. Neste
contexto, a desigualdade e a exclusão, amálgama de exceções e incidentes no interior do
129

processo societal, não desfrutam de reconhecimento e legitimidade no mais das vezes; via de
regra há a concepção de certas “políticas sociais” que capitaneiam a ânsia de minimizar
diferenças. Mas, no bojo daquelas sociedades submetidas ao colonialismo europeu,
desigualdade e exclusão agravam-se porque vigoram como modus operandi da regulação
social; resultado do jogo entre a “violência da coerção e da violência da assimilação”
(SANTOS, 2008, p. 279). O “outro” da modernidade europeia, em meio aos esforços do pós-
colonialismo, quer queira ou não, é compreendido como elemento constitutivo daquela
sociedade. Fracassa, nesta acepção, a ideia do “outro”, fracassa a imagem do outro como
exterioridade colonial. Pensar o “outro” à margem dos processos dialéticos de regulação-
emancipação europeus co-determina o malogro das sociedades europeias. Colocar atenção
neste fracasso processual importa.

A partir do momento em que o paradigma da modernidade ocidental reduziu as suas


possibilidades de desenvolvimento às do desenvolvimento capitalista e este passou a
pressupor a disponibilidade das matérias-primas e dos mercados coloniais, as
sociedades modernas ocidentais passaram a viver uma dupla contradição: da
contradição entre princípios ditos universais mas confinados na sua vigência às
sociedades metropolitanas, e, no seio destas, da contradição entre os princípios de
emancipação, que continuaram a apontar para a igualdade e a inclusão social e os
princípios da regulação, que passaram a gerir os processos de desigualdade e de
exclusão produzidos pelo próprio desenvolvimento capitalista (SANTOS, 2008, p.
280).

Para Santos (2008), de início, a desigualdade e a exclusão representam dois sistemas e


cada qual possui no seu interior engrenagens hierárquicas e dinâmicas próprias. De um lado, a
desigualdade pressupõe que grupos sociais se integrem de forma subordinada, se um membro
está abaixo em relação aos demais, sua pertença é indispensável. Por outro lado, o sistema de
exclusão é regido pelo princípio de segregação. A pertença se dá pela forma como o sujeito é
excluído. Para este grupo, quem está embaixo, está fora. Mas estes sistemas de desigualdade e
exclusão supra apresentados podem ser entendidos como tipos ideais, visto que certos grupos
sociais se inscrevem nos dois sistemas em meio a um sem-número de condições e
combinações complexas.
Marx (apud SANTOS, 2008), na modernidade capitalista, é o teorizador da
desigualdade. Para este autor, neste contexto, a integração social se dá em meio a relação
capital-trabalho, a qual repousa na desigualdade classista e funda-se na exploração do
trabalho, assentada em um fenômeno socioeconômico. Foucault, por seu turno, defende
Santos (2008), é o grande teórico da exclusão, colocando-a como fenômeno cultural e social,
atravessado pelo fenômeno da civilização. “Trata-se de um processo histórico através do qual
130

uma cultura, por via de um discurso de verdade, cria o interdito e o rejeita” (p. 281). Concebe-
se nestes discursos certos limites, um caráter regulatório e normalizador para além dos quais
reside “apenas” transgressão (delinquência, orientação sexual, loucura, crime) e os sujeitos
categorizados como desqualificados (inferior, louco, criminoso, pervertido). Os
desqualificados, encarnação da periculosidade no discurso normalizador, são excluídos da
normalidade por meio de processos já tão encrustados, socialmente falando, como as regras
jurídicas. Nas dobras, nos vincos, nos interstícios do juridiquês, está a exclusão. Discursos
sociais propõe direções e inclinações limítrofes e fronteiriças a partir do cruzamento das quais
justificam-se significativas fraturas, rejeições e segregações. Tais fraturas, concebidas no
âmbito cultural e civilizatório, incide sobre questões sociais e econômicas “ainda que se não
definam por elas. Aqui a integração não vai além do controle da periculosidade” (SANTOS,
2008, p. 281).
Nas palavras de Santos,

Enquanto o sistema da desigualdade se assenta paradoxalmente no essencialismo da


igualdade, sendo por isso que o contrato de trabalho é um contrato entre partes livres
e iguais, o sistema da exclusão assenta no essencialismo da diferença, seja ele a
cientifização da normalidade e, portanto, do interdito, ou o determinismo biológico
da desigualdade racial ou sexual (2008, p. 281).

Socialmente falando, fica claro que um emaranhado de práticas sociais, ideologias e


atitudes conjugam de modo escamoteado desigualdade, exclusão, códigos de pertença
subordinada, rejeições e interditos. Neste jogo social da famigerada normalidade, do
mundinho que se pretende uno, o ápice da desigualdade é a escravatura e o ponto máximo da
exclusão é o extermínio.
Sob a globalização neoliberal, denuncia Santos (2008), princípios hierarquizadores e
discriminatórios irrompem no espaço tempo do sistema mundial, entrecruzando “o eixo
socioeconômico da desigualdade e o eixo cultural, civilizacional da exclusão/segregação” (p.
282), mas sem, paradoxalmente, buscar estabelecer alternativas de controle de certos limites
para o avanço da desigualdade e exclusão/segregação extremas. A gestão controlada de
desigualdade e exclusão depara-se com movimentos anti-sistêmicos que, de debates entre
desigualdades entre patrão e empregado, senhor e escravo, passa a abarcar lutas como a
feminista, anti-racismo, anti-colonialista.
Gerir a exclusão e a desigualdade na modernidade capitalista representa um
sofisticado, opaco e multifacetado processo político cujo dispositivo ideológico é o
universalismo que, por seu turno, pode operar uma perigosa negação da diferença que seja
131

sensível a aspectos contextuais ou mesmo uma absolutização da diferença que torna


impossível comparar diferenças pela ausência de reconhecimento de aspectos transculturais.
Ambos os vieses espreitam critérios abstratos de normalização calcados na ideia de que
sempre há uma diferença social capaz de negar todas as outras (universalismo anti-
diferencialista) ou para torna-las incomparáveis, inassimiláveis (universalismo
diferencialista).
A teoria política liberal, conforme Santos (2008), privilegia o dispositivo ideológico
do universalismo anti-diferencialista acionados por ideias de cidadania e direitos humanos que
têm no Estado a sua instituição privilegiada, cujo objetivo compreende uma coesão social em
meio a uma sociedade permeada por sistemas de desigualdade e exclusão.

No que respeita a desigualdade, a função consiste em manter a desigualdade dentro


dos limites que não inviabilizem a integração subordinada, designada de inclusão
social pelas políticas estatais. Os direitos sociais e econômicos universais, o
rendimento mínimo de inserção social e as políticas compensatórias, (‘fome zero’,
bolsa escola, abono família, assistência social) são mecanismos modernos (...) para
manter a desigualdade em níveis toleráveis (SANTOS, 2008, p. 285).

Níveis toleráveis (?!) condicionados às variáveis particulares de cada contexto como


os níveis de lutas políticas, capacidade estatal e a mídia trivializadora da desigualdade. Em
termos de exclusão, há a tentativa do Estado de validar socialmente certas diferenças: quem
são os civilizáveis e os incivilizáveis? Que nuances conferem aferir que se está diante de um
louco, de um criminoso bárbaro ou de um criminoso não perigoso? Quem é muçulmano
fundamentalista e o não fundamentalista? Quem é desviante sexual tolerável ou não tolerável?
Quais são as exclusões demonizadas e as estigmatizadas? Socialmente falando, quem são os
inimigos absolutos e quem são os inimigos relativos?
Em reportagem da Folha de São Paulo18, do dia 4 de fevereiro, foliões do Baixo
Augusta, um dos maiores grupos carnavalesco paulistano, reunidos sob a trepidação de quatro
trios, politizou o festejo carnavalesco, mostrando, nos bonecos de Olinda, que o fervo também
é luta, sob o mote é proibido proibir, estampado no grafite pouco antes aqui citado e
problematizado. Leci Brandão, Maria Rita e Wilson Simoninha, artistas-membranas filtrantes
e tradutores entre o bloco, os foliões e aquele lugar, entre um verso musical e outro, entoaram
gritos de guerra de fora Temer, de apelo contra o racismo e a homofobia. Sob a urdidura do
Carnaval, evidencia-se, tal qual como propõe Lotman (1996), que

18
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/02/baixo-augusta-reune-multidao-e-grita-
contra-racismo-e-homofobia.shtml. Acesso em: mar. 2003.
132

toda polêmica exige uma linguagem comum entre os adversários: neste caso a
linguagem do adversário passa a ser essa linguagem, porém ao mesmo tempo está
submetida a uma anexação cultural, que traz consigo um desarme semiótico da outra
parte (LOTMAN, 1996, p. 73).

Quem coloca papas na língua do Carnaval? Para além da fala, dos cânticos, dos gestos
criadores daquele contexto, lá estava a presença dos corpos naquele espaço urbano, ainda que
intensamente apenas por um determinado período, como prova de resistência para existência.
Resistir para existir. E a ocupação do espaço urbano por corpos diversos faz sair do armário
uma sociedade preconceituosa dilacerada pelos solavancos da normalidade altamente
estratificada em jogos de subordinação em termos de pertenças e, que sem corar, tenta
extirpar sujeitos dissonantes. Ainda bem que fica no tentar. Porque neste jogo
comunicacional-cultural nenhuma das partes se realiza plenamente no processo, muito embora
o desequilíbrio de forças ainda impere favorecendo um dos lados, o discurso hegemônico.
Mas, “andar com fé eu vou, que a fé não costuma faiá”.

4.3 “E há tempos nem os santos têm ao certo a medida da maldade”

A pressa para colocar os pés para fora do táxi no recuo da Igreja Nossa Senhora da
Consolação dava mostra de um compasso de vida que, de tão naturalizado, passa
desapercebido boa parte das vezes. Ali, naquele momento, contudo, a pressa era sentida e
lamentada. Aquele campo (tal qual como noutros momentos) se dava na base da cotovelada
para ganhar corpo sobre a rotina do trabalho. Brechas ansiadas. E, finalmente, lá estavam
passos firmes sobre o cimento do recuo, depois sobre o mármore da entrada até chegar à
hegemonia do ladrilho no interior daquele solo dito sagrado. Em alguns segundos, o corpo
sente grato o relativo frescor frente ao bafo de um dia ensolarado de Fevereiro e seus
caprichosos trinta e tantos graus. O olhar, para lá e para cá, em busca de captar rostos, gestos,
movimentos, fagulhas esbarra com o olhar de um rapaz esparramado em uma pomposa
cadeira de madeira escura e couro verde, cheia de entelhes, colocada à direita da entrada.
Cabeças levemente inclinadas, levando o queixo ao peito, de um e de outro, dão mostras de
um tímido cumprimento. A decisão de voltar à igreja denota a vontade de atentar mais aos
detalhes, a enxergar e perceber como se dá a rotina em dias úteis e compreender as ações e
irradiação daquele espaço sobre o cotidiano do entorno. Aquela saudação foi a deixa para um
primeiro papo. Iniciado tímido, de lá e de cá, olhares furtivos e já em pé, meio sem jeito, meio
133

sem graça, meio sem o que saber fazer com as mãos, Bastião (nome fictício para preservá-lo),
foi gentilmente cedendo, partilhando, ensinando, dando as primeiras pistas do seu olhar sobre
aquele lugar. Baiano dos cafundós foi logo dizendo para botar reparo nas pessoas que
tomavam o fundo esquerdo da igreja. Ali, amontoados – muito embora houvesse espaço
noutros bancos – estavam alguns moradores em situação de rua ou pessoas nas beiras da
miséria, em vias praticamente de tomar para si o firmamento como teto. O olhar tristonho de
Bastião apontando para o chão é uma mostra de empatia.

As pessoas saem do interior do Ceará, da Bahia e caem aqui nesta cidade com a
promessa de ajuda de parente, com a promessa de emprego, de uma vida melhor e
tudo, tudo, tudo não passa de ilusão. As pessoas são enganadas, isso sim. Família
ajuda nada. Eu mesmo cheguei em São Paulo há 8 anos. Meu irmão disse que ia
ajudar. Ajudou nada. Só não me botou na rua. Tive de me virar, viu. Sorte que
consegui este emprego. Por dois anos trabalhei na limpeza de uma faculdade, a
Belas Artes. Mas, assim né, cada dia era um dia. Tinha dia que ficava num prédio e,
noutro, ficava em outra unidade. Vida de cigano, para lá e para cá, por dois anos. Há
seis, pedi transferência aqui para a Igreja. Ao menos aqui sei que todo dia saio de
casa e venho para cá, sem surpresa. Tive sorte. Consegui emprego e nunca fiquei
sem emprego. Meu irmão, interessado que só, quando vê que estou um pouquinho
melhor, chega junto. Tudo interesse sabe. Agora, este povo que está aí é tudo
coitado, tudo iludido. Daqui a pouco, mais meia horinha, e a irmã Lourdes (nome
também fictício) chega aqui e aí você conversa com ela. Ela é quem cuida deles.

Irmã Lourdes, uma senhora aparentemente lá pela casa dos sessenta, chega acelerada,
em pé de guerra com o tique-taque. Bastião trata logo de fazer a nossa apresentação. Sem
cerimônia – dando pistas de determinação e pulso firme – e, ao mesmo tempo, com doçura no
timbre da sua voz ela pede ajuda naquela tarde para distribuir roupa e sapato às pessoas que lá
estavam. Saca da gaveta de uma escrivaninha rococó papel e caneta e pede a uma voluntária,
que, como quem está numa partida aos quarenta e oito do segundo tempo, chega ofegante e
debulhando-se em suor, para que tomasse nota do nome completo e do RG de quem ali
estava, na ordem de chegada. E passa a instrução: Se não apresentar RG ou outro documento,
nada feito. Numa meia volta, direcionando a palavra para mim, dispara: “você, vem comigo.
Você vai ajudar a separar as roupas”. Num ritmo de marcha miúda e corrida até a portinhola
que dá para o bazar, foi dizendo em tom de desabafo e gratidão: “Vinha rezando para Nossa
Senhora da Conceição para que não me deixasse sozinha e ela me mandou vocês. Tem dias
que sozinha tenho de dar conta de atender a todos”. A porta preta de ferro, destravada, numa
braçada da freira, gruindo, chega ao topo e traz ao nariz uma mistura nada harmoniosa de
naftalina, cheiro de roupa guardada há tempos, odor de bolor, chulé. As roupas, numa
primeira vista, sem ordenação, penduradas em araras, largadas em cestos, amontoadas em
pilhas nas prateleiras, colocadas em sacolas no chão. Bijuterias dependuradas na quina que
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desse. Sapatos, tênis, chinelos de adulto, criança, masculinos, femininos, espalhados pelo
chão, ofereciam também um olor nada convidativo. Cintos, à mingua, suspensos em ganchos.
De sopetão a ordem:

Separa na mesa que vou colocar lá fora, calça, bermuda. Na arara, vai camiseta,
camisa de manga curta; pendura os cintos também. Os sapatos devem ser
acomodados debaixo da mesa. Hoje, não tem meia, não tem peça íntima. Cada um
tem direito a pegar uma calça ou bermuda, uma camiseta ou uma camisa, cinto
enquanto tiver. Você viu que tem 4 mulheres lá fora? Então escolhe roupa para
elas... Ai meu Deus, uma é gorda, sempre digo para ela me ligar quando vem para
que eu consiga algo para ela. Na numeração dela, é bem mais difícil... Ai meu Deus.
O que vou fazer? Vem comigo, vou fazer uma abertura e você me ajuda aqui depois.

De volta à igreja, lá estavam 31 pessoas. A irmã Lourdes tomou o corredor central,


próxima aos primeiros enfileirados nos bancos. De solavanco, deu uma bronca: “Vamos tirar
os bonés, os chapéus? Estamos na casa do senhor, é preciso respeito”. Sem titubear, surge um
balé de mãos tirando o adereço da cabeça muito embora as fisionomias denotassem algo mais
mecânico do que qualquer outra coisa. A freira agradece o gesto. E, já com a voz mais
emocionada, avisa que aquela abertura faria de modo diferente. No lugar de falar algo como
tem o hábito de fazer, gostaria de saber histórias deles. Gostaria de saber se naqueles últimos
quinze dias – tempo entre uma doação e outra – havia acontecido algo de bom na vida
daquelas pessoas, por menor que fosse. Depois de um silêncio incômodo, provoca mais uma
vez: “há algo de bom que queiram partilhar? A gente sempre vem aqui e pede, pede, pede,
mas será que não há algo bom que tenha acontecido nestes últimos dias?”. Tímida, uma
senhora sentada à esquerda da freira, levanta a mão. “Pode falar, partilhar com a gente a sua
história com a gente”, incentiva a irmã. “Eu consegui um emprego. Vou trabalhar na faxina
do Habib’s. Eles estão pegando gente. Basta ter documento. Eles estão dando oportunidade.
Quem quiser, pode falar comigo”. No final da fala, na contramão do seu rosto, que esboçava
sorriso, olhares de estranheza se entrecruzaram repletos de cumplicidade entre os presentes,
silêncio de morte, vistas que ganham o chão, o teto, os lados. A religiosa, desconcertada, mira
os rostos ali e rompe o silêncio: “Que notícia boa. Procurem por ela para que saibam mais”. E
insiste: “Alguém mais tem algo para partilhar”. Neste ponto, com o bloco de notas em mão
ganhando pró-memórias dos detalhes, um senhor vira, encara e dispara: “lá vem, lá vai querer
tirar foto...”. Antes de qualquer outro mal-estar, respondo: “Não. Isso não acontecerá”. O
diálogo breve é interrompido por um jovem senhor que levanta a mão querendo partilhar algo
com os presentes. Sua fala, desconexa boa parte das vezes, clama por ajuda junto a prefeitura.
Conta o senhor, que havia procurado a prefeitura já um par de vezes em busca de fazer seu
135

cadastro para conseguir uma vaga de emprego; a vaga que fosse. Mas, ao encostar o umbigo
no balcão, uma pergunta o levava a dez casas atrás no jogo: “qual o seu endereço?”.
Revoltado, o morador em situação de rua avança: “Falam que vão dar emprego para a gente,
mas pedem endereço? Sabem que a gente mora na rua. Então não basta ter documento. Se
você não tem um CEP, não tem nada. A gente está sendo enganado”. Irmã Lourdes pede para
que ele procure depois a secretaria para ver no que é possível ajudar, convida todos para rezar
um Pai Nosso e uma Ave Maria e anuncia que a distribuição das roupas já começaria. Ao
pedir que os primeiros quatro a acompanhasse, uma briga se instaura. Dois homens
disputavam, na bronca e na marra, a ordem de chegada. A queda de braço, mesmo com a
senha em mão, com o terceiro e o quarto lugares na distribuição, evidenciava que a hierarquia
da chegada representava mais de meio caminho na possibilidade de pegar as melhores roupas
e sapatos. Daí o borogodó todo, aquela ginga de corpo que põe em rota de colisão e, num triz,
desvia e volta a juntar, numa aproximação de quem deseja mesmo é se atracar. A encarada
tensa da freira, com as sobrancelhas em vê e com vincos na testa, faz natimorto o mal-
entendido.
Enquanto os quatro primeiros da fila eram guiados até o espaço da doação, Lourdes
disse:
Muitas das pessoas que estão aí são velhas conhecidas não só desta paróquia, mas de
outras que, assim como a gente, ajuda de algum modo. Não é só moradores em
situação de rua que vem conseguir doação. Tem gente que mora de aluguel, gente
que mora nos cortiços da região e que vem aqui conseguir algo para si. Então a gente
não atende apenas quem está nos arredores da Roosevelt, mas uma porção de gente
carente do centro e arredores.

População majoritariamente flutuante que, na fruição daquele espaço, dá-lhe sentido e


revela outros interditos. Suplantar suas necessidades, é possível intuir, pelo exposto até aqui,
pode implicar colocar por baixo do tapete, bem escondidinha, disfarçada, a sua fé ou a
ausência dela. O gesto-mecânico mostra o sacar dos bonés como formalidade, cumprir tabela.
A conversa de Bastião pouco antes também revelara que muitos ali eram evangélicos. Ele
cutuca, aponta e com olhos de canto, fala: “Você pensa o quê?... Muitos dos que tão aí são
tudo evangélico. Mas vai pedir algo em igreja evangélica para ver se eles dão alguma coisa.
Dão nada. Aí os cabras aparencem aí”. Diferenças camufladas.
Na forja destas caraminholas, a voz da irmã Lourdes traz o pensamento para aquele
momento num fórceps.

Olho vivo, eles tentam levar mais do que o permitido e isso não pode acontecer. As
sacolas e as mochilas que eles trazem tem de ficar longe do alcance das mãos; senão
você vai ver... você dá uma bobeada e eles te passam a perna. Não acredita nestas
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caras de bonzinhos não. Eles aprontam. Ah, tem mais uma coisa: se homem quiser
levar sapato, tem de pagar cinquenta centavos pelo par. Caso contrário, não tem para
todo mundo. Mulher não paga. Você vai pegando o que eles escolhem e vai
colocando em uma sacolinha.

Numa fração, lá estavam as primeiras pessoas diante das araras. Primeiro, uma
passada de olhos geral; depois, escarafuncho ligeiro. O primeiro pega uma camiseta pela
marca dizendo em interjeição: “Nossa, Reebok, que dá hora”. Contudo, quando pega o cabide
pela mão, rosto feito decepção. A camiseta era do São Paulo que teve a marca como
patrocinadora por seis anos até os idos de 2013. E o camarada, chapa corinthiano, bufando,
larga mão. “Aqui é Corinthia, se é doido, cara”, diz para si balbuciando enquanto com feição
de desdém devolve o cabide para a arara. Namoro rompido e, sebo nas canelas, para alcançar
um achado dos bons. Vira e revira e o que resta é um abadá de muitos carnavais. Se você
leitor, tem alguma dúvida de para onde vão os abadás; hoje, martelo, vem para cá peculiar
proliferação de cores, formatos, personalizações. O outro senhor, em busca de uma calça
arruína com a separação entre jeans, sarja e tecido social. E como numeração é uma questão
de sorte e provador não há, as cinturas das calças abraçam o pescoço do homem. Dizem que
se dá na circunferência do pescoço, a calça serve. Os outros dois, meio enrolados para
escolher, recebem uma bronca da freira: “vamos lá, andem logo porque ainda tem muita gente
para ser atendida”. Enquanto o calor minava deslizando suor pelo corpo todo, outro grupo é
chamado chega ao lugar da distribuição. Nesta leva, dois homens experimentam sapatos e um
deles, triste, confessa em tom de lamento para o colega ao lado que não tem cinquenta
centavos para dar pelo par. O colega estica o olho para o tênis que o homem usava e vê que
estava pela hora da morte, tomado por buracos na sola e uma lona deformada. A solidariedade
mesclada com um lugar de fala de quem tá podendo aparece no sacar de dois contos do bolso
enquanto estica o braço para dar o valor à irmã Lourdes: “Freira, pode cobrar dois pares
aqui”. O homem retribui com um sorriso e os dois saem juntos de lá, conversando, se
conhecendo. Outro senhor, bem envergonhado, cabelos e barba grisalhos e compridos, tenta
também achar um sapato; mas sem sucesso. Não era apenas o tamanho do seu pé, mas
também a folga que qualquer caçado precisaria ter para dar conta da deformação provocada
pela geografia das feridas que iam de sua canela até os pés. A vergonha, fica claro, não era
apenas timidez, mas receio do que sua enfermidade poderia provocar nos que ali estivessem.
Então o tira-põe de sapatos era feito dando as costas para as pessoas, em um cantinho do
lugar. A privacidade mequetrefe daquele lugar não lhe dava, obviamente, intimidade alguma.
A extimidade percebia, lhe solapava e lhe dava uma postura cada vez mais envergada; até que
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se deu por demovido de continuar tentando achar algo. Sem delongas, pega uma camisa e uma
calça e zarpa do lugar e, mais ainda, dos olhares estrangeiros sobre o seu corpo. A freira
chama de canto e diz: “Conversa ali com aqueles dois porque eles estão demorando muito.
Fala para acelerar”. Sem jeito, toco nas costas de um e peço para que abrevie sua escolha dada
a fila que ainda há. Em reposta, sua cabeça sinaliza um sim. Já o outro homem, vira, olha
firme e solta a desconcertante frase: “a gente não tem nada, nem mesmo a gente pode escolher
com calma?! Fala sério, cada uma”. E ali, qual escolha tinha de fato? Algumas roupas são
deixadas para doação lá sujas, sem lavar mesmo, na cara de pau. Outras peças têm o zíper
estourado. E há ainda aquelas rasgadas. São doados, pense só, sapatos femininos com salto
(alguns do tipo agulha). O que passa na cabeça destes abençoados doadores? Representam
doadores ou pessoas que simplesmente querem se livrar de algo? Doação ou livramento?
Antes que qualquer resposta pudesse ser problematizada na cabeça, outro grupo chega ao
local. Desta vez, são as mulheres, as quatro: uma mãe e duas filhas e a senhora, a recém-
contratada pela rede de fast food Habib’s. Muito embora tivesse selecionado com carinho as
roupas para elas, nada havia agradado. No caso delas, a freira permitiu que a mãe e as duas
filhas experimentassem as mudas de roupa no banheiro da paróquia. Duas abasteceram-se de
roupas bem mais da conta porque saíram com algumas camadas extras de panos, ligeiras e
antes que fosse possível dizer qualquer coisa. Outra permaneceu no lugar porque nada servira.
Assim como a senhora do Habib’s, a jovem era gorda. A única roupa para mulher obesa que
havia era uma blusa de manga comprida e uma calça, ambos do mesmo tecido (bem grosso).
O conjunto, debaixo daqueles trinta e tantos graus, foi dado à senhora. Desde o pensamento
alto da freira enquanto procurava algo para gente gorda e a mingua de opções ali constatadas,
expõe-se uma ferida: a margem da margem. A mulher, a mulher-pobre, a mulher-pobre-negra,
a mulher-pobre-negra-gorda. E de modo tangenciável, diante dos olhos, lá estava a negação
da diferença. E, por falar da borda da borda, noutro dia de doação, apenas uma mulher
apareceu, mas tratou logo de dizer no cadastro que não era mulher. Que não era aquele nome
do RG. Pediu para ser tratada como homem, homem trans, que precisava de um top para
pressionar os seios; e, antes de qualquer reação dos presentes, na tentativa de intimidar,
emenda, dispara: “Sou recém-saído da cadeia. Fiquei lá por 16 anos”. A irmã Lourdes, em
caráter de exceção, trata prontamente de levantar a porta do bazar e faz uma busca por um top.
Ao entrega-lo, o homem deixa o espaço. A freira sussurra:

vira e mexe aparece gente assim. O que ela fez para ficar 16 anos na cadeia? Coisa
boa não foi. Muitas vezes tem gente que vem aqui, na verdade, não para pegar
roupa, mas para aliciar gente para o tráfico. Aí o pessoal acaba fazendo de um tudo
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por qualquer dois, dez reais. Porque entre aqueles que vem aqui, tem muita gente
drogada. Qualquer dinheiro na mão deles vira droga. Parece não ter fim.

Muitos afetos foram acionados naquelas tardes. Sensações, da mais diversa ordem,
fora transversal àquela pesquisa de campo qualitativa que, de uma hora para outra, tornou-se
observação participante, pura sinestesia. Lá estavam não apenas rostos, corpos,
personalidades, espertezas, roupas, calçados, araras, a fachada da lateral da igreja. Estavam
também o cheiro de corpo (sim, o cecê), o mijo, o cocô, o chulé, o odor do álcool, o sovaco
vencido, a naftalina, o bolor, as tripas feito nó na mistura desse bocado de coisas. Estava lá o
rosto, em esforço para ser impassível de transparecer tais sensações, na empreitada de não dar
pistas do que acontecia fisicamente por dentro, para não fazer com que aquelas pessoas se
sentissem ainda piores. Estava lá a culpa pelo estômago revirado, pelo receio de pegar piolho.
Estava lá o som da fala das pessoas misturadas à sonoplastia dos carros, das motos, dos
ônibus que, apressada e ininterruptamente, percorrem aquele trecho da Consolação. Estavam
o vento tocando a pele e o sol beliscando o rosto e o que mais estivesse descoberto. Estavam
lá a feição já instaurada por aquelas pessoas e um carinho já brotado pela freira dada sua
generosa acolhida. Estava lá, batendo forte nos miolos, o sentimento de impotência.
Impotência não restrita à figura pesquisadora, mas à freira que, em pouco mais de nove anos,
lamenta ter conseguido tirar, de fato, das ruas apenas duas pessoas. Formada também em
Assistência Social sabe que o assistencialismo dali ameniza com prazo de validade algumas
questões, mas dificilmente muda de fato a vida de uma pessoa. Com feição triste, ao final de
uma das distribuições, partilhou que tem seu coração apertado. Já pedira à Nossa Senhora da
Consolação o poder de conseguir saber quando uma pessoa lhe fala pelo coração ou quando
inventa história para tentar ludibriá-la. “Dói muito ser enganada”. Mesmo com a ajuda de uma
psicóloga, o coração acaba endurecendo, desabafa. Naquele dia, na volta para casa, o rádio em
uma coincidência (sabe-se lá) toca uma espécie de música-resposta à freira, Há tempos, do
grupo de pop rock nacional Legião Urbana, de 1989: “E há tempos nem os santos têm ao
certo a medida da maldade”.

4.4 “Não sei o que fazer comigo”

Ao final de uma tarde de labuta voluntária, o pároco da Nossa Senhora da Consolação


dera a notícia de que estava disposto a conversar e a ajudar no estudo, na medida do possível,
com os seus oito anos à frente daquela congregação. O hiato entre o recebimento da notícia de
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que naquele dia haveria a entrevista com o padre e a realização entrevista de fato permitiu que
muito fosse digerido no imaginário sobre aquela (mais uma) tarde junto aos moradores em
situação de rua. Mas, principalmente (e é o que a gente traz aqui), o chá de cadeira – que não
foi proposital porque o padre estava em atendimento a fiéis – abriu possibilidade de notar
outras dinâmicas no interior daquele lugar, mais especificamente, o interior da secretaria da
igreja.
De uma cadeira, era possível observar o comércio da fé. Sempre de passagem por
aquela secretaria-corredor, que conectava igreja-bazar-local de doação, as vistas ainda não
tinham alcançado aquela sacro-esfera da cultura e sociedade de consumo, expressões que
desde meados dos anos 1960 vão sendo cunhadas e que se ocupam de um dos fenômenos-
chave de leitura de realidade; ao menos na visão de autores como Baudrillard, McCraken,
Slater, Lipovetsky, Bauman, Miller, Douglas e Isherwood que dão duro entre descrever,
denunciar, problematizar e refletir certos aspectos decorrentes desta realidade. Realidade na
qual os trecos, os troços e as coisas – para usar expressões caras a Miller – revelam muito de
nossa humanidade e de sistemas hierárquicos e de significação, que colocam nas entrelinhas
as escalas valorativas das sociedades. Ininterrupto sistema no qual, desde uma realidade
moderno-industrial-capitalista (só para estabelecer um recorte), a gente vai significando as
coisas e as coisas vão nos significando. O que é consumido e o modo como é consumido, para
boa parte destes autores, tratam de narrar o mundo vivido. E ai de quem não possa – ou por
vontade própria ou por motivo de força maior – se engajar devidamente nesta engrenagem da
sociedade também batizada de sociedade de consumidores. Consumidores falhos. E, como
uma espécie de cristalização desta cultura e sociedade de consumo lá estavam as bíblias, os
terços multicoloridos; as imagens (de gesso, de madeira, de resina, grandes, médias e
pequenas) de santos; também estavam os santinhos, aqueles panfletos com imagem de santos
e oração para fazer pedidos que, ao final, lá no rodapé do papelzinho, convocam – por assim
dizer – o aflito a imprimir e distribuir (ao menos) um milheiro pela graça alcançada, ajudando,
quem sabe, a tornar o tal santo mais pop e a tornar ininterrupto o ciclo (de consumo, de fé, de
pedidos...). Adornos. Camadas e camadas de significados que vão se adensando aos sujeitos.
Indumentárias de pessoas de fé. Indumentárias constitutivas daquela tessitura religiosa.
Processos comunicativos de quem é mediado pelas coisas (e quem não é?). Mas as prateleiras
e a vitrine do balcão em formato “L” e de madeira escura expondo os adereços e escondendo
o estoque não era a única forma de adquirir os produtos. Ao alto, em cima da escrivaninha e
da cabeça do atendente, estava um suporte com uma televisão plugada na Rede Vida, canal
aberto, comercial e nacional que se autodenomina como o canal da família. Entre os variados
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produtos culturais voltados ao entretenimento e oferecidos à família católica brasileira por


este veículo, naquele momento, o programa exibido era um de televendas, no qual os
apetrechos mostrados recebiam o halo das pessoas que os ostentavam (ou parte dessas pessoas
davam conta disso como pescoço-modelo, mão-modelo, punho-modelo). A narração, os
comentários proferidos sobre cada produto, sobre cada preço e cada condição de pagamento
davam o tom de oportunidade, de negócio da China, de algo valoroso, grandioso, imperdível.
Naquela profusão de imagens, a cristalização – quer goste ou não – de uma faceta da
sociedade de consumidores; mediada, midiatizada, capilarizada.
A dor na coluna por ficar muito tempo na mesma posição leva o corpo e as ideias para
dar um rolê pela igreja e, na volta à secretaria, lá estava, em pé, o padre à espera. Fisionomia
tranquila, aperto forte de mão, olho no olho e o convite para entrar em uma das três salas da
secretaria ao mesmo tempo em que uma das mãos indicava a direção e o corpo cedia
passagem. A sala, pequenininha, separava os corpos com uma escrivaninha. José Roberto
(nome real), cordialmente, permitiu a gravação do áudio da entrevista e durante a conversa,
despachado, não se fez corado. O pároco de 43 anos, à frente da Consolação há oito, partilha,
de partida, a sua percepção de que a Roosevelt mescla desde moradores antigos que estão na
região há 30, 40, 50 anos, aos flutuantes como os skatistas, passando pelos discretos recém-
chegados ao pedaço, à praça. O próprio Sr. Renato, exemplifica, é barbeiro manjado que há
50 anos mora no bairro e tem muitas histórias que gosta de partilhar para quem se achegar. Os
moradores mais novos, expõe, não querem contato com ninguém, é aquele tipo de pessoa
mais individualista, referindo-se a quem como diz, prefere “fazer o básico”, ir e voltar do
escritório, ir para a academia, caminhar na praça com o seu cachorro, fazer, enfim, as suas
coisas sem ser incomodado, sem ter contato com ninguém.

Então, [esta] é uma realidade que encontramos muito aqui no centro. Mas ao mesmo
tempo, você encontra muitos skatistas que vem de diversas partes de São Paulo.
Convidados pelos amigos, pessoas de Itapecerica da serra, de Taboão da Serra, nós
temos pessoas que vêm lá de São Miguel Paulista, entendeu... da Penha, de vários
lugares que vem para cá por causa do skate. Só que vem para o skate, mas vem com
o intuito de fumar a sua maconha, trocar um papelote com um outro, então
infelizmente vira uma rotina, porque assim... Por mais que as pessoas falem...
‘Ahhh... maconha é inofensiva’, mas é a porta de abertura para outras drogas,
entendeu. Se você passar à tarde ou à noite aqui, você vai ver que muitas são pessoas
de classe média, média alta, que estão sentadas na escadaria, mas que já estão
ficando degradados até no seu modo de se vestir, porque da maconha passou para a
cocaína, da cocaína para a pedra do crack e fumando debaixo do nariz da polícia, do
guarda civil ou da PM.
141

A inoperância dos policiais é colocada pelo padre como uma decorrência de uma
sociedade de espetáculo que, ao menor titubear, põe em circulação cenas gravadas e as
partilham, em tempo ímpar, via sites de redes sociais afora. Daí, justifica, a falta de
abordagem policial para pôr fim ao consumo de entorpecentes. A fala, carregada nas tintas,
sugere o desejo de extirpar esse jovem skatista dos arredores. Esses jovens, na percepção do
vigário, não respeitam liberdade alheia, de ir e vir, pois largam skates pelo caminho: “uma
senhora de 90 anos na rampa (...) que está andando com o neto, ela não consegue desviar. Nós
tivemos pessoas que deixaram de frequentar a igreja com medo dos skatistas”.
Nas palavras do Padre, sob um tom de discurso de autoridade, “[os skatistas] não têm
respeito, eles não têm limites (...). Eles veem o mundo como deles, então eles sobem nas
pilastras, eles quebram, o corrimão das escadas (...), quebraram todos os bancos da praça”.
Tudo é usado como pista de skate. Para José Roberto, a praça Roosevelt devia ter sido
pensada e concebida como um espaço familiar, que tivesse uma área reservada só para os
skatistas, e que tivesse a área reservada para os idosos e para as crianças. Cada um no seu
quadrado.

É igual esse playground, que era para ser um playground ao lado da igreja, na
descida da rampa. Virou lugar de prostituição, virou lugar de drogas, lugar de
moradia de dormir de moradores de rua. Então assim... Pessoas que vem ali e
abordam você. Já teve dia que eu tive que pedir para o segurança ir até o até o outro
lado da praça porque tinha um homem deitado na calçada, no meio fio, vendo as
mulheres passar de saia, e as mulheres ficam sem graça (...) Fora os assaltos, porque
tem muito assalto nesta região, porque muitos que vem lá da rua Santo Antônio, ali
tem muito cortiço, muitos menininhos que vem com bicicleta, você esta
conversando, por exemplo, eu não aconselho ninguém a sair da paróquia com o
próprio celular no ouvido (...) Aqui em frente da igreja vejo quando eles combinam
o assalto.

Para além dos roubos, outro assombro são os teatros. Trata-se de teatros longe de
serem convencionais ou tradicionais. Na acepção do Padre, convencional ou tradicional
estaria dentro de padrões sociais em que uma criança de seis anos a um idoso de oitenta
pudessem ver. Contudo, nas peças em cartaz, ganham cena o nudismo, o sexo no palco,
tramas que são exibidas depois da meia noite. O pároco reconhece que ali se vive uma
realidade cultural diferente. Margeada por distintos atrativos, como alguns botecos, a área da
Roosevelt, sobretudo nos últimos cinco anos, com a sua reinauguração, tornou-se, nas suas
palavras,

área totalmente de guerra, porque por exemplo, várias caminhadas, várias marchas,
vários protestos vêm e terminam aqui (...) Eles não se preocupam com as
imediações. Nestas imediações da Praça Roosevelt, temos pessoas de oitenta,
142

noventa anos que estão em cima de uma cama, estão em depressão, estão numa
cadeira de rodas, sob a responsabilidade de um cuidador que nestas situações não
consegue sair, dada a violência.

Para fazer frente a esta realidade, José Roberto relata que é necessário unir forças. As
forças reunidas a que se refere tem a ver com a recente parceria estabelecida com a igreja
presbiteriana, que no período de Carnaval, por determinação de seu reverendo, Claudinei,
fechou as portas durante todo o período do Carnaval.

Porque todo carnaval que tem, o povo não tem noção, eles não estão nem ai, vão
beber, vão curtir, só que impede o ir e vir, [fecham] (...) a praça, [colocam] (...)
placas, ninguém podia passar na Rua da Consolação, não podia passar pela rua
Augusta, só que eles esquecem... E os cadeirantes? E os idosos de 80 e 90 anos que
não tem agilidade para passar no meio de uma turma que está usando drogas? Então
é difícil a realidade da Praça Roosevelt nestes últimos anos. Depois da inauguração,
se tornou algo irremediável.

Entre uma colocação e outra, comentou sobre um grupo local que tem defendido a
ideia de se fechar a praça com grades. E, demonstrando preocupação em esclarecer, disparou
que não é a favor de uma iniciativa desta magnitude. E, já com um discurso mais arrefecido,
defende que deve haver lugar para todo mundo: “tem lugar para os skatistas, tem lugar para os
skinheads, tem lugar para os punks, tem lugar para todos os grupos”.
A própria igreja católica, rememora, tem sofrido rejeição. No domingo de ramos de
2017, na saída da procissão, perto de 9h da manhã, ministros e padre fizeram por cerca de
quinze minutos um início de benção ao megafone. Em pouco tempo, a polícia foi chamada
para repreendê-los. Estupefato, questiona: Porque ninguém corrige os protestos que chegam
em grande número na praça? Porque não se faz algo com os Skatistas que vem em grande
número para a Praça? E, finaliza, “agora, para cima de um grupo menor, com 20 pessoas no
máximo, que foi o tanto de pessoas que começaram a procissão, questionam o que a igreja
está fazendo?”, diz escandalizado.
Outro momento de repreensão pela comunidade do entorno ocorreu em 2016, quando
a comunidade católica tentou realizar uma missa pela paz no bairro. Na praça, reunidas, com a
devida autorização da prefeitura, estavam igrejas do centro paulistano – como a São Luís, a
Santa Cecília, a Santa Terezinha, a Divino Espírito Santo. A missa marcada para as 10h da
manhã de um sábado acontecera no centro da Praça, com equipe contratada para o som,
montagem do altar, cadeiras, espaços para o pessoal de idade sentar. Pouco antes de começar
a missa, uma senhora disse para o padre: “O senhor não pode [realizar a missa]. Isso está me
incomodando, isso vai me incomodar, eu moro naquele prédio, naquele apartamento ali, esse
143

barulho está me incomodando”. Ao contar este caso, o Padre relembra que para a Marcha das
vadias, por exemplo, que faz coisas “horrendas”, que

fere muitas vezes o olhar da pessoa que tem muita sensibilidade, (...) ela [a senhora
que reclamou da missa ao ar livre no seio da praça] não consegue ir para falar com
essas pessoas porque essas pessoas já vão para agredir (...) E nós [da igreja] vamos
tentando conciliar, mas não é fácil. É sempre um desafio muito grande. A Roosevelt
é um desafio muito grande.

Em meio às lembranças do desafio que para ele representa estar localizado na


Roosevelt, vem à tona os vitrais quebrados da igreja, há cerca de quatro ou cinco anos, à
época em que a população da Cracolandia fora pulverizada pela cidade. Muitos dos drogados,
relembra, subiam nas laterais da paróquia e quebravam vitrais para entrar na igreja. Muitos
machucaram-se porque pensava que a igreja, vista de fora, era baixa. Houve um que

ficou pendurado no vitral. O segurança escutou o barulho do vitral caindo na igreja,


correu lá no fundo e quando viu o cara estava pendurado. Ai, no tempo que ele
chamou a polícia, o cara estava tão drogado e alucinado, que pulou lá pelo telhado.
Não sei como ele conseguiu, porque ninguém consegue subir sem uma escada de
bombeiro viu. Ele estava tão drogado, que ele conseguiu subir e descer. Desceu e
ainda roubou cano de cobre. [Tive de torcar], os canos; eles são tudo de plástico
hoje, porque roubavam tudo (...) Não é todo mundo que tem habilidade de lidar com
um espaço como este. Praça Roosevelt, ame-a ou deixe-a.

Com esta colocação sobre a Praça, ou você a ama, ou você a deixa, o vigário deixa
escapar relativo carinho pelo lugar, dado a aspectos que tem em alta conta e que o desafia
também: “Ou você ama demais por causa do jeito e tudo o que ela tem em volta, você tem
acesso a tudo, acesso a Augusta, você tem acesso a Caio Prado, você tem acesso à Nestor
Pestana, você tem acesso à Guimaraes Rosa, um meio cultural eclético muito grande, mas
desafiador”. O maior desafio notado não está relacionado aos projetos sociais quem envolvem
o bazar, o atendimento a famílias carentes, moradores dos cortiços, pessoas em situação de
rua, ou o serviço de escuta realizado por voluntários nas salas da pequena secretaria, ou o
angariamento de fundos para manutenção de tudo isso e da própria igreja. O grande desafio
notado veio nas entrelinhas, quando o padre revelou a dificuldade que enfrenta por não tirar
da fila da comunhão, como desejam algumas carolas (as idosas principalmente), os gays,
pessoas amasiadas. Ou por não fechar as portas da igreja, as segundas, para as putas e
travestis, que veem da Rego Freitas, direto para o velário para fazer suas preces. “Quem sou
eu para tirar estas pessoas da fila? Quem não está em pecado?”, pergunta-se, provocando e
justificando sua postura.
144

Quem é José Roberto? Menino pobre da zona Leste, já teve noiva e trampou em
empresa. Tornou-se seminarista depois de uma decepção amorosa. No seminário, sem poder
trabalhar, tocou seus joelhos no chão para pedir a Deus que cuidasse dos seus; principalmente
de sua mãe, mulher de fé que de certa forma sonhara com um filho padre, mas que no
enfrentamento dos contratempos da pobreza, deixar de contar com uma renda em casa
significava dureza. Homem que olha desconfiado para os skatistas que vem de longe para a
praça, que embora ressabiado e com alguns paradoxos na fala julga que a praça deveria
acolher todos, até mesmo os skinheads, mas com uma parte determinada para cada um.
Homem que compra briga com as senhorinhas por não tirar da igreja o arco-íris e outras
paletas, mas que é o primeiro a defendê-las em meio ao vuco-vuco do coração da praça
tomado por marchas. E tudo isso leva a memória para uma música que revela a infixadez de
quem a gente é; leva a memória para a desgastante missão que é a tentativa de estabelecer
uma identidade, como possível fosse abrir mão da complexidade aí implicada. O grupo
paulistano de pop rock Vespas Mandarinas catalisa esta complexidade e canta Não sei o que
fazer comigo:

Já tive que ir a missa obrigado / Já tentei ser um homem casado / Já aprendi a fingir
meu sorriso / Já fui sincero e já tive juízo / Já troquei de lugar minha cama / Já fiz
comédia, eu já fiz drama / Já ouvi cada voz que me chama / Eu já fui bom e já tive
má fama / Já fui ético, antipático, fui poético, fui fanático / Fui apático, fui
metódico, sem vergonha, fui caótico / Eu já li Paulo Coelho, eu já escutei tudo que
era conselho / Eu já preguei o evangelho / Cheguei a achar que eu era velho / Já fiz
tanta coisa que nem me lembro / Do que eu era contra ou fui a favor / O que me
dava prazer, hoje só me dá dor / Nunca aprendi o que é o amor / E ouvi uma voz,
que diz: "não há razão / Você sempre mudando, já não muda mais" / E já que estou
cada vez mais igual / Não sei o que fazer comigo / Já chorei de tanta mágoa / Já fiz
tempestade em copo d'água / Já tentei a sorte na gringa, já aprendi que não tenho
ginga / Eu já votei em tucano, já fui ovo-lacto-vegetariano / Insano, já fui santo e
profano / Fiz na tua frente e por baixo dos pano / Já estudei teologia e não creio mais
naquilo em que cria / Já sofri de claustrofobia, de teimosia e cleptomania / Já provei,
já fumei, já tomei, já deixei / Assinei, viajei, já peguei / Já sofri, já iludi, já fugi, já
assumi, / Fui e voltei, afirmei e menti / E com toda essa falsidade / Minhas mentiras
já são verdades / Já tive de tudo o que queria, / E já me contentei com mixaria / E
ouvi uma voz, que diz: "não há razão / Você sempre mudando, já não muda mais" E
já que estou cada vez mais igual / Não sei o que fazer comigo / Já fui em cana, já
tive grana / Passei rasteira em muito bacana / Opinei e me equivoquei / Nunca
assumi pra ninguém que errei / Sem diploma, nem salário, já fui sócio majoritário /
Já escrevi tanto nome no braço / Eu já preenchi tudo que era espaço / Fui psicólogo,
fui astrólogo, já fui leigo, fui enólogo / Fui alcoólatra, fui atleta / Fui obeso e já fiz
dieta / Já cuspi e mandei pro caralho / O lugar onde hoje eu trabalho / E agora eu só
me distraio / Fazendo versão de rock Uruguaio / E ouvi uma voz, que diz: "não há
razão / Você sempre mudando, já não muda mais" / E já que estou cada vez mais
igual / Não sei o que fazer comigo / E ouvi uma voz, que diz: "não há razão / Você
sempre mudando, já não muda mais" / E já que estou cada vez mais igual / Não sei o
que fazer comigo.
145

5 “SÃOPAULEANDO”: PROSA, VERSO, MÚSICA E ZINE

25 de janeiro, feriado, manhã de sol. Naquele 464º aniversário da cidade de São Paulo
(Figura 69), foram dados os primeiros passos na Roosevelt, rotina perdurada por praticamente
todas as quartas-feiras até o início de maio. O primeiro contato, emblemático, revela variados
compassos. A poucos metros da escadaria que dá para a Martinho Prado, de frente para um
dos poucos canteiros, sobre o chão firme da praça, desperta, com sutilezas de movimentos,
uma mulher. Ela revela, de uma manta improvisada, mãos vagarosas e circularmente
dançantes, ora orquestrando, ora riscando o ar. Mão esticada e belas unhas pretas tocam
gentilmente e sem pressa a folhagem diante de si, feito gesto de contemplação. O ritmo
preguiçoso leva mais de hora para colocá-la de pé. Em rodopio vagaroso, confere o entorno,
dando-se conta, parece, de onde está. Sem delongas, ajeita a roupa, pendura a bolsa no ombro
e deixa a praça entre as árvores da rampa da Nossa Senhora da Consolação. Alguns passos
dali, outra jovem, de ar sereno, também desapressada, tem sua bolsa como travesseiro.
Diferentemente da outra jovem, ao acordar, coloca-se sentada ao primeiro degrau, passando,
devagar, os olhos pelo comércio-morto da Martinho Prado e pelas gentes disputando e
revezando os adereços do totem de exercícios da praça. Mais de hora depois, degraus abaixo,
toma a direita, ganha a Augusta. Antes, passando pela beira da Nestor Pestana, esbarra com
uma multidão de corredores, recém-chegada do final da competição organizada pela marca
Adidas (Figura 70). Alguns dos participantes daquele evento, em suas respectivas e
chamativas indumentárias esportivas, partem para a Roosevelt e contrastam com os meninos
descalços, sem camisa e de bermuda jeans empoleirados nas barras da minúscula estação de
ginástica fazendo alongamentos e exercícios de força, sustentando, cada qual, o próprio corpo.
Concomitantemente, faceiros cachorros (Figura 71) acompanhados de seus donos revelam
abanos de rabo, truques, piruetas e corre-corre na caça a bolinhas, gravetos e toda sorte de
badulaques. No parco gramado do miolo da praça, os pets transformam-se em espécie de
passatempo para os frequentadores do Via Roosevelt Café, lugar de onde é possível avistar,
no horizonte, adultos ensinando crianças – algumas de chupeta na boca – a darem as primeiras
manobras no skate. Observar essas tessituras e entrelaçamentos de fruição daquele riscado de
espaço urbano faz surgir a curiosidade da história de cada frequentador e de cada um com
aquele lugar. E esta é a motivação para todas as outras visitas, para todo bate-papo. Em cada
pessoa, um mundo. Em cada uma, muitas Roosevelts. A partilha desses aprendizados da rua
toma espaço aqui, trazendo conversas, sem amarras de roteiros, com aqueles que, como
população flutuante da Roosevelt, colocam em circulação narrativas sobre a praça. Neste
146

sentido, o capítulo encontra-se estruturado nos seguintes tópicos: (a) Evolução: um sempre
olhando pelo outro, (b) Na labuta, pouca conversa e muita luta (c) Olhe para as suas sobras,
transforme-as em luz, (d) De um tudo para sobreviver, (e) A vida é poesia telúrica, (f) Claves,
soldas e quitutes, (g) Déjà vu: o ponto de virada e (h) Ordinária, Roosevelt, ordinária. A
sequência de cada subtítulo reflete a ordem com que as pessoas foram adentrando ao meu
mundo de pesquisadora. Para preservar identidades, tal qual como noutras partes desta
empreitada, os nomes reais das pessoas não são revelados. No lugar, nomes fictícios, batismo
estratégico nesta etapa para esquivo da frieza doutras nomenclaturas (sujeito 1, 2, 3...).

Figura 69: Feriado na Praça, o primeiro dia de campo

Fonte: A autora

Figura 70: Competição da Adidas no entorno da Praça

Fonte: A autora
147

Figura 71: Cachorrada faceira

Fonte: A autora

5.1 Evolução: Um sempre olhando pelo outro

Era o início de uma tarde de quarta-feira e a gravação de um comercial para uma


marca de estilo streetwear estava ocupando alguns pontos da praça (Figura 72), como as
escadarias que antecedem a pista de skate que dá para a Consolação e a beirada da praça que
dá para a Rua João Guimarães Rosa. Era deste canto da praça que observava tudo. Modelos
maquiados, iluminação ajustada, equipamentos montados e claquete frenética evidenciavam,
na crista da onda, a moda urbana, inspirada nas ruas, nas tribos das grandes cidades, entre as
quais está a cena do skate. Paradoxal soava: de um lado, um estilo pronto-para-o-consumo
milimetricamente pensado para remeter a roupas usadas no dia a dia, propositadamente dando
pinta de desgaste, de muito uso, de despretensão, de despojado. De outro lado – e ao meu lado
–, jovens skatistas que, dando um tempo nas manobras; curiosos, assim como eu, estavam de
olho, acompanhando aquele movimento todo.

Figura 72: Comercial de Streetwear

Fonte: A autora
148

Assim, a conversa foi puxada com Marcos, para quem a praça é “um lugar perfeito
para ser adolescente”, para “dar um rolê”. Trata-se de um “pico bem mais forte no skate”, no
“skate de rua”, cuja demanda é um solo liso, bancos e bordas “pra mandar as manobras”. Sem
camisa, pingando suor e com a fala ofegante, ressalta, ainda, toda a “parte cultural” oferecida
pelos teatros da Roosevelt e a pizza, que pode ser comprada na praça mesmo, entre um “rolê”
e outro, por apenas dez reais. Dos seus 22 anos, 11 foram vividos na Roosevelt, onde nasceu e
pôde frequentar o Caetano de Campos; a outra metade foi vivida em Ubatuba, onde trabalha
com gastronomia, como “chef” de um restaurante. De passagem por ali, em férias, afirma que
não poderia perder a oportunidade de mais uma vez estar naquele “pico”, que chama de
“melhor lugar”, de “casa”. Afirma que a cena do esporte mais forte na Roosevelt é a do skate,
pois a praça, antiga, “é considerada tipo como se fosse o centro histórico do skate” e sua fama
entre os skatistas se alargou, explica, há três anos, por conta da reinauguração. A praça é
“famosa”, destaca, pelo “chão liso”. E rememora: “E teve campeonatos grandes (...), com
grandes nomes do skate, que reuniu cada vez mais a galera e aumentou muito mais a cena do
skate” na Roosevelt. “Teve até matéria de jornal” na inauguração, recorda.
Segundo Marcos, o skate é uma “família”, “é uma união”, “é como se fosse um ensino
que você não vai aprender em outro lugar”. E, acrescenta, “as pessoas ensinam a maneira
técnica de mandar cada manobra, te apresentam novos amigos de várias cidades, te
apresentam novas pistas”. Além da evolução, que, na gíria do esporte, representa a
transformação ao longo do tempo das manobras que os skatistas são capazes de fazer, há
também o fato de um estar sempre olhando pelo outro. “As peças vão ficando velhas, (...) são
caras, o tênis gasta, mas dependendo daqueles skatistas que também têm o apoio ou o
patrocínio de alguma loja (...), eles até dão de graça pra criançada (...). [E] isso também
incentiva muito a cena do skate aqui em São Paulo”. Além disso, reflete, a criança “já sai de
outro mundo que podia ser pior, sabe?”.
Para falar desse mundo “que podia ser pior”, explica que os skatistas, onde quer que
estejam, levam consigo a identidade “família”. Para exemplificar, recorda que os skatistas não
estão apenas na Roosevelt, mas também em outros picos igualmente respeitados, como é o
caso do Vale do Anhangabaú. Entre seus ídolos, está o Marcelo Amador, o Formiga, “um cara
que é considerado”, que beirou “outro mundo”, mas superou todas as dificuldades nas
manobras do skate. De menino de rua aos 13 anos para skatista premiado em competição,
continua muito presente, ensinando a meninada pelas ruas da capital, olhando para os seus
pares, tal qual uma “família”.
149

Entre suas recordações, muito embora predomine a sensação de que a Roosevelt é “um
lugar tipo livre pra todo mundo, é liberdade de expressão, várias culturas diferentes”, reside
em suas lembranças uma situação dura. O dia em que viu um policial da GCM (Guarda Civil
Metropolitana) agredindo uma menina. Não estavam agredindo “forte assim, mas não era o
certo de fazer”. Para ele, qualquer abordagem deste tipo tinha de ser feita por uma mulher
para assegurar a garota abordada. Naquele dia, lembra, “os skatistas até fizeram uma
rebelião”. Todos começaram a jogar skate e a xingar. Ao final, antes de retomar suas
manobras e deixar a gravação do comercial para trás, pondera: “Essa é uma lembrança triste,
mas, ao mesmo tempo, é boa pra saber como é a união do skate aqui. É o certo pelo certo,
sabe?”.

5.2 Na labuta, pouca conversa e muita luta

Percorrendo os arredores da Roosevelt, depois do cancelamento de uma conversa com


uma moradora, conheci o Maurício, que, desconfiado, bateria um papo caso não fosse
demorado. Há 22 anos trabalhando na Martinho Prado, o baiano da Chapada Diamantina
começou a vida em São Paulo como prestador de serviços e se tornou empreendedor ao
assumir a frente de um pequeno comércio de rua no momento em que seu proprietário, já
muito idoso e sem condições de trabalhar, lhe vende o negócio. Com a reforma da praça,
revela, o lugar “ficou bom” devido à organização, mas, por outro lado, “ficou ruim por causa
dos skatistas”, dado o barulho provocado pelo atrito das rodas do skate com o pavimento de
cimento daquele lugar. Há 15 anos, revela, o comércio rendia: “em questão de ganhar
dinheiro, era bem melhor”. Contudo, hoje, os assaltos aos motoristas, como os que acontecem
na descida do Minhocão, “dificultam muito”.
Entre as histórias vividas no entorno da praça, há uma que afirma ter mexido muito
com ele. É a história de um rapaz chamado Ricardo, artista que “tinha carreira”, “já tava
fazendo show e virou morador de rua” por ser alcoólatra. Com o olhar entristecido, revela que
o rapaz, hoje, encontra-se em uma casa de recuperação e que esta situação toda foi o que mais
o comoveu no decorrer destes anos: “Acompanhava ele, mas eu vim conhecer ele aqui, entendeu?
Mas, aí, como ele mandou a gente ver no site dele, a gente deu uma olhada e confirmou que era
aquilo mesmo que ele tava falando. Então, isso aí deixou a gente... deixou a marca na pessoa”.
Filosofando, provocado talvez pela história que acabara de relatar, Maurício se
questiona sobre o que é felicidade e reflete que “às vezes, o dinheiro também não é tudo”.
150

“Felicidade é mais do que dinheiro”, ratifica. “É você deitar com o pensamento livre, acordar
sem ter nenhuma preocupação. É nunca querer pisar nas pessoas, entendeu? (...) É não querer
lesar as pessoas, conviver com o próprio trabalho”.
E questionando-se sobre o que deseja para o Brasil, retoma sua própria história.
Quando chegou a São Paulo, recorda, “tinha duas bermudas, uma calça, e duas camisetas”. E
defende que, “trabalhando com dignidade”, é possível alcançar “tudo que você quer (...).
Então, minha história de vida foi bem difícil, mas eu nunca desisti”. Recorda que, chegando a
São Paulo, tinha parentes na cidade. Mas, como veio para trabalhar em construção, ficava em
alojamentos nas obras, batalhando dia após dia. Hoje, procura passar para o filho, que também
trabalha em sua loja, um pouco de como foi sua vida: “eu passo pra ele um pouco do que
aconteceu comigo, porque hoje ele vive numa glória, tem de tudo. E antigamente não era
desse jeito, era totalmente diferente”.
Hoje, com a crise política instaurada no Brasil, solidariza-se com aqueles que passam
dificuldade. Incrédulo, questiona o perverso jogo de palavras orquestrado nas manchetes que
usam a expressão “desvio” no lugar de “roubo”. E, deste jeito, de desvio em desvio, conta que
prontos-socorros e creches não saem do papel e que, provavelmente, os políticos só fazem o
que fazem porque não tem ideia do que seja uma dificuldade. Para ele, “só sabe da dificuldade
aquele que tá passando”. Olhando para a praça, em exercício de empatia, especula se uma
pessoa que está sentada ali, bem de frente, comeu naquele dia. E comenta que as pessoas só se
questionam sobre isso às vezes, quando elas próprias estão famintas ou já se encontraram
nesta condição um dia: “Se estiver com fome (...), vai lembrar. Mas, se estiver com uma
barriga cheia, não vai nem saber que a outra pessoa tá com fome. Ou, se ele passou por isso.
Se ele passou por isso, ele vai olhar pra aquela pessoa e vai falar: ‘será que aquela pessoa
almoçou hoje?’”
Esta prática da empatia parece rotina para Maurício. Para ele, se alguma pessoa diz
“ah, tô com fome”, dependendo de quem ouvir o lamento, vai mandar a pessoa trabalhar.
Sequer passa pela cabeça deles que oportunidades simplesmente não existem para certas
pessoas. E explica:

Às vezes você vê uma pessoa na rua aí... você olha pra pessoa: ‘por que aquele cara
forte não vai trabalhar?’ Uma pessoa chega numa empresa, fala assim: “eu tô
precisando de um emprego”. Você vem fazer sua ficha cadastral aqui, a pessoa vai
lá: “onde você mora?”, “ah, eu moro na praça (...) eu tô sem lugar pra morar”. Como
que eu vou te dar emprego desse jeito? Então, cada dia que passa, as portas fecham
pra aquela pessoa, e quem tá empregado não entende esse outro lado. É verdade ou
não é?
151

Como dono de comércio, também explica sua difícil condição de acolher estas pessoas
em situação de rua:

Tenho uma firma de prestação de serviços. Vai acontecer isso comigo também. A
pessoa chega aqui e fala assim “eu tô parado, e eu preciso de um emprego, mas eu
moro na rua”. Você acha que eu vou dar emprego pra uma pessoa assim? Eu não
vou dar. Então, cada dia que passa, as portas tão fechando mais praquelas pessoas,
entendeu? E as autoridades não vê esse lado, entendeu? Que a pessoa precisa de um
comprovante de endereço, precisa de um lugar digno pra sair daquele momento que
tá passando, entendeu? É difícil (...). Se você pensar os dois lados, você vai ver que
muita gente tá jogado não é porque a pessoa quer. É porque as portas vão
fechando, vai se fechando e, quando ele passa a morar na rua, as portas fechou total
pra ele, entendeu? (grifo nosso)

Para Maurício, quem mora na rua, a cada dia que passa, tem sua condição agravada. E
faz uma analogia para explicar o descaso com esta situação. Hipoteticamente, se na frente de
seu comércio um carro quebra, em pouco tempo aparece a CET (Companhia de Engenharia de
Tráfego) para guinchar, multar. Mas se surge um morador de rua, não aparecem agentes de
saúde preocupados com a condição daquele sujeito, interessados em tratar dele. E finaliza a
conversa alfinetando: “Deixa ele aí, entendeu? Porque ele não vai dar lucro nenhum pro
Estado. O que vai dar lucro é um carro, é um imóvel que tá ali com uma fachada que eles vão
multar (...). Então, fica difícil”.

5.3 Olhe para as suas sobras, transforme-as em luz

Depois do trabalho voluntário na Nossa Senhora da Consolação, uma mureta da praça,


perto do Via Roosevelt Café, tornou-se assento. Contudo, em pouco tempo, já estava sentada
no primeiro degrau da escada da Martinho Prado, atraída pelo som de um violão e pela voz
aveludada de um rapaz que cantava Jorge Ben Jor, Zélia Ducan, Tim Maia e Elvis Presley. A
dupla, durante o dia, perambula por vagões do metrô levando sua música por trocados e foi
para a praça naquela hora para fechar o dia partilhando melodias. Em um zástrás, mais e mais
pessoas se juntaram. O violão – já sem dono – perambulava de mão em mão, sem falar do
coro na base do improviso e daqueles que, despidos de timidez, já dançavam nos degraus. A
festa durou pouco. Policiais da GCM, do nada, pediram para que a garota que estava ao meu
lado e mais três meninos os acompanhasse. Ninguém entendeu o motivo. Os olhares se
trombavam incrédulos. Os jovens, envergonhados e sem entender o porquê, seguiram o
policial. Na escadaria, ninguém mais cantava. Ninguém mais à frente ou atrás. Ao lado,
152

apenas um jovem com expressão triste, desolada e com ar de interrogação. Permaneci ali,
sentada, sem a coragem de admitir que aqueles jovens talvez tenham sido intimidados por
aquela “autoridade” pelas suas roupas simples, chinelos nos pés, por conta de sua pele negra.
Cabisbaixa, fui surpreendida pelo Angelo, que oferecia o seu zine por um real. Zine é uma
possibilidade que se abre para artistas independentes comunicarem suas ideias, ideais e – no
caso de Angelo – de ganhar sem fazer mal a ninguém. Aquele zine, feito à mão, somado ao
sorriso sereno e franco do sujeito 3, iniciou outro viés de conversa naquele fim de tarde.
O rapaz, de 22 anos, explica que seu zine (Figura 73) representa uma resposta à
“comunicação violenta da sociedade”, que, via de regra, as pessoas acabam condicionando
suas necessidades “às exigências da sociedade”. Para ter um conforto – seja social ou
individual –, a alternativa é cada um procurar se conectar “à sua criança interior”, àquilo que
há de mais importante e essencial dentro da gente. Entre o que considera essencial e
importante, destaca o “amor”, a “compaixão” e a “retidão de caráter”. E, sem delongas,
explica: “Retidão de caráter tá relacionada à honra, né? E a honra tá relacionada à confiança,
né? Caráter é tudo aquilo que uma pessoa faz [no cotidiano], (...) o que ela pensa”. E continua,
dizendo que, quando se tem retidão de caráter, se faz tudo reto, se é confiável, é puro. E a
busca do ser humano deve estar centrada nesta pureza de consciência, de modo que “a nossa
alma, nosso coração, nossos sentimentos [devem] sempre serem puros e verdadeiros, porque
assim a gente reflete isso. O que tá dentro te explana pra fora e isso reflete nas pessoas, e as
pessoas refletem na gente, e assim a gente tem uma sociedade justa, uma humanidade
equilibrada”. Uma vez nesta direção, explica, o ser humano não se equilibraria no ódio, na
ambição, na ganância, na vaidade, mas se equilibraria no amor, “em todas as virtudes
elevadas que a gente carrega desde criança”.
Nem sempre pensou desse jeito. Produzir zines, fazendo-os a mão, ilustrando o texto
com desenhos, representa o afastamento de uma fase muito difícil de sua vida. “Tenho uma
história um pouco pesada”, “passei por um relacionamento abusivo”, adianta. Chegou a entrar
para o crime e, quando não sabia mais o que fazer com a sua vida, topa com um amigo poeta
e, sem titubear, abre toda a sua situação. O amigo marca um encontro no bairro em que mora,
na Zona Sul de São Paulo. No dia e hora marcados, encontra seu amigo e, de partida, recebe a
pergunta: “você tem alguma poesia?”. Em resposta, disse: “eu tenho o que eu sinto agora, no
momento”. O amigo-poeta retruca e o convida à ação: “então, escreve o que você sente”.
Naquele momento, Angelo escreveu tudo o que sentia, tudo pelo que estava passando.
Percebeu que aquilo não deixava de ser, também, de outras pessoas com as quais convivia no
seu dia a dia. Sua poesia, portanto, não falava dele, mas daqueles que também compunham
153

quem ele era. Nisto, dá-se conta de que o que sente não diz respeito apenas a ele, mas que
aquilo era, na verdade, um problema social. Desta história e experiência, surgiu o zine: “dessa
experiência ruim, eu tive ajuda desse amigo, que é o poeta Manuel, e ele também faz as
zines”. Para distribuir seus zines, passa a frequentar o centro da cidade de São Paulo,
procurando conversar com as pessoas e a apresentar seu trabalho, naquele momento, em sua
terceira edição.
A sua primeira poesia, alegra-se em lembrar, tem a preocupação de não “deixar que as
flores [‘o amor mais puro que a gente tem dentro da gente’] murchem”. O primeiro zine é
dedicado a ser “sincero consigo mesmo, ser transparente, ser puro consigo (...). Então, pra
você olhar pro outro, você primeiro deve olhar para si”. Tímido, leva um tempo para recitar o
seu primeiro poema, anunciando que é pesado, mas cede e declama: “olhe pra si, procure
olhar pra suas sombras, e clareia suas sobras, transforma suas sombras em luz”. Quando se
propôs a olhar para sua própria sujeira é que teve condições de limpá-la, pôde “vomitar tudo
aquilo” de ruim que estava dentro. E, explica, transformar em luz é sinônimo de “você estar
limpo”, preparado para deixar de ser um ser sem honra e sem rumo. Dali em diante, seu
compromisso, por meio da poesia, é manter-se reto, puro e verdadeiro. Isso porque acredita
que cada pensamento, cada fala e cada agir deve emanar amor. Se esta tríade – pensar, falar e
agir – não emana amor ou justiça, é melhor calar-se. “Se as suas palavras não forem melhor
que o seu silêncio, então prefira se manter em silêncio”.
O rapaz, hoje, reside no Recreio Privavera, em Itapecerica, e se criou no Capão
Redondo, lugar em que sua mãe e seu padrasto, ainda hoje, moram. Aos 22 anos, em sua
página do Facebook, aparece ao lado de colegas (meninas e meninos) que, com ele, integram
um grupo de hip-hop: é um grupo composto por “cinco elementos. Tem escritores, DJs, MCs,
grafiteiros e dançarinos”. Tanto pelas vias da poesia como do hip-hop, pergunta-se sempre: “é
possível amadurecer a mente sem endurecer o coração?” Para ele, amadurecer “é lidar com a
vida com amor. Porque ser duro é muito fácil, qualquer um pode ser duro”. E provoca: “Quem
é que tem coragem de abaixar o seu ego e (...) tem coragem de conversar com o irmão com
amor, sabe? Essa é a maior rebeldia. A maior rebeldia é o amor” (grifo nosso). Ser rebelde é
se comunicar amorosamente com as pessoas. Em busca de partilhar o máximo possível suas
ideias, história e poesia, divide-se. Às segundas, quartas e sextas, dedica-se ao centro de São
Paulo. Às terças e quintas, fica na Zonal Sul paulistana: “gosto de revezar, eu gosto que a
mensagem chegue não só às pessoas aqui no centro, mas eu gosto que cheguem aonde eu
moro também” (...) Pra transformar e me transformar também. Porque eu aprendo muito com
154

as pessoas na rua, sabe?” E continua: “Cada pessoa vem com uma história diferente (...) Cada
uma delas deixa uma parte delas comigo e eu deixo uma parte minha com elas”.
E explica que “todos somos um”, porque “pra alguém morar no prédio que tá aqui na
frente, teve um monte de pedreiro pra trabalhar pra construir. Mas, os pedreiros, pra
construírem o prédio, tiveram que ter as ferramentas e o cimento. Mas quem fez as
ferramentas? (...) O cimento?”. E justifica: “Não há nada que se faça só. A própria natureza é
assim, um elemento surge do outro elemento”. A natureza “tá em sincronia, por que a gente
seria diferente?” E defende que as pessoas, sendo individualistas, vão contra a lei da natureza.
Para tangenciar sua ideia, coloca: “Imagina se a natureza decidisse ter uma mente individual
como a gente? Ela não daria oxigênio, ela não daria alimento pra gente, porque ela pensaria só
nela como indivíduo”.
Angelo afirma dizer isso sem ser hipócrita, porque reconhece que há dias em que age
com seu ego. Reconhece que é errante, mas que está disposto a aprender com os seus erros.
Parece que, olhando para sua história, entende “que corajoso é aquele que erra, aquele que
olha pro seu erro e fala ‘agora é hora de mudar’”. E afirma que “se a gente começar a pensar
como uma mente universal, que tudo e todos estão conectados, ligados, relacionados,
diretamente ou indiretamente, aí sim a gente vai começar a viver num mundo melhor, num
mundo justo, num mundo verdadeiro”. E isso, complementa, não se trata de religião.

Figura 73: Zine Segredos Inconfessos

Fonte: A autora
155

5.4 De um tudo para sobreviver

Noutro dia, sentada em uma mureta mais próxima à Augusta, enquanto manuseava o
caderno de anotações de campo da pesquisa, fui surpreendida pelo Carlos, um jovem de 19
anos, que já se sentando ao meu lado, foi logo perguntando e esticando os olhos: o que você
tanto anota neste caderno? Respondi que tomava nota de algumas coisas e pessoas que
observava na praça, por conta de um trabalho que estava realizando. Ele disse: “entendi”. E
justificou ter decidido me perguntar, porque pouco antes eu o cumprimentara com um aceno
de cabeça. Para ele, aquele gesto foi muito educado. O rapaz vestia calça preta, usava
camiseta verde, calçava um tênis desgastado nas cores azul e amarelo da marca Mizzuno e
carregava, na mão esquerda, um skate de plástico muito acabado e tão pequeno que parecia
mais de criança. O fone branco apoiado no pescoço mostrava muito uso e, com o alto volume,
levava música a quem estivesse do seu lado. A música em questão era um rap. E o rapper era
Djonga. O álbum, recém lançado, chamava-se O Menino que queria ser Deus. Neste álbum,
sua música preferida é Eterno, cuja letra diz:

E o mundo tem sido pequeno demais pra nós, pra nós / E a vida tem dado conquista
demais pra nós / E o mundo tem sido pequeno demais pra nós, pra nós / E a vida tem
dado conquista demais pra nós / Pequeno demais pra tanto ego / E quando acabar
não se remonta / Vida não é Lego / Por isso eu corro igual Légolas / No meu
compasso de tartaruga, lebre te vejo lá / Onde não importa seu hype, seu nickname /
Onde Judas morre antes / É o juízo final / E só agora cê quer começar de novo / E
esses filhos que fizemos, quem vai criar? / Olha como deixamo o mundo / Tudo
explodindo, eu só querendo que ela dê pra mim / Esse mundo deixa a gente assim /
E esse trono de rei do rap, não vale nada / Enquanto morrer o menor pra ser rei na
quebrada / Tipo enquanto alguém for escravo, nenhum de nós é livre / E dessa aí eu
me livrei por pouco19

Carlos diz que Djoga fala sobre ser um menino negro, sobre um mundo que é racista
demais, que não dá oportunidades para as pessoas negras, que é violento demais. Falando em
violência, lembra que, na “favela” onde mora, o enquadramento dos policiais é bem diferente
daquele que vê na praça. “Aqui (...) é uma coisa, lá onde eu moro já é outra”. Na Roosevelt,
há “muito enquadro”, mas, onde mora, os policiais “zoam bem mais”. E denuncia: “se tiver
alguém passando, eles ameaça, mesmo se você não tá com nada. Você pode não estar com
nada: ‘ah, se eu te pegar aqui de novo, tal hora, vai ser isso, isso e aquilo’, entendeu?” E
revela que já “tomou enquadro” sob um facão empunhado por um policial: “Ele abriu um
porta mala e mandou todo mundo entrar. Aí: ‘não, não vamo não’; ‘Não vai entrar não?’;

19
Disponível em: https://www.letras.mus.br/djonga/eterno/. Acesso em: jul. 2018.
156

‘não, não vamo’; Aí, nóis não entrou. E aqui [na Roosevelt] não. Aqui eles sabem trocar uma
ideia, conversar, né?” Carlos comenta que:

Um GCM [(guarda civil metropolitano)] não pode triscar em você. É por lei isso.
Ele tem que levar você pros policiais pra ver no que se enquadra ali, né? Não pode
nem mexer, nem revistar sua bolsa, e eu já vi isso aqui, entendeu? Pessoas que não
sabem aqui, tipo pessoas mais carentes, que não sabem das leis. Mas eu gosto muito
daqui, por mais que tenha isso (grifo nosso).

Cantarolando a letra de Djonga, o garoto conta que já morou no centro de São Paulo
por cerca de 7 anos, na casa do seu tio, na região da Nove de Julho, e frequentou o colégio
Caetano de Campos. Daquele tempo, o que mais fica na sua memória é como as pessoas da
Roosevelt são focadas no esporte: “tem pessoas que eu conheço que, nossa, acorda cinco
horas da manhã só pra fazer esporte. E oito horas já vai pra faculdade, entendeu? Cinco horas,
acorda pra andar de patins, e oito horas já vai pra faculdade”.
Atualmente, há cinco anos morando sozinho na zona oeste, no Jardim João XXIII,
bairro localizado na altura do quilômetro 21 da Rodovia Raposo Tavares, a preocupação que o
interpela é criar condições para sustentar a sua independência e manter o aluguel de R$400,00
por um cômodo na comunidade. Neste sentido, aos sábados e domingos, tem a praça como
ambiente de trabalho, vendendo pizzas aos frequentadores: “eu vendo pizza, tô conseguindo
pagar meu aluguel até”, revela. É nesta atividade que pretende se manter até conseguir “fazer
uma coisa maior, tipo faculdade”. Para isso, planeja comprar uma bicicleta para entregar
comida, “tipo trabalhar com alimentos”, pois um amigo seu afirma ganhar “mais de dois mil
reais, só entregando”.
Revela que começou a trabalhar desde cedo, porque via sua mãe trabalhando muito
para construir a casa deles, para conseguir certo conforto, para tirá-los do aluguel que
abocanhava oitocentos reais da renda familiar. Mesmo com o padrasto ajudando na divisão do
aluguel, com tantas demandas de primeira ordem, não sobrava nada para a mãe gastar com
ele, comprando roupa, por exemplo. Em meio a esta lembrança, outra memória vem à tona: o
abandono do pai quando ainda tinha três anos. Apenas recentemente o pai entrou em contato
com ele. O rapaz diz: “Mó coisa pessoal, ruim. E aí, por eu não ter pai e minha mãe trabalhar,
ser sozinha, falei: ‘não, vou tomar um rumo diferente, quero aprender logo cedo’. Aí eu
comecei na feira, vendendo limão com a mãe do meu padrasto, né?”.
Então, aos 12 anos, começou a trabalhar. Aos 13, começou a andar de skate. Mas, em
pouco tempo, a avó de consideração deixou de ir para a feira, já que o “solzão” lhe rendia
muita dor de cabeça. Com isso, ele também deixou sua primeira ocupação, que pouco rendia:
157

“não ganhava quase nada na feira também, trabalhava pra minha avó mesmo (...), tipo, a mãe
do meu padrasto (...). Ela me ajudava também, era bom”. De vendedor de limões passa a ser
empacotador de um mercado. “Fui empacotador. Também trabalho no Tribunal de Justiça
Militar como auxiliar de corregedor”. Já panfletou. Já foi operador de telemarketing. E, “se
virando”, chegou ao curso de metalurgia do SENAI para operar máquinas de solda. Quando
pegou o certificado, já entregava pizzas na Roosevelt e já conseguia algum dinheiro com a
atividade.
A logística para a venda de pizzas na praça começa com uma passagem pelas pizzarias
da região: “É ali na Treze de Maio. Aí eu pego as pizzas lá, pego por um preço... Pego, vai,
tem pizza de oito reais, que é meio a meio, tem pizza de dez que é bem mais servida... Chega
aqui pra vender por um preço mais justo, sabe (...)? Vender [por] uns 15 reais ou,
dependendo, até uns 20 reais” por “uma pizza da hora aqui”. E a pizza é “da hora”, explica,
por ser recheada. Para aqueles que já o conhecem, basta ligar para ele que o preço sai
camarada. E afirma que, durante o Carnaval, alguns de seus amigos chegaram “a tirar 2 mil
reais só vendendo pizza. 3 mil, 15 mil, tipo, é muito dinheiro (...) Também é sorte, né?”.
Vendedor de pizza é uma função que lhe ocupa as sextas-feiras e os finais de semana, que é
quando a praça mais recebe gente “pra dar rolê”. Os frequentadores, conta o rapaz, tomam
álcool e “essas coisas” e, quando bate a fome, compram pizza mesmo. Quando a venda é
fraca, Carlos não se faz de rogado: leva para casa e come. Trabalhar aos finais de semana nem
sempre é sinônimo de energia boa: “tem dia de sábado que eu chego aqui e sinto umas
energias ruins”. Relata que “tem gente, morador de rua que tá bêbado, que chega pedindo, aí
tem pessoas que não gosta. Tudo bem, pode pedir normal, mas fica pedindo direto, aí, sei lá,
cola de tudo, pessoas da Cracolândia, de tudo mesmo, de tudo um pouco”.
O rapaz surpreende ao dizer que não considera a venda de pizza um trabalho e se
enxerga como “desempregado no momento” e que tem entregado currículo. Ele conta que
comprou um “amarelinho”, publicação com anúncios de emprego, e que lá estava sendo
oferecida uma vaga de emprego para maquinista, “dirigir trem”. Contudo, o candidato tem de
ter um curso básico de energia elétrica. “Aí, pra fazer esse curso, você tem que pagar 15 reais
e fazer uma prova. Se passar, você já começa trabalhando como maquinista ganhando R$ 3
mil de salário inicial, com vale refeição, vale transporte, tal. Eu tava pensando nisso até”.
Mas, enquanto “não tem nada pra fazer”, prefere ler um livro, “dar uma volta na praça”, ou
“compor música”. O livro que tem lido se chama Literatura Alemã. E revela: “muito difícil de
entender às vezes, mas até que dá pra entender um pouco”. Carlos chegou até este livro
“porque as pessoas, às vezes, por ser branco, ela acho que tem meio que um preconceito com
158

você, tipo você ser alemãozinho e a pessoa ser negra, aí, tipo. ela vai ‘e aí, alemão?’. Mas,
tipo, eu não chamo a pessoa pela cor dela, eu chamo ela pelo nome dela, entendeu?”. Então,
tenta explicar que a obra “tem a ver um pouco com isso. Fala um pouco que os alemães, eles
eram muito individualistas por causa da burguesia também. A burguesia é individualista numa
visão ampla, não é? É porque eu sei me comunicar bem, mas eu não sei umas palavras”.
Mudando de assunto, volta ao rap e de como gosta de fazer música e de cantar. E, para
isso, tem a praça que também acolhe batalhas de rap: “Ali, onde aqueles caras tão sentados,
tipo, começa umas oito horas. Aqui atrás tem batalha de rap de quarta-feira. Aí, tipo, vem a
batalha, né? Começa acho que oito horas, nove horas, aí é muito da hora as pessoas”. Carlos
já competiu, mas acha muito difícil a pressão de rimar uma coisa para atacar o outro
competidor. Ataque e defesa o tempo todo no ritmo da batida. E, no improviso, há quem fale
“muita besteira” como “coisas obscenas”. O garoto afirma preferir músicas cujo estilo seja
mais agressivo, “pelo que a sociedade é e pelo que gosta ‘de ouvir e ser’”. E, assim, partilha
uma rima de sua autoria:

Sou carne de pescoço, seu moço. Não me contento com pouco, fechado? Aqui nós
não paga imposto, pau no cú do Estado e dos coxinhas escroto. De quebrada sou, do
esquema eu vim, e o doutor me chamou de delinquente, dou o pacote, mostro o
dente. Sou pixo do mano Thug, vagabundo eficiente pela cidade, faz parte. Bandido
bem vestido porta 18 quilates. Gastar na praça é massa...

Seu estilo, que vai mais para um tom de agressividade, afirma, vem de uma revolta de
como os policiais enquadram as pessoas: “já faltou muito com respeito comigo. Tipo, já teve
amigo meu que morreu, policial matou”.
Para ele, “a segurança é muito precária”, pois “as cadeias não têm espaço”, “é tudo
errado”, “é tudo desorganizado, aí por isso eu já me indispus”. E continua: “Pra que a gente
paga essas pessoas? Pra fazerem o trabalho delas, que é dar a nossa segurança. Sabendo que já
tem casos de milícia, já tem casos de a gente vota num político corrupto que rouba da
gente...Aí, os políticos, né? O desemprego tá aí, a crise tá aí, tá tudo aí”.
Comparando o tempo em que morou no centro com o presente vivido em um bairro da
zona oeste, revela que há diferenças. No Centro, “as pessoas são muito mais nariz em pé”.
Comparando os prédios do centro, diz que o coração da cidade é como se fosse uma
Alphaville. “Lá na quebrada (...), não tem tanto prédio” e as pessoas você se depara o tempo
todo, embora sejam também “um pouco fechadas”. “Ninguém vai parar pra falar com você,
né? Que nem você... você falou ‘oi, tudo bem?' É bem difícil disso acontecer hoje em dia,
né?”.
159

Seja no centro ou na quebrada, o seu sonho é “conseguir entrar no meio dessa


sociedade, me incluir, sabe? Tem de tudo aqui, tem empresários, tem advogados, sabe? Tem
de tudo, aí eu queria me incluir no meio, queria ser alguém também. Por mais que seja
difícil”. Se tivesse a opção de escolher, desejaria ser músico e levar sua “música pras
pessoas”. As batalhas de rima não deixam de ser a tentativa de concretizar este sonho. Para
isso, tem mirado as competições maiores, que acontecem em lugar próprio, “não em uma
praça, um lugar em cima de um palco (...). Aí, você vai começar a ser visto e ser conhecido.
Tipo, Rio de Janeiro. Rio de Janeiro tá sendo um lugar que o rap tá lá. Se você for pra lá pro
Rio de Janeiro, acho que é bem mais fácil. Aqui é meio difícil” (grifo nosso). No Rio, explica,
você não ganha boné ou camiseta ao vencer a competição: “tem competição que você ganha 5
mil reais, 20 mil reais, dependendo”. Se pudesse escolher cursar uma faculdade, faria o curso
de arquitetura ou enveredaria para a área do design: “tipo construir prédios, né? Poderia ser
designer, designer de estilos, que eu gosto também de estilo. Ontem eu tava andando de skate,
aí eu tava descendo ali aquela rua debaixo, quando eu cheguei lá no Estadão, um cara pegou a
câmera ali e tirou foto, assim, eu descendo de skate (...) O cara deve ter achado eu estiloso”.

5.5 A vida é poesia telúrica

Certa tarde, rodas de malabaristas e malabaristas solitários tornaram-se hegemonia no


cinzão. Primeiro, dispersos, as piruetas têm quê de aquecimento. Entre um papo e outro, bolas
ao ar, bambolês em rodopios, argolas passeando de-lá-pra-cá, corpos (invertebrados) em
formas inimagináveis, riso, muito riso. À noite, a chegada de acrobatas abarrota, traz para
perto os das beiradas. A caixa de som de um malabares solitário faz as vezes de uma multidão
a acompanhá-lo. Dali sai todo tipo de ginga. De salsa a pop-rock, os braços do rapaz bailam
suavemente enquanto uma bola branca desliza pelo corpo como parte dele, delineando cada
músculo. À esquerda, gringo: um colombiano equilibra entre mãos, testa e pés (para frente e
para trás) quatro bolas. Os braços jogam três para o alto de uma mão para outra, fazendo
grandes arcos no céu. Ao mesmo tempo, outra bola vaivém em arremessos da testa para os
pés. À frente, à direita, roda de bambolês exibe corpos esguios em movimentos que fazem um
só acrobata e parafernálias rodopiantes. Naquela roda, uma garota, de salto e terninho, dando
pistas de alguém que acabara de deixar cair a caneta há pouco no escritório, junta-se de
improviso a gentes descamisadas e de pés no chão. A tensão da expressão da jovem cede a
contornos alegres, sua boca torna-se larga e, às gargalhadas, celebra acertos e mais ainda os
160

tropeços. Mais para frente, dois jovens acrobatas colocam expressões, gestos e movimentos
em jogo sensual, brincando com a gravidade. Viravam e mexiam, flertavam o chão. Olhares,
sem desvios, apresentavam cumplicidade, confiança e sintonia, tornando-os um só. Na plateia,
matizes de gentes. Um casal ao lado, ouvi, celebrava em agarra-agarra o início do namoro ali,
diante daqueles rodopios. Na outra ponta, três jovens e uma caixinha de som colocavam funk
em mistura à paisagem sonora daquele momento enquanto davam cabo de seu beck e da sua
cerveja. Skatistas, com mochilas de pizza às costas, esgueiravam-se entre os artistas de rua
oferecendo e vendendo suas redondas. Não demora muito e a sobremesa também dá as caras.
Uma jovem de semblante e sorriso serenos pede licença. Levantando a tampa de um pote,
mostra brownies fartos feitos por ela mesma. Cada brownie vendido, explica, a coloca mais
próxima de sua pós-graduação em Psicologia. Pedi dois. Sorrisos francos trocados substituem
os enfadonhos “obrigado” e “de nada”.
Semanas depois, déjà vu. No lugar do brownie, zine a um real (Figura 74). A jovem
Fernanda, de 24 anos, oferece de brinde, pense só, a declamação de um dos poemas da
edição: Sãopauleando, Sem título, Vida utopista, ou Déjà vu... Escolho Sãopauleando, que
acaba por batizar parte do título deste capítulo:

Foi aqui que tudo aconteceu


Desde antes de tudo
Sonhava em te encontrar
me perdi nas lixeiras feito
gato molhado na telha
Em busca das agulhas
prateadas
Sequer meu eu sabia
Nesse lixo sobre muito
lacrimejo
foi aqui que recebi aquele
beijo
A permissão pra vasculhar
lagoa a dentro
Hoje em dia eu só quero uma
mata fria
Mas jamais me esquecerei do
161

cinza quando bate no verde


São pauleiras as lições que
aqui habitam
E as pessoas coloridas traem
o enquadro
as molduras as algemas
espartilhos e a
classificação de gênero
O sol bate numa fresta
rosada, poluída
Polidos versos que aprendi
pelo cimento
Respirando ebulição de carbono
Sai do peito o diamante
bruto e pleno.

Figura 74: Zine Para Mar Nave Gar

Fonte: A autora

Sãopauleando conta parte de sua história: uma garota de Guarulhos que, sem saber o
porquê, sempre teve muita vontade de vir para São Paulo. Desde criança, para desespero de
sua mãe, dizia a si mesma: “ai, quero andar de metrô; ai, São Paulo; ai, não sei o quê”. Hoje,
formada em psicologia, afirma: “foi aqui que eu conheci todas as coisas que eu tenho
162

conhecido até o momento. Coisas que me expandiram, que me deram vazão pra me conhecer,
sabe?”. Sem se dar conta, explica o seu poema, recitando-o parcialmente: “Então Sãopauleando,
foi aqui que tudo aconteceu. Desde antes de tudo, sonhava em te encontrar. Me perdi nas
lixeiras feito gato molhado na telha, ou seja, eu me perdi em São Paulo, em busca das agulhas
prateadas. Sequer meu eu sabia, desse lixo sobra muito lacrimejo”. A pausa e um respiro
fundo encorajam-na em dizer que, quando fala das lixeiras, fala de ir muito para a noite, de ir
para festas, de álcool, de drogas, uma menina perdida na fase da faculdade: “eu não tinha
muita noção do que eu tava fazendo. Não que eu tenha ainda, mas não tinha nenhuma noção
naquela época, tava só vagando. Só que minha alma tava procurando alguma coisa, aí que eu
encontrei, que é o autoconhecimento. E aí hoje eu tô bem tranquila”.
Formada pela Anhembi Morumbi, divide o seu tempo entre a praça, a arte e o
acompanhamento terapêutico: “você vai dar um rolêzinho com seu paciente. É mais pra
pessoas que têm dificuldade de interação social, fobia, não sai de casa. Pra você apresentar o
mundo pra pessoa mesmo. Às vezes, o encontro fica acontecendo dentro da casa (...) até ela
conseguir dar uma volta”. Acompanhar as limitações do outro faz com que a gente se depare
com as nossas, valoriza. Já a arte, destaca, sempre fez parte de sua vida, mas entra
definitivamente em sua história perto dos dezessete anos, quando cursava o técnico em moda.
As técnicas de aquarela do curso chamaram-na a atenção e lhe mostraram que não era bem
moda o seu caminho. Depois de enfrentar a depressão “por causa de uma paixão idiota”
passou a pintar muito e, depois, começou a escrever também: “aí, às vezes eu pinto, às vezes
eu escrevo, e não para de sair, sabe? Mas, tem fase que eu fico (...) mais intelectual, e tem fase
que eu fico mais telúrica”.
De repente, um buldogue inglês, sem cerimônia, pula e esfrega o focinho na perna da
jovem pedindo carinho: “ele tá sempre aí. Ele gosta de carinho na bunda. É, ele vai
encostando o bumbum dele. Mas, muito legal” (risos). O dono, um boliviano, pede desculpa e
o peludo logo ganha outro rumo. A circunstância faz com que a jovem revele: “adoro
conversar com as pessoas na Roosevelt, tem gente de tudo quanto é tipo, né?”. Para chegar à
praça, de Guarulhos até o centro, leva uma hora e meia de ônibus. E diz, sem o menor
lamento: “é tranquilo até. Eu já tô acostumada porque durante a faculdade toda eu fiz esse
trajeto, eu sempre gostei de São Paulo. Mas, que nem eu falo na poesia, hoje em dia eu só
quero uma mata fria, mas jamais esquecerei do cinza quando bate no verde, porque são
pauleiras as lições que aqui habitam. É isso”. O cinza de que fala é o cinza do céu que,
tocando as árvores, emoldura o verde. E reflete: “O cinza é predominante, às vezes. Mas,
163

também pode ser o cinza da cidade quando bate no verde que é a natureza, né? A nossa
natureza”. Para a jovem, “a vida já é poesia”.

5.6 Claves, soldas e quitutes

A rotina de viver a praça torna conhecidos rostos e traz para perto os mais recorrentes,
como é o caso de Fernando. O jovem, de 21 anos, começou a fazer malabares “na vila”, com
os amigos de bairro: “um parceiro apareceu com as clave, aí o outro também, aí eles
começaram a ensinar a gente, aí aprendemos, aí hoje, lá na vila, lá bastante gente faz, né?
Começou, tipo, com dois. Hoje, um monte de gente tá fazendo”. A vila a que o rapaz se refere
é Mauá, no ABC. Às quartas-feiras, frequenta a Roosevelt ou para treinar o malabarismo ou
para vender quitutes. Ou, ainda, os dois, como no dia desta conversa.
O malabares, orgulha-se, sempre é carregado na bolsa, porque todo lugar em que para
dá para jogar. Malabares, para Fernando, “é um esporte, uma distração, uma terapia, tudo e
mais um pouco”. A entrada do malabares na sua vida representa, afirma, “muita liberdade”,
quebra de barreira, uma abertura de espaço para que pudesse “viajar, jogar malabares no farol,
se apresentar, conseguir conhecer outras cidades e tudo mais. Tudo através do malabares”.
Entre os lugares conhecidos, em pouco mais de um ano de prática do malabares, o jovem
esteve em Americana, Limeira, Catanduva, São José do Rio Preto, apresentando-se
geralmente nos semáforos e, por vezes, em bares e praças; sempre contando com a
contribuição daqueles que podem.
Muito embora tenha preferência pela arte do equilibrismo, Fernando trabalha como
soldador, maçariqueiro, montador de caçamba, e vendedor de doces: “Me viro assim, faço
essas três coisas. É o que eu tenho feito ultimamente. Tanto vender doce, fazer o malabares no
farol, quanto às vezes fazer um bico como soldador também”. Entre um trabalho e outro, a
Roosevelt, para ele, representa liberdade pela quantidade de pessoas diferentes que ali
praticam atividades variadas, como skate, patins, malabares, passear com o cachorro, escutar
um som, dançar, gravar videoclipe. “É um lugar que, por ser no centro da cidade, a gente tá
perto de tudo. Pode subir a Augusta, cair na Paulista, na República, a Galeria do Rock, tá tudo
perto, né? Então, aqui é bem liberdade, né? De você poder chegar aqui e fazer o que você
quiser, dentro das leis, né?” Complementando, diz: “Então, a Roosevelt, pra mim, representa
bem isso: uma união, a galera bem unida também, né? Todo mundo com a sua arte”.
164

A Roosevelt, para além de representar um lugar para se aprender e ensinar malabares,


verte-se em um ambiente para dar vazão aos preconceitos vivenciados no dia a dia. Nas
apresentações de farol, desabafa, é comum ser chamado de vagabundo. “Tem gente que não
leva como um trabalho, mas é um trabalho também, né? Você vê... a gente vem, treina, tem
muito esforço pra aprender, pra se dedicar, chegar no farol e não fazer umas palhaçadas, mas
fazer um truque bonito, se apresentar de uma forma bonita, né?”. A aridez do cotidiano só é
superada pelo apoio da família e pela união dos praticantes da arte, sendo que essa união é o
que faz o movimento crescer, acredita. Para os xingamentos, sorrisos “e já era”: “aí a gente dá
um sorriso e já era. Não pode ficar arrumando confusão, não pode debater, não pode querer
xingar de volta, é pior, né?”
Assumindo nas entrelinhas que também não reconhece malabarismo como profissão,
partilha que seu sonho é morar fora do país – na Europa, mais especificamente em Portugal –,
e não viver apenas das claves, mas também “profissionalmente (...), com uma profissão de
carteira assinada e tudo mais”. Não para morar, mas para visitar, dada a força da cultura do
malabares, tem vontade de conhecer o Chile: “onde você consegue trabalhar mais de forma
independente, lugares que você sabe que da sua mão de obra autônoma você consegue se
virar, né?”. De passeio ou para ficar, revela: “trabalhar autônomo e tal, e fora do país, então
seria um sonho conseguir sair com o malabares. O malabares (...) é uma porta, ele abre uma
porta muito vasta, né? Por você conseguir passar de cidade em cidade, e tudo mais, ir pra
outro país”.
Enquanto não ganha o mundo, outros universos em terras paulistas, além da
Roosevelt, colocam-no em contato estreito com a sua arte e outras manifestações. No ABC,
em Mauá, no Jardím Zaíra, frequenta o Sarau dos Tapetes às segundas-feiras. Já às terças, o
Sarau da Consciência acontece em Santo André, na Concha Acústica. Deste modo,
intersectam-se, afirma, malabares, poesia e música. Por hora, naquela quarta, deixa a venda de
doces feitos pela família de lado e volta a ser o malabares que, para além das claves, ainda
tem outras modalidades para aprender. Bolinhas, facões, tocha, aros, bola de futebol, diabolô
e devil stick.

5.7 Déjà vu: o momento da virada

Era início de tarde quando um olhar conhecido, munido de sorriso, caminhou na


minha direção esquivando-se dos malabares. Era o Angelo. Mais à vontade, e como quem
165

precisava muito colocar para fora o que sentia, começou a conversa falando do ponto de
virada na sua história: o reencontro com seu amigo-poeta. Contudo, parece, o estopim da
mudança já estava provocando uma série de acontecimentos interiores, de questionamentos e
reflexões ao veredito de que as coisas não poderiam continuar tal como estavam. O
questionamento de suas escolhas e o desejo de sair do “mundo ruim” habitavam o seu peito.
“O mundo mundano, ele traz várias oportunidades (...). Então, assim, a gente atrai aquilo que
a gente pensa. Então, o que eu atraí foram pessoas, o que eu atraí foram oportunidades ruins,
foi roubo, tráfico, consumo de drogas, que mais? E aí desunião com a família, briga,
inimizade, ameaça de morte, e aí vai... um monte de coisa”.
Sem refutar a vida pesada, leva-a como experiência e com o veredito de que todos têm
lá suas sombras, que clareá-las só é possível quando as pessoas se dão conta de suas
escuridões: “se a gente já sabe como é a nossa sombra, então procura clareá-la. Foi o que eu
procurei, aí apareceu uma oportunidade, e aí é o que eu procurei fazer: tornar a minha sombra
o mais clara possível”. Aliás, sombra não, sombras. Porque, como diz, todos têm diversas
sombras. Abrindo o coração, partilha:

Foram essas oportunidades ruins que apareceram do crime mesmo, a vida do crime
é suja, é cada um por si, e isso mostra o quanto a gente como humanidade é muito
primitivo, e a gente busca o poder, né? Porque no crime todo mundo quer ter poder.
A verdade é que a vida do crime, todo mundo, o cara que não quer ter poder, ele só
quer ter uma vida melhor pra ele, porque ele não teve quem conversasse com ele, ele
não teve quem ouvisse as angústias dele, as mágoas dele, as feridas dele, ou dela,
também, dela também, que tem muitas. Então é muito fácil julgar, mas é muito
difícil compreender, é muito fácil agir pelo ego, mas muito difícil agir pelo amor,
né? Então quem não tá no crime pelo poder, tá no crime por necessidade. São dois
caminhos: ou é pelo poder, por querer ter poder, ostentar qualquer tipo de poder, ou
porque não teve oportunidade e tá precisando e não encontrou outro caminho
(grifos nossos).

Explicando-se, diz que ninguém é igual a ninguém, que – via de regra – as pessoas não
sabem lidar muito bem com os seus sentimentos, que não têm clareza como aquela que estava
experimentando naquela conversa no meio da praça. Na vida do crime, explica, não tinha
clareza: “Então, no momento não era clareza que eu tava tendo, porque era uma coisa muito
de imediato, pelas necessidades, pelas circunstâncias”. Nessa “outra vida”, buscava dar cabo
de suas necessidades. Desempregado, na busca por oportunidade de carteira assinada,
experimenta por um bom tempo a informalidade vendendo bala em ônibus. Contudo, o ofício
trouxe junto o sentimento de exclusão: “aí a exclusão social ataca a autoestima do indivíduo,
né? O indivíduo com a autoestima atacada, o que ele faz? (...) Como ele vai ter perspectiva de
166

vida, uma perspectiva pro futuro, se nem a autoestima (...) consegue ter? (...) Começa aí a
exclusão social”.
Diversos fatores – principalmente a necessidade e, depois, poder –, conta, levaram-no
“pra esse lado”. Na periferia, desfere, “a molecada já cresce com essa visão de periférico” e
falar sobre isso é complicado porque envolve muitas coisas, “muitas mesmo”, coisas que
sequer as pessoas imaginam. Desviando-se daquilo que lhe é doloroso rememorar, volta à
questão do poder afirmando que o poder é falho, que, na verdade, poder sequer existe. O que
existe é “subjugar o outro (...). Subjugar o outro existe, mas o poder não. O poder é algo que
tá só na nossa mente. A gente tá pra viver a vida (...). O poder que a gente tem que ter é pra
comer, pra se vestir, coisas simples, básicas” (grifo nosso).
Carregar para o centro de São Paulo sua história de periferia, explica, é algo
“diferente”, um “choque cultural”. Isso porque, na periferia:

Você se depara com gente mais simples, né, pessoas que levam a vida delas como
pode e, já no centro, você já encontra aquela coisa da correria, você vê os executivos
indo trabalhar, você vê aquela correria de carro pra lá e pra cá. Na periferia já é mais
calmo, é mais sossegado, né? Essa questão da movimentação, então são vários
fatores que você, no meu caso, eu observo, né, que é um choque de cultura, é
diferente como as pessoas no centro se comportam e como se comportam na
periferia, sabe? Então, pra mim, é um choque de cultura, é um choque cultural,
porque é diferente, né? Já disse o Mano Brown: ‘o mundo é diferente da ponte pra
cá’, né, e o mundo realmente é diferente, né?

Na periferia, pensa, “o povo é mais espontâneo, mais solto (...). É como se fosse a
parte rural de uma cidade”. Na periferia, tudo está à margem, explica. “O Estado é o todo (...)
e o todo se faz centro. Mas, se esse centro tem uma margem, então significa que ele já não é
mais centro” (grifo nosso). Para Angelo, isso é o que acontece em todo o Brasil: as periferias
sempre acabam sendo vistas como a margem de tudo. Reforçando sua perspectiva, o jovem
relembra do filme A margem, em preto e branco, de 1967, sob a direção de Azualdo Candeias,
que narra como surgiram as periferias do Tietê, trazendo à trama às margens do Rio
paulistano, histórias de amor, loucura, prostituição e o contraste de um homem sufocado
vestido de paletó e gravata20. Nas palavras de Angelo:

A margem conta a história das periferias, como elas surgiram, que eram mulheres de
programa que não tinham mais pra onde ir, aí às margens do Tietê elas construíam
essas casas, aí se juntavam com os donos de cabaré, e aí dessa linhagem começou a
surgir, junto com alguns nordestinos que vieram também, aí começou a surgir as
periferias a partir daí. E aí cada periferia tem um histórico, né? Tem os imigrantes

20
Disponível em: http://www.adorocinema.com/filmes/filme-205161/. Acesso em: ago. 2018.
167

italianos que vieram, aí depois eles foram trocados pelos chineses, que os italianos,
eles eram muito exigentes, e aqueles italianos que não tinham mais condições de
trabalhar não tinham mais como morar em lugares de melhor condição, foram indo
pras periferias. Então por isso que você vai na periferia, você encontra
miscigenação, né? É diferente do que no centro. Por que a quantidade de negros na
periferia é muito maior? Por que a quantidade de pessoas com traços italianos na
periferia é muito maior, com traços nordestinos, né? Então você tem que pegar um
histórico de tudo. Então eu entro muito nessa questão do choque de cultura, do
choque cultural, porque eu fui percebendo isso na periferia, essa diferença quando
eu vinha pro centro, quando eu ia pra Santo Amaro. Aí eu falava ‘por que que é
assim?’ Por que aqui em Santo Amaro tem tanto nordestino? Por que no centro tem
tanto angolano? Por que a Bela Vista, que é toda de italiano? Eu sou descendente de
italiano. Por que tem tanto negro, tanto negro, tanto negro, tantas pessoas com traços
negros? Então é por causa disso, esse choque cultural, então eu sinto toda essa
diferença na cor, no comportamento (grifos nossos).

Na periferia, afirma, referindo-se ao que vivenciou, o comportamento é agressivo “por


natureza”, porque a criança cresce assistindo “propaganda da Hot Wheels, querendo um
carrinho da Hot Wheels e não podendo ter porque o pai tem mais três filhos, ele tem três
irmãos e tem que trabalhar pra quatro filhos”. E continua explicando que esse menino “vai pra
escola, aí encontra um moleque que tem o carrinho da Hot Wheels, né? Que tem melhores
condições”. E explica que na periferia também há aqueles que tem, “lógico”, boas condições.
No seu caso, Angelo, denominando-se periférico, confessa ter crescido sem luxo, contando
apenas com o necessário e passando muitas dificuldades na vida.
Entre as dificuldades, considera não ter tido um pai presente e responsável. De outro
lado, sua mãe, calcada na dualidade, era a um só tempo agressiva e guerreira. Angelo revela
ter tido muita dificuldade em lidar com a sua mãe. Os problemas colocaram-no da porta para
fora, levando-o a “trabalhar desde criança, desde muito cedo”. Aos nove anos de idade, já
trabalhava nas ruas vendendo maçãs do amor ao lado de sua mãe em eventos como Parada
Gay, Copa do Mundo, tudo que houvesse na região da Paulista, pelo centro da cidade. Assim,
aprendeu a andar pelo centro de São Paulo, a dar rolê sozinho aos 12 anos pela Galeria do
Rock, bem como a enfrentar situações limites enquanto trabalhava ao lado de sua mãe:

Então a gente pegava, vinha pra cá, vendia maçã do amor na Avenida Paulista, na
Parada Gay, na Copa do Mundo, quando tinha show, no Anhangabaú, aí juntava eu e
ela, aí eu carregava a mochila, aquela mochila pesada, cheia de maçã do amor, e
“Maçã do amor, um real, maçã do amor, dois real”, dependendo da maçã do amor
tinha chocolate ou não, e eu pequeninho “maçã do amor, um real”, e aí de vez em
quando tinha uns problema, né, porque policial não gosta, já naquela época os
policiais já encrencava, né? Então teve uma cena muito forte, assim, que eu tava
vendendo as maçãs do amor, né, e a aí o policial bateu na, eu carregava tipo um
isopor com as maçãs e o policial bateu e caiu no chão as maçãs do amor e trincou. E
aí eu sempre fui uma criança espoleta, eu era desbocado. E aí o policial fez isso e eu
fui desbocado, aí o policial foi e deu um tapa na minha cara, e eu caí no chão com o
resto das maçãs do amor, aí minha mãe foi pra cima do policial, agrediu o policial,
“filho da puta”, então aí juntou, virou aquela bagunça toda, e eu caído no chão, não
168

conseguia ver nada, só via os pés das pessoas, assim. Então a gente passou por essas
coisas também, não era só bom, mas o bom é que a gente chegava, assim, no fim do
dia a gente tinha o dinheiro, a gente contava o dinheiro, aí ia lá, comprava as coisas
pra comer, ou às vezes comprava...Aí quando era comemoração, minha mãe
comprava pizza, né, finalmente. (...) Então eu sempre acompanhei minha mãe.

Em épocas mais duras, quando não sabiam mais o que fazer para sobreviver, iam para
o litoral. A viagem dava até para extravasar um pouco, enquanto recolhiam latinhas na praia,
na rua, principalmente no final de ano, quando “o pessoal bebe muito” e deixa latas para todo
lado. E desse modo conseguiam juntar dinheiro para pagar o aluguel de onde queriam ficar:
“era a única felicidade que a gente tinha, era poder ir pra praia de vez em quando ver o mar.
Era a única felicidade que eu e minha mãe tinha, entendeu?”
Hoje, sua mãe tem a vida dela, mora com o namorado dela e, juntos, viajam de quando
em quando para o litoral. Sua mãe e o pai que o abandonara eram um casal de surfistas, livres,
“meio hippies”, que adorava acampar, relembra. Sua mãe, explica, não perdeu esse hábito,
“então ela vive a vida dela, vai pro litoral, eu vivo a minha”. Aos 22 anos, morando sozinho,
explica ter deixado a casa da mãe por conturbações, intrigas e pelo desejo de buscar a sua
independência, de “fazer a vida do meu jeito”. Hoje, avalia, “foi a melhor decisão”, por ter
encontrado paz com sua mãe. Não que sua vida esteja “100%”, por ter muito o que fazer para
se estruturar financeiramente, mas não corre mais risco de morte, entra em sua casa
sossegado, trabalha vendendo os seus zines por um real, aprende com as pessoas na rua
ouvindo o relato de suas histórias de vida, tudo o que elas têm pra lhe ensinar. “Então minha
mãe vive a vida dela assim e eu vivo a minha. E é isso, e eu vivo assim, eu sou essa pessoa”.
Sua mãe, afirma, o ensinou, por assim dizer, a ser “muito independente”: “Ela viu que meu
pai não ia ser presente, né? Então, ela falou assim: “eu tenho que tornar meu filho um
espartano, tenho que fazer dele um independente”, que a educação do espartano é isso, né, ele
aprende a ser independente. Então, eu aprendi a ser independente desde criança”. E desabafa
que ser filho único, no caso dele, acarreta mais responsabilidade: “me tornei um homem do
lado da minha mãe, tive que ser o guardião dela, e ela o meu, né?”
Para continuar firme em sua jornada, afirma embasar – e muito – a sua vida nos contos
gregos, principalmente nos contos espartanos. Relembra a história de um espartano que, para
se tornar um membro do exército, é jogado na selva e de lá só regressa ao completar 18 anos.
“Eles dão uma lança na mão dele e a capa vermelha com a identificação de que ele faz parte
do povo espartano (...). Ele é um soldado quando ele voltar vivo com 18 anos”. A metáfora do
conto, explica, é para que você seja o seu próprio mestre:
169

As pessoas podem te aconselhar, mas ninguém vai dizer a você o que você deve
fazer, só você sabe o que é melhor pra você fazer na sua vida, né? (...) Eu tô
passando por essa fase de eu ser o meu próprio mestre, (...), mas eu tô passando por
um momento de dificuldade na minha vida, e eu tô passando por um momento
difícil, mas eu tô passando por um momento difícil com a perspectiva de que quando
eu tiver os meus 30 anos lá na frente, eu vou olhar pra esse momento agora que eu tô
conversando com você, eu vou olhar pra trás, eu vou lembrar de tudo que eu vivi, e
aí eu vou poder passar pros mais novos aquilo que eu vivi. Então eu vou poder olhar
lá na frente com 30 anos, ou com 40, ou com 50 anos, e olhar pra trás e falar “ó, eu
não fraquejei, eu não fui medroso”, por mais que às vezes eu não tinha sempre o que
comer com 22 anos, quando eu chego em casa nem sempre eu tenho o que comer, eu
faço o meu melhor, nem sempre eu tenho tudo que eu quero, mas eu não fraquejei
apesar de tudo, entende?

Ouvir a voz interior é a estratégia para não sucumbir, para não fraquejar
independentemente das circunstâncias, como quando quase perdeu a vida em um acidente
sofrido que o deixara em coma. Caminhando na rua para ir fazer um exame, entre quinze e
dezesseis anos, anêmico como estava, desmaiou, bateu a cabeça, fraturou o maxilar, teve um
colapso cerebral. Depois de tantas camadas de conversa, parece ficar claro que, antes do
encontro com o amigo-poeta, esta experiência de quase morte representa o aspecto mais
emblemático de sua transformação. Teve, relata, “experiências, assim, fora do comum (...) de
você se ver fora do seu próprio corpo, você enxergar aquilo dali, você falar ‘opa, o que tá
acontecendo?’, né? Então existe, sim, não é religião, não é nada, tudo é espírito e matéria
mesmo”.
Quando acordou do coma, despertou a verdadeira pessoa que era e que estava diante
de mim naquela praça, afirma com veemência. À época do acidente, sua mãe acabou por
projetar nele uma série de questões, desabafa. O pai ausente desde sempre, deixou de vez de
pagar a pensão e a resposta à situação foi uma relação desgastada com sua mãe: “tudo que era
do meu pai ela começou a projetar em mim”. A rebeldia o fez pular o muro de casa, passar
uma semana dormindo na rua.

Já não bastava tudo da infância, aí foi pra adolescência, aí começou a piorar, o meu
comportamento também. Aí eu meio que tive um stop. Uma força superior deu um
“ó, você tá passando dos limites”, deu um stop, aí que eu tive uma experiência,
depois desse acidente que eu vi algumas coisas, então existe sim, e eu só vejo a cada
dia que nossa humanidade é muito atrasada, a gente tem uma sociedade muito
degenerada, e a gente tem que olhar pra dentro de nós mesmos, não ter medo de
amar, não ter medo de dizer o que sente pro outro, dizer eu te amo, dizer me perdoe,
eu te amo, obrigado, é a melhor coisa que a gente pode dizer. (...) Como eu falei a
importância do instante, como aconteceu comigo, né, eu ia fazer um exame, mas eu
podia ter morrido, porque o que aconteceu foi isso, eu tava dentro da ambulância, e
aí eles começaram a perceber que o meu organismo começou a parar. Então eu
sentia uns choques, não sei se era desfibrilador ou algo do tipo, mas eu sentia uns
choques em mim, dando os choques. Então é isso, a importância do instante, que
esse foi o terceiro zine, a importância do instante, a importância do agora, porque da
170

mesma forma que aconteceu comigo, que eu virei na esquina e entrei no AMA pra
fazer um exame de sangue e caí, poderia ter morrido, né?

Dá-se conta que, naquele dia, saiu de casa sem dizer à mãe que a amava. E se tivesse
morrido? Morto não tem voz: “você querer gritar pro mundo que você ama o mundo. Imagina
você querer gritar, mas não sai, não sai? Quero viver, não sai, entende?”. Longe de ser santo,
assume suas mazelas e dias em que sequer deseja olhar para os seus dois cachorros. “Chego
em casa e eu realmente nem olho (...) pra eles (...), mas também é pra não machucar eles,
sabe? Que eu acho também que a gente é responsável pelo que a gente faz, né? Então não
quero ser uma pessoa má com eles, né? E é isso”. Mas, busca, a cada dia, aprender mais e a
manter a sua espiritualidade: “não busco religião, eu busco a espiritualidade, seja ela
hinduísta, espírita, candomblé, umbanda, evangélica, hare krishna, budista”.

5.8 Ordinária, Roosevelt, ordinária

A mestiçagem, tal como a proposição de García Canclini (2015), que procura esquivo
de reducionismos de plantão, não é simplesmente homogeneização e reconciliação
intercultural. A mestiçagem, para além do sentido biológico, implica questão cultural, na qual
bailam, flertam, hibridizam-se hábitos, escalas valorativas, sistemas de crenças, jeitos de
pensar. A ideia de hibridização concebida pelo autor, por assim dizer, privilegia os processos
que se articulam, principalmente, pela via da confrontação, pela via da dialogia, em meio às
tensões das diferenças. Nas palavras do autor, “a hibridização, como processo de interseção e
transações, é o que torna possível que a multiculturalidade evite o que tem de segregação e se
converta em interculturalidade” (GARCÍA CANCLINI, 2015, p. 27). A história, defende, não
deveria ser reduzida a guerras, trincheiras, insularidades culturais (sociais, econômicas, ou de
que ordem sejam). Chegar a este momento do trabalho com a fala dos jovens – Marcos,
Maurício, Angelo, Fernando, Fernanda e Carlos – entremeando as tessituras antes tecidas,
evidencia a complexidade e o caráter processual do tear dos fios discursivos.
A Roosevelt, ordinária que é, não escapa ao sincretismo, à crioulização, à mestiçagem,
à hibridização. Entrelaçam-se adesões a sistemas de crenças (não apenas as religiosas),
misturas interculturais brotadas de variações de vieses culturais, processos sociais de agora e
d’outros tempos. Deste modo, a Roosevelt não é apenas a Roosevelt, mas uma combinatória
que traz consigo outros bairros (Guarulhos, Mauá, Capão Redondo, Recanto Primavera,
Itapecerica da Serra etc.), gentes, prosas, músicas, zines; em profusão de possibilidades para
171

hibridar-se. Contudo, alerta García Canclini (2015), as possibilidades de hibridação não se


dão sem coações. Pautado em Appadurai e Hannerz, explica que outra “das entidades sociais
que auspiciam, mas também condicionam a hibridação são as cidades. As megalópoles
multilíngues e multiculturais (...) são estudadas como centros em que a hibridação fomenta
maiores conflitos e maior criatividade cultural” (p. 30).
As cidades, as megalópoles, agora tangenciando Morin (2011), são lócus de calor e
efervescência culturais, nas quais são inseparáveis os conhecimentos de cada sujeito e a
cultura. Trata-se de simbiose entre o que o autor chama de espíritos individuais e a cultura,
sendo que esta, longe de ser indistinta, compõe-se como holografia (cultura como constitutiva
dos sujeitos) e recursividade (inter-retroações cognitivas dos sujeitos regenera a cultura que,
por seu turno, os regenera).
Para Santos (2012), a cidade arquitetada a partir dos meios material e social abre
possibilidades para certas condições de produção. Recorrendo a Baudrillard, coloca que a
concentração urbana resulta de um sem-número de necessidades e que a economia citadina
abarca um crescente número de pessoas, viabilizando o consumo até mesmo entre os
integrantes das camadas mais pobres. Neste ponto, não há como não lembrar que para além de
malabares, de música, de prosa, de verso..., a venda dos zines, dos quitutes, das pizzas
desfiladas nas caixas-mochila penduradas nas costas de skatistas e ciclistas que, gentilmente,
de quando em quando, as oferecia, escancara um sistema de estreita dependência entre esta
população flutuante da praça, fazendo com que a existência de um dependa da existência do
outro; um processo praticamente ininterrupto de cooperação. “Se este laço não existisse, a
vida seria impossível na sociedade urbana” (SANTOS, 2012, p. 117).
Quando se atenta para as novas divisões de trabalho, para a redistribuição de funções
em determinada urbe, um novo arranjo espacial – e por que não dizer social –, se configura,
instaurando uma nova ordem. Atentando ao despontar dos teatros, dos bares e dos cafés no
entrono da praça, não deixo de pensar nas narrativas de alguns pouco antes neste trabalho.
Aquelas narrativas que, com demérito, se referiam aos jovens frequentadores daquele espaço.
Neste ponto, não se trata apenas de resmungos e atitudes para exorcizar os jovens para seus
lugares de origem, destituindo-os do direito de usufruir daquele lugar (público), mas de acabar
com a van estacionada na beira da praça que vende roupa e tênis para skatistas, de acabar os
vendedores de “breja”, de colocar fim aos entregadores de pizza, de afastar os vendedores de
quitutes, de impedir de circular zines de um real. Para fora este comércio informal de preço
camarada. Este processo vai ao encontro do dito capítulos antes sobre a questão da
172

gentrificação, uma tentativa de reorganizar o lugar, tornando-o glamourizado (para alguns da


intelligentsia), por meio de uma perversa higienização espacial, de gentes e de atividades.
173

CONSIDERAÇÕES FINAIS: MESMO QUE SEJA RUIM, ESCREVA-ME,


ESCREVA-ME

Morena de Angola que leva o chocalho amarrado na canela / Será que ela mexe o
chocalho ou o chocalho é que mexe com ela? / Morena de Angola que leva o
chocalho amarrado na canela / Será que ela mexe o chocalho ou o chocalho é que
mexe com ela? / Será que a morena cochila escutando o cochicho do chocalho? /
Será que desperta gingando e já vai chocalhando pro trabalho? / Morena de Angola
que leva o chocalho amarrado na canela / Será que ela mexe o chocalho ou o
chocalho é que mexe com ela? / Será que ela tá na cozinha guisando a galinha à
cabidela? / Será que esqueceu da galinha e ficou batucando na panela? / Será que no
meio da mata, na moita, a morena ainda chocalha? / Será que ela não fica afoita pra
dançar na chama da batalha? / Morena de Angola que leva o chocalho amarrado na
canela / Passando pelo regimento ela faz requebrar a sentinela / Morena de Angola
que leva o chocalho amarrado na canela / Será que ela mexe o chocalho ou o
chocalho é que mexe com ela? Morena de Angola que leva o chocalho amarrado na
canela / Será que ela mexe o chocalho ou o chocalho é que mexe com ela? / Será que
quando vai pra cama a morena se esquece dos chocalhos? / Será que namora fazendo
bochicho com seus penduricalhos? / Morena de Angola que leva o chocalho
amarrado na canela / Será que ela mexe o chocalho ou o chocalho é que mexe com
ela? / Será que ela tá caprichando no peixe que eu trouxe de Benguela? / Será que tá
no remelexo e abandonou meu peixe na tigela? / Será que quando fica choca põe de
quarentena o seu chocalho? / Será que depois ela bota a canela no nicho do pirralho?
/ Morena de Angola que leva o chocalho amarrado na canela / Eu acho que deixei
um cacho do meu coração na Catumbela / Morena de Angola que leva o chocalho
amarrado na canela / Morena, bichinha danada, minha camarada do MPLA (CLARA
NUNES).

Esta canção interpretada por Clara Nunes dá a exata medida de um sentimento


transverso ao avanço desta investigação (e doutras realizadas, e vindouras). É chegado o
ponto em que já não sei mais, em que medida, como pesquisadora, mexo o chocalho ou se o
chocalho é que mexe comigo. A subjetividade pipocada ao longo de algumas etapas deste
trabalho evidencia o quanto o campo botou em remelexo lembranças, memórias e histórias –
tão minhas, escamoteadas pelo tempo e outras variáveis – e como estas, por sua vez,
reavivadas no presente, postularam-se como parte das membranas-filtrantes-tradutórias da
realidade ora problematizada, trazendo ao seu interior o frescor de novas perspectivas e
possibilidades, bem como incômodos. Voltar a nossa atenção para determinada cultura,
construindo uma representação sobre tal, acabou por colocar em experimento a nossa própria,
como de antemão disseram Wagner (2010) e Salles (2013). Face ao objetivo geral desta tese –
compreender a cultura no seio dos processos comunicacionais entretecidos a partir narrativas
emanadas por e sobre uma parcela do coração e alma da cidade de São Paulo, a Praça
Roosevelt – são avistados certos movimentos tradutórios que, como expresso por Pinheiro
(2013), são feitos de trocas e colisões culturais dominantes e variantes periféricas. Entre as
observações mais marcantes, encontra-se a constatação de como em lugares periféricos – em
174

meio a pobreza e a violência –, apesar de tudo, se consegue fazer brotar uma riqueza, a
riqueza da superação de movimentos de oposição e de preconceito. Nesta direção, o que de
início era suspeita, confirma-se: a Praça Roosevelt, instável e movediça que é, dadas as suas
matizes múltiplas, variadas intensidades, ideias plurais circulantes e polêmicas em termos de
opinião, como as neste trabalho apresentadas, postula-se como campo fértil às mediações, no
qual embates pelo direito de significar e valorar certos vieses nos sujeitos se dão nas
filigranas, em um gesto criador cotidiano. Em meio a processos comunicacionais, a aridez
entrelaça-se a imaginativas e fecundas táticas.
A Roosevelt, portanto, é compreendida como espaço comunicacional citadino, como
esfera cultural, como produtora de narrativas (textos, contextos e experiências) que colocam
em circulação significados. Tais significados, por seu turno, principiam antes dos sujeitos e se
estendem para além deles. Como é possível depreender do primeiro capítulo, cujo objetivo
específico é o de conhecer os sentidos oferecidos pela produção audiovisual sobre a praça
Roosevelt antes de sua principal reforma. As primeiras vozes da cultura rooseveltiana
apresentadas são as dos documentário Palco Roosevelt (2007) e Roosevelt: uma praça além
do concreto (2008).
O primeiro, revela a Praça para além de um lugar de passagem, como potência
cultural, cuja dinâmica é capaz de mobilizar no espectador reflexões sobre o aspecto social e a
sua pluralidade urbana fundante. Nas primeiras imagens, da não-praça à Roosevelt entregue
em meados dos anos 1970, um zumzumzum de depoimentos dá o tom de variadas
perspectivas sobre o lugar até que o badalar do sino da Igreja Nossa Senhora da Conceição
enderece a atenção do espectador ao anúncio do título do documentário. A Roosevelt,
multiforme e plástica, passa do posto aparentemente pacato de uma província para um lugar
no qual, embora público, não de ser para todos.
As representações dos moradores em situação de rua mostram-nos marginalizados,
pelas beiras da Igreja, na companhia de fiéis peludos, em busca de lampejo de solidariedade,
na ânsia de serem visto ainda como dotados de humanidade. O que encontram, salvo raras
exceções como a ajuda de um senhor chamado Carlos que leva de sua casa de alimento a
sabonete, é a indiferença, ou, pior, aqueles que desejam bani-los da Praça. Para fora da
Roosevelt, alguns desejam colocar a homarada da pelada, a cachorrada, a putas, os skatistas e
os dependentes químicos; sendo que estes últimos já passam por um apagamento da memória
urbana na medida em que são mencionados na obra fílmica, mas não são mostrados por ela.
Além disso, mesmo na voz de um dos representantes dos teatros, muito embora houvesse o
175

desejo de que ninguém fosse de lá expulso, tentar entender esse “mundo de malucos”
denuncia um relativo juízo de valor sobre o assunto ao ser usada tal expressão.
Os exemplos fazem pulular as explicações de Sousa Santos (2008), para o sentido de
exclusão. O extermínio, explica, representa o ápice da exclusão. O desejo de extermínio no
documentário é cristalizado em narrativas cujo objetivo é colocar bem longe da Praça
Rooosevelt algumas personagens citadinas. Sai uma tribo, entra outra. Neste sentido, como o
aumento exponencial do valor do metro quadrado na região, coloca a distância as putas, por
exemplo, corporificando um processo de gentrificação que tem se verticalizado ao longo dos
anos.
Já no documentário Roosevelt: uma praça além do concreto, os depoentes partilham,
ainda, suas memórias sobre o lugar e despontam saudosismos de certas vivências, como uma
entrevistada, a Bartira Cataldi, que, emocionada, recorda a Roosevelt tornando-se seu
endereço tão logo deixara a maternidade. Também vem nas vozes dos entrevistados a saudade
de certos lugares e de sua aura de outrora como o Bar Papo, Pinga e Petisco, a casa Baiúca e
seu famoso estrogonofe, o Cine Bijou preferido por uma juventude da época para ver filme
cabeça. E há, ainda, a nostalgia da “boa música” por ali circulante como o Zimbo Trio, Elis
Regina, Chico Buarque, Johnny Alf, Cauby Peixoto. Depois de experimentar uma fase
obscura, “de bandidagem pura”, a praça passa a ter, de acordo com um dos depoentes, um
feixe de luz com a chegada dos teatros à região, como o grupo Os Satyros e o Espaço
Parlapatões. Os “bandidos deixam a cena” e o espaço converte-se em espécie de ponto
turístico.
Para além da concretude, quiproquós citadinos é o título do segundo capítulo em que
a intenção é tomar contato com a história mais recente da Roosevelt, conhecendo as narrativas
audiovisuais oferecidas sobre a praça Roosevelt após a sua principal reforma, finalizada em
2012. Neste sentido, a aproximação se dá inicialmente como o documentário Arquiteturas:
Praça Roosevelt no qual, além da pluralidade de seus frequentadores, são colocadas lentes na
questão da qualificação urbana. Parte-se, na obra, do fato de a Praça, que já foi “um asfaltão
imenso” e estacionamento para vinte mil carros, ser, desde sua inauguração nos anos 1970,
um ponto nodal da cidade, sob o qual pulsa a trepidante ligação norte e sul, leste e oeste.
A Roosevelt é, na fala de alguns entrevistados, um complexo viário no qual primeiro
se pensou em um projeto destinado aos carros e, depois, às pessoas. Diego Bernardino, um
skatista profissional, evidencia que ao longo do tempo, quem jamais se afastou da Roosevelt
foi a meninada do skate. Ele próprio, em dias de chuva, ia do Vale do Anhangabaú para a
Roosevelt, o que “salvava o rolê”.
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Na websérie O estilo de vida Centro de São Paulo, de 2018, há uma preocupação em


mostrar, nos dias de hoje, como é a vida de moradores do Centro de São Paulo. O material faz
coro, em certa medida, ao processo de gentrificação, visto o relevo dado às imagens e às falas
priorizam o que, na perspectiva dos idealizadores, a cidade tem de melhor. Os frames que
mostram parcelas da Roosevelt mostram-na destituída de gentes, como é o caso da cena em
que Ivam Cabral e seu cachorro circulam de noite pela praça enfatizando a segurança
desfrutada, tendo ao fundo o posto da GCM. Nas entrelinhas, a websérie procura evidenciar
acolhimento na fala de uma nortista que, desde sua chegada à cidade, escolhe o centro como
residência. A cidade, por esta produção audiovisual, é sedutora, pois, passo a passo,
descobertas podem ser feitas, como afirma um jornalista entrevistado enquanto folheia um
livro de sua ampla biblioteca. A mobilidade é ponto de destaque também, afinal, a região
central é a única a oferecer “uma estação pertinho da outra”. Morar no centro pode, ainda,
fazer uma pessoa se sentir junto e misturada, mas esta passagem fica na instância verbal
apenas, porque, a cena é acontece na sacada de um apartamento, ou seja, longe das misturas
propostas pela fala.
Os relatos audiovisuais trabalhados nesta pesquisa, demonstram a multiplicidade de
falas – das mais diretas às mais implícitas – que se desenrolam pelo cotidiano e, claro, na
cultura deste espaço urbano único. Entende-se que na variedade dos testemunhos, há uma
autoria coletiva, uma visão compartilhada de forma mais profunda. Na perspectiva de Ferrara
(1988), o diálogo entre passado e futuro demonstra como a transformação urbana passa pela
memória dos depoentes e como, também, o contexto urbano reflete as circunstâncias espaciais
e conjunturas sociais. Diversidade e pluralidade composta pelos atores da vida urbana
(DELGADO, 2007) vertem em uma memória discursiva que expressa a Praça como espaço de
fervo, de luta, de efervescência cultural, de pensamento crisíco (MORIN, 2011).
A cultura entendida como algo vivo, possui interstícios, por meio dos quais perpassam
palimpsesto de alteridades, diante das quais códigos antes ditos inimigos, passam a se
aproximar, a se tocar a se traduzir e se entre-espelhar, como apresenta Pinheiro (2016). Vê-se
um etnocentrismo de classe, uma vez que, mesmo com a multiplicidade de relatos
apresentados nos materiais audiovisuais estudados, estes acabam sendo compostos, quase que
apenas, por dramaturgos, artistas, arquitetos, documentaristas, fotógrafos, skatistas
profissionais e moradores do entorno da praça. Não oferecendo a visão do cidadão “comum”
da cidade.
Em Alegria, Alegria: a mosca na sopa, o terceiro capítulo deste estudo, avança a
empreitada de buscar de fios discursivos sobre a Praça Roosevelt, objetivando partilhar as
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impressões do campo advindas. Nesta etapa, são apresentadas as perspectivas sobre a região
da Praça Roosevelt tanto a partir de autoridades (discursos institucionalizados) como de
moradores (relatos de sujeitos ordinários). Na narrativa institucionalizada, de um Conselho da
região, uma trincheira já se estabelece visualmente: Em uma reunião, de um lado mesa
constituída por autoridades e exagerados primas anunciando seus nomes e cargos; de outro, os
sujeitos ordinários. Daí já se pode tangenciar a assimetria de vozes corporificada na estrutura
do evento. Ao longo daquele encontro, atentando-se às demandas que tangenciavam a
Roosevelt, estavam moradores que, por decreto, colocaram por terra As Satyrianas. Em sua
18ª edição, a programação ao ar livre do evento fora cancelada e o debate Porque somos todos
baldios, restrito a um público menor. Pregou-se para convertidos, por assim dizer, visto que a
pauta do debate pairava sobre a democratização dos espaços públicos, a proposta daquela
edição. Já entre os apontamentos feitos pelos moradores do entorno da Praça, um jornalista e
um engenheiro civil, conhecidos na reunião do Conselho da região, outros sentidos sobre
aquele espaço são oferecidos; dentre os quais destaca-se o episódio de uma conversa via
Whatsapp com outros moradores. Um dos integrantes do grupo, relata um dos entrevistados,
externou a aflição de que naquele Carnaval, a bagunça seria grande, mas a confusão seria
maior ainda por conta de a prefeitura ter contratado haitianos para realizarem a limpeza da
praça. A maneira como a questão foi posta, escancarava que o problema não era apenas o
haitiano, sua origem, mas também pela cor de sua pele. Xenofobia e racismo a um só tempo.
A partir das duas narrativas – a institucional e a emanada pelos residentes do entorno da Praça
– o espaço urbano é o resultado da fruição da cidade pelos personagens sociais. Com cuidado,
devido aos distanciamentos históricos, contextuais e temporais, as narrativas apresentadas no
terceiro capítulo aproximam-se da acepção de establishment e established, que, juntos,
compõem os estabelecidos (ELIAS, 2000). Estabelecidos são entendidos pelo autor como
aqueles que ocupam posição de prestígio e poder em uma dada sociedade. Percebemos, deste
modo, como estabelecidos tantos aqueles que compõem o relato institucionalizado (Conselho
da região) como os moradores do entorno conhecidos durante este evento. Falar em
establishment, established, que, juntos, constituem os estabelecidos, é oportuno dizer,
representa estratégia de categorização didática, pois, tal como proposto por Certeau (2014),
refutamos a ideia de atomismo social. Reconhecemos que as relações entre os sujeitos se dão
em meio aos patchworks do cotidiano, determinando os termos das sociabilidades. Para além
disso, a partir do mesmo autor, consideramos que cada individualidade é essencialmente
plural e, por vezes, incoerente e contraditória. Evidenciando tal perspectiva, parte dos que
constituem o grupo dos estabelecidos, por decreto, procuraram colocar para fora da Praça
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eventos como a Satyrianas, festival idealizado há mais de 18 anos pelo grupo teatral Os
Satyros. A restrição da Roosevelt, fazendo-a feito quintal, cercada por grade é o que desejam
alguns. Sequestro do espaço público, é o que, em tom de denúncia, como a outra parte dos
estabelecidos categoriza esta iniciativa. Para fora da Praça teatro, dança, música, leituras
dramáticas, haitianos e outras “bagaceiras” de gentes. Ainda que seja ruim o que dizem sobre
essas sobre essas ditas “bagaceiras” de gentes e iniciativas, escrevam-nas, escrevam-nas.
Porque este também é uma maneira de conferir-lhes existência; como dá pista o bolero
Escríbeme, de Javier Solis.
No quarto capítulo, “Andar com fé eu vou, que a fé não costuma faiá”, a atenção volta-
se à refletir sobre a produção de sentido emanada por certas esferas constitutivas da Praça
Roosevelt. E o caminhar pela Igreja Nossa Senhora da Consolação foi transformadora.
Transformadora, entre outros aspectos, pela proximidade de histórias de moradores em
situação de rua, população flutuante, constitutiva e constituinte da Praça Roosevelt. Lembro
da alegria de uma senhora que, em uma das tardes de doação, revelou, com relativo
entusiasmo, que havia conseguido emprego no Habib’s e que se houvesse alguém interessado,
bastava ter carteira de trabalho; não havia a exigência de um CEP. Ninguém se entusiasma. E
não é possível julgar este silêncio porque as histórias por trás de cada um são complexas
demais para tal, como aprendi com a freira à frente das ações junto àquelas pessoas. Em anos,
pouca gente ela conseguiu ajudar a sair das ruas. Neste contato, no gesto de separar as peças
para colocar nas pilhas de doação para serem escolhidas, causa ojeriza o fato de que, na
verdade, não se trata de doação, trata-se de se livrar de certas coisas. Livramento de roupas
puídas demais, com zíper estourado, com rasgos; sujas demais. Na margem, da margem,
recordo, o homem trans. De cara, tratou de dizer no cadastro que não era mulher. Que era uma
pessoa diferente a do RG. Pediu para ser tratado no pronome masculino e o seu desejo
naquele dia era um top para pressionar o seu peito. Na América Latina, desigualdade e
exclusão agravam-se porque sofre metástase o perverso jogo da “violência da coerção e da
violência da assimilação” (SANTOS, 2008, p. 279).
No último capítulo, “Sãopauleando”: prosa, verso, música e zine, procura-se revelar
os aprendizados junto aos jovens frequentadores da Roosevelt a partir de suas histórias de
vida. Entre as histórias, a Roosevelt desponta, na visão de Marcos, de 22 anos, como “um
lugar perfeito para ser adolescente”, para “dar um rolê”, pode ser considerada “um centro
histórico do skate”. E, skate, para ele é família, é união. É um esporte por meio do qual um
olha pelo outro. Para Angelo, a praça é seu escritório, no sentido de que ali vende seus zines,
isto é, sua arte em desenhos e poemas manuscritos. E sua poesia traz sua própria história, sua
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superação e o compromisso de não fazer mal a ninguém para sobreviver. Para ele, o maior
gesto de rebeldia que há é amar. Já Fernanda é pura poesia telúrica, psicóloga formada, vende
brownies e zines para tentar fazer sua tão esperada pós-graduação. Como diz em uma de suas
poesias, “unindo versos despertos ouvintes espertos capturam a cor e agem”. Em cada pessoa,
um mundo. Em cada uma, muitas Roosevelts. Pela fala de cada pessoa, uma multidão. Nas
táticas de sobrevivência – pelos malabares, pela música, pela poesia, pelos desenhos, pela
conversa, pelos zines, encontra-se um jeito político de existir.
Deste modo escamoteado, esta fração da urbe, coloca em circulação vieses que se
pretendem verdadeiros e evidencia uma profusão de estratégias e de táticas constitutivas do
cotidiano, que, como alerta Certeau (2005), é inventado ininterruptamente. A palimpséstica
Roosevelt é uma terra barroca composta de temporalidades, processos tradutórios, colocando
em xeque progressão e linearidade, como explica Pinheiro (2013). Da não-praça para a Praça
da Consolação e, daí, para Praça Roosevelt, texturas urbanas postam-se feito cabo de força
pelo direito de significar aquela parte do coração da cidade de São Paulo. Deste modo, como
aponta Delgado (2007), uma coisa é a cidade da prancheta dos arquitetos, outra questão é o
espaço urbano, que se origina a partir da fruição da cidade pelos sujeitos. Deste modo, a urbe
é pleno experimento que reflete e refrata indivíduos e é atravessado pelos imperativos de cada
momento. Trata-se, por assim dizer, das chamadas formas entrelaçadas que, ao mesmo tempo,
incluem e traduzem, entre outros aspectos, as vozes nas culturas (PINHEIRO, 2015). A
heterogeneidade, por assim dizer, gera conhecimento na movimentação.
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