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Sumário

SINOPSE
Parte Um
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
PARTE II
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
PARTE III
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Epílogo
Glossário
SINOPSE
Uma vez a cada mil anos...
A cada milênio, uma era termina e outra era amanhece... E quem
quer que segure o Pergaminho das Mil Orações tem o poder de
chamar o grande Dragão Kami do Mar e pedir qualquer desejo. O
tempo está se aproximando... E as peças que faltam do pergaminho
serão procuradas em toda a terra de Iwagoto. A detentora da primeira
peça é uma camponesa humilde e desconhecida com um segredo
perigoso.

Demônios queimaram o templo de Yumeko, matando todos


dentro, incluindo o mestre que a treinou para usar e ocultar seus
poderes de kitsune. Yumeko escapa com o maior tesouro do templo,
uma parte do antigo pergaminho. O destino a coloca no caminho de
um samurai misterioso, Kage Tatsumi do Clã das Sombras. Yumeko
sabe que ele busca o que ela tem... E está sob ordens de matar
qualquer coisa e qualquer um que se interponha entre ele e o
pergaminho.

Um desejo será concedido e uma nova era


amanhecerá.
Parte Um

Capítulo 1
Inícios e Finais
Estava chovendo no dia que Suki veio para o Palácio do Sol, e
estava chovendo na noite em que ela morreu.
— Você é a nova empregada, não é? — uma mulher de rosto
estreito e ossudo exigiu, olhando-a de cima a baixo. Suki estremeceu,
sentindo a água fria da chuva escorregar por suas costas, pingando de
seu cabelo e molhando o piso de madeira fina. A governanta principal
fungou. — Bem, você não é nenhuma beleza, isso é certo. Mas, não
importa, a última empregada de Dama Satomi era bonita como uma
borboleta, com metade de inteligência. — Ela se inclinou mais perto,
estreitando os olhos. — Diga-me, garota. Disseram que você dirigia a
loja do seu pai antes de vir para cá. Você tem uma cabeça inteligente
em seus ombros? Ou está tão cheia de ar quanto a da última garota?
Suki mordeu o lábio e olhou para o chão. Ela tinha ajudado a
executar a loja de seu pai dentro da cidade mais de um ano. Filha
única de um célebre fabricante de flautas, ela costumava ser
responsável por lidar com os clientes quando o pai estava no trabalho,
ocupado demais com sua tarefa para comer ou falar com alguém até
que sua última peça estivesse pronta. Suki sabia ler e cuidar de
números tão bem quanto qualquer menino, mas sendo uma menina,
ela não tinha permissão para herdar os negócios do pai ou aprender
seu ofício. Mura Akihito ainda era forte, mas estava envelhecendo,
seus dedos antes ágeis endureciam com o tempo e o uso intenso. Em
vez de casar Suki, o pai dela usou sua pouca influência para conseguir
um emprego para ela no Palácio Imperial, então ela seria bem cuidada
quando ele falecesse. Suki sentia falta de casa e se perguntava
desesperadamente se seu pai estava bem sem ela, mas ela sabia que
era isso que ele queria. — Eu não sei, senhora. — Ela sussurrou.
— Hmph. Bem, veremos em breve. Mas eu pensaria em algo
melhor para dizer a Dama Satomi. Caso contrário, a sua estadia será
ainda mais curta do que a da sua antecessora. Agora... — ela
continuou. — Limpe-se, então vá para a cozinha e vá buscar o chá de
Dama Satomi. A cozinheira dirá para onde levá-lo.
Poucos minutos depois, Suki desceu a varanda, carregando uma
bandeja de chá cheia e tentando se lembrar das instruções que
recebera. O Palácio do Sol do imperador era uma cidade em
miniatura; o palácio principal, onde o imperador e sua família viviam,
pairava sobre tudo, mas um labirinto de paredes, estruturas e
fortificações ficava entre a torre de menagem e a parede interna, todas
projetadas para proteger o imperador e confundir um exército
invasor. Nobres, cortesãos e samurais desfilavam pelas passarelas,
vestidos com mantos de cores e desenhos brilhantes: seda branca com
delicadas pétalas de sakura ou um vermelho vivo com flores de
crisântemo dourado. Nenhum dos nobres pelos quais ela passou
olhou para ela uma segunda vez. Apenas as famílias mais influentes
residiam tão perto do imperador; quanto mais perto você vivia da
torre de menagem principal do palácio, mais importante você era.
Suki vagou pelo labirinto de varandas, os nós em seu estômago
ficando mais apertados enquanto ela procurava em vão pelos
aposentos certos. Tudo parecia igual. Prédios de telhado cinza com
paredes de bambu e papel, e varandas de madeira entre eles para que
os nobres não manchem suas roupas com a sujeira e o orvalho. Torres
de ladrilhos azuis elevavam-se sobre ela em esplendor real, e dezenas
de pássaros canoros diferentes cantavam nos galhos das árvores
perfeitamente cuidadas, mas o aperto no peito de Suki e a agitação em
suas entranhas tornavam impossível apreciar isso.
Uma nota alta e clara cortou o ar, elevando-se acima dos
telhados, fazendo-a congelar. Não era um pássaro, embora um tordo
empoleirado em um arbusto próximo gorjeou alto em resposta. Era
um som que Suki sabia instantaneamente, tinha memorizado cada
nota. Quantas vezes ela tinha ouvido isso, vindo da oficina de seu
pai? A doce e assustadora melodia de uma flauta.
Hipnotizada, ela seguiu o som, esquecendo momentaneamente
seus deveres e que sua nova patroa quase certamente ficaria muito
aborrecida por seu chá chegar tão tarde. A canção a puxou para frente,
uma melodia lamentosa e triste, como dizer adeus ou assistir o outono
desvanecer. Suki poderia dizer que quem estava tocando o
instrumento era realmente habilidoso; tanta emoção estava entre as
notas da música, era como se ela estivesse ouvindo a alma de alguém.
Estava tão hipnotizada pelo som da flauta que se esqueceu de
olhar para onde estava indo. Virando uma esquina, Suki guinchou de
consternação quando um jovem nobre em vestes azul celeste
bloqueou seu caminho, uma flauta de bambu colocada em seus
lábios. O bule chacoalhou e as xícaras tremeram perigosamente
enquanto ela se desviou para evitá-lo, tentando desesperadamente
não derramar o conteúdo. O som da flauta cessou quando o nobre,
para seu espanto, se virou e estendeu a mão para firmar a bandeja
antes que ela tombasse na varanda.
— Cuidado aí. — Sua voz estava alta e clara. — Não quero
derrubar nada, seria uma bagunça terrível. Você está bem?
Suki olhou para ele. Ele era o homem mais bonito que ela já tinha
visto. Não, não bonito, ela decidiu. Lindo. Seus ombros largos enchiam o
manto que ele usava, mas suas feições eram graciosas e delicadas,
como um salgueiro na primavera. Em vez do topete de um samurai,
seu cabelo era longo e reto, caindo bem abaixo dos ombros, e era
branco puro, a cor da neve da montanha. Ainda mais incrível, ele
estava sorrindo para ela, não o sorriso frio e divertido da maioria dos
nobres e samurais, mas um sorriso verdadeiro que alcançou os
crescentes lírios alegres de seus olhos.
— Por favor, com licença. — O homem disse, liberando a
bandeja e dando um passo rápido para trás. Sua expressão estava
calma, nada irritada. — A culpa foi minha, plantar-me no meio da
caminhada, sem pensar que alguém poderia estar correndo na esquina
com uma bandeja de chá. Espero não ter incomodado você,
senhorita...?
Suki abriu a boca duas vezes antes de qualquer coisa sair. — Por
favor, me perdoe, senhor. — Sua voz era um sussurro. Os nobres não
falavam assim com os camponeses; até ela sabia disso. — Eu sou Suki,
e sou apenas uma empregada doméstica. Por favor, não se incomode
com gente como eu.
O nobre riu. — Não é problema, Suki-san. — disse ele. — Muitas
vezes me esqueço de onde estou quando estou tocando. — Ele ergueu
a flauta, fazendo seu coração pular. — Por favor, não pense mais
nisso. Você pode retornar às suas funções.
Ele deu um passo para o lado para ela passar, mas Suki não se
moveu, incapaz de desviar o olhar do instrumento em sua mão
esguia. Era feito de madeira polida, escura, rica e mais reta que uma
flecha, com uma faixa distinta de ouro em uma das pontas. Ela sabia
que não deveria falar com o nobre, que ele poderia ordenar que ela
fosse açoitada, aprisionada e até executada se quisesse, mas as
palavras escaparam dela mesmo assim. — Você toca magnificamente,
meu senhor. — ela sussurrou. — Me perdoe. Eu sei que não é minha
função dizer nada, mas meu pai ficaria orgulhoso.
Ele inclinou a cabeça, um lampejo de surpresa cruzando seu belo
rosto. — Seu pai? — ele perguntou, quando a compreensão surgiu em
seus olhos. — Você é filha de Mura Akihito?
— Hai.
Ele sorriu e deu a ela o mais básico dos acenos. — A música é tão
bonita quanto o instrumento. — disse ele. — Quando você ver seu pai
novamente, diga a ele que estou honrado em possuir uma obra-prima.
A garganta de Suki se fechou e seus olhos ficaram quentes e
embaçados. O nobre se afastou educadamente, fingindo interesse em
uma cerejeira em flor, dando-lhe tempo para se recompor. — Ah, mas
talvez você esteja perdida? — ele perguntou depois de um momento,
examinando uma crisálida em um dos ramos delgados. Virando-se
para trás, suas sobrancelhas delgadas se ergueram, mas Suki não
percebeu nenhum escárnio em sua postura ou voz, apenas diversão,
como alguém pode ter ao falar com um gato errante. — O palácio do
imperador pode ser realmente deslumbrante para os não iniciados. A
que aposentos você está designada, Suki-san? Talvez eu possa apontar
a direção certa.
— Da-Dama Satomi, meu senhor. — Suki gaguejou,
verdadeiramente chocada com sua bondade. Ela sabia que deveria se
curvar, mas estava com medo de derramar o chá. — Por favor, me
perdoe, eu vim para o palácio apenas hoje, e tudo é muito confuso.
Uma ligeira carranca cruzou o rosto do nobre, fazendo o coração
de Suki quase parar em seu peito, pensando que ela o havia
ofendido. — Entendo. — ele murmurou, principalmente para si
mesmo. — Outra empregada, Satomi-san? De quantos precisa a
concubina do imperador?
Antes que Suki pudesse se perguntar o que isso significava, ele
se sacudiu e sorriu mais uma vez. — Bem, a sorte favorece você, Suki-
san. A residência de Dama Satomi não fica longe. — Ele levantou uma
manga ondulada, apontando um dedo elegante para a passarela. —
Vá para a esquerda ao redor deste edifício, então caminhe direto até o
fim. Será a última porta à direita.
— Daisuke-san! — A voz de uma mulher ecoou na varanda
antes que Suki pudesse sussurrar seu agradecimento, e o homem
desviou seu belo rosto. Momentos depois, um trio de mulheres nobres
em elegantes mantos verdes e dourados se moveu ao redor do prédio
e franziu o cenho zombeteiramente enquanto se apressavam.
— Aí está você, Daisuke-san. — uma delas bufou. — Onde você
esteve? Nós vamos nos atrasar para o recital de poesia de Hanoe-
san. Oh... — ela disse, avistando Suki. — O que é isso? Daisuke-san,
não me diga que você esteve aqui todo esse tempo, conversando com
uma empregada.
— E porque não? — O tom de Daisuke era irônico. — A conversa
de uma empregada pode ser tão interessante quanto a de qualquer
nobre.
As três mulheres riram como se isso fosse a coisa mais engraçada
que já tinham ouvido. Suki não viu o que era tão engraçado. — Oh,
Taiyo Daisuke, você diz as coisas mais perversas. — uma delas
repreendeu por trás de um leque branco pintado com flores de
cerejeira. — Venha agora. Nós realmente devemos ir. Você... — ela
disse, direcionando seu olhar para Suki. — Volte para seus
deveres. Por que você está parada aí boquiaberta? Xô!
O mais rápido que pôde sem derramar o chá, Suki saiu
correndo. Mas seu coração ainda batia forte e, por algum motivo, ela
não conseguia recuperar o fôlego. Taiyo. Taiyo era o nome da família
imperial. Daisuke-sama era do Clã do Sol, uma das famílias mais
poderosas de Iwagoto, o sangue do próprio imperador. A sensação
estranha em seu estômago se intensificou e seus pensamentos se
tornaram um enxame de mariposas, vibrando em torno da memória
deslumbrante do sorriso dele e da melodia da flauta de seu pai.
De alguma forma, ela encontrou o caminho até a porta correta,
bem no final da varanda, olhando para os magníficos jardins do
palácio. O painel shoji estava aberto e Suki podia sentir o cheiro de
fumaça de incenso queimando flutuando do interior
escuro. Rastejando dentro da sala, ela olhou ao redor em busca de sua
nova senhora, mas não viu ninguém. Apesar da preferência unificada
dos nobres pela simplicidade, este apartamento era abundantemente
desorganizado. Telas ornamentais transformaram a sala em um
pequeno labirinto, e tatames cobriam todo o chão, grossos e macios
sob seus pés. O papel estava em toda parte; folhas de origami de todos
os estilos e texturas empilhadas em volta do apartamento. Pássaros de
papel dobrados a olhavam de cima de cada superfície plana,
dominando a sala. Suki limpou um bando de grous de origami da
mesa para que pudesse pousar o chá.
— Mai-chan? — Uma voz tênue saiu do cômodo ao lado, e o som
da seda farfalhou no chão. — É você? Onde você esteve? Eu estava
ficando preocupada que você - oh.
Uma mulher apareceu na porta e, por um momento, elas se
encararam, a boca de Suki aberta de espanto.
Se Taiyo Daisuke era o homem mais bonito que ela já conhecera,
essa era a mulher mais elegantemente bonita de todo o palácio. Suas
vestes esvoaçantes eram vermelhas com prata, ouro e borboletas
verdes enxameando na frente. Cabelo preto cintilante estava
lindamente penteado no topo de sua cabeça, perfurado com
pauzinhos vermelhos e dourados e pentes de marfim. Olhos escuros
em um rosto de porcelana impecável observavam Suki com
curiosidade.
— Olá. — disse a mulher, e Suki fechou a boca rapidamente. —
Posso perguntar quem você é?
— Eu... Eu sou Suki. — A garota gaguejou. — Eu sou sua nova
empregada.
— Eu vejo. — Os lábios da mulher se curvaram em um leve
sorriso. Suki tinha certeza de que, se seus dentes aparecessem,
iluminariam o ambiente. — Venha aqui, se quiser, pequena Suki-
chan. Por favor, não pise em nada.
Suki obedeceu, colocando os pés com cuidado para evitar
esmagar qualquer criatura de papel, e parou diante de Dama Satomi.
A mulher bateu no rosto dela com a palma da mão aberta.
A dor explodiu atrás de seu olho, e ela desabou no chão, muito
atordoada até mesmo para ofegar. Piscando para conter as lágrimas,
ela colocou a mão na bochecha e olhou fixamente para Dama Satomi,
que pairava sobre ela, sorrindo.
— Você sabe por que eu fiz isso, pequena Suki-chan? — ela
perguntou, e agora ela mostrou os dentes. Eles lembravam Suki de
uma caveira sorridente.
— N-não, minha senhora. — Ela murmurou, enquanto sua
bochecha dormente começou a queimar.
— Porque eu chamei Mai-chan, não você. — A senhora
respondeu com uma voz implacavelmente alegre. — Você pode ser
uma garota estúpida do interior, Suki-chan, mas isso não desculpa sua
total ignorância. Você deve vir apenas quando for chamada,
entendeu?
— Sim, minha senhora.
— Sorria, Suki-chan. — Satomi sugeriu. — Se você sorrir, talvez
eu possa esquecer que você tem o sotaque de um bárbaro do interior
suado e o rosto de um boi. Será terrivelmente difícil não detestar você
à primeira vista, mas farei o possível. Não é generoso da minha parte,
Suki-chan?
Suki, sem saber o que dizer sobre isso, manteve a boca fechada e
pensou em Daisuke-sama.
— Não é generoso da minha parte, Suki-chan? — Satomi repetiu,
com um tom agudo em sua voz agora.
Suki engoliu em seco. — Hai, Dama Satomi.
Satomi suspirou. — Você destruiu minhas criações. — Ela fez
beicinho, e Suki olhou para as criaturas de origami que haviam sido
esmagadas por seu corpo. A senhora fungou e se afastou. — Ficarei
muito zangada se você não os substituir. Há uma pequena loja
pitoresca no distrito de Wind que vende os mais delicados folhas
lavanda. Se você correr, deve alcançá-los antes que fechem.
Suki olhou através de uma tela aberta para as nuvens de
tempestade que ondulavam acima do palácio. O trovão retumbou
enquanto fios prata-azulados perseguiam uns aos outros pelo céu. —
Sim, Dama Satomi.

O passar dos dias fez Suki ter saudades da loja do pai, do


conforto silencioso de varrer, costurar roupas rasgadas e cozinhar
refeições três vezes ao dia. Pelo cheiro reconfortante de serragem e
aparas de madeira, e pelos clientes que mal a olhavam duas vezes,
preocupados apenas com o pai e o trabalho dele. Ela pensava que
seria fácil ser a empregada de uma grande dama, ajudá-la a se vestir e
levar seus recados e cuidar das pequenas tarefas mundanas que
estavam abaixo da atenção da nobreza. Talvez fosse assim que deveria
ser, certamente, as outras criadas não pareciam compartilhar de sua
situação. Na verdade, eles pareciam sair de seu caminho para evitá-la,
como se a associação com a empregada de Dama Satomi pudesse
atrair a ira de sua senhora. Suki não podia culpá-las.
Dama Satomi era um pesadelo, um lindo pesadelo de seda,
maquiagem e perfume inebriante. Nada que Suki fizesse era
apropriado para a mulher. Não importava o quanto ela esfregava ou
limpava, a roupa nunca estava da satisfação de Satomi. O chá que
Suki preparava era muito fraco, muito forte, muito doce, sempre
muito alguma coisa. Nenhuma quantidade de limpeza era suficiente
nos aposentos de Dama Satomi, sempre havia um grão de sujeira para
ser encontrado, um tatame fora do lugar, uma figura de origami no
lugar errado. E cada falha trouxe um pequeno sorriso da senhora e um
tapa chocantemente poderoso.
Ninguém se importava, é claro. As outras criadas desviavam o
olhar de seus hematomas e os guardas não olhavam para ela. Suki não
se atrevia a reclamar; Dama Satomi não era apenas uma grande e
poderosa dama, ela era a concubina favorita do próprio
imperador. Falar mal dela seria um insulto a Taiyo no Genjiro, o
grande Filho do Céu, e resultaria em açoite, humilhação pública ou
pior.
A única coisa que salvou Suki do desespero total foi a ideia de
encontrar Daisuke-sama novamente. Ele era um grande nobre, é claro,
muito acima de sua posição, e não se importaria com os problemas de
uma empregada humilde. Mas mesmo ter um vislumbre dele seria o
suficiente. Ela o procurou nas varandas e nos caminhos de e para os
aposentos de Dama Satomi, mas o belo nobre não estava em lugar
nenhum. Mais tarde, ela soube por meio de fofocas de servos que
Taiyo Daisuke havia deixado o Palácio do Sol não muito depois de sua
chegada, partindo para uma de suas misteriosas peregrinações pelo
país. Talvez, Suki pensou, ela o visse quando ele voltasse. Talvez ela
ouvisse a flauta do pai novamente e a seguisse até que o encontrasse
na varanda, seus longos cabelos brancos esvoaçando atrás dele.
Um tapa retumbante a tirou de seus devaneios, jogando-a no
chão. — Oh céus. Você é uma garota desajeitada. — Dama Satomi
estava de pé sobre ela, resplandecente em suas deslumbrantes vestes
de seda. — Levante-se, Suki-chan. Eu tenho uma tarefa pra você.
Em seus braços, a senhora carregava um rolo de corda de seda
fina, de cor vermelho sangue. Quando Suki ficou de pé, a corda foi
jogada em seus braços. — Você é uma coisinha tola, não é? Eu espero
algum dia fazer de você uma boa empregada. Mas certamente até
você pode cuidar dessa pequena tarefa. Leve esta corda para o
armazém nos jardins do leste, depois do lago. Certamente você pode
fazer isso? E pare de chorar, menina. O que as pessoas vão pensar de
mim, se minha empregada sair por aí chorando por toda parte?

Suki acordou na escuridão com uma pulsação no crânio. Sua


visão turvou, e havia um gosto estranho de cobre no fundo de sua
garganta. Acima, um trovão rugiu, e um vento forte com cheiro de
ozônio soprou em seu rosto. O chão embaixo dela parecia frio, e as
bordas duras e pedregosas pressionavam desconfortavelmente seu
estômago e bochecha. Piscando, ela tentou se endireitar, mas seus
braços não respondiam. Um momento depois, ela percebeu que eles
estavam amarrados nas costas.
O gelo inundou suas veias. Ela rolou para o lado e tentou se
levantar, mas seus joelhos e tornozelos também estavam amarrados,
com a mesma corda que ela trouxe para o depósito, ela percebeu, e um
pano foi enfiado em sua boca, amarrado com outra tira de pano. Com
um grito abafado, ela se debateu violentamente, contorcendo-se nas
pedras. A dor subiu por seus braços enquanto ela raspava o chão,
cortando a pele nas pontas das rochas e deixando pedaços de carne
para trás, mas as cordas se mantiveram firmes. Ofegante, exausta, ela
caiu contra as pedras em derrota, então ergueu a cabeça para olhar ao
redor.
Ela estava deitada no centro de um pátio, mas não no pátio
imaculado e elegante do Palácio do Sol, com suas pedras brancas
varridas e arbustos aparados. Este era escuro, rochoso, arruinado. O
castelo ao qual estava anexado também estava escuro e abandonado,
pairando sobre ela como uma grande fera carrancuda, bandeiras
esfarrapadas batendo contra as paredes. Folhas mortas e pedras
quebradas estavam espalhadas por todo o pátio, e um capacete de
samurai, vazio e enferrujado, estava a poucos metros dela. Na luz
bruxuleante acima, ela podia ver o brilho dos olhos no topo das
paredes, dezenas de corvos, olhando para ela com suas penas
espetadas contra o vento.
— Olá, Suki-chan. — disse uma voz estranhamente alegre em
algum lugar atrás dela. — Você finalmente acordou?
Suki esticou a cabeça para trás. Dama Satomi estava a poucos
passos de distância, o cabelo solto e sacudido pelo vento, as mangas
de seu quimono vermelho e preto esvoaçando como velas. Seus olhos
estavam duros e seus lábios se curvaram em um pequeno
sorriso. Ofegante, Suki sentou-se, querendo gritar por ajuda, para
perguntar o que estava acontecendo. Seria algum castigo terrível por
desapontar a patroa, por não limpar, buscar ou servir aos seus
padrões? Ela tentou suplicar com os olhos, lágrimas quentes
escorrendo pelo rosto, mas a mulher apenas franziu o nariz.
— Uma garota tão preguiçosa e tão frágil. Não posso suportar
seu choro constante. — Dama Satomi fungou e se afastou alguns
metros, sem olhar mais para ela. — Bem, seja feliz, Suki-chan. Por hoje
sua miséria chegará ao fim. Embora isso signifique que eu deva
adquirir mais uma empregada, o que há com todas essas servas
fugindo como ratos? Desgraçadas ingratas. Nenhum senso de
responsabilidade. — Ela deu um longo suspiro de sofrimento, então
olhou para as nuvens enquanto o relâmpago cintilava e o vento
aumentava. — Onde está aquele oni? — ela murmurou. — Depois de
todos os problemas que passei para obter uma compensação
adequada, ficarei muito zangada se ele não chegar antes da
tempestade.
Oni? Suki deve ter ouvido coisas. Oni eram demônios grandes e
terríveis que vieram de Jigoku, o reino do mal. Havia inúmeras
histórias de bravos samurais matando oni, às vezes exércitos de oni,
mas eram mitos e lendas. Oni eram as criaturas com as quais os pais
ameaçavam os filhos rebeldes. “Não ande muito perto da floresta ou um
oni pode pegar você. Ouça os mais velhos, ou um oni estenderá a mão por
baixo das tábuas do assoalho e arrastará você para o Jigoku.” Avisos
assustadores para crianças e inimigos monstruosos para samurais
lendários, mas não criaturas que caminhavam em Ningen-kai, o reino
mortal.
Houve um clarão ofuscante, um estrondo de trovão, e uma
grande criatura com chifres apareceu na beira do pátio.
Suki gritou. A mordaça abafou, mas ela continuou gritando até
ficar sem fôlego, ofegando e sufocando com o pano. Ela tentou fugir e
caiu com força contra as pedras, batendo com o queixo na pedra, mas
mal sentiu a dor. Os lábios de Dama Satomi se moveram quando ela
lançou um olhar fulminante, provavelmente castigando sua
estridência, mas a mente de Suki não conseguia registrar nada além
do enorme demônio, pois só podia ser uma coisa de pesadelos,
espreitando para a luz da tocha. O monstro que não deveria existir.
Era enorme, ficava uns bons quatro metros e meio acima, e tão
terrível e assustador quanto as lendas descreviam. Sua pele era de um
carmesim escuro, da cor do sangue, e uma juba negra e selvagem
descia por suas costas e ombros. Afiadas presas amarelas curvavam-se
de sua mandíbula e seus olhos brilhavam como brasas enquanto o
demônio avançava pesadamente, fazendo o chão tremer. A minúscula
parte do cérebro de Suki não congelada de terror lembrou que, nas
histórias, oni vestiam tangas feitas de grandes feras listradas, mas esse
demônio usava placas de armadura laqueada; as ombreiras
vermelhas, protetores de coxa e braçadeiras do samurai quando eles
cavalgavam para a batalha. Fiel aos mitos, no entanto, carregava um
porrete gigante cravejado de ferro, um tetsubo, em uma mão,
balançando-o no ombro como se pesasse não mais do que um bastão
de tinta.
— Aí está você, Yaburama. — Dama Satomi ergueu o queixo
quando o oni parou na sua frente. — Estou ciente de que o tempo em
Jigoku não existe e dizem que um dia é semelhante a oitocentos anos
no reino mortal, mas a pontualidade é um atributo maravilhoso, algo
a que todos podemos aspirar.
O oni grunhiu, um som profundo e gutural emergindo entre
suas presas. — Não me dê sermão, humana. — Ele rugiu, sua voz
terrível fazendo o ar estremecer. — Invocar Jigoku leva tempo,
especialmente se você deseja convocar um exército.
Atrás do demônio, espalhando-se ao redor dele como uma
colônia de formigas, uma horda de monstros menores
apareceu. Estando apenas alguns centímetros acima do joelho, sua
pele em diferentes tons de azul, vermelho e verde, eles pareciam
minúsculos oni, exceto por suas enormes orelhas e sorrisos
maníacos. Eles avistaram Suki e começaram a avançar, gargalhando e
lambendo os dentes pontiagudos. Ela gritou na mordaça e tentou se
esquivar, mas não foi além do que um peixe na terra iria.
O oni rosnou um aviso, profundo como um trovão distante, e a
horda recuou. — Isso é meu? — o demônio perguntou, o olhar
carmesim brilhante caindo sobre Suki. — Parece saborosa. — Ele deu
um passo em sua direção e ela quase desmaiou no local.
— Paciência, Yaburama. — Dama Satomi estendeu a mão,
parando-o. Ele estreitou os olhos e mostrou os dentes ligeiramente,
mas a mulher não parecia perturbada. — Você pode ter seu
pagamento em um momento. — Ela continuou. — Eu só quero ter
certeza de que você sabe por que foi convocado. Que você saiba o que
deve fazer.
— Como não poderia. — respondeu o oni, parecendo
impaciente. — O dragão está subindo. O Precursor da Mudança se
aproxima. Outros mil anos se passaram neste reino de horrível luz e
sol, e a noite do desejo está quase chegando. Há apenas uma razão
pela qual um mortal me convocaria para Ningen-kai neste momento.
— Um olhar de desprezo divertido cruzou seu rosto brutal. — Vou
pegar o pergaminho para você, humana. Ou um pedaço dele, agora
que foi espalhado aos quatro ventos. — O olhar vermelho ardente
deslizou de volta para Suki, e ele sorriu lentamente, mostrando as
presas. — Farei isso depois de receber meu pagamento.
— Bom. — Dama Satomi deu um passo para trás, quando as
primeiras gotas de chuva começaram a cair. — Conto com você,
Yaburama. Tenho certeza de que há outros que estão lutando para
encontrar todos os pedaços do pergaminho do dragão. Você sabe o
que fazer se os encontrar. Bem... — Ela abriu uma sombrinha rosa e a
colocou sobre a cabeça. — Eu a deixo para você. Aproveite.
Quando lençóis d'água começaram a rastejar pelo pátio, Dama
Satomi se virou e começou a se afastar. Suki gritou na mordaça e se
jogou atrás de sua patroa chorando e implorando, rezando para o
kami e qualquer outra pessoa que pudesse ouvir. Por favor, ela pensou
desesperadamente. Por favor, não posso morrer assim. Assim não.
Dama Satomi fez uma pausa e olhou para ela com um sorriso. —
Oh, não fique triste, pequena Suki-chan. — ela disse. — Este é o seu
momento de maior orgulho. Você será a catalisadora para inaugurar
uma nova era. Este império, o mundo inteiro, vai mudar, por causa do
seu sacrifício hoje. Entende? — A senhora inclinou a cabeça,
observando-a como se ela fosse um cachorrinho choramingando. —
Você realmente se tornou útil. Certamente isso é o suficiente para
alguém como você.
Atrás de Suki, o chão tremeu e uma enorme garra se fechou em
suas pernas, garras curvas afundando em sua pele. Ela gritou e se
debateu, puxando as cordas, tentando se soltar das garras do
demônio, mas não havia como escapar. Dama Satomi fungou, se virou
e continuou, sua sombrinha balançando na chuva, enquanto Suki era
puxada em direção ao oni, os demônios menores gritando e dançando
ao redor dela.
Ajude-me. Alguém, por favor, me ajude! Daisuke-sama... De repente,
seus pensamentos foram para o nobre, para seu rosto bonito e sorriso
gentil, embora ela soubesse que ele não viria. Ninguém estaria vindo,
porque ninguém se importava com a morte de uma serva
humilde. Pai, Suki pensou em desespero entorpecido, sinto muito. Eu
não queria te deixar sozinho.
No fundo, a raiva cintilou, momentaneamente extinguindo o
medo. Era terrivelmente injusta ser morta por um demônio antes que
ela pudesse fazer qualquer coisa. Ela era apenas uma serva, mas
esperava se casar com um bom homem, constituir família, deixar para
trás algo que importasse. Não estou pronta, Suki pensou em
desespero. Eu não estou pronta para ir. Por favor, ainda não.
Dedos com garras se fecharam ao redor de seu pescoço, e ela foi
levantada para enfrentar o sorriso terrível e faminto do oni. Seu hálito
quente, cheirando a fumaça e carne podre, atingiu seu rosto quando o
demônio abriu suas mandíbulas. Felizmente, os deuses decidiram
intervir naquele momento, e Suki finalmente desmaiou de terror, sua
consciência deixando seu corpo um momento antes de se rasgar ao
meio.
O cheiro de sangue espalhou-se pelo ar e os demônios uivaram
de alegria. Do corpo mutilado de Suki, invisível para a horda e
invisível para os olhos normais, uma pequena esfera de luz subiu
lentamente no ar. Ela pairou sobre a cena horrível, parecendo
observar enquanto os demônios menores disputavam os restos, o
rugido estrondoso de Yaburama subindo na noite enquanto ele os
espantava. Por um momento, pareceu dividida entre voar para as
nuvens e permanecer onde estava. Subindo sem rumo mais alto, ela
parou em um lampejo de cor que brilhou através da chuva, uma
sombrinha rosa indo em direção às portas do castelo. O brilho branco-
azulado da esfera se transformou em um vermelho raivoso.
Caindo do céu, o orbe de luz voou silenciosamente sobre a
cabeça do oni, caiu no chão e deslizou pela porta do castelo pouco
antes de se fechar, deixando o oni, os demônios e o corpo rasgado e
assassinado de uma serva atrás.
Capítulo 2
A raposa no templo
— Yumeko!
O grito ecoou pelo jardim, estrondoso e furioso, me fazendo
estremecer. Eu estava sentada em silêncio perto do lago, jogando
migalhas para os peixes gordos vermelhos e brancos que enxameavam
abaixo da superfície, quando o som familiar do meu nome berrou de
raiva veio da direção do templo. Rapidamente, eu me abaixei atrás da
grande lanterna de pedra na beira da água, no momento em que
Denga caminhava pela margem oposta, seu rosto como uma nuvem
de tempestade.
— Yumeko! — O monge gritou novamente enquanto eu me
pressionava na pedra áspera e musgosa. Eu podia imaginar seu rosto
normalmente severo e plácido ficando tão vermelho quanto os pilares
do templo, o rubor subindo por toda a sua testa calva. Eu tinha visto
isso muitas vezes para contar. Seu rabo de cavalo trançado e suas
vestes laranja estavam sem dúvida balançando enquanto ele girava,
procurando nas bordas do lago, examinando os canteiros de bambu
ao redor do jardim. — Eu sei que você está aqui em algum lugar! —
ele se enfureceu. — Colocar sal no bule... de novo! Você acha que
Nitoru gosta que cuspam chá bem na cara dele? — Mordi meu lábio
para abafar o riso e me pressionei contra a estátua, tentando ficar em
silêncio. — Garota demônio miserável! — Denga fervilhava quando o
som de seus passos saiu do lago e se dirigiu para o jardim. — Eu sei
que você está rindo como uma idiota agora. Quando eu te encontrar,
você estará varrendo o chão até a hora do Rato!
Sua voz sumiu. Espiei ao redor da pedra para ver Denga
continuar descendo o caminho até o bambu, até que se perdeu de
vista.
Soltando um suspiro, inclinei-me contra o corpo desgastado da
lanterna, sentindo-me triunfante. Bem, isso foi divertido. Denga-san é
sempre tão tenso; ele realmente precisa experimentar novas expressões ou seu
rosto vai rachar com a tensão. Eu sorri, imaginando a expressão no rosto
do pobre Nitoru quando o outro monge descobriu o que estava em
sua xícara de chá. Infelizmente, Nitoru tinha o mesmo senso de humor
de Denga, que era nenhum. Definitivamente, é hora de sumir. Vou roubar
um livro da biblioteca e me esconder embaixo da mesa. Oh, espere, mas Denga
já conhece aquele local. Péssima ideia. Eu me encolhi com o pensamento
de todas as longas varandas de madeira que precisariam de uma
varredura completa se eu fosse encontrada. Talvez seja um bom dia para
não estar aqui. Pelo menos até esta noite. Eu me pergunto o que a família de
macacos na floresta está fazendo hoje?
Excitação vibrou. Cerca de uma dúzia de macacos amarelos
viviam nos ramos de um cedro antigo que se erguia acima de todas as
outras árvores da floresta. Em dias claros, se alguém subisse até o
topo, poderia ver o mundo inteiro, desde a pequena aldeia agrícola na
base das montanhas até o horizonte distante. Sempre que me
encontrava no topo daquela árvore, balançando com os macacos e os
galhos, olhava para o tapete multicolorido que se estendia diante de
mim e me perguntava se hoje seria o dia em que teria coragem de ver
o que há além do horizonte.
Nunca fui, e esta tarde não seria diferente. Mas pelo menos eu
não estaria aqui, esperando que um Denga-san zangado enfiasse uma
vassoura em minhas mãos e me dissesse para varrer todas as
superfícies planas do templo. Incluindo o quintal.
Afastando-me da estátua, me virei... E fiquei cara a cara com
Mestre Isao.
Gritei, recuando e batendo na lanterna de pedra, que era maior e
mais pesada do que eu e se recusou obstinadamente a ceder. O velho
monge de barba branca sorriu serenamente sob seu chapéu de palha
de aba larga.
— Indo para algum lugar, Yumeko-chan?
— Hum... — Eu gaguejei, esfregando minha nuca. Mestre Isao
não era um homem grande; magro e esbelto, ele era uma cabeça mais
baixo do que eu quando usava seus tamancos de madeira. Mas
ninguém no templo era mais respeitado e ninguém tinha tanto
controle sobre seu ki como Mestre Isao. Eu o vi cortar uma árvore ao
meio com um movimento de sua mão e socar uma pedra gigante em
escombros. Ele era o mestre indiscutível do templo Ventos Silenciosos,
capaz de aquietar uma sala de praticantes de ki obstinados apenas por
aparecer. Embora ele nunca levantasse a voz ou parecesse zangado; a
expressão mais dura que eu já o vi fazer foi uma carranca leve, e isso
foi assustador.
— Ano... — gaguejei novamente, enquanto suas sobrancelhas
espessas se erguiam em paciente diversão. Não adianta mentir, Mestre
Isao sempre soube tudo sobre tudo. — Eu estava... indo visitar a
família dos macacos na floresta, Mestre Isao. — Confessei,
imaginando que esse era o menor dos meus crimes. Não fui
exatamente proibida de deixar o terreno do templo, mas os monges
certamente não gostavam quando o fazia. A quantidade de tarefas,
treinamento e deveres que me impunham quando eu estava acordada
indicava que eles tentavam me manter ocupada sempre que
possível. O único tempo livre que eu conseguia era geralmente
roubado, como hoje.
Mestre Isao apenas sorriu. — Ah. Macacos. Bem, temo que seus
amigos terão que esperar um pouco, Yumeko-chan. — disse ele, não
parecendo zangado ou surpreso. — Preciso de seu tempo emprestado
por um momento. Por favor siga-me.
Ele se virou e começou a contornar o lago, em direção ao
templo. Tirei o pó das mangas e caminhei atrás dele, descendo a trilha
de bambu salpicada de sol e sombras verdes, passando pelas pedras
que cantavam, onde a brisa soprava alegremente pelos buracos feitos
nas rochas e pela ponte em arco vermelho que cruzava o riacho. Um
pássaro marrom desbotado voou para os galhos de um zimbro,
estufou o peito e encheu o ar com a bela canção de rouxinol. Eu
assobiei de volta para ele, e ele me lançou um olhar indignado antes
de disparar para as folhas.
As árvores se abriram, a folhagem caindo, enquanto passávamos
pelo minúsculo jardim de pedras com sua areia meticulosamente
varrida e subíamos os degraus do templo. Quando entramos no
corredor escuro e fresco, avistei Nitoru me encarando do outro lado
do cômodo e ousei um aceno atrevido, sabendo que ele não se
aproximaria enquanto eu estivesse com Mestre Isao. Provavelmente
estaria varrendo os degraus até o próximo inverno, mas a expressão
no rosto do monge valeu à pena.
Mestre Isao me conduziu por vários corredores estreitos,
passando por cômodos individuais de cada lado, até que deslizou
para trás um painel da porta e me fez passar. Entrei em uma sala
familiar, pequena e organizada, vazia, exceto por um grande espelho
na parede oposta e um pergaminho pendurado ao lado dele. O
pergaminho representava um enorme dragão voando sobre um mar
revolto e um pequeno barco sacudido pelas ondas abaixo dele.
Eu mascarei um suspiro. Eu já tinha estado nesta sala algumas
vezes antes, e o ritual que se seguia era sempre o mesmo. Sabendo o
que Mestre Isao queria, caminhei levemente pelos tatames e me
ajoelhei em frente ao espelho, o único em todo o templo. Mestre Isao
seguiu e se acomodou ao lado, de frente para mim, com as mãos no
colo. Por um momento, ele ficou lá, os olhos serenos, embora
parecesse que seu olhar passou direto por mim para a parede atrás da
minha cabeça.
— O que você vê? — Ele perguntou, como sempre fazia.
Eu olhei no espelho. Meu reflexo olhou para mim, uma garota
franzina de dezesseis invernos, cabelos pretos e lisos caindo, soltos,
até o centro das costas. Ela usava sandálias de palha, uma faixa branca
e um quimono carmesim curto que estava esfarrapado em alguns
lugares, principalmente nas mangas compridas e onduladas. Suas
mãos estavam sujas de se ajoelhar no lago conversando com os peixes,
e sujeira manchava seus joelhos e rosto. À primeira vista, ela parecia
uma camponesa esfarrapada, mas perfeitamente normal, talvez a filha
de um pescador ou agricultor, ajoelhada no chão do templo.
Se por acaso você não notasse a cauda laranja espessa, espiando
por trás de suas vestes. E as grandes orelhas triangulares com pontas
pretas saindo do topo de seu crânio. E os olhos dourados brilhantes
que muito claramente a marcavam como não normal, nem humana.
— Eu me vejo, Mestre Isao. — eu disse, imaginando se, desta
vez, seria a resposta certa. — Em minha verdadeira forma. Sem ilusão
ou barreira. Eu vejo uma kitsune.
Kitsune. Raposa. Ou meio kitsune, mais precisamente. Kitsune
selvagem, as raposas que vagavam pelos lugares escondidos de
Iwagoto, eram mestres da magia de ilusão e da mudança de
forma. Embora fosse verdade que alguns kitsune escolheram viver
como animais selvagens normais, todas as raposas possuíam
magia. Kitsune eram yokai, criaturas sobrenaturais. Um de seus
truques favoritos era assumir a forma humana, geralmente na
aparência de uma bela mulher, e enganar os homens. A olho nu, eu
era uma garota humana comum; sem cauda, orelhas pontudas ou
olhos amarelos. Somente na frente de espelhos e superfícies reflexivas
minha verdadeira natureza era revelada. Mesas laqueadas, água
parada, até o gume de uma lâmina. Tive de ter muito cuidado onde
estava e com o que estava por perto, para que um observador atento
não notasse que o reflexo na superfície não combinava exatamente
com a garota à sua frente.
Ou então os monges me avisaram. Todos eles sabiam o que eu
era e fizeram questão de me lembrar disso com
frequência. Mestiça, criança demônio, menina raposa eram frases que
faziam parte do meu dia a dia. Não que algum dos monges fosse cruel
ou sem coração, apenas prático. Eu era kitsune, algo não muito
humano, e eles não viam razão para fingir o contrário.
Olhei para Mestre Isao, me perguntando se ele me diria algo
diferente desta vez, qualquer dica do que ele realmente queria que eu
dissesse. Nós jogamos “o que você vê?” inúmeras vezes no passado, e
nenhuma das minhas respostas, sejam elas humanos, demônios,
raposas ou peixes, parecia satisfazê-lo, porque eu sempre me
encontrava de volta aqui, olhando para a kitsune no espelho.
— Como estão progredindo as suas aulas? — Mestre Isao
continuou, sem dar nenhuma indicação de que tinha ouvido minha
resposta, ou se era a certa. Eu duvidava seriamente disso.
— Tudo bem, Mestre Isao.
— Mostre-me.
Hesitei, procurando um alvo adequado. Não havia muitos a
serem encontrados. O espelho, talvez. Ou o pergaminho da
parede. Mas eu já havia usado os dois no passado, e Mestre Isao não
ficaria impressionado com os mesmos truques repetidamente. Este
também era um jogo que jogávamos com frequência.
Avistei uma folha de bordo amarela presa na ponta da manga e
sorri.
Pegando-a, girei-a entre o polegar e o indicador e coloquei-a
cuidadosamente na cabeça. A magia Kitsune precisava de uma âncora,
algo do mundo natural, para construir uma ilusão ao redor. Havia
histórias de kitsune muito antigos e muito poderosos que podiam
tecer ilusões do nada, mas eu precisava de algo para anexar a
magia. Ponto focal no lugar, semicerrar os olhos e invocar meus
poderes.
Desde antes que eu pudesse me lembrar, a magia vinha
naturalmente para mim, um presente do lado yokai da família, me
disseram. Mesmo quando eu era uma criança, eu tinha mostrado um
talento impressionante para isso, flutuando pequenas kitsune-bi, fogo-
de-raposa branco-azulado e sem calor, pelos corredores do
templo. Conforme eu envelhecia e minha magia crescia, alguns dos
monges pensaram que Mestre Isao deveria colocar uma amarração em
mim, selando meu poder para que eu não machucasse ninguém, ou a
mim mesma. Kitsune selvagens eram criadores de problemas
notórios. Eles não eram intrinsecamente maliciosos, mas suas
"pegadinhas" podiam variar de meramente irritantes, roubar comida
ou esconder pequenos itens, a verdadeiramente perigosas como
assustar um cavalo em um caminho estreito de montanha ou levar
alguém para o fundo de um pântano ou floresta, para nunca ser visto
novamente. Melhor que eu não tivesse essa tentação, pelo menos
segundo Denga e alguns outros. Mas o mestre do templo Ventos
Silenciosos recusou terminantemente. A magia da raposa fazia parte
da vida de um kitsune, disse ele, algo tão natural como dormir ou
respirar. Negar isso faria mais mal do que bem.
Em vez disso, pratiquei minha magia todos os dias com um
monge chamado Satoshi, na esperança de aprender a controlar meu
talento de raposa, e não o contrário. Os monges ficaram céticos no
início, mas eu sabia que o Mestre Isao confiava que eu não usaria
meus poderes para o mal, então tentava não ceder à tentação. Mesmo
que em alguns dias fosse muito difícil não disfarçar o gato de bule, ou
fazer uma porta fechada parecer aberta, ou tornar invisível uma tora
diante dos degraus. A magia da raposa nada mais era do que ilusão e
trapaça, Denga-san tinha fervido em mais de uma ocasião, geralmente
no final de uma pegadinha. Nada de útil poderia resultar disso.
Isso pode ser verdade, pensei, enquanto o calor da magia da raposa
crescia dentro de mim. Mas certamente é muito divertido.
Uma onda passou por mim, como se meu corpo fosse feito de
água em que alguém tivesse acabado de jogar uma pedra, e uma
nuvem de fumaça branca me engolfou do chão para cima. À medida
que os fios de fumaça se dissipavam, abri os olhos e sorri para a
imagem no espelho. Mestre Isao olhou para mim no reflexo, uma
réplica perfeita do homem sentado ao lado do espelho, se você não
contar o sorriso presunçoso em seu rosto envelhecido. E a cauda de
ponta branca atrás dele.
O verdadeiro Mestre Isao riu e balançou a cabeça. — É isso que
você e Satoshi têm praticado? — ele perguntou. — Estremeço ao
imaginar o dia em que 'eu' sugira que Denga-san vá e pegue um
macaco.
— Ooh, você acha que ele faria? Isso seria hilário. Hum, não que
eu faria algo assim, é claro. — Estendendo a mão, arranquei a folha de
bordo da minha cabeça, e a ilusão se desfez, a magia da raposa
espalhando-se ao vento, até que eu fosse apenas eu mais uma
vez. Enrolando a folha em meus dedos, eu me perguntei o tamanho
do problema em que eu estaria se eu me disfarçasse como Mestre Isao
e dissesse para Denga ir saltar na lagoa. Conhecendo a devoção
fanática do monge por seu mestre, ele o faria sem questionar. E então
ele provavelmente me mataria.
— Dezesseis anos. — Observou Mestre Isao em voz baixa. Eu
pisquei para ele. Isso era novo. Normalmente, a essa altura, nossa
conversa estaria encerrada e ele estaria me instruindo a retornar às
minhas funções. — Dezesseis anos desde o dia em que você está
conosco. — Ele continuou, quase melancólico. — Já que encontramos
você do lado de fora do portão em uma cesta de peixes, com nada
além de um manto esfarrapado e um bilhete preso ao pano. ”Perdoe-
me, mas devo deixar esta criança aos seus cuidados,” dizia a carta. “Não a
julgue com severidade, ela não pode evitar o que é, e a estrada que caminho
não é lugar para inocência. O nome dela é Yumeko, filha dos sonhos. Criem-
na bem e que o Grande Dragão guie seus passos e os dela.”
Eu balancei a cabeça educadamente, tendo ouvido essa história
dezenas de vezes. Eu nunca conheci meu pai ou minha mãe, e não
tinha pensado muito sobre eles. Eles não faziam parte da minha vida e
não via motivo para me preocupar com coisas que não podia mudar.
Embora houvesse uma memória muito nebulosa, de quando eu
era apenas uma criança, que continuou a assombrar meus sonhos. Eu
estava vagando pela floresta fora do templo naquele dia, me
escondendo dos monges e perseguindo esquilos, quando senti olhos
em mim por trás. Eu me virei e vi uma raposa branca me encarando
de cima de um tronco caído, olhos amarelos brilhando nas
sombras. Nós nos observamos por um longo momento, criança e
kitsune, e mesmo sendo muito jovem, eu sentia uma afinidade com
essa criatura, uma sensação de desejo que eu não entendia. Mas
quando dei um passo em sua direção, a raposa havia desaparecido. Eu
nunca a tinha visto novamente.
— Dezesseis anos. — Mestre Isao continuou, inconsciente de
meus pensamentos. — E nesse tempo, nós ensinamos nossos
caminhos, guiamos você pelo que esperávamos ser o caminho certo,
treinamos você para buscar o equilíbrio entre o humano e o
kitsune. Você sempre soube o que é, nunca escondemos a verdade. Eu
testemunhei a astúcia da raposa e a compaixão humana dentro de
você. Eu vi insensibilidade e gentileza em igual medida, e sei que você
está equilibrada em um limite muito tênue agora, entre yokai e
humana. O que quer que você escolha, qualquer caminho que deseje
seguir, mesmo que tente percorrer os dois, você deve decidir por si
mesma, logo. Está quase na hora.
Ele não deu nenhuma explicação do que quis dizer. Ele não me
perguntou se eu entendia. Talvez ele soubesse que metade do tempo
eu nunca conseguiria desvendar seus enigmas, e na outra metade eu
realmente não estava ouvindo. Mas eu balancei a cabeça e sorri como
se soubesse o que ele queria dizer e disse: — Sim, Mestre
Isao. Compreendo.
Ele suspirou e balançou a cabeça. — Você não tem ideia do que
estou falando, criança. — Ele afirmou, me fazendo estremecer. — Mas
está tudo bem. Não é a razão pela qual eu trouxe você aqui hoje. —
Ele desviou o olhar, seu olhar ficando distante, aquela sombra caindo
sobre seus olhos mais uma vez. — Você está quase crescida e o mundo
lá fora está mudando. É hora de você conhecer nosso verdadeiro
propósito, o que o templo Ventos Silenciosos realmente protege.
Eu pisquei e, no espelho, as orelhas do kitsune se moveram para
frente. — O que nós... Protegemos? — Eu perguntei. — Eu não sabia
que protegíamos algo.
— Claro que não. — Mestre Isao concordou. — Ninguém nunca
te disse. É nosso maior segredo. Mas é um que você deve conhecer. O
dragão está surgindo e outra era chega ao fim.

— Há muito tempo... — começou Mestre Isao no tom lírico de


um mestre contador de histórias. — Havia um mortal. Um jovem
senhor que comandava um grande exército e tinha servos que
superavam em número os grãos de arroz no campo. Seu nome se
perdeu na lenda, mas dizem que ele era um humano arrogante e tolo
que desejava se tornar um kami imortal, um deus. Para este fim, ele
reuniu seus maiores guerreiros e ordenou-lhes que trouxessem a
Fushi no Tama, uma joia que garantia a imortalidade de qualquer um
que a possuísse. Infelizmente, a joia da imortalidade residia na testa
do Grande Dragão que vivia sob o mar. Mas o senhor cobiçava a
imortalidade e disse a seus guerreiros para recuperar Fushi no Tama
por todos os meios possíveis.
— Seus lacaios, um pouco mais sensatos que seu mestre,
fingiram partir nessa busca imediatamente, e tão certo de seu sucesso
estava o senhor que adornou seus aposentos com ouro e prata e
colocou um pano de seda sobre o telhado de seu casa, como era
próprio de um deus.
— Vários meses se passaram sem nenhuma palavra, e o jovem
senhor, ficando impaciente, viajou para os penhascos sagrados de
Ryugake, onde foi dito que o Dragão vivia sob as ondas. Acontece que
nenhum de seus guerreiros pegou um barco para procurar o Dragão,
mas fugiu da província na primeira oportunidade. Zangado com a
notícia, o senhor jogou a cautela ao vento, contratou um timoneiro e
um navio e embarcou na missão ele mesmo.
— Assim que o infeliz navio atingiu o fundo do oceano, uma
violenta tempestade soprou e o mar se voltou contra o senhor e sua
tripulação como um animal enfurecido. Para piorar as coisas, o senhor
foi atingido por uma doença terrível e ficou perto da morte enquanto
o mar rugia e uivava ao redor deles. À medida que a tempestade
crescia em ferocidade e o próprio navio ameaçava se partir, o
timoneiro gritou que certamente os deuses estavam zangados com
eles e que o senhor deveria fazer uma prece para pacificar o Grande
Kami das profundezas.
— O senhor, finalmente percebendo seu erro, ficou
envergonhado e horrorizado com o que ele tentou fazer. Abaixando a
cabeça, ele orou não menos do que mil vezes, arrependendo-se de sua
loucura de matar o Dragão, jurando que não desafiaria mais o
Governante das Marés.
— Depois, algumas lendas afirmam que o senhor voltou para
sua terra natal, e que nada aconteceu, exceto os corvos roubaram o
tecido de seda fina de seu telhado para forrar seus ninhos. No entanto,
uma lenda continua a dizer que, depois que o Senhor terminou sua
milésima oração, os mares ferveram e um poderoso dragão surgiu das
profundezas do oceano. Ele tinha três vezes o comprimento do navio,
seus olhos queimavam como tochas na noite e uma pérola brilhante
estava incrustada no centro de sua testa.
— O senhor estava muito assustado, e com razão, pois o dragão
parecia muito aborrecido. Ele caiu de bruços e implorou à poderosa
serpente que tivesse misericórdia dele. O dragão então apresentou ao
senhor uma escolha. Ele concederia ao mortal um desejo, qualquer
coisa que ele desejasse, riquezas, vida imortal, poder sobre a própria
morte, ou ele deixaria sua alma. O senhor escolheu manter sua alma e
voltou para casa um homem mais sábio.
— Agora, a cada mil anos, um ano para cada oração que o
senhor proferiu, o Dragão se levantará novamente para o mortal que o
invoca. Se a alma do mortal for pura, se suas intenções forem justas e
seu coração for honrado, o Dragão concederá a ele o desejo de seu
coração. No entanto, se a alma for considerada deficiente, o Dragão a
arranca do corpo e a toma como perdida pela arrogância do mortal
que procurou se tornar um deus, há muito tempo.

O silêncio caiu depois que Mestre Isao terminou sua história. Eu


fiquei sentada lá, pensando que era uma história intrigante, mas o que
isso tinha a ver com nosso templo e a coisa que deveríamos proteger,
eu não fazia ideia. Mestre Isao me observou por um momento, depois
balançou a cabeça.
— Você não sabe por que eu contei essa história, não é?
— Eu sei. — Protestei, e Mestre Isao ergueu as sobrancelhas
espessas. — É para que eu possa... hum... bem. Não, eu não sei.
Ele não disse nada, apenas esperou pacientemente, insistindo em
silêncio, como sempre fazia, que eu descobrisse sozinha. Eu vasculhei
meu cérebro, tentando entender. Ele mencionou um dragão, tanto na
história quanto antes com o espelho, então deve ser importante. O que
ele disse exatamente?
— O dragão está subindo. — Eu repeti, ganhando um aceno de
aprovação. — E, na história, a cada mil anos, pode ser
convocado. Para conceder a um mortal tudo o que eles desejam. — Fiz
uma pausa, franzindo a testa ligeiramente. — Então... por que o
Dragão concede desejos? É um deus, não é? Certamente tem coisas
mais importantes a fazer do que aparecer a cada mil anos. Ele gosta de
conceder desejos?
— O dragão não é um fantoche que concede desejos, Yumeko-
chan. — disse Mestre Isao. — É um Grande Kami, o Deus das Marés e
o Precursor da Mudança. Cada vez que aparece, para o bem ou para o
mal, o mundo muda e segue um caminho diferente.
— Então, isso deve significar... é hora do Dragão se levantar
novamente?
— Muito bem, Yumeko-chan. — Mestre Isao deu outro aceno
solene. — Você está certa. O tempo do Dragão está quase chegando. E
há muitos, mesmo agora, que estão procurando uma maneira de
invocá-lo. Mas o dragão só se levantará se for convocado
adequadamente, e a única maneira de fazer isso é recitar as orações do
jovem senhor, palavra por palavra. Todas as mil.
— Mil orações? — Eu inclinei minha cabeça. Tinha dificuldade
em me lembrar em que dia da semana era. Eu não conseguia imaginar
ter que recitar mil orações de memória. — Isso parece terrivelmente
difícil. — comentei. — Eu não suponho que seja a mesma oração
repetidamente, também. Alguém deveria ter anotado...
Oh.
E as peças se encaixaram. O mistério do templo, o dever sagrado
dos monges. Olhei para o pergaminho pendurado na parede, o
Dragão e o navio condenado, percebendo seu significado pela
primeira vez. — Isso é o que protegemos. — Eu adivinhei. — As
orações para invocar o Dragão. Estão aqui.
— Uma parte. — disse Mestre Isao gravemente. — Veja,
Yumeko-chan, há muito tempo, alguém usou o poder do desejo do
Dragão para uma coisa terrível. A escuridão e o caos reinaram, e a
terra quase foi rasgada por causa disso. Foi decidido que tal poder
nunca deveria ser usado novamente, então a oração foi dividida em
três partes e escondida em Iwagoto, para que tal escuridão não
pudesse surgir uma segunda vez.
— Mas... eu pensei que o Dragão só concedia um desejo a um
mortal honrado. — eu disse. — Alguém 'cujo coração é puro'. Como o
desejo pode ser usado para o mal?
— O caminho para Jigoku está alinhado com intenções honrosas.
— Mestre Isao respondeu. — E o poder absoluto pode corromper até o
mais puro dos corações. Essa é a loucura dos
homens. Independentemente disso, agora que você sabe o que
protegemos, Yumeko-chan, devemos ter muito cuidado. É por isso
que estamos tão isolados, porque o templo nunca recebe
visitantes. Com a chegada do Dragão, o equilíbrio mudará. Fora
dessas paredes, a terra está um caos. Os homens lutam entre si pelo
poder, coisas não naturais se agitam e se erguem, atraídas por sangue
e violência, e o mundo escurece de medo. É nosso dever garantir que a
oração do Dragão nunca veja o mundo exterior, que protejamos este
pedaço do pergaminho de todos os que invocarem seu poder. Essa é a
nossa maior responsabilidade e, agora, é sua também. Você entende,
minha jovem?
Uma aranha de gelo subiu pela minha espinha, mesmo quando
eu assenti. — Acho que sim, Mestre Isao.
— Há uma sombra se aproximando deste lugar, pequena raposa.
— A voz do Mestre Isao ficou suave, quase distante. Ele não estava
olhando para mim, em vez disso, olhou para a parede acima da minha
cabeça. — Está cada vez mais perto e alguns de nós podem não
sobreviver. Mas não vai te pegar, se você conseguir encontrar o
caminho no meio e se segurar na luz. — Piscando, ele olhou para mim
novamente, a expressão distante desaparecendo enquanto ele
sorria. — Ah, mas estou divagando de novo, não estou? — ele disse
brilhantemente. — E eu acredito que você tinha algo para fazer hoje,
não é, Yumeko-chan? Oh... e se você quiser evitar Denga e Nitoru esta
tarde, eu iria esgueirar-me por cima da parede oeste. — Um olho
fechou em uma piscadela lenta enquanto ele se levantava. — Eu vou
te ver hoje à noite no jantar. Dê aos macacos meus cumprimentos.
Ele saiu arrastando os pés, fechando a porta atrás de si, mas por
alguns minutos eu fiquei sentada lá, a história do desejo do Dragão
girando em minha cabeça, provocante e ameaçadora. Eu não tinha
ideia de que este templo guardava algo tão poderoso, que Mestre Isao
e os outros não eram simples monges, mas os protetores de um
grande e terrível artefato. Uma oração que poderia convocar um deus.
O dragão está ascendendo.
Um arrepio percorre minha espinha. Era essa a razão de eu estar
aqui, nesta sala? Sempre suspeitei que Mestre Isao estava me testando
para algo, mas nunca consegui descobrir o quê. Meu próprio futuro
nunca foi claro e raramente me perguntava sobre isso, preocupada
demais com o presente e com o que poderia fazer hoje. No fundo, eu
sempre assumi que, quando eu tivesse idade suficiente, ou coragem o
suficiente, um dia eu deixaria o templo Ventos Silenciosos. Mestre
Isao esperava que eu me tornasse uma protetora do pergaminho do
Dragão? Ficasse aqui e o protegesse daqueles que desejavam invocar o
poder do Dragão? Para sempre?
Eu me sacudi. Ficar neste templo pelo resto da vida, sentada em um
pergaminho empoeirado? Não pode ser isso que ele quis dizer. Pensei em
minhas aulas diárias com Jin, aprendendo sobre o mundo exterior e
como era a vida além das paredes do templo. Eu nunca tinha visto um
samurai, mas tinha lido tudo sobre eles em livros e pergaminhos. Eu
sabia os nomes dos clãs, seus costumes e a história de Iwagoto
remontando há trezentos anos. Por que se preocupar em me ensinar se
eu apenas ficaria no templo protegendo um pergaminho? Por que
Mestre Isao me faria aprender tanto sobre um mundo que eu nunca
veria?
Ele não iria. Ele não é tão cruel. Enrugando meu nariz, eu me
levantei e limpei meus joelhos, já descartando a ideia. Eu não sou
forte; não sou uma guardiã, nem uma guerreira, nem uma mestra do ki. Sou
uma kitsune que consegue fazer um bule de chá dançar como um
mergulhão. Além disso, Mestre Isao tem Denga, Jin, Satoshi e todos os outros
para proteger a oração do Dragão. Eles não precisam da minha ajuda.
Fui até a porta, tentando dissolver o peso sinistro na boca do
estômago. A sensação de que o mundo havia mudado. Que algo
estava lá fora, se aproximando, e eu não tinha forças para impedi-lo.
Pare com isso, Yumeko. Só porque você sabe sobre o pergaminho, não
significa que algo aparecerá instantaneamente, tentando roubá-lo. Alisei
minhas orelhas, tentando me convencer de que isso era uma tolice,
que o frio subindo pela minha espinha era porque Mestre Isao era um
contador de histórias brilhante. Não era um presságio do que estava
por vir. Estou sendo paranoica. Nunca gostei de histórias
assustadoras. Talvez algum tempo na floresta clareie minha cabeça.
Apoiada, abri uma fresta da porta... e encontrei um par de olhos
severos e indiferentes me espiando do outro lado. Aceitando
silenciosamente a vassoura de Denga-san, saí da sala com
dificuldade. Quando eu tinha varrido o chão, as varandas, os degraus,
os caminhos, os corredores e todas as superfícies horizontais dentro e
fora do templo, a história do pergaminho e o desejo do Dragão já
haviam desaparecido da minha mente.
Capítulo 3
O guerreiro das sombras
A noite cheirava a morte. Presente e por vir.
Agachado nos galhos da árvore retorcida das glicínias, examinei
os terrenos da propriedade do Senhor Hinotaka, tomando nota de
cada guarda, sentinela e patrulha que caminhava pelo perímetro. Eu
estava aqui há quase uma hora, memorizando o layout do terreno, e
cronometrando as rotações da patrulha em poucos segundos. Agora,
com a lua totalmente elevada e a hora do boi atingindo seu pico, a luz
na janela superior do castelo finalmente se apagou.
Um vento quente agitou os galhos de meu poleiro, puxando meu
cabelo e cachecol, e o leve cheiro de sangue roçou meus sentidos.
Houve um lampejo no fundo da minha mente, uma agitação
impaciente que não era minha. Kamigoroshi, ou melhor, o demônio
preso dentro de Kamigoroshi, estava inquieto esta noite, sentindo a
violência prestes a ser desencadeada. A espada cujo nome
significava matadora de deuses tinha sido um elemento constante em
minha mente desde que eu conseguia me lembrar, desde o dia em que
fui escolhido para carregar a lâmina. Levou mais da metade dos meus
dezessete anos para dominar a arma volátil, e sem o treinamento e
orientação do meu sensei, eu teria sucumbido à raiva e à sede de
sangue insaciável do demônio aprisionado dentro dela. Ele me
puxava agora, me incitando a desembainhar a espada, pular e pintar o
terreno da propriedade de vermelho.
Paciência, Hakaimono, eu disse ao demônio, e senti isso diminuir,
embora por pouco. Você realizará seu desejo em breve.
Desci pelo galho e me joguei na parede externa, depois corri ao
longo dos parapeitos, a ponta irregular de meu lenço carmesim
flutuando atrás de mim, até chegar a um ponto aonde o canto do
telhado de telhas azuis do castelo chegava perto da parede. Ainda uns
bons quinze metros acima, mas peguei a corda e me agarrei no cinto,
balancei-a duas vezes e atirei em direção ao telhado acima. O anzol
com garras estalou suavemente ao pegar uma das gárgulas de peixe
no canto, e eu deslizei pela corda até os ladrilhos.
Assim que puxei a corda, um único samurai deu a volta no
castelo e passou por baixo de mim, patrulhando a parede
interna. Imediatamente eu congelei, ouvindo os passos passando e
respirei lentamente para me controlar e controlar minhas
emoções. Não poderia haver medo, dúvida ou raiva ou
arrependimento. Nada para dar a Hakaimono um ponto de apoio em
minha mente. Se eu sentisse alguma coisa, se permitisse que a emoção
me dominasse, o demônio assumiria o controle e eu me perderia na
raiva e sede de sangue de Hakaimono. Eu era um recipiente vazio,
uma arma para o Clã das Sombras, e meu único requisito era
completar minha missão.
O samurai seguiu em frente. Imóvel, uma sombra contra as
telhas, o observei até que ele circulou ao redor do castelo e
desapareceu de vista. Então, caminhando silenciosamente sobre o
telhado, fiz meu caminho em direção ao topo da fortaleza.
Enquanto eu me arrastava em direção a uma janela aberta, vozes
ecoavam além da moldura, me deixando tenso. Minha pulsação
disparou, e Hakaimono aproveitou aquele momento de fraqueza,
incitando-me a cortá-los, a silenciá-los antes que eu fosse
visto. Ignorando o demônio, pressionei contra a parede enquanto dois
homens, samurais, a julgar por seus passos marchando, passavam,
falando em tons furtivos.
— Isso é loucura. — dizia um. — Falta Yoji e agora Kentaro
desaparece sem deixar vestígios. É como se as próprias paredes
estivessem nos engolindo inteiros. E Senhor Hinotaka de repente
declara que os andares superiores estão proibidos? — Sua voz caiu
para quase um sussurro. — Talvez seja o fantasma de Dama
Hinotaka. Há rumores de que ela foi envenenada...
— Cale sua boca idiota. — Sibilou o outro. — Dama Hinotaka
morreu tragicamente de uma doença, nada mais. Mantenha essa
língua desonrosa atrás dos dentes antes que ela te coloque em
problemas reais.
— Diga o que quiser. — respondeu o primeiro samurai,
parecendo na defensiva. — Este castelo parece mais sombrio a cada
dia. Eu, pelo menos, estou feliz por me mobilizar amanhã, mesmo que
seja uma missão de tolo. Por que nosso senhor requer uma dúzia de
homens para buscar um artefato antigo em algum lugar nas
montanhas do Clã da Terra, eu não entendo.
As vozes sumiram e o castelo ficou em silêncio novamente. Eu
escorreguei pela janela e me encontrei em um corredor longo e
estreito, as paredes e o piso feitos de madeira escura. Estava muito
escuro; a única luz vinha do brilho da lua lá fora, e as sombras se
apegavam a tudo. Eu me arrastei mais para dentro do castelo, os
sentidos alertas para vozes ou passos se aproximando, mas exceto
pelos dois guardas patrulhando, o chão parecia deserto. Nenhum
servo vagava pelos corredores, nenhum samurai fazia jogos de go em
seus quartos ou sentava-se bebendo saquê. Uma aura de medo
pairava no ar, manchando tudo o que tocava. O demônio em
Kamigoroshi também sentiu e se mexeu excitadamente contra minha
mente, uma sombra viva enrolando-se como uma cobra, antecipando
ansiosamente o que estava por vir.
A escada para o último andar da fortaleza ficava desprotegida
em um canto escuro do castelo, no final do longo e estreito corredor. A
aura do mal era mais forte aqui, e tentáculos de miasma roxo-escuro
escorriam pelas escadas, invisíveis ao olho humano normal. O
corrimão e os degraus de madeira estavam começando a apodrecer, e
o chão ao redor da escada parecia deteriorado e fraco. Uma mariposa
branca voou da janela de treliça próxima e instantaneamente caiu em
espiral no chão, morta.
Cerrando o queixo, comecei a subir as escadas, ignorando a
mancha que girava ao meu redor, tentando não respirar. O último
andar se abriu, grossas paredes de madeira com janelas de treliça
mostrando o céu aberto. Uma névoa escura se contorcia ao longo do
chão, vindo de um par de portas de madeira grossas contra a parede
oposta.
Fui até a porta e coloquei a mão contra a madeira, sentindo a
doença que a deformava por dentro, depois a empurrei.
Uma névoa de corrupção preto-púrpura ondulou para fora do
cômodo e se contorceu no ar. Parando na soleira, olhei para a
escuridão. As paredes e o chão do grande cômodo quadrado estavam
cobertos por telas brancas que pendiam do teto e grudavam no
chão. Elas se enrolavam em pilares e balançavam nas vigas, cortinas
esfarrapadas ondulando com a brisa. Aqui e ali, aglomerados de ossos
branqueados pendiam das teias, tilintando como grotescos sinos de
vento, e alguns casulos grandes do tamanho de um homem grudados
nas paredes, mantidos imóveis nos fios.
Passei pela moldura e ouvi a porta se fechar atrás de mim. A teia
no chão grudou nas minhas botas tabi, mas não o suficiente para me
atrasar. Ela farfalhou enquanto eu caminhava para frente, vibrando os
fios ao meu redor e sacudindo os sinos de osso. Não tentei ficar em
silêncio. Meu alvo estava aqui; não havia mais razão para furtividade.
Uma risada baixa saiu da escuridão, suave e feminina, e os pelos
da parte de trás dos meus braços se arrepiaram. — Eu ouço o bater de
pequenos pés masculinos. — Sussurrou uma voz, ecoando ao meu
redor, embora eu não pudesse ver nada através das teias e fios. — O
Senhor Hinotaka me enviou outro brinquedo? Algo jovem e bonito,
quem deseja ser amado? Venha para mim, querido. — Ela continuou
em um sussurro assustador, enquanto eu agarrava o cabo de
Kamigoroshi, sentindo a antecipação selvagem do demônio. — Eu
vou te amar. Envolverei meu amor em torno de você e nunca mais
deixarei você ir.
As últimas palavras ecoaram diretamente no alto, exatamente
quando Hakaimono deu um pulso de aviso em minha mente. Eu me
lancei para frente por instinto, sem me preocupar em olhar para cima,
e senti algo agarrar a manga da minha roupa enquanto eu mergulhava
para longe. Enquanto me levantava, girei para enfrentar uma forma
enorme e bulbosa pendurada no teto, oito pernas quitinosas enroladas
ao redor do local onde eu estava um momento antes.
— Inseto pequeno e sorrateiro.
A enorme criatura desenrolou as pernas e caiu no chão,
estalando ao se virar para me encarar, revelando a cabeça e o torso de
uma linda mulher fundida ao corpo de uma aranha gigante. Um
elegante quimono preto e vermelho cobria sua metade humana, mas
parecia ridiculamente pequeno onde o tórax da aranha emergia por
baixo dele. Pairando acima de mim, a jorogumo inclinou a cabeça e
sorriu, pequenas presas pretas deslizando entre seus lábios vermelhos
carnudos.
— O que é isso? — ela murmurou, enquanto eu me agachava e
agarrava o punho da minha espada. Hakaimono rugiu na minha
cabeça, ansioso e cruel, aguçando meus sentidos e fazendo o ar
parecer ter gosto de sangue. — Um menino? Você veio ao meu covil,
procurando por mim? — Ela inclinou a cabeça para o outro lado. —
Você não é como os outros, os homens que Hinotaka envia ao meu
covil, tão orgulhosos, mas tão aterrorizados. Eles se agitam como
grilos assustados no início. Mas você... não tem medo. Que delicioso.
Eu não respondi. O medo foi a primeira coisa que foi expurgada
do meu corpo; a emoção mais perigosa de todas. O medo, meu sensei
me ensinou, era simplesmente a aversão do corpo à dor e ao
sofrimento. Um samurai que encontrava um urso faminto não tinha
medo do urso em si, mas do que o urso poderia fazer com ele. Ele
temia as garras que poderiam rasgar sua carne, os dentes que
poderiam esmagar a vida de seus ossos. Fui treinado para suportar o
que muitos não podiam, a fraqueza espancada, queimada, cortada e
arrancada do meu corpo, até que apenas uma arma restasse. Eu não
temia a dor, nem temia a morte, porque minha vida não era
minha. Uma mulher-aranha gigante devoradora de homens não era
mais preocupante do que um urso faminto. O pior que ela poderia
fazer era me matar.
A jorogumo deu uma risadinha. — Venha então, pequeno inseto.
— ela sussurrou, estendendo os braços brancos e esguios. Sua voz
tornou-se calmante, quase hipnótica. Ela zumbiu na minha cabeça,
enrolando em torno da minha vontade e colocando teias de aranha em
minha mente. — Eu posso sentir o desejo solitário em seu
coração. Deixe-me te amar. Deixe-me aliviar todas as preocupações e
tristezas que pesam sobre sua alma. Você pode saborear a doçura do
meu beijo e sentir a suavidade do meu abraço, antes de enviá-lo
suavemente ao êxtase.
A jorogumo se aproximou, sorrindo, seu rosto preenchendo
minha visão até que não houvesse mais nada. — Você tem os olhos
mais bonitos. — ela ronronou. — Como as pétalas de uma flor de
beladona. Quero arrancá-los e pendurá-los no meu quarto. — Ela se
abaixou, e unhas pretas curvas tocaram o lado do meu rosto. —
Adorável pequeno humano... não devemos ser estranhos esta
noite. Qual é o seu nome, inseto? Diga-me seu nome, para que eu
possa sussurrar amorosamente enquanto devoro você inteiro.
Eu senti o demônio dentro sorrir e ouvi minha voz falando com
a mulher aranha, embora não fossem minhas palavras. — Você já sabe
meu nome.
Saquei a espada e Kamigoroshi ganhou vida, banhando o quarto
com um brilho púrpura maligno. A jorogumo gritou e caiu para trás,
sua expressão serena se retorcendo de ódio.
— Kamigoroshi! — ela sibilou, mostrando suas presas. Seus
olhos negros se estreitaram, avaliando-me. — Então você é o matador
de demônios Kage.
Sorrindo friamente, dei um passo à frente, sentindo o poder da
espada se expandir, enchendo minhas veias com fúria e sede de
sangue. A jorogumo recuou, várias pernas estalando no chão, seu
rosto pálido na luz roxa bruxuleante de Kamigoroshi. — Por quê? —
Ela exigiu, dedos longos enrolados em garras enquanto ela olhava
para mim. — Tenho tudo o que quero aqui. Tudo o que peguei foram
os homens não leais a Hinotaka, aqueles que ele declarou indignos de
servi-lo. Quais são as vidas de alguns samurais para você, matador de
demônios?
Não respondi, continuando a seguir em frente, a lâmina
pulsando em minha mão. Não era minha função questionar as ordens
de meu clã, ou por que eles queriam esta yokai destruída. Porém, se
eu tivesse que adivinhar, a chegada da jorogumo dentro do território
do Clã das Sombras era razão suficiente para agir. Nós, a família
Kage, nos especializamos na escuridão; conhecíamos os segredos das
sombras e das criaturas que espreitavam melhor do que qualquer
outro clã do império. Eu era o matador de demônios Kage; este era
meu trabalho.
A jorogumo inchou de ódio e fúria. — Humano miserável. — Ela
cuspiu enquanto sua mandíbula se desdobrava, presas pretas curvas
deslizando entre seus lábios. — Você não vai me matar como você
massacrou Yaku Cem Olhos, ou a tribo Nezumi da vila Hana. Vou
arrancar sua cabeça e saborear seu sangue enquanto você desliza pela
minha garganta.
Ela deu um bote, um ruído amarelo e preto no chão,
chocantemente rápido para seu tamanho, e meus sentidos também
dispararam. Eu pulei para o lado quando uma daquelas pernas
esfaqueou e bateu na madeira com força suficiente para quebrar uma
tábua do assoalho em duas. Girando, eu ataquei com Kamigoroshi,
cortando outro membro em um jato de icor negro, e a jorogumo gritou
de raiva.
Hakaimono uivou com aprovação em minha mente, deleitando-
se com a violência, me incentivando a liberar totalmente seu poder. Eu
mantive um aperto firme em meu autocontrole, mesmo enquanto me
esquivava da represália furiosa da jorogumo, suas longas pernas
cortando para mim enquanto ela atacava. Encostado em um canto,
sussurrei um feitiço rápido na linguagem da Sombra, e outro Tatsumi
se separou de mim enquanto disparávamos em direções opostas.
A jorogumo hesitou, confusa com a aparência do meu reflexo,
dando-nos tempo suficiente para circular em torno dela. Sibilando, ela
girou em direção ao Tatsumi à sua esquerda e cortou para baixo com
uma perna. Ela passou pelo reflexo sem pausa e se chocou contra um
pilar, e a imagem no espelho se dissolveu em uma escuridão que se
contorcia e desapareceu. Agora, atrás da enorme yokai, levantei
Kamigoroshi e a cortei no abdômen protuberante.
O icor amarelo respingou, sibilando no chão, e o grito da
jorogumo fez vibrar as teias ao nosso redor. — Maldito humano! —
ela gritou, girando para me encarar, deixando uma trilha de lodo
escorrendo atrás dela. — Como você ousa tocar meu lindo corpo? —
Ela cambaleou, as pernas lutando para se apoiar, e eu me lancei,
visando o local onde humana e aranha se fundiam, com a intenção de
parti-la ao meio de uma vez por todas.
A jorogumo mostrou os dentes quando me aproximei dela. —
Amaldiçoo seus olhos! — ela sibilou, e um spray de líquido verde
disparou de sua mandíbula e se espalhou no ar. Virei para o lado para
evitá-lo, mas senti uma névoa de teia de aranha pousar em meu rosto,
um segundo antes de meus olhos começarem a arder. Piscando
rapidamente, eu cambaleio para longe, mantendo Kamigoroshi
levantada enquanto esfrego meu rosto com uma manga. Em meio às
lágrimas, vi um borrão de amarelo e preto preencher minha visão e
cortei-o cegamente. O gume da espada atingiu algo grande quando a
perna quitonosa me atingiu como um golpe de martelo, me jogando
para o lado. Senti Kamigoroshi se soltar das minhas mãos enquanto
rolei no chão, me enrolando em teias pegajosas antes de bater na
parede.
Atordoado, ainda meio cego, com Hakaimono rosnando em
minha cabeça de frustração, me endireitei e procurei
desesperadamente por minha espada, mas meus pés foram
abruptamente arrancados de debaixo de mim. Eu bati no chão de
bruços e olhei para trás para ver grossos fios de teia enrolados em
minhas pernas, as cordas se estendendo até o abdômen da
jorogumo. A enorme yokai sorriu, mostrando as presas pretas, e
começou a me puxar como um peixe.
— Venha para mim, pequeno inseto saboroso. — Ela sussurrou,
quando comecei a deslizar inevitável em sua direção. Virando de
costas, tentei arrancar as teias das minhas pernas, mas elas eram fortes
como cordas de seda e não se moviam. Desesperadamente, procuro
algo para libertar meus membros, furioso comigo mesmo e com meu
erro, imaginando o que Ichiro diria se eu me deixasse ser comido por
uma jorogumo. Procurei no chão por um osso afiado ou lâmina
descartada, mas exceto por poeira e alguns ossos de dedos presos em
teia, não havia nada perto.
— Eu tenho um presente especial para você, humano. — A yokai
continuou, ainda me puxando pelo chão. — Você pode ser o anfitrião
do meu próximo grupo de filhos. Vou colocar cem ovos em seu
estômago e mantê-lo vivo até o dia em que eclodirem e o devorarem
por dentro. — Ela riu por entre as presas, continuando a me puxar
pelo chão com uma força anormal. — Eu me pergunto se meus bebês
serão mais fortes do que qualquer um antes deles... — ela meditou. —
Porque eles se banquetearam com o matador de demônios Kage?
Eu estava agora a apenas alguns metros da enorme yokai, perto
o suficiente para ver o triunfo em seus olhos negros, o veneno
escorrendo de seu sorriso e meu estômago recuou de nojo. Não havia
outra escolha. Caindo de costas, eu relaxei, fechei meus olhos e abri
minha mente para o demônio na espada.
Ele respondeu instantaneamente, um clarão brilhante na
escuridão, me enchendo de raiva. Senti o punho da espada cravar na
palma da minha mão enquanto fechava o punho e abria os olhos.
O rosto da jorogumo estava acima de mim, mandíbulas abertas e
presas pretas curvas descendo em direção à minha garganta. Eu vi
meu próprio reflexo em seu olhar, olhos em chamas carmesim, e
peguei o medo em uma fração de segundo quando ela percebeu tarde
demais o que ela realmente pegou. Kamigoroshi brilhou, cortando seu
rosto, e ela cambaleou para trás com um grito, as mãos indo aos olhos.
Cortei as teias de minhas pernas, saltei para cima e enfiei a
lâmina no corpo bulboso da yokai diretamente acima, afundando-a
até o cabo. Antes que a jorogumo pudesse se mover, eu corri embaixo
dela, continuando a esculpir a espada através do abdômen
protuberante, até sair do outro lado.
Ofegante, abaixei Kamigoroshi, jogando o icor amarelo no chão,
enquanto a jorogumo atrás de mim desabava com um grito, membros
segmentados batendo contra o chão enquanto ela se debatia. Ela
virou-se de costas, se debatendo, sons sufocados vindos de sua boca,
até que suas pernas se curvaram sobre o estômago partido e
finalmente pararam.
Insuficiente. Hakaimono ainda se enfurecia em minha mente,
querendo mais. Mais sangue, mais matança. Sua raiva não foi
satisfeita, mas nunca era. Embora apenas um pequeno pedaço de
minha alma tenha sido oferecido à lâmina, o demônio cravou suas
garras profundamente e lutava para mantê-la firme. Respirando
fundo, fechei minha mente e minhas emoções, me tornando um
recipiente vazio sem fraquezas para me agarrar. O demônio lutou
comigo, relutante em abrir mão do controle, voltar para a escuridão,
mas eu me concentrei em não sentir nada, ser nada, e a presença de
Hakaimono finalmente sumiu.
— O que é que você fez?
A voz horrorizada soou atrás de mim. Eu me virei, segurando o
punho da minha espada, para enfrentar um homem atarracado de
meia-idade parado na porta. Seu quimono azul e cinza era muito fino,
e ele tinha a aparência macia e carnuda de um homem que comia bem
e se sentava nas almofadas mais macias. Seu rosto pastoso estava
pálido enquanto olhava freneticamente ao redor do quarto.
— Você a matou. — ele engasgou, o olhar escuro caindo sobre a
forma retorcida da jorogumo morta. — Você a matou! Por quê? Você
percebe o que você fez?
Eu não respondi. Claro que percebi o que tinha feito, matado
uma yokai que meu clã me enviou para destruir. Os motivos não
importavam. Eu era simplesmente uma arma. Uma arma não
questionava a intenção de quem a empunhava.
— Como você pôde. — O homem continuou, gemendo enquanto
avançava. — Aquela criatura era a única coisa que se importava
comigo. O único ser vivo que já me deu amor. Minha odiosa esposa
apenas ofereceu rancor e condenação. Até meus homens zombam e
falam sobre mim pelas minhas costas. Esta criatura... — ele olhou
tristemente para o corpo no chão. — Me libertou. Ela prometeu que
poderia me ajudar a realizar o desejo do meu coração, meu maior
desejo. — Seus olhos endureceram, queixos queixosos tremendo
quando ele apertou sua mandíbula. — Eu teria alegremente
alimentado seu apetite com mil homens em gratidão pelo que ela
ofereceu.
As pernas do Senhor Hinotaka tremeram e ele caiu de joelhos,
seu olhar nunca deixando o cadáver da jorogumo atrás de mim. —
Seja você quem for... — Ele disse com a voz trêmula. — Saia de minha
fortaleza antes que eu alerte os guardas. Presumo que você foi
enviado para matar o monstro do castelo Usugurai e cumpriu seu
dever. Agora vá, e que a maldição de mil espíritos do rancor o
acompanhe pelo resto de seus dias. Você matou seu alvo, agora me
deixe com minha miséria.
— Ainda não. — Eu disse suavemente, e levantei Kamigoroshi
mais uma vez. — Há mais um monstro que devo matar, antes que
minha missão seja concluída.
Hinotaka franziu a testa, mas então seus olhos se arregalaram e
ele agarrou a espada em seu obi, tarde demais. Kamigoroshi cortou
seu pescoço em um movimento suave e a cabeça do homem caiu de
seus ombros, quicou uma vez e rolou até parar ao lado do cadáver da
jorogumo. O corpo sem cabeça bateu no chão com um baque e
encharcou o tapete de teias de carmesim líquido.
Limpei o sangue de Kamigoroshi e levei um momento para
observar o senhor sangrar ao lado de seu monstro. Não tive nenhum
prazer em matar Hinotaka. O clã exigiu sua morte; eu simplesmente
fui o instrumento para realizá-lo. O senhor do castelo Usugurai
assassinou sua esposa para aplacar a jorogumo e sacrificou seus
homens aos desejos dela, mas ele era apenas uma marionete. Esta
jorogumo era uma yokai de duzentos anos que havia atormentado
Iwagoto por muitos anos. Ela reivindicaria uma parte solitária de um
castelo, seduziria seu senhor com promessas de amor ou poder e
então lentamente consumiria todos os homens de dentro. Quando
chegasse a hora, ela inevitavelmente se voltaria contra o senhor,
paralisando e escondendo-o em seu covil, antes de deixar o castelo e
desaparecer na escuridão. Sua última vítima seria encontrada dias
depois, pendurada nas teias, suas entranhas escavadas e vazias por
causa das centenas de bebês aranhas que haviam mastigado seu
caminho para se libertar. Por um tempo, a jorogumo desapareceria,
transformando-se em boato e lenda, mas cerca de vinte anos depois
ela reapareceria, almejando outro castelo, e o ciclo começaria de novo.
Não mais. A yokai estava morta e não haveria mais humanos
sacrificados por sua fome. Hinotaka seria o último. Como os Kage
sabiam quando e onde ela iria emergir, e por que eu fui enviado para
matá-la agora, eu não sabia. Não era minha função fazer
perguntas; tudo o que importava era completar a missão.
Olhando para o cadáver de Hinotaka, senti um leve lampejo de
pena. Ele era apenas mais uma vítima na longa fila de vítimas da
yokai, mas o que levaria um homem a permitir que um monstro assim
entrasse em seu castelo, e tivesse seus afetos? Eu não entendia, mas
não importava. Ele estava morto e seu fim tinha sido muito mais
limpo do que se a jorogumo tivesse terminado o que ela veio fazer.
Embainhando minha lâmina, saí do quarto, deslizei por uma
janela para o telhado da fortaleza e desapareci na noite.

A chuva batia forte na estrada quando me aproximei da periferia


da cidade, a cerca de oitocentos metros do castelo Usugurai. Arrastei-
me ao longo do telhado de um prédio de dois andares que servia
como ponto de encontro para a missão, depois caí em uma saliência e
deslizei por uma janela aberta.
Instintivamente, me abaixei e rolei para longe quando uma
shuriken se cravou no peitoril, a estrela de metal de quatro pontas
afundando na madeira. Agachando-me defensivamente, coloquei a
mão no punho da espada, enquanto uma risadinha ecoava na
escuridão e uma sombra se soltava do canto.
— Oh, desculpe, Tatsumi-kun. — A voz feminina era um
murmúrio divertido, quando Ayame apareceu, sorrindo para
mim. Como eu, ela estava vestida de preto, usando braçadeiras e botas
tabi, seus longos cabelos presos atrás dela. O punho de uma espada
curta cutucava seu ombro, e uma kusarigama, uma corrente com uma
foice presa na ponta, pendurada em sua cintura. — Achei que você
fosse um grande rato molhado subindo pela janela.
— Ayame. — Eu me endireitei com cautela, observando
enquanto a outra shinobi caminhava até a janela e arrancava a
shuriken da madeira. Fomos criados juntos desde que éramos jovens,
passamos pelo treinamento básico shinobi juntos. Era difícil lembrar
agora, mas ela pode ter sido minha melhor amiga. Isso foi antes do
círculo de majutsushi, os magos do Clã das Sombras, me escolherem
para ser o novo portador de Kamigoroshi, e eu ser levado para uma
instrução particular. Eu não tinha visto Ayame novamente até anos
depois, e nós dois mudamos. Agora eu era o matador de demônios
Kage, e ela era uma shinobi habilidosa. Fazia sentido que ela estivesse
aqui agora, observando e protegendo das sombras. — Onde está
Mestre Ichiro?
— Aqui.
A porta se abriu e um homem entrou no cômodo, sem fazer
nenhum som ao cruzar a soleira. Ele poderia ser descrito como
normal, um homem baixo, de meia-idade, com características que
facilmente esqueceríamos. Tudo deliberadamente feito por ele. Ele se
movia com uma graça fluida que desmentia sua aparência humilde, e
seus olhos negros penetrantes eram tão penetrantes quanto os de um
falcão.
Ayame recuou, derretendo-se nas sombras mais uma vez. Caí de
joelhos e me curvei, mantendo meu olhar no chão enquanto o homem
se aproximava, sentindo seu olhar na minha nuca.
— Está feito? — Ele perguntou em voz baixa.
— Sim, sensei. — Respondi sem erguer os olhos.
— Hinotaka também?
— Todos os alvos foram eliminados, sensei.
— Bom. — Eu o senti assentir. — O clã ficará satisfeito. Você se
machucou?
— A jorogumo cuspiu veneno nos meus olhos. — Respondi. —
Mas está limpo.
Ele grunhiu. — Você não estava prestando atenção, então. Eu
disse a você que as aranhas vão cuspir quando se sentirem
encurraladas. Você teve que chamar Hakaimono?
— Sim.
— Bakamono. — Senti um golpe forte e pungente na cabeça, me
jogando um pouco para frente. Eu estava esperando por isso e não me
mexi quando Ichiro fez um som de nojo. — Essa é a segunda vez em
alguns meses, Tatsumi. Você está ficando descuidado.
Coloquei minhas mãos no chão e me curvei ainda mais, tocando
minha testa no tatame. — Perdoe-me, sensei. Vou me esforçar mais na
próxima vez.
— Continue cometendo erros e não haverá uma próxima vez. —
Ichiro rosnou. — Continue usando o poder do demônio e um dia,
você não será capaz de controlá-lo. Um deslize, uma morte que o clã
não pediu, e eles vão matá-lo, Tatsumi. E então eu não terei escolha a
não ser cometer seppuku pelo meu fracasso em ensiná-lo a controlá-
lo.
— Agora, Ichiro-san. — Veio uma nova voz, alta e ofegante, e o
som de calças hakama silenciou no cômodo. — Não seja muito duro
com o menino. Dissemos a ele para matar um perigoso yokai de
duzentos anos que tem se alimentado de homens por séculos, e o
senhor traidor que estava conspirando contra os Kage. Ele cumpriu
seu dever e o clã está satisfeito.
Eu levantei minha cabeça, piscando enquanto a luz da lamparina
se derramava sobre mim, iluminando o estranho que havia
entrado. Alto e magro como um caniço, ele usava uma túnica preta
com enxames de flores de sakura brancas, e um leque de seda branca
estava preso entre dedos longos. O mais leve fragmento de
cavanhaque enfeitava uma mandíbula delicada, e ele ergueu uma
sobrancelha fina como uma linha de tinta, olhando para mim como se
fosse um inseto curioso no chão.
— Então, este é nosso pequeno matador de demônios, não é? —
O estranho inclinou a cabeça, segurando o leque diante do nariz. Eu
podia sentir que ele estava sorrindo para mim por trás da seda. —
Que... intrigante. Bem, Ichiro-san, não seja rude. Você não vai me
apresentar?
Ichiro suspirou. — Tatsumi, este é Kage Masao. — ele disse
rispidamente. — Ele nos honra com sua presença, já que é o principal
conselheiro da própria Dama Hanshou.
Dama Hanshou? A daimyo da família Kage? Um lampejo de
surpresa passou por mim. Dama Hanshou era a evasiva líder do Clã
das Sombras, uma mulher misteriosa envolta em lendas e rumores,
raramente vista ou falada, para que seus espiões pessoais não ouçam e
ajam. Ela quase nunca deixa seus aposentos no Castelo Hakumei, e
muito poucas pessoas tinham visto o que havia além das portas do
castelo. Foi dito que Hanshou estava cercada pelos shinobi mais
mortíferos do país, um grupo tão leal que cortou sua própria língua
para ter certeza de nunca trair seus segredos. Quanto à própria
Hanshou, os rumores mais sombrios diziam que ela era imortal, mas
nem mesmo seu próprio clã sabia muito sobre ela, quem ela era, até
mesmo sua aparência. A maioria estava contente em deixar o mistério
acontecer.
— Não fique tão chocado, Tatsumi-san. — Masao fechou o leque
com um estalo e juntou os longos dedos. — Dama Hanshou tem
observado suas façanhas, e seus triunfos contínuos chamaram a
atenção dela. Na verdade, é por isso que estou aqui. Ela deseja
conhecê-lo pessoalmente, jovem matador de demônios. Devo levá-lo
até ela, esta noite.
— Então pare de ficar boquiaberto como um peixe
desembarcado. — Ichiro disparou antes que eu pudesse dizer
qualquer coisa. — E vá se limpar. Não podemos permitir que você
encontre a daimyo do Clã das Sombras parecendo um rato afogado.
Fiz uma reverência para os dois homens e obedeci, escapulindo e
descendo as escadas para o primeiro andar.
Devo encontrar a daimyo dos Kage, a líder do Clã das Sombras. Uma
onda do que poderia ser apreensão passou pelo meu
estômago. Imediatamente, Hakaimono se mexeu, intrigado com
aquele lampejo de emoção, e eu friamente a esmaguei, dizendo a mim
mesmo para não sentir nada. Intelectualmente, eu sabia que era uma
grande honra; poucos foram chamados à presença de Dama Hanshou,
poucos poderiam alegar que a daimyo do Clã das Sombras havia
falado com eles cara a cara. Minhas missões foram passadas para mim
por Ichiro e o outro sensei; não havia razão para a líder dos Kage
designá-las para mim pessoalmente. Já tinha ouvido falar de samurais
ganhando recompensas, reconhecimento e honra por meio de grandes
feitos e atos de valor, mas essas oportunidades não eram concedidas a
alguém como eu. Eu matei demônios, monstros e yokai porque esse
era o propósito da minha existência. Uma arma não precisava de
elogios ou reconhecimento para fazer seu trabalho.
Então, por que Dama Hanshou iria querer me ver?
Um servo esperava por mim ao pé da escada, e eu o segui até a
pequena banheira onde, normalmente, era recebido por um par de
curandeiros do Clã das Sombras. Vestidos com túnicas cinza-
acinzentadas, eles me cumprimentaram com o mesmo distanciamento
clínico que demonstravam em todos os exames pós-missão.
— Retire as armas e as roupas. — disse um deles em tom
entediado, apontando para um banquinho no meio do banheiro. —
Depois sente-se. Vamos acabar com isso rapidamente.
Eu obedeci, desarmando-me das armas, shuriken, gancho e as
facas de arremesso, kunai escondidas em minhas braçadeiras, antes de
colocar Kamigoroshi no canto. O servo, assim como os dois
curandeiros, ficaram longe da espada quando eu a coloquei no chão,
como se fosse uma besta terrível que iria atacá-los se tivesse uma
chance. Eu sabia que eles me olhavam da mesma maneira. Todos os
Kage estavam cientes da maldição de Kamigoroshi e interagiam
comigo o menos possível para evitar cutucar o demônio. Quando eu
era criança, era terrivelmente solitário, todo mundo recuava como se
eu tivesse uma praga. Agora, isso não significava nada para mim.
Depois de tirar minha roupa preta encharcada, sentei-me no
banquinho enquanto a dupla me examinava. Um inclinou minha
cabeça para olhar nos meus olhos, enquanto o outro cutucou meu
lado, provocando uma pontada de dor aguda.
— Hmm. — ele murmurou, cavando seus dedos em minha pele,
cutucando e beliscando. Eu apertei minha mandíbula e não fiz
nenhum som. — Uma costela fraturada e vários hematomas
profundos ao longo do lado, nada quebrado.
O outro abaixou minha pálpebra, virando minha cabeça em
direção à luz. — Traços de veneno em seus olhos, não o suficiente
para cegar, felizmente. A jorogumo mordeu você? — ele perguntou-
me.
— Não.
— Então suas entranhas não estão se transformando em sopa
enquanto conversamos, é bom ouvir. E você conseguiu manter a
maior parte do seu sangue dentro desta vez, muito bem. Torna-se
muito cansativo quando você aparece continuamente meio morto no
meio da noite. — Ele soltou meu queixo e se virou para gesticular para
o servo. — Terminamos aqui. Dê banho nele, faça um curativo nos
cortes e o envie ao Mestre Ichiro quando terminar.
O servo fez uma reverência silenciosa quando os curandeiros
deixaram a sala, então pegou o balde que estava ao lado do
banquinho e jogou-o sobre minha cabeça. A água gelada encharcou
meu cabelo e parecia espalhar garras de gelo sobre minha pele, mas
não me mexi enquanto o servo derramava a sujeira e a fuligem do
meu corpo, esfregando minhas feridas até que a carne ao redor delas
ficou rosa. Quando eu estava limpo, ele derramou outro balde de água
na minha cabeça, enfaixou os cortes e saiu sem dizer uma palavra.
De pé, olhei ao redor e vi que outro servo havia deixado uma
muda de roupa na beira da banheira: um par de calças hakama, uma
faixa obi cinza-pombo e um casaco haori preto com um crescente
branco eclipsado por uma lua escura, o brasão do Clã das Sombras,
nas costas.
Ichiro e Masao esperavam por mim no cômodo ao lado, falando
baixinho com um par de xícaras de saquê entre eles. Não vi Ayame,
mas sabia que ela estava perto. Meu sensei apenas grunhiu quando
me ajoelhei no tatame e me curvei, mas pude sentir Kage Masao me
observando com um sorriso quase predatório quando encostei minha
testa no chão.
— Aí está você. — Observou Ichiro enquanto eu levantava a
cabeça. — Bem, você parece como se um cachorro mordesse você, mas
pelo menos você não se parece mais com um rato afogado. Masao-san
tem um par de kago esperando do lado de fora para levá-lo pela
cidade. Você está pronto?
— Sim, sensei.
— Excelente! — Masao-san levantou-se com um esvoaçante
manto e leque. — Venha então, pequeno matador de demônios. Não
devemos deixar Hanshou-sama esperando.
Ele saiu. Levantei-me para segui-lo, mas Ichiro agarrou meu
braço quando passei por ele, dedos ásperos cavando em minha carne
enquanto ele se inclinava para perto.
— Me escute, garoto. — ele rosnou, enquanto eu ainda estava
nas garras do meu sensei. — Você está prestes a conhecer a pessoa
mais importante dos Kage, a própria líder do Clã das
Sombras. Não me envergonhe. Se me desonrar na frente da senhora,
garanto-lhe que a surra que levou esta noite vai parecer uma
massagem em comparação com o que farei com você. Você entende?
— Sim, Mestre Ichiro.
— Lembre-se do que nós lhe ensinamos. Repita para mim, agora.
— Eu não sou nada. — Eu disse automaticamente. — Eu sou
uma arma nas mãos dos Kage. Minha vida existe apenas para ser o
portador de Kamigoroshi e obedecer às ordens do Clã das Sombras.
— Bom. — Ele acenou com a cabeça e me soltou. — Cuide para
que você se lembre ao falar com a senhora. Agora vá.
Kage Masao estava na varanda coberta, olhando com desgosto
para a chuva, uma sombrinha colorida colocada sobre sua cabeça. Um
par de kago, palanquins individuais feitos de madeira laqueada e
carregados por quatro carregadores treinados, esperava ao pé da
escada. Nunca tinha andado de kago; geralmente eram reservados
para nobres e indivíduos importantes, não para assassinos
humildes. Mas, olhando para Kage Masao e suas vestes esvoaçantes,
percebi que ele não tinha viajado aqui a cavalo e certamente não a pé.
— Que tempo horrível. — Ele suspirou, levando o leque ao rosto,
como se a própria chuva o ofendesse. — Adequado para esta pequena
cidade atrasada. Ficarei feliz em terminar com isso. — Olhando para
mim, ele ofereceu um sorriso brilhante e gesticulou para um kago. —
Bem, Tatsumi-san? Vamos embora?
A viagem foi bastante curta, já que a cidade não era grande, e
logo os servos estavam abrindo a porta do kago, revelando um grande
ryokan de dois andares, uma pousada, aparecendo na beira da estrada
lamacenta. Lá dentro, segui Masao escada acima até um cômodo no
final de um corredor e esperei ali enquanto ele entrava. Um momento
depois, um servo deslizou para trás, soltando alguns fios de fumaça
cinza e me chamou para dentro. O cômodo além estava envolto em
sombras e cheirava a incenso e tabaco. Cautelosamente, atravessei a
porta e quando ela se fechou atrás de mim, caí de joelhos e pressionei
minha testa no tatame.
— Kage Tatsumi. — Masao ronronou. — O matador de
demônios.
— Venha para a frente, garoto. — Uma voz rouca fala, me
assustando com sua aspereza. — Venha para a luz. Deixe-me ver o
portador da lendária Kamigoroshi.
Piscando para afastar a fumaça, levantei minha cabeça e avancei
de joelhos, apertando os olhos para ver além da lamparina que
queimava na beirada de uma mesa baixa. Garrafas de saquê cobriam a
superfície polida como fileiras de guerreiros protegendo seu general, e
o incenso pairava espesso no ar, cheirando a fumaça e sândalo.
Espiando além da neblina e das garrafas, tive um vislumbre da
pessoa falando e cerrei minha mandíbula para parar a forte inalação
de ar. Apenas anos de treinamento e prática mantiveram minhas
feições inexpressivas. Parecia que o rosto de Dama Hanshou havia
sido esfolado, espancado e deixado sob o sol para queimar antes de
ser colocado de volta em seu pescoço afundado. Dobras de pele
pendiam de seus braços como palitos; suas mãos eram garras
enrugadas de pássaro, uma delas segurando um tubo de cabo longo
como se fosse sua tábua de salvação para o mundo dos vivos. Alguns
fios brancos e finos ainda estavam presos ao couro cabeludo,
flutuando no ar como seda de aranha. Um olho leitoso estava
semicerrado, o outro queimava com tal intensidade que beirava a
loucura.
Dama Hanshou deu um sorriso largo e desdentado ao meu
silêncio. — Não é bem o que você esperava, hein, matador de
demônios? — ela gargalhou. — Continue olhando, mas esse rosto não
vai ficar mais bonito. — Imediatamente, pressionei meu rosto no
tatame novamente, mas Dama Hanshou soltou um bufo. — Oh,
levante-se, garoto. — ela retrucou, parecendo impaciente. — Deixe-me
olhar você nos olhos. Misericordiosa Kami, você é jovem. — ela
exclamou enquanto eu me levantava. — Quantos anos você tem,
garoto? Quatorze? — Sem esperar por uma resposta, ela deu um tapa
na perna de Kage Masao com as costas da mão. — Masao-
san! Quantos anos ele tem agora?
— Ele tem dezessete anos, minha senhora.
— Ele tem? — O rosto de Hanshou assumiu uma expressão que
poderia passar por surpresa. — Ele parece mais jovem do que
isso. Ah, mas todos vocês parecem bebês para mim. — Ela tateou em
busca de uma garrafa de saquê, de alguma forma conseguindo deixar
as vazias intactas. Masao pegou a garrafa e serviu-lhe uma xícara de
vinho de arroz, que ela engoliu de um só gole, depois estendeu a
xícara para mais.
— Você esconde bem o seu nojo. — Com um sobressalto, percebi
que ela estava falando comigo. Seu olho sem nuvens rolou para me
fixar com um olhar brilhante e intenso. — Melhor do que Ichiro-san,
seu pequeno aluno à espreita, ou mesmo Masao-san aqui. Nem
sempre fui assim, sabe. — Ela cheirou e soprou uma nuvem de
fumaça, que se enrolou em volta de mim como tentáculos
agarradores. — Uma vez, eu era tão bonita que o próprio Imperador
Taiyo no Gintaro queria me fazer sua noiva, e ansiava por mim
quando eu recusei.
Eu não sabia o nome daquele imperador. Taiyo no Genjiro era o
atual imperador governando do Palácio Dourado, e Taiyo no Eiichi
era o imperador antes dele. Sem saber o que dizer, fiquei em
silêncio. Hanshou me olhou, sua voz se tornando maliciosa, seus
lábios torcidos em um sorriso malicioso. — Eu poderia roubar até
mesmo seu afeto, matador de demônios. — ela declarou com uma voz
rouca. — Fazer você me desejar como o demônio em sua espada
deseja lutar. Você não seria capaz de resistir. O que você acha disso?
Masao pigarreou. — Minha senhora, o tempo está se esgotando.
— disse ele. — Você não será capaz de permanecer fora com este
tempo por muito mais tempo. Precisamos retornar ao Castelo
Hakumei hoje à noite.
Hanshou fez beicinho. — Oh, muito bem. — ela suspirou. —
Suponho que não deva mais provocar o menino. Mas você não é nada
divertido, Masao-san. — Sentando-se um pouco mais reta, ela enfiou o
cachimbo na boca e olhou feio para mim. — Matador de demônios
Kage, chamei você aqui pessoalmente para uma tarefa muito
importante. Hoje à noite, vou enviar você na missão para a qual você
nasceu.
Ela gesticulou, e Masao avançou para colocar várias folhas de
papel na mesa diante de mim. Eu as peguei. Algumas eram
documentos de viagem com o selo da daimyo Kage; papéis que
permitem que você passe pelos territórios dos outros clãs sem ser
detido nos postos de controle. Fiquei surpreso, mas apenas por um
momento. Tecnicamente, a terra estava em paz. O último imperador
proibiu a guerra aberta, e os clãs estavam desfrutando de um raro
período de calma entre séculos de luta e derramamento de
sangue. Recentemente, porém, ela explodiu novamente, não
surpreendendo ninguém. Havia muita animosidade, muitos rancores,
rixas e vinganças pessoais entre os Grandes Clãs; bastaria um único
ato agressivo, um insulto que não poderia ser ignorado, e os daimios
voltariam a atacar uns aos outros. Se eu fosse descoberto me
esgueirando pelo território de um clã rival sem permissão, esse
poderia ser o ato de agressão necessário para declarar guerra. E
embora eu tivesse certeza de que poderia fazer isso sem ser pego,
entendi a precaução de Dama Hanshou.
O outro papel era um pergaminho que, quando alisado, exibia
um mapa das montanhas em algum lugar do território do Clã da
Terra. Um rio serpenteava pelo mapa, cortando floresta e planícies,
indo para o norte. Achei que o reconheci como o Hotaru Kawa, o rio
que passava por Kin Heigen Toshi, a grande capital no centro do
território do Clã do Sol. A capital, porém, não era meu
destino. Pelo X marcado no topo do maior pico da montanha, presumi
que era meu alvo.
— O templo Ventos Silenciosos fica no topo das montanhas
Niwaki, na extremidade leste das terras de Tsuchi. — disse Dama
Hanshou, confirmando minha suspeita. — Você irá até os portões se
passando por peregrino, pedindo para passar a noite. Se eles deixarem
você entrar, tanto melhor. Do contrário, você se infiltrará no templo de
outra forma. Não importa como você entrará, apenas que encontre o
que foi enviado para buscar.
— Entendido. — Respondi. Um templo cheio de monges não era
minha marca normal; a maioria das ordens eram organizações
pacíficas e reflexivas que permaneciam neutras em relação à política e
às lutas dos clãs. Mas não era minha função questionar minha
daimyo. — Quem é o meu alvo?
— Isto não é um assassinato. — Dama Hanshou respondeu, para
minha imensa surpresa. — Estou enviando você para recuperar um
item para mim. Eu preferiria que não houvesse massacre, mas pode
haver casos em que seus talentos específicos sejam úteis. Estou
enviando você, Tatsumi, porque Ichiro acredita que entre seus
companheiros shinobi, você é o melhor, e chegar ao item pode ser um
desafio, mesmo para alguém como você. — Seu olho bom se estreitou,
suas palavras se tornando ásperas. — Mas é imperativo que você
recupere o item. Eu não me importo com o que for preciso, quem você
tem que matar. Não se atreva a voltar sem ele, essa é uma ordem da
sua daimyo. — Sua voz ficou ainda mais dura, tornando-se um
rosnado rouco que enviou um arrepio nas minhas costas. — Matador
de demônios Kage, saiba que se você falhar comigo, as consequências
serão terríveis. Estaremos vigiando você, e o Clã das Sombras não
tolera desobediência. Você entende?
— Minha senhora, minha vida está ligada aos Kage. — Curvei-
me mais uma vez, recitando as palavras que eram esperadas. Não
importava se eu quisesse dizer a eles; elas eram verdadeiros, no
entanto. — E para você. Eu não vou falhar. Diga-me apenas o que
estou procurando e estará feito. O que devo recuperar?
Os olhos de Dama Hanshou brilharam febrilmente brilhantes no
cômodo escuro, e seus lábios se curvaram em um leve sorriso. — Um
certo pergaminho que eu perdi. — Ela sussurrou. — Anos e anos
atrás.
Capítulo 4
Chá Tanuki
Eu odiava acender as velas no corredor principal.
Duzentos e setenta e sete. Havia duzentos e setenta e sete velas
que deviam ser acesas, individualmente, ao redor do corredor. Todas
as noites, antes do pôr-do-sol, para que os monges pudessem realizar
suas meditações noturnas. Não me lembro de quando foi oficialmente
meu dever acender as velas; suspeito que Denga ou Nitoru haviam
sugerido a ideia ao Mestre Jin, o velho monge que cuidava do salão,
para "me ensinar paciência e dedicação". Certamente, você tinha que
ter ambos para esta tarefa. O salão principal era enorme, com pilares
altos e pisos de madeira escura polidos a tal ponto que você podia ver
todas as chamas de velas dentro. No final do corredor estava a enorme
estátua verde do Profeta de Jade, cujos ensinamentos todos os monges
procuravam imitar. Não havia janelas, e a única luz natural entrava
pela enorme porta de madeira na entrada, então a câmara estava
constantemente escura e silenciosa. Quando todas as velas eram
acesas, elas criavam um brilho laranja nebuloso por todo o salão,
transformando o corredor em um paraíso surreal de sombras e luzes
dançantes.
Mas demorava uma eternidade para acender todas elas.
Suspirei, baixando o castiçal para olhar tristemente ao redor do
salão. Muitas mais para ir. Eu ainda não tinha alcançado as trinta ou
mais velas no altar. Se ao menos houvesse uma maneira de acendê-las
todas de uma vez...
Fiz uma pausa e um sorriso se espalhou pelo meu rosto com a
ideia. Na verdade, eu poderia acendê-las todos de uma vez. Afinal, eu
era kitsune. Kitsune-bi era fogo, não era? Fogo sem calor, mágico, mas
muito mais fácil de manipular do que chamas normais. Os monges
não gostariam, é claro. Nitoru e Denga definitivamente não
aprovariam, mas então, eles não aprovavam nada do que eu fazia.
Eu apaguei a vela em minha mão e a coloquei no
chão. Levantando-me, semicerrei os olhos, coloquei a palma da mão
aberta diante do rosto e invoquei minha magia.
Uma chama fantasmagórica branco-azulada ganhou vida entre
meus dedos. Ela cintilou e dançou inofensivamente contra minha pele,
lançando sombras misteriosas sobre as paredes e pilares, crescendo
cada vez mais até que eu coloquei uma esfera brilhante de raposa. Por
um momento, eu vi minha sombra na parede do templo: uma figura
humana com orelhas pontudas e uma cauda espessa ondulando atrás
dela.
Erguendo minha cabeça, eu lancei minha mão em um arco, e
kitsune-bi se espalharam em todas as direções, pequenas chamas que
voaram pelo salão como estrelas cadentes. Abaixando meu braço,
observei meu trabalho presunçosamente. O corredor agora brilhava
com a luz branco-azulada de raposa, chamas luminescentes que
pairavam na ponta dos pavios de vela. Em minha opinião, era muito
mais bonito do que o fogo comum, embora desse à câmara uma
sensação bastante sinistra e fantasmagórica.
Mas o mais importante, todas as velas estavam acesas. E ainda
faltava uma boa hora para as meditações noturnas. Eu estava livre até
então. Espanando minhas mãos, dirigi-me para a saída.
Vozes do lado de fora me congelaram. Eu me esgueirei ao longo
da parede até a porta e espiei pela moldura. Jin estava subindo os
degraus em direção ao salão principal e, pior, Denga estava ao lado
dele.
Ah não. Minhas orelhas se achataram em alarme e eu recuei
rapidamente. Se eles me pegassem, provavelmente receberia uma
palestra: talvez sobre o valor da paciência e da dedicação à
tarefa. Talvez eles me proibissem de usar magia novamente. No
mínimo, eles me fariam começar de novo, acendendo todas as velas
uma por uma, desta vez sob supervisão.
Esconderijo. Preciso de um esconderijo, rapidamente.
Corro para a parede oposta e, com um pedido de desculpas
sussurrado, me abaixei atrás da enorme estátua do Profeta de Jade, no
momento em que um grito furioso soou na entrada.
— Fogo de raposa! — Os passos de Denga entraram no salão e
eu espiei por trás da estátua para observá-lo. O kitsune-bi lançava um
brilho branco cintilante sobre seu rosto indignado enquanto ele
girava, gesticulando furiosamente. — A garota demônio acendeu as
velas com fogo de raposa! De todos os... — Ele gaguejou de raiva. —
Quando eu a encontrar...
— Agora, Denga-san. — A voz de Jin ecoou atrás de Denga,
calma e divertida. — Ela é apenas uma criança, afinal, e uma
kitsune. Ela não entende.
— Não. — Denga girou mais uma vez, olhando ao redor do
corredor, antes de se virar e marchar de volta para a saída. — Isso já
foi longe o suficiente. Está perfeitamente claro que ela é mais raposa
do que mortal, que sua natureza yokai está ofuscando sua
humanidade. Algo deve ser feito. Não vou tolerar mais as pegadinhas
dela.
Jin piscou, observando-o partir. — O que você está planejando
fazer, Denga-san?
— Falar com o Mestre Isao e o convencer a colocar uma
amarração nela. — respondeu Denga, fazendo meu estômago
revirar. Sua voz subiu os degraus quando ele saiu do corredor. —
Selar aquela magia infernal de raposa para sempre. Antes de
acordarmos e encontrarmos um verdadeiro demônio em nosso meio.
Meu coração disparou. Jin observou Denga ir embora, então
suspirou e começou a apagar as chamas kitsune-bi acima das
velas. Ele as extinguiu um de cada vez, lenta e deliberadamente, toda
sua atenção voltada para sua tarefa. Ele terminaria em alguns
minutos, mas eu não queria mais ficar aqui, caso Denga voltasse com
Mestre Isao e cumprisse sua promessa. Tentar escapar enquanto Jin
estava no salão provavelmente me faria ser pega, mas eu tinha um
último truque, supremamente proibido, na manga.
Na base da estátua, ajoelhei-me, enfiei os dedos entre uma certa
tábua e levantei-a, revelando um buraco estreito que conduzia sob o
chão do salão principal. Era muito pequeno para um humano, mesmo
um humano pequeno, passar. Mas eu não era apenas humana. Eu
também era kitsune.
Fechando meus olhos, convoquei meu poder mais uma vez,
sentindo meu coração começar a bater com antecipação. A maior parte
da magia de raposa era ilusão e trapaça, como Denga havia dito. As
imagens cobrem a verdade, fazendo você ver e ouvir coisas que não
estavam lá. Cópias perfeitas, mas não mais substanciais do que um
reflexo no espelho. Mas havia uma forma na qual eu poderia me
transformar de verdade, embora fosse proibida de usá-la sem
permissão.
Hoje parecia um bom dia para quebrar todas as regras.
Meu corpo ficou quente e experimentei a sensação abrupta de
encolher rapidamente, junto com a nuvem familiar de fumaça
branca. Quando abri os olhos, estava muito mais perto do chão. Os
sons eram mais nítidos, as sombras quase inexistentes e o ar estava
cheio de novos cheiros: a terra mofada, o cheiro forte do metal e a
sugestão de fumaça de vela ainda no ar. No reflexo borrado no
pedestal da estátua, um focinho pontudo e olhos dourados me
encararam, uma cauda espessa de ponta branca enrolada em suas
pernas.
Mestre Isao não aprovava que eu fosse uma raposa. Você é
humana, ele me disse em mais de uma ocasião. Sim, você é kitsune, mas
ser Yumeko é muito mais difícil do que ser uma raposa. Se você passar muito
tempo nesse corpo, algum dia poderá esquecer o que significa ser mortal.
Eu não tinha certeza do que ele queria dizer com isso e agora não
importava. Abaixando a cabeça, deslizei facilmente para dentro do
buraco, deslizei sob as tábuas do piso e saí por baixo da
varanda. Depois de me certificar de que não havia monges por perto,
especialmente Mestre Isao, fui para o jardim, para o velho bordo
encostado nas paredes do templo. As patas de raposa eram rápidas e
ágeis, e a madeira muito áspera; corri até o tronco nodoso, caí para o
outro lado e escapei para a quietude fria da floresta.

Mais tarde naquela noite, eu estava sentada em uma rocha plana


ao lado de meu lago tranquilo favorito, balançando meus pés
descalços na água, enquanto pensava no que fazer a seguir. Libélulas
semelhantes à joias voavam sobre a superfície espelhada, e pequenos
peixes com bigodes nadavam preguiçosamente sob meus pés, olhando
meus dedos do pé novamente humanos. O sol aquecia a rocha e uma
brisa farfalhava através do bosque de bambu que cercava o lago. Era
um bom lugar para esquecer seus problemas e muitas vezes eu vinha
aqui quando a vida no templo ficava muito monótona ou quando
estava me escondendo de Denga. Normalmente, a água, a brisa e os
peixes poderiam apagar minhas preocupações em um momento. Mas
hoje, eu não conseguia esquecer o que foi dito no salão do templo.
Selar minha magia? Bem desse jeito? Fazer com que eu não
pudesse tecer ilusões, mudar minha forma ou invocar minha
raposa? Isso parecia excessivo. Eu nunca machuquei nada com minhas
pegadinhas, exceto o orgulho de Denga. E talvez um ou dois painéis
deslizantes.
Eu olhei para meu reflexo na água. Uma garota com orelhas
pontudas e olhos amarelos olhou para trás, a cauda espessa enrolada
atrás dela. Ela é mais raposa do que mortal, Denga se enfureceu ao sair
do salão esta noite. Sua natureza yokai está ofuscando sua humanidade.
— Isso não é verdade. — Eu disse a kitsune olhando para
mim. — Eu ainda sou principalmente humana. Pelo menos, acho que
sou.
— Falando sozinho, filhote de raposa?
Eu olhei para cima. Uma velha atarracada caminhava lentamente
ao redor da borda do lago. Ela usava uma túnica esfarrapada, um
chapéu de palha de aba larga e sandálias altas de madeira que
afundavam na grama enquanto ela avançava pela margem. Em uma
das mãos nodosas ela segurava uma vara de bambu, apoiada em um
ombro; a outra agarrava um grupo de peixinhos pendurados em um
barbante. Seus olhos brilharam amarelos sob a aba do chapéu quando
ela olhou para mim.
Eu sorri. — Boa noite, Tanuki-baba. — Cumprimentei
educadamente. — O que você está fazendo aqui?
A velha bufou e levantou o cacho de peixes. — Plantando flores,
como isso parece para você?
Eu fiz uma careta em confusão. — Mas... Esses são peixes. Por
que você estaria plantando flores, Tanuki-baba? Você não as come.
— Exatamente. Alguns de nós realmente têm que trabalhar para
nossa comida, ao contrário de algumas meias-raposas ingênuas e
estragadas que não vou nomear. — Ela me olhou por baixo do
chapéu, levantando uma sobrancelha fina e cinza. — Mas o
que você está fazendo fora tão tarde, filhote? Esses seus humanos não
gostam quando você se afasta. — Ela ri, mostrando um lampejo de
dentes amarelos. — Denga-san está em pé de guerra? Você
transformou o gato em uma chaleira de novo?
— Não, não faz muito tempo, ele me arranha quando tento
colocar uma folha em sua cabeça. Mas... — Eu estremeci, segurando
meus braços. A rocha aquecida pelo sol de repente ficou fria. —
Denga-san estava zangado. — disse eu. — Mais do que eu já vi
antes. Ele disse que eu era mais yokai do que humana e que Mestre
Isao deveria colocar uma amarração em mim. E se Mestre Isao o
ouvir? E se ele realmente selar minha magia? Eu... — Eu vacilei,
sentindo meu estômago revirar com o pensamento de perder meu
poder. — Não consigo imaginar não ter magia. Seria pior do que
cortar meus dedos ou arrancar meus olhos. Se isso acontecer, o que
farei?
Tanuki-baba bufou. — Venha. — disse ela, apontando para a
trilha com a ponta de sua vara de bambu. — Vou fazer um chá para
você.
Eu desci e segui a forma curvada para longe do lago, para o
caminho estreito e sinuoso através da floresta de bambu. Sua vara
balançava enquanto ela andava, e a ponta de uma espessa cauda
marrom aparecia por baixo da bainha de seu manto. Fingi não notar,
assim como sabia que ela fingia não ver minhas orelhas e cauda. Era
uma regra implícita entre os yokai; ninguém chama atenção para sua...
yokaizisse se não quiser ser assombrado, assediado ou amaldiçoado
com extrema má sorte. Não que eu tivesse medo de Tanuki-baba fazer
isso. Para mim, ela sempre foi uma velha avó yokai, e as histórias dos
truques que ela costumava pregar aos humanos quando era uma
jovem tanuki eram sempre divertidas, embora às vezes assustadoras.
Saímos do bambu para uma parte mais profunda e escura da
floresta. Aqui, as árvores antigas cresciam juntas, os galhos
entrelaçados quase bloqueando o sol. Finos raios de luz cortavam
fracamente as folhas, manchando o solo da floresta, e o ar tinha uma
sensação parada, quase reverente. Kodama curiosos, os espíritos das
árvores da floresta, nos espiavam por trás das folhas ou nos seguiam
pela trilha, seus corpos verdes etéreos não eram maiores do que meu
dedo.
Tanuki-baba me conduziu ao longo de um riacho murmurante
familiar, por uma minúscula ponte em arco que estava sendo
devorada por cogumelos e fungos, e em direção a uma cabana de
madeira que fora completamente engolida por musgo. Há muito,
muito tempo, ela disse, pertencera a um yamabushi, um sacerdote
errante que buscava harmonia e equilíbrio dentro da natureza, que
podia ver e se comunicar diretamente com os kami. Mas aquele mortal
seguiu em frente ou morreu, e a cabana agora era dela. Parte do
telhado de palha havia caído e árvores e arbustos a cercavam; se você
não soubesse que havia uma habitação ali, poderia perdê-la na
vegetação. O interior, como sempre, estava uma bagunça, com lixo
amontoado em cada canto e ao longo de cada parede.
— Sente-se. — Tanuki-baba resmungou, apontando para uma
mesa baixa de madeira no centro do chão, o único espaço livre na
sala. — Vou fazer um chá para nós, supondo que eu possa encontrar o
bule, é claro.
Havia dois ou três bules descansando em lugares diferentes em
toda a desordem. Eu não disse nada, porque minhas sugestões sempre
foram recebidas com recusa. Aquele bule estava rachado ou sujo, ou
tinha uma família de pássaros vivendo nele. Não, o bule certo estava
aqui, em algum lugar, e só ela poderia encontrá-lo. Ajoelhei-me à
mesa de madeira até que Tanuki-baba finalmente encontrou o que
estava procurando, um pote de ferro velho e sujo, e o arrancou da
pilha.
— Vazio. — Ela suspirou, olhando no topo. — Isso é bom, eu
suponho. Sem ratos desta vez. Significa que tenho que preencher, no
entanto. Eu já volto. — ela me disse, cambaleando novamente. — Não
toque em nada.
Esperei pacientemente, rolando pequenas chamas de kitsune-bi
pela superfície da mesa, enquanto Tanuki-baba enchia o bule,
colocava-o no braseiro e acendia as brasas no fundo. Ela então se
movimentava pela cabana, pegando coisas da desordem ao longo das
paredes e murmurando para si mesma. Finalmente, ela voltou para a
mesa com o bule, duas xícaras lascadas e uma bandeja com os peixes
que ela havia pescado, ainda crus e sem escamas, dispostos em uma
fileira.
— Ahhh. — Ela suspirou, acomodando-se no travesseiro puído à
minha frente. Depois de vários momentos se mexendo e se
acomodando, ela tirou o chapéu e o jogou em um canto, onde se
misturou à desordem. Educadamente, abaixei o olhar, com cuidado
para não olhar para as orelhas redondas e peludas que se projetavam
do topo de sua cabeça cinza. — Vá em frente e sirva o chá, filhote. —
Tanuki-baba ordenou, acenando com a mão para o bule e as
xícaras. — Pelo menos seja útil.
Eu cuidadosamente derramei um líquido verde fino nas duas
xícaras, então ofereci uma a ela. Ela a pegou com um sorriso torto e o
colocou diante dela.
— Você não se importa se eu trocar de forma enquanto
comemos, não é? — ela perguntou, olhando para a bandeja de peixes
no centro da mesa. — Este corpo é mais útil para fazer chá, mas
prefiro ficar confortável na minha própria casa.
Eu balancei minha cabeça. — De forma alguma, Tanuki-
baba. Por favor faça.
Ela bufou, ergueu a cabeça e se sacudiu. A poeira voou por toda
parte, subindo de seu corpo como uma nuvem, girando para dentro
da cabana. Eu espirrei, me afastando da explosão, e quando olhei para
trás, uma criatura peluda e marrom com uma máscara escura e uma
cauda espessa estava sentada onde a velha senhora estava. Coloquei
uma xícara de chá na frente dela, e ela a pegou com duas patas
marrom-escuras antes de erguê-la até o focinho estreito.
— Ah, muito melhor. — Ela colocou a xícara na mesa com um
tinido e pegou um peixe da bandeja, jogando tudo em suas
mandíbulas antes de triturar com dentes amarelos afiados. — Agora.
— Ela continuou, enquanto eu bebia meu chá. Era muito mais amargo
do que eu gostaria, mas não era educado dizer isso. — Diga-me então,
filhote. Em que tipo de problema você se meteu com aqueles seus
humanos?
Resumidamente, contei a ela sobre meu truque com as velas esta
noite e como isso enfureceu os monges, especialmente Denga-
san. Quando cheguei à parte sobre Denga querendo que Mestre Isao
selasse minha magia, Tanuki-baba deu um bufo violento e quase
derrubou sua xícara de chá.
— Ridículo. — Ela rosnou, pegando o último peixe e mordendo-
o com o estalar de ossos delicados. — Amarrar a magia de um yokai,
há! É uma blasfêmia até sugerir tal coisa. Eu não toleraria esse tipo de
bobagem.
— O que devo fazer, Tanuki-baba?
— Bem, eu sei o que eu faria nessa situação. — Tanuki-baba
disse, um olhar maligno cruzando seu rosto mascarado. — Mas você
provavelmente é muito jovem para tal caos. E a solução é óbvia, não
é? Você precisa sair.
— Os monges não gostam disso. — Eu disse. — Eles ficam
sempre muito zangados quando eu corro assim. Provavelmente terei
uma bronca quando voltar esta noite.
— Não... — Tanuki-baba rosnou. — Você precisa sair... e não
voltar.
— Você quer dizer... sair do templo permanentemente?
— Claro. — A velha yokai gesticulou para a porta de sua
cabana. — Você acha que o templo é o único lugar onde você pode
morar? E que o modo de vida dos monges é o único? — Seu focinho
enrugou. — Há um mundo enorme lá fora, filhote. Cheio de
maravilhas, riquezas, caos e coisas que você nem pode imaginar. Você
está desperdiçando sua vida e seus talentos, ficando atrás das paredes
do templo, ouvindo os humanos falarem sobre moralidade. Um
kitsune não foi feito para ser enjaulado. Você não quer sair e ver o que
está perdendo?
Algo dentro de mim se agitou, o desejo, a intriga e a curiosidade
pelo mundo além das paredes voltando à superfície novamente. Eu
queria saber o que estava lá fora. Eu queria ver os lugares de que o
Mestre Isao falou, as cidades extensas e a natureza emaranhada não
destinadas a pés humanos. Eu ansiava por visitar Kin Heigen Toshi, a
grande capital dourada, e viajar até o topo da Montanha Dedo dos
Deuses, o pico mais alto de Iwagoto, que dizem tocar o céu. Eu queria
ver samurais e mercadores, nobres e camponeses, gueixas e bandidos,
fazendeiros e pescadores. Eu queria ver tudo.
E, em um pensamento minúsculo que eu mal admitia até para
mim mesma, estava cansada de sempre ter minha magia
restringida. Praticar magia de raposa apenas sob supervisão ou ser
punida sempre que a usasse para brincadeiras, piadas ou para sair do
trabalho. Se eu fosse realmente livre, não haveria limitações; eu
poderia usar meus poderes kitsune como quisesse.
Mas para fazer isso, eu teria que deixar para trás os monges, o
templo e a única vida que eu já conheci. E embora a ordem do templo
Ventos Silenciosos fosse pequena, confinante e rígida, também era
segura. Eu era apenas uma kitsune, nem mesmo uma yokai de sangue
puro. Eu não estava pronta para ser tão corajosa.
— Não posso ir embora, Tanuki-baba. — disse eu à figura
curvada do outro lado da mesa. — Para onde eu iria? Como eu
viveria?
Tanuki-baba piscou. — O que você quer dizer com como você
viveria? — ela retrucou. — Você é kitsune, garota! Você iria para onde
quisesse. Você viveria como quisesse.
— Eu sou apenas meio kitsune. — Eu apontei. — E estive com os
monges minha vida inteira. Eu não sei como ser uma raposa.
— Não sabe ser uma raposa? — Tanuki-baba jogou a cabeça para
trás e gargalhou. Partículas de saliva voaram de suas mandíbulas
estreitas enquanto ela ria, balançando a cabeça. — Pobre pequena
kitsune. — ela zombou. — Você viveu com esses humanos por muito
tempo, deixando sua mortalidade infectar você. — Ela riu, me dando
um olhar exasperado. — Você é uma raposa. Você não precisa
aprender a ser kitsune. Você apenas é.
— Mas...
— E não me dê nenhuma desculpa sobre o seu lado 'humano'. —
Tanuki-baba curvou os lábios, mostrando dentes amarelos e
afiados. — Mesmo uma gota de sangue yokai é suficiente para
suprimir qualquer indício de humanidade, se você quiser. Você
apenas tem que escolher ser mais kitsune do que mortal.
Escolher ser mais kitsune? Como eu faria isso? Havia um ritual
para isso? Pensei no que Denga-san havia dito esta noite, sobre minha
natureza yokai ofuscando minha humanidade. Era disso que os
monges temiam? Eles temiam que eu me transformasse em uma
nogitsune, uma raposa selvagem do mal que se deliciava com o medo
e o caos e atacava os humanos sempre que podia?
Eu engoli em seco. — Mas e se eu não quiser ser mais kitsune? —
Eu perguntei, fazendo Tanuki-baba franzir a testa. — E se eu for feliz
como uma humana e uma raposa?
Ela fungou. — Então você é uma tola. — Afirmou ela sem
rodeios. — E você está lutando uma batalha perdida. É muito difícil
ser humana, raposinha. Mesmo os próprios humanos não fazem um
bom trabalho nisso. O mundo mortal está cheio de ódio, traição,
tristeza e morte. A maioria dos yokai e kami acham que é demais para
eles. Tudo o que os humanos pensam que valorizam, amor, honra,
empatia, compaixão, nós yokai não precisamos de nada disso,
especialmente quando tantas vezes levam ao sofrimento e ao
desespero. É muito mais fácil abandonar tudo o que é humano e ser
apenas kitsune. O mundo dos espíritos e yokai é muito menos
complicado do que o mundo dos homens.
— Eu não entendo, Tanuki-baba.
— Claro que não. — Tanuki-baba balançou a cabeça
desgrenhada, mas não deu mais detalhes. — Você é uma filhote, sem
noção do mundo. Mas você aprenderá. Se você continuar tentando
equilibrar suas duas naturezas, você o fará. E com o tempo, quando
você finalmente experimentar como o mundo humano realmente é,
você decidirá que ser uma raposa é muito menos difícil do que ser
humana. — Ela olhou para a mesa, as narinas se contraindo. — Mas
agora, nossas xícaras de chá estão vazias e o peixe se foi. Isso significa
que é hora de dormir.
Eu me levantei e fiz uma reverência à antiga tanuki. Não se
questionava os hábitos ou comportamentos de yokai tão velhos
quanto ela. — Eu deveria ir para casa. — Eu disse, dando um passo
para trás. — Os monges provavelmente estarão esperando com uma
palestra. Obrigada pelo chá e pela conversa, Tanuki-baba.
— Filhote de raposa. — A velha yokai chamou quando cheguei à
porta. Eu olhei para trás para ver a criatura peluda e atarracada
sentada na miséria de sua casa, me observando com olhos que
brilhavam amarelos nas sombras. — Você anda em uma linha tênue,
pequena kitsune. — Ela disse, e sua voz era um aviso, embora eu não
soubesse de quê. — O lugar entre o reino espiritual e o reino mortal é
difícil, de fato. Lembre-se, você sempre pode desistir de sua
humanidade se as coisas ficarem muito difíceis. É muito mais fácil
para um kitsune, mesmo meio kitsune, abandoná-la do que alguém
que é totalmente mortal.
Eu ainda não sabia o que ela queria dizer com isso, então
simplesmente balancei a cabeça e saí, deslizando para o silêncio
escuro da floresta.
Imediatamente, eu soube que algo estava errado.
No tempo que passei na casa de Tanuki-baba, a noite caiu e a
floresta ficou mortalmente silenciosa. Em vez do canto dos pássaros
ou do farfalhar de pequenas criaturas correndo pela vegetação
rasteira, um silêncio agourento pairava no ar. Os kami da floresta
desapareceram como nunca antes, deixando uma floresta vazia e sem
vida para trás. E um novo cheiro estava rastejando por entre as
árvores, arrepiando os cabelos da minha nuca. O cheiro forte e acre de
fumaça.
Corri pela floresta, refazendo meus passos passando pela
depressão, o riacho e o bosque de bambu, até chegar ao lago. A parede
verde e prata se abriu, mostrando o céu noturno com uma lua
crescente desbotada no alto e uma mancha carmesim afundando no
oeste.
Meu coração torceu. Uma mancha escura estava subindo sobre a
linha das árvores, enrolando-se e ameaçadora, como um terrível
dragão negro. Ela serpenteava no ar, apagando as estrelas, vindo da
direção de...
— Casa.
Capítulo 5
Demônios do bambu
Eu estava perto.
Mesmo à cavalo, levei vários dias para chegar ao território do
Clã da Terra e às Montanhas Niwaki, onde se dizia que o templo
Ventos Silenciosos estava localizado. A minúscula comunidade
agrícola no vale abaixo dos picos florestados olhou para mim, de
olhos arregalados, enquanto eu cavalgava por campos com terraços e
cabanas de palha, seguindo o caminho que serpenteava em direção às
montanhas. Duas crianças pequenas se arrastaram atrás do meu
cavalo, visivelmente curiosas e cada vez mais perto, até que foram
arrebatadas por adultos preocupados. Provavelmente, samurais
viajantes eram raros nesta parte do vale, membros do Clã das Sombras
ainda mais, e os fazendeiros naturalmente davam um amplo espaço
para a classe guerreira. Para esta missão, eu estava vestido no papel
de um samurai Kage, em calças hakama e um casaco haori preto, o
brasão do Clã das Sombras nas minhas costas. Meu equipamento
shinobi estava enfiado nos alforjes do meu cavalo, caso eu precisasse,
embora um guerreiro das sombras nunca se revelasse para
estranhos. Se eu tivesse a entrada negada nos portões, eu escorregaria
pelas paredes e me infiltraria no templo tão silenciosamente quanto
um fantasma yurei, mas, por enquanto, eu era um samurai em
peregrinação de guerreiro, buscando sabedoria nos santuários em
Iwagoto.
Um fazendeiro magro vestindo uma túnica esfarrapada e um
pano amarrado na testa curvou-se quando eu passei, baixando o olhar
para a terra. Parei o cavalo e olhei para ele, ou melhor, para o topo de
sua careca.
— O templo Ventos Silenciosos está próximo? — Eu perguntei
suavemente. O homem não ergueu os olhos, apenas balançou a
cintura uma vez, os olhos fixos nos pés calçados de sandálias
enquanto respondia.
— H-hai, meu senhor! O templo fica logo acima neste caminho,
no topo da montanha.
— Obrigado.
Dei uma cutucada no cavalo e continuei, deixando os
fazendeiros e a aldeia para trás. O caminho se tornou uma trilha
estreita e sinuosa que ficava mais traiçoeira à medida que serpenteava
pela floresta. Concluí que os monges deste templo raramente recebiam
ou incentivavam visitantes. Talvez eles simplesmente desejassem
meditar e estudar em paz, longe do caos do mundo, ou talvez
estivessem escondendo - ou protegendo - algo.
À medida que a noite caía e as sombras cresciam, a trilha quase
desapareceu, derretendo-se nos arbustos e na vegetação rasteira, como
se a própria floresta se ofendesse com os intrusos. Mas eu havia sido
treinado para detectar o oculto e o invisível, e a escuridão não era um
obstáculo para mim. Continuei, passando por bosques de bambu e
enormes árvores amarradas com cordas sagradas, significando que
eram o lar dos kami.
Na minha cabeça, Hakaimono se mexeu. Parei o cavalo e fiquei
sentado, imóvel, tentando ouvir além da respiração difícil do animal
embaixo de mim. Ao nosso redor, a floresta estava silenciosa e imóvel,
as sombras da noite cobrindo tudo, exceto alguns pontos de luz do sol
vermelha manchada.
Muito ligeiramente, abri-me para a espada e senti o terror na
floresta ao meu redor, as batidas rápidas do coração de muitos seres
vivos. Vindo em nossa direção? Houve um farfalhar nos arbustos à
frente e meu cavalo congelou, todos os músculos tensos.
Com uma erupção de folhas e vegetação, um rebanho de cervos
pintados saltou das árvores em minha direção, fazendo meu pulso
acelerar e meu cavalo empinar com um guincho. Fiquei sentado
enquanto o animal tentava fugir, apertando com os joelhos e puxando
as rédeas, conseguindo controlá-lo. Ele bufava e tremia, as orelhas
coladas ao crânio, enquanto os cervos passavam por nós e seguiam
para a floresta. Hakaimono chamejou, e eu empurrei a presença do
demônio para baixo também.
Enquanto o cavalo se acalmava, respirei com cautela e peguei
uma sugestão de fumaça no vento. Eu olhei através do dossel acima,
vi uma onda de escuridão subindo sobre as copas das árvores e
coloquei o cavalo em movimento. Nós aceleramos pela trilha,
Hakaimono pulsando ansiosamente em minha mente, sabendo que a
violência não estava longe, e a morte viria logo.
O ar ficou nebuloso e cortante, cheirando a madeira queimada, e
meu estômago apertou. Olhando para cima, vi um leve brilho
carmesim contra o céu. Pequenas criaturas da floresta, coelhos,
esquilos e outros, fugiam pela vegetação rasteira, indo na direção
oposta, e meu cavalo começou a resistir, lutando contra minhas
ordens para continuar. Severamente, coloquei meus calcanhares em
suas costelas e continuei, sabendo que não era o fogo que o estava
assustando. Algo estava aqui, na floresta. E o que quer que fosse, eu
não poderia permitir que atrapalhasse minha missão. Eu tinha que
pegar o pergaminho.
Quando chegamos a um lance de degraus estreito e meio
erodido através de uma floresta de bambu, uma foice kama voou dos
arbustos, girando de ponta a ponta e atingiu minha montaria no
pescoço. Quando o cavalo gritou e caiu, batendo nos degraus, saltei da
sela e rolei, sentindo o impacto violento no ombro, depois me pus de
pé a vários metros de distância.
Uma enxurrada de pequenas criaturas grotescas saiu da floresta
de bambu, cacarejando e acenando com lanças e lâminas rudes. Elas
cercaram o cavalo, saltando em cima de seu dorso, gritando e
cutucando enquanto ele lutava para se levantar. Em pânico, o cavalo
mortalmente ferido fugiu, galopando descontroladamente pelo
caminho com seus passageiros demoníacos agarrados à sela, enquanto
o resto da horda girava sobre mim.
Amanjaku? Eu senti uma onda de choque e mal-estar, mesmo
enquanto Hakaimono explodia de entusiasmo com tantas coisas para
matar. Já havia lidado com eles no passado, mas nunca nesses
números. Como eram tantos?
Eu saquei Kamigoroshi enquanto os demônios gritavam,
mostrando suas presas e atacando. Uma varredura dividiu a primeira
onda ao meio, cortando cabeças e torsos, e os amanjaku uivaram ao
serem mandados de volta para Jigoku. Saltando para frente, me
esquivei de um golpe de lança em mim, apunhalei um demônio no
olho e decapitei outro enquanto puxava a lâmina para fora. Então eu
estava no meio deles, e não havia nada além de dentes, garras e
lâminas brilhantes. Eu me entreguei à dança da morte, a alegria
desenfreada de Hakaimono subindo em minhas veias.
Com gritos e uivos alarmados, os amanjaku remanescentes se
espalharam pela floresta de bambu, suas pequenas formas
desaparecendo rapidamente de vista. Ofegante, abaixei Kamigoroshi e
olhei ao redor, me perguntando de onde eles tinham vindo, quem os
trouxe aqui. Amanjaku eram demônios menores de Jigoku; eles não
podiam aparecer do nada, mas a magia do sangue necessária para
convocá-los era um poder perigoso que era estritamente proibida em
todo o império. O componente chave para trabalhar a magia de Jigoku
era, claro, sangue. Às vezes, exigia outras coisas: almas, órgãos, partes
do corpo, mas principalmente exigia a força vital que corria por todas
as veias mortais. Quanto maior e mais poderoso o feitiço, mais sangue
era necessário para lançá-lo com sucesso.
Mas, o problema perigoso era que não precisava vir do
praticante. Jigoku não se importava de quem era o sangue derramado,
seja homem, mulher ou criança, desde que fosse humano, e desde que
o preço fosse pago. Embora, como condizente com o reino do mal e da
corrupção, quanto mais você se importasse com a pessoa cujo sangue
estava sendo derramado, mais poderosa a magia que vinha dele. Um
amante, irmão ou filho a quem você traiu concederia muito mais
poder do que um estranho sem nome. Esta foi a razão pela qual o
império proibiu a magia do sangue, porque praticar as artes das trevas
era uma sentença de morte imediata. Até mesmo um único amanjaku
exigia um sacrifício de sangue para atraí-lo para o reino mortal; eu não
conseguia imaginar a quantia que uma horda inteira exigiria.
Eu não sabia quem tinha convocado os demônios, mas
certamente poderia adivinhar o porquê. Depois de embainhar
Kamigoroshi, corri pela trilha, indo em direção ao templo e esperando
não ser tarde demais.
Capítulo 6
As chamas do desespero
O templo estava em chamas.
Eu pulei para fora da floresta, ofegante, olhando com horror para
as brilhantes chamas laranja estalando contra o céu noturno. Os
elegantes telhados de quatro camadas estavam em chamas, um
inferno selvagem e barulhento, o fedor de fumaça, cinzas e vigas
carbonizadas queimando o ar. Ondas de calor queimaram minha pele
quando me aproximei da parede do fundo, subi sem graça até o topo e
caí com um baque nos jardins.
O que fez isso? Quem ousaria? Eu tinha ouvido contos do mundo
além das paredes do templo, histórias de clãs em guerra e samurais
ferozes e orgulhosos. Contos de senhores daimyos rivais e suas lutas
intermináveis, como eles declarariam guerra e lançariam exércitos
inteiros uns contra os outros por causa de algum desprezo imaginário
em sua honra. Mas de acordo com Mestre Isao, mesmo o daimyo mais
selvagem e belicoso respeitava os monges, ou pelo menos não
arriscaria a ira dos kami atacando um templo pacífico.
A menos que eles soubessem sobre o pergaminho.
Um grito transformou meu sangue em gelo e me abaixei atrás de
um zimbro. Espiando ao redor do tronco, tentando não inalar fumaça
e cinzas, cravei minhas unhas na casca para evitar ofegar de terror.
Uma multidão de pequenas coisas grotescas balbuciava e
dançava ao redor do lago, recortadas à luz infernal das fogueiras. No
início, pensei que fossem crianças deformadas; elas usavam túnicas
surradas, tinham cabeças grandes e bulbosas e mal passavam dos
meus joelhos. Mas então eu vi os chifres, as bocas cheias de dentes
pontiagudos, as orelhas esfarrapadas e as presas salientes. Sua pele
era manchada de azul ou vermelha, e eles carregavam armas rudes
em suas garras: foices kama, lanças e lâminas curtas.
Meu sangue gelou. Demônios? Piedade de Jinkei, por que os demônios
estão aqui? Eu tinha visto imagens de demônios na biblioteca do
templo, terríveis oni de pele vermelha ou azul com chifres, presas e
porretes enormes, que atormentavam as almas perversas enviadas
para Jigoku. Essas criaturas, apunhalando a pobre carpa presa que
girava freneticamente ao redor do lago, não eram tão grandes quanto
os monstros nos livros, mas até eu poderia dizer que eles eram
demônios, no entanto.
Eu apertei meu punho contra o tronco, sentindo a casca cavar em
meus dedos. Por que os demônios estavam aqui? Por que eles estavam
atacando o templo? Pelo pergaminho? Mas eu pensei que as criaturas
de Jigoku viviam apenas para derramamento de sangue e caos; o
pergaminho não significaria nada para os demônios. A menos que
outra coisa, ou outra pessoa, os estivesse comandando...
Isso não faz sentido. Tenho que encontrar o Mestre Isao. Mas primeiro,
tenho que passar por esses demônios.
Depois de arrancar uma folha do zimbro, deslizei em volta do
tronco e coloquei a folha na minha cabeça, recorrendo à magia da
minha raposa. Por um momento, achei terrivelmente irônico que,
apenas esta tarde, eu estivesse desejando usar minha magia com mais
frequência. Meu coração batia forte, mas mantive a imagem do que eu
queria em minha mente, então liberei a magia sobre meu
corpo. Houve uma explosão silenciosa de fumaça e, quando abri os
olhos, minha pele estava manchada de vermelho e meus pés tinham
garras amarelas em forma de gancho nas pontas dos dedos.
Respirando fundo, me afastei da árvore, assim que um dos
demônios no lago olhou para cima e me viu.
Ele piscou por um momento, franzindo a testa, e eu prendi a
respiração, esperando que ele visse o que eu queria que ele visse: um
outro demônio, de pele vermelha e horrível. Arrisquei um sorriso,
mostrando as presas tortas, e o demônio bufou, voltando ao seu jogo
de esfaquear a carpa. A água antes cristalina do lago agora estava
vermelha de sangue. Deixando os peixes condenados entregues ao
destino, me apressei.
O rugido do fogo me saudou quando deixei os jardins, e nuvens
de brasas rodopiantes picaram minha pele quando passei pelo templo
engolfado e corri em direção ao salão principal, mantendo-me nos
arbustos e nas sombras. Uma multidão ainda maior de demônios
invadiu o prédio, acenando com tochas e saltitando ao redor dos
degraus que levavam à entrada. Quando espiei por entre as folhas,
meu estômago deu uma reviravolta dolorosa. A poucos metros de
distância, um corpo jazia esparramado nas pedras do pátio, um par de
lanças projetando-se de seu peito, olhos vazios fitando o nada.
Jin. Eu coloquei as duas mãos sobre a boca para evitar que o grito
escapasse, sentindo meus olhos começarem a arder. Jin sempre foi
gentil comigo, sempre paciente e compreensivo, nunca ficando
irritado ou levantando a voz. E agora ele se foi. Atrás do monge, pude
ver outro par de corpos caídos em poças de sangue, seus rostos
virados para o lado, então não os reconheci nas sombras. Mas eu
faria. Assim que os visse claramente, eu os reconheceria.
Tremendo, eu abaixei meus braços e tirei meu olhar dos
corpos. Não posso lamentar por eles agora, disse a mim mesma, forçando
o foco nos meus olhos. Eu tenho que continuar. Eu me perguntei por
que nenhum dos demônios havia entrado no prédio; a entrada
principal estava aberta e desprotegida, já que o corredor não tinha
portas para falar. Enquanto eu observava, um demônio azul maior
deu um grito rouco, ergueu um maço de madeira acima de sua cabeça
e correu para a porta, correndo em direção às escadas. Mas quando
chegou ao último degrau, houve um lampejo como uma explosão de
relâmpago, e o demônio ricocheteou como se tivesse atingido uma
parede de pedra, para os cacarejos e gargalhadas estridentes do resto.
Meus olhos se arregalaram. Uma barreira de ki? Eu já tinha visto
tal coisa antes; Mestre Isao às vezes demonstrava o poder do ki para
os outros monges, criando paredes de força que não podiam ser
rompidas ou cercando um objeto com uma barreira invisível que
tornava impossível tocá-lo. Mas... um prédio inteiro? A quantidade de
concentração necessária era insondável.
Além disso, como devo passar? A barreira cobre todo o edifício. A
menos que...
Meu coração bateu mais rápido. Mestres de ki muito poderosos
tinham tal controle sobre seu ki que podiam escolher quem poderia
passar pela barreira e quem não. Se Mestre Isao ouvisse os demônios
chegando e percebesse que eu não estava no templo, com certeza ele
faria isso para que eu pudesse passar pela barreira. Certo?
Cerrando o queixo, dei um passo para longe dos arbustos,
quando um tremor percorreu o chão sob meus pés. Olhando de volta
para o corredor, vi uma enorme sombra com chifres aparecer. Meu
coração quase parou. Uma silhueta contra as chamas, a besta
caminhou lentamente ao redor da esquina do edifício, se
transformando em algo enorme e terrível.
Um... oni? Eu tropecei para trás de terror, observando enquanto a
enorme criatura vermelha se movia pesadamente em direção à
entrada, espalhando demônios menores diante dela. O suor frio
escorreu pelas minhas costas quando apareceu, presas, chifres e uma
enorme clava espinhosa brilhando a luz da tocha. Esse era um
monstro dos livros de histórias. Os habitantes mais famosos de Jigoku
eram os pesadelos da lenda, aterrorizantes e quase impossíveis de
parar. Por que... por que há um oni aqui? Por quê?
Mas essa foi uma pergunta estúpida. Eu já sabia a resposta:
estava aqui pelo pergaminho.
Oh, por que não dei ouvidos ao Mestre Isao? Quando ele me contou
sobre o pergaminho e por que ele era tão importante, por que não dei ouvidos?
No topo dos degraus, o oni parou, olhando em direção à entrada
do corredor, o pesado tetsubo pontudo descansando sobre um
ombro. Balançando a clava em uma das mãos, cutucou a barreira com
a ponta da arma e observou a parede tremeluzir e pulsar a cada
cutucada. Os demônios menores se agruparam ao redor das pernas do
oni, esperando ansiosamente, seus olhos brilhando tão vermelhos
quanto o fogo. O oni bufou, rolou seus ombros enormes e ergueu seu
porrete com as duas mãos.
Isso fez com que o tetsubo se espatifasse contra a barreira do ki, e
a onda de choque que pulsou jogou os galhos das árvores ao redor e
fez a horda de demônios cambalear para trás. Por um momento, a
cúpula invisível estremeceu à vista, ondulando como uma miragem
antes de desaparecer de vista novamente. Eu estremeci, imaginando
se a barreira iria quebrar, sabendo que cada golpe era também um
ataque à concentração dos monges enquanto eles lutavam para
manter o foco. A barreira resistiu, mas o oni ergueu a clava para
acertá-la novamente, e a horda gargalhou enquanto esperava que ela
caísse.
Eu tinha que entrar, agora.
Kami me protejam! Respirando fundo, saí dos arbustos e caminhei
o mais calmamente que pude pelo quintal, rezando para que meu
disfarce aguentasse. Vários demônios olharam para cima, franzindo a
testa, mas a maior parte de sua atenção foi desviada para o enorme
oni, que bateu com seu porrete na barreira novamente. Na luz
infernal, a cúpula ondulou e eu pude ver rachaduras prateadas
subindo pela superfície, fazendo meu sangue gelar. Não duraria
muito mais tempo.
Querendo evitar o oni maciço, eu deslizei ao redor da lateral do
prédio, respirando um suspiro de alívio enquanto me abaixava ao
virar a esquina... E imediatamente colidi com um demônio correndo
ao redor da parede. Sua cabeça bulbosa azul acertou meu estômago,
expulsando o ar de meus pulmões com a força de um golpe de ki. Eu
recuei e caí, ofegante, e senti meu domínio sobre a ilusão se estilhaçar
em uma nuvem de fumaça branca.
O demônio, que também havia sido jogado para trás, esfregou a
testa com uma garra, estremecendo, então olhou para mim. Seus olhos
vermelhos se arregalaram em choque quando viu, não um outro
demônio, mas uma garota com orelhas peludas e cauda, sentada ali na
terra. Ele saltou com um uivo e se lançou, e eu recuei, conseguindo
esquivar-me da espada quando ela acertou o local onde eu estava.
Mais dois demônios surgiram das sombras: um segurando uma
lança, o outro brandindo um par de foices kama. Eles gargalharam
quando me viram e atacaram, enquanto o demônio azul continuou a
me golpear com sua lâmina. Enquanto os outros se aproximavam, eu
rosnei de frustração e joguei uma bola de kitsune-bi no rosto do
demônio azul.
Ele recuou com um silvo, as garras indo para seus olhos, como se
esperasse ser queimado. As chamas azul-esbranquiçadas brilharam
por um momento, então desapareceram inofensivamente em
nada. Mas isso me deu tempo suficiente para passar pelo demônio,
transformar-me em raposa, e disparar para baixo da varanda. Houve
um formigamento agudo quando atravessei a barreira do ki, como um
choque estático ao longo de todo o meu corpo, e então a escuridão
reconfortante do espaço abaixo do corredor se fechou ao meu
redor. Segura.
Minhas pernas tremiam enquanto eu rastejava sob as tábuas do
assoalho, deslizando sobre a terra fria e empurrando teias,
procurando a tábua solta que levaria para trás da estátua do
Profeta. Acima, os estrondos do clube oni sacudiram o prédio,
cobrindo-me de poeira e fazendo com que as aranhas fugissem
aterrorizadas.
Uma lasca de luz laranja cintilou na escuridão à frente,
iluminando um retângulo fino de sujeira, e corri em direção a
ela. Espremendo-me entre as pranchas, eu me agarrei no chão do
grande salão, a estátua do Profeta de Jade aparecendo no alto. Afastei-
me cambaleando da estátua e olhei em volta em busca de Mestre Isao.
Meu estômago se revirou. Ele estava sentado diante da estátua
do Profeta, as mãos em concha no colo, os olhos fechados e o rosto
sereno. O resto dos monges sentados ao redor dele, também em
meditação, embora eu pudesse ver o suor escorrendo de seus rostos,
suas sobrancelhas franzidas em concentração. Cada vez que a clava do
oni batia na barreira externa, um deles se encolhia, apertando a
mandíbula ou pressionando os lábios. Eu vi Denga sentado atrás do
Mestre Isao, um fio vermelho escorrendo de seu nariz enquanto ele
lutava para manter a barreira. Suas sobrancelhas tremiam a cada
golpe e sua mandíbula estava rígida, mesmo com o sangue escorrendo
de seu queixo para respingar em suas mãos.
Quando me forcei a voltar à forma humana, os olhos do Mestre
Isao se abriram para olhar diretamente para mim. Sorrindo, como se a
reunião tivesse acabado a mesa de jantar e eu tivesse chegado tarde,
ele levantou a mão e me chamou para frente.
— Ah, aí está você, Yumeko-chan. Eu estive esperando por você.
— Mestre Isao! — Eu me joguei ao lado dele. — O que devemos
fazer? O oni está quase passando pela barreira. Como vamos escapar?
— Não há como escapar. — disse Mestre Isao calmamente,
fazendo meu coração disparar. — Não para nós. Cumprimos nosso
dever. Mas você, Yumeko-chan. Você deve continuar.
Horrorizada, eu o encarei. — Eu não... Eu não entendo Mestre
Isao. — Eu sussurrei. — O que você quer dizer com eu devo
continuar? Como?
Eu parei quando o monge enrugado enfiou a mão na manga de
seu haori e puxou algo para a luz. Uma caixa simples, feita de madeira
laqueada escura, uma fita de seda vermelha enrolada em volta do
cilindro. Eu engasguei quando ele a ergueu.
— É o...?
— Pegue, Yumeko-chan. — Mestre Isao ordenou, e o estendeu
para mim. — Não deve cair nas mãos de demônios. Você deve mantê-
lo seguro a todo custo. — Outra explosão sacudiu as vigas acima, e
um dos monges atrás de nós respirou fundo. O olhar do Mestre Isao
nunca desviou do meu. — Pegue o pergaminho... — disse ele
novamente. — E saia deste lugar. Corra e não olhe para trás.
Freneticamente, eu balancei minha cabeça. — Eu não posso. —
eu sussurrei, enquanto meus olhos esquentavam com lágrimas
brotando nos cantos. — Eu não posso deixar você. Para onde irei. Não
sei nada sobre o mundo exterior. Como posso manter o pergaminho
seguro?
— Garota raposa. — A voz do Mestre Isao estava firme e eu
pisquei para ele em estado de choque. Embora os outros monges
usassem frequentemente essa frase, ele nunca me chamou de nada
relacionado à minha verdadeira natureza. — Me escute. Há algo que
não lhe disse, um pedaço de seu passado que devo revelar. Quando
você veio pela primeira vez até nós, na cesta de peixes com o bilhete
preso ao seu cobertor... — Ele fez uma pausa, uma sombra de
arrependimento passando por seus olhos, tão rápido que eu poderia
ter imaginado. — Eu lhe contei a maior parte do que dizia a carta. —
Continuou Mestre Isao. — Mas não tudo. A parte que você não ouviu
é esta...
Suas palavras ecoaram estranhamente na minha cabeça, como se
estivessem vindo de uma grande distância.
Humildes monges, imploro que tenham paciência e não julguem, pois
tive uma visão do futuro. Nesta visão, eu vi sangue, chamas e morte,
demônios gritando e rios de ossos, e o mundo escureceu de medo. Mas uma
única raposa está acima de tudo, intocada, um grande dragão lançado em sua
sombra. Seu nome é Yumeko, filha dos sonhos, pois ela é nossa esperança
contra a escuridão que se aproxima.
Minhas entranhas viraram gelo. Mestre Isao sorriu gentilmente e
ergueu o pergaminho mais uma vez. — Então você vê, Yumeko-
chan... — ele disse. — Nosso destino já foi predito. Quem quer que a
tenha deixado nos portões do templo sabia que isso estava por vir e
que você teria um papel na história, a quarta vinda do Dragão.
Entorpecida, eu o encarei, sem realmente compreender o que ele
acabou de me dizer. Um baque ecoou pelo corredor e, com um
suspiro, um dos monges atrás de nós caiu, segurando sua cabeça. Pela
primeira vez, uma gota de suor apareceu na testa do Mestre Isao e
escorreu por seu rosto. Eu me sacudi para fora do meu transe e agarrei
sua manga. — Por quê? — Eu sussurrei. — Eu não estou
preparada. Por que tem que ser eu?
Sua mão murcha se fechou sobre a minha. — Porque você é a
única que pode fazer isso. Ouça com atenção, Yumeko-chan. —
Mestre Isao apertou minha mão, e a força em seus dedos me acalmou
um pouco. — Não estamos sozinhos em nossa missão, nem somos os
únicos tutores. Há outro templo, outra ordem que guarda um pedaço
do pergaminho. Você deve ir até eles. Avise-os sobre o que aconteceu
aqui. Eles vão proteger você e a oração do Dragão. É seu dever
sagrado fazer isso.
— Onde eles estão?
— Não posso te dizer. — disse Mestre Isao. — Eu mesmo não
sei. É um lugar lendário de mitos e rumores, e sua localização foi
perdida com o tempo. Eu conheço apenas seu nome, o templo Pena de
Aço. E que fica em algum lugar muito longe daqui.
— Mas... — ele acrescentou antes que eu pudesse protestar em
desespero. — Há quem saiba a localização do templo. Você deve
viajar para Kin Heigen Toshi, a capital no centro das terras do
Sol. Dentro da cidade está o santuário Hayate, vá até lá e pergunte
pelo sacerdote chefe, Mestre Jiro. Ele pode lhe dizer a localização do
templo Pena de Aço.
— Mestre... — Lágrimas corriam pelo meu rosto; meu estômago
estava se enrolando em terror e angústia. — Eu não posso. Eu não
posso fazer isso sozinha.
— Você pode. — disse Mestre Isao com firmeza, e ergueu o
pergaminho mais uma vez. — Você deve. Este é meu último
pedido. Leve o pergaminho para o templo Pena de Aço. Avise-os
sobre o que aconteceu aqui, que alguém deseja juntar os pedaços do
pergaminho do Dragão mais uma vez. Não deixe que nossas mortes
sejam em vão. — Outro estrondo soou do lado de fora e ele fechou os
olhos. — Prometa-me, Yumeko-chan. Você deve proteger o
pergaminho. O destino desta terra depende disso.
Com as mãos trêmulas, estendi a mão e peguei o pergaminho,
envolvendo os dedos trêmulos em torno da caixa. Era
surpreendentemente leve na minha palma. — Eu prometo. — Eu
sussurrei. — Eu juro que vou encontrar o templo Pena de Aço, avisar
os outros monges e proteger o pergaminho. Eu não vou falhar com
você.
Ele sorriu. — Leve isto também. — Ele disse, e pressionou um
tanto, uma adaga curta e reta, na minha palma. — Será útil, quando
defender-se com palavras e astúcia não for suficiente. E isto. — Ele
colocou um furoshiki simples, um pano de embrulho usado para
transportar roupas, presentes ou outros pertences, em volta dos meus
ombros. — Para esconder seu fardo do resto do mundo. Agora vá. —
Ele acenou com a cabeça em direção à estátua. — Não se preocupe
conosco e não chore. Voltaremos a nos encontrar, Yumeko-chan, nas
Terras Puras ou em outra vida.
Com um estrondo poderoso que sacudiu todo o salão, a barreira
se estilhaçou. Monges engasgaram ou gritaram, as mãos subindo para
suas cabeças, e o chão tremeu quando o enorme oni entrou no salão,
uma enxurrada de demônios atrás dele.
— Vá, Yumeko-chan. — Mestre Isao disse, e sua voz estava
fria. Com o rosto impassível, ele se levantou e deu um passo em
direção à coisa enorme na porta. Sentindo-me uma covarde, deslizei
meio atrás do Profeta de Jade, sabendo que tinha que sair, mas
incapaz de desviar os olhos. Mestre Isao e os outros esperaram
calmamente enquanto a sombra do demônio ficava maior, seus olhos
brilhando como brasas vermelhas contra a escuridão.
O oni sorriu ao entrar no corredor, abaixando a cabeça enorme
ao entrar no salão, erguendo-se a uma altura aterrorizante. Ele era tão
grande que seus chifres quase arranhavam o teto. — Templo Vento
Silencioso... — ele rugiu, sua voz terrível fazendo o ar estremecer. —
Meu nome é Yaburama, quarto general demônio de Jigoku, e vim pelo
pergaminho do Dragão. — Ele ergueu seu tetsubo e o jogou na palma
da mão com um baque forte, enquanto os pequenos demônios
assobiavam e gargalhavam alegremente atrás dele, esperando o sinal
para atacar. — Dê-me o que vim buscar, e talvez eu torne suas mortes
indolores.
— Abominação! — A voz de Denga soou acima dos rosnados e
gargalhadas da horda de demônios. Destemidamente, ele avançou, até
ficar a apenas alguns metros da montanha de um oni. — Nós nunca
iremos entregar o pergaminho a tal mal. Você não é bem vindo
aqui. Pelo Profeta de Jade, vá embora e leve seus lacaios com você!
O oni inclinou a cabeça. Abruptamente, ele balançou sua clava,
chocantemente rápido, atingindo Denga na lateral e o quebrando em
um pilar. O monge atingiu a viga com um estalo nauseante e desabou
no chão, sangue escorrendo de seu nariz e boca, os olhos olhando
fixamente para frente. Mordi meu lábio para abafar um grito e o oni
curvou os lábios.
— Seu Profeta de Jade não significa nada para mim. — Ele
comentou, enquanto os demônios gritavam de tanto rir e invadiam o
salão.
Com gritos de fúria e indignação, os monges avançaram,
encontrando os demônios no centro do salão. Eles estavam
desarmados e seus oponentes empunhavam lâminas e lanças, bem
como garras e dentes. Mas os monges estavam longe de estar
indefesos. A energia Ki pulsou, transformando os punhos em martelos
e os pés em armas de destruição. O crânio de um demônio implodiu
após Nitoru chutá-lo na cabeça, espalhando sangue de demônio por
toda parte antes de se contorcer em uma fumaça negra e
desaparecer. Um trio de demônios se aglomerou em Satoshi, que
recebeu um golpe de lança contra ele, arrancou-o das mãos do
demônio e o mergulhou através de sua boca aberta. Mas ele não viu o
perigo atrás dele até que um segundo demônio afundou uma foice
kama profundamente em sua perna. Satoshi cambaleou e caiu de
joelhos, e os monstros se empilharam sobre ele, arrastando-o para o
chão.
Yumeko! A voz do Mestre Isao ecoou em minha cabeça, embora o
mestre do templo Vento Silencioso caminhasse direto para o centro do
salão, a energia ki crepitando ao redor dele, onde o terrível oni
esperava. Vá agora!
Eu me virei em direção ao buraco no chão e me preparei para
mudar para a forma de raposa. Mas uma cabeça azul bulbosa
apareceu entre as tábuas, e um demônio se lançou para fora do
buraco, seguido por dois amigos. Quando eles me viram, eles
silvaram e ergueram suas lanças, e eu rapidamente recuei.
Jinkei me ajude, eu estava presa. Não podia avançar com o trio
bloqueando o buraco, e não podia voltar para o salão, onde a batalha
entre monges e demônios era travada. O barulho era ensurdecedor,
gritos e uivos misturados com lampejos de ki, corpos voando e
sangue. Enquanto o trio de demônios sorria maldosamente e ficava
tenso, eu levantei meu braço, e uma bola de raposa branco-azulada
ganhou vida na minha palma. O demônio azul olhou para as chamas
fantasmagóricas e zombou, fazendo meu coração
afundar; aparentemente, uma bola de kitsune-bi no rosto não
funcionaria uma segunda vez.
Com um rugido, a massa maciça do oni voou para trás e se
chocou contra a estátua do Profeta de Jade, derrubando-a de sua
base. A estátua balançou por um momento, dando-me tempo
suficiente para me afastar, antes de cair pela parede com um estrondo
ensurdecedor de madeira e pedra. Os três amanjaku foram enterrados
sob os escombros, e uma brisa quente com cheiro de fumaça entrou no
corredor pelo buraco que deixou para trás.
Eu me encolhi, me escondendo atrás de um dos pilares que
revestiam o salão, enquanto o oni balançava a cabeça e olhava para
Mestre Isao, que estava no centro do salão. O monge respirava com
dificuldade, sangue escorrendo pelo rosto por baixo do chapéu, as
palmas das mãos levantadas.
Um rosnado profundo veio do oni, sentado contra a estátua em
ruínas. — Você bate forte, para um mortal. — O monstro rugiu,
ficando de pé. — Muito bem, mas isso não vai te salvar. Os amanjaku
estão destruindo seus irmãos enquanto conversamos. Não sobrou
ninguém. — Ele esticou o pescoço de um lado para o outro, rolou os
ombros para frente e ergueu o porrete. — É hora de acabar com esses
jogos. Vamos ver se você tem ki para fazer isso de novo!
O oni se lançou com um rugido. Enquanto ele avançava,
levantando seu porrete bem alto, o olhar calmo de Mestre Isao se
voltou para mim. No momento em que nossos olhares se
encontraram, ele sorriu.
Vá, Yumeko-chan, sussurrou sua voz em minha cabeça, gentil e
serena. Corra.
Desta vez, não esperei para ver o que aconteceria, se o terrível
porrete do oni acertou em cheio ou não. Eu me virei e corri através do
buraco deixado pelo Profeta caído, tropeçando em vigas estilhaçadas e
jade quebrado, sussurrando um pedido de desculpas enquanto pisei
em um braço verde quebrado. Então eu estava lá fora e o ar estava
quente e sufocante. Cega pelas lágrimas, tropecei em uma prancha e
esfolei minhas mãos ao cair, e a caixa de pergaminhos laqueada rolou
para longe de mim, brilhando à luz do fogo.
Meu sangue gelou. Pegando-a, eu meio corria, meio tropeçava
nos jardins, passando pelo lago cheio de carpas mortas flutuando, até
o velho bordo encostado na parede. Depois de colocar rapidamente o
pergaminho no furoshiki e o punhal no meu obi, me levantei pelos
galhos retorcidos, imaginando como o ato antes familiar poderia
parecer tão estranho e surreal. Eu não faria isso nunca mais.
No topo da parede, dei uma última olhada em minha casa, o
templo em que vivi toda a minha vida, e senti um nó subir na minha
garganta. O templo era agora uma ruína esquelética engolfada pelas
chamas, e o fogo se espalhava para os outros edifícios, incluindo o
salão principal. Eu podia ver apenas o telhado sobre as copas das
árvores, mas uma brasa perdida em um canto havia se transformado
em uma chama, que rapidamente se espalharia e consumiria a
construção de madeira até que não houvesse mais nada. Não ousei
imaginar o que estava acontecendo lá dentro, as vidas que foram
perdidas, os monges que lutaram bravamente contra uma horda de
demônios. Todos que eu já conheci, Jin, Satoshi, Nitoru, Denga,
Mestre Isao e todos os outros, eles se foram. Eles foram de boa
vontade para a morte, tudo para proteger o pergaminho.
Um minúsculo globo de luz, pálido contra a fumaça e a
escuridão, ergueu-se do telhado do salão em chamas. Ele foi
acompanhado por outro, e depois outro, até que havia mais de uma
dúzia de orbes brilhantes subindo lentamente no ar e deixando rastros
de luz atrás deles. Minha garganta se fechou e novas lágrimas
correram pelo meu rosto. Nenhuma das esferas de luz hesitou ou
permaneceu perto do templo; todos subiram continuamente em
direção às estrelas. Eles não tinham remorsos, nenhuma tristeza
persistente ou pensamentos de vingança, nada que os ligasse a este
mundo. Eles estavam livres.
Bem no fundo do meu peito, uma pequena chama branco-
azulada de raiva cintilou, queimando o desespero, e respirei fundo
para banir as lágrimas.
— Não vou falhar. — Prometi, enquanto as luzes se afastavam
lentamente, em direção ao Meido ou às Terras Puras, ou para onde
quer que estivessem indo. — Se... se este for realmente o meu destino,
então darei tudo de mim. Não se preocupem, Mestre Isao, todos
vocês. Vou encontrar o templo Pena de Aço e proteger o pergaminho,
eu prometo.
Minhas palavras não tiveram efeito nas luzes que se apagavam
rapidamente. Elas continuaram subindo para o céu até que não fossem
maiores do que as próprias estrelas e desapareceram.
Eu pisquei rapidamente. Boa viagem, pessoal. Que possamos nos
encontrar novamente, nesta vida ou na próxima.
Um silvo nos jardins chamou minha atenção. Olhando para
baixo, encontrei os olhos vermelhos de um demônio, que se ergueu ao
me ver também. Quando ele deu um grito estridente de alarme e
ergueu a arma, eu caí no chão fora da parede e corri para a floresta.

Capítulo 7
Uma proposta inesperada
O caminho havia desaparecido.
Hesitei nas sombras da floresta, ouvindo, minha mão enrolada
em torno do punho da espada. Em algum momento durante minha
corrida montanha acima, a trilha que eu estava seguindo havia
desaparecido ou eu a perdi de alguma forma, pois bosques
ininterruptos me cercavam, escuros e densos. Não era terrivelmente
problemático; eu ainda podia ouvir o rugido de uma conflagração, e a
brisa entre os galhos carregava o cheiro de fumaça e sangue. Eu estava
indo na direção certa.
Eu temia o que iria encontrar quando chegasse lá.
Houve um farfalhar nos arbustos à frente e Kamigoroshi deu um
pulso de advertência, assim que algo explodiu da escuridão e se
lançou contra mim. Minha lâmina limpou sua bainha em um instante,
chicoteando em direção ao rosto do meu atacante. Ela... Ela? Saltou e
derrapou até parar, enquanto meu cérebro recuperava meus
reflexos. Hakaimono rugiu, incitando-me a continuar o movimento, a
banhar o aço com sangue. Eu me desvencilhei da uivante sede de
sangue e forcei minhas mãos a parar.
A lâmina congelou a uma polegada de seu pescoço. Ofegante,
olhei através do gume brilhante da espada, para o rosto e os grandes
olhos negros de uma garota.
Ela tinha a minha idade, talvez um pouco mais jovem. Pequena,
vestindo uma túnica carmesim curta salpicada com redemoinhos
brancos. Seu cabelo preto caía solto em volta dos ombros e nas costas,
e seus grandes olhos escuros, olhando para mim, estavam redondos
em choque.
Por um momento, olhamos um para o outro, banhados pela
tênue luz roxa de Kamigoroshi. Seu rosto estava sujo, manchado de
cinzas e fuligem, e ela respirava com dificuldade, como se estivesse
fugindo do fogo com o resto da vida selvagem.
Então houve um estalo nas árvores atrás dela, e eu percebi por
que ela estava correndo.
— Para trás. — Eu disse, e a empurrei atrás de mim, enquanto
um amanjaku saltou por entre os arbustos com um uivo, uma foice
erguida acima da cabeça. Eu empurrei a lâmina curva para o lado e
cortei Kamigoroshi em seu rosto, fazendo-o gritar e girar para
longe. Mais demônios enxamearam dos arbustos, esfaqueando e
golpeando descontroladamente enquanto avançavam. Eles morriam
na minha espada enquanto eu esculpia membros de corpos e cabeças
de torsos, sangue de demônio negro formando um arco no
ar. Hakaimono se divertia com suas mortes, mas eu me mantive
separado da raiva do demônio. Eu era a mão que empunhava
Kamigoroshi, nada mais. Não senti nada ao enviar as criaturas de
volta para Jigoku.
Quando o último demônio caiu, eu sacudi sangue fumegante da
minha espada, embainhei Kamigoroshi apesar dos protestos em
minha mente e olhei em volta procurando pela garota.
Ela olhava por trás de um tronco de árvore, me observando com
grandes olhos escuros. Surpreso, me virei para encará-la
totalmente. Eu meio que esperava que ela tivesse ido embora, fugindo
da floresta enquanto os demônios estavam ocupados me atacando. Eu
peguei o brilho do metal em sua mão e vi o cabo de uma adaga preso
em seu punho. Se era para mim ou para os demônios, eu não tinha
certeza.
— Misericordioso Jinkei. — Ela sussurrou, parecendo sem
fôlego. Seus olhos brilharam enquanto ela olhava ao redor, para os
tentáculos desbotados da escuridão ao vento. — Você... aquilo foi... —
Piscando, ela olhou para mim, sua expressão presa entre espanto e
medo. — Quem é você?
Nada. Ninguém. Uma sombra na parede, vazia e sem importância. Eu
me afastei, em direção ao som de chamas distantes. — Corra. — Eu
disse à garota, sem olhar para trás. — Saia daqui. Vá para a aldeia na
base da montanha. Você deve estar segura lá.
— Espere! — ela gritou quando comecei a avançar. Fiz uma
pausa, mas não voltei. — Você não pode ir por ali. — Ela disse, e eu a
ouvi sair de trás da árvore. — É muito perigoso. Existem mais
demônios, uma horda inteira deles. E tem um oni!
Um oni. Meus olhos se estreitaram, mesmo quando Hakaimono
deu a mais forte onda de excitação que eu já senti. Eu estava matando
yokai perigosos para o Clã das Sombras desde os treze anos, o mais
novo em uma longa linha de matadores de demônios Kage a
empunhar Kamigoroshi, mas nunca tinha enfrentado um oni de
verdade. Pelo que meu sensei me disse, os maiores demônios de
Jigoku não eram nada parecidos com os monstros que eu havia lutado
antes. Resistente, selvagem e virtualmente imparável, capaz de
regenerar feridas, ossos quebrados e até membros decepados em um
ritmo surpreendente. Eles seriam difíceis de derrotar, mesmo com
Kamigoroshi. No passado, mais de um matador de demônios que foi
lutar contra um oni não sobreviveu à batalha.
Felizmente, os oni eram raros, pois invocar um de Jigoku e
prender o demônio selvagem à sua vontade exigia um poder
incrível. Infelizmente, isso significava que quem quer que tenha
enviado um oni aqui, para esta floresta, provavelmente estava atrás da
mesma coisa que eu. Dama Hanshou não me disse por que queria este
pergaminho em particular, nem era minha função perguntar. Minha
missão era recuperar o pergaminho, não importando os obstáculos
que estivessem no meu caminho.
— Esse oni... — perguntei à garota, cujo olhar eu ainda podia
sentir nas minhas costas. — Onde está?
— No templo. — Ela respondeu, e sua voz saiu ligeiramente
embargada. — No topo da montanha. Matou todos lá e colocou fogo
em todo o lugar. Não sobrou nada.
Meu ânimo afundou. Se os demônios atacaram e destruíram o
templo, o pergaminho já havia sumido. Destruído ou nas mãos do
oni. Definindo meu queixo, eu me dirigi para as árvores. Eu tinha que
ver se o pergaminho ainda estava lá, se eu poderia salvá-lo. E se o oni
realmente possuísse o pergaminho, eu desafiaria o demônio e pegaria
de volta, ou morreria tentando.
— Baka! — Algo agarrou a barra do meu haori, me puxando
para uma parada. Eu girei, mal me impedindo de empunhar
Kamigoroshi e cortar meu agressor ao meio. — Você não me ouviu?
— a garota perguntou, seu olhar escuro agora cheio de medo. — Há
um exército de demônios e um oni nesse caminho. Se você for ao
templo, eles o matarão, como fizeram com todo mundo.
Seus olhos lacrimejaram, a umidade escorrendo por uma
bochecha. Eu de repente entendi. — Você veio do templo. — Afirmei
baixinho. — Você viu tudo.
Ela assentiu, passando a manga suja no rosto. — Todo mundo
morreu. — Ela sussurrou. — Eu mal consegui escapar. Meu mestre se
sacrificou para que eu pudesse escapar. Ele mesmo lutou contra o oni,
embora soubesse que isso o mataria.
— O que os demônios estavam atrás? — Eu perguntei,
observando-a de perto. Talvez, se ela tivesse vindo do templo, ela
soubesse sobre o pergaminho, ou onde ele estava localizado. — Por
que eles atacaram? — Eu pressionei. — Eles levaram alguma coisa?
Por um momento, ela hesitou. Suas bochechas empalideceram e
ela olhou para mim com aqueles olhos escuros. Por algum motivo,
minha pele formigou e lutei contra a vontade de desviar o olhar. — Eu
não sei. — Ela admitiu. — Não sei por que vieram ou o que
queriam. Só sei que meu templo se foi e os demônios mataram todos
os que eu amava. E se você subir lá agora, você morrerá também. —
Ela pausou novamente, então estendeu a mão como se estivesse
tomando uma decisão. — Venha comigo. — disse ela, para minha
surpresa. — Antes que os demônios nos encontrem. Eu não posso...
Eu não quero ficar sozinha agora. Podemos ir para a aldeia e descobrir
o que fazer de lá.
— Não. — Eu dei um passo para trás, para longe dela. — Você
pode continuar correndo. Saia da floresta. Mas tenho negócios no
templo, algo que devo confirmar.
— O que? — Ela me olhou incrédula quando me virei e comecei
a me afastar. — Você não pode estar falando sério. O que é tão
importante que você correria o risco de sua cabeça ser esmagada por
um oni? Espere!
Passos soaram atrás dos meus. Virei-me mais uma vez e levantei
Kamigoroshi, fazendo-a tropeçar e parar. — Não me siga. — Eu avisei,
enquanto seu olhar caiu para a lâmina. — Vá para a aldeia. Avise-os
sobre o ataque. Esqueça o que você viu aqui. — Embainhando a
espada, segui para a escuridão, em direção ao templo e à batalha que
me esperava no topo. — O que acontecer agora não é da sua conta.
— O pergaminho não está mais lá.
Eu parei. Lentamente, eu me virei. A garota ficou no mesmo
lugar, me olhando com uma expressão cautelosa, quase desafiadora,
sua mandíbula cerrada. — O pergaminho. — Ela repetiu, para que não
houvesse dúvida. — Você não vai encontrar. Não está mais no templo.
— Onde está então?
Ela hesitou. Puxando minha espada, caminhei em sua
direção. Seu rosto empalideceu e ela recuou, mas bateu em uma
árvore depois de alguns passos. — Eu não sei. — Ela começou, e
congelou quando coloquei a ponta de Kamigoroshi contra seu
pescoço. — Espere, por favor! Você não entende.
— Onde está o pergaminho? — Eu perguntei novamente,
chegando perto. — Diga-me ou eu mato você.
— Se foi! — a garota explodiu. — Não está mais aqui. Mestre
Isao... ele sentiu os demônios chegando. Ele sabia que eles queriam o
pergaminho, então o mandou embora. Há... alguns dias atrás.
— Para onde?
— Eu não sei.
Inclinei a lâmina para cima para que pressionasse levemente seu
queixo, e ela engasgou. — Eu não sei! — ela insistiu, levantando a
cabeça para escapar da espada. — Mestre Isao não me disse onde
fica. Mas... eu sei quem sabe.
— Quem?
Ela fez uma pausa, seus olhos escuros passando rapidamente
para os meus por cima da lâmina. Mais uma vez, eu senti aquela
vibração estranha sob minha pele, reagindo à sua presença. — Como
vou saber que você não vai me matar se eu contar?
— Eu te dou minha palavra. — Eu disse a ela. — Pela minha
honra, se você me disser o que eu quero, não vou te matar.
Com cuidado, ela balançou a cabeça. — Eu preciso de mais do
que isso, samurai. — Ela disse, me fazendo franzir a testa. O voto de
um guerreiro era absoluto, sua honra evitando qualquer indício de
traição, e era um insulto sugerir o contrário. Para um samurai que
quebrasse sua promessa, a vergonha seria tão grande que seppuku, se
matar ritualmente, seria a única resposta.
Claro, eu era um shinobi, um guerreiro das sombras, e seguia
um código diferente do samurai. Operamos na escuridão, realizando
tarefas que fariam um samurai honrado se encolher de horror e
repulsa. Mas a garota não sabia disso.
Ela continuou a me observar, a cabeça e as costas pressionadas
contra o tronco, o queixo erguido para escapar da lâmina letal contra
sua garganta. Segurei com força a espada, tanto na mão quanto na
mente, pois Hakaimono estava me incitando a matar essa camponesa
insubordinada, uma ninguém. — Você pode me matar agora. — disse
ela. — Mas nunca mais encontrará o que procura. — Eu estreitei meus
olhos e ela estremeceu sob meu olhar, parecendo perder a coragem,
antes de respirar fundo e me encarar novamente. — Eu tenho... uma
proposta para você. — Ela anunciou. — Então, por favor, ouça antes
de decidir cortar minha cabeça. Os demônios virão atrás de
mim. Assim que descobrirem que o pergaminho não está aqui, eles
vão me caçar. Agora mesmo, o pergaminho está a caminho de outro
templo, um templo escondido, bem longe. Eu preciso chegar àquele
templo, para avisar os monges do ataque do demônio. Prometi ao
meu mentor que o faria.
— Mas você não sabe onde está. — Eu apontei.
— Na-não. — Ela admitiu. — Eu não sei. Mas Mestre Isao me
disse o nome da pessoa que sabe. Um sacerdote que mora em Kin
Heigen Toshi. Ele sabe a localização do templo oculto e pode me dizer
aonde ir. Mas acho que não vou conseguir chegar lá sozinha. Eu não
posso lutar contra uma horda de demônios sozinha. — Ela me avaliou
e percebi onde isso estava indo. — Mas... você mata demônios, muito
bem, ao que parece. Se você... vier comigo, me proteger na jornada,
então... — Ela parou, mas a implicação pairou no ar entre nós,
impossível de perder.
Então ela me levará ao pergaminho.
Eu considerei. O clã não ficaria satisfeito. Como o matador de
demônios Kage e o portador de Kamigoroshi, eu não deveria ter
contato prolongado com ninguém fora do Clã das Sombras. As razões
para isso eram duas. Os Kage eram uma família de segredos. Nossos
shinobi eram os melhores da terra e possuíam talentos desconhecidos
para o resto do mundo. Estávamos perto das sombras, e os tocados
pelo kami entre nós refletiam isso, falando a linguagem das trevas e
do desconhecido. O Clã das Sombras mantinha seus segredos por
perto e mataria de bom grado qualquer estranho que descobrisse
muito. Uma camponesa viajando com o matador de demônios Kage
levantaria preocupações.
Mas a outra razão mais urgente era eu. Eu estava altamente
desencorajado a interagir com estranhos por causa do perigo que
representava, o risco de me perder para o demônio na espada. A
emoção era especialmente perigosa, porque Hakaimono a usava como
um portal para a alma. Raiva, medo, incerteza; quanto mais forte o
sentimento, mais perto o demônio chegava de dominar seu
hospedeiro. Eu fui avisado, várias vezes, que se Hakaimono assumisse
totalmente o controle, não haveria como voltar atrás. Eu me tornaria
um monstro e eles não teriam escolha a não ser me matar.
Mas eu estava em uma missão para a daimyo do Clã das
Sombras, a própria Dama Hanshou. Eu havia jurado recuperar o
pergaminho e era esperado que obedecesse, mesmo que isso me
custasse a vida e a vida das pessoas ao meu redor. O fracasso não era
uma opção.
— Então... — A garota arriscou. — Nós temos um acordo?
Capítulo 8
Duas almas pela estrada
O estranho ficou em silêncio, pensando. Ficamos muito perto e
pude ver cada detalhe de seu rosto, as maçãs do rosto salientes, os
lábios carnudos, a cicatriz na testa e na pont do nariz. Mas seus
olhos... Eles eram de um roxo luminoso, o tom profundo e brilhante
de uma flor de íris, e ainda, olhar para eles causou um arrepio que se
espalhou pelo meu pescoço e rastejou pelas minhas costas. Eles
estavam em branco, não revelando nenhuma emoção; mostrando
nenhuma compaixão, empatia ou compreensão. Nenhum indício de
uma alma por baixo. Eu nunca tinha sentido medo de outra pessoa até
agora; apesar das ameaças, fúrias e inúmeras punições de Denga-san,
eu sabia em meu coração que os monges do templo Ventos Silenciosos
nunca me machucariam. Mas esse menino... Ele pode ser jovem, com
rosto de anjo, mas não havia como errar a verdade em seus olhos. Ele
era um assassino.
E, no entanto, este assassino sem alma podia ser minha melhor
chance de chegar viva ao templo Pena de Aço. O pensamento fez meu
coração bater descontroladamente, mas depois de assisti-lo massacrar
os amanjaku, ver como ele facilmente os abateu, uma ideia se formou
em minha mente, uma ideia selvagem, arriscada, provavelmente
muito perigosa. Os demônios estariam me caçando assim que
descobrissem que o pergaminho havia sumido. O oni poderia estar me
caçando e, por mais que eu quisesse vingar o Mestre Isao e os outros,
não era páreo para essa abominação.
Eu tremi, sentindo um enorme nó doloroso na boca do
estômago. Não parecia real que eles haviam partido. Que ainda esta
tarde, eu estava acendendo as velas do salão principal e desejando
estar em outro lugar. Nunca estive além da floresta. Não sabia para
onde ir, nem como falar com as pessoas. Durante toda a minha vida,
falei apenas com monges, kami e os estranhos yokai na floresta. Tinha
que levar o pergaminho ao templo Pena de Aço; eu prometi ao Mestre
Isao que o faria, mas não tinha certeza de como chegar lá, ou o que
faria se encontrasse demônios.
Mas... este humano pode matar demônios. Muito facilmente, na
verdade. Ele pode ser tão perigoso quanto os próprios monstros. Se
ele estivesse me protegendo, qualquer demônio, yokai ou humano
assassino que quisesse o pergaminho teria que lidar com ele primeiro.
Havia apenas um pequeno problema.
Ele também estava atrás da Oração do Dragão. Se ele foi enviado
para recuperá-la como os demônios, ou veio por sua própria vontade,
o motivo não importa. Eu podia sentir a caixa estreita laqueada
escondida no furoshiki amarrada em volta do meu ombro, e meu
coração batia forte. Se ele descobrisse que eu tinha o pergaminho, eu
estaria tão morta quanto os monstros se dissolvendo na brisa. Eu teria
que ser muito cuidadosa e escolher minhas ações com sabedoria, ou
meu futuro protetor se voltaria contra mim.
Resumidamente, tive o pensamento sério de que Mestre Isao não
teria aprovado essa farsa, de eu mentir para esse menino para fazê-lo
me acompanhar até o templo Pena de Aço. Denga certamente teria
visto isso como mais uma trapaça e engano para raposas. Mas eu não
era uma guerreira; eu não podia cortar coisas em pedaços com uma
espada, e tudo que sabia do mundo exterior era o que os monges me
ensinaram. Meu templo se foi, minha família foi massacrada por
demônios diante dos meus olhos e eu recebi uma tarefa quase
impossível. Sem mencionar que havia a noção de que eu havia sido
deixada no templo Ventos Silenciosos neste exato momento. Para
proteger de alguma forma o pergaminho de todos que o desejam. Eu
não tinha certeza do que sentir sobre toda essa coisa de visão, mas
sabia que se pensasse nisso agora, me enterraria em um buraco fundo
e nunca mais sairia. Eu não poderia fazer isso sozinha e não tinha
mais ninguém para me ajudar. Como a velha tanuki havia dito esta
noite, eu era uma kitsune, uma yokai. Não uma humana. Era nisso
que eu era boa.
Eu segurei o olhar do estranho enquanto ele pensava sobre
minha oferta, sentindo uma luta desesperada dentro dele. Finalmente,
ele acenou com a cabeça e se afastou da árvore, tirando sua espada
terrível do meu pescoço. — Tudo bem. — disse ele. — Se esta é a
única maneira de chegar ao pergaminho, então vou levá-la para a
capital e, em seguida, para o templo. Mas... — Seus olhos se
estreitaram, frios e glaciais, e ele ergueu sua espada de forma que o
luar refletisse por toda a extensão de aço. — Se você me enganar, ou
tentar fugir, eu vou te matar. Compreende?
Eu balancei a cabeça, ignorando a pontada de medo que
acompanhou a sensação de alívio. Não que eu tivesse qualquer
intenção de fugir, mas não tinha dúvidas de que ele não estava
fazendo ameaças inúteis. Com um suspiro, o menino finalmente
embainhou a arma e a luz sutil que vinha da lâmina desapareceu,
mergulhando-nos na escuridão.
— A capital fica a algumas semanas a pé. — Afirmou ele, calmo
e profissional ao recuar. — Meu cavalo fugiu no início da noite, então
vamos ter que andar, pelo menos até eu encontrar um novo. Você está
bem o suficiente para viajar? Você tem o que precisa?
— Sim. — Respondi. Tendo crescido em um templo de monges
ascéticos, eu nunca tive muito, e os poucos bens que tive
provavelmente eram cinzas agora. Eu tinha minhas sandálias, as
roupas do corpo, uma adaga e um pedaço de um pergaminho com o
poder de realizar desejos, escondidos em meu furoshiki. Isso teria que
ser o suficiente para sobreviver.
— Suponho que você não tenha documentos de viagem, não é?
— o menino perguntou.
Eu pisquei. — Não. O que são documentos de viagem?
— Eles são... — Ele balançou a cabeça. — Não importa. — Ele
murmurou, descartando o assunto. — Não dá para evitar agora. Nós
lidaremos com o problema se ele surgir.
— Ano. — Acrescentei enquanto o humano se afastava. — Qual
o seu nome?
Ele hesitou por um momento, então respondeu em uma voz
baixa e vazia. — Kage Tatsumi.
Kage. Kage eram o Clã das Sombras, uma família de segredos e
conhecimentos ocultos, de acordo com meus estudos. Parecia
adequado para o garoto moreno e de olhos frios na minha frente. —
Eu sou Yumeko. — Tentei sorrir, embora, de costas, ele
provavelmente não perceberia. — Obrigada, por me levar para a
capital, Tatsumi-san. E, você sabe, me salvar dos demônios.
Ele não deu nenhuma indicação de que tinha ouvido. Com um
baixo: — Vamos. — Ele deu um passo à frente e desapareceu nas
sombras como se fosse parte da própria noite. Olhei mais uma vez
para o céu, para a fumaça e as brasas ainda subindo sobre as copas
das árvores, marcando o fim de um modo de vida.
Fechando meus olhos, eu sussurrei uma oração rápida para
Jinkei, o Kami da Misericórdia, e Doroshin, o Kami das Estradas, por
boa sorte e para guiar a todos até seu destino final, antes de me virar e
seguir Kage Tatsumi no escuro.

PARTE II
Capítulo 9
A alma persiste
Ser um fantasma era um exercício de paciência.
Quando Suki ainda era muito jovem, sua mãe contava histórias
de fantasmas à luz bruxuleante das velas de sua casa. No final do dia,
enquanto Mura Akihito estava em sua loja, trabalhando como escravo
em sua mais nova obra-prima, Suki se sentava em um banquinho
enquanto sua mãe varria ou cozinhava, e ouvia contos de belas
mulheres traídas ou abandonadas por seus amantes, que sofriam
longe até que seus corpos morressem, mas seu desejo vivesse. Nessas
histórias, eram sempre as mulheres que morriam de coração partido,
Suki notou. Que tiravam suas próprias vidas em luto. Ou que eram
brutalmente assassinadas e voltavam para se vingar. Às vezes,
mulheres imorais se tornavam algo terrível e antinatural. Uma mulher
gananciosa pode criar outra boca na parte de trás de sua cabeça, que
consumirá toda a comida que puder encontrar. Uma mulher infiel
pode descobrir que, enquanto ela dormia, seu pescoço se alongava em
comprimentos incríveis enquanto sua cabeça vagava livremente,
lambendo o óleo da lamparina e atacando pequenos animais. Nos
casos mais perversos, a dor, o ciúme ou a raiva da mulher a
transformavam em um oni, um hannya, ou mesmo uma terrível
serpente gigante, demônios que sempre encontravam seu fim na
espada de algum grande samurai.
Destinos terríveis, a alma que uma vez foi Suki meditou,
flutuando silenciosamente por um corredor estreito do
castelo. Certamente, as mulheres que se transformaram em tais
monstros eram grotescas e dignas de pena. Mas agora, ela pensou que
preferia ser um demônio.
Alguns metros à frente dela, Dama Satomi passeava pelo estreito
corredor do castelo abandonado, a sombrinha balançando,
inconsciente da alma que a seguia. Após a terrível noite de sua morte,
Suki tentou seguir a mulher, mas a perdeu nos corredores tortuosos
do castelo. Sozinha, o fantasma que fora Suki havia vagado sem rumo
de uma sala para o corredor e para o pátio, desnorteada e confusa. Ela
tinha certeza de que, antes de se tornar um fantasma, ela tinha sido
uma empregada doméstica no palácio imperial. Como ela chegou a
este castelo escuro e abandonado era um mistério; a última coisa de
que se lembrava era de entregar um rolo de corda em um armazém
nos jardins imperiais. Mas esse castelo definitivamente não era o
dourado Palácio do Sol do imperador. Tudo parecia frio, sem vida,
abandonado. Até os demônios se foram. Depois de se banquetear com
seu corpo, Yaburama e os demônios menores também partiram do
castelo, e sem companhia além das aranhas e ratos, o tempo se
transformou em uma névoa sombria e solitária.
Mas esta noite, Dama Satomi havia retornado, caminhando pelos
corredores do castelo abandonado como se ela fizesse isso todas as
noites. Atordoada, Suki seguiu atrás dela, mantendo-se fora de vista
enquanto ela pensava no que fazer.
Seu primeiro pensamento, é claro, foi vingança. Para assombrar
Satomi implacavelmente até que ela enlouquecesse de culpa. Mas, ao
contrário das histórias de fantasmas que sua mãe costumava contar,
onde os espíritos podiam amaldiçoar e até mesmo ferir fisicamente
suas vítimas, as interações de Suki com o mundo eram limitadas. Ela
não tinha corpo; sua forma insubstancial passava por tudo que ela
tocava. Se ela pensasse sobre isso, ela poderia se manifestar como uma
versão fantasmagórica de seu antigo eu, mas se ela perdesse o foco,
ela voltaria a ser uma bola de luz brilhante. Falar era difícil e exigia
esforço para lembrar como, e mesmo assim, sua voz saía fraca e
ofegante. Nas histórias, alguns yurei eram onryo poderosos, espíritos
do rancor cuja raiva e ódio se manifestavam em maldições
devastadoras e às vezes fatais, mas Suki não tinha ideia de como fazer
isso. E mesmo que ela se mostrasse para sua assassina, Dama Satomi
não parecia o tipo que se preocuparia com o fantasma de sua ex-
criada.
Então ela a seguiu, seguindo a mulher silenciosamente pelos
corredores vazios, até que Satomi abriu as portas da frente e entrou no
pátio novamente.
Estava cheio de demônios. Suki congelou no ar, tremendo, antes
de correr atrás de um arbusto morto para espiar por entre os
galhos. Amanjaku deslizavam sobre as pedras, rosnando e brandindo
armas rudes uns para os outros. No centro, a forma terrível de
Yaburama elevou-se sobre a multidão, lançando-os em sua sombra.
Dama Satomi caminhou através da multidão, ignorando os
demônios que sibilavam e gargalhavam para ela, o rosto sereno
enquanto ela caminhava em direção ao oni. Da perspectiva de Suki,
enquanto ela pairava atrás de um pedaço de parede quebrada,
Yaburama parecia estar de mau humor, mostrando os dentes para
qualquer amanjaku que chegasse perto demais. Quando Satomi se
aproximou, um amanjaku verde disparou para fora de seu caminho, e
o oni deu um chute violento que o jogou contra a parede. Dama
Satomi observou enquanto o demônio ia embora, um olhar confuso
em seu rosto, antes de olhar para Yaburama.
— Bem, eu poderia dizer algo sobre o seu temperamento, mas
pelo menos você chegou na hora esta noite. — A mulher fungou e
lançou um olhar de advertência a um amanjaku que estava se
aproximando demais de suas vestes. — Mas, infelizmente, o tempo
está passando e eu tenho muito que fazer. Se você gentilmente me der
o pergaminho, Yaburama, podemos acabar com essa associação
desagradável, e você pode voltar a fazer... o que quer que seus
demônios façam até serem convocados. Então... — Ela estendeu a mão
esguia e branca. — O Pergaminho do Dragão, se você quiser?
O oni soltou um grunhido. — Eu não o tenho.
— O que? — Dama Satomi baixou o braço, estreitando os
olhos. — Com licença, Yaburama, mas esse é o único motivo pelo qual
você foi chamado de Jigoku, certo? Por que eu mandei você para
aquele templo de fanáticos usuários do ki, porque pensei que
certamente um oni como Yaburama não teria problemas com um
bando de velhos carecas. O que você quer dizer com não tem o
pergaminho?
— O pergaminho não estava no templo, humana. — O oni olhou
carrancudo para ela. — Eu matei todos os monges lá, incluindo o
mestre, e destruí o templo procurando por ele. Não havia nenhum
pergaminho.
— E você tem certeza de que matou todo mundo? — A voz de
Satomi estava calma; ela poderia estar perguntando a uma criada se
ela tinha procurado em todos os lugares por uma xícara de chá
favorita, não discutindo casualmente a matança de um templo inteiro
de monges. — Nenhum acólito saiu pelos fundos e conseguiu
escapar? Nenhum monge atrelou seu ki a um trio de pardais que
voaram por cima do muro?
— Não. — Rosnou o oni. — Eu matei todo mundo. Não houve
sobreviventes.
Com isso, um par de demônios menores perto dos pés do oni
começou a pular para cima e para baixo, tagarelando em vozes roucas
e agudas. Suki não conseguia entender o que eles diziam, mas
Yaburama se virou, parecendo assassino, e os agarrou. Um demônio
gritou em alarme e fugiu para a multidão, mas o outro não foi rápido
o suficiente e foi agarrado pela enorme garra do oni. Ele gemeu
quando o monstro o ergueu do chão, balançando os braços e
balbuciando, até que ele ficasse na altura do rosto. O oni rugiu com
uma voz gutural e ameaçadora, e o demônio guinchou uma resposta,
ainda se contorcendo indefeso em suas garras.
Com um grunhido e um lampejo de presas, o oni cerrou o
punho, esmagando o demônio por dentro. O sangue jorrou de seu
nariz e boca e escorreu de suas orelhas, antes de se dissolver em
espirais de fumaça preto-avermelhada que se contorceu com o vento.
Se Suki pudesse ter se encolhido com a exibição de violência e
sangue, ela teria, mas Dama Satomi apenas parecia divertida. — Oh,
deixe-me adivinhar. — Ela disse enquanto o oni abria o punho,
deixando o resto da fumaça se dissipar. O sangue manchou suas
garras e pontas dos dedos, mas ele não pareceu notar. — Em todos os
seus assassinatos, mortes e folia, você deixou alguém escapar por
entre seus grandes dedos estúpidos. E agora eles têm o pergaminho.
O oni abaixou o braço. — Havia... uma garota. — ele resmungou,
parecendo relutante e irritado ao mesmo tempo. — Os amanjaku a
perseguiram até a floresta, mas ela conseguiu escapar. — Ele fez uma
pausa, seu rosto escurecendo mesmo quando seus olhos se estreitaram
e sua voz caiu para um rosnado baixo e assustador. — Com a ajuda do
matador de demônios Kage.
O matador de demônios Kage? Suki não conhecia esse nome, mas a
multidão de pequenos demônios ficou quieta e imóvel, como se a
própria palavra os assustasse. Ela se perguntou que tipo de pessoa
poderia assustar uma horda de demônios maníacos do inferno, e se
era alguém que ela gostaria de encontrar.
— Bem. — Dama Satomi disse, após um momento de silêncio
frágil. Sua voz poderia ter congelado o lago no jardim do imperador e
cortado todos os peixes ao meio com sua borda. — Isso representa um
problema, não é? Diga-me, Yaburama, se essa garota está com o
matador de demônios Kage, que imagino que Hanshou também tenha
enviado atrás do pergaminho, como vamos adquiri-lo sem perder
todos os seus demônios?
O oni mostrou suas presas. — Eu vou cuidar dele.
— Não. Você já fez o suficiente.
O oni rosnou, pairando sobre a mulher. Mas Dama Satomi
realmente se afastou dele e olhou para a dispersão de corvos nas
paredes e nas árvores mortas acima.
— Me ouçam! — ela chamou, levantando uma mão, e as
criaturas emplumadas se mexeram, agitando as asas e erguendo suas
cabeças, olhando para baixo com olhos redondos. — Encontrem-os,
meus karasu! — Satomi ordenou. — A garota e o matador de
demônios Kage. Sejam meus olhos, vendo onde não posso, e mostrem-
me com o que estou lidando. Vão!
Os corvos voaram com uma cacofonia de gritos ásperos,
espiralando no ar e desaparecendo na escuridão. Dama Satomi
observou-os partir, um enxame escuro voando para as nuvens
turbulentas, antes de se voltar para o oni resmungão e arfante.
— Um ataque de raiva não estará acontecendo, Yaburama. — Ela
comentou, e abriu a sombrinha quando gotas de chuva começaram a
cair. — Você teve sua chance e falhou. Se a garota e o caçador de
demônios estão viajando perto de cidades, um oni aparecendo com
uma turba de amanjaku não passará despercebido, e eu gostaria de
reduzir as dores de cabeça ao mínimo até ter o pergaminho em
minhas mãos. Existem outros que posso convocar para cuidar disso.
— Ela ponderou por um momento, girando a sombrinha nas mãos. —
Kazekira e seus familiares nojentos ainda me devem um favor. — Ela
meditou. — E eles não chamarão a atenção de todas as almas da
região. Sim, acho que vai funcionar.
Ela olhou para o oni e sua voz tornou-se doce e sussurrante. —
Aí está, Yaburama, o problema foi resolvido. Você apenas fica aqui,
como um bom cachorro, até que eu precise de você novamente.
Por um momento, Suki pensou que o oni poderia saltar para
frente e arrancar a cabeça do pescoço fino e branco de Satomi. Mas
então, ele bufou e deu um passo para trás. — Tola mortal. Você
subestima o matador de demônios Kage. Ele pode parecer humano,
mas é um monstro pior do que eu. Lembre-se disso quando precisar
da minha proteção contra sua espada.
Satomi ergueu uma sobrancelha perfeitamente arqueada. — Vou
manter isso em mente.
Ela se virou e se afastou, de volta às portas do castelo, a
sombrinha balançando atrás dela. Na escada, no entanto, ela parou e
olhou diretamente para o lugar onde Suki estava escondida, um
pequeno sorriso cruzando seus lábios. Gelada, a alma que era Suki
sumiu de vista, tornando-se invisível. No momento em que ela reuniu
coragem para espiar novamente, a mulher tinha ido embora.
Capítulo 10
O caminho para a capital
Estávamos sendo seguidos.
— Tatsumi-san? — Yumeko se virou, enquanto eu parei no meio
da trilha e me virei para olhar para as árvores atrás de nós. — O que
você está procurando? Tem alguma coisa aí?
Eu não respondi. Ao nosso redor, grandes pinheiros antigos
cresciam juntos, galhos se estendendo ao longo do caminho e
manchando a trilha com sombra. Cigarras zumbiam, sua canção
monótona pulsava por entre as árvores, e um falcão solitário voava no
alto, sua sombra deslizando brevemente sobre a trilha. O ar estava
fresco, cheirando a seiva e agulhas de pinheiro e, exceto pelo zumbido
dos insetos, tudo estava silencioso. Mas eu podia sentir que algo não
estava certo, como uma mancha escura no canto da minha visão,
mantendo-se fora de alcance.
Fazia três dias que a garota e eu fugimos da montanha, longe da
destruição do templo Ventos Silenciosos e dos amanjaku na
floresta. Não foi dito muito durante nossas viagens; a garota era
quieta e retraída, e eu não tinha nenhum desejo de puxar conversa
com ela. Era início do verão, os dias quentes e úmidos, o céu
ameaçando chover a qualquer momento. Passamos por aldeias com
cabanas de palha e campos com terraço, onde os fazendeiros enfiavam
mudas de arroz verde em águas profundas. Quando escurecia,
dormíamos debaixo das árvores ou em santuários abandonados, as
noites eram suficientemente quentes para ficarmos confortáveis sem
cobertores, o que foi uma sorte, pois todos os meus pertences se
perderam quando meu cavalo fugiu. Incluindo meus documentos de
viagem, a maior parte do meu equipamento shinobi e minhas rações
para a viagem. Felizmente, o final do verão em Iwagoto significava
que havia muitos lugares para obter comida na selva, se você soubesse
onde procurar. Cogumelos, frutas vermelhas e todos os tipos de
sansai, plantas selvagens, estavam por toda parte, e os rios e riachos
produziam peixes, se alguém soubesse como pescá-los sem linha. Eu
fui treinado para viver da terra e sobreviver na selva, então não
corríamos o risco de morrer de fome, embora eu tenha ficado surpreso
ao descobrir que a garota sabia um pouco sobre plantas selvagens
também. Uma noite, enquanto eu limpava os peixes que pesquei no
riacho próximo, ela apareceu e jogou uma braçada de caquis
selvagens no chão perto do fogo. Não me importava muito com coisas
doces, mas a fruta madura contrastou com a suavidade do peixe e
encheu bem nossos estômagos naquela noite.
Ao longo de nossas viagens, não senti a presença de demônios,
embora Hakaimono tenha estado incomumente inquieto, sentindo
olhos invisíveis em nós ou reagindo à nossa companheira
inesperada. Eu estava sozinho por tanto tempo que ter outro humano
constantemente presente era uma distração, tanto para mim quanto
para a espada. Eu ignorei a garota tanto quanto possível, tentando não
ver as lágrimas que às vezes escorriam de seus olhos, ou ouvir os
leves suspiros e fungadas quando ela estava enrolada, dormindo.
Esta manhã, no entanto, ela me cumprimentou com um sorriso e
um alegre Ohayou gozaimasu, Tatsumi-san, parecendo abandonar seu
humor sombrio. Tínhamos continuado na estrada, mas esta tarde, eu
não conseguia afastar a sensação de estar sendo observado. Isso
continuou a me atormentar, irritando Hakaimono ao extremo, até que
finalmente parei e procurei nas árvores por nosso perseguidor
desconhecido. Eu estava revelando que sabia que algo estava
acontecendo, mas, neste momento, preferia enfrentar algo que
pudesse lutar e matar, em vez de me preocupar com uma ameaça sem
nome que não podia ver.
Meu olhar parou quando finalmente localizei a fonte do meu
desconforto. Nos galhos de um pinheiro que se estendia ao longo da
estrada, uma figura pequena e curvada olhava para nós, sem piscar.
Corvos novamente. Eu estreitei meus olhos, olhando para o
pássaro, que arrepiou suas penas, mas não se moveu do galho. Os
corvos estavam por toda parte em Iwagoto, de uma ponta à outra do
país. Bandos amontoados em telhados ou em galhos de árvores,
lutando por espaço, seus grasnidos guturais repreendendo quando
você passava por baixo. Às vezes, eram vistos como maus presságios,
portadores de infortúnios, mas, na maioria das vezes, eram uma visão
comum e cotidiana, e ninguém dava uma segunda olhada nas
criaturas em disputa.
Mas de vez em quando, especialmente quando eu estava
viajando, um único corvo aparecia me perseguir. Me assistir. Matar o
pássaro não adiantava nada; outro apareceria logo depois, como se
para insultar meus esforços. Ou pior, ficaria fora de vista, irritando
Hakaimono até que estivesse pronto para atacar qualquer coisa que se
movesse. Pelo menos agora eu sabia a causa do desconforto e estaria
pronto se meu perseguidor desconhecido decidisse atacar.
— Tatsumi-san?
Eu me virei para encontrar a garota me observando, sua cabeça
ligeiramente inclinada. Ela não tinha notado o pássaro na árvore, e eu
não tinha vontade de explicar. Especialmente porque nenhum de nós
poderia fazer nada a respeito.
— Não é nada. — Eu disse a ela, continuando a descer a trilha
novamente. — Vamos continuar andando.
Ela assentiu, dando um passo ao meu lado. Eu podia vê-la pelo
canto da minha visão, cabelo escuro ondulando com a brisa, seu olhar
na floresta ao nosso redor. Ao contrário dos últimos dois dias, quando
ela seguiu silenciosamente nas minhas costas, olhando fixamente para
o chão. O pano de furoshiki estava enrolado em seus ombros; ela não
o tirou uma vez, e todas as noites, certificou-se de que estava bem
preso a sua pessoa. Imaginei que continha os últimos de seus escassos
pertences e que talvez ela tivesse medo de que eu os roubasse, embora
eu não tivesse interesse nas posses de uma camponesa.
— Ne, Tatsumi-san. — ela disse, olhando para cima de onde ela
estava observando um esquilo em um galho. Ela fazia muito isso, eu
percebi; aparentemente fascinada pelas menores coisas. Como um
gato constantemente distraído por sombras esvoaçantes. — Não
encontramos nada para comer hoje. O que vamos fazer para comer?
— Chochin Machi fica a alguns quilômetros daqui. —
Respondi. — Vamos reabastecer quando chegarmos à cidade.
Ela assentiu novamente. — Vai ser bom comer comida de
verdade de novo. — Ela comentou. — Não que eu tenha algo contra
peixes selvagens e caquis, mas estou começando a desejar uma tigela
de arroz quente. E uma cama de verdade. Onde eu não acordo com
aranhas em minhas roupas. Não que eu me importe com as aranhas,
mas não quero esmagá-las quando rolar. — Ela me lançou um olhar
de soslaio. — E você, Tatsumi-san?
Dei de ombros. Eu havia passado dias sem comer ou dormir,
tanto no campo quanto em treinamento com meu sensei. Às vezes
como punição, mas principalmente para testar minha resistência, para
ver o quão longe eu poderia ir antes de desmaiar. Fui treinado para
sobreviver com muito pouco; comida, sono e conforto pessoal não
eram tão importantes quanto completar a missão.
A garota soltou um longo suspiro e olhou para o céu, para o sol
se pondo lentamente abaixo da linha das árvores. — No templo,
estaríamos nos reunindo para a refeição da noite agora. — Ela
continuou suavemente. — Não tínhamos muito, mas comíamos juntos
três vezes ao dia. Satoshi tinha uma pequena horta nos fundos, ele
podia plantar os maiores rabanetes daikon que você já viu. — Seu
nariz enrugou. — Eu odiava daikon, e tínhamos muito dele. Eu
deixava cair pedaços por rachaduras no chão do templo, e então tinha
pesadelos com monstros de rabanete em conserva se escondendo sob
minhas tábuas do chão, rastejando para forçar-se a entrar em minha
boca enquanto eu dormia. — Ela fez uma pausa, suas próximas
palavras ainda mais suaves. — Eu comeria uma dúzia de rabanetes
agora, se isso significasse que eu poderia me sentar com todo mundo
mais uma vez.
Eu não tinha resposta para isso, então não disse nada. Ela ficou
quieta, então eu senti seu olhar em mim novamente. — Você tem
família, Tatsumi?
— Não.
— Mas... você é um samurai. — Ela inclinou a cabeça. — Você
carrega uma espada, e você tem o escudo da casa Kage em suas
costas. Então, isso significa que você deve fazer parte do Clã das
Sombras, certo?
Eu estreitei meus olhos. Todas as grandes casas tinham seus
próprios escudos que mostravam sua linhagem e a qual família
pertenciam, mas, em minha experiência, nenhum dos camponeses se
importava o suficiente para distingui-los. Para eles, todos os samurais
eram iguais.
— Como você sabe disso? — Eu perguntei a ela.
Yumeko piscou. — Mestre Isao me ensinou sobre os diferentes
clãs e casas. — explicou ela. — Ele queria que eu conhecesse um
pouco do mundo exterior, caso eu algum dia saísse do templo. Vamos
ver se consigo lembrar de todos eles. — Sua testa franzida. — Os
Hino, Mizu, Tsuchi e Kaze são as quatro grandes famílias do Fogo,
Água, Terra e Vento. — Ela recitou. — Enquanto os Kage, Sora e Tsuki
são os clãs menores, Sombra, Céu e Lua. Isso está correto?
— Você esqueceu um.
— Oh, certo. — Yumeko acenou com a cabeça. — O Clã do Sol é
a família imperial, os Taiyo. Mas a maioria deles fica na capital, perto
do imperador. Eles quase nunca deixam seus territórios, a menos que
estejam visitando os daimyos dos outros clãs. Ou assim o Mestre Isao
me disse.
Eu a considerei seriamente. — O que você sabe sobre os Kage?
— Que eles são a menor das famílias. Seu território faz fronteira
com o Clã do Fogo, e eles perderam várias batalhas com os Hino, que
invadiram suas terras na última década.
Tudo verdade. O Clã do Fogo era o antigo inimigo dos
Kage; mesmo em tempos de paz, quando o imperador ordenou uma
trégua em todo o país, o Hino e os Kage estavam constantemente
lutando. O Clã do Fogo era grande e influente, e pensava que se um
clã não fosse forte o suficiente para defender seu território, deveria ser
tomado por alguém que pudesse. Naturalmente, os Kage
discordavam.
Mas isso era de conhecimento geral. Dois clãs lutando por
território era tão comum quanto chuva durante a estação chuvosa,
com as fronteiras mudando com tanta frequência que até mesmo os
magistrados eram pressionados a acompanhar. — O que mais? — Eu
perguntei suavemente.
— Bem, é dito que os Kage não são como outros samurais dos
clãs. Que seus guerreiros usem as trevas e técnicas questionáveis a seu
favor ao lutar contra forças superiores. Que eles podem se derreter nas
sombras ou desaparecer em uma nuvem de fumaça, e que seu daimyo
é uma senhora misteriosa que dizem ser imortal.
Eu relaxei. Esses eram todos rumores comuns, alguns deles
verdadeiros, mas encorajados pelo Clã das Sombras para manter
nossos inimigos na dúvida e fora de equilíbrio. Ela não tinha ouvido
nada que os Kage não aprovassem, o que era bom, porque os
verdadeiros segredos do Clã das Sombras não deveriam ser
conhecidos por estranhos; aqueles que descobriram muito eram
geralmente silenciados, rápida e permanentemente.
Hakaimono aprovou essa ideia, me incentivando a atacar agora,
para matá-la. Você não precisa dela, o demônio parecia sussurrar em
minha cabeça. Um golpe rápido e tudo estará acabado. Não haveria
dor. Ela nem perceberia o que tinha acontecido até que acordasse com
seus ancestrais.
Afastei esses pensamentos. Eu não tinha ordens para matar a
garota, nem acreditava que ela era uma ameaça para o Clã das
Sombras. Além disso, eu havia prometido acompanhá-la ao templo
Pena de Aço e precisava da ajuda dela para encontrar o
pergaminho. A menos que o clã me dissesse o contrário, essa era
minha primeira e única prioridade.
As sombras da floresta estavam crescendo. Eu ainda podia sentir
os olhos do corvo em mim, mas não conseguia mais vê-lo nos galhos
ao nosso redor. À medida que o sol se punha mais baixo no céu, raios
de luz começaram a piscar, entrando e saindo da existência, enquanto
vaga-lumes vagavam pela floresta e flutuavam no ar.
— Ne, Tatsumi? — Yumeko perguntou, levantando a mão de
forma que um vaga-lume pousasse em seu dedo, piscando em verde e
dourado no crepúsculo. Trazendo-o perto de seu rosto, ela observou
com curiosidade, lançando em sua pele um brilho estranho. — O sol
está começando a se pôr... — ela disse, inconsciente quando parei para
olhar para ela. — Estamos muito próximos de Chochin Machi?
— Sim.
Ela levantou o braço e o inseto saiu em espiral para a floresta. —
Por que se chama Cidade das Lanternas?
Saímos das árvores, e a estrada descia suavemente colina abaixo,
em direção a um rio e uma série de docas do outro lado. — Veja por si
mesma.
Olhando para baixo, ela respirou fundo.
Chochin Machi assentava-se nas margens do rio Hotaru,
brilhando como uma tocha contra a noite. Não era uma cidade grande
como Kin Heigen Toshi, a capital; ostentava um pequeno castelo, um
punhado de pousadas, lojas e restaurantes, e uma indústria pesqueira
que fazia um bom trabalho no sustento da cidade. Embora não fosse
por isso que Chochin Machi era famosa, ou por que atraía peregrinos
e viajantes de Iwagoto.
Em quase todas as ruas, todas as esquinas, lojas e santuários,
centenas de luminárias de papel vermelhas lançavam seu brilho suave
na escuridão, iluminando a cidade. Elas estavam penduradas em
telhados e galhos de árvores, em portas, toldos e no leme de todos os
navios que flutuavam no rio. O brilho da cidade podia ser visto por
quilômetros em todas as direções, e os viajantes se aglomeravam nele
como mariposas para uma chama.
— Sugoi. — Yumeko sussurrou. Surpreendente. Seus olhos eram
piscinas redondas de preto, e as luzes da cidade tremeluziam em suas
profundezas. — É lindo. Os monges nunca me disseram que havia
algo assim além do templo. — Ela fez uma pausa, então inclinou a
cabeça, como se estivesse escutando algo no vento. — Isso são
tambores?
Eu sufoquei um gemido. O final do verão em Iwagoto era a
temporada dos festivais, o que significava que Chochin Machi estaria
especialmente lotada esta noite. — Fique perto. — Eu disse à
garota. — Não é uma cidade grande, mas não queremos nos separar.
Eu me virei e comecei a descer a colina, ouvindo ela se apressar
atrás de mim. Cruzamos a ponte em arco sobre o rio, onde lanternas
tremeluziam no topo dos postes a cada poucos metros, e entramos no
brilho etéreo de Chochin Machi.
Os olhos de Yumeko permaneceram arregalados enquanto
caminhávamos pela rua larga e empoeirada que cortava o distrito
comercial. Ao contrário de muitas cidades que fechavam suas portas
quando o sol se punha, as lojas de Chochin Machi prosperavam
depois de escurecer. Cordas de lanternas balançavam no alto, às vezes
bloqueando o céu, enquanto chochins individuais tremeluziam nas
portas de lojas, pousadas e restaurantes, indicando que estavam
abertos. As bancas do mercado vendiam seus produtos nas ruas, de
tudo, de comida a sandálias e lanternas de papel em miniatura, as
lembranças populares de Chochin Machi.
À medida que nos aproximamos do centro da cidade, o som de
tambores, profundo e estrondoso, começou a ecoar na noite mais uma
vez. Seguindo a multidão, chegamos a uma grande praça aberta, onde
uma alta plataforma de madeira revestida de vermelho e branco
ficava no centro como um farol. No topo do palco, dois homens de
peito nu com tiras de pano vermelho amarradas na testa batiam um
par de grandes tambores de madeira com paus, enviando notas
estrondosas que reverberavam pela multidão. Cordas de lanternas
estavam penduradas no alto, convergindo para o telhado da
plataforma e iluminando a praça, enquanto as pessoas dançavam em
círculo ao redor dos bateristas, batendo palmas e batendo os pés ao
som da música.
Eu me arrepiei e, na minha cabeça, Hakaimono se mexeu,
irritado com todo o barulho e movimento. Eu não gostava de
multidões. Muitas coisas podem acontecer; emoções podem surgir
fora de controle, brigas podem estourar, pessoas podem entrar em
pânico. Se a reunião aqui se tornasse um motim e Hakaimono
assumisse o controle, este festival rapidamente se transformaria em
um banho de sangue.
Andei um pouco mais rápido, na esperança de me afastar das
luzes e da música e ir para a escuridão onde me sentia
confortável. Preocupado em observar a multidão, de repente percebi
que Yumeko não estava mais ao meu lado. Virando, eu a vi na beira
da praça, olhando para o círculo de dançarinos, balançando no lugar
enquanto ela fazia.
Com uma carranca, eu virei para trás e me movi ao lado dela,
inclinando-me para ser ouvido sobre o tambor. — Yumeko. O que
você está fazendo?
— Tatsumi-san! — Ela olhou para mim, os olhos brilhantes,
aparentemente incapaz de manter o corpo imóvel. — Dance comigo.
— Ela implorou, gesticulando para a multidão cantando e batendo os
pés. — Ensine-me como.
Eu recuei. A dança não fazia parte da minha formação, sendo
vista como frívola e pouco prática pelo meu sensei. Eu podia apreciar
a arte e a habilidade necessária para tocar um instrumento, mas não
sabia nada de dança e não tinha vontade de aprender. — Não.
— Por favor, Tatsumi-san? — Ela deu um passo para trás, em
direção à borda do círculo. O estrondo dos tambores se elevou no ar,
pontuado pelos aplausos da multidão, e ela sorriu para mim. — Só um
pouquinho. Vai ser divertido.
Diversão. Eu sufoquei um estremecimento. Diversão era uma
palavra perigosa entre meu sensei. Já estamos nos divertindo,
Tatsumi? Ichiro-san costumava cantarolar, geralmente quando eu
estava lutando com uma determinada tarefa, e logo antes de ser
punido por meu fracasso. Já que você está se divertindo muito, tentaremos
a mesma coisa amanhã. — Não temos tempo para isso. — Eu disse.
Ela torceu o nariz e suspirou. — Tatsumi-san, você já ouviu o
provérbio da lontra do rio, kawauso e do Profeta de Jade? — ela
perguntou. — Nessa história... — ela continuou antes que eu pudesse
responder. — Havia um kawauso que não levava nada a sério, que
transformava tudo em um jogo e trazia alegria e frivolidade aonde
quer que fosse. Em seu rastro, as pessoas riam, dançavam, cantavam e
se esqueciam de seus problemas. Mas um dia, o kawauso conheceu o
Profeta de Jade, que lhe disse: “A vida está sofrendo. A diversão é uma
perda de tempo passageira. Você deve parar com essas brincadeiras tolas e se
esforçar para trabalhar duro sem falhar. Somente no sofrimento,
entorpecimento e tédio você pode encontrar a verdadeira felicidade.” O
kawauso acatou o conselho dele. Ele parou todas as suas brincadeiras,
trabalhou até a morte e morreu um velho yokai amargo sem amigos,
sem família e sem alegria em sua vida.
— Eu nunca ouvi esse provérbio. — Eu disse duvidosamente.
Yumeko sorriu. — Claro que não. Não existe. — E antes que eu
pudesse impedi-la, ela deu três passos para trás e se misturou à
multidão de dançarinos.
Fiquei olhando para ela, fechando minhas mãos em punhos,
enquanto a garota se juntava à multidão ondulante. Acima, o tambor
retumbava, a multidão cantava e Yumeko dançava, balançando o
corpo e batendo palmas ao som da música. Observando-a, me peguei
prendendo a respiração, incapaz de desviar o olhar. Por apenas um
momento, com seu cabelo escuro ondulando e sua pele brilhando sob
a luz da lanterna, ela era hipnotizante.
Com uma sacudida mental, eu espreitei ao longo da borda da
praça, mantendo um olho na garota, bem como nas pessoas ao seu
redor. Tolo, todos os meus instintos me disseram. Isso é tolice. Uma
perda de tempo. Não tinha nada a ver com a missão nem nos
aproximava do nosso objetivo. Não deixe que ela o distraia. Ela é
importante para a missão, nada mais.
Enquanto eu circulava atrás da garota, havia um movimento de
algo no canto do meu olho, como uma enorme mariposa ou
morcego. Minha mão disparou, arrebatando-o do ar antes de atingir o
lado da minha cabeça. Asas frágeis como papel se dobraram em
minhas mãos. Baixei o braço e abri os dedos para revelar um grou de
origami dobrado, o papel preto como breu e sem desenho, esmagado
no centro da palma da minha mão.
Apreensão cintilou. Uma convocação? Agora? Cautelosamente,
examinei a multidão, em busca de ameaças ocultas, de rostos que eu
conhecia e olhares que demoravam muito em mim. Não vi nada fora
do lugar, mas uma onda de desconforto subiu pela minha espinha,
não por mim, mas pela garota dançando no meio da multidão.
O que devo fazer? Eu não posso levá-la comigo. Eles vão matá-la. Olhei
ao redor, me perguntando se poderia escapar e deixar Yumeko aqui,
se ela estaria no mesmo lugar quando eu voltasse. Mas isso seria
arriscado; eu precisava que a garota me levasse ao templo Pena de
Aço, e Yumeko parecia o tipo que vagaria atrás de mim se eu
simplesmente desaparecesse. Se ela tropeçasse nos negócios do Clã
das Sombras, eles não teriam misericórdia dela.
Olhando ao redor, avistei um grande prédio quadrado na
esquina da rua, cortinas azuis sobre a porta dando boas-vindas aos
viajantes. Uma ryokan.
Isso terá que servir.
Eu espreitei ao redor do círculo, encontrei Yumeko no mar de
dançarinos e agarrei-a pelo braço. Ela saltou, olhando para mim com
grandes olhos negros, e eu senti uma estranha sensação de reviravolta
no estômago.
— Oh, Tatsumi-san. — Ela piscou, então me deu um sorriso um
tanto irônico. — Você mudou de ideia? Você ficou tão comovido com
o provérbio do kawauso e do Profeta de Jade que decidiu dar uma
chance à diversão?
Eu olhei para ela. — Isso nem era um provérbio real.
— Mas ainda pode ensinar uma lição valiosa. Você não quer se
tornar uma lontra de rio velha e rabugenta, quer?
Apertando o queixo, puxei-a para a beira da praça e acenei com a
cabeça para o fim da rua. — Você vê o prédio na esquina? — Eu
perguntei com uma voz furtiva. — Aquele com a lanterna maior e as
cortinas azuis na porta?
Ela olhou por cima das cabeças da multidão. — A ryokan?
Então, ela sabia o que era uma pousada, pelo menos. Bom. —
Pegue isso. — Eu disse, e coloquei um trio de tora de prata em sua
palma aberta. As moedas tilintaram umas nas outras; três discos de
prata com a impressão de um tigre rosnando no centro. — Vá para a
pousada. Use o dinheiro para nos conseguir um quarto para passar a
noite. Isso deve cobrir tudo.
Ela olhou para o dinheiro em suas mãos e depois para mim. —
Onde você vai?
— Eu tenho... negócios para cuidar. Eu não vou demorar.
— Negócios. — Sua testa franzida. — A esta hora da noite? —
Quando eu não respondi, a carranca se aprofundou. — Por que não
podemos ir juntos?
— Isso não é possível.
— Por que não?
A irritação cresceu, misturada com uma pitada de medo. — Você
faz muitas perguntas. — Eu disse a ela com uma voz fria. As
perguntas eram perigosas. Perguntas a matariam mais rápido do que
qualquer outra coisa. — Talvez haja coisas que você não precisa saber.
Ela se encolheu, suspirou e fechou os dedos com força em torno
das moedas. — Apenas... prometa que você vai voltar. — Ela disse
calmamente. — Que você não vai desaparecer na noite e eu nunca vou
te ver novamente. Jure para mim que você vai voltar.
— Não tenho intenção de sair.
— Você promete?
— Sim.
Ela acenou com a cabeça uma vez e se afastou, mas
abruptamente estendi a mão e peguei sua manga, fazendo-a virar. —
Eu quero a mesma promessa. — Eu disse a ela, e um lampejo de
confusão cruzou seu rosto. — Que você ficará na estalagem. Que você
não vai tentar me deixar ou me seguir. Fique no quarto até eu voltar,
Yumeko. Prometa-me.
Ela assentiu. — Eu vou.
— Vá então. — Eu a soltei e ela começou a atravessar a rua em
direção ao ryokan, segurando um punhado de moedas. Fiquei
olhando até ela passar pela porta por baixo das cortinas, depois me
virei e voltei por onde viemos.
Algo farfalhou em minha mão. Quando abri meu punho, o grou
de papel dobrado se mexeu e desenrolou asas pretas amassadas. Com
várias abas, a criatura de papel se ergueu no ar como uma borboleta
moribunda e saiu voando.
Eu segui. O grou me conduziu além da praça, os tambores ainda
batendo em seu ritmo estrondoso, até um beco estreito entre uma casa
de chá e uma loja de tecidos. A criatura de origami continuou pelo
corredor, voando pelo chão, mas parei na entrada e olhei para a
escuridão. Acima, um único fio de chochin se estendia por cerca de
quinze metros, iluminando as paredes de madeira de cada lado, antes
de terminar em um cruzamento. Desconfiado de ataques e ameaças
escondidas nas sombras, entrei no beco.
Bem acima de mim, uma lanterna piscou uma vez e se apagou. A
próxima a seguiu, escurecendo quando sua chama se extinguiu, assim
como a próxima e a próxima. Uma por uma, todas as chochin na corda
do beco estalaram e se apagaram, mergulhando o estreito espaço na
escuridão completa.
Eu continuei andando. A escuridão não era motivo para
alarme; eu estava mais confortável nas sombras do que na luz. Eu
segui as lanternas apagadas até chegar ao cruzamento e parei,
olhando para uma estrada, depois para a outra. Elas se estendiam
entre edifícios, cortando um caminho estreito atrás de lojas e
depósitos, completamente vazias e escuras.
— Olá, Tatsumi.
A voz suave e alta ecoou atrás de mim. E mesmo reconhecendo
isso, sufoquei a vontade de girar e desembainhar minha espada,
obrigando-me a virar com calma. Uma figura estava sentada na porta
dos fundos de um armazém, envolta em sombras, onde nada havia
antes. Suas vestes, pretas e sem marcas, ondulavam ao redor dele, e
seus longos cabelos caíam soltos por seus ombros e costas. Seu rosto
estava pintado de branco, com linhas pesadas de preto ao redor dos
olhos e no queixo. Ele usava uma única espada curta na cintura, mas
suas habilidades não eram da lâmina, embora fossem igualmente
mortais. Ele foi tocado pelo kami, o que as pessoas comuns chamam
de majutsushi, ou usuário de magia. Todos os clãs tinham alguns
indivíduos únicos cujos talentos refletiam o elemento de sua família,
mas os majutsushi eram de longe os mais fortes e poderosos. Como
um shinobi Kage, eu poderia trabalhar pequenas magias das Sombras,
tornar-me invisível ou criar um gêmeo fantasmagórico, os talentos da
escuridão e da desorientação. Mas dentro de Iwagoto, havia
majutsushi que podiam virar a própria terra contra você, invocar fogo
ou relâmpago, ou curar uma ferida fatal em alguns segundos. Os
magos dos Kage não eram tão destrutivamente impressionantes como
os do Clã do Fogo, ou trabalhadores de milagres como os do Clã da
Água; seu comando da noite e tudo nela era sutil, embora não menos
perigoso.
— Jomei-san. — Eu disse, e me curvei, sentindo seu olhar seguir
cada movimento meu. — Então é a sua vez de me checar, eu vejo.
— Essa não é uma saudação muito legal, Tatsumi-san. — Jomei
disse em sua voz alta e ofegante. — Se eu fosse desse tipo, poderia
ficar ofendido. Você sabe por que devemos fazer isso.
— Eu sei.
— Kamigoroshi não é algo que consideramos levianamente. —
Jomei continuou como se eu não tivesse falado. — Nós, do Clã das
Sombras, conhecemos a escuridão melhor do que a
maioria. Dançamos com ela todos os dias e caminhamos por uma
linha muito tênue entre as sombras e o abismo. Conhecemos o mal
que se esconde nos lugares escondidos de Iwagoto e nas almas dos
homens. E sabemos, mais do que qualquer outro clã, como é fácil cair.
— Você é o portador da Lâmina Amaldiçoada. — Continuou
Jomei. — Kamigoroshi, Hakaimono, como você quiser chamá-la, essa
espada corrompeu as almas de homens melhores do que você, Kage
Tatsumi. Nós ensinamos você a resistir à sua influência, treinamos
você nos caminhos dos shinobi Kage. E ainda, sabemos o terrível mal
que você carrega e que, um dia, você pode sucumbir às trevas. — Seus
olhos se estreitaram. — É por isso que te seguimos, porque essas
reuniões são essenciais. Se houver qualquer indício de que você está
perdendo a batalha com Hakaimono, devemos cuidar disso
imediatamente, antes que você se perca e o verdadeiro demônio seja
libertado.
Eu inclinei minha cabeça. Ele estava certo, é claro. O que
aconteceu comigo? Eu nunca tinha falado com o majutsushi
assim. Talvez os maneirismos camponeses de Yumeko estivessem
afetando meu julgamento. — Perdoe minha explosão, Mestre Jomei.
— Eu disse. — Isso não vai acontecer de novo.
— Bom. Agora... — Jomei se acomodou, entrelaçando os dedos
sob o queixo enquanto me observava. — Já que você parece ter um
controle sobre Kamigoroshi, e quanto à sua missão? Você alcançou o
templo Ventos Silenciosos? Você conseguiu recuperar o pergaminho?
— Não. — Eu me endireitei, sufocando toda emoção. Eu era uma
arma. Não sentia nada. — Já tinha ido embora quando cheguei.
— Ido? — O olhar de Jomei se aguçou. — O que você quer dizer
com ido? Você está dizendo que a missão foi um fracasso?
— Um exército de amanjaku atacou o templo. Eles eram
liderados por um oni. — As sobrancelhas de Jomei se
arquearam; demônios eram algo que o Clã das Sombras levava muito
a sério. — O mestre do templo percebeu que eles estavam chegando...
— continuei. — ...e mandou o pergaminho embora antes que
pudessem alcançá-lo.
— Um oni. — A voz do outro Kage era grave. — Misericordioso
Kami, quem está convocando oni para este reino? Você o matou?
— Não.
Seus lábios se estreitaram. — Tatsumi-san, eu entendo que você
foi ensinado a responder apenas o que é pedido a você, mas eu vou
precisar de um pouco mais de informação do que isso. Por favor, dê-
me o relatório completo de sua missão e todos os detalhes
importantes. Não deixe nada de fora.
— Como quiser. — E comecei a contar a ele o que tinha
acontecido naquela noite, tudo, desde lutar contra o amanjaku até
encontrar Yumeko e concordar em acompanhá-la até Kin Heigen
Toshi. Contei a ele sobre o plano de encontrar Mestre Jiro no santuário
Hayate, na esperança de que ele pudesse nos mostrar o caminho para
o templo Pena de Aço e o pergaminho que havia me escapado.
— Entendo. — disse Jomei quando eu terminei. Ele juntou dois
dedos e os bateu contra os lábios. — O templo Pena de Aço foi
perdido para a lenda. — Ele murmurou. — Há histórias de que ele é
protegido por guardiões sobrenaturais, mas ninguém sabe ao certo
onde está, se é que existe. — Seu olhar se voltou para mim novamente,
duro e avaliador. — Você tem certeza de que acompanhar a garota é a
única maneira de chegar a esse Mestre Jiro?
— Eu sei o nome do santuário. — Respondi. — Eu poderia
encontrar sozinho. Mas ele não teria motivo para revelar o que sabe
para mim. A garota fazia parte do templo Ventos Silenciosos, parte da
ordem que protegia o pergaminho. Ele vai falar com ela. E se ela
puder me mostrar o caminho para meu objetivo, seria melhor eu
segui-la.
Jomei suspirou. — Muito bem. — Ele assentiu. — Continue a
viajar com ela por enquanto. Se este Mestre Jiro souber a localização
do templo Pena de Aço e do pergaminho, você deve encontrá-lo a
todo custo. Mas tenha cuidado. A garota não deve descobrir nada que
ela já não tenha ouvido sobre o Clã das Sombras. Assim que você
estiver de posse do pergaminho, volte para Dama Hanshou.
Eu me curvei. — Compreendo.
— Devo informar Hanshou-sama sobre isso. — Jomei
murmurou. — Demônios não teriam uso para o pergaminho. Alguém
os está enviando. — Ele se levantou graciosamente, as vestes caindo
ao redor dele, e me deu um leve sorriso. — Estaremos observando
você, Tatsumi-san. Não nos decepcione.
Curvei-me mais uma vez e, quando me levantei, Jomei havia
sumido.
As lanternas piscaram e ganharam vida uma a uma, iluminando
o beco vazio. Refiz meus passos até a estrada principal e fiz meu
caminho de volta para a pousada para onde havia enviado Yumeko.
Eu abaixei a cortina sobre a porta, então me endireitei e olhei ao
redor da entrada. Um piso elevado de madeira ficava a alguns passos
de distância, com alguns bancos colocados ao longo das paredes para
acomodar os viajantes. Do outro lado do saguão, uma escada subia até
o último andar, onde presumi que as acomodações dos hóspedes
estavam localizadas. Uma mulher, provavelmente a anfitriã, correu
em minha direção, sorrindo e se curvando na beira do piso elevado.
— Bem-vindo, senhor. — Ela anunciou. — Por favor, entre. Você
vai precisar de um quarto esta noite?
— Sim. — Eu disse. — Mas havia uma garota aqui antes. De
quimono vermelho com faixa branca. Ela deveria ter nos reservado
um quarto.
— Oh? — A anfitriã franziu a testa ligeiramente, olhando para a
porta. — Ela era sua companheira, era? Bem, ela não está mais aqui.
Eu estreitei meus olhos. — O que aconteceu? Onde ela está?
— Tinha uma menina como essa aqui. — A anfitriã continuou,
parecendo nervosa agora. — Apenas alguns minutos atrás, na
verdade. Uma coisinha fofa em um quimono vermelho. Mas então,
um vento soprou do nada. Foi tão forte que quase me derrubou. E
quando olhei para cima, a garota havia sumido.
Capítulo 11
Doninhas Do vento
Começou com um vento estranho.
Eu pretendia conseguir um quarto, realmente pretendia. E
comida. E talvez um banho. Mas especialmente comida. Eu estava
morrendo de fome, e a ideia de sentar em um quarto limpo comendo
uma refeição quente, em vez de na floresta mastigando plantas
selvagens, parecia maravilhosa. Mesmo estando extremamente
curiosa sobre para onde Tatsumi havia fugindo, segui-lo,
especialmente quando eu tinha o Pergaminho do Dragão escondido
em meu furoshiki, parecia uma má ideia.
Além disso, ele me prometeu que voltaria. Eu tinha que confiar
que ele manteria sua palavra e voltaria.
Mas então, quando pisei na soleira, uma rajada de vento violenta
sacudiu meu cabelo e me fez tropeçar para frente. O vento soprava
através da porta, rasgando as cortinas e apagando as lanternas por
dentro e por fora, mergulhando o saguão nas sombras.
Quando me endireitei, uma mecha de meu cabelo caiu de
repente no chão, cortada, como se por uma lâmina muito afiada.
Meus olhos se arregalaram e uma vibração de alarme passou por
mim. Eu olhei para cima para ver um par de olhos vermelhos
redondos me observando de cima de uma das lanternas no teto. Eles
estavam presos a uma criatura peluda e marrom com focinho
pontudo, pequenas orelhas arredondadas e um corpo longo e
musculoso.
Uma doninha? Eu fiz uma careta. Uma doninha de aparência
comum, exceto...
Minha boca se abriu. Exceto pelas longas lâminas em forma de
foice crescendo diretamente de suas pernas dianteiras. Curvadas e de
aparência mortal, elas se estendiam por trás dos cotovelos da criatura
e brilhavam na escuridão do saguão. Não é uma doninha normal, eu
percebi. Uma criatura que possuía magia ou outros poderes
sobrenaturais. Um yokai.
Como eu.
A doninha sibilou, expondo presas amarelas afiadas, saltou da
estátua e desapareceu.
Outro vento cortou o ryokan, balançando as cortinas, me
fazendo estremecer e tropeçar para trás. Ao recuperar o equilíbrio,
senti uma sensação de ferroada na bochecha e coloquei a mão no
rosto.
Meus dedos saíram sujos de sangue.
Com o coração batendo forte, olhei pela porta. A doninha estava
empoleirada no telhado de uma barraca de vendedor de madeira do
outro lado da rua, ainda me olhando com olhos como brasas nas
sombras. Eu deixei cair minha mão do corte raso em minha bochecha.
Ela quer que eu a siga.
As outras pessoas no saguão não notaram a intrusa. Eles ainda
estavam se endireitando, se recuperando de quase serem derrubados,
duas vezes, pelo vento misterioso. Se eu não fosse embora, a coisa
doninha poderia continuar voltando e golpeando os outros com
aquelas lâminas perversamente curvas. Além disso, eu estava curiosa,
intrigada com a presença de outro yokai, e um de sangue puro. Pode
ser comum vê-los na floresta ou nas montanhas, mas eles tendem a
evitar grandes cidades e lugares com muita gente. Se a doninha yokai
tinha se mostrado para mim aqui, era por um motivo.
Enxugando meu rosto com as costas da manga, saí da pousada e
corri de volta para as ruas de Chochin Machi.
O yokai fluía com o vento, voando de um lugar para outro,
invisível quando estava em movimento, reaparecendo quando estava
parado. Eu o segui pela rua principal, observando enquanto ele voava
de telhado em telhado, fazendo as lanternas balançarem
descontroladamente em seu rastro. As pessoas tropeçaram quando ele
passou por cima, segurando suas vestes e guarda-sóis enquanto o
vento soprava.
— Que tempo estranho. — Alguém murmurou quando eu
passei. — Eu não sabia que em Chochin Machi ventava tanto.
Segui a criatura por um beco estreito, observando as lanternas
dançando e quicando até que ela dobrou a esquina e chegamos a um
beco sem saída. Com uma rajada de vento, a coisa doninha girou no ar
e desapareceu. Esperei, mas nem o vento nem o yokai reapareceram; o
ar estava parado e silencioso, e a passagem estava vazia.
Eu fiz uma careta. Então aquela coisa doninha só queria me
enganar. E agora estou perdida. Eu olhei ao redor, me perguntando se eu
poderia refazer meus passos de volta ao ryokan. Exceto que eu não
tinha ideia de onde estava. Denga-san acharia isso hilário.
Uma risada suave veio atrás de mim, baixa e zombeteira. —
Bem, olá, pequena raposa. Vagando por becos solitários sozinha?
Eu girei. Uma mulher estava no topo de um telhado,
emoldurada pela luz da lua. Ela era alta e esguia, vestindo um
quimono elegante decorado com nuvens brancas rodopiantes contra
um fundo azul celeste. Seu cabelo era longo, solto e ondulado como
fios de tinta ao vento. Mangas onduladas envolviam seus braços,
caindo quase até os tornozelos, enquanto ela me olhava com olhos
azuis pálidos e gelados.
— Um... olá. — Eu cumprimentei cautelosamente. — Este é o seu
beco? — A mulher não se moveu e eu dei um passo cauteloso para
trás. Se ela percebeu que eu era kitsune, provavelmente não aceitaria
bem um yokai estranho em seu território. — Estou um pouco perdida,
então se você pudesse apenas me apontar na direção certa...
Os lábios carnudos da mulher se curvaram enquanto ela me
olhava de cima a baixo. — Vermin. — Ela comentou, me fazendo
franzir a testa. — Um verme imundo e revoltante. Assim como meu
kamaitachi. — Ela ergueu o braço e a doninha apareceu nele com uma
rajada de vento que açoitou meu cabelo e minhas roupas. — Mas pelo
menos eles são yokai de sangue puro e um pouco úteis. Você é apenas
uma meia raposa patética, não é?
Eu achatei minhas orelhas. — Bem, isso não é muito gentil. — Eu
disse, sentindo o kitsune-bi saltar para as pontas dos meus dedos. —
Acabamos de nos conhecer. Além disso, raposas não são vermes, acho
que você está me confundindo com um rato ou uma barata. — Eu dei
alguns passos cautelosos para trás. — Mas parece que te peguei em
uma noite ruim, então vou embora agora...
— Oh, você não vai a lugar nenhum, verme.
Ela estendeu o braço e uma rajada de vento atingiu minhas
roupas, me fazendo tropeçar. Ao mesmo tempo, senti uma dor
cegante na perna, a sensação de ser cortada por uma lâmina, embora
não vi nada me atingir. Aconteceu tão rápido que nem tive tempo de
gritar antes de minha perna ceder e cair no chão.
Ofegante, olhei para cima para ver uma segunda doninha
aparecer no outro ombro da mulher, olhos redondos em seu rosto
mascarado de preto olhando para mim. A ponta da foice crescendo
em sua pata dianteira estava manchada de sangue.
— Meu nome é Senhora Kazekira. — A mulher disse, enquanto
as duas doninhas me encaravam de seus ombros magros. — Eu sou
uma dos tocados por kami, o que o povo comum chama de bruxa do
vento, e os kamaitachi são meus familiares. Portanto, não pense que
você pode simplesmente fugir, pequeno verme. — Ela acariciou a
cabeça de um kamaitachi, mas não havia afeto no gesto, apenas posse,
e a doninha yokai se encolheu longe de seu toque. A bruxa do vento
não pareceu notar ou se importar. — E vejo que você é tão ingênua
quanto comum. — Ela continuou, enxugando as mãos como se
estivessem sujas. — Eu não te atraí aqui para conversar. Eu trouxe
você aqui para matá-la.
O gelo torceu meu estômago. — Por quê? — Lutei para ficar de
pé, sentindo minha perna latejar e pulsar como se estivesse pegando
fogo, e quase desmaiei novamente. Minha kitsune-bi havia
explodido; eu levantei um braço e a chamei à vida novamente, um
globo branco-azulado brilhando em minha mão. Não iria machucá-
los, mas talvez eles não soubessem disso. — Eu não fiz nada para
você, ou suas doninhas. Por que você está fazendo isso?
A bruxa do vento riu com vontade, seu cabelo se contorcendo
loucamente ao seu redor. — Oh, pequeno verme. — Ela riu,
levantando o braço. Os dois kamaitachi se agacharam em seus
ombros, as lâminas brilhando enquanto me miravam. — Se você não
consegue descobrir isso, então você realmente é muito estúpida para
continuar vivendo.
— Tão alto. — Suspirou uma nova voz desconhecida atrás de
mim. — Pelo menos você poderia ter a cortesia de matá-la
rapidamente. Afinal, alguns de nós estão tentando dormir.
Assustada, a bruxa do vento abaixou o braço e me virei na
direção da voz. Um corpo estava sentado em um dos barris perto da
parede, envolto nas sombras projetadas do telhado. Erguendo a
cabeça, ele se levantou e caminhou para a luz.
Meu batimento cardíaco acelerou, seja de admiração ou medo,
eu não poderia dizer. Um homem estava diante de mim, alto e esguio,
o luar lançando um halo prateado ao seu redor. Suas vestes
esvoaçantes eram de um branco imaculado, com detalhes em
vermelho e preto, sem padrões, marcas ou um brasão de família para
identificá-lo. Seu cabelo era muito fino, ainda mais longo do que o da
bruxa do vento, e de um prata brilhante e deslumbrante, da cor de
uma lâmina polida. Uma espada curvada e enormemente longa estava
presa às suas costas, a bainha superando a de uma katana por vários
centímetros, o cabo dobrado no comprimento. Olhos preguiçosos, de
pálpebras pesadas, como ouro derretido, encontraram meu olhar,
então deslizaram por mim para a bruxa parada acima.
— Você está fazendo um barulho terrível. — disse o estranho
naquela voz baixa e vagamente irônica, como se achasse a situação
divertida. — É uma sorte que os humanos sejam todos surdos, ou eles
ouviriam você por quilômetros. É realmente preciso tanta elaboração
para matar uma meia raposa em um beco vazio?
— Seigetsu-sama. — Sussurrou a bruxa. Seu rosto estava pálido,
o vento morrendo em um murmúrio enquanto ela olhava para ele. —
O que você está fazendo aqui? Você conhece esse verme?
— A mestiça? — Os lábios do estranho se torceram em um
sorriso malicioso. — Não, eu estava na área e decidi tirar uma
soneca. Por favor, continuem. — Ele acenou para mim de maneira
improvisada e começou a se afastar.
Meu coração afundou. Achei que o estranho fosse me ajudar. Ele
parecia poderoso, com seus olhos dourados e uma espada gigante; até
a bruxa do vento parecia com medo dele. Kazekira sorriu triunfante e
ergueu o braço, suas roupas e cabelos começando a balançar com o
vento mais uma vez.
— Embora... — O estranho parou, esfregando o queixo, e olhou
para a bruxa novamente. — Dizem que os kamaitachi se movem tão
rapidamente que o olho nu não consegue compreendê-los. Sempre me
perguntei se isso era verdade.
Alcançando para trás, ele puxou sua arma sobre a cabeça, com a
caixa laqueada e tudo. Segurando a bainha com a mão esquerda, ele
deslizou um pé para trás até ficar em algum tipo de posição, sua mão
vazia pairando a alguns centímetros do punho da espada gigante.
— Vamos jogar um jogo. — O estranho disse, um sorriso
malicioso cruzando seu rosto enquanto ele olhava para a bruxa. —
Você envia seus familiares para matar esta mestiça, e eu tento cortá-
los no ar antes que possam alcançá-la. Se os kamaitachi forem tão
rápidos quanto as histórias afirmam, eles não devem correr perigo. Se
não, bem... — Ele ergueu um ombro magro em um encolher de
ombros. — Você sempre pode encontrar mais, certo?
A bruxa do vento enrijeceu. Em seus ombros, os dois kamaitachi
se encolheram, parecendo relutantes. Meu coração batia forte
enquanto o silêncio se estendia. O belo estranho não se moveu, sua
mão firme e imóvel sobre o punho de sua espada, pronto para puxar o
aço em um piscar de olhos.
Finalmente, Kazekira ergueu o queixo e cheirou. — Por mais que
eu gostaria de jogar o seu jogo, Seigetsu-sama... — disse ela em uma
voz altiva, — Eu não acho que posso convencer minhas doninhas
vermes covardes a cooperar, então você terá que nos desculpar. —
Com um sorriso de escárnio, ela olhou em minha direção. —
Considere-se com sorte, mestiça. Você vai viver esta noite. Mas
Seigetsu-sama nem sempre estará por perto para protegê-la. Meus
kamaitachi e eu veremos você em breve.
Um vento forte soprou através do santuário, levantando poeira e
fazendo balançar as lanternas. A bruxa do vento ergueu-se no ar, as
vestes ondulando ao seu redor, e se afastou sobre os telhados. Em
segundos, ela desapareceu.
Quando o vento diminuiu, olhei para o estranho, observando
enquanto ele se endireitava e colocava a arma nos ombros
novamente. Seigetsu-sama, como a bruxa o chamava, um sufixo
reservado para os de posição mais elevada. Isso significava que ele era
um senhor, talvez o daimyo de um dos Grandes Clãs? Não pensei que
encontraria alguém tão importante nos becos de Chochin Machi, mas
não sabia muito sobre o mundo exterior. Talvez ele estivesse dando
um passeio noturno pela cidade... sem a companhia de seus samurai e
guarda-costas. Parecia improvável, mas, quaisquer que fossem seus
motivos, eu sabia que seu tempo era impecável.
— Ano... — eu gaguejei quando o estranho olhou para cima,
aqueles olhos dourados preguiçosos me prendendo no lugar. Por um
momento, eu me senti quase nua sob eles, todos os meus segredos
expostos. Me sacudindo, ofereci um sorriso. — Obrigada.
Um canto de sua boca se curvou. — De nada. — Ele declarou
simplesmente. — E se considere uma sortuda. Não tenho o hábito de
salvar meias-raposas esquecidas de kamaitachi raivosos, mas esta
noite pensei em abrir uma exceção. — Ele me olhou com diversão
fria. — Você sabe por que Kazekira estava atrás de você, certo?
Como ele sabia sobre o pergaminho? Pensando sobre isso, como
Kazekira sabia? Engoli em seco, sentindo a caixa estreita escondida em
meu furoshiki. — Eu realmente não tenho ideia.
Uma sobrancelha prateada se arqueou. — Você vai ter que
mentir melhor do que isso se quiser sobreviver, mestiça. — Ele me
disse. — Há muitos por aí procurando desesperadamente pelo
pergaminho, que farão de tudo para adquiri-lo. — Eu fiquei tensa e
ele riu, balançando a cabeça. — Você pode relaxar. Não tenho
interesse no desejo do Dragão ou em você. Mas vou oferecer este
conselho, não conte ao matador de demônios sobre Kazekira.
Minhas orelhas doeram. Ele sabia sobre Tatsumi,
também? Quem era ele? — Por quê?
Seus olhos, dourados e hipnotizantes, perfuraram os meus. —
Porque, pequena raposa, poderosas bruxas tocadas por kami não
atacam aleatoriamente garotas camponesas comuns sem motivo,
especialmente em uma cidade. O caçador de demônios sabe disso. Se
você contar a ele que foi atacada por uma bruxa do vento com
familiares kamaitachi, ele vai querer saber por que ela estava atrás de
você. E o que você vai dizer a ele então?
— Oh. — Eu mordi meu lábio. — Bom ponto.
Balançando a cabeça, o estranho começou a se afastar, mas parou
novamente, me observando com o canto do olho. — Você
provavelmente verá Kazekira novamente. — Ele avisou. — Se você
fizer isso, e o caçador de demônios de alguma forma se meter em
problemas, lembre-se disso. — Ele ergueu a mão, os últimos três
dedos erguidos, longos e elegantes. — Kamaitachi sempre vem em
grupos de três. A lealdade de um para com o outro é inquebrantável e,
se um for ameaçado, os outros farão o que for preciso para salvar seu
irmão ou irmã. Lembre-se disso e pergunte-se por que Kazekira tem
apenas dois familiares. Sayonara.
Antes que eu pudesse responder, ele caminhou pelo beco e
desapareceu na escuridão.

Caminhar era doloroso. Rangendo os dentes, empurrei-me ao


longo da parede do beco, sentindo o ferimento latejar e pulsar a cada
movimento. Cuidadosamente, puxei a bainha do meu robe, esperando
ver uma bagunça de sangue manchando minha pele e pingando no
chão. Encontrei o corte com bastante facilidade, um corte fino e reto
logo acima do joelho. Mas, embora parecesse bastante profundo, não
estava sangrando.
Enquanto mancava em direção à rua principal, houve um borrão
de sombras e o gume brilhante de uma espada de repente bloqueou
meu caminho. Congelando, olhei para o rosto frio e nada divertido de
Tatsumi.
Eu me encolhi enquanto ele avançava, sua terrível lâmina
projetando em seu rosto um brilho fraco enquanto pairava entre
nós. Batendo na parede, estremeci quando o movimento enviou uma
onda de dor pela minha perna, me fazendo ofegar. — Ite. — Eu
choraminguei. Ai.
Instantaneamente, a lâmina na minha garganta baixou alguns
centímetros e Tatsumi franziu a testa para mim. — Você está ferida. —
Afirmou ele, sua fúria fria derretendo um pouco. — O que aconteceu?
— Eu... hum... fui atacada. — Gaguejei. Lembrando o que
Seigetsu havia dito, pensei rapidamente. — Eu ia conseguir um quarto
para nós na pousada, mas aí veio um vento estranho e... algo me
atingiu. Eu corri e ele me perseguiu até aqui.
— Onde está agora?
— Era invisível. — Eu continuei, fazendo seus olhos
estreitarem. — Ou era muito rápido. Não vi nada quando fui
cortada. Mas eu olhei para cima uma vez e havia isso... essa coisa
doninha com facas crescendo de suas pernas, empoleirada no canto de
um telhado.
— Kamaitachi? Aqui? — Tatsumi deu um passo para trás e
examinou o beco, seu olhar varrendo os telhados. Sua espada
chamejou, quase de excitação, mas as sombras que nos cercavam
estavam vazias.
— Kama... itachi? — Repeti, como se fosse a primeira vez que
ouvisse. — O que eles são?
— Doninhas falciformes. — Tatsumi respondeu, sem tirar os
olhos de nosso entorno. — Um tipo de yokai que viaja com o
vento. As histórias dizem que sempre há três deles e que eles têm uma
maneira particular de defender seu território, um o derruba, o
segundo o corta e o terceiro aplica remédios na ferida para que você
não sangre até a morte. Tudo isso acontece quase simultaneamente,
então o intruso não sabe que foi ferido até mais tarde, quando a ferida
começa a sangrar. — Ele desviou o olhar dos telhados e olhou para
mim, avaliando. — Na realidade, os kamaitachi produzem um tipo de
secreção e cobrem suas garras com ela, então, quando eles te acertam,
o corte não sangra imediatamente. Mas eles geralmente são
encontrados mais ao norte, nunca ouvi falar de um atacando alguém
em uma cidade. Tem certeza que foi isso que você viu?
— Uma doninha com lâminas gigantes em suas pernas? Estou
muito certa. — Fiquei feliz por ele parecer acreditar em mim. Não
ousei contar a ele sobre Kazekira. Melhor que este fosse um ataque
yokai estranho, mas aleatório, e eu, a visitante infeliz e sem noção que
estava no lugar errado na hora errada. — Eles não eram doninhas
muito legais. — Eu resmunguei, estremecendo quando minha perna
latejou novamente. — Os kamaitachi são sempre tão mal-humorados
ou eu apenas tive azar esta noite?
Tatsumi suspirou, embainhando sua espada. — Você pode
andar? — ele perguntou, sem olhar para a perna onde o kamaitachi
havia me cortado. Eu balancei a cabeça e me empurrei da parede
novamente. A dor aumentou e minha perna quase dobrou, mas cerrei
minha mandíbula e manquei atrás de Tatsumi.
Em alerta para yokai e ventos repentinos, eu o segui de volta a
ryokan. Tatsumi caminhou lentamente, estabelecendo um ritmo que
eu poderia facilmente acompanhar, embora sua mão não se afastasse
muito de sua arma. Eu examinei os telhados, sombras e multidões de
Chochin Machi em busca de uma figura com cabelo comprido
flutuando com o vento, mas se Kazekira e suas doninhas estivessem
perto, eles estavam ficando fora de vista.
De volta ao ryokan, deixamos nossos sapatos normais na entrada
como era costume e encontramos nosso quarto. Curiosa para ver como
era o interior de um ryokan, pisei ansiosamente pela moldura, mas
encontrei um quarto normal do outro lado da porta. Era elegante em
sua simplicidade, com paredes castanhas quentes, grossos tapetes de
tatame e uma pequena alcova com uma única íris ayame em um
vaso. Não havia camas, já que era muito cedo para os futons serem
puxados para fora do armário, então uma mesa baixa estava no chão
no centro do quarto. Uma bandeja com um bule e xícaras havia sido
colocada na mesa, o vapor saindo suavemente do bico.
Tatsumi fechou a porta, tirou as sandálias de palha que a
pousada havia fornecido para uso interno e as colocou ao lado da
porta. Eu segui seu exemplo e ele acenou com a cabeça para um dos
travesseiros da mesa. — Sente-se. — Ele ordenou, sem qualquer
explicação de por que ou o que ele iria fazer. Fiz o que ele instruiu,
abaixando-me cautelosamente sobre o travesseiro azul, apertando
minha mandíbula enquanto minha perna latejava com o movimento.
Tatsumi se ajoelhou na ponta da mesa, enfiou a mão embaixo de
seu obi e tirou um pacote de papel colorido que cabia na palma da
minha mão. Ele o colocou sobre a mesa e o abriu com cuidado,
revelando uma pequena quantidade do que parecia ser poeira
verde. Enquanto eu observava, fascinada, ele despejou o líquido
quente do bule em uma xícara e, em seguida, pingou cuidadosamente
algumas gotas no pó.
— O que é isso? — Eu perguntei.
Ignorando-me, Tatsumi misturou a poeira verde com a água até
virar uma pasta. Pegando o quadrado inteiro, ele o segurou
suavemente na palma da mão e olhou para cima. Olhos violetas
brilhantes encontraram os meus e meu estômago embrulhou.
— Onde os kamaitachi cortaram você?
Hesitei, sentindo meu coração bater mais rápido sob minhas
vestes. Ele estava tão perto. O pergaminho estava guardado com
segurança no furoshiki sobre meu ombro, mas ele veria? Ele chegaria
perto o suficiente para sentir isso?
Tatsumi não se moveu, os olhos fixos e a expressão em branco
enquanto esperava. Parei por mais um momento, então
cuidadosamente puxei a bainha do meu robe, mostrando o corte longo
e reto na minha coxa. Era vermelho e parecia raivoso, e latejava como
uma dúzia de picadas de vespa, mas ainda não estava sangrando. E
de alguma forma, ver isso claramente fez doer ainda mais.
Tatsumi não piscou. Em um movimento suave, ele pegou a pasta
verde com dois dedos, estendeu a mão e espalhou-a com firmeza no
corte.
— Ite! — Eu gritei, puxando minha perna para trás, assustada
tanto com a dor repentina e vertiginosa do meu ferimento, quanto
com o tratamento casual do humano na minha frente. Ele me lançou
um olhar perplexo, como se não entendesse minha reação.
— É uma pomada curativa. — explicou ele. — Vai anestesiar o
ferimento e evitar que infeccione. — Ele alcançou minha perna
novamente, e eu recuei, fazendo-o franzir a testa. — Você não quer
ajuda? Temos que cuidar da ferida agora ou começará a sangrar
logo. Deixe-me ver.
— Dói. — eu cerrei, puxando minha bainha para expor o corte
novamente. — Eu não sei se você já foi cortado por uma doninha-
falciforme, Tatsumi, mas esta é a minha primeira vez e dói muito. Por
favor, seja mais gentil.
— Gentil. — Ele me lançou outro olhar perplexo, como se o
conceito fosse completamente estranho para ele.
— Sim. Cuidadoso? Delicado? Não fazendo sentir que minha
perna vai cair? — Ele ainda parecia perplexo e eu fiz uma careta. —
Você não tratou ferimentos antes?
— Claro. Mas a intenção sempre foi tratar as feridas da maneira
mais rápida e eficiente possível. Mostrar dor é uma fraqueza, expõe
você e permite que seus inimigos saibam que você está vulnerável.
— Oh. — Eu estava começando a entender um pouco melhor
meu companheiro de viagem frio e perigoso. — Fomos criados de
maneiras muito diferentes, eu acho.
Ele inclinou a cabeça, olhando para mim com olhos violetas
avaliadores. — Você não foi punida por mostrar fraqueza durante
uma lesão?
— Não. Denga-san uma vez disse que eu não precisava ser
punida quando me machucava fazendo algo estúpido, porque a lesão
era tudo que eu precisava para aprender a não fazer isso de novo.
Tatsumi franziu a testa. — Eu não entendo.
— Bem, eu aprendi que você realmente não deveria subir no
telhado do templo à meia-noite durante uma tempestade. E se você
for pular de um armário para assustar um mestre de artes marciais,
esteja pronta para se esquivar. E se você tiver que fugir de um urso
furioso na floresta subindo em uma árvore, deve primeiro verificar se
não há ninhos de vespas escondidos sob os galhos.
Tatsumi apenas me encarou, parecendo um pouco
confuso. Suspirei. — Mestre Isao ensinou bondade e paciência em
todas as coisas, especialmente quando alguém estiver ferido. —
Continuei. — Ele disse que cuidar do espírito é tão importante quanto
cuidar do corpo. — Olhando para o rosto vazio e sem emoção de
Tatsumi, eu tive uma informação repentina e comovente. — Ninguém
nunca lhe mostrou qualquer gentileza antes, não é?
— Sua ferida está sangrando. — Tatsumi afirmou, me fazendo
começar e olhar para minha perna, onde um fio vermelho estava
começando a rastejar pela minha pele. Antes que pudesse pingar no
chão, Tatsumi rapidamente pressionou um pano no corte, me fazendo
cerrar os dentes, e toda a conversa parou enquanto ele limpava e
enfaixava o corte. Ele pode ter sido um pouco menos áspero, mas
ele não foi suave.
Felizmente, a comida chegou logo depois: tigelas de arroz,
bandejas de repolho em conserva e uma panela preta funda que,
quando a tampa foi removida, revelou uma variedade fumegante de
vegetais, carne e caldo borbulhante que fez meu estômago pular de
excitação. Tatsumi chamou de nabe, uma panela quente, e eu me
empanturrei até não poder comer outro cogumelo. Mas o perigo da
noite ainda não havia acabado. Quando a refeição acabou e a bandeja
retirada, meu rosto me encarou da superfície laqueada da mesa: olhos
amarelos e orelhas pontudas refletidas na madeira escura. Felizmente
naquele momento, Tatsumi estava assistindo à empregada partir, e
não viu o lampejo da kitsune no quarto com ele. Recuei para um
canto, alegando que meu ferimento estava latejando, e fiquei longe da
mesa e de sua superfície brilhante e traiçoeira.
Não muito depois, a empregada chegou para puxar os futons do
armário e colocá-los no chão, e eu me arrastei para baixo dos
cobertores enquanto Tatsumi apagava a luz. Depois de me certificar
secretamente de que a caixa laqueada estava segura e protegida em
meu furoshiki, fiquei deitada na escuridão por um longo tempo,
pensando em kamaitachi, bruxas do vento e nos vários demônios que
queriam o pergaminho.
E Tatsumi. Kage Tatsumi, o caçador de demônios do Clã das
Sombras. Um menino que não sabia nada sobre bondade, compaixão
ou misericórdia. Que era implacável, perigoso e mataria qualquer um,
humano, demônio ou yokai, que ficasse em nosso caminho. Que não
percebeu que a coisa exata que ele queria, o motivo de sua missão,
estava a menos de três metros dele. Se ele descobrisse que eu tinha o
pergaminho...
Estremeci e agarrei o envoltório um pouco mais apertado contra
o peito, sentindo o comprimento duro da caixa de pergaminho
dentro. Eu sabia que deveria ter medo dele; não havia dúvida de que
ele me mataria se descobrisse que eu estava mentindo para ele. Não
apenas sobre o pergaminho, mas também sobre minha verdadeira
natureza. Mesmo que eu fosse apenas meio yokai, eu duvidava que o
matador de demônios do Clã das Sombras aceitaria uma kitsune que
tinha fingia ser humana o tempo todo.
Tatsumi era perigoso, eu entendia isso. Mas, ao mesmo tempo,
não podia deixar de sentir... pena dele. Ele não sabia como rir, sorrir
ou se divertir. Ele não conhecia os prazeres das coisas simples, rir,
dançar, encontrar beleza no mundo. Parecia uma existência muito
chata. A breve sessão de dança hoje à noite certamente levantou meu
ânimo, e eu sabia que Mestre Isao e os outros não iriam querer que eu
fosse miserável. Eu me perguntei se poderia mostrar a Tatsumi que
havia mais na vida. Então talvez ele não fosse tão frio e
assustador. Certamente não faria mal para ele sorrir um pouco. Eu
apenas teria que ter cuidado com isso.
Tatsumi, percebi, não se deitou no futon, mas preferiu sentar-se
no canto, de frente para a porta, com a espada apoiada em uma
perna. E quando acordei cedo na manhã seguinte, ele ainda estava lá.
Capítulo 12
O Urso Demônio de Suimin
Mori
Na manhã seguinte, a magia fabricada de Chochin Machi havia
desaparecido com a noite.
Yumeko e eu saímos ao amanhecer, partindo do ryokan antes do
sol nascer sobre as colinas distantes. Na luz cinzenta do alvorecer, as
ruas estavam quase desertas, as lanternas vermelhas flutuantes
escuras e sem vida. As lojas também estavam fechadas e às escuras; eu
havia escapulido da pousada na noite anterior para comprar
suprimentos para a viagem, enchendo minha bolsa de arroz e
comprando comida não perecível suficiente para vários dias. Meu
estoque de moedas estava diminuindo, no entanto, especialmente com
a parada inesperada na pousada. Se eu estivesse sozinho, não teria me
incomodado com o ryokan. Yumeko estava provando ser um dreno
inesperado tanto no meu tempo quanto nos meus suprimentos.
Então a mate.
Instintivamente, cortei minhas emoções e fechei minha mente
para a espada, não dando nada a que se agarrar. A sede de sangue
desapareceu e a leve hostilidade para com Yumeko desapareceu, me
deixando congelado por dentro.
Yumeko bocejou, cobrindo a boca enquanto se arrastava ao meu
lado, mal favorecendo sua perna. A pomada curativa, uma mistura
secreta de agentes anestésicos criada pelos melhores fabricantes de
venenos de Iwagoto, estava fazendo seu trabalho. — A cidade
certamente parece diferente agora. — ela comentou, olhando ao redor
da rua vazia. — Eu acho que só ganha vida depois que escurece. É
uma pena termos que partir tão cedo, eu teria gostado de ver mais
disso. Sem ser assediada por doninhas saqueadoras, é claro. — Ela
olhou para mim com um sorriso. — Como são as doninhas
falciformes, Tatsumi-san?
— O que?
— Bem, se encontrarmos mais doninhas em forma de foice,
pensei que poderíamos dar-lhes algo para que não nos atacassem. —
Ela inclinou a cabeça para mim. — Você sabe muito sobre demônios e
yokai. Do que elas gostam? Elas gostam de tofu frito? Gosto muito de
tofu frito.
— Não sei do que elas gostam.
Ela suspirou. — Talvez eu tente jogar uma bola de arroz para
elas.
Ninguém nunca te mostrou qualquer gentileza antes, não é?
Eu me sacudi enquanto suas palavras de ontem à noite ecoavam
em minha cabeça, me assombrando. Bondade? A bondade era uma
vulnerabilidade, um luxo dado àqueles que não caçavam
demônios. Para ser gentil, você tinha que baixar a guarda, algo que eu
não podia fazer, especialmente com Hakaimono pronto para tirar
vantagem da menor distração. Meus vários sensei, os homens e
mulheres que me treinaram, sabiam disso. Eu era uma arma para o
clã, nada mais. A bondade não tinha lugar na minha vida.
Quando saímos de Chochin Machi e continuamos nossa jornada
em direção à capital, vi um único corvo empoleirado em uma corda de
lanterna na rua. Eu me perguntei se meu misterioso observador e o
ataque a Yumeko estavam relacionados e, se estivessem, me perguntei
quando e onde a pessoa por trás deles tentaria novamente.
Eu estaria pronto se eles fizessem.
Quando o sol nasceu totalmente, tínhamos deixado Chochin
Machi bem para trás e estávamos seguindo o rio Hotaru enquanto este
seguia para o norte em direção à capital. Depois de vários
quilômetros, os campos planos e as terras cultivadas com grama
tornaram-se mais íngremes e o caminho divergia das margens do rio,
indo para as montanhas.
Ao nos aproximarmos da floresta, Yumeko parou de repente, sua
atenção foi atraída para uma velha placa de sinalização de madeira
cravada no chão.
— Entrando na floresta de Kiba-sama. — ela leu lentamente,
enquanto a placa estava rachada e desbotada, as palavras quase
gastas. — Pise suavemente. Cuidado com Kiba-sama. — Piscando, ela
olhou para mim. — Oh, ele parece muito perigoso. Quem é Kiba-
sama? Você sabe, Tatsumi?
Eu sabia. Meu treinamento exigia que eu conhecesse as histórias
e lendas de todos os demônios, yokai e espíritos que existiam por toda
a terra. — Kiba-sama... — expliquei. — É o nome que os habitantes
locais deram a um onikuma, um grande demônio urso que vive nesta
floresta. As histórias dizem que Kiba-sama é mais alto do que dois
homens, e que ele é tão grande que pode pegar cavalos com uma pata
e carregá-los de volta para seu covil para devorá-los.
Seus olhos se arregalaram e ela olhou para a borda das
árvores. — Que legal. Mas ele não parece muito agradável. E se o
encontrarmos?
— É improvável que o faremos. Ninguém vê Kiba-sama há
muito tempo, quase vinte anos. Mas devemos caminhar suavemente.
— Eu olhei para a placa novamente. — Os contos afirmam que, nas
profundezas desta floresta, existe uma caverna onde os animais nunca
se aventuram e os pássaros nunca cantam nas árvores
circundantes. Kiba-sama ainda dorme lá, e cochilou nas últimas duas
décadas. Portanto, quando você caminhar pela floresta dele, pise
suavemente, para não acordar o grande demônio urso de Suimin
Mori, que estará faminto após vinte anos de hibernação.
— Ah. — Yumeko olhou para a floresta novamente e acenou
com a cabeça. — Pise suavemente. Eu posso fazer isso. As folhas nem
saberão que estão sendo pisadas.
As árvores se fecharam ao nosso redor quando entramos na
floresta, grandes pinheiros e sequoias cujos galhos fechavam o céu,
tornando o chão da floresta escuro e fresco. Seguimos a trilha por
rochas cobertas de musgo e árvores caídas, entre os troncos de
gigantes antigos e por trechos de floresta onde a luz do sol nunca
tocava o solo. A floresta estava anormalmente parada; como a lenda
prometia, nenhum pássaro cantava nas árvores, nenhum inseto
zumbia, nenhum veado ou pequenos animais se moviam no
matagal. Uma mácula ameaçadora pairava no ar, uma aura sutil de
medo que era o suficiente para silenciar toda a floresta.
Chegamos a uma ravina, uma fenda na terra que descia
abruptamente para o leito de um rio quase seco, muito abaixo. Uma
ponte feita de corda e pranchas de madeira cruzava o golfo,
balançando suavemente ao ar livre. Um minúsculo santuário à beira
da estrada para Doroshin, o Kami das estradas e viagens, ficava
próximo a um dos postes da ponte, a base repleta de oferendas de
moedas e flores murchas. Enquanto Yumeko caminhava até a beira do
penhasco e olhava para baixo, coloquei um kaeru de cobre na base do
santuário, fechei os olhos e juntei as mãos, oferecendo uma oração
rápida a Doroshin por uma viagem segura. Eu não tinha certeza de
que os deuses ouviriam a oração de um assassino humilde,
especialmente um cujas mãos estavam manchadas de sangue e sujeira,
mas era sempre melhor ser cauteloso. Melhor que o Kami o ignorasse
do que arriscar sua ira e má sorte.
Abrindo meus olhos, fiquei surpreso ao ver Yumeko parada ao
meu lado, as mãos juntas e os olhos fechados. Abaixando os braços,
ela recuou e se virou para mim com um sorriso.
— Eu costumava orar para Doroshin todas as noites. — Ela
explicou, com uma rápida olhada no santuário. — Sempre sonhei em
viajar, em sair do templo e ver o que está lá fora, mesmo que fosse
assustador. Eu pedia a Doroshin para me mostrar um caminho. — Ela
suspirou, seu olhar viajando para a ponte e o que havia além.
Seus olhos escureceram, uma sombra caindo sobre seu rosto,
mas ela piscou e se sacudiu, e voltou ao normal. — Não era assim que
eu queria que acontecesse. — Ela murmurou. — Mas estou aqui, na
estrada, como pedi. Achei que deveria pelo menos agradecê-lo,
apenas no caso. — Olhando para mim novamente, ela inclinou a
cabeça, me olhando com curiosidade. — Não pensei que você fosse o
tipo que ora, Tatsumi-san.
— O Kami vê todo mundo. — Respondi simplesmente. — Não
estou isento de sua notificação, e carrego uma espada chamada
Matadora de Deuses. Sempre que possível, procuro não os ofender.
Começamos a cruzar a ponte. As tábuas desgastadas rangeram
sob nosso peso, balançando para frente e para trás enquanto
caminhávamos sobre o espaço vazio. Abaixo de nós, um vento
constante uivava através da ravina, fazendo a ponte balançar com a
brisa, mas as cordas eram grossas e fortes, e não corriam o risco de
quebrar.
No entanto, quando estávamos na metade do caminho através
do abismo, uma súbita rajada de vento fez as tábuas balançarem
violentamente. Eu deixei cair meu peso, dobrando meus joelhos para
manter meu equilíbrio, enquanto Yumeko gritava e agarrava as
grades com força. Quando o vento diminuiu e a ponte parou de se
mover, gargalhadas estridentes ecoaram na ravina e eu desviei meu
olhar para o penhasco.
Uma mulher estava do outro lado da ponte, bloqueando nosso
caminho. Ela era alta e esguia, com longos cabelos negros, e usava
tamancos de madeira e um quimono azul e branco que pouco fazia
para esconder seu corpo. Olhos azul-gelo brilharam friamente
enquanto ela nos observava da beira da ravina.
Eu me agachei, minha mão caindo para o punho da minha
espada, enquanto Kamigoroshi chamejava de excitação. A mulher
sorriu.
— O temível matador de demônios Kage. — ela chamou, ainda
sorrindo. — Portador do infame Kamigoroshi. Suas reputações
precedem vocês dois. Permita-me apresentar-me. — Ela fez uma
reverência superficial e zombeteira. — Meu nome é Senhora Kazekira,
bruxa do vento das Montanhas Uivantes, e estava esperando por
vocês.
Uma bruxa do vento. Então, os kamaitachi eram provavelmente
seus familiares. Isso significa que o ataque a Yumeko não foi uma
ocorrência aleatória, mas uma ameaça ou um aviso dirigido a mim.
Dei um passo em direção à bruxa, apertando meus dedos ao
redor do cabo da minha lâmina. — Se você sabe quem eu sou, você
sabe o que vai acontecer se você lutar comigo aqui. — Eu avisei. —
Deixe este lugar, antes que eu abra um caminho através de você.
A bruxa riu. — Bem, isso não é muito educado, Kage-san. —
disse ela, sua voz ecoando sobre o abismo. — Ameaçar uma pessoa
que você acabou de conhecer, e uma mulher. Que rude e
imperdoável. Seu povo não lhe ensinou boas maneiras?
O vento começou a girar ao redor da bruxa, fazendo com que
suas mangas balançassem e seu cabelo caísse atrás dela. Yumeko
engasgou, agarrando as cordas para se equilibrar, enquanto a ponte
balançava perigosamente de um lado para o outro. Eu mantive meus
pés, ajustando meu peso para equilibrar nas pranchas de balanço,
enquanto a ponte estremecia e balançava como um navio no mar.
A bruxa do vento ergueu-se no ar, as vestes balançando
freneticamente no vendaval, e sorriu para nós. — Não, eu seria uma
tola em começar uma luta com o matador de demônios Kage. Não
suporto ver sangue. Mas temo que não posso deixar você irem mais
longe. — Erguendo um braço, ela estalou os dedos, e o vento ao redor
dela aumentou ainda mais. — Kamaitachi, preste atenção às minhas
palavras! Corte as cordas e vamos ver se eles podem voar.
— Yumeko. — Eu rebati, virando-me para a garota. —
Corra! Saia da ponte.
Com um grito de vento, as cordas que seguravam nosso lado da
ponte estalaram. As pranchas de madeira resistiram com o vendaval,
fazendo Yumeko gritar, antes de despencarmos.
Eu tive apenas tempo suficiente para girar e pegar a garota,
agarrando-a pela cintura quando a ponte começou a cair. Peguei uma
das cordas com a outra mão e apertei meu aperto enquanto
balançávamos de volta para o penhasco com o resto da
ponte. Yumeko engasgou, agarrando-se ao meu haori, quando olhei
para cima para ver a parede da ravina vindo direto para nós.
— Espere aí. — Eu rosnei, e girei meu corpo para que a garota
ficasse protegida. Batemos na parede da ravina, felizmente em um
pedaço de arbustos em vez de pedras, a ponte quicando e fazendo
barulho ao nosso lado. O choque tirou o ar dos meus pulmões e quase
arrancou meu braço da órbita, e lutei para manter meu aperto na
garota e na corda.
Cerrando a mandíbula, olhei para cima em direção à borda da
ravina, cerca de nove metros acima da cabeça, e mudei meu peso para
plantar trinta centímetros entre as tábuas da ponte. A tensão em meu
braço diminuiu e eu olhei para a garota.
— Yumeko. — Eu cerrei, e ela olhou para mim com enormes
olhos negros. Uma mão agarrou meu haori, a outra agarrou o
furoshiki em seu peito. — Nós vamos ter que subir até o topo. Você
pode agarrar a corda?
Ela assentiu, um olhar determinado cruzando seu
rosto. Alcançando por cima da minha cabeça, ela agarrou a corda, mas
antes que ela pudesse começar a se levantar, uma risada estridente
ecoou acima e uma rajada de vento balançou as pranchas.
A bruxa do vento flutuou até a beira da ravina, olhando para
nós. — Bem, esta não é uma situação terrível. — Ela zombou. — Kage-
san, se você soltar a garota, provavelmente poderá se livrar desse
pequeno dilema. Claro, ela cairia direto para a morte, mas isso não
incomodaria você, não é? Não o infame matador de demônios. — Ela
riu novamente, quando uma grande doninha marrom se materializou
em seu ombro, nos observando com olhos vermelhos como contas. —
Na verdade, vou fazer um acordo com você, Kage-san. Dê-me o
pergaminho e eu pego meus kamaitachi e vou embora.
Pressionada contra mim, Yumeko ficou rígida e meu próprio
batimento cardíaco acelerou, me fazendo franzir a testa. A bruxa
estava atrás do pergaminho. Talvez ela tenha enviado os demônios ao
templo. — Eu não tenho. — Eu disse a ela.
— Oh, bem, você não é nada divertido, Kage-san. — A bruxa do
vento disse, cruzando os braços. — Que decepcionante. Suponho que
teremos que fazer isso da maneira mais difícil, então. Diga olá ao
Kiba-sama por mim.
A última das cordas se separou. Yumeko deu um grito e
enterrou o rosto no meu haori enquanto a ponte despencava pela
parede do riacho, levando-nos com ela. Eu rolei, dobrando meu
queixo e curvando meus ombros, tentando absorver a maior parte do
impacto com meu corpo. Por alguns segundos, o mundo girou
vertiginosamente ao meu redor, então finalmente parou.
Eu me endireitei e olhei em volta. Tínhamos parado no fundo da
ravina, os destroços da ponte enrolados em volta de nós no mato. Eu
doía, tanto por bater no penhasco quanto pelo escorregão pela parede
do barranco, mas nada foi quebrado e os hematomas iriam sarar. A
garota, deitada ao meu lado com os olhos fechados, era muito mais
preocupante. Se ela estivesse morta, eu teria que encontrar o caminho
para o templo Pena de Aço sozinho.
— Yumeko. — Eu empurrei mechas escuras de cabelo de seu
rosto e vi uma linha fina de sangue escorrendo por sua têmpora. Um
nó frio torceu meu estômago e eu balancei seu braço. — Ei. Levante-
se.
Ela gemeu e abriu um olho. — Estamos mortos?
Uma estranha sensação de alívio me preencheu, dissolvendo o
frio em meu estômago. — Não. — Eu murmurei, lutando para ficar de
pé. — Mas a bruxa do vento está perto. Nós precisamos...
Eu parei, de repente percebendo o que havia do outro lado da
garganta.
— Tatsumi? — Yumeko ficou de pé atrás de mim. — Você a
vê? Onde...
Estendi a mão para trás e agarrei seu braço enquanto
pressionava um dedo em meus lábios. Ela ficou em silêncio, olhando
para mim e depois seguindo meu olhar até que viu o que eu estava
olhando.
Do outro lado do leito do rio, a cerca de quarenta metros de
distância, a boca escancarada de uma caverna se abriu na
escuridão. Ossos estavam espalhados ao redor da entrada, brancos e
brilhantes, e um estranho miasma escuro se enrolava e se contorcia na
entrada.
Yumeko engasgou, então colocou a mão sobre a boca, como se
estivesse se lembrando. Pise suavemente. Cuidado com Kiba-sama.
Uma risada retumbante e uma rajada de vento anunciaram a
chegada da bruxa do vento. Ela pairou acima, cabelo e roupas
chicoteando ao seu redor, — Oh, não, não, não, Kage-san. — Ela
chamou em uma voz estridente. — Onde você pensa que está
indo? Não vim até aqui para ver você fugir como um roedor
assustado. — Ela olhou para a caverna, sorriu e respirou fundo. — Oh,
Kiiiiiiiiiiiiba-sama! — ela gritou, me fazendo estremecer. Sua voz
ecoou pela ravina, ricocheteando nas paredes, e o miasma na frente da
caverna começou a se agitar. — Você está dormindo há muito
tempo! Acorde, acorde! Trouxe alguns amigos para você brincar!
Um rosnado profundo e estrondoso ecoou da caverna, fazendo
Yumeko estremecer. — Isso mesmo, Kiba-sama! — chamou a
bruxa. — Venha para fora! Você deve estar faminto depois de um
sono tão longo! Olha quem eu trouxe para visitar!
Ouviu-se um rugido de tosse e passos pesados fizeram o chão
tremer. Virei-me resignado, mesmo quando Hakaimono deu um
grunhido de alegria excitado, e uma forma peluda gigantesca encheu
a boca da caverna e soltou um berro que sacudiu as paredes da ravina.
— Kiba-sama. — Yumeko murmurou, enquanto a criatura
monstruosa se virava para nos olhar com fome voraz. O urso demônio
de Suimin Mori era duas vezes maior que seus irmãos comuns, com
ombros enormes e patas dianteiras com garras que esmagavam pedras
sob eles. Flechas e cabos de lança se projetavam de sua pele, estalando
e quebrando, e seus olhos brilhavam com fogo vermelho enquanto ele
empinava sobre as patas traseiras, elevando-se sobre nós.
— Yumeko. — Eu disse, sem tirar os olhos do meu oponente
enorme. — Fique atrás. Encontre um lugar para se esconder e não se
mova até que seja seguro.
— Você não vai lutar contra aquela coisa gigante, vai?
— Eu vou ficar bem. — Eu coloquei minha mão no punho da
minha espada, sentindo a excitação e a sede de sangue pulsando em
mim. — Isto é o que eu faço.
Eu puxei Kamigoroshi e senti o poder do demônio aumentar,
uivando enquanto a espada era exposta à luz. Enquanto Yumeko
cambaleava para trás, Kiba-sama atacou com um rugido, cobrindo o
espaço entre nós em dois passos gigantes. Ele investiu e eu pulei para
fora do caminho, sentindo a enorme pata dianteira se chocar contra as
pedras e esmagar a terra abaixo dela. Kiba-sama girou,
surpreendentemente rápido para seu tamanho, e me golpeou
novamente. Eu me esquivei das garras letais e ataquei com minha
espada. A lâmina cortou profundamente a pele peluda do monstro,
mas quase não deixou um arranhão quando saltei para
longe. Hakaimono rosnou de frustração.
Droga, seu pelo é muito grosso. Terei que me aproximar para dar um
golpe mortal.
Com um berro, Kiba-sama se ergueu sobre as patas traseiras,
elevando-se sobre mim. Eu mergulhei para o lado quando o monstro
desabou, tentando me esmagar sob algumas toneladas de músculos,
ossos e carne. Rolando para ficar de pé, eu espalmei a única kunai que
eu fui capaz de manter em minha pessoa e a lancei no urso
demônio. A faca de arremesso voou direto para a testa de Kiba-sama,
mas ricocheteou em seu crânio grosso, fazendo pouco, mas irritando.
O urso atacou novamente com um rugido e eu fiquei tenso para
pular para longe. Mas, à medida que se aproximava, uma rajada de
vento uivou pela ravina e algo me atingiu por trás, cortando uma
linha de fogo nas minhas costas. Eu cambaleei e mal desviei para o
lado enquanto Kiba-sama se chocava contra a parede da ravina,
esmagando pedras e vegetação e deixando um buraco enorme.
A risada da bruxa do vento ecoou acima. — Isso foi quase tudo
para você, Kage-san. — Ela zombou, enquanto eu lhe dei uma olhada
em uma fração de segundo. Vários metros de distância, Kiba-sama
recuou lentamente para fora da parede, balançando a cabeça e
jogando pedras e poeira. A bruxa do vento riu novamente. — Ignore
meus kamaitachi e eles vão te cortar em pedaços. Ignore Kiba-sama e
ele irá devorá-lo em um piscar de olhos. Eu me pergunto como você
vai... ite!
Uma pedra do tamanho de um punho voou pelo ar e atingiu o
lado de sua cabeça. Batendo uma mão na têmpora, a bruxa do vento
olhou furiosamente para o outro lado da ravina, onde Yumeko estava
com uma pedra em uma mão esguia.
— Você fala demais. — A garota disse com raiva enquanto a
bruxa se virava em sua direção. — E sua voz é muito
estridente. Kamaitachi! — ela gritou quando a mulher endureceu de
indignação. — Me escutem! Eu sei que não é isso que vocês
querem. Eu sei que vocês foram manipulados, que ela fez de vocês
familiares contra sua vontade. Ajude-nos e farei o meu melhor para
libertá-los.
— Silêncio, verme. — A bruxa gesticulou bruscamente e um
redemoinho guinchou através da ravina, levantando Yumeko e
jogando-a contra a parede. A garota gritou ao colidir com a ravina,
caiu no chão e desabou fracamente contra as pedras.
Yumeko. Eu cerrei o punho, sabendo que não poderia ir até ela
agora, enquanto o urso monstruoso estava entre nós. A bruxa do
vento fungou com desdém, afastando-se do corpo inerte da garota. —
Não presuma que você entende nossa situação. — disse ela. — Os
kamaitachi são meus e continuarão sendo, independentemente do que
você pense.
Kiba-sama atacou novamente, golpeando uma enorme garra na
minha cabeça enquanto tentava me encurralar contra a ravina. Pulei
para o lado e corri ao longo da parede para escapar do urso
demônio. Mas minhas pernas estavam se movendo estranhamente
agora, uma fraqueza estranha se espalhando por elas, e um tremor
percorreu meu corpo quando eu pousei. Com a boca aberta, Kiba-
sama girou e se lançou. Eu cortei seu focinho, fazendo-o recuar com
um uivo, sangue escorrendo de seu nariz.
— Oh-hohoho, você certamente está resistindo, Kage-san. — A
bruxa do vento riu. — A propósito, se você está se sentindo um pouco
estranho, não se preocupe. Esse é apenas o veneno das garras dos
kamaitachis começando a paralisar você. Você deve estar
completamente incapacitado em alguns minutos. Diga ao Kiba-sama
obrigado por ser uma distração tão adorável para os meus
kamaitachi. Eles nunca teriam chegado perto de outra forma.
Veneno. Droga. Eu podia sentir a dormência em minhas pernas,
tornando difícil me mover, e meus dedos estavam começando a
formigar. Kiba-sama veio em minha direção, sangue e fitas de baba
escorrendo do focinho, olhos ardendo de loucura. Hakaimono
enfureceu-se comigo, lutando contra as barreiras da minha
consciência, exigindo entrada.
Deixe-me entrar, um uivo furioso ecoou no fundo da minha
mente. Você vai morrer de outra forma. Abra sua mente agora!
— Não. — Eu murmurei com os dentes cerrados, e levantei
minha espada. — Ainda não.
Com outro rugido ensurdecedor, Kiba-sama se abateu sobre
mim mais uma vez. Desta vez, eu não saltei para longe, mas tropecei
para trás, esquivando-me das garras e dos dentes que batiam,
atacando de volta quando eu podia. A risada da bruxa do vento
ecoou, e uma rajada de vento cortou minha perna, me fazendo
cambalear. Eu caí para trás, e Kiba-sama imediatamente avançou,
mandíbulas enormes abertas, para me morder ao meio.
Agora, Hakaimono!
Fogo púrpura irrompeu ao longo da lâmina, iluminando os
símbolos esculpidos no aço. Eles brilharam com um branco brilhante
nos olhos do urso, que se encolheu para trás com um bufo de
alarme. O poder me encheu, queimando a fraqueza do meu frágil
corpo humano; com um grunhido, pulei em Kiba-sama, saltando de
uma grossa pata dianteira para pousar entre seus ombros. Lanças e
flechas se projetaram de seu pelo quando eu ergui a espada bem alto e
a enfiei na nuca.
Kiba-sama berrou e se apoiou nas patas traseiras, se debatendo e
balançando a cabeça em um esforço para me jogar fora. Peguei a
ponta de uma lança que se projetava de sua pele e afundei a espada
mais fundo, enquanto o urso demônio rugia e resistia. Eu vi uma
fração de segundo a garota, ainda caída no chão, pouco antes de Kiba-
sama girar e cambalear cegamente em sua direção.
Você não vai tocar nela! Com um empurrão final, a ponta de
Kamigoroshi explodiu na frente da garganta do urso. Kiba-sama deu
um berro estrangulado e tombou para frente, atingindo o solo com um
estrondo que ecoou pela ravina. Seu corpo enorme se contraiu várias
vezes, as garras abrindo sulcos profundos na terra, antes que o grande
demônio urso de Suimin Mori estremecesse e ficasse imóvel.
Eu puxei Kamigoroshi e me levantei, sentindo a alegria selvagem
da espada enquanto ela se deliciava com a luta, a violência e o sangue
derramado. Força e adrenalina corriam em minhas veias, mas, como
sempre, senti as garras fantasmas de Hakaimono cavando em minha
mente, tentando entrar, forçar seu caminho em minha alma. Fechei
minha mente para o demônio mais uma vez, forçando-o a sair da
minha consciência e voltar para a escuridão a que pertencia.
Ao cair da enorme carcaça, minhas pernas cederam, como se os
músculos delas tivessem sido cortados. Eu cambaleei, a lâmina caindo
dos meus dedos dormentes, e desabei ao lado de Kiba-sama, enquanto
aplausos lentos e zombeteiros ecoavam pela ravina.
— Bravo, Kage-san, bravo. — A bruxa do vento flutuou na
minha vista, sorrindo para mim. Deitei de costas, ofegante, minha
mão a apenas um dedo de Kamigoroshi. — Foi uma batalha
verdadeiramente impressionante. Eu entendo agora porque os
demônios temem você.
Droga, não consigo me mover. Tentei me apoiar nos cotovelos, rolar
e pegar minha espada, mas meu corpo parecia feito de pedra e meus
membros se moviam apenas alguns centímetros. A bruxa do vento se
aproximou, puxando uma lâmina curta de suas mangas quando seus
pés tocaram o chão.
— Não leve isso para o lado pessoal, Kage-san. — Ela me disse, e
ergueu a lâmina em uma mão esguia, a ponta em ângulo reto em
direção ao meu coração. Eu tentei me mover mais uma vez, abrindo
minha mente para Hakaimono, mas meus pensamentos estavam
lentos, a presença do demônio uma luz bruxuleante em minha
consciência. — Mas eu vou precisar matar você rapidamente, antes
que o veneno passe. Últimas palavras?
— Quem... te enviou? — Eu cerrei fora.
— Ah, temo que você não saiba disso, Kage-san. — A bruxa do
vento disse, balançando a cabeça. — Não posso trair meu
cliente. O que isso faria à minha reputação? E mesmo se eu te dissesse,
não te ajudaria agora, porque estou prestes a mandar sua alma para
Meido. Ou Jigoku, dependendo de como os deuses se sentem por
você. Bem... — ela continuou, e ergueu a lâmina ainda mais alto. —
Suponho que devamos continuar com isso. Sayonara, caçador de
demônios...
Um borrão de vermelho e branco cruzou minha visão, e Yumeko
bateu na mulher de lado, agarrando-a pela cintura. Ambas caíram no
chão com um grito de indignação da bruxa. Pelo canto dos olhos,
pude ver lampejos de movimento, mantos agitando-se e braços
batendo enquanto as duas mulheres se agarravam.
— Sai de cima de mim, seu verme nojento! — Com uma rajada
de vento, Yumeko foi arremessada para longe, atingindo o chão com
um ofego a vários metros de nós. A bruxa se levantou, furiosamente
escovando as mangas, sua expressão enrolada em uma de ódio. —
Como você ousa me tocar, sua criatura imunda. — ela rosnou. — Você
vai pagar por este ultraje! Você vai morrer gritando por misericórdia
enquanto meus familiares a cortam em pequenos pedaços, começando
pelos tornozelos e deixando sua cabeça por último! Kamaitachi! — ela
gritou, apontando para a garota. — Matem ela! Dividam-na
lentamente. Façam-na sofrer a morte de mil cortes!
Prendi a respiração, esperando o grito do vento, os gritos de dor
de Yumeko quando ela fosse cortada pelas doninhas em forma de
foice. Mas a ravina estava parada; nem uma única lufada de ar agitou
as folhas ao nosso redor, e a bruxa do vento fez uma careta em
confusão.
— Kamaitachi! — ela chamou novamente. — Seus inúteis,
preguiçosos. Vocês não me ouviram?
— Oh, eles ouviram você. — Yumeko se endireitou, uma mão
enrolada em torno de seu estômago, a outra segurando algo ao seu
lado. — Mas parece que a única razão pela qual eles se tornaram seus
familiares foi por causa disso.
Ela ergueu o braço e um pequeno netsuke de marfim, uma joia
projetada para prender a corda de uma bolsa de viagem ao obi,
pendeu de seus dedos cerrados. Esta foi esculpida na forma de uma
doninha, enrolada como se estivesse dormindo. Brilhava à luz do sol e
a bruxa do vento empalideceu ao vê-la.
— Alguém me disse que os kamaitachi sempre vêm em grupos
de três. — Yumeko continuou, respirando com dificuldade. — E eles
são muito protetores um do outro. Você prendeu um para forçar os
outros a se tornarem seus familiares, ameaçando matar seu irmão se
eles não fizessem o que você queria. Não foi?
— Sua pequena ladra! — A bruxa do vento flutuou em sua
direção, embora sua pele estivesse pálida agora, seus olhos
arregalados de medo. — Me devolva isso neste instante. Devolva e eu
vou deixar você viver.
Yumeko balançou a cabeça, um sorriso sombrio brincando em
seus lábios. — Ninguém deve ser forçado a obedecer, nem mesmo um
yokai. — disse ela. — Estou devolvendo o irmão deles, para que
possam fazer suas próprias escolhas.
— Não! — gritou a bruxa, enquanto Yumeko puxava seu
braço. — Pare! Você não sabe o que está fazendo!
Yumeko lançou o netsuke para o alto. Ele navegou em um arco
gracioso, brilhando enquanto pegava o sol até que, com uma rajada de
vento e uma rajada de escuridão no céu, a joia se estilhaçou. Por uma
fração de segundo, eu vi um kamaitachi pairando no ar, parecendo
atordoado, antes de se sacudir e desaparecer em um redemoinho.
O veneno em meu corpo estava finalmente passando. Eu me
ajoelhei e agarrei minha espada, enquanto a bruxa soltou um grito e se
virou para a garota.
— Sua idiota intrometida. — Ela cuspiu, e ergueu o braço,
fazendo com que o vento a açoitasse mais uma vez. Eu cambaleei, mas
minhas pernas tremeram e quase caí de novo. — Você me custou
meus kamaitachi, mas eu não preciso daqueles vermes para matá-
la. Vou fatiar você em pedaços meu... aagh!
Ela deixou cair o braço com uma careta, agarrando o pulso, onde
sua manga ondulada tinha sido cortada em duas. Eu olhei para cima
quando três pequenas formas peludas apareceram na frente de
Yumeko, lâminas curvas brilhando ao sol enquanto encaravam a
bruxa. Seus olhos brilhavam em um vermelho raivoso, seus focinhos
puxados para trás revelando dentes amarelos afiados, e a bruxa se
encolheu ao vê-los.
— Não. — Ela disse, enquanto com um redemoinho de vento, o
yokai desapareceu. — Saiam de perto de mim! Para trás!
Com um grito ensurdecedor, um vendaval desceu sobre ela,
jogando seu cabelo e puxando violentamente suas roupas. A bruxa do
vento gritou quando seu manto foi rasgado, espalhando o tecido no
ar, e centenas de cortes se abriram em seu corpo. Yumeko estremeceu
e se afastou, fechando os olhos, enquanto a bruxa continuava a gritar e
o vento continuava a soprar ao seu redor.
Finalmente, o redemoinho estalou e morreu, a brisa se
transformando em um sussurro fraco. A bruxa do vento, ou o que
restou dela, balançou no lugar por um momento, os olhos arregalados
e cegos, então desabou no chão rochoso.
Eu a observei por um momento, certificando-me de que ela
estava realmente morta, antes de olhar para Yumeko novamente. A
garota estava sentada contra a parede da ravina, um trio de
kamaitachi a seus pés, sentados de cócoras com as lâminas dobradas
para trás, olhando-a com olhos vermelhos solenes. Eu fiquei tenso,
minha mão caindo na minha espada, mas os yokai não pareciam mais
ameaçadores.
Yumeko sorriu, endireitando-se deliberadamente sem olhar para
o corpo da bruxa do vento, caída amassada na terra. — Vocês estão
livres agora. — Ela disse suavemente, e os kamaitachi inclinaram a
cabeça, como se realmente estivessem ouvindo. — Vocês não me
devem nada. Estou feliz que pude ajudar.
Como um só, os yokai abaixaram suas cabeças e se
curvaram. Então, com uivos e rosnados excitados, eles giraram no ar,
o vento e as folhas girando ao redor deles e sumiram.
Capítulo 13
Canção do Kodama
Nos levou o resto da tarde para sair da ravina.
— Tatsumi, pare. — Eu disse, depois de caminharmos vários
metros da caverna de Kiba-sama, deixando o urso demônio e o corpo
da bruxa do vento onde eles haviam caído. Ele fez uma pausa e olhou
para mim com olhos roxos frios, não tendo dito nada desde a luta com
a bruxa e o urso. Eu ignorei o formigamento de medo e gesticulei para
seu haori rasgado, onde uma mancha escura estava começando a se
espalhar abaixo de seus ombros. — Você está sangrando.
Minha voz tremeu um pouco. Houve um leve zumbido em
minhas orelhas e eu senti que poderia perder meu café da manhã se
pensasse muito sobre certas coisas. O encontro com a bruxa do vento,
os kamaitachi e o grande demônio urso pareceu surreal, como se
tivesse acontecido com outra pessoa. Lembro-me da luta em lampejos:
o terror de cair na ravina, o chão tremendo quando Kiba-sama
emergiu da caverna, a impotência de assistir Tatsumi afastar o
urso e os kamaitachi. A raiva da bruxa quando direcionou seus
familiares para atacar o matador de demônios enquanto ele estava
distraído. Eu peguei uma pedra do riacho, com a intenção de dar à
bruxa algo mais em que pensar, e de repente me lembrei de uma voz
da noite anterior, suas palavras finais antes de ele desaparecer.
Kamaitachi sempre vem em grupos de três. A lealdade de um para com
o outro é inquebrável. Lembre-se disso e pergunte-se por que Kazekira tem
apenas dois familiares.
Porque eles não queriam ajudá-la, eu percebi. Os yokai doninha
eram seus familiares porque ela os estava forçando a obedecer. Porque
ela manteve como refém a única coisa que poderia fazê-los parar.
O terceiro kamaitachi.
Pelo menos, eu esperava que fosse o caso. Eu não podia ter
certeza absoluta. Tinha sido uma aposta, mas eu tinha que ajudar de
alguma forma, tanto para libertar as doninhas quanto para salvar
Tatsumi, que teria morrido tentando lutar contra a bruxa e o urso
demônio. Chamar seus familiares foi a única coisa que eu
pensei. Quando a bruxa me bateu na parede e eu fiquei lá, doendo e
tentando não desmaiar, uma vozinha suave e rouca sussurrou em
meu ouvido.
Nosso irmão. Ela o mantém em seu obi. Salve-o e liberte todos nós.
Eu tinha visto uma mecha de pelo marrom desaparecer no ar
quando levantei minha cabeça. Eu também tinha visto a bruxa do
vento parada sobre Tatsumi com uma adaga apontada para o seu
coração, e o terror inundou minhas veias. Não havia tempo para
truques, nenhum tempo para magia de raposa, kitsune-bi ou
ilusões. Meu único pensamento era salvar Tatsumi.
Foi pura sorte que, na luta com a bruxa no chão, minha mão se
fechasse sobre algo pequeno e duro sob seu obi. E que eu fui capaz de
agarrá-lo assim que ela me jogou para longe. O que aconteceu
depois... meu estômago se revirou com a memória. Eu não estava
arrependida pelo que tinha feito; ela teria nos matado se pudesse, e os
kamaitachi agora estavam livres. Mas isso não mudou o fato de que a
bruxa do vento estava morta, dilacerada por seus próprios familiares,
e fui eu quem causou isso.
Tentei tirar isso da minha mente enquanto caminhávamos ao
longo da margem do rio, procurando um local onde pudéssemos sair
da ravina. Conforme a adrenalina passava, várias dores e hematomas
por todo o meu corpo começaram a se manifestar. Eu também notei o
rasgo no haori preto de Tatsumi, e a mancha mais escura se
espalhando por suas costas.
— Tatsumi. — Eu disse novamente, e corri para alcançá-lo. —
Espere. Você está ferido. Devemos cuidar disso antes de irmos mais
longe.
Por um momento, não achei que ele fosse parar; seu rosto estava
em branco, aquela máscara de gelo permanecendo em suas
feições. Mas então ele acenou com a cabeça uma vez e caminhou em
direção ao pequeno riacho que cortava o chão da ravina. Alcançando
dentro de seu haori, ele se ajoelhou e cuidadosamente puxou um
quadrado de papel, revelando algumas pitadas de pó verde dentro.
Observei enquanto ele adicionava várias gotas de água e
misturava em uma pasta familiar. Então ele fez uma pausa, olhando
para a pomada como se acabasse de se dar conta.
— Yumeko. — Sua voz estava hesitante, quase
inaudível. Avancei para ouvir melhor, inclinando-me mais perto e ele
exalou. — Eu não posso... alcançar a ferida sozinho. Você poderia...?
Demorou apenas um segundo para perceber o que ele estava
dizendo. — O-Oh. — Eu gaguejei. — Claro. — Cautelosamente,
peguei a pomada dele, ignorando a forma como seus músculos
ficaram tensos quando meus dedos roçaram os dele. — Você também
tem curativos?
Ele me entregou um rolo de pano fino branco, depois se virou e
sem cerimônia passou os braços pela camisa e haori soltos e encolheu
os ombros para que caíssem em volta da cintura. Felizmente, ele
estava de costas para mim, então não viu meu rosto esquentar como
um bule deixado no braseiro por muito tempo. Os monges do templo
frequentemente treinavam ou meditavam com o peito nu, então eu
estava acostumada a ver a parte superior dos corpos masculinos, mas
eles eram tão familiares que eu nunca pensei em nenhum deles. Kage
Tatsumi era uma história diferente. O sol do fim da tarde caiu sobre os
ombros largos e costas do guerreiro, revelando a pele esticada e os
músculos rígidos e magros.
E cicatrizes. Dezenas delas, cruzando seus ombros e passando
por suas costas. Algumas estavam quase desbotadas, outras eram
mais profundas e muito mais vívidas. Estendi a mão e mal me impedi
de traçar um trio de cicatrizes cortadas verticalmente em seu ombro
direito. Um momento depois, estremeci quando percebi o que eram.
Essas são... marcas de garras.
Eu me sacudi e puxei meu braço. O corte do kamaitachi era um
corte fino e direto do topo de sua omoplata até a parte inferior de suas
costelas. O sangue já havia vazado do corte e descido por sua pele,
manchando as pontas de sua camisa.
Depois de molhar um pedaço de pano no pequeno riacho, hesitei
com uma respiração silenciosa e comecei a limpar o sangue ao redor
do ferimento. Tatsumi caiu para frente com as mãos nos joelhos e a
cabeça baixa. Ele não fez um som ou contraiu um músculo, mesmo
quando eu me movi do sangue para o corte em si, limpando-o antes
de espalhar o unguento verde na ferida o mais suavemente que
pude. Seus músculos estavam tensos, como faixas de aço sob meus
dedos, como se ele esperasse que eu enfiasse algo no corte a qualquer
momento. Ou talvez ele estivesse apenas se preparando para a
dor. Lembrei-me do que ele disse para mim no ryokan, sua confusão
quando eu protestei sobre seu tratamento severo com minha própria
ferida. Quando ele perguntou se eu nunca tinha sido punida por
mostrar fraqueza.
Quando a ferida foi tratada, enrolei bandagens em seu peito e
ombro, estremecendo enquanto as amarrava. — Tudo bem. — Eu
disse, recuando. — Eu acho que isso vai servir.
— Arigatou. — Ele murmurou após um momento de hesitação,
como se ainda estivesse esperando o pior vir. Observei-o levantar a
camisa e o haori e vesti-los sem fazer nenhuma careta, e me perguntei
novamente sobre as cicatrizes em suas costas e ombros. A bruxa o
chamou de matador de demônios Kage. Por que ele caçava e matava
criaturas tão perigosas?
— Tatsumi... — arrisquei, sabendo dos perigos de cutucar este
humano nervoso e perigoso, mas incapaz de me ajudar. — Você...
lutou com muitos demônios?
— Sim.
— É por vingança? — Pensei no oni, massacrando casualmente
um templo de monges, deixando morte e destruição em seu rastro, e
meu sangue ferveu. — Você os caça por vingança? Um demônio
matou sua família?
— Não.
— Então por que...?
— Yumeko. — Sua voz não era áspera, zangada ou ameaçadora,
mas a desolação causou um arrepio na minha espinha. Ele se virou
para me encarar de joelhos, olhos roxos intensos.
Depois de colocar a espada no lado esquerdo, ele colocou as
duas mãos nas coxas e abaixou a cabeça, enquanto eu me ajoelhava
em um espanto silencioso.
— Me perdoe. — Sua voz era solene, completamente séria, como
se estivesse se dirigindo a um daimyo, não a uma humilde
camponesa. — Você salvou minha vida, mas não posso responder às
suas perguntas. Eu jurei segredo pelo meu clã, e eles nos puniriam se
eu desobedecesse às suas ordens. Por favor, escolha outra maneira de
pagar minha dívida.
— Tatsumi-san... — A culpa cintilou; eu certamente não
esperava por isso. — Eu... você não me deve nada. — Eu disse,
embora ele permanecesse imóvel com o olhar no chão. — Eu estava
tentando salvar nós dois, afinal.
— A bruxa teria me matado. — A voz de Tatsumi era plana; ele
ainda não havia se movido ou levantado a cabeça. — O código do Clã
das Sombras exige compensação. Uma vida por uma vida. Estou em
dívida com você até que possa retribuir.
Eu concordei. — Tudo bem. — Eu disse em uma voz baixa,
quando a seriedade da declaração me ocorreu. Mestre Isao havia me
ensinado sobre os costumes do samurai, como seu código era tudo
para eles, todo o seu estilo de vida. Dispensar casualmente ou ignorar
uma dívida era um grande insulto à honra deles, um crime
imperdoável que poderia terminar na morte do ofensor ou com o
guerreiro desgraçado tirando a própria vida. — Então eu vou cobrar
essa promessa, Tatsumi. — Eu disse. — Até que você possa me salvar
em troca.
Ele abaixou a cabeça em uma reverência silenciosa, e
continuamos através da ravina sem falar.

Mais tarde naquela noite, depois que finalmente saímos da


ravina, começou a chover. Eu fiz uma careta, apertando minha
mandíbula enquanto lençóis de água nos empapavam através dos
galhos, encharcando meu cabelo e escorrendo pelas minhas
roupas. Tatsumi continuou caminhando, aparentemente indiferente
ao frio e à umidade. Eu me vi desejando meu chapéu cônico e meu
mino, uma capa de chuva feita de palha bem entrelaçada, que eu tive
que deixar para trás no templo.
A chuva continuou, às vezes diminuindo para uma garoa fria,
mas nunca parando completamente. Quando a luz começou a
diminuir, nos abrigamos embaixo de uma velha ponte de pedra em
arco. Um par de carvalhos crescia perto da ponte e várias raízes
retorcidas serpenteavam ao longo do solo sob o arco. Empoleirada em
uma raiz, observei enquanto Tatsumi cavava um buraco, enchia-o de
galhos e de alguma forma acendia um pequeno fogo. Ele estalou
alegremente e afastou um pouco do frio, e eu gemi quando o calor
atingiu minha pele e começou a descongelar meus dedos úmidos.
— Aqui. — Tatsumi disse calmamente, e deixou cair uma única
bola de arroz em minhas mãos. Murmurando meu agradecimento, eu
o observei caminhar até o outro lado da fogueira e sentar-se para olhar
para as chamas.
Houve um brilho na escuridão e os cabelos da minha nuca se
arrepiaram. Olhando para cima, vi uma pequena figura verde pálida,
do tamanho do meu polegar, me observando do topo de uma raiz a
alguns metros de distância. Ele usava um gorro redondo de cogumelo
em sua cabeça, e seus olhos eram como covas negras sob a aba.
Tatsumi viu o que eu estava olhando e levou a mão à espada. —
Tatsumi, não. — Eu avisei, estendendo a mão. — É um kodama, um
kami das árvores. Não vai nos machucar. — Ele relaxou, tirando a
mão do punho, e eu ofereci um sorriso ao kodama.
— Olá. — Eu cumprimentei suavemente, enquanto o minúsculo
kami inclinava a cabeça, me observando. — Por favor, com licença,
estamos apenas de passagem. Não estamos perturbando sua árvore,
espero?
O kodama não piscou. Ele me observou por mais um momento,
então avançou e pulou em uma pedra, olhando para mim com olhos
negros sem pupilas. Um som fraco se elevou no ar, como o farfalhar
de folhas agitadas pelo vento. Eu concordei.
— Compreendo. Vamos ficar no caminho e teremos cuidado
para não pisar em nenhuma planta ou árvore nova. Você tem minha
promessa.
— Você pode falar com os kami. — O tom de Tatsumi não
questionou, embora soasse levemente surpreso. — Como?
— Os monges me ensinaram. — Respondi. Não toda a verdade,
é claro; eu era capaz de ver o mundo espiritual, kami, yokai, yurei e o
resto do não natural, desde que me lembrava. Uma das vantagens, ou
maldições, de ser meio kitsune. Embora os monges tenham me
ensinado as diferenças entre a miríade de espíritos em Iwagoto. Havia
os nove Kami maiores, as divindades nomeadas que eram adoradas
em Iwagoto: Jinkei, Deus da Misericórdia, Doroshin, Deus das
Estradas e assim por diante. Os kami menores eram deuses menores,
espíritos da natureza e dos elementos; eles existiam em todos os
lugares, na terra, no céu e em todos os lugares
intermediários. Ninguém sabia quantos kami existiam no
mundo; quando as pessoas falavam deles como um todo, era comum
dizer “os oito milhões de deuses” e deixar por isso mesmo.
Mas além dos kami, muitas outras criaturas estranhas e mágicas
vagavam pela terra. Yokai eram criaturas sobrenaturais; às vezes
chamados de monstros ou bakemono, eles podiam mudar suas formas
ou tinham alguma quantidade de poder mágico, tanuki, kamaitachi e,
claro, kitsune sendo os exemplos principais. Yurei descrevia os muitos
fantasmas inquietos que vagavam pelo reino mortal, zashiki warashi,
onryo, ubume e muito mais. Havia até algumas plantas monstruosas
que atacavam humanos e um punhado de criaturas que não se
encaixavam em nenhuma categoria, então a lista de deuses, fantasmas
e monstros era interminável. Mas, embora alguns yokai fossem
perigosos e alguns yurei tivessem más intenções, todos eram
residentes de Ningen-kai, o reino mortal, e deviam ser respeitados.
Ao contrário dos demônios, os amanjaku e terríveis oni como
Yaburama. Eles vieram de Jigoku, o reino do mal e da corrupção, e
não pertenciam ao mundo mortal.
— Mestre Isao e os outros reverenciavam os kami. —
Continuei. — Eles se esforçaram para existir em harmonia com todas
as formas de vida. Os mais espirituais entre eles podiam ver e até falar
com os kami de vez em quando. Eu meio que tinha talento para isso,
suponho.
— É por isso que os kamaitachi ouviram você?
— Bem, na verdade não. Eu os escutei.
O kodama estava acompanhado por um amigo. Então, mais três
apareceram entre as raízes das árvores e outro se materializou perto
da borda do fogo. Eu olhei para cima para ver dezenas de minúsculos
kami empoleirados em rochas e galhos, nos observando através da
chuva. Um som se elevou no ar, como centenas de folhas secas
esvoaçando ao mesmo tempo.
Tatsumi, observando o número crescente de kodama ao nosso
redor, não se moveu, mas sua postura permaneceu tensa. Eu podia
sentir que ele estava tentando muito não pegar sua espada. — O que
eles querem? — ele perguntou.
— Um... — Fechei meus olhos brevemente, tentando me
concentrar em apenas uma voz. Kodama eram difíceis de entender
nos melhores momentos. — Calma. — Eu disse, levantando a mão. —
Por favor, um de cada vez. Não consigo ouvir se todos falam ao
mesmo tempo, é como tentar pegar a queda de uma cachoeira.
O som de galhos farfalhando parou. Os kodama na rocha deram
um passo à frente, tagarelando com uma voz suave que parecia uma
folha saltando no chão.
— Eles querem saber se você é o portador de Kamigoroshi. — Eu
disse. — E, se você foi aquele que matou Kiba-sama hoje.
Tatsumi piscou, então olhou para as agora dezenas de kodama,
nos observando das árvores.
— Eu não tive escolha. — Sua voz era calma, nem orgulhosa nem
arrependida. — Eu teria evitado aquela luta se pudesse. Mas Kiba-
sama teria matado nós dois.
Os kodama começaram a tagarelar novamente, como milhares
de folhas sendo agitadas pelo vento. O que era estranho, já que não
havia vento. Finalmente, o barulho diminuiu e um trio de kodama se
aproximou do fogo. O kami no centro carregava uma única folha
como uma bandeira, o caule erguido, as pontas balançando enquanto
ele andava. Embora seus rostos fossem pequenos e indistintos, achei
que era um caso muito solene. Os espíritos da árvore marcharam até
Tatsumi e se curvaram, e então o kodama no centro deu um passo à
frente, levantando a folha sobre sua cabeça, em direção ao matador de
demônios.
— O que é isso? — ele perguntou cautelosamente.
— Um presente. — Eu disse espantada, ouvindo enquanto a
conversa do kodama continuava. — Parece que, há muito tempo,
Kiba-sama se perdeu em sua fome e ganância... — traduzi, enquanto
suas vozes fluíam sobre mim, uma leve cócega em meus ouvidos. — E
isso o corrompeu até que ele não era mais um urso, mas algo não
natural e contaminado. Mesmo enquanto ele dormia, o miasma de
pavor que ele produzia podia ser sentido por todas as coisas vivas. Os
pássaros nunca cantavam na floresta de Kiba-sama, os animais
estavam constantemente com medo e se escondendo, e os humanos
raramente se aventuravam na floresta. O medo estava sufocando a
terra, mas agora que você o colocou para descansar, ela pode florescer
novamente.
— Essa folha significa que você é um amigo da floresta. — Eu
continuei, enquanto Tatsumi se abaixava, pegava cuidadosamente a
folha pelo caule e a segurava em seu rosto. Ela brilhou fracamente na
escuridão, pulsando com uma luz verde suave. — Se você precisar da
ajuda dos kamis, sussurre seu pedido em voz alta e solte-a ao
vento. Ela levará sua mensagem a qualquer kodama próximo, que o
ajudará de todas as maneiras que puder.
Seus olhos escureceram e ele balançou a cabeça. — Eu não posso
aceitar isso. — Ele murmurou, abaixando o braço. As vozes do
kodama sussurraram acima, ecoando minha própria pergunta.
— Por quê?
— Eu mato demônios. É o que eu faço. Eu não matei o urso por
misericórdia, ou bondade, ou qualquer coisa além de
sobrevivência. Se Kiba-sama não tivesse nos atacado, eu teria ficado
contente em deixá-lo lá.
— Mesmo assim. — eu disse após um momento de ouvir as
vozes do kodama. — Eles querem que você tenha. Você prestou um
serviço à floresta hoje, e os kami sempre pagam suas dívidas. —
Quando ele ainda hesitou, acrescentei, embora os kodama não o
dissessem: — Você realmente não deveria recusar um presente dos
kami, Tatsumi-san. Eles sempre podem pagar uma dívida, mas nunca
esquecem um insulto.
Ele assentiu gravemente; isso pelo menos fazia sentido para
ele. — Arigatou gozimasu. — disse ele ao kodama mais próximo,
baixando a cabeça em uma reverência. — Não sou digno de tal
presente, mas vou aceitá-lo.
O minúsculo kami devolveu o arco, endireitou-se e saiu
flutuando, como uma folha levantada e carregada pelo vento. O resto
dos kodama desapareceram nas árvores, até que ficamos apenas eu e
Tatsumi mais uma vez.
Ele olhou para a folha brilhante, observando-a tremular na
escuridão, antes de desaparecer na bolsa embaixo de seu obi. Mas
suas sobrancelhas estavam franzidas levemente, e eu inclinei minha
cabeça para ele. — Há algo errado, Tatsumi-san?
Ele balançou sua cabeça. — Não. Mas... a folha deveria ter ido
para você. — Ele disse, finalmente encontrando meu olhar. — Foi você
quem falou com os kamaitachi. Você descobriu como libertá-los para
que se voltassem contra a bruxa. Se você não tivesse feito isso, nós
dois teríamos morrido.
— A recompensa não foi por matar a bruxa. — Eu retornei
gentilmente. — Foi por tirar Kiba-sama de sua miséria e devolver a
floresta ao seu estado natural. Os kodama não se importam com as
vidas humanas individuais tanto quanto desejam que a floresta seja
saudável. Foi você quem matou o demônio, portanto, o favor deles vai
para você.
Tatsumi franziu a testa. — Eu matei dezenas de demônios e
yokai. — Ele murmurou. — Talvez alguns kamis também. Até hoje...
eu não sabia que se podia falar ou raciocinar com yokai.
— Nem todos os yokai são maus. — Eu disse baixinho, surpresa
por sentir uma pequena centelha de dor. — Eles fazem parte da
ordem natural, assim como os kami. Às vezes, você não sabe o que
eles querem até falar com eles.
Ele não disse nada sobre isso por vários segundos, olhando para
o fogo como se estivesse perdido em pensamentos. Eu joguei alguns
galhos nas chamas e observei o fogo consumi-los, e me perguntei o
que teria acontecido se a bruxa do vento tivesse me exposto. Tatsumi
estaria sentado aqui comigo agora? O fato de eu ter salvado sua vida
teria algum impacto na revelação de que eu era kitsune? Ou ele
pegaria sua terrível espada brilhante e tentaria cortar minha cabeça?
Eu matei dezenas de demônios e yokai, ele acabou de me dizer. Isso
significava que ele havia matado kitsune também? De acordo com os
monges, meus parentes de sangue puro eram trapaceiros e
oportunistas, mas houve alguns casos em que eram realmente
perigosos. O clã de Tatsumi já o havia enviado para matar uma
raposa, e se eles tivessem, ele pensava que todos os kitsune eram
criaturas selvagens e traiçoeiras que deveriam ser abatidas?
— Há algo que você deveria saber sobre mim. — Tatsumi disse,
assustando-me de meus pensamentos. Eu olhei para cima para
encontrá-lo ainda pensando nas chamas, sua expressão pensativa. —
Algo que você deve decidir por si mesma, antes de irmos mais longe.
Eu me endireitei, surpresa por ele estar oferecendo informações
voluntariamente. Em todas as nossas viagens, Tatsumi se esquivou de
quaisquer perguntas sobre si mesmo, sua família ou seu clã. Depois de
sua confissão torturada hoje cedo, eu prometi a mim mesma que não
iria pressioná-lo mais, que seus segredos eram seus. Afinal, eu
também tinha meu quinhão de segredos.
— Você pode me dizer. — Eu disse. — Não vai me assustar, eu
prometo. Bem, a menos que você seja realmente um yurei que tem se
disfarçado de humano todo esse tempo. Oh, mas se fosse esse o caso,
você não saberia que é um fantasma, saberia?
Ele continuou a observar o fogo. Senti que ele ainda estava
lutando consigo mesmo, debatendo-se se devia ou não dizer alguma
coisa, antes de abaixar a cabeça com um suspiro.
— Há... um preço bastante alto pela minha cabeça. — Admitiu
Tatsumi finalmente. — Não dos magistrados, clãs ou qualquer
organização humana. Dos demônios e yokai. Do mundo
espiritual. Eles me querem morto. Ou, tecnicamente, eles querem o
portador de Kamigoroshi morto.
— Por quê?
— Porque Kamigoroshi foi criada para matar demônios. —
Tatsumi respondeu. — Esse é todo o propósito de sua existência. E
não apenas demônios, também funciona em yokai, espíritos e até
mesmo kami. Criaturas que não podem ser mortas com uma lâmina
normal.
— Oh. — Eu disse. Eu sabia que Kamigoroshi não era uma
espada normal, mas não sabia que todo o demônio e o mundo
espiritual estavam cientes dela e de seu portador. — Então, você está
dizendo que se um fantasma atravessasse a parede e tentasse agarrá-
lo, você poderia matá-lo?
— Sim.
— E quanto os yokai bola de fogo? Eles não têm
corpos. Kamigoroshi pode matá-los também?
— Eu matei vários.
— Oni?
— Sim, Yumeko. — Tatsumi acenou com a cabeça. — Mesmo um
oni, se não me matar primeiro. Mas esse não é o ponto que eu queria
dizer. Dentro da lâmina... está o espírito de um demônio preso. Seu
nome é Hakaimono, e ele é velho, poderoso e muito zangado. Quem
quer que empunha Kamigoroshi está constantemente em perigo de ter
sua alma possuída.
Eu respirei lentamente, tentando processar o que ele me
disse. Ele carregava um demônio em sua lâmina; era por isso que
apenas olhar para a espada já fazia minha pele arrepiar. — O que
acontece se sua alma for possuída? — Eu perguntei em voz
baixa. Tatsumi me deu um olhar frio.
— O que você acha?
Agora fui eu quem olhou para o fogo, vendo-o estalar e
ondular. Por um momento, achei isso tristemente irônico; isso foi o
máximo que eu já o ouvi falar, e era sobre algo que eu realmente
poderia ficar sem ouvir. — Por que você está me dizendo isso agora?
— Você salvou minha vida. — disse Tatsumi. — Quero que você
entenda o que realmente significa ficar comigo. — Ele segurou a
lâmina embainhada contra a luz. — Kamigoroshi é uma espada
amaldiçoada, Yumeko. Seu portador também é
amaldiçoado. Demônios e yokai vão constantemente me procurar
para me destruir, o que significa que eles vão tentar matar você
também. E eu... eu não sou alguém em quem você deve confiar. Na
verdade, seria melhor se eu nunca tivesse feito essa promessa.
Eu olhei para cima rapidamente. — O que você está tentando
dizer, Tatsumi?
Ele fez uma pausa. Meu coração batia forte no meu peito e meu
estômago dava um nó enquanto eu o observava. A luz do fogo
dançou em seus olhos e cintilou em seu rosto, e sua expressão parecia
estranhamente dividida. — Estar perto de mim sempre será perigoso.
— Ele finalmente disse. — Eu farei o meu melhor para protegê-la,
como prometi, mas inimigos de todos os tipos virão atrás de
nós. Alguns podem ser muito poderosos. Todos vão tentar me
matar. E existe o perigo constante de Hakaimono. Quero que você
esteja totalmente preparada para o que isso significa.
— Tatsumi-san. — Hesitei, sabendo que tinha que escolher
minhas palavras com cuidado. Para não dar a ele qualquer indicação
de que eu tinha a oração do dragão. Aquilo que os demônios, bruxas e
yokai realmente queriam. — Eu tenho que encontrar Mestre Jiro. —
Eu disse a ele. — Eu devo chegar ao templo Pena de Aço, para que
eles saibam o que aconteceu com Mestre Isao e os outros. Tenho um
dever próprio, mas mais do que isso... foi o último pedido de Mestre
Isao. Prometi a ele que encontraria o templo e avisaria a todos. Só
espero que os demônios não encontrem o templo antes de mim.
Seus ombros caíram; o conceito de dever era muito familiar para
um guerreiro. E Tatsumi, tão frio, endurecido e perigoso como era,
não parecia o tipo de abandonar uma promessa. — Eu também fiz
uma promessa. — Eu disse. — Eu estou indo para o templo, Tatsumi-
san, com ou sem você. Você é bem-vindo para me acompanhar. Eu
gostaria de ter uma companhia, e não tenho medo. Mas você não
precisa ficar tão sombrio com isso.
Ele piscou e olhou para mim. — Sombrio?
Aparentemente, ninguém o acusou de ser sombrio antes,
também. — Acho que nunca vi você sorrir. — disse eu. — Mestre Isao
diria que você parece um macaco que acidentalmente deixou cair seu
último caqui em um lago. — Essa declaração trouxe uma carranca
confusa e eu sorri. — Eu confio em você, Tatsumi. Acho que você é
muito forte para permitir que um demônio o possua. E se você está
preocupado com monstros ou yokai vindo atrás de nós, não se
preocupe. Não sou completamente indefesa. Eu certamente
surpreendi a bruxa do vento hoje.
— Você fez. — O fantasma de um sorriso cruzou seu rosto. —
Seu Mestre Isao costumava comparar pessoas a macacos?
— Normalmente não. Principalmente era só eu.
Ele realmente riu, e isso enviou uma vibração por minhas
entranhas. Embora ele ficasse sério quase imediatamente. — Tudo
bem. — disse ele. — Então, continuamos juntos. Enquanto eu puder te
proteger. Até que eu pague minha dívida.
Os kodama cuidaram de nós a noite toda.

Capítulo 14
Cuidado com os cães vadios
— Tatsumi, escute. — Yumeko disse na manhã seguinte. — Você
pode ouvir os pássaros de novo.
Eu olhei para ela. Ela estava caminhando ao meu lado pela trilha
com a cabeça inclinada para cima, olhando para os galhos. Acima, o
sol se inclinava através das folhas, manchando o chão da floresta, e
várias pequenas criaturas emplumadas voavam para frente e para trás
acima de nós, cantando. Eu não tinha notado até que ela apontou, mas
a floresta parecia um pouco mais clara hoje, menos opressiva. Acho
que matar Kiba-sama ajudou a floresta, assim como os kodama
disseram.
Meu olhar permaneceu em Yumeko. Um sorriso enfeitava seus
lábios enquanto ela seguia os movimentos dos pássaros, o sol
brilhando em seu cabelo preto e deslizando sobre sua pele. Esta
manhã, ela havia deixado uma pequena porção de arroz na base de
um dos carvalhos, um presente para os kodama. Embora sob o sol
forte, era difícil imaginar que na noite anterior, ele estava cheio de
kami.
Eu me sacudi. A noite anterior foi surreal de várias maneiras. Eu
ainda não conseguia acreditar que havia revelado tanto sobre mim e
sobre a espada. Os Kage não ficariam satisfeitos por eu ter contado a
ela sobre Hakaimono, mas se fôssemos viajar juntos, pelo menos agora
ela estava avisada. Ela certamente me surpreendeu ontem, tanto ao
salvar minha vida quanto ao falar com os kami em meu nome. Eu
nunca pensei que estaria em dívida com uma camponesa sem
treinamento de guerreira, mas certamente havia mais nela do que eu
pensava. Eu estava... um pouco aliviado que a verdade sobre
Kamigoroshi não a tivesse assustado.
Bem no fundo, eu podia sentir a diversão fria de
Hakaimono. Sim, parecia sussurrar. Mantenha-a por perto. Diga a ela que
não há nada a temer, que você será capaz de protegê-la. Isso tornará o
momento em que você a derrubar ainda mais doce.
Gelado, eu cortei a conexão e senti o demônio desaparecer,
embora o eco de sua risada ondulasse por mim, acentuando meu
erro. Eu falei sobre demônios e yokai e as coisas que me queriam
morto, mas na verdade, o maior perigo para Yumeko estava bem ao
lado dela.
Depois de algumas horas, deixamos a floresta e seguimos o rio
mais uma vez, que serpenteava preguiçosamente por um vale, rumo
ao norte em direção à capital. Pelas minhas estimativas, estávamos a
um ou dois dias da fronteira, o que seria um problema. Eu perdi meus
documentos de viagem quando meu cavalo fugiu dos amanjaku, e não
havia como adquirir mais, legalmente ou não. Ninguém se importava
com a classe camponesa, então Yumeko ficaria bem, mas um samurai
não autorizado vagando pelo território de outro clã era motivo para
alarme. Sem os documentos adequados, se passássemos pelo posto de
controle entre territórios, provavelmente seria detido por um período
indefinido de tempo enquanto eles decidiam o que fazer comigo. Já
que essa opção estava fora de questão, eu teria que encontrar um meio
de contornar, já que me esgueirar pelo posto de controle com Yumeko
seria muito arriscado.
Uma vibração azul chamou minha atenção, vindo de uma
estação intermediária sozinha na beira da trilha. Os pequenos
estabelecimentos de madeira eram bastante comuns nas estradas entre
as cidades, lugares onde os viajantes podiam parar e comprar uma
refeição quente ou mesmo uma cama antes de seguirem para seu
destino. Cortinas azuis estavam colocadas na entrada e uma estátua
de tanuki em miniatura segurando uma jarra de saquê empoleirada na
janela, dando as boas-vindas aos clientes.
Yumeko parou no meio da estrada, respirando
profundamente. — O que é este lugar? — ela imaginou. — O cheiro é
maravilhoso.
— Só uma parada para descansar. — Eu disse a ela. — Você
pode comprar uma refeição aqui, se tiver a moeda. Provavelmente
estamos a alguns quilômetros de uma cidade... — Parei quando ela me
lançou um olhar esperançoso com os olhos arregalados e suspirou. —
Acho que você está com fome de novo.
— Eu dei meu arroz para o kodama esta manhã. — Ela
respondeu, parecendo queixosa. — Tudo que comi hoje foi uma
ameixa.
Pegando minha bolsa de dinheiro, silenciosamente entreguei a
ela alguns kaeru de cobre, e ela sorriu para mim antes de correr para a
janela de descanso. Ela voltou com duas tigelas de macarrão de soba
fumegante, e levamos nossa comida para comer ao redor da lateral do
prédio. Bancos baixos de madeira alinhados na parede, espaçados
alguns metros um do outro, mas nem todos eles estavam vazios.
Um viajante solitário estava sentado em um banco alguns
assentos abaixo, uma garrafa de saquê na superfície de madeira e uma
xícara na mão. Ele era talvez alguns anos mais velho do que eu, usava
um colete e calças esfarrapadas, e seu cabelo castanho-avermelhado
estava amarrado para trás, embora ainda conseguisse parecer
despenteado. Uma única lâmina curta estava enfiada em seu obi, e um
grande arco de madeira de ônix estava no banco ao lado dele. Ele
pegou meu olhar e sorriu, levantando a xícara de saquê em uma
saudação zombeteira, antes de despejar o conteúdo em sua boca.
Eu o ignorei, tendo visto sua espécie muitas vezes antes. Um
ronin, um dos samurais sem mestre que, por vergonha, desonra ou
morte de seu senhor, foi despojado de todas as riquezas e títulos e
vagava pelo país em desgraça. Alguns encontravam novos senhores
para servir, mas muitos aceitavam todos os empregos que podiam,
oferecendo-se como guarda-costas ou pessoal contratado, enquanto
outros se voltavam para o banditismo e o assassinato. Eles eram
considerados rudes e incivilizados, tendo abandonado o código do
Bushido e tudo o que uma vez representaram, e os samurai os
desprezavam. Porque eram um lembrete constante do que poderia
acontecer com qualquer um deles, a qualquer momento.
Eu sentei na beirada do assento enquanto Yumeko se sentava ao
meu lado, já absorta em sua comida. Deliberadamente, não olhei na
direção de ronin, embora pudesse sentir seu olhar sobre nós enquanto
ele tomava outro gole de saquê, desta vez bebendo direto da
garrafa. Em minhas viagens, eu havia encontrado dois tipos principais
de encrenqueiros, o tipo que se ofende por ser notado e o tipo que se
ofende por ser ignorado. Claro, havia também aqueles que estavam
apenas procurando encrenca e eram impossíveis de evitar. Eu
esperava que esse ronin não fosse desse tipo.
— Oi. — Veio uma voz zombeteira do outro lado dos bancos,
acabando com minhas esperanças. O ronin estava observando
Yumeko, um sorriso largo no rosto. — Eu vi aquele olhar. Você não
sabe que é rude ficar olhando, mocinha?
Yumeko piscou e ergueu os olhos de sua tigela, um bocado de
soba pendurado em seus lábios. Ela engoliu rapidamente. — Sinto
muito, não estava olhando para você. — disse ela. — A menos que
você esteja falando sobre o macarrão. E tenho quase certeza de que o
macarrão não liga.
— Ignore-o. — disse baixinho, concentrando-me na minha
própria comida. — Ele está tentando atrair você para uma conversa.
— Eu ouvi isso. — Afirmou o ronin, sentando-se ereto no
banco. — E isso foi muito rude. Se eu ainda fosse um samurai, talvez
tivesse que exigir satisfação de sua amiga tranquila. — Ele se
levantou, e eu desejei ainda ter as facas de arremesso de kunai
escondidas em minhas braçadeiras. Ainda assim, se ele fizesse
qualquer movimento ameaçador, estaria morto antes de saber o que
estava acontecendo.
Hakaimono se mexeu, sentindo problemas, e eu empurrei a
presença do demônio para baixo.
Jogando o arco sobre os ombros, o ronin caminhou para frente,
aquele sorriso desafiador ainda vincando seu rosto. — Felizmente
para você... — ele continuou. — Sou um cachorro ronin imundo, sem
nenhuma honra sobrando em seu nome. Não quero arriscar sujar a
sua por ter uma conversa civilizada comigo, certo?
Yumeko inclinou a cabeça, intrigada e sem medo. — O que é um
ronin?
As sobrancelhas do outro se ergueram. Claramente, não era isso
que ele esperava. — Ah bem. Eles são... Você realmente não sabe o
que é um ronin?
Yumeko balançou a cabeça. — Vivi em um templo toda a minha
vida. — explicou ela. — Eu não sei muito sobre o mundo exterior, mas
sinto muito se o ofendi. Se você quiser, por favor, me diga o que é um
ronin, para que eu não insulte ninguém no futuro.
Por um momento, o ronin apenas olhou para ela. Finalmente, ele
riu e balançou a cabeça. — Desculpe, minha senhora. — Ele declarou,
e deu uma reverência exagerada e zombeteira. — Como eu disse
antes, sou um ronin. Somos bárbaros sujos e grosseiros que
esqueceram nossas maneiras junto com nossa honra, então você vai
ter que me perdoar se eu estiver um pouco enferrujado nas graças
sociais. — Ele parecia orgulhoso desse fato quando se endireitou
novamente, sorrindo. — Vamos ver se consigo me lembrar de como
ser educado. Meu nome é Hino Okame. E com quem tenho a honra de
conversar nesta bela tarde?
— Yumeko. — A garota respondeu. — E eu não sou uma
senhora, apenas uma camponesa das montanhas. Então, também
estou um pouco enferrujada em termos sociais.
— Oh? — Sem pretensão, o ronin sentou-se ao lado dela,
fazendo-me colocar a mão no punho da espada. Nem o ronin nem
Yumeko pareceram notar. — Então, você é das montanhas, hein? O
que você está fazendo aqui?
— Viajando. Tatsumi e eu estamos a caminho da capital.
— Já esteve na cidade antes?
— Não. — Yumeko balançou a cabeça. — Nunca. O mundo
exterior até agora é... estranho. Mas emocionante. — Ela sorriu e olhou
para a estrada, onde ela se estendia em direção às montanhas
distantes. — Estou aprendendo muito. Mal posso esperar para ver o
que há na próxima curva.
— Hã. — O ronin bufou. — Bem, temo que você ficará
desapontada com o tempo, Yumeko-san. O mundo está cheio de
bandidos, assassinos, mentirosos e ladrões. Você não pode confiar em
ninguém. Principalmente num ronin. Já viu cães selvagens antes? —
Seu sorriso voltou, desafiador. — Se eles acharem que você tem
comida, eles vão te seguir por um tempo, mas tente acariciá-los e eles
vão direto para sua garganta.
Eu não tinha certeza de que Yumeko, com sua educação
protegida, entenderia o que o ronin estava sugerindo, mas ela abaixou
sua tigela e olhou o estranho nos olhos. — E, no entanto... — disse ela.
— Ouvi histórias de cães selvagens que defenderiam um estranho na
estrada até o último suspiro, simplesmente porque essa pessoa jogou
uma migalha em vez de uma pedra.
O ronin sorriu. — Você tem uma maneira estranha de pensar,
Yumeko-san. — Ele disse, balançando a cabeça. — Aposto que seu
amigo taciturno não pensa o mesmo. — Seu olhar deslizou para mim,
estreitando-se. Eu o vi pegar minhas roupas e minha espada, e um
brilho de reconhecimento percorreu seus olhos. — Você está um
pouco longe de casa, não é, Kage? — ele perguntou, sua voz
suspeita. — O que você está fazendo aqui no território do Clã da
Terra?
— Cuidando dos meus próprios negócios.
— Oho, misterioso. — O ronin riu e se virou para Yumeko. —
Você vai querer ter cuidado com qualquer membro do Clã das
Sombras, senhora Yumeko. Diz-se que um Kage nunca mente, mas
também nunca lhe dizem toda a verdade.
— Isso parece muito difícil, Okame-san. Como você pode mentir
e dizer a verdade ao mesmo tempo?
— Confie em mim, eles administram isso.
Larguei minha tigela e fiquei de pé, de frente para o ronin, que
observava com cautela do outro lado da garota. — Eu acho que é hora
de você ir embora. — Eu disse calmamente.
— Sim, parece que perdi as boas-vindas. — O ronin riu e se
levantou do banco. — Demorou mais do que eu pensava, no entanto.
— Ele balançou o arco no ombro e ergueu a mão para a garota. —
Sayonara, Yumeko-san. Talvez eu te veja na estrada algum dia.
— Okame-san. — Yumeko disse, e ergueu sua mão, onde algo
brilhava entre seus dedos. — Aqui.
Perplexo, o ronin estendeu a mão e ela deixou cair um único
kaeru de cobre em sua palma. Franzindo a testa, o ronin olhou da
moeda em sua mão para a garota. — O que é isso? — ele perguntou.
Yumeko sorriu e pegou sua tigela. — Uma migalha.
O ronin balançou a cabeça. — Você é uma garota estranha. — Ele
murmurou, embora a moeda tivesse desaparecido quase antes de ele
terminar a frase. — Mas, inferno, eu não vou discutir com moedas
grátis. Boa sorte em suas viagens, para onde quer que você vá. Você
vai precisar.
Com um último sorriso malicioso para mim, ele se virou e se
afastou. Fiquei olhando até a figura solitária desaparecer em uma
curva da estrada antes de me sentar novamente.
— Esse era o meu dinheiro que você deu de graça.
Ela fez uma careta de desculpas. — Gomen, Tatsumi. Eu vou te
pagar de volta assim que puder, eu prometo.
Isso parecia improvável, então dei de ombros, resignado por
nunca mais ver aquele kaeru novamente. — Está tudo bem. — Eu
disse, recuperando minha tigela. — Só espero que você não esteja
planejando doações gratuitas para todos os ronins que encontrarmos
daqui até o templo Pena de Aço.
— Não. — Ela balançou a cabeça. — Eu nem pensei sobre
isso. Simplesmente... parecia a coisa certa a fazer. — Ela puxou o
cabelo para trás, parecendo pensativa. — Mestre Isao tinha um
ditado. Ele me disse que a menor pedra, quando jogada em um lago,
deixará ondulações que crescerão e se espalharão de maneiras que não
podemos compreender. — Ela fez uma pausa e sorriu para si mesma,
balançando a cabeça. — Claro, às vezes isso funcionava contra mim
sempre que eu pregava uma pequena peça em Denga ou Nitoru. As
consequências ficariam cada vez maiores, as coisas ficariam fora de
controle, uma tropa de macacos acabaria no salão de orações e eu
estaria polindo a varanda no próximo mês. — Seu rosto se enrugou
em um meio sorriso, meio careta, antes que ela ficasse séria
novamente. — Agora que ele se foi... — ela murmurou. — Eu quero
me lembrar de tudo que ele me ensinou. Aqui, sinto que posso
facilmente perder de vista o que é importante. Não quero esquecer as
coisas que vão me manter... com os pés no chão.
Parecia que ela estava prestes a dizer mais alguma coisa, mas
não pressionei. Terminamos nossas tigelas em silêncio e voltamos
para a estrada. Quando começamos a andar novamente, notei o corvo,
empoleirado no telhado da parada de descanso, nos observando
enquanto saíamos.

— Por que você não gosta dos ronin, Tatsumi?


Eu dei a Yumeko um olhar perplexo. Depois da estação
intermediária, a terra se abriu em colinas com fazendas espalhadas e
casas de palha entre elas. Terraços de arroz dispostos em encostas
pontilhavam a paisagem, e partículas de pessoas se aglomeravam
entre eles, trabalhando nos campos que eram a espinha dorsal de todo
o país. Estava muito quieto na estrada que Yumeko e eu
caminhávamos, até que a pergunta inesperada veio do nada.
Ela inclinou a cabeça para mim. — Os ronin. Okame-san... — Ela
esclareceu. — Ele não parecia tão ruim, não era diferente de ninguém,
exceto que ele continuava se chamando de cachorro. Por que ele faria
isso? É porque ele persegue coelhos? Ou tem pulgas?
— Ronin não tem mestres. — Eu disse a ela. — E nenhuma
honra. Eles estão desonrados, então vagam pela terra fazendo o que
podem para sobreviver.
— Eu não tenho mestre. — Yumeko disse. — Não mais. Isso
significa que também estou desonrada?
— Não. Você é uma camponesa.
— Camponeses são diferentes de ronin?
— Para começar, os camponeses não têm honra. — disse eu. —
Ninguém espera que eles se comportem acima de sua posição. Ronin
já foi um samurai que perdeu seu status.
— Mas eles ainda são os mesmos, não são? — A voz de Yumeko
estava confusa. — Eles simplesmente perderam seu mestre e seu
título. Isso não deve mudar quem eles são por dentro.
— Às vezes sim.
— Como?
— O código é a vida inteira de um samurai. — Respondi. — A
honra os define. O dever para com seu mestre, sua família e seu clã é
tudo. Uma vez que eles perdem isso, eles não são nada, inúteis. E
todos os veem como tal.
— Você fica dizendo 'eles'. — Yumeko apontou. — Mas você
também é um samurai, não é, Tatsumi?
Eu não disse nada sobre isso e, felizmente, ela não pressionou a
pergunta.
Quando o sol estava começando a se pôr, deixamos o vale e
entramos em outra floresta, que ficou mais densa à medida que
prosseguíamos. Arbustos, troncos e raízes retorcidas espalharam-se
pela estrada estreita, obrigando-nos a passar por cima ou contorná-
los. Cedro, pinheiro e cânfora assomavam acima, encobrindo o céu, e
o ar estava pesado e silencioso.
Enquanto subíamos um lance de degraus de pedra musgosa,
flanqueados em ambos os lados por enormes troncos felpudos,
Yumeko fez uma pausa.
— Algo está errado. — Ela murmurou, olhando cautelosamente
para as árvores. — Está muito quieto. Todos os pássaros pararam...
Eu recuei, quando uma flecha saiu das árvores e atingiu o tronco
atrás de mim.
Uma risada rouca ecoou ao nosso redor. Vultos emergiram de
entre os troncos, movendo-se para bloquear os degraus de cima e de
baixo, meia dúzia de homens de aparência rude com arcos e sorrisos
largos e ansiosos. Um homem grande com cabeça calva e nariz de figo
estragado apareceu no alto da escada. Ele carregava um grande taco
de madeira sobre um ombro carnudo e sorriu para nós com dentes
amarelos e irregulares.
— Kage-san. — Ele cumprimentou, quando dois homens
menores vieram para flanquear ele, apontando flechas em nossa
direção. Sua voz era lenta e rouca. — Que bom que você finalmente
chegou.
A sede de sangue surgiu dentro de mim, Hakaimono acordando
para uma vida ansiosa, cercado por tantos inimigos. O desejo de
desembainhar a espada era quase irresistível; eu forcei minha mão
para longe da lâmina e encarei o líder dos bandidos, me forçando a
falar com calma. — Eu conheço você?
— Não. — O grandalhão tropeçou um pouco, como se estivesse
bêbado, e gesticulou para alguém atrás de nós. — Mas Okame nos
contou tudo sobre você, amigo. Eu sinto que somos praticamente uma
família.
— Okame? — Yumeko parecia atordoada quando olhou por
cima do ombro e viu o ronin que havíamos encontrado antes de pé na
parte inferior da escada, uma flecha encaixada em seu arco. Seu rosto
estava sombrio e ele não encontrou seu olhar. — O que você está
fazendo?
— Ele estava patrulhando a estrada em busca de alvos. — Eu
disse a Yumeko, observando nossa situação. Dois arqueiros no topo
da escada e três homens atrás de nós, incluindo o ronin traidor. —
Assim que ele nos deixou, ele voltou para dizer aos amigos que
estávamos indo.
Yumeko continuou a olhar para o ronin, sua voz suave. — Isso é
verdade, Okame-san?
Um batimento cardíaco de silêncio, então o ronin ergueu a
cabeça com um sorriso desafiador. — Nunca confie em cães ronin
imundos, Yumeko-chan. — Ele sorriu, e os homens ao seu redor
riram. — Eles não têm honra em seu nome. Da próxima vez, é melhor
deixar o impaciente samurai cortar minha cabeça e deixá-la apodrecer
ao sol.
O grande homem gargalhou. — Bem dito, cachorro. E todos nós
sabemos o que acontece a seguir. — Ele balançou seu porrete na
palma da mão com um baque forte e sorriu para mim. — Samurai, dê-
nos tudo o que você tem e nós o deixaremos viver. Se não, vamos
matá-lo e levá-lo de qualquer maneira. Ah, e deixe a mulher. Ela pode
me fazer companhia esta noite.
— O que? — Atrás de nós, o ronin deu um passo à frente,
carrancudo para seu líder. — Esse não era o plano, Noboru! — ele
chamou os degraus. — Você me disse que íamos pegar o dinheiro e
deixá-los ir.
— Mudei de ideia. — O homenzarrão passou a língua gorda
pelos dentes. — Isso foi antes de eu ver que servente bonita estava
com ele. Eu não tenho uma mulher há muito tempo.
— Isso é porque elas podem sentir o seu cheiro vindo a um
quilômetro de distância. — A voz do outro ronin estava enojada
agora. — Eu não assinei para isso. Posso ser um cachorro ronin
imundo, mas não sou um porco no cio.
O líder dos bandidos fez uma careta. — Da última vez que
verifiquei... — Ele falou lentamente. — Eu era o líder desta operação, e
você era o ninguém sarnento que deixamos entrar por pena. Você não
gosta de como fazemos as coisas, Okame, pode ir embora. Mas a
mulher fica. Meninos... — Ele olhou para seus homens, então apontou
para mim. — Matem o samurai. Tragam-me a garota.
Capítulo 15
As consequências das
migalhas
Meu estômago caiu vendo como vários arcos visavam
Tatsumi. O guerreiro se agachou, a mão pairando sobre o punho da
espada, esperando por eles. Meu coração disparou e senti a onda de
magia de raposa espalhar-se pelos meus dedos, fazendo-me cerrar os
punhos. Por uma fração de segundo, tudo prendeu a respiração e o
silêncio se prolongou como uma corda de arco tensa.
— Ah, que se dane com isso.
Abruptamente, Okame girou, enfiou uma flecha na garganta do
bandido ao lado dele, puxou-a e amarrou-a em seu arco enquanto o
homem caía com um gorgolejo assustado. Erguendo a arma, ele soltou
a corda, e um arqueiro no topo dos degraus que estava mirando em
Tatsumi caiu para trás, uma flecha saindo de seu meio.
— Okame! — Berrou o líder bandido. — Seu traidor
imundo! Como você ousa se voltar contra nós?
— Ei, eu sou um cão ronin sem honra, lembra? — Okame gritou
de volta, sorrindo selvagemente enquanto enviava uma flecha em
direção a seu antigo líder. Noboru ergueu rapidamente sua clava e o
dardo atingiu a cabeça de madeira. — Isso é o que fazemos!
— Matem ele! — Noboru rugiu para o arqueiro restante e
começou a descer os degraus. — Ambos!
A espada de Tatsumi sibilou livre, enquanto o guerreiro subia os
degraus para enfrentar o enorme bandido que vinha em nossa
direção. O medo passou por mim quando Noboru balançou sua clava
com as duas mãos, varrendo o ar na direção da cabeça de Tatsumi. O
guerreiro abaixou-se e o bandido atingiu o tronco de uma árvore com
um estalo alto, deixando uma grande fenda na madeira. Kamigoroshi
brilhou, cortando o estômago protuberante de Noboru, e o bandido
uivou de dor e raiva.
Uma maldição atrás de mim chamou minha atenção. Perto da
base da escada, Okame estava deitado de costas, o arco erguido e
bloqueando desesperadamente a espada do outro bandido enquanto
ele o golpeava e apunhalava. Tatsumi estava ocupado com o líder dos
bandidos, e não havia ninguém por perto que pudesse ajudar. Se eu
não ajudasse o ronin, ele poderia morrer.
Saquei minha adaga e encarei-a por um momento, as mãos
tremendo. Eu nunca tinha usado isso contra uma pessoa, mas não
podia usar magia de raposa ou kitsune-bi agora. Descendo os degraus,
eu levantei a adaga e cortei o bandido que estava atacando Okame em
seu braço. Ele recuou com um grito, olhando para mim, dando a
Okame tempo suficiente para se sentar, sacar a espada em seu cinto e
apunhalá-lo no peito.
— Arigatou, Yumeko-san. — Okame engasgou, se
levantando. Havia um corte em sua bochecha e uma ferida de punção
escorrendo sangue sobre seu colete, mas ele ainda estava sorrindo
quando balançou a cabeça para mim. — Isso foi uma migalha do
inferno, aagh!
Ele se ergueu de repente, fazendo uma careta, quando uma
flecha saiu do topo da escada e o atingiu nas costas. Eu o peguei
quando ele caiu para a frente e cambaleou sob seu peso. Ele agarrou
minhas vestes, afrouxando o furoshiki, e algo caiu do pano de
embrulho. A caixa de pergaminho laqueada brilhante atingiu o topo
da escada com um leve tilintar, então rolou firmemente em direção à
borda da escada.
Meu coração congelou. Rapidamente, pisei na caixa, parando-o
antes que pudesse cair pela borda. Em meus braços, o ronin era um
peso pesado e ofegante, enquanto nós dois balançávamos na escada.
— Okame-san! — gritei, olhando desesperadamente para o ronin
enquanto tentava nos manter de pé e evitar que o pergaminho rolasse
pelos degraus. — Tudo bem com você? Você consegue aguentar?
Ele ergueu a cabeça com um estremecimento. — Kuso. — Ele
xingou, recuando um passo. — Droga, eu acho que deveria ter
pensado melhor... do que virar as costas.
Girando, ele ergueu seu arco e atirou no topo dos degraus. O
último arqueiro, que estava mirando em Tatsumi, se sacudiu quando
uma flecha o atingiu na garganta e caiu para trás no mato. Ao mesmo
tempo, me inclinei e agarrei o pergaminho da beira da escada, em
seguida, enfiei-o em minhas vestes enquanto saltava para
cima. Seguro! Eu acho. Espero que Tatsumi estivesse muito ocupado para ver
isso.
Um barulho estrondoso veio do centro da escada quando
Noboru caiu para a frente, bateu no chão e rolou o resto do caminho
até o fundo. Seus olhos vazios e redondos nos espiaram enquanto sua
cabeça tombava para o lado, uma linha carmesim dividindo seu rosto
quase em dois. Estremeci e desviei o olhar, enquanto Okame soltou
uma maldição suave.
— Sim... — Ele suspirou, cambaleando um passo para trás. —
Isso foi... incrivelmente estúpido, Okame.
Ele desabou nas pedras.
Procurei por Tatsumi. Perto do topo da escada, o matador de
demônios calmamente sacudiu o sangue de sua espada e se virou para
mim, com listras vermelhas em seu rosto e antebraços. Seus olhos
brilharam roxos na luz fraca. Eu fiquei tensa, me perguntando se ele
diria algo sobre o pergaminho ou o que tinha acontecido com o ronin,
mas ele apenas embainhou sua arma e se afastou. — Terminamos
aqui. — disse ele calmamente. — Vamos, antes que fique muito
escuro.
Eu me virei na direção de Okame, encolhido na parte inferior da
escada, e meu estômago revirou. — Tatsumi, espere. — Eu chamei. Ele
fez uma pausa e acenei para a forma imóvel e sangrenta do ronin. — E
Okame?
Ele piscou e inclinou a cabeça. — O que tem ele?
— Não podemos deixá-lo aqui. Ele está ferido.
— Ele tentou nos matar. — Tatsumi disse, sua voz plana. — Ele
nos conduziu a uma emboscada. Esses bandidos não teriam nos
mostrado misericórdia.
— Ele nos ajudou, no final. — Argumentei. — Ele não é como os
outros. Não acho que devemos deixá-lo aqui para morrer. — Tatsumi
não se moveu e eu fiz uma careta para ele. — Bem. Vá em frente. Eu o
alcanço quando eu puder.
Voltei para o ronin caído e me ajoelhei ao lado dele para
examinar a flecha. Ela se projetava abaixo de sua omoplata esquerda,
a haste no centro de um círculo escuro de sangue, espalhando-se
lentamente por seu colete.
— Se você vai arrancar isso, apenas faça rápido. — Veio uma voz
firme. Pisquei e olhei para baixo para ver que os olhos do ronin
estavam abertos, olhando para mim. — Pegue-a o mais próximo
possível da cabeça e dê um bom puxão.
— Não vai doer?
— Nah, eu levo tiros assim o tempo todo. Às vezes
eu me atiro com flechas apenas para poder arrancá-las novamente.
— Realmente? — Eu fiquei boquiaberta com ele. — Como isso é
possível? É algum tipo de exercício? Você também tenta se esquivar
das flechas ou pegá-las quando elas entram?
— Estou sendo sarcástico, Yumeko-san. — Okame deu um
sorriso triste. — Claro que vai doer. Mas tem que sair algum dia. Não
posso andar até a cidade com uma flecha espetada em mim. Basta
puxar para fora e me deixar aqui. Eu vou ficar bem.
Olhando para a extensão de madeira que se projetava das costas
do ronin, hesitei, reunindo coragem para a ação. Respirando fundo,
comecei a alcançar o poço, quando uma sombra caiu sobre nós. Olhei
para cima a tempo de ver Tatsumi se abaixar, agarrar a flecha e puxá-
la em um movimento rápido.
— Aagh! — gritou o ronin, batendo nas pedras. — Kuso! Ai! —
Ofegante, ele olhou para nós. — Maldição, Kage, se você vai me
matar, apenas corte minha cabeça e acabe com isso. Você não tem que
me torturar com falsas esperanças.
Tatsumi jogou a flecha ensanguentada no chão. — Se eu fosse te
matar, você já estaria morto. — Ele afirmou categoricamente. — Onde
fica o seu esconderijo?
— Nosso esconderijo? Por quê? — Okame lutou dolorosamente
para se sentar, cerrando a mandíbula. — Isso é tudo da gangue. Não
sobrou ninguém para você abater.
— Porque eu não quero carregar sua carcaça sangrando para a
cidade depois que você desmaiar devido à perda de sangue. —
Tatsumi cruzou os braços, olhando para os degraus. — Porque
Yumeko se recusa a deixá-lo no caminho da morte. Se o seu
esconderijo está perto, melhor ir lá. Presumo que você tenha
necessidades básicas como água e curativos.
— Água, sim. Bandagens... eh, tenho certeza que posso encontrar
algo.
Pisquei para o guerreiro, surpresa. — Você vai ficar?
Olhos violetas frios me olharam sem expressão. — Eu prometi
que faria, não é? Disse que o acompanharia até a capital e ainda não
paguei minha dívida. Então... — Ele se abaixou e, em um movimento
suave, agarrou o ronin, colocou-o de pé e colocou o braço em volta de
seus ombros. O ronin gritou e praguejou, então fez um comentário
sobre estar melhor morto. Tatsumi o ignorou. — Vamos. Vamos
acabar com isso.
Capítulo 16
Yokai ao luar
Mestre Ichiro iria bate-lo sem sentido se visse você agora.
Eu ignorei o pensamento, concentrando-me em manter a mim
mesmo e ao sangrento ronin de pé enquanto caminhávamos pela
floresta, eventualmente chegando ao esconderijo em um grupo de
árvores. Os bandidos se abrigaram em uma cabana abandonada de
lenhador, não muito longe de onde haviam armado sua emboscada. A
própria cabana era velha e degradada; a varanda estava murchando,
as grades apodreceram e o telhado de palha estava cheio de
buracos. Por dentro era ainda pior, o chão coberto com colchões finos
e cheio de tigelas sujas, pauzinhos soltos, dados, cobertores e garrafas
vazias de saquê. Cheirava a suor, urina e muitos humanos sujos no
mesmo cômodo ao mesmo tempo. Larguei o ronin em um dos
colchões sujos e me retirei para a varanda, deixando Yumeko cuidar
de seus ferimentos.
Encostado em um poste podre, olhei para o céu, observando o
pôr do sol atrás das árvores, enquanto pensamentos sombrios giravam
em volta da minha cabeça.
O que você está fazendo, Tatsumi? Você deveria tê-lo matado. Agora,
outro se envolveu e, se o clã descobrir, eles podem ordenar que você o mate de
qualquer maneira.
O que, em circunstâncias normais, não me incomodaria. A morte
de um único ronin, desgraçado e sozinho, não significava nada para
ninguém. Exceto, talvez, Yumeko. Por motivos que não pude
compreender, ela havia gostado do bandido desonrado. Isso, ou ela
era incapaz de cuidar de seus próprios assuntos. Se o clã me mandasse
matá-lo, eu obedeceria, como sempre fizera. Mas isso poderia assustar
ou enfurecer a garota para que fosse embora, e eu também não podia
pagar por isso.
Suspirei. Tudo estava ficando complicado. Primeiro Yumeko,
agora este ronin. É por isso que o clã avisou sobre conexões. Você é uma
arma; os apegos apenas o atrasarão e o farão questionar seu objetivo. Lembre-
se, sua lealdade é para com os Kage, ninguém mais.
Um grito veio de dentro da casa, seguido pelo pedido de
desculpas apressado de Yumeko. Eu balancei minha cabeça. Não
importa. O ronin foi uma distração momentânea. Assim que
terminássemos aqui, poderíamos voltar para a estrada para a capital e
depois para o templo Pena de Aço. Eu apenas tinha que aguentar até
lá.
Houve um bater de asas e um grande corvo preto pousou na
grade a alguns metros de distância. Baixando a cabeça, ele bicou com
curiosidade a madeira podre, depois me olhou com olhos escuros e
redondos. Olhamos um para o outro, imóveis nas sombras da
noite. Achei que pudesse sentir uma presença por trás do olhar fixo do
corvo, outro par de olhos me observando do desconhecido.
Empunhando minha única kunai, joguei-a na grade. Ela atingiu
a madeira sob o corvo com um baque, e o pássaro alçou voo com um
grasnido assustado e indignado. Observei-o voar sobre o telhado,
então me levantei e caminhei até a grade para puxar a faca da
madeira.
— Tatsumi.
Yumeko veio para a varanda, as tábuas desgastadas rangendo
suavemente sob seu peso, e eu coloquei a kunai de volta em minha
manga. — A ferida foi limpa e cuidada. — Ela me disse. — Podemos
ir, mas Okame disse que a cidade mais próxima fica a meio dia de
caminhada daqui. Podemos muito bem passar a noite e partir amanhã
de manhã.
Eu sufoquei outro suspiro, vendo o contorno pálido da lua
através dos galhos de uma árvore. — Se é o que você quer.
Ela inclinou a cabeça, como se esperasse que eu discutisse. — E
você não vai tentar matar Okame-san? — ela perguntou.
— Não.
— Ou ir embora no meio da noite?
— Não.
— Ou amarrá-lo a uma árvore e pendurar batatas-doces em suas
orelhas até que os esquilos rastejem sobre ele?
— ...não.
— Oh, isso é um alívio. Embora o último tivesse sido
ligeiramente divertido. Denga me ameaçou com isso uma vez. Não
pensei que ele estivesse falando sério, mas nunca pude ter certeza com
Denga-san.
— Oi, Kage. — O ronin enfiou a cabeça pelo batente da porta,
sorrindo para mim, e ergueu uma pequena garrafa branca. — Quer
uma bebida? — ele perguntou, não parecendo atrapalhado por seus
ferimentos. — Levantamos alguns barris de um carrinho alguns dias
atrás e odeio deixar o saquê bom ir para o lixo. Venha, vou servir para
você. — Ele sorriu de uma forma bastante lupina, caninos
ligeiramente pontiagudos brilhando na escuridão. — Para mostrar
minha gratidão por você não cortar minha cabeça e deixá-la apodrecer
ao sol.
Eu desviei o olhar. — Vou passar. — Beber saquê, shochu e
outras bebidas alcoólicas era geralmente desaprovado pelos meus
instrutores. Meus sentidos tinham que permanecer afiados e prontos,
não entorpecidos pela embriaguez.
— Tudo certo. — O ronin encolheu os ombros. — Sua perda, mas
é azar beber saquê sozinho. Vamos, então, Yumeko-chan. Acho que
teremos que beber o resto nós mesmos.
— Eu nunca bebi saquê antes. — disse Yumeko, parecendo
ansiosa quando seus passos se retiraram para a cabana. — Os monges
costumavam servi-lo em ocasiões especiais, mas sempre o mantinham
longe de mim. Denga disse que preferia ele mesmo colocar fogo em
seu quarto do que me deixar experimentar.
— Oho, uma virgem de saquê. — A voz do ronin estava
alegre. — Bem, você não sabe o que está perdendo, Yumeko-chan. E
aqueles seus monges parecem terrivelmente enfadonhos. Nunca
deixaram você ter saquê, que crime. Teremos que remediar isso
imediatamente.
Eu coloquei a mão sobre os olhos, de repente me arrependendo
de ter prometido não matar o ronin. Proteger a garota estava se
tornando cada vez mais difícil; não que eu me importasse com o que
ela fizesse, mas ela era linda e ingênua e, como ele mesmo admitiu, o
ronin não tinha mais honra em seu nome. Uma visão repentinamente
veio à mente: os dois, juntos, sozinhos e bêbados de saquê.
Tentando manter a calma, me empurrei para fora do corrimão
para voltar para a cabana.
Houve um brilho no canto do meu olho, e uma pequena bola
branca rolou em minha direção pela varanda.
Não recuei, embora minha mão tenha caído para o punho da
espada. Não estávamos sozinhos. Talvez a cabana fosse o lar de um
yurei ou outro fantasma inquieto, embora eu não tivesse certeza de
como os bandidos haviam ficado ali por tanto tempo sem encontrar o
espírito. A bola rolou silenciosamente pelas tábuas de madeira até
desviar e cair na beirada. Saltando uma vez, continuou a deslizar pelo
pátio até atingir a borda da pilha de lenha.
Uma criança saiu de trás das toras, pegou a bola e sorriu para
mim. Um menino de cinco ou seis anos, vestindo um manto preto com
mangas muito grandes, tamancos de madeira e um chapéu de palha
esfarrapado. Sua cabeça estava raspada, apenas um tufo de cabelo
escuro agarrado à testa e, abaixo dele, um único olho enorme,
dominando a metade superior de seu rosto, me encarou do outro lado
do quintal.
Hakaimono se mexeu. Não era uma criança. Nem mesmo era
humana. Um yokai, mas não era particularmente ameaçador. Senti a
decepção do demônio; se o yokai não era ameaçador, não havia razão
para lutar. Mas, ao mesmo tempo, não podia ignorar um yokai
estranho que apareceu do nada. Especialmente quando, sentado em
um toco na borda da pilha de lenha, obviamente estava esperando por
mim.
— K-konbanwa, Kage-san. — O yokai cumprimentou e curvou-
se quando me aproximei. Aquele único olho brilhante continuou a me
observar por baixo da aba do chapéu. — Não é uma boa noite?
— Quem é você?
O menino caolho se encolheu com meu tom
monótono. Inclinando-se para trás, ele enfiou a mão no manto e tirou
uma pequena caixa laqueada. Puxando a tampa revelou um pedaço
branco e quadrado de tofu descansando dentro, e ele segurou a caixa
para mim com as duas garras. — Um presente. — Ele anunciou com
outra reverência. — Ou uma oferta de paz. Para mostrar que não
quero fazer mal. Eu sou um nada insignificante, uma partícula sem
importância, não valendo o tempo do grande matador de demônios
Kage. Então, por favor, não mande Kamigoroshi cortar minha cabeça.
Hakaimono zombou em um desgosto sem
palavras; aparentemente, não acreditava que valia a pena matar esse
yokai. — Se você realmente não quer fazer mal, não tem nada a temer
de mim. — disse eu à criatura, ignorando o tofu oferecido. — Mas
você esperou até que eu estivesse sozinho para aparecer, então
presumo que esteja aqui por um motivo. O que você quer?
— Kage-san é verdadeiramente misericordioso. — O yokai
sentou-se e uma língua vermelha e gorda deslizou por entre seus
lábios, enrolou-se em torno do tofu e o enfiou na boca. Enxugando a
boca na manga, ele me olhou com aquele único olho enorme que não
continha um grama de inocência infantil.
— Meu mestre me enviou aqui com uma mensagem para o
grande matador de demônios Kage. — Declarou o yokai. — Ele sabe o
que você procura e avisa que Kage-san deve ter cuidado, pois há
outros procurando por ele também. Ladrões, místicos e daimyos,
muitos ouviram a lenda da oração do Dragão e estão vasculhando a
terra em busca dos pedaços do pergaminho.
A oração do dragão? Foi para isso que Dama Hanshou me
enviou? Eu sabia que o pergaminho tinha que ser importante; se a
daimyo do Clã das Sombras me enviou para recuperá-lo, então ela
esperava problemas da variedade sobrenatural. Encontrar uma horda
de amanjaku perto do templo confirmou essa suspeita, mas isso não
me disse nada sobre o pergaminho em si. A oração do dragão,
pensei. Uma antiga relíquia de imenso poder? Uma escritura
inestimável perdida com o passar do tempo? Eu me perguntei o que
realmente era, e por que alguém enviou uma horda de demônios
menores, e de acordo com Yumeko, um oni, o mais poderoso dos
terrores de Jigoku, para adquiri-lo.
Embora não fosse da minha conta ficar pensando. Minha missão
era recuperar o pergaminho, não importa o que fosse, não importa
quem estava procurando por ele.
— Preste atenção ao aviso do meu mestre, Kage-san. — O yokai
continuou, tornando-se sombrio. — A maioria dos mortais que
procuram a oração do Dragão não sabe o suficiente para representar
uma ameaça. Eles ouviram um pouco da lenda, talvez o suficiente
para tentar juntar os pedaços do pergaminho, mas seu conhecimento é
incompleto. Eles se debatem cegamente no escuro, ignorantes e
inconscientes. Mas há um que até mesmo o matador de demônios
Kage deve ser cauteloso. Alguém que rivaliza até com o poder de
Kamigoroshi. — Ele lançou um olhar para a minha espada, como se
tivesse medo de ofendê-la, antes de baixar a voz para quase um
sussurro. — Há muito tempo, havia um ser que era uma maldição nas
páginas da história de Iwagoto. Seu nome inspira medo e ódio,
mesmo agora. O responsável por tanto ódio foi chamado de muitas
coisas ao longo dos tempos, mas a maioria se lembra dele como
Genno, o Mestre dos Demônios.
Eu me endireitei e Hakaimono também se animou; nós dois
reconhecemos esse nome. O Mestre dos Demônios era uma figura
bem conhecida, embora assustadora, da era mais sombria do
país. Quatrocentos anos atrás, no meio da pior guerra civil que a terra
já conheceu, um feiticeiro chamado Genno levantou um exército de
demônios e mortos-vivos para atacar a capital e derrubar o
imperador. Como a terra estava tão fragmentada, sua estratégia quase
funcionou. O imperador foi morto, e a cidade imperial estava à beira
do colapso, quando os clãs finalmente puseram de lado suas querelas
e se uniram contra a ameaça maior. Muitas vidas foram perdidas e o
país quase foi dividido, mas a força combinada dos clãs foi suficiente
para finalmente virar a maré. Na batalha final, Genno foi morto, as
hordas de mortos-vivos desmoronaram e os demônios fugiram,
espalhando-se ao vento. Mas esse não foi o fim da história. Não
contente em simplesmente matar o Mestre dos Demônios, o novo
imperador mandou decapitá-lo, seu corpo cremado e sua cabeça
selada em uma tumba sagrada, para que ele nunca mais se levantasse
para ameaçar a terra.
Essa era a teoria, de qualquer maneira.
Enfrentei o yokai e franzi a testa, fazendo-o recuar. — O Mestre
dos Demônios foi morto há mais de quatrocentos anos. — eu disse
lentamente, certificando-me de entender o que a criatura caolho
estava implicando. — Acho que ele voltou, de alguma forma?
O yokai balançou a cabeça. — É nisso que meu mestre acredita.
— disse ele. — A bruxa do vento que atacou você antes era uma de
suas servas. Uh, de Genno-sama, não do meu mestre. Meu mestre não
se incomodaria com alguém como ela. — Seus olhos se franziram,
como se ele estivesse enojado com o pensamento, antes de ele balançar
a cabeça. — Mas Genno tem muitos demônios, yokai e até humanos
que cumprem suas ordens, e agora que está procurando o
pergaminho, ele tentará eliminar qualquer competição. Isso significa
você, caçador de demônios. E qualquer um que esteja perto de você.
Pensei em Yumeko, seu olhar brilhante e sorriso alegre, na luz
deixando seus olhos quando um demônio a
destruísse. Estranhamente, isso me incomodou de uma maneira que
nunca senti antes. — Por que você está me contando isso? — Eu
perguntei ao yokai. — Se o pergaminho é tão poderoso, por que seu
mestre não o quer também?
— Eu não questiono as ordens do mestre. — A criatura de um
olho só disse, ficando um pouco pálida só de pensar. — Meu único
propósito é servi-lo de todas as maneiras que puder. Ele me disse para
avisar o matador de demônios Kage que o Mestre dos Demônios está
procurando a oração do Dragão, e que ele planeja matar você. Então
eu fiz. E agora meu trabalho está feito. — Ele piscou seu olho enorme
e me lançou um olhar nervoso. — Uh... eu posso ir agora, sim? Você
não vai tentar me matar quando eu tentar ir embora?
O demônio na minha cabeça me deu um empurrão para fazer
exatamente isso, cortar a criatura patética quando ela estava de costas,
um fim adequado para tal fraqueza. Eu sufoquei o desejo e empurrei
minha cabeça em direção à linha das árvores. — Vá. — Eu disse ao
yokai, que imediatamente saltou da pilha de lenha, sem virar as costas
para mim, notei. — Mas diga isso ao seu mestre, não fique no meu
caminho. Se ele me ameaçar ou aqueles que viajam comigo, eu o
mato. Esse é o meu único aviso. Se nos encontrarmos na estrada como
inimigos, não hesitarei em matá-lo.
Os olhos do yokai se arregalaram até se assemelhar a uma
pequena lua e ele assentiu. — Cla-claro, Kage-san. — Ele gaguejou,
balançando enquanto se afastava. — Eu com certeza entregarei sua
mensagem. — Ele lançou um olhar furtivo em direção às árvores, e de
repente tive certeza de que esse “mestre” estava perto e que ele tinha
ouvido toda a conversa. — Bem, então... — o yokai terminou,
preparando-se para entrar na floresta. — Te-tenha uma boa noite,
Kage-san. Espero que não nos encontremos novamente.
Ele disparou para longe, uma faixa de pele pálida ao luar, e
desapareceu nas sombras da floresta. Senti o vago desgosto de
Hakaimono por não ter cortado sua coluna e o ignorei, examinando a
escuridão além das árvores. Algo estava lá fora. O misterioso mestre
que se certificou de me avisar que Genno, o feiticeiro, havia retornado
a Ningen-kai, não o fez por altruísmo. Quem quer que fosse, ele era
outro jogador neste jogo em que frequentemente me encontrava.
Dama Hanshou, o imperador, os daimyos dos clãs, eles eram os
generais, os jogadores principais, aqueles com conhecimento perfeito,
e nós éramos as peças no tabuleiro. Eu era um peão em uma partida
de shogi, sendo movido por forças invisíveis, indo para onde era
direcionado sem saber o motivo. Sempre foi assim.
E agora, parecia que outro general havia se apresentado à
mesa. Genno, o Mestre dos Demônios, havia retornado e
provavelmente estaria em busca de vingança. Dama Hanshou gostaria
de saber sobre isso, assim como o resto dos daimyos e até o próprio
imperador, mas meu primeiro dever era para com meu próprio
clã. Assim que pegasse o pergaminho, voltaria e contaria a ela o que
descobri, ou talvez passasse a informação para Jomei ou outro servo
do Clã das Sombras se eles aparecessem para me checar. Até então, eu
continuaria minha missão e me preocuparia com os demônios quando
eles viessem.
Eu me virei e voltei para a cabana, sentindo olhos em mim o
caminho todo.
Quando espiei pelo batente da porta, o ronin estava sentado
sozinho no centro do cômodo, cercado por escombros e garrafas
vazias. Yumeko estava deitada em um cobertor no canto, segurando
um travesseiro de palha, uma xícara de saquê virada esquecida ao
lado dela. O ronin viu para onde eu estava olhando e suspirou,
balançando a cabeça.
— Meia garrafa e ela estava cochilando em sua xícara. — disse
ele, com um sorriso triste esticando sua boca. — Pena, realmente. Eu
esperava que ela fosse uma bêbada maníaca. Acho que vou beber
sozinho esta noite, a menos que você queira se juntar a mim, Kage-
san.
— Não. — Tirando Kamigoroshi do meu cinto, sentei-me na
porta e me inclinei contra a moldura, posicionando meu corpo de
forma que se esticasse na entrada. Se os yokai ainda estivessem lá e
quisessem entrar na cabana, eles teriam que passar por mim, pelo
menos.
— Fazendo-me servir o meu próprio saquê. Que grosseiro. — O
ronin fungou, serviu-se de uma xícara e tomou um gole direto da
garrafa. — Ainda bem que não se espera que cães como eu tenham
boas maneiras ou qualquer tipo de elegância social. Então, Kage-san...
— Ele pegou a xícara de saquê com a outra mão e me olhou por cima
da borda com um olhar negro perspicaz. — Qual é a história entre
você e Yumeko? Você faz parte do Clã das Sombras e não é um ronin,
então por que está seguindo uma camponesa até a capital? Ela não é
uma serva, isso eu posso dizer. Nenhum membro do clã deixaria uma
serva mandar neles assim. — Ele despejou o conteúdo da xícara em
sua boca e engoliu, então sorriu para mim. — Ou talvez, ela seja
realmente uma princesa vestida como uma camponesa para evitar ser
descoberta, e você é seu guarda-costas. Isso explicaria algumas
coisas. Como ela pode mandar em você, como você cede a tudo que
ela diz, até mesmo ajudando um bandido aleatório na estrada. — Ele
fez uma pausa e, quando não respondo, o sorriso ficou mais largo. —
Sabe, se você não disser nada, Kage-san, eu só vou presumir o pior.
Eu inclino minha cabeça contra o batente da porta, deixando seu
balbucio deslizar sobre mim como água, desaparecendo como névoa
ao passar. — Suas suposições não significam nada para mim. — Eu
disse, fazendo-o bufar. — Presuma o que você quiser.
— Oh? Então suponho que você não se importaria se eu me
divertisse um pouco com a camponesa. — O ronin largou a garrafa e
lançou um olhar faminto no canto, os olhos brilhando. — Ela tem um
corpo bonito sob esses trapos, e eu apostaria meu último ryu de ouro
que ela está intacta. Você não ia fazer nada com ela, certo, Kage-
san? Afinal, ela é apenas uma camponesa...
Ele parou, seu olhar caindo para minha espada, onde eu havia
enrolado meus dedos em torno do cabo. Meu corpo ficou muito
quieto, pronto para explodir em movimento, e havia uma nova
emoção fervendo logo abaixo da superfície, uma que eu não tinha
sentido antes. Semelhante à violência e sede de sangue de
Hakaimono, mas diferente. Levei um momento para localizá-la,
porque o sentimento em meu peito não era a emoção do
demônio; pela primeira vez em anos, era minha.
Raiva.
— Ah. — O ronin sorriu e pegou a garrafa de saquê. — Isso foi o
que eu pensei. Relaxe, Kage-san. Não tenho o hábito de dormir com
garotas camponesas aleatórias, especialmente se elas tiverem um
guarda-costas assassino por perto que está muito disposto a cortar
minha cabeça. — Ele derramou o resto do conteúdo na xícara de saquê
e franziu a testa quando apenas um fio saiu. — Kuso. Que pena, não
estou bêbado o suficiente. Bem, só há uma coisa a fazer. — Ele bebeu o
resto da bebida, então pegou a garrafa e se levantou, balançando um
pouco ao se levantar. — Noboru, seu bastardo, eu sei que você tinha
um esconderijo secreto escondido em algum lugar. — Ele começou a
cambalear para longe, mas parou e olhou para mim, aquele sorriso de
lobo cruzando seu rosto novamente.
— Sabe... — ele anunciou. — Se você está indo para a capital,
acho que irei com você um pouco. As estradas por aqui são perigosas,
bandidos e todos os tipos de vilões atacando viajantes honestos. Vou
viajar com você, tornar isso um pouco menos perigoso. Você pode ser
o guarda-costas, eu serei o cão de guarda. Segurança em números e
tudo mais, certo? — Ele riu, percebendo totalmente a ironia, e olhou
para o canto onde a garota ainda dormia, morta para o mundo. —
Você não acha que Yumeko se importará, não é? Não importa. Vou
perguntar a ela amanhã, quando ela acordar. Agora... — Ele se virou e
cambaleou em direção à parte de trás da cabana, em direção a um
cômodo separado. — Onde está isso, Noboru? — ele murmurou. —
Não pense que você pode esconder isso de mim, eu posso cheirar licor
onde quer que esteja escondido.
Eu escutei os sons de remexer e os ocasionais grunhidos ou
palavrões. Depois de alguns minutos, houve uma exclamação de
triunfo e então nada se ouviu, exceto o tilintar suave de
garrafas. Eventualmente, mesmo esses pararam, e um ronco gutural
veio do cômodo do canto. Puxei Kamigoroshi em meu colo e esperei
pelo nascer do sol, planejando acordar Yumeko no momento em que a
luz tocasse o horizonte. Com um pouco de sorte, quando o ronin
despertasse de sua ressaca induzida pelo saquê, já teríamos ido
embora.
Porque se ele nos seguisse, talvez eu tivesse que quebrar minha
promessa a Yumeko e matá-lo.
Capítulo 17
hospitalidade
— Mabushii. — Eu murmurei, protegendo meu rosto enquanto
feixes de luz cegantes cortavam os galhos do pinheiro e me
apunhalavam entre os olhos. Tão brilhante. — Por que o sol está tão
forte hoje? E se alguém pudesse, por favor, dizer aos pássaros para
pararem de cantar tão alto, eu apreciaria.
Tatsumi, caminhando alguns passos à frente, não parecia nem
um pouco afetado pelo misterioso aumento de luz ou barulho esta
manhã. Ele não disse nada, mas pude sentir que secretamente estava
se divertindo. — Eu posso ouvir você rindo, Tatsumi. — Eu avisei,
carrancuda para ele. — Minha miséria o diverte? — Ele não
respondeu, e eu gemi, esfregando os olhos para aliviar as batidas atrás
deles. — Nunca fiquei doente um dia na minha vida. — Murmurei. —
Não entendo por que estou doente agora.
— Você ainda precisa desenvolver tolerância ao álcool. —
Tatsumi lançou um olhar para mim por cima do ombro. — O saquê
pode ser muito forte para os não iniciados. Infelizmente, este é um dos
efeitos colaterais.
— Isso é normal? — Pensei na noite anterior, no que conseguia
me lembrar dela. A estranha e forte bebida que Okame continuava
derramando em minha xícara queimou ao descer, então pareceu
acender um calor agradável em meu estômago. Lembrei-me de me
sentir sonolenta e estranhamente tonta, mas depois disso não consegui
me lembrar de mais nada. — É como se uma tropa de macacos
gritasse e jogasse pinhas contra meus olhos. — Gemi. — Por que as
pessoas ainda bebem saquê se sentem assim pela manhã? Você acha
que Okame-san sente o mesmo? Não consigo me lembrar da metade
do que estávamos falando...
Um arrepio percorreu minha espinha. Não conseguia me
lembrar de nada do que foi dito ontem à noite. O que mais eu havia
esquecido? Ou feito? E se eu tivesse revelado algo que não deveria,
como o que eu realmente era? Se eu escorregasse, se Tatsumi
descobrisse que eu era uma kitsune...
Eu estremeci sob a luz do sol forte. Tinha que ser mais
cuidadosa. O caçador de demônios pode tolerar uma garota humana
levando-o à oração do Dragão, mas definitivamente não toleraria uma
yokai. Se ele descobrisse que eu o havia enganado, eu definitivamente
poderia ver Kamigoroshi cortando minha cabeça.
— Yumeko?
Eu olhei para cima para ver Tatsumi ainda me observando por
cima do ombro. Seu rosto, embora não exatamente simpático, exibia
uma carranca confusa. — Você está bem? — ele perguntou. —
Precisamos parar para descansar?
Eu balancei minha cabeça, sorrindo com o quão genuinamente
preocupado ele parecia. — Não, Tatsumi-san, estou bem. Eu estou
apenas...
— Oiiiiiiiiii!
O grito fraco veio da estrada atrás de nós. Eu me virei e vi uma
forma escura e borrada correndo para frente, um braço erguido. Ao se
aproximar, ele se transformou em Okame, bufando enquanto corria
em nossa direção.
— Finalmente... encontrei vocês. — Ele ofegou, apoiando as
mãos nos joelhos. Ofegante, ele olhou para mim com um sorriso
irônico. — Pensou que você poderia se livrar de mim, hein? Kage-san
não disse que eu estava indo com vocês para a capital?
Olhei para Tatsumi, que não estava olhando para nenhum de
nós, seu olhar nas montanhas distantes. — Não. — Eu disse, franzindo
a testa. — Ele não mencionou isso.
— Bem, para sua sorte, tenho sono leve. — Okame se endireitou,
ajustando o arco yumi em suas costas. — E que eu já tinha decidido te
ajudar. Porque eu sei que vocês estão indo para o lado errado.
Eu pisquei. — Nós estamos?
— Nós não estamos. — Tatsumi respondeu. — Essa estrada leva
à rodovia imperial e, de lá, direto para a própria capital. Estamos no
caminho certo.
— Sim, se você quiser contornar completamente as montanhas.
— Okame disse, sacudindo a cabeça para os picos envoltos em névoa,
ainda envoltos em sombras. — O que vai levar dias de viagem, pelo
menos. Eu conheço esse território e, mais especificamente, conheço as
trilhas e caminhos escondidos pelas montanhas. — Seu polegar se
levantou e apontou para si mesmo. — Se vocês me seguirem, posso
levá-los à capital muito mais rápido do que se vocês mantiverem as
estradas principais. E não teremos que nos preocupar com o posto de
controle imperial na fronteira.
Eu não tinha certeza, mas pensei que Tatsumi se animou com
isso. Bem, talvez se animar fosse a frase errada, mas ele pareceu
notar. — Seria bom chegar à capital mais cedo. — Pensei.
— E pense, Kage-san... — Okame acrescentou. — Quanto mais
cedo chegarmos a Kin Heigen Toshi, mais cedo você poderá se livrar
de mim. É uma situação de ganha-ganha, certo?
Tatsumi nos olhou em um silêncio impassível, então deu de
ombros e se virou. — Não importa. — Ele disse de costas para nós. —
Desde que chegamos à capital. E você não nos perder.
— Bom! — Okame exclamou, esfregando as mãos. — Apenas me
sigam, então. Estaremos nas terras do Sol antes que vocês percebam.

— Huh. — Okame meditou mais tarde naquela tarde. — Eu


tinha certeza que deveria haver um caminho aqui.
Estávamos nas profundezas das montanhas agora, tendo
deixado a estrada principal há algumas horas para caminhar pelo
deserto. Okame encontrou rapidamente uma trilha de caça, e nós a
seguimos por uma floresta escura de pinheiros e cedros, sobre um
tapete espesso de musgo verde que cobria pedras, raízes e troncos
caídos. Ele era, eu notei, muito gracioso apesar de sua grosseria
autoproclamada, movendo-se facilmente pela floresta e arbustos como
se ele fosse parte da própria floresta. Tatsumi se arrastava
silenciosamente nas minhas costas, não fazendo nenhum som e me
levando a olhar por cima do ombro de vez em quando, apenas para
ter certeza de que ele ainda estava lá.
Mas quando a trilha terminou abruptamente em um pequeno
riacho na montanha, Okame parou e cruzou os braços, olhando para
baixo como se esperasse que um novo caminho aparecesse.
— Bem, isso é estranho. — Ele murmurou, olhando para cima e
para baixo no riacho. — Eu não me lembro disso estar aqui.
— Você está perdido. — Tatsumi afirmou, sua voz fria o
suficiente para fazer o riacho congelar.
— Eu não estou perdido. — Okame protestou, olhando para
ele. — Eu estou... momentaneamente confuso que há um riacho aqui,
mas isso é um revés temporário. Eu sei exatamente onde estamos. —
Ele coçou a nuca, franzindo a testa em pensamento. Do outro lado do
riacho, um pequeno veado malhado saiu delicadamente de trás de
uma árvore e olhou para nós, mexendo as orelhas grandes. —
Devemos ter perdido a trilha lateral. — Okame ponderou. — Mas se
formos para o norte, devemos encontrá-la. Então... — Ele olhou ao
redor da floresta, e o cervo saltou para a vegetação rasteira. — Se essa
é a posição do sol, e as sombras estão indo nessa direção...
— Hum. — Eu apontei um dedo rio acima. — O norte é por ali,
Okame-san.
— Certo. — Okame sorriu de volta para mim. — De volta aos
trilhos, Yumeko-chan. Estaremos em Kin Heigen Toshi em algum
momento.
Várias horas depois, com o sol começando a se pôr atrás dos
picos distantes e os vagalumes começando a piscar entre os galhos,
Okame parou e se encostou em uma pedra coberta de musgo,
balançando a cabeça.
— Tudo bem. — disse ele alegremente, e ergueu as duas mãos
em um gesto desesperado. — Agora estamos perdidos.
A espada de Tatsumi se soltou com um guincho
arrepiante. Okame instantaneamente saltou da pedra e disparou atrás
dela enquanto eu girava, colocando-me entre o ronin e o demônio
matador.
— Tatsumi, não. — Eu levantei minhas mãos enquanto seu olhar
violeta frio deslizou por mim, plano e assassino. — Matá-lo não vai
ajudar em nada.
— Isso vai corrigir o erro que cometi antes. — Tatsumi disse,
seus olhos se estreitando em fendas roxas.
— Mas não vai ajudar em nada agora. — Insisti. Seu olhar
mudou para mim, e meu coração bateu forte sob o olhar daquele
assassino letal. Kamigoroshi brilhava fracamente nas sombras,
lançando uma luminância doentia que pulsava como um batimento
cardíaco. Nada como as horríveis chamas roxas que eu vi na noite em
que conheci Tatsumi, mas inquietantes ao mesmo tempo. Apenas
estar tão perto de Kamigoroshi desembainhado fez minha pele
arrepiar, mas eu mantive minha posição. — Tatsumi-san, está
feito. Estamos perdidos. Vamos apenas tentar encontrar o caminho de
volta e chegar à capital sem derramamento de sangue.
— E o fato de ele estar apontando uma flecha nas suas costas não
significa nada para você?
— Não estou mirando nela. — Veio a voz de Okame atrás da
rocha. — Estou apontando para o cara com a espada brilhante
assustadora. Se ela desse um passo para a direita, eu agradeceria.
Um sorriso frio curvou um lado da boca de Tatsumi. — Você
acha que é rápido o suficiente para atirar em mim, Ronin?
— Bem, se a outra escolha é ficar aqui e sorrir enquanto você me
corta ao meio, eu vou me arriscar. — Okame respondeu. Eu lancei um
olhar de fração de segundo para o ronin e vi um sorriso perigoso
esticando sua própria boca, seus olhos duros e desafiadores. — Eu não
sou nobre. Não estou oferecendo minha cabeça porque cometi um
erro. Você quer isso, você vai ter que pegar do jeito antigo.
— Ninguém está tirando a cabeça de ninguém. —
Argumentei. — Isso seria apenas confuso e nojento. Vamos apenas
tentar encontrar o caminho para sair das montanhas. Vai escurecer em
breve, e... — Fiz uma pausa, espetando minhas orelhas para frente,
embora isso não fosse visto pelos dois humanos. Descendo a encosta,
em uma pequena bacia entre as montanhas, eu podia ver algumas
luzes fracas e brilhantes. — Esperem um minuto. Acho que tem uma
aldeia lá embaixo.
Os dois humanos se endireitaram e se viraram para espiar o vale
também. — Oh, aí está. — disse Okame, parecendo satisfeito. — Eu
sabia que estava por aqui em algum lugar. — Ele ignorou o brilho
escuro de Tatsumi e afrouxou o arco, enfiando a flecha de volta em
sua aljava. — Bem, o que estamos esperando?
Começamos a descer a encosta, mas era íngreme e traiçoeira, as
pedras cobertas de musgo escorregadio, obrigando você a olhar onde
colocava os pés. Estava indo devagar, mas eu havia jogado esse jogo
com os macacos na floresta e pulado de pedra em pedra, pousando o
mais levemente que pude antes de continuar. Okame escorregou uma
vez, esfolando as mãos em uma pedra e soltando uma sequência
impressionante de palavrões. Tatsumi, é claro, era tão gracioso quanto
um cervo, pisando calmamente de pedra em pedra, fazendo parecer
que fazia isso todos os dias.
Quando chegamos à borda do vale, o sol se pôs atrás dos picos
das montanhas e as sombras se alongaram. Cruzamos uma ponte
sobre um pequeno riacho e seguimos um caminho sinuoso de terra em
direção a um aglomerado de cabanas de palha espalhadas ao longe. O
ar no vale estava denso e úmido; cigarras zumbiam nas árvores e
vaga-lumes piscavam sobre os arrozais, suas luzes refletidas na água
escura e lamacenta. Minúsculas mudas de arroz haviam sido
plantadas em fileiras organizadas em cada um dos terraços dos
campos e logo se transformariam em um mar ondulante de verde. Ao
longo das margens do lento rio, pude ver redes penduradas ao sol
para secar e pequenos barcos de pesca atracados ao longo da costa. A
luz do sol brilhava na água, e todo o vale tinha uma sensação
preguiçosa e isolada, como se tivesse sido esquecido pelo resto do
mundo.
Passando pelos campos de arroz, a trilha sinuosa se cruzava com
uma estrada maior e mais larga que cortava o vilarejo. Uma placa foi
erguida na encruzilhada, feita à mão e pintada à mão, kanji rabiscado
no quadro em tinta preta. Você chegou em Yamatori, a placa de
sinalização anunciada. Os viajantes são sempre bem-vindos.
— Bem, isso é amigável. — disse Okame. — É um bom sinal,
pelo menos. Algumas dessas pequenas aldeias têm uma atitude muito
desfavorável para com os visitantes. Eles não gostam de viajantes, não
gostam de samurais e, especialmente, não gostam de ronin.
— Por quê? — Eu me perguntei.
— Porque ronin tendem a pegar o que querem. — Tatsumi
respondeu categoricamente. — E os fazendeiros não podem fazer
nada a respeito.
— Ei, samurais não são melhores. — Okame voltou, olhando
para ele. — Você acha que todos eles seguem aquele código de
bobagem do Bushido? — Ele zombou. — Eu vi um samurai pegar a
esposa de outro homem e matar o marido por ousar protestar. Eu vi
um cortar a cabeça de uma criança por assustar seu cavalo. Posso ser
um cachorro ronin sujo, mas pelo menos não uso o código como
desculpa para fazer o que eu quiser.
— O que quiser? — A voz de Tatsumi era suave, e ele balançou a
cabeça, quase com pena. — Aquele que não tem honra... — declarou
ele. — Nunca vai entender as ações daqueles que a têm.
— Diz o homem com a espada brilhante assustadora.
— Isso não tem nada a ver com o assunto.
— Certo, porque espadas brilhantes e assustadoras são sempre
usadas com o propósito mais puro.
— Há mais? — Eu pisquei. — Eu só vi uma espada brilhante
assustadora, Okame-san. — Eu disse. — Elas são muito comuns?
Okame suspirou. — Vou ter que te ensinar sobre sarcasmo,
Yumeko-chan. Mas não agora, porque estamos sendo observados.
Eu olhei para a aldeia. Vários homens e mulheres se reuniram na
estrada, a maioria deles agricultores, de acordo com seus haoris
simples e pele bronzeada, e nos olhavam com atenção.
Okame sorriu. — Bem, todos eles sabem que estamos aqui. —
disse ele, e começou a caminhar em direção à multidão. — Acho que
devemos ir dizer olá.
Os aldeões continuaram a nos observar enquanto nos
aproximávamos. A maioria deles sorriu e acenou com a cabeça ou
curvou-se quando passamos, desviando seus olhos e nunca nos
olhando no rosto. Eu vi alguns homens sussurrando uns com os
outros, seus rostos animados, mas tensos. Uma mulher de cabelos
brancos, sentada na porta de sua cabana, sorriu sem dentes enquanto
passávamos, seus olhos quase afundando nas dobras de seu
rosto. Uma garotinha em um quimono amarelo saltou no lugar e
acenou para Tatsumi, que estava seguindo alguns passos atrás de
mim e Okame. Ele a ignorou, mas isso não deteve seu
entusiasmo. Todos aqui pareciam animados em nos ver.
E ainda...
— Bem-vindos, viajantes!
Um homem se aproximou de nós, sorrindo. Sua testa careca
brilhava de suor, fios escuros ao longo dos lados da cabeça presos em
um topete. Suas roupas eram um pouco mais bonitas do que as do
resto dos fazendeiros: um haori azul e cinza sobre calças hakama
pretas. Ele avançou e se curvou em uma reverência que o curvou para
frente na altura da cintura. — Bem-vindos a Yamatori, convidados de
honra. — Ele cumprimentou enquanto se levantava. — Eu sou Manzo,
o chefe desta aldeia. Vocês vão ficar muito tempo ou estão apenas de
passagem?
— Só de passagem. — Respondi, e ele me olhou surpreso,
obviamente esperando que Okame ou Tatsumi respondessem à
pergunta. — Estaremos em nosso caminho em breve. Não queremos
incomodá-lo...
— Mas se você pudesse ceder um quarto e algumas camas para
passar a noite, nós certamente apreciaríamos. — Acrescentou o ronin,
dando um passo ao meu lado. Ele deu ao chefe um sorriso
desarmador e alcançou seu obi. — Eu posso te pagar pelo
inconveniente.
— Pagar? Oh, não, não, não! — O homem balançou a cabeça
vigorosamente, erguendo a mão. — Eu não quero ouvir falar
disso. Vocês são convidados de honra em Yamatori. Não há
inconveniente. Por favor venham.
— Bem, eles certamente são muito amigáveis. — Okame
ponderou enquanto seguíamos o chefe pela estrada em direção ao
centro da vila. As pessoas sorriam e acenavam com a cabeça enquanto
passávamos, nos espiando pelas portas e entre os prédios. Ele acenou
para um menino que nos observava por trás de sua cabana, e a criança
disparou para trás da parede. — Faz você se perguntar o que
aconteceu para torná-los tão complacentes com os samurais?
— Eu não gosto disso. — Tatsumi disse em voz baixa. — Algo
parece... errado.
— Você quer dizer que as pessoas estão sendo legais com
você? Sim, posso ver como isso seria enervante.
O chefe nos conduziu por uma pequena elevação até uma casa
maior no topo. Esta tinha um telhado de palha como as outras, mas
uma varanda circundava a frente e as alas estendiam-se para os dois
lados, ao contrário das cabanas de um cômodo onde os fazendeiros
viviam. Enquanto seguíamos o chefe, vi um velho monge em vestes
pretas sentado sob uma árvore ao lado do caminho, um bastão de
metal apoiado em seu ombro. Ele sorriu e acenou com a cabeça
quando passamos, e eu parei para oferecer uma rápida reverência
antes de correr atrás dos outros. Okame me lançou um olhar estranho
quando eu o alcancei, mas não disse nada.
Passamos por um portão de bambu e chegamos a um pequeno
jardim, no qual uma lanterna musgosa ficava ao lado de um pequeno
lago sob os galhos de um pinheiro. Lembrando-me do lago no templo
Ventos Silenciosos, olhei para a água, esperando ver algumas carpas
ou peixes dourados gordos nadando até mim, com a boca
aberta. Infelizmente, o lago estava vazio, a água segurando apenas
algumas folhas podres, fazendo-me franzir a testa em decepção. Mas
meu reflexo olhou para trás, uma menina com orelhas peludas e olhos
brilhando amarelos na luz fraca, e meu estômago embrulhou.
— Kitsune. — disse o chefe, e meu coração deu uma guinada
violenta. Com o estômago embrulhado, me virei para encarar o
humano, que deu um sorriso nervoso. — Tivemos problemas terríveis
com raposas ultimamente. — explicou o chefe, apontando para o
lago. — Sempre se metendo em tudo. Meus pobres peixes não tiveram
chance.
— Oh. — Eu murmurei. Eu rapidamente me afastei da borda,
esperando que ninguém mais tivesse visto o breve lampejo de uma
kitsune no lago. — Sinto muito por ouvir isso.
Erro estúpido, Yumeko. Seja mais cuidadosa. Não é hora de brincar com
peixes.
O chefe abriu a porta da frente, que era pesada e de madeira,
notei, não feita de papel de arroz em uma moldura. — Asami! — ele
chamou, enquanto deixamos nossas sandálias abaixo da borda do piso
de madeira antes de segui-lo para dentro de casa. — Temos
convidados! Defina mais três lugares para o jantar.
— Você realmente não precisa fazer isso. — Eu disse ao chefe,
quando uma mulher de meia-idade em um quimono azul escuro
apareceu na porta e, com um suspiro, saiu correndo novamente. —
Temos nossos próprios suprimentos. — Lembrei-me da pequena
comunidade agrícola na base das montanhas perto do templo Ventos
Silenciosos. Às vezes, um fazendeiro aparecia nos portões do templo
para pedir que alguém orasse por seus campos ou expulsasse os
espíritos da má fortuna de sua casa ou membro da família. Os monges
obedeciam e aceitavam apenas parcas formas de pagamento em
troca; um saco de cevada ou algumas cenouras magras. As pessoas de
lá mal conseguiam se sustentar, disse-me Mestre Isao. A agricultura
era uma vida difícil; muitas aldeias frequentemente passavam fome, já
que mais da metade de sua colheita de arroz ia para o daimyo do Clã
da Terra para pagar impostos a cada ano. Eu não queria tirar comida
dessas pessoas se pudesse evitar.
Mas o chefe não quis nem ouvir falar, afirmando mais uma vez
que éramos convidados de honra em Yamatori, e que seria
imperdoável nos tratar como menos. Assim, sentamos de pernas
cruzadas em grossos tapetes de tatame com bandejas laqueadas à
nossa frente, enquanto a esposa e as filhas do chefe nos traziam prato
após prato de comida. Grande parte era comida simples e saudável:
repolho em conserva, enguias de rio cozidas em missô, ameixas secas
e tigelas aparentemente ilimitadas de arroz puro, sem um grão de
milho para reforçá-lo. Segundo o chefe, alguns dos fazendeiros
preparavam seu próprio saquê, que Okame teve grande prazer em
degustar; Tatsumi e eu continuamos com o chá. Mas não importa
quantas vezes eu esvaziei minha tigela de arroz, outra aparecia, quase
por mágica. Não consegui acompanhar a quantidade de comida,
mesmo enquanto Okame se empanturrava de tudo. Tatsumi comia
muito pouco, não dizendo nada, exceto para recusar educadamente a
oferta de mais. Se não fosse pelo fato de que o chefe estava comendo
os mesmos pratos que nós, eu duvidava que ele tivesse tocado em
alguma coisa.
Finalmente, quando eu não pude comer outro kernel, o chefe se
levantou de sua mesa, sorrindo e apertando as mãos. — Vocês devem
estar cansados depois de uma viagem tão longa. — disse ele, olhando
por uma das janelas, onde uma lua amarela inchada estava
começando a aparecer por cima das copas das árvores. — Se vocês me
seguirem, vou mostrar onde vocês podem dormir esta noite.
Eu me endireitei, sentindo meu estômago apertar contra minhas
costelas, e reprimi um bocejo. — Você é muito generoso. — eu disse,
ganhando outro olhar estranho do chefe, como se ele estivesse
novamente confuso por ser eu quem falava pelo grupo, e não o
silencioso samurai vestido de preto atrás de mim. — Mas não
gostaríamos de invadir sua linda casa.
— Não é nenhum problema, minha... senhora. — disse o
chefe. — Temos uma casa de hóspedes nos fundos que mantemos
para esse propósito. É calmo e isolado do resto da aldeia. Vocês não
serão perturbados, garanto-lhes. — Ele me deu um sorriso trêmulo,
enquanto suas duas filhas pairavam fora da porta olhando para
dentro, com os olhos arregalados e... com medo? — Por favor sigam-
me.
Saímos de casa pela porta dos fundos, mas do outro lado da
cerca de bambu, uma pequena multidão havia se reunido. Quando
entramos, uma jovem se adiantou, sorrindo e segurando um pacote de
rabanetes brancos. Com uma reverência, ela colocou os vegetais em
minhas mãos e deu um passo para trás antes que eu pudesse dizer
qualquer coisa.
— Hum... obrigada. — As palavras mal saíram da minha boca
quando outra moradora se aproximou e me entregou uma cabeça
inteira de repolho. Ainda uma terceira colocou um trio de pepinos em
cima da pilha crescente de vegetais; eu os agarrei antes que pudessem
rolar para o chão. Ambas as mulheres se curvaram e recuaram
rapidamente, ignorando meus protestos.
Olhei para Okame e o encontrei cercado de aldeões também. Um
homem de barba branca colocou uma cabaça de saquê em volta do
pescoço, sorrindo, enquanto uma velha, possivelmente sua esposa,
colocava em suas mãos um cesto de junco de peixe seco. O chefe não
fez nada para impedir ou desencorajar isso, e mais comida foi
adicionada à pilha com sorrisos e reverências, como se eles estivessem
genuinamente felizes por estarem doando seu sustento.
Tatsumi, eu percebi, permaneceu impassível, provavelmente
porque você quase podia ver a aura hostil ao seu redor, o olhar não
me toque em seus olhos roxos e frios. No entanto, quando uma
menininha em um quimono esfarrapado cambaleou e levantou um
caqui ligeiramente amassado para ele, ele aceitou o presente com uma
reverência solene de sua cabeça, antes que a mãe da menina a
arrebatasse com desculpas apressadas.
Quando passamos pela multidão, Okame e eu estávamos
carregados de comida e eu mal conseguia enxergar além de minhas
próprias ofertas. Eu esperava que esta casa de hóspedes não fosse
longe. Seguimos o chefe por uma estrada de terra estreita, passando
por mais campos e depósitos para o arroz, pesadas construções de
madeira apoiadas em palafitas para mantê-los fora da umidade. Ao
redor da aldeia, as montanhas assomavam no ar, silhuetas negras
contra um céu polvilhado de estrelas. Um pássaro noturno piou, um
grito triste na escuridão, grilos cantavam na grama alta e vaga-lumes
piscavam como uma galáxia em miniatura sobre os campos. Deveria
ter sido tranquilo aqui.
Então, por que me sentia tão... exposta?
Olhei por cima do ombro e vi que os aldeões haviam
desaparecido.
Exceto por um.
O monge estava de volta, parando como uma estátua ao lado da
estrada. Suas vestes negras se misturavam à escuridão, mas seu cajado
e chapéu de aba larga cintilavam à luz fraca da lua. Sob o chapéu, seu
rosto estava escondido nas sombras, mas eu podia sentir que ele
estava nos observando, a mim em particular.
Eu me virei e quase esbarrei em Okame, pois ele e o chefe
pararam no meio da estrada. Com um “Gomen” apressado, desviei e
quase colidi com Tatsumi, que suavemente se afastou para evitar a
colisão e até pegou o pepino que caiu livre do resto.
— Como eu estava dizendo. — O chefe me lançou um olhar
levemente irritado e apontou um dedo grosso para o caminho. —
Vocês podem ver a casa de hóspedes daqui. Continuem seguindo a
estrada.
Espiei por cima das folhas de repolho e só pude ver uma casa
atarracada e isolada à beira dos campos. Parecia com todas as outras
casas de aldeia que tínhamos visto, com paredes de madeira e um
telhado de palha pontiagudo. Uma luz laranja suave se espalhou pelas
barras da janela e pela porta aberta, e eu pude ver o brilho de uma
fogueira através da moldura. A estrada passava pela cabana e
continuava descendo uma ladeira até desaparecer de vista.
— Tudo foi preparado para vocês. — o chefe continuou, falando
com Okame e me ignorando. — O fogo foi aceso e roupa de cama
limpa foi colocada. Há um riacho atrás da casa, se vocês precisarem de
água, e uma panela sobre a fogueira, se ficarem com fome no meio da
noite.
Eu não vi como isso era possível; eu nem queria pensar em
comida até amanhã de manhã. Mas Okame agradeceu ao chefe, que
deu um sorriso um tanto frágil e curvou-se.
— Vocês nos honram com sua presença. — disse ele, ainda
olhando para o chão. — Espero que gostem da sua estadia em
Yamatori. Oyasuminasai.
— Boa noite. — Eu repeti, e o chefe saiu, caminhando de volta
para a vila quase correndo. À medida que sua silhueta ficava cada vez
menor, percebi que o monge que estava parado ao lado do caminho
não estava mais lá.
Capítulo 18
Maldições e Gaki
Algo estava errado com esta aldeia.
Eu senti, Hakaimono sentiu e eu tinha quase certeza de que
Yumeko também sentiu, embora o ronin parecesse alheio. Não era
apenas o ar de excitação e medo que pairava ao redor da aldeia como
uma névoa densa. Ou a maneira como os aldeões ficavam quase
frenéticos para doar sua comida, apesar do fato de que não era
incomum os fazendeiros passarem fome durante os meses de inverno
e o arroz ser mais precioso do que ouro para eles. Comportamento
suspeito, embora não fosse irracional para a aldeia compensar nossas
necessidades, especialmente se eles tivessem sido maltratados por
samurais errantes no passado. Nossa comida não tinha sido
envenenada, pelo menos; parte do meu treinamento envolveu um
conhecimento íntimo das várias toxinas e de seu sabor, e a refeição
estava limpa.
Mas havia outros indicadores menores que fizeram meus
instintos se arrepiarem. As cercas ao redor dos arrozais, as pontas dos
bambus pontiagudas e letais. As casas com portas fortemente
fortificadas. O fato de que não havia nenhum tipo de animal na
aldeia; sem cães, gatos ou galinhas. Yamatori tinha um segredo. Só
não sabia se devíamos nos preocupar com isso.
A casa de hóspedes estava vazia, e as brasas brilhando na
fogueira lançavam sombras compridas sobre as paredes de madeira
nuas. Yumeko passou pela porta, então se ajoelhou e deixou cair o
pacote de comida em um canto com um suspiro. O ronin seguiu o
exemplo dela, mas ficou com a jarra de saquê, dando um gole antes de
enfiá-la no haori.
— Eu não sei sobre vocês dois, mas eu gosto deste lugar. — ele
anunciou, caindo diante da fogueira. — Não como bem há semanas e
há muito mais de onde isso veio. — Ele deu um tapinha no estômago
com um sorriso preguiçoso. — Estaremos nos empanturrando como
príncipes até a capital.
— Baka. — eu disse baixinho. Idiota. — Esta aldeia está
escondendo algo. Eles não estavam nos alimentando para serem
gentis. Fomos colocados aqui com um propósito.
Yumeko parecia aliviada. — Você também sentiu. — ela disse, e
eu assenti. — É a coisa mais estranha... — ela continuou, olhando de
volta para a aldeia. — Tive a impressão de que queriam que a gente
fosse embora, mas, ao mesmo tempo, estavam desesperados para que
ficássemos. Todos estavam se esforçando tanto para nos fazer sentir
bem-vindos, embora estivessem apavorados. — Ela fez uma pausa,
então olhou para mim, seus olhos preocupados. — Você não acha que
eles nos trouxeram aqui para nos roubar ou nos matar enquanto
dormimos, acha? Isso seria terrivelmente desonesto.
No chão, o ronin bufou, deitando-se de lado e apoiando a cabeça
em uma das mãos. — Os agricultores são covardes. — disse ele, como
se falasse por experiência própria. — Se eles tentassem cortar nossas
gargantas seria enquanto dormimos, mas pelo que vi, eles estão com
muito medo até mesmo para isso. — Ele bocejou, coçou o pescoço e
olhou para fora da porta. — Mas provavelmente deveríamos ficar de
olho esta noite, apenas no caso.
Fui até a porta com a intenção de fechá-la, apenas para descobrir
que não havia porta nos trilhos. Franzindo a testa, olhei em direção à
aldeia, percebendo que a estrada serpenteava ao redor da cabana e
continuava descendo a encosta nos fundos. Não gostando da ideia de
que mais da aldeia pudesse ficar para trás, saí e segui o caminho ao
redor da cabana, até chegar à beira da colina e ver o que havia no
fundo.
Um campo de lápides, rodeado por uma cerca simples de
bambu, espalhadas em fileiras aleatórias na grama na base da
colina. Lápides grosseiramente talhadas projetavam-se da terra,
intercaladas com lanternas de pedra e estátuas de Jinkei, o Kami da
Misericórdia e o Perdido. Muitas das estruturas, desde os marcadores
até as lanternas e as próprias estátuas, estavam cobertas de musgo,
seus rostos gastos pela erosão e pelo tempo. Mas havia várias lápides,
especialmente as mais próximas da cabana, que pareciam muito mais
recentes.
Yumeko apareceu ao meu lado, também olhando para o
cemitério. Estranho poder sentir a presença dela, outro corpo próximo
ao meu, e não querer me afastar e colocar distância entre nós. — Bem.
— A garota declarou após um momento. — Isso é interessante. É
comum colocar seus convidados de honra a poucos passos de seu
cemitério?
— Normalmente não. — Eu murmurei.
Yumeko continuou a observar o campo de pedras. — Você acha
que pode haver yurei? — ela perguntou. Ela não parecia terrivelmente
preocupada com isso, como se a ideia de encontrar um fantasma fosse
mais curiosa do que assustadora. Fiquei intrigado. A maioria dos
yurei era inofensivo, satisfeitos em assombrar o lugar em que
morreram, tristes e trágicos, mas não perigosos. Havia outros,
entretanto, onryo e goryo sendo os mais temidos, que morreram com
ódio ou ciúme em seus corações e voltariam para se vingar daqueles
que os injustiçaram. Às vezes, seus rancores duravam anos, séculos,
pois a maldição afetava não apenas as pessoas que os traíram, mas
também seus descendentes.
— Depende. — Eu disse a Yumeko, sem querer explicar tudo
isso.
— De que?
— Se eles foram enterrados apropriadamente. Se eles receberam
os ritos funerários adequados para que pudessem morrer. Se eles
morreram sem emoções fortes ou negócios inacabados, isso faria com
que eles permanecessem no reino mortal. — Eu olhei para o cemitério.
— Então... sim, é perfeitamente possível que veremos yurei esta noite.
— Pelo menos há um monge na cidade. — disse Yumeko. — Ele
teria realizado os ritos de enterro adequados, não é?
Eu fiz uma careta ligeiramente e olhei para ela. — Que monge?
— O monge. — Yumeko repetiu, gesticulando em direção à
aldeia. — Ele estava na casa do chefe quando chegamos pela primeira
vez, e novamente no caminho aqui. Você não o viu?
— Não. — Não que eu duvidasse de sua declaração. Como os
kodama e os kamaitachi, parecia que Yumeko era adepta de ver o
mundo espiritual. Melhor do que eu, parecia. Eu sabia como localizar
demônios e yokai, mas isso geralmente era devido à influência de
Kamigoroshi, a sede de sangue insaciável de Hakaimono crescendo,
alertando-me quando eles estavam perto. Como o demônio não se
importava muito com yurei, eu era menos sensível à presença de
fantasmas, a menos que eles fossem muito poderosos ou me fizessem
mal.
— Tinha um monge. — Yumeko insistiu. — Ele usava haoris
pretos, um chapéu de palha e carregava um cajado com anéis de metal
que repicavam enquanto ele andava. — Ela parou por um momento,
parecendo pensativa, então perguntou: — Oh, você acha
que ele poderia ser um yurei que assombra esta aldeia, e é por isso
que todo mundo está agindo de forma tão estranha?
— Talvez. — Fantasmas eram mais difíceis de descobrir do que
demônios. Normalmente eram problemas para um monge ou onmyoji
cuidar, exorcizar ou aplacar o espírito para seguir em frente. O clã
nunca me enviou atrás de yurei; ninguém tinha certeza do que
acontecia com as criaturas que Kamigoroshi matava: se eles eram
banidos para renascer ou totalmente apagados da existência. O
pensamento de que uma alma humana poderia ser extinta sem passar
adiante, para simplesmente deixar de existir, era uma ideia horrível e
blasfema que mesmo os Kage não arriscariam. Eu poderia matar
demônios e yokai em ondas, mas estava proibido de matar um
fantasma, a menos que fosse uma questão de vida ou morte.
Yumeko suspirou. — Eu não acho que vou dormir muito esta
noite.
Nós nos viramos e voltamos para a cabana, roncos altos nos
saudando quando passamos pelo batente da porta. O ronin já havia
adormecido nas tábuas ásperas perto do fogo, a jarra de saquê
frouxamente segura em uma das mãos. Yumeko balançou a cabeça,
passou por cima de seu corpo e foi até um dos colchões de palha no
canto. Eu me acomodei na porta, puxando a bainha da espada do
cinto e colocando-a no colo. Eu podia sentir os olhos de Yumeko em
mim enquanto ela se enrolava no colchão e puxava uma colcha puída
sobre a cabeça.
— Tatsumi-san? — ela perguntou depois de alguns minutos
ouvindo o roncar de Ronin. Perto do fogo, o corpo no chão tossiu e
mudou de posição, ficando em silêncio por um momento.
— Hn. — Eu grunhi.
— Estou feliz por você estar aqui. — Seus olhos, escuros e
luminosos, me observavam por baixo do cobertor. — Eu sei que a
estrada é perigosa, mas me sinto mais segura sabendo que você está
perto. Eu nunca seria capaz de dormir sozinha em uma vila mal-
assombrada. Então, obrigada... por ficar.
Por alguma razão, isso fez meu estômago se contrair um pouco,
e eu não tinha ideia do porquê. — Nós dois fizemos uma promessa. —
Eu a lembrei. — Você me guiaria até o templo, e eu a protegeria no
caminho. Estou aqui pelo pergaminho, nada mais.
— Eu sei. — Sua voz era muito suave na escuridão da sala. —
Mas eu ainda estou feliz que você escolheu ficar. Eu... — Um bocejo a
interrompeu, e ela o cobriu com a mão. — Eu posso até ser capaz de
dormir esta noite. Porque eu sei que você está aí. — Ela torceu o nariz
quando um ronco veio do ronin adormecido perto da fogueira. — Se
baka-Okame não me mantiver acordada, claro. Boa noite, Tatsumi-
san.
Eu não respondi. Depois de um tempo, sua respiração tornou-se
lenta e profunda enquanto ela perdia a consciência.
Por um momento, sem ser visto por olhos humanos
condenadores, cedi ao meu fascínio e me permiti olhar para ela. Sua
pele pálida parecia brilhar ao luar inclinado através das janelas de
treliça, seu cabelo uma cortina de tinta em suas costas e ombros. Ela
respirava calmamente, o rosto desprotegido durante o sono, como
quando ela estava acordada. Uma mecha de cabelo preto azeviche se
soltou e caiu em seus olhos, e eu tive uma necessidade
incompreensível de pentear para trás.
A repulsa se instalou e eu me virei, cerrando o punho na
perna. Por que eu estava me achando tão distraído ultimamente? Eu
conhecia minha missão, recuperar o pergaminho a qualquer custo e
voltar para Dama Hanshou. Mas aqui estava eu, com essa garota e
agora um ronin rude, tendo prometido não ir embora.
Por apenas um momento, eu vacilei. Por um segundo, minha
guarda baixou e o nojo transformou-se em uma raiva instantânea e
ardente. De repente, fui preenchido com o desejo irresistível de pular
e matar meus companheiros inúteis, de derrubá-los enquanto
dormiam e ver seu sangue jorrar pelo chão e chiar na fogueira.
Silenciosamente, me levantei e entrei na sala, minha mão no
punho da minha espada. Minha sombra caiu sobre a garota,
cochilando pacificamente em seu colchão. Seria fácil, pensei, olhando
para a nuca dela, tão exposta e vulnerável ao luar. Nenhum deles
perceberia que estava morto até que acordassem como yurei, ou na
próxima vida, e então eu estaria livre para procurar o pergaminho
sozinho. Eu não precisava que a garota encontrasse o que eu
procurava, nem precisava manter minhas promessas. Eu era o
matador de demônios Kage e o melhor shinobi do Clã das
Sombras. Honra e vidas humanas não significavam nada para mim.
Minha mão apertou o cabo da lâmina e comecei a puxá-la de sua
bainha.
Não, Hakaimono! Já é o suficiente!
Arrancando o controle do demônio, empurrei Kamigoroshi de
volta em sua bainha e me afastei da garota adormecida. Cambaleando
para fora, pressionei a palma da mão no meu rosto, respirando com
dificuldade enquanto lutava para limpar a raiva e sede de sangue da
minha mente. Hakaimono lutou comigo, sem vontade de desistir, a
fúria e a violência ainda cantando em minhas veias. Fechando meus
olhos, lembrei-me do mantra que meu sensei me ensinou, entoando-o
como um sutra em minha cabeça.
Não seja nada. Você não é uma pessoa; você é uma arma. Uma arma
não sente. Uma arma não tem emoções para atrapalhar ou desacelerar. Não
sinta nada. Não se arrependa de nada. Você é apenas uma sombra, vazia e
sem alma. Você é nada.
— Eu não sou nada. — Eu sussurrei, e senti a presença de
Hakaimono sumindo de minha mente. — Eu sou uma arma nas mãos
dos Kage. Não vou traí-los ou falhar em minha missão.
Quando abri os olhos, estava totalmente no controle. A raiva,
confusão e dúvida foram eliminadas do meu corpo, deixando-me com
uma percepção fria. Não podia me dar ao luxo de baixar a guarda, de
permitir que qualquer coisa, ou qualquer pessoa, me
distraísse. Hakaimono havia desistido da luta por enquanto, mas isso
tinha sido um lembrete assustador do que estava em jogo. Eu me parei
a tempo, mas se a espada tivesse provado sangue, eu poderia ter
massacrado toda a vila antes que o demônio estivesse satisfeito,
começando com a mesma garota que eu deveria proteger.
Yumeko. Eu estreitei meus olhos. Yumeko era uma distração:
intrigante, confusa e perigosa. Eu não sabia por que ela me afetava
tanto, mas não podia continuar. Hakaimono estava ganhando tempo,
atraindo-me para uma falsa sensação de segurança, antes de tentar
assumir o controle. Quase funcionou. Eu não poderia deixar isso
acontecer novamente.
Um toque suave cortou o silêncio.
Eu olhei para cima. Um monge parou na estrada que
serpenteava pela casa, sua forma enevoada e borrada ao luar. Ele
usava haoris pretos, um chapéu de palha de aba larga e carregava um
cajado com quatro anéis de metal pendurados no topo. Exatamente
como Yumeko havia dito. Sem tirar os olhos de mim, ele ergueu o
cajado, apontando-o no caminho... e desapareceu.
Desconfiado, mas sabendo que os presságios dos mortos não
podiam ser ignorados, rastejei ao redor da casa, espiando pela encosta
do cemitério.
Não estava mais vazio.
Todo o cemitério brilhava com uma luz verde estranha e doentia
que iluminava as dezenas de corpos cambaleando entre os
túmulos. Eram criaturas nuas e emaciadas, com membros semelhantes
a palitos e barrigas inchadas e distendidas. Vagamente humanos, eles
caminhavam curvados ou rastejavam pela terra como animais, suas
bocas abertas exibindo fileiras de dentes irregulares e quebrados.
Gaki.
Eu me agachei nas sombras da cabana, percebendo meu
erro. Esta aldeia era assombrada, mas não por um único yurei. Gaki
eram os espíritos de humanos gananciosos ou perversos que
morreram e voltaram amaldiçoados com fome eterna. Por mais que
comessem, estavam sempre morrendo de fome e nada os
satisfazia. Eles eram criaturas dignas de pena, e um único gaki não era
normalmente considerado perigoso, mas se nenhum alimento fosse
encontrado, eles eram conhecidos por se tornarem violentos,
procurando qualquer coisa, viva ou morta, para aplacar sua fome
agonizante.
Assistindo os gaki caminharem entre as lápides, uma fúria fria
começou a rastejar em minhas veias com a compreensão, alimentada
por Hakaimono. Os aldeões sabiam disso. Agora eu entendia o medo
e a expectativa. Não éramos “convidados de honra” como o chefe
queria que acreditássemos: éramos sacrifícios aos gaki.
Com cuidado, recuei e de repente percebi que não estava
sozinho. O monge estava ao meu lado, também olhando para os gaki
errantes, o rosto escondido nas sombras do chapéu. Antes que eu
pudesse fazer qualquer coisa, ele ergueu seu cajado, os anéis de metal
brilhando na escuridão, e o derrubou com um baque no chão. Os anéis
soaram, um retinir metálico que ecoou como um gongo no silêncio e,
como um só, os gaki giraram, seus olhos vazios e ardentes fixos em
mim.
Saltei para longe enquanto, com uivos e guinchos agudos, os
gaki avançaram correndo, passando por cima da cerca de bambu e
subindo pela colina. Correndo para a cabana, ignorei o ronin que
roncava e corri para Yumeko, agarrando-a pelo braço.
— Yumeko! — Ela piscou enquanto eu a puxava para cima, seus
olhos arregalados de espanto quando a coloquei de pé. — Levante-se!
— Tatsumi? O que você está...
Um grito a interrompeu, quando uma forma retorcida e esguia
apareceu na porta aberta. Com a boca aberta, o gaki gritou e se lançou
sobre nós, as unhas curvas agarrando como garras de
pássaros. Yumeko engasgou e eu pulei entre eles, Kamigoroshi
brilhando de sua bainha. A lâmina cortou o peito ossudo do gaki, e o
espírito torturado gemeu enquanto ele estremecia em tentáculos de
névoa verde-escura e se contorcia para longe.
— Coloque o ronin de pé! — Chamei, enquanto mais gaki
apareciam através da moldura, os olhos brilhando de loucura e
fome. Plantei-me na porta e os encontrei com minha espada
desembainhada, bloqueando a entrada. Hakaimono, sua raiva
esquecida, brilhou de excitação com a perspectiva de matar, banhando
a multidão em luz roxa.
Uivando, os gaki se lançaram, dentes à mostra, garras
agarrando-se a mim. Eu os cortei quando eles avançaram, cortando
membros e cabeças igualmente, dividindo corpos como palitos em
dois. Os gaki não demonstraram medo ou autopreservação enquanto
avançavam, lançando-se sobre minha lâmina com uma fúria estúpida,
sua fome consumindo e os deixando loucos. Mesmo se eu cortasse um
membro, o dono ainda pressionaria, arranhando com o outro, ou
tentando me morder se ambos tivessem saído. Eles se dissolviam em
névoa etérea à medida que eram destruídos, mas sempre havia mais,
uma horda aparentemente interminável aglomerando-se na pequena
entrada da cabana. Uma garra atravessou minhas defesas e abriu um
corte em meu pescoço, e o cheiro de sangue parecia levar a multidão a
um frenesi ainda maior.
Algo zumbiu perto do meu ouvido, a centímetros do lado do
meu rosto, e uma flecha atingiu a testa de um gaki, enviando-o para a
névoa. Enquanto eu golpeava outro, uma segunda flecha brilhou entre
meus braços e um gaki uivou enquanto desaparecia. Através do caos e
da fúria da batalha, eu vagamente percebi que o ronin tinha uma
pontaria perfeita e tempo para atirar por uma porta comigo ainda na
frente dele, ou ele estava tendo uma sorte insana.
— O que são essas coisas? — Eu ouvi Yumeko gritar, em algum
lugar atrás de mim. — O que eles querem?
— Gaki! — o ronin gritou de volta, quando outra flecha zumbiu
ao longo de minhas costelas e atingiu uma em seu estômago
inchado. — Fantasmas famintos! Você não pode argumentar com
eles. Pobres coitados estão morrendo de fome e tentarão comer
qualquer coisa, inclusive nós.
Outra garra passou e se agarrou à minha manga, rasgando o
tecido e levando um pedaço de pele junto com ele. Hakaimono rosnou
de raiva e se ergueu, me pedindo para deixá-lo ir, para liberar seu
poder e massacrar a multidão patética diante de nós. Eu ignorei,
empurrando a influência do demônio para baixo, não confiando em
mim ou na lâmina agora.
Algo maior do que uma flecha passou perto da minha cabeça e
acertou um gaki no rosto. Ele cambaleou para trás quando um grande
rabanete caiu no chão na frente dele. Com um grunhido, o gaki
ignorou o vegetal e voou para mim novamente, e Hakaimono sibilou
de prazer quando a espada cortou seu pescoço magro. A cabeça caiu,
quicou uma vez ao lado do rabanete e se dissolveu em névoa.
Várias outras ofertas de comida passaram por meus ombros e
braços, em direção à multidão de gaki, que os ignorou ou até mesmo
os repeliu. — Eu não acho que eles estão interessados em comida
normal. — Yumeko observou, enquanto eu cerrava meus dentes e
desejava que meus companheiros parassem de jogar coisas na minha
cabeça. — Eu acho que eles só querem nos comer.
Houve um farfalhar alto acima de mim e Yumeko soltou um
grito. — Okame, eles estão entrando pelo telhado!
— Droga! — Ouvi o chiado de uma corda de arco, um baque e
um guincho acima de mim quando um gaki chegou ao fim. — Mais
entrando. — O ronin gritou, enquanto o som de palha rasgando
ecoava no alto, e pedaços de palha começaram a flutuar ao meu
redor. — Ei, Kage, como a multidão está parecendo para você?
Eu cortei dois gaki que tinha corrido para frente, dando uma
olhada em uma fração de segundo nos números além. — Faltam cerca
de uma dúzia. — Ofeguei, recuando para evitar que as garras do gaki
rasgassem meu rosto. — Basta mantê-los longe de mim por mais
alguns segundos. E proteja Yumeko.
Mais assobios e gritos ecoaram atrás de mim, mas não consegui
me afastar da multidão na porta. Eu ouvi pés correndo, o ronin
xingando e então um grito de Yumeko que enviou um arrepio pelo
meu estômago. Decapitando o último gaki, eu me virei, pronto para
correr em sua defesa, esperando não ver seu corpo sem vida no chão,
um par de monstros rasgando-o em pedaços.
O ronin estava esparramado de costas perto da fogueira, o arco
seguro à sua frente como se para afastar algo. Yumeko estava ao lado
dele com seu punhal estendido, os restos de névoa verde enrolando-se
em torno dela enquanto desaparecia com a brisa. Sua manga estava
rasgada, rasgada por garras, mas não parecia haver sangue.
— Esse é... o último deles? — ela ofegou, olhando para mim.
Eu balancei a cabeça uma vez e embainhei Kamigoroshi,
sentindo uma estranha vibração de emoção no meu peito. Vê-la viva e
ilesa... foi alívio que senti?
— Tatsumi. — Yumeko deu um passo à frente, seus olhos
olhando preocupados para o lado do meu pescoço onde os gaki o
haviam arranhado. Eu podia sentir o sangue da carne rasgada
começando a se infiltrar no meu colarinho. Meu braço também estava
começando a pingar sangue nas pranchas de madeira. — Antes de
qualquer coisa, devemos cuidar disso. Você ainda tem algum
remédio?
Ela deu mais um passo em minha direção e me lembrei de seu
toque, fresco e suave, deslizando sobre minha pele. Tão diferente dos
curandeiros do Clã das Sombras; eles cuidaram de minhas feridas com
rápida e brutal eficiência, sem me poupar nenhum desconforto. Como
em tudo em minha vida, passei a ver a dor que vinha de seus
cuidados como normal. Como Ichiro-sensei costumava dizer: a dor era
uma coisa boa; significava que eu ainda estava vivo. Mas com
Yumeko... essa foi a primeira vez na memória recente que outra
pessoa me tocou... sem me machucar.
Eu enrijeci e me afastei dela. Sem distrações, eu me lembrei. Sem
emoção, sem fraquezas. Se eu me deixasse cair no feitiço dessa garota,
desejando um toque que não fosse doloroso, Hakaimono se agarraria
a essa falha e me transformaria em um demônio.
— Não. — Eu avisei com uma voz fria, e ela parou, piscando em
confusão. — Não chegue perto de mim. — Eu disse a ela, recuando. —
Eu não preciso de sua ajuda. Eu mesmo cuidarei disso.
Sua testa franzida, perplexidade e algo mais passando por seus
olhos. Ignorando aquele olhar e a vaga sensação de aperto em meu
peito, passei por ela, em direção ao balde cheio de água no canto da
cabana. Eu tinha minha missão e não vacilaria. Nada importava,
exceto recuperar o pergaminho e retornar para Dama Hanshou. Uma
arma não questiona as demandas de seus proprietários, ou o
propósito para o qual foi criada. Uma arma existia apenas para
obedecer... e para matar.
— Oi. — O ronin exigiu enquanto eu me afastava, apontando
para seu rosto e os cortes superficiais em sua pele. — E quanto a
mim? Isso não é maquiagem Kabuki, você sabe.
— Por que eu acharia que é maquiagem Kabuki, Okame-san?
Ele suspirou. — Deixe pra lá.
Observei Yumeko pegar um pano de seu obi e caminhar até o
ronin, então se agachou para olhar seu rosto. — E os gaki? — ela
perguntou, enxugando sua bochecha. — Você acha que poderia haver
mais lá fora?
— Eu espero que não. Ite. — Ele recuou de suas administrações,
fazendo-a franzir a testa. — Malditos fantasmas famintos. Bem, que
venha a manhã, eu conheço vários fazendeiros que vão morrer
gritando por misericórdia.
Yumeko abaixou o pano, seus olhos se arregalando. — Por quê?
— Yumeko-chan. — O ronin balançou a cabeça exasperado. —
Foi uma armação, se é que alguma vez vi uma. Aquele chefe sabia
sobre os gaki, inferno, toda a aldeia sabia. Éramos iscas, eles podiam
muito bem ter amarrado um sino em nossos pescoços. Eu sei disso, e
Kage-san também, certo, samurai?
— Eles estavam esperando que nós morrêssemos. — Eu
concordei, passando o unguento em minha própria ferida. — É por
isso que eles estavam tão ansiosos para que passássemos a
noite. Então os gaki iriam nos comer e deixar a aldeia em paz.
— Sim. — O ronin deu um aceno severo. — Só que agora estou
muito vivo e com muita raiva. — Ele pegou o pano de Yumeko, então
se levantou e caminhou até meu canto, olhando para mim. — Então,
Kage-san. — Ele começou. — Eu acho que um pouco de retribuição
está em ordem. Que tal chutarmos a porta do chefe, enfiar a cabeça
dele em uma lança para os gaki e queimar todo este lugar maldito até
chão?
Capítulo 19
Falando com Yurei
Ele não está falando sério. Eu encarei o ronin, que estava parado
perto de Tatsumi com expectativa. Embora Okame exibisse um sorriso
sombrio, seus olhos eram planos e perigosos, prometendo represália.
Ele estava falando sério.
— Okame-san, você não pode. — Protestei. — Eles nem estão
armados. Não podemos massacrar essas pessoas em suas casas.
— Você pode não conseguir. — O sorriso maligno de Okame
cresceu mais amplo, mostrando aqueles caninos ligeiramente
pontiagudos. — Eu, no entanto, não gosto de servir de alimento de
gaki, especialmente por fazendeiros traiçoeiros e mentirosos. No
mínimo, acho que a casa do chefe deveria ser demolida e sua cabeça
presa em um poste na periferia da cidade, como um aviso para outros
viajantes. O que você diz, Kage?
Tatsumi enrolou uma tira de pano em volta do braço ferido e
usou os dentes para puxá-la com força. — Não.
— Não? — O ronin ficou boquiaberto, mesmo quando eu
desmoronei de alívio. — Por que diabos não? Você não é um
samurai? Esses camponeses tentaram nos matar.
— Minha missão não é queimar aldeias. — Tatsumi não ergueu
os olhos. — Seria uma perda de tempo. Fique e tome sua vingança se
quiser, não importa para mim. Yumeko e eu estaremos deixando este
lugar ao amanhecer.
O ronin bufou de desgosto. — Como quiser. — Ele
murmurou. — Suponho que isso seja justiça poética, deixe esses
camponeses serem comidos por seus próprios fantasmas
famintos. Aposto que em alguns anos não restará mais uma aldeia,
apenas um cemitério cheio de gaki.
— Mas por que existem tantos gaki por aí? — Eu me
perguntei. — De onde eles vêm? Eles simplesmente saltam do chão,
famintos e irritados?
— Gaki são as almas dos humanos que eram gananciosos na
vida, cujo egoísmo causou grande dano. — disse Tatsumi. — Eles
estão sendo punidos por sua ganância e continuarão com fome
eternamente, até que tenham sofrido o suficiente para seguir em
frente.
— Mas os aldeões aqui eram o completo oposto de gananciosos.
— Argumentei. — Você os viu. Eles estavam quase frenéticos para dar
coisas.
Okame encolheu os ombros. — Talvez eles estejam esperando
não voltar como gaki quando forem inevitavelmente
comidos. Provavelmente há uma piada de mau gosto em algum lugar,
mas estou cansado demais para descobrir.
Eu balancei minha cabeça. — Algo está errado aqui. — Eu
murmurei, caminhando até a porta para olhar o caminho. — Há mais
nesta vila e nos gaki do que estamos vendo. E aposto que o monge
tem algo a ver com isso.
— Monge? — Eu ouvi a carranca na voz de Okame. — Que
monge?
— O yurei que... deixa pra lá. Devíamos falar com o chefe. — Eu
disse, voltando-me. Okame parecia incrédulo, mas foi o olhar de
Tatsumi que busquei, encontrando seus olhos. — Acho que ele pode
nos dizer o que está acontecendo. Já sobrevivemos ao ataque, eles não
vão esperar que marchemos de volta pela aldeia, não quando
deveríamos ser comidos pelos gaki. Aposto que ele vai explicar tudo
agora. — Tatsumi não respondeu e eu fiz uma careta para ele. — Você
não quer saber o que está acontecendo, Tatsumi? Você não está nem
um pouco curioso?
— Não.
— Bem, eu estou.
— Eu também. — Okame anunciou, para minha surpresa. —
Agora que você mencionou, com certeza gostaria de ter uma conversa
com nosso simpático chefe e perguntar por que ele está dando
viajantes de alimento para os gaki residentes. Na verdade, acho que
devemos ir agora. — Ele caminhou até a porta e olhou para fora, os
olhos escuros procurando. — Não vejo fantasmas famintos vagando
por aí. — Ele murmurou. — E se encontrarmos mais, sabemos que eles
podem ser mortos, ou banidos ou o que for. — Ele olhou para trás, um
sorriso desafiador cruzando seu rosto. — Para a casa do chefe,
então. Você vem ou não, Kage-san?
Tatsumi continuou a não dizer nada, sua expressão em branco
enquanto nos observava. Finalmente, ele se levantou graciosamente,
deslizou Kamigoroshi pelo cinto e deslizou pelo chão. Senti um
formigamento estranho na boca do estômago, meu batimento cardíaco
acelerando quando ele se aproximou.
— Vamos fazer isso rapidamente.

Os aldeões nos observaram enquanto marchamos pelo caminho


em direção à casa do chefe. Ninguém tinha dormido esta noite, pelo
que parecia. Nenhuma alma estava a céu aberto, mas eu as vi
espiando pelas frestas de suas janelas, os olhos arregalados de espanto
e medo. Claramente, eles não esperavam que sobrevivêssemos ao
ataque dos gaki e, sabiamente, ficaram fora de alcance. Ninguém nos
desafiou enquanto caminhávamos pela aldeia, passando pelo portão
da frente do chefe e subindo os degraus de sua casa. Só então notei
que sua porta era feita de madeira pesada e reforçada, e que vários
cortes longos haviam sido abertos na superfície.
Não é de admirar que era bloqueada por dentro. Okame a
sacudiu algumas vezes antes de recuar com um sorriso sombrio. —
Kage-san? — Ele olhou para Tatsumi e gesticulou para a porta. —
Você gostaria de fazer as honras?
A espada de Tatsumi brilhou de sua bainha, cortando a madeira
grossa como se ela fosse feita de papel de arroz. Dando um passo à
frente, Okame levantou um dedo e bateu na superfície, e as portas se
abriram com um gemido.
Cautelosamente, entramos na casa. A entrada estava vazia, mas
uma luz fraca vinha de dentro, piscando nas paredes e no
chão. Abrindo um painel, vimos o chefe ajoelhado no centro da sala,
um braseiro aceso projetando suas feições em um brilho vermelho.
Assim que a porta se abriu, ele caiu para a frente, prostrando-se
no chão, pressionando o rosto contra a madeira.
— Misericórdia! — Sua voz abafada flutuou do chão, tremendo e
apavorada. — Tenham piedade, meus senhores. Matem-me se for
preciso, mas poupem a aldeia. Eles não merecem sua ira.
— Eles não merecem? — Okame cruzou os braços. — Então,
você está me dizendo que eles não tentaram nos oferecer de alimento
aos gaki? Que eles eram completamente ignorantes do que estava
acontecendo esta noite? — Ele bufou em descrença óbvia. — Bem, me
sinto tolo, pensando que toda esta aldeia estava armando para sermos
comidos.
Eu fiz uma careta para ele. — Mas eu pensei que
eles estavam nos preparando para sermos comidos. É por isso que eles
estavam... oh. Sarcasmo novamente. Eu vejo.
— Por favor. — O chefe não ergueu o rosto das tábuas. —
Tenham piedade. Estávamos desesperados. Vocês viram o que
enfrentamos. Vocês não sabem como é viver com aquelas
criaturas. Não sabemos mais o que fazer.
— Eles não são impossíveis de matar. — Isso de Tatsumi, sua
voz dura e impressionada. — Se seu povo se posicionasse em destruí-
los, você não teria tantos gaki vagando por aí.
— Nós tentamos! Tentamos matá-los, queimá-los, cortar seus
membros, prendê-los no subsolo. Não importa o que façamos, não
importa quantos matemos, eles sempre voltam. — O chefe cerrou os
punhos no chão em desgosto. — Faz parte da maldição! A maldição
que aquele maldito monge colocou sobre nós, e agora estamos
condenados a ser assombrados por gaki pelo resto de nossos dias e
além.
Ah. Agora as coisas começaram a fazer sentido. — Que
maldição? — Eu perguntei, dando um passo à frente. — Nós vimos o
monge. Ele é responsável pelos gaki?
— Vocês o viram? Misericordioso Jinkei, ele nunca ficará
satisfeito? — O chefe estremeceu violentamente e se sentou, fechando
os olhos. — Suponho que não há mais sentido em esconder isso. — Ele
sussurrou. — Por favor, sentem-se e eu contarei a vocês o maior
segredo e a maior vergonha de nossa aldeia.
Okame e eu avançamos e nos ajoelhamos no tatame. Tatsumi
escolheu permanecer de pé, pairando na porta, embora o chefe não
parecesse notá-lo.
— Esta aldeia... — começou ele. — ...sempre foi próspera. As
histórias dizem que quando meu tataravô era chefe, ele fez uma
barganha com Ojinari, o Kami da Colheita, que enquanto eles
cuidassem da terra, ela sempre seria fértil. Mesmo depois do imposto
sobre o arroz no final da temporada, depois que o daimyo ficava com
sua parte na colheita, a aldeia sempre tinha o que comer. Os campos
nunca murcharam, nunca secaram. Os riachos e lagos sempre
produziram peixes, e os jardins, pequenos como eram, sempre
produziram uma generosidade abundante. Nunca fomos ricos, mas
nunca passamos fome. Nisso, sabíamos que tínhamos sorte, muito
mais sorte do que outras aldeias que enfrentavam a fome a cada
inverno, e agradecemos ao kami por abençoar a terra.
— No entanto, com o passar das décadas, os moradores
começaram a temer que outros descobrissem sua riqueza em
alimentos e tentassem tirá-los deles. Somos uma pequena aldeia,
isolada do resto do mundo, se a palavra se espalhasse, ronin ou
bandidos poderiam descer sobre nós em ondas e levar toda a nossa
comida para eles. A aldeia nunca mais teve paz.
— Tal era o nosso pensamento, por mais falho que fosse. Apesar
de continuarmos a ter safras abundantes, começamos a acumular
nossa comida, escondendo-a como esquilos enterrando suas nozes. Os
poucos viajantes que encontravam a aldeia eram informados de que
éramos apenas fazendeiros pobres que mal conseguiam sem alimentar
e eram mandados embora sem nada.
— E então, uma noite no mais frio dos meses de inverno, um
monge passou pela aldeia. Ele ia de casa em casa, pedindo uma tigela
de arroz, uma única batata, tudo que pudéssemos ceder. A aldeia o
rejeitou, meu bisavô ordenou que todos fechassem as portas e
ignorassem o monge até que ele fosse embora.
— Durante três dias, ele ficou ao redor da aldeia, sentado na
neve com nada além de seu chapéu e manto para mantê-lo
aquecido. Ele se oferecia para orar por seus entes queridos, para dizer
uma bênção sobre os campos, em troca de um pedaço de comida. Ele
foi ignorado. Ninguém deu nada a ele. Eles fingiram não o ouvir, não
ver que ele estava morrendo de fome, embora ele nunca tenha
pronunciado uma palavra de reclamação.
— Três dias depois, eles o encontraram sentado do lado de fora
da porta do chefe, congelado e rígido. Ele tinha agarrado uma tira de
papel em uma mão rígida, escrita com sangue de seus próprios dedos,
amaldiçoando nossa ganância.
— Três meses depois que ele foi enterrado no cemitério fora da
cidade, a filha de um jovem agricultor caiu em uma foice kama e
morreu. Ela também foi enterrada no cemitério com o resto dos
mortos. Mas naquela noite, ela voltou, faminta e violenta. Ela invadiu
sua antiga casa e despedaçou sua família. No mês seguinte, a família
voltou também, miserável e errante, procurando carne quente para
consumir, e mais vidas foram perdidas para sua terrível fome.
— Então começou um ciclo. — O chefe terminou, seus olhos
escuros e assombrados. — Todos os meses, nas últimas três noites,
uma para cada dia em que deixamos o monge passando fome, os
fantasmas famintos levantam-se de seus túmulos para vagar pela
aldeia. Eles não estão interessados em comida normal, ofertas de
arroz, vegetais ou saquê são ignoradas. Eles têm fome apenas de carne
viva, consumindo aqueles que já foram parentes. Os gaki que vocês
viram esta noite, esses são nossos entes queridos mortos, nossas
famílias, todos os que morreram depois que aquele monge deu seu
último suspiro do lado de fora desta porta. Ele é um onryo, um
espírito de rancor, e sua maldição continua a nos punir pela ganância
de nossos ancestrais.
— Por que vocês simplesmente não saem? — Okame perguntou
quando o chefe terminou. — Parece a solução mais fácil. Façam as
malas e vão encontrar uma nova aldeia, deixem o cemitério e seus
problemas de fantasmas famintos para trás.
— Não é tão simples assim. — O chefe balançou a cabeça. —
Alguns tentaram fugir da aldeia, é claro. Mas a maldição os
segue. Gaki seguem seus passos, os fantasmas de suas famílias os
seguindo aonde quer que vão, aparecendo todas as noites em vez das
últimas três. Aqueles que tentam fugir ou voltam para a aldeia
aterrorizados, ou morrem e voltam como fantasmas famintos. — O
chefe olhou para fora da porta com olhos sombrios e mortos. — Não
há como escapar. Estamos presos aqui, e a maldição continuará até
que não haja mais ninguém, até que os gaki sejam tudo o que resta de
nós.
— Hã. — Abruptamente, Okame se levantou. — Bem,
eu estava pensando em te matar por nos jogar para os gaki, mas
pensando bem, parece que suas vidas estão horríveis do jeito que
estão. — Ele olhou para mim e sorriu. — Então, o que me diz de
sairmos daqui antes que a maldição se fixe em nós?
— Podemos? — Tatsumi se perguntou, seus olhos sombrios. —
Seremos perseguidos por gaki se tentarmos sair?
— Não. — O chefe disse estupidamente. — Seus ancestrais não
irritaram o monge. A maldição não os seguirá. Vocês podem sair e não
olhar para trás. Eu não culparia vocês, é claro. Este é o nosso castigo,
de mais ninguém.
— Alguém tentou falar com ele? — Eu perguntei, e aqueles olhos
mortos se voltaram para mim. — O monge? Seu fantasma ainda está
por aí.
— O monge. — Uma sombra de verdadeiro terror cruzou o rosto
do homem. — Ocasionalmente vimos vislumbres dele pela aldeia. —
disse ele. — Mas ele desaparece antes que possamos falar com
ele. Achamos que é mais um efeito da maldição, um eco do monge,
não o próprio fantasma. — Ele estremeceu. — O onryo... às vezes o
vimos no cemitério, um espírito brilhante de branco, caminhando
entre os túmulos. Mas nenhum de nós ousa se aventurar perto, os gaki
nos fariam em pedaços.
— E ele só aparece quando os gaki saem? — Eu perguntei.
— Sim. É como se ele desejasse ver nossa miséria e terror, para
ter certeza de que estamos sofrendo. — O chefe suspirou. — Eu não
posso o culpar por sua raiva, nossos ancestrais fizeram um grande mal
a ele. Mas me dói saber que estou destinado a me tornar uma coisa
miserável que ataca minha própria família. Eu não posso nem mesmo
tirar minha própria vida, eu simplesmente me ergueria como um
deles.
— Yumeko. — Tatsumi disse em uma voz de advertência do
corredor, como se percebesse o que eu estava pensando. Fingi não o
ouvir e me levantei, virando-me para encarar meus companheiros.
— Temos que ajudá-los.
— O que? — Okame me lançou um olhar de descrença. —
Marchar em um cemitério cheio de gaki para falar com um
fantasma? Caso você não tenha percebido, quase fui comido há alguns
minutos. Eu poderia realmente viver o resto da minha vida sem ter
que experimentar a coisa real.
Eu ignorei o ronin, travando os olhos em Tatsumi, que estava
encostado no batente da porta com os braços cruzados. — Temos que
fazer isso, Tatsumi-san. Depois de ouvir a história deles, como
podemos ir embora agora? Essas pessoas já sofreram o suficiente, não
são mais o alvo de sua ira. Se pudéssemos apenas falar com o monge,
talvez pudéssemos convencê-lo a acabar com a maldição.
— Yumeko. — O olhar de Tatsumi era duro, e ele balançou a
cabeça. — Não se pode argumentar contra espíritos de rancor. — disse
ele em voz grave. — A raiva deles os consumiu e sua vingança nunca
será satisfeita. Se o monge for realmente um onryo, você não terá
nenhuma esperança de aplacá-lo, e ele poderia muito bem voltar sua
ira contra você.
O medo arrepiou meu estômago. — Estou... disposta a arriscar.
— Eu disse. — Não vai demorar muito. Eu só preciso de alguém para
manter os gaki longe enquanto converso com o monge. Esta é a última
noite do mês. — Eu o lembrei, enquanto seus olhos se estreitaram. —
Será a única vez que poderemos falar com ele. Quando amanhecer, ele
desaparecerá com os gaki e perderemos nossa chance de acabar com a
maldição.
Tatsumi segurou meu olhar por mais um momento, então soltou
um suspiro. — Você vai falar com ele com ou sem mim, não é? — ele
murmurou.
Eu concordei. — Posso não ser capaz de empunhar uma espada
ou atirar uma flecha... — eu disse a ele. — Mas posso falar com
fantasmas e kami. Quero ajudar, e isso é algo que posso fazer.
Ele suspirou novamente e olhou para fora da porta. — Não
temos muito tempo. — disse ele, fazendo meu coração pular no
peito. — Quando chega o amanhecer, os espíritos tendem a
desvanecer-se quando a primeira luz surge no horizonte. Se vamos
falar com o monge, devemos fazê-lo agora.
Okame gemeu. — Esperem. — Ele rosnou enquanto virávamos
em direção à porta. Depois de puxar a cabaça de saquê de seu obi, ele
arrancou a tampa e virou o recipiente de cabeça para baixo em sua
boca aberta, esvaziando-o completamente. Ele enxugou os lábios,
jogou a garrafa no chefe e se voltou para nós com um sorriso. —
Ok, agora estou pronto.
A aldeia ficou em silêncio enquanto caminhávamos de volta para
fora. Acima, a lua brilhava, delineando as casas em prata e lançando
uma luz nebulosa sobre os arrozais distantes. Não vi nenhum gaki
andando por aí, mas conforme nos aproximávamos do cemitério,
pude ver a luz verde fraca vindo da base da colina.
Contornamos a parede da casa de hóspedes e depois olhamos
encosta abaixo.
Os gaki estavam de volta. Ou alguns deles estavam, de qualquer
maneira. Certamente não nos números que nos cercaram antes, mas
mais do que eu esperava, considerando que Tatsumi tinha eliminado
todos eles. E estávamos dentro da cabana quando eles atacaram, o que
permitiu que o matador de demônios lidasse com eles um de cada
vez. Ao ar livre, rechaçar uma multidão enorme seria muito mais
difícil.
— E você quer que a gente vá lá. — Okame suspirou e fez uma
careta enquanto olhava para as figuras cambaleando. — Ugh, isso não
vai ser divertido, mas mostre o caminho.
— Esperem. — Tatsumi estendeu o braço, nos parando. —
Podemos não ter que lutar.
Eu olhei para ele. Ele hesitou, como se estivesse lutando consigo
mesmo, então exalou. — Se marcharmos lá embaixo bem à vista, os
gaki estarão sobre nós em um piscar de olhos. No entanto, posso ser
capaz de executar uma técnica que nos tornará invisíveis por um curto
período.
— Hã. — Okame cruzou os braços. — Então, você é tocado pelo
kami, afinal. Eu pensei assim. Embora a espada brilhante assustadora
fosse uma grande dica. — Ele lançou um olhar para o samurai vestido
de preto atrás de nós e dramaticamente abaixou sua voz enquanto se
inclinava. — Há histórias... — ele me disse. — De que se uma criança
Kage nasce tocada por kami, ela é levada e criada para se tornar um
shinobi.
Eu fiz uma careta. — O que são shinobi?
— Guerreiros das sombras. Assassinos secretos que atacam na
escuridão, cortando sua garganta por trás ou durante o sono. —
Okame bufou. — Cada clã os emprega, não deixe toda aquela
conversa sobre honra no campo de batalha enganá-la de outra
forma. Mas há histórias de que os shinobi Kage têm a capacidade de
atravessar paredes, de se tornarem sombras... ou de ficarem invisíveis.
— Também há histórias... — disse Tatsumi em uma voz suave e
letal. — De que aqueles que falam desses shinobi desaparecem e
nunca são vistos novamente.
— Que bom que eu não acredito em contos selvagens, então.
Um leve carrilhão estremeceu no ar vindo da direção do
cemitério.
Nós nos viramos, olhando para baixo da colina. Uma figura
fantasmagórica vestida de branco caminhava pelo cemitério, chapéu
de palha e cajado balançando enquanto ele se movia entre as lápides,
passando por gaki cambaleantes, que não prestaram atenção nele. Ele
se movia lentamente, propositalmente, deixando um rastro de
tentáculos de névoa que se enrolavam no ar, antes de ele próprio
caminhar atrás de um grande tronco de cedro e desaparecer.
— Lá vai ele. — Eu sussurrei, e olhei para o guerreiro escuro
atrás de Okame. — Tatsumi, você disse que poderia nos levar até lá,
sem ter que lutar?
Ele recuou um passo, seu olhar solene enquanto olhava para
baixo da colina. — Sim, mas existem algumas condições. O feitiço só
funciona se permanecermos em silêncio e despercebidos. Qualquer
coisa mais alta do que um sussurro fará com que a ilusão se desfaça,
assim como qualquer movimento repentino. Olhar diretamente nos
olhos de um gaki ou chamar sua atenção também dissolve o
feitiço. Então fiquem quietos, mantenham sua cabeça baixa e fiquem
perto de mim. Vocês podem fazer isso?
— E quanto a mim? — Okame exigiu. Tatsumi deu a ele um
olhar frio.
— Quanto mais gente descer lá, mais difícil será manter o
feitiço. Já estou esticando o limite do que posso fazer com um outro,
dois estariam nos preparando para o fracasso. Seria melhor para todos
nós se você ficasse aqui.
— Tentando se livrar de mim, Kage-san? Estou ferido. Seria um
desperdício se eu fosse comido por um gaki.
Tatsumi estreitou os olhos. — Sua esgrima está em falta. — Ele
disse sem rodeios. — Você não seria útil para nós entre os gaki se eles
vissem o feitiço. Tentar proteger Yumeko com sua lâmina seria inútil e
colocaria vocês dois em perigo.
Okame fungou. — Você não tem que me insultar, Kage-san. Não
tenho mais o direito de exigir satisfação, mas posso ficar ofendido. Na
verdade, acho que estou.
— Você é um atirador melhor com seu arco. — Tatsumi
continuou, como se o outro não tivesse dito nada. — Se o feitiço falhar
e os gaki atacarem, seria prudente que você estivesse mais longe,
protegendo nossa fuga. Você pode matar os gaki antes que eles
cheguem até nós, e eu não terei que me preocupar em proteger você e
Yumeko, se o pior acontecer.
— Eu... suponho que você tenha um bom ponto. Por mais que
me doa admitir. — Okame cruzou os braços com um suspiro. —
Bem. Não gosto da ideia, mas sei tanto sobre magia quanto faço
arranjos de flores. Vou ficar aqui atrás, enfiar uma flecha no crânio de
qualquer gaki que chegar perto demais. Yumeko-chan... — Ele acenou
para mim, sorrindo. — Boa sorte. Não seja comida, você está apenas
começando a tornar minha vida interessante.
— Tenha cuidado também. — disse eu, e me virei para o
samurai. — Tudo bem, Tatsumi. Estou pronta. O que eu tenho que
fazer?
Ele hesitou mais uma vez, então estendeu a mão, a palma para
cima. — Temos que ficar conectados. — ele me disse, e, por algum
motivo estranho, meu estômago se agitou como um enxame de
mariposas soltando-se por dentro. — O feitiço vai cobrir nós dois, mas
não é para ser usado em um grupo. Se nos separarmos, os gaki
poderão ver você, então não solte, não importa o que aconteça.
Eu balancei a cabeça, respirei calmamente e coloquei minha mão
na dele. Sua palma era áspera com calosidades, mas os dedos
curvados sobre os meus eram longos e finos, quase elegantes. Meu
batimento cardíaco acelerou, e as mariposas na minha barriga
rodaram ainda mais freneticamente antes de se estabelecer em uma
vibração agitada.
Tatsumi tinha ficado perfeitamente imóvel, olhando para nossas
mãos entrelaçadas, como se lutando contra seus instintos de se
afastar. Eu espiei seu rosto e vi um lampejo de emoção naqueles olhos
roxos, uma pitada de incerteza e a mais leve sombra de medo. Mas
apenas por um momento; então sua expressão se fechou, aquela
máscara de gelo caindo no lugar. Trazendo dois dedos para o rosto
com a outra mão, ele semicerrou os olhos e murmurou um cântico
usando palavras que eu não entendi.
Um sussurro de poder passou pelo ar, centrado em Tatsumi. Ele
girou ao nosso redor, frio e acariciante, parecendo abafar o som e
tornar as sombras ao nosso redor ainda mais escuras. Em algum lugar
ao lado, Okame proferiu uma maldição sem fôlego. De repente, me
senti muito estranha, como se meu corpo não estivesse totalmente
sólido, e a luz da lua brilhando acima de minha cabeça estivesse
passando por mim.
Tatsumi abriu os olhos. As cintilantes orbes violetas olharam
para mim, mas não pude ver meu reflexo lá dentro. — Vamos. — Ele
sussurrou. — Lembre-se, fique perto, mantenha seus olhos longe dos
gaki e não solte minha mão. Você está pronta?
Eu balancei a cabeça, apertando meus dedos em torno dos
dele. Ele se virou e, juntos, descemos o caminho estreito e sinuoso que
levava ao cemitério.
Várias árvores antigas cresciam entre as lápides, cedros altos e
pinheiros gigantescos. Assim que chegamos à beira do cemitério,
Tatsumi se afastou do caminho e deslizou para as sombras lançadas
pelos gigantes. Gaki cambaleavam entre as lápides; eu mantive minha
cabeça baixa, mas os vi em minha visão periférica, seus corpos nus e
inchados brilhando grotescamente ao luar. Meu coração bateu forte,
mas como Tatsumi previra, eles não prestaram mais atenção em nós
do que nas folhas que caíam, embora alguns tenham passado
assustadoramente perto. Uma vez, Tatsumi me puxou rudemente
contra uma árvore, pressionando nós dois contra a casca enquanto um
gaki balançava em torno do tronco, quase acertando nele. Por alguns
segundos, ele ficou a apenas alguns metros de distância, respirações
roucas assobiando no ar, examinando a área como se pudesse sentir
que algo estava perto. Fechei meus dedos em torno da minha adaga e
apertei meus olhos, não ousando me mover ou mesmo respirar. Meu
coração batia forte e me pressionei o mais longe que pude de Tatsumi,
esperando que ele não sentisse a caixa laqueada enfiada em meu
furoshiki. Se ele encontrasse o pergaminho do dragão agora, um
cemitério cheio de fantasmas famintos seria a menor das minhas
preocupações.
Finalmente, os passos do gaki se afastaram cambaleantes e eu
senti Tatsumi relaxar. — Mova-se. — Ele sussurrou para mim, e nós o
fizemos, escapulindo do tronco e abrindo caminho passando pelas
lápides.
Quando nos abaixamos entre dois pinheiros, algo brilhou no
canto do meu olho, fazendo-me parar e agarrar a manga de Tatsumi.
— Tatsumi-san. — Eu sussurrei. — Acho que estou vendo o
monge. Lá.
Ele seguiu meu dedo apontando. No final do cemitério, uma
lápide solitária estava à sombra de três cedros enormes. Um feixe de
luz da lua se inclinava através dos galhos das árvores, iluminando a
lápide e brilhando em um cajado com anéis de metal no topo.
— O túmulo do monge. — Eu sussurrei, como com um brilho
fantasmagórico, uma seção do luar destacou-se da lápide e
apareceu. O monge yurei, com seu chapéu de palha e ainda
segurando sua haste de metal, encontrou meu olhar sobre as pedras e
ergueu uma sobrancelha etérea.
— Ele nos vê. — Tatsumi rosnou.
Um grito agudo fez meu sangue gelar, e um gaki se atirou sobre
uma lápide, mandíbulas escancaradas como um lobo raivoso. Tatsumi
girou, Kamigoroshi saiu de sua bainha em um instante para acertar o
corpo delgado do ar. Mas sua mão se soltou do meu aperto, e eu senti
o rasgo da magia enquanto o feitiço se dissolvia, como uma pedra
atirada através de uma teia de aranha. Por todo o cemitério, gaki
estavam se virando para olhar para nós, os olhos brilhando de fome,
seus assobios e gritos subindo no ar.
Tatsumi deu um passo à frente, a luz roxa fria de Kamigoroshi
lavando sobre as pedras, combinando com o olhar frio em seus
olhos. — Vá. — Ele me disse, balançando a lâmina na frente dele. —
Fale com o monge. Eu vou mantê-los longe de você enquanto eu
puder.
Eu olhei para os gaki que se aproximavam, dividida entre correr
em direção ao monge e puxar minha adaga e ficar com Tatsumi. A
magia de raposa explodiu, fazendo minhas mãos formigarem, e me
perguntei se uma bola de kitsune-bi no rosto iria desacelerar os gaki,
mesmo expondo minha verdadeira natureza.
Quando o primeiro gaki se aproximou, algo riscou o ar atrás
dele, atingindo-o nas costas. Com um grito, ele caiu para a frente, a
haste de uma flecha projetando-se de seu pescoço e se dissolveu em
uma névoa verde. Outro se sacudiu e caiu cambaleando sobre uma
lápide, e um terceiro caiu no chão em um emaranhado de membros se
debatendo, antes de se contorcer no nada.
— Okame. — Eu murmurei, lançando um rápido olhar para o
topo da colina. Pude ver a silhueta de uma figura esguia no telhado da
cabana, no momento em que outro gaki gritou e caiu no
mato. Tatsumi esperou pacientemente enquanto a primeira onda se
aproximava, sua lâmina solta ao seu lado.
— Yumeko. — Sua voz estava estranhamente calma, embora eu
tenha ouvido uma onda de algo aterrorizante por baixo, uma sede de
sangue mal contida que causou arrepios na minha espinha. — Vá.
Eu fui.
Eu disparei entre as lápides e teci entre os corredores de pedra,
procurando por aquele brilho fantasmagórico branco. Ele esperava
por mim na sombra das árvores, parado pacientemente ao lado de seu
túmulo, uma expressão confusa em seu rosto pálido e brilhante. Eu
me esquivei de uma lápide para evitar um gaki e estremeci quando
suas garras abriram quatro cortes brancos na rocha. Ele correu ao
redor da sepultura, mandíbulas escancaradas enquanto se estendia
para mim, quando uma flecha sibilou no ar e acertou sua
nuca. Dissolveu-se com um lamento arrepiante e eu me apressei.
Ofegante, tropecei na última lápide, lancei-me em volta de uma
árvore e parei abruptamente diante de uma figura transparente
vestida de branco.
— Bem. — A voz do monge era um estremecimento de vento
gelado, o eco de uma emoção há muito esquecida. Seu rosto era
borrado dentro e fora da realidade, como uma pedra jogada no reflexo
de um lago. — Esta noite foi cheia de surpresas. Olá, raposinha. O que
a traz ao meu canto solitário da aldeia?
Respirei fundo, não surpresa por ele saber o que eu realmente
era. Ele não parecia um onryo, o terrível espírito de ressentimento de
que Tatsumi havia falado. Sua voz era calma, até agradável e talvez
um pouco triste.
— Konbanwa, yurei-san. — Comecei, quando um grito ecoou
atrás de mim em um lampejo de luz roxa. Tatsumi estava mantendo
os gaki ocupados, como ele havia prometido. — Oh. — Continuei
ansiosa. — É correto chamá-lo de yurei-san? Eu não falei com nenhum
fantasma antes.
Suas feições nebulosas se tornaram uma carranca, mas ele
parecia mais confuso do que com raiva. Corri para o caso de ele se
ofender. — Por favor, mestre monge... — implorei, juntando as mãos
em uma reverência. — As pessoas aqui sofreram muito nas mãos de
seus próprios entes queridos. Vim perguntar se você cancelaria a
maldição. Você sofreu de um terrível erro há tantos anos, mas
nenhuma dessas pessoas foi responsável por sua morte. E deve ser
terrivelmente chato, vagar por aí como um fantasma. Certamente seu
desejo de vingança já foi satisfeito.
— Ah, pequena raposa. — O fantasma do monge baixou a
cabeça. — Eu queria poder. Nunca foi minha intenção lançar uma
maldição tão poderosa sobre esta aldeia. Eu estava... com raiva...
naquela época. Embora o tempo para mim borre e corra junto. Não sei
quanto tempo se passou desde que amaldiçoei a ganância desta aldeia
e morri com a retribuição em meus lábios. Desejo apenas seguir em
frente, completar minha jornada para Meido, ou para onde minha
alma estiver destinada.
Com gritos arrepiantes, vários outros gaki encontraram seu fim
na espada de Tatsumi. Mas sinistras luzes verdes estavam começando
a subir de vários túmulos, lentamente tomando forma à medida que
mais fantasmas famintos começaram a se materializar. Senti os pelos
da nuca se arrepiarem, mas o yurei não pareceu notar.
— Infelizmente, a maldição me mantém preso a este mundo. —
Continuou o monge. — Não posso continuar até que seja levantada e
não consigo levantá-la sozinho. Ou talvez eu possa, mas esqueci
como. — Seus ombros caíram, uma mão fantasmagórica erguendo-se
para o rosto. — Estou cansado. — Ele sussurrou. — Tão cansado de
demorar, de ficar preso nesta pequena vila, cercada pelos monstros
que eu trouxe para este mundo. Eu observo os aldeões
constantemente, esperando que um deles ganhe coragem para tentar
acabar com a maldição, mas eles estão com muito medo de até mesmo
se aproximarem do cemitério. Não que eu os culpe. — Ele olhou para
o céu, onde um leve brilho rosa podia ser visto sobre as copas das
árvores. — O amanhecer está quase aqui... — disse ele. — Os gaki vão
desaparecer por mais um mês e eu vou continuar a assombrar este
lugar.
O desespero cintilou. — Você não pode fazer nada? — Eu
perguntei.
O fantasma balançou a cabeça e me lançou um olhar triste e
resignado. — Você foi corajosa em vir aqui, kitsune. — Ele disse,
recuando. — Mas você não é desta vila e não pode suspender a
maldição. Se a maldição puder ser levantada de qualquer maneira...
— Omachi kudasai!
O grito ecoou atrás de mim, estridente e frenético. Eu me virei e
vi uma figura correndo a todo vapor pelo cemitério, os braços
estendidos e as mãos segurando algo na frente dele.
— Por favor, espere! — ele gritou novamente, enquanto eu
pisquei de surpresa. O chefe? O que ele está fazendo aqui? — Por favor.
— O chefe chamou, sua voz chamando a atenção de todos os gaki no
cemitério. — Mestre monge, por favor, me escute!
Os gaki rosnaram e correram atrás dele. Saltando em cima de
uma lápide, um gaki ficou tenso para atacar, mas uma flecha acertou
suas costas e ele caiu da pedra com um uivo. Quando o chefe passou
por Tatsumi, um dos fantasmas famintos se virou e se lançou sobre
ele, agarrando-o com as garras. A lâmina de Tatsumi sibilou, cortando
o gaki em dois, mas suas unhas ainda abriam um corte sangrento no
pescoço do homem. Ele cambaleou, quase caindo, mas recuperou o
equilíbrio e avançou.
Recuei quando o chefe nos alcançou, caindo instantaneamente de
cara no chão. — Perdoe-nos, mestre monge! — ele gritou, segurando o
que estava carregando: uma tigela cheia de arroz. — Estávamos
errados em deixar você sofrer tanto. Nunca mais deixaremos nenhum
viajante morrer de fome como você. Por favor... — Ele segurou a tigela
ainda mais alto, mesmo estando prostrado no chão. — Aceite isso
como um símbolo de nosso pesar. Ou, se sua vingança exigir, vou
oferecer minha própria vida pelo resto da aldeia. Me transforme em
um gaki, arraste-me para Jigoku, não importa. Tudo o que você
precisar fazer para passar e nos deixar em paz.
Com o coração na garganta, olhei para o monge. Ele olhou para o
chefe com uma expressão atordoada. Atrás de nós, os gaki
guinchavam e uivavam ao se atirar em Tatsumi, e o silvo das flechas
continuou enquanto Okame os pegava um por um, mas tanto o chefe
quanto o monge pareciam ter se esquecido completamente deles.
Então, o monge sorriu, e uma única lágrima de prata escorreu de
seu olho, se contorcendo em névoa assim que atingiu o chão. — Isso
era tudo que eu queria. — Ele sussurrou. — Uma tigela de arroz. Uma
única oferta de bondade. Mas mesmo em face da crueldade, eu não
deveria ter deixado minha raiva me consumir tanto. Isso também se
tornou minha punição. — Sua expressão tornou-se pacífica e ele
baixou a cabeça. — Acho que todos nós já sofremos o suficiente.
Os gritos dos gaki diminuíram. Olhei ao redor do cemitério para
ver que os fantasmas famintos estavam imóveis, parecendo
perdidos. Mesmo aqueles que estavam lutando contra Tatsumi
pararam de se mover, seus braços caindo para os lados e seus rostos
relaxados. Enquanto eu observava, eles brilharam, tornando-se
transparentes à medida que começaram a desaparecer. Uma bola
brilhante de luz branco-azulada subiu de cada um de seus corpos,
enchendo o ar até que todo o cemitério brilhasse com luminância
etérea. Deixadas para trás, as conchas dos gaki desapareceram, se
contorcendo em uma névoa que desapareceu com a brisa.
— Arigatou. — Eu olhei de volta para o monge enquanto ele
sussurrava as palavras. Ele estava desaparecendo também, sua forma
fantasmagórica se tornando cada vez mais fraca enquanto ele sorria
para mim. — Obrigado. — Ele sussurrou novamente. — Você não
poderia acabar com a maldição sozinha, mas sua coragem iluminou o
caminho para aqueles que conseguiriam. Que o Kami a abençoe e que
você nunca perca esse fogo que arde dentro de sua alma.
— Viagem segura para você, mestre monge. — Eu disse. — Que
sua jornada para o outro lado seja rápida e clara, e que Jinkei ilumine
seu caminho para que você nunca tropece.
Ele se curvou para mim e, um momento depois, tornou-se uma
esfera brilhante de luz que flutuou no ar, juntando-se ao resto. Por um
momento, elas pairaram no alto, quase brilhantes demais para serem
olhadas. Então, como uma, elas se espalharam, voando para todos os
cantos do céu, tornando-se cada vez menores até que se
transformaram em estrelas distantes e foram perdidos de vista.
PARTE III
Capítulo 20
Sangue mágico
Dama Satomi estava de volta.
E, pelo que Suki podia ver, ela não estava feliz.
— Inúteis. — ela murmurou, de pé no centro de uma sala
pequena e horripilante. Uma única vela tremeluzia em uma mesa
baixa, e um espelho rachado de corpo inteiro estava no canto,
refletindo o estado terrível da sala. As paredes estavam manchadas de
sangue velho, o chão manchado com manchas escuras e não
identificáveis. Dama Satomi estava lá, deslumbrante em vestes azuis
estampadas com grous e libélulas, seu cabelo perfeitamente penteado
e preso no lugar com pentes de marfim. Ela parecia extremamente
deslocada no centro de toda essa horripilância, exceto pelo que ela
segurava em sua mão. A cabeça de um grande corvo estava aninhada
em sua palma, pingando sangue entre seus dedos para respingar nas
pontas de suas vestes. O corpo do pássaro estava no centro da mesa,
uma pequena faca descansando ao lado dele em uma poça de
sangue. Suki mal conseguia olhar para o cadáver ainda se
contorcendo, tendo que sair da sala quando o ato real foi
realizado. Embora ser capaz de atravessar paredes tornasse isso mais
fácil, pelo menos. Os olhos de Dama Satomi estavam fechados, uma
carranca esticando seus lábios carnudos, como se ela estivesse
assistindo algo que considerava angustiante. Finalmente, ela soltou
um bufo e abriu os olhos.
— Dois kamaitachi, uma bruxa do vento e um urso demônio
gigante. — Ela resmungou, jogando a cabeça decepada para a mesa,
onde pousou ao lado de seu corpo frio. — E Kazekira ainda não
conseguiu matá-los e pegar o pedaço de pergaminho. Cortada em
pedaços por seus próprios familiares, que vergonha. — Ela balançou a
cabeça, tirou um pano do espelho e enxugou o sangue das mãos. —
Suponho que é isso que ganho por contar com ajuda externa. Se você
quer algo bem feito...
Pegando a faca, ela considerou seu reflexo na
superfície. Enquanto Suki observava, perplexa, a mulher abaixou a
lâmina até a parte interna do braço e fez um corte curto e reto ao
longo de sua pele. O sangue jorrou e borbulhou do corte, e Satomi
começou a cantar em uma voz baixa e hipnótica.
Suki sentiu o sussurro de algum poder terrível percorrer o ar e
estremeceu em um esforço para não fugir da sala. No braço levantado
de Satomi, a linha de sangue inchou, congelou e ficou sólida. Dezenas
de pernas se contorceram, e o corpo longo e segmentado de uma
centopeia emergiu do sangue e começou a subir por seu braço.
Satomi sorriu. Abaixando-se, ela arrancou o inseto monstruoso
de sua pele e segurou-o entre duas unhas enquanto ele se contorcia e
enrolava em suas mãos. — Vá. — Ela sussurrou para ele. — Encontre
o caçador de demônios e a raposa. Mate os dois, festeje por dentro e
volte para mim com o pergaminho. Estarei esperando.
Ela jogou a centopeia no chão, onde ela caiu com um baque
audível. Assim que atingiu o chão, correu pela sala com as pernas
amarelas em forma de gancho, se espremeu por uma rachadura nas
tábuas e desapareceu.
Abaixando o braço, ignorando o sangue que pingava no chão,
Satomi assentiu com satisfação. — Bem, isso deve cuidar da situação.
— Ela murmurou para si mesma. — O caçador de demônios se tornou
bastante problemático, mas assim que ele morrer, este pedaço do
pergaminho será meu. — Ela suspirou, como se estivesse cansada da
quantidade de trabalho que ainda faltava fazer. — Agora, eu devo
escrever um convite para o palácio, e encontrar alguém para entregá-
lo ao santuário Hayate. Aquela nova garota inútil deveria ser capaz de
administrar isso, pelo menos.
Ela olhou para si mesma, como se percebesse pela primeira vez
que ela e suas vestes magníficas estavam cobertas de sangue que
manchava a seda e ainda escorria por seu braço. — Um negócio tão
confuso. — Ela suspirou. — E tentando o suficiente sem ser
espionada. Você está dando uma boa olhada, pequeno espírito, ou
quem está assombrando este castelo? Eu posso sentir você me
observando, você sabe. Você não é terrivelmente sutil.
Suki saltou para trás, ganhando vida, e Satomi se virou para ela
com um sorriso.
— Aí está você. Bem, bem, ainda está por aí, Suki-chan? — A
mulher zombou, enquanto Suki flutuava ali, atordoada. Satomi riu,
balançando a cabeça. — Pobre alma perdida remanescente. Muito
fraca e assustada até mesmo para voltar como um espírito
rancoroso. Muito patética. Mas você não tem mais importância para
mim.
Suki cerrou os punhos fantasmagóricos, desejando poder fazer
algo, qualquer coisa. Até mesmo pegar a cabeça do corvo morto e
arremessar na mulher má. Satomi riu novamente, então se abaixou
para pegar o pano ensanguentado da mesa. — Se você deseja me
assombrar, pequena alma... — a mulher sussurrou enquanto limpava
seu braço. — Vá em frente. Mas se você se tornar irritante ou se entrar
no meu caminho, conheço algumas sacerdotisas de sangue e onmyoji
que ficariam felizes em prender seu espírito a um pergaminho de
parede. Ou o espelho. Ou talvez enfiar você em um macaco. — Seus
lábios se curvaram ainda mais, mostrando os dentes quando ela deu
um passo à frente. — Você gostaria de ser um macaco, Suki-
chan? Pessoalmente, acho que seria uma melhoria, não é? Pegue!
Ela jogou o pano ensanguentado no rosto de
Suki. Instintivamente, Suki recuou, erguendo os braços para se
proteger. O pano passou direto por seus braços e rosto e atingiu a
parede atrás dela, Suki sentiu seu corpo estremecer como névoa em
resposta. Com um grito silencioso, o fantasma perturbado se virou e
fugiu, desaparecendo pelas paredes do castelo, ouvindo a risada cruel
de Satomi segui-la enquanto ela o fazia.
Capítulo 21
A lenda de Oni no Mikoto
— Acho que cruzamos a fronteira, Kage-san. — O ronin
anunciou, protegendo os olhos enquanto olhava colina abaixo com
Yumeko. — Tenho certeza de que estamos nas terras dos Taiyo
agora. A capital não deve estar longe.
De pé à sombra de uma árvore ginkgo, olhei para a vista
panorâmica diante de nós e concluí que ele estava certo. Essas eram
definitivamente as terras do Clã do Sol. Havíamos entrado no
território do Taiyo. Embora não sejam tão poderosos marcialmente
quanto o Clã do Fogo, ou tão numerosamente grandes quanto o Clã
da Terra, os Taiyo foram talvez os mais influentes de todos os
Grandes Clãs, pois constituíam a família imperial. Eles governam a
capital, Kin Heigen Toshi, e desde que a história pode se lembrar, o
imperador ou a imperatriz sempre fizeram parte do Clã do Sol.
O brilho prateado de um rio, serpenteando pelo vale em direção
aos picos distantes, chamou minha atenção. — Ali está o Hotaru
Kawa. — Eu disse. — Se o seguirmos para o norte, ele nos levará à
capital.
— Sim. E chegamos aqui sem ter que passar pelo posto de
controle da fronteira, o que teria sido um pé no saco. — O ronin sorriu
de volta para mim. — Veja, deu tudo certo, Kage-san. Um cachorro
sempre encontra seu caminho.
Eu não respondi. O ronin cumpriu sua palavra e nos guiou pelas
montanhas, mas também foi o responsável por nos perdermos. Ainda
assim, eu poderia admitir que ele provou ser útil na aldeia com os
gaki; sua habilidade como guerreiro certamente ajudou na última
batalha, mesmo que não fosse com uma espada. E havíamos evitado o
posto de controle, embora eu precisasse tomar cuidado com quaisquer
magistrados ou guardas imperiais que pudessem exigir ver meus
documentos de viagem. Na melhor das hipóteses, dependendo das
circunstâncias, eu teria que pagar uma multa pesada por viajar pelo
território de outro clã sem a documentação adequada. Na pior das
hipóteses, eu seria preso e executado, meu clã envergonhado e a
desonra levada para minha família. Yumeko ficaria bem; ninguém
prestava atenção às camponesas, e ronin raramente recebiam um
segundo olhar. Mas eu era um samurai Kage, ou pelo menos eu
parecia, e os samurais eram tratados com cautela em territórios que
não eram seus. Especialmente se aquele samurai fazia parte do Clã
das Sombras.
— Já faz um tempo que não vou à capital. — Afirmou o ronin,
seu olhar seguindo o rio através do vale. — Vai ser bom relaxar, ter
uma refeição decente, e então talvez eu possa te convencer a se
divertir um pouco para variar, Kage-san. — Ele me deu aquele sorriso
desafiador. — Acho que você nunca jogou cho-han antes?
Cho-han era um jogo de dados popular em todos os antros de
jogos de Iwagoto, que eram lugares difíceis e decadentes frequentados
por bandidos, ronins, membros de gangues e senhores do
crime. Minhas missões para o Clã das Sombras às vezes me levavam
ao mais escuro desse submundo, perseguindo demônios escondidos
entre assassinos, mas samurais respeitáveis raramente se
aventuravam em tais lugares, e aqueles que o faziam nunca
admitiriam isso.
— Não. — Eu disse.
— Não, você nunca jogou ou não, não posso te convencer a
tentar?
— Faça sua escolha.
— Ah bem. Sua perda, samurai. — O ronin balançou a cabeça e
olhou para Yumeko, sentada pacificamente sob a árvore ginkgo. —
Talvez Yumeko-chan esteja disposta a tentar isso. Ela pode falar com
os kami, certo? Ela poderia pedir a Tamafuku, o Deus da Sorte, para
abençoar meus dados por uma rodada ou duas?
Ele estava me provocando, e eu sabia que ele estava me
provocando, mas a raiva cintilou do mesmo jeito. Eu sabia que tipo de
humano enchia aquelas salas de jogo: predadores com olhos famintos
e sorrisos sedentos de sangue. O pensamento de Yumeko cercada por
lobos humanos, seus olhos vorazes observando cada movimento seu,
me encheu de uma fúria fria que eu não entendia.
— Tamafuku? — Sentada na grama, Yumeko inclinou a cabeça e
o grilo que estava empoleirado em seu cotovelo saltou para a
grama. — Bem, eu poderia tentar. — disse ela. — Eu nunca falei com
nenhum dos Grandes Kami antes, apenas os menores. Você sabe onde
podemos encontrar Tamafuku para que eu possa falar com ele?
— Bem, há uma estátua gigante dele dentro do salão de jogos. —
disse o ronin.
— Oh? Ele mora dentro da estátua então? Você acha que ele se
levanta e se move quando ninguém está olhando? Havia um bule no
templo Ventos Silenciosos que às vezes fazia isso, até o dia em que
Nitoru o chutou para o outro lado da sala.
— Deixa pra lá. — O ronin suspirou. — Esqueça o que eu disse.
Com um bocejo, a garota se levantou, esticando os dois braços
sobre a cabeça. — Pelo menos estamos quase na capital. — Ela
meditou, olhando para o vale. — O que espero é uma pousada com
boa comida e futons macios. Será bom dormir em uma cama, para
variar, e não a céu aberto. Ou em uma cabana com vazamentos. Ou
em uma caverna com um chão de pedra muito desconfortável. — Seu
olhar escuro deslizou para mim, o sorriso crescendo mais. — Ao
contrário de certos samurais que permanecerão sem nome, a maioria
de nós não consegue dormir onde quer.
Eu mascarei uma carranca, confuso. Eu nunca conseguia dormir
como ela, esticada e deitada, presa fácil para alguém cortar minha
cabeça ou me despedaçar. Para mim, o sono vinha aos poucos, em
uma posição ereta, de costas para a parede e Kamigoroshi no colo,
pronta para ser desembainhada em um piscar de olhos. O conforto
não tinha nada a ver com isso.
O ronin puxou sua jarra de saquê para frente. — Ainda estamos
a alguns dias da capital, se eu tiver que adivinhar. — comentou ele,
puxando a tampa da cabaça. — Mas deve haver algumas cidades
entre aqui e Kin Heigen Toshi. Acho que Yashigi está rio acima. — Ele
ergueu a jarra em direção aos lábios, mas então deu um grito e puxou-
a para longe de seu rosto. — Kuso!
Minha mão caiu para a minha espada e Yumeko piscou para ele
em estado de choque. — O que há de errado, Okame-san?
— Há... um... sapo... no meu saquê! — o ronin estalou, parecendo
indignado e horrorizado. Ele inclinou a cabaça de cabeça para baixo,
sacudiu-a duas vezes e uma minúscula criatura verde caiu na grama
com o resto do líquido.
Yumeko começou a rir. Sua voz era como pássaros minúsculos e
enviou um formigamento estranho na minha pele. — Oh, não fique
chateado, Okame-san. — Ela disse, enquanto o ronin olhava
tristemente para o jarro vazio, como se esperasse que ele se enchesse
de novo. — Afinal, sapos dão sorte. Você deve ser abençoado pelos
kami.
— Não de onde estou. A menos que eles tenham decidido me
abençoar com sobriedade, o que eles podem manter para si mesmos,
muito obrigado.
Olhei para o lugar onde o sapo havia caído, mas não conseguia
mais vê-lo na grama. Apenas uma folha de zimbro verde brilhante
saltando pelo chão, sendo levada pelo vento. O ronin deu um suspiro
pesado e pendurou a cabaça no pescoço. — Bem, vamos indo? — ele
murmurou. — Vou precisar de muito mais sake se vou continuar
viajando com vocês.

Chegamos a Yashigi quando o sol estava se pondo, lançando


longas sombras sobre o vale e tornando o rio da cor de sangue. A
longa ponte de madeira sobre o Hotaru Kawa fervilhava de gente
entrando e saindo da cidade; mercadores com carroças, ronins,
camponeses, alguns samurais montados, todos misturados, cascos,
rodas e pés com sandálias batendo e gemendo enquanto cruzavam.
— Tantas pessoas. — Yumeko murmurou, olhando ao redor com
olhos arregalados. — Ainda mais do que Chochin Machi. Nunca vi
tantas pessoas em um só lugar.
Ao lado dela, o ronin riu. — Isso não é nada, Yumeko-chan. —
Ele disse a ela. — Espere até ver a capital.
Um magistrado imperial, flanqueado por dois guardas
montados, desceu o centro da ponte a cavalo, dividindo a multidão
diante deles como ondas. Discretamente, mudei para o lado da
estrada, mantendo meu olhar desviado e me misturando aos
transeuntes. O magistrado e seus guardas passaram sem pausa e
continuaram cruzando a ponte, embora eu tenha notado o ronin me
olhando com suspeita quando eles estavam fora de vista.
Do outro lado da ponte, uma larga estrada principal cortava o
centro da cidade, ramificando-se em dezenas de ruas laterais. Fileiras
de prédios de madeira com saliências de azulejos azuis alinhavam-se
nas calçadas, placas retangulares de tecido tremulando com a
brisa. Apesar da luz fraca, as pessoas ainda circulavam pelas ruas:
mulheres de quimonos, samurais passeando por entre as multidões,
comerciantes parados do lado de fora de seus negócios, atraindo os
clientes a entrar. Um vendedor de tofu passou correndo por nós, dois
grandes baldes de madeira equilibrados em uma vara em seu
ombro. Um trio de meninos agrupados em torno de uma barraca que
vendia enguias cozidas, observando enquanto o vendedor tirava
enguias vivas de um barril, enfiava um prego em suas guelras para
cortá-las e colocava os espetos na grelha.
Como haviam estado em Chochin Machi, os olhos de Yumeko
estavam arregalados, seu olhar nunca parava, enquanto ela observava
tudo. Enquanto caminhávamos pelas calçadas, o ronin estava muito
feliz em apontar as coisas e oferecer uma explicação sobre quaisquer
questões ela tinha. Não disse nada enquanto avançávamos pelo
tráfego de pedestres, mantendo uma mão firme em Kamigoroshi e
examinando a multidão em busca de perigo. A garota e o ronin
permaneceram alheios, mas eu senti olhos em nós no momento em
que cruzamos a ponte. Não havia dúvida em minha mente; estávamos
sendo observados.
— Cara, estou morrendo de fome. — Afirmou o ronin, parando
na entrada de um restaurante, cortinas azuis penduradas na
porta. Uma estátua gorda de tanuki usando um chapéu de palha e
segurando uma garrafa de saquê estava ao lado da entrada, chamando
os viajantes para dentro. — O que você acha, Yumeko-chan?
Yumeko piscou para a estátua e cruzou os braços. — Eu não
acho que esta seja uma representação adequada. — Ela afirmou em
uma voz séria. — Nunca conheci nenhum tanuki que tivesse um
escroto tão grande.
O ronin cuspiu e se virou, tossindo e batendo no peito. — Ele
quer dizer comida, Yumeko. — Expliquei, enquanto o ronin
engasgava e acenava com a mão para nós em concordância, encostado
na parede. — Este é um restaurante, se você quiser comer alguma
coisa.
— Oh. — disse Yumeko, e franziu a testa. — Bem,
claro. Também estou com bastante fome. Embora eu ainda ache que a
estátua está totalmente errada. — Ela cheirou e passou por ela,
franzindo o nariz. — Como é que alguém andaria com eles se
arrastando pelo chão? Eu acho que eles ficariam terrivelmente
irritados.
Eu consegui não estremecer enquanto a seguia pela porta, mas
por pouco.
— Bem-vindo, senhor, bem-vindo! — O anfitrião cumprimentou
quando entramos na soleira. Embora eu ficasse na retaguarda, ele
olhou apenas para mim, ignorando inteiramente o ronin e Yumeko. —
Você vai jantar conosco esta noite?
— Três de nós. — Eu disse a ele, ganhando um olhar breve e
perplexo quando ele olhou para meus companheiros. Não era todo dia
que um samurai se sentava para comer com um ronin e uma
camponesa. Sob meu olhar fixo, no entanto, ele rapidamente se
curvou e nos conduziu a uma mesa baixa no canto. Depois de explicar
que nossa garçonete chegaria, ele se curvou mais uma vez e saiu.
Uma jovem chegou logo depois, e tanto Yumeko quanto o ronin
fizeram seus pedidos com entusiasmo, enquanto eu tentava não
pensar em como isso iria esgotar o que restava de minhas
moedas. Depois que a garçonete saiu, eu me servi de uma xícara de
chá e bebi minha bebida em silêncio, ouvindo o murmúrio de vozes ao
nosso redor.
— Dizem que Oni no Mikoto apareceu de novo. — Murmurou o
homem à mesa atrás de nós.
— O Príncipe Demônio? — disse seu companheiro. — Kami nos
preservem. Onde ele foi visto desta vez?
— Omachi, na ponte fora da cidade. Dois ronins estavam
viajando juntos e ele desafiou o mais forte deles para um duelo. —
Uma pausa, e então ele acrescentou em voz baixa: — O sobrevivente
disse que nunca tinha visto ninguém se mover tão rápido.
— Isso porque Oni no Mikoto não é um homem. — disse seu
companheiro gravemente. — Bem, isso vai agitar um ninho de vespas,
já que todos os tolos que pensam que são guerreiros sairão em busca
de uma luta, esperando que o Príncipe Demônio os ache dignos o
suficiente para desafiá-los. Baka. — O homem bufou. — Digno o
suficiente para matar, mais provavelmente.
A garçonete voltou, colocando uma bandeja diante de
nós. Continha uma variedade de pratos: carne cozida, vegetais e três
tigelas de arroz. — Há mais alguma coisa que eu possa fazer por
vocês? — ela perguntou, enquanto o ronin imediatamente pegava
uma tira de frango com seus hashis e enfiava na boca. Educadamente,
ela não pareceu notar.
— Eu tenho uma pergunta. — Yumeko disse, enquanto o ronin
continuava pegando a comida da bandeja. — Quem é Oni no
Mikoto? Ele é realmente um príncipe dos demônios? Tenho
dificuldade em acreditar que haja um oni vagando pelo vale,
desafiando as pessoas para duelos. As pessoas não notariam isso?
Então, ela estava ouvindo também. De alguma forma, não fiquei
surpreso. Os olhos da garçonete se arregalaram um pouco e ela baixou
a voz. — Oni no Mikoto? — ela sussurrou com uma voz dramática,
como se esta não fosse a primeira vez que ela falava dele. — Ele se
tornou nossa lenda local mais famosa. Dizem que em noites de luar,
um espadachim solitário às vezes aparece nas pontes ao redor da área,
bloqueando o caminho a seguir. Ele tem corpo de anjo e rosto de
demônio, e não permitirá que ninguém atravesse a ponte a menos que
o derrote em um duelo. Mas ele se mostra apenas para aqueles que
considera dignos, os guerreiros mais fortes e habilidosos da
terra. Aparentemente, sua lenda cresceu além do vale, porque agora
temos espadachins viajando de todos os lugares, na esperança de
encontrar Oni no Mikoto nas estradas. Mas nos três anos desde que o
Príncipe Demônio apareceu pela primeira vez, ninguém foi capaz de
derrotá-lo.
— Então... — ela concluiu, enquanto Yumeko ouvia em
fascinação extasiada. — Se você estiver viajando pelo vale e por acaso
encontrar um único espadachim solitário em uma ponte iluminada
pela lua, primeiro considere-se sortudo e amaldiçoado, você está entre
os poucos dignos da atenção de Oni no Mikoto. Em seguida, vire-se e
vá embora. Oni no Mikoto não é um homem. Ele é um demônio com
uma espada, e ele pegará sua cabeça como um prêmio, como fez com
os incontáveis guerreiros que vieram antes.
— Há. — O ronin bufou com a boca cheia. — Se fosse eu, eu
simplesmente atiraria nele.
A garçonete pareceu afrontada. — Você não pode simplesmente
atirar em Oni no Mikoto!
— Nande? Por que não?
— Porque... — a garçonete balbuciou. — É... desonroso!
— Bah, eu não sou um samurai. Não sigo mais esse código de
honra. — O ronin pegou uma lula e enfiou tudo na boca. — Se algum
estranho quiser me matar por tentar cruzar uma ponte, ele estará
levando um tiro entre os olhos.
Peguei minha tigela de arroz, mas parei, um leve arrepio
percorrendo minhas veias. Um grou de papel preto estava em um
canto da bandeja, quase invisível contra a superfície laqueada. Meu
coração afundou, mas eu não poderia deixá-lo ali. Quando a garçonete
balbuciou novamente, eu rapidamente peguei o grou dobrado e
coloquei na minha manga.
A garçonete ainda parecia sem palavras. — Você não pode... Isso
é... Bárbaro. — Ela deu um passo para trás, dando ao ronin um olhar
de desgosto. — Bem, você nem mesmo verá Oni no Mikoto. — disse
ela com altivez. — Alguém como você não é digno de sua atenção.
— Espero que não. — Foi a resposta. — Eu perderia todo o
respeito por este Príncipe Demônio se ele aparecesse para desafiar um
cão ronin imundo.
— Desculpe. — Eu me levantei, fazendo com que os três
olhassem em minha direção. O ronin franziu a testa, uma bochecha
saliente como a de um esquilo.
— Onde você está indo, Kage?
— Eu devo cuidar de um pequeno assunto. Voltarei em breve. —
Sem esperar por uma resposta, eu me afastei, sentindo os olhos de
Yumeko nas minhas costas enquanto saía. O ronin grunhiu,
murmurou algo sobre "Banheiros" e continuou comendo enquanto eu
me abaixava pela porta com cortinas para as ruas.
Lá fora, o sol havia se posto. Muitas das lojas haviam fechado as
portas, embora houvesse alguns negócios teimosos que continuavam
abertos mesmo depois de escurecer. Eu andei até a beira da estrada
principal e senti o papel agitado em minha manga. Saiu e voou por
uma rua lateral estreita, perdendo-se na escuridão. Eu o segui.
Jomei estava esperando por mim nas sombras de um armazém,
seu rosto pintado parecia pairar contra o preto. O grou de papel
pousou em seu joelho, abanando as asas como se estivesse realmente
vivo.
— Você está atrasado.
Eu me curvei para que ele não sentisse minha relutância. Por que
eu estava me sentindo tão hesitante esta noite? Esta reunião era igual a
todas as outras. — Perdoe-me, Mestre Jomei. Eu fui retido. Houve...
complicações.
— Sim, eu vi aquilo. — A voz do mago estava ligeiramente
divertida. — Você pegou uma comitiva e tanto, Tatsumi-san. Agora,
não há apenas uma garota, mas um cão ronin rude te seguindo. Você
se importaria de explicar por que você não o matou ainda, ou pelo
menos o perdeu em algum lugar ao longo da estrada?
— Ele fazia parte de uma gangue de bandidos que nos
emboscou. — Comecei. — Mas ele acabou se voltando contra
eles. Yumeko... insistiu que o ajudássemos, depois da luta.
— A camponesa disse para você não matar o bandido... — disse
Jomei. — E você a ouviu?
— Ela é minha única pista para o Mestre Jiro e o templo Pena de
Aço. — Eu respondi. — Se eu tivesse matado o ronin, isso poderia tê-
la assustado ou irritado. Eu não poderia correr o risco de que ela fosse
embora.
Jomei beliscou a ponta do nariz entre o polegar e o indicador,
fechando os olhos brevemente. — Essa garota está se tornando cada
vez mais problemática. — Ele murmurou, e um arrepio de
desconforto subiu pela minha espinha. Se Jomei pensasse que Yumeko
estava se tornando um perigo para o clã, ou se ele acreditasse que ela
não era mais essencial para minha missão, ele daria a ordem para
matá-la e ao ronin. Ele pode ordenar que eu jogue os dois em um
trecho isolado de estrada fora da cidade. Ninguém notaria, ou se
importaria, se um ronin e uma camponesa desaparecessem de repente
sem deixar vestígios. Ambos eram perigosamente ingênuos, confiando
demais no demônio ao lado deles. Oni no Mikoto pode ser uma lenda
local, mas um verdadeiro demônio espreitava no meio deles, faminto
por sangue, por suas próprias almas. Eles não suspeitariam de nada
até que aparecesse e os matasse. Se Jomei desse a ordem de matar
meus dois companheiros, seria muito fácil cumpri-la.
E eu... não queria fazer isso. A ideia me chocou. Eu nunca
questionei ordens antes, nunca vacilei no que tinha que fazer. Se me
dissessem para “limpar” um vilarejo porque os aldeões estavam
usando magia de sangue para invocar demônios, eu massacraria todos
os homens, mulheres e crianças ali. Se eles me ordenassem ir a Jigoku
para matar O-Hakumon, o próprio governante do inferno, eu pularia
no abismo sem pensar duas vezes. Minha vida não era minha. Como
sempre, o dever para com o Clã das Sombras era tudo.
— Devo matá-la, Mestre Jomei? — Eu perguntei
suavemente. Meu estômago se contraiu e de repente ficou difícil
respirar. Se minhas ordens fossem para matar Yumeko, que fosse. Eu
cumpriria meu dever, como sempre fiz. E eu esperava que, de alguma
forma, seu rosto não me assombrasse pelo resto da minha vida.
Jomei suspirou. — Não. — Ele disse, acendendo uma onda
repentina e inesperada de alívio. — Se ela pode realmente levar você
ao pergaminho, não há razão para matá-la ainda. No momento, ela é
ingênua e inofensiva, e o ronin parece um idiota trapalhão. Continue
viajando com eles, se necessário. Contanto que não representem
ameaça aos segredos do clã.
Eu inclinei minha cabeça. — Como desejar, Mestre Jomei.
— Quando você chegar à capital, certifique-se de ir ver Kage
Masao no distrito do Clã das Sombras. Ele estará esperando por você.
— Entendido.
— Oh, e aqui. — O mago das sombras jogou algo em mim. Eu
peguei com um tilintar; um círculo de corda amarrada com kaeru de
cobre e algumas toras de prata. — Seu estipêndio para o mês. Já que
você parece ter uma boca extra para alimentar. Faça durar.
— Obrigado, Mestre Jomei.
— Vá então. — Jomei acenou com a mão, dispensando-me. —
Volte para seus 'companheiros' antes que eles suspeitem de onde você
está. Lembre-se... — ele acrescentou enquanto eu me curvava mais
uma vez e me virava. — O clã estará observando-os, e você, matador
de demônios. Não nos dê uma razão para agir.
Quando voltei para a mesa do canto, quase toda a comida tinha
acabado. Os pratos foram recolhidos, restando apenas ossos e
restos. Apenas minha tigela de arroz permaneceu intocada na borda,
embora o ronin estivesse olhando para ela como se estivesse pensando
em arrebatá-la também.
— Desculpe, Tatsumi-san. — Yumeko disse enquanto eu me
ajoelhei em frente a ela na almofada. — Eu tentei impedir o baka-
Okame de comer tudo, mas ele não quis compartilhar. Podemos pedir
mais, se quiser.
— Cachorros não compartilham, Yumeko-chan. — O ronin
sorriu, usando uma espinha de peixe para palitar os dentes. — Somos
glutões horríveis assim. Além disso, quem devorou uma dúzia de
bolas de tofu frito sozinha?
— Porque você já tinha comido todo o peixe, e o frango, e a
maior parte das lulas. Se eu não reivindicasse algo, não teria sobrado
nada.
— Isso não é verdade. Deixei o rabanete em conserva para você.
— Eu odeio rabanete em conserva.
— Bem, seja mais rápida da próxima vez. Quando se trata de
comida entre ladrões, Yumeko-chan, é cada homem, mulher e
cachorro por si.
Comi meu arroz em silêncio.
Capítulo 22
Os olhos de um corvo morto
Nunca insulte uma raposa com fome, era um ditado Mestre Isao
tinha sido excepcionalmente afeiçoado. Sempre me perguntei por que,
até agora.
Saímos de Yashigi na manhã seguinte e por vários quilômetros
caminhamos por uma estrada de terra sinuosa através do vale fértil do
Clã do Sol. As montanhas permaneceram distantes enquanto
seguíamos o rio, passando por comunidades agrícolas, templos e
santuários, prados abertos e florestas densas. O cenário era lindo, o
clima perfeito em todos os sentidos; eu estava curtindo totalmente a
vista e a sensação do sol na minha pele.
O ronin parecia menos entusiasmado.
— Ite. — Ele resmungou, esfregando a nuca quando paramos na
sombra de um bambuzal. — Kuso. Minhas costas estão
doloridas. Essa pousada deve ter tido o futon mais volumoso do
mundo. Parecia que havia uma pinha bem no meio do colchão, mas
quando puxei para cima não havia nada lá.
— Isso é lamentável, Okame-san. — Eu disse. — Meu futon era
tão confortável, era como se eu estivesse dormindo nas nuvens. Talvez
tenha sido algo que você comeu?
Ele olhou para mim, suspeita queimando em seu olhar escuro. —
Parece que me lembro de você bisbilhotando no meu canto do quarto
antes de irmos dormir. — Ele disse acusadoramente. — Você não teria
nada a ver com o meu colchão irregular, teria, Yumeko-chan?
— Eu? Que coisa perversa de se sugerir, Okame-san. Quero
dizer, você verificou embaixo do seu futon, certo? Não é como se eu
pudesse fazer uma pinha parecer um pouco de poeira no chão. — Eu
sorri para ele docemente e joguei uma ameixa em conserva na minha
boca. Eu estava começando a pegar o jeito dessa coisa de sarcasmo. —
Talvez todas as lulas cozidas estivessem lhe dando dor de estômago?
— Quietos. — Tatsumi rosnou. — Algo está nos observando.
Ficamos em silêncio. Ao nosso redor, a floresta estava parada,
raios de sol refletindo através do bambu. Cigarras zumbiam e uma
brisa farfalhava nos caules, abafando o som de aproximação. Não
senti nada perigoso, mas Tatsumi possuía uma premonição quase
sobrenatural para coisas que nos desejavam mal. Se ele disse que algo
estava nos observando, eu acredito nele.
— Eu não vejo nada. — Okame disse, assim que vi o que
Tatsumi fez. Do outro lado da estrada, um grande corvo preto estava
curvado no topo de um galho de árvore, as penas eriçadas como
penas, olhos redondos sem piscar enquanto olhava para nós.
Okame, seguindo meu olhar, soltou um bufo. — Oh, que horror,
um pássaro está nos observando. — Ele engasgou, colocando a mão
no coração. — Cuidado, Yumeko-chan, pode fazer cocô no seu cabelo.
O corvo não se mexeu. Ele olhou para nós com hostilidade
intensa e taciturna, e eu senti um arrepio subir pelas minhas costas. —
Não gosto do jeito que está nos observando. — Eu disse. — Parece...
zangado.
— Realmente? Parece um pássaro para mim. — disse o
ronin. Quando eu não respondi, ele encolheu os ombros e tirou o
arco. — Aqui, então, eu vou consertar.
Em um movimento suave, ele ergueu o arco e disparou uma
flecha na árvore, e o som abafado do dardo acertando o alvo ecoou
um segundo depois. O corvo soltou um crocito estrangulado e caiu do
galho em um bater de asas e penas pretas.
Quando caiu, uma sensação estranha ondulou pelo ar, uma
liberação sutil de poder que arrepiou os pelos dos meus braços. Toda
magia tinha uma certa sensação, eu descobri. A magia da raposa
cintilava e pulsava como fogo sem calor. O ki dos monges formigava
como o ar antes de uma tempestade. A magia das sombras de Tatsumi
era quase invisível, mas ainda estaria lá se você fosse muito
observador; parecia uma névoa fria e escura caindo sobre sua pele.
Parecia que um milhão de aranhas, larvas e centopeias se
contorciam sob minhas roupas. Eu estremeci, mas tão rapidamente
quanto veio, a sensação desapareceu quando a magia se espalhou pelo
vento e se foi.
— Viu. — O ronin apoiou a arma no ombro, parecendo alheio ao
estranho pulso de energia. — Pronto. Não há mais pássaros
assustadores. Podemos ir agora, certo?
Tatsumi suspirou. — Você poderia ter piorado.
Resistindo à vontade de agitar meus braços para ter certeza de
que não havia insetos em minhas mangas, atravessei a estrada até
onde o pássaro havia caído. Circulando o tronco, eu vi a ponta da
flecha saindo do mato e olhei para baixo, esperando ver o cadáver de
um grande corvo preto.
Um arrepio percorreu meu estômago. Não havia corpo, não
tecnicamente. A haste da flecha, projetando-se da terra, perfurou as
costelas de um esqueleto branco desbotado, frágeis ossos da asa
amassados na grama, cercados por penas. O crânio estava apoiado na
raiz de uma árvore, o bico aberto em um último grasnido indignado,
completamente sem pele. Parecia que estava morto há meses, em vez
dos poucos segundos que levou para cruzar a estrada.
Engoli em seco, sentindo os dois meninos virem atrás de mim e
espiar por cima do meu ombro. Okame soltou uma maldição baixa,
enquanto eu me aproximava de Tatsumi, olhando para sua
expressão. — Isso não é normal, é? — Eu perguntei em voz baixa. —
Tenho certeza de que isso não é normal.
— Não. — Tatsumi respondeu, seus olhos se estreitaram em
fendas violetas. — É magia de sangue.
Um arrepio passou por mim. Magia de sangue. Mestre Isao
havia me falado sobre isso, uma vez, como um aviso. Ao contrário da
magia normal, onde se acreditava que os tocados pelos kami eram
escolhidos pelos próprios deuses, a magia do sangue podia ser
realizada por quase qualquer pessoa, desde o fazendeiro mais
humilde até o magistrado de alto escalão. Como o nome sugere, o
sangue alimenta seu poder; quanto mais sangue derramado, mais
forte é o feitiço. Ele poderia ressuscitar os mortos, manipular emoções
ou convocar um demônio das profundezas de Jigoku. Mas esse poder
tinha um preço oculto e terrível. A magia de sangue era a magia da
morte e da corrupção, a magia de Jigoku. Quanto mais você a usava,
mais pedaços de sua alma você doava, pouco a pouco, até se tornar
uma casca de algo que um dia fora humano. Eventualmente, o
praticante era consumido pela escuridão de sua própria criação e se
tornava um dos próprios habitantes de Jigoku, um oni ou outro
demônio, condenado ao abismo até o fim dos tempos.
— Magia de sangue. — O ronin curvou os lábios para a pilha de
penas e ossos na parte inferior da árvore. — Bem, isso é ótimo, agora
eu matei a abominação favorita de alguém. Provavelmente há um
mago de sangue furioso por aí que está fazendo um wara ningyo à
minha imagem agora.
— Improvável. — Tatsumi disse. Wara ningyo, bonecos de palha
moldados à imagem do alvo, eram um item comum para realizar
maldições, mas eles precisavam de um pouco da própria vítima,
cabelo, sangue ou unhas, para o ritual funcionar. Uma vez, quando eu
era mais jovem e estava com raiva de ser obrigada a polir o chão do
corredor principal de novo, usei a magia da raposa para fazer um
pedaço de palha parecer uma boneca maldita e pendurei do lado de
fora dos aposentos de Denga. Foi difícil não estremecer com o que
veio a seguir. Essa foi a única vez em que me lembrei de Mestre Isao
ficar furioso comigo.
E então, eu tive outro pensamento, que transformou tudo dentro
de mim em gelo. — Alguém enviou esta coisa. — Eu disse, olhando
para Tatsumi. — Para nos seguir. Por causa do pergaminho. —
Rapidamente, acrescentei: — Porque eles acham que temos. Ou que
sabemos onde está.
— Espere, o que? — O ronin olhou para mim como se minhas
orelhas tivessem aparecido de repente. — Claramente, perdi a
primeira metade desta história. — disse ele. — Volte um pouco. Quem
está nos seguindo? Do que é esse pergaminho de que você vive
falando?
Tatsumi não respondeu, mas eu o vi enrijecer. Claramente, ele
não gostava de falar sobre o pergaminho, especialmente na
companhia do ronin. Eu também não. Eu podia sentir a caixa do
pergaminho escondida dentro do furoshiki, meu grande e terrível
segredo. Mas fazia sentido. Mestre Isao avisou que muitos estariam
procurando pelo pergaminho, exércitos de homens, yokai e demônios
tentando encontrá-lo. Mortais implacáveis que não parariam por nada
para adquirir seu poder. E se fosse esse o caso, então...
— Quem quer que esteja usando esses corvos mortos para nos
espionar... — continuei, enquanto a compreensão se desenrolava
lentamente como um rolo de pergaminho. — ...pode estar por trás do
ataque ao templo. Aquele que enviou os demônios para matar todos e
roubar o pergaminho.
Eu olhei para Tatsumi, que ainda não havia se movido ou
mudado de expressão. — É possível, não é? — Eu perguntei. —
Demônios não teriam nenhum uso para o pergaminho. Alguém os
enviou. Um mago de sangue.
— Sim. — Ele admitiu finalmente. — Demônios... não aparecem
no reino mortal sem motivo. — Ele continuou, parecendo relutante em
explicar. — Ou um mortal foi consumido pela escuridão e se
transformou em um, ou eles são convocados de Jigoku usando magia
de sangue. Oni, especialmente, são extremamente poderosos e quase
impossíveis de controlar por muito tempo. Seria necessário um
talentoso mago de sangue para convocar e amarrar um para cumprir
seu comando, mesmo que por um curto período.
— E agora estamos falando sobre oni. — disse Okame. — Oni,
magos de sangue e demônios. Devo começar a gritar agora ou devo
esperar até você chegar à parte com o esqueleto de 25 metros? —
Olhando para mim, ele balançou a cabeça. — E aqui eu pensei que
você era uma camponesa simples e inocente, Yumeko-chan. Como
você se envolveu com demônios e magia de sangue?
— Bem...
— Explique mais tarde. — Tatsumi disse bruscamente. —
Devemos continuar andando. — Examinando a estrada e as árvores ao
redor, seus olhos se estreitaram. Eu segui seu olhar e vi outro corvo
empoleirado nos galhos de uma árvore, olhando para nós. — O mago
de sangue sabe que estamos atrás dele. Não é seguro estar
exposto. Rápido.
Continuamos na estrada com um pouco mais de urgência. Pensei
no corvo morto, no misterioso mago de sangue que poderia estar
seguindo nossos movimentos, e meu estômago revirou de medo e
raiva. Quem quer que tenha enviado os amanjaku e o terrível
Yaburama sabia que eu tinha o pergaminho do dragão. Eles também
foram responsáveis pelas mortes do Mestre Isao e de todos no templo
Ventos Silenciosos. Eu estava colocando Okame e Tatsumi em
perigo; não havia dúvida de que o mago de sangue tentaria pegar o
pergaminho novamente. Mas, a cada tentativa, posso aprender um
pouco mais sobre esse novo inimigo. Quem ele era, o que queria e, o
mais importante, onde poderia estar. Vingança era algo que Mestre
Isao sempre advertira contra, especialmente porque os yokai podiam
se perder na vingança, obcecados por um rancor até que ele os
consumisse. Mas se eu ficasse cara a cara com aquele que destruiu
meu templo, ele iria temer a vingança de uma kitsune furiosa.
— Então, Yumeko-chan. — A voz de Okame me tirou das
minhas reflexões sombrias. O ronin caiu ao meu lado, as mãos
cruzadas atrás da cabeça enquanto caminhávamos juntos pelo
caminho. — Normalmente, não gosto de me intrometer em assuntos
que não são da minha conta... — ele começou. — Mas acabei de ouvir
as palavras demônio, oni e mago de sangue na mesma frase, e qualquer
uma delas é o suficiente para me manter acordado à noite. Além disso,
e me interrompa se eu perdi alguma coisa, acabei de observar um
pássaro se desintegrar depois de atirar nele, porque alguém que pode
levantar corvos mortos se interessou por nós por causa de um
pergaminho. Eu entendi tudo certo?
— Mais ou menos. — Eu fiz uma careta um pouco. — Embora,
eu acho que ele faz mais do que apenas trazer corvos de volta à
vida. Seria uma habilidade muito estranha de se ter, a menos que ele
realmente ame corvos.
— Certo. Então, acho que mereço algum tipo de explicação, e sei
que não devo pedir para Aquele da Espada Brilhante e Assustadora.
— Ele acenou com a cabeça para Tatsumi vários passos à frente. — Eu
provavelmente teria minha cabeça decepada antes que pudesse abrir
minha boca. Então, eu agradeceria se você pudesse me dizer o que
está acontecendo, Yumeko-chan. Já enfrentei gaki, yurei e agora
corvos mortos-vivos. Vou ter que lutar contra demônios em algum
momento no futuro?
— É... possível. — Eu disse, e brevemente expliquei o que tinha
acontecido na noite em que os demônios atacaram o templo, usando a
mesma história que eu contei a Tatsumi. Que o Mestre Isao sentiu um
grande mal chegando e mandou o pergaminho embora antes que os
demônios chegassem. Contei a ele sobre o oni e os amanjaku, e minha
promessa ao Mestre Isao de avisar o outro templo sobre os
demônios. E que eu tinha que encontrar Mestre Jiro no santuário
Hayate para descobrir a localização do templo Pena de Aço. Quando
terminei, Okame me lançou um olhar astuto, como se algo que eu
disse não fizesse muito sentido.
— Então, uma horda de demônios ataca seu templo, ao mesmo
tempo que Kage-san com a espada assassina de demônios, aparece. —
Ele meditou. — Isso parece muito conveniente. Presumo que ele não
estava lá para admirar as folhas.
— Não acho que Tatsumi goste de observar folhas, Okame-san.
— Certo. — Okame suspirou. — Então, o que há de tão especial
sobre este pergaminho, que o matador de demônios Kage e todo um
tesouro de abominações Jigoku apareceriam para reivindicá-lo?
— Eu... eu não sei. — Eu gaguejei. — Mestre Isao nunca me disse
por que isso era importante.
A culpa formigou. Eu me senti mal por mentir, mas
provavelmente era melhor que o ronin soubesse o menos possível
sobre o pergaminho. A última coisa que eu precisava era outra pessoa
que quisesse convocar o Dragão. Muitos já sabiam sobre isso.
— Hã. — Okame cruzou os braços, sua expressão estranhamente
sombria. — Então, seu Mestre Isao mandou este pergaminho embora,
provavelmente para outro templo, e Kage-san decidiu escoltá-la até lá,
hein?
— Não, na verdade não. Eu pedi a ele.
— E ele concordou. O antissocial samurai do Clã das Sombras,
não-me-incomode-ou-eu-matarei-você, concordou em escoltar uma
camponesa por vários territórios até um misterioso templo escondido
em algum lugar do outro lado do país.
— Hum. Sim?
O ronin balançou a cabeça e se inclinou para mais perto,
baixando a voz. — Você não vê o que está acontecendo, não é? — ele
murmurou. — Ele não está levando você ao templo pela bondade de
seu coração. Ele quer o pergaminho, Yumeko-chan.
— Claro que ele quer. Todo mundo quer o pergaminho, Okame-
san. — Eu podia sentir a caixa laqueada novamente, pressionada
contra minha pele sob o furoshiki e tive que me forçar a não tocar no
local onde estava escondido. — Mas eu prometi ao Mestre Isao que
avisaria o templo sobre o ataque do demônio, e não acho que
conseguiria chegar lá sozinha, especialmente se houver um mago de
sangue atrás de nós. Você viu como Tatsumi luta. Sua espada foi
criada para matar demônios. Ele é minha melhor chance de chegar ao
templo viva.
— E o que acontece quando você chegar lá e ele exigir o
pergaminho dos monges?
— Eu... ainda estou trabalhando nisso.
Ele balançou sua cabeça. — Bem, boa sorte, Yumeko-
chan. Pessoalmente, não sei o que seria mais assustador, um oni ou
um matador de demônios Kage furioso. Espero que saiba o que está
fazendo.
Eu também esperava que sim.

O sol começou a se pôr quando ainda estávamos a vários


quilômetros da próxima cidade. Conforme as sombras se alongaram e
as primeiras estrelas começaram a aparecer, acelerei meu passo para
caminhar ao lado de Tatsumi.
— Está ficando tarde, Tatsumi-san. Não deveríamos estar
procurando um lugar para passar a noite?
— Sagimura não está longe. — respondeu. — Se não pararmos,
chegaremos antes da hora do Javali. — Ele fez uma pausa, antes de
acrescentar: — Prefiro dormir em uma vila esta noite do que ao ar
livre.
Eu estremeci. Então, ele sentiu isso também. A sensação de
perigo, de olhos sobre nós onde quer que fôssemos. Na verdade,
quanto mais nos aproximamos de Sagimura, mais desconfortável eu
me sentia. Não apenas que algo estava nos observando, mas que algo
estava vindo. Nos seguindo. Nos perseguindo.
E se Tatsumi não queria ficar ao ar livre, então o que quer que
estivesse lá fora, era algo que eu não queria encontrar.
A lua era um disco totalmente prateado no alto quando a estrada
nos levou por cima de uma ponte que cruzava o rio Hotaru. Do outro
lado, sobre os longínquos arrozais, pude captar os reflexos de luz que
vinham de Sagimura. Havia apenas um problema.
Um estranho estava no centro da ponte, o luar brilhando sobre
ele, uma katana brilhante segurada frouxamente ao seu lado.

Capítulo 23
O demônio na ponte
— Oni no Mikoto. — Yumeko sussurrou.
O espadachim nos esperava no centro da ponte, imóvel como
uma estátua. Eu não sabia o que esperava do Príncipe Demônio, mas
não era a figura alta e quase elegante na nossa frente. Ele usava calças
hakama azul-escuras e sandálias, mas seu peito estava nu, os
músculos magros expostos ao luar. Cabelo branco comprido, comum
nas terras de Taiyo, caía solto até a cintura. Uma máscara oni branca e
vermelha cobria seu rosto, sua boca se dividia em um largo sorriso
com presas, chifres curvos se projetando de sua testa. Sua espada
brilhava ao seu lado, curva e letal.
— Bem, merda. — Okame murmurou. — É realmente Oni no
Mikoto, ou alguém fazendo o possível para imitar a lenda. Ainda bem
que não estou impressionado com lendas. Ou aquele código de honra
idiota. Não se preocupe, Kage-san... — ele disse, sorrindo de volta
para mim. — Eu vou cuidar disso.
Em um movimento suave, ele puxou sua corda e disparou uma
flecha na figura na ponte. Eu observei, sabendo que o ronin tinha um
tiro quase perfeito, me perguntando se a próxima coisa que eu veria
seria o estranho tombando para trás com uma flecha saindo de seu
peito.
Oni no Mikoto não se moveu. Ele não mergulhou para fora do
caminho, nem deu um passo para trás. Sua espada disparou, um
piscar de prata na escuridão, e acertou-a. A flecha bateu nos trilhos
antes de cair no rio.
— Sugoi. — Isso de Yumeko, sua voz maravilhada. — Isso foi...
muito rápido.
O ronin soltou um suspiro suave. — Sim. — Ele disse, parecendo
meio irritado, meio intimidado. — Isso confirma, então. Precisamos
encontrar outra ponte.
— Não há outra ponte. — Eu encarei Oni no Mikoto,
impaciente. O Príncipe Demônio nos olhou em silêncio,
aparentemente despreocupado por ter levado um tiro. Eu podia sentir
sua contemplação, o peso de seu olhar em relação a cada um de
nós. Então, aquela lâmina comprida e brilhante se ergueu e apontou,
deliberadamente, para mim, antes de baixar novamente para o lado
dele.
Okame bufou. — Parece que você acabou de ser desafiado, Kage-
san. Melhor você do que eu, embora, como eu disse, não precise me
preocupar com honra e lutas justas. Suponho que você aceitará o
duelo, então. Não gostaria de arriscar a desonra para... Acho que tudo,
realmente. Você mesmo, seu clã, seus filhos, seu gado, a estrada que
está viajando, as sandálias nos pés, os bolinhos de arroz em sua
mochila...
— Realmente? Os bolinhos de arroz também? — Yumeko franziu
a testa para ele. — Eu não sabia que você poderia desonrar sua
comida.
— Tudo pode ser desonrado, Yumeko-chan. Basta perguntar a
qualquer samurai. Claro, eles provavelmente cortariam sua cabeça por
fazer uma pergunta tão desonrosa.
— O suficiente.
Oni no Mikoto falou. Sua voz era calma e suave, e tinha um tom
culto que chamou minha atenção. Definitivamente não era um ronin
vagabundo ou bandido; ele quase parecia Kage Masao, o cortesão
bem-educado e conselheiro de Dama Hanshou. — Kage-san. — O
Príncipe Demônio continuou. — Se não ficou claro antes, eu o desafio
para um duelo para provar de quem é a habilidade superior. Se você
deseja atravessar, você deve me derrotar primeiro. Você pode, é claro,
dar meia-volta e sair sem consequências. Não tenho interesse em
covardes.
Kamigoroshi explodiu, ansioso e quase alegre. Ignorei o pulsar
excitante da espada e gesticulei para Yumeko e o ronin, a alguns
passos de distância. — E os meus companheiros?
— A garota pode atravessar, se ela quiser. O ronin... — Eu senti
seu olhar mudar sob a máscara, sua voz assumindo um tom mais
fraco. — Eu preferiria que ele ficasse dentro da minha vista, apenas
para evitar uma flecha nas minhas costas assim que ele cruzar a ponte.
Para qualquer samurai, uma declaração como essa seria um
insulto imperdoável, sugerindo que ele atacaria por trás como um
covarde, mas o ronin apenas deu de ombros.
— Não se preocupe comigo. — O ronin guardou seu arco e se
acomodou contra a grade. — Não há como eu perder isso. Só estou
desapontado por não haver sala de jogos para fazer apostas. Eu sairia
daqui como um homem rico.
Eu quase podia sentir o desdém vindo do estranho mascarado na
minha frente. Apostas, especialmente na vida de outra pessoa, era
algo em que criminosos, mercadores e multidões participavam. Não
um samurai respeitável.
— Yumeko. — Eu disse, encontrando a garota pairando perto da
grade. — Você deveria ir embora. Sagimura está do outro lado da
ponte, encontre uma pousada e espere por nós lá. Não devemos
demorar.
— O que? Eu não estou indo a lugar nenhum. — Yumeko olhou
para Oni no Mikoto, então se virou para mim, seus olhos em
conflito. — Este duelo... — ela começou. — É até a morte, não é?
Eu olhei para meu oponente. Havia vários tipos de
duelos. Alguns usavam bokken, espadas de madeira de prática, para
provar quem era mais forte sem derramamento de sangue. Alguns
duelos eram de primeiro sangue e, embora pudessem ser mortais,
muitas vezes terminavam sem fatalidades. Entre os samurais
habilidosos, os duelos de iaijutsu eram preferidos, nos quais dois
espadachins ficavam separados por um braço de distância com suas
espadas embainhadas, e o primeiro a se mover, sacar sua lâmina e
cortar seu oponente era o vencedor. Eles também podiam ser mortais,
mas a morte não era uma conclusão precipitada.
— Sim. — Oni no Mikoto disse calmamente. — Como eu sou o
desafiante, vou permitir que você escolha o tipo de duelo que você
preferir, seja iaijutsu ou outro. Mas não haverá primeiro sangue,
nenhuma trégua concedida e nenhuma rendição. Isso será até a
morte. Apenas um de nós vai cruzar esta ponte esta noite, a menos
que você queira dar meia-volta e voltar.
— Por quê? — Yumeko perguntou. — O que você ganha
matando pessoas? Você é realmente um demônio?
— Um demônio? — O estranho mascarado pareceu surpreso. Ele
olhou para ela, então balançou a cabeça. — Você não entenderia. —
Ele disse a ela suavemente. — Aqueles sem paixão nunca podem
compreender o impulso para a perfeição. Eu não sou um
demônio. Sou apenas um artista que, durante anos, não teve nenhuma
tela para praticar. Dediquei minha vida à esgrima, para aperfeiçoar o
equilíbrio entre mim e a lâmina. Mas duelar com espadas de madeira
ou ser forçado a parar no primeiro sangue, é como pintar um quadro
com apenas metade das cores. Os duelos 'seguros' que lutei me
atrapalharam e não me disseram nada. A única maneira de realmente
testar minhas habilidades é lutar sem limitações. Só então saberei se
alcancei a perfeição.
— Mas... você mata pessoas. — disse Yumeko. — Você espreita
em pontes e embosca viajantes, só para provar que é melhor na
esgrima. Por quê?
— Espreita? — O estranho parecia divertido. — Que imagem
desagradável. Se você fosse um homem, eu pediria que você apoiasse
seu insulto com aço. Oni no Mikoto não se esconde. Eu desafio, e
então ofereço uma escolha clara. Qualquer um pode recusar o
duelo. Houve vários que reconheceram um oponente superior e
recusaram o desafio, sem perda de honra para si próprios. Não desejo
lutar contra aqueles que não são dignos. Reconhecer que eles estão em
desvantagem economiza um tempo valioso, o que eu agradeço. Com
muita frequência, descubro que meus oponentes são orgulhosos e
excessivamente confiantes e têm uma opinião muito mais elevada de
si mesmos do que suas habilidades representam. Espero que não seja
o caso aqui.
— Então, Kage-san. — Essa máscara oni pálida se voltou para
mim. — Eu humildemente espero sua resposta. Você, como vários
fizeram antes de você, vai se virar e sair? Ou você enfrentará Oni no
Mikoto com honra e cruzará espadas com ele esta noite?
— Nenhum.
Eu podia sentir sua surpresa, embora a máscara de demônio não
denunciasse nada. O ronin estava enganado; ideais de honra e glória
significavam muito pouco para mim. Não tinha orgulho para me
apoiar, nenhuma perda para suportar. Apesar das aparências, eu não
era um samurai; eu era um shinobi Kage, aquele que atacava das
sombras, que usava má orientação e truques para derrotar meus
inimigos. Os shinobi já eram vistos como assassinos desonrosos,
porque os verdadeiros bushi enfrentavam seus inimigos de frente e
não se abaixavam para se esconder no escuro. Tinha minha honra
pessoal e seguia o código do Clã das Sombras, mas o Bushido não era
tão importante quanto completar minha missão, a qualquer custo.
Se eu pudesse ter evitado essa batalha, eu teria. Mas Oni no
Mikoto era um obstáculo e demoraria muito para encontrar um
caminho. — Eu prefiro não lutar aqui. — Eu disse a ele, sentindo
Hakaimono subir como um tufão cheio de sangue. — Mas você está
no meu caminho e tenho uma missão a cumprir. Não vou cruzar as
lâminas com você, vou abrir um caminho direto para o outro lado.
— Excelente! — Oni no Mikoto parecia em êxtase. — Você me
honra com sua aceitação. Venha então, Kage-san. Vamos ver quais
habilidades são mais afiadas.
— Yumeko. — Eu disse, sem tirar os olhos do meu oponente. —
Volte. Essa é minha luta, entendeu? Não tente interferir.
Com o canto do olho, eu a vi dar um passo em minha direção. —
Não morra. — Ela ordenou quietamente. — Você prometeu me levar
ao templo. Seria muito rude quebrar sua promessa sendo morto,
Tatsumi-san.
— Eu não vou morrer. — Eu disse a ela. Por dentro, Hakaimono
estava ficando mais forte, uma onda crescente de violência e sede de
sangue. — Vá. — Eu repeti. — Vá para a segurança. Isso vai acabar
logo.
O ronin se empurrou para fora da grade. — Isso deve ser
interessante. — disse ele, e se afastou, recuando vários metros na
ponte e nos dando bastante espaço. Depois de um momento, Yumeko
o seguiu.
Enfrentei Oni no Mikoto no centro do rio, a lua brilhando sobre
nós dois, iluminando a ponte. Uma brisa fria assobiou através das
tábuas da água, bagunçando minhas roupas e jogando seus longos
cabelos.
— Sua espada tem nome, Kage-san? — Oni no Mikoto
perguntou.
— Por quê?
Ele encolheu os ombros. — Eu sou um estudioso de
lâminas. Estudei a história da esgrima de Iwagoto, seus melhores
guerreiros e ferreiros de armas e, ao longo dos anos, os nomes de
algumas lâminas especiais apareceram repetidamente. A espada do
imperador, a Glória do Amanhecer. As lâminas emparelhadas do
famoso duelista Mizu Sasaki. Se a sua espada tiver um nome, gostaria
muito de ouvi-lo. Seria uma grande honra cruzar lâminas com uma
arma dos pergaminhos da história.
— Não há honra no nome desta espada.
A cabeça de Oni no Mikoto se inclinou, como se estivesse me
vendo pela primeira vez. — Você... é do Clã das Sombras. — Ele disse
lentamente. — Existem apenas duas espadas dignas de nota que se
originaram dentro dos Kage. Sasori, a lâmina do daimyo do Clã das
Sombras... e a espada amaldiçoada que trouxe destruição à terra e
quase eliminou a existência dos Kage.
Senti um sorriso surgir, espontaneamente, em meu rosto,
enquanto me ouvia falando palavras que não eram inteiramente
minhas. — Um verdadeiro oni saberia melhor do que cruzar lâminas
com Kamigoroshi.
— Então é verdade. — Oni no Mikoto sussurrou, soando
levemente pasmo. — Você possui a Assassina de Deuses, a espada
amaldiçoada dos Kage.
Eu respirei, empurrando a outra presença para baixo e
recuperando minha voz. — Você pode voltar. — Eu disse a ele
suavemente, enquanto Hakaimono rosnava para mim, irritado. —
Kamigoroshi não se importa com a alma que devora, seja ela humana
ou demoníaca. Ainda há tempo de cair fora. Você mesmo disse isso,
não é desonra reconhecer um oponente superior.
— Kage-san. — Oni no Mikoto deu um passo à frente. Ele estava
tremendo, mas não era de medo, eu percebi, mas de excitação. — Essa
é a luta que busquei a vida toda. Há muito tempo espero por um
oponente digno, que me empurre além do limite de minhas
habilidades. Quantos podem dizer que duelaram com uma
lenda? Quantos podem dizer que cruzaram as lâminas com a espada
que quase sozinha destruiu um dos Grandes Clãs? Não, Kage-san, não
vou desistir desta batalha. — Ele ergueu sua própria arma com as
duas mãos, a espada curva brilhando entre nós como um raio de
luar. — Eu sou Oni no Mikoto, a lâmina invicta dos Taiyo, e será uma
honra lutar com você.
Hesitei mais um momento, então lentamente desembainhei
Kamigoroshi. Uivando ansiosamente ao ser desembainhado, a luz
roxa maligna se espalhando pelas tábuas.
Nós nos encaramos na ponte, imóveis, o vento puxando nossos
cabelos e roupas. Fiquei imóvel, Kamigoroshi solto ao meu lado,
enquanto Oni no Mikoto fazia o mesmo, sua lâmina erguida em duas
mãos. O tempo parecia diminuir, cada um de nós avaliando nosso
oponente, avaliando os pontos fortes e fracos, esperando o momento
em que ambos explodiríamos na batalha.
Ainda não, pensei, já que Oni no Mikoto mudou ligeiramente de
posição, colocando um pé atrás do outro. Eu apertei meu aperto em
Kamigoroshi, sentindo meus músculos ficarem tensos e a impaciência
de Hakaimono aumentar, ansioso por sangue. Ele vai entrar
rápido. Esteja pronto...
Com um estrondo e uma lasca de tábuas, uma enorme criatura
serpentina saiu de debaixo da ponte, subindo quatro metros e meio
entre nós. Uma luz pálida brilhou em uma carapaça endurecida, e
dezenas de pernas amarelas segmentadas deslizaram sobre as
pranchas enquanto a criatura rastejava para a ponte. Uma cabeça
carmesim bulbosa se virou para me encarar, o icor verde escorrendo
de duas mandíbulas parecidas com foices, enquanto a omukade, uma
centopeia gigante comedora de gente, empinava-se com um silvo
agudo e avançava.
Capítulo 24
O grande Omukade
Meu estômago pareceu cair aos meus pés.
Uma centopeia monstruosa pairou no ar, elevando-se sobre
Tatsumi e Oni no Mikoto, fazendo-os parecer insetos. Sua carapaça
segmentada era negra como azeviche, sua cabeça de um vermelho
vivo e duas mandíbulas letais se abriam como um par de foices
enquanto ele acelerava em direção a Tatsumi.
O guerreiro se esquivou, saltando para o lado, e trouxe
Kamigoroshi pelas costas da centopeia em um lampejo de luz
roxa. Mas a lâmina rangeu fora da quitina semelhante a uma
armadura, deixando uma cicatriz aberta na carapaça, mas incapaz de
perfurar.
— Kuso! — Okame cambaleou para trás enquanto o monstro
girava sobre Tatsumi, dezenas de pernas estalando sobre as pranchas,
e investiu novamente. Mais uma vez, o matador de demônios saltou
para o lado e as pinças afundaram na grade atrás dele, cortando a
madeira como se fosse papel de arroz. Tatsumi cortou o enorme yokai,
desta vez mirando nas pernas amarelas brilhantes. Com um jorro de
icor verde, três apêndices decepados caíram ruidosamente na ponte,
se contorcendo e se debatendo, mas a omukade se contorceu para
segui-lo, sem diminuir a velocidade.
Uma flecha ricocheteou na carapaça brilhante, depois outra e
uma terceira. — Droga. — Okame rosnou, disparando uma quarta
flecha na cabeça do monstro. Ela escorregou do topo do crânio e a
centopeia nem olhou para cima. — Kuso. — Cuspiu o ronin,
estendendo a mão para pegar outra flecha. — Bastardo durão e
feio. Cada local é blindado. Nesse ritmo, ele vai comer Kage-san e
depois virá atrás de nós.
Oni no Mikoto apareceu de repente, saltando sobre o corpo
comprido e contorcido da centopeia e erguendo a espada sobre sua
cabeça. O omukade, ainda enfrentando Tatsumi, não notou o
espadachim mascarado até que o Príncipe Demônio cortou com sua
lâmina. Como Kamigoroshi, gritou para fora da espessa carapaça do
monstro, e a centopeia girou sobre ele com um silvo.
Cada local é blindado. — Okame. — Eu engasguei, virando-me
para o ronin, que estava encaixando outra flecha em seu arco. — Os
olhos! Os olhos não estão protegidos. Mire nos olhos.
— O que? — Okame abaixou o arco e ficou boquiaberto, depois a
centopeia. O enorme yokai se debateu no centro da ponte, agarrando-
se a Tatsumi e Oni no Mikoto enquanto eles tentavam
desesperadamente evitar ficar presos entre suas pinças
enormes. Tatsumi atacou com Kamigoroshi enquanto a cabeça da
centopeia serpenteava para baixo, e o monstro recuou, rangendo
furiosamente suas mandíbulas.
— Droga, está se movendo muito. — Okame rosnou, mirando
seu arco no enorme yokai. — E seu globo ocular é do tamanho de um
caqui, então é muito difícil conseguir um tiro. Se o bastardo parasse de
se mover, eu só preciso que ele pare por um segundo...
Eu engoli em seco. — Continue mirando. — Eu disse, dando um
passo à frente. — Vou fazer isso parar.
Caminhando até a beira da ponte, observei a batalha travando-se
no centro: Tatsumi e Oni no Mikoto tentando fazer um amassado na
armadura da centopeia, sem grande efeito. A centopeia havia perdido
várias outras pernas, que estavam espalhadas pelas pranchas,
contraindo-se levemente, mas não parecia prejudicada pela perda de
seus membros. Com o coração batendo forte, coloquei o polegar e o
indicador na boca e fiz o que sempre irritou Denga-san.
Um assobio longo e penetrante ecoou pela ponte. A omukade
congelou com o som e olhou para cima. Por apenas um momento, seu
olhar frio e redondinho encontrou o meu, pouco antes de uma flecha
voar acima e atingir o centro de um olho roxo.
O yokai gemeu. Seu enorme corpo se debateu violentamente,
chocando-se em postes e grades, quebrando vigas e lascando
madeira. Tatsumi e Oni no Mikoto rapidamente mergulharam para o
lado, mas o Príncipe Demônio foi atingido por uma bobina que o
jogou para a borda da ponte e o jogou para a água. Eu vi sua forma
magra despencar em direção ao rio, longos cabelos claros fluindo atrás
dele, antes que ele atingisse a água e desaparecesse abaixo da
superfície.
E então, olhei para trás, para a ponte, e vi a omukade me
encarando com seu único olho bom, mandíbulas tremendo de raiva.
Bem, isso certamente chamou sua atenção.
Eu me virei e corri enquanto o monstro atacava com um grito,
várias pernas deslizando pela ponte. Não ousei olhar para trás, mas o
barulho furioso de mandíbulas de centopeia estalando me disse que
estava se aproximando rapidamente.
Árvore, árvore, preciso de uma árvore!
Localizando um pinheiro retorcido na beira da margem do rio,
mudei de direção e disparei em direção a ele, arrancando uma folha
do chão ao mesmo tempo. Ao me aproximar da árvore, sussurrei
algumas palavras de magia de raposa e soltei a folha antes de me
esconder atrás do tronco. E eu esperava que nenhum dos outros visse
a segunda Yumeko aparecer, encolhida na base do pinheiro.
Do outro lado do tronco, prendi a respiração, rezando para que a
omukade não visse através da ilusão. Não precisava ter me
preocupado, porque com um grito que fez meus ouvidos zumbirem, a
centopeia bateu de cabeça no tronco. Senti o barulho sólido de suas
mandíbulas cortando a falsa Yumeko, afundando na madeira e
fazendo a árvore chacoalhar.
Enquanto a centopeia se debatia, tentando se desalojar, saltei
para o primeiro galho pendurado, me levantei e imediatamente
peguei outro. Anos subindo na velha árvore de bordo nos jardins do
templo tornaram mais fácil escalar o tronco, e o medo do monstro
abaixo me acelerou.
Eu estava na metade do caminho até a árvore quando a
omukade se soltou com um estilhaço de casca de árvore. Olhando
para baixo, encontrei seu olhar plano e sem alma enquanto espiava o
pinheiro e soltava um silvo de fúria. Rangendo suas pinças, ela
começou a subir, dezenas de pernas amarelas brilhantes movendo-a
pelo tronco com velocidade assustadora.
Escalei mais alto, ouvindo o assobio e os arranhões do yokai
enquanto ela me perseguia. À medida que os galhos ficavam menores
e mais estreitos, a centopeia começou a diminuir. Mas seu corpo era
tão longo que era capaz de alcançar até os galhos mais altos sem
muito esforço, embora a própria árvore começasse a balançar e gemer
sob o peso do monstro.
Finalmente, não havia outro lugar para onde correr. Eu tinha
chegado ao topo da árvore e a centopeia ainda estava vindo. Puxando
minha adaga, eu escalei o mais longe que pude, observando o crânio
vermelho bulboso empurrando os galhos abaixo dos meus
pés. Mandíbulas raspando juntas, ela deslizou pelo tronco em minha
direção. O pinheiro rangeu e gemeu, e o tronco dobrou e balançou
perigosamente, mas aguentaria.
À medida que ela se aproximava e eu podia ver todos os
detalhes de seu corpo hediondo e segmentado, percebi algo. A metade
superior da enorme criatura estava coberta por aquela carapaça preta
brilhante que desviava de flechas e golpes de espada. Mas a parte de
baixo, entre as dezenas de pernas que escorregavam, parecia mais
macia, quase carnuda. Certamente não a armadura impenetrável de
sua metade superior. Mas como ir além disso era a questão.
Erguendo minha adaga com uma mão, comecei a reunir minha
magia com a outra, esperando que uma rajada desesperada de
kitsune-bi em seu rosto a distraísse ou assustasse por tempo suficiente
para eu fazer... alguma coisa.
— Yumeko!
A voz familiar soou abaixo de mim, e perto. Eu olhei para baixo
e vi Tatsumi em um galho mais baixo, Kamigoroshi envolto em
chamas roxas, lançando o demônio matador em uma luz
misteriosa. Seus olhos pareciam brilhar carmesim quando ele
estendeu a outra mão em minha direção.
— Pule. — Ele ordenou, fazendo meu estômago embrulhar. —
Agora.
Engoli. — É um caminho terrivelmente longo, Tatsumi.
— Eu vou te pegar. — Ele respondeu. — Eu prometo. Rápido!
Bem, entre ser comida por uma centopeia e cair para a morte,
acho que ficaria com o último. Quando a omukade se lançou com um
chiado, me recompus e saltei para longe do tronco, um grito se
alojando em algum lugar da minha garganta enquanto eu caía para
baixo. Mal tive tempo de entrar em pânico quando algo me agarrou
pela cintura, impedindo meu mergulho. Tatsumi me puxou para o
galho e me colocou de pé, ainda segurando Kamigoroshi na outra
mão. Fiquei chocada com o quão forte ele era, capaz de segurar um
corpo em queda, com um braço, de uma saliência estreita e irregular
sem perder o equilíbrio.
Quando olhei em seu rosto, um arrepio percorreu minha
espinha. Seus olhos estavam brilhando, uma luz carmesim sutil
brilhando em suas profundezas, olhando totalmente desumano.
— Você está machucada? — Ele perguntou, e sua voz soou um
pouco diferente também. Mais baixa, de alguma forma mais sombria,
mas tensa. Como se ele estivesse lutando contra... alguma coisa.
— O lado de baixo não está protegido. — Eu disse a ele, vendo
seus olhos estreitarem em confusão. — A carapaça, a armadura, não
tem nada em sua barriga. Você tem que atacar por baixo.
Seus olhos se arregalaram e ele assentiu. Acima de nós, a
omukade balançava a cabeça e o corpo em direção ao nosso galho,
sibilando e rangendo as mandíbulas. Ainda me segurando pela
cintura, Tatsumi abruptamente caiu do galho, caindo em um galho
embaixo. Eu reprimi um grito, resistindo à vontade de agarrar seu
haori, enquanto ele me colocava de pé, olhando para o longo corpo da
omukade, torcendo-se pelos galhos acima. A cabeça olhou para nós
sinistramente, sibilou e começou a deslizar pelos galhos em nossa
perseguição.
— Você pode atraí-la para longe? — Tatsumi perguntou em voz
baixa. — Fazer com que ela te persiga?
Eu percebi o que ele queria dizer e dei um aceno trêmulo. — Eu
não acho que isso será um grande problema. — Eu engasguei,
enquanto lá em cima, a omukade serpenteava pelos galhos atrás de
nós, rangendo suas mandíbulas.
Tatsumi acenou com a cabeça. — Vá. — Ele ordenou, e nós
fugimos, correndo pelo tronco, caindo nos galhos mais baixos
enquanto tentávamos ultrapassar o enorme yokai deslizando pelos
galhos como uma serpente. Mais ou menos na metade da árvore,
percebi que Tatsumi havia desaparecido ou não conseguia mais vê-lo
por entre as folhas e galhos.
Algo zumbiu perto do meu rosto, assustando-me, assim como
uma flecha tilintou na pele da centopeia. Sibilando com raiva, ela
parou, olhando em volta para o atacante repentino, talvez se
lembrando da flecha que acertou no rosto.
— Okame, espere! — Eu chamei, olhando para o ronin. Ele
estava sob a árvore com uma expressão sombria no rosto, o arco
erguido e apontado para a centopeia. Com as minhas palavras, ele
parou e abaixou a arma, mas naquele momento de distração, meus
dedos erraram um galho e eu caí, caindo vários metros. Com a
pulsação acelerada, ataquei descontroladamente e senti minha palma
bater em outro galho, impedindo minha queda. Eu ouvi o grito de
alarme de Okame enquanto eu pendia, meus pés balançando no
espaço vazio, e eu agarrei desesperadamente o galho com minha outra
mão.
Algo quente pingou nas costas dos meus dedos. Engolindo em
seco, olhei para cima para ver um par de pinças pretas brilhantes a
poucos metros de distância, abrindo-se para cortar minha cabeça. Ao
mesmo tempo, um borrão de escuridão passou por cima, enquanto
Tatsumi corria a todo vapor ao longo de um galho e cortava
Kamigoroshi através da barriga exposta da omukade.
A omukade gritou, erguendo-se ao se dividir em duas com um
jato de icor verde e amarelo. Sua metade superior, agora separada do
resto de seu corpo, escorregou dos galhos da árvore e caiu de costas
no chão, as pernas se curvando freneticamente enquanto lutava para
se endireitar.
— A cabeça, Okame! — Eu gritei sobre o silvo louco da enorme
yokai enquanto ela se debatia e se contorcia, forte demais para morrer
mesmo agora. — Corte a cabeça, isso deve matá-la para sempre!
A compreensão surgiu nos olhos do ronin e ele se virou para o
monstro caído. Mas antes que ele pudesse reagir, Oni no Mikoto
caminhou até o yokai que lutava, ergueu sua espada e a desceu
cortando as mandíbulas ainda rangentes do monstro. A bulbosa
cabeça carmesim rolou para trás, as pernas em espasmos pararam e as
mandíbulas letais finalmente pararam de se mover, quando o grande
yokai finalmente admitiu a derrota.
Soltei um suspiro de alívio e tentei me puxar para cima do galho,
pois minhas mãos estavam começando a escorregar e sobreviver ao
ataque da uma grande omukade, apenas para cair de uma árvore e
quebrar meu pescoço, parecia muito azar.
O galho estremeceu e um par de botas tabi apareceu ao lado dos
meus dedos. Eu olhei para cima para ver Tatsumi de pé sobre mim,
Kamigoroshi segurado frouxamente ao seu lado. Sua expressão era
arrepiante, um leve e curioso sorriso enfeitando seus lábios, como se
aquela situação o divertisse e ele estivesse pensando no que fazer a
seguir.
— Tatsumi? — Eu ofeguei, enquanto ele continuava parado ali,
me observando. — O que... o que você está fazendo? Ajude-me.
Por um momento, ele continuou parado ali, me olhando daquela
forma que fez minha pele arrepiar. Kamigoroshi cintilou e pulsou, e
na luz misteriosa, os olhos de Tatsumi brilharam vermelhos, suas
pupilas rachadas como as de um gato.
Então uma das minhas mãos escorregou e eu gritei ao perder o
controle do galho.
Dedos fortes se fecharam em volta do meu pulso em um aperto
de aço, levantando-me e puxando-me de volta para o galho. Ofegante,
agarrei o haori preto na minha frente, meu coração disparado em
meus ouvidos, enquanto esperava meus braços pararem de tremer e
meu pulso voltar ao normal.
— Yumeko. — A voz de Tatsumi estava tensa novamente, mas
parecia normal desta vez. Ele tinha ficado muito rígido, seus braços
mantidos rígidos ao lado do corpo, seu batimento cardíaco acelerado
sob a minha palma. De repente, percebi que estávamos pressionados
muito perto, nossos peitos quase se tocando, nossos rostos a alguns
centímetros de distância. A ponta estreita do pergaminho pressionava
dolorosamente minhas costelas.
— Gomen! — Com o rosto em chamas, eu o soltei e me afastei,
mudando meu peso para equilibrar no galho estreito. Ele relaxou, mas
continuou a me observar, sua expressão sombria, seus olhos de volta
ao normal. E mesmo com o constrangimento, senti uma pequena
chama de alívio. Não havia nenhum indício do Tatsumi assustador de
olhos vermelhos que pensei ter visto alguns segundos atrás. Talvez
não tenha sido real. Talvez, na luz estranha que vem de Kamigoroshi,
eu tenha imaginado isso, afinal.
— Oiii! — chamou uma voz de baixo. — Yumeko-chan? Kage-
san? Vocês dois estão bem?
— Hai, Okame! — eu chamei liguei de volta. — Estamos bem. Já
desceremos.
Poucos minutos depois, estávamos todos reunidos na base da
árvore, o corpo enorme da omukade pairando sobre nós, ambos no
chão e ainda pendurado nos galhos. Eu me perguntei o que as pessoas
que passavam pensariam se olhassem para cima e vissem dois terços
de uma centopeia gigante enrolada nos galhos da árvore.
— Aquilo... — Okame disse quando Tatsumi e eu subimos. —
...foi nojento. Olha só isso! Não me importa o quão antigo e especial
era, não há nenhuma razão lógica para que os insetos fiquem tão
grandes.
— Deve ser antigo. — Eu disse, olhando para o cadáver
monstruoso. — Mas... por que veio atrás de nós? É como se soubesse
exatamente onde estávamos.
— Não importa.
O Príncipe Demônio se virou para Tatsumi. — O monstro está
morto. — Ele anunciou, como se ser atacado e matar uma centopeia
gigante fosse comum. Algo que ele fazia todas as noites antes do
chá. — Saímos vitoriosos e a noite ainda é jovem. Agora que não há
mais interrupções, devemos continuar nosso duelo, Kage-san?
Capítulo 25
Proposta de um príncipe
Demônio
— Nani? — Yumeko olhou para ele. — Agora? — Ela acenou
com o braço para o cadáver gigante, vazando um fluido esverdeado
na grama pisoteada. — Nós mal sobrevivemos a sermos comidos por
uma centopeia gigante. É realmente hora de continuar lutando?
— O duelo foi lançado e aceito. — Oni no Mikoto disse em uma
voz razoável. — Interrupções à parte, a honra exige que continuemos
até que um vencedor claro seja determinado. Kage-san. — Ele baixou
a cabeça para mim. — Devemos voltar para a ponte? Estou pronto.
Eu balancei a cabeça cansadamente. Se essa fosse a única
maneira de atravessar, eu teria que matá-lo. Eu não queria
necessariamente; ele havia se provado na luta com a omukade e se
recusou a fugir quando teria sido a escolha mais sábia. E pelos
vislumbres de sua luta, ele era extremamente habilidoso e rápido,
talvez o melhor espadachim que eu já tinha visto. Ele seria um
oponente mortal, de fato.
Mas ele não iria me deixar ir, e eu ainda tinha uma missão a
cumprir. Se ele quisesse esse duelo, eu lhe daria uma morte honrosa.
— Esperem. — Yumeko deu um passo à frente enquanto
caminhávamos em direção à ponte. — Oni no Mikoto, pare.
— Camponesa. — Oni no Mikoto se virou, e sua voz, embora
educada, estava fria. — Você viaja com Kage-san, então eu presumo
que você seja sua serva ou alguém sob sua proteção. Mas os servos
não dão ordens aos samurai. Apenas um aviso cortês, pois o próximo
guerreiro que você encontrar pode se ofender de verdade.
Yumeko piscou, mas não se encolheu ou recuou. — Sumimasen.
— disse ela a Oni no Mikoto. — Eu deveria me curvar? Eu deveria
fazer uma reverência, não é?
O ronin deu uma risadinha. — Na verdade, acho que ele
esperava que você se prostrasse aos pés dele e rastejasse. Geralmente é
o que acontece quando os camponeses encontram um samurai.
— Sinto muito. — Yumeko continuou. — Eu não quis
ofender. Eu cresci em um templo e nunca tive que me dirigir a um
samurai antes. Hum, além de Tatsumi-san, e ele não parece se
importar. — Eu levantei uma sobrancelha para isso, mas ninguém
estava olhando para mim. — Eu não sou muito boa em protocolo. —
Yumeko continuou. — Mas eu realmente não desejo ofender. Devo me
jogar no chão agora, Oni-sama?
— Não. — Oni no Mikoto suspirou. — Só... o que você quer,
garota?
— Se Oni-sama pudesse me agradar por um momento... —
Yumeko continuou. — E olhar para o olho direito da omukade. O que
você vê?
O Príncipe Demônio olhou para o yokai. A cabeça da omukade
estava lá, suas mandíbulas abertas em um último rosnado furioso,
algumas de suas pernas ainda se contorcendo na morte. — Uma
flecha. — disse Oni no Mikoto, olhando para o olho arruinado, onde a
haste era facilmente visível ao luar. Ele fez uma pausa, juntando as
peças e respirou fundo. — Então...
Ele olhou para Okame. — Então, foi você quem atirou no
monstro. — disse ele, como se acabasse de perceber. — Na ponte
quando ela atacou pela primeira vez, Kage-san e eu não podíamos
fazer nada contra ela. Nenhum de nossos golpes conseguiu passar,
mas... — Ele olhou para o olho novamente. — Algo o afastou. Foi
você.
O ronin encolheu os ombros. — Eu posso ter acertado a coisa...
— ele respondeu, e acenou para a garota. — Mas Yumeko-chan
chamou sua atenção e me disse onde atirar. Se você quer agradecer a
alguém por não acabar sendo comida de centopeia, agradeça a ela.
— Eu vejo. — Oni no Mikoto se virou para Yumeko
novamente. — Então, parece que tenho uma dívida de gratidão com
você. — disse ele, e embora sua postura fosse rígida, sua voz
permaneceu educada. — É isso que você quer, não é, garota? A bênção
de um samurai. Muito bem. — Ele se endireitou. — Eu concederei este
único favor. Embora entenda isso, não vou abandonar meu duelo com
Kage-san. — Seu olhar deslizou para mim. — Esta é uma batalha pela
qual esperei desde que peguei minha espada, e não vou perdê-
la. Você pode me pedir qualquer coisa, menos isso.
— Muito bem, Oni-sama. — Yumeko afirmou. — Se você não
pode concordar em não lutar, então me conceda isso. Adie o duelo.
O Príncipe Demônio pareceu surpreso. — Adiar?
— Sim. — Ela confirmou. — Sei que isso é importante para você,
mas tenho uma missão importante a cumprir, e Tatsumi já prometeu
me acompanhar até que isso seja feito. Ele é minha escolta para a
capital, e não posso permitir que ele morra antes de terminar minha
tarefa.
— Você não pode... permitir. — Oni no Mikoto piscou para ela
por trás de sua máscara, parecendo confuso, depois
atordoado. Inesperadamente, ele se curvou até a cintura. — Perdoe-
me, minha senhora. — Ele disse seriamente. — Eu não sabia de sua
posição. Eu a confundi com uma simples camponesa, mas se Kage-san
for seu yojimbo, cometi um grave erro. Eu humildemente imploro seu
perdão pelo meu erro de julgamento.
Eu fiz uma careta, vagamente irritado com a suposição. Eu não
era guarda-costas de ninguém. Ninguém, exceto os Kage, me
comandava. Embora eu não fosse corrigir a conclusão do
espadachim. Se ele pensava que Yumeko era uma senhora e eu era seu
yojimbo, protegendo-a nas estradas, então que fosse. Isso poderia nos
poupar perguntas mais tarde.
— Sim, você deveria se sentir envergonhado. — Interrompeu o
ronin, apontando para a garota. — Obviamente, uma simples
camponesa não poderia estar sob a proteção do infame matador de
demônios Kage, porque os camponeses não podem ter missões,
objetivos ou qualquer coisa significativa em suas vidas, exceto servir a
um samurai. Certamente ela deve ser uma donzela de santuário, ou
onmyoji errante. Essa é a única explicação para essa farsa, não é, Oni-
san?
Se fosse outra pessoa, a explicação teria feito sentido. Yumeko
cresceu em um templo e falava de seu Mestre Isao o tempo
todo. Monges, donzelas do santuário e onmyoji ocupavam uma
posição diferente em Iwagoto; não faziam parte da casta guerreira e,
tecnicamente, eram considerados camponeses, mas eram respeitados
por sua sabedoria e esclarecimento, sendo reconhecidos como
professores, mestres de sua arte ou conselheiros espirituais. Onmyoji,
especialmente, eram reverenciados entre samurais e camponeses; eles
eram adivinhos, exorcistas e especialistas do mundo espiritual, e eram
muito procurados por seus talentos. Como muitos onmyoji viajavam
pela terra, e como eles normalmente lidavam com todos os tipos de
fantasmas, yokai e espíritos inquietos, meu caminho se cruzava com o
deles em mais de uma ocasião.
Era improvável, mas não impossível, pensar que Yumeko
poderia ser uma onmyoji viajante, e havia pedido a ajuda do caçador
de demônios do Clã das Sombras para agir como seu guarda-
costas. Mas eu estava viajando com o ronin irreverente por tempo
suficiente para reconhecer seu sarcasmo velado e desdém pela casta
guerreira e sabia que ele estava enganando o outro sem dizer uma
mentira direta.
— Mas, Okame-san. — Yumeko começou. — Eu não...
— Além disso... — o ronin continuou em voz alta. — É realmente
a hora de continuar lutando? Você caiu no rio e Kage-san parece
exausto. Se este é realmente o duelo que você tem esperado por toda a
sua vida, você realmente quer continuar agora, quando nenhum de
vocês está no seu melhor?
— Hmm. — O Príncipe Demônio cruzou os braços. — Você fez
um excelente ponto. — Ele admitiu, seu tom relutante. — Se lutarmos
agora, como vou saber se foi a habilidade que ganhou a batalha, e não
a cega sorte ou infortúnio? Se quisermos duelar, devemos estar
preparados e não deixar nada ao acaso. Muito bem. — Ele deu um
aceno decisivo e se virou para Yumeko. — Minha senhora. — disse
ele. — Por favor, permita-me acompanhá-la e seus acompanhantes até
a capital e onde quer que suas viagens a levem depois.
Assustado, estreitei meus olhos, enquanto Yumeko se
endireitava. Aparentemente, ela também não esperava por isso. — Por
quê? — ela perguntou.
— Eu sei como lidar com Kin Heigen Toshi. — Oni no Mikoto
continuou. — Moro lá há muitos anos e meu nome tem muito
peso. Eu ficaria feliz em oferecer assistência enquanto você conduz
seus negócios na capital.
— Não precisamos de ajuda. — disse eu. — Obrigado, mas
podemos sobreviver por conta própria.
— Perdoe-me, Kage-san. — Oni no Mikoto parecia divertido
quando olhou para mim. — Mas acabamos de ser atacados por um
monstro centopeia gigante. Posso não saber muito sobre demônios,
mas devo assumir que não foi um ataque aleatório.
— A vida de um matador de demônios deve ser perigosa. — Oni
no Mikoto continuou, enquanto a inquietação cintilava dentro de
mim. Aqui estava outro que sabia muito sobre o Clã das Sombras e
Kamigoroshi. Outro que eu devo matar, se o clã ordenar. —
Especialmente se ele estiver agindo como guarda-costas de uma
onmyoji. A estrada à frente pode estar cheia de perigos e criaturas do
mal, proteger tanto a sua carga quanto a si mesmo será um desafio se
os demônios continuarem a atacar você.
Ele olhou para a árvore e para a centopeia gigante ainda
enrolada nos galhos. — Não posso permitir que você morra antes de
completarmos nosso duelo. — Continuou Oni no Mikoto. — Isso seria
uma desonra para nós dois. Portanto, irei com você e oferecerei toda a
assistência que puder. Assim que sua tarefa estiver concluída e
Yumeko-san não precisar mais de sua proteção, podemos continuar o
que começamos.
O ronin jogou a cabeça para trás e riu. — Eu amo a maneira
como os samurais pensam. — Ele anunciou, sorrindo. — Então, você
vai conosco, para garantir que Kage-san permaneça vivo, para que
você possa matá-lo mais tarde. — Ele riu e balançou a cabeça. — Cara,
mal posso esperar para ver onde isso vai dar.
— Eu não sabia que Oni-sama era tão conhecido na capital. —
Yumeko disse, enquanto o Príncipe Demônio educadamente e
deliberadamente ignorava o ronin. — As pessoas acham a máscara
assustadora?
— Ah. Claro. — Oni no Mikoto disse. — Perdoe minha grosseria,
ainda nem me apresentei adequadamente. — Ele estendeu a mão e
puxou a máscara oni, revelando um rosto liso e sem barba apenas
alguns anos mais velho que eu. Pequenos detalhes se destacaram
instantaneamente: maçãs do rosto salientes, queixo levemente
pontudo e a aparência pálida e elegante que o marcava como um
nobre da corte. Ele tinha feições estreitas, quase afeminadas, e havia
sublinhado seus olhos já penetrantes em preto. Não é a maior
maquiagem que eu já vi em um nobre, mesmo um homem, mas era
impossível confundi-lo com qualquer outra coisa.
— Eu sou Taiyo Daisuke. — O ex-Oni no Mikoto anunciou com
uma reverência formal a Yumeko. — É um prazer conhecê-la,
Yumeko-san. Obrigado mais uma vez pela honra de acompanhá-la em
sua missão. Como uma onmyoji viajante, você deve ver muito.
— Taiyo. — Ecoou o ronin, parecendo incrédulo. — Você faz
parte da família imperial?
— O quarto filho de um dos muitos primos do imperador. —
respondeu Taiyo Daisuke com um sorriso meio torto. — Felizmente,
dois de meus irmãos se casaram bem e ocupam cargos importantes no
tribunal, e o terceiro é um magistrado imperial, então não preciso me
preocupar em atender às expectativas de minha família.
O ronin sorriu. — Essa é uma atitude nada samurai, Taiyo-
san. Você não vai ter que cometer seppuku por ter um pensamento tão
desonroso?
— Meu clã sabe que farei o que for necessário para manter a
honra dos Taiyo. — O ex-Príncipe Demônio disse facilmente. — No
momento, nada é exigido de mim. Portanto, estou livre para seguir
minha própria agenda.
— Que é estar à espreita em pontes e desafiando guerreiros
fortes para duelos. — Disse o ronin.
— O que agora incluirá escoltar Dama Yumeko e seus
companheiros para a capital. — O nobre corrigiu. — Yumeko-san? —
Ele sorriu para a garota e gesticulou para as luzes distantes acima do
rio. — Sugiro passar a noite em Sagimura. A pousada lá é simples,
mas agradável, e os funcionários são muito atenciosos. Sempre achei
uma estadia agradável quando saio da capital para fazer minhas
peregrinações.
— Peregrinações! — O ronin bufou. — É assim que você as
chama, então?
Nenhuma resposta do nobre. Mesmo eu tive que admitir, o ex-
Príncipe Demônio tinha excelente audição seletiva. — Podemos ir
então, Dama Yumeko? — ele perguntou à garota. — Se nos
apressarmos, ainda podemos chegar à pousada antes do jantar ser
servido.
Yumeko devolveu o sorriso e, por apenas um momento, algo
dentro de mim se eriçou. — Isso soa maravilhoso. — Disse ela,
instantaneamente animada com a menção de comida. — Obrigada,
Taiyo-sama.
— Por favor, Yumeko-san. — O samurai ergueu a mão. — Taiyo-
sama é meu pai. Nós quatro apenas lutamos e matamos uma
centopeia gigante juntos. Acredito que conquistamos o direito de nos
chamarmos pelo primeiro nome. Apenas Daisuke, se você quiser.
— Daisuke-san. — Yumeko repetiu, ainda sorrindo. — Obrigada.
— Bem. — Taiyo Daisuke deu um passo para trás, olhando para
o rio. — Eu acredito que esta é a primeira vez que alguém encontrou
Oni no Mikoto em uma ponte e cruzou para o outro lado. — Seu olhar
caiu para a máscara oni, ainda segurada frouxamente em uma das
mãos, e ele sorriu um pouco tristemente. — Suponho que não
precisarei mais disso. — Ele murmurou. — Seja qual for o resultado,
seja vitória ou derrota, tenho a sensação de que o próximo duelo de
Oni no Mikoto será o final. Então...
Puxando o braço para trás, ele arremessou a máscara no ar. Ela
se arqueou, girando em vermelho e branco, antes de cair
preguiçosamente no rio. Por um momento, ela flutuou na superfície
da água, uma pequena oval pálida contra o preto. Então, o rosnante
rosto oni desapareceu quando a corrente o puxou para baixo, e ele se
perdeu de vista.

Capítulo 26
O capital
Meus olhos doem.
Kin Heigen Toshi, a Cidade da Planície Dourada, podia ser vista
muito antes de chegarmos aos seus impressionantes
portões. Construída onde dois rios, o Hotaru e o Kin no Kawa, o Rio
de Ouro, se encontram, ela se espalha por quilômetros em todas as
direções. O interior da cidade compactado era cercado por rios e
protegido por paredes de pedra íngremes, mas a expansão urbana
cruzou os fossos naturais e continuou a se arrastar pelas
planícies. Nunca tinha visto tantos prédios em minha vida; de longe,
parecia que um cobertor esfarrapado de telhados, paredes, pontes e
estradas havia se espalhado por todo o vale.
Perto do centro, erguendo-se de uma colina vertical e rodeado
por muralhas de pedra, um magnífico castelo erguia-se no ar,
elevando-se sobre a cidade. Embora suas paredes inferiores fossem
brancas e decoradas com madeira escura, seus telhados e pisos
superiores tinham sido cobertos com o que parecia ser ouro puro, pois
brilhavam intensamente contra o céu sem nuvens, quase brilhante
demais para se olhar.
— Veja, o Palácio do Sol. — Daisuke me disse, soando quase tão
orgulhoso como se ele mesmo tivesse projetado o castelo. — Casa do
imperador e o coração de Iwagoto.
— Eu nunca vi nada parecido. — Eu admiti, protegendo meus
olhos contra o brilho. — É realmente feito de ouro?
— Folha de ouro, minha senhora. — respondeu Daisuke. — As
paredes e o telhado são dourados com ela. Infelizmente, ainda não
descobrimos uma maneira viável de construir um castelo de ouro
puro. Embora o imperador Taiyo no Ryosei tenha tentado, até que os
camponeses se revoltaram.
— Parecia que eles não estavam satisfeitos em morrer de fome
enquanto seu imperador construía um palácio feito de ouro. —
Okame acrescentou atrás de nós. — Infelizes ingratos.
Daisuke o ignorou. Ele havia mudado de roupa desde a noite na
ponte e agora estava vestindo uma calça hakama cinza-pomba e um
casaco haori azul-celeste com nuvens prateadas enroladas nas bainhas
e mangas onduladas. O brasão dos Taiyo, um sol escaldante dentro de
um círculo, estava gravado em cada ombro. À luz do dia, com suas
espadas duplas enfiadas em seu obi e seus longos cabelos brancos
amarrados atrás dele, ele parecia em cada centímetro um nobre
guerreiro.
Muito diferente de Okame, encostado em uma árvore atrás de
nós, a ponta de um junco saindo de seus lábios. Ou Tatsumi, de pé ao
lado, uma sombra que quase se misturava à sombra lançada dos
galhos. Eu podia sentir os dois nos observando, um frio e alerta, outro
zombeteiramente divertido, e me perguntei se algum deles já havia
sentido algo próximo ao espanto antes.
— Quando foi construído... — Daisuke continuou, sem perceber
o intenso escrutínio em nossas costas. — O imperador da época, Taiyo
no Kintaro, exigia um castelo que brilhasse mais forte do que o
próprio sol, para que todos vissem a influência de nossa família por
quilômetros ao redor. Desde a sua construção, foi reduzido a cinzas
pelo menos quatro vezes, mas sempre foi restaurado à sua antiga
glória. Um Taiyo governou daquele palácio por mais de setecentos
anos.
— É lindo. — Eu disse, semicerrando os olhos quando uma das
telhas pegou o sol e brilhou em um branco abrasador contra minhas
pálpebras. — No entanto, estou curiosa, todos que vivem ao redor do
castelo ficam cegos em dias muito claros?
Ele deu uma risadinha. — Você aprende a não olhar diretamente
para ele no verão.
Seguimos a estrada, que logo se fundiu em uma larga avenida,
com multidões viajando de e para a capital. Quando cruzamos a ponte
e passamos por baixo dos amplos portões, meu coração bateu mais
rápido de excitação. Tudo aqui era tão grandioso! Tão grande,
barulhento e rápido. Eu me senti muito pequena enquanto
passávamos por dezenas de lojas e barracas de mercado, incapaz de
me impedir de olhar para tudo.
Houve um forte puxão na minha manga e Tatsumi me puxou
para o lado da estrada, assim como um homem correu puxando uma
carroça de duas rodas. Ele gritou algo que pode ter sido um pedido de
desculpas ou uma maldição e continuou descendo a rua sem diminuir
o passo.
— Oi, isso foi realmente necessário? — Chamei por ele, depois
me virei para Tatsumi, que ergueu uma sobrancelha. — Gomen. — Eu
me desculpei. — Acho que devo prestar atenção ao que está
acontecendo ao meu redor.
— Isso provavelmente é prudente.
— Oh, relaxe, Kage-san. — Okame interrompeu, caminhando ao
nosso lado. — Ela nunca esteve na capital, é claro que vai se
distrair. Então, Yumeko-chan... — Ele sorriu para mim. — Chegamos
oficialmente à capital. Existe algum lugar que você deseja
ver? Qualquer lugar que você gostaria de ir? Posso apontar os pontos
mais interessantes, se você quiser bancar a turista um pouco. Ou,
podemos sempre esperar até o sol se pôr. Kin Heigen
Toshi realmente fica interessante depois de escurecer.
— Será mesmo? Como assim?
— Não estamos aqui para passear. — A voz de Tatsumi era
plana. — Não podemos vagar pela cidade sem um plano, temos uma
missão a cumprir. Além disso... — ele disse, virando-se para o ronin.
— ...você disse que tinha negócios na capital. Você não deveria estar
indo embora?
Okame encolheu os ombros. — Eu não tenho nada importante
para fazer. — Ele disse casualmente, acenando. — Posso ser chato e
responsável e começar a procurar emprego a qualquer hora. Não é
como se nem sempre houvesse comerciantes que precisassem de
guardas ou salas de jogos que precisassem de seguranças. E tem sido
tão interessante viajar com vocês dois, acho que vou ficar um pouco
mais. Por que, Kage-san? — Seu sorriso se tornou de lobo, mesmo
quando os olhos de Tatsumi se estreitaram. — Você não está tentando
se livrar de mim, está?
— Yumeko-san. — Felizmente, Daisuke interveio antes que
Tatsumi pudesse cumprir o olhar de Eu vou te matar em seu rosto. —
Esta sua missão, onde devemos ir para completá-la? Morei nesta
cidade minha vida inteira. Eu sei onde quase tudo está. Se você pode
confiar em mim com sua missão, provavelmente posso mostrar o
caminho.
— Eu sim. Preciso encontrar o santuário Hayate. — disse eu,
lembrando-me das instruções finais do Mestre Isao. — É urgente que
eu fale com o sumo sacerdote de lá. Ele tem informações que me
indicarão a direção que devo seguir.
— O santuário de Hayate. — Repetiu Daisuke lentamente, e
assentiu. — Sim. Eu sei onde está localizado, mas é claro do outro lado
da cidade, no distrito do Vento. Levaremos o resto da noite para
caminhar até lá. Afinal, Kin Heigen Toshi é bem grande.
— Tudo bem. — Eu disse. — Eu preciso encontrar, é importante
que Tatsumi e eu cheguemos lá o mais rápido possível. Você poderia
nos mostrar o caminho, Daisuke-san?
Ele sorriu. — Claro.
Kin Heigen Toshi continuou a ser incrível enquanto seguíamos
Taiyo-san pelas estradas às vezes retas, às vezes sinuosas. Edifícios
erguiam-se ao nosso redor; casas de chá e templos, casas de banhos e
santuários, pousadas elegantes em sua simplicidade e propriedades
pródigas dos ricos e abastados. Lojas e barracas de comerciantes
alinhavam-se nas ruas, vendendo de tudo, desde sandálias de palha e
guarda-sóis a especiarias exóticas e bugigangas do Mar
Queimado. Daisuke comentou sobre os locais e edifícios por onde
passamos, apontando características especiais, explicando um pouco
da história se era um templo, santuário ou outro local de
importância. Ele realmente conhecia bem sua cidade, e me peguei
ouvindo o nobre, fascinada. Uma vez, Okame comentou que
provavelmente poderíamos pegar um atalho por um lugar chamado
distrito da luz vermelha, e então ele poderia me contar tudo sobre a
área. Mas antes que eu pudesse perguntar o que ele quis dizer,
Daisuke se virou e lançou lhe um olhar tão fulminante que a oferta foi
rapidamente rescindida.
Tatsumi, como de costume, ficou mais para trás, tão silencioso
quanto uma sombra em movimento, sem tentar conversar. Quando
viramos uma rua estreita com um canal de um lado e um muro do
outro, recuei para caminhar ao lado dele.
Ele me olhou, não totalmente desconfiado, mas na
expectativa. — Não é incrível, Tatsumi? — Murmurei, observando um
guarda-rios disparar do canal em uma faixa de azul brilhante. — Eu
nunca soube que existiam lugares como este no mundo.
— Hmm.
— Mestre Isao não falava muito sobre as terras fora do templo.
— Continuei. — Acho que ele e os outros temiam que o mundo
exterior me atraísse. Se eu soubesse que havia lugares como este, logo
além das paredes do templo, eles poderiam estar certos.
Tatsumi não respondeu e eu fiz uma careta para ele. — Você está
muito quieto, Tatsumi-san.
— Estou sempre quieto.
— Sim, mas você tem estado ainda mais taciturno do que o
normal ultimamente. — Eu persisti. — Algo está errado? Você pisou
em algo afiado?
— Devemos nos concentrar na missão. — respondeu ele, um
pouco brevemente. — Não brincar de turista com nobres, ou visitar
salas de jogos e distritos de prostituição com ronin. Esta não é uma
viagem de prazer.
— Eu sei disso. — Olhando para o nobre, andando um pouco à
frente e conversando com Okame, eu abaixei minha voz. — Mas
Daisuke-san está nos levando ao santuário Hayate, seria rude partir
sem ele.
Ele desviou o olhar. — Nós não precisamos deles. Eles só vão
atrapalhar e nos atrasar. Assim que descobrirmos onde fica o templo,
devemos deixá-los para trás.
— Eles estão nos ajudando, Tatsumi. Okame nos ajudou também
na aldeia com os gaki. Não podemos simplesmente deixá-los. Além
disso, e quanto ao seu duelo com Daisuke-san?
Ele me olhou. — Você está dizendo que quer ver um de nós
morrer? — ele perguntou com uma voz estranhamente frágil. — Ou
você não me quer por perto? Talvez você prefira que o nobre e o ronin
a acompanhem ao templo.
— Claro que não. — Eu fiz uma careta com sua hostilidade
estranha e repentina. — Não é isso que estou dizendo, Tatsumi-san.
— Não? — Sua voz caiu, tornando-se quase inaudível. — Talvez
devesse ser.
— Oi, vocês dois. — Okame chamou lá de cima. — O que quer
que vocês estejam sussurrando lá atrás, pode esperar? Nosso guia
disse que o santuário fica do outro lado da estrada.
Passei correndo por dois meninos com varas de pescar para me
juntar a Daisuke e o ronin na beira da rua. Do outro lado da estrada,
um portão torii vermelho ficava diante de uma escada de pedra que
subia direto na colina arborizada.
— Esta é a entrada para o santuário Hayate. — disse Daisuke,
olhando para a escada íngreme, parecendo destemido com a ideia de
escalá-la. — Embora seja um pouco tarde para chamar o sacerdote. —
Acrescentou ele, olhando para o céu por entre os galhos. O sol se pôs
há alguns minutos e as primeiras estrelas estavam aparecendo. — Ele
está esperando por você, Yumeko-san?
— Não que eu saiba. — Respondi, sentindo Tatsumi parar ao
meu lado. — Mas eu preciso falar com ele logo. Hoje à noite, se eu
puder.
— Tudo certo. — Okame suspirou, dando à escada um olhar
resignado. — Sacerdote primeiro então, salão de jogos depois. E talvez
um pouco de diversão no distrito da luz vermelha depois. Vai ser uma
noite agitada, espero que vocês dois possam acompanhar. — Ele
olhou especificamente para Daisuke ao dizer isso, como se avaliando a
resposta do outro. O nobre, por sua vez, o ignorou e ergueu a mão em
direção à escada.
— Esta é a sua missão, Yumeko-san. Nós te seguiremos.
Respirei fundo, aliviada e nervosa ao mesmo tempo. Eu estava
quase lá. Só mais alguns passos até completar a primeira parte da
minha missão. Encontrar Mestre Jiro, que poderia me dizer onde
encontrar o templo Pena de Aço. Minha jornada não acabou; ainda
tínhamos que chegar ao templo e eu não tinha ideia de onde ele
estava, mas imaginei que teríamos que cruzar vários territórios
desconhecidos e procurar o terreno mais duro e implacável, o tempo
todo sendo perseguidos por magos de sangue e demônios. Eu ainda
teria que manter o pergaminho seguro, dos demônios e de meus
próprios companheiros. De um perigoso matador de demônios
obstinado que poderia me matar se percebesse que eu o havia
enganado, que eu possuía o pergaminho o tempo todo. Este não era o
fim, longe disso. Este era outro começo e, por um momento, minha
cabeça girou com o que eu ainda tinha que fazer.
Um passo de cada vez, raposinha. Lembrei-me da voz do Mestre
Isao, suas palavras sempre que eu enfrentava uma montanha de
tarefas ou uma tarefa especialmente difícil. A aranha não gira sua teia
em um piscar de olhos, nem o albatroz voa através dos oceanos com algumas
batidas de suas asas. Muitos considerariam o que fazem impossível e, ainda
assim, eles completam suas tarefas sem falhar, porque simplesmente...
começam.
Um passo de cada vez. Dei um passo, depois outro, até cruzar a rua
e ficar diante do portão torii. Além do arco ficava um solo sagrado, o
reino dos kami. Ofereci uma reverência respeitosa aos espíritos em
cujo território eu estava entrando e comecei a subir as escadas.
Era uma escada bastante íngreme e longa, e tive o cuidado de me
manter em um lado da escada, pois o centro do caminho estava
reservado para os kami. A borda da escada estava bastante gasta,
áspera com o tempo e o tempo, tornando importante observar onde
você coloca os pés. Ao subir o último degrau, avistei uma estátua
komainu, os cães-leões que protegiam o santuário de espíritos
malignos, no topo de seu pedestal flanqueando a escada, a boca aberta
em um rosnado assustador. Outro pedestal de pedra ficava do outro
lado da escada, mas este estava vazio, como se o segundo guardião
tivesse decidido abandonar seu posto.
Resumidamente, eu me perguntei o que teria acontecido com
ele; os guardiões komainu sempre vinham em pares. Mas o
pensamento foi rapidamente esquecido quando passei por baixo de
um segundo torii e vi o pequeno, mas elegante, santuário do outro
lado do minúsculo pátio. O haiden, ou sala de orações, situado em
uma plataforma elevada no topo de um lance de quatro degraus de
pedra, tinha o tom avermelhado do portão torii. Uma corda sagrada
foi enrolada na entrada, indicando a santidade do edifício. Além do
haiden ficava o honden, o prédio principal onde os kami estavam
alojados, e ninguém além do sacerdote e das donzelas residentes do
santuário tinha permissão para entrar.
— Parece que não tem ninguém aqui. — Okame meditou. Não
havia pessoas perto ou ao redor do haiden; o pátio estava vazio, assim
como a fonte de purificação perto da entrada. Mas em um lugar como
este, onde o único som era o vento nos pinheiros e o gotejar da água
na fonte, a presença dos kami podia ser sentida em todos os
lugares; até mesmo o ronin impetuoso e irreverente parecia relutante
em quebrar a quietude. — Talvez devêssemos verificar as
dependências? Os aposentos dos sacerdotes devem ser em algum
lugar, certo?
Daisuke olhou através do pátio na direção do haiden, uma
carranca pensativa no rosto. — Antes de qualquer coisa, devemos
primeiro prestar nossos respeitos aos kami. — Declarou ele em uma
voz solene. — Somos hóspedes aqui e não desejo convidar a má sorte
para minha casa ofendendo-os.
— Acho que você está certo. — disse Okame. — Embora eu
geralmente possa ofender simplesmente existindo. É um talento,
suponho.
Em preparação para falar com os kami, nos reunimos ao redor
da fonte de purificação, uma calha de pedra com conchas equilibradas
nas bordas. Daisuke mergulhou uma das longas conchas de madeira
na água e derramou um pouco na mão esquerda, depois na direita,
antes de passar o dedo nos lábios e recolocar a concha com
cuidado. Eu segui seu exemplo, observando que Okame fez o mesmo,
embora sua expressão fosse ligeiramente azeda enquanto ele
despejava a água extremamente fria nas mãos, enxaguava a boca e
cuspia nos arbustos. Até mesmo Tatsumi seguiu o ritual, limpando
cuidadosamente suas mãos e tocando água em seus lábios de uma
maneira muito calma e prática.
Assim purificados, nos viramos e seguimos para o haiden no
topo da escada. Era uma estrutura elegante, com um telhado de telhas
verdes que se curvava nos cantos e pilares vermelhos brilhantes
abaixo. Uma caixa de oferta de madeira estava diante de uma tela de
treliça que cobria a janela do prédio. Fascinada, observei Daisuke
jogar uma tora de prata na caixa e sacudir a corda pendurada para o
lado.
Um carrilhão soou de um grande sino no alto e, imediatamente,
senti um despertar ao nosso redor, como se dezenas de olhos de
repente se virassem em nossa direção. Os kami do santuário estavam
cientes de nossa presença agora. Eu esperava que eles não se
ofendessem com uma meio kitsune presunçosa invadindo seu
território.
Parecendo não perceber a atenção repentina, Daisuke curvou-se
uma vez, e depois uma segunda vez. Colocando as mãos diante do
rosto, ele bateu palmas duas vezes, lenta e deliberadamente, depois
fechou os olhos em uma oração silenciosa. Quando ele terminou,
Okame repetiu o ritual, jogando um kaeru de cobre na caixa de
oferendas, tocando a campainha e batendo palmas duas vezes antes
de fechar os olhos para orar.
Tentando ser paciente e esperar pela minha vez, notei Tatsumi,
ainda parado na parte inferior da escada. Seus braços estavam
cruzados e ele estava olhando para o portão torii do outro lado do
pátio. Ele parecia tenso, sua mandíbula cerrada e olhos duros, como se
ele não estivesse confortável aqui. Desci para ficar ao lado dele.
— Você está bem, Tatsumi-san? Você parece um pouco pálido.
— Estou bem.
— Você vai fazer um pedido para os kami? Talvez orar para que
nossa missão corra bem?
Ele balançou sua cabeça. — Os kami não dariam ouvidos a
alguém como eu.
— Por quê?
— Porque invocar os deuses requer pureza de coração, bem
como de corpo. — Tatsumi respondeu. Seu olhar mudou para a palma
da mão aberta, e uma sombra passou por seus olhos. — Mesmo que
eu me limpe mil vezes, minha alma está contaminada além do
perdão. Os kami não querem nada comigo.
— Oh. — Eu pensei sobre isso por um momento; parecia tão
triste ser ignorado pelos deuses. — Diga-me, então. — Eu ofereci.
Ele piscou e olhou para mim, parecendo confuso. Eu encontrei
seu olhar e sorri. — Seu desejo, Tatsumi. Se você pudesse orar por
qualquer coisa, agora, o que seria? Vou pedir aos kami por você.
— Yumeko... — Seus olhos se suavizaram. Por um segundo, eu
pude ver além do frio, das sombras e do olhar vazio do espelho, e a
vulnerabilidade ali fez meu estômago apertar.
— Desculpe.
Nós nos viramos, e aquela breve expressão de gentileza
desapareceu do rosto de Tatsumi como o estalo de uma porta sendo
fechada. Olhei para o pátio e descobri que não estávamos mais
sozinhos.
Uma jovem estava a poucos metros de distância, uma vassoura
nas duas mãos, nos observando com uma expressão severa no
rosto. Ela não podia ser senão um ou dois anos mais velha que eu,
usando o tradicional hakama vermelho e o imaculado haori branco de
uma miko, uma donzela de santuário. Seu cabelo preto liso, ainda
mais longo que o meu, estava amarrado atrás dela com uma fita
vermelha simples, e seus olhos escuros brilharam com desaprovação
quando ela deu um passo à frente.
— Sinto muito. — Ela anunciou, seu olhar passando
rapidamente para Daisuke e Okame, descendo as escadas para se
juntar a nós. — Mas o santuário está fechado à noite. O horário
comercial termina quando o sol se põe. Se vocês desejam fazer uma
oração ou fazer um desejo para os kami, por favor, voltem... amanhã.
Sua voz sumiu por um momento enquanto ela olhava para
mim. Senti um aperto no estômago quando nossos olhares se
encontraram e, por um momento, pensei que ela pudesse me
ver. Realmente me ver, o que eu era. Meu coração batia forte e prendi
a respiração, imaginando se a donzela do santuário gritaria kitsune! e
eu seria exposta a todos eles.
— Por favor, com licença. — disse Daisuke, avançando. A miko
desviou o olhar de mim para encarar o nobre que se aproximava, que
sorriu ao chegar ao fim da escada.
— Não queríamos nos intrometer. — Continuou Daisuke,
enquanto eu ainda esperava, congelada, para ver o que a donzela do
santuário faria. — Estamos procurando o sacerdote chefe aqui. Você
poderia nos dizer onde ele está?
— Quem deseja saber?
Eu respirei rapidamente. — Eu quero. — Eu disse, me afastando
de Tatsumi. A miko olhou para mim calmamente, seus olhos escuros
avaliando, mas ela não apontou e gritou raposa demônio para mim,
então eu esperava que eu tivesse me enganado. — Eu vim do templo
Ventos Silenciosos. — Eu continuei, não vendo nenhuma mudança em
sua expressão. — Eu viajei muito para encontrar este lugar. Por favor,
é importante que eu fale com ele. Você pode me dizer onde ele está?
Ela sustentou meu olhar por mais um momento, então se
virou. — Venham comigo. — Ela ordenou simplesmente, e começou a
andar pelo pátio. Todos nós corremos para segui-la, enquanto ela nos
conduzia ao redor do santuário para uma fileira de edifícios muito
menores e mais simples. Nos degraus da varanda que circundava a
primeira estrutura, ela se virou, nos parando em nosso caminho, e
apontou o dedo em minha direção.
— Você. Me siga. Só você, o resto do seu grupo deve esperar
aqui. — Ela olhou para os outros, como se esperasse um protesto, e
estreitou os olhos. — O sacerdote chefe está muito ocupado no
momento. Não quero incomodá-lo com um grande grupo de
visitantes pisoteando as instalações. Vou levar a garota para falar com
Mestre Jiro, todos os outros, por favor, fiquem à vontade até
voltarmos.
— Oh. — Eu me virei para olhar para meus companheiros, me
perguntando o que eles achavam disso. Okame encolheu os ombros e
Daisuke apontou para os degraus, indicando que eu deveria segui-
la. Eu olhei para Tatsumi, e ele deu um leve aceno de cabeça. Eu acho
que ele não achava que uma pequena donzela de santuário seria uma
ameaça, ou talvez ele não se importasse de uma forma ou de outra. —
Tudo certo.
Eu a acompanhei escada acima, desci por uma varanda de
madeira e passei por vários cômodos onde o murmúrio de vozes
podia ser ouvido através do shoji. No final da varanda, a miko abriu
uma porta e gesticulou para que eu entrasse. Fiz o que ela pediu,
entrando em uma sala pequena, quase vazia, com piso de tatame, uma
mesa baixa e uma única flor em uma alcova. O sacerdote principal não
estava em lugar nenhum.
A porta se fechou com um estalo. Eu me virei para ver a miko
pegar uma tira de papel branco de seu haori e pressioná-la no batente
da porta, o kanji para barreira escrito na superfície em tinta preta clara.
Uma ofuda? Senti uma pulsação de energia espiritual ondular da
tira de papel e se espalhar pelas paredes. Os pelos de meus braços se
arrepiaram quando uma parede cintilante de força cercou a sala,
semelhante à barreira de ki que os monges criaram, mas de pura
magia, extraída dos kami e da energia do mundo.
A donzela do santuário se virou, seus olhos negros duros
quando encontraram os meus. — Eu coloquei uma barreira ao redor
desta sala. — Ela anunciou. — Nenhum espírito, demônio ou yokai
pode entrar ou sair, e ninguém de fora vai nos ouvir. Seus amigos,
mesmo que sejam seus amigos, não virão, kitsune.
Minhas orelhas se achataram quando dei um passo para trás,
sentindo a magia da raposa subir à superfície. Então, ela tinha me
visto, afinal. — Eu só vim falar com Mestre Jiro. — Eu disse, no que
esperava ser uma voz calma. — Não estou aqui para causar
problemas.
— Não? — O olhar da miko se estreitou. — Você achou que
poderia simplesmente entrar aqui e eu não reconheceria um yokai
quando visse um? Até uma meio yokai. Falo com os kami todos os
dias. Eu vejo o mundo deles tão claramente quanto o meu. — Ela
gesticulou além da porta selada. — Aqueles homens lá fora, nenhum
deles sabe o que você realmente é, sabe, raposa? Você está enganando
a todos. — Um sorriso duro cruzou seus lábios. — Você não vai me
enganar tão facilmente.
— Vim aqui em busca de ajuda. — Insisti. — Eu sou do templo
Ventos Silenciosos. Meu mestre me enviou para encontrar o sacerdote-
chefe do santuário Hayate.
— Por quê?
— Porque... — Fechei meus olhos. Eu não queria lutar contra a
miko, mas estava claro que ela não confiava em uma palavra do que
eu estava dizendo. Ela viu apenas uma kitsune, e a reputação das
raposas travessas me precedeu. Se eu queria falar com o sacerdote,
tinha que passar pela donzela do santuário.
— Porque... — Suspirei novamente e coloquei a mão no meu
furoshiki. — Eu tenho isto.
Os olhos da donzela do santuário ficaram enormes quando puxei
a caixa de pergaminho laqueada, segurando-a entre nós. O sangue
sumiu de seu rosto, e ela deu um passo para trás, olhando para o item
em minha mão como se fosse uma cobra viva. — Misericordiosa
Kami. — Ela sussurrou. — Isso é... Você tem um pedaço do
pergaminho. — Ela ficou lá por um momento, então se inclinou para
frente com os olhos estreitos. — Quem mais sabe disso? — ela
retrucou. — Os homens lá fora, algum deles sabe que você tem a
oração do Dragão?
Eu balancei minha cabeça. — Nenhum deles sabe que eu possuo
o pergaminho. — Eu disse a ela. — Ou, este pedaço dele, de qualquer
maneira. — Hesitei por um momento, estremecendo. — Embora haja...
um, que está procurando por ele, que foi enviado ao meu templo para
recuperar o pergaminho.
— O samurai de preto. — Adivinhou a miko. — O guerreiro do
Clã das Sombras. Quem é ele?
— O nome dele é Kage Tatsumi. — Eu disse a ela. — Ele carrega
uma espada chamada Kamigoroshi.
Ela fechou os olhos. — O matador de demônios Kage. — Ela
sussurrou. — Eu pensei ter sentido algo maligno por perto. Suponho
que faz sentido que Hanshou o mande. — Seus olhos se abriram, com
raiva e medo, olhando para mim. — Como você pôde trazer aquela
criatura para este santuário? — ela exigiu. — Você sabe o quão
perigoso ele é, o que ele poderia fazer com os espíritos que chamam
este lugar de casa?
— Eu precisava dele. — eu disse a ela. — Ele concordou em
ajudar...
— Porque ele quer o pergaminho. — Ela interrompeu. — Essa é
a única razão pela qual você ainda está viva, kitsune, a única razão
pela qual o caçador de demônios não te matou. Se ele descobrir que
você tem...
— Meu templo foi atacado. — Eu disse. — Um oni apareceu,
matou todos e tentou pegar o pergaminho. Eu quase não escapei. —
Estremeci, lembrando-me do terror da horda, do monstruoso oni se
chocando contra o corredor e do horror que veio depois. Tive que
engolir o nó na garganta antes de continuar. — Antes de morrer,
Mestre Isao me mandou aqui. Ele disse que o sacerdote principal
saberia onde encontrar o templo Pena de Aço.
— Que tem a segunda parte da oração do Dragão. — A miko
terminou gravemente, e suspirou. — Sim, posso ver a verdade em
suas palavras. — Ela deu um passo para trás, esfregando os olhos
como se estivessem doendo. — Embora eu não saiba por que os
monges deixaram uma yokai fugir com algo tão importante. Suponho
que eles estavam desesperados.
Eu ignorei o desprezo em sua voz, deslizando a caixa de volta
para o meu furoshiki. — Meu nome é Yumeko. — Eu disse a ela. —
Mestre Isao e os monges me criaram. Passei minha vida inteira
naquele templo. Eu não conhecia a história do Dragão até
recentemente, mas prometi cuidar do pergaminho. Não tenho
intenção de deixá-lo cair nas mãos dos demônios ou de humanos
malignos. Percorri um longo caminho, lutei contra bandidos e gaki e
omukade, para falar com o sacerdote chefe. — Eu prendi minhas
orelhas, sentindo um pouquinho de desespero e raiva subir à
superfície. — Se eu realmente fosse uma yokai pura, teria jogado o
pergaminho no rio e o deixado cair no mar.
— Você está certa. Sinto muito, kitsune. — A donzela do
santuário se endireitou, tornando-se mais formal. — Peço desculpas
por minha franqueza. — Ela ofereceu. — Eu sou conhecida como
Reika, e sou a donzela sênior do santuário Hayate. Eu também sou a
única que sabe sobre o pergaminho do Dragão, além de Mestre Jiro.
— Você conhece a lenda, então. Sobre o pergaminho e o desejo
do Dragão.
— Sim. — Reika acenou com a cabeça. — Mestre Jiro me contou
sobre o pergaminho, a oração do Dragão e o que acontecerá se o
Dragão for convocado. Mas há uma coisa que ele não revelou, e essa é
a localização do templo Pena de Aço. — Um sorriso fraco e amargo
torceu seus lábios. — Suponho que era para minha proteção.
— Eu tenho que chegar ao templo Pena de Aço. — Eu disse. —
Eu prometi que entregaria o pergaminho aos monges de lá. Você vai
me permitir falar com Mestre Jiro?
— Eu o faria... — respondeu a miko. — ...se soubesse onde ele
está.
Eu pisquei. — Ele não está aqui?
Reika balançou a cabeça. — Três dias atrás... — ela explicou. —
Um mensageiro chegou com uma mensagem para Mestre Jiro,
convocando-o ao Palácio Imperial. Ele saiu para participar da reunião
e me colocou como responsável pelo santuário até que ele
voltasse. Essa foi a última vez que o vi. — Seus lábios se contraíram e
ela balançou a cabeça. — Eu não deveria ter deixado ele ir. Ele
confessou que tinha um pressentimento ameaçador sobre a reunião e
me alertou para ficar em guarda. Eu deveria ter insistido para que ele
ficasse aqui. E agora, ele está desaparecido e não tenho ideia do que
aconteceu.
— Você já foi ao palácio para procurá-lo?
Ela me lançou um olhar perplexo. — Tenho tentado, mas você
não pode simplesmente aparecer no palácio imperial sem um convite.
— Ela exclamou. — Os guardas continuam me rejeitando nos
portões. Dizem que ninguém viu ou ouviu falar de Mestre Jiro. — A
miko fez um gesto frustrado. — Mas eu sei que ele está lá. Eu sei que
ele foi falar com uma mulher chamada Dama Satomi, e nunca mais
voltou. — Ela me lançou um olhar desconfiado. — E então, uma
kitsune chega ao santuário com parte do pergaminho do Dragão,
querendo saber o caminho para o templo Pena de Aço. Como eu
poderia não pensar que as duas eram parentes?
Comecei a responder, mas de repente uma corrente percorreu o
ar, causando um arrepio na espinha. Reika se virou, arregalando os
olhos, quando a ponta de uma lâmina cortou a porta de tela
deslizante, cortando o ofuda ao meio. Os painéis das portas caíram no
chão com um barulho, revelando a silhueta esguia e escura de
Tatsumi na moldura, Kamigoroshi desembainhada e brilhando na luz
fraca.
Capítulo 27
Convocado por Sombras
Alguma coisa não estava certa.
Eu assisti Yumeko sair com a donzela do santuário, sentindo a
agitação de Hakaimono em minha mente. Assim que passamos pelo
portão torii nas escadas, o demônio recuou. Este era um terreno
sagrado, santificado pelos sacerdotes e protegido contra o
mal. Demônios não eram bem-vindos neste lugar. Mesmo que a
presença de Hakaimono tenha sido mascarada pela espada, ainda era
desconfortável para mim estar aqui. Para piorar as coisas, Hakaimono
nutria um ódio venenoso especial por sacerdotes, donzelas de
santuários e figuras espirituais de qualquer tipo. Quando a miko
apareceu pela primeira vez, eu tive que suprimir o desejo instantâneo
de arrancar a cabeça de seu corpo.
Ainda assim, não senti nenhum mal vindo da própria donzela
do santuário, e quando ela disse ao resto de nós para esperarmos
enquanto ela continuava com Yumeko, eu estava cauteloso, mas
protestar não nos levaria mais perto de nosso objetivo. Especialmente
quando havia outras maneiras de ouvir a conversa sem estar
fisicamente presente.
Vagando pela lateral do prédio, encostei-me no parapeito e
cruzei os braços, fingindo uma pose de paciência casual. Enquanto o
ronin se sentava pesadamente nos degraus e puxava sua jarra de
saquê e o nobre caminhava silenciosamente até a beira de um jardim
de pedras, eu furtivamente levei dois dedos aos lábios e sussurrei
algumas palavras sob minha respiração.
À minha volta, tudo ficou muito quieto. Os sons diminuíram,
tornando-se abafados, como se o mundo estivesse subitamente
debaixo d'água. Fechando meus olhos, inclinei minha cabeça
levemente e direcionei meu foco para o prédio atrás de mim.
Vozes sussurraram em meus ouvidos, enquanto eu enviava
minha consciência para as salas, em busca da voz de Yumeko. Essa era
uma técnica especial do Clã das Sombras, usada por alguns de nossos
shinobi para ouvir uma conversa particular em uma sala, do outro
lado do quintal ou em um restaurante lotado, sem se denunciar. Como
minhas missões geralmente envolviam morte e não coleta de
informações, raramente a usava, pois focar tanto de sua atenção em
outro lugar deixava seu corpo vulnerável. Mas o santuário parecia
seguro o suficiente; não havia demônios aqui, exceto aquele escondido
em minha lâmina. A menos que o ronin ficasse entediado e decidisse
me incomodar, eu estaria seguro para ouvir Yumeko e a donzela do
santuário.
No entanto, conforme eu pressionava mais para dentro do
prédio, ouvindo o que supus serem mais mikos, falando sobre suas
vidas diárias, de repente bati em uma parede. Não uma física; eu
poderia passar por madeira, pedra ou papel de arroz com
facilidade. Mas uma parede de magia, brilhando com energia, me
impediu de ir mais longe.
Uma barreira?
Eu abri meus olhos, e a magia se espalhou ao vento. O ronin
ainda descansava nos degraus, bebendo, e o nobre parecia estar
admirando o jardim de pedras bem cuidado à sombra de um pinheiro.
Empurrando-me para fora do corrimão, me virei e caminhei ao
redor da varanda e subi os degraus, passando por cima do ronin, que
me olhou perplexo.
— Oi, onde você está indo, Kage-san? Achei que devíamos
esperar aqui.
Ignorando-o, continuei pelo corredor, puxando minha espada
enquanto o fazia. Com um grito, o ronin correu atrás de mim,
exigindo saber o que eu estava fazendo, mas não parei. Eu subestimei
a donzela do santuário, pensando que ela não era uma ameaça. Essa
não era uma barreira simples que eu encontrei; era um selo complexo,
bloqueando qualquer som ou magia de entrar ou sair. Se ela tivesse
Yumeko naquela sala e decidisse atacar, nenhum de nós seria capaz
de ouvir o que estava acontecendo.
Quando me aproximei da última sala, pude sentir a magia
empurrando contra mim, tentando me impedir. Eu vi o brilho quase
invisível bloqueando a porta e estreitei meus olhos. Erguendo
Kamigoroshi, eu mirei, então trouxe a espada cortando a estrutura,
sentindo a lâmina rasgar a barreira e quebrá-la em mil pedaços.
As portas caíram, batendo no chão ao meu lado. Eu encarei a
sala enquanto Yumeko e a donzela do santuário giravam, seus olhos
se arregalando quando me avistaram.
— Você! — A donzela do santuário deu um passo à frente,
parecendo sem medo, mesmo quando Hakaimono rosnou de ódio e
me pediu para parti-la ao meio como as portas. — Kamigoroshi, você
não é bem-vindo aqui. Saia e leve seu hospedeiro humano com você!
— Parece que o sacerdote principal não está aqui hoje. — Eu
entrei na sala, e a miko deu um passo para trás. Olhei para além dela,
certificando-me de que a garota estava bem, antes de me virar para a
donzela do santuário. — Você nos enganou para pegar Yumeko
sozinha. Você achou que sua barreira poderia me impedir?
Carrancuda, a miko puxou outro ofuda de sua manga e o
brandiu diante dela. Lia lealdade em tinta preta gritante no papel. —
Deixe este lugar, abominação. — Ela ordenou novamente. — Se você
chegar um passo mais perto, vou convocar o guardião do santuário
para expulsá-lo!
— Faça isso. — Eu disse, sentindo Hakaimono inflamar-se de
ansiedade. — E você terá um guardião a menos.
— Tatsumi, espere!
Yumeko se colocou entre nós. — Está tudo bem. — Ela me disse,
enquanto o nobre e o ronin entravam na sala também. Eu podia sentir
o choque deles enquanto eles observavam a cena; eu com minha
espada descoberta, de frente para uma donzela do santuário
brandindo ofuda. E um lapso de garota entre nós. — Estou bem,
Tatsumi. Não há perigo aqui. Reika-san estava me contando como
Mestre Jiro desapareceu e que ela precisa da nossa ajuda para
encontrá-lo.
— O que? — A miko exclamou, obviamente tão surpresa quanto
o resto de nós. Yumeko meio que se virou, olhando para trás,
enquanto a donzela do santuário abaixava o braço, franzindo a testa.
— Isso é o que você queria, não é, Reika-san? — Ela inclinou a
cabeça, como se a solução fosse perfeitamente clara. — Encontrar
Mestre Jiro. E precisamos de sua ajuda para chegar ao templo. Então,
obviamente, devemos nos ajudar. Certo, todos vocês? — Yumeko
olhou para nós três, seu olhar queixoso. — Daisuke-san? Okame-
san? Vocês vão ajudar também, certo?
— Claro. — O ronin exclamou imediatamente. — Estamos
sempre felizes em ajudar um amigo de Yumeko-chan. Deixe isso
conosco. — Ele fez uma pausa, coçando a nuca. — Embora ajudasse se
eu soubesse o que diabos está acontecendo.
Suspirei, baixando minha espada. Donzelas do santuário, ronin,
fazendeiros, yurei. Havia alguém que Yumeko não confiaria assim
que conhecesse? — Você disse que o sacerdote chefe desapareceu? —
Eu perguntei à donzela do santuário, que me olhou com cautela, mas
acenou com a cabeça. — A quanto tempo?
— Três dias. — A miko respondeu, e deu um passo para trás
com um olhar exasperado para as portas, caídas no batente. — Vocês
também podem entrar. — Ela suspirou, acenando para que
passássemos. — Sentem-se e explicarei toda a situação.
Passamos com cuidado sobre os painéis da porta quebrados e
nos sentamos em frente à mesa baixa, com a miko do outro lado. E
ouvimos quando ela nos contou sobre o sacerdote chefe, a misteriosa
convocação para o palácio e seu encontro com uma mulher chamada
Dama Satomi.
Ao ouvir o nome, Taiyo-san se endireitou, um lampejo de
reconhecimento passando por seus olhos. Yumeko percebeu isso
também.
— Você a conhece, Daisuke-san? — Yumeko perguntou.
— Sim. — A expressão do nobre tornou-se ligeiramente
amarga. — Não pessoalmente, mas eu sei quem ela é. Todos no
palácio conhecem. Ela é a concubina favorita do imperador. Ela veio
para a cidade há menos de um ano e vem crescendo sua influência
desde então. Alguns acreditam que o imperador a favorece demais,
que uma simples concubina não deve receber tal status, mas quem
fala muito alto contra ela é desonrado, exilado da cidade ou pior. E...
Ele parou. — E? — Eu perguntei suavemente.
Ele exalou. — Não é nada. Fofoca de camponeses, nada com que
um bushi honrado se preocupasse. Mas tem havido... rumores
ultimamente, sussurros, sobre Dama Satomi. Todos os criados têm
pavor dela, e ela parece nunca ter a mesma criada por mais de um mês
ou dois de cada vez. Havia uma pequena criada... Suki, creio que seu
nome era, que foi designada pela última vez aos aposentos de Dama
Satomi. Por acaso, encontrei-a uma vez, quando ela veio pela primeira
vez ao palácio. — Ele bateu os dedos no braço, franzindo a testa. — Eu
não a vi desde então.
Yumeko inclinou a cabeça. — O que aconteceu com ela?
— Eu não sei. — O nobre balançou a cabeça. — Eu não
acompanho as criadas de Dama Satomi, mas acredito que ela tem
outra garota trabalhando para ela. Se o que você diz é verdade, e o
sacerdote principal desapareceu, isso realmente parece suspeito. O
que Dama Satomi quer com Mestre Jiro?
— Pretendia perguntar a ela... — disse a donzela do santuário. —
Se pudesse entrar no palácio.
A mandíbula do nobre apertou. — Eu teria muito cuidado, se
fosse você. — alertou. — Dama Satomi pode não ser uma guerreira,
mas ela é a favorita do imperador e uma dama da corte. Dentro do
palácio, ela detém uma tremenda quantidade de controle e poder. Ela
será uma adversária perigosa se você atacá-la de frente. Se você não
despertar a ira do próprio imperador primeiro.
— Daisuke-san. — Yumeko disse, como se acabasse de perceber
algo. — Você é um nobre da grande família imperial. Você poderia
nos levar para o palácio, certo?
— Eu... — Pego de surpresa, o nobre olhou para ela por um
momento, então acenou com a cabeça. — Sim. — Ele finalmente
admitiu. — Eu poderia. Seria necessário algum planejamento, mas
acho que conseguiria.
Eu também poderia, pensei, irracionalmente irritado com o sorriso
que Yumeko deu a ele. Hakaimono se animou, intrigado com meu
lampejo de irritação, e eu empurrei a presença do demônio para baixo.
— No entanto... — continuou o nobre. — Existem protocolos
adequados que devemos seguir. Não posso simplesmente levá-los até
os portões do Palácio Imperial e exigir ver Dama Satomi. Esse
comportamento desonroso arruinaria a reputação de minha família e
nos tornaria motivo de chacota na corte, e meu pai poderia cometer
seppuku de vergonha. E se Dama Satomi decidir que está sendo
ameaçada, ela pode virar a corte contra vocês, mandar prendê-los ou
até mesmo executá-los. Isso não é algo que podemos tomar
levianamente. Um passo em falso na corte será desastroso para todos
nós. Mas... — ele fez uma pausa, a testa franzida em pensamento,
antes de assentir. — Sim, claro. Isso pode funcionar. Acho que tenho
um jeito.
— O que você tem em mente, Daisuke-san? — Yumeko
perguntou.
— Amanhã à noite. — Continuou o nobre. — O imperador fará
sua festa anual de Visualização da Lua nos jardins do palácio. É um
evento de muito prestígio e uma grande honra ser convidado, por isso
todos os nobres e famílias importantes estarão presentes.
— Incluindo Dama Satomi. — A miko adivinhou.
— Certamente. Minha família já foi convidada, é claro. O truque
será fazer com que o resto de vocês atravesse os portões. Uma
proposta difícil, mas acho que consigo.
— E você faria isso por nós? — A donzela do santuário olhou
para o nobre, os olhos estreitados em suspeita. — Me perdoe, Taiyo-
san. — Ela disse, enquanto ele erguia uma sobrancelha para ela. —
Mas... você é um nobre. Não só isso, você faz parte da família
imperial. Por que você ajudaria uma donzela do santuário, um ronin e
um membro do Clã das Sombras a entrar no grupo do imperador?
— Dama Reika. — O nobre lançou-lhe um olhar solene. —
Encontrei Suki-san apenas uma vez. — disse ele. — Normalmente,
não noto as idas e vindas dos servos no palácio, mas este encontro,
por mais breve que tenha sido, se destacou. Descobri que ela era filha
de um artesão e tinha ouvido uma música bonita. Ela era... genuína,
algo bastante raro dentro do Palácio Imperial. — Sua testa franzida,
um olhar de desgosto cansado cruzando brevemente seu rosto. — A
dança da corte nunca muda. Todos os anos, é exatamente a mesma
coisa, palavras de seda que escondem adagas de veneno sob o verniz
de decoro e elogios. Um sorriso pode ser tão perigoso quanto uma
espada, e a escolha errada de palavras pode significar a diferença
entre um grande favor e uma vergonha eterna. Quando conheci a
garota, foi revigorante falar com alguém que não se importava em
ganhar favores ou manter as aparências. Pelo bem de Suki e de seu
pai, sinto que é minha responsabilidade descobrir se os rumores sobre
Dama Satomi são fofocas de camponeses ociosos, ou se têm alguma
verdade sobre eles.
— Uau. — O ronin interrompeu. — Um nobre que realmente
percebeu que um camponês era uma pessoa real. É melhor tomar
cuidado, Taiyo-san, a próxima coisa que você sabe é que você pode
começar a cortejar cachorros e conversar com macacos. — Yumeko
franziu a testa, parecendo confusa, e o ronin se apressou antes que ela
pudesse fazer uma pergunta. — Mas isso ainda não explica como você
vai contrabandear um ronin, uma sacerdotisa e... ela... — ele acenou
para Yumeko. — ... para o Palácio Imperial.
— Arrastar você para a festa do imperador? — O nobre parecia
genuinamente horrorizado. — Que pensamento vergonhoso. Posso
achar os eventos da corte um pouco repetitivos, Okame-san, mas não
estou tão entediado a ponto de considerar traição. — Ele fungou,
deixando-nos saber que estava ofendido, antes de continuar. — No
entanto, uma onmyoji distinta e seu yojimbo são uma história
diferente. Aqueles que praticam onmyodo, a antiga arte do yin e do
yang, são altamente respeitados. O próprio imperador frequentemente
chama onmyoji para conselhos em assuntos políticos, para contar sua
fortuna ou adivinhar o futuro do país. Tenho certeza de que ele daria
as boas-vindas a Yumeko-san e seus companheiros em sua presença.
Eu vi a donzela do santuário olhar para Yumeko e estreitar os
olhos; talvez ela pudesse dizer que a garota não era um onmyoji, ou
qualquer pessoa com habilidades mágicas. Mas ela não corrigiu a
suposição do nobre, nem Yumeko, embora o ronin parecesse
vagamente inquieto com a ideia de encontrar o imperador.
— Então, está decidido. — disse a donzela do santuário. —
Amanhã à noite, iremos à festa de Visualização da Lua do imperador,
encontraremos Dama Satomi e descobriremos o que aconteceu com
Mestre Jiro. Estamos todos de acordo que isso deve ser feito?
— Sim. — Yumeko disse imediatamente. — E assim que
encontrarmos Mestre Jiro, podemos finalmente ir para o templo Pena
de Aço.
— Parece divertido. — Acrescentou o ronin, esfregando as
mãos. — Eu nunca fui convidado para o palácio antes. Mal posso
esperar para ver de perto.
— Concordo. — disse o nobre. — Embora, se eu puder... — Ele
olhou para Yumeko, então o ronin. — O partido do imperador atrai
nobres de Iwagoto. Todos procuram impressionar, ver e serem
vistos. E, na maioria das vezes, você não vai querer se destacar na
multidão. Talvez uma mudança de traje seja... prudente.
O ronin bufou. — Não apareçam parecendo camponeses
imundos, então?
— Se for possível.
— Senhorita Reika?
Eu me virei, ignorando a súbita onda de sede de
sangue. Hakaimono estava com raiva porque a cena com a miko não
tinha terminado em violência e agora estava atacando tudo ao seu
redor. Duas donzelas do santuário, provavelmente as duas que eu
ouvira nas salas ao lado, apareceram na varanda, espiando com
cautela para dentro.
— Senhorita Reika. — Uma disse novamente. — Desculpe
incomodá-la, mas há samurais na entrada que não vão sair. Eles
dizem que estão procurando por um de seus parentes.
— Obrigada, Minako-san. — disse a donzela do santuário,
quando um caroço frio se formou em meu estômago. — Por favor,
informe a eles que estarei lá em breve. — Enquanto as duas miko se
curvavam e saíam apressadas, a sacerdotisa deu ao resto de nós um
olhar exasperado.
— Parece que a sua presença continua a perturbar a
tranquilidade do meu santuário. — Observou ela. — Agora eu tenho
samurai nos portões, perturbando os kami e assustando as
mikos. Qual de vocês é o responsável por isso, eu me pergunto?
— Ei, não olhe para mim. — disse o ronin, erguendo as mãos
enquanto a donzela do santuário o encarava. — Não tenho o hábito de
ficar perto de samurais, excluindo os presentes. Se alguém, são os
nobres Taiyo, querendo saber por que seu parente dourado anda por
aí com tanta gentalha.
— Não. — Eu disse suavemente, e me levantei, fazendo com que
todos olhassem para cima. — São os Kage. Eles estão aqui por mim.
Pisando os painéis da porta quebrados, saí da sala. Eu sabia, de
alguma forma, que os membros do Clã das Sombras tinham vindo
atrás de mim, e não queria que conhecessem os rostos daqueles com
quem viajei. Mas eu não tinha ido muito longe quando passos leves
ecoaram atrás de mim, e sua voz flutuou na brisa.
— Tatsumi, espere.
Eu me movi. Yumeko tinha me seguido até a varanda e agora
estava me observando partir, seu olhar em conflito. — E a sua
promessa? — ela perguntou baixinho. — Ainda precisamos encontrar
Mestre Jiro, e você disse que iríamos ao templo juntos.
— Eu não esqueci. — Uma estranha relutância me puxou; por
algum motivo, hesitei em ir. — Eu te encontro no palácio. — Eu disse
a ela. — Não me procure. Quando chegar a hora, vou encontrar você.
— Ela ainda parecia hesitante e eu ofereci um sorriso fraco. — Eu juro.

Os Kage estavam de fato na entrada do santuário; quatro


samurais em hakama e haori escuros, usando as cores preto e roxo do
Clã das Sombras. Não era surpreendente; agentes dos Kage estavam
em toda parte e provavelmente notaram minha presença no momento
em que pisei na capital. — Kage Tatsumi. — Um disse com uma
pequena reverência quando me aproximei. — Mestre Masao deseja
falar com você. Por favor, venha conosco.
Eu segui meus membros do clã pelas ruas escurecidas de Kin
Heigen Toshi, enquanto a luz do sol desaparecia e as lanternas
ganhavam vida. Caminhamos em silêncio, separando a multidão
enquanto deslizávamos pela cidade. Um grupo de samurai
caminhando pelas ruas era o suficiente para fazer com que a maioria
dos civis normais cruzasse educadamente para o outro lado, mas um
grupo de samurai do Clã das Sombras justificava ainda mais
cautela. Como a família Hino era famosa por seus temperamentos
curtos e os Taiyo eram conhecidos por serem tão orgulhosos quanto
bonitos, os Kage conquistaram a reputação de serem sinistros e
indignos de confiança. Uma posição que pouco fizemos para
contestar. O Clã das Sombras tinha muitos segredos; melhor que o
império esperasse tal comportamento de nós. Isso os impedia de se
intrometer muito profundamente em nossos negócios e descobrir que
tinham todo o direito de ser cautelosos.
O distrito Sombra, onde a família Kage mantinha uma
propriedade dentro da Cidade Imperial, ficava nos arredores a oeste
do palácio. Como um santuário longe de casa para o menor dos
Grandes Clãs, ele estava escondido em um canto ao longo da parede
externa, longe da agitação do centro da cidade, fora da vista e da
mente. O que combinava perfeitamente com os Kage. Como o nome
sugeria, as ruas do distrito Sombra eram estreitas e escuras, com
poucas lanternas para afastar a escuridão. Enquanto eu caminhava
por estradas e becos familiares, eu podia sentir olhos em mim,
invisíveis, mas Hakaimono nem se mexeu. Shinobi vagavam pelos
telhados acima, silenciosos e letais, vigiando tudo o que acontecia
dentro do território do Clã das Sombras. Ironicamente, sua presença
tornava o distrito Kage um dos mais seguros em Kin Heigen
Toshi; nenhum sequestrador, ladrão ou assassino se arriscaria a operar
em um território cujos guerreiros conheciam a escuridão melhor do
que eles.
As propriedades Kage ficavam no final do distrito Sombra, sobre
um canal de água negra e lenta que, segundo rumores, era
assombrada por um irritável kappa, um tipo de yokai de rio comedor
de homens. Com a quantidade de shinobi na área e o fato de
Hakaimono nunca ter sentido a presença de yokai perto do canal,
duvidei que esse boato fosse verdade e pensei que poderia ter sido
iniciado pelos próprios Kage para manter os civis curiosos longe.
A propriedade Kage em si era cercada por altos muros de pedra
e guardada por samurai vestidos de preto, embora eu soubesse que
ainda mais shinobi se escondiam em cantos e recantos escondidos, nos
observando enquanto caminhávamos pelos portões. Assim que
passamos pelas portas altas com faixas de ferro, todos, exceto um
samurai, curvaram-se para mim e partiram, deixando-me aos
cuidados de um único bushi. Eu o segui escada acima para a
propriedade Kage, menor do que Hakumei-jo, o castelo natal do Clã
das Sombras, mas não menos elegante.
E não menos confusa. Ambas as estruturas foram projetadas
para serem desconcertantes, e aqueles sem conhecimento íntimo dos
interiores da propriedade logo se encontrariam irremediavelmente
perdidos nos corredores labirínticos do palácio do Clã das
Sombras. Adicionado a isso, havia muitos cômodos escondidos,
alçapões, túneis secretos e espaços entre paredes e pisos, onde shinobi
podiam emboscar intrusos e desaparecer sem deixar rastros. Dentro
de Hakumei-jo, era dito que haviam cômodos, túneis e passagens
escondidas que nem mesmo os shinobi sabiam, e que a única pessoa
que possuía todos os segredos dos palácios do Clã das Sombras era a
arquiteta que os projetou. Mas ela não deixou nenhum registro de seu
trabalho para trás, nenhuma planta ou diário, e no final, levou seu
conhecimento perfeito para o túmulo.
Felizmente, eu já tinha estado na propriedade do Clã das
Sombras algumas vezes antes e estava familiarizado com o layout. E,
ao contrário do Castelo de Hakumei, o interior deste palácio não
mudava de aparência várias vezes por ano, então eu era capaz de me
controlar enquanto seguia meu guia pelos longos e tortuosos
corredores da propriedade Kage.
No entanto, quando viramos uma esquina, um trio de homens
saiu das sombras para bloquear nosso caminho. Eles usavam túnicas
escuras, e seus rostos eram pintados de branco com manchas pretas
em suas bochechas e testa. Os majutsushi do Clã das Sombras.
— Você está dispensado. — disse a figura principal ao
samurai. — Volte para o seu posto. Vamos pegar o caçador de
demônios daqui.
O guerreiro se curvou profundamente, deu meia-volta e se
afastou sem olhar para trás. O feiticeiro esperou até que os passos
tivessem desaparecido na escuridão antes de virar os olhos negros
para mim.
— Kage Tatsumi. — Ele murmurou enquanto os outros
avançavam, me cercando. Eu mantive meu rosto em branco, minhas
mãos ao meu lado, embora minha cabeça estivesse cheia de imagens
de cortá-los ao meio, encharcando os corredores de sangue. Os lábios
pintados de preto da figura vestida se curvaram em um leve sorriso,
como se ele estivesse lendo meus pensamentos. — Eu posso sentir seu
ódio daqui, matador de demônios. — Ele disse em um sussurro
rouco. — Você sabe o que está por vir e deseja desesperadamente
matar todos nós, não é?
— Os desejos de Hakaimono não são meus, Mestre Iemon. — Eu
respondi cuidadosamente. — Estou totalmente no controle, tanto de
mim mesmo quanto de minha arma.
— Você está? — Os lábios do majutsushi se curvaram ainda
mais. — Não de acordo com Mestre Jomei. Você foi visto na
companhia de uma garota, um ronin e agora um samurai. Um nobre
Taiyo, de todas as pessoas. Você achou que não notaríamos seu
comportamento anormal? Você se esqueceu das regras? — Seu olhar
totalmente negro se estreitou. — O que nós falamos sobre lidar com
aqueles que não são do Clã das Sombras? Me responda.
— Devo ter pouco ou nenhum relacionamento com aqueles fora
dos Kage. — Eu respondi obedientemente. — Devo evitar contato com
pessoas sempre que possível. Se não for possível, devo agir de acordo
com as regras da sociedade, até que possa me retirar da presença deles
o mais rápido possível.
— E por que isso, matador de demônios?
— Porque minha existência os coloca em perigo. — Citei. —
Porque os humanos inspiram emoções, que Hakaimono usará para
enfraquecer minhas defesas.
— E se isso acontecer?
— Vou perder o controle e os Kage serão forçados a me
derrubar.
Mestre Iemon assentiu. — Você sabe disso. — disse ele
asperamente. — Você sabe que deve sempre trabalhar sozinho. Os
humanos irão apenas tentá-lo, distraí-lo e, pior, eles vão trazer à tona
as emoções que passamos a vida inteira ensinando você a reprimir. O
matador de demônios Kage nunca deve ceder à raiva, medo,
frustração ou tristeza. Sentir qualquer coisa apenas traz Hakaimono
mais perto da superfície, e se você perder o controle da espada, isso
trará grande vergonha e desonra para os Kage, pois deveremos limpar
a bagunça que você deixou para trás.
— Eu entendo, Mestre Iemon. Mas...
— Mas? — O majutsushi sibilou: — Não há mas, nenhuma
desculpa. Você não é nada, matador de demônios. Você existe apenas
para servir aos Kage. Seus sentimentos pessoais não significam nada,
porque você não deveria tê-los. — Ele se endireitou e deu um passo
para trás, me avaliando. — Parece que a resolução do matador de
demônios Kage está escorregando. Talvez seja necessária uma
reavaliação do estado mental do sujeito.
A raiva me encheu e lutei contra a vontade de desembainhar
Kamigoroshi e cortar meu caminho livre, sabendo que Iemon estava
observando minha reação. A reavaliação significava dias de estresse
mental e físico para determinar se eu poderia permanecer no
controle. Significava ser algemado a um par de pilares de pedra e
espancado com varas de bambu, para ver se eu me perderia para o
demônio. Significava mergulhar minha mão em uma cama de brasas
para provar que eu seguiria ordens a qualquer custo, ou ajoelhar-me
imóvel diante de um alvo de madeira enquanto outros shinobi
lançavam shuriken e kunai perto do meu rosto.
Mas, com Iemon e o resto do majutsushi assistindo, julgando
minha reação, havia apenas uma resposta aceitável. Curvando-me
baixo na cintura, eu lancei meu olhar para o chão, sentindo os olhos
de Iemon na minha nuca. — Minha vida e meu corpo pertencem ao
Clã das Sombras. — Murmurei, enquanto Hakaimono recuava em um
desgosto raivoso. — Se isso é o que os Kage exigem de mim, eu me
submeterei.
— Não, Tatsumi-kun. — Veio uma nova voz atrás de mim. —
Não dessa vez.
— Masao-san! — Iemon exclamou, enquanto o cortesão passeava
pelo corredor. Vestido com um quimono esvoaçante de seda roxa, um
ramo de bambu dourado cobrindo um lado, ele se destacava entre as
vestes negras do majutsushi. A dupla que estava flanqueando Iemon
recuou, mas o majutsushi líder permaneceu firme enquanto a
presença de Kage Masao enchia o corredor como um cisne esticando
suas asas.
— Boa noite, Mestre Iemon. — Cumprimentou Masao. — Por
favor, perdoe a interrupção, mas temo que devo intervir. O caçador de
demônios virá comigo.
Os lábios negros de Iemon se contraíram. — O matador de
demônios está sob nossa vigilância. — Argumentou o majutsushi,
enquanto Masao o observava preguiçosamente por trás de seu leque
de seda branca. — Somos responsáveis por determinar se ele é um
perigo para si mesmo e para os cidadãos de Iwagoto.
— Tatsumi-kun está em uma missão muito importante para a
própria Dama Hanshou. — Masao fechou o leque e sorriu para o
majutsushi carrancudo. — Ele não tem tempo para ser arrastado e
atormentado por seu grupo de ghouls. — Iemon enrijeceu, mas o
sorriso do cortesão não vacilou. — Não se preocupe, Iemon-san. Se ele
perder o controle e comer alguém, assumirei total responsabilidade.
— Muito bem. — O majutsushi deu um passo para trás, um
olhar azedo em seu rosto. A vitória foi para o cortesão e eu respirei
aliviado. — Então o deixamos em suas mãos capazes, Masao-
san. Tenho certeza de que você saberá o que fazer se Hakaimono
aparecer. — Ele sorriu, sua expressão dizendo exatamente o oposto,
como se ele esperasse que eu perdesse o controle e rasgasse o cortesão
em pedaços, mas Masao apenas balançou a cabeça serenamente.
— Oh, você me lisonjeia, Mestre Iemon. — O cortesão agitou seu
leque novamente, um leve rubor tingindo suas bochechas. — Não sou
digno de tal elogio. Além disso, com seu excelente treinamento e
orientação, tenho certeza de que não correrei perigo. Tatsumi-kun teve
a educação mais completa, tenho certeza. E se o menino perder o
controle, Dama Hanshou certamente não culparia você pela morte de
seu conselheiro mais confiável. Ela é, naturalmente, a mais gentil e
benevolente dos governantes, e suas punições para aqueles que a
desapontam são reservadas apenas para os mais vis fracassos.
Por trás de sua maquiagem, Iemon ficou ligeiramente pálido. —
Sim. Bem. — Ele recuou, repentinamente ansioso para ir embora. —
Vamos nos despedir, então. Boa noite, Masao-san.
— E para você, Iemon-san.
Enquanto o majutsushi se virava e se afastava pelo corredor, o
sorriso agradável de Masao tornou-se levemente selvagem e ele
fechou o leque. — Mantenha sua magia e manipule os kami, Iemon-
san. — Ele disse em voz baixa. — Não tente jogar o jogo da corte com
um mestre.
Colocando o leque em seu obi, ele olhou para mim, e a máscara
cruel desapareceu, como se nunca tivesse existido. — Tatsumi-kun. —
Ele disse brilhantemente. — Sinto muito por mantê-lo
esperando. Você vai caminhar comigo um pouco?
Começamos a descer o corredor, indo na direção oposta que
Iemon e o resto do majutsushi tinha ido. Fiquei feliz por me livrar de
Iemon e dos três majutsushi, mas, estranhamente, estar na presença de
Kage Masao era tão enervante quanto se houvesse víboras vivas
escondidas sob suas vestes, embora eu não soubesse por quê.
— Eu entendo que o templo Ventos Silenciosos estava destruído
quando você chegou lá. — Masao comentou depois de um minuto ou
dois de caminhada.
— Sim, Mestre Masao. — Respondi. — Amanjaku mataram
todos, e o pergaminho já havia sumido. Houve relatos de um oni, mas
eu não vi.
— Demônios. — Masao meditou, soando sombrio. — Então,
Jomei estava certo. Um mortal os está convocando de Jigoku, o que
significa que provavelmente eles estão atrás do pergaminho
também. Dama Hanshou não ficará satisfeita. — Ele suspirou e me
deu uma olhada de lado. — Essa garota que você falou, que está
causando um ataque cardíaco em Iemon. Quem é ela?
— A única sobrevivente do templo. — Eu disse a ele. — Ela
afirma que seu mestre disse a ela para onde ele enviou o pergaminho,
mas não como chegar lá. É por isso que viemos para a capital, há
alguém aqui que sabe onde fica esse templo escondido. Prometi
acompanhá-la até lá assim que ela tiver as informações.
— Eu vejo. — Masao não deu nenhuma indicação do que
pensava disso. — E você confia nessa garota?
— Eu... — eu pausei. Não confie em ninguém, essa era a regra
número um de Mestre Ichiro. Não acredite em nada além do que seus
sentidos lhe dizem, ele sempre avisaria. Os humanos manipulam. Yokai
enganam. Tudo tem segundas intenções, e no segundo que você baixar a
guarda, eles vão cortar sua garganta por trás.
Eu atendia seu aviso, é claro. Tudo, todos que conheci, estavam
procurando me matar, prejudicar ou me manipular de alguma
forma. Essa suposição salvou minha vida em mais de uma ocasião,
quando a criança soluçante no rio se lançou sobre mim com as presas
à mostra, e a mulher assustada no beco tentou me estrangular com
seus cabelos.
Mas Yumeko... Era estranho e possivelmente perigoso, mas eu
me sentia... quase confortável perto dela. Ou, pelo menos, não
acreditei que ela tentaria me esfaquear no momento em que baixasse a
guarda. Mestre Ichiro arrancaria a pele das minhas costas se
descobrisse que eu estava tendo esses pensamentos, mas Yumeko era
diferente, genuinamente curiosa e despretensiosa. Ela salvou minha
vida, não exigiu nada de mim e foi a primeira pessoa a me tocar sem
causar dor.
— Espero que ela me leve para onde está o pergaminho. — disse
ao cortesão. — Eu acredito que ela fará tudo ao seu alcance para
chegar lá.
— Bom. — Masao acenou com a cabeça. — Continue a ajudá-la,
então. Proteja a garota dos demônios e magos de sangue que podem
tentar impedi-la. Faça o que for preciso para garantir que sua missão
seja um sucesso. E no momento em que ela o levar ao pergaminho e
você o tiver em sua posse, mate-a.
Uma lança fria passou pelo meu estômago, mas eu balancei a
cabeça uma vez, mantendo minha voz impassível. — Entendido.
— Excelente. — Masao sorriu alegremente. — Eu não entendo
porque Iemon estava tão preocupado. Obviamente você fará o que for
necessário para terminar sua missão para Dama Hanshou. Então,
Tatsumi-kun, qual é o próximo passo? Onde está essa pessoa que sabe
a localização do pergaminho?
— Não sabemos. — Eu disse, ganhando uma carranca perplexa
do cortesão. — Ele deveria estar no santuário Hayate, mas três dias
atrás ele foi convocado ao Palácio Imperial e desapareceu.
— Convocado para o palácio? Por quem?
— Dama Satomi.
— Oh? A concubina do imperador? — Masao apertou os lábios,
parecendo pensativo. — Há rumores de sua crueldade, mas não mais
do que a maior parte da corte interna. Então, você também faz parte
deste joguinho, Dama Satomi? Muito... interessante. — Uma expressão
maliciosa cruzou seu rosto, antes que ele se esquivasse e olhasse para
mim novamente. — Será difícil chegar a uma mulher da posição de
Satomi— disse ele. — Suponho que você estará passando por cima do
muro, mas e então? Como você planeja descobrir o que ela sabe?
— Há um evento no palácio amanhã à noite... — comecei, e
Masao estalou os dedos.
— Claro. A festa de Visualização da Lua do imperador, como eu
poderia esquecer? — Por um momento, ele me olhou com um sorriso
divertido nos lábios. — Uma pena que você não possa comparecer da
maneira normal, Tatsumi-kun. Eu posso ver as damas da corte
olhando para você como uma matilha de lobos vorazes.
— Não tenho certeza se entendi, Mestre Masao.
— Tenho certeza que não. — De repente, Masao se virou e
pressionou a ponta de seu leque sob meu queixo, me forçando a olhar
para ele. Eu fiquei rígido quando ele olhou para mim, estudando meu
rosto. — Ichiro e Iemon provavelmente nunca te contaram. — Ele
murmurou. — Mas você sabia que é extremamente bonito, Tatsumi-
kun? Uma pena que eles escolheram você para ser o portador daquela
espada amaldiçoada. Potencial tão desperdiçado. Claro, na corte, as
roupas certas fariam a diferença, mas ainda assim. — Seus olhos
brilharam quando ele abaixou o leque e deu um passo para trás,
sorrindo de uma forma que causou uma vibração de apreensão no
meu estômago. — Bem, faça o seu melhor, caçador de demônios. E
boa sorte com Dama Satomi. Temo que você possa achar a corte do
imperador mais desafiadora do que você pensa.
Capítulo 28
Festa de visualização da Lua
Eu não reconhecia a garota no reflexo.
Eu conhecia seu rosto. Essa era a única coisa familiar. Todo o
resto, cabelo, maquiagem, roupas, parecia estranho.
Eu estava no quarto da donzela do santuário, portas e janelas
firmemente fechadas com ordens estritas de que não seríamos
perturbadas, e olhei para a kitsune no pequeno espelho oval acima de
sua cômoda. O manto vermelho e branco em camadas, adornado em
ouro e estampado com belos desenhos, era facilmente a coisa mais
elegante que eu já usei. Também era pesado, quase cobria meus dedos
dos pés, especialmente as mangas largas e ondulantes. Meu cabelo foi
penteado, aparado e pendurado em uma trança pregueada nas costas,
amarrada com fitas de seda vermelhas e douradas. Um pregador alto
e pontudo ficava no topo da minha cabeça, atrás das orelhas pontudas
de raposa; eu o prendi de volta com desgosto, e ele caiu no chão.
Reika suspirou. — Você não pode fazer isso quando estiver em
palácio. — Ela repreendeu, pegando-o do tatame e colocando-o na
minha cabeça novamente. — Se você vai enganar todo mundo
fazendo-os pensar que você é uma onmyoji respeitada, você não pode
se contorcer a cada pequena coisa.
— Essas vestes são tão pesadas. — Eu disse, franzindo o
nariz. Eu podia sentir meu rabo sob o tecido, pressionado contra a
parte de trás das minhas pernas, e me mexi desconfortavelmente. Pelo
menos o tecido pesado ocultava muito bem o pergaminho, ainda
escondido no furoshiki. — Vou tropeçar nos meus próprios pés a cada
poucos passos. Não posso simplesmente fazer minhas roupas normais
ficarem assim?
— A magia da raposa nada mais é do que ilusão e trapaça. — A
miko respondeu, o desdém em sua voz me lembrando de Denga-
san. — Se for descoberto que você é meio yokai dentro do Palácio
Imperial, não apenas será executada, mas todos os associados a você
serão punidos também. O ronin, o nobre e o matador de demônios
Kage, todos poderiam ser mortos, porque você não queria se sentir
desconfortável por uma noite. Você realmente quer arriscar isso?
Eu funguei. — Posso pelo menos pegar alguns tamancos geta
para não tropeçar e cair de cara na frente de toda a corte imperial?
Ela fez uma careta. — Eu posso levantar a bainha alguns
centímetros, só me dê um minuto.
Ela se ajoelhou ao meu lado e começou a puxar o tecido,
murmurando para eu ficar parada. Ao me olhar no espelho
novamente, meus pensamentos vagaram. Depois que Tatsumi partiu
na noite passada, desaparecendo na cidade com seus membros do clã,
Reika gentilmente providenciou quartos para mim e Okame. Daisuke
também havia partido, voltando para a propriedade de sua família no
distrito do Sol, embora ele tivesse prometido voltar na noite seguinte
para nos escoltar até o palácio. Esta tarde, Reika mandou algumas
miko para encontrar um traje adequado para uma onmyoji “da minha
categoria” e sugeriu firmemente que Okame deveria ir ao mercado
para comprar um traje também; um que não gritasse "cachorro ronin
imundo". O ronin zombou no início, mas a donzela do santuário
insistiu que não iria prejudicar nossa missão por causa de seu orgulho
estúpido e praticamente o expulsou do santuário, ameaçando enviar o
guardião do santuário atrás dele se ele não partisse. Depois que o
ronin finalmente atendeu às suas ordens, ela voltou sua atenção para
mim.
— Quais são os nomes dos últimos cinco imperadores? — Reika
exigiu, ainda ajoelhada na bainha de minhas vestes. Eu sufoquei um
gemido. Durante toda a manhã, ela me deu um sermão sobre a corte:
seus costumes, o que era socialmente aceitável e quais
comportamentos gritariam “camponesa rude”. A quantidade de
detalhes para lembrar ao simplesmente fazer uma reverência fez
minha cabeça girar, assim como a lista de tópicos que eram
considerados inaceitáveis para esta época do ano. Quando
perguntado, era considerado rude simplesmente dizer sim ou
não; melhor responder com poemas e versos, usando o máximo
possível de semelhanças e frases floreadas.
— Um... — Eu me esquivei, sabendo que Reika estava esperando
uma resposta. Uma onmyoji da minha posição, ela explicou antes,
certamente conheceria a história da família real de Iwagoto. — Taiyo
no Genjiro, Taiyo no Eiichi, Taiyo no Fujikata, Taiyo no... hum...
Kintaro?
— Agora você está apenas adivinhando. — disse a donzela do
santuário. — E você não pode dizer 'hum' ou 'ano' na corte
imperial. Camponeses e plebeus gaguejam. Os nobres nunca fazem
isso.
Com um suspiro, mudei meu peso, ganhando um tch de
descontentamento da donzela do santuário. De repente, senti falta de
Tatsumi; embora nunca falasse muito, sua presença silenciosa sempre
podia ser sentida. Eu me perguntei onde ele estava agora, o que estava
fazendo. Eu esperava vê-lo novamente, que ele nos encontrasse no
palácio como prometeu. Eu também esperava não colocar um pé na
minha boca na corte imperial e expor a todos nós.
— Pronto. — disse Reika, e se levantou, escovando os joelhos. —
Eu acho que você está tão pronta como nunca estará. — Recuando, ela
cruzou os braços e me olhou com um olhar crítico, antes de assentir
uma vez. — Bom o bastante. Você parece uma onmyoji, pelo menos na
superfície. Agora, está quase anoitecendo, e devo me preparar
também. Por que você não vai ver se o ronin já voltou? E, por favor,
não se sujem antes mesmo de chegarmos ao palácio.
Tentando não pisar na barra das minhas vestes, saí.
Okame estava encostado na grade quando eu pisei na varanda e
suas sobrancelhas se ergueram quando ele me viu. — Sugoi. — Ele
exclamou baixinho, empurrando-se para fora do poste. — Yumeko-
chan, você parece... diferente. Eu nem te reconheci.
Eu sorri para ele. — Você também, Okame. — O ronin tinha se
barbeado, seu cavanhaque aparado e limpo em vez de eriçado sobre o
queixo, e seu cabelo castanho-avermelhado preso atrás dele em um
rabo de cavalo apertado. Seu hakama branco e casaco haori marrom
não eram elegantes, mas eram novos, limpos e bem ajustados. Ele não
parecia exatamente um nobre, mas também não parecia ser um ronin
errante sem rumo. — Você parece quase respeitável.
— Morda a língua. — Ele replicou, e desviou o olhar, um tom de
vermelho subindo pelo pescoço. — Não acredito que tenho que
desfilar pelo palácio do imperador fingindo ser um samurai com um
bando de aristocratas arrogantes.
Eu inclinei minha cabeça. — Por que você odeia tanto os
samurai, Okame-san? — Eu perguntei. — Tatsumi disse que os ronin
eram samurai em um ponto, antes de perderem seu mestre. O que
aconteceu com o seu?
Ele me deu um sorriso torto. — Essa é uma longa história para
outro dia, Yumeko-chan. Digamos que houve um tempo em que eu
acreditava plenamente na honra e no dever e no código do
Bushido. Mas isso foi anos atrás, quando eu era jovem, estúpido e
ansioso para me provar.
— O que aconteceu?
— Eu fui esbofeteado com a mão cruel da realidade. — disse o
ronin, sorrindo. — E percebi que o venerado código do Bushido é um
disparate. Não há honra no mundo, especialmente entre os
samurai. Só precisei me tornar um ronin para perceber isso.
Pisquei com a amargura subjacente em sua voz, me perguntando
o que o transformou no ronin cansado que era agora. — Você vai ter
que me contar a história um dia.
— Eu vou. Mas agora, temos preocupações maiores. Como como
passar pela comitiva do imperador sem ser descoberto como
charlatão. Apenas lembre-se. — Ele continuou, batendo suavemente
em minha manga, balançando sobre a varanda, com um dedo. — Eu
não sou mais um yojimbo do que você é uma onmyoji. E fingir ser
uma das duas coisas é uma sentença de morte, caso alguém descubra.
— Eu sei. — Eu disse. Reika havia explicado, em grandes
detalhes, esta manhã. Assim que Okame saiu, ela me arrastou para
uma sala, bateu a porta e começou a me dar um sermão sobre ser tão
imprudente com minhas mentiras. Eu estava mentindo para Daisuke
sobre ser uma onmyoji, estava mentindo para Okame sobre ser uma
camponesa e estava mentindo para o assassino de demônios Kage
sobre ser uma garota humana normal. Eu tive sorte até agora, ela me
disse, carrancuda como uma pequena gata furiosa. Especialmente ao
viajar com o infame matador de demônios Kage.
E esta noite, ela continuou, estaríamos dentro das paredes do
Palácio Imperial, rodeados por nobres, samurai, aristocratas e o
próprio imperador. Onde, se fosse descoberto que não éramos quem
dizíamos ser, isso significaria execução para todos nós. Esta não era
uma das brincadeiras de kitsune, Reika avisou. Isso era literalmente
vida ou morte. Então era melhor eu começar a levar isso a sério.
Eu mordi meu lábio. Ela estava certa. Eu estava arrastando
muitas pessoas para essa história maluca e inventada, e as mentiras
continuavam se acumulando. Mais cedo ou mais tarde, essa torre iria
desabar. — Tem certeza de que deseja vir conosco, Okame-san? — Eu
perguntei, olhando para o ronin. — Você não me deve nada,
sabe. Você está livre para sair se quiser.
— Você está de brincadeira? — O ronin me lançou seu sorriso de
lobo, os olhos brilhando. — Esqueça a obrigação, esta é a maior
diversão que eu já tive em anos. Quando eu era um samurai, nunca fui
importante o suficiente para ser convidado para as grandes festas do
imperador. Vai ser poeticamente irônico passear lá com um Taiyo, o
mais orgulhoso dos orgulhosos, e ver a expressão em seus rostos
contraídos e empinados.
— Mas é perigoso. O que aconteceria se fossemos descobertos?
— O perigo é o que o torna divertido, Yumeko-chan. — Disse
Okame. — Nenhum dos nobres vai perguntar se você é realmente
uma onmyoji, isso seria o cúmulo da descortesia. Contanto que você
não concorde em adivinhar o futuro ou exorcizar um demônio,
estaremos bem. — Ele deu de ombros e encostou-se na grade,
parecendo despreocupado. — Então eu não me preocuparia com
isso. Os macacos da corte estarão todos ocupados demais se exibindo,
bajulando o imperador e tentando se pavonear para prestar muita
atenção em nós.
— Haverá macacos? — Eu pisquei em choque. — Bem, isso vai
ser divertido, pelo menos. Mas os macacos são terrivelmente
bagunceiros, não ficarão preocupados com isso?
— Isso foi muito cruel, Okame-san. — Disse uma nova voz, e
Taiyo Daisuke apareceu na esquina do prédio. Ele usava um quimono
magnífico de seda azul escura, com sóis dourados em miniatura nas
mangas e na frente, e ele segurava um leque de seda colorida nas duas
mãos. Seu longo cabelo branco estava puxado para trás da cabeça e
brilhava contra a seda escura de suas vestes. — Você não deveria
encher a cabeça de Yumeko-san com tais mentiras. Pelo menos alguns
deles estarão ocupados demais destruindo a reputação de um rival
com fofocas, ou estabelecendo casamentos vantajosos, para serem
bajuladores.
Olhando para mim, ele sorriu e abaixou a cabeça em uma
reverência respeitosa. — Dama Yumeko. — Ele disse em uma voz
solene. — Eu sinto que devo me desculpar novamente por meu
comportamento grosseiro na noite em que nos conhecemos. É uma
sorte que as flores de sakura já tenham desbotado e morrido, pois com
certeza elas chorariam por ter que competir com sua beleza.
— Um... — Eu não tinha certeza de como responder a
isso; ninguém nunca tinha me feito tal elogio antes. Felizmente,
naquele momento, Reika abriu a porta e se juntou a nós na varanda,
salvando-me de gaguejar uma resposta de uma forma nada nobre. A
miko ainda usava o hakama vermelho e o haori branco das donzelas
do santuário, mas seu cabelo estava preso e decorado com fitas e sinos
minúsculos. Duas outras miko apareceram atrás dela, vestidas de
forma semelhante, e ambas ficaram boquiabertas com o aristocrata
deslumbrante, suas bocas ligeiramente abertas. Daisuke,
provavelmente acostumado a essas reações, as ignorou
educadamente.
— Parem com isso. — Reika golpeou uma das miko com a
manga, fazendo-a pular. — Vocês duas. Vocês parecem uma carpa
ofegante. Não me envergonhem esta noite. Taiyo-san. — Ela
continuou, virando-se e curvando-se para Daisuke, fazendo os sinos
dourados em seu cabelo tilintarem. — Perdoe-me por este
inconveniente e pelo seu valioso tempo. Não posso expressar minha
gratidão o suficiente.
— De forma alguma, Reika-san. — Daisuke respondeu. — Estou
feliz em ajudar. E uma mudança no cenário da corte fará bem a
todos. Devemos ir? O sol está se pondo, e é uma longa caminhada até
o palácio.
— Um momento, por favor. — disse a donzela do santuário, nos
parando. — Há mais um que virá.
Alcançando sua manga, ela retirou um ofuda, a tira de papel
branca usada para focar a magia sagrada. O kanji para lealdade estava
escrito na superfície, o mesmo ofuda que ela brandiu para mim
quando nos conhecemos. Fechando os olhos, a donzela do santuário
começou a cantar algo baixinho, e o ar ao seu redor começou a se
agitar com poder.
— Guardião do santuário Hayate. — Eu a ouvi sussurrar. — O
mais fiel dos protetores, venha até mim.
O vento ao redor dela se espalhou em todas as direções,
sacudindo os galhos acima. Esperamos, prendendo a respiração.
Uma criatura peluda trotou ao redor do prédio e parou na parte
inferior da escada. Era um cachorro, pequeno e esguio, com orelhas
triangulares, pelo laranja-avermelhado com barriga branca e uma
cauda espessa enrolada firmemente sobre os quartos traseiros. Uma
coleira de corda carmesim pendurada em seu pescoço, um sino
dourado pendurado no centro.
Inu! Lutei contra a vontade repentina de pular para trás, correr
pela varanda e entrar em um dos cômodos, fechando a porta entre
nós. Nunca gostei de cachorros e o sentimento parecia ser
mútuo. Uma vez, quando eu estava vagando pelo terreno fora do
templo, um par de cães da aldeia, magros e de aparência faminta, me
avistaram e me perseguiram. Nenhum dos meus truques funcionou
com eles; eles ignoraram as imagens de ursos rugindo e coelhos
fugindo, como se soubessem que não eram reais. Para escapar de
meus perseguidores, acabei subindo em uma árvore, onde fiquei até o
anoitecer, quando Denga veio me procurar e os expulsou.
— Kit-kitsune? — Okame exclamou, me fazendo pular e olhar
para ele. O ronin estava olhando para o cachorro com uma expressão
confusa no rosto. — O guardião deste santuário é um kitsune?
— Não é uma raposa. — Eu disse a ele, aliviada e um pouco
irritada. — É um cachorro. Honestamente, Okame, não se parece em
nada com uma raposa.
— Este é Chu. — Reika disse calmamente, fazendo o cachorro
olhar para ela e abanar o rabo. — Ele é o guardião do santuário
Hayate. Metade deles, de qualquer maneira. — Seus olhos nublados,
uma ruga enrugando sua testa lisa. — Ko, outro dos guardiões,
desapareceu na noite em que Mestre Jiro foi embora. Acho que ela foi
convocada pelo sacerdote chefe ou sentiu que ele estava em perigo e
foi procurá-lo, porque nenhum dos dois voltou.
— Ele é bastante pequeno para o seu tipo. — disse Daisuke, com
uma voz que tentava ser gentil. Okame bufou.
— Pequeno? Ele é um nanico. Como diabos essa bola de fiapos é
o guardião de qualquer coisa, a menos que ele proteja o santuário de
pardais e ratos?
Chu colocou as orelhas para trás e rosnou para o ronin,
mostrando uma série de dentes brancos e afiados.
Reika suspirou. — Esta é a forma que permite que ele me siga até
a cidade. — disse a donzela do santuário ao ronin. — Na verdade,
quando ele está usando este corpo, ele quase não é notado. Ele ainda
será capaz de passar pelos portões do Palácio Imperial com pouca ou
nenhuma atenção. Um de seus muitos talentos, as pessoas
simplesmente não percebem que ele está ali. — Um sorriso levemente
malvado curvou seus lábios enquanto ela olhava para o ronin. — Chu
não guarda rancor, mas se eu fosse você, pensaria duas vezes antes de
insultá-lo. Sua verdadeira forma é muito mais... impressionante.
Okame ergueu uma sobrancelha cética, mas não disse mais
nada. Chu se levantou graciosamente e saiu trotando, como se
estivesse na liderança, e nós o seguimos pelo pátio e descemos os
degraus do santuário Hayate. Ao passarmos pelo portão torii na
entrada, percebi que os dois pedestais de pedra estavam vazios.
— Oh, Yumeko-san, antes que eu esqueça... — Daisuke se virou
para mim, sorrindo, enquanto caminhávamos para as ruas do distrito
do Vento. — Falei com um dos meus tios sobre você. — Ele começou.
— Ele estava muito interessado em que uma onmyoji comparecesse à
festa hoje à noite.
— Oh? Aquilo foi legal. Seu tio parece um homem muito gentil.
— Sim, e ele ficará muito satisfeito em vê-la. Veja, alguns meses
atrás, houve um terrível escândalo envolvendo o último onmyoji do
imperador, rumores de traição e magia de sangue, boatos de
assassinato. Foi uma bagunça horrível. No final, o onmyoji e seus
assistentes foram executados, mas a posição de adivinho da corte
ainda não foi preenchida. Meu tio acha que o imperador ficará
encantado se uma onmyoji contar sua sorte. — O sorriso brilhante de
Daisuke cresceu ainda mais, mesmo quando eu percebi o que ele
queria dizer, e sufoquei a vontade de erguer minhas orelhas em
alarme. — Se tudo correr bem esta noite, Yumeko-san, você pode ter
uma audiência com o próprio imperador de Iwagoto.

Apesar do meu nervosismo, era impossível não ficar


impressionada com o esplendor do Palácio Imperial. Situada no topo
de seu pico, a estrutura dourada captava os últimos raios de luz
esmaecidos e brilhava como o próprio sol em miniatura. À medida
que nos aproximávamos, peguei vislumbres de ornamentos dourados
do telhado: peixes, dragões e fênix cobrindo os cantos extensos,
recortados contra o céu e olhando para nós, meros mortais, lá
embaixo.
Ao nos aproximarmos dos enormes portões, avistei um par de
samurai perto da entrada, vestindo uma armadura e segurando suas
lanças yari na vertical. Eu temia que eles dessem um passo à frente,
posicionando aquelas lanças para bloquear nosso caminho. Mas eles
não se mexeram, embora o mais velho tenha virado a cabeça quando
Daisuke se aproximou, um sorriso curvando sua boca abaixo do
bigode.
— Oh, Daisuke-sama. — Ele chamou com uma voz rouca, quase
afetuosa. — Quando é que voltaste? Como foi sua peregrinação a
Sagimura?
— Muito bem, Fujio-san. — respondeu Daisuke. — Estou feliz
por ter tido tempo para viajar. Foi... muito esclarecedor.
Atrás dele, Okame bufou. — Aposto que sim. — Ele murmurou,
e foi golpeado no braço por Reika. A atenção do guarda se voltou para
ela e as outras três donzelas do santuário.
— Ah. — disse ele, balançando a cabeça uma vez. — Artistas da
festa do imperador, eu presumo. Já faz um tempo que não temos uma
dança kagura no palácio. — Seu olhar caiu sobre mim, observando
minhas vestes, meu pregador pontudo e suas sobrancelhas
levantadas. — Essa é... uma onmyoji, Daisuke-sama? A fortuna parece
favorecê-lo, não é? Sua Alteza ficará emocionado.
Daisuke apenas sorriu quando passamos pelos guardas e
cruzamos os portões do Palácio Imperial, mas meu coração, que havia
se acalmado desde que deixamos o santuário, começou a bater
novamente. Através do portão havia um enorme pátio aberto com
mais samurais vagando. Além disso, por cima das árvores e além do
que parecia um labirinto de paredes, portões e parapeitos, o Palácio
Imperial assomava contra o céu como uma montanha dourada
cintilante.
Sem pensar, comecei a ir em direção ao palácio distante, mas
parei quando Daisuke me chamou de volta. Virando, eu o vi e os
outros se afastando do castelo, em direção a um dos portões na parede
oposta do pátio.
— Não vamos ao palácio propriamente dito, Yumeko-san. —
explicou ele, quando percebeu por onde eu estava caminhando. — A
festa está sendo realizada nos jardins do castelo, ali. — Ele gesticulou
para a parede oposta, onde um brilho fraco podia ser visto sobre uma
linha de árvores grandes e espessas. — Por aqui, se você
quiser. Estamos quase lá.
Senti uma pontada momentânea de que não veria o palácio
dourado de perto, mas ela desapareceu quando passei pelo portão e
entrei nos jardins imperiais.
Meu primeiro pensamento foi que havia entrado em uma
floresta extremamente bem cuidada. Após uma inspeção mais
aprofundada, percebi que até isso estava errado. Cada árvore, cada
arbusto, pedra, flor e seixo, parecia ter sido colocado com o máximo
cuidado e deliberação. Todos os arbustos foram aparados em formas
simétricas, todas as árvores em pé, retas e altas, seus galhos em
ângulos perfeitos e ordenados. Nem uma folha, pétala ou fragmento
de casca de árvore caía na grama ou soprava no gramado; enquanto
eu observava, um homem que eu só poderia supor ser um jardineiro
parou em um arbusto de crisântemo e arrancou uma flor ofensiva de
um dos galhos antes de enfiá-la em um saco e seguir em frente.
Era um lindo jardim, eu admitiria, deslumbrante e inspirador. E
tão sem vida quanto uma pintura de sakura em um pergaminho
pendurado na parede. Não havia crescimento natural, nada do caos
alegre de uma floresta real. O jardim do imperador parecia como eu
estava no momento, enfiada em um manto elegante, mas
desconfortável, destinado a impressionar a todos que o viam,
desejando poder tirá-lo e me mover naturalmente.
— Lindo, não é? — Daisuke murmurou, olhando em volta com
um sorriso sereno no rosto. — Tudo aqui é projetado com muita
precisão. O castelo emprega cem servos e cinquenta jardineiros
mestres para manter tudo limpo e perfeito.
— É bom. — Eu concordei. — Mas seria terrivelmente difícil
para qualquer coisa viver aqui. Os jardineiros teriam um colapso
nervoso se um único coelho entrasse nas flores.
O caminho através dos jardins era bem iluminado por cordas de
lanternas de chochin, e seguimos as luzes laranja oscilantes até
chegarmos a outro portão onde um samurai de aparência severa
olhou para Okame e para mim antes de virar para o nobre na frente.
— Taiyo-sama. — Ele disse com uma reverência. — Por favor,
me perdoe, mas a festa do imperador é apenas para convidados. Sei
que sua família já está dentro, mas não reconheço seus
companheiros. Devo pedir que me mostrem seus convites, ou não
posso permitir que eles passem.
— Eu estou permitindo. — disse Daisuke facilmente. — Esta é
Yumeko-san, uma respeitada onmyoji das terras da Terra, e seu
yojimbo, Hino Okame. Eles estão aqui como meus convidados.
O samurai grunhiu, olhando por cima do ombro de Daisuke
para mim, antes de mudar seu olhar para Reika e as duas donzelas do
santuário atrás de nós. — E quanto a elas?
Reika e os outros fizeram uma reverência formal. — Por favor,
com licença. — disse a miko. — Somos do santuário Hayate, estamos
aqui para apresentar a dança kagura desta noite para o imperador.
O guarda franziu a testa. — Eu não ouvi nada sobre uma
onmyoji presente. — Ele disse teimosamente, olhando para mim
novamente. — Ela é muito jovem. Nunca ouvi falar dela, com
certeza. Como sabemos que ela é experiente o suficiente para ver o
imperador? — Sua mandíbula se apertou e ele apontou o queixo para
mim. — A quem você serviu antes, garota? Quais senhores você
compareceu?
— Com licença. — disse uma voz, salvando-me de uma
resposta. Um homem se aproximou, magro e de aparência
desgrenhada, as roupas amarrotadas e os cabelos em pé. Ele não era
um samurai ou um nobre; suas roupas, embora não tão esfarrapadas e
puídas como alguns camponeses, eram bastante simples. Seu manto
estava empoeirado e ele cheirava a serragem e aparas de madeira.
Vendo o recém-chegado, o samurai imediatamente avançou para
bloquear seu caminho, esquecendo-se momentaneamente de nós. —
Halt. Como você chegou aqui? Declare seu negócio, agora.
O homem fungou e se recompôs. — Estou procurando alguém.
— disse ele com voz esganiçada, mas confiante. — Eu tenho
permissão para estar aqui. Preciso falar com o magistrado agora.
Daisuke roçou meu braço. — Venha. — ele disse suavemente,
enquanto o samurai afirmava novamente, em uma voz mais alta, que
a área estava fora dos limites. O nobre parecia perturbado, como se
quisesse falar com o recém-chegado, mas continuou a nos conduzir
para longe. — Não precisamos estar presentes para isso, nem quero
envergonhar um samurai que estava apenas fazendo seu
trabalho. Vamos deixá-lo com seus deveres e ir embora em silêncio.
Relutantemente, me afastei do homem, que agora estava
discutindo com o guarda em uma voz estridente e acenando com seus
braços como gravetos. O samurai nem mesmo olhou para nós
enquanto deslizávamos pelo portão e nos derretíamos nas sombras
além. Okame percebeu meu olhar e sorriu, mas não consegui retribuir.
Depois do guarda, seguimos uma parede de bambu, viramos
uma esquina e entramos em uma grande área aberta à beira de um
lago lindamente cênico. Um templo vermelho e dourado ficava em
uma ilha no centro, conectado a uma ponte que se arqueava
graciosamente sobre a água. A música Shamisen flutuava no ar,
tocada por uma mulher mais velha ajoelhada sobre um tapete, que
dedilhava as cordas com facilidade praticada. Acima, as cordas
individuais das lanternas formavam um teto de luzes flutuantes,
lançando um brilho forte e nebuloso sobre a multidão de pessoas
circulando. Por um momento, eu só pude olhar com admiração para o
mar de vestes coloridas, cada uma mais brilhante e mais extravagante
que a anterior. As mulheres usavam muitos quimonos em camadas,
tão intrincados e de aparência pesada que me perguntei como elas
podiam se mover. Alguns dos homens usavam hakama e casacos com
ombros rígidos e alargados, mas vários deles usavam túnicas um
pouco menos elaboradas que as femininas.
Senti uma cutucada quando Okame se aproximou e acenou com
a cabeça através do gramado para onde uma plataforma tinha sido
montada em frente a uma tela dobrável. Sentado em uma almofada
diante de uma mesa laqueada, cercado por mulheres atraentes e
samurais imponentes, um homem bonito em vestes amarelas e
brancas brilhantes bebia em uma taça de ouro.
Engoli. — Aquele é...? — Sussurrei desnecessariamente.
— Taiyo no Genjiro, o centésimo quadragésimo terceiro. — O
ronin murmurou em meu ouvido. — O Filho do Céu e o imperador de
Iwagoto.
— Daisuke-san!
Um homem veio em nossa direção, contornando indivíduos e
grupos de nobres enquanto o fazia. Ele tinha cabelos brancos e um
cavanhaque pontiagudo, e acenou para o nobre quando ele se
aproximou. — Tio Morimasa. — disse Daisuke, e se virou para mim
com uma leve reverência. — Por favor, com licença, Yumeko-san. Eu
volto já.
Eu balancei a cabeça, e o nobre se afastou, sorrindo para seu
parente. Mas ele não deu mais do que alguns passos antes de um par
de nobres chegar até ele, bloqueando seu caminho. O sorriso educado
de Daisuke nunca vacilou, e ele parecia totalmente interessado no que
eles estavam dizendo, mesmo quando ele os contornou suavemente,
apenas para descobrir seu caminho bloqueado por outro. Pela
aparência da multidão convergindo para ele, parecia que demoraria
um pouco.
Movendo-me para a beira do gramado, parei ao lado de uma
azaleia perfeitamente cuidada e olhei ao redor, imaginando qual
desses humanos elegantes e esvoaçantes poderia ser Dama
Satomi. Também me perguntei se, em algum lugar entre o mar de
vestes, estaria Tatsumi, escondido por um feitiço ou disfarce. Eu o
imaginei em um quimono preto elegante, estampado em roxo e
dourado, seus olhos violetas brilhando quando encontraram os meus
no meio da multidão.
— Você está corando, Yumeko-chan. — Okame comentou,
sorrindo enquanto se abaixava para olhar para o meu rosto. — O
que você está pensando?
— Na-nada! — Eu me virei, sentindo minhas bochechas em
chamas, ouvindo o riso do Ronin atrás de mim. — Eu só
estava... ano... pensando em mantos, e como o meu é muito quente, e
como seria bom tirá-lo. E... não saiu como eu queria, pare de rir,
Okame-san. — Não ousei me virar para encará-lo. — Baka. Seja
sério. Devíamos estar procurando Dama Satomi...
E então, uma das mulheres sentadas mais perto do imperador
ergueu a cabeça e olhou diretamente para mim.
Atrás de minhas vestes, esquecido e despercebido por todos,
Chu começou a rosnar. De repente, senti coceira, como se os insetos
estivessem rastejando em minhas mangas, correndo pela minha
pele. A mulher sustentou meu olhar, um leve sorriso enfeitando seus
lábios carnudos e pintados. Ela era muito bonita, destacando-se entre
seus colegas nobres, seu quimono carmesim e preto pendurado um
pouco mais solto em algumas áreas do que em outras. Nada gritante
ou óbvio, mas sugestivo.
Algo se contorceu no meu cabelo na base do meu
crânio. Franzindo a testa, estendi a mão e peguei algo longo e fino,
puxando-o da minha cabeça.
Uma centopeia vermelha e preta se contorceu entre meus dedos,
enrolando-se para me morder. Eu joguei fora com um puxão violento,
mal conseguindo não gritar. O inseto pousou na grama e foi
instantaneamente atacado por Chu, que o agarrou entre as
mandíbulas e o sacudiu como um rato. Okame, sua risada esquecida,
murmurou uma maldição.
Com o coração batendo forte, olhei de volta para a mulher, que
estava sorrindo para algo que o imperador disse e não estava mais
olhando para mim. Mas eu sabia que ela era a responsável pelo
visitante indesejado, e um calafrio percorreu minha espinha quando,
de repente, tudo se encaixou. Ela era a pessoa responsável por tudo. A
centopeia gigante, os corvos mortos-vivos, os demônios que
destruíram o templo; foi tudo por causa dela. A mão invisível por trás
de tudo. A maga de sangue na corte do imperador.
Eu tremi, sem saber se era de medo ou raiva, e senti Reika se
mover ao meu lado, também olhando para a mulher vestida de
vermelho. Chu ainda rosnava baixinho perto dos meus pés, embora
ninguém ao nosso redor parecesse notar o cachorro. — Bem. — Reika
disse suavemente. — Julgando por Chu e como seu rosto ficou branco,
tenho a sensação de que podemos ter encontrado nossa Senhora
Satomi.
Eu concordei. A mulher olhou na minha direção novamente por
apenas um momento, um triunfo presunçoso brilhando em seus olhos,
e eu cerrei meus punhos. Se esta era Dama Satomi, eu também tinha a
sensação de que ela não iria facilitar as coisas para nós.
— Yumeko-san.
Daisuke voltou, o homem mais alto ao seu lado, ambos sorrindo
para mim ao se aproximarem. Tirei meu olhar de Dama Satomi e me
virei para encarar os nobres. — Yumeko-san. — disse Daisuke
novamente. — Este é meu tio, Taiyo Morimasa.
— Olá. — Eu disse para o Taiyo mais velho. Então, lembrando-
me de onde eu estava, curvei-me e disse: — É uma honra conhecê-lo.
— A honra é minha, Yumeko-san. — Morimasa respondeu. Ele
se parecia muito com Daisuke, exceto que seu cabelo estava em um
coque de guerreiro no alto da cabeça e ele tinha um cavanhaque bem
aparado. — Você nos honra com a sua presença. Não temos um
onmyoji na corte há algum tempo. Perdoe minha imprudência, mas
seu nome é desconhecido para mim. Sob qual mestre você serviu? Eu
tinha ouvido rumores de que o grande Tsuki no Seimei estava
fazendo um concurso para escolher um novo aprendiz.
— Eu... não servi a um mestre. — Eu disse, tateando por uma
resposta. — Eu só... hum... tinha talento para isso, suponho. Eu
aprendi sozinha.
— Incrível. — disse o homem mais velho. — E em uma idade tão
jovem. Verdadeiramente notável. Bem, isso decide, você deve se
apresentar para Sua Alteza esta noite. Seria uma grande honra ter
uma onmyoji tão talentosa no palco diante de toda a corte. O que você
acha, Yumeko-san? Você vai nos mostrar o seu talento?
Eu me senti presa, como um coelho encolhido em um canto com
lobos se aproximando de todos os lados. Okame e Reika pareciam
igualmente desconfortáveis, embora nenhum dos dois apresentasse
desculpas. Este não era um pedido. Mesmo eu, com meu
conhecimento limitado da sociedade e da política de Iwagoto, sabia
que a chance de servir ao imperador era a maior honra que se poderia
receber, e que recusá-lo era o mais imperdoável dos insultos. Mesmo
que minha recusa não resultasse em prisão ou execução, nossa busca
terminaria aqui. Se quiséssemos encontrar Mestre Jiro, eu tinha que
continuar com a farsa.
Embora eu não tivesse ideia do que fazer.
— Certamente, Taiyo-san. — Eu disse a Morimasa, fazendo
Okame começar a me encarar. — Seria uma honra.
— Yumeko-chan! — o ronin explodiu, então pareceu se
conter. — Er... por favor, com licença. — disse a Morimasa com uma
rápida reverência. — Eu sou seu yojimbo, então é meu trabalho me
preocupar com ela. Ela pode ser bastante imprudente às
vezes. Yumeko-chan... — ele continuou em voz baixa, olhando para
mim com os olhos arregalados. — Tem certeza de que pode fazer isso?
— Com o tom de o que diabos você está fazendo? — Se você errar na
frente do imperador, isso afetará a todos nós.
— Seu yojimbo pode ter razão. — Reika disse em uma voz de
desaprovação resignada. — Embora para este pedido, eu não sei o que
mais você pode fazer a não ser aceitar.
— Claro que você deve aceitar. — Daisuke interrompeu,
parecendo confuso e ligeiramente ofendido. — Conhecer o imperador,
atuar para ele e para toda a corte, não há maior honra.
— Exatamente. — Eu disse ao ronin, e forcei um sorriso. — Você
ouviu Daisuke-san. Quando haverá outra chance de encontrar o
imperador? Não se preocupe, eu sei o que estou fazendo. — Eu espero.
Okame parecia duvidoso, mas me virei e encarei Morimasa
novamente. — Por favor, perdoe a interrupção, Taiyo-san. — Eu disse
ao nobre carrancudo. — Como eu disse antes, será uma honra atuar
para Sua Alteza esta noite.
— Maravilhoso! — Ele sorriu. — Sua Excelência ficará
encantado. Por favor, me siga.
Com um último sorriso encorajador para o ronin preocupado e a
donzela do santuário, dei um passo à frente e segui Morimasa pelo
pátio.
Nobres me encararam, observando com diversão, curiosidade e
desconfiança enquanto eu passava. Alguns zombaram ou sorriram
maliciosamente por trás de seus leques, seu desprezo bem
visível. Talvez eles tenham visto através do meu disfarce onmyoji, ou
talvez eu não estivesse vestida com capricho suficiente. Tentei ignorá-
los e pensar no que diria ao imperador, embora as batidas do meu
coração e o redemoinho frenético no estômago tornassem difícil me
concentrar.
— Espere aqui um momento. — disse Morimasa, parando na
sombra de um aglomerado de árvores a uma distância do estrado do
imperador. — Quando chegar a hora certa, eu a anuncio. Ao ouvir seu
nome, venha e apresente-se a Sua Alteza, mas fique a pelo menos seis
metros da borda da plataforma. Você entendeu?
— Sim.
Ele acenou com a cabeça e se virou, caminhando em direção à
plataforma e os homens e mulheres agrupados em torno dela. Não
pude ver Dama Satomi, pois ela estava do outro lado do imperador,
mas, felizmente, ela também não podia me ver.
Respirei fundo para acalmar meus nervos, assim que uma mão
apertou minha boca por trás e me puxou de volta para as árvores.
— Sou eu. — disse uma voz baixa e familiar, parando a onda de
kitsune-bi nas pontas dos meus dedos. — Estou deixando você ir,
então não alerte todos aqui gritando.
— Tatsumi! — Eu sussurrei, girando sobre ele quando ele me
soltou. — Você me assustou! Por que você está...?
Eu pisquei e parei. Pois o Tatsumi atrás de mim não era o
samurai Kage com quem eu havia viajado do templo Ventos
Silenciosos. Ele estava completamente vestido de preto, exceto por um
lenço vermelho esfarrapado que parecia flutuar atrás dele na
brisa. Em vez de sandálias, ele usava botas de bico fino que
terminavam logo abaixo do joelho, braceletes nos antebraços e um
casaco sem mangas e sem marca que era muito mais justo do que seu
haori normal. Uma máscara cobria sua boca e mandíbula, obstruindo
metade de seu rosto, embora os olhos acima do pano fossem os
mesmos, de um violeta frio e penetrante.
— O que você está fazendo, Yumeko? — Tatsumi perguntou, sua
voz suave, mas intensa. Seu olhar parecia queimar na escuridão.
— Hum... — Eu olhei ao redor para ter certeza de que ninguém
podia nos ver. O ar tremeluziu quando virei a cabeça e de repente
pude sentir o toque escuro e frio da magia da Sombra de Tatsumi, nos
cercando. — Me apresentando para o imperador de Iwagoto?
— Você não é uma onmyoji. — Os olhos de Tatsumi se
estreitaram. — Você não tem magia. Falar com os kamis não é o
mesmo que dizer fortunas e adivinhar o futuro, que é o que o
imperador espera. Se você for exposta como charlatã, será executada.
— Eu sei, mas o que mais eu posso fazer, Tatsumi? — Eu
sussurrei. — Eu não posso recusar o imperador.
— Eu posso tirar você daqui. — Tatsumi se aproximou. — Agora
mesmo. Ninguém vai nos ver, vamos usar o mesmo feitiço que
usamos na aldeia dos gaki. Quando for seguro, voltarei para procurar
Mestre Jiro. Não precisamos falar com a mulher Satomi. Posso entrar
em lugares que a maioria das pessoas não consegue.
— E quanto aos outros?
— Eu não me importo com os outros. — A voz de Tatsumi era
plana. — Minha missão é nos levar ao templo Pena de Aço. Nada mais
importa. Se você for capturada e executada, a missão termina aqui.
Sua mão se levantou, as costas dos nós dos dedos chegando
muito perto da minha bochecha. Eu olhei em seus olhos e vi o conflito
queimando dentro dele.
— Tatsumi...
— Você não pode morrer, Yumeko. — Sua mão não se moveu
mais perto, mas ele também não se afastou, e sua voz era muito
suave. — Nós dois fizemos uma promessa de encontrar o templo
juntos. Eu preciso que você me mostre o caminho. A missão ainda não
acabou.
— Vou ficar bem. — Cuidadosamente estendi a mão e peguei
sua mão. Ele se encolheu quando nossa pele se tocou e então, quase
hesitantemente, seus dedos se curvaram ao redor dos meus. Eu
encontrei seu olhar e sorri. — Eu sei o que fazer, Tatsumi. Confie em
mim.
Ele segurou meu olhar por mais um momento, a testa franzida e
os olhos sombreados, então acenou com a cabeça uma vez. Eu recuei
das árvores, sentindo os delicados fios de magia se desfazerem
enquanto me movia, e me virei em direção à plataforma do
imperador.
Taiyo Morimasa encontrou meu olhar, seus olhos se arregalando
de alívio, como se ele estivesse procurando por mim e não tivesse sido
capaz de me ver até agora. Gesticulando com impaciência, ele acenou
para que eu avançasse. Resistindo ao impulso de olhar para as
árvores, respirei fundo, levantei o queixo e caminhei em direção à
plataforma e ao imperador de Iwagoto.
Capítulo 29
A fortuna do Imperador
Eu assisti à caminhada da menina se afastando, seu passo
confiante, para o imperador que esperava em sua plataforma de ouro,
rodeado por nobres e samurai. Os olhos da corte a seguiram, todos os
olhares para a figura esguia e esvoaçante em vermelho e branco, sua
longa trança balançando atrás dela. Ela não parecia assustada ou
mesmo tensa, mas havia uma sensação estranha na boca do estômago
que me obriguei a fazer desaparecer. Para sair, cubrir-nos de
escuridão e leva-la para longe. Ou, se isso não fosse possível, tirar
Kamigoroshi e massacrar todos que eram uma ameaça, nobres,
samurais e imperadores, para salvar a garota que caminhava com
tanta ousadia em direção à pessoa que poderia ordenar sua morte.
Eu ainda podia sentir sua mão, seus dedos suaves enrolados em
volta da minha palma, e apertei meu punho contra minha
perna. Yumeko não poderia morrer esta noite. Deixá-la ir foi uma
tolice. Eu não sabia o que ela estava planejando, se ela tinha um plano,
mas eu disse que confiaria nela. Uma camponesa sem magia, que
cresceu em um templo protegido do resto do mundo, que era corajosa,
despretensiosa e inteligente, mas, em última análise, não uma
onmyoji, eu a estava deixando enfrentar o homem mais poderoso de
Iwagoto com nada além da garantia que ela ficaria bem. Eu vi o ronin,
a donzela do santuário e o nobre avançarem com o resto da multidão,
formando um semicírculo atrás da garota, e meu peito apertou. Pela
primeira vez, desejei poder estar lá, no meio da multidão, em vez de
ficar na borda da luz, escondido nas sombras.
Grande Kami, eu me peguei pensando, cuide dela. Tamafuku, Deus
da Sorte, se você puder ajudar uma pessoa esta noite, que seja ela.
Yumeko interrompeu sua abordagem a cerca de quinze metros
do estrado do imperador, caiu de joelhos e se curvou com as mãos e a
testa tocando o chão. Foi desajeitado; sua postura não era rígida o
suficiente e seus dedos não estavam na posição certa, mas pelo menos
ela tinha uma ideia geral de como se comportar diante do governante
do país. E pareceu satisfazer o imperador, pois ele sorriu e estendeu
uma manga dourada esvoaçante.
— Onmyoji Yumeko. — disse ele em tons altos e claros. — Bem-
vinda ao Palácio do Sol.
— Sua Alteza me honra. — Yumeko respondeu, sentando-se
lentamente. — Não sou digna de estar aqui, mas vou tentar o meu
melhor para agradar.
Senti desaprovação e desprezo emanando da multidão que
assistia, dos nobres e aristocratas em particular. O nascimento comum
de Yumeko de repente ficou dolorosamente claro na maneira como ela
falava, sem nuances ou as frases lisonjeiras e floridas da corte. Tive a
repentina imagem de cair no meio deles e cortá-los todos em tiras
ensanguentadas, e não tinha certeza se esses eram os pensamentos de
Hakaimono ou os meus.
— Meu conselheiro me disse que você aprendeu onmyodo sem
um mestre. — Continuou o imperador, e um murmúrio percorreu a
multidão. — Isso é correto? Você realmente dominou o conhecimento
antigo por conta própria?
— Sim sua Majestade. Está correto. — Ela não deu mais
nenhuma explicação, embora estivesse claro que a corte estava
esperando por isso.
— Notável. — O imperador exclamou, recostando-se. —
Verdadeiramente extraordinário. Claro que você deve nos mostrar
seus talentos, Yumeko-san. — Ele ergueu os dois braços, as mangas
douradas ondulando como velas. — Eu te dou permissão para dizer
minha sorte. — Ele anunciou grandiosamente. — O que os tempos
representam para o maior império do mundo? Olhe para o futuro e
diga a corte o que você vê.
Um silêncio caiu sobre o jardim. Yumeko hesitou, então se
levantou lentamente, dramaticamente, para ficar ereta diante do
imperador. — O futuro... — disse ela, sua voz ecoando na multidão.
— É um riacho em constante mudança. Cada escolha, cada decisão
que tomamos, nos envia por um caminho diferente. Vislumbrar a
fortuna de outro é ver centenas de possibilidades ao mesmo
tempo. Nunca é uma tarefa a ser tomada levianamente ou com pressa.
— Ela ergueu os braços, como se recorresse ao poder do kami, e um
vento repentino pegou seu cabelo e suas vestes, movendo-os. —
Deixe-me ver o que o futuro reserva para você, Sua Alteza.
A multidão estava imóvel agora, ouvindo cada palavra sua. O
próprio imperador se inclinou para frente, as mãos nos joelhos,
olhando para a figura vestida à sua frente. Por um momento, esqueci
que era Yumeko, a camponesa que resgatei do templo Ventos
Silenciosos. De pé no centro do quintal, braços estendidos e a luz
brilhando sobre seu cabelo e vestes carmesim brilhantes, ela realmente
parecia uma onmyoji reverenciada, brilhando com poder enquanto se
preparava para adivinhar o futuro do imperador de Iwagoto.
Yumeko juntou as mãos, colocando-as abaixo do queixo, dois
dedos levantados em um gesto familiar. Ela fechou os olhos e a corte
pareceu prender a respiração. Por um momento, a garota ficou em
silêncio. Nem um sopro de ar agitou o quintal; toda a atenção estava
voltada para a figura vestida de pé sozinha diante do imperador.
— Taiyo no Genjiro. — A voz de Yumeko, calma como era, fez
vários nobres pularem. — Senhor do Palácio do Sol. — Ela fez uma
pausa e disse muito claramente: — Há um intruso em seu jardim.
O imperador se endireitou, assim como muitos dos nobres e
samurais. Alguns bushi começaram a olhar ao redor, com as mãos nos
punhos das espadas, enquanto murmúrios começaram a se espalhar
pela multidão. Eu me agachei nas sombras, enquanto Hakaimono se
mexia, sussurrando que eu deveria derrubá-la antes que fosse tarde
demais.
Ela realmente me exporia? A pergunta de Kage Masao sobre
confiança voltou para mim, e meu sangue gelou. Você me venderia esta
noite, Yumeko, para se salvar?
— Está muito perto. — Yumeko continuou, sua voz baixa e
sombria. — Espreitando nas sombras. Observando você e seus
convidados enquanto conversamos. — Algumas mulheres
engasgaram e se aproximaram mais uma da outra, e um samurai
sacou a espada. Minha mão escorregou para Kamigoroshi, os dedos
pairando sobre o cabo, enquanto Yumeko continuava.
— É muito astuto, esse intruso. — disse a garota. — Silencioso,
despercebido, ele já deixou um rastro de destruição atrás de si e, se
permitido vagar livre, continuará a arruinar tudo o que tocar.
— Onde? — o imperador engasgou, levantando-se parcialmente
de sua cadeira. — Onde está esse intruso?
— Está perto. — Yumeko repetiu, meio virando no lugar. Eu
fiquei tenso quando a garota girou em minha direção, mas ela
continuou a se virar, longe de onde eu estava agachado nas
sombras. — Está... — Ela fez uma pausa, levantando a mão em direção
a um pedaço de arbustos perto da borda da luz. — Lá.
A corte inteira se virou, olhando para o local que ela
apontou. Por um momento, nada se moveu ou se atreveu a respirar. A
corte ficou paralisada de fascinação, incapaz de se mover ou desviar o
olhar. Na base de uma árvore sakura, uma seção de arbustos
farfalhava alto, arrancando suspiros de horror dos espectadores mais
próximos.
Um pequeno coelho marrom saltou do arbusto para o campo
aberto.
Uma exalação de ar passou pela multidão, embora as mulheres
mais próximas do “intruso” soltassem gritos minúsculos antes de
perceberem o que era. O coelho se sentou, mexendo as orelhas ao
observar os humanos, que o encararam confusos e em choque.
Um grito ecoou pelo jardim. Um homem com roupas simples,
sujeira manchando suas mãos e manchas de grama em seus joelhos,
correu para frente, seus olhos se arregalando enquanto ele olhava para
a criatura no gramado.
— Usagi!
Ignorando os nobres que olhavam fixamente, o homem,
provavelmente um zelador, investiu contra o coelho, mergulhando
para frente com as mãos estendidas. O usagi instantaneamente girou e
disparou para os arbustos, e o humano caiu de estômago na grama,
mergulhando as mãos nos galhos. Cavando entre as folhas, o
jardineiro procurou freneticamente ao redor do arbusto, antes de
perceber que estava sendo observado.
Girando, o agora pálido zelador piscou para a corte igualmente
atordoada, então pressionou a testa contra a grama no mais baixo dos
arcos.
— Por favor me perdoem! — ele gritou, mas naquele momento, o
coelho passou por ele como um borrão bronzeado. Com um uivo, o
jardineiro saltou de pé, com a vara na mão, e perseguiu-o até a beira
das árvores, onde ambos desapareceram na escuridão além.
O silêncio caiu. Todos continuaram a olhar para as sombras,
como se não soubessem o que fazer. Eu lancei um olhar para Yumeko
e a vi parada em silêncio na frente do estrado, um pequeno sorriso
triunfante em seu rosto.
Uma batida lenta quebrou a quietude, fazendo vários nobres
pularem. O imperador pôs-se de pé, juntando as mãos, um largo
sorriso aparecendo em seu rosto imberbe.
O resto da corte explodiu em aplausos. Ele varreu o ar e cresceu
acima das árvores, enquanto a multidão se virava como uma só para
encarar a garota no centro do jardim. Yumeko curvou-se, aceitando
humildemente o reconhecimento deles, enquanto o som do sucesso se
erguia acima das árvores e se espalhava ao vento.
Capítulo 30
A Víbora em Seda
Eu deixei os aplausos tomarem conta de mim, ouvi-os subir e
aumentar e me permiti um pequeno suspiro de alívio. Quem diria que
uma coisa tão pequena, um coelho ilusório no momento certo, poderia
encantar um imperador? Claro, a aparição do jardineiro não havia
sido planejada, mas sua reação certamente ajudou a convencer a corte
de que o que estavam vendo era real. Eu esperava que o homem
estivesse bem, que o aparecimento de um único coelho dentro dos
jardins imaculados do imperador não o punisse, mas era tarde demais
para me arrepender agora.
Denga, se você pudesse me ver agora, pensei, sorrindo ao encontrar
os olhares de Daisuke, Okame e Reika na multidão. Meu truque inútil
de raposa enganou a pessoa mais poderosa de Iwagoto e toda a sua
corte. Percorri um longo caminho desde que o bule de chá dançava pela sala.
— Brilhante! — Quando os aplausos diminuíram, o imperador
desceu de sua plataforma, sorrindo em minha direção. —
Surpreendente. Que talento notável, Yumeko-san. Você consideraria
usá-lo a serviço do país? — Minhas sobrancelhas se ergueram e ele
sorriu, apontando para as árvores em direção ao palácio, brilhando
em ouro contra o céu noturno. — Há uma vaga em minha corte para
um onmyoji real. Eu certamente poderia usar alguém com suas
habilidades.
Opa. Bem, suponho que exista essa coisa de fazer muito bem. Pensei
rápido, sabendo que recusar o imperador, mesmo agora, poderia ter
repercussões terríveis. — Sua Alteza me honra. — Eu disse com uma
reverência. — Agradeço a oferta, mas há uma... tarefa muito
importante que devo concluir, uma promessa a cumprir, antes de
poder aceitar.
— Ah. Claro. — O imperador assentiu; mesmo ele não ousaria
sugerir que alguém quebrasse uma promessa e arriscasse a desonra
que vinha com ela. — Bem, quando você terminar sua tarefa,
considere retornar ao palácio, Yumeko-san. Você é sempre bem-vinda
na minha corte.
Eu me curvei. — Sua Alteza é muito gentil.
— Meu último onmyoji me contou sobre a chegada do Grande
Dragão. — O imperador continuou, fazendo meu estômago pular para
a garganta. — Achei que a história fosse simplesmente um mito
antigo, mas ele tinha certeza de que viu o dragão surgindo em uma de
suas visões. — O imperador franziu a testa. — Infelizmente, ele foi
descoberto como um praticante de magia do sangue e executado, e as
palavras de um mago do sangue são contaminadas e não são
confiáveis. Mas me agradaria ter outro onmyoji em minha corte, para
me informar se o Precursor está de fato se aproximando e o que posso
fazer para reivindicar seu poder para mim.
Senti uma sensação de rastejamento sob minhas vestes e olhei
nos olhos escuros de Dama Satomi, brilhando com hostilidade sobre o
ombro do imperador. Apenas por um momento, antes de se virar para
o imperador e sorrir, todos os traços de ameaça desaparecendo sob
uma bela máscara de porcelana.
— Meu senhor. — Ela sussurrou, olhando para ele por baixo dos
cílios longos e grossos. — A lua está nascendo. Você não gostaria de
vê-la do pavilhão do lago? A água está muito clara esta noite, você
deve ser capaz de ver seu reflexo de cima e de baixo.
— Ah, claro. Todos! — o imperador chamou, batendo palmas e
chamando a atenção da corte para ele. — Dama Lua começou sua
jornada através dos céus. Vamos nos retirar para a beira do lago, para
que possamos desejar-lhe bem. Estou ansioso para ouvir os belos
poemas que vocês compuseram para homenagear sua jornada nesta
noite.
A multidão se dispersou, seguindo na direção do lago. Inclusive
o imperador, que pareceu se esquecer de mim assim que se afastou,
seu yojimbo caindo em volta dele. Dama Satomi, entretanto, não foi
embora, mas continuou a me observar, um leve sorriso no
rosto. Nenhum dos outros nobres, guardas ou samurai parecia notá-
la; todos continuaram a se mover em direção à beira do lago, nos
deixando sozinhas.
— Bem. — O olhar cruel da mulher me varreu de cima a baixo,
espalhando a sensação de marcas de garras sujas em minha pele. —
Isso foi divertido.
Eu sufoquei a onda repentina de pânico, sentindo o peso do
pergaminho sob minhas vestes, me perguntando se Satomi poderia de
alguma forma sentir isso. Se ela convocasse um oni, bem aqui, me
esmagaria como um ovo. Eu estremeci, então respirei para afrouxar o
nó frio em meu estômago e olhei Satomi nos olhos.
— O... o imperador pensava assim.
— O imperador é uma criança que se impressiona facilmente
com ilusões e truques baratos. Ele não sabe a diferença entre um
charlatão e o verdadeiro poder. — Um canto de um lábio vermelho
carnudo se curvou em um sorriso malicioso. — Você não vai me achar
tão crédula.
Eu senti a magia da raposa ganhar vida e cerrei meus punhos
para impedir que o kitsune-bi saltasse para a ponta dos meus
dedos. — Você tem nos seguido. — Acusei em um sussurro. — Esses
pássaros mortos são seus, não são? — Ela ergueu uma sobrancelha
elegante e zombeteira, e eu reprimi um grunhido, sabendo que não
poderia voar para ela e forçar a verdade de seus lábios vermelhos
carnudos. — Você tem observado a mim e a Tatsumi desde que
deixamos a floresta. — Eu disse em voz baixa. — Foi você quem
enviou os demônios ao templo?
— Que coisa horrível de se sugerir. — Dama Satomi levou a mão
ao peito, como se estivesse chocada. — Certamente você não esperaria
que alguém de minha posição se envolvesse em tais coisas. Pássaros
mortos? Demônios? — Um canto de seu lábio se curvou, e sua voz
caiu para um sussurro ameaçador. — A magia do sangue é punível
com a morte, pequena raposa. Assim como mentir para o imperador
de Iwagoto. Sua pequena atuação funcionou apenas porque eu
permiti. Esta é uma corte de fantoches, e eu manipulo todas as
cordas. Em quem você acha que eles vão acreditar, se certas coisas
vierem à tona?
— Satomi-san.
A voz de Daisuke ecoou atrás de mim, mesmo enquanto eu
lutava para me manter firme, para não me afastar dessa mulher má. O
olhar malicioso de Dama Satomi desapareceu, enquanto ela sorria
para o nobre que se juntou a nós, mudando de rosto tão rapidamente
que parecia lançar uma máscara. Okame e a donzela do santuário
apareceram ao meu lado também, e um rosnado minúsculo, quase
inaudível, ondulou do chão, quando Chu deu uma olhada na mulher
e mostrou os dentes. Dama Satomi nem mesmo olhou para o cachorro.
— Boa noite, Taiyo-san. — Ela cumprimentou, curvando-se para
Daisuke, que acenou com a cabeça em resposta. — Você viu o
desempenho notável da nossa talentosa onmyoji? — Ela voltou seu
sorriso para mim, e parecia completamente genuíno. — Não consigo
me lembrar da última vez em que fiquei tão surpresa. Eu mal podia
acreditar que era real.
— Dama Yumeko é realmente talentosa. — Daisuke concordou,
com um pequeno sorriso em minha direção. — É uma honra tê-la
aqui. — Ele se virou para Satomi e suas palavras tornaram-se
extremamente educadas. — Satomi-san, se pudéssemos incomodá-la
por um momento. Não vai demorar.
— Claro, Taiyo-san. — Dama Satomi disse. — O prazer é meu. O
que posso fazer pelo filho do honorável Hironobu-sama?
Reika deu um passo à frente, sua carranca indicando que ela não
foi enganada nem um pouco. — Mestre Jiro, do santuário Hayate. —
Ela disse sem preâmbulos. — Esse nome significa alguma coisa para
você?
— Hmm? Deveria?
— Você o chamou aqui. — Reika continuou, enquanto a raiva
cintilava através de mim, sabendo que a mulher estava brincando
conosco. — Três dias atrás, ele recebeu uma convocação do palácio
para vir e se encontrar com você. Ele nunca conseguiu voltar para o
santuário Hayate. Essa foi a última vez que alguém o viu.
— Mestre Jiro. — Dama Satomi disse pensativa, como se
estivesse tentando se lembrar. — Mestre Jiro. Oh, sim, eu me lembro
agora. Chamei-o ao palácio para tomar chá e responder a algumas
perguntas simples que eu tinha. Horrível e ofensivo homenzinho. Ele
foi muito rude comigo. — Ela sorriu fracamente para Reika. — Os
sacerdotes não deveriam ser os pilares da humildade e da
sabedoria? Eu o achei terrivelmente cansativo e repulsivo, para dizer a
verdade.
A miko olhou para a outra mulher sem expressão, recusando-se
a ser instigada. — Onde ele está? — ela perguntou, sua voz
extremamente calma. Os lábios de Dama Satomi se curvaram ainda
mais.
— Oh, ele está seguro. — respondeu ela, acenando para o leque
de uma maneira improvisada. — Ele está bem perto, na
verdade. Embora eu tenha medo de que você nunca o encontre sem
mim. Mesmo o seu pequeno shinobi à espreita, nos observando das
sombras, não será capaz de descobrir sua localização.
Eu respirei fundo, fazendo Satomi virar seu sorriso para mim. —
Você achou que eu não sabia que o assassino de demônios Kage havia
se infiltrado no palácio? — ela ronronou, sua voz muito baixa. —
Nada acontece nesta corte sem o meu conhecimento. Eu sei que ele
está nos ouvindo agora, e se ele me derrubar, você nunca encontrará
seu precioso Mestre Jiro, e ele nunca completará sua missão.
— Então você vai nos levar até ele. — Okame disse, e ela ergueu
uma sobrancelha em sua direção. — Agora mesmo.
— Interessante. — Dama Satomi olhou para o ronin como se
fosse um cão particularmente obstinado. — E o que, posso perguntar,
você acha que pode fazer comigo? Me atacar aqui, no jardim do
imperador? — Ela deu uma risadinha. — Com exceção de Taiyo-san,
que certamente enfrentaria um golpe terrível na honra e reputação de
sua família, muitos de vocês seriam executados antes do amanhecer.
— Existem outras maneiras. — disse Reika. — Tenho certeza que
o imperador ficaria muito interessado em ouvir...
— Oh, tome cuidado com o que você me acusar, menina. — A
voz da mulher era como fios de seda que poderiam cortar sua
garganta. — Não queremos que outros segredos sejam revelados de
repente. — Ela olhou em minha direção, a ameaça em seus olhos
perfeitamente clara. — Nós queremos?
— Além disso, você não me deixou terminar. — Dama Satomi
continuou, seus lábios puxando para baixo em um beicinho. — Veja,
eu poderia recusar e observar vocês se pavoneando e ameaçando
como minúsculos pardais machos. Mas, por mais divertido que seja,
sei que serei perseguida pelo resto da noite. Se não por vocês, então
pelo matador de demônios Kage, que tenho certeza que está ouvindo
esta conversa. Não desejo despertar a ira da daimyo imortal do Clã
das Sombras, nem desejo cuidar de minhas costas toda vez que
caminho pelos corredores do palácio. Isso se tornaria muito cansativo.
— Ela suspirou. — Então, sim, vou levá-los ao seu sacerdote. Não
tenho mais uso para o velho idiota, de qualquer maneira. Na verdade,
você estaria me fazendo um favor, tirando-o de minhas mãos. — Ela
ergueu uma mão branca elegante, indicando a paisagem
arrebatadora. — Vocês não se importariam de dar um passeio rápido
pelo jardim, não é? É muito lindo ao luar.
Daisuke estreitou os olhos e olhou para onde o imperador e seus
convidados haviam se reunido à beira do lago. — A concubina do
imperador não tem permissão para se aventurar sozinha, tarde da
noite. — disse ele em uma voz de polidez fria. — Especialmente com
um grupo de estranhos. Haverá especulação, pelo menos
rumores. Você não vai precisar de uma escolta, Dama Satomi?
— Você é adorável. — Dama Satomi ronronou. — Que bom
menino, se preocupando em manchar minha honra. — Ela deu uma
risadinha, fazendo a carranca de Reika escurecer. — Não se preocupe,
Taiyo-san. O imperador e seus convidados não sentirão minha
falta. Eles não perceberão que eu parti. Mesmo se o fizerem, o saquê
desta noite é especialmente forte, eles vão esquecer tudo amanhã.
— Então... — ela continuou, recuando. — Devemos ir? Suponho
que vocês estejam ansiosos para ver se o sacerdote está bem. Sigam-
me, meus preciosos patinhos. Eu vou lhes mostrar onde ele está.
Cautelosamente, seguimos a mulher ao redor da margem do
lago, para longe do imperador e do resto da corte, indo mais fundo no
jardim. Enquanto as sombras se fechavam ao nosso redor, eu me
encontrei examinando os arbustos, em busca de movimento, por uma
onda de escuridão que não pertencia ali. Eu me perguntei se Tatsumi
estava nos seguindo, mantendo um olho em sua presa enquanto
caminhávamos por entre as árvores, para mais longe da multidão e de
qualquer coisa familiar.
Também me perguntei se, no fundo do jardim, fora da vista de
quaisquer guardas ou testemunhas, ela tentaria nos matar com magia
de sangue. Parecia improvável; éramos quatro, seis se contarmos
Tatsumi e Chu. As probabilidades pareciam contra ela, mas eu não
sabia como a magia do sangue funcionava, ou quão forte ela era como
uma feiticeira. Talvez ela pudesse convocar bandos de corvos mortos
ou levantar esqueletos do chão. Parecia uma boa ideia ser cautelosa.
Perto de um canto da parede externa, chegamos ao que presumi
ser um antigo armazém, um prédio alto de base quadrada com um
telhado pontudo e uma única porta na frente. Era semelhante aos
armazéns que eu tinha visto em vilas agrícolas, exceto que eram
menores e ficavam sobre palafitas para proteger as plantações da
chuva e de vermes. Uma aura de ameaça pairava sobre o prédio como
uma mortalha, e meu estômago se embrulhou de pavor.
— Um armazém? — Reika olhou para a estrutura, então olhou
para a mulher caminhando calmamente em direção à porta. — Você
tem mantido Mestre Jiro trancado em um depósito?
— Que acusação grosseira. Estou muito ofendida. — Dama
Satomi não diminuiu o passo ao chegar à entrada. Ela empurrou a
porta e se virou para nós. Emoldurada na porta, suas vestes carmesins
destacando-se contra o preto, ela nos deu um sorriso cruel. — Seu
Mestre Jiro não está aqui. — Ela afirmou. — Mas o caminho para
alcançá-lo está dentro. Sigam se tiverem coragem, patinhos. No escuro
nós vamos.
Ela deu um passo para trás pela porta e desapareceu nas
sombras.
— Depressa. — disse Reika, dando um passo à frente. — Não
devemos perdê-la.
— Espere.
Surpreendentemente, foi a voz de Okame que cortou a noite,
parando-a. O ronin olhou para o armazém com os braços cruzados e
olhos estreitos. — Posso não saber muito sobre magas de sangue e
política da corte... — disse ele. — Mas reconheço uma armadilha
quando vejo uma.
Reika se virou para ele. — Não podemos parar agora. — disse
ela. — Eu não vou deixar essa mulher escapar impune. Fique aqui se
estiver com medo, vou encontrar Mestre Jiro com ou sem a sua ajuda.
— Eu não disse que estava com medo. — Okame retrucou. — É
claro que vamos entrar. Só não acho que devemos entrar alegremente
em uma emboscada, se aquele armazém estiver cheio de demônios,
monstros ou centopeias gigantes querendo comer nossos rostos.
— Não está. — Disse uma nova voz acima.
Nós olhamos para cima. Uma figura de preto agachado no
telhado do armazém, silhueta contra a lua, um lenço carmesim
ondulando atrás dele. Meu coração deu um salto, Chu achatou as
orelhas com um rosnado e Okame bufou.
— Aí está você. — O ronin disse, enquanto Tatsumi pousava
graciosamente na frente do armazém. Os rosnados de Chu ficaram
mais altos, mas a donzela do santuário disse uma palavra baixa e ele
parou. — Finalmente decidiu aparecer, hein, Kage-san? — Okame
continuou. — Eu nem vou apontar o comentário shinobi anterior que
fiz alguns dias atrás, que resultou em uma ameaça à minha vida. Eu
apenas ficarei aqui, sendo silenciosamente vindicado.
— Kage-san. — Daisuke disse, olhando para Tatsumi. — Você
é... shinobi?
— Ele é o assassino de demônios Kage. — Reika interrompeu,
sua voz plana. — Claro que ele é. Como você fica surpreso com
isso? Apesar de tudo... — Ela se virou para Tatsumi. — Kage-san, você
disse que não há demônios ou outras criaturas à espreita dentro do
armazém, isso é verdade? Kage-san?
Durante toda essa troca, Tatsumi não disse nada, seu olhar
apenas em mim. Na pergunta de Reika, no entanto, ele piscou e olhou
para a donzela do santuário, a máscara fria do matador de demônios
caindo no lugar quando ele se virou.
— Não senti nenhum. — respondeu ele. — Não há demônios,
mas... — Seu olhar cintilou para a porta aberta, olhos estreitando em
fendas violetas. — Há algo. Não vivo, mas... poderoso. Isso cheira a
magia de sangue e morte. O que quer que esteja lá, não é nada deste
reino.
Com um estremecimento metálico, Daisuke desembainhou a
espada, a lâmina afiada captando o luar ao ser desembainhada. —
Então, vamos enfrentá-lo com honra.
— Eu estava com medo de que você dissesse isso. — Okame
bufou e puxou o arco sobre a cabeça. — Mais uma vez nas mandíbulas
da morte. Contanto que não seja uma centopeia gigante.
— Isso não parece muito provável. — Eu disse a ele quando
começamos a avançar. — Eu não acho que uma centopeia gigante
poderia passar pela porta. A menos que ela convocasse uma dentro do
armazém, mas então como ela se moveria?
Tatsumi moveu-se para o meu lado. — Fique perto, Yumeko. —
Ele disse suavemente. — Se esta for a maga de sangue que estava nos
seguindo, seremos seus primeiros alvos.
Eu concordei. Com Reika na liderança, um ofuda colocado
diante dela e Chu a seus pés, caminhamos pela grama e escorregamos
para a escuridão do armazém.
Capítulo 31
O espelho sem reflexo
A maga de sangue está perto.
Eu podia sentir a pulsação do poder das trevas no ar enquanto
passávamos pela moldura e apertei meu aperto em Hakaimono. O
demônio lutou comigo, sabendo que algo estava perto, querendo
sentir sangue e carne deslizando sobre sua lâmina. A sede de sangue
surgiu em minhas veias, me enchendo com o desejo de matar, mas eu
também estava agudamente ciente de Yumeko, caminhando ao meu
lado. Eu podia vê-la com o canto do olho, sentir sua presença no
espaço ao meu redor, e estava dividido entre o desejo quase doloroso
de proteger a garota e arrancar a cabeça de seu pescoço.
Foco, eu disse a mim mesmo e a Hakaimono. Seu objetivo é chegar
ao sacerdote.
A câmara além da porta estava mofada e quente, o ar
viciado. Caixas, sacos e barris de madeira foram empilhados em
fileiras por toda a câmara, com implementos de jardim armazenados
contra as paredes e no topo dos caixotes. Uma única lâmpada
pendurada em uma viga de madeira, lançando uma luz laranja
bruxuleante sobre o chão, mas o resto do armazém estava envolto em
escuridão.
— Onde a bruxa está se escondendo? — o ronin murmurou no
silêncio.
Uma risada suave respondeu a ele, rastejando para fora das
sombras. — Não precisa ser rude. Eu estou bem aqui. Por aqui,
patinhos. Sigam o som da minha voz.
Cautelosamente, o fizemos, contornando as pilhas de caixotes e
barris, avançando lentamente em direção à parede dos fundos, onde
um leve brilho carmesim começou a emanar do canto oposto.
Dama Satomi nos esperava no final do último corredor, suas
feições em um brilho vermelho. Vinha de um espelho alto de corpo
inteiro no canto da sala, o vidro refletindo a mulher sorridente em
suas profundezas. Um lençol sujo estava amassado na base do
espelho, indicando que havia estado coberto um momento atrás, e
toda a estrutura parecia pulsar com uma malevolência sutil.
Yumeko deu uma olhada na mulher no canto e saltou para trás,
roçando meu braço enquanto ela disparava atrás de mim, fazendo
meus sentidos dispararem. Eu olhei para ela, confuso. Ela tinha se
encolhido muito pequena nas minhas costas, como se tivesse medo do
próprio espelho. Suponho que ela também podia sentir a escuridão
irradiando dele, a sensação de que era algo não natural.
— Que trapaça é essa, bruxa? — A donzela do santuário disse,
erguendo seu ofuda como uma espada.
— Isto? É chamado de espelho. — Satomi respondeu com
lentidão exagerada. — Normalmente usado para garantir que você
esteja apresentável para o resto da sociedade. Talvez você devesse
comprar um para você?
— Isso não foi o que eu quis dizer! Onde está Mestre Jiro? Você
disse que nos levaria até ele.
— Eu disse? Suponho que sim. Bem, então... — A mulher
estendeu a mão e cuidadosamente puxou um grampo, longo e
pontudo com uma bola de marfim na ponta, de seu cabelo. Por um
momento, ela o segurou diante dela, o metal fino brilhando na luz,
antes de levantar a outra mão e espetar a ponta no dedo
indicador. Seu rosto permaneceu sereno enquanto ela enfiava a ponta
da agulha em sua pele sem vacilar.
Uma gota de sangue jorrou da ferida, inchando como um
carrapato na ponta do dedo. Enquanto observávamos, Dama Satomi
levantou calmamente a mão ferida e pressionou a mancha de sangue
na superfície do espelho. Quando o vidro ondulou, como uma pedra
jogada em uma poça, a mulher sorriu.
— Seu precioso mestre está por aqui. — Ela disse para a donzela
do santuário, e ergueu o olhar para todos nós, o desafio em sua voz
aparente. — Salvem-no se puder.
E com isso, ela deu um passo à frente, no espelho, e desapareceu
através do vidro.
O ronin soltou uma maldição enfática. — Espere, o quê? O que
diabos aconteceu? Todo mundo viu isso, certo? Todos vocês a viram
ser sugada pelo espelho. O que é que foi isso?
— Magia de sangue. — Eu disse severamente, enquanto Yumeko
espiava em volta do meu braço. O reflexo no espelho estava distorcido
agora, as imagens turvas e distorcidas. Uma única mancha vermelha
ainda marcava o vidro, flutuando na superfície. — Dama Satomi é
uma bruva de sangue. — Eu confirmei, enquanto nossas reflexões
grotescas olhavam para nós, girando em círculos irreconhecíveis. —
Uma poderosa, se eu tivesse que adivinhar. O espelho serve como um
portal para outro lugar inteiramente. Esse não é o feitiço de uma
novato.
— Um portal? — Yumeko continuou pairando nas minhas
costas. — Aonde isso leva?
— Não importa. — Mais uma vez, a donzela do santuário deu
um passo à frente, com o rosto determinado. — Se Mestre Jiro estiver
do outro lado, eu o encontrarei. Não importa o que esteja no meu
caminho.
— Espere, espere. — Protestou o ronin. — Eu adoro pular em
espelhos estranhos e tudo mais, mas e se isso nos jogar em um poço
de demônios? Ou centopeias?
Com um latido agudo, Chu correu para a frente, saltou em
direção ao espelho e desapareceu através do vidro em uma faixa
laranja e branco. Enquanto o resto de nós olhava em choque, ele
reapareceu, saltando de volta através do espelho para nos dar um
olhar impaciente, antes de pular mais uma vez.
— Ok. — Disse o ronin com um encolher de ombros. — Bom o
suficiente para mim.
Fechei os olhos e atravessei o portal, sentindo fios de magia
deslizarem sobre minha pele, fria e pegajosa, como caminhar através
de uma teia de aranha no auge do inverno. Quando abri meus olhos,
olhei ao redor e senti Kamigoroshi ganhar vida.
— Oh, Kami. — Eu ouvi Reika sussurrar.
Nós seis, cinco humanos e um cachorro, permanecemos sob um
antigo portão torii, a madeira uma vez colorida meio apodrecida e se
desfazendo em cinzas. Espalhados diante de nós estavam os restos
devastados e despedaçados do que um dia fora uma vila ou
cidade. Casas e edifícios se foram, destruídos a gravetos, paredes
desmoronaram e telhados desabaram. Para muitas das estruturas,
nada restou, exceto alguns gravetos enegrecidos e ruínas
carbonizadas. Escombros estavam por toda parte, o ar cheirava a
morte e nada se mexia nas sombras. Sem sinais de vida, ou pessoas,
ou qualquer coisa viva. Este lugar, o que quer que tenha sido, agora
era uma aldeia de yurei.
— Onde ela está? — a donzela do santuário murmurou, olhando
ao redor com olhos estreitos. — Para onde a bruxa foi?
— E onde diabos estamos? — o ronin ecoou, sua respiração
nublando o ar antes de se contorcer com a brisa fria e cortante. —
Além disso, e isso pode ser motivo de alguma preocupação, eu não
vejo um espelho por aí. Como vamos voltar?
Não havia sinal da maga de sangue. Ou um espelho de qualquer
tipo. A aldeia arruinada estava silenciosa e vazia; nenhum vislumbre
de pele pálida ou vibração de mangas de quimono podia ser visto em
meio à devastação. Uma bandeira meio queimada balançava
tristemente em uma viga, o único som na imobilidade absoluta.
— Esse é o brasão dos Yotaka. — disse o nobre, olhando para o
pano ondulante e meio queimado. — Um vassalo da família Sora. O
que significa... estamos no território do Clã do Céu? — Ele balançou a
cabeça surpreso. — Mas isso não pode estar certo. As terras de Sora
estão a centenas de quilômetros da Cidade Imperial.
Isso explicava a queda repentina da temperatura. O território do
Clã do Céu ficava no extremo norte de Iwagoto e reivindicava os picos
frígidos de Kori no Hari como domínio. Das montanhas cobertas de
neve distantes, aparecendo além da aldeia, provavelmente estávamos
no limite das terras da família Sora. — Satomi é uma maga de sangue.
— Eu os lembrei severamente. — Ela provavelmente tem vários
desses portais semeados por todo o palácio, caso ela precise de uma
fuga rápida, ou de um local para fazer sua magia do sangue em paz.
— Oh, isso é ótimo. — O ronin disparou. — Rápido, vamos
todos seguir a maga de sangue através do espelho da morte sem saber
o que há do outro lado. Oh, olhe, uma aldeia vazia e em ruínas no
meio do nada, eu me pergunto o que poderia estar aqui? Certamente
não demônios, ou gaki, ou...
— Yurei. — Yumeko sussurrou.
— Ou fantasmas. — O ronin concordou. — Certo, tenho certeza
de que não há fantasmas raivosos por perto também.
— Não. — A garota disse, e apontou para a estrada. — Veja.
Nós viramos. Uma bola brilhante de luminância branco-azulada
flutuava silenciosamente no meio da estrada onde nada estivera
antes. Ela balançou uma vez, então deslizou silenciosamente para
longe, deixando uma longa cauda de luz atrás dela, então reapareceu,
pairando vários metros acima do solo.
— Hitodama. — A donzela do santuário sussurrou. — Uma
alma humana perdurando no mundo.
— Um fantasma? — o nobre meditou.
— Sim e não. — A voz da miko estava cheia de pena. — Yurei
são os espíritos dos falecidos. Esta é a alma de alguém que, por algum
motivo, não consegue passar.
— Parece que quer que o sigamos. — Observou Yumeko,
enquanto a luz se afastava e voltava, pulsando suavemente contra a
escuridão.
O ronin soltou um suspiro. — Bem, não há nada por aqui. —
disse ele. — Vamos ver aonde o morto brilhante quer nos levar.
Cautelosamente, seguimos o orbe de luz oscilante, nos
escondendo sob vigas e pilares carbonizados, tecendo através dos
esqueletos das torres de vigia que haviam caído na estrada. A aldeia,
exceto por nossos próprios passos e respiração, permaneceu
mortalmente silenciosa e quieta. Adiante, a esfera brilhante se movia
em um ritmo constante, sempre perto o suficiente para ver, mas
mantendo uma boa distância entre nós. Por fim, a aldeia deu lugar à
orla de uma floresta, onde a esfera flutuou por entre as árvores até
parar ao pé de uma colina. Um lance de degraus de pedra, rachados e
cobertos de raízes, subia por entre as árvores e desaparecia na
colina. Ela esperou o suficiente para chegarmos ao primeiro degrau,
antes de flutuar escada acima e desaparecer.
— Depressa. — disse a donzela do santuário, enquanto ela e o
cachorro assumiam a liderança. — Eu posso sentir que Mestre Jiro está
perto. Não devemos perdê-lo.
— Vamos, Tatsumi-san. — Yumeko insistiu enquanto eu
hesitava. — Temos que acompanhar.
Esta era, pensei enquanto começávamos a subir as escadas, uma
comitiva muito estranha na qual me encontrava. Estava acostumado a
rastrear demônios, magos de sangue e yokai assassinos, mas sempre
estivera sozinho. Não na companhia de um ronin, uma donzela de
santuário, um aristocrata e um cachorro. E uma camponesa que
assombrava meus pensamentos, de cuja presença eu estava
constantemente ciente.
Por um momento, caminhando por uma floresta escura e
desconhecida, eu me perguntei se algum dos outros achava essa
situação tão estranha quanto eu antes de limpar aqueles pensamentos
da minha mente. Não importava o que eles pensavam, ou se eles
morreriam enquanto perseguiam uma perigosa maga de sangue. Eles
não eram minha responsabilidade. Meu objetivo era encontrar o
sacerdote que pudesse nos dar a localização do templo Pena de Aço e
do pergaminho. Nada mais importava.
Especialmente porque eu já tinha recebido a ordem de matar um
deles quando tudo acabasse.
A escada terminava nos portões de um antigo castelo, telhados
pontiagudos elevando-se em direção à lua cheia. As portas duplas dos
portões estavam abertas, rangendo com a brisa, e através da abertura
eu podia ver o pátio, tão vazio e escuro quanto a aldeia abaixo.
— Vazio. — Yumeko meditou enquanto nos aproximamos
cautelosamente dos portões da frente. — Eu me pergunto o que
aconteceu com o castelo?
— E todas as pessoas da aldeia? — O ronin acrescentou.
Não respondi, embora suspeitasse que sabia a
resposta. Convocar um oni e uma horda de demônios de Jigoku exigia
uma grande quantidade de sangue e sacrifício, mais do que a maga de
sangue tinha em seu corpo.
Mais como uma aldeia inteira.
O hitodama reapareceu, flutuando na entrada do castelo. — Ele
está esperando por nós. — disse a donzela do santuário, dando um
passo à frente. — Rápido. Mestre Jiro está lá.
— Um ataque frontal é desaconselhável. — Eu disse baixinho,
fazendo a donzela do santuário fazer uma pausa. Ela fez uma careta
para mim e eu acenei para o portão. — Se este é o covil da maga de
sangue, eu duvido que ela esteja sozinha. E ela está nos esperando. Se
você entrar agora, pode ser atacada por demônios ou coisa pior.
— O que você está sugerindo, matador de demônios?
— Eu irei. É para isso que fui treinado. Vou encontrar o
sacerdote e voltar antes que as defesas do castelo suspeitem de
mim. O resto de vocês não precisam vir. — E não vou precisar me
preocupar em manter Yumeko segura.
— Então, devemos esperar aqui e confiar a vida de Mestre Jiro a
você? — a donzela do santuário exigiu. — Sem ofensa, Kage-san. Eu
sei que você é um assassino experiente, mas o portador de
Kamigoroshi não inspira muita fé em mais nada. Não vou confiar a
segurança de Mestre Jiro a alguém que está aqui apenas para obter as
informações que possui. Lamento, mas devo insistir em ir com você.
— Infelizmente, acho que terei de concordar. — Acrescentou o
ronin, sorrindo. — E eu nunca realmente aprendi o comando
'permanecer'. Você sabe o que dizem, não é possível ensinar novos
truques a um cachorro velho.
— A maga de sangue vai tentar impedi-lo. — o nobre
interrompeu, olhando solenemente para mim. — Ela poderia invocar
demônios e abominações e todos os tipos de horrores. E você ainda
me deve um duelo, Kage-san. Perdoe-me, mas não posso permitir que
você morra ainda.
Olhei para Yumeko, cujo lábio curvou-se no canto. — Eu
também vou. — Ela disse calmamente. — Nós viajamos todo esse
caminho. Você não tem que enfrentá-la sozinho.
Sozinho é melhor, pensei. Sozinho significa que não coloco as pessoas
em perigo.
Um arrepio passou por mim. Por que eu estava tendo esses
pensamentos? A segurança dos outros não era algo que eu já havia
considerado antes. Talvez Mestre Iemon estivesse certo; eu estava
escorregando, minha preocupação com os outros uma indicação
perigosa de que estava perdendo o controle de minhas
emoções. Quando isso acabasse, eu me submeteria à "reavaliação" do
majutsushi, e esperava que isso pudesse destruir qualquer apego
remanescente. Era desagradável e talvez não sobrevivesse, mas era
necessário.
Yumeko ainda estava me observando, olhos escuros brilhando
de preocupação. Eu não merecia essa preocupação, mas não disse isso
a ela. O que eu disse foi: — Façam o que quiserem. — Antes de ir em
direção ao portão e ao castelo além.
A maga de sangue estava longe de ser vista quando passamos
pelas grandes portas de madeira e entramos no pátio. O entulho
estava espalhado por toda parte; pedras quebradas, barris virados,
alguns carrinhos quebrados, tudo espalhado pelo quintal. Eu vi várias
armaduras entre as pedras, e o brilho de osso branqueado que
confirmou o que tinha acontecido com os samurai daqui. Lanças
quebradas projetavam-se do chão, flechas estavam embutidas em
postes e vigas e katanas estavam enferrujando onde haviam caído,
brilhando fracamente ao luar.
— Parece que uma batalha foi travada aqui. — O nobre meditou.
— Ou um massacre. — O ronin acrescentou, cutucando a metade
superior de uma armadura com seu arco. Uma caixa torácica se
desprendeu, caiu e ele fez uma careta. — Espero estar terrivelmente,
terrivelmente errado, mas esse pobre coitado parece que foi partido ao
meio.
A presença de Hakaimono, que vinha crescendo com entusiasmo
e sede de sangue assim que passamos pelo portão, ficou perfeitamente
imóvel. Um arrepio correu pela minha espinha e eu congelei, olhando
ao redor do pátio.
Para cima, algo sussurrou em minha cabeça. Olhe para cima.
Eu olhei para cima. Para o telhado pontiagudo do castelo,
recortado contra a lua.
Algo escuro e maciço se ergueu do telhado do castelo contra o
luar, uma sombra enorme com ombros grossos e chifres pretos
ondulando no ar. Mesmo à distância, eu podia ver seus olhos,
queimando como brasas na noite, e a juba de cabelo preto caindo por
suas costas. Ele balançava um tetsubo cravejado de ferro em seus
ombros, e um sorriso lento apareceu em seu rosto quando nossos
olhares se encontraram. Ele se agachou e saltou do telhado no ar.
— Oni! — Gritei, desembainhando minha espada, enquanto a
enorme criatura aterrissava no pátio com um estrondo que sacudiu o
solo e estilhaçou as pedras embaixo dele. Poeira e fragmentos de rocha
voaram para fora e todos caíram para trás enquanto o oni se
endireitava, elevando-se a uns bons seis metros acima, para sorrir
para nós.
— O matador de demônios Kage. — O demônio rugiu, seus
olhos carmesins em chamas fixos em mim. — Eu estive esperando por
você.
O movimento ondulou ao nosso redor, enquanto dezenas de
demônios menores apareceram nas paredes e se formaram nas
sombras. Os amanjaku rosnaram e cacarejaram, acenando com armas
rudes, olhos vermelhos parecendo flutuar ao nosso redor como vaga-
lumes carmesins. Alguns deles usavam peças de armadura de samurai
roubadas, um capacete ou ombreira muito grande, ou brandiam as
wakizashis dos caídos em uma blasfema paródia de honra.
O cachorro da donzela do santuário deu um latido agudo e
saltou para a frente, saltando sobre os destroços em direção ao
demônio no centro do pátio.
— Chu! — gritou a miko, enquanto o demônio casualmente
balançava sua clava no animal em fuga. O tetsubo se espatifou no
chão, esmagando pedras e deixando um grande buraco para trás, mas
de alguma forma errando o cachorro, que fugiu pelas pedras,
disparou escada acima do castelo e desapareceu pelas portas abertas.
— Chu, espere! — A donzela do santuário começou atrás dele,
então parou, como se lembrando do demônio gigante bloqueando seu
caminho. O oni bufou, balançando a arma para o ombro novamente.
— Besta patética. Apenas o suficiente para um gole. Mas não
estou interessado em cães. — Seu olhar ardente se voltou para mim
novamente, enviando uma onda de excitação selvagem por minhas
veias. — Venha, então, matador de demônios. — Ele rosnou. — É o
seu sangue que eu quero, suas entranhas que eu desejo espalhar no
chão. Lute comigo sozinho ou com esses mortais insignificantes, não
importa. Vou esmagar vocês todos em polpa e espalhar seus ossos
para os amanjaku.
— Vão. — Eu disse ao resto deles, me forçando a falar com
calma, para não liberar a risada alegre borbulhando na minha
garganta. — Sigam o cachorro, encontrem Mestre Jiro. Eu vou cuidar
do oni.
— O que? Como diabos você vai. — O ronin avançou, seu arco já
armado, sua boca curvada em um sorriso desafiador enquanto olhava
para os demônios ao nosso redor. — Eu vejo muito mais monstros do
que o grande bastardo feio no centro lá. Eu posso pelo menos manter
os lacaios longe de suas costas enquanto você corta sua cabeça.
— De fato. — Acrescentou o nobre, varrendo sua espada na
frente dele. — Você não tem permissão para morrer esta noite, Kage
Tatsumi. Dama Yumeko. — Ele adicionou, mantendo seu olhar na
criatura gigante diante de nós. — Não se preocupe com Kage-san. Eu
não vou permitir que ele caia. Pela minha honra, lutarei como se a
vida dele fosse minha.
O oni riu. — Bom. — Ele rugiu, e deu um passo à frente. As
pedras racharam com seu peso e o ar ao redor tremeluziu com o
calor. — Bom! Venham então, humanos. Estou entediado há dias. Pelo
menos tentem fazer disso uma luta.
— Tatsumi. — Yumeko sussurrou, e por um momento, a
intensidade em sua voz acalmou a raiva interna, perfurando a sede de
sangue e a alegria viciosa. — Esse é o oni que destruiu o templo e
matou todos lá. Por favor, seja cuidadoso. Mas se você puder... mate-o
por mim.
O oni riu, o som selvagem crescendo no ar, levando os amanjaku
a um frenesi de gritos e cacarejos. — Sim, matador de demônios. —
Ele zombou, enquanto Hakaimono se levantava com um uivo próprio,
tornando minha visão preta e vermelha. — Mate-me, se você puder.
Eu descobri meus dentes em um sorriso selvagem. — Tão
ansioso para morrer, Yaburama? — Eu me ouvi dizer, e por um breve
momento, peguei um lampejo de choque nos olhos do demônio. —
Você sempre foi um bastardo conivente, mesmo em Jigoku. Ficarei
feliz em mandar você de volta.
O rosto do oni se contorceu de raiva, e ele se lançou contra mim
com um rugido, girando sua clava em um arco vicioso. Eu rosnei de
volta com a fúria de uma centena de demônios e saltei para encontrá-
lo.
Capítulo 32
Magia de raposa liberada
Eu tremia quando Tatsumi deu um rosnado diferente de tudo
que eu tinha ouvido antes e saltou para o oni, cujo tetsubo gigante foi
descendo para esmagá-lo para a terra. No último segundo ele girou
para o lado, o taco de ferro errou por alguns centímetros e se chocou
contra as pedras. Enquanto ele disparava, Kamigoroshi brilhava em
roxo na escuridão, cortando o braço do demônio e liberando um jato
de sangue. Ele chiou ao tocar o solo, a fumaça se contorcendo das
poças no ar, e o oni uivou.
Com gritos e guinchos retumbantes, os amanjaku avançaram,
invadindo o pátio, enquanto Daisuke e Okame erguiam as armas. A
corda do arco do ronin zumbia, liberando flecha após flecha, e os
demônios gritavam enquanto morriam. Daisuke deu vários passos à
frente, colocando-se entre nós e a horda. Por um momento ele ficou
perfeitamente imóvel, apenas seu cabelo claro ondulando com o
vento. Então, quando o primeiro amanjaku o alcançou, ele explodiu
em movimento, sua espada um borrão enquanto cortava demônios,
tão rápido que ele estava se movendo para o próximo inimigo antes
que o amanjaku percebesse que ele estava morto.
— Yumeko! — Reika estalou, puxando minha atenção para longe
da batalha. — Por aqui, antes que seja tarde demais. Temos que
encontrar Mestre Jiro!
Um latido ecoou no pátio, Chu olhando para nós da porta,
parecendo impaciente. Reika correu para frente, chutando um
amanjaku enquanto saltava sobre uma pilha de entulho, fazendo o
demônio gritar de dor. Com um último olhar para os três humanos,
cercados por amanjaku na sombra do enorme oni, eu a segui.
Demônios nos perseguiram, saltando das paredes e rastejando
por baixo das varandas, correndo em nossa direção em um enxame
vermelho, azul e verde. Eu me esquivei de um demônio azul claro,
evitando a lança que ele empurrou para mim, e saltei um segundo
quando ele atingiu minhas pernas com uma foice kama. A magia da
raposa aumentou, mas antes que eu pudesse pensar em jogar kitsune-
bi ao redor, Reika gritou: — Luz. — E jogou um ofuda no grupo de
demônios na nossa frente. O papel explodiu em um clarão ofuscante
que fez a multidão gritar e se encolher, cobrindo o rosto. Nós
tropeçamos entre eles, saltamos os degraus para a varanda e nos
abaixamos pela entrada do castelo.
— Feche as portas! — Reika gritou, girando e colocando o ombro
em uma das pesadas barricadas de madeira, Chu latindo e dançando
ao redor de seus pés. Eu bati minhas mãos na segunda, empurrando o
mais forte que pude, e as portas deram um gemido relutante quando
se fecharam. Reika empurrou uma tábua rachada pelas alças, no
momento em que um golpe sacudiu o lado de fora, seguido pelas
vozes raivosas dos amanjaku.
— Pronto. — Ela ofegou, recuando. — Isso deve segurá-los por
enquanto. — Eu ousei uma rápida olhada ao redor, vendo um
corredor escuro com pilares de madeira no centro, embora tudo nele,
telas shoji, painéis fusuma, prateleiras e pedaços de cerâmica,
estivesse despedaçado e coberto de sujeira.
— Algo está muito bagunçado. — Indiquei. — Eu suponho que
demônios não sejam donos de casa muito bons. Você acha que poderia
haver mais?
— Dentro do castelo? Misericordioso Jinkei, espero que não. —
Reika tirou o pó de suas mãos. — A verdadeira questão é, onde está
Mestre Jiro? Este é um castelo enorme. Como vamos encontrá-lo?
Com um brilho de luz, o hitodama flutuou através de uma das
paredes, girou ao nosso redor e se afastou por um corredor
estreito. Eu concordei.
— Siga a luz. — Eu disse, mas naquele momento, um amanjaku
carregando um grande osso apareceu do outro lado da câmara. Ao
nos localizar, ele apontou o osso em nossa direção e soltou um uivo
agudo que reverberou pelos corredores do castelo.
Eu prendi minhas orelhas, enquanto gritos e assobios em
resposta começaram a ecoar na escuridão. — Suponho que isso
responda a minha pergunta.
— Vamos! — A miko gritou, enquanto Chu corria atrás do
hitodama e o som de garras rastejando soou ao nosso redor. Nós
fugimos, seguindo a luz oscilante por longos corredores, através de
cômodos vazios com painéis de parede retalhados e móveis
tombados, ouvindo os rosnados dos demônios enquanto eles se
aproximavam.
Ao dobrarmos uma esquina e irromper por outra porta, nos
encontramos em uma grande e espaçosa câmara de madeira polida e
tetos altos. Tapetes de tatame sujos e rasgados cobriam o piso de
madeira e as paredes estavam forradas de suportes para armas. Vazia
agora, mas eu poderia adivinhar que esta pode ter sido uma área de
luta ou treinamento uma vez.
Infelizmente, não pudemos correr mais longe. Do outro lado da
câmara, um grande amanjaku usando um capacete de samurai sorriu
para nós triunfante, enquanto os demônios entravam na câmara
através de um buraco na parede, sibilando e cacarejando enquanto se
espalhavam pelo chão. Virando-nos, vimos que o caminho por onde
havíamos vindo também estava bloqueado. Demônios nos cercavam,
sorrindo loucamente enquanto avançavam, apontando lâminas, lanças
e garras em nossa direção.
Com o coração acelerado, saquei minha adaga, enquanto Reika
pressionava e Chu recuava, rosnando e mostrando os dentes para os
demônios que se aproximavam. Eles riram e riram, os olhos
vermelhos brilhando com sede de sangue, sabendo que estávamos
presas.
— E agora? — Eu sussurrei, de repente me lembrando da
primeira vez que encontrei uma horda de demônios. Tatsumi não
viria desta vez; estávamos sozinhas.
Reika puxou um ofuda e me lançou um olhar impaciente. — O
que você quer dizer com 'e agora'? — ela retrucou. — O caçador de
demônios não está aqui, kitsune!
Oh.
Eu senti o sorriso cruzar meu rosto antes que eu pudesse me
ajudar. Sem Tatsumi. Nenhum matador de demônios, ou humanos
inconscientes que pensavam que eu era algo que não era.
— Chu! — Reika chamou, puxando o ofuda, que começou a
brilhar. — Forma de guardião agora!
Ela jogou o pedaço de papel no ar, onde voou em direção ao
cachorro e explodiu em um raio de luz. O cachorrinho laranja jogou a
cabeça para trás e uivou e, ao fazê-lo, aumentou dez vezes mais seu
tamanho anterior. Seu pelo mudou de cor, tornando-se um vermelho
brilhante, e uma juba dourada caiu em volta do pescoço. Agora ele era
do tamanho de um boi, com ombros enormes, uma cauda ondulada
esvoaçante e uma cabeça grossa e quadrada que era um cruzamento
entre um cachorro e um leão. Um komainu, percebi com admiração, a
encarnação viva das estátuas que ficavam ao lado do portão torii do
santuário. Chu, ou o espírito guardião que ele havia se tornado, soltou
um rugido estrondoso que sacudiu as madeiras e fez vários demônios
voarem com um golpe de sua enorme pata.
Gritando, os amanjaku invadiram a câmara, sua atenção voltada
para a besta majestosa no centro do chão. Dando um passo para trás,
senti a onda familiar de magia de raposa subir aos meus dedos e,
desta vez, não fiz nada para sufocá-la. Enquanto a horda mais perto
de mim avançava, eu levantei meus braços, o fogo azul dançando na
ponta dos meus dedos e enviei uma onda de kitsune-bi em seus
rostos.
Os amanjaku gritaram, encolhendo-se com as chamas
sobrenaturais, cobrindo os olhos enquanto a coluna de kitsune-bi
rugia pela câmara, lançando tudo em um brilho branco-azulado. O
fogo não queimava, nada corria perigo de incineração, mas nos
segundos de pandemônio que se seguiu peguei um punhado de
juncos do chão e joguei no ar, enviando magia de raposa atrás dele.
Enquanto os juncos caíam, algumas dezenas de Yumekos e
Reikas encheram a câmara com pequenos estouros de fumaça,
arrancando gritos de alarme dos amanjaku chocados. Quando as
réplicas se espalharam e os amanjaku começaram a esfaqueá-las em
pânico, agarrei uma pedra e atirei-a no demônio com capacete, onde
um segundo Chu se materializou na frente dele com um
rugido. Quando o demônio uivou e caiu para trás, golpeando
violentamente com sua lâmina, seu elmo caiu, rolando pelas tábuas e
parou na frente de um pilar.
Correndo pelas bordas do caos, espiei pela confusão em busca
do Chu e Reika reais, esperando que estivessem bem. A donzela do
santuário estava no centro da câmaraa, purificando um ofuda em cada
mão, arremessando-os contra os demônios que passavam. Onde eles
se tocavam, houve uma explosão de poder, e o amanjaku se
contorciam em fumaça quando eram exorcizados. Chu agitava-se ao
redor dela, golpeando os demônios que se aproximavam demais com
enormes garras dianteiras ou esmagando-os com os dentes. Por
enquanto, ambos pareciam estar bem. O hitodama pairava acima,
lançando a câmara em uma luz nebulosa, esperando por nós.
Corri para onde o capacete estava esquecido ao lado do pilar,
agarrei-o e coloquei na minha cabeça. A magia da raposa chamejou e,
em uma nuvem de fumaça branca, minha aparência mudou. Olhando
para mim mesma, não vi mais as elegantes vestes brancas de
onmyoji; eu vi um corpo atarracado e feio com pele vermelha
inflamada, trapos esfarrapados e garras em forma de gancho. Eu ri e
soou mal e rouco em meus ouvidos.
Um amanjaku verde correu até mim, rosnando e tagarelando,
fazendo gestos frenéticos de volta para a câmara. Eu não conseguia
entender uma palavra do que ele dizia, mesmo que fosse em palavras,
mas claramente pensava que eu era o comandante da horda de
amanjaku, o que era uma pena. Eu esfaqueei o demônio no peito com
minha adaga e ele piscou para mim em estado de choque, antes de se
contorcer em tentáculos de fumaça e desaparecer no nada.
Bem, isso é útil.
Voltando ao caos, comecei a fatiar demônios involuntários em
nuvens de fumaça enquanto eles estavam distraídos por uma dúzia ou
mais de réplicas que ainda dançavam pela câmara. Felizmente, os
amanjaku não pareciam ser terrivelmente inteligentes e perseguiam
ilusões minhas com persistência maníaca, golpeando-as até que
explodissem com uma nuvem de fumaça branca e um único junco,
caindo no chão. Quando isso acontecia, os amanjaku pareciam pensar
que era uma vitória, pois pulava para cima e para baixo, levantando
os punhos no ar, antes de se lançar contra a próxima
réplica. Escorregando pela confusão, eu apunhalei um demônio após
o outro, enviando-os de volta para Jigoku.
Um grito de raiva me fez parar. Levantei os olhos, bem a tempo
de desviar do wakizashi do comandante amanjaku cujo capacete eu
havia roubado. O demônio sibilou e vociferou para mim, expondo
suas presas e balançando sua lâmina em arcos curtos e furiosos. Eu me
esquivei e aparei com minha adaga mais curta, recuando pela câmara
até atingir um dos pilares, então imediatamente me abaixei quando o
amanjaku balançou sua espada na minha cabeça. A lâmina atingiu a
viga, alojando-se na madeira por uma fração de segundo, e peguei
uma folha do chão enquanto rolava para longe. O comandante
amanjaku arrancou a espada do poste, girou e ficou cara a cara com
mais dois dele mesmo. Um usando capacete e o outro não.
Por um momento, ele apertou os olhos em confusão, tentando
decidir qual era qual. Então, com um uivo, ele se lançou sobre mim, o
demônio com um capacete, afundando sua lâmina profundamente em
meu peito.
Ou assim ele pensou. O amanjaku gemeu, agarrando-se à
espada, antes que ela explodisse em uma nuvem de fumaça branca, o
capacete caindo no chão com um estrondo. O comandante amanjaku
mal teve tempo de piscar em estado de choque antes de eu me lançar
através da fumaça e apunhalá-lo no coração.
Enquanto o demônio rosnava e se retorcia em fiapos de
escuridão, tomei consciência do silêncio na câmara. Sentindo olhos
hostis nas minhas costas, me virei para me encontrar na sombra de
um Chu rosnando, seus lábios puxados para trás de suas presas
enormes, tensas para estocar.
— Chu, espere! Sou eu. — Sacudi a ilusão com uma baforada de
fumaça, observando o quão grande era o espírito do cachorro de
perto. À medida que a névoa se dispersava, arranquei a folha da
minha cabeça e segurei-a na frente de seu nariz. — Não sou um
demônio. — Eu disse a ele, enquanto suas narinas se contraíam. —
Apenas uma kitsune. Alguém que só pensou em coisas boas sobre
você desde que apareceu na forma de um cachorrinho. Vê?
O komainu parecia nada impressionado; com um bufo, ele se
virou e caminhou de volta para Reika, parada sozinha no centro da
câmara. Um ofuda estava sendo segurado entre os dois dedos da
donzela do santuário, destinado a mim, eu percebi. Dos amanjaku,
nada restou além de alguns pedaços de armas e armaduras
roubadas. As réplicas também se foram, pedaços de palha soprando
molemente pelo chão.
Eu respirei fundo e soltei o ar. — Bem, isso foi... emocionante. —
Eu comentei, enquanto Reika abaixava seus braços, o ofuda
desaparecendo em algum lugar em suas vestes. Chu se sacudiu e
voltou a se transformar em um cachorro normal. Eu estava tremendo,
não de medo, mas com a emoção de usar tanta magia de raposa de
uma vez. Nunca em meus dezesseis anos eu tive permissão para
liberar todo meu poder, para realmente ver o que minha magia
poderia fazer. Foi emocionante, inebriante e um pouco assustador,
saber do que eu era capaz. Era esse o poder sobre o qual Mestre Isao
me alertou? Do que os outros estavam com medo?
A magia Kitsune é o poder da ilusão. Você pode achar que é útil apenas
para travessuras, mas ver algo que não está lá, ou fazer as pessoas
acreditarem que você é outra pessoa, pode ser uma força perigosa e
aterrorizante. Use-a com cuidado, para não se tornar um instrumento do
caos.
— Suas orelhas estão aparecendo. — Reika comentou em uma
voz monótona, me tirando dos meus pensamentos com um
sobressalto. — Eu normalmente posso ver um contorno fraco, mas
elas estão totalmente expostas agora. Provavelmente um efeito
colateral de usar tanto de seu poder.
Eu engoli, resistindo ao impulso de estender a mão e tocá-las. —
Você acha que elas irão embora eventualmente? — Eu perguntei,
sabendo que, se minhas orelhas estavam visíveis, minha cauda
provavelmente estava, também. Isso seria um problema definitivo se
Tatsumi ou qualquer um dos outros as visse. — O que faremos se elas
não desaparecerem antes de deixarmos o castelo?
— Se preocupe com isso quando chegarmos lá. — respondeu a
donzela do santuário. — Temos que continuar. — Ela olhou para o
hitodama, que ainda pairava perto do teto, brilhando fracamente. —
Se você está realmente aqui para nos ajudar... — ela disse, enquanto o
orbe brilhante tremeu. — Então vá em frente. E esperemos que não
haja mais 'surpresas' pela frente.
O hitodama hesitou por um momento. Em seguida, ele flutuou
do teto, circulou a câmara uma vez e fluiu para outra porta.
Nenhum demônio nos emboscou em nosso caminho através do
castelo em ruínas; ou eles fugiram ou nós matamos todos eles. A luz
serpenteava infalivelmente por corredores estreitos, passando por
mais cômodos vazios e destruídos e, finalmente, nos levou ao topo de
uma escada de madeira que descia para a escuridão.
— Ele está perto. — Murmurou Reika, enquanto Chu olhava
para ela e abanava o rabo. — Eu posso sentir sua presença
agora. Depressa.
Depois de descer o lance de degraus de pedra, entramos em uma
grande câmara. Tochas estavam nos cantos, tremeluzindo com
sinistras chamas vermelhas, e celas com grossas barras de madeira
alinhadas nas paredes, mas todas estavam vazias.
No centro, um homem com uma túnica esfarrapada outrora
branca estava sentado de pernas cruzadas no chão de pedra dura, as
mãos em concha no colo como se estivesse meditando. Sua cabeça
estava baixa, seus ombros curvados e ele não se moveu quando Reika
chamou seu nome. Algemas rodeavam seus pulsos, correntes pretas
enferrujadas que o prendiam ao chão de pedra. Um pequeno cachorro
branco, quase idêntico a Chu, estava imóvel ao lado dele.
Ambos estavam envoltos em uma cúpula de poder quase
invisível, uma barreira muito parecida com a que eu tinha visto na
noite em que o templo Ventos Silenciosos foi atacado. Mas esta era
muito mais ameaçador, irradiando maldade e corrupção, fazendo
minha pele arrepiar quanto mais perto chegávamos.
— Magia de sangue. — A donzela do santuário sussurrou,
parecendo furiosa e horrorizada. Ela puxou outro ofuda e o ergueu
diante dela, parou por um momento enquanto o papel chamejava com
energia, então o jogou na barreira. Ele voou pelo ar e atingiu a cúpula
plana, a palavra para purificar escrita em sua superfície, antes que a
barreira tremulasse uma, duas vezes e depois se espatifasse como
vespas saindo de uma colmeia.
— Mestre Jiro! — Reika e eu corremos para frente. Ao nos
aproximarmos, vi que as correntes pretas ao redor do sacerdote
haviam desaparecido, derretendo em uma linha de lama avermelhada
pelo chão.
— Mestre Jiro. — Reika disse novamente, ajoelhando-se diante
dele, enquanto Chu gemia e enfiava o nariz contra a forma enrugada
do cachorro branco. — Mestre, você pode me ouvir? Você está bem?
Uma respiração ofegante e estremecida veio da forma curvada, e
seus ombros tremeram quando ele ergueu a cabeça. Seu rosto estava
magro, suas bochechas amareladas e seus olhos eram covas afundadas
em seu rosto, parecendo distintamente esquelético. Ele piscou para
Reika, a testa franzida, como se não tivesse certeza de que estava
vendo corretamente.
— R-Reika-chan? — ele sussurrou. — Você está... realmente
aqui?
— Sim, Mestre Jiro. — A donzela do santuário respondeu
suavemente. — Estou aqui. Quando você não voltou, eu sabia que
algo estava errado. Estamos aqui para resgatá-lo. Você aguenta?
— Eu não sei. — O sacerdote tentou se endireitar, mas caiu para
trás com um gemido. — Estou fraco. — Ele sussurrou. — Aquela
mulher... usou magia de sangue para me manter aqui. Ela me fez
perguntas, e quando eu não dei a ela o que ela queria, ela começou a
drenar minha força vital. A de Ko também. — Ele olhou para o
cachorro branco ainda imóvel ao lado dele. — Chu havia desistido de
tentar levantá-lo e agora estava sentado choramingando e parecendo
miserável. — Tentei fazê-la voltar para casa. — Murmurou o
sacerdote. — Mas ela não me deixou. Os demônios... eles teriam me
atormentado ainda mais... se ela não estivesse aqui.
Observando o cachorro branco, engasguei quando seu lado
subiu e desceu; foi leve, mas estava lá. — Ela está viva. — Eu disse ao
sacerdote, contornando Reika. — Ela não se foi ainda. Podemos salvar
vocês dois.
Ele olhou para mim, confusão pálida cruzando seu rosto. — Kit-
kitsune? — ele murmurou, e balançou a cabeça. — Eu... eu devo estar
alucinando, afinal.
Abruptamente, Chu se levantou de um salto, abanando o rabo,
enquanto o cachorro branco se mexia repentinamente. Erguendo a
cabeça, ela olhou ao redor em confusão, antes de me ver a poucos
metros de distância, e seus lábios imediatamente se curvaram para
mostrar pequenas presas. Eu dei um passo rápido para trás, recuando
para trás de Reika, enquanto o cachorro cambaleava de pé. Ainda
olhando para mim, ela cambaleou trêmula até o sacerdote, cujo rosto
se iluminou ao vê-la.
— Vamos, Mestre Jiro. — Reika disse, colocando um de seus
braços em volta dos ombros dela e gentilmente puxando-o para
cima. Ele cambaleou e oscilou, mas finalmente conseguiu se
equilibrar. — Estamos deixando este lugar. Vamos torcer para que os
outros ainda estejam vivos para que não tenhamos que enfrentar
aquele oni novamente.
— Oni? — o sacerdote engasgou, enquanto meu estômago
revirou. — Yaburama ainda está aqui?
— Você sabe o nome dele? — Eu perguntei. O sacerdote voltou
os olhos arregalados e temerosos para mim.
— Infelizmente, sim. Yaburama... é um monstro. Ele é um dos
quatro grandes demônios de Jigoku, os generais oni do próprio O-
Hakumon. — O rosto do Mestre Jiro se contorceu de medo e ódio. —
Eu não sei como aquela mulher, mesmo com seu controle da magia do
sangue, poderia ter convocado algo como Yaburama a este mundo e
não o ter voltado para ela imediatamente. Mesmo os demônios
menores são difíceis de controlar, um oni como Yaburama exigiria um
mago de sangue extraordinariamente poderoso para ter qualquer
esperança de prendê-lo à vontade dela.
— Temos que sair daqui. — disse a Reika, que assentiu. —
Tatsumi e os outros estão lutando contra os oni agora, temos que
ajudá-los. Mestre Jiro, você é o sacerdote chefe, você pode fazer
alguma coisa que possa impedir Yaburama?
— Eu sinto muito, kitsune. — Mestre Jiro disse, seus olhos
genuinamente simpáticos. — Sou grato por sua ajuda, mesmo que não
tenha certeza de seus motivos, mas não podemos resistir a um oni
desse poder. Os generais demônios são quase imortais. Se seus amigos
ficaram para enfrentar Yaburama, provavelmente já estão mortos.
Capítulo 33
Loucura de Yaburama
Aquilo ia ser uma luta.
Eu mergulhei para o lado enquanto o tetsubo do oni descia, se
chocando contra a terra e lançando pedras pelos ares. Rolei para ficar
de pé e imediatamente tive que pular para trás quando o enorme
porrete varreu o chão, errando-me por um fio e acertando vários
amanjaku que enxamearam para me emboscar. Eles voaram pelo ar
antes de explodir em tentáculos de fumaça enquanto voltavam para
Jigoku, e o oni grunhiu.
— Você vai pular como um grilo, matador de demônios? —
desafiou, vindo para mim novamente, o porrete de ferro deixando
buracos na rocha cada vez que pousava. — Ou você realmente vai
lutar comigo?
Quando o tetsubo desceu mais uma vez, lancei-me para a frente,
entre os membros semelhantes a uma árvore de Yaburama, e cortei a
parte de trás de sua perna. O oni rosnou e girou, esmagando o chão
com seu porrete quando eu saltei para trás. Ao mesmo tempo, o nobre
humano, abrindo caminho através de vários amanjaku, correu atrás
do oni e cortou a parte de trás de sua outra perna.
Yaburama uivou. Girando, ele atacou com um chute, errando
por pouco o humano enquanto ele passava disparado, mandando
mais amanjaku voando. As feridas em suas pernas não pareceram
diminuí-lo quando ele saltou no ar, caindo entre nós com um estrondo
que fez o chão tremer como um terremoto. Eu mantive o equilíbrio,
mas o nobre cambaleou, caindo sobre um joelho, e o oni ergueu seu
porrete para esmagá-lo nas pedras.
Uma flecha disparou pelo ar, atingindo o monstro na testa,
fazendo-o recuar com um rosnado. Eu lancei um olhar rápido e vi que
o ronin havia escalado até o topo da torre de vigia perto do portão. Ele
lançou outra flecha no oni que fazia uma careta, que bufou e ergueu o
braço, deixando-o acertá-lo no ombro.
Naquele momento de distração, eu sussurrei um feitiço rápido e
avancei, uma sombra Tatsumi aparecendo para se juntar a
mim. Yaburama nos viu chegando no último momento e balançou sua
clava, na direção errada. Eu me esquivei por baixo de suas pernas,
pulei um joelho e, quando me levantei em direção a seu rosto, cortei
Kamigoroshi em seu pescoço, abrindo sua garganta.
Sangue escuro e fumegante jorrou da abertura abaixo do queixo
do oni. Instintivamente, ergui o braço para proteger o rosto, mas ele
ainda queimava minhas roupas, queimando como fogo líquido ao
atingir minha pele. Batendo no chão, cambaleei para trás, apertando
minha mandíbula contra a dor, esperando o oni cair.
Quase fácil demais.
Yaburama começou a rir.
Sua voz ecoou no pátio, profunda e zombeteira. — É isso? — O
oni zombou, arrancando a flecha do rosto, parecendo não notar a
segunda em seu braço. — Isso é o melhor que vocês humanos podem
fazer? Você acha que pode derrotar um dos generais demônios de
Jigoku tão facilmente? — Ele riu de novo, balançando a cabeça
chifruda, então se virou e pegou um pedaço de parede mais alto que
um homem, erguendo-o com uma garra. Com os olhos brilhando, ele
sorriu para nós. — Deixe-me mostrar o quão enganado vocês estão.
O nobre e eu ficamos tensos, prontos para pular para o lado, mas
Yaburama se endireitou, puxou o braço para trás e arremessou a
pedra pelo pátio. Ela girou e bateu na base da torre de vigia,
quebrando as pernas e fazendo com que a estrutura desabasse com
um rugido e uma nuvem de poeira.
— Okame-san! — Gritou o nobre, enquanto o oni berrava em
triunfo, levantando sua clava no ar, e os amanjaku gargalhavam.
Enquanto a torre de vigia permanecia sobre o provável ronin
morto, Yaburama se virou, os olhos brilhando enquanto ele olhava
para nós. — Isso me entedia. — Ele rosnou. — Estou cansado de lutar
contra humanos insignificantes. Amanjaku! — ele rugiu, erguendo a
cabeça. — Matem o nobre humano! Esfolem-no, comam-no, usem sua
pele como casaco, não me importa! Mas tirem-no do meu caminho. Eu
desejo lutar contra o caçador de demônios em paz.
Os demônios menores gritaram de excitação e se lançaram para
frente, cercando os nobres como formigas atacando um gafanhoto. Os
demônios mais próximos pereceram instantaneamente quando o ex-
Oni no Mikoto os cortou, sua lâmina se movendo tão rápido que era
quase um borrão. Mas havia dezenas de amanjaku, uma horda
aparentemente interminável, e seu número começou a empurrá-lo
para trás.
Comecei a avançar, com a intenção de diminuir um pouco o
enxame, quando o enorme tetsubo do oni se espatifou no chão entre
nós. — Onde você pensa que está indo, matador de demônios? —
Yaburama rugiu, colocando-se entre mim e o enxame de amanjaku. —
A luta é aqui. Ou devo lembrá-lo?
Ele balançou o tetsubo para mim com força selvagem. Eu me
esquivei quando o porrete se chocou contra as pedras e cortei a mão
que segurava a arma, decepando um dedo com garras. Yaburama
bufou de aborrecimento e, em vez de recuar, passou a arma pelo
chão. Consegui pular para o lado, mas o movimento inesperado me
desequilibrou e a segunda varredura me acertou no ombro. A dor
explodiu pelo meu corpo enquanto eu era arremessado pelo ar e batia
no chão a vários metros de distância, em seguida, rolava até parar
dolorosamente. Kamigoroshi foi arrancada de minhas mãos e deslizou
sobre as pedras na direção oposta.
Atordoado, lutei para me levantar, mas o chão tremeu e um pé
com garras pousou em meu peito, me empurrando de volta para as
pedras. O ar saiu do meu corpo e minhas costelas se dobraram
ameaçando estalar, enquanto o enorme oni olhava para mim,
sorrindo.
— Uma maneira vergonhosa de morrer, matador de demônios.
— Yaburama meditou, enquanto eu cerrava os dentes em um esforço
para não respirar fundo. Por dentro, algo estava se formando, uma
onda crescente de desespero, raiva e ódio. — Esmagado sob os pés
como uma barata, nada além de uma mancha na parte inferior do meu
dedo do pé. Que vergonha. — Ele riu e encostou todo o seu peso no
meu peito; ossos quebraram em explosões cegantes de agonia, e eu
não pude evitar o uivo de dor que emergiu da minha garganta. —
Mas não se preocupe. — Continuou o oni enquanto eu engasgava de
agonia. — Isso vai acabar logo. E uma vez que eu te matar, vou
separar seus amigos também. Aquela garotinha humana parece
especialmente saborosa. Vou arrancar a cabeça dela, girá-la de modo
que suas vísceras virem uma papa e comê-la como um pêssego.
Yumeko. O pensamento racional desapareceu. Algo dentro de
mim estalou, e uma inundação de escuridão precipitou-se com um
uivo. Senti uma breve pontada de terror e desespero, e depois nada.
— Dói, matador de demônios? — Yaburama abaixou o braço,
trazendo a ponta do tetsubo bem perto do meu rosto. — Vou fazer um
acordo com você. Implore por misericórdia e esmagarei seu crânio em
vez de pisar em você como um inseto. Então, o que você acha
disso? Pronto para implorar?
— Implorar? — Eu olhei para cima, encontrando o olhar do oni e
sorri. — Tenho uma ideia melhor. Que tal eu mandar você para Jigoku
em pedaços?
Yaburama mostrou suas presas. — Você primeiro.
Ele levantou o pé e pisou forte, e o mundo desapareceu como
uma vela apagada.
Capítulo 34
O destruidor
Eu estou livre
Eu levantei meus braços quando o pé de Yaburama bateu na
minha cabeça, pegando o apêndice nojento com as duas mãos. Eu
ouvi o grunhido de surpresa do oni, o senti pressionar com mais força,
tentando me esmagar no chão. Pensar que ainda era aquele mortal
fraco.
Você sempre foi um tolo, Yaburama.
Sentando-me, eu o empurrei, empurrando-o para trás e me
levantando. Yaburama cambaleou para trás vários passos antes de se
conter, olhando para mim em estado de choque.
Eu sorri, sentindo o ar na minha pele, vendo o mundo com meus
próprios olhos, e não os olhos fracos e patéticos do meu hospedeiro
humano. Respirei fundo e deixei o cheiro de sangue, violência e morte
encher meus pulmões, antes de olhar para o oni elevando-se no alto.
— Qual é o problema, Yaburama? Esperando outra pessoa?
Ele soltou uma risada, balançando a cabeça chifruda. — Você
finalmente apareceu. — Ele rugiu, avançando. — Eu pensei que fosse
pisar no seu hospedeiro até uma pasta de feijão antes que ele perdesse
o controle. — Ele riu, estreitando os olhos vermelhos para mim. —
Quanto tempo faz... Hakaimono?
— Demasiado longo. Mais de quatrocentos anos.
Yaburama bufou, então se agachou para me olhar ao nível dos
olhos. — Você é um pouco... menor do que eu me lembrava.
Eu sorri, vendo meu reflexo no olhar carmesim do oni. De
tamanho humano, porque eu compartilhava este corpo patético com
meu hospedeiro, e Kage Tatsumi era ainda menor do que um homem
humano médio. Pelo menos eu ainda me reconhecia; depois de
quatrocentos anos sendo uma voz sem forma presa em uma lâmina,
era bom ver um corpo real novamente. Pele de ônix, crina branca,
chifres, garras, presas; quase tinha esquecido minha aparência.
Mas isso não era importante. Eu estava livre. Eu finalmente
estava fora e havia um país inteiro para me vingar. Tanta destruição
para causar, vidas para tirar e sangue para derramar. Seria
lindo. Vamos ver se os idiotas conseguem me empurrar de volta para
a espada desta vez.
Mas primeiro...
Yaburama ainda estava agachado na altura dos olhos, um sorriso
zombeteiro torcendo sua boca. Eu apertei minha mão direita em um
punho, puxei-a para trás e soquei o rosto quadrado do oni em sua
mandíbula sorridente.
Ele voou para trás, seus pés deixando o chão por um momento,
antes de se chocar contra as pedras com um estrondo que fez a terra
tremer. Eu ri, sentindo o poder percorrer meus músculos, minha velha
força voltando para mim. Ainda não completamente, mas em breve.
— Você esqueceu com quem estava falando, Yaburama? —
Chamei, enquanto o oni lutava para ficar de pé, parecendo
atordoado. Esticando a mão, abri meus dedos e Kamigoroshi voou
pelas pedras na minha palma. — Você esqueceu que eu comandava os
Quatro Generais? Que os demônios mais fortes já gerados em Jigoku
me temiam por uma razão?
— Maldito seja. — Yaburama rosnou, pondo-se de pé. O sangue
escorria de seus lábios pelo queixo e ele o enxugou com as costas da
mão. — Esses dias acabaram, Hakaimono. Você esteve longe por
muito tempo. Há uma guerra chegando, e um novo Mestre dos
Demônios que conduzirá a terra ao caos e à destruição. — Ele ergueu
seu tetsubo, expondo presas sangrentas em um grunhido. — Pena que
você não vai conseguir ver.
Ele se lançou contra mim com um rugido, girando o tetsubo em
um arco selvagem. Recuei do primeiro golpe, me esquivei do segundo
e então, quando a arma desceu direto na minha cabeça, me preparei e
joguei minha mão vazia para cima, pegando a ponta do porrete na
palma da minha mão.
Os olhos de Yaburama se arregalaram. Ele lutou contra o
porrete, tentando enfiá-lo no meu crânio, mas nem eu nem o tetsubo
nos movemos. Sorri para ele da sombra da arma e enrolei minhas
garras na madeira.
— Eu sou Hakaimono, o Destruidor. — Rosnei para ele. — O
demônio mais forte que Jigoku já conheceu. E logo, todo este reino se
lembrará do porquê!
Empurrando o tetsubo para longe, pulei no ar enquanto
Yaburama cambaleava para trás, debatendo-se e perdendo o
equilíbrio. Enquanto ele se segurava, balançando sua clava mais uma
vez com um rosnado furioso, eu trouxe Kamigoroshi para baixo. A
lâmina atingiu o antebraço do oni, cortando carne, músculos e ossos,
continuando do outro lado. O tetsubo e parte do braço de Yaburama
atingiram as pedras com um baque, e o rosnado de Yaburama se
transformou em um uivo de dor.
Batendo no chão, girei e corri de volta para o oni
cambaleante. Enlouquecido de dor e raiva, o coto do braço
ensanguentado pingando poças fumegantes no chão, Yaburama rugiu
e se lançou contra mim com sua outra garra. Eu me abaixei, rolei por
baixo dele e cortei sua perna enquanto passava. O oni cambaleou,
balançou como um carvalho em uma tempestade, então tombou, seu
corpo caindo para um lado enquanto seu joelho decepado
permaneceu onde estava. Ele caiu de costas no chão e ficou ali por um
momento, ofegante, o sangue jorrando dos tocos de seus membros e
espalhando-se pelas pedras.
Sorrindo, caminhei casualmente até o oni ofegante e pulei em
seu peito, apontando a espada ensanguentada em seu rosto. — Bem,
isso foi divertido. — Eu disse calmamente. — Nada como um bom
massacre à moda antiga para fazer o sangue bombear. Tatsumi nunca
gostou de selvageria. Oh, desculpe, você estava dizendo algo, não
estava? Algo sobre me deixar apodrecer naquela lâmina amaldiçoada
por mais quatro séculos?
— Maldito seja, Hakaimono. — Yaburama murmurou. — Você
esteve preso em Kamigoroshi por muito tempo. Você não sabe o que
tem acontecido nos últimos séculos.
Sorrindo, levantei a espada sobre minha cabeça. — Tenho
certeza que vou descobrir.
Yaburama rosnou e tentou se levantar. Eu trouxe Kamigoroshi
para baixo em um lampejo de aço, cortando o pescoço corpulento,
certificando-me de separá-lo de seu corpo desta vez. A cabeça do oni
tombou para trás e rolou vários metros antes de parar, sua mandíbula
cerrada de raiva.
Jogando minha cabeça para trás, enchi meus pulmões e soltei um
rugido de triunfo, ouvindo minha voz explodir no ar e ecoar nos picos
do castelo. Livre! Havia muito o que fazer; tantas vidas para tirar,
tanta destruição e medo e caos e morte para causar neste reino
patético. Eu estava de volta, e este mundo pagaria caro pelos séculos
em que fui selado.
Um suspiro veio da entrada do castelo e eu sorri.
Virando-se para o peito de Yaburama, localizei a garota no topo
da escada, a donzela do santuário, um par de cachorros e um velho
sacerdote humano atrás dela.
Capítulo 35
O Demônio da Lâmina
— Jinkei nos preserve. — Ouvi Reika sussurrar atrás de mim, em
uma voz que enviou um arrepio nas minhas costas.
Não pude responder, olhando para o centro do pátio, para a
figura delineada pelo luar. Na pele negra como azeviche e na juba
selvagem de cabelo branco, nos chifres, presas e garras. Para o
demônio que ainda tinha o rosto de Tatsumi. Tatsumi, ou a coisa em
que ele havia se tornado, virou-se sobre o cadáver fumegante de
Yaburama sem cabeça, Kamigoroshi resplandecente em sua mão, a
lâmina brilhando vermelha de sangue. A cabeça do oni estava a vários
metros do corpo, também soltando espirais de fumaça ao desaparecer,
de volta para Jigoku. Eu deveria ter ficado feliz em ver Yaburama
morto; o oni que destruiu o templo Ventos Silenciosos e matou todos
ali estava caído sem cabeça no centro do pátio. Eu deveria ter sentido
vingança, ou pelo menos alguma forma de alívio.
Mas naquele momento, olhando para a figura de pé em cima do
cadáver, tudo que senti foi terror. Porque o oni que havia substituído
Yaburama, que sorria para mim do corpo de Tatsumi, era cem vezes
mais assustador.
— Ah, aí está você, Yumeko-chan. — Eu pulei com a voz, ao som
do meu nome vindo da boca do demônio. — Eu estava me
perguntando quando você iria aparecer.
Ele saltou no ar, tão alto que quase parecia que estava voando,
antes de descer em nossa direção. Chu rosnou e explodiu em sua
forma real, os músculos tensos para atacar o oni, mas a voz de Mestre
Jiro estalou no ar.
— Chu, não! Ele é muito poderoso. Todos fiquem perto.
Quando Tatsumi pousou na beira da escada com estrondo, o
sacerdote puxou um ofuda esfarrapado, o kanji para proteção contra o
mal escrito no papel. Segurando-o com dois dedos, ele o levou ao rosto
e fechou os olhos enquanto o demônio sorria e começava a subir os
degraus, deixando um rastro de respingos de sangue atrás de si.
Uma barreira em forma de cúpula ganhou vida, cintilando um
tênue, quase invisível azul-branco na escuridão, envolvendo a mim,
Reika, Mestre Jiro e os dois cães. Chu havia encolhido rapidamente
para sua forma menor, mas ainda era um ajuste apertado. Eu podia
ver Mestre Jiro tremendo enquanto se concentrava, gotas de suor se
formando em sua testa, enquanto a forma assustadora de Tatsumi
subia os degraus e ficava a poucos metros de distância, sorrindo para
nós através da barreira.
— Oh, agora você não precisava fazer isso. — Ele disse, em uma
voz que era uma versão mais profunda e arrepiante de Tatsumi. — Eu
só queria ter algumas palavras com Yumeko-chan, aqui. — Seus olhos
vermelhos e frios encontraram os meus através da parede de magia, e
ele riu. — Então, você não é nada além de uma raposa astuta
disfarçada de humana. — Ele meditou. — Uma mestiça fraca, não me
admira que não pude sentir o que você realmente era. Que
mentirosa. Que outras mentiras você contou a Tatsumi, eu me
pergunto?
Eu tremi, mas me forcei a encontrar o olhar terrível do
monstro. — Onde ele está?
— Tatsumi? Oh, ele ainda está aqui, em algum lugar. — O
demônio bateu em sua cabeça com uma garra preta curva. — Imagino
que ele possa ver e ouvir tudo o que está acontecendo, assim como
eu. Ele não é forte o suficiente para me forçar a sair depois que eu
assumir, no entanto. Nenhum humano jamais foi. — Seu sorriso se
alargou quando ele me olhou. — Eu queria te agradecer pessoalmente,
pequena raposa. — disse ele. — Afinal, é por sua causa que estou
aqui.
Um calafrio percorreu meu estômago. — O que você quer dizer?
— Eu sussurrei.
— Bem, normalmente, eu não conseguia passar pela parede de
Tatsumi, ele mantém a si mesmo e suas emoções bem guardadas, e
não me dá qualquer apoio em sua mente. Mas com você por perto, ele
estava escorregando mais e mais a cada dia. Você o distraia, o fazia
sentir coisas. Fazia-o questionar quem ele era e o que desejava. E esse
era todo o convite de que precisava. Seu último pensamento esta
noite, antes de finalmente se perder, foi em você.
Caí de joelhos sobre as pedras, o horror e a angústia pesando
sobre mim tão seguramente quanto as vestes pesadas. Não, pensei em
desespero. Tatsumi. Você não pode ir... por minha causa.
O demônio se agachou, equilibrando-se nas pontas dos pés, de
modo que ficamos cara a cara. — Se isso faz você se sentir melhor... —
disse ele em um sussurro simulado. — Ele pode ouvir cada palavra
que dizemos, mas não pode fazer nada a respeito. E, devo dizer a
você, depois de ficar preso em sua mente por tanto tempo, sua dor e
desespero são uma bela sensação. Ah, e você quer saber mais uma
coisa? — Ele se abaixou, baixando ainda mais a voz. — Ele estava
realmente começando a confiar em você, pequena raposa. — Ele
sussurrou. — Tatsumi nunca confiou em ninguém em sua vida, seu
clã punia quaisquer apegos ou fraquezas. — Sua mão se ergueu e
apontou uma garra preta curva para minha testa. — Mas ele estava
começando a confiar em você, uma kitsune que mentia para ele, que o
estava enganando desde o início. E agora, ele vê exatamente o que
você é e como você o traiu.
Fechei meus olhos enquanto minha garganta ameaçava
fechar. — Deixe-o ir. — Eu sussurrei, sentindo o olhar cruel e
divertido do oni através da barreira.
— Desculpe? — A voz do oni estava zombando. — O que é que
foi isso?
Abrindo meus olhos, eu olhei para cima, encontrando o olhar
vermelho do demônio. — Solte-o. — eu disse, e minha voz não tremeu
desta vez. — Volte para a espada, ou você verá exatamente o que uma
kitsune pode fazer.
O demônio riu. Ele se levantou, elevando-se sobre mim, suas
presas brilhando em um terrível sorriso de lua crescente enquanto ele
recuava. — Você é divertida, pequena raposa. — Ele me disse. — É
por isso que vou deixar você viver mais um pouco. Não se preocupe,
vou matar você e todos de quem gosta em breve. Quando você menos
estiver esperando, alguém próximo a você vai morrer. O ronin, o
nobre, o sacerdote, a donzela do santuário e os dois cachorrinhos. Eu
vou matar todos vocês, e Tatsumi será forçado a assistir enquanto eu
arranco os membros de seu corpo um por um. Este é o seu castigo
também, por me manter preso em sua cabeça teimosa todo esse
tempo. — Seus olhos brilharam, e por um momento eu vi uma raiva
desenfreada e ódio no fundo de suas profundezas, fazendo meu
sangue gelar. — Portanto, não tema. Quando nos encontrarmos
novamente, prometo que tornarei sua morte lenta e dolorosa.
Inclinando-se para a frente, ele deliberadamente estendeu a mão
e colocou-a na barreira, que estalou, piscando erraticamente ao seu
toque. A fumaça subiu de seus dedos com garras, enrolando-se no ar,
mas não parecia incomodá-lo. Sorrindo, o Tatsumi demoníaco se
inclinou, baixando sua voz para um sussurro áspero. — Se você acha
que pode me impedir, Yumeko-chan, eu a encorajo a dar o seu
melhor. O jogo apenas começou.
Recuando, ele se agachou e então saltou no ar, subindo no
telhado do castelo. Outro salto o levou ainda mais alto, uma sombra
negra se afastando cada vez mais. Por um momento, ele parou na
torre mais alta, uma figura com chifres em silhueta contra a lua, sua
crina selvagem ondulando atrás dele, antes de cair para o outro lado
do castelo e ir embora.

Após alguns minutos de busca, encontramos nossos


companheiros desaparecidos. O ronin estava enterrado sob a torre de
vigia destruída, preso por vigas, mas lutando debilmente para se
libertar. Milagrosamente, apesar de um grande hematoma roxo em
sua testa e vários cortes em seus braços e pernas, ele não parecia
gravemente ferido.
— Você tem a sorte dos próprios kami. — Reika murmurou,
parecendo relutantemente impressionada enquanto enrolava tiras de
pano em torno de seus muitos cortes. — Isso, ou sua cabeça é mais
dura do que uma bala de canhão.
— Há, minha cabeça dura é infame. — disse Okame com
orgulho, batendo os nós dos dedos contra o crânio. — Nada passa por
isso.
— Não tenho certeza se você deve se gabar disso.
Taiyo Daisuke era outro assunto. Depois de vasculhar o campo
de batalha, Chu finalmente nos levou a um canto isolado do pátio. O
nobre estava ajoelhado nas pedras em uma poça de sangue, a cabeça
baixa e o queixo apoiado no peito. Ele estava cercado por armas
quebradas e pedaços de armadura, e ainda segurava a espada com
força em uma das mãos.
Uma figura fantasmagórica estava ao lado dele, uma garota em
vestes simples, seu cabelo amarrado atrás dela. Erguendo a mão, ela
tocou o lado de seu rosto, um sorriso melancólico cruzando seus
lábios, antes de estremecer no nada. Uma esfera branca brilhante, a
luz que nos levou ao Mestre Jiro, surgiu de onde ela estava e se
afastou pela parede.
— Daisuke-san. — Funguei quando Chu se aproximou do nobre
caído, orelhas em pé em uma expectativa esperançosa. — Você pode
me ouvir? Você ainda está vivo?
O corpo do samurai não se moveu. Engoli o aperto na garganta e
estava prestes a voltar para encontrar os outros quando Chu gemeu e
enfiou o nariz sob a mão vazia do nobre.
Trêmulo, ele se ergueu, como se estivesse preso a um barbante,
para dar um tapinha entre as orelhas do cachorro. Eu engasguei, e o
samurai levantou a cabeça, apertando os olhos contra a escuridão.
— Yu... meko-san. — Ele murmurou, enquanto eu soltava uma
respiração instável. — Você está bem. Você encontrou... Mestre Jiro?
Eu balancei a cabeça em silêncio, e ele relaxou. — Yokatta. — Ele
sussurrou, uma expressão de alívio. — Mas... e o demônio? Onde...
está Kage-san?
O peso no meu peito ficou maior. — Foi embora. — Eu disse
calmamente. — Yaburama está morto, mas Tatsumi... não está mais
aqui.
— Então... eu falhei. — O nobre baixou a cabeça. — Eu não pude
protegê-lo.
— Não. — Eu disse a ele, e o nobre ergueu os olhos
bruscamente. — Ele não está morto, Daisuke-san. Yaburama não
conseguiu vencê-lo. Não é com isso que temos que nos preocupar
agora. Tatsumi é...
Um demônio. Um ainda pior que Yaburama. E é minha culpa.
— Perdoe-me, Yumeko-san. — disse Daisuke, ainda
semicerrando os olhos para mim. — Ou levei uma pancada na cabeça
ou estou alucinando com a perda de sangue, mas essas são... desculpe
minha grosseria... orelhas?
— Sim, ela é kitsune. — Veio uma voz feminina exasperada, e
Reika caminhou para o meu lado, um ronin enfaixado logo atrás
dela. — Ela tem sido kitsune o tempo todo que vocês a conhecem,
vocês dois. Isso não é nada novo e, no momento, temos questões
maiores com que nos preocupar. Taiyo-san... — Ela olhou para
Daisuke, seu rosto suavizando um pouco em simpatia. — Nós vamos
precisar cuidar de suas feridas. Você aguenta?
Daisuke, ainda olhando para minhas orelhas, balançou a cabeça
dolorosamente e então estremeceu. — Dê-me apenas um momento.
Abruptamente, Okame deu um passo à frente, ergueu o braço do
nobre ao redor de seus ombros e puxou-o para cima. Daisuke apertou
a mandíbula, cerrando os dentes de dor, e o ronin se preparou até que
o nobre se pôs de pé.
— Okame-san. — Ele murmurou quando recuperou o equilíbrio,
ainda encostado no ronin. — Estou... feliz em vê-lo ileso. Perdoe
minha fraqueza. Estou com vergonha de não ter podido ajudar você
ou Tatsumi-san.
O ronin bufou. — Eu não vi muito depois que aquele bastardo
oni derrubou a torre. — Ele respondeu. — Mas me parece que você
cortou todo um tesouro de mordedores de tornozelo por conta
própria. Não sei como você conseguiu, mas isso não soa como um
fraco para mim.
O nobre deu um leve sorriso. — Arigatou gozaimasu.
Okame suspirou, olhando para mim e para a donzela do
santuário. — Então. — Ele disse com alegria forçada. — Yumeko-chan
é uma kitsune, o sacerdote está salvo e, aparentemente, Kage-san
enlouqueceu, esculpiu o oni em pequenos pedaços e saiu
correndo. Grande noite. Está faltando alguma coisa?
— Dama Satomi. — Reika disse. — Não vamos esquecê-
la. Ainda não temos ideia de onde ela está ou o que está
fazendo. Certamente, ela nos atraiu aqui para nos matar, mas agora
que encontramos Mestre Jiro, ela provavelmente atacará
novamente. Precisamos encontrar uma maneira de sair daqui,
rapidamente.
— Concordo. — disse uma nova voz, de Mestre Jiro, enquanto
ele pisava em pilhas de entulho e pedaços de armadura. Ko estava ao
seu lado, e o sacerdote chefe parecia sério ao se juntar a nós. — Não há
tempo. Nós devemos...
Suas pernas tremeram e ele quase caiu, fazendo Reika agarrar
seu braço. Peguei um balde de madeira da terra e o coloquei de cabeça
para baixo na frente dele, e o sacerdote se abaixou sobre ele com um
gemido. Por um momento, ele ficou sentado lá, respirando com
dificuldade, então ergueu a cabeça.
— O tempo está contra nós. — Mestre Jiro ofegou, olhando ao
redor para todos nós, embora seu olhar permanecesse em mim. —
Kitsune... — Ele fez uma pausa. — Yumeko-san... você tem o
pergaminho do dragão?
Eu balancei a cabeça, me sentindo entorpecida por dentro e por
fora. — Sim, Mestre Jiro.
Seus olhos se estreitaram. — Você deve levá-lo ao templo Pena
de Aço. Os monges lá irão protegê-lo. Nada mais importa, exceto levar
o pergaminho ao templo, entendeu? O dragão não pode ser
convocado a este mundo novamente. Reika-chan... — Ele continuou,
fazendo a donzela do santuário se endireitar. — Nós iremos com
ela. Protegê-la na jornada. Não devemos deixar o pergaminho cair nas
mãos do mal como Dama Satomi.
— Sim, Mestre Jiro. — A donzela do santuário fez uma
reverência. — Compreendo.
— Ei, não se esqueça de nós. — O ronin interrompeu. — Eu vim
até aqui, lutei contra demônios e magos de sangue, e acabei de ser
chutado por um oni. Eu sinto que ganhei o direito de continuar com
Yumeko-chan, pelo menos até chegarmos a este templo Pena de Aço
ou onde quer que ela vá.
— De fato. — A voz de Daisuke estava tensa de dor, mas
resolvida. — Eu também irei acompanhar Yumeko-san. Para
compensar meu fracasso em proteger Kage-san, minha lâmina estará
ao lado dela até que minha dívida seja paga. Isso eu juro.
— Vou levar o pergaminho ao templo. — disse ao sacerdote. —
Eu já prometi fazer isso. Mas... — Minha garganta se apertou e
respirei fundo para abri-la. — Tatsumi. — Eu sussurrei. — Podemos
salvá-lo? O demônio pode ser expulso?
Mestre Jiro baixou a cabeça. — Para responder a essa pergunta...
— ele começou. — Você deve saber com quem está lidando e a
história sangrenta que está ligada a isso. — Ele olhou para Daisuke,
ainda encostado no ronin, e sua boca se apertou. — As feridas de
Taiyo-san devem ser tratadas. — Afirmou. — E Dama Satomi ainda
pode estar por perto, sem mencionar Hakaimono. Devemos fugir. Mas
quando estivermos seguros, contarei a história do Clã das Sombras, a
oração do Dragão, uma mulher chamada Dama Hanshou e a espada
amaldiçoada chamada Kamigoroshi que está amarrada a todos eles.

Epílogo
No palácio dourado do imperador, tudo estava quieto. A festa de
Visualização da Lua foi esplêndida e todos voltaram para seus quartos
com uma sensação de satisfação. Ou, pelo menos, na agradável névoa
do álcool. O imperador, especialmente, dormia profundamente em
seu futon em um torpor induzido pelo saquê, seu sono livre de sonhos
e pesadelos que o atormentavam ultimamente.
Nos apartamentos luxuosamente mobiliados da ala real, em um
quarto envolto em sombras, um espelho de corpo inteiro brilhou, e a
forma sorridente de Dama Satomi passou pelo vidro. Tirando a sujeira
imaginária de suas vestes, ela caminhou até a escrivaninha, sentou-se
no banquinho e acendeu a vela. Ela então abriu a gaveta de baixo e
removeu um objeto embrulhado em tecido de seda, colocou-o sobre a
mesa e removeu a cobertura.
A caveira nua olhou para ela, as órbitas vazias escuras e
cegas. Enquanto Satomi esperava, eles ganharam vida, iluminados
com um brilho púrpura maligno que lançava sombras misteriosas
sobre as paredes de papel de arroz. Satomi abaixou a cabeça em uma
reverência.
— Tudo está indo como planejado, mestre. — Ela disse em um
murmúrio baixo. — Yaburama deve ter matado o menino agora e
pegado o pergaminho. O sacerdote dirá aos sobreviventes onde o
templo Pena de Aço está localizado, e nós simplesmente os
seguiremos até que cheguem lá. Então, a segunda peça também será
sua.
As chamas nas órbitas do crânio pulsaram e um sussurro rouco
emergiu entre seus dentes amarelos sorridentes. — Temo que você
possa ter subestimado o assassino de demônios Kage, Dama Satomi.
— ele respirou. — Yaburama é um dos oni mais fortes de Jigoku, e é
por isso que o chamei para você. Mas Hakaimono é um verdadeiro
monstro. Se ele aparecer, se Yaburama não conseguir matar o garoto
rápido o suficiente, então você pode ter outro problema em suas
mãos.
— Você não precisa se preocupar, mestre. — Satomi sorriu. —
Tudo está sob controle. Em breve, você terá as duas últimas peças da
oração do Dragão, nós convocaremos a besta e você governará este
país como deveria.
— E você não vai se voltar contra mim, como fizeram todos antes
de você?
— Claro que não, mestre! — Satomi colocou a mão no peito,
parecendo horrorizada. — Eu sou sua serva leal. Tudo o que faço, faço
pelo seu retorno glorioso.
A luz nos olhos do crânio desbotou, tornando-se leves pontadas
contra o preto. — Certifique-se de lembrar quem é seu mestre, Dama
Satomi. — A voz rouca, ficando mais fraca com a luz. — Você é uma
maga de sangue talentosa, mas substituível como qualquer mortal, e
eu tenho um exército de yokai e demônios que atenderão ao meu
chamado. Não me desaponte. Vou aguardar notícias de seu sucesso.
Satomi deu um sorriso e uma pequena reverência e, quando
levantou a cabeça, a luz nos olhos da caveira havia se apagado e ela
estava sozinha.
Conforme o brilho desapareceu e a escuridão voltou, o sorriso de
Satomi desapareceu, substituído por uma raiva trêmula.
— Você se acha tão inteligente, mestre. — Ela sussurrou para o
crânio. — Mas apenas uma alma mortal pode convocar o Dragão, e
seu exército de demônios não pode chamar o Precursor para
você. Quando chegar a hora de falar o desejo, não será para o seu
retorno glorioso, posso prometer isso.
Sorrindo de novo, ela se levantou da mesa, se virou e ficou cara a
cara com sua criada.
— Você? — Uma carranca irritada escureceu instantaneamente
seu rosto. Ela tentou se lembrar do nome da garota mais nova e
falhou. — Eu não chamei por você. O que você está fazendo aqui, sua
coisa inútil?
Os olhos da garota se ergueram para encontrar os dela,
brilhando em ouro na escuridão, pouco antes de enfiar a lâmina de
uma espada no peito de Dama Satomi.
A boca de Satomi se abriu. Atordoada, ela olhou para o
comprimento de aço brilhante em seu peito, para o sangue começando
a fluir nas bordas. Um fio vermelho escorreu de seus lábios,
escorrendo pelo pescoço, e ela ergueu os olhos para o rosto de sua
criada.
O canto da boca da garota se curvou em um sorriso
malicioso. Houve uma explosão silenciosa de fumaça branca, e
quando ela clareou, um homem estava diante dela, sua lâmina ainda
afundada em seu meio. Ele era lindo; seus longos cabelos do prata
mais brilhante, como metal polido, seus olhos um ouro preguiçoso.
— Boa noite, Dama Satomi. — O lindo estranho disse, sua voz
baixa e fria. — Eu acredito que você fez o suficiente para uma era.
— Você... — Satomi engasgou, finalmente reconhecendo-o. —
Você é...
Ele puxou a espada e a decapitou em um movimento suave e
cegante. O sangue respingou na parede e no aglomerado de grous
dobrados sobre a mesa, e a cabeça de Satomi atingiu o chão com um
baque abafado. Sua última expressão, enquanto o crânio rolava
lentamente pelas tábuas, era de choque.
De pé no quarto da mulher assassinada, sentindo os olhos frios
da caveira em suas costas, o estranho sorriu.
— Receio não poder permitir que o menino morra ainda. — Ele
murmurou, enquanto o sangue do cadáver de Satomi se espalhava
pelo chão, escorrendo pelas rachaduras. — E a meia raposa é...
interessante. Eu me pergunto se ela será forte o suficiente para trazer o
demônio assassino de volta? — Ele riu para si mesmo em diversão. —
Hakaimono ainda pode encontrar seu adversário neste jogo. Suponho
que teremos que esperar e ver o que ela faz.
— Mestre?
Seigetsu olhou para baixo quando um pequeno yokai, uma
figura do tamanho de uma criança com um único olho enorme no
centro do rosto, entrou no quarto. Olhando para o cadáver sem
cabeça, ele torceu o nariz e olhou para ele.
— Os guardas estão se aproximando, mestre. Devemos fugir
enquanto podemos.
— Vá então. — Seigetsu disse. — Não espere por mim. Eu me
juntarei a você quando terminar.
O pequeno yokai fez uma reverência e saiu correndo,
desaparecendo pela porta, e Seigetsu ficou sozinho.
Seu olhar se moveu para um canto do quarto, para o espelho de
corpo inteiro e a figura fantasmagórica de uma garota pairando diante
dele. Uma sobrancelha prateada se arqueou e seus lábios se curvaram
em um sorriso lento.
— Satomi está morta. — Ele disse ao fantasma, que o observou
com grandes olhos claros. — Se você está demorando aqui para se
vingar, você pode seguir em frente. Minha tarefa está cumprida. —
Ele sacudiu o sangue de sua lâmina, embainhou-a e se virou. — Quem
quer que você fosse... — disse ele, caminhando até a porta. — Espero
que você encontre paz. Sayonara. — Sua forma esguia passou pelo
batente da porta, na varanda externa, e desapareceu de vista.
O fantasma de Suki brilhou, tornando-se uma bola de luz
brilhando suavemente. Por um momento, hesitou, flutuando sobre o
chão e a chocada e sangrenta cabeça de Dama Satomi, lançando em
suas feições um brilho pálido. Então ela se ergueu no ar e voou
rapidamente para fora da porta, seguindo o belo homem pela
varanda, e ambos desapareceram na noite.
Glossário
amanjaku: demônios menores de Jigoku.
arigatou: obrigado.
ayame: íris.
baba: um título honorífico usado para uma mulher idosa.
baka/bakamono: tolo, idiota.
chan: um título honorífico usado principalmente para mulheres
ou crianças.
chochin: lanterna de papel pendurada. .
daimyo: senhor feudal.
Doroshin: Kami, o Deus das estradas.
furoshiki: um pano usado para amarrar os pertences de uma
pessoa para facilitar o transporte.
gaki: fantasmas famintos.
geta: tamancos de madeira.
gomen: um pedido de desculpas, desculpe.
hai: uma expressão de reconhecimento, sim.
hakama: calças plissadas.
hannya: um tipo de demônio, geralmente mulher.
haori: casaco quimono.
hitodama: a alma humana.
inu: cachorro.
ite: ai.
Jigoku: o Reino do Mal, inferno.
Jinkei: Kami, o Deus da Misericórdia.
jorogumo: um tipo de aranha yokai.
Kaeru: sapo de cobre, moeda de Iwagoto.
kago: palanquin.
kama: foice.
kamaitachi: yokai, fuinha.
Kami: deuses maiores, as nove divindades nomeadas de
Iwagoto.
kami: deuses menores.
karasu: corvo.
katana: espada.
kawauso: lontra de rio.
kitsune: raposa yokai.
kitsune-bi: fogo de raposa.
kodama: kami, um espírito da árvore.
konbanwa: boa noite.
kunai: faca de arremesso.
kuso: um palavrão comum.
mabushii: uma expressão que significa "tão brilhante", como o
brilho do sol.
majutsushi: mago, usuário de magia.
Meido: o Reino da Espera, onde a alma viaja antes de renascer.
miko: uma donzela de santuário.
mino: capa de chuva de palha trançada.
nande: uma expressão que significa "por que".
nani: uma expressão que significa "o quê?".
netsuke: uma peça de joalheria entalhada, usada para prender o
cordão de uma bolsa de viagem ao obi.
nezumi: yokai, rato.
Ningen-kai: o reino mortal.
nogitsune: uma raposa yokai selvagem malvada.
obi: faixa.
ofuda: talismã de papel com habilidades mágicas.
ohayou gozaimasu: bom dia.
Ojinari: Kami, Deus da Colheita.
omachi kudasai: por favor, aguarde.
omukade: uma centopeia gigante.
oni: demônios semelhantes a ogros de Jigoku.
onikuma: um urso demônio.
onmyodo: uma magia oculta com foco principalmente em
adivinhação e leitura da sorte.
onmyoji: praticantes de onmyodo.
onryo: yurei, um tipo de fantasma vingativo que causa
maldições terríveis e infortúnios para aqueles que o erram.
oyasuminasai: boa noite.
ryokan: uma pousada.
Ryu: dragão de ouro, moeda de Iwagoto.
sama: um título honorífico usado ao se dirigir a uma das mais
altas posições.
san: um título honorífico formal frequentemente usado entre
iguais.
sansai: planta selvagem comestível.
saquê: bebida alcoólica feita de arroz fermentado.
seg: emblema da família ou brasão.
sensei: professor.
seppuku: suicídio ritual.
shinobi: ninja.
shogi: um jogo tático semelhante ao xadrez.
shuriken: estrela ninja.
sumimasen: me desculpe, com licença.
tabi: meias ou botas com dedos separados.
Tamafuku: Kami, o Deus da Sorte.
tanto: faca curta.
tanuki: yokai, pequeno animal semelhante a um guaxinim,
nativo de Iwagoto.
tatami: esteiras de bambu.
tetsubo: grande clube de duas mãos.
Tocado por kami: aqueles que nascem com poderes mágicos.
tora: tigre de prata, moeda de Iwagoto.
ubume: yurei, um tipo de fantasma que morreu no parto.
usagi: coelho.
wakizashi: lâmina pareada mais curta para a katana.
yamabushi: sacerdote da montanha.
yojimbo: guarda-costas.
yokai: uma criatura com poderes sobrenaturais.
yurei: um fantasma.
zashiki warashi: yurei, um tipo de fantasma que traz boa sorte
para a casa que assombra.

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