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CIRCO, EDUCAÇÃO E A CENA CONTEMPORÂNEA.

____________________________________________________________________Fabio Dal Gallo

Doutor em Artes Cênicas PPGAC- UFBA (2009) e Mestre em Ciências Sociais (2005) pela Alma
Mater Studiorum Universidade de Bolonha.

A segunda metade do século XX foi marcante para o contexto circense enquanto começaram a se
intensificar novas experiências que interessaram seja a transmissão das técnicas, que os processos de
criação e encenação dos espetáculos.

Com as crescentes dificuldades encontradas pelos circos itinerantes devidas a um conjunto de fatores,
entre os quais pode-se destacar a difusão da televisão e do cinema que levou o circo a ter menos
público e o fato de que muitos dos filhos de circenses decidiram se dedicar a carreiras diferentes, por
volta do final da década de 1970 começaram a se expandir, cada vez mais, as escolas de circo.

Essas escolas, entre as quais ressaltam os nomes da Escola Fratelini na França, e a Escola Piolin, no
Brasil, incluíram em seus cursos de técnicas circenses muitos alunos que não eram oriundos de
famílias circenses, mas que provinham, e ainda hoje provém, de contextos diferenciados.

Assim, artistas e diretores ligados às escolas de circo propiciaram a criação de espetáculos que
começaram a se distanciar em forma e conteúdo, em muitos casos, dos espetáculos de Circo Moderno.
É suficiente pensar nos espetáculos produzidos pela Intrépida Trupe, ou ainda nos espetáculo do
Cirque du Soleil.

Esse tipo de produção circense, que é controversamente definida de “novo circo”, popularizou-se
rapidamente no cenário mundial, apresentando uma dramaturgia dos espetáculos que nem sempre
busca apenas o virtuosismo e, como apontado por Costa (1999), o equilíbrio entre a tensão e o
relaxamento dessa tensão no espectador, mas foca o roteiro do espetáculo no aspecto narrativo que
pode se constituir por meio da linguagem circense.

Observa-se, portanto, que aproximações e conflitos surgem e acentuam-se no momento de fazer um


paralelo com contexto teatral. Deve-se considerar que se de um lado esses espetáculos se baseiam
numa narrativa que se constitui a partir da inter-relação e do diálogo dos recursos cênicos, (luz,
musica, cenário, figurino, trabalho do ator), do outro lado, como ressaltado por Bolognesi (2006),
esses espetáculos reduzem o transito entre o sublime e o grotesco que caracteriza o espetáculo de
Circo Moderno para ir à busca do belo; o caráter narrativo do espetáculo e a utilização de técnicas
ilusionistas tendem a levar o público à passividade, minimizando a interação entre público e picadeiro
que sempre foi elemento importante sobre o qual se baseia o espetáculo de circo. Enfim, nota-se que
se de um lado atualmente o teatro busca formas anti-ilusionistas e a relação direta do ator com o
público, o que se define de “novo circo” está fazendo o caminho contrário. Paradoxalmente, cria-se

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uma situação na qual o que é cronologicamente “novo” para o circo, para o teatro é “velho” e vice-
versa.

Existe, porém, um segmento da produção artística circense que traz inovações para a cena
contemporânea, não a partir da poética e da estética dos espetáculos, mas da própria finalidade do
espetáculo que não se fecha no aspecto comercial ligado ao conceito de produto cultural. É esse o caso
do Circo Social.

O Circo Social é entendido como o fenômeno onde a arte circense é utilizada como ferramenta
pedagógica para a educação, formação e inclusão social. A sua difusão enquanto prática e o número de
pessoas interligadas a esse âmbito destacam que este fenômeno está adquirindo importância no mundo
inteiro, seja como abrangência da atividade desenvolvida, seja como expressão artística. A presença de
redes como a “Rede Circo do Mundo Brasil” ou o programa “Cirque du Monde”, mostram as fortes
relações que existem entre instituições que atuam com o Circo Social, e colaboraram para que o
desenvolvimento do Circo Social, após aproximadamente duas décadas do seu surgimento, seja
consistente e em continua expansão, interessando globalmente contextos diferenciados, mas mantendo
pressupostos éticos, teóricos e práticos semelhantes.

Primeiramente, ressalta do conceito de Circo Social que essa perspectiva de formação e educação
relacionada ao exercício da cidadania, interligada com o fazer e a prática circenses, é nova na história
do circo; são propostas mudanças que envolvem o modo de organização das instituições promotoras,
os agentes envolvidos, a finalidade e o método de transmissão das técnicas, até a concepção do
espetáculo.

Os pressupostos dessa finalidade educadora do espetáculo são recentes também no contexto teatral,
enquanto visam uma formação e uma educação que se distanciam da intenção de educar o espectador
através de uma catarse como no teatro aristotélico, da pretensão de conscientizar o público sobre
problemas sociais como no teatro brechtiano e de incentivar o espectador à ação como no Teatro do
Oprimido de Boal. A grande diferença está no fato de que o processo educacional e de
formação são direcionados primeiramente aos próprios artistas que apresentam o espetáculo
ao invés que ao público.

Para sustentar essa afirmação, é suficiente analisar e trazer o exemplo de como o Circo Social atua.

Em relação à organização do Circo Social, pode-se constatar que a quase totalidade das instituições
que atuam nesse âmbito são ONG (organizações não governamentais) e associações sem fins
lucrativos. Estas por se articulam em um trabalho em rede demonstram claramente a posição ético-
política de suas atuações e se diferenciam seja dos circos itinerantes que das escolas de circos
profissionalizantes, isso porque, no Circo Social, a prática artística é constantemente interligada com

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atividades complementares e acompanhamento pedagógico, sendo esta prática parte do processo de
formação e não o único fim.

Sobre os agentes envolvidos, o Circo Social se distancia de Circos Itinerantes e de Escolas de Circo
profissionalizantes pelo fato de as questões político-pedagógicas envolvidas nas atividades
desenvolvidas levarem à participação de Artistas Sociais, estes aqui entendidos como aqueles artistas
que operam ativamente através do fazer artístico na busca de transformações na sociedade, e de
Instrutores Sociais, os quais são instrutores de circo que tem também uma formação em educadores
sociais.

Analisando em nível teórico as atuações do Circo Social observa-se que elas encontram fundamentos
no horizonte teórico da arte-educação, ressaltando, de acordo com Barbosa (2005) o enfoque cognitivo
da prática artística; nas teorias pedagógicas de Paulo Freire (1980), especialmente no que se refere à
ação dialógica, a busca da autonomia do aluno e a busca de temas geradores como pontos de partida
para o trabalho pedagógico e artístico desenvolvido. Esses temas geradores se tornam salientes
especialmente no momento dos espetáculos. Além de Freire, as bases teóricas de Boal (1987) também
se tornam importantes, não no que se refere ao seu método de trabalho, e sim nos princípios que o
norteiam. Encontra-se, portanto, que o Circo Social faz um uso político de seu fazer artístico, visa uma
transformação social e produz um tipo de arte popular no sentido de se direcionar preferencialmente
“aos bairros”, seja em relação aos sujeitos atendidos, que no momento destes se apresentarem ao
público.

Ao se desenvolver uma análise do espetáculo de Circo Social ressalta o fim educacional do mesmo e
se observa a sua importância no cenário contemporâneo pelas fáceis relações que podem ser
encontradas com o horizonte teórico dos estudos da performance. Apesar de todos os espetáculos de
circo e de todos os números circenses poderem ser caracterizados como performance, observa-se que,
o Circo Social mostra, primeiramente, tanto na dramaturgia que na narrativa do espetáculo, o artista
performer que atua em primeira pessoa, sendo que geralmente, trazem para a cena experiências de
vida dos próprios artistas como resultado do trabalho pedagógico desenvolvido. O que é mais
realçado, portanto, é que o espetáculo pode ser um produto cultural, mas é em primeiro lugar uma
etapa do processo pedagógico. Mostra-se em cena o “corpo-aluno” do artista e, deste modo, tende-se a
amenizar discriminações de gênero, classe social e etnia, a partir dos pressupostos éticos, políticos e
educacionais sobre os quais o próprio Circo Social se constitui.

Apesar de o Circo Social ter maior visibilidade, uma organização mais consistente e uma difusão mais
abrangente em relação às outras áreas artísticas que fazem, semelhantemente, um uso educacional da
arte, pode-se considerar que as dinâmicas desenvolvidas pelo Circo Social se identificam com
metodologias utilizadas também por outras instituições que utilizam outras linguagens artísticas com
essa finalidade. Pode-se dizer, portanto, que o Circo Social, não apenas traz inovações para a cena

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circense, mas contribui e faz parte de um fenômeno ainda maior que inclui também as outras áreas
artísticas que, na contemporaneidade, coloca em discussão, de forma inovadora, o papel do fazer
artístico e do espetáculo como recurso pedagógico, para alcançar transformações da realidade objetiva.

REFERÊNCIAS

BARBOSA, Ana Mae. Arte-Educação contemporânea: consonâncias internacionais. São Paulo:


Cortez, 2005.

BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido e Outras Poéticas Políticas. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1980.

BOLOGNESI, Mario Fernando. Circo e Teatro: aproximações e conflitos. Revista Sala Preta, São
Paulo, ECA/USP, v.6, p. 9-19, 2006.

COSTA, Eliene Benício Amâncio. Saltimbancos urbanos: a influência do circo na renovação do


teatro brasileiro nas décadas de 80 e 90. 1999. 718 f. Tese (Doutorado em Artes) - Escola de
Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

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