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Sumário

SINOPSE
Parte Um
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Parte Dois
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Parte Três
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Epílogo
Glossário
SINOPSE
Mil anos atrás, um desejo foi feito e uma espada de raiva e
relâmpago foi forjada. Kamigoroshi. A Assassina de Deuses. Uma
arma poderosa o suficiente para selar o formidável demônio
Hakaimono.

E agora ele se libertou.


A kitsune Yumeko tem uma tarefa: levar seu pedaço do antigo e
poderoso Pergaminho das Mil Orações para o templo Pena de Aço a
fim de evitar a convocação do Precursor da Mudança, o grande
Dragão Kami que concederá um desejo a quem quer que possua o
pergaminho. Mas ela tem um novo inimigo agora, mais perigoso do
que qualquer um que já enfrentou. O demônio Hakaimono está
finalmente livre, e ele possui a mesma pessoa em que Yumeko
confiava para protegê-la do mal, Kage Tatsumi do Clã das Sombras.

Hakaimono tem apenas um objetivo: quebrar a maldição da


espada e se libertar para fazer chover o caos e a destruição sobre a
terra para sempre. Para fazer isso, ele precisará do pergaminho. E
Yumeko é a única que está em seu caminho.
Parte Um
Capítulo 1
Nascimento de uma Assassina
de
Deuses
Mil anos atrás.

Sua garganta estava dolorida de gritar orações ao vento.


A tempestade se abateu sobre ele, atingindo os penhascos e
enviando jatos de água do oceano contra a rocha. A noite estava
escura como breu, suas roupas encharcadas estavam geladas, e ele mal
conseguia se ouvir por cima do uivo do vento e do barulho do
mar. Ainda assim, ele continuou entoando, o pergaminho agarrado
com força por mãos trêmulas, a lamparina tremeluzindo loucamente a
seus pés. Sua visão ficou turva com o respingo de sal e as lágrimas,
mas sua voz nunca vacilou enquanto ele gritava cada linha do
pergaminho amassado como se fosse um desafio para os próprios
deuses.
Gritando a oração final, deixando o vento arrancá-la de seus
lábios e jogá-la sobre o oceano, ele caiu de joelhos nas
pedras. Ofegante, ele abaixou a cabeça, os braços caindo molemente
para os lados, o pergaminho aberto tremulando em suas mãos.
Por vários batimentos cardíacos desesperados e acelerados, ele se
ajoelhou ali, sozinho. A tempestade rugia ao redor dele, cortando e
arranhando com garras espumosas. Suas feridas, sofridas por lutar
contra uma horda de demônios para chegar a este lugar, latejavam. O
sangue escorria por seu peito e braços sobre o pergaminho,
manchando-o de rosa.
Muitos metros mar adentro, o oceano se agitou. As ondas
surgiram e turvaram, e a superfície da água começou a se levantar
como se algo monstruoso estivesse se movendo logo abaixo.
Com uma explosão de água e o uivo de um deus, uma forma
enorme e escura surgiu das profundezas e se enrolou na noite. Raios
brilharam, iluminando chifres enormes, presas e escamas brilhantes
da cor da maré. Uma crina ondulante descia por todo o comprimento
das costas da criatura, e um par de bigodes tão longos quanto um
navio se contorcia e balançava ao vento enquanto o Grande Dragão se
enrolava no céu, fluindo para dentro e para fora das nuvens. Um par
de olhos como luas brilhantes espiou para a pequena figura abaixo, e
uma pérola perfeita e iridescente brilhando como uma estrela no
centro de sua testa. Com o estrondo de um tsunami se aproximando, o
kami falou.
— Quem me chama?
Cerrando a mandíbula, o homem ergueu a cabeça. Seu coração
tremia com o conhecimento de que ele não deveria olhar com tanta
ousadia para um deus, o próprio Precursor da Mudança, mas o
desespero e o ódio profundo em sua alma afogaram qualquer outra
emoção. Engolindo a dor da garganta crua de gritar, ele ergueu a voz.
— Eu sou Kage Hirotaka, filho de Kage Shigetomo, e sou o
mortal que invocou o poder da oração do Dragão. — Sua voz fina e
rouca desapareceu com o vento, mas a enorme criatura inclinou a
cabeça, ouvindo. O olhar desumano, que carregava a sabedoria da
eternidade, encontrou o seu, e de repente ele sentiu como se estivesse
caindo em um abismo sem fundo.
O guerreiro colocou as mãos no chão diante dele e se curvou,
tocando a testa na pedra áspera, sentindo o olhar do Dragão em suas
costas. — Grande Kami. — Ele sussurrou. — Pelo meu direito como
portador do pergaminho, nesta noite, o milésimo ano após Kage
Hanako ter feito seu pedido sobre o pergaminho, eu humildemente
peço que você conceda o desejo do meu coração.
— Mais uma vez, um Kage me chama. — A voz profunda e
estrondosa não parecia divertida nem surpresa. — Mais uma vez, o
Clã das Sombras brinca com as trevas e tem o destino do reino em
suas mãos. Que assim seja. — Raios brilharam e estrondos de trovões
sacudiram as nuvens, mas a voz do Grande Dragão se elevou acima
de tudo. — Kage Hirotaka, filho de Kage Shigetomo, portador do
pergaminho do Dragão, qual é o desejo do seu coração? Que desejo
você veria se realizar?
— Vingança.
A palavra foi quase inaudível, mas o ar pareceu parar enquanto
ele a falava. — Minha família foi morta por um demônio. — O
guerreiro continuou, sentando-se lentamente. — Ele massacrou todo
mundo. Meus homens e servos estavam espalhados de uma ponta à
outra da casa. Minha esposa... meus filhos... não deixou nenhum
pedaço para enterrar. — Ele fechou os olhos, tremendo de dor e
raiva. — Eu não pude salvá-los. — Ele sussurrou. — Voltei para casa
para encontrar um massacre.
O observador frio e indiferente que esperava nas nuvens nada
disse. A mão do guerreiro desviou-se para a espada em seu cinto e
seus dedos se enrolaram em torno da bainha. — Eu não o quero
morto. — Ele murmurou, sua voz embargada de ódio. — Não por um
simples desejo. Vou matar o monstro sozinho, enfiar minha espada
em seu coração negro para vingar meu clã, minha família, minha
esposa. — Sua voz tremeu e os nós dos dedos em volta de sua espada
ficaram brancos. — Mas quando ele morrer, não quero que seu
espírito volte para Jigoku. Eu quero prendê-lo aqui, neste reino. Para
conhecer a dor, a raiva e o desamparo. Para entender que não há
alívio, não há maneira de voltar como o demônio que era. — O
guerreiro mostrou os dentes. — Eu quero que ele sofra. Por toda a
eternidade. Esse é o meu desejo.
Acima, o Grande Kami espiava através da tempestade,
relâmpagos brilhando em suas escamas azul-escuras. — Uma vez
falado. — Ele rugiu, sua voz tão impassível como sempre. — Não há
como voltar atrás. — Ele inclinou a cabeça, aqueles bigodes
infinitamente longos tremulando ao vento. — Tem certeza de que este
é o desejo do seu coração, mortal?
— Sim.
O trovão rugiu, e o vento se intensificou, gritando enquanto
batia contra o guerreiro e a rocha. O dragão pareceu desaparecer na
tempestade até que apenas seus olhos e uma joia cintilante brilharam
na escuridão. Em seguida, eles também desapareceram na escuridão, à
medida que as nuvens giravam cada vez mais rápido, até que se
assemelhavam a um grande redemoinho no céu.
Uma faixa ofuscante de branco desceu de cima, atingindo o
centro da rocha, a poucos metros de onde o guerreiro estava
ajoelhado. O samurai se encolheu e protegeu o rosto enquanto
fragmentos de pedra voavam por toda parte, cortando sua carne onde
atingiram. Quando o brilho desapareceu, ele olhou para cima e
apertou os olhos dolorosamente enquanto sangue e água corriam em
seus olhos. Por um momento, ele pôde distinguir apenas um brilho
fino e brilhante contra a escuridão. Então seus olhos se arregalaram e
ele olhou com admiração para o que o relâmpago havia deixado para
trás.
Uma espada estava de pé em uma cratera fumegante, a ponta
cravada na pedra, sua lâmina brilhando contra a escuridão. Um poder
quase faminto pulsava da espada, como se estivesse viva.
Esquecendo os ferimentos, o samurai Kage se levantou e
caminhou com as pernas trêmulas até a arma, que brilhava fracamente
contra o negro, como se alimentada por sua própria luz interior.
— Está feito. — A declaração estrondosa continha a finalidade
da morte, de uma espada cortando a vida de um corpo. Embora a
poderosa serpente quase tenha se transformado em lenda mais uma
vez, sua voz ecoou pela tempestade. — Que seja conhecido, o desejo
desta era foi falado, e os ventos de mudança tomaram seu
caminho. Que nenhum mortal invoque o poder do pergaminho por
mais mil anos. Se este reino sobreviver ao que está por vir.
— Espere! Grande Kami, como devo chamá-la? — O guerreiro
estendeu a mão e tocou o punho da espada, sentindo um tremor subir
por seu braço. — Ela tem um nome?
O guerreiro sentiu o dragão escorregar do mundo como uma
enguia escorregando por uma rede, retornando ao seu reino bem
abaixo das ondas. Um último estrondo de um trovão rolou para o
mar, e no eco do vento, ele ouviu a palavra final do kami.
— Kamigoroshi.
Kage Hirotaka ficou sozinho na plataforma deserta de rocha,
vento e respingos ainda chicoteando ao redor dele, e sentiu um sorriso
selvagem cruzar seu rosto. Kamigoroshi.
Assassina de Deuses.
Capítulo 2
O demônio do Kage
Yumeko

Silencio caiu quando Mestre Jiro terminou seu conto.


— Aquele demônio. — eu disse, enquanto o sacerdote pegava
um cachimbo de madeira perto da fogueira. — Aquele que matou a
família de Hirotaka. Era ele...
Mestre Jiro assentiu e enfiou a ponta do cachimbo na boca. —
Hakaimono.
Estremeci e, em torno da fogueira, o resto do pessoal parecia
solene. Tínhamos nos abrigado ao lado de um riacho gotejante,
rodeado por pinheiros desgrenhados e sequoias altas, e o ar estava
tingido de seiva e um leve toque de geada, pois ainda estávamos
muito perto das montanhas que delimitavam o território do Clã do
Céu. O verão estava terminando e os dias estavam esfriando à medida
que o outono ocupava o seu lugar.
Okame estava sentado contra uma sequoia musgosa, olhando
para as sombras com as costas contra o tronco e um pé plantado em
uma raiz. A luz do fogo tomou conta dele, acentuando sua forma
magra e esguia, cabelo castanho-avermelhado preso em um rabo e
rosto estreito estranhamente sombrio. O ronin normalmente alegre e
franco estava quieto enquanto olhava para o leito do rio, seus olhos
escuros.
— Então, Kamigoroshi passou a existir através do Desejo do
Dragão. — Taiyo Daisuke meditou. O nobre do Clã do Sol estava
sentado de pernas cruzadas contra um tronco e exibia uma expressão
de serenidade estoica. Do outro lado do fogo, Reika lançou-lhe um
olhar exasperado. Os braços do nobre estavam envoltos em
bandagens e tiras de pano ensanguentado apareciam por baixo de seu
manto, lembranças de nossa última batalha terrível. Ele não deveria
estar acordado, Reika repreendeu no início desta noite. Ele deveria
estar deitado, descansando, antes que abrisse as feridas que ela passou
a noite costurando e fechando. Mas Daisuke insistiu que ele estava
bem. Mesmo com seu outrora lindo quimono rasgado e sujo, sua pele
pálida e seus longos cabelos branco-prateados caindo molemente nas
costas, ele emanava postura e elegância.
— Sim. — Mestre Jiro confirmou. — Porque Hirotaka queria
vingança contra o oni que matou sua família e a mulher que ele
amava. Uma forma não apenas de destruir o demônio, mas de fazê-lo
sofrer, de conhecer a dor, a raiva e o desamparo. Ele realizou seu
desejo. Não muito depois de convocar o Dragão, Kage Hirotaka
enfrentou Hakaimono no campo de batalha e, após uma luta terrível
que quase varreu uma aldeia, conseguiu matar o demônio. Mas ao
invés de banir o oni de volta para Jigoku, Kamigoroshi selou a alma
do oni dentro da lâmina, prendendo-o para a eternidade.
— Infelizmente... — Mestre Jiro continuou. — Esse foi o começo
da queda dos Kage. O demônio deixou Hirotaka louco. Não o possuía,
talvez sua influência ainda fosse muito fraca, ou talvez ainda não
soubesse que poderia fazer tal coisa. Mas, aos poucos, ele quebrou a
resolução de Hirotaka, usando sua raiva e tristeza persistentes para
dominá-lo. Até uma noite, quando Hirotaka finalmente se perdeu e
mudou o curso dos Kage para sempre.
Daisuke se mexeu, a compreensão cruzando seu rosto. — O
massacre no castelo Hakumei. — disse ele, olhando para o
sacerdote. — O tratado interrompido entre os Hino e os Kage.
— Um estudioso da história. — Mestre Jiro acenou com a cabeça
em aprovação. — Sim, Taiyo-san, você está correto. Na primavera
seguinte, houve uma reunião entre os líderes do Clã do Fogo e do Clã
das Sombras, para discutir um casamento entre as duas famílias. A
rivalidade entre os Hino e os Kage estava crescendo fora de controle, e
a guerra era iminente se um acordo não pudesse ser alcançado. O
tratado nunca aconteceu. Em uma sala cheia de diplomatas
desarmados e cortesãos, com um tufão uivando do lado de fora, Kage
Hirotaka apareceu e massacrou todos os membros do Clã do
Fogo. Nem um único Hino sobreviveu naquela noite.
— Esse foi o início da segunda Grande Guerra. — Afirmou
Daisuke. — Após o massacre no castelo Hakumei, os Hino juraram
varrer os Kage da existência, e eles reuniram o Clã da Terra e o Clã do
Vento para sua causa. Os Kage se voltaram para os clãs da Água, do
Céu e da Lua em busca de ajuda, e a guerra resultante durou quase
duzentos anos.
— Quase destruindo os Kage no processo. — Mestre Jiro acenou
com a cabeça novamente. — Porque um homem fez um pedido ao
pergaminho do dragão com ódio em seu coração e, sem saber,
convidou um demônio para entrar em sua alma.
— Essa é a história de Kamigoroshi e a oração do Dragão. —
Mestre Jiro soprou uma longa onda de fumaça que se contorceu sobre
minha cabeça. — Agora você sabe como a espada foi criada e como o
Desejo do Dragão, por mais bem intencionado que fosse, trouxe ruína
e desastre para o império.
— É por isso que o pergaminho foi dividido em pedaços. —
Reika acrescentou. A donzela do santuário também estava sentada no
chão com as pernas cruzadas, as mangas brancas onduladas de seu
haori dobradas contra o peito. Chu e Ko, um par de cachorros
pequenos que na verdade eram os guardiões do santuário,
os komainu, estavam aninhados em seu colo, cochilando nas suas
calças hakama vermelhas. — Ninguém sabe os detalhes exatos, mas
dizem que enquanto a guerra continuava, um conselho de kami, yokai
e uma ordem de monges se reuniram para discutir o que aconteceria
com a Oração do Dragão. Eles tomaram a decisão de separar o
pergaminho e esconder as peças em Iwagoto para que algo como o
último desejo nunca pudesse acontecer novamente. — Os lábios de
Reika se estreitaram. — Foi a escolha certa. O pergaminho tem poder
demais para uma única pessoa ser confiável com ele. Veja o caos e a
destruição que já causou nesta era, e o Dragão ainda nem foi
convocado.
Do outro lado do fogo, Okame bufou. — Então, se o pergaminho
é tão perigoso, por que não o destruímos? — ele perguntou com um
encolher de ombros. — Parece uma solução fácil para mim. Jogue a
coisa no fogo agora e vamos acabar com isso.
— Não é tão fácil. — disse Reika. — E já foi tentado antes. Mas a
oração do Dragão é um artefato sagrado, um presente, ou maldição, se
você quiser ver dessa forma, do próprio Precursor da Mudança. Muito
parecido com Kamigoroshi, se você destruir a oração do Dragão, ela
simplesmente reaparecerá no mundo novamente. Sempre em um
lugar onde não será apenas descoberto, mas para uma pessoa que
invocará infalivelmente o Dragão e fará um pedido. — Os olhos da
miko se estreitaram. — O pergaminho quer ser encontrado, Okame-
san. É por isso que é tão perigoso. Se o destruirmos agora, ele pode
reaparecer nas mãos das mesmas pessoas de quem estamos tentando
mantê-lo longe.
Okame resmungou. — É por isso que não confio em magia. —
Ele murmurou, recostando-se na árvore. — Objetos inanimados, como
espadas e pergaminhos, não deveriam querer ser encontrados. Eles
não deveriam querer nada. Seria irritante se minhas sandálias
decidissem que não queriam mais me carregar e vagassem para a
floresta? — Seus afiados olhos negros se voltaram para mim. — Não
tenha ideias, Yumeko-chan.
Eu ri com a imagem, mas fiquei séria rapidamente. — O que
aconteceu com Hirotaka? — Eu me perguntei, olhando para Mestre
Jiro. — Ele alguma vez recuperou o controle de Hakaimono?
O sacerdote abanou a cabeça. — Kage Hirotaka foi capturado e
executado por seu clã, muito antes do fim da guerra. — respondeu
ele. — Naquela época, ele estava morto demais, e seus crimes muito
grandes, para ter qualquer esperança de redenção. Kamigoroshi, ou a
Lâmina Amaldiçoada dos Kage, como viria a ser conhecida, foi selada
e desapareceu da história por seis séculos. Mas esses artefatos do mal
não podem ficar escondidos para sempre. Quatrocentos anos atrás, ela
ressurgiu junto com a vinda de Genno, o Mestre dos Demônios,
quando Hakaimono escapou da espada para possuir seu
portador. Não está claro se Genno orquestrou a libertação do
demônio, ou se Hakaimono simplesmente tirou vantagem do caos que
veio com a revolta, mas Kamigoroshi mais uma vez abriu um caminho
sangrento pela história até que o mago de sangue e sua rebelião
fossem derrotados.
— Após a morte de Genno... — Mestre Jiro continuou. — Seu
exército de demônios e yokai se espalhou ao vento, e a terra ficou um
caos. Kamigoroshi desapareceu novamente por um tempo, mas então,
o primeiro matador de demônios Kage emergiu, capaz de empunhar a
Lâmina Amaldiçoada sem ser imediatamente vítima de Hakaimono.
— Ele balançou a cabeça, soltando uma nuvem de fumaça branca. —
Não se sabe como o Clã das Sombras treinou seus matadores de
demônios para proteger suas almas contra a influência do demônio,
mas os Kage sempre caminharam à beira da escuridão, sabendo que
flertam com o desastre. E agora eles caíram nisso mais uma
vez. Hakaimono foi libertado, e a terra não estará segura até que Kage
Tatsumi seja morto e o demônio retorne à espada.
Eu me endireitei, meu estômago revirando enquanto eu olhava
para ele sobre o fogo. — Morto? — Eu repeti, quando o olhar triste do
sacerdote encontrou o meu. — Mas... e quanto a Tatsumi? Eu sei que
ele deve estar lutando contra isso. Não há como salvá-lo, trazê-lo de
volta?
Eu me senti mal, como se uma pedra de moinho pressionasse
minhas entranhas. Eu conheci o assassino de demônios frio e sem
emoção quando uma horda de demônios liderada pelo terrível oni
Yaburama atacou minha casa, o templo Ventos Silenciosos, e fui
forçada a fugir enquanto eles massacravam todos lá. Eu convenci
Tatsumi a me acompanhar até a capital para encontrar Mestre Jiro, a
única pessoa que sabia a localização do templo secreto Pena de Aço,
porque o templo continha um pedaço do objeto que todos estavam
procurando.
O pergaminho do dragão. A única coisa que poderia convocar o
Grande Kami ao mundo para conceder o desejo do coração do
portador. O item que todos estavam procurando desesperadamente, e
estavam dispostos a matar por ele. Incluindo Tatsumi. A líder de seu
clã o havia enviado para recuperar o pergaminho e ele não teria
parado por nada para adquiri-lo.
Quando nos conhecemos, eu disse ao matador de demônios uma
pequena mentira branca: eu disse que não tinha o pergaminho, mas
poderia levá-lo para onde um pedaço dele tinha sido enviado, o
templo Pena de Aço. O que Tatsumi não sabia era que eu tinha aquele
pedaço do pergaminho escondido no pano furoshiki amarrado em
volta dos meus ombros. E talvez isso tenha sido terrivelmente
enganoso, mas se Tatsumi soubesse que eu possuía um fragmento do
pergaminho naquela época, ele teria me matado e o levado para sua
daimyo. E eu prometi ao Mestre Isao que protegeria aquele pedaço da
oração a todo custo. Era meu maior segredo, bem... além de ser meio
kitsune.
Mas, Kage Tatsumi tinha seus segredos também. O maior deles
sendo Hakaimono, o espírito oni que vivia em sua espada e estava
constantemente lutando contra ele pelo controle. Durante a batalha
final com Yaburama, o demônio na espada finalmente dominou o
matador de demônios, e Kage Tatsumi não era mais o guerreiro quieto
e taciturno que eu conheci em nossas viagens. Foi-se o menino
destemido e pragmático, que não tinha noção de si mesmo porque sua
vida era dedicada a servir ao clã. Que era frio, hostil e reservado, até
que você aprendia que era seu dever como portador de Kamigoroshi
que o fazia se afastar das pessoas. O conhecimento de que ele tinha
que permanecer no controle o tempo todo, ou um demônio o
possuiria.
E agora, aconteceu. Kage Tatsumi estava possuído pelo terrível e
totalmente malvado Hakaimono, e eu não tinha ideia de como o
traríamos de volta.
— Deve haver outra maneira. — Eu insisti. — Um ritual, um
exorcismo. Você é um sacerdote, certo? Você não pode exorcizar
Hakaimono e fazer com que ele deixe Tatsumi?
Mestre Jiro balançou a cabeça. — Sinto muito, Yumeko-chan. —
disse ele. — Se fosse um demônio normal, um fantasma yurei, ou
mesmo o espírito de um tanuki, seria possível. Mas Hakaimono não é
um demônio normal. Ele é um dos quatro grandes generais de Jigoku,
um dos oni mais fortes que já foi gerado. Se libertar o portador da
espada pudesse ser feito, os Kage teriam encontrado uma maneira, e
eu sou apenas um sacerdote. — Ele fez um pequeno gesto
desesperado com a mão enrugada. — No passado, eram necessários
exércitos inteiros de homens para derrubar Hakaimono, e ele ainda
deixava uma trilha de corpos e destruição atrás de si antes que sua
violência chegasse ao fim.
— Não podemos nos preocupar com o matador de demônios. —
Reika disse, sua voz firme. — Temos que entregar o seu pedaço do
pergaminho no templo Pena de Aço. Deixe o próprio pessoal de Kage-
san lidar com o que ele se tornou. — Ao meu olhar horrorizado, seus
olhos se suavizaram, embora sua voz permanecesse dura. — Sinto
muito, Yumeko. Eu sei que você e Kage-san ficaram próximos
enquanto viajavam juntos, mas não podemos perder tempo
perseguindo um Oni. Proteger o pergaminho é mais importante. —
Ela apontou o dedo para o meu furoshiki. — Tudo que estamos
enfrentando agora, Hakaimono, Kamigoroshi, os demônios, a bruxa
do sangue, o matador de demônios possuído, é tudo por causa
daquele pedaço de papel amaldiçoado. Porque a humanidade provou
que não pode ser confiada com um item de poder definitivo para
mudar o mundo. Devemos entregar o pergaminho ao templo e
garantir que o Dragão não possa ser convocado nesta era. Essa é a
única coisa que importa.
— Espere. — Okame se sentou, carrancudo. — Eu admito, o
matador de demônios é muito assustador às vezes, e ele ameaçou me
matar em mais de uma ocasião, e ele tem a personalidade de uma
rocha desdenhosa...— Reika olhou para ele, e ele se apressou. — Mas
isso não significa que devemos abandonar alguém que lutou conosco
contra uma maga de sangue e um exército de demônios. Como
sabemos que ele não pode ser salvo?
— Qual é a sua solução, Ronin? — Reika explodiu. — Rastrear
Hakaimono em todo o império? Nós nem sabemos para onde ele foi, e
ainda existem coisas por aí procurando pelo pergaminho do
Dragão. Mesmo se o encontrarmos, o que acontecerá? Tentar um
exorcismo? Nenhum mortal foi forte o suficiente para expulsar
Hakaimono assim que ele assumiu o controle.
— Oh, entendo. — respondeu Okame. — Então, sua solução é
ignorar o insanamente poderoso oni e esperar que ele se torne o
problema de outra pessoa.
— Não, Okame-san. Reika... Reika está certa. — Minha voz saiu
embargada e meus olhos turvaram de lágrimas. Parecia que um
espelho havia se quebrado dentro de mim e os cacos estavam me
separando por dentro. Eu engoli em seco e continuei, embora eu
odiasse. — Levar o pergaminho ao templo... é mais importante. —
Sussurrei. — A Oração do Dragão foi confiada a mim, e todos em meu
templo morreram para protegê-la. Tenho que terminar o que comecei,
o que prometi ao Mestre Isao.
— Mas... — eu acrescentei, enquanto um silêncio sombrio caía.
— Isso não significa que eu estou abandonando Tatsumi. Quando isso
for feito, depois de chegarmos ao templo e entregarmos o
pergaminho, vou encontrar Hakaimono e forçá-lo a voltar para a
espada.
— Nani? — A donzela do santuário parecia incrédula. —
Sozinha? Você não é páreo para Hakaimono, Yumeko.
— Eu sei. — Eu disse, tremendo ao me lembrar da forma
aterrorizante de Hakaimono pairando sobre mim. Olhando em seus
olhos vermelhos e não vendo nenhum indício de Tatsumi olhando de
volta. — Mas Tatsumi é forte. — Eu acrescentei, enquanto a donzela
do santuário franzia a testa. — Ele tem lutado contra o demônio por
quase toda a sua vida. Não vou abandoná-lo para Hakaimono. Eu
tenho que tentar salvá-lo.
— Perdoe-me, Yumeko-san. — Veio a voz de Taiyo Daisuke. —
Mas há algo que ainda não entendi. — Ele se moveu para uma nova
posição, e seu olhar afiado e inteligente fixou-se em mim. — Você é
kitsune. — Ele disse, e embora eu não ouvisse malícia em sua voz,
ainda dirigiu uma lança fria em meu estômago. — Por que você se
preocupa tanto com o matador de demônios?
Engoli. Na batalha contra os demônios de Satomi, minha
verdadeira natureza foi exposta, revelando meu sangue meio yokai
para todos. Reika sabia, mas foi um choque para Okame e Daisuke
quando de repente apareci com orelhas de raposa e
cauda. Considerando que meus parentes de sangue puro eram
notórios trapaceiros e encrenqueiros, e os yokai não eram vistos com
bons olhos pela maioria dos humanos, eles aceitaram a revelação
surpreendentemente bem. Ainda assim, eu era kitsune; embora eles
pudessem aceitar que eu não era perigosa, ainda era yokai, algo que
eles não entendiam. Não culpei o nobre por questionar meus
motivos. Eu só teria que trabalhar duro para provar a eles que ainda
era a Yumeko que eles sempre conheceram, com cauda de raposa e
tudo.
— Tatsumi salvou minha vida. — disse a Daisuke. — Nós dois
fizemos uma promessa. Você não entende, você não ouviu
Hakaimono... — Minha voz travou, lembrando das provocações do
demônio, sua diversão sádica quando ele me informou que Tatsumi
podia ver e ouvir tudo o que estava acontecendo. — Ele está sofrendo.
— Eu sussurrei. — Não posso deixar Hakaimono vencer. Depois de
levar o pergaminho ao templo, vou atrás de Tatsumi e do
Oni. Nenhum de vocês tem que vir. — Acrescentei, olhando ao redor
do fogo. — Eu sei que salvar Tatsumi nunca esteve nos planos. Depois
que chegarmos ao templo e o pergaminho estiver seguro, podemos
seguir nossos caminhos separados, se for isso que vocês desejarem.
Do outro lado do fogo, Okame soltou um longo suspiro e passou
a mão pelo cabelo. — Sim, isso não vai funcionar. — afirmou. — Se
você vai perseguir alegremente o matador de demônios, Yumeko-
chan, você já deve saber que estou indo. Eu não gosto necessariamente
do cara, mas ele é bom em cortar coisas que querem nos comer. — Ele
encolheu os ombros e ofereceu um sorriso irônico. — Além disso, se
ele não estiver por perto, quem eu vou incomodar? Taiyo-san
simplesmente não dá o mesmo olhar de Eu vou te matar.
Eu sorri, o alívio aquecendo minhas entranhas como chá em uma
noite fria. — Arigatou, Okame-san.
A sobrancelha de Daisuke franziu enquanto ele olhava para a
espada em seu colo. — Não fui capaz de proteger Kage-san enquanto
ele lutava contra Yaburama... — disse ele, tocando a bainha laqueada
da espada. — Eu jurei mantê-lo vivo para que pudesse duelar com o
portador de Kamigoroshi quando Yumeko-san terminasse sua
tarefa. Eu falhei, e se Kage Tatsumi for morto, nosso duelo estará
perdido. — Seus olhos se estreitaram e ele olhou para mim. — Você
tem minha lâmina, Yumeko-san. Vou redimir meu fracasso passado, e
quando o demônio for empurrado de volta para a espada, Kage-san
estará livre para duelar comigo como ele prometeu.
— Baka. — Reika bufou, e em seu colo, os dois caninos
levantaram suas cabeças. — Cada um de vocês. Vocês todos estão
falando sobre salvar o matador de demônios como se enfrentar um
oni fosse ser fácil. Lembram-se de Yaburama? Lembram-se como ele
quase matou todos vocês? Hakaimono é muito pior. Mas mais
importante do que isso... — Ela olhou para mim, olhos escuros
brilhando. — Mesmo se você conseguir encontrar Hakaimono sem ser
despedaçada no segundo que ele perceber você, como você pretende
salvar seu matador de demônios, kitsune? Você é uma
sacerdotisa? Você pode fazer um exorcismo? Você possui magia
espiritual forte o suficiente não apenas para expulsar Hakaimono, mas
para prendê-lo no lugar por tempo suficiente para realmente realizar
o exorcismo? Porque se você não fizer isso, se você não puder
controlá-lo, ele vai massacrar você muito antes que você possa chegar
perto o suficiente para fazer qualquer coisa. Você já pensou sobre
isso? — Seu olhar se estreitou sombriamente. — Você ao menos sabe o
que está envolvido em exorcizar um demônio? Ou você acha que seus
truques e ilusões de kitsune funcionarão em um oni tão antigo quanto
Hakaimono?
Eu alisei minhas orelhas com o ataque verbal e a raiva irradiando
da miko. — Por que você está gritando comigo, Reika-san? — Eu
perguntei. — Eu não vou atrás de Tatsumi até depois de ter entregue
o pergaminho no templo Pena de Aço. Isso é o que você queria, certo?
— Claro que era! É só... — Reika exalou bruscamente. — Você
não pode simplesmente perseguir Hakaimono e esperar o melhor,
kitsune. — disse ela. — Especialmente quando você não tem como
lidar com ele. Tudo o que você estará fazendo é jogar sua vida fora, o
que não cai bem para aqueles de nós que têm tentado tanto protegê-la!
— Reika-chan. — A voz do Mestre Jiro era suave, uma
reprimenda gentil, e a donzela do santuário recuou, embora seus
olhos ainda brilhassem com fogo escuro enquanto ela olhava para
mim. Com um suspiro, o velho sacerdote largou o cachimbo e olhou
para mim.
— Yumeko-chan. — Ele começou com a mesma voz calma e
serena. — Você deve saber que o que está propondo não é apenas
muito perigoso, mas nunca foi feito antes. Expulsar um oni,
especialmente um como Hakaimono, não é como exorcizar um tanuki
malicioso ou espírito kitsune. Não é o mesmo que libertar uma pessoa
do kitsune-tsuki. Presumo que você saiba do que estou falando.
Eu concordei. Kitsune-tsuki era possessão de raposa, algo que os
mais perversos dos meus parentes puros, os nogitsune, se deliciavam.
Seus espíritos podiam deslizar para uma pessoa e assumir o controle
de seu corpo, controlando-os por dentro. O que eles faziam dependia
do nogitsune, mas eram sempre atos pervertidos e depravados para o
próprio prazer e entretenimento da raposa. Durante meu treinamento
no templo Ventos Silenciosos, eu passei uma única noite aprendendo
sobre kitsune-tsuki com Denga, e alternei entre ficar apavorada e
bastante enjoada o resto da noite.
O que, eu suspeitava agora, era a intenção.
Mestre Jiro bateu com a ponta de seu cachimbo contra uma
pedra, espalhando cinzas na superfície. — Hakaimono não é um
espírito kitsune, Yumeko-chan. — Afirmou. — Ele não é um fantasma,
ou um tanuki, ou algo que pode ser exorcizado com palavras, dor ou a
aplicação da vontade de alguém. Ele é um oni, possivelmente o
habitante de Jigoku mais forte já gerado. O que quer que tenha
acontecido, a alma do matador de demônios está trancada nas
profundezas de Hakaimono, e nenhum sacerdote ou mago de sangue
na história de Iwagoto foi capaz de superar a vontade do Primeiro Oni
com a sua. Se você decidir enfrentar Hakaimono, é provável que você
e todos ao seu redor morram.
Engoli em seco, enquanto um peso de pedra se acomodava na
boca do meu estômago. — Eu entendo, Mestre Jiro. — eu disse ao
sacerdote. — E está tudo bem. Você e Reika não precisam vir.
— Não é isso que estou dizendo, Yumeko-chan. — Mestre Jiro
suspirou e enfiou o cachimbo de volta no obi. — Expulsar um espírito
de um corpo possuído é cansativo e perigoso. — disse ele. — Tanto
para os que estão realizando o exorcismo quanto para a própria
vítima. Para ter uma chance contra um oni deste poder, devemos
pensar da mesma forma. Estou disposto a aceitar o risco...
— Mestre Jiro... — Reika começou, parecendo horrorizada, mas o
sacerdote levantou a mão, silenciando-a.
— Eu estou disposto. — O sacerdote continuou. — Mas para
tentar um exorcismo, nós devemos primeiro amarrar o demônio para
que ele não possa escapar e matar aqueles que realizam o ritual. Não
pode haver dúvida, nenhuma dissensão entre nós. — Ele olhou ao
redor do fogo, para mim, Reika, Daisuke e Okame, sua expressão
solene. — O Primeiro Oni não deve ser subestimado. Se falharmos,
não se enganem, pois Hakaimono vai matar todos nós. Portanto,
devemos estar de acordo. É realmente este o caminho que desejamos
seguir?
Todos os olhos estavam em mim agora, como se minha resposta
moldasse as decisões de todos que o seguiram. E por um momento, eu
hesitei, quando a magnitude da situação caiu sobre mim como uma
colcha de inverno pesada. Eu estava fazendo a coisa certa? Todos os
meus companheiros estavam dispostos a me ajudar, mas a que
custo? De acordo com Mestre Jiro, exorcizar o demônio poderia não
ser possível. Se fôssemos atrás de Tatsumi, eu estaria colocando em
perigo a vida de todos ao meu redor. Todos nós poderíamos morrer
enfrentando Hakaimono.
Mas me lembrei da noite em que me apresentara para o
imperador de Iwagoto, como os olhos de Tatsumi revelaram
preocupação e desespero, porque ele temia que eu fosse exposta como
charlatã e executada. Lembrei-me da maneira como ele quase me
tocou, sua mão a um sopro do meu rosto, quando antes ele recuou de
qualquer contato físico, como se esperasse ser ferido. E eu sabia que
não poderia deixá-lo preso dentro do monstro que ele havia se
tornado, especialmente quando Hakaimono vangloriou-se de que
Tatsumi podia ver e ouvir tudo acontecendo ao seu redor e era
impotente para pará-lo.
— Tenho certeza. — eu disse com firmeza, ignorando o suspiro
frustrado da donzela do santuário. — Mesmo que seja impossível,
mesmo que Hakaimono me mate... eu tenho que tentar. Sinto muito,
Reika-san, sei que é perigoso, mas não posso deixá-lo sofrer. Se
houver a menor chance de salvar Tatsumi, eu tenho que aproveitá-
la. Mas, eu juro, vou levar o pergaminho ao templo primeiro. Você
não precisa se preocupar com isso.
Ela esfregou a testa de maneira resignada e exasperada. — Como
se entregar o pergaminho fosse uma tarefa simples, também. — ela
suspirou.
— Bem, isso resolve, então. — Okame se levantou e esticou seus
braços longos e magros, como se tivesse se cansado do debate e
tivesse que se mover. — Amanhã de manhã, levaremos o pergaminho
do Dragão para o templo Pena de Aço e salvaremos o império de uma
praga do mal e das trevas. E depois disso, nós caçamos Hakaimono
para resgatar o matador de demônios e salvar o império de uma praga
do mal e das trevas. — Ele bufou e balançou a cabeça. — Temos que
lidar com muito mal e trevas. Aposto que a vida vai parecer muito
chata depois.
— Improvável. — Reika murmurou. — Provavelmente
estaremos todos mortos.
Okame ignorou isso. — Vou ficar de guarda primeiro. — Ele
anunciou, saltando graciosamente em um galho pendurado. — Todos
podem ficar tranquilos e não se preocupem, se eu ver algum bandido,
ele estará morto antes de saber o que o atingiu.
— Não seja ganancioso, Okame-san. — disse Daisuke, fazendo o
ronin parar com a mão no próximo galho. — Se você ver algum
maldito desonroso tentando se aproximar de nós, por favor, dê-me
um sinal para que eu possa saudá-lo em pé. E se você ver o próprio
Hakaimono, lembre-se que tenho uma promessa de duelar com Kage-
san. Peço que não me negue essa batalha gloriosa.
— Oh, não se preocupe, Taiyo-san. Se eu encontrar um oni
tentando se aproximar de nós, toda a floresta vai me ouvir gritar.
Ele nos lançou um sorriso final e desapareceu entre os
galhos. Quando o nobre se encostou no tronco e Reika enfiou as mãos
nas mangas haori onduladas, procurei um bom lugar para deitar. Eu
não tinha cobertor nem travesseiro e, embora fosse fim do verão, a
noite estava com frio tão perto das montanhas do Clã do Céu. Mas
meu robe onmyoji vermelho e branco era pesado e o material era
quente. Enrolei-me em um pedaço de folhas secas, ouvi o pio de uma
coruja e o farfalhar de muitas pequenas criaturas ao meu redor e tentei
não pensar muito em Hakaimono. Quão forte ele era. Que eu não
tinha ideia do que nós cinco poderíamos fazer para derrotar um
antigo Senhor Oni, muito menos expulsá-lo de Tatsumi. E como uma
grande parte de mim estava completamente, absolutamente
apavorada de encará-lo novamente.

— Olá, pequena sonhadora.


A voz desconhecida era profunda e lírica, acariciando meus
ouvidos como uma canção. Piscando, levantei minha cabeça para me
encontrar em um bosque de bambu, vaga-lumes verdes e amarelos
vagando pelos caules como estrelas flutuantes. A sujeira sob minhas
patas era fria e macia, e um pequeno lago brilhava ao luar a poucos
metros de distância. Quando eu espiei na água, olhos dourados em
um rosto peludo me encaravam, orelhas de pontas pretas erguidas
contra a noite.
Uma risada baixa fez as hastes ao meu redor vibrarem. — Eu não
estou na lagoa, pequena.
Eu me virei e um arrepio correu da base da minha cauda até a
minha espinha, fazendo com que os pelos das minhas costas se
erguessem.
Uma magnífica raposa estava sentada onde uma poça de luar se
acumulava entre o bambu, olhando-me com olhos como velas
bruxuleantes. Seu pelo era de um branco brilhante, espesso e
esvoaçante, e parecia brilhar na escuridão, lançando um halo de luz ao
seu redor. Sua cauda espessa era como uma pluma branca-prateada
que ondulava e balançava como se tivesse vontade própria.
— Não é educado olhar para os mais velhos, filhote.
Eu me sacudi e, ao meu redor, o bosque parecia ondular,
mudando sutilmente de aparência. Ou talvez fosse apenas um truque
do luar. — Quem é você? — Eu perguntei. — O que é este lugar?
— Quem eu sou não importa. — A raposa branca se levantou,
sua cauda elegante balançando com a brisa. — Eu sou parente,
embora muito mais velho que você. Quanto à onde você está... você
não consegue adivinhar? Você é kitsune, não deve ser tão difícil.
Olhei em volta, notando que o bambuzal havia mudado. Nós
agora estávamos em uma floresta de árvores sakura em flor, suas
pétalas cor de rosa caindo no chão como neve. — Estou... sonhando.
— Adivinhei, voltando-me para a raposa branca. — Isto é um sonho.
— Você pode chamar assim. — A raposa branca acenou com a
cabeça. — Certamente está mais perto da verdade do que qualquer
outra coisa.
Eu fiz uma careta, tentando trazer à tona uma memória há muito
enterrada em minha mente. De um dia na floresta, escondendo-me
dos monges e a repentina sensação de estar sendo observada. De um
par de olhos dourados brilhantes, uma cauda branca espessa e a
sensação de saudade que veio quando nossos olhares se
encontraram. — Eu... eu já te vi antes. — eu sussurrei. — Não vi? Há
muito tempo atrás. — Ele não respondeu e eu inclinei minha
cabeça. — Por que você está aparecendo no meu sonho agora?
— Seu plano de exorcizar Hakaimono vai falhar.
O chão sob minhas patas parecia desmoronar, deixando-me
pairando no vazio. — O que?
— Hakaimono é muito forte. — A raposa branca continuou
calmamente. — No passado, os Kage tentaram fazer o que você está
planejando, forçar o espírito oni de volta a Kamigoroshi. Terminou em
morte e desastre. Hakaimono não é um demônio normal, e a relação
do matador de demônios com a Lâmina Amaldiçoada é única. Mesmo
se você conseguir capturar e amarrar o Primeiro Oni, o sacerdote e a
donzela do santuário falharão no exorcismo, e Hakaimono matará
todos vocês.
Eu tremi, me forçando a encontrar aqueles olhos amarelos
penetrantes. Como você pode saber disso? Eu queria dizer, mas as
palavras congelaram na minha garganta quando encontrei um olhar
que tinha visto reinos surgirem e montanhas desmoronarem. Aqueles
olhos eram antigos, abrangentes, e olhar para eles era como olhar para
a própria lua. Eu olhei para minhas patas.
— Eu não posso desistir. — Eu sussurrei. — Eu tenho que
tentar. Eu prometi a Tatsumi que não o deixaria com Hakaimono.
— Se você quer salvar o matador de demônios... — disse a
raposa branca. — Confiar em humanos não é a resposta. Se você
realmente deseja libertar Kage Tatsumi, você deve fazer isso
sozinha. De dentro.
De dentro? Perplexa, eu olhei para ele. — Eu não entendo.
— Você entende. — Foi a resposta dele. — Você estava falando
sobre isso esta noite, na verdade. Oni não são as únicas criaturas que
podem possuir uma alma humana.
A compreensão amanheceu e eu movi minhas orelhas em
horror. — Você quer dizer... kitsune-tsuki?
— Rituais sagrados e exorcismo não funcionarão em
Hakaimono. — Continuou a raposa branca, como se não percebesse
minha consternação. — São apenas palavras. Palavras de poder, sim,
mas a vontade de Hakaimono é mais forte do que a de qualquer
humano, e ele não se submeterá. Para ter uma chance de salvar o
matador de demônios, outro espírito deve confrontar o oni dentro do
corpo de Kage Tatsumi, e expulsá-lo pela força.
— Mas... isso significaria que eu mesma teria que possuir
Tatsumi.
— Sim.
Achatando minhas orelhas ainda mais, recuei. — Eu não posso
fazer isso. — Eu sussurrei, enquanto os olhos do outro kitsune se
estreitaram em fendas douradas. — Possuir um corpo humano. É...
ruim!
— Quem te disse isso? — a raposa branca perguntou. — Os
monges do templo? Aqueles que tentaram limitar sua magia kitsune,
que insistiram que você permanecesse principalmente humana? —
Seu focinho delgado se curvou. — Kitsune-tsuki é apenas uma
ferramenta, filhote. Muito parecido com suas ilusões e raposa, a magia
em si não pode ser má. É como você usa seus poderes que determina a
intenção.
Suas palavras soaram assustadoramente verdadeiras, mas ainda
pareciam... estranhas. Se não era ruim então por que o kitsune-tsuki
era tão estritamente proibido pelos monges do templo Ventos
Silenciosos que eu não tinha permissão para falar sobre isso, para não
ficar curiosa? — Eu nunca fiz kitsune-tsuki. — Eu disse. — Na
verdade, nem tenho certeza se posso. Afinal, sou apenas metade
raposa.
— Isso não importa. — A raposa branca balançou a cabeça. —
Kitsune-tsuki vem naturalmente para todos nós. Como acredito que
seu Mestre Isao disse uma vez, está em seu sangue. Quando chegar a
hora, sua metade yokai saberá o que fazer.
— Mas... parece... errado.
Sua cauda magnífica estremeceu de irritação. — Eu vejo. Então,
talvez devêssemos ver o problema de uma perspectiva diferente.
A floresta ao nosso redor desapareceu. As pétalas giravam no ar
como se tivessem sido apanhadas por um tufão, cegando e
sufocando. Quando espirrei e olhei para cima novamente, as pétalas
macias se transformaram em flocos de neve. Eu estava entre as nuvens
no topo de uma montanha, olhando para o império dos humanos,
muito, muito abaixo.
O mundo estava queimando. Para onde quer que eu olhasse,
tudo que eu podia ver eram chamas, consumindo a terra e se
espalhando por toda parte. Eu podia sentir o cheiro de cinza e fumaça,
e o fedor de carne queimada obstruía minha garganta, me fazendo
tossir. Parecia que eu estava olhando para o próprio Jigoku.
— Esse será o estado do império... — disse a raposa branca atrás
de mim, sentada empertigada em uma rocha coberta de neve. — Se
você não puder impedir Hakaimono.
Minhas pernas tremeram. O vento uivante parecia cavar garras
de gelo sob minha pele e varrer minhas costas. Eu encarei a
destruição, enquanto as línguas das chamas vermelhas e laranja
borradas juntas, enchendo minha visão até que tudo que eu podia ver
era fogo.
— Pense nisso com cuidado, pequena sonhadora. — A voz da
raposa branca agora parecia vir de muito longe. — Antes que as
chamas da guerra consumam o mundo, considere como as escolhas
afetarão a todos. Você é a única que pode derrotar o Primeiro Oni e
salvar a alma do matador de demônios. Eu posso te mostrar como e
dar a você a melhor chance de vitória quando você ficar cara a cara
com o oni mais forte de Jigoku. Mas só se você estiver disposta.
— Infelizmente... — ele continuou, enquanto eu estava lá
lutando para respirar. — Nosso momento aqui está quase
terminado. Você é necessária de volta ao mundo desperto, pequena
sonhadora. Lembre-se da minha oferta e eu a encontrarei novamente
quando chegar a hora certa. Por enquanto, as sombras se aproximam e
você deve...
Acorde.
Eu abri meus olhos e imediatamente soube que algo estava
errado. A floresta estava muito quieta; o farfalhar de pequenos
animais se foi e os insetos ficaram em silêncio. Sentei-me com cuidado
e vi Daisuke e Mestre Jiro cochilando com o queixo no peito e Reika
enrolada perto do fogo com os dois cães.
Um homem estava parado à beira da luz do fogo, sua longa
sombra se espalhando pelo chão.
Com o meu grito, os olhos de Daisuke se abriram e Reika se
ergueu, jogando os cachorros de seu colo. Vendo o estranho, os cães
explodiram em uma cacofonia de rosnados e latidos agudos, eriçando-
se e mostrando dentes minúsculos ao intruso, que os observava com
diversão fria.
— Calma, agora. — Sua voz estava alta e rouca, e ele ergueu uma
mão delgada antes que o resto de nós pudesse dizer qualquer coisa. —
Eu não vim aqui para lutar. Não façam nada... apressado.
O movimento ondulou ao nosso redor, sombras derretendo na
escuridão para formar uma dúzia de figuras vestidas completamente
de preto, apenas seus olhos aparecendo pelas fendas em suas
máscaras e capuzes. Suas espadas brilhavam como prata ao luar, uma
dúzia de navalhas da morte nos cercando em um anel
eriçado. Shinobi, eu percebi com um calafrio. Seus uniformes não
tinham marcas; apenas o estranho em túnicas pretas esvoaçantes
usava um brasão familiar que fez meu coração disparar: uma lua
sendo engolida por um eclipse. O símbolo dos Kage.
O Clã das Sombras havia chegado.
Capítulo 3
As sombras de perto
Yumeko

O homem de manto avançou mais para a luz do fogo, e o brilho


laranja tomou conta dele. Ele era muito magro, seu rosto era contraído
e estreito, e seus ossos apareciam através da pele de papel de suas
mãos, como se alguma força tivesse sugado sua vitalidade. Seu rosto
estava pintado de branco, seus lábios e olhos delineados em preto,
enquanto ele pairava sobre nós como um terrível espectro de
morte. Por um momento, eu me perguntei... Será que ele morreria de
repente enquanto seu fantasma permanecia, alguém saberia?
— Por favor, desculpem esta intrusão. — o homem
murmurou. Seu olhar totalmente negro, frio e impassível, deslizou
para mim e eu estremeci. — Espero que não tenhamos perturbado
nada importante.
— Onde está Okame-san? — Eu perguntei, e o homem arqueou
uma sobrancelha fina como tinta. — Ele teria nos dito que você estava
vindo se pudesse. O que você fez com ele?
O homem alto gesticulou em direção a uma árvore. Eu olhei para
cima e vi Okame nos galhos, mãos e pés amarrados ao tronco da
árvore, uma mordaça enfiada em sua boca. Um shinobi agachou-se no
galho próximo, o arco do ronin sobre os joelhos.
— Receio que não poderíamos ter seu amigo alertando vocês. —
disse o homem, enquanto Okame lutava contra as cordas e olhava
para ele. — Não gostaríamos que vocês tivessem a ideia errada, que
éramos simples bandidos vindo durante a noite. Não se preocupem,
foi uma solução temporária.
Ele ergueu a mão e o shinobi que estava agachado no galho
imediatamente se virou e cortou as cordas que prendiam o ronin à
árvore. Quando Okame começou a se libertar, rosnando maldições
enquanto puxava a mordaça, o guerreiro das sombras se derreteu na
escuridão, deixando o arco do ronin pendurado em um galho
próximo.
O nó em meu estômago se desenrolou, mas só um pouco. Ainda
havia uma dúzia de shinobi ao nosso redor, além do estranho à beira
da luz do fogo. O cheiro de magia se agarrava a ele, rançosa, mas
poderosa, como algum cogumelo altamente venenoso.
— Qual é o significado disso, Kage? — Daisuke perguntou com
uma voz fria. O nobre não se moveu de seu lugar contra o tronco, mas
ambas as mãos permaneceram em sua espada. — Este é o território do
Clã do Céu, e estamos a poucas horas da fronteira de Taiyo. Você não
tem autoridade aqui, e nenhum direito de nos atacar como se
fôssemos bandidos comuns. Se você não puder apresentar a
documentação adequada, devo humildemente solicitar que você saia.
O homem alto deu um sorriso medonho. — Infelizmente não
posso fazer isso, Taiyo-san. — Ele disse, parecendo satisfeito e
ofendido ao mesmo tempo. — Permita-me apresentar-me. Meu nome
é Kage Naganori, e estou aqui a mando da daimyo do Clã das
Sombras, a própria Dama Hanshou.
Reika se endireitou. — Naganori? — Ela repetiu.
— De fato. — O homem voltou seu sorriso predatório para ela,
fazendo Chu e Ko, agora sentados ao lado dela, rosnarem e
mostrarem os dentes. — A menina é talvez a mais sábia do grupo. —
Ele meditou. — Talvez o resto de vocês já tenha ouvido falar de mim?
— Eu não. — disse Okame. O ronin entrou no círculo, eriçado
como um cachorro zangado, pronto para atacar qualquer coisa que se
aproximasse demais. — Ainda estou esperando para ver por que devo
ficar impressionado.
— Okame-san. — Reika deu ao ronin um olhar de
advertência. — Kage Naganori é o arqui-bruxo do Clã das Sombras, o
principal majutsushi da família Kage.
— Sim. — Concordou Naganori, olhos totalmente negros agora
encarando Okame. — Mas se você deseja uma demonstração de
talento, Ronin, eu ficaria feliz em atender seu pedido. Talvez você
ficasse impressionado se eu fizesse sua sombra dançar sem você? Ou
se eu comandasse os kami noturnos para cegá-lo para o resto da sua
vida? — Ele ergueu a mão aberta. Uma pequena bola de escuridão
viva pairou sobre sua palma, girando no ar como tinta. — Talvez uma
maldição das trevas, onde toda luz será apagada para sempre onde
quer que você vá, seja o suficiente para impressionar?
— Você não veio nos ameaçar, Naganori-san. — Veio a voz
calma e calmante do Mestre Jiro do outro lado da fogueira. — Nem
nos procurou para lançar maldições em ronins aleatórios. Por que
você veio?
Naganori fungou, deixando cair seu braço e o globo de sombra
com ele. — Como eu disse antes... — ele continuou. — Nós estamos
em uma missão de Dama Hanshou. Peço desculpas por essa intrusão,
mas era fundamental que chegássemos a vocês antes de chegar à
fronteira de Taiyo. — O majutsushi se virou e me fixou com seu olhar
penetrante. — Viemos para a onmyoji. Dama Hanshou solicitou sua
presença.
— Eu? — Meu sangue gelou. Eu ainda estava usando a túnica
onmyoji vermelha e branca da noite em que me apresentei na frente
do imperador. Tinha sido parte de um estratagema para que todos nós
entrássemos no palácio imperial para procurar Mestre Jiro, já que as
camponesas, ronins e donzelas de santuário não podiam
simplesmente passar pelos portões sem avisar. Eu certamente não era
uma onmyoji, uma adivinha mística do futuro, mas naquela noite, eu
me encontrei na frente da corte imperial e o homem mais poderoso do
país, e se eu não o tivesse convencido de que eu era o que eu afirmava
ser, todos nós teríamos sido executados.
Foi preciso um pouco de magia kitsune e mais do que um pouco
de sorte, mas o imperador não apenas acreditou em meu desempenho,
ele se ofereceu para me tornar sua onmyoji real. Eu tinha recusado
respeitosamente sua oferta, mas parecia que a história da garota
onmyoji e a fortuna do imperador haviam se espalhado mais do que
eu gostaria. De repente, pude sentir o pergaminho sob minhas vestes,
pressionado contra minhas costelas, e torci meus dedos no colo para
impedi-los de se mover em direção a ele. — Por quê? — Eu perguntei
a Naganori. — O que Dama Hanshou quer comigo?
— Não é minha função saber. Você pode perguntar isso a ela
quando chegar lá.
Meu coração batia forte por um motivo totalmente
diferente. Dama Hanshou era a mulher que enviou Tatsumi ao templo
Ventos Silenciosos para buscar o pergaminho. Ela descobriu que eu o
possuía? Não. Se ela realmente soubesse que eu o tinha, ela não teria
enviado o majutsushi para falar comigo; eu teria tido uma faca na
garganta enquanto dormia.
Ainda assim, aventurar-me no território dos Kage, quando sua
daimyo estava procurando ativamente pelo pergaminho, parecia uma
ideia muito ruim. — Se tiver opção, eu realmente prefiro não ir.
— Acho que devo insistir. — O majutsushi ergueu a mão e os
guerreiros das sombras pairando na escuridão deram um passo
ameaçador para frente. Daisuke ficou tenso e Okame ergueu o arco
pela metade, enquanto o rosnado dos dois cães se elevava
agudamente no ar. — Não desejo que isso termine em violência. —
disse Naganori, cruzando as mãos diante de si. — Mas nós vamos
levar a menina para Dama Hanshou. Aqueles que se oporem a nós
serão cortados por interferir nos negócios oficiais do Clã das Sombras.
— Eu seria mais cauteloso com suas ameaças, Kage-san. — disse
Daisuke, ganhando uma carranca do majutsushi. — Dama Yumeko
está sob minha proteção, e prejudicar um Taiyo é um crime contra a
família Imperial. Tenho certeza de que Dama Hanshou não quer
começar uma guerra com o Clã do Sol.
— Daisuke-san... — Eu olhei para o nobre surpresa.
— Ela também está sob a proteção do santuário Hayate. — Reika
interrompeu, e ergueu o braço, uma tira de ofuda presa entre dois
dedos. Chu e Ko avançaram, formando uma minúscula barreira na
frente da donzela do santuário, seus olhos brilhando em ouro e verde
na escuridão. — Temo que não podemos deixar você levá-la embora,
mesmo que tenhamos de desafiar a própria daimyo Kage.
— Sim. — Okame acrescentou, sorrindo maldosamente enquanto
colocava uma flecha na corda do seu arco. — Basicamente, você quer
Yumeko, você tem que passar por todos nós.
— Insolentes! — Naganori se eriçou e, ao nosso redor, os shinobi
ergueram suas espadas. — Eu não vou ficar e discutir com ronin e
plebeus. — O bruxo das Sombras ergueu as mãos, e o ar ao redor dele
ficou mais escuro enquanto até a luz do fogo se afastava dele. —
Nossa Senhora nos enviou para buscar a menina, e se vocês ficarem
no caminho de nossa missão, não teremos escolha a não ser derrubá-
los.
— Esperem! — Rapidamente, levantei-me e encarei o majutsushi,
e o círculo de lâminas girou em minha direção. — Eu vou. — Eu disse
a ele. Meu estômago se revirou com as palavras, mas se a outra
escolha fosse um banho de sangue com shinobi e um bruxo das
Sombras, eu escolheria a opção menos confusa. Mesmo sabendo que
encontrar Dama Hanshou provavelmente seria muito ruim para mim,
eu não queria arrastar o resto deles para uma luta com a família de
Tatsumi. Havia muitos shinobi ao nosso redor, prontos para atacar, e
esses eram apenas os que podíamos ver. E o majutsushi era um ponto
de interrogação ainda maior. Não achei que a magia da Sombra de
Naganori produziria flores e borboletas, a menos que fossem
borboletas negras que comiam sua alma, o que não parecia nada
saudável.
E talvez, quando eu enfrentasse Dama Hanshou, a líder do Clã
das Sombras, eu descobrisse mais sobre Tatsumi e como eu poderia
salvar sua alma do monstro que agora a possuía.
Dando um passo à frente, encarei Naganori e levantei meu
queixo. — Eu vou. — Eu disse novamente. — Se Dama Hanshou me
chamou, irei falar com ela.
Tatsumi, sinto muito. Espero que você aguente até que eu encontre uma
maneira de sair dessa.
— Yumeko. — Reika deu um passo à frente, fazendo com que
seus cães deslizassem para o lado. — Não é aconselhável que você vá
agora. — disse ela, erguendo as sobrancelhas para mim. Sem dúvida,
referindo-se ao precioso segredo escondido sob minhas vestes
onmyoji. — Se você for, insisto em ir com você.
— Você não precisa, Reika-san... — Comecei. Mas a donzela do
santuário me lançou um olhar que lembrava a expressão que Denga-
san costumava fazer quando me pegava no meio de uma pegadinha,
então fiquei em silêncio.
Daisuke levantou-se devagar e com grande dignidade,
chamando a atenção de todos. — Eu também devo insistir em
acompanhar Yumeko-san. — disse ele. — Jurei protegê-la e não
sofrerei a desonra de quebrar minha palavra. Onde ela for, eu a
seguirei. Até a hora da minha morte, ou quando ela não precisar mais
de mim.
— E eu sou o yojimbo dela. — Okame acrescentou. — O guarda-
costas vai aonde o cliente for. Então, estou indo também. — Ele sorriu
para Naganori, como se o desafiasse a recusar. — Não importa o que
digam.
Eu olhei para o majutsushi, esperando que ele protestasse, mas
Naganori simplesmente sorriu. — Um bando tão leal. — Ele meditou,
em uma voz que era meio zombeteira, meio suspeita. Seu olhar
deslizou para mim, plano e frio como o de uma cobra. — Uma
donzela de santuário, um cão ronin sem honra e um nobre Taiyo,
todos dispostos a acompanhá-la ao desconhecido. O que a onmyoji
está escondendo para merecer tal lealdade, eu me pergunto?
— Talvez eu não seja uma onmyoji. — Sugeri. — Talvez eu seja
realmente uma princesa kami disfarçada.
Ele bufou uma risada. — Isso eu tenho certeza de que você não é.
— Ele disse, antes de deixar escapar um longo suspiro e acenar com a
mão. Atrás dele, os shinobi se endireitaram e embainharam suas
lâminas em um coro rouco. — Muito bem. — disse Naganori, me
surpreendendo. — Se seus companheiros estiverem decididos, eles
são bem-vindos para nos acompanhar de volta ao castelo
Hakumei. Que ninguém diga que falta hospitalidade ao Clã das
Sombras. Todos vocês serão convidados de honra dos Kage. — Ele
sorriu de novo, mas não era um sorriso muito bonito, mais
conhecedor e maldosamente divertido. — Tenho certeza de que Dama
Hanshou ficará satisfeita em recebê-los.
— De volta às terras dos Kage. — A sobrancelha de Reika
franziu. — Espero que você tenha trazido cavalos. O território do Clã
das Sombras fica no extremo sul de Iwagoto, passando pelas terras do
Sol e da Terra. Literalmente do outro lado do império. Vai demorar
semanas de viagem para chegar lá.
— Para os não iniciados, sim. — A voz do majutsushi agora
estava presunçosa. — Por que você acha que Dama Hanshou me
enviou, e não um esquadrão de ashigaru, soldados de infantaria? Se
viajássemos a pé, certamente demoraria muito. Mas não estamos
viajando por meios comuns. — Ele levantou uma manga ondulada,
lançando uma longa sombra sobre o chão. — Para quem conhece o
caminho das sombras, nenhuma distância é muito grande, se você não
se perder no vazio do caminho.
— Ah. — disse Okame, dando a Daisuke um sorriso de lado. —
Aí está aquela tagarelice enigmática dos Kage que eu estava
esperando.
Os lábios de Naganori se estreitaram e ele baixou o braço. —
Venham. — Ele ordenou, e se virou. — A noite está acabando e
mesmo nos caminhos que vamos seguir, ainda é um longo caminho
até o castelo de Hakumei. Dama Hanshou está esperando.
Capítulo 4
Um talento escondido
Suki

Da sombra de uma árvore de salgueiro no jardim, Suki assistiu


Seigetsu-sama meditar pela lagoa, com as mãos em concha no colo e
os olhos fechados, e silenciosamente admirava seu físico perfeito. Seu
longo cabelo prateado brilhava ao luar como metal líquido, suas
costas eram retas e seu rosto sereno. Até suas imaculadas vestes
brancas se acomodavam perfeitamente ao seu redor. Uma pequena
bola pálida empoleirada nas pontas de seus polegares, brilhando
suavemente e parecendo pairar ali por sua própria vontade. A seus
pés, carpas vermelhas e brancas rodopiavam preguiçosamente na
água cristalina, mal fazendo uma ondulação na superfície iluminada
pela lua, e acima, uma árvore sakura, totalmente em flor, protegia a
figura abaixo com flores rosas brilhantes. Nenhuma pétala caiu para
perturbá-lo.
— Seigetsu-sama não é incrível? — Taka disse ao lado dela. O
pequeno yokai sentou-se contra o tronco da árvore, seu único olho
enorme cravado na figura à beira do lago. Um sorriso melancólico
esticou sua boca cheia de presas, e seu queixo descansou nas palmas
das mãos em garras enquanto ele olhava para seu mestre. — Tudo o
que ele faz é perfeito. — Afirmou o yokai. — Eu gostaria de ter seu
equilíbrio, sua graça, sua... perfeição. — Ele suspirou. — Infelizmente,
terei de me contentar com 'pequeno' e 'horrível' e 'apenas ligeiramente
útil'. Não que eu esteja reclamando! — ele acrescentou
rapidamente. — Ou que Seigetsu-sama alguma vez tenha me
chamado dessas coisas. Eu só... aceitei a verdade sobre certas
coisas. Alguns de nós estão destinados a ser senhores e líderes. — Ele
gesticulou com a mão em garra para a figura ao lado do lago. — E
alguns de nós nascemos para ser servos, certo, Suki-san? Oh, gomen.
— Ele tapou a boca com as duas mãos em garras, talvez se lembrando
de que a garota com quem falou não estava mais viva. — Eu não quis
sugerir... eu só quis dizer...
Suki voltou a sorrir para ele, balançando a cabeça, e o pequeno
yokai relaxou. Taka não era malicioso, ela sabia. Ele não tinha um osso
cruel em seu corpo. Ela acreditava que ele era um pouco solitário e
não conseguia falar muito com Seigetsu-sama, especialmente quando
o assunto era sobre o misterioso benfeitor mútuo. — Seigetsu-sama
me salvou. — Taka continuou, voltando seu olhar para a figura perto
do lago. — Ele me acolheu quando ninguém me queria e, desde então,
me permitiu viajar com ele. Às vezes, me pergunto por quê. Ele não
tolera ninguém o seguindo. — Ele piscou seu olho enorme. — Bem,
exceto você, Suki-san, e você é um fantasma, então ele não pode
exatamente ameaçá-la.
Suki ergueu a cabeça com o cenho franzido, mas Taka não
pareceu notar. O yokai encostou-se na árvore com um bocejo
escancarado e cheio de dentes. — Você trabalhou no palácio imperial,
não é, Suki-san? — ele perguntou, assustando-a com a aleatoriedade
da pergunta. Sua mente funcionava assim, ela notou, saltando de um
pensamento para o outro como um grilo agitado, nunca se fixando em
uma coisa por muito tempo. Ela assentiu, esperando que ele não
mencionasse sua antiga senhora, Dama Satomi. Felizmente, as
memórias de sua morte, de sua antiga vida, estavam se tornando
dispersas e nebulosas. Ela tinha sido uma empregada doméstica para
a concubina do imperador, mas Dama Satomi acabou por ser uma
maga de sangue, que praticava a magia proibida de Jigoku, e ela
matou Suki para invocar um demônio no reino. Por que Satomi
convocou o oni, Suki não tinha certeza, algo sobre um pergaminho
antigo, mas o momento de sua morte foi violento e assustador, e algo
em que ela não queria pensar.
Ela não tinha certeza de por que sua alma continuava a existir no
reino mortal. De acordo com os contos de fantasmas que sua mãe
costumava lhe contar, as almas que permaneciam porque algo as
ligava às suas vidas anteriores. A vingança era o motivo mais comum,
um desejo de punir aqueles que os injustiçaram na vida. Mas Dama
Satomi estava morta, morta pelo mesmo homem que Suki seguia
agora. Se fosse a vingança que ela desejava, ela não teria seguido em
frente?
Suki estremeceu. Ela sabia que estava morta e que nada poderia
realmente machucá-la agora, mas a ideia de vagar sem rumo pelo
mundo como um espírito era aterrorizante. Ela não podia ir para
casa; seu pai, Mura Akihito, certamente não precisava do fantasma de
sua única filha pairando ao redor de sua loja. Taka era amigável, e
Seigetsu-sama tinha matado a horrível Dama Satomi; segui-los parecia
uma ideia melhor do que vagar sem rumo pela terra. Pelo menos ela
não estava mais sozinha.
Perto da beira do lago, Seigetsu se ergueu, tão fluido e gracioso
quanto a luz do sol sobre as folhas. Sua bola desapareceu em suas
vestes esvoaçantes tão rapidamente que Suki poderia ter imaginado
que estava lá.
— Taka, venha. Eu preciso de você.
— Hai, Seigetsu-sama! — O pequeno yokai praticamente se
jogou no chão de excitação. Suki hesitou por um momento, então foi
atrás dele.
— Sim, Seigetsu-sama. — Taka parou aos pés de seu mestre. Seu
único olho enorme olhou para o homem em adoração aberta. — Eu
estou aqui. O que você quer que eu faça?
O homem de cabelos prateados apontou para o chão. — Aqui,
Taka-chan. — Ele ordenou. — Sente-se no travesseiro, se quiser. —
Taka imediatamente fez o que ele pediu, sentando-se na almofada
vermelha e olhando para cima com expectativa. Seigetsu também se
sentou, cruzando as pernas enquanto olhava para o pequeno yokai, a
luz da tocha brilhando sobre seu cabelo prateado e a cabeça calva de
Taka. — Agora feche os olhos. — Ele ordenou. — E fique em silêncio.
O yokai obedeceu, fechando os olhos e pressionando os
lábios. Seigetsu se endireitou e o globo branco apareceu de repente em
uma das mãos, equilibrado em três dedos. Enquanto Suki observava,
fascinada e cautelosa, ele estendeu a outra mão e tocou dois dedos
elegantes na testa de Taka.
Por um momento, nada aconteceu. A carpa rodopiou
preguiçosamente no lago, a luz da tocha tremeluziu e um vento
farfalhou os galhos das árvores de sakura, embora nenhuma pétala
caiu nas figuras imóveis abaixo do tronco.
Então, o pequeno corpo de Taka teve um espasmo, fazendo Suki
pular. Ele sacudiu de novo, estremecimentos violentos rasgando o
delicado corpo do yokai, e sua cabeça caiu para trás, a boca com
presas escancarada. Enquanto Suki tremia de compaixão e medo, seu
olho se abriu, completamente preto e vazio, e ela teria engasgado de
horror se pudesse.
Seigetsu apenas sorriu. A bola em sua mão tremulou
suavemente, pulsando com sua própria luz interna, parecendo ecoar
as batidas do coração do yokai à sua frente. Seigetsu manteve os
dedos pressionados na testa de Taka, seu rosto sereno mesmo quando
Taka se contraia e estremecia embaixo dele.
— Fale-me da menina raposa. — Ele murmurou. — Onde ela
está indo? Ela está em perigo? O que acontecerá com ela nas terras dos
Kage?
A boca de Taka se abriu, uma voz fina e áspera emergindo que
era tão diferente do yokai feliz e alegre que Suki só podia olhar. — O
caminho é traiçoeiro. — Ele sussurrou. — Mãos se estendem, puxam-
os para a névoa. Sombras nas paredes, sob o chão. Sussurros
espreitam as ruas, olhos brilhantes queimam a escuridão. Uma mulher
morta viva tem um pedido.
Suki não conseguia entender nada disso, mas o homem de cabelo
prateado assentiu. — Nada terrível até agora. — Ele murmurou. — E
quanto a Hakaimono?
Taka estremeceu violentamente, suas pequenas mãos se
contraindo ao lado do corpo. — Morte. — Ele murmurou, e para os
ouvidos de Suki, até o sussurro áspero soou horrorizado. — Morte,
caos, destruição. Montanhas de corpos. Vales de fogo. Garras e dentes,
rasgando a carne. Ossos que andam, sangue, dor, medo!
— Previsível. — Seigetsu suspirou, embora a voz de Taka ficasse
cada vez mais frenética, continuando a ladainha de descrições
horripilantes como se os eventos estivessem acontecendo na sua
frente. Um fino fluxo de sangue escorreu de seu nariz até o queixo e
respingou em suas mãos. — Chega. — Seigetsu ordenou, puxando o
braço para trás. Sua voz profunda ondulou pelo ar e fez o chão
estremecer. — Taka, pare.
O pequeno yokai caiu, a cabeça caindo sobre o peito, enquanto a
torrente de palavras parava. Suki ainda estava tremendo, mas
Seigetsu simplesmente enfiou a bola em suas vestes e escovou as
mangas, antes de voltar sua atenção para o yokai novamente. No
travesseiro, Taka gemeu, mexeu-se e abriu lentamente os olhos,
piscando para o homem acima.
Seigetsu sorriu. — De volta com a gente, Taka-chan? — Ele
perguntou.
A testa do yokai se enrugou. — Eu... tive outra visão, mestre?
— Você teve. — Seigetsu assentiu e jogou para ele um lenço de
seda. — Bem terrível, parecia. Eu tive que puxá-lo de volta antes que
você causasse um dano real a si mesmo.
Taka pegou o lenço, franzindo a testa, antes de pressionar o pano
contra o nariz com um suspiro queixoso. — Eu gostaria de poder me
lembrar.
— Não, Taka-chan. — Seigetsu o tranquilizou. — Você não
entenderia as visões mesmo se pudesse. Tire isso de sua mente. Já
percebi o que precisava saber.
— Hai, Seigetsu-sama. — O pequeno yokai se animou um pouco,
dando a seu mestre um sorriso cheio de dentes. — Contanto que eu
possa ser útil para você, isso é tudo que desejo.
Observando-os, Suki de repente ficou apreensiva. Poderia Taka-
chan ver o futuro, ou pelo menos parte dele? E se ele pudesse,
Seigetsu estava usando o pequeno yokai para seus próprios fins? O
pensamento a incomodou. Seigetsu-sama era obviamente muito
poderoso e podia controlar algum tipo de magia, assim como Dama
Satomi. O que ele queria com a garota kitsune e o demônio?
Dando um passo para trás, Seigetsu acenou com a mão, como se
estivesse arrancando algo do ar. Com uma onda silenciosa, o lago
tranquilo e os jardins que os cercavam se desfizeram, espalhando-se
ao vento como gavinhas de fumaça colorida, revelando uma floresta
escura e tenebrosa. As tochas desapareceram, levando sua luz com
elas, e até mesmo os minúsculos lampejos de vaga-lumes
desapareceram como nunca antes. Na escuridão repentina, os olhos de
Seigetsu brilharam como luz de velas enquanto ele olhava para as
sombras. — Tudo está indo de acordo com o planejado. — Ele
meditou, enquanto Taka se levantava, o travesseiro embaixo dele se
dissolvendo em uma névoa colorida. — O jogo está começando a dar
certo, mas não devemos deixar nenhum deles ir muito longe no
caminho errado. Parece que a raposa ficará ocupada por um tempo,
então talvez devêssemos ficar de olho em Hakaimono, garantir que
sua parte na história não seja perdida. Venha, Taka. — Ele se virou,
uma figura brilhante em branco, cabelos prateados e vestes brilhando
nas sombras. — É uma longa jornada até as terras de Mizu, mesmo se
cavalgarmos os ventos. Devemos começar.
— Suki-san pode vir conosco, mestre?
Seigetsu olhou para trás. Seu olhar se ergueu para Suki, ainda
pairando na borda das árvores, e um canto de sua boca se curvou.
— Eu tinha assumido isso. — Sua voz era como uma fonte fria
de montanha, profunda e poderosa, e Suki sentiu um arrepio desde os
dedos dos pés até o topo da cabeça. — Ela é, claro, importante para a
história também.
Capítulo 5
A presa mais perigosa
Hakaimono

Os Kage já tinham me encontrado.


— Hakaimono. — Um dos homens deu um passo à frente,
olhando para mim de onde eu estava no topo dos degraus do
templo. Um majutsushi do Clã das Sombras, vestido de preto com o
rosto pintado de branco, embora eu pudesse ver o suor em sua testa,
sentir o cheiro do medo que irradiava dele. Seus homens, uma dúzia
de samurai Kage ao todo, agrupados atrás dele, com as mãos nos
punhos das espadas. Senti um sorriso torcer um lado da minha
boca. Depois de todo esse tempo, depois de todas as nossas batalhas, o
Clã das Sombras não havia aprendido nada. Um majutsushi? Uma
dúzia de samurai? A última vez que enfrentei os Kage, abri meu
caminho através de uma centena de seus melhores guerreiros antes
que eles colocassem um arranhão em mim.
Eu sorri para a dúzia de humanos parados entre as pedras e
ervas daninhas do pátio. Este era um pequeno templo, afastado no
sopé das montanhas Tokan Kiba, na orla do território do Clã do
Céu. O próprio templo era antigo e estava caindo aos pedaços; os
telhados estavam cheios de buracos e pelo menos uma polegada de
poeira cobria o piso de madeira rangente. Uma estátua do venerado
Profeta de Jade dos humanos estava assentada tristemente sozinha no
salão principal, coberta por algumas listras brancas do ninho de
pardal no topo de sua cabeça. Achei isso hilário e ri ao pé da estátua
por um bom minuto antes de continuar. Pelo que pude perceber, seja
por doença ou ataque ou porque os monges simplesmente
envelheceram e morreram, como os humanos costumavam fazer, o
templo havia sido abandonado há muito tempo, razão pela qual o
escolhi parar por aqui. Eu estive preso em Kamigoroshi por muito
tempo; o mundo havia mudado desde a última vez que o vira, e eu
precisava de tempo para reajustar antes de começar a devastar as
cidades e encharcar a terra com sangue. Matar um templo cheio de
carecas piedosos teria sido divertido, mas tais massacres tinham uma
maneira de chamar a atenção, algo que eu estava tentando evitar
agora.
Infelizmente, parecia que minha chegada já havia sido
notada. Perdido há apenas três dias, os Kage já estavam perseguindo
meus passos. Bastardos persistentes. Eu sabia que os veria mais cedo
ou mais tarde. Eles tinham uma equipe inteira de shinobi e majutsushi
que monitoravam o portador de Kamigoroshi, que neste momento era
Kage Tatsumi, certificando-se de que o matador de demônios
permanecesse são e no controle. Assim que eu escapei, um deles
provavelmente correu para casa para deixar o Clã das Sombras saber
que eu estava livre novamente. Esta pequena visita não era
inesperada, mas significava que os Kage já estavam se movendo
contra mim.
Então, novamente, um banho de sangue era exatamente o que eu
precisava para aliviar um pouco o estresse e a frustração
reprimida. Que fosse os Kage, a linhagem que eu tinha jurado apagar
da existência por sua insolência em me manter preso em Kamigoroshi,
tornava tudo muito melhor.
— Parabéns, Kage. — Eu disse, sorrindo do topo das escadas
para o corredor principal. — Vocês me encontraram. — Meu sorriso
cresceu mais amplo, mostrando as presas, e vários deles
estremeceram. Eles provavelmente nunca tinham visto um oni antes,
mesmo um que fosse do tamanho de um humano. Este era,
tecnicamente, o corpo de Kage Tatsumi que eu estava usando, embora
agora que eu estava livre, algumas das minhas características
demoníacas haviam se infiltrado. Eu não era tão grande quanto o meu
verdadeiro eu, mas os chifres, garras e pele preta eram uma revelação
mortal. Eu ainda parecia um oni, o que poderia fazer até os humanos
mais corajosos empalidecerem de medo. — Agora, o que vocês
propõem que façamos sobre isso?
Bem no fundo, um lampejo de um subconsciente que não era
meu se mexeu. Kage Tatsumi, o dono original deste corpo, tentando
desesperadamente me expulsar, para impedir o que ele sabia que
estava para acontecer. Senti sua presença lutando por dentro, como
um peixe emaranhado em uma rede, e ri de suas débeis tentativas de
deter o inevitável.
Continue assistindo, matador de demônios. Observe, enquanto eu rasgo
os membros do seu clã em pequenas tiras ensanguentadas e os espalho ao
vento, e saiba que não há absolutamente nada que você possa fazer para me
impedir. Mas continue tentando. Lute e lute o máximo que puder. Eu amo a
maneira como o seu desespero é sentido. Houve uma pulsação de raiva,
dirigida a mim, e eu ri. Basta lembrar, a última vez estive preso em
Kamigoroshi por quase quatrocentos anos. Você está aí há três dias. Já parece
uma eternidade, não é?
O majutsushi deu um passo à frente. — Hakaimono. — Ele disse
novamente, e eu tive que dar crédito a ele; sua voz não tremeu,
embora os punhos de suas mangas tremessem ligeiramente. — Por
ordem da Dama Hanshou, você irá libertar o matador de demônios,
Kage Tatsumi, e voltar para Kamigoroshi.
Eu ri dele. O som ecoou nas paredes do pátio e se ergueu na
noite, e os samurais se agruparam, erguendo suas espadas. — Oh, isso
é novo. — Eu zombei, ainda rindo enquanto olhava para eles. —
Liberar o matador de demônios, você disse? Deixá-lo ir e voltar
voluntariamente para Kamigoroshi por mais alguns séculos? — Eu
inclinei minha cabeça de uma maneira zombeteira e intrigada. — E
por curiosidade, o que eu ganho se concordar com essas
exigências? Mais quatrocentos anos de tédio, desespero e ficar
lentamente enlouquecendo? — Eu balancei minha cabeça. — Não é
um grande negócio, Kage. Suas habilidades de negociação precisam
de algum trabalho.
Toda a pretensão de civilidade desvaneceu quando o majutsushi
apontou um dedo fino escada acima, suas feições se contorcendo de
ódio e medo. — Não zombe de mim, demônio. — Ele cuspiu. —
Libere Kage Tatsumi e volte para a espada, ou enfrente a ira de todo o
Clã das Sombras.
— A ira de todo o Clã das Sombras, você disse? — Eu ecoei. —
Humano, seu clã declarou guerra contra mim quando me selou nesta
espada miserável mil anos atrás. — Eu levantei Kamigoroshi pela
bainha, erguendo-a diante de mim, e o majutsushi caiu para trás da
escada como se eu tivesse brandido uma cabeça decepada. — Lembro-
me do Kage Hirotaka. — Continuei. — Eu me lembro de seu desejo
para o Dragão, para me manter preso neste reino patético. Para sofrer
tormento sem fim. Bem, ele realizou seu desejo. — Desembainhei
Kamigoroshi, deixando os séculos de ódio e raiva subirem à
superfície. — Mortais fracos, patéticos e de vida curta. Você fala em
declarar guerra contra mim, mas é tarde demais. Eu já declarei guerra
a todo o Clã das Sombras e não vou descansar até que todos os
membros sejam eliminados da existência, até que cada homem,
mulher e criança esteja morto em seu próprio sangue, e o nome Kage
seja apagado do curso da história, para sempre.
— Monstro. — O rosto do majutsushi ficou pálido, o horror
brilhando em seus olhos enquanto ele olhava para mim. — Perdemos
nosso tempo e nossas palavras com este. Não há como salvar o
matador de demônios.
Ele estendeu a mão em direção ao topo da escada. Uma onda de
poder surgiu no ar e correntes negras irromperam das pedras e se
enrolaram ao meu redor. Elas deslizaram sobre meus braços e peito,
frios e contraídos, prendendo meus membros e me prendendo no
lugar. O majutsushi deu um sorriso presunçoso e se virou para o
samurai.
— Mate-o. — ele ordenou, apontando para as escadas. —
Destrua a abominação. Pegue sua cabeça e devolva o demônio a
Kamigoroshi. Pela honra dos Kage!
Os guerreiros deram um grito de batalha unificado e avançaram
escada acima com as espadas erguidas. Eu estreitei meus olhos e
agarrei o punho da espada quando os primeiros guerreiros
alcançaram o topo da escada, mesmo quando uma vozinha gritou um
aviso inútil para o samurai que se aproximava. Ele sabia que a magia
da Sombra do majutsushi seria inútil contra alguém que prosperava
no escuro.
Continue assistindo, Tatsumi. Seu clã está prestes a ficar um pouco
menor.
Com um grunhido, me desvencilhei das correntes e os dois
primeiros samurais explodiram em uma névoa de sangue quando
Kamigoroshi rasgou seu meio e os partiu em dois. As metades caíram,
as expressões congeladas em choque, enquanto eu decapitava outro
samurai e avançava para encontrar o resto. Eles deram gritos de medo
e surpresa e me golpearam, devagar demais. O sangue formou um
arco no ar e respingou nas pedras, enquanto Kamigoroshi brilhava
como um redemoinho e os samurai caíam em pedaços.
Abaixando a espada, respirei a névoa sangrenta e olhei para o
único humano remanescente, o majutsushi que havia clamado por
minha cabeça. Ele estava parado na parte inferior da escada, os olhos
arregalados enquanto olhava para os membros e corpos de seus
homens, agora espalhados ao meu redor e pingando escada abaixo.
— Bem. — Eu olhei ao redor com curiosidade fingida, então me
virei para o humano. — Parece que agora somos só eu e você.
— Demônio. — O homem sussurrou quando comecei a descer as
escadas. Ele estendeu a mão, enviando um trio de dardos pretos no
meu rosto. Eu os afastei e eles desapareceram em tênues tentáculos de
fumaça. Com os olhos arregalados, o majutsushi recuou pelo pátio e
eu o segui, facilmente acompanhando seus passos frenéticos e
cambaleantes.
— Os Kage não vão cair para você! — Ele acenou com o braço, e
um par de sombras pretas em forma de cão emergiu da escuridão e
voou para mim. Eu parti um com Kamigoroshi e esmaguei a garganta
do segundo em meu punho enquanto ele investia, e as bestas das
sombras se contorceram até o nada.
O homem continuou lutando para trás. — Você não pode vencer.
— Ele insistiu, ofegante. O suor escorria por seu rosto, pingando nas
pedras, enquanto ele erguia as duas mãos em um gesto de
proteção. — Não importa o que você faça, seu tempo neste reino é
limitado.
Uma rede de escuridão voou de seus dedos, formando um arco
em minha direção. Eu a arranquei do ar e a joguei de lado, quando o
humano finalmente atingiu a parede do pátio. Ofegante, incapaz de
fugir mais, ele pressionou as costas contra as pedras, tremendo,
quando eu parei a um passo de distância. A pintura do rosto dele
estava manchada de suor, as manchas pretas manchadas e borradas, e
o branco de seus olhos apareceu quando ele olhou para
mim. Desafiador em face da morte.
— Meu clã vai me vingar. — Ele sussurrou. — Dama Hanshou
sabe que você foi liberado, Hakaimono. Enquanto você caminhar
neste reino, o Clã das Sombras não descansará. Nós iremos expurgar
você da terra, mesmo que tenhamos que sacrificar mil guerreiros,
shinobi e majutsushi para isso!
— Dama Hanshou? — Eu ri. — Dama Hanshou armou você
como isca, humano. Ela nunca esperava que você ganhasse. — A testa
do humano franziu e eu bufei. — Hanshou me conhece... Há muito
tempo, sua daimyo e eu nos conhecemos. Ela está bem ciente de que
uma dúzia de guerreiros e um majutsushi não são o suficiente para
me desafiar. Você e seus homens foram um sacrifício para me atrasar
ou para testar o quão forte eu me tornei. Provavelmente há um
shinobi por perto agora, nos observando. Isso é bom. Ele pode levar
essa mensagem de volta.
Eu levantei Kamigoroshi e a abaixei, acertando o topo do crânio
do homem e partindo-o até a virilha. O majutsushi caiu de joelhos, os
pedaços de sua parte superior do corpo caindo para os lados, antes
que ele desabasse molhado no chão.
— O Clã das Sombras morrerá. — Eu disse para o ar, para o
shinobi escondido sem dúvida ouvindo cada palavra minha, e para a
alma presa dentro de mim, furiosa com sua própria impotência. —
Para cada dia em que fui aprisionado pela espada, vou matar um
membro dos Kage, homem, mulher e criança, até que não haja mais
ninguém. Vou arrasar seus castelos e cidades e encharcar a terra com
tanto sangue que nada crescerá lá novamente. E quando eu chegar a
Dama Hanshou, veremos se uma imortal pode continuar a existir
depois de eu ter arrancado o coração murcho de seu peito e comido na
frente dela. — Embainhando Kamigoroshi, me virei e comecei a
caminhar pelo pátio em direção aos degraus do templo. — Leve isso
de volta para o sua daimyo. — Eu disse ao vazio. — Diga a ela que ela
não tem que mandar ninguém atrás de mim. Eu a verei em breve.
Pelo canto do olho, percebi um lampejo de movimento no
telhado do templo, uma sombra indefinida deslizando pela
escuridão. Enquanto ele desaparecia na noite, eu sorri e balancei
minha cabeça. Exatamente como eu suspeitava. O Clã das Sombras,
com todos os seus segredos e mistérios e reivindicações de dançar
com a escuridão, era bastante previsível.
Embora eles tenham me encontrado antes do que eu pensava
que iriam. Mesmo que este grupo fosse apenas um teste, um
experimento conduzido por sua daimyo implacável para ver o que eu
poderia fazer, mais viriam. Depois de séculos vivendo com os Kage,
aprendendo seus caminhos e seus segredos com cada matador de
demônios que assumiu Kamigoroshi, eu sabia mais sobre o Clã das
Sombras do que qualquer pessoa, exceto sua daimyo imortal.
O problema era que o Clã das Sombras também me conhecia. Eu
poderia lidar com uma dúzia de samurais. Algumas centenas se
tornariam problemáticos, especialmente se eles mandassem
majutsushi com eles. Seu mais novo mago-chefe, um humano magro
chamado Kage Naganori, era um idiota arrogante e insuportável, mas,
pelo que eu tinha visto, poderoso. E por mais que eu odiasse admitir,
Kage Tatsumi era apenas mortal. Seu corpo, embora eu tenha dado a
ele um pouco da resistência e rápida cura pela qual minha espécie era
famosa, não era tão durável quanto o de um oni. Bastaria uma espada
em sua garganta, uma flecha em seu coração, e eu ficaria preso em
Kamigoroshi por mais alguns séculos.
Bem no fundo, eu senti um lampejo de um desejo que não era
meu, a alma de Kage Tatsumi esperando desesperadamente que
alguém o matasse.
Tão ansioso para morrer, Tatsumi? Não se preocupe, você realizará seu
desejo em breve. Mas desta vez, não vou voltar para aquela espada
amaldiçoada. Desta vez, quando você morrer, eu finalmente estarei livre.
Levantei minha cabeça e olhei para a lua subindo lentamente
sobre o telhado do templo. O Clã das Sombras morreria. Por me
prender em Kamigoroshi, por assumir arrogantemente que eles
poderiam usar meu poder para promover seus próprios projetos, eu
lançaria minha vingança contra toda a linhagem Kage. Eles
experimentariam horror e sofrimento como nunca haviam conhecido,
e no final, quando ela estivesse cercada pelos restos mortais de seu clã,
eu pessoalmente torceria a cabeça de Dama Hanshou de seu pescoço
murcho e acabaria com os Kage para sempre. Mas havia uma coisa
que eu precisava realizar, primeiro.
Eu me virei e atravessei o pátio, as pedras rangendo sob meus
pés, em direção ao portão podre que marcava a entrada do templo. Eu
teria que me apressar. Era uma longa jornada para o meu destino,
deixando o território do Clã do Céu, através das terras de Taiyo
novamente, e através das traiçoeiras Montanhas da Espinha do
Dragão que dividiam Iwagoto ao meio. Viajar pela Espinha do Dragão
era perigoso mesmo com bom tempo; todos os tipos de monstros e
yokai vagavam por aqueles picos solitários e, embora a ideia de topar
com um tsuchigumo ou bruxa da montanha não me incomodasse,
dizia-se que os kami das Montanhas da Espinha do Dragão eram
inconstantes e às vezes exigiam sacrifícios. Os seres humanos que
viajavam por esses caminhos estreitos desapareciam no ar. Eu não
gostava da ideia de caminhar por montanhas infestadas de yokai e
kami, mas também tornaria as coisas difíceis para aqueles que me
perseguiam. Se algum membro do Clã das Sombras me seguisse para
aqueles picos irregulares e implacáveis, eu me certificaria de que eles
não saíssem novamente.
Abaixo do portão, onde antes ferozes guardiões de pedra agora
jaziam rachados e quebrados no chão, eu parei e olhei de volta para a
matança no pátio. Samurais Kage estavam espalhados em pedaços
para cima e para baixo nos degraus do templo, e o corpo dividido do
majutsushi estava caído no chão. Tão fácil. Eu respirei o cheiro da
morte. Humanos morrem tão rapidamente. Como apagar uma vela.
Tatsumi se mexeu, sua raiva roçando minha mente, e eu
sorri. Não se preocupe, matador de demônios. Você não terá que assistir à
destruição completa dos Kage. Assim que estiver livre, vou libertar você de
sua miséria e mandar sua alma para Jigoku. Isto é apenas o começo.
Capítulo 6
O caminho das sombras
Yumeko

Nós seguimos Naganori a um pequeno e aparentemente


esquecido profundo cemitério na floresta.
— Bem, isso só fica melhor e melhor. — Okame murmurou,
enquanto passávamos por baixo de um portão torii de pedra em
ruínas na borda do cemitério. Lápides se projetavam do chão da
floresta, tão gastas e cobertas de musgo que era impossível lê-
las. Espalhados entre os túmulos, corroídos pelo tempo, avistei
algumas estátuas de Jinkei, o Kami da Misericórdia e dos
Perdidos. Um silêncio antigo e sombrio pairava no ar, a sensação de
um lugar esquecido pelo mundo, inalterado por séculos. Eu esperava
que todas as almas enterradas aqui tivessem sido capazes de seguir
em frente.
— Deixe para o Clã das Sombras tornar as coisas o mais
desconfortáveis possível. — Okame continuou, lançando sua voz
baixa, para não perturbar os mortos, eu suponho. — E aqui estava eu,
esperando viajar em um kago pelo império com conforto e luxo.
Kago eram liteiras cobertas carregadas a pé até o destino. Eu
tinha visto um na cidade imperial, a caixa laqueada com detalhes em
ouro abrindo caminho por uma rua movimentada, uma escolta de
samurais montados ao lado dela. A luz do sol tinha refletido na
madeira polida e na guarnição dourada, mas tudo que eu conseguia
pensar era o quão cansados e quentes os quatro carregadores nos
cantos pareciam. — Mas as terras dos Kage estão na extremidade sul
do império, Okame-san. — Eu sussurrei. — Isso não levaria muito
tempo?
— Semanas. — disse Daisuke baixinho. Seu rosto estava sereno,
mas seu olhar oscilava para frente e para trás, como se ele esperasse
que fantasmas ou mortos famintos saltassem sobre nós. — Talvez
mais. Eu estava esperando cavalos, uma espécie de escolta para as
terras dos Kage. Então, por que eles nos trouxeram aqui? Por que um
cemitério no meio da noite?
— Porque nós, do Clã das Sombras, conhecemos a escuridão
melhor do que a maioria. — Naganori respondeu, virando-se para
sorrir pelo nosso desconforto. Ele parou no centro da trilha estreita e
ergueu os dois braços como se fosse abraçar a cena ao nosso redor. —
Para os outros clãs, a noite deve ser temida, algo a ser excluído e
mantido à distância com luz e calor. Mas a escuridão sempre
favoreceu os Kage, e aprendemos que viajar pelas sombras é muito
mais rápido do que viajar na luz.
— Crítico. — comentou Okame. — Então, como vamos
realmente chegar lá?
O majutsushi baixou os braços e olhou feio. — É um ritual
complicado que levaria muito tempo para ser explicado aos não
iniciados. — disse ele. — Vou simplificar para vocês. Estaremos
realizando uma técnica chamada Kage no michi, o Caminho das
Sombras. Em sua forma mais simples, saímos desse reino entrando
nas sombras e emergimos do outro lado do país da mesma
maneira. Chegaremos ao nosso destino muito mais rápido do que se
tivéssemos caminhado, cavalgado ou sido transportado em um
luxuoso kago por terra.
— Então as histórias são verdadeiras. — disse Daisuke. — De
shinobi Kage passando por paredes sólidas e entrando em espaços
que deveriam ser impossíveis de entrar, porque eles podem derreter
nas sombras e emergir do outro lado.
O majutsushi fungou. — Esses são rumores, Taiyo-san, mas
como muitos rumores, eles contêm uma semente de verdade. A
realidade da caminhada nas sombras é muito mais sombria. Veja, em
certas áreas e em certos dias, a cortina entre o reino mortal e o reino
dos mortos é muito tênue. Cemitérios, obviamente... — ele gesticulou
para nossos arredores — ...templos e campos de batalha são lugares
onde os mortos e vivos às vezes se misturam. O Tama Matsuri,
realizado todos os anos na noite mais longa, é um momento em que
nossos ancestrais podem cruzar o véu e entrar no reino mortal para
visitar seus parentes vivos, até que o sol nasça e eles voltem ao mundo
dos mortos.
— O Caminho das Sombras... — continuou Naganori enquanto
eu estremecia. — Faz a ponte entre Ningen-kai, o reino dos vivos, e
Meido, o reino dos mortos. Em certas noites, a cortina se abre, mas
nós, os Kage, aprendemos a abri-la à vontade, apenas larga o
suficiente para deslizar entre elas. Usando essa técnica, podemos
viajar centenas de quilômetros em poucas horas, embora deva haver
um bruxo das Sombras presente para abrir a cortina novamente. O
ritual em si é exaustivo e nos levará alguns saltos para chegar às terras
dos Kage, mas chegaremos ao castelo Hakumei em dias, ao invés de
semanas.
— Incrível. — Pensou Daisuke, mas parecia preocupado ao dizer
isso. — Eu não sabia que os Kage podiam se mover tão rápida e
fluidamente pelas fronteiras do clã. É realmente surpreendente se eles
podem mover um exército inteiro de um território para outro sem
serem vistos.
O majutsushi deu uma risada rouca. — Eu sei o que você está
pensando, Taiyo-san. Mas você não precisa se preocupar. Os Kage não
usam essa técnica com frequência e nunca em grande número. Tentar
trilhar o Caminho com vocês cinco será um risco por si só.
— Por quê? — Eu perguntei.
Naganori me lançou um olhar desdenhoso. — Porque, garota...
— ele começou. — Andar no Caminho das Sombras é perigoso, como
você verá em apenas um momento. Meido estará a apenas um sopro
de distância, e os espíritos dos mortos têm muito ciúme dos
vivos. Você pode ouvir uma voz familiar chamando por você. Você
pode ver um parente querido acenando para você à distância. Mas
cuidado, o chamado dos mortos a levará a sua queda. Se você der um
passo errado, se você se desviar do caminho, você tropeçará no
mundo deles. E uma vez que você estiver no reino dos mortos, ele não
deixará você ir.
O gelo em meu estômago se espalhou por todo o meu corpo,
enquanto Naganori nos fixava com um olhar penetrante. — Portanto,
prestem atenção a este aviso... — ele disse em uma voz firme. — E
ignorem os apelos dos mortos, não importa quem vocês vejam, não
importa o que eles lhe digam. Vai ser difícil. A cada poucos anos,
perdemos um majutsushi ou um shinobi para o Caminho. Eles
conhecem os perigos, eles estão cientes do chamado de Meido, e ainda
assim, eles entram nas sombras e nunca mais saem. — Seus olhos
negros se estreitaram e ele apontou um dedo fino como um galho em
nossa direção. — Isso vai acontecer com vocês, se vocês não estiverem
vigilantes e não fizerem exatamente o que eu digo. E mesmo assim...
— Ele fungou novamente e balançou a cabeça em resignação, como se
a avaliação já tivesse sido feita. — O chamado do Meido é forte, mais
forte para os fracos de vontade e indisciplinados. — Seu olhar cintilou
para Okame e eu antes de se afastar. — Espero perder pelo menos um
de vocês antes de chegarmos às terras Kage.
Ele se virou e Okame fez uma careta rude em suas costas antes
de se inclinar perto de nós. — Eu não gosto dessa pessoa. — ele
murmurou, ganhando um bufo de aprovação de Chu. — Você viu a
maneira como ele olhou para nós, Yumeko-chan? Eu acho que todos
nós devemos chegar às terras dos Kage sãos e salvos, apenas para
irritá-lo.
Mestre Jiro, quase esquecido atrás de nós, deu um passo à frente
parecendo sombrio. — Se realmente vamos caminhar ao lado do reino
dos mortos, devemos ter cuidado. — Ele nos disse. — O majutsushi
falou a verdade, os espíritos dos mortos têm muito ciúme dos
vivos. Cuidado um com o outro. Não deixem os outros saírem do
caminho. Tenho medo do que possamos ver ou ouvir enquanto
estivermos no mundo das Sombras.
— E aquele bruxo certamente não vai ajudar. — Reika
murmurou, olhando feio para Naganori. — Não me surpreenderia se
um de nós acidentalmente 'tropeçasse' e saísse do caminho enquanto o
seguia.
Eu inclinei minha cabeça para ela. — Isso significa que o
Caminho será muito acidentado ou que Naganori-san não nos ajudará
se o fizermos?
Ela suspirou. — Não, Yumeko. Apenas... tome cuidado com o
majutsushi. Eu não confio nele.
O principal majutsushi do Clã das Sombras começou a
cantar. Parado na base de uma grande lápide de pedra, Naganori
levou dois dedos aos lábios e começou um murmúrio baixo e
monótono que arrepiou os cabelos da minha nuca. Enquanto
observávamos, a sombra lançada pela lápide estreita pareceu
escurecer, sugando a luz até que se assemelhasse a uma faixa do
próprio vazio, à luz bruxuleante da tocha.
Naganori se virou para nós, gesticulando com uma mão branca e
pálida. — Rápido agora. — ele pediu. — O caminho não ficará aberto
por muito tempo. Sigam-me, fechem seus ouvidos às vozes e não
deixem seus olhos se desviarem do caminho. Com alguma sorte,
estaremos do outro lado das terras de Taiyo antes que a noite acabe.
Ele pisou na estreita faixa de sombra lançada pela lápide e
pareceu desaparecer quando a escuridão o engoliu.
Okame proferiu uma maldição suave.
Quase invisível nas sombras, os shinobi Kage nos observavam,
como se temesse que tentássemos fugir agora que Naganori havia
partido. Eu não diria que o pensamento não passou pela minha
cabeça, mas duvido que todos os cinco de nós fugiríamos, mesmo se
tentássemos escapar.
Eu respirei fundo, afastando o medo agarrado ao meu
coração. Isso é por Tatsumi, eu me lembrei. Não vou abandoná-lo com
Hakaimono. De alguma forma, vou encontrar uma maneira de trazê-lo de
volta.
Definindo meu queixo, eu entrei na estreita faixa de sombra, e o
mundo ao meu redor desapareceu na escuridão.
Eu estremeci e esfreguei meus braços enquanto olhava ao
redor. Estava frio, mas não o ar fresco de uma floresta no inverno, ou
o frio glacial de um lago na montanha. Aquele era um frio mortal e
forte, como ser enterrado na escuridão e na terra silenciosa com
vermes, besouros e ossos. Ao meu redor, não havia nenhuma brisa,
nenhum som ou cheiro, ou qualquer indício de vida. Era como se eu
estivesse no centro de um corredor estreito e infinito, uma faixa de
escuridão total, um caminho de vazio serpenteando na escuridão. À
minha direita, eu podia ver o cemitério e Okame, Reika, Daisuke,
Mestre Jiro e os dois cães, mas suas figuras estavam borradas e
desbotadas nas bordas. Okame estava dizendo algo enquanto
apontava em minha direção, mas sua voz parecia abafada, como se ele
estivesse debaixo d'água, e seu olhar passou direto por mim.
À minha esquerda havia uma parede sólida de
névoa. Tentáculos irregulares flutuavam ao longo do caminho,
enrolando em torno de meus tornozelos como dedos gelados. Aquele
calafrio morto parecia emanar da névoa e do que quer que estivesse
além. Enquanto eu observava, uma seção de névoa se dissipou e, por
apenas um momento, pude ver um rosto, pálido e de olhos fundos,
olhando para mim do vazio.
O pânico aumentou, fazendo meu coração palpitar em volta do
meu peito como um pássaro assustado. Meu pulso tornou-se um
baque abafado em meus ouvidos e pareceu ecoar por quilômetros, o
único ponto de vida na escuridão.
— Cuidado. — Uma voz ressoou atrás de mim, e a forma alta e
esquelética de Naganori pareceu se materializar como um
fantasma. Seus lábios estavam pressionados em uma linha sombria
enquanto ele olhava para mim. — Não saia do caminho, ou os
espíritos dos mortos estarão em você em um piscar de olhos. Eles
podem ouvir, você sabe. — Ele apontou para o meu peito. — Seu
medo vai denunciá-la. Se você não conseguir controlar suas emoções,
eles a perseguirão por todo o caminho. — Ele suspirou. — Embora eu
suponha que isso possa ser pedir muito, mesmo para alguém que é
onmyoji. Talvez um feitiço fosse vantajoso. Eu sempre poderia colocá-
la para dormir durante a viagem.
Minha pele se arrepiou. — Não. — Eu disse ao majutsushi, e dei
um passo cuidadoso para trás. — Isso não será necessário.
Seu lábio se curvou. — Muito bem. Mas minhas ordens são para
levá-la até Dama Hanshou, viva e ilesa. Eu não me importo com os
outros, e nem qualquer outra pessoa nos Kage. — Ele se aproximou de
mim e baixou a voz. — O bem-estar deles depende da sua
cooperação. Certifique-se de se esforçar para chegar com segurança às
terras Kage, ou seus amigos podem sofrer as consequências.
Eu me arrepiei, mesmo quando outra vibração de medo passou
pelo meu estômago. Por um momento, o desejo de usar a magia da
raposa de uma maneira não agradável foi muito tentador. Eu tive
visões de mãos fantasmagóricas estendendo-se para ele através da
névoa, ou suas vestes explodindo de repente em chamas azuis sem
calor. Mas Naganori pode reconhecer outra forma de magia; ele
poderia até descobrir que eu era parte kitsune e não queria que este
homem conhecesse minha verdadeira natureza. Nem eu queria
colocar os outros em perigo, pois o majutsushi acabara de fazer uma
ameaça muito deselegante.
— Bem, este não é um lugar encantador. — O alívio floresceu
através de mim quando a voz familiar e ácida de Okame ecoou
através do silêncio opressor. O ronin se aproximou, sua presença
estimulante nas minhas costas, e eu podia imaginar seu sorriso
desafiador direcionado para Naganori por cima da minha cabeça. — É
aqui que você passa a maior parte do tempo, bruxo? Agora eu vejo de
onde vem a sua personalidade encantadora.
O queixo do majutsushi se ergueu. — Cachorro insolente.
— Isso é o que todos me dizem. — Okame sorriu, já que com
ondulações de cor e calor, o resto de nossa companhia emergiu na
escuridão. Reika sussurrou uma prece suave para os kami, enquanto
Chu e Ko rosnavam e espiavam por trás de suas pernas, os dois cães
olhando com os olhos arregalados para a névoa.
Naganori recuou, quase parecendo flutuar enquanto se
afastava. — Sigam-me. — disse ele. — Mais uma vez, vou oferecer
este aviso, mantenham-se no caminho, não se desviem da trilha e não
olhem muito para a névoa. Se vocês fizerem isso, poderão se ver
separados do caminho e de seus companheiros. A névoa tem um jeito
de enganar sua mente e fazê-la pensar que você está sozinho com os
espíritos daqueles que morreram. Se você não puder ignorá-los e se
concentrar no caminho, isso se tornará uma realidade. Agora, se
apressem. Os mortos já notaram, e estou curioso para ver quantos de
vocês conseguem chegar ao outro lado.
— Fiquem juntos, todos. — Reika murmurou, e começamos o
caminho, seguindo o majutsushi pelo corredor de névoa e escuridão.

— Yumeko-chan. — Sussurrou uma voz.


Meu coração pulou uma batida. Era impossível dizer quanto
tempo passamos no caminho, horas ou dias, mas estava começando a
parecer que sempre estivemos aqui. Como se o cinza plano e morto
fosse tudo que eu conhecia, e era difícil lembrar de qualquer outra
coisa.
Virei minha cabeça, muito ligeiramente, para ver uma figura
parada na beira do caminho logo à frente, sorrindo para mim. Seu
rosto estava enrugado e desgastado pelo tempo, ele usava tamancos
de madeira e um conhecido chapéu de palha na cabeça
careca. Quando minha garganta fechou e meu coração deu uma
violenta onda de reconhecimento, a figura riu baixinho e ergueu a
mão murcha.
— Olá, Yumeko-chan. — disse Mestre Isao.
Meus passos vacilaram. Lágrimas brotaram dos meus olhos, mas
eu desviei meu olhar e me apressei. Nenhum dos outros parecia ter
notado o monge na beira do caminho; quando olhei para eles, seus
próprios olhos estavam vidrados e distantes, seus rostos pálidos. A
mandíbula de Reika estava cerrada com força, e os olhos de Okame
estavam suspeitosamente brilhantes. Eu lancei um olhar para trás e vi
Mestre Jiro marchando rigidamente, seu olhar fixo em frente. Daisuke
estava atrás dele, sua expressão transformada em uma máscara
branca. Ninguém parecia ver ou ouvir as figuras na névoa. Eles
pareciam presos em seus próprios pensamentos, ou talvez estivessem
vendo rostos que reconheceram na névoa, também.
— Garota raposa. — disse uma voz, e agora Denga-san apareceu,
caminhando ao meu lado no caminho. — Fugindo de novo? — ele
disse, em sua voz exasperada familiar. — Onde você pensa que está
indo, exatamente? Você sabe que fugir de suas responsabilidades não
fará nada desaparecer.
— Vá embora. — Eu sussurrei, prendendo minhas orelhas no
meu crânio. — Eu não estou ouvindo. Eu não quero ver você, então
me deixe em paz. — Nem Reika nem Daisuke olharam para mim,
embora o fantasma de Denga-san bufasse.
— Isso é como você. — Ele suspirou, acompanhando o meu
ritmo enquanto eu caminhava. — Despreocupada e imoral, assim
como um yokai. Como uma raposa sem alma. — Sua voz endureceu,
tornando-se amarga e zangada. — Eu sabia que era um erro aceitar
você. Desde o momento em que você chegou ao templo, nunca quis
você lá. E nem o Mestre Isao.
Minha respiração ficou presa e as lágrimas escorreram pelos
cantos dos meus olhos. Tentei calar suas palavras, mas elas ecoaram
em minha alma, cortantes e dolorosas. — Isso não é verdade. — Eu
sussurrei.
— Não? — Ele zombou, uma expressão cortante e cruel que eu o
tinha visto fazer apenas uma ou duas vezes, mas ainda era
dolorosamente familiar. — Mestre Isao desprezava você, menina
raposa. Ele sabia o que um yokai poderia fazer, até mesmo uma meio-
yokai. Ele lhe ensinou disciplina e controle porque temia as maldades
e a miséria que você traria se tivesse permissão para correr
livre. Porque ele sabia que nunca se poderia confiar em um yokai.
— Não. — Protestei, e me virei para encarar não Denga, mas
Mestre Isao, parado a alguns metros de distância na névoa. Seus olhos
estavam escondidos nas sombras de seu chapéu de aba larga, e ele não
estava mais sorrindo.
— Garota raposa. — A figura familiar sussurrou, balançando a
cabeça. Sua voz triste e acusadora me cortou como o açoite de um
chicote. Levantando o queixo, ele encontrou meu olhar, olhos negros
impassíveis me apunhalando através do coração. — Decepcionante. —
Ele sussurrou em uma voz de pedra. — Eu esperava muito mais. Nós
a criamos, ensinamos nossos caminhos, demos tudo a você e você
retribuiu nos deixando para morrer.
Foi como se ele tivesse me dado um soco. O desprezo e a raiva
de Denga eu poderia controlar; suas palavras foram cruéis, mas não
inesperadas. Mas ouvir aquelas palavras de Mestre Isao... Foi como se
ele tivesse visto meu maior e mais secreto medo e o tivesse arrastado
para brandir na minha cara. Caí de joelhos, quando um buraco se
abriu em meu estômago e meus olhos turvaram de lágrimas. Denga
apareceu atrás do monge-chefe, enquanto Jin e Nitoru iam para o
outro lado dele. Seus olhares de reprovação me perfuraram, pesados e
acusadores, embora nenhum fosse tão terrível quanto o olhar
impiedoso de Mestre Isao. — Sinto muito. — Eu sussurrei, enquanto
as imagens daquela noite giravam em minha cabeça. Chamas,
demônios e sangue, e os corpos sem vida dos monges esparramados
no chão do templo. Lágrimas escorreram pelo meu rosto e mancharam
meu manto onde caíram. — Eu queria lhes salvar...
— Você nos deixou para morrer. — Repetiu Mestre Isao. — Nós
demos nossas vidas para proteger o pergaminho, enquanto os
demônios nos matavam, e você não fez nada. Você merece estar aqui,
conosco. Por que deveríamos ter morrido e você sobreviveu? Venha,
Yumeko-chan. — Ele ergueu a mão com a palma para fora, me
chamando para frente. — Venha conosco. — Ele pediu. — Tudo estará
perdoado. Você pode começar de novo. Pode ser como antes, sem
medo, sem dor. Eu sei que você deve estar sozinha, uma meio-kitsune
sozinha no mundo. Esqueça seus problemas e seu dever. Esqueça o
pergaminho, Yumeko-chan. Você pertence aqui, conosco.
Esqueça o pergaminho?
Piscando, eu olhei para cima. Mestre Isao estava lá, mão
estendida, um sorriso gentil e perdoador no rosto. Denga, Jin e Nitoru
estavam atrás dele, mas agora suas expressões eram ansiosas,
esperançosas.
Quase com fome.
Um arrepio passou por mim e recuei, observando o sorriso do
monge se transformar em uma carranca perplexa. — Mestre Isao... —
comecei, sentindo como se minha mente estivesse atolada em teias de
aranha e começando a clarear — ...nunca me diria para esquecer o
pergaminho. Seu dever era protegê-lo e ele morreu para garantir que
não caísse nas mãos erradas. Ele e os outros deram suas vidas para
garantir que eu pudesse escapar, porque a responsabilidade deles com
o pergaminho era tudo.
Mestre Isao fez uma careta. — Eu morri para que você pudesse
viver. — Ele sibilou, dando um passo à frente e me fazendo
encolher. Seu rosto mudou. Agora ele parecia uma velha beliscada, os
lábios puxados para trás de seus dentes amarelos enquanto ela olhava
para mim. — Criança ingrata. — A mulher cuspiu. — Você pertence
aqui comigo. Desisti de tudo por você, meu amor, minha saúde,
minha felicidade. E você fugiu para viver sua vida com aquele
comerciante insignificante ninguém. Vergonhoso! E depois de tudo
que fiz por você.
Pisquei para ela, balançando a cabeça. A mulher continuou a
reclamar de mim, sua voz um zumbido monótono em meus
ouvidos. Atrás dela, eu podia ver outras formas na névoa, mas as
figuras que pensei serem Denga, Nitoru e Jin agora eram pessoas que
eu não reconhecia. Tive a percepção de que a mulher não tinha dito
nada diferente, e ela não mudou sua imagem para se parecer com
Mestre Isao. Mas de alguma forma, eu tinha visto e ouvido
exatamente o que temia, a culpa secreta lá no fundo vindo à tona.
Eu soltei um suspiro em descrença. Eles não eram reais, disse a
mim mesma. Mestre Isao, Denga, Nitoru, Jin, eles não estavam aqui. Acabei
de ver o que esperava... o que sempre temi.
A mulher continuou a me criticar, acusando-me de ser uma filha
horrível e de esquecê-la, de não visitar seu túmulo com a frequência
que deveria. Ela certamente não me reconheceu como uma estranha, e
uma kitsune; parecia que os mortos também viam apenas o que
queriam.
Eles não são maliciosos, eu percebi. Apenas infelizes. Talvez seja
muito solitário em Meido enquanto eles esperam para seguir em frente. Eles
veem os espíritos dos vivos como pessoas que conheciam, e isso os lembra de
quando estavam vivos. Eu enruguei meu nariz. Embora você ache que
Naganori pudesse ter mencionado isso.
Cuidadosamente, levantei-me e fiz uma reverência aos espíritos
perturbados, soluçando para mim além da parede de névoa. —
Viagem segura para vocês. — Murmurei. — Que vocês encontrem o
que estão procurando, para que possam seguir em frente. — Então,
respirei fundo e dei as costas aos espíritos dos mortos. Eles uivaram e
choraram, implorando para que eu não fosse, mas eu me afastei, e
suas vozes suplicantes, soluçando e praguejando se transformaram
em ruído de fundo. Fechando meus ouvidos para o clamor, eu me
sacudi e olhei em volta procurando os outros.
Eu estava sozinha no caminho escuro. Não pude ver Reika,
Okame, Daisuke, Mestre Jiro... até Naganori havia desaparecido. Meu
coração deu uma guinada violenta quando o medo e o pânico
aumentaram, e eu olhei loucamente ao redor em busca de qualquer
indício do familiar.
— Yasuo?
O sussurro saiu da escuridão, fazendo com que o alívio
inundasse minhas veias. Dei alguns passos em direção à voz e vi uma
figura familiar se materializar à distância.
Okame-san. Quase o chamei, mas me contive, vendo os rostos dos
mortos me observando através da névoa. Não querendo atrair a
atenção deles, comecei a caminhar em direção a Okame, movendo-me
o mais rápido que pude, sem fazer nenhum barulho.
— Okame. — Chamei em um sussurro alto, mas o ronin me
ignorou. Ele estava na beira do caminho, olhando para algo na
névoa. A poucos metros de distância, na névoa, de repente vi a figura
pálida de um velho, que apontou um dedo acusador para o ronin na
borda da névoa e rosnou algo que eu não pude ouvir. Os ombros de
Okame estavam curvados, sua cabeça baixa e um soluço baixo veio a
mim acima dos sussurros dos mortos.
— Sinto muito, Yasuo. — A voz de Okame estava embargada. —
Me perdoe.
Não, Okame. Não dê ouvidos! O medo apunhalou-me novamente e
comecei a correr em direção a ele, mas era como correr em direção a
algo em um sonho. Não importa o quanto eu tentasse, eu não
conseguia diminuir a distância, embora pudesse ouvir claramente sua
voz, tremendo e atormentada, flutuando para mim através das
sombras.
— Foi um erro, irmão. Eu não... eu não sabia o que iria
acontecer. Sei que nunca poderei compensar você, mas... — Uma
pausa, quando o espírito do outro lado disse algo, e a voz de Okame
voltou, resignada e pesada de culpa. — Yasuo, se juntar-me a você é a
única maneira de colocar seu espírito para descansar...
— Okame, não! — Aumentei a velocidade, mas ainda estava
muito longe para alcançá-lo. — Esse não é o seu irmão, Okame! — Eu
gritei em desespero. — Seu irmão não está falando com você, é apenas
um espírito zangado e solitário que quer sua alma! Não deixe que isso
te leve a entrar no Meido!
Os espíritos dos mortos assobiaram para mim, aglomerando-se
na beira do caminho, suas vozes elevando-se no ar. Okame finalmente
virou a cabeça, seu olhar vazio e vazio encontrando o meu na
escuridão.
— Yumeko-chan. — Ele murmurou, enquanto o espírito na
frente dele rangia os dentes. — Sinto muito. — disse o ronin, fazendo-
me franzir a testa em confusão. Seus olhos estavam sombrios, mas ele
ainda me deu aquele sorriso torto e irônico de desafio. — Parece que
não posso ir com você ao templo Pena de Aço. — disse ele. — Meu
irmão, Yasuo, exigiu que eu ficasse com ele. Eu tenho que colocar seu
espírito para descansar.
— Não, Okame-san. Me escute. — Corri para frente,
implorando. — Esse não é o seu irmão. Não é Yasuo. Seu irmão
exigiria que você ficasse aqui, no reino dos mortos? Realmente olhe
para ele e me diga o que você vê.
O ronin balançou a cabeça. — Não importa, Yumeko-chan. —
Ele disse estupidamente. — A verdade é que eu traí meu irmão e ele
morreu por causa disso. Yasuo está certo. — Okame enfrentou o
espírito novamente e deu um passo à frente. Mais um passo o tiraria
do caminho para a névoa. — Eu deveria estar aqui, com meu irmão e
todos os homens que traí. Era meu dever e eu o abandonei. Eu os
abandonei. — Ele respirou fundo, como se estivesse se preparando, e
ergueu o queixo. — Eu é que deveria estar aqui, não eles.
Gritei e estendi a mão para ele, sabendo que era tarde demais,
que ele estava muito longe. Mãos fantasmagóricas alcançaram através
da névoa e se agarraram à frente de seu casaco. Ele não fez nada para
detê-los, e eles o arrastaram para fora do caminho, para a névoa além.
— Okame-san!
Houve um borrão de branco e azul, e Daisuke apareceu,
avançando e agarrando Okame pelo colarinho no momento em que o
ronin foi puxado para a névoa. Plantando os pés no caminho, o nobre
deu um puxão para trás, se preparando, arrancando gritos raivosos da
névoa além. Corri para frente, o coração batendo forte, enquanto
Daisuke puxava o ronin pela metade para fora da névoa. Mãos e
braços pálidos agarraram Okame, tentando arrastá-lo para a terra dos
mortos.
— Espíritos... — ouvi Daisuke cerrar os dentes quando os
alcancei e agarrei Okame pela manga, entrando no cabo de guerra
mortal. — Eu sei que vocês estão com raiva, que vocês estão tristes,
que vocês têm ciúmes daqueles que ainda vivem. Peço desculpas, mas
não posso permitir que vocês peguem este ainda. Perdoe-me, mas ele
é necessário aqui!
Ele deu um forte puxão, e as mãos agarradas a Okame se
soltaram. Nós três tombamos para trás e desabamos no
caminho. Ofegante, eu me endireitei e olhei para o ronin, que estava
caído no chão, imóvel. Seus olhos estavam abertos e vidrados, e ele
estava branco como um pergaminho.
— Okame-san! — Eu balancei o braço do ronin; ele caiu sob
meus dedos, fazendo meu estômago torcer. — Okame-san,
acorde. Você pode me ouvir?
Nenhuma resposta de Okame. Ele estava respirando, seu peito
subia e descia em respirações superficiais, mas sua expressão estava
frouxa e ele olhava para o nada. Piscando rapidamente, olhei para o
nobre. — Ele não está respondendo. Daisuke-san, o que podemos
fazer?
O nobre sentou-se, estremecendo, e olhou para a forma imóvel
do ronin entre nós. — Meu mestre costumava dizer, às vezes um
sussurro é tudo o que é necessário para acalmar uma tempestade, mas
quando as palavras falham, às vezes você precisa do trovão.
Eu fiz uma careta. — O que?
Ele se virou para o ronin e fez uma reverência rápida. — Minhas
desculpas. — Ele murmurou, e bateu com força no rosto dele. O estalo
da palma da mão contra a bochecha do ronin ecoou alto na escuridão.
— Ow! — Okame se endireitou, colocou a mão no rosto e olhou
para o nobre. Percebendo onde estava, ele caiu para trás com um
gemido. — Kuso. Esse é o Meido? Estamos mortos?
Daisuke sorriu. Seu longo cabelo branco havia caído em seus
olhos, e suas vestes, já rasgadas, sofreram ainda mais abusos. Ele
parecia bastante desgrenhado sentado ali no chão, mas ainda assim
conseguiu manter sua dignidade. — Ainda não, receio. — Ele
murmurou. — Embora você tenha tentado o seu melhor há alguns
segundos.
— Droga. — Okame esfregou a mão no rosto. — Fantasmas
bastardos. Eu realmente pensei ter visto Yasuo por alguns segundos
lá. — Ele olhou para Daisuke, uma carranca perplexa cruzando seu
rosto. — Por que você me salvou, Taiyo? — ele exigiu em uma voz
áspera. — Não é como se eu fosse um samurai. Eu sou um cachorro
ronin imundo, sem nenhuma honra para salvar. Não há vergonha em
deixar um ronin inútil ser puxado para o reino dos mortos por sua
própria estupidez.
Uma ruga vincou a testa do nobre. — Você deve pensar muito
pouco de mim, Okame-san. — disse Daisuke, parecendo mais
magoado do que ofendido. — Nós sangramos juntos, lutamos juntos,
lutamos contra monstros, demônios e oni lado a lado. Jurei proteger
Yumeko-san, mas há um juramento tácito que sigo. Enquanto eu
puder, minha lâmina defenderá aqueles que eu prezo, minha família,
meus amigos, meus companheiros guerreiros. — Ele olhou o ronin
nos olhos. — Não importa quem sejam ou o que tenham feito no
passado.
O silêncio caiu sobre o caminho. Os dois homens pareciam ter
esquecido que eu estava ali. Daisuke continuou a segurar o olhar de
Okame, sem vacilar, mas sem acusar ou desafiar, e foi o ronin quem
piscou e desviou o olhar primeiro.
— Kuso. — Ele murmurou novamente. — Este lugar está
torcendo minha mente e fazendo todo mundo fazer coisas
estranhas. Meu irmão bastardo morreu há quase cinco anos e nunca
nos demos bem. Mas quando eu o vi esta noite... — Ele balançou a
cabeça. — Senti que morrer era a única forma de ele ficar em paz, a
única forma de consertar as coisas. — Ele bufou uma risada amarga,
balançando a cabeça. — Parece ridículo agora.
— Não é. — Eu disse a ele, e os dois homens me olharam
surpresos, como se acabassem de lembrar que eu estava ali. — Senti
algo semelhante. — Continuei. — Eu vi... Mestre Isao e os outros...
chamando por mim. Dizendo que eu pertencia aqui, com eles.
Daisuke balançou a cabeça severamente. — Tive uma
experiência semelhante. — Admitiu, deixando Okame colocá-lo de
pé. — Este lugar... — Ele olhou para a névoa, onde rostos
fantasmagóricos giravam em meio à névoa, suas vozes soluçando e
com raiva. — Não são os espíritos que nos chamam. — Ele
murmurou. — O que vemos são nossos próprios fracassos e
arrependimentos. As coisas que gostaríamos de ter mudado, as
memórias que nos assombram.
— Essa é a atração de Meido. — disse uma voz ofegante, quando
Mestre Jiro veio em nossa direção no caminho. Ko caminhando ao seu
lado, seu pelo branco brilhando suavemente contra a escuridão
constante. — Apenas algumas almas são puras o suficiente para irem
para Tengoku, os Céus Celestiais, quando morrem. — Ele continuou,
seu cajado batendo suavemente enquanto ele avançava. — Aqueles
que viveram suas vidas sem arrependimento, que não sofreram
incertezas ou hesitações. No outro extremo do espectro estão as almas
que são corruptas, que se entregam à farsa sem arrependimento. Elas
descobrirão que Jigoku as espera no final de suas vidas. Para o resto
delas, as almas que não são nem puras o suficiente para o céu nem
perversas o suficiente para Jigoku, elas se encontram em Meido,
aguardando o tempo em que poderão renascer. É por isso que
também é conhecido como o Reino da Espera, da reflexão. É um lugar
para refletir sobre sua vida passada, para lembrar cada
arrependimento, cada fracasso, todas as coisas que você teria feito de
forma diferente. De acordo com os ensinamentos, somente quando
você aceitar o seu passado, quando você renunciar à sua vida anterior,
você poderá renascer. — Seu olhar deslizou para as figuras
fantasmagóricas na névoa, e sua testa franziu com o que parecia ser
pena. — Embora, para alguns, possa levar séculos, se elas não
conseguirem abandonar suas vidas anteriores.
— Daisuke-san! Yumeko-chan!
Com Chu saltando ao lado dela, Reika se apressou e passou por
Mestre Jiro para olhar para nós. — Vocês estão bem? — ela ofegou,
parecendo igualmente preocupada e exasperada. — Num momento
vocês estavam bem atrás de mim, no próximo vocês não estavam em
lugar nenhum. Eu pisquei e vocês se foram. O que aconteceu?
Eu a encarei com espanto. — Você não ouviu os espíritos
chamando por você, Reika-san? — Eu perguntei. — Não havia
ninguém do seu passado, pedindo-lhe para se juntar a eles no Meido?
Ela fez uma careta. — Claro que havia. Minha mãe rancorosa,
que nunca quis que eu me tornasse uma donzela de santuário. Ela
estava planejando me casar com um samurai rico para que pudesse
colher os benefícios do meu casamento. Tive que ouvi-la me chamar
de coisas terríveis durante toda a minha vida, por que seria diferente,
agora que ela está morta?
Isso fez Okame rir. — Eu gostaria de ter visto. — Ele riu,
enquanto Reika franzia a testa para ele. — Eu gostaria de ter estado lá
para ver os espíritos dos mortos serem repreendidos por nossa
donzela do santuário.
— Bem, vejo que todos estão levando isso tão a sério quanto eu
esperava. — Naganori se materializou alguns metros abaixo no
caminho, nos observando com um olhar bastante azedo em seu
rosto. — E todos vocês sobreviveram às tentações do caminho, quão...
inspirador.
Eu fiz uma careta para ele. — Você poderia ter nos avisado o que
aconteceria.
Um canto de sua boca se curvou. — Não fiz? — ele perguntou
com uma voz de uma calma irritante. — Bem, não importa. Venham.
— Ele deu as costas aos nossos olhares e ergueu a mão atrofiada. — A
noite está chegando ao fim e já perdemos muito tempo perseguindo
sombras. Estaremos no caminho por um tempo, ainda. Desta vez, se
vocês estiverem inclinados a se perderem, façam-no rapidamente para
que o resto de nós não tenha que procurá-los. Eu gostaria de fazer a
fronteira das terras da Terra antes do amanhecer.
Okame olhou furioso enquanto o majutsushi se afastava. —
Suponho que não seria muito honroso empurrá-lo acidentalmente
para fora do caminho. — Ele murmurou quando começamos a seguir
Naganori mais uma vez.
Reika bufou. — Eu não aconselharia. — disse ela. — Mas apenas
porque tenho quase certeza de que já foi tentado.
— Eu acho que você está certa. — Okame suspirou. — Um cara
assim é provavelmente muito paranoico. Que pena. Ei, Taiyo-san. —
Ele olhou para Daisuke, caminhando calmamente ao lado dele. —
Estou curioso. Então, Yumeko viu seu antigo mestre, eu vi meu irmão
e Reika foi assediada pelo fantasma de sua mãe. Quem você viu, lá na
névoa? Com todas as suas vitórias como Oni no Mikoto, aposto que a
lista é bem longa. Era um rival da corte? O espírito de um guerreiro
derrotado por Oni no Mikoto na ponte?
— Não. — Os olhos de Daisuke ficaram assombrados. — Eu vi o
fantasma de uma serva que uma vez serviu Dama Satomi.
Eu respirei fundo. Quando seguimos Dama Satomi para um
castelo abandonado em busca de Mestre Jiro, houve um hitodama,
uma alma humana, que guiou Reika e eu através do castelo para
chegar ao sacerdote. E então, após a batalha com Yaburama e os
amanjaku, me lembrei de encontrar Daisuke, ferido, sangrando e
quase inconsciente de sua luta com os demônios de Satomi. O
fantasma de uma garota estava ao lado dele, pálido e luminescente
nas sombras. Ela sorriu para o nobre, e embora parecesse que ele não
podia senti-la, ela roçou suavemente sua bochecha, antes de voltar a
ser uma bola de luz flutuando sobre a parede. Eu me perguntei quem
ela era, e se ela tinha encontrado paz para seguir em frente.
— Uma serva? — Okame parecia chocado. — Você está me
dizendo que, em todos os seus duelos e anos na corte, a morte da qual
você mais se arrepende é de uma serva?
— A corte é a corte. — disse Daisuke. — O jogo é vicioso, mas
todos os jogadores entendem as regras. Reputações são
destruídas. Favores são conquistados, honra e meios de subsistência
são perdidos. É assim que sempre foi. O mesmo é verdade para os
duelos que lutei como Oni no Mikoto. O desafio e as regras que o
cercam sempre foram claros. Sempre houve a opção de recusar sem
perda de face ou honra. Os guerreiros que morreram nessas pontes
lutaram contra Oni no Mikoto com bravura e convicção, se arrepender
de matá-los traria desonra para suas memórias.
— Mas aquela pequena serva... — Daisuke hesitou, olhando para
a névoa. — Mura Suki, filha do célebre fabricante de flautas da
cidade. Ela não era uma nobre ou guerreira, mas ela conhecia a beleza
quando a via. Nós nos encontramos apenas uma vez no palácio
imperial, e eu não a vi desde então. — Ele suspirou, parecendo
aflito. — Ela era a empregada de Dama Satomi. Eu tinha quase certeza
de que a mulher a matou, mas agora não pode haver dúvida. Suki
apareceu para mim aqui, com raiva porque eu não a salvei de Satomi-
san. Que ela morreu porque eu não fiz nada.
— Aquilo não era Suki, Daisuke-san. — Eu disse. Eu ia
acrescentar que a verdadeira Suki era um fantasma rondando o
castelo de Satomi, mas me contive. Eu não sabia se a alma de Suki
ainda estava no mundo mortal ou se mudou. E parecia cruel dizer a
Daisuke que Suki era um fantasma, afinal, especialmente porque, em
todos os seus tratos com a corte e duelos como Oni no Mikoto, a morte
de uma criada foi a que mais o atingiu.
— Eu sei, Yumeko-san. — respondeu Daisuke, sorrindo para
mim. — Quando estávamos no castelo de Satomi e eu estava quase
delirando por causa dos meus ferimentos... eu vi algo. Por um
momento... eu pensei ter ouvido a voz dela. — Sua testa franzida. —
Espero estar errado. Espero que a alma de Suki tenha mudado, que
não permaneça no reino mortal. Mas se realmente era ela naquela
noite, não era o mesmo espírito da coisa soluçante e odiosa que me
chamou alguns minutos atrás. Parecia-se com ela, e era como se o
espírito falasse diretamente com a minha culpa, mas essa não era a
garota que conheci. Suki pode ter sido uma serva, mas tinha alma de
poeta. Ela não ficaria aqui por muito tempo.
— Huh. — disse Okame. Ele tinha uma expressão estranha no
rosto, como se quisesse ser desdenhoso, mas não conseguisse fazer
isso. — Você é um nobre terrível, Taiyo-san. — Ele disse por fim. —
Falando com servos? Tratando-os como se fossem pessoas
reais? Como você sobreviveu à corte todos esses anos sem cometer
seppuku?
Daisuke sorriu. — Sou um amante da arte e da beleza, Okame-
san. — disse ele com um encolher de ombros. — Aprendi que pode
ser encontrada em qualquer lugar, independentemente da estação ou
circunstância. A verdadeira beleza é rara, escondida e muitas vezes
esquecida pelos outros. E pode aparecer nos momentos mais
estranhos. Tento apreciar quando vejo.
— Acho que é um sentimento adorável, Daisuke-san. — Eu
disse. — Parece algo que o Mestre Isao diria.
— Sim. — Okame concordou em um tom de voz plano. —
Exceto que não me diz absolutamente nada.
— Vocês três. — Reika se virou para olhar para nós. A seus pés,
até Chu parecia irritado. — Este é o caminho através do reino dos
mortos, não um festival de primavera. — Ela repreendeu em um
sussurro. — Seu balbucio constante está atraindo atenção. Vocês
podem tentar ficar em silêncio até que estejamos livres de espíritos
raivosos que querem nos arrastar para o Meido?
— Desculpe, Reika-san. — Eu sussurrei, enquanto os outros dois
faziam ruídos de apaziguamento, embora Okame não pudesse resistir
a fazer uma careta para Reika no segundo em que ela estava de
costas. Os espíritos dos mortos continuavam a gemer e chorar, suas
acusações soluçantes irritando-me os ouvidos, mas suas vozes
pareciam distantes agora, sem importância. Entre Okame, Reika e
Daisuke, eu sabia o que era real. Os mortos não podiam mais me
tentar; eu tinha muitas coisas importantes para realizar.
Apenas espere, Tatsumi. Eu ainda estou indo. Te vejo de novo em
breve, juro.
Continuamos o caminho em silêncio.

Capítulo 7
O túmulo amaldiçoado
Hakaimono

Eu estava demorando quase uma semana para atravessar as


montanhas e não estava de bom humor.
Eu já havia matado dois tsuchigumo, aranhas gigantes da
montanha que emboscavam viajantes incautos ao passarem por sua
caverna, e agora meus passos estavam sendo perseguidos por um
okuri inu, um monstruoso cão yokai negro como piche e maior que
um lobo. Ele se escondia atrás de mim na trilha, mantendo-se fora de
alcance, esperando que eu tropeçasse e caísse para que pudesse rasgar
minha garganta. Se eu não estivesse com pressa, teria parado para
lidar com o incômodo yokai, mas o vento cheio de neve estava
piorando e okuri inu tinha a incrível habilidade de saber quando você
estava fingindo uma queda, para não se deixassem enganar
fácil. Então continuei andando, meus pés com garras passando por
neve e pedra, gotas de gelo ardendo em minha pele exposta.
Tatsumi, eu percebi, havia se recolhido profundamente em si
mesmo; quase não sentia sua presença nos últimos dias. Apenas um
lampejo de emoção de vez em quando, me lembrando que ele ainda
estava lá, ainda lá dentro. Honestamente, era um pouco chato; eu
esperava que o matador de demônios sofresse por meses, ou mesmo
anos, de desespero e raiva impotente me observando massacrar seu
clã antes de finalmente desistir. Ainda assim, sua retirada não foi
totalmente inesperada. Tatsumi havia sido treinado como uma arma,
para não sentir nenhuma emoção ou apego. Ele era muito bom em
reprimir seus sentimentos.
O vento finalmente parou, e um leve brilho laranja rastejou sobre
os picos encobertos, afastando as estrelas e o irritante okuri inu das
minhas costas. Quando o sol se ergueu no céu, manchando a neve de
rosa, finalmente alcancei o cume das Montanhas da Espinha do
Dragão e contemplei a terra que se estendia diante de mim.
Muito, muito abaixo, o vale ainda estava envolto em trevas,
pequenos grupos de luz indicando as aldeias, vilas e cidades da
família Mizu, o Clã da Água. Três enormes lagos assentavam-se à
sombra das montanhas, com dezenas de rios, riachos e pequenos lagos
entrelaçados por vales férteis e campos agrícolas. O enorme Rio de
Ouro se espalhava entre as Montanhas da Espinha do Dragão,
serpenteando pelo território dos Mizu, e continuava a oeste em
direção à costa, onde eventualmente desaguaria na Baía da Boca do
Dragão na cidade de Seiryu, capital do Clã da Água.
Felizmente, eu não estaria indo tão longe. Enquanto eu olhava
para o vale, meu olhar caiu sobre meu próximo destino. As águas de
Seijun Muzumi, o maior dos três grandes lagos e o maior de Iwagoto,
eram escuras na sombra das montanhas. Dispersos fios de luz
circundavam o enorme corpo de água, fazendas e vilas agrupadas ao
longo da borda, com planícies e florestas inteiras entre os
assentamentos. O lago era tão grande que levaria dois dias de viagem
de um lado a outro da margem.
Com o sol nas minhas costas, comecei a descer a
montanha. Embora meu objetivo estivesse à vista, o caminho era
íngreme e sinuoso, e levei o resto do dia para descer a Espinha do
Dragão. A noite estava caindo quando eu finalmente alcancei a densa
floresta e as colinas ao pé das montanhas, feliz por estar fora da neve e
entrar nas temperaturas abafadas normais do final do verão. Oni não
podiam congelar até a morte, mas éramos criaturas de fogo e calor, e
nosso sangue podia queimar carne humana onde tocasse. Eu não
gostava de frio.
A lua estava nascendo quando finalmente cheguei à beira das
árvores e me vi perto de uma estrada empoeirada que serpenteava em
direção a uma pequena aldeia solitária à beira do lago. Cabanas com
telhado de colmo foram construídas sobre palafitas perto da água, e
uma série de docas de madeira ladeavam a margem do lago, com
dezenas de barcos balançando na superfície. Dali, o Lago Seijun
parecia um pequeno mar, estendendo-se tanto na escuridão que você
não conseguia ver o outro lado.
Uma brisa soprava no ar, cheirando a peixes e água do lago, e o
som fraco de um zumbido chegou aos meus ouvidos sobre o bater das
ondas. Examinando a margem do lago, avistei um barco de pesca
solitário perto da costa, a luz de uma lanterna balançando em um
poste na parte de trás. Um humano musculoso cantarolava enquanto
arrastava uma rede cheia de peixes se contorcendo para o lado, e eu
sorri.
Saindo silenciosamente das árvores, comecei a caminhar em
direção ao lago.
Preocupado com seus peixes e seu zumbido, o velho humano
nem mesmo me viu até que eu pulei silenciosamente em seu barco. —
Perdoe-me. — eu disse enquanto ele largava a captura no convés e
girava. Sua carranca mudou para uma expressão de terror e ele abriu
a boca para gritar, mas eu prendi uma garra em seu pescoço murcho e
apertei, esmagando o som dele. — Mas eu preciso pegar seu barco
emprestado.
O humano se debateu. Suas mãos voaram para meu pulso e
arranharam freneticamente, enquanto sua boca se abriu, tentando
fazer um som. Eu o levantei do chão, esperando até que sua luta
cessasse e ele pendesse frouxamente do meu aperto, quase
inconsciente, antes de afrouxar meu aperto apenas o suficiente para
ele sugar uma respiração irregular.
— Agora. — Eu disse agradavelmente. — Como eu disse antes,
eu preciso pegar seu barco emprestado. E você, meu bom humano, vai
me levar para a ilha no meio do lago. Você sabe qual é, tenho certeza.
— Ele engasgou e eu apertei meu aperto novamente, tirando o fôlego
de sua traqueia antes que ele pudesse protestar. — Você pode me
levar para a ilha. — Continuei. — Ou posso despejar suas tripas no
lago para os peixes, à sua escolha. O que vai ser?
O humano estava branco como um pergaminho, agora, seus
lábios tingidos de azul e seus olhos arregalados. Ele agarrou as garras
em volta da garganta e apontou freneticamente para os remos, que
estavam no fundo do barco. Eu descobri minhas presas em um
sorriso. — Uma escolha sábia.
Eu o deixei cair no chão do barco, onde ele caiu em uma pilha
amassada, choramingando como um cachorro. Esperei para ver se ele
tentaria se jogar para o lado. Se o fizesse, ele se encontraria com o
estômago aberto e as entranhas flutuando na água. Depois de lutar
para ficar de joelhos, ele estendeu as mãos e pressionou a testa na
madeira, ignorando a água e os peixes que caíam e arfavam nas
tábuas.
— Por favor. — Ele sussurrou. — Por favor, grande senhor, eu
imploro, tenha misericórdia! É proibido colocar os pés na ilha. A
maldição...
— Estou bem ciente da maldição, mortal. — interrompi. — Ela
não me preocupa. — Avancei para que minha sombra caísse sobre sua
forma encolhida. — Se você não pode me levar lá, então eu não
preciso mais de você. Diga olá aos peixes quando os encontrar no
fundo do lago.
— Não! — O humano se encolheu. Endireitando-se, ele pegou os
remos que estavam no chão do barco e subiu lentamente no
assento. — Kami, me perdoem. — Ele sussurrou. Sem olhar para mim,
ele apontou o nariz da embarcação para noroeste e começou a remar
na escuridão.
Vários minutos se passaram e a costa desapareceu, seguida pelas
luzes. Logo, havia apenas mar aberto, o luar refletindo nas ondas e
nas estrelas acima. Enquanto o pescador trabalhava com os remos,
mantive meu olhar no horizonte onde a água encontrava o céu.
Depois de algumas horas de remo constante, finalmente localizei
algo novo na superfície da água. Uma parede irregular de névoa rolou
em nossa direção, espessa e opaca, estendendo-se como garras
enevoadas. Vendo uma gavinha enrolada ao redor do barco, o
humano soltou um gemido e o ritmo dos remos vacilou.
— Misericordioso Jinkei. — O humano tremeu, os olhos
arregalados enquanto ele encarava a névoa que se infiltrava no
barco. — A ilha já está vindo atrás de nós. A maldição nos engolirá
inteiros. Eu... eu não posso...
Eu sorri para ele, mostrando as presas. — Você preferiria se
arriscar na água, então?
— Kami, não! — Seu rosto perdeu a cor remanescente e ele
agarrou os remos e começou a puxar com vigor renovado. —
Heichimon me proteja. — Ele sussurrou, me fazendo torcer um lábio
em desgosto. Heichimon era o deus da força e coragem. Ele
desprezava demônios, mortos-vivos e qualquer coisa “contaminada”,
e frequentemente era descrito como um orgulhoso guerreiro humano
esmagando um oni sob os pés. Seu nome era uma maldição entre os
demônios, e se não fosse o fato de que o humano estava me levando
para a ilha, eu poderia ter arrancado a língua de sua cabeça por falar
isso.
O barco avançou e nós avançamos contra a parede branca.
A névoa se fechou ao nosso redor como as mandíbulas de uma
grande besta, abafando todos os sons. Eu mal conseguia ver a frente
do navio enquanto ele cortava a água. Perto dos meus pés, o humano
estava sussurrando um canto contínuo de proteção, chamando
Heichimon, Jinkei e o resto dos kami para protegê-lo.
— Você está perdendo seu fôlego. — eu disse ao mortal trêmulo,
e ele se encolheu. — Você não pode sentir a mancha de Jigoku
infundida este lugar? Não há nenhum kami por perto para ouvir
você. Tudo o que você está fazendo é atrair a atenção de tudo o que
está remanescente na ilha.
O humano me ignorou, continuando a murmurar orações sob
sua respiração. Eu pensei em quebrar sua perna; isso certamente daria
a ele algo mais em que pensar, mas ele provavelmente gritaria e
alertaria tudo o que se escondia na névoa, o que não me deixaria mais
perto de meu destino.
Havia uma agitação de raiva em minha mente, me lembrando
que Tatsumi ainda estava lá, ainda observando tudo o que estava
acontecendo. Ele estava tão quieto que quase me esqueci dele.
Eu sorri. Você sabe para onde estamos indo, não é, Tatsumi? Bem,
continue assistindo, porque não há nada que você possa fazer a respeito. E
tenho a sensação de que a ilha não vai nos deixar flutuar sem algum tipo de
problema. Não com a quantidade de corrupção no...
Uma mão pálida e branca agarrou-se à borda do barco,
balançando-o de lado, enquanto algo se puxava para fora do lago. Já
tinha sido humano, mas agora não era nada além de carne encolhida e
ossos brilhantes envoltos em trapos. Um crânio nu, pingando algas,
voltou os olhos vazios para o pescador, que gritou de terror quando
uma garra ossuda se esticou e enganchou seu colarinho. Antes que eu
pudesse fazer qualquer coisa, isso o levou ao limite. O grito do
homem foi interrompido quando ele atingiu a água e desapareceu sob
a superfície.
Eu levantei uma sobrancelha. — Bem, eu tentei te avisar. — Eu
disse, enquanto as bolhas de onde o humano havia desaparecido na
água desvaneciam. Vozes ecoaram da névoa, murmúrios distorcidos e
sussurros fracos; impossível identificar de qual direção eles estavam
vindo. Com um suspiro, desembanhei Kamigoroshi, banhando a
névoa ao meu redor com uma luz roxa bruxuleante. Com a mancha do
mal infundindo a área, não era surpreendente que os corpos de
humanos que morreram no lago se levantassem para caçar os vivos,
mas eu achava que matar cadáveres ambulantes era bastante
inútil. Não era divertido matar algo que já estava morto.
O barco não tripulado vagava preguiçosamente pela água, mas
eu não estava disposto a me sentar e pegar os remos. Especialmente
quando, através da névoa, eu podia ouvir o barulho dos salpicos
ficando cada vez mais perto.
Outro braço pálido explodiu na água, e um espectro afogado se
ergueu pela lateral. Cheirava a morte e peixe podre, e suas roupas
estavam quase estragadas. Um gemido torturado escapou do crânio
nu enquanto dedos ossudos me alcançavam, procurando me puxar
para as profundezas. Eu sorri com sua imprudência.
Kamigoroshi brilhou, cortando o pescoço delgado, fazendo o
crânio tombar de volta na água. O corpo sem cabeça sacudiu e caiu
para se juntar a ele, e a água ao meu redor começou a ferver.
Mais cadáveres pularam para fora da água, balançando o barco
enquanto se agarravam às laterais e rastejavam para fora da borda. Eu
balancei Kamigoroshi, cortando cabeças, cortando braços, partindo
cadáveres ao meio enquanto eles cambaleavam em minha direção. O
barco era pequeno e havia uma quantidade aparentemente
interminável de corpos subindo das profundezas, enchendo o ar com
gemidos torturados e o fedor de podridão. Kamigoroshi brilhou e
partes do corpo voaram para todos os lados, espirrando no lago ou
aterrissando no fundo do barco.
— Vamos. — eu rosnei, cortando um par de cadáveres de uma
vez. — Isso é muito fácil. Pelo menos tentem fazer disso um desafio.
Como que em resposta, mais corpos subiram no barco. Enquanto
eu levantava minha espada para lidar com o enxame na minha frente,
uma mão fria e úmida agarrou meu tornozelo por trás. Virei-me e
chutei o rosto do cadáver, senti sua mandíbula estalar sob minha bota,
antes que o espectro deslizasse sob a superfície do lago novamente.
Algo caiu nas minhas costas, e unhas afiadas cravaram em
minha carne e ensoparam meu casaco haori com a água gelada do
lago. O fedor de peixe podre fez meus olhos arderem quando a
criatura assobiou em meu ouvido e se curvou para morder meu
pescoço. Estiquei o braço para trás, agarrei o crânio rançoso e viscoso
e o esmaguei entre os dedos, então arranquei o cadáver das minhas
costas e o atirei nos espectros ainda no barco, fazendo-os cair de volta
ao lago.
O silêncio caiu, o único som era o barulho da água batendo nas
laterais do navio. Eu esperei, Kamigoroshi pulsando em minha mão,
mas nenhum outro corpo rastejou para fora do lago, tentando me
arrastar para o fundo. Depois de chutar as partes do corpo espalhadas
pelo chão do barco, peguei os remos e continuei remando.
Poucos minutos depois, houve um som alto de raspagem
quando o fundo do barco atingiu uma costa rochosa, impossível de
ver na névoa. Eu pisei na água na altura do joelho e arrastei o barco
para a terra, antes de me endireitar e olhar ao meu redor.
A névoa ainda flutuava ao meu redor, embora não fosse tão
densa quanto no lago, e através da escuridão eu podia ver algumas
árvores irregulares, sem folhagem, projetando-se tortuosamente em
direção ao céu. O solo era uma mistura de rocha e lama; não havia
grama, e apenas alguns arbustos ressecados amontoados sob os
troncos das árvores. A mácula de Jigoku era forte aqui, cortesia do que
havia sido enterrado nesta ilha. A própria terra estava saturada de
infecção, tentáculos de corrupção infiltrando-se em tudo. Este era
realmente um lugar amaldiçoado, e isso me deixou um pouco com
saudades de casa. Jigoku não era todo feito de fogo e enxofre. Além
das cidades demoníacas, longe dos gritos, da tortura e da luta
constante, havia lugares como este, estéreis, nebulosos e ameaçadores,
com apenas algumas almas atormentadas penduradas nas árvores.
Eu me perguntei se o reino havia mudado no tempo em que
estive fora. Se os demônios, oni e O-Hakumon, o governante de
Jigoku, se lembravam de mim.
Com um bufo, eu me sacudi, dissolvendo os pensamentos
repentinos do meu reino natal e as memórias de vários milhares de
anos. Eu havia passado muito tempo na cabeça desses humanos de
vontade fraca. Relembrar o passado era inútil. Se O-Hakumon e o
resto da minha família tivessem se esquecido de mim durante os
longos milênios em que estive preso no reino mortal, então eu os
lembraria de quem eu era e por que fui o maior demônio de Jigoku.
Resolvido, comecei a caminhar mais para o interior.
A ilha não era grande e, mesmo no meio do nevoeiro, logo
encontrei o que estava procurando. Era impossível perder,
realmente. Alguns mortos-vivos vagavam ao redor da base de uma
colina rochosa e irregular, gemendo e cambaleando sem rumo por
entre as árvores. Depois de cortá-los, circulei o afloramento de
obsidiana até chegar à boca estreita de uma caverna, na verdade
apenas uma fenda na parede de rocha, quase escondida por arbustos e
videiras penduradas. A sujeira ao redor da entrada da caverna estava
cheia de ossos, e um dos arbustos secos se contorceu enquanto eu
passava, arranhando-me com galhos espinhosos. Eu ignorei a planta
corrompida e mergulhei na fenda estreita, virando de lado para me
espremer para dentro da caverna.
Meus olhos se ajustaram instantaneamente à escuridão, o que me
deixou feliz. Eu poderia ter tido que compartilhar este corpo mortal
fraco com Tatsumi, mas o matador de demônios era uma criatura de
sombras, mais confortável na escuridão do que a luz, e sua forma
física refletia isso. A caverna era pequena, pouco maior do que um
buraco nas rochas, mas na parede oposta, um lance de degraus de
pedra levava à escuridão.
Quando cheguei ao último degrau, uma voz sussurrou na
escuridão, subindo as escadas. — Intruso. Você anda em solo
amaldiçoado. Deixe este lugar, ou sofra a ira de Jigoku.
Eu sorri. — A ira de Jigoku? — Eu gritei de volta, minha voz
ecoando nas escadas. — Eu sou Hakaimono, primeiro general de O-
Hakumon e líder dos oni. Então confie em mim quando digo que sei
mais sobre a ira de Jigoku do que você jamais saberá.
— Hakaimono? — a voz sussurrou de volta. —
Impossível. Hakaimono ficou preso dentro da Lâmina Amaldiçoada pelos
últimos quatro séculos. Você não pode ser o Primeiro Oni. Eu digo
novamente, saia deste lugar, ou eu enviarei sua alma para Jigoku para ser
dilacerada pelos verdadeiros demônios.
Com um suspiro, comecei a descer as escadas. A voz sibilou para
mim, avisando-me novamente para voltar, que eu não tinha nada que
fazer aqui. Eu ignorei, seguindo os passos até que eles terminaram em
um pequeno corredor, além do qual havia uma caverna enorme. Uma
luz laranja bruxuleante se espalhou pela abertura quando entrei na
câmara, olhando ao redor em busca da fonte.
A princípio, a câmara parecia vazia. Quatro tochas tremeluziam
ao redor de um pequeno santuário no centro do chão. Velas foram
acesas no altar, lançando chamas roxas que pareciam sugar a
escuridão em vez de afastá-la. O pedestal de pedra no centro estava
vazio, como se algo tivesse sido colocado lá uma vez, mas tivesse sido
roubado ou perdido. Quando me aproximei do santuário, as tochas
crepitaram e se apagaram, mergulhando a câmara na escuridão
iluminada apenas pela fraca luz violeta das velas.
— Você foi avisado para não vir aqui.
Eu me virei, exatamente quando três figuras apareceram das
sombras. Elas eram mulheres, ou mais precisamente, foram
mulheres. A pele delas era manchada de vermelho, azul e verde, uma
cor diferente para cada bruxa. Seus cabelos brancos eram longos e
emaranhados, e afiadas unhas amarelas, cada uma com mais de trinta
centímetros de comprimento, enroladas em seus dedos
ossudos. Pequenos chifres despontavam do cabelo emaranhado, e
seus olhos brilhavam amarelos na escuridão enquanto elas me
cercavam, lábios finos puxados para trás para revelar presas dentadas.
Eu sorri. — Bem, bem, olhe quem está aqui. Boa noite,
senhoras. Eu não sabia que vocês três ainda estavam espreitando pelo
reino mortal.
— H-Hakaimono? — O rosto da bruxa verde ficou branco de
choque. — É você. — Recuando, ela caiu de cara nas pedras, enquanto
as outras duas faziam o mesmo. — Perdoe-nos, senhor, não
reconhecemos sua voz. A última vez que ouvimos, você estava preso
em Kamigoroshi.
— Eu escapei recentemente. Embora, devo dizer, não esperava
encontrar as irmãs Yama aqui. — Ignorando as formas inclinadas do
trio de bruxas, olhei para o santuário, ainda iluminado por chamas
roxas fantasmagóricas, e suspirei. — Devo presumir, já que vocês três
estão aqui, que esta tumba não contém mais o Mestre dos Demônios?
As irmãs bruxas se entreolharam. — Não, Hakaimono-sama. —
disse a ogra vermelha, levantando-se do chão. — Como você, Senhor
Genno escapou de sua prisão muito recentemente, não mais de seis
meses atrás. Estávamos entre aqueles que ajudaram a levantar sua
alma de Jigoku e prendê-la a uma forma mortal para que ela pudesse
andar neste reino mais uma vez. — Ela piscou os olhos amarelos para
mim. — É... é por isso que você veio, Hakaimono-sama? Porque você
ouviu que o Mestre dos Demônios foi libertado e você deseja se juntar
ao exército dele?
— Na verdade, eu só esperava que pudéssemos bater um papo.
— Eu disse. — Eu estava planejando convocar sua sombra e falar com
ele em Jigoku, mas se ele já saiu e está andando no reino mortal
novamente, acho que isso me poupa do trabalho de ter que encontrar
um sacrifício adequado. — Franzindo a testa, olhei para a bruxa
vermelha, cujo nome havia me escapado novamente, Uragiri ou
Usamono, eu nunca conseguia lembrar qual irmã era qual. — Então,
você disse que Genno escapou de Jigoku há seis meses?
— Sim, Hakaimono-sama.
— Então, por que ele ainda não reuniu um novo exército e
declarou guerra aos humanos? Parece que me lembro dele jurando
vingança contra todo o reino antes de morrer.
As irmãs trocaram olhares novamente. — Bem, você vê,
Hakaimono-sama... — a bruxa azul começou. — O retorno de Senhor
Genno foi mantido em segredo nos últimos seis meses. É por isso que
estamos aqui... — Ela gesticulou para suas irmãs. — Para que se
alguém vier procurar a tumba do Senhor Genno para confirmar que
ele se foi, poderemos silenciá-los antes que revelem que ele escapou
de Jigoku. Mas, como seu corpo foi completamente destruído,
tínhamos apenas seu crânio para retirá-lo do buraco.
— Ah. — Eu disse. Convocar uma alma de Jigoku e ligá-la
permanentemente ao reino mortal novamente era um ritual de magia
do sangue complexo e perigoso, que tinha que ser executado
corretamente para evitar uma catástrofe. Você tinha que ter um corpo
físico ao qual ligar a alma, e seria melhor se fosse os restos originais da
alma, ou todos os tipos de contratempos poderiam ocorrer. — Algo
deu errado, eu acho. — eu disse às bruxas. Elas estremeceram.
— Fomos capazes de trazer de volta a alma de Genno... — disse
a bruxa azul. — Mas...
— Sua forma física nunca se materializou. — sua irmã verde
terminou. — Os miseráveis mortais devem ter purificado seu corpo
antes de destruí-lo. Senhor Genno está aqui, no reino mortal, mas sua
alma está ligada ao seu crânio. — Ela fez uma pausa. — Apenas seu
crânio.
Minha risada ricocheteou nas paredes da caverna, enquanto as
irmãs bruxas me encaravam. — Então, você está me dizendo que o
mago de sangue humano mais poderoso que já andou no reino
mortal, que comandou hordas de yokai, demônios e mortos-vivos, e
sozinho liderou uma revolução demoníaca que quase colocou a terra
inteira de joelhos... agora é uma cabeça flutuante com raiva?
A bruxa vermelha gemeu. — Nem mesmo isso. Seu espírito pode
se materializar e ele pode andar pelo reino como um fantasma, mas
não pode viajar para longe de seu crânio. Ele exerce uma fração do
poder que tinha antes, porque ele não tem corpo físico.
— Ora. — A compreensão amanheceu e eu grunhi. O momento
era muito conveniente para ser casual. — Então Genno esperava tirar
vantagem do pergaminho do dragão. — Eu adivinhei. — É por isso
que ele foi trazido de volta nesta era, quando a noite do desejo está
quase chegando.
— Sim, Senhor Hakaimono. — Confirmou a bruxa verde. — Sua
intenção original era usar o desejo para se tornar imperador e matar
todos os daimyos. No entanto, com o... acidente imprevisto, ele
precisa do pergaminho para outro propósito.
— Para que ele possa se desejar inteiro novamente, de volta ao
seu poder total.
— E retomar seu plano para conquistar Iwagoto. — A bruxa azul
terminou, assentindo. — Por causa de sua condição, ele não tem o
exército que comandou antes, mas está crescendo
constantemente. Magos de sangue, yokai e demônios se juntam a sua
causa diariamente. Só o conhecimento de que o Mestre dos Demônios
voltou ao reino mortal é o suficiente para atrair discípulos de todos os
cantos da terra.
— Você veio se juntar a nós então, Hakaimono-sama? — a bruxa
vermelha perguntou. — Como você fez na primeira rebelião do
Mestre? Com você do nosso lado, os humanos cairão diante de nós
como o arroz diante de uma foice.
Eu sorri. Eu não tinha me juntado tanto à última pequena revolta
de Genno, mas aproveitado o caos para espalhar minha própria
confusão e massacre. Quatrocentos anos atrás, com um exército de
mortos-vivos e demônios devastando a terra, um samurai com o nome
de Kage Saburo tentou impedir a destruição do castelo do Clã das
Sombras, pegando uma espada poderosa e amaldiçoada de sua tumba
selada sob a fortaleza. Ele era tolo, desesperado e pensou que
Kamigoroshi lhe daria o poder de matar os monstros que invadiram
sua casa.
Ele estava certo, mas não da maneira que esperava. Naquela
época, eu estava reconhecidamente um pouco louco por causa dos
longos, longos séculos de prisão na espada. Kage Saburo foi o
primeiro humano que eu possuí, mas em vez de tramar e planejar
meu próximo movimento, aquele primeiro gosto de liberdade em
séculos fez algo dentro de mim estalar, e eu tinha saído em uma
matança que os Kage ainda falam sobre em voz baixa. Na loucura da
batalha final, Kage Saburo foi morto não muito antes de Genno ser
abatido e morto pelos campeões do clã, tantos acreditaram que o
Mestre dos Demônios havia feito um acordo com o Primeiro Oni, e
que estávamos trabalhando juntos para derrubar o império.
Isso não era totalmente verdade. Eu nunca fiz um acordo com
Genno; simplesmente aconteceu que nossos objetivos eram
semelhantes. Eu ficaria feliz em matar humanos ao lado do exército do
mago de sangue, contanto que ele entendesse que eu não era seu
comandante e nunca seria. Hakaimono não se curvava a nenhum
mortal, nem mesmo ao autoproclamado Mestre dos Demônios.
A primeira vez que Genno marchou sobre o império, eu era uma
criatura frenética e furiosa de vingança, existindo apenas para matar o
máximo que pudesse antes de ser enviado de volta para a
espada. Agora, eu tive um pouco de tempo para pensar, para planejar,
para ponderar o que faria se a oportunidade se apresentasse
novamente. Desta vez, eu estava pronto.
— Na verdade, eu estava esperando entrar. — Eu disse às
bruxas, cujos olhos amarelos iluminados como as chamas das velas. —
Ouvi boatos sobre o retorno de Genno e vim aqui para ver se eram
verdadeiros. Pena que ele não está aqui. Eu gostaria de ter conversado
com ele, ver qual é sua estratégia para derrubar o império. Mas se
vocês disseram que ele é apenas um fantasma...
— Nós vamos levá-lo até ele, Hakaimono-sama. — a bruxa azul
exclamou. — Tenho certeza que o Mestre ficaria feliz em falar com
você. Estávamos simplesmente guardando sua tumba, caso algum
mortal entrasse vagando, mas os rumores sobre a ilha mantêm a
maioria longe, e os mortos-vivos cuidam do resto. Não somos
necessárias aqui.
— Sim. — A irmã vermelha concordou. — Agora que
Hakaimono-sama está livre novamente, esta oportunidade é muito
importante para ser ignorada. Você virá conosco para falar com o
Mestre Genno, Hakaimono-sama? É uma viagem longa, mas podemos
partir imediatamente.
Eu mascarei um sorriso. — Onde Genno está se escondendo hoje
em dia?
— O castelo amaldiçoado de Onikage, na Floresta dos Mil Olhos.
Eu bufei. A Floresta dos Mil Olhos era o trecho escuro e
emaranhado de deserto que ficava entre o território do Clã Água e do
Fogo. Seu nome original era Angetsu Mori, embora apenas estudiosos
da história e aqueles que viveram por muitas centenas de anos se
lembrassem disso. Há muito tempo, quando o império ainda era novo,
Angetsu Mori estava no centro de uma guerra selvagem entre as
famílias Hino e Mizu, enquanto cada clã tentava reivindicar a
propriedade da floresta e seus vastos recursos. Após algumas décadas
de luta e derramamento de sangue, o imperador interveio e declarou
Angetsu Mori propriedade do império, pondo fim à guerra e à
contenda entre as duas famílias. Um santuário foi erguido na fronteira
dos territórios da Água e do Fogo, a caça em Angetsu Mori foi
declarada ilegal e apenas um número limitado de árvores podia ser
colhido nas bordas da floresta a cada mês.
Então, quatrocentos anos atrás, o Mestre dos Demônios começou
sua revolta contra o império. Usando magia de sangue e uma horda
de demônios e mortos-vivos, ele construiu um castelo nas
profundezas da floresta. À medida que Genno crescia em poder e seu
exército de demônios, yokai, magos de sangue e espíritos malignos
crescia em número, Angetsu Mori mudava. Ela ficou mais escura,
mais emaranhada e começou a ganhar vida própria. No momento em
que o Mestre dos Demônios liderou suas forças contra Iwagoto, a
floresta havia se tornado uma coisa sombria e retorcida, possuidora de
uma consciência maliciosa e ódio por todas as coisas vivas. Aqueles
que se aventuraram em suas profundezas ou nunca mais voltaram, ou
voltaram completamente loucos. E quando Genno foi morto no vale
encharcado de sangue de Tani Hitokage, com seu corpo quebrado e
seu exército morto, a floresta não era mais conhecida como Angetsu
Mori. Tornou-se a Floresta dos Mil Olhos, um lugar amaldiçoado, e
nenhum humano são se aventurava em seu abraço com medo de ser
assombrado, possuído, devorado ou simplesmente desaparecer na
escuridão, para nunca mais ser visto.
— É um lugar bastante óbvio para Genno armar acampamento.
— Eu disse às irmãs bruxas. — Mas acho que ninguém vai incomodá-
lo lá também. — Com um encolher de ombros, levantei uma garra,
indicando a saída atrás de nós. — Muito bem. Levem-me ao
desincorporado Mestre dos Demônios. Vamos ver se não conseguimos
encontrar uma maneira de evitar os erros do passado.
Eu podia sentir o horror de Tatsumi enquanto as irmãs bruxas
me levavam para fora da tumba e voltei meus pensamentos para
dentro. Qual é o problema, Tatsumi? Eu provoquei. O encontro com o
Mestre dos Demônios cujo exército de demônios quase destruiu o império
quatrocentos anos atrás não se alinha com suas convicções de matador de
demônios? Eu sorri com a centelha de raiva que pulsou na minha
cabeça. Não se preocupe, não tenho intenção de me submeter a nenhum
mortal, nem mesmo ao autoproclamado Mestre dos Demônios. Sua pequena
revolta não significa nada para mim. Mas se ele puder me dar o que eu quero,
vou jogar bem, por um tempo. Senti a apreensão de Tatsumi se juntar ao
redemoinho de raiva e nojo, e ri. Eu acho que você ficaria feliz, matador de
demônios. Se tudo correr como planejado, finalmente estaremos livres um do
outro. Isso é o que você sempre quis, não é? A chance de
realmente sentir sem... bem, isso acontecer.
Ele tentou esconder, mas a pequena onda de esperança que veio
do matador de demônios era quase patética. Seu cansaço se infiltrou
em mim, um veneno de alma pesando sobre mim. Ele estava
cansado. Cansado de lutar, de lutar constantemente pelo
controle. Toda sua existência tinha sido de escuridão e dor, tornando-
se uma arma que matava para os Kage, porque isso era tudo o que ele
sabia fazer. Ele não sabia que havia mais nada... até que a conheceu.
Eu me animei com isso, mesmo enquanto Tatsumi arrancava
seus pensamentos de mim à força. Mas era tarde demais e eu sorri de
alegria. Ela? Eu me regozijei, sentindo a fúria do matador de
demônios por sua própria fraqueza. Você quer dizer a garota, não é? A
mestiça kitsune. Oh, Tatsumi, que vergonha, que desonra. O que seu clã diria
se soubesse que você desenvolveu sentimentos por uma yokai mestiça?
Não houve resposta da alma dentro, nenhum vislumbre de
emoção ou sentimento; ele havia se fechado. Mas o eco de seu desejo
ainda persistia, e eu ri baixinho para mim mesmo. Essas informações
seriam muito úteis; eu tinha certeza de que encontraríamos a raposa e
seus companheiros novamente.
— Você disse algo, Hakaimono-sama? — A bruxa azul
perguntou quando saímos da tumba. Um vento frio soprou em meu
rosto, cheirando a peixe, água do lago e uma sugestão sutil de
decomposição. Alguns espirais vermelho-escuros de mácula nos
seguiam desde a entrada da caverna e se contorciam com a brisa. Eu
inalei a corrupção familiar e sufocante do meu reino e suspirei.
— Não, mas é um longo caminho até o castelo Onikage e já perdi
muito tempo aqui. — Eu me virei para o trio de bruxas e mostrei
minhas presas em um sorriso. — Vamos falar com o Mestre dos
Demônios. Estou muito interessado em ouvir seus planos para o
futuro.
Capítulo 8
Hospedes das sombras
Yumeko

Nós percorremos o caminho das sombras mais duas vezes,


ouvindo os espíritos de Meido lamentando e se divertido às nossas
custas através da névoa, suportando olhares de Naganori e insultos
sutis, antes de finalmente chegamos em terras Kage.
— Finalmente. — O majutsushi suspirou, enquanto saíamos das
sombras e voltávamos para o mundo real. Estremeci quando a brisa
atingiu minha pele, cheirando a madeira, fumaça e o reino dos
vivos; o Caminho das Sombras cheirava a tristeza, desesperança e
desespero, coisas que eu nem sabia que tinham cheiro até agora.
Olhei em volta e vi que estávamos em uma câmara escura e
vazia, sem janelas para permitir a entrada de luz externa. As paredes e
o chão eram feitos de pedra, embora o teto tivesse enormes vigas de
madeira em todo o seu comprimento. Tochas estavam nos cantos,
tremeluzindo erraticamente, e o cheiro da magia das Sombras
impregnava a câmara. Um círculo foi desenhado no chão com o que
parecia ser uma tinta branca brilhante, com runas, kanji e sigilos
mágicos gravados ao redor. Enquanto eu observava, o círculo se
alargou uma vez, então desapareceu, parecendo derreter no chão. Eu
olhei para Naganori.
— Onde estamos? — A última vez que deixamos o Caminho das
Sombras, acabamos em um minúsculo templo escondido em uma
caverna, em algum lugar do território do Clã da Terra. Isso não
parecia uma caverna, mas eu estava cansada da escuridão, sombras e
tudo o que se escondia lá dentro, e estava ansiosa para voltar ao sol.
Naganori fungou. — Chegamos a Hakumei-jo. — Declarou ele
grandiosamente. — O castelo natal da família Kage e a residência da
própria Dama Hanshou. — Ele nos lançou um olhar crítico, os lábios
se curvando no que parecia ser uma repulsa mal contida enquanto
olhava nossas roupas, rasgadas e sujas pelos longos dias de
viagem. — É claro que vocês vão querer ficar apresentáveis antes de
ver a daimyo. Os servos cuidarão de todas as suas
necessidades. Sigam-os e tentem não se perder por conta própria. O
castelo Hakumei pode ser bastante... mistificador para os não
iniciados. Tenho assuntos que devo atender. Por favor, deem-me
licença.
E com isso, o chefe dos majutsushi do Clã das Sombras se virou e
deslizou para longe, desaparecendo do círculo escuro de luz e nos
deixando sozinhos na sala escura.
— Ok. — Okame murmurou quando uma porta de madeira se
fechou e o silêncio desceu, mesmo que apenas por um momento. Seus
olhos pareciam assombrados desde que saímos do Caminho das
Sombras. — Não se preocupe conosco, então. Acabamos de passar três
dias no reino dos mortos, vamos ficar bem.
— Convidados de honra.
Eu pulei quando uma mulher pareceu se materializar das
sombras ao meu lado. Ela era pequena e esguia, seu cabelo preto com
mechas prateadas e linhas finas saindo de seus olhos e lábios. Ela
usava um manto simples nas cores preto e roxo dos Kage, e se ela não
tivesse falado, eu nunca saberia que ela estava lá. É um talento que todos
os Kage têm? Fiquei pensando, enquanto a mulher se curvava e nos
dizia para, por favor, segui-la, que ela nos mostraria nossos
quartos. Ou eles ensinam a todos como se aproximar sorrateiramente das
pessoas como um yurei?
Nós a seguimos por vários corredores, iluminados por arandelas
e tochas oscilantes. Achei que estávamos bem no subsolo,
provavelmente abaixo do castelo Hakumei, já que o chão e algumas
das paredes eram feitos de pedra úmida. Eu me perguntei como
alguém poderia encontrar o caminho de volta, já que todos os
corredores pareciam iguais e não havia sinais ou qualquer maneira de
se orientar.
— Este lugar é como um labirinto. — Sussurrei para Reika,
caminhando ao meu lado com Chu e Ko em seus calcanhares. — Você
acha que os Kage se perdem aqui?
Reika bufou baixinho. — Pelo que eu sei dos Kage... — ela
sussurrou de volta. — E não é muito, entenda, mas estou bastante
certa de que o castelo foi construído desta forma de propósito. Dizem
que Hakumei-jo é um pesadelo de se atacar, porque foi projetado para
ser o mais confuso possível.
— De fato. — Veio a voz de Daisuke, atrás de nós. — Todos os
construtores e engenheiros do país estudaram as obras de Kage
Narumi, a arquiteta do castelo Hakumei. Ela era brilhante e, de acordo
com alguns rumores, um pouco louca. Seu projeto para o castelo do
Clã das Sombras é como os Kage mantiveram seu território por tanto
tempo, embora eles sejam o menor dos clãs e os Hino tenham feito o
seu melhor para expulsá-los. Diz-se que nem mesmo os próprios Kage
conhecem todos os segredos de Hakumei-jo, e aqueles que desejam
atacar o clã devem derrotar o próprio castelo, o que não é pouca
coisa. No passado, os exércitos que invadiram Hakumei-jo foram
dizimados. Os sobreviventes falam de portas escondidas, paredes
falsas, de estarem presos em corredores que vomitam fogo, lanças ou
flechas. Houve um famoso incidente de um general Hino que sitiou o
castelo, com a intenção de matar os Kage de fome ao invés de se
arriscar a atacar Hakumei-jo. Por três meses, ele e seu exército
cercaram o castelo, não permitindo que ninguém entrasse ou
saísse. Todas as demandas para a rendição dos Kage foram rejeitadas,
embora fosse óbvio que nenhum suprimento estava indo para o
castelo, que eles não tinham como alimentar seu povo. O general Hino
tinha um número maior do que o exército que se amontoava atrás das
muralhas, era apenas uma questão de tempo até que o Clã das
Sombras se rendesse ou morresse por falta de suprimentos. Ele só
tinha que esperar que eles saíssem.
— Até que um dia... — Daisuke continuou. — O comandante
acordou e encontrou metade de seu exército doente ou
morrendo. Seus suprimentos foram envenenados, embora ninguém
pudesse lhe dizer como isso aconteceu. Furioso, o comandante Hino
reuniu seus guerreiros restantes que ainda podiam lutar e atacou o
castelo, com a intenção de dominar os enfraquecidos Kage e destruí-
los. Mas quando o exército alcançou as paredes internas de Hakumei-
jo, eles encontraram uma enorme força de Kage esperando por
eles. Não apenas o Clã das Sombras prosperou durante o cerco, eles
de alguma forma trouxeram reforços, embora ninguém tivesse visto
nem mesmo um único Kage entrar ou sair de Hakumei-jo. O general
Hino e seu exército foram dizimados quase totalmente, e ninguém
mais sitiou o castelo Hakumei desde então.
— Então, qual é a moral dessa história prolixa? — Okame
interrompeu, um sorriso fraco cruzando seu rosto quando ele se
juntou a nós. — Nunca tente enganar um Kage. Você vai acabar com
uma espada nas costas antes de perceber que eles se moveram.
Sua voz estava mais dura do que o normal, seu tom
cortante. Senti uma camada invisível de armadura espinhosa
envolvendo o ronin, como se ele estivesse usando palavras e
linguagem ásperas para manter todos nós à distância. Reika revirou os
olhos e Daisuke deu ao ronin um olhar ilegível. Eu olhei à nossa
frente, para a mulher caminhando silenciosamente pelo corredor,
fazendo curvas sem hesitação. Não era difícil me imaginar me
perdendo neste lugar escuro e sinuoso, tomando uma única curva
errada e andando em círculos para sempre. — Mas como os próprios
Kage não se perdem aqui? — Eu me perguntei.
— Isso eu não poderia dizer. — disse Daisuke. — Nem acho que
os Kage revelariam seus segredos para estranhos, então temo que
teremos que imaginar.
— Talvez todos eles carreguem um rolo de barbante, só para
garantir.
Finalmente chegamos a um lance de escadas de madeira que
conduzia ao andar superior. A mulher não parou, mas continuou
subindo os degraus até chegarmos ao interior do castelo, deixando o
subterrâneo úmido para trás. O piso era feito de madeira polida, com
vigas grossas cruzando no alto e painéis shoji ocupando o
comprimento de uma parede, separando cômodos individuais. Um
par de samurai Kage guardando a entrada das escadas nos ignorou
enquanto seguíamos nossa guia para o corredor.
Ainda em silêncio, nossa escolta nos conduziu por outra série de
corredores, desta vez feitos de madeira escura, telas shoji e painéis
fusuma decorados. As imagens mostradas nessas telas eram lindas,
florestas de bambu ao luar, penhascos solitários com ondas quebrando
no oceano, um bosque de pinheiros escondendo um tigre à espreita,
mas pareciam um pouco ameaçadoras, como se fossem
propositalmente projetadas para que o espectador se sentisse
desconfortável olhando para elas. Talvez seja porque eu senti que eles
estavam olhando para trás. À medida que avançávamos no castelo, vi
mais samurai Kage montando guarda ou caminhando pelos
corredores, e servos correndo de um lado para o outro como ratos
silenciosos e eficientes. Um ar sombrio pairava sobre tudo, fazendo-
me desejar estar do lado de fora, longe da escuridão. Embora o castelo
estivesse coberto de lanternas penduradas e luz de velas, parecia
escuro, silencioso e sombrio, com sombras em todos os cantos e olhos
escondidos nas paredes. Eu sentia falta da luz do sol.
Quando viramos outra esquina, um homem de repente saiu de
um cômodo adjacente para o caminho da serva, seguido por uma
dupla de samurai. A mulher imediatamente se curvou e deu um passo
para o lado, mantendo o olhar no chão enquanto ela recuava contra a
parede. O homem não a olhou uma segunda vez. Ele estava vestido
com vestes pretas e roxas estampadas com luas crescentes douradas, e
ele carregava um leque dourado cintilante em uma das mãos. Seu
rosto estava pálido, com linhas grossas de preto pintadas sob seus
olhos, acentuando sua nitidez. Parando no centro do corredor, o nobre
ergueu uma sobrancelha fina pintada para nós.
— Ah. Então, estes são os 'convidados de honra' de Dama
Hanshou. — Sua voz era suave e oleosa, e de alguma forma me
lembrou de uma enguia. — Eu não sabia que ela estava recebendo
plebeus. Nossa daimyo é uma alma verdadeiramente gentil e
benevolente. Será que temos acomodações adequadas para eles, eu me
pergunto? — Ele bateu seu leque de ouro contra o queixo pálido,
parecendo pensativo. — Queremos que nossos hóspedes se sintam
confortáveis, afinal. Preocupo-me por não termos um suprimento
adequado de palha infestada de pulgas.
Eu não sabia muito sobre a maneira sofisticada como os nobres
da corte interagiam, mas tinha quase certeza de que estava sendo
insultada. E pelo olhar sombrio de Reika e o sorriso perigoso
rastejando no rosto de Okame, eles também não gostaram. — Com
licença. — Eu disse, fazendo com que o nobre me olhasse como se eu
fosse um inseto no chão. — Mas quem é você?
— Insolente! — Um dos samurais deu um passo à frente,
ameaçador. — Como você ousa falar com o Senhor Iesada sem ser
perguntada? Se dependesse de mim, eu cortaria você por seu
desrespeito. — Ele se virou para o nobre com uma reverência. —
Iesada-sama, permita-me remover este inseto de sua presença
imediatamente.
— Tenho certeza de que Senhor Iesada não quer fazer isso. —
Veio a voz de Daisuke, fria e serena, atrás de nós. O nobre Taiyo deu
um passo à frente, sorrindo, embora seus olhos estivessem afiados e
frios quando ele nivelou o olhar para o outro nobre. — Tenho certeza
de que Iesada-sama sabe que a onmyoji Yumeko é uma convidada de
honra de Dama Hanshou. — Ele disse, seu sorriso nunca vacilou. —
Que a Senhora está esperando por ela, que ela enviou Kage Naganori
às terras do Clã do Céu para escoltar Yumeko-san ao castelo
Hakumei. Um homem informado como o Senhor Iesada certamente
saberia que Yumeko-san também está sob a proteção da família Taiyo
e do santuário Hayate, e eles ficariam muito ofendidos se ela sofresse
algum dano. — Sua voz tornou-se como um pano de seda sobre o
gume de uma lâmina. — Mas me sinto um tolo só de mencionar isso,
porque o Clã das Sombras certamente não deseja insultar os Taiyo e
arriscar a ira da família Imperial. Perdoe-me por expressar tal
pensamento. Estou certo de que voltarei para minha terra natal com
nada além de elogios para os Kage.
O samurai, que estava encarando Daisuke durante essa troca,
ficou um pouco pálido ao perceber quem estava falando com ele. A
expressão do Senhor Iesada não mudou, embora ele tenha levantado a
mão para acenar para o guarda-costas.
— É claro que você é bem-vindo aqui. — Ele ronronou, enquanto
o samurai nos fazia uma reverência apressada e se afastava. — Todos
são bem-vindos no castelo de Hakumei, não deixem ninguém dizer o
contrário. Perdoe meus homens e minha imprudência, eu não sabia
que a garota onmyoji era digna da proteção dos Taiyo. — Seu olhar
oleoso deslizou para mim. — Então, novamente, se a própria Dama
Hanshou a chamou aqui, seus poderes realmente devem ser notados.
— Bem. — O nobre recuou com um aceno de leque,
dispensando-nos. — Eu imploro seu perdão por esta interrupção. Por
favor, continuem e sejam bem-vindos às terras Kage. — Seus olhos
brilharam quando ele sorriu para mim novamente. — Tenho certeza
de que você vai achar sua estadia muito esclarecedora.
Ele caminhou pelo corredor, seu samurai marchando no passo
ao lado dele, e desapareceu em uma esquina, deixando a sensação de
gavinhas oleosas sobre minha pele.
Okame estremeceu exageradamente. — Sim. Esta foi a razão pela
qual nunca estive na corte. Eu simplesmente não era bom em insultar
alguém fazendo um elogio. Chame alguém de porco na cara dele e
você será desafiado para um duelo. Dê a entender que alguém é um
porco em um belo poema ou frase de efeito, e os nobres riem da
inteligência de tudo isso.
Daisuke deu uma risadinha. — Não é tão difícil, Okame-san. —
Ele disse, sua voz leve. — Você gostaria que eu te ensinasse?
O ronin bufou. — Você não pode ensinar novos truques a um
cachorro velho, Taiyo-san. — Ele disse com um sorriso forçado. —
Você pode dar banho, pentear o cabelo e tentar embelezá-los o quanto
quiser, mas eles ainda rolarão na lama e mijarão no chão na primeira
chance que tiverem.
Chu colocou as orelhas para trás e rosnou para o ronin, que
sorriu para ele.
— Oh, como se você nunca tivesse rolado na lama.
— Quem era aquele? — Reika perguntou à serva, que derreteu
na parede assim que o samurai estava fora de vista. Ela hesitou, seu
olhar passando rapidamente para o final do corredor, como se
estivesse preocupada que os samurai ainda estivessem espreitando,
nos ouvindo.
— Senhor Iesada controla a parte oriental das terras Kage e é
talvez o nobre mais poderoso dentro da corte das Sombras além da
própria Dama Hanshou. — A mulher respondeu. — Ele não é alguém
que você quer como inimigo, nem é alguém de quem deveríamos falar
abertamente, onde qualquer um pode ouvir. Por favor sigam-me.

— Aqui estamos. — A serva parou diante de um conjunto de


painéis de porta, mostrando a imagem de belos galhos de uma árvore
de bordo e uma teia de aranha entre os galhos, estendendo-se pela
face da porta. O bulboso tecelão dourado e preto podia ser visto
empoleirado de maneira proeminente no centro, e parecia tão real que
eu esperava que ele fugisse das mãos da mulher quando ela abrisse o
painel. Outro par de servas esperava do outro lado enquanto a porta
deslizava para trás. Uma tinha um quimono pendurado nos braços, a
outra carregava uma série de itens em uma bandeja: pentes, alfinetes e
apliques de marfim. Ambas se curvaram quando o painel foi
aberto. — Por favor... — disse a primeira mulher, olhando para
mim. — Sinta-se à vontade. Mari e Akane irão atendê-la.
— E meus amigos?
— Eles terão seus próprios aposentos não muito longe daqui. —
Foi a resposta. — Eles serão bem atendidos, garanto. Todos vocês são
convidados de honra dos Kage. Sua segurança e conforto são nossa
principal preocupação.
Pisquei e olhei para as duas servas esperando ansiosamente além
das portas. Elas sorriram e educadamente desviaram os olhos, mas eu
as senti me observando, embora seus olhares estivessem em outro
lugar. Meu coração batia forte e de repente eu podia sentir o
pergaminho, ainda escondido em meu furoshiki, sob minhas vestes
esfarrapadas. — Obrigada. — disse hesitante. — Mas eu realmente
não preciso...
— Não é problema. — disse a mulher mais velha. — Dama
Hanshou está esperando por você, devemos nos certificar de que você
esteja apresentável à daimyo. Por favor. — Ela gesticulou novamente
para o quarto, implacavelmente educada, mas me deixando saber que
a recusa não era uma opção.
Eu peguei os olhos de Reika enquanto hesitava, e a donzela do
santuário deu um pequeno aceno de cabeça, embora seus olhos
estivessem escuros com aviso. Estávamos sendo vigiados. Sem
dúvida, havia olhos escondidos em nós em todas as partes do castelo,
shinobi tomando nota de cada movimento nosso. Qualquer
comportamento que pudesse gerar preocupação ou fazer com que eles
suspeitassem provavelmente seria relatado diretamente à daimyo. Eu
não podia deixá-los pensar que eu era algo mais do que uma simples
camponesa ou mesmo uma onmyoji, e certamente não podia deixar
Hanshou descobrir que eu tinha um pedaço do pergaminho. Se a
daimyo do Clã das Sombras percebesse que eu tinha exatamente o que
ela mandou Tatsumi recuperar, não sobreviveríamos à noite.
— Vamos ficar bem, Yumeko-chan. — Okame interrompeu,
quando a donzela do santuário deu a ele um olhar de desgosto. —
Apenas grite se um shinobi pular da parede. Nós viemos correndo.
Os olhos da serva se arregalaram com isso, mas a mulher
permaneceu impassível enquanto gesticulava para o quarto
novamente. Relutantemente, cruzei a soleira e o painel se fechou atrás
de mim com um estalo, deixando-me sozinha com as duas garotas.
— Um, olá. — Eu ofereci, sem saber o que fazer e me sentindo
desconfortável. Eu nunca tive servas me atendendo antes. — Vocês
vão ter que me desculpar, eu realmente não sei o que devo fazer.
Uma delas sorriu, embora fosse um sorriso bastante forçado e
experiente, que não atingiu seus olhos. — Estamos aqui para deixá-la
apresentável a Dama Hanshou. — Ela me disse. — É uma grande
honra comparecer perante a Senhora das Sombras, poucos são
chamados a sua presença. A Senhora deu-lhe o mais raro dos
presentes. Devemos ter certeza de que você estará pronta para recebê-
la.
— Oh. — Eu disse. — Isso é muito simpático.
— Sim. — A segunda garota assentiu. — Então, se você quiser,
minha senhora. — Ela gesticulou na minha direção geral. Pisquei para
ela, confusa, e seus olhos se estreitaram. — Por favor, tire suas roupas.
— Nani? — Eu prendi minhas orelhas para trás. As criadas
esperaram com expectativa, seus rostos calmos. Obviamente, isso era
algo que elas faziam com frequência. Eu, no entanto, nunca tinha me
despido na frente de estranhos, ou de ninguém, na verdade. — Agora
mesmo?
— Por favor. — A serva gesticulou novamente com um sorriso
fixo. — Devemos prepará-la para conhecer Dama
Hanshou. Infelizmente, não há tempo para um banho. Suas... roupas
... estarão lavadas e estarão esperando por você quando você retornar.
Olhei para o quimono pendurado nos braços da serva. Era muito
bonito; preto com folhas vermelhas e douradas girando do fundo
como se tivessem sido apanhadas por um redemoinho. As mangas
eram longas e esvoaçantes, quase tocando o chão. Um obi-faixa larga,
vermelha e dourada, completava o traje.
— Venha. — A outra criada colocou sua bandeja e deu um passo
à frente, ainda sorrindo. — Por favor, tire a roupa. Ambos temos
experiência em ajudar as damas da corte de todas as maneiras
possíveis. Não será desagradável, garanto-lhe.
Por um momento, fiquei à beira do pânico. O que eu
faria? Recusar seria um insulto aos Kage e pior, poderia fazer Dama
Hanshou suspeitar. Eu não poderia encontrar a líder do Clã das
Sombras em vestes rasgadas e sujas, mesmo se elas fossem as vestes
de omyoji, mas o que ela queria mais do que qualquer coisa estava de
forma muito visível em meu furoshiki. Se eu o entregasse as servas,
elas certamente o encontrariam.
Vamos, Yumeko! Você é uma kitsune. Se não houver portas ou janelas
fora da sala, vá sob as tábuas do assoalho.
Eu sorri timidamente para a serva, secretamente usando minha
magia. — Sumimasen. — Eu disse a ela. — Eu não quero ser difícil. É
que nunca ninguém me atendeu, e isso é muito estranho. Fui criada
em um templo e os monges eram muito rígidos. Eu... nunca me despi
na frente de ninguém, e é...
Eu parei, como se estivesse com vergonha de continuar. As
servas relaxaram, embora eu pudesse sentir uma delas mascarando
um suspiro. — É compreensível. — Ela me disse. — Os costumes dos
nobres devem ser estranhos para você. Vamos virar as costas
enquanto você tira a roupa, isso vai tornar mais fácil?
Eu balancei minha cabeça. — Arigatou gozaimasu.
Elas assentiram e viraram as costas para mim. Sabendo que
outros olhos ainda podiam estar observando, eu rapidamente deslizei
meus dedos em meu obi e espalmei uma das pequenas folhas que
coloquei na faixa antes de chegarmos ao castelo. E silenciosamente
agradeci a Reika por me avisar para vir preparada.
Tirei o furoshiki sobre a cabeça, sentindo o comprimento estreito
do estojo do pergaminho sob meus dedos através do pano. O mais
suave e rapidamente que pude, deslizei a folha entre as dobras,
escovando-a contra o estojo laqueado escondido dentro.
Uma batida veio na porta, fazendo todas nós pularmos. — Mari-
san? Akane-san? Vocês já começaram? — veio uma voz de mulher
através do shoji. — Dama Hanshou estará pronta para a garota em
breve.
Elas se viraram, estremecendo. — Hai, Harumi-san! — Uma
chamou, enquanto a outra se voltou para mim. — Vamos trabalhar o
mais rápido possível.
— Rápido. — A segunda serva franziu o cenho ansiosa enquanto
se aproximava. — Sinto muito, mas devemos fazer isso rapidamente,
agora. Por favor.
Ela pegou o furoshiki e tirou-o das minhas mãos. Ao fazer isso, o
pano se abriu e algo longo e fino caiu das dobras, tilintando contra o
piso de madeira.
As duas servas olharam para baixo, quando uma longa flauta de
bambu rolou lentamente sobre as pranchas, parando quando atingiu o
dedo do pé. — O que é isso? — ela perguntou, curvando-se para pegá-
lo. — Uma flauta?
Respirei furtivamente enquanto seus dedos se fechavam em
torno do instrumento, obrigando-me a falar com calma. — Sim. Foi do
meu antigo mestre. Ele me deu no dia em que deixei o templo e disse
que eu deveria praticar até que pudesse voltar e tocar uma música
perfeita para ele. Tenho praticado quando posso, mas ainda não sou
muito boa. Vocês gostariam de ouvir?
— Tenho certeza de que você é melhor do que pensa. — A serva
deu um sorriso tenso. — Talvez outra hora. Vou colocar isso com suas
outras roupas.
— Se você não se importa. — Comecei quando ela se virou. —
Eu gostaria de mantê-la comigo. É a única coisa que me resta do meu
mestre, você vê. Uma espécie de talismã de boa sorte. Se eu sempre
carregá-lo, ele sempre estará comigo.
Seus lábios começaram a apertar, antes que ela se contivesse. —
Como quiser. — Ela disse, mal escondendo sua impaciência. — Mas
você deve permitir que nós a atendamos agora. Não podemos perder
mais tempo.
— Eu entendo. — Eu disse a ela, e ela devolveu com um olhar
firme. Eu dei um suspiro de alívio quando meus dedos se fecharam ao
redor do pergaminho disfarçado, sentindo a magia da raposa formigar
minha pele, e mantive um aperto firme enquanto as servas tiravam
minhas roupas. Quando o ar frio atingiu meu corpo exposto, eu alisei
minhas orelhas e coloquei minha cauda entre minhas pernas para que
as humanas não pisassem nela enquanto me circulavam como
lobos. Elas não podiam ver meu eu kitsune a menos que tivessem um
espelho ou outra superfície reflexiva, ou fossem apenas adeptas de ver
o mundo espiritual como Reika, mas eu não queria que elas
tropeçassem e caíssem sobre “nada”. Sem mencionar que minha
cauda doeria. Felizmente, depois de borrifar minha pele com um
perfume inebriante com cheiro de ameixa que fez meus olhos
lacrimejarem, elas colocaram um manto branco sobre meu corpo antes
de finalmente envolverem o quimono elegante em volta de mim. O
obi era largo e rígido, medindo minha cintura até logo abaixo dos
meus seios; cuidadosamente coloquei o pergaminho no tecido
enquanto as servas estavam ocupadas ajustando o arco em minhas
costas.
Uma das servas havia passado com sucesso um pente pelo meu
cabelo algumas vezes, desembaraçando os emaranhados e não me
poupando nenhum desconforto, quando outra batida soou na
porta. — A garota está pronta? — a voz feminina perguntou,
enquanto eu piscava para conter as lágrimas de dor e esperava meu
couro cabeludo parar de gritar.
— Hai, Harumi-san! — chamou a criada, enquanto a outra
rapidamente correu para a porta e a deslizou de volta. A mulher mais
velha de antes olhou para dentro, me avistou e assentiu.
— Sim bom. Ela parece apresentável. Minha dama. — A mulher
ergueu a mão ossuda, me chamando para frente. — Por favor, venha
comigo. Dama Hanshou chamou por você.

Segui a mulher por vários corredores e subi um número


impossível de escadas, parecendo subir até o topo do
castelo. Espiando por uma ameia no topo de uma escada, eu podia ver
o céu noturno, brilhando com estrelas, e abaixo de nós, as copas das
árvores que se estendiam até o horizonte distante. Parecia que uma
grande floresta, vasta e emaranhada, ficava além das paredes do
castelo Hakumei. Eu me perguntei que tipos de criaturas vagavam por
aquela floresta, se era algo como a floresta fora do templo Ventos
Silenciosos. Um sentimento de forte desejo e saudade de casa passou
por mim, quase trazendo lágrimas aos meus olhos. Tanta coisa
aconteceu desde a noite em que os demônios incendiaram o templo e
Mestre Isao me confiou o pergaminho. Eu estava mantendo-o seguro,
mas por pouco. Para onde quer que eu me virasse, parecia que havia
alguém que queria o pergaminho, seja um demônio, um imperador,
um mago de sangue ou um daimyo. Não sabia por quanto tempo mais
poderia mantê-lo escondido e um erro ou acidente poderia custar a
vida de todos. Mas eu continuaria tentando. Eu havia prometido que
entregaria este pergaminho ao templo Pena de Aço e manteria essa
promessa mesmo que isso me matasse.
Dois samurais totalmente armados e blindados guardavam um
par de portas pintadas no final de um corredor. A imagem nos painéis
fusuma retratava uma floresta de aparência tranquila, mas as silhuetas
entre as árvores e as sombras eram estranhas e de alguma forma
ameaçadoras.
Um homem também esperava a alguns passos das portas,
observando-nos enquanto nos aproximávamos. Eu não o vi
imediatamente; ele estava parado em silêncio ao lado e parecia ter o
talento Kage para se misturar com as sombras. Mas quando chegamos
às portas, ele deu um passo à frente, como um fantasma passando
pelas paredes, e sorriu para mim.
Eu fiquei tensa. Ele era um nobre como o Senhor Iesada,
equilibrado e elegante, com traços graciosos e um magnífico manto
púrpura crepuscular repleto de pétalas douradas. Ao contrário do
Senhor Iesada, o sorriso que ele me deu parecia genuíno. Ou pelo
menos não zombeteiro e cruel. Ele também era muito equilibrado,
quase se poderia dizer bonito, quase rivalizando com Daisuke em
quão adorável era de se olhar. Resumidamente, eu me perguntei o que
aconteceria se você colocasse os dois juntos em uma sala.
— Obrigado, Harumi-san. — Ele disse à serva, que
imediatamente se curvou com o olhar para o chão. — Você pode
ir. Vou levar a garota daqui.
— Claro, Masao-sama. — A mulher quase sussurrou. Ela recuou,
derretendo-se silenciosamente na escuridão, e eu fiquei sozinha com o
estranho.
Eu olhei para o nobre, que continuou a me olhar com um leve
divertimento. — Olá. — Eu disse, fazendo uma de suas sobrancelhas
delgadas arquear. Eu provavelmente deveria esperar que ele se
dirigisse a mim, mas eu estava cansada, nervosa e ficando um tanto
frustrada por ser continuamente observada como se eu fosse um
inseto muito interessante. — Suponho que você está aqui para me
avisar de todas as coisas que não devo fazer enquanto falo com Dama
Hanshou?
Ele deu uma risadinha. — Como a senhora acha adequado lidar
com os visitantes é assunto dela. — ele disse facilmente. — Se alguém
não sabe o suficiente para ser educado na presença da daimyo da
terra, então há pouca esperança para eles de qualquer maneira. — Ele
me olhou com olhos negros penetrantes que pareciam perfurar o
tecido do meu quimono, seu sorriso nunca vacilou. — Mas eu suspeito
que você seja inteligente o suficiente para saber disso. — ele continuou
calmamente. — Afinal, você convenceu o matador de demônios Kage
a escoltá-la até o templo Pena de Aço. Como é que uma simples
camponesa consegue tal proeza, eu me pergunto? Se fosse qualquer
outra pessoa, Tatsumi poderia tê-la matado.
A menção a Tatsumi trouxe um nó na garganta. Ao mesmo
tempo, uma vibração de alarme passou por mim. Quanto Masao-san
sabia? Se ele sabia que eu era uma simples camponesa e não uma
onmyoji, por que eu estava aqui? Eu senti que estava tateando no
escuro, e um passo em falso me faria mergulhar em um buraco do
qual eu nunca poderia rastejar para fora.
Não importa o que aconteça, proteja o pergaminho, Yumeko. Não deixe
que eles saibam que você o tem.
— Eu precisava chegar ao templo. — disse ao nobre. — Tatsumi
precisava encontrá-lo também. Eu prometi que o levaria lá, e ele
lutaria contra os demônios no caminho. Foi um arranjo simples.
— Nada em torno de Tatsumi é simples. — Kage Masao disse
suavemente. — E você está esquecendo de mencionar uma parte
muito importante da história. Por que Tatsumi foi enviado para o
templo Ventos Silenciosos. Por que foi destruído. Por que há
demônios perseguindo você, porque demônios não aparecem
simplesmente do nada para causar estragos. Por favor, não me insulte
fingindo ignorância, nós dois sabemos por que Dama Hanshou
chamou você. — Seu sorriso se alargou. — Mas você já sabia disso,
não é?
Meu coração disparou. Eu podia sentir o pergaminho sob meu
obi, pressionando minhas costelas, e deliberadamente pensei em flores
e música, rios e borboletas, qualquer coisa menos o pergaminho. Eu
não pensei que Kage Masao pudesse ler mentes, mas eu tinha visto
Tatsumi criar gêmeos fantasmagóricos de si mesmo, e Naganori
ameaçou rasgar a sombra de Okame para longe dele, então você
nunca poderia ser muito cuidadoso.
— Oh, mas eu deixei você desconfortável, não é? — A testa lisa
de Masao franziu, e ele parecia genuinamente preocupado, antes de
fazer uma leve reverência. — Me desculpe. Você é uma convidada de
honra no castelo Hakumei. Por favor, perdoe minha grosseria, não
podemos permitir que alguém pense que os Kage não são educados,
mesmo com as camponesas que são mais inteligentes do que parecem.
Seu sorriso parecia tão sincero que quase equilibrou o tom
ameaçador de sua declaração anterior. — Receio não saber o que quer
dizer, Masao-san. — disse eu. — Sou apenas uma camponesa que foi
criada em um templo de monges. Tudo o que sei, todas as habilidades
que possuo, aprendi com eles.
— Você não precisa se preocupar, Yumeko-san. — Masao disse,
me fazendo começar. Não me lembrava de ter dito a ele meu
nome. Ele sorriu novamente, irônico e divertido. — Não tenho
grandes aspirações de invocar um deus. Eu quero apenas o que minha
daimyo deseja. Seus desejos são meus desejos. Existo para servir aos
Kage e Dama Hanshou da melhor maneira que posso.
Mais uma vez, ele parecia completamente genuíno, mas minhas
suspeitas cresciam ainda mais. Pensei em Tatsumi, lembrei-me de sua
afirmação plana e sem emoção de que ele era apenas uma arma para
os Kage, e meu coração torceu um pouco. Tatsumi se jogaria de um
penhasco se seu clã ordenasse, ele realmente acreditava que sua vida
não era sua. Kage Masao parecia mais um nobre que se movia pelo
pátio como uma enguia na água. — Então por que você está me
dizendo isso?
Seus olhos brilharam, embora seu tom permanecesse o
mesmo. — Porque, Yumeko-san, eu queria lembrá-la de que você está
no território do Clã das Sombras. Segredos não existem aqui. A
escuridão é nossa aliada e nada pode se esconder de nós por muito
tempo. Lembre-se disso quando falar com Dama Hanshou. Ela está
viva há muito, muito tempo. Ela sabe coisas sobre os clãs que fariam
com que o próprio imperador nunca mais dormisse. Portanto,
considere este um aviso amigável. O que quer que Dama Hanshou
pergunte, é melhor responder com sinceridade. Ela já sabe tudo sobre
você.
Eu engoli, resistindo à vontade de prender minhas orelhas. Nem
tudo.
Masao sorriu para mim, como se soubesse o que eu estava
pensando e fosse educado demais para dizer que eu estava
errada. Com um baixo: — Por favor, siga-me. — Ele se virou, passou
pelo samurai e abriu a porta pintada entre eles. Passei pela moldura e
o painel se fechou atrás de mim.
Imediatamente, fui atingida pelo calor; o cômodo estava escuro,
enfumaçado e sufocantemente quente. O incenso pairava espesso no
ar, queimando meu nariz e obstruindo minha garganta, mas sob o
cheiro insuportável de sândalo e cravo, o ar cheirava a álcool. Quando
meus olhos se ajustaram à escuridão, pude ver que as paredes eram
painéis fusuma pintados com imagens mais bonitas, um par de grous
na beira de um lago, um tigre em um bosque de bambu, mas olhar
para eles fez minha cauda arrepiar. Parecia que as pinturas estavam
olhando para mim, ou que presenças sombrias se escondiam atrás
delas, observando enquanto eu observava a câmara. O cômodo não
tinha janelas; a única luz vinha de um par de braseiros de ferro
fundido, brilhando em vermelho com o calor, e uma única luminária
no alto, lançando um círculo de luz laranja no meio dos tapetes de
tatame.
Logo além daquela luz, flanqueada pelos dois braseiros, uma
figura esperava por mim, sentada em uma almofada vermelha
grossa. No início, era um caroço indistinguível, envolta em camadas
de mantos e escondida nas sombras. Achei que podia ver a silhueta de
uma cabeça e um único braço que segurava um cachimbo de cabo
longo, a ponta deixando um rastro de fumaça no ar. Mas a luz estava
turva e a figura parecia quase curvada, então era impossível ver com
clareza.
— É ela? — veio uma voz feminina baixa do caroço no centro do
cômodo. — A suavidade da voz me assustou; por algum motivo, não
combinava com a silhueta à qual estava presa. Masao deu um passo à
frente e fez uma reverência.
— Sim, Hanshou-sama. Conforme solicitado, esta é Yumeko do
templo Ventos Silenciosos. Aquela que acompanhou o matador de
demônios até seu... infeliz incidente.
— Aproxime-se, garota. — Ronronou a voz. — Não se esconda
na borda das sombras, entre na luz.
Ao meu lado, Masao gesticulou para o círculo de luz da
luminária e eu avancei até estar no centro do brilho laranja
suave. Quando ele acenou com a cabeça, eu me ajoelhei e me curvei
para a forma ainda sombria de Dama Hanshou, tocando minha testa
nas esteiras, como alguém fazia quando enfrentava o daimyo de um
grande clã.
Uma onda de poder tomou conta de mim, o mesmo toque suave
e frio da magia das Sombras de Tatsumi, vindo da figura no centro do
chão. Levantei-me e olhei para além da névoa e da fumaça, em busca
da daimyo da família Kage, e quase engasguei de surpresa.
Uma linda mulher encontrou meu olhar, lábios carnudos e
vermelhos curvados no mais fraco dos sorrisos. Sua pele era da cor da
lua, quase brilhando com sua própria luz interior, e seu cabelo preto
como a meia-noite era tão longo que enrolava em torno da bainha de
suas vestes como uma cauda de seda. Uma mão pálida e elegante
segurava um cachimbo, fios de fumaça fina enrolando em torno de
um braço esguio, e de alguma forma isso a tornava ainda mais bonita
e misteriosa. Olhos escuros luminosos cintilavam nas sombras,
olhando-me sobre as dobras de um quimono magnífico de muitas
camadas, muito mais sofisticado e elegante que o meu. Pela primeira
vez, eu estava extremamente ciente de minha posição, uma
camponesa insignificante em vestes emprestadas, enfrentando o que
deveria ser a mulher mais bonita do império.
E então, eu senti as cócegas frias da magia das Sombras
novamente, como o bater da asa de uma mariposa contra minha
orelha, e balancei minha cabeça para limpá-la. A imagem da bela
mulher ondulou como o reflexo em um lago e, por um momento, vi o
rosto de uma velha horrível, enrugada como caqui podre, desdentada
e meio cega, apenas alguns fios de cabelo presos ao couro cabeludo
ressecado. Apenas por um instante, e então o rosto da bela mulher se
solidificou novamente, mas embora meus sentimentos de admiração e
inadequação tivessem se dissolvido com a ilusão, minha cauda se
eriçou e meu coração começou a bater rápido contra meu peito. Esta
versão de Dama Hanshou era a que ela mostrava ao mundo exterior,
como a pele de um pêssego infestada de vermes e podridão. Que
idade ela tinha? Como ela ainda poderia estar viva?
A ilusão da bela daimyo Kage sorriu para mim, fria e divertida,
me deixando tensa. A magia das sombras e a magia da raposa
pareciam compartilhar muitos traços; cobrindo a verdade, fazendo as
pessoas verem coisas que não existiam. Tinha que ser cautelosa. Se
Dama Hanshou descobrisse que eu não era enganada por sua magia,
ela poderia ficar com raiva, tanto quanto eu ficava irritada nas poucas
vezes que Denga-san via uma de minhas pegadinhas. Se ela ficasse
com raiva, eu não sabia o que ela faria, mas provavelmente não seria
agradável.
Baixei meu olhar para o chão. Se ela não pode ver meus olhos, ela
não poderia ver a verdade neles. Eu espero. Houve uma risada suave e
então a voz da daimyo saiu das sombras.
— Bem-vinda, Yumeko do templo Ventos Silenciosos. — Dama
Hanshou disse, o tom baixo e suave não foi capaz de mascarar a
aspereza que ouvi por baixo. — Bem-vinda ao castelo
Hakumei. Espero que a viagem aqui tenha sido agradável?
— Obrigada, Hanshou-sama. — Eu disse, lembrando das lições
de Reika sobre como se dirigir à daimyos. Diga-lhes apenas o que eles
queriam ouvir; a verdade era inconveniente, indelicada e podia fazer
você morrer. — Foi muito agradável e sem problemas. — Bem, exceto a
parte através do reino dos mortos. — Sua hospitalidade tem sido muito
generosa.
— Tem? — Dama Hanshou parecia divertida. — Você está nas
terras dos Kage agora, garota. — ela disse em seu ronronar rouco. —
Não há segredos que possam se esconder de nós, não daqueles que
vivem nas sombras, que conhecem as trevas melhor do que ninguém
no império. Posso não parecer, mas vivi alguns anos a mais do que
você e descobri que as baboseiras educadas da corte são
cansativas. Diga o que você quer dizer na minha presença ou não fale
nada. Eu ordenei que Naganori a encontrasse e a trouxesse aqui. Eu
sei que ele a conduziu pelo Caminho das Sombras, que acompanha o
reino dos mortos. Não posso imaginar que tenha sido “agradável”, de
qualquer maneira que você possa olhar para isso. Então, por favor...
— Ela sorriu, e por meio segundo eu vi o rosto da velha bruxa,
sorrindo ameaçadoramente no escuro. — Fale a verdade quando se
dirigir a mim em meu próprio castelo. Eu saberei se você está
mentindo, e não ficarei satisfeita.
Uma pontada de medo passou por mim e, por um momento, tive
certeza de que ela sabia de tudo, antes de parar para pensar. Não, isso
não pode estar certo. Se isso fosse verdade, ela já saberia que sou kitsune. E
que eu tenho o pergaminho. Por que ela diria algo assim? Pensei nisso por
uma fração de segundo, antes que a verdade viesse a mim. Ela está
tentando me desequilibrar, deixar-me pensar que ela já sabe tudo sobre mim,
então posso também contar a verdade. Mas ela não sabe. Ela não me conhece,
e não posso deixá-la descobrir mais do que já descobriu.
— Tudo bem. — Eu disse, encarando a antiga daimyo
novamente. — Se você quer a verdade, então o Caminho das Sombras
era sombrio e horrível, nós quase fomos arrastados para o Meido por
espíritos invejosos e Naganori-san é um ogro rude e hostil que eu
queria empurrar de um penhasco. Ele também cheira a cogumelos
velhos.
Dama Hanshou riu. Na superfície, soava como sinos de vento
delicados soprando em uma brisa suave, mas por baixo eu podia
ouvir os ásperos chiados de tosse de seu verdadeiro eu. Aquilo
continuou por um bom tempo, tanto tempo que Masao deu um passo
à frente e se ajoelhou ao lado dela, preocupado. Ela acenou para ele
com desdém e continuou a rir.
— Ah. — Ela finalmente engasgou, sentando-se. — Já faz muito
tempo que ninguém fala tão livremente na minha presença, mesmo
quando eu permito que eles falem o que pensam. Eles sorriem e
continuam com frases bonitas e palavras floreadas, e querem que eu
acredite que nada os perturba, que eu sou a mais graciosa das anfitriãs
e que minha beleza só é superada por minha generosidade. — Ela
fungou. — O mesmo poema, não importa o quão bonito seja, fica
velho quanto mais você o ouve. Masao-san se desespera toda vez que
preciso interagir com os nobres e sua corte. — Ela ria delicadamente,
ou mais precisamente, a ilusão ria. A velha gargalhou alto. Masao
estremeceu.
— Mas você não tem medo de falar a verdade. — Dama
Hanshou continuou, olhando para mim. — Mesmo para uma daimyo
de um clã menor. E sim, Naganori cheira à fungo às vezes. Acho que
ele passa muito tempo em seu estudo, o mofo começa a crescer sob
suas vestes. — Ela riu novamente, e o nobre ao lado dela deu um
suspiro de derrota. — Entende? — Dama Hanshou disse, gesticulando
para seu conselheiro. — Ele me disse que o farei grisalho
prematuramente. Isso apenas o tornará mais distinto, Masao-
san. Eu estava indo ameaçá-la com prisão e tortura, se você não me
disse o que eu precisava. — Continuou ela, fazendo-me começar como
ela se concentrou em mim novamente. — Mas você fez uma daimyo
cansada rir hoje, o que não é uma coisa fácil. Vamos falar claramente
uma com a outra, de mulher para mulher. Masao-san... — Ela acenou
com a mão para o cortesão, ainda ao seu lado. — Nos deixe.
— Claro, Hanshou-sama. — O belo nobre levantou-se, curvou-se
diante de sua senhora e foi embora, suas vestes roçando suavemente
as esteiras. Ele alcançou a porta, deslizou pela moldura e a fechou
atrás de si com um estalo, deixando-me sozinha com a daimyo do Clã
das Sombras.
Dama Hanshou me olhou com olhos negros brilhantes. — Você
não é tão simplória quanto parece, é? — ela meditou. — Quando eu
questionei meus informantes sobre a garota viajando com o assassino
de demônios Kage, todos eles disseram o mesmo. Ela é uma mera
camponesa, uma plebeia, comum e sem importância. Mas isso não é
totalmente verdade, é? — Seu olhar se aguçou, como se tentasse
descascar as camadas de invenção para ver a verdade por baixo. Meu
coração batia forte, embora achasse irônico que uma ilusão estivesse
tentando ver através de outra ilusão. — Kage Tatsumi não tolera tolos.
— Dama Hanshou continuou. — Nós o treinamos muito bem para
isso. Quem é você, para que o assassino de demônios Kage não apenas
consentisse em viajar com você, mas também a protegesse com sua
vida ao longo da jornada?
— Sou apenas uma camponesa. — disse eu. — Ninguém
especial. Tatsumi só concordou em vir comigo porque...
Parei e vi a sobrancelha arqueada de Dama Hanshou. — Porque
ele pensou que você poderia levá-lo até o pergaminho. — Ela
terminou.
Prendi minha respiração. Dama Hanshou sorriu, mostrando uma
série de dentes brancos perfeitos e uma fração de segundo de uma
boca aberta e sem dentes. — Não vou pedir que me leve até o
pergaminho, garota. — disse ela, para minha imensa surpresa. — Eu
poderia, é claro. Eu poderia ordenar que você me trouxesse o pedaço
da Oração do Dragão dos monges do templo Pena de Aço. Oh sim...
— ela adicionou enquanto eu me endireitava em alarme. — Eu sei o
nome do templo que protege parte do pergaminho. Tatsumi contou
tudo aos meus magos das Sombras enquanto viajava com você. Eles o
observavam constantemente, você vê, para ter certeza de que ele
seguia as ordens, para que o demônio em Kamigoroshi não o
subjugasse. Não houve nenhuma conversa que você teve com Tatsumi
que não fluiu diretamente para mim.
Pensei nos tempos em que Tatsumi desapareceria, sem dar
nenhuma pista de para onde estava indo ou o que estava fazendo. Eu
não o pressionei sobre isso, porque eu sabia que ele não me
responderia de qualquer maneira, mas meu coração afundou com a
realização. Ele estava se reportando ao Clã das Sombras o tempo todo.
— Então, sim, eu conheço o templo Pena de Aço, e sei que eles
guardam duas partes do pergaminho do Dragão. — Dama Hanshou
continuou. — Eu já enviei shinobi para encontrá-lo. Mas isso não é da
sua conta, nem o motivo pelo qual chamei você aqui. Vamos falar de
Kage Tatsumi, o matador de demônios.
Eu engoli a secura na minha garganta. — E quanto ao Tatsumi-
san? — Eu sussurrei.
— Você viajou com ele. — disse Hanshou. — Do templo Ventos
Silenciosos nas montanhas do Clã da Terra, através das planícies do
Sol, até a capital de Kin Heigen Toshi. Como você conseguiu pegar
um ronin, um nobre Taiyo, uma donzela de santuário e um monge ao
longo do caminho sem que Tatsumi matasse nenhum deles é um
mistério, mas não o problema em questão. Nós vimos você entrar na
cidade com o matador de demônios. Observamos você com atenção
na festa de Visualização da Lua do imperador. Um belo truque,
esse. Muito bem feito. — A ilusão deu um sorriso largo e
conhecedor. — Algum dia, você deve me contar o segredo do coelho e
da fortuna do imperador, porque certamente você não é uma onmyoji.
Mordi minha língua com o coração batendo forte e tentei parecer
inocente. Dama Hanshou riu do meu silêncio, então ficou séria
imediatamente, seu rosto ficando sombrio. — E então... — ela
continuou. — Vocês seguiram a concubina do imperador até um
depósito à beira do lago e simplesmente... desapareceram. — Ela abriu
os dedos finos e brancos para revelar uma palma vazia. — Sem deixar
vestígios. E não apenas do palácio imperial. Vocês desapareceram
completamente da cidade.
— Você deve entender, isso causou alguma preocupação ao Clã
das Sombras. — Ela cruzou as mãos no colo, olhando para mim
atentamente através das esteiras. — Quando Tatsumi desapareceu,
enviei todos os shinobi da capital para procurar você e o matador de
demônios, mas tudo que recebi foram relatos de estranhos espelhos e
possível magia de sangue. E então, dias depois, um relatório retorna
que alguém avistou Tatsumi, bem ao norte no território dos Sora. —
Seu rosto escureceu ainda mais e, sob o verniz da bela mulher, os
olhos leitosos de Dama Hanshou arderam com uma intensidade
abrasadora ao encontrar meu olhar. — Só que ele está sozinho e não é
mais Kage Tatsumi.
Estremeci e fechei os olhos, lembrando-me da voz terrível de
Hakaimono, suas promessas sombrias de que ele iria me matar e a
todos que eu me importava. O horror quando percebi que o oni tinha
possuído o matador de demônios, e que o verdadeiro Tatsumi, sua
alma ou espírito ou o que fosse, podia ouvir cada palavra que o
demônio dizia e sabia exatamente o que estava acontecendo, mas não
podia fazer nada.
Ele estava realmente começando a confiar em você, pequena
raposa. Tatsumi nunca confiou em ninguém em sua vida, seu clã punia
quaisquer apegos ou fraquezas. Mas ele estava começando a confiar em você,
uma kitsune que mentiu para ele, que o enganou desde o início. E agora, ele
vê exatamente o que você é e como você o traiu.
A voz de Dama Hanshou queimava com o calor ardente de uma
brasa. — O que aconteceu para fazer Tatsumi perder o controle é
irrelevante. — disse ela. — Eu posso arriscar alguns palpites sobre o
que causou o aparecimento de Hakaimono, especialmente com os
rumores de oni e magos de sangue circulando, mas isso não é
importante. A preocupação agora é que Hakaimono está livre e que
Tatsumi não está mais no controle de Kamigoroshi. No momento,
apenas alguns poucos sabem que o demônio está solto, mas isso não
permanecerá em segredo por muito tempo. O curso de ação é claro. —
Seus lábios se estreitaram quando ela apertou a mandíbula. — Por
causa da enorme ameaça que Hakaimono representa, tanto para os
Kage quanto para o resto do império, devo dar a ordem de matar
Kage Tatsumi assim que avistar.
— Não! — Eu vi sua sobrancelha arqueada e percebi que a
daimyo do Clã das Sombras provavelmente nunca tinha ouvido a
palavra não falada para ela antes. — Por favor. — Eu implorei, me
inclinando para frente. — Não o mate ainda. Vamos encontrar
Tatsumi-san.
— Porque eu faria isso? Eu só estaria jogando mais vidas para a
terrível sede de sangue de Hakaimono. Não pense que ele iria poupá-
la, garota. — Dama Hanshou balançou a cabeça. — Hakaimono é tão
sádico e cruel quanto poderoso. Ele vai fazer você pensar que tem
uma chance, que está ganhando, antes que ele a destrua e ria de sua
ingenuidade.
— Eu sei. — Lembrei-me da voz zombeteira do demônio. — Eu
sei disso, mas, por favor, me escute. Achamos... que podemos ter uma
maneira de parar Hakaimono e forçá-lo de volta para a espada.
Achei que ela ficaria surpresa. Achei que ambas as sobrancelhas
pudessem se erguer de espanto e descrença. Eu não estava preparada
para o que realmente aconteceu. Dama Hanshou sorriu, desta vez um
sorriso lento e conhecedor que me disse que eu tinha pisado direto em
sua teia. — É assim mesmo? — ela ronronou, entrelaçando os
dedos. — Por favor continue. Você sabe que os sacerdotes e
majutsushi mais fortes não conseguiram exorcizar Hakaimono depois
que ele assumia o controle de um corpo, não é? Na única tentativa,
Hakaimono se libertou e matou todas as almas presentes em um
massacre sangrento espetacular. Depois disso, foi decretado que, caso
um matador de demônios caísse sob sua influência novamente, ele
seria morto imediatamente, sem nenhuma tentativa de exorcismo. —
Os olhos de Dama Hanshou se estreitaram astutamente. —
Hakaimono é muito perigoso e astuto para se pegar vivo. Estou muito
ansiosa para ouvir seus planos para lidar com o Primeiro Oni.
— Hum. — Engoli. Dama Hanshou ergueu uma sobrancelha
extremamente cética e eu estremeci. Os vestígios nebulosos de um
sonho voltaram para mim, as palavras de uma raposa branca me
dizendo o que eu tinha que fazer para salvar o matador de
demônios. Ainda faziam meu estômago revirar. — Ainda estamos
trabalhando nos detalhes.
— Eu vejo. — Agora a voz da daimyo era mais plana do que
papel de arroz. — E vamos dizer que, contra todas as probabilidades,
você consiga capturar o Primeiro Oni, que é conhecido por massacrar
exércitos inteiros de uma vez. O que então?
Então tentarei usar o kitsune-tsuki para entrar eu mesma em Tatsumi e
trazê-lo de volta. E tentar não ter meu espírito dilacerado por
Hakaimono. Mas eu certamente não poderia dizer isso a ela.
— Mestre Jiro e Reika são do santuário Hayate. — Respondi. —
Eles já fizeram exorcismos antes. Eles vão levar Hakaimono de volta à
espada.
— Um sacerdote e uma donzela do santuário. — disse Dama
Hanshou, e agora parecia incrédula. — Contra o oni mais poderoso
que este reino já conheceu. — Ela bateu os dedos contra o braço. — E
o que acontece se você não tiver sucesso? Se Hakaimono for muito
forte para todos vocês?
Então estarei morta. E Tatsumi ficará preso para sempre. Ou até que
alguém finalmente mate Hakaimono. Mas não vou deixar isso acontecer. Eu
salvarei Tatsumi, mesmo que eu tenha que ser má para destruir o mal.
— Então, muito provavelmente seremos comidos por
Hakaimono. — Eu disse à daimyo das Sombras. — Mas você não
perde nada. Exceto o tempo. Ninguém de seu próprio clã estará em
perigo. Se Hakaimono matar um sacerdote, uma donzela de santuário,
um ronin e uma camponesa, o que isso significa para alguém? Mas se
formos bem sucedidos... se nós pudermos trazer Tatsumi volta...
Um arrepio percorreu minha espinha. Meus pensamentos foram
consumidos em chegar a Tatsumi, aceitar ter que usar kitsune-tsuki
para possuí-lo, enfrentar Hakaimono e de alguma forma expulsar o
demônio. Eu não tinha pensado no que aconteceria se resgatássemos o
matador de demônios, mas se eu libertasse Tatsumi da influência de
Hakaimono... ele provavelmente teria que retornar ao seu clã. E
depois? Eles o puniriam por perder o controle? Ele seria levado e
executado de qualquer maneira, como uma ameaça ao Clã das
Sombras?
Ou Dama Hanshou ordenaria que ele matasse todos nós e
trouxesse o pergaminho do dragão para ela?
— Se você puder trazer Tatsumi de volta... — Dama Hanshou
repetiu. — Você terá feito o que todos os outros antes de você não
fizeram. Mas quão bem sucedida você pode ser, enfrentando
Hakaimono, o Destruidor? Mesmo em um corpo humano, ele é mais
do que páreo para qualquer um.
— Precisamos tentar. — Eu disse. — Por favor. Vamos encontrar
Tatsumi. Vamos pelo menos tentar expulsar Hakaimono. Se o
demônio matar todos nós, isso não será nenhuma perda para você.
— Não posso oferecer ajuda. — Dama Hanshou avisou. —
Minhas mãos estão atadas neste assunto. A lei é clara, se Hakaimono
for libertado, os Kage devem fazer tudo ao seu alcance para matar o
portador de Kamigoroshi e enviar o demônio de volta para a
espada. Já existem murmúrios de raiva e descontentamento, os vários
senhores dos Kage gemendo em meu ouvido como mosquitos,
exigindo que eu faça algo. Que a honra do Clã das Sombras está em
jogo. Se Hakaimono atacar qualquer um dos outros territórios, os
Kage certamente serão responsabilizados. Não posso arriscar uma
guerra com os outros clãs. Devo fazer tudo ao meu alcance para
destruir Hakaimono antes que ele cause uma destruição real.
— Mas... — ela acrescentou antes que eu pudesse protestar. — Se
um grupo de pessoas de fora não relacionadas com os Kage de
alguma forma conseguirem exorcizar Hakaimono e devolver o
Matador de demônios para si mesmo, bem, não há nada que eu
poderia ter feito sobre isso, certo? — Seu tom fez os pelos do meu
braço se arrepiarem. — E se eles soubessem que o demônio foi visto
pela última vez indo em direção à Floresta dos Mil Olhos entre as
terras de Hino e Mizu, eles certamente não contariam a nenhum
membro do Clã das Sombras, por medo de arriscar a vida de Kage
Tatsumi, ou a sua própria.
Eu pisquei. A daimyo do Clã das Sombras acabou de me dar sua
bênção para salvar Tatsumi? E o último destino conhecido de
Hakaimono? — A Floresta dos Mil Olhos? — Eu repeti. — Isso
parece... ameaçador.
Hanshou concordou. — Foi onde Genno, o Mestre dos
Demônios, subiu ao poder pela primeira vez. — disse a daimyo,
baixando a voz. — É um lugar amaldiçoado de monstros e kami
corrompidos, um lugar onde nenhum homem mortal se atreve a se
aventurar, e se Hakaimono entrar no castelo no coração da floresta,
será quase impossível alcançá-lo. — Seus olhos se estreitaram,
olhando para mim, enquanto sua voz caiu para quase um sussurro. —
Então, se você quiser salvar o matador de demônios e trazer Tatsumi
de volta, eu me apressaria.
Atrás de nós, a porta se abriu e, em seguida, o barulho suave das
vestes sobre o tatame pôde ser ouvido. Virei minha cabeça
ligeiramente e observei Kage Masao cruzar o chão e se curvar diante
de sua daimyo.
— Perdoe esta interrupção, Hanshou-sama. — O cortesão disse
em sua voz baixa e suave. — O Senhor Iesada deseja uma audiência
com você.
— Misericordioso Jinkei. — Dama Hanshou revirou os olhos. —
Esta é a terceira vez em poucos dias. Envie ao Senhor Iesada minhas
desculpas. Diga a ele que não estou bem e não devo vê-lo no
momento.
— Por favor, me perdoe, Hanshou-sama. — Masao continuou,
sem levantar a cabeça. — Mas o Senhor Iesada é insistente. Ele disse
que ficará muito insultado se um estranho puder falar com a daimyo e
ele for negado.
A daimyo Kage suspirou. Virando-se para mim sobre as esteiras,
seus lábios enrugados se curvaram em um sorriso malicioso. —
Agradeça você ser uma camponesa. — Ela me disse. — E não tem que
lidar com os jogos, maquinações e lutas constantes dos nobres dentro
da corte. Às vezes, gostaria de poder simplesmente excluí-los e acabar
com todos eles, mas, infelizmente, até uma daimyo deve jogar o jogo
de vez em quando. — Ela bufou muito deselegante, revirando o olho
bom e depois voltou à formalidade. — Esta noite vocês ficarão no
castelo como convidados de honra dos Kage. Amanhã, farei com que
Naganori leve vocês e seus amigos pelo Caminho das Sombras
novamente, para uma cidade chamada Jujiro, na orla do território do
Clã do Fogo. É o povoado mais próximo da Floresta dos Mil Olhos e o
mais longe que alguém está disposto a viajar nessa direção. Você, é
claro, não falará sobre isso com ninguém. O que se passou entre nós
aqui nunca aconteceu. Isso está entendido?
— Hai. — Eu balancei a cabeça. — Obrigada, Hanshou-sama.
Uma sobrancelha delgada se ergueu. — Lembre-se de que você
anda entre as sombras, garota. — Ela me disse. — Somos os guardiões
de segredos, mas também somos adeptos a desvendá-los. Se o que
falamos hoje chegar ao ouvido errado, as sombras também escondem
lâminas silenciosas que vão cortar a vida de você enquanto você
dorme. Portanto, estendo este aviso como minhas desculpas, não
confie em ninguém. Mesmo aqueles com um rosto familiar podem
traí-la, porque, uma vez que você se enredar nas sombras, elas nunca
a deixarão partir.
— Masao-san... — Dama Hanshou se virou para o cortesão,
ainda curvado sobre os tatames. — Se você permanecer apenas por
um momento. Yumeko-san, tem sido... esclarecedora, mas temo que
minha atenção seja necessária em outro lugar. Você pode ir, um servo
será convocado para mostrar-lhe o seu quarto.
E assim, fui dispensada. Fiz uma reverência à antiga daimyo e
deixei sua presença, deslizando pela porta para o corredor sombrio
além.
— Ah. Se não é a convidada de honra de Hanshou-sama.
Eu congelei. O Senhor Iesada estava lá, cercado por seus dois
guardas. Quando nossos olhares se encontraram, o nobre avançou,
dando-me um olhar predatório que fez minha cauda arrepiar.
— Que curioso. — Ele meditou, aproximando-se com metade do
rosto escondido atrás do leque. — Alguém tão jovem é capaz de
chamar a atenção de nossa boa daimyo, enquanto seus superiores são
afastados e deixados de pé no frio. Deixe-me adivinhar do que vocês
estavam falando. Vai ser um jogo divertido para passar o tempo, né?
Eu mordi minha língua. Eu poderia pensar em vários outros
jogos que envolviam magia de raposa, uma folha e o Senhor Iesada
tentando evitar um rato ilusório correndo em seu hakama, mas isso
pode causar mais mal do que bem. O nobre fechou seu leque com um
estalo e bateu contra seu braço em uma contemplação simulada
enquanto olhava para mim. — O que Hanshou-sama quer com uma
onmyoji? — ele meditou. — E alguém que não está sujeita às leis dos
Kage? Ela tem magos, adivinhos e homens santos à sua
disposição. Por que esse interesse repentino por uma estranha?
— Talvez Hanshou-sama esteja simplesmente sendo educada. —
Eu ofereci, e seus lábios se curvaram.
— Talvez. — Ele repetiu, com um brilho sutil nos olhos que me
disse que ele estava de alguma forma insultado. — Ou talvez ela
deseje discutir assuntos de uma natureza mais... demoníaca.
Minhas entranhas gelaram, mas antes que eu pudesse dizer
qualquer coisa, a porta se abriu e passos leves se moveram em nossa
direção.
— Senhor Iesada. — Veio a voz alegre de Masao, enquanto o
conselheiro se colocava entre nós. Suas mangas ondularam enquanto
ele gesticulava grandiosamente em direção aos aposentos da daimyo,
protegendo-me do outro nobre. — Por favor, perdoe a
demora. Hanshou-sama está pronta para você.
O Senhor Iesada deu-lhe um sorriso tenso e se afastou, embora
seus guardas permanecessem onde estavam. Masao fez uma
reverência quando o nobre passou pelas portas do quarto de
Hanshou, mas assim que elas se fecharam atrás dele, ele se endireitou
e se virou para mim.
— Venha, Yumeko-san. — disse ele serenamente. — Harumi-san
está esperando para levá-la de volta ao seu quarto.
— Por que o Senhor Iesada está tão interessado em Tatsumi? —
Eu perguntei enquanto o cortesão me escoltava para fora da área de
espera.
Masao não respondeu de imediato. Somente quando entramos
em outro corredor e nos afastamos dos dois samurais do Senhor
Iesada, ele parou e se virou para mim.
— Iesada-sama é uma pessoa poderosa dentro do Clã das
Sombras. — O cortesão respondeu, sua voz calma, mas muito
suave. — Ele é ouvido por muitos nobres e, ultimamente, tem
expressado preocupação com o fato de nossa boa daimyo estar... um
tanto distraída. Ele chegou a sugerir que Hanshou-sama já governou o
Clã das Sombras por tempo suficiente, que é hora de ela renunciar e
deixar outra liderança. Para o bem dos Kage, é claro.
O tom de Masao permaneceu perfeitamente neutro ao dizer isso,
embora seus olhos escuros brilhassem, sugerindo que seus
pensamentos em relação ao Senhor Iesada não eram tão neutros. —
Quando Hakaimono se libertou do controle de Tatsumi, Senhor Iesada
foi o primeiro a sugerir que foi a decisão de Dama Hanshou de
continuar treinando matadores de demônios que trouxe essa
vergonha para o Clã das Sombras. — Ele continuou. — Hakaimono já
venceu seus anfitriões antes, mas sempre enquanto eles ainda estavam
em treinamento, onde os Kage poderiam lidar com eles de forma
rápida e silenciosa. Mas o Senhor Iesada há muito insiste que
Kamigoroshi é muito perigosa para estar nas mãos de qualquer
pessoa, e que a confiança de Hanshou-sama nos matadores de
demônios traria desastre para os Kage no final. — Masao me olhou
com um olhar solene, sua boca contraída em uma linha sombria. —
Por anos, ele sussurrou para os Kage que o matador de demônios
deveria ser morto e Kamigoroshi retornar ao isolamento selado. Se
uma palavra da libertação de Hakaimono se tornar conhecida, muitos
daqueles nobres certamente concordarão com Iesada-sama.
A realização me ocorreu. — É por isso que Dama Hanshou
precisa de nós para salvar Tatsumi. — Eu adivinhei. — Porque se
Tatsumi for morto, ela estará admitindo que o Senhor Iesada estava
certo. Que o matador de demônios era muito perigoso para ser deixar
vivo. Mas se pudermos resgatá-lo e levar Hakaimono de volta... — Eu
tive que parar e pensar um momento, pois todos esses jogos políticos
estavam fazendo minha cabeça doer. — Então, Tatsumi não será mais
um perigo, e Iesada-sama pode apenas ficar quieto.
Os lábios de Masao se contraíram em um sorriso fraco. — Você é
inteligente, para uma simples camponesa. — disse ele, embora não de
uma forma dura ou ameaçadora. — Use isso a seu favor. A maioria
dos nobres pensa que os plebeus estão abaixo de sua atenção. Esteja
avisada, no entanto. Muitos não aceitarão bem a interferência de uma
estranha nos assuntos do Clã das Sombras. Se sua busca se tornar
conhecida por certos indivíduos, eles podem tentar impedi-la. — Os
olhos escuros de Masao se estreitaram e ele passou dois dedos pálidos
pela garganta. — Do jeito Kage.
Engoli. — Compreendo.
— Excelente! — Masao ficou brilhante e alegre em um
instante. — Bem, boa sorte e obrigado por ter vindo, Yumeko-
san. Harumi-san irá mostrar-lhe o seu quarto.
Virei-me e vi que a serva mais velha esperava por mim no final
do corredor. Quando olhei para trás, Masao já estava se afastando, as
mangas esvoaçando atrás dele enquanto caminhava. Ele não olhou
para trás, parecendo esquecer que eu estava ali, e deslizou pela porta
sem diminuir o passo, depois fechou-a atrás de si.
Eu segui Harumi-san para o meu quarto em silêncio. Eu não
podia ter certeza, mas tinha quase certeza de que pegamos um
caminho de volta diferente do que viemos. Embora fosse difícil me
concentrar em qualquer coisa com minha mente preocupada com
Tatsumi, Hakaimono e meu encontro com a daimyo Kage.
Agora eu tinha que trazer Tatsumi de volta, e rapidamente. Não
que eu não estivesse determinada antes, mas o encontro com Dama
Hanshou e seu conselheiro me mostrou como a situação realmente era
terrível. Se eu não resgatasse Tatsumi, os Kage o matariam eles
mesmos.
Embora o pensamento do que eu teria que fazer fez minha pele
arrepiar e meu estômago revirar. Kitsune-tsuki. Eu nunca tinha
tentado a possessão de raposa antes, e com tudo o que aconteceu com
os Kage, não havia tempo para ver se eu poderia fazer isso. Não ousei
perguntar se poderia “praticar” com algum de meus amigos. Kitsune-
tsuki era perigoso e extremamente invasivo, de acordo com Mestre
Isao, e eu não tinha ideia do que estava fazendo. Eu não queria
deslizar para Okame ou Daisuke apenas para perceber que não
poderia sair novamente.
Mas se conseguíssemos capturar o matador de demônios sem
sermos mortos pelos Kage ou pelo próprio oni, e eu conseguisse
possuir Tatsumi... eu teria que lidar com Hakaimono. Sozinha. O
próprio pensamento transformou minhas entranhas em gelo e fez meu
coração disparar no peito. Eu duvidava que o espírito oni que
aterrorizou o país e deixou todo o Clã das Sombras paralisado de
medo simplesmente iria embora se eu pedisse com educação.
Mas a alternativa era deixar Hakaimono causar estragos como
quisesse até que os Kage o alcançassem e finalmente derrubassem o
demônio. Nenhum deles se importava com Tatsumi; ele era
simplesmente uma arma para eles, algo que deveria ser eliminado
agora que se tornara problemático. Até mesmo Dama Hanshou estava
simplesmente tentando salvar a própria face e proteger sua
posição. Eu era a única que me importava se Tatsumi vivia ou morria.
Eu estava tão distraída com meus pensamentos que não percebi
que Harumi-san havia parado até que passei por ela. Piscando, me
virei para vê-la de pé contra a parede com a cabeça baixa e as mãos
cruzadas na frente dela. Confusa, olhei para cima e vi que estávamos
no que parecia ser uma parte deserta do castelo. Os corredores
estavam escuros, com apenas algumas lanternas estalando fracamente
no corredor.
Uma figura estava parada no meio do corredor, onde nada
estivera um momento atrás.
Minhas orelhas picaram em mais uma pessoa se materializando
do nada. Ele não era um nobre, ou pelo menos não parecia um. Ele era
mais baixo do que a maioria, vestindo um haori preto simples,
hakama cinza e um topete de guerreiro. Era impossível dizer sua
idade exata; seu rosto estava enrugado, seu corpo magro e
musculoso. Ele se aproximou de nós facilmente, não fazendo
absolutamente nenhum som no corredor sombrio, e embora seu rosto
permanecesse impassível, de repente me senti como se estivesse sendo
perseguida por um grande gato mortal.
— Bom trabalho, Harumi-san. — Ele disse à serva, sua voz não
mais alta do que um sussurro. — Nos deixe. — Harumi
imediatamente curvou-se e recuou, desaparecendo em outro corredor
e fora de vista. O homem me observou por um momento, olhos
negros afiados vendo tudo em um único olhar.
— Você sabe quem eu sou? — ele perguntou com aquela voz
estranhamente quieta, como o murmúrio do vento nas árvores. Você
sabia que estava lá, mas mal percebia.
— Não. — Eu disse.
Ele assentiu. — Bom. Se você o soubesse, então Tatsumi teria
compartilhado muito mais do que deveria. Não que isso importe
agora, mas eu queria ver a garota que encantou o matador de
demônios a ignorar quase todos os meus ensinamentos. — Seus olhos
se estreitaram, mas eu não poderia dizer se ele estava com raiva, triste,
irritado ou impassível. — Eu sou Kage Ichiro. — O homem
continuou. — Tatsumi é, ou melhor, era meu aluno.
Sensei de Tatsumi. O homem que o treinou para ser um matador
de demônios, para lutar como um monstro e guardar sua mente e
alma contra Hakaimono. Ele provavelmente não estava feliz por seu
aluno ter se transformado em um demônio. — Por que você me trouxe
aqui? — Eu perguntei.
— Porque Hakumei-jo é cheio de olhos, e eu queria falar com
você em particular. Onde as únicas sombras observando são as que eu
controlo. — Ele ergueu a mão, indicando o corredor atrás de mim. —
Este é meu território, meu labirinto, mas não se preocupe, se eu
quisesse matá-la, não teria me incomodado em ter Harumi-san
trazendo você aqui. Você simplesmente desapareceria por um
corredor, ou talvez caísse por um alçapão, e ninguém jamais a
encontraria.
Respirei furtivamente para acalmar meu coração. — O que você
quer comigo, então?
— Eu não quero nada de você, garota. — A voz do sensei estava
monótona. — Exceto para estender este aviso. Eu sei o que Hanshou-
sama pediu que você fizesse. Nada acontece em Hakumei-jo sem que
os ecos disso fluam para mim. Mas você e seus companheiros não
estão seguros aqui, existem aqueles no Clã das Sombras que não
desejam que Dama Hanshou tenha seu assassino de demônios
devolvido e farão o que for preciso para impedi-la de ter sucesso.
— Senhor Iesada. — Eu adivinhei, não vendo nenhuma reação
do sensei de Tatsumi. — Mas por que? Por que ele é tão contra nós
salvarmos Tatsumi? Por que ele não quer que Hakaimono seja levado
de volta?
— Os assassinos de demônios Kage são treinados para
obediência absoluta. — Ichiro respondeu. — Eu mesmo ensinei
Tatsumi, tirei todas as fraquezas de seu corpo e mente, forjei-o em
fogo e sangue, até que apenas uma arma permanecesse. Ele não teme
a morte, a dor ou a desonra. Sua lealdade aos Kage é incondicional,
mas ainda mais do que isso, ele também é a lâmina que Dama
Hanshou empunha contra seus inimigos. Muito tempo atrás, após a
rebelião de Genno, Hanshou-sama tomou a decisão de começar a
treinar shinobi para usar a Assassina de Deuses, ao invés de selar seu
poder. Ela acreditava que o risco seria superado pela utilidade de ter
Hakaimono sob seu controle. Ao longo dos anos, treinei vários
matadores de demônios de acordo com as expectativas de Dama
Hanshou. Eles não podem ser influenciados por subornos, ameaças,
poder ou manipulação. Eles são seus guerreiros perfeitos, a lâmina na
escuridão que até mesmo os Kage temem.
— Eles têm medo dele. — Percebi. — Senhor Iesada e os outros
senhores Kage. Eles não querem apenas Tatsumi morto, eles querem
Kamigoroshi selada para sempre. Então, Hanshou-sama não pode
usar o matador de demônios para ameaçar os nobres do Clã das
Sombras.
E quem mais ela quiser.
— Eles estão certos em temê-lo. — disse Ichiro gravemente. —
Eu vi Hakaimono, falei com o demônio através dos meus alunos. Eu
sei do que ele é capaz. — Seus penetrantes olhos negros se
estreitaram. — Eu pensei que tinha treinado bem Tatsumi, que ele era
forte o suficiente para controlar o demônio. Mas essa falha é minha
culpa. Tatsumi foi ensinado a resistir à dor, manipulação, sedução e
até mesmo ao controle da mente e à magia do sangue. Mas esqueci de
avisá-lo sobre a emoção mais perigosa de todas. — Um sorriso amargo
curvou um canto de sua boca. — Depois de tudo que o fizemos
passar, eu honestamente pensei que o menino era incapaz
disso. Aparentemente, ainda posso ficar surpreso, depois de todos
esses anos.
A emoção mais perigosa de todas. Eu me perguntei o que Ichiro quis
dizer. Eu assisti Tatsumi; eu sabia que ele não sentia raiva, tristeza ou
medo como o resto de nós. Que “emoção perigosa” poderia sobrar?
Mas, enquanto eu estava curiosa, eu também tinha certeza que o
sensei dos shinobi Kage não me diria o que ele queria dizer, então eu
nem perguntei. — Vou encontrá-lo, Ichiro-san. — Prometi em vez
disso. — Vou encontrar Tatsumi e salvá-lo de Hakaimono.
Ele bufou. — Você não é páreo para Hakaimono. — Ele disse
sem rodeios. — Não espero que uma única garota possa derrotar
alguém que massacrou exércitos e devastou cidades. Mas, na pequena
chance de você conseguir o impossível, direi algo sobre Tatsumi que
nem mesmo Hanshou ou seu orientador inteligente sabem.
— Os que sobrevivem para se tornarem assassinos de
demônios... — continuou Ichiro. — Não são os mais fortes, nem os
mais espertos, nem mesmo os mais habilidosos. Eles são aqueles com
as almas mais puras. Porque apenas aquele cuja alma é pura pode
resistir à influência de Hakaimono. Lembre-se disso e saiba que
mesmo agora, Tatsumi está lutando.
Kage Ichiro se afastou, a máscara em branco que eu costumava
ver em Tatsumi caindo no lugar. — Agora vá. — Ele ordenou. —
Salve o matador de demônios, se você puder. Mas lembre-se, há
aqueles que tentarão destruí-la antes mesmo de você começar sua
jornada. Não confie em ninguém e você pode sobreviver.
— Arigatou. — Eu sussurrei, mas o sensei de Tatsumi deu um
passo para trás e jogou algo no chão entre nós. Uma nuvem de fumaça
saiu de seus pés, obscurecendo minha visão, e quando ela clareou, o
sensei de Tatsumi havia sumido.
Uma risada suave ecoou atrás de mim. Virei para ver outro
shinobi encostado na parede com os braços cruzados, suas feições
escondidas nas sombras. Embora um momento antes de o corredor
estar vazio, tive a súbita impressão de que ele esteve lá o tempo todo.
— Ele se preocupa com ele, você sabe.
Eu empurrei minhas orelhas, tanto com a declaração, e que tinha
vindo de uma mulher. A shinobi levantou a cabeça, revelando uma
forma esguia em preto, longos cabelos negros amarrados atrás dela. —
Tatsumi-kun. — Ela explicou. — O treinamento do Mestre Ichiro tem
que ser duro, e ele não pode demonstrar nenhuma emoção quando se
trata do matador de demônios, mas ele se preocupa com o que
acontece com ele. Mais do que qualquer um de nós. — Ela balançou a
cabeça. — Tatsumi sempre foi seu favorito.
— Desculpe?
Sua boca se torceu em um sorriso amargo. — Eu poderia ter sido
a matadora de demônios. — Ela disse, empurrando-se para fora da
parede. — Eu era mais rápida, mais habilidosa do que Tatsumi. Mas
eles o escolheram. E agora ele caiu para Hakaimono. — O sorriso ficou
mais largo, quando uma adaga negra de arremesso de kunai apareceu
em sua mão, equilibrada em dois dedos. — Eles deveriam ter me
escolhido. — disse ela. — Eu poderia ter dito a eles que ele era muito
compassivo para manejar Kamigoroshi. Eles pensaram que poderiam
treina-lo, mas aparentemente não.
— O que você quer dizer?
A shinobi me lançou um breve olhar de puro ódio. — Ele deixou
você viver, não deixou?
Ela atirou a kunai em mim. Eu vacilei, jogando minhas mãos
para cima, mas a adaga preta errou minha cabeça por centímetros,
atingindo a parede oposta com um baque. Com o coração batendo
forte, olhei para cima, a magia da raposa surgindo nas pontas dos
meus dedos. Mas a shinobi, quem quer que fosse, havia desaparecido.

Harumi-san me encontrou momentos depois e silenciosamente


me guiou de volta por incontáveis corredores tortuosos até chegarmos
aos quartos de hóspedes. Agradeci à serva por me trazer ao meu
quarto e deslizei para dentro, imaginando se seria capaz de dormir em
um castelo cheio de shinobi. Especialmente depois do encontro
inesperado com o sensei de Tatsumi, e a shinobi que parecia me odiar.
Ao passar pelo quadro, percebi que não estava sozinha.
Reika estava esperando por mim, Chu ao seu lado, sua expressão
sombria. — Feche a porta. — Ela ordenou em voz baixa. — E chegue
mais perto. Eu não quero ser ouvida.
Intrigada, fechei a porta e cruzei o quarto até onde a donzela do
santuário esperava. — O que há de errado, Reika-san? — Eu
sussurrei. Ela franziu a testa para mim e eu me apressei. — Você não
precisa se preocupar. Está seguro. Dama Hanshou não sabe nada
sobre isso...
— É um alívio. — Interrompeu a donzela do santuário. — Mas
não é por isso que estou aqui. — Ela olhou para os cantos e para o
teto, como se pudesse haver shinobi por perto, ouvindo até agora, e
baixou ainda mais a voz. — Nós temos um problema. O ronin e o
nobre desapareceram.
Capítulo 9
A floresta de mil olhos
Hakaimono

— Finalmente aqui. — disse a bruxa azul, olhando para as


árvores. — Nós apenas temos que atravessar a floresta até o castelo no
centro. Não deve demorar muito agora.
Eu cruzei meus braços, olhando para a floresta em
questão. Quatrocentos anos, e a Floresta dos Mil Olhos não mudou,
exceto para ficar maior e ainda mais sombria. Os troncos das árvores
estavam dobrados e retorcidos, deformados em formas não naturais,
como criaturas se contorcendo em agonia. Os galhos exibiam garras
tortas arranhando o céu ou, às vezes, coisas vivas. A vegetação era
densa e emaranhada, apesar do fato de que cada folha, folhagem e
folha de grama parecia murcha e doente. Uma névoa pálida pairava
sobre tudo, enrolando-se nas árvores e rastejando ao longo do solo, e o
ar tinha um fedor doce e enjoativo que me lembrava flores podres.
— Ah, é bom estar em casa. — Suspirou a bruxa vermelha. —
Mandei avisar o castelo antes, então eles deveriam estar nos
esperando. Senhor Genno ficará muito interessado em conhecê-lo,
Hakaimono-sama.
— Tenho certeza que sim —, eu disse. A questão é: ele me verá
como um parceiro igual ou apenas outro demônio que ele pode subjugar? Isso
seria lamentável. Nunca fui bom em ser subjugado.
— Bem. — Eu disse às bruxas, apontando para a floresta. —
Podemos ir, então? Se o Mestre dos Demônios está nos esperando, não
devemos deixá-lo esperando. — Eu estava ansioso para chegar ao
castelo e falar com o humano que o comandava, bem como me livrar
de minhas companheiras de viagem. Foi uma jornada frustrantemente
lenta até a Floresta dos Mil Olhos. As irmãs bruxas viajavam apenas à
noite; eram criaturas noturnas que se incomodavam com o sol e
também queriam evitar serem vistas pelos humanos. A segunda razão
que pude entender: um trio de ogros e um oni vagando em plena luz
do dia faria qualquer humano que nos visse entrar em pânico. E
embora o pensamento de uma matança desenfreada parecesse muito
divertido, eu estava tentando evitar multidões febris e exércitos de
samurai de rosto sombrio. Era enfurecedor me esconder dos mortais,
mas se eu aprendi alguma coisa ao longo dos séculos, foi que se você
massacrasse uma cidade, assentamento ou exército, cada vez mais
humanos iriam segui-lo, furiosos e zelosos, determinados a derrubá-
lo. Pelo menos nenhum mortal imaculado se aventuraria perto da
Floresta dos Mil Olhos, e a luz do sol nunca perfurava a nuvem de
escuridão sob o dossel. Poderíamos viajar para o castelo sem medo de
encontrar humanos, embora, dada a natureza da floresta, eu
duvidasse que o resto da viagem seria sem intercorrências.
Impaciente para partir, comecei a avançar, passando pelas irmãs
bruxas, que piscaram e ficaram boquiabertas atrás de mim. — Espere,
Senhor Hakaimono. — Uma gritou. — Não há caminho para o castelo
Onikage. Se você esperar apenas um momento, podemos convocar
um kami contaminado para nos guiar.
— Não é preciso isso. — Eu dei a elas um olhar firme. — Eu sei o
caminho.
Entramos na floresta, e a névoa e as sombras se fecharam ao
nosso redor instantaneamente, lançando tudo em tons de cinza e
preto. Eu podia sentir o batimento cardíaco corrompido deste lugar,
como o centro de um alvo, pulsando com força negra. Não havia
trilha, mas quando passei por entre as árvores, cortando meu caminho
através da vegetação rasteira, vi o brilho de ossos sob alguns de seus
galhos, acompanhado por um leve fedor de sangue velho e carne
podre. Jubokko eram abundantes aqui, árvores corrompidas e
malévolas que se banqueteavam com sangue. Elas assombravam
antigos campos de batalha e áreas fortemente contaminadas, lugares
de escuridão e morte em massa, e pareciam árvores normais até que
fosse tarde demais. Muitos viajantes haviam chegado perto do tronco
de uma jubokko, apenas para serem agarrados por galhos com garras,
empalados com espinhos ocos e drenados de todo o sangue e fluidos
corporais. Os pássaros, o tempo e os insetos comeriam o infeliz
cadáver ainda preso na árvore, até que sobrassem apenas os ossos
para cair na base do tronco. Isso e o leve fedor de podridão eram os
únicos indicadores da natureza mortal da árvore.
Ossos branqueados brilhavam nas raízes de dezenas de árvores
enquanto caminhávamos. Olhei para cima uma vez e notei o esqueleto
de um cavalo infeliz preso nos galhos de uma jubokko
particularmente grande, e isso ainda era apenas a periferia da
floresta. Fiquei de olho nos galhos enquanto passávamos por baixo
deles, pronto para sacar Kamigoroshi a qualquer momento. Mas as
árvores jubokko eram coisas retorcidas e corrompidas, pulsando com
o poder de Jigoku e ansiavam pelo sangue de criaturas normais. Oni e
demônios não estavam em sua lista de presas desejáveis, então as
bruxas e eu permanecemos sem sermos molestados enquanto
passávamos pelas partes mais densas dos bosques de jubokko.
— Senhor Genno ficará muito satisfeito em vê-lo, Hakaimono-
sama. — A bruxa verde disse novamente, se abaixando sob um galho
coberto de espinhos. Um aglomerado de penas ensanguentadas
zumbindo com moscas estava preso em um berço de gravetos. Às
vezes, mesmo os pássaros não estavam a salvo das jubokko sugadoras
de sangue. — Muitos de seus mais fortes demônios e yokai foram
mortos na batalha há quatrocentos anos, e toda a sua cabala de magos
de sangue foi caçada e executada. O exército não é tão forte quanto
antes, mas estamos crescendo. Ter você ao nosso lado desta vez
aumentará nossas chances de vitória mil vezes.
Eu concordei. — O plano de Genno é o mesmo? — Eu
perguntei. — Marchar contra a capital, matar o imperador e tomar o
trono para si? Uma vez que ele fizer um desejo para o Dragão e for
menos incorpóreo, quero dizer.
— Não temos certeza. — Admitiu a ogra vermelha. — Senhor
Genno não falou sobre seus planos para o império, mas disse que não
cometerá os mesmos erros. Tenho certeza que ele vai discutir tudo
com você quando você chegar lá, Hakaimono-sama.
Isso era muito improvável, pensei. Não se Genno fosse o mesmo
humano furioso e arrogante que eu encontrei quatrocentos anos
atrás. Embora ele nem sempre tenha sido todo poderoso. O império
conhecia Genno como um mago de sangue talentoso e terrivelmente
malvado, e os pergaminhos de história estavam cheios das
atrocidades que ele cometeu como Mestre dos Demônios. Não havia
muitas informações sobre a vida de um certo fazendeiro, o chefe de
uma vila em algum lugar nos limites do território do Clã da
Terra. Naquela época, os clãs estavam todos em guerra, separando-se
e, como era o caso na maioria das guerras, os plebeus sofreram no
fogo cruzado. De acordo com uma pequena parte de um pergaminho
da história, o chefe da aldeia do Clã da Terra ficou sabendo de um
exército invasor de Hino e enviou uma mensagem ao senhor samurai
local, implorando-lhe para enviar ajuda. Mas ao invés de atender ao
pedido de Genno, o Senhor da Terra puxou todos os seus guerreiros
para fora da área para fortificar seu próprio castelo, abandonando a
vila para o Clã do Fogo. O exército Hino varreu a vila indefesa e a
arrasou, massacrando quase todos lá, incluindo a família de Genno.
O que aconteceu a seguir não era difícil de imaginar. O
enfurecido chefe jurou vingança contra a casta samurai e o império
que haviam falhado com ele, e se voltou para a magia do sangue para
se vingar. Ao contrário da magia inconstante dos tocados pelo kami,
Jigoku sempre ficava feliz em conceder seu poder sombrio a mortais
dispostos, em troca da alma do praticante. O irado e enlutado chefe da
aldeia Tsuchi se tornou um mago de sangue extremamente poderoso,
e o resto de sua história se tornou lenda.
Quatrocentos anos atrás, pensei, afastando um mosquito do
tamanho da minha mão que ficava zumbindo em volta do meu
rosto. Genno teve muito tempo para planejar vingança enquanto estava em
Jigoku; eu me pergunto se seus planos de conquistar o império são os mesmos,
ou se ele vai tentar algo diferente
Minhas reflexões foram interrompidas por um grito em algum
lugar acima, quando algo grande e preto caiu dos galhos de uma
árvore de amora. Eu pulei para trás, puxando Kamigoroshi em um
piscar de olhos, enquanto o trio de bruxas se afastava e girava,
levantando suas garras com assobios ameaçadores.
A cabeça inchada e sem corpo de um cavalo preto balançava de
cabeça para baixo no galho da árvore, a boca aberta para mostrar
dentes amarelos podres. Não havia ninguém; uma espiral de
músculos na base do pescoço era tudo o que o mantinha preso à
árvore. Olhos brancos esbugalhados rolaram para trás para nos
encarar, enquanto a criatura abria suas mandíbulas e gritava
novamente, o som agudo e lamentoso de um animal morrendo.
— Desgraçado sagari! — A bruxa azul se endireitou, dando à
cabeça do cavalo balançando um olhar de nojo. — Uma maldição para
toda a sua espécie, pois não consigo pensar em uma criatura mais
inútil para existir no reino mortal.
Eu revirei meus olhos. Sagari eram criaturas retorcidas que
vieram do espírito de um cavalo cujo corpo foi deixado para
apodrecer onde havia morrido. Eles eram grotescos, mas
inofensivos; o máximo que podiam fazer era cair dos galhos das
árvores e gritar, embora alguns humanos morressem de medo ao ver
um. A maior preocupação não era o próprio sagari, mas o grito de
arrepiar que ele produzia e que podia ser ouvido por quilômetros. Em
uma estrada solitária, era apenas um aborrecimento; aqui na Floresta
dos Mil Olhos, ele acabara de anunciar nossa presença para toda a
floresta e para todos os demônios, fantasmas e yokai que viviam aqui.
Com um lampejo de aço, cortei o pescoço da fera patética. A
cabeça bateu no chão com um baque e outro gemido ensurdecedor,
antes de parecer derreter na terra e desaparecer.
O silêncio desceu e, naquela batida do coração, senti a floresta
inteira voltar sua atenção para dentro e nos encontrar nas sombras. Eu
sorri de volta para isso. Venha, então. Passei quase uma semana sem lutar
e Kamigoroshi está sedenta de sangue. Qualquer horda assassina, yurei
vingativo ou monstro imponente que você tenha escondido nesta floresta,
mande para mim. Estou morrendo por um pequeno massacre.
Eu me virei para as irmãs bruxas, que estavam olhando
cautelosamente para as árvores; elas sabiam que algo estava por vir
também. — Espero que vocês estejam prontas para uma luta. — Eu
disse a elas. — Todos sabem onde estamos agora e as coisas vão ficar
interessantes.
As bruxas pareciam nervosas. É verdade que elas próprias eram
demônios e bastante poderosas, mesmo aparecendo em algumas
lendas em todo o mundo mortal. Mas dentro da Floresta dos Mil
Olhos havia coisas que até os demônios temiam. Coisas velhas e
raivosas, enlouquecidas pela corrupção, que não ligavam para lendas
e que desafiariam até mesmo um oni. Mil anos atrás, eu era o general
demônio mais forte de Jigoku, e nada ousava se opor a mim, mas
agora eu era do tamanho de um mortal e parecia muito comestível.
Continuamos cada vez mais na floresta, que ficava ainda mais
escura e mais emaranhada à medida que avançávamos. As próprias
folhas começaram a pingar malevolência, a névoa enrolou-se em
nossas pernas e o solo ficou esponjoso e perturbadoramente quente,
como se o sangue de milhares ainda estivesse impregnado na própria
terra. Eu enrolei minhas garras em torno de Kamigoroshi, ciente de
que algo estava para acontecer.
Houve um lampejo de movimento nos galhos, quando algo
grande e bulboso voou na parte de trás da ogra azul. Uma cabeça
humana, pálida, sem corpo e brilhando com uma luz vermelha
doentia, voou entre as árvores, sua boca aberta mostrando dentes
serrilhados de tubarão. Gritou quando entrou, e a bruxa girou,
jogando o braço para cima para cortá-la no ar. Mas a cabeça cerrou as
mandíbulas em torno de seu antebraço e, um segundo depois, ouviu-
se um som úmido e dilacerante, o cheiro de sangue e a bruxa
gritou. Fascinado, observei a cabeça erguer-se no ar, o braço delgado
da bruxa preso entre as mandíbulas cheias de presas, fluindo sangue
por trás dele. Suas mandíbulas trabalharam, estalando avidamente, e
o membro da ogra desapareceu pela goela em um estalar de ossos e
carne. Olhando para sua vítima, os lábios incolores da cabeça se
curvaram em um sorriso largo e sangrento enquanto ela lambia os
dentes e a bruxa gritava de raiva.
Houve mais lampejos nas árvores, e quase uma dúzia de cabeças
veio enxameando dos galhos. Com as mandíbulas abertas, elas
desceram sobre nós, os dentes como pedaços de aço quebrados
apontando para qualquer carne que pudessem alcançar. A cabeça de
uma mulher, arrastando uma cortina irregular de cabelo, lançou-se
sobre mim com um uivo e eu parti o crânio ao meio. A cabeça
explodiu em uma névoa preto-avermelhada e desapareceu.
Na morte da primeira aparição, o resto do enxame parou e olhou
para mim com o que parecia uma surpresa atordoada, depois uma
fúria maligna. Eu levantei Kamigoroshi e dei um passo à frente.
— Qual é o problema? — Eu provoquei, brandindo a espada
sangrenta. — Morderam mais do que vocês poderiam mastigar? — As
cabeças não responderam, mas a forma como seus lábios se puxaram
para trás para mostrar as presas dentadas indicava que elas
entenderam cada palavra que eu disse.
Com gritos ensurdecedores, o enxame correu para mim,
enviando uma descarga de adrenalina em minhas veias. Eu rosnei um
grito de guerra próprio e saltei para frente para enfrentá-las. O
primeiro monstro investiu contra meu rosto, as mandíbulas se abriram
como uma serpente, escancarando-se para morder minha cabeça. Eu
varri Kamigoroshi entre seus dentes, dividindo a cabeça em duas, e
imediatamente me virei para cortar outra se arremessando da
esquerda. A lâmina cortou uma fita ensanguentada da testa até o
queixo, e a aparição cambaleou com um grito. Virando, eu lancei
minha garra vazia enquanto outra cabeça se lançava, batendo minha
palma na testa pálida e enrolando minhas garras em carne podre e
macia. Arrastando-a do ar enquanto ela rosnava, gritava e batia no
meu braço, levantei a espada e mergulhei a lâmina entre os olhos,
prendendo-a no chão.
Enquanto a cabeça gemia e desaparecia, o resto do enxame
hesitou novamente e flutuou de volta para olhar para mim. Pelo canto
do olho, eu podia ver o trio de bruxas, a vermelho e a verde paradas
protetoramente sobre o corpo de sua irmã gemendo. Suas garras
estavam levantadas e pareciam estar cantando algo.
Eu olhei para o enxame, que havia se formado em um
aglomerado de rostos pairando, ainda me olhando com raiva e fome
taciturnas. Elas pareciam relutantes em se aproximar de Kamigoroshi
agora e, por um momento, pensei que elas iriam se virar e fugir.
Com assobios e rosnados frenéticos, o enxame subiu mais alto e
começou a congelar. Uma cabeça se virava e agarrava-se ao lado do
crânio de outra, agarrando-se como sanguessugas, enquanto sua
vítima fazia o mesmo com uma terceira. Enquanto eu olhava com
fascinação confusa, o aglomerado turbulento de rostos, cada um se
virou e pressionou seu vizinho, e quando eles fizeram isso, seus traços
começaram a se confundir e se fundir. Os olhos se moveram e se
encontraram, as bocas começaram a deslizar juntas como enguias, os
rostos individuais se dissolviam como tinta na água, mudaram de
posição e se tornaram um. Dois olhos enormes se abriram e olharam
para mim com a malícia de uma dúzia de almas, e uma única boca
enorme se abriu como um buraco, brilhando com centenas de dentes.
— Belo truque. — Eu sorri, vendo meu reflexo em seu brilho
maligno enquanto a única cabeça gigantesca pairava sobre mim. —
Agora as coisas ficaram interessantes.
A cabeça rugiu e caiu em minha direção como uma rocha. Eu
mergulhei para o lado quando ela caiu na terra, a boca estalando e
mastigando enquanto se debatia, transformando pedras, terra e galhos
de árvores em palha. Fiquei de pé e corri para frente, então enfiei a
ponta de Kamigoroshi em sua orelha enorme, afundando a lâmina até
o cabo. A cabeça gritou e se afastou, se libertando de
Kamigoroshi. Houve um som de rasgo e sucção quando ela subiu no
ar, deixando uma cabeça de tamanho normal empalada na ponta da
minha espada.
Eu bufei e joguei a cabeça mole no chão, onde ela se derreteu na
terra. — E os truques continuam chegando. — Eu disse ao rosto
gigante, que se virou para me encarar. Com um sorriso, levantei
Kamigoroshi e me preparei para o próximo ataque. — Você tem mais
surpresas ou essa é a última?
Ela se lançou com outro rugido. Plantei meus pés, levantei
Kamigoroshi sobre minha cabeça e a trouxe direto para a minha
frente, dividindo a cabeça bem no meio. O sangue voou por toda
parte, enquanto o rosto se partia ao meio e voava para os dois lados.
Um par de cabeças menores caiu no chão perto dos meus pés,
olhos cegos, antes de se dissolverem em gosma etérea. Mas as metades
decepadas da grande cabeça viraram-se para mim, tornando-se duas
faces separadas no ar. Eu tive cerca de um segundo para ficar
surpreso, antes que as duas disparassem para frente e prendessem
suas mandíbulas em volta dos meus braços, afundando as presas
dentadas em minha carne.
A dor apunhalou meus braços. Com um grunhido, me afastei,
tentando libertar meus membros. Mas os dentes eram em forma de
gancho como as mandíbulas de um tubarão e só afundavam
mais. Uma cabeça estava com as mandíbulas travadas ao redor do
meu antebraço, me impedindo de usar minha espada. Elas se
ergueram no ar, levando-me com els, e começaram a puxar meus
braços como um par de cães com um osso entre elas. As presas se
chocaram contra o osso e enviaram raios de agonia, sacudindo meus
braços.
Através da dor e fúria cegantes, eu podia sentir a esperança
súbita e sombria de Tatsumi de que era isso; que as cabeças iriam me
rasgar, rasgar nós dois ao meio, forçando meu espírito de volta em
Kamigoroshi e enviando sua alma para qualquer vida após a morte
que o esperava.
Você gostaria disso, não é, Tatsumi? Entre puxões pelas cabeças
flutuantes, eu peguei vislumbres das irmãs bruxas no chão abaixo. As
duas ilesas estavam com os braços erguidos em nossa direção, uma
esfera de chamas roxas turbulentas se formando entre elas. Não fique
muito animado; isto está longe de terminar.
Com um grunhido, bati minha testa com chifres no rosto em
meu braço direito, batendo entre os olhos com toda a força que
pude. Houve um estalo retumbante quando nossas testas se
encontraram e as mandíbulas ao redor do meu braço afrouxaram. Eu
arranquei o membro livre, assim como uma bola de fogo maligno se
chocou contra a cabeça atordoada, engolfando-a com um rugido. A
cabeça gritou, desta vez de dor e terror. Ela se dividiu, meia dúzia de
cabeças se espalhando em diferentes direções, mas nenhuma
conseguiu escapar das chamas que consumiam. Uma por uma, elas
caíram, gritando e queimando, para a terra e se dissolveram em cinzas
ao vento.
Meu braço com a espada estava livre, mas a cabeça que
mastigava meu outro pulso se recusava a soltar, embora tivéssemos
voltado para a terra. Eu me virei, levantando Kamigoroshi e
mergulhei-a repetidamente na cabeça ainda agarrado ao meu braço,
apunhalando-a em vários ângulos diferentes, até que a mandíbula
finalmente se soltou. Ferida e sangrando, a cabeça finalmente tentou
me cuspir e voar para longe, mas eu enfiei minha mão mais fundo em
sua boca e agarrei sua garganta, afundando minhas garras na língua
nojenta.
— Onde você pensa que está indo? — Eu rosnei e afundei
Kamigoroshi em um dos enormes olhos fixos, rasgando-a lateralmente
através de seu crânio. O sangue espirrou em mim e uma cabeça se
desprendeu, caindo no chão com um baque.
— Vocês começaram esta luta. — Eu continuei, mergulhando a
lâmina no outro olho, então puxando para baixo no queixo. A cabeça
gritou um gorgolejo sufocante, sacudindo e se debatendo
descontroladamente, mas eu mantive meu aperto. — Vocês deveriam
saber que começar uma luta comigo significa terminar. Então, vamos
terminar!
Eu levantei Kamigoroshi e a cortei direto no meio do rosto
ensanguentado, partindo o crânio em dois. Com um grito final, a
cabeça gigante caiu em quatro cabeças menores, ensanguentadas e
rasgadas enquanto se espalhavam ao meu redor. No momento em que
atingiram o solo, não eram nada além de bolhas de lama etérea,
derretendo-se nas folhas caídas.
Eu chutei uma cabeça escorrendo, me endireitando enquanto a
dor apunhalava meus músculos lacerados. A pele do pulso ao
cotovelo em ambos os braços parecia como se um grupo de amanjaku
frenéticos a tivesse mastigado. Eu rosnei baixinho, amaldiçoando as
habilidades de cura patéticas deste corpo. Na minha forma real,
feridas como essa desapareceriam em alguns segundos; mesmo
membros cortados voltariam a crescer em uma ou duas horas. Ainda
assim, esse era metade meu corpo; agora que eu estava totalmente
livre, meu espírito impregnava cada parte desta forma mortal,
concedendo a ele metade de meu considerável poder em vez da fração
que o assassino de demônios usava quando eu estava preso na
espada. Mesmo que o corpo de Tatsumi fosse pequeno e frágil, os
cortes seriam cicatrizes que desapareceriam no final do dia. Eles não
eram uma ameaça à vida, apenas irritantes, e mais uma razão pela
qual eu sentia falta desesperadamente de minha forma real. Os
humanos eram tão frágeis e se curavam ridiculamente devagar, era
uma maravilha que qualquer um deles sobrevivesse até a idade
adulta.
A ogra azul cambaleou sobre seus pés, segurando a
protuberância branca e irregular que fora seu outro braço. O sangue
escorria entre suas garras e sua pele ficou bastante pálida, mas seus
olhos amarelos procuraram os meus enquanto ela cambaleava para
frente com um suspiro.
— Senhor Hakaimono! Voce está machucado. Suas feridas são
graves?
— Estou bem. — Eu disse a ela, enquanto as outras duas se
agrupavam ao redor também, mal dando a sua irmã um segundo
olhar. Para elas, membros perdidos não eram uma preocupação; elas
eram demônios e os regenerariam eventualmente. — Quase nem são
arranhões. Eles terão ido no final do dia.
— Oh, que alívio. — Murmurou a bruxa vermelha. — Com o
quão fraco seu corpo está agora, temíamos que uma lesão como essa
fosse debilitante.
— É assim mesmo? — Eu sussurrei.
O rosto da bruxa ficou pálido. — Eu não quis dizer... — ela
começou, mas era tarde demais. Avancei, estendi a mão e bati minha
palma em seu rosto, afundando minhas garras em seu
crânio. Flexionando meus dedos, apertei até sentir o osso sob minhas
garras começar a ceder, então parei. A ogra guinchou, agitando-se e
agitando as mãos, enquanto as outras duas olhavam com temerosa
antecipação.
— Você sente como este corpo é fraco? — Eu perguntei
coloquialmente. — Você se sente segura agora, sabendo que um mero
humano não pode esmagar seu crânio como uma ameixa madura e
deixar seu cérebro vazar pelas orelhas?
— Perdoe-me... Senhor Hakaimono. — A bruxa rangeu,
enquanto um fluxo de sangue escorria de uma narina para o
queixo. — Eu quis dizer... sem desrespeito. Eu estava simplesmente
preocupada que...
— Você achou que eu corria o risco de ser comido? — Eu
continuei, deixando o desprezo infiltrar-se em minhas palavras. — Ou
que eu não conhecia o que acabamos de enfrentar? Eu vivi entre o Clã
das Sombras por séculos, ouvindo suas histórias de fantasmas e
contos dos horrores que vagam por esta terra. Tenho ouvido muitas
histórias da família que foi assassinada nesta floresta, como suas
cabeças foram cortadas por bandidos e deixadas para apodrecer na
terra. Você não achou que eu reconheceria os fantasmas mais infames
que assombram esta floresta? — Flexionei minhas garras e a ogra
ofegou, caindo de joelhos diante de mim. — Eu sou Hakaimono, o
Primeiro Oni de Jigoku. — Rosnei. — E era temido muito antes de a
lenda da Cabeça Comedora de Homens se tornar conhecida em todo o
país. Já matei dezenas de milhares de homens. Lembre-se disso, da
próxima vez eu posso ficar realmente irritado.
Eu soltei a bruxa, jogando-a para trás, e ela e suas irmãs
imediatamente caíram de joelhos e pressionaram o rosto no chão. —
Perdoe-nos, Senhor Hakaimono. — Implorou a ogra azul, mesmo
enquanto o sangue de seu toco irregular continuava a pingar no
chão. — Faz tanto tempo que você caminha por Ningen-kai que
esquecemos que você é realmente o maior de todos os
demônios. Perdoe nossa insolência. Não vai acontecer novamente.
— Desta vez. — Eu disse a elas, e me virei, sentindo-me
estranhamente irritado comigo mesmo. Não por lembrá-las de quem
eu era ou colocá-las em seus lugares; entre os demônios, se você não
fosse forte, seria uma presa. Até as irmãs bruxas, embora me
chamassem de Hakaimono-sama e reconhecessem minha
superioridade, se virariam contra mim em um instante se pensassem
que eu estava fraco. Se uma delas tivesse falado assim comigo quando
eu estava em minha forma real, eu teria feito mais do que ameaçar; eu
teria feito a ofensora em pedacinhos e feito as outras duas assistirem.
Mas eu não tinha feito, e esse era o problema. Havia três
ogras; matar uma para provar um ponto era o que deveria ter
acontecido. Eu deveria ter esmagado o crânio da bruxa entre meus
dedos e deixado seu cérebro vazar pelo chão, como eu havia
ameaçado. Eu deveria ter certeza de que as sobreviventes soubessem
que Hakaimono era alguém a ser obedecido, temido e nunca
questionado. E ainda, eu a deixara viver.
Eu tinha mostrado misericórdia.
A irritação transformou-se em nojo e eu cerrei o punho, mal me
impedindo de girar e enfiar minhas garras na parte de trás do crânio
da bruxa, afinal. Eu não era eu mesmo, percebi. Eu passei muitos anos
na espada, nas mentes de humanos de vontade fraca com suas
emoções fracas me poluindo como a corrupção de Jigoku envenenava
as almas dos homens. Eu já fui o mais temido e implacável senhor oni
sem nenhum conceito de sentimentos humanos, mas nos últimos
quatrocentos anos, fui continuamente exposto a sentimentos
repulsivos como honra, misericórdia, bondade e amor. E agora aquela
fragilidade estava se infiltrando em minha consciência.
A resolução caiu sobre mim como um manto sombrio. Não
podia haver indício de fraqueza na corte de Genno, nenhuma sombra
de dúvida ou hesitação. Se eu fosse fazer o autoproclamado Mestre
dos Demônios fazer o que eu queria, eu teria que ser tão cruel quanto,
senão mais, do que ele.
Continuamos pela floresta, que tinha ficado assustadoramente
quieta depois da batalha com as Cabeças Comedoras de Homens,
como se o resto dos habitantes estivessem se escondendo. Talvez eles
tivessem decidido que qualquer criatura que pudesse matar os
fantasmas mais perigosos que assombravam a Floresta dos Mil Olhos
era algo que era melhor deixar sozinho. Mas, à medida que a noite
caía e a floresta ficava mais escura e ainda mais emaranhada, comecei
a ver movimento nas árvores; figuras pálidas deslizando pela
vegetação rasteira. Uma mulher em um vestido branco
ensanguentado, me observando entre troncos de árvores, um samurai
andando atrás de nós na trilha estreita, a frente de sua armadura
aberta para revelar um buraco aberto e ensanguentado. Eles
flutuavam ou cintilavam ao nosso redor, uma hoste de yurei e
espíritos inquietos; mortais que caíram na floresta contaminada e
agora estavam presos, incapazes de encontrar o caminho para Meido,
ou para onde quer que suas almas humanas teriam ido. A maioria
deles parecia confuso, tomado pela tristeza, mas um fantasma, a
mulher ensanguentada de branco, nos perseguiu por entre as árvores,
piscando para dentro e para fora da existência, até que finalmente
saquei Kamigoroshi em aborrecimento. Os yurei fugiram quando a
luz fria e roxa da lâmina penetrou nas árvores e não nos incomodaram
mais.
Por fim, com o amanhecer a cerca de uma hora de distância,
alcançamos um vasto abismo que cortava a floresta como uma velha
ferida. Uma ponte de madeira podre cruzava o golfo e, do outro lado,
um castelo esquelético assomava, telhados de pagode em camadas
esfaqueando o céu noturno. A névoa pálida agarrando-se às suas
paredes como cortinas esfarrapadas, gavinhas pálidas se contorcendo
do abismo e deslizando pelo chão. A própria estrutura estava
desmoronando, meio coberta por vinhas e raízes sufocantes, pois
parecia que a floresta não havia recebido bem o intruso dentro de seus
limites e estava tentando separá-lo. Mas luzes piscavam dentro das
janelas, e uma tocha acesa estava do outro lado da ponte, indicando
que a ruína não estava mais abandonada.
— Aqui estamos. — Suspirou a irmã bruxa azul enquanto nos
aproximávamos da ponte. Seu ombro esquerdo já tinha brotado um
braço azul e enrugado com dedos nodosos que logo se
transformariam em garras. — Vamos embora, rápido. Estou ansiosa
para ver Senhor Genno, e ele certamente desejará falar com você
imediatamente, Hakaimono-sama.
A ponte rangeu sob meu peso, rangendo e protestando a cada
passo, mas as pranchas podres resistiram. Um vento gelado soprava
do abismo enevoado abaixo, cheirando a poeira e ossos velhos. Eu
olhei para o outro lado da garganta até o castelo, observando o portão
e as grandes portas com faixas de ferro que a impediam de fechar. —
Sem guardas. — Pensei quando chegamos ao centro da ponte. — Seu
Mestre dos Demônios parece certo de que ninguém vai atacar seu
castelo, se ele nem mesmo tem postando sentinelas. Embora eu não
tenha certeza se isso é confiança ou arrogância. O que impede um
exército de marchar pela ponte e passear pelo por...
Um gemido vibrante saiu do abismo e a névoa abaixo de nós
começou a se contorcer. As bruxas ficaram tensas e agarraram-se à
grade da ponte, olhando nervosamente para a escuridão, enquanto o
vento gemia ao nosso redor e as pranchas começavam a tremer.
Um enorme crânio pálido ergueu-se do mar de névoa. Ainda
maior do que as Cabeças Comedoras de Homens, pairava no ar com
enormes órbitas do tamanho de rodas de carroça. O crânio foi seguido
por um corpo esquelético igualmente gigante, velhos ossos amarelos
brilhando ao luar enquanto se erguia sobre nós, uma mão ossuda
grande o suficiente para quebrar a ponte como gravetos e nos lançar
no vazio.
— Ah. — Eu disse, enquanto o gashadokuro olhava para nós,
pontos vermelhos de luz brilhando em suas órbitas
ocas. Supremamente poderosos, os gashadokuro eram relativamente
raros, formados em locais de morte e destruição massiva, como
campos de batalha ou uma cidade infestada de pragas, ou convocados
por uma poderosa magia de sangue. Forte como era um mago de
sangue como Genno, não era surpreendente que ele convocasse o
infame gashadokuro para guardar os portões de seu castelo. — Acho
que isso responde a essa pergunta.
— Senhor Genno está nos esperando. — A bruxa vermelha
chamou, esticando o pescoço para olhar para o esqueleto monstruoso,
rangendo como um navio antigo ao vento. — Temos permissão para
estar aqui, fazemos parte do seu círculo íntimo. Você vai nos deixar
passar.
O gashadokuro não respondeu. Eu não tinha certeza se ele
conseguia falar, mas suas enormes mandíbulas se abriram e ele
estremeceu ameaçadoramente. Seu braço começou a subir, como se
quisesse nos esmagar e a ponte em que estávamos, e deixei cair minha
mão para Kamigoroshi.
— Sua sentinela não parece reconhecê-las. — Eu comentei, tenso
para pular para fora do caminho assim que aquela garra gigante
desabasse. — Eu odiaria ter que destruir um cão de guarda tão caro,
mas se ele não recuar, vou deixar muitos necrófagos muito felizes.
— A frase secreta! — A bruxa azul estalou, girando em sua
irmã. — Você se lembra? Você tem que falar a frase secreta, é a única
coisa que ele entenderá.
O braço do gashadokuro estava quase no auge. Eu agarrei
Kamigoroshi e comecei a tirá-la de sua bainha, enquanto os olhos da
bruxa verde se arregalaram, encarando o enorme esqueleto.
— Morte ao império! — Ela gritou, sua voz ecoando sobre o
abismo. — Todos saúdem o grande e terrível Mestre dos
Demônios. Que todos os homens tremam diante do magnífico retorno
de Senhor Genno!
O membro do gashadokuro estremeceu, então parou. Com um
rangido lento, ele abaixou o braço e ficou imóvel. Eu bufei e empurrei
Kamigoroshi de volta em sua bainha.
— Você tem que gritar isso toda vez que quiser cruzar a
ponte? Posso praticamente ouvir o ego de Genno inchando.
As bruxas fingiram não me ouvir. Passando pelo gashadokuro,
agora sem resposta, continuamos até o fim da ponte e paramos diante
dos portões do castelo.
Ou, onde deveriam estar os portões. A arcada ficava no final da
ponte, sua moldura de madeira antes ornamentada agora
apodrecendo e caindo aos pedaços, mas em vez de um par de portas
de madeira que se abriam para o pátio, havia uma parede contínua de
rocha e pedra.
Olhei para as ogras, que suspiraram como se não pudessem
acreditar que tinham que aguentar isso. Carrancuda, a bruxa
vermelha marchou até a parede de pedra, levantou um pé em forma
de garra e deu um chute retumbante.
— Nurikabe! Seu pedaço de rocha estúpido, eu sei que você nos
vê! Deixe-nos entrar.
— Quem deseja entrar no domínio de Senhor Genno?
A voz era profunda e rouca, e um único olho vermelho de
repente se abriu no centro da parede, rolando para olhar para a
bruxa. Eu balancei minha cabeça. Um nurikabe era um tipo de yokai
de parede vivo que parecia existir simplesmente para confundir e
enfurecer os viajantes. Eles se plantariam na frente de uma abertura,
seja uma porta, uma entrada de caverna, até mesmo uma montanha
ou uma trilha na floresta, camuflando-se para se misturar
perfeitamente com o ambiente e se recusariam obstinadamente a se
mover. Eles não podiam ser derrubados, e tentar passar por cima do
nurikabe faria com que ele reagisse e matasse o infeliz
viajante. Felizmente, não havia mais muitos deles no
mundo. Nurikabe eram lentos e estúpidos, mas extremamente difíceis
de matar. Às vezes, eles podiam ser enganados para sair ou se mover
de lado, mas uma vez que se decidissem, a única maneira de passar
pelo nurikabe era destruí-lo.
A bruxa vermelha fez um barulho impaciente. — Você pode ver
que somos nós. — Ela sibilou. — Chega pra lá. Temos negócios
importantes com Senhor Genno.
Outro grande olho carmesim se abriu, este perto do canto
inferior da parede, e rolou enquanto nos pegava. — Eu conheço você.
— disse o yokai à bruxa em uma voz lenta e ponderada. — Eu
conheço você e eu as conheço. — Ambos os olhos se acalmaram,
passando rapidamente pela ogra para me encarar malignamente. —
Mas eu não o conheço. — Ele retumbou. — E Senhor Genno insistiu
que eu não abrisse este portão para ninguém que eu não conhecesse.
— Não o reconhece? — a bruxa verde exclamou. — Seu idiota
cego estúpido, você não sabe quem é este? Este é Hakaimono, o
Destruidor, comandante dos Quatro Grandes Generais Demônios e o
Primeiro Senhor Oni de Jigoku.
— Hakaimono? — Os olhos piscaram lentamente e o yokai
pareceu se acomodar ainda mais fundo no chão. — Não conheço
ninguém com esse nome.
Eu exalei. Isso era divertido... e ridículo. Achei que poderia
contornar o nurikabe totalmente e passar por cima do muro, mas não
ia me esgueirar para o castelo de Genno como um shinobi à noite. O
Mestre dos Demônios sabia que eu estava chegando; ele deveria ter
pensado melhor antes de colocar esse obstáculo absurdo no meu
caminho.
— Não vai me deixar passar? — Eu perguntei, e o nurikabe ficou
carrancudo, seus olhos um vermelho sombrio em seu corpo de
pedra. Eu saquei Kamigoroshi, e a lâmina brilhou em um roxo
brilhante no rosto do monstro. As três bruxas deslizaram para o
lado; elas sabiam que não deveriam ficar no caminho. Mais três olhos
se abriram na parede sem feições do nurikabe e, com um estrondo de
pedra e terra, um par de braços de pedra grossos emergiu do corpo do
monstro, punhos enormes cerrados na frente dele. Eu sorri, agitei
Kamigoroshi e afundei em uma postura baixa. — Então eu acho que
terei que abrir um caminho através de você!
— O suficiente! — Disse uma voz. Uma figura tremeluziu à vida
acima, pálida e translúcida à luz da lua, um humano de ombros largos
em um manto branco puro, mangas largas ondulando ao redor
dele. Seu cabelo era longo, as laterais puxadas em um topete, e duas
mechas parecidas com gavinhas se estendiam de seu lábio superior
quase até o cinto, descendo por seu peito como bigodes de
dragão. Seus olhos eram afiados, suas sobrancelhas mais afiadas e seu
queixo era o mais afiado de todos; uma lâmina de barbear como um
rosto puxado em uma carranca severa.
— Senhor Genno. — Disse a bruxa azul, e as três se curvaram. Eu
permaneci de pé, observando enquanto o espectro flutuava mais
perto. Ele ignorou as três ogras, circulando-me como um tubarão
pálido, deixando rastros de luz finos atrás de si. Não me mexi, mesmo
quando o yurei passou atrás de mim, olhos frios e mortos nas minhas
costas, antes de flutuar novamente.
— Hakaimono. — A figura declarou, olhando para mim. —
Então, você realmente veio, afinal.
— Genno. — Eu reconheci, com um sorriso e um aceno muito
leve. — Você está exatamente igual a quatrocentos anos atrás. Bem, só
que sem um corpo.
A boca exangue do espectro se estreitou. — E você é o mesmo
demônio irreverente que atrapalhou meu exército quatro séculos
atrás. — Ele disse irritado, e apontou para mim com um dedo longo e
elegante. — Deixe-me lembrá-lo, Hakaimono, você pode ser o maior
dos senhores oni, mas ainda está preso dentro do corpo de um mero
mortal. Este é meu domínio, e você é muito mais fácil de matar.
— Não há necessidade de ameaças. — Eu sorri, mostrando as
presas. — Eu não vim aqui para brigar, humano. Ouvi dizer que você
teve alguns problemas com seu novo corpo, então pensei em oferecer
minha ajuda.
O espectro do Mestre dos Demônios levantou uma sobrancelha
pálida. — Intrigante. — Ele meditou. — O Primeiro Oni vem até mim
com uma oferta de ajuda. Não de graça, é claro.
— Claro que não. — Eu bufei. — Contratar o serviço de um
Senhor Oni nunca é barato, você deve saber disso melhor do que
ninguém, Mestre dos Demônios. — Eu abro meus braços, sorrindo
para ele. — Se você quiser minha ajuda, estou disposto a me juntar a
sua pequena missão para derrubar o império, e provavelmente vou
me divertir muito fazendo isso. Mas tenho um preço e acho que você
está disposto a pagar.
— E o que te faz pensar que preciso da sua ajuda?
— Porque você não é um tolo. Porque você sabe que sou um
aliado muito poderoso e um inimigo muito perigoso para recusar esta
oferta. Além disso... — Meu sorriso cresceu mais amplo. — Acho que
você ficará muito interessado em ouvir esta oferta, especialmente
considerando os tempos.
As sobrancelhas de Genno se ergueram. Muito ligeiramente, mas
era perceptível. O espectro voltou, sua forma cintilante ficando ainda
mais pálida. — Venha para a minha torre. — disse ele, dobrando as
mãos nas mangas onduladas. — Sinto-me desconfortável em falar
abertamente. Nurikabe... — Ele disse sem olhar para o monstro da
parede. — Deixe-os passar. Verei você em breve, Senhor Hakaimono.
— Ele continuou, enquanto sua forma se desvanecia lentamente no
nada. — As irmãs Yama mostrarão o caminho.
O Mestre dos Demônios desapareceu com o vento, deixando-nos
sozinhos na frente dos portões do castelo. O nurikabe olhou para mim
com seus múltiplos olhos vermelhos, mas com um rangido de pedra
contra pedra, a pesada laje de parede se arrastou para longe da
entrada do portão, apenas o suficiente para um corpo passar sem ter
que apertar.
Eu me virei para as irmãs bruxas. — Devemos?
Sem esperar por uma resposta, dei um passo à frente, deslizando
pelo espaço entre o portão e o nurikabe, e entrei no domínio do
Mestre dos Demônios.
Capítulo 10
Neko e sapos da sorte
Yumeko

Eu pisquei para Reika. — O que você quer dizer com você não
consegue encontrá-los?
A donzela do santuário olhou para mim e baixou a voz ainda
mais, indicando que eu deveria fazer o mesmo. — Quero dizer, eles se
foram. — Ela disse novamente. — Depois que nos mostraram nossos
aposentos, tive a sensação estranha de que estava sendo observada,
especialmente quando Chu continuava rosnando para as paredes e o
teto. Então decidi que deveria encontrar os outros e discutir esta
pequena situação em que nos encontramos. Quando o chá foi
entregue, perguntei à empregada onde os outros estavam hospedados
e, quando ela saiu, saí para encontrá-los.
— Ninguém te parou, Reika-san? — Eu perguntei em um
sussurro.
— Ninguém. Embora não se engane, tenho certeza de que estava
sendo observada. De qualquer forma, quando cheguei aos quartos,
ambos estavam vazios. Taiyo-san e o baka ronin haviam desaparecido
e não tenho ideia de onde eles estão. — A donzela do santuário fez um
gesto frustrado e exasperado. — É o meio da noite, quem sabe em que
problemas o ronin está se metendo. Não deveríamos estar separados
agora, não quando temos algo tão importante a realizar. E, claro,
nenhum dos servos ajudou em nada. Ninguém os tinha visto sair, ou
sabia para onde eles tinham ido. — Reika fez uma careta. — E eles
esperavam que eu acreditasse nisso, neste castelo onde as paredes têm
olhos e o chão parece ouvir cada palavra sua. — Ela me lançou um
olhar cansado. — Então achei melhor vir te encontrar, ter certeza de
que você não tinha se levantado e desaparecido
também. Principalmente depois de falar com a daimyo. Falando nisso,
o que me diz do encontro com Dama Hanshou? Podemos ter certeza
de que ela não sabe nada sobre aquilo?
Aquilo? Oh, o pergaminho. — Sim, Reika-san. — Eu disse, e a
donzela do santuário relaxou um pouco. — Ela não sabe sobre... erm...
aquela coisa. Mas eu conheci o sensei de Tatsumi, que me avisou que
o Senhor Iesada poderia tentar nos matar.
— Matar? — As sobrancelhas de Reika se ergueram. — Por quê?
— Porque... eu... hum, prometi a Dama Hanshou que
encontraríamos Tatsumi e o salvaríamos de Hakaimono.
— Você fez o quê? — Os olhos da miko se arregalaram,
esquecendo-se momentaneamente de ficar quieta. — Misericordioso
Jinkei, por que, em nome de todos os Kami sagrados, você prometeria
algo assim? — Respirei fundo para explicar, mas ela ergueu a mão. —
Não, eu não quero ouvir sobre isso agora. — Ela disse em um
sussurro. — Isso é algo que todos nós precisamos estar presentes,
especialmente Mestre Jiro. E então você pode explicar para todos nós
por que você decidiu ir atrás do matador de demônios em vez de levá-
lo para o templo. — Ela olhou para mim exasperada, então soltou um
suspiro. — Isto é mau. Se você diz que Senhor Iesada está trabalhando
contra os desejos de Hanshou-sama... eu preciso encontrar Okame e
Taiyo-san, antes que eles desapareçam em um corredor escuro e
nunca sejam vistos novamente.
— Por onde devemos começar, Reika-san? — Eu perguntei.
Ela me lançou um olhar severo. — Você não vai a lugar
nenhum. Você vai ficar neste quarto onde não preciso me preocupar
com onde você está ou em que problemas está se metendo. Será mais
seguro do que vagar por este labirinto de castelo. E não fixe seus
ouvidos em mim. — Ela devolveu minha carranca. — Se nos
perdermos ou nos separarmos, não quero perder ainda mais tempo
tentando encontrar você, assim como Taiyo-san e o baka ronin. Você
estará mais segura aqui. Um convidado sendo atacado por shinobi em
seus próprios aposentos traria vergonha e desonra eterna ao clã que os
hospeda. Se você estiver segura em seu quarto, não levantará
suspeitas.
— E quanto ao Senhor Iesada? — Eu perguntei. — Ele poderia
ter seus próprios shinobi. Pode haver assassinos escondidos sob o
chão ou nas pinturas das paredes, esperando para emboscar você.
— Mais uma razão para eu ir sozinha. Sou apenas uma humilde
donzela de santuário. Não estou carregando nada
importante. Ninguém vai se importar se eu desaparecer.
— Eu me importaria, Reika-san.
Ela me lançou um olhar penetrante, como se fosse o fim de
tudo. — Você não vai comigo, Yumeko. Fim da história.
Ela não mudaria de ideia, então eu balancei a cabeça e
suspirei. — Tudo bem, Reika-san. — Eu disse a ela. — Mas como você
vai encontrar os outros? Este castelo é como um labirinto. Oh, você
precisa de barbante? Eu provavelmente poderia fazer para você uma
bola de barbante.
— Não. Vou fazer com que Chu siga seu rastro. Ele deve ser
capaz de rastreá-los pelo cheiro, tão cheiroso quanto o ronin é. — A
donzela do santuário torceu o nariz. — Ele será capaz de encontrar o
caminho de volta, também. O que não quero fazer é vagar pelo castelo
Hakumei sem saber onde você está. — Ela apontou um dedo para o
chão. — Então você vai ficar bem aqui, neste quarto, e não sair,
entendeu? Se algo estranho acontecer, lembre-se de que Mestre Jiro e
Ko estão do outro lado do corredor, e nenhum deles é indefeso. —
Seus lábios se estreitaram. — Ainda assim, eu preciso me
apressar. Não gosto da ideia de deixá-la sozinho neste
lugar. Homens baka. — Ela foi até a porta, balançando a cabeça,
enquanto Chu a seguia. — O que poderia ter acontecido com aqueles
dois, para que eles simplesmente se levantassem e fossem embora sem
dizer uma palavra a ninguém?
— Okame-san não tem sido ele mesmo desde o Caminho das
Sombras. — Eu disse enquanto Reika abria a shoji e olhava para o
corredor. Um chão escuro e polido, arandelas tremeluzentes e paredes
de painel fusuma a saudaram quando ela se inclinou para fora do
quarto. — Espero que ele esteja bem.
Reika fungou. — Ele provavelmente se embriagou e arrastou
Taiyo-san com ele. — Ela murmurou, olhando para cima e para baixo
no corredor. — Parece limpo. — disse ela, e olhou para trás para o
quarto. — Vou indo. Lembre-se do que eu disse, Yumeko. Fique
aqui. Não se meta em problemas. Prometa-me.
Eu concordei. — Tenha cuidado, Reika-san.
— Chu. — Disse a miko, olhando para o cachorro. —
Vamos. Encontre o ronin e Taiyo-san.
O pequeno cachorro laranja imediatamente colocou o focinho no
chão e trotou para o corredor, suas garras estalando sobre a
madeira. Com um último olhar severo para mim, a donzela do
santuário fechou a porta entre nós, e eu ouvi seus passos afastando-se
pelo corredor.
Assim que o som sumiu no silêncio, me levantei e caminhei até a
porta. Eu confiava em Reika e sabia que ela estava apenas tentando
proteger o pergaminho, mas se Daisuke e Okame estivessem em
apuros, eu certamente não iria sentar-me sozinha e não fazer nada. A
miko ficaria zangada, mas eu nunca concordei em ficar no meu
quarto. Como uma vez eu disse a Jin quando ele me fez prometer que
não comeria os bolos de arroz que ele havia deixado no balcão, eu
nunca disse as palavras em voz alta, portanto, não poderiam me
segurar.
No entanto, quando abri minha porta, fiquei cara a cara com
minha serva. Mesmo com uma bandeja cheia de chá nas mãos, eu não
a tinha ouvido se aproximar; era como se ela tivesse se materializado
do nada ou tivesse aprendido a pairar sobre o solo como um fantasma
yurei enquanto caminhava.
— Oh. — Ela exclamou, dando um passo rápido para trás como
se estivesse assustada. — Me desculpe, eu não sabia que você estava
saindo. Por favor, com licença, senhorita. — Ela balançou a cabeça e
passou por mim para entrar no quarto, desviando os olhos enquanto o
fazia, e colocou o chá na mesa baixa. Eu a observei com desconfiança,
procurando por qualquer sinal de que ela pudesse estar nos
espionando, mas ela agia perfeitamente normal.
— Precisa de mais alguma coisa? — ela perguntou, ainda
mantendo seu olhar recatadamente no chão enquanto se
endireitava. — Se eu puder buscar qualquer coisa, você só precisa
pedir.
— Ano... — eu disse após um momento de hesitação. A
empregada, que estava pronta para sair, olhou para mim com
curiosidade. — Sinto muito, mas nunca estive dentro de um castelo
antes. — continuei, desviando o olhar como se estivesse
envergonhada. — Não tenho certeza... quero dizer, você poderia me
mostrar... onde ficam os banheiros?
— Oh. — A empregada sorriu e relaxou. — Claro. Por favor siga-
me.
— Obrigada.
Saímos do quarto e eu a segui pelos corredores estreitos,
passando por alguns samurai e servos vestidos de preto. Mesmo
sendo muito tarde, ainda havia muito mais pessoas trabalhando do
que eu imaginava. Talvez eles não gostassem da luz do sol. Talvez o
Clã das Sombras preferisse fazer a maior parte de seus negócios no
escuro, como corujas ou morcegos. De qualquer forma, nenhum deles
prestou atenção em nós, embora eu ainda pudesse sentir olhos em
mim no corredor e descendo as escadas até o andar inferior. A
empregada conduziu-me a uma câmara com chão de pedra e várias
baias de madeira. No centro de cada uma, um fosso retangular estreito
caia na escuridão total.
— Devo ficar, senhorita? — a empregada perguntou, parecendo
relutante, mas tentando não demonstrar. — Você precisa que lhe
mostrem o caminho de volta?
— Eu não acho que isso será necessário. — Eu disse a ela, e
observei o alívio passar por seu rosto. — Eu devo estar bem a partir
daqui. Obrigada.
A empregada saiu rapidamente e eu sorri, abrindo caminho para
uma das baias. Aqui, pelo menos, eu tinha quase certeza de que
ninguém estaria me espionando.
Encolhida contra a parede com o fosso a meus pés, pesquei em
meu furoshiki e retirei mais duas das pequenas folhas ligeiramente
amassadas que peguei antes de chegarmos ao castelo.
Às vezes você fica muito mal-humorada, Reika-san, pensei, colocando
uma folha na minha cabeça. Mas acho que tenho que agradecer por isso.
Uma nuvem de fumaça branca encheu o cubículo do
banheiro. Enquanto limpava, eu afastei os tentáculos e dei uma rápida
olhada em mim mesma, vendo um manto simples e um par de mãos
delgadas segurando uma bandeja de chá. Acenando uma vez com
satisfação, saí da cabine e caminhei para o corredor.
Tudo bem, pensei, olhando ao redor. Um samurai passou
correndo por mim com um grunhido curto, entrando em uma das
cabines. Eu rapidamente me afastei do banheiro antes de começar a
ouvir coisas que preferia não ouvir. E também antes que ele pudesse
se perguntar por que eu estava segurando uma bandeja de chá
enquanto ia ao banheiro. Onde Daisuke e baka Okame poderiam ter
ido? Talvez eu verifique seus quartos primeiro, caso eles tenham deixado algo
para trás.
Segurando a bandeja, voltei para nossos aposentos, tomando
cuidado para não me perder no labirinto de corredores e
passagens. Mais servos e alguns samurais passaram por mim nas
passagens, nenhum dos quais me deram uma segunda olhada.
Abri a porta do que tinha certeza de que era um dos nossos
quartos, embora ainda não tivesse certeza de quem, e olhei em
volta. Estava vazio e me virei para sair.
No entanto, ao sair pela porta, senti um aperto firme em meu
braço. Com um grito, girei e fiquei cara a cara com a serva mais velha,
que me encarou com olhos negros duros.
— O que você está fazendo? — ela exigiu, sem nenhuma polidez
fria que ela tinha me mostrado antes. — Você não deveria estar aqui
agora. Mandei você para a cozinha para o chá de Hanari-san. Por que
você não está na sua estação?
— Eu... hum... a garota me pediu para mostrar a ela o caminho
para os banheiros. — eu gaguejei, ganhando um bufo irritado da outra
mulher. Antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, acrescentei: —
Ela também queria saber onde estavam seus dois companheiros
desaparecidos e quando voltariam. O que devo dizer a ela se ela
perguntar de novo?
A mulher suspirou. — A última coisa que eu ouvi foi que o
Taiyo e o yojimbo haviam deixado o castelo e estavam indo em
direção ao salão de jogos Sapo da Sorte no lado leste da
cidade. Nossos shinobi os estão rastreando enquanto falamos, mas
eles não são importantes.
— Oh. — Eu mantive a carranca confusa do meu rosto. Mas,
Reika disse que ninguém tinha visto Daisuke ou Okame deixar o castelo. Eles
estão deliberadamente tentando nos enganar?
— Não deixe a garota sair. — A mulher me deu uma carranca de
advertência. — Os outros podem ir e vir como quiserem, mas Masao-
sama foi muito específico que a camponesa não tinha permissão para
deixar o castelo até que o Senhor Iesada voltasse para suas próprias
terras. Pode ser perigoso se ela for para a cidade ou em qualquer lugar
que nossos shinobi não possam vigiá-la. Se ela perguntar onde os
homens estão de novo, diga que eles foram visitar a casa das gueixas
Sorriso Pintado durante a noite. Isso deve impedi-la de se aventurar
atrás deles. Agora vá. — Ela gesticulou firmemente para o corredor. —
Volte aos seus deveres. Você está perdendo tempo vagando.
Fiz uma reverência rápida e corri na direção que ela apontou,
minha mente girando com esta nova informação.
Bem, isso confirmou o que eu suspeitava desde que cheguei
aqui. As paredes tinham olhos e ouvidos. Provavelmente havia um
shinobi à espreita perto do banheiro agora, esperando para ver
quando eu sairia. Esse pensamento me fez rir, mas apresentou um
problema. Eu precisava sair para procurar Daisuke e Okame, mas os
Kage não queriam que eu saísse do castelo. Se eles me vissem sair,
provavelmente me impediriam.
Se eles me vissem.
Escorregando para um cômodo vazio, me certifiquei de que
estava sozinha antes de puxar a terceira e última folha do meu obi e
colocá-la na minha cabeça, deixando a magia da raposa me engolfar
novamente. Quando a fumaça se dissipou, fiz uma varredura rápida
em meu haori branco e hakama vermelho, certificando-me de que
tudo estava no lugar. Agora, se alguém me visse, veria uma donzela
de santuário muito determinada e séria e, com sorte, não entraria em
seu caminho. A única coisa que faltava era Chu, e eu esperava que os
Kage não notassem ou se importassem que a miko estivesse sem seu
cachorro.
Eu só precisava me preocupar em não encontrar a própria Reika.
Eu estremeci. Rapidamente, saí do cômodo e comecei a caminhar
pelo corredor, procurando uma saída, enquanto mantinha um ouvido
aberto para ouvir o estalo de unhas de cachorro no piso de madeira.
Depois de algumas perguntas usando minha melhor Voz Firme
de Reika, eu finalmente encontrei a entrada da frente do castelo, onde
através de um vasto corredor de madeira polida e estátuas de ônix,
um par de enormes portas duplas estava entreaberta. Dois samurais
guardavam os dois lados da grande moldura, a luz bruxuleante da
lanterna brilhando em sua armadura negra e altas lanças yari. Eles me
olharam com interesse estoico quando me aproximei, mas não se
moveram para bloquear meu caminho, embora um me desse um olhar
severo enquanto eu caminhava em direção a eles.
— Indo para a cidade? — ele perguntou.
Eu concordei.
— Você é bem-vinda para sair. — O samurai me disse. —
Contanto que você não cause problemas dentro de Ogi Owari
Toshi. Esteja avisada, você está sob a lei Kage, e todos os que quebram
as regras do Clã das Sombras serão tratados de acordo. — Ele deu um
aceno solene com a cabeça. — Tenha uma noite agradável e, por favor,
esteja segura enquanto estiver na cidade.
Eu sorri para ele e escapei para o ar frio de fora.
Minhas sandálias rangeram contra o cascalho enquanto eu
caminhava pelo pátio, em direção aos portões da alta parede de pedra
que cercava o castelo. Além dos meus passos, a noite estava tranquila
e quieta. Da posição da lua no alto, era muito cedo, talvez algumas
horas até o amanhecer. Olhei por cima do ombro uma vez para ver o
castelo Hakumei erguendo-se atrás de mim, a torre principal de pé
rígida contra o céu marinho, telhados de pagode se erguendo
graciosamente. Muito parecido com seu povo, o castelo natal do Clã
das Sombras era elegante, bonito e ameaçador ao mesmo tempo. Eu
me perguntei se isso era deliberado, para lembrar ao resto do mundo
que embora os Kage fossem orgulhosos e cultos como o resto dos clãs,
eles não eram para brincadeira.
Sacudindo minhas reflexões mórbidas, continuei caminhando, a
sombra de Hakumei-jo me engolindo enquanto eu me afastava
dele. Depois do pátio árido, mas meticulosamente cuidado, cheguei
aos grandes portões da frente, que estavam abertos e eram guardados
por mais samurais, nenhum dos quais disse nada para mim. Depois
de passar por baixo da enorme moldura de madeira, parei do lado de
fora do portão e olhei maravilhada para a estrada.
O castelo Hakumei ficava em uma colina com vista para o que eu
presumi ser a cidade de Ogi Owari. Descendo a estrada sinuosa dos
portões da frente e através de uma ponte de pedra em arco sobre um
rio largo e sonolento, a capital Kage brilhava com tochas e
lanternas. Ela se espalhava em todas as direções, fileiras de casas
recatadas ao longo das ruas e nas margens dos canais que cortam a
cidade. Grandes árvores estavam espalhadas entre os edifícios, galhos
pendurados sobre os telhados e pendurados nas ruas, como se a
cidade compartilhasse relutantemente o espaço com uma floresta, e
nenhuma delas estivesse disposta a recuar.
Com um sorriso ansioso, desci correndo a estrada, atravessei a
ponte e entrei na cidade. Apesar da hora tardia, estava longe de estar
vazia. As pessoas vagavam pelas estradas, as portas das lojas ficavam
abertas contra a noite e os mercadores se escondiam nas portas ou em
barracas de madeira, esperando pelos clientes. No início, isso me
lembrou de outra cidade menor, Chochin Machi, que também
ganhava vida e prosperava depois do sol se por. Mas, conforme
continuei pelas ruas, comecei a ver as diferenças. Chochin Machi tinha
uma sensação alegre, quase festiva, encorajando os visitantes a dançar
e sorrir e deixar seus problemas para trás. Embora iluminada e
movimentada, Ogi Owari Toshi definitivamente não era
festiva. Ninguém nas ruas sorria ou ria; muitas vezes um indivíduo ou
pequeno grupo cambaleava pela estrada, como se não tivesse controle
de seus membros. Às vezes, as pessoas cantavam ou discutiam umas
com as outras, suas vozes arrastadas e instáveis como suas
pernas. Um homem grande, segurando uma cabaça de saquê como a
de Okame, me chamou com uma voz distorcida e depois soltou uma
gargalhada, fazendo minha cauda arrepiar. Não foi uma risada muito
agradável. Muito parecida com a cidade, ela segurava a borda de algo
sinistro sob o verniz da frivolidade, uma ilusão sorridente sobre um
predador pacientemente esperando.
Parando em uma encruzilhada marcada por um grande bordo
retorcido, olhei para a lua através dos galhos, notando sua posição e
que a noite estava rapidamente se esvaindo de mim. Tudo bem, estou
aqui. Agora, eu tenho que encontrar este salão de jogos; o Sapo Dançante ou
Sapo da Sorte ou algo parecido. Então, onde estou? Uma placa, pregada no
tronco sob a grande corda que marcava a árvore como sagrada, dizia
Cuidado Com a Má Fortuna, que não me dizia nada.
— O que você está fazendo perto da minha árvore, raposa?
Com um sobressalto, olhei para cima e vi um par de olhos verdes
olhando para mim de um galho. Por um segundo, eles pareciam
flutuar no ar, mas então eu vi que estavam presos ao corpo magro e
peludo de um neko, um gato comum, deitado em um galho de árvore,
seu pelo preto brilhante se misturando perfeitamente com as
sombras. Um rabo extremamente longo e furtiva chicoteou sua parte
traseira quando seu olhar encontrou o meu. Enquanto eu observava,
um segundo rabo subiu de trás do neko para se enroscar no primeiro,
fazendo meus olhos se arregalarem. Eu não sabia muito sobre gatos,
mas na tradição kitsune, quanto mais caudas uma raposa tinha, mais
velha e poderosa ela era. O kitsune mais forte que existe era chamado
de nove caudas, pois nas histórias, quando uma raposa criava sua
nona cauda, seu pelo se tornava prata ou dourado, e ele possuía
magia para rivalizar com os próprios deuses.
Claro, uma raposa de nove caudas era uma criatura lendária, tão
rara quanto um dragão ou o kirin sagrado. Conhecer um kitsune com
até duas caudas era uma grande honra, embora eu não tivesse certeza
se o mesmo costume se estendia ao mundo felino. Ainda assim,
provavelmente era sensato ser educada. Gatos nunca falaram
comigo; o velho felino preto e branco do templo Ventos Silenciosos
tinha apenas tolerado minha presença, e depois de todas as vezes que
o usei para uma brincadeira, se ele pudesse falar, ele teria me
repreendido várias vezes. Mas os neko eram criaturas estranhas e
inconstantes, e você nunca sabia o que eles estavam pensando. Se um
dia aquele velho gato começasse a falar comigo, eu não teria ficado
nem um pouco chocada.
O gato na árvore franziu os bigodes e franziu o nariz. — Ugh, eu
posso sentir seu fedor daqui. — Ela comentou e ainda, era uma
fêmea. — Deixe este lugar, kitsune. Você pertence aos campos com os
coelhos, ursos e o resto dos habitantes comuns da floresta. Volte a
atormentar fazendeiros e pescadores fora das muralhas da cidade e
deixe os lugares civilizados para nós. — Quando eu não me mexi ou
respondi, ela achatou as orelhas. — Você é tão simples quanto
repulsiva? — ela perguntou. — Vou falar devagar para que seu
cérebro bárbaro da floresta possa compreender. Você não tem lugar
aqui, raposa. Este é o meu território e você o está tornando
insuportável. Vá embora.
— Não há necessidade de ser rude. — Eu fiz uma careta para
ela. — Estou apenas visitando as terras dos Kage, irei embora em
breve. Além disso, você está enganada. Eu não cresci em um campo,
eu cresci em um templo. Sei ler e escrever, e até comer com
pauzinhos. Você sabe?
A neko fungou, mexendo o rabo. — Dar pauzinhos a um macaco
e vesti-lo com um quimono chique não o torna civilizado. — disse ela
com uma voz entediada. — Então você aprendeu alguns
truques. Parabéns. Você ainda é uma raposa. Seus ancestrais
perseguiram coelhos e defecaram no chão de suas tocas, como todas
as criaturas selvagens fazem.
— E você? — Eu exigi. — Seus ancestrais provavelmente
perseguiram ratos e acasalaram sob a lua cheia. Você não é mais
civilizada do que eu.
— É assim mesmo? — A gata semicerrou os olhos, olhando para
mim preguiçosamente, e virou a cabeça. — Você vê aquele vendedor
de peixe ali? — ela perguntou, apontando com um movimento de
uma de suas caudas. — Eu posso entrar em sua loja, mexer minhas
orelhas e ele me joga suas tripas de peixe restantes. Se você é tão
civilizada, kitsune, por que não muda de forma e faz o mesmo? Torne-
se uma raposa e vamos ver como ele reage.
Por um momento louco, eu considerei isso, então balancei minha
cabeça. — Não, isso é ridículo. Não tenho tempo para ficar embaixo
de uma árvore discutindo com um gato. Eu tenho que encontrar o
Sapo da Sorte.
— O salão de jogos? — A neko inclinou a cabeça. — Por que
você iria querer ir lá, raposa? Nada para ver, exceto homens
barulhentos e gritando que cheiram a saquê. Embora, eles certamente
achariam sua companhia mais agradável do que eu.
Eu olhei para ela novamente, espetando minhas orelhas. — Você
sabe onde ele está?
— Este é o meu território. — Ela acenou com o rabo de forma
arrogante. — Eu sei onde está tudo.
— Você me levaria lá?
A neko espirrou várias vezes. Depois de um momento, percebi
que ela estava rindo de mim. — Por que, em nome do Maroto de
Cauda Bichada, eu faria isso? — ela finalmente perguntou. — Eu
pareço um cachorro bajulador e babão que faz tudo que os humanos
dizem?
— Não, você parece um gato. — Eu disse, confusa. — Por que eu
iria confundir você com um cachorro? Você disse que sabia onde está
tudo em seu território. Achei que você poderia me mostrar o caminho.
— Eu poderia. — disse a gata, e se acomodou mais
confortavelmente no galho da árvore. — Mas eu não vou.
— Nani? Por que não? — Fiz uma careta, ficando em silêncio
enquanto um homem caminhava perto da árvore, me dando um olhar
interrogativo. — Você está fazendo outra coisa? — Sussurrei depois
que ela desapareceu. — Alguma coisa importante?
— Muito importante. — A neko deu a um rabo um aceno
lânguido. — Estou sentada nesta árvore observando tudo o que se
passa no meu território. É uma parte essencial da minha noite, algo
que uma raposa do campo comum não entenderia. — Ela bocejou,
mostrando um lampejo de longos dentes amarelos, antes de fechar os
olhos. — Agora vá embora e me deixe em paz. Eu acho tudo sobre
você ofensivo.
Eu prendi minhas orelhas na criatura arrogante. Neko
estúpida. Como Okame ou Reika-san lidariam com isso?
Eu pensei sobre isso por um momento, então recuei. — Eu
vejo. Bem, obrigada pelo seu tempo, neko-san. Está tudo bem se você
não sabe onde está. Eu posso encontrar meu caminho sozinha.
— Você não me ouviu, raposa do campo? — A neko abriu os
olhos e olhou para mim. — Eu disse que sei onde fica, só não tenho
interesse em levá-la lá. — Eu não respondi, e seu olhar se estreitou. —
Eu sei o que você está fazendo. — Ela avisou, enquanto seus rabos
começavam uma batida agitada contra o galho. — Seus pequenos
truques kitsune não vão funcionar em mim. Não tenho interesse em
bancar o guia turístico de uma raposa comum, agora vá embora.
Dei de ombros. — Como você disser, neko-san. Tenho certeza de
que posso encontrar alguém que conheça o caminho. Tenha uma boa
noite.
Afastei-me do tronco e a gata assobiou. — Pare, criatura da
floresta. — Ela ordenou, me fazendo parar e olhar para
trás. Golpeando suas caudas, a neko se levantou e saltou do galho,
aterrissando sem fazer barulho na base.
— Não fale comigo. — disse ela, passando com os dois rabos
erguidos. — Não estou ajudando você, estou apenas provando que
conheço cada centímetro de meu território e que você é uma criatura
bárbara da floresta que não pertence aqui. Siga-me se for preciso, mas
não muito perto, e tente ficar na direção do vento. Não quero sentir
seu cheiro durante todo o caminho até o salão de jogos.
Escondi um sorriso e segui minha guia carrancuda pelos becos
sombrios de Ogi Owari.

O salão de jogos Sapo da Sorte ficava em uma rua estreita ao


lado de um armazém de tecidos e um restaurante dilapidado. Era um
grande prédio de dois andares com telhados azuis, ripas de madeira
nas janelas e dois homens de aparência corpulenta guardando a
entrada. Uma placa desbotada retratando um sapo sorridente
segurando uma moeda de ouro pendurada torta sobre a porta.
A neko fungou. — Pronto. — Ela declarou em um tom de
grandeza entediada. — O salão de jogos Sapo da Sorte, exatamente
onde eu disse que estaria. Agora, você não se sente uma tola
duvidando da palavra de uma gata, raposa do campo?
— Este é o Sapo da Sorte? — Murmurei, olhando para os
telhados, procurando por sombras estranhas ou lampejos de
movimento que não deveriam estar lá. — Espero que Daisuke e
Okame estejam bem. — Olhando para a gata, ofereci um sorriso e uma
reverência rápida. — Obrigada por me acompanhar até aqui, neko-
san. Estou em dívida com você.
Ela enrolou os bigodes. — Como se eu precisasse do favor de
uma criatura da floresta. — Ela disse com desdém. Com uma fungada,
ela ergueu o queixo e se virou. — Estou entediada agora. Faça o que
quiser, kitsune. Espero não ver você novamente no futuro. Oh, mas
um aviso amigável. Caso seus patéticos instintos humanos não
pudessem sentir, estávamos sendo seguidas.
O alarme piscou e olhei em volta, embora as sombras acima
estivessem vazias. — Seguidas? Por quem?
— Um humano. — A gata bocejou, agitando o rabo. — Um bobo
humano vestido de preto, pensando que está sendo silencioso e
invisível enquanto se arrasta pela escuridão. Eu vejo sua espécie
frequentemente, espreitando pela cidade. Fingindo que são
gatos. Patéticos. — Ela contraiu os bigodes. — Adeus, criatura da
floresta. Saia do meu território assim que puder.
Rabos gêmeos no ar, a neko trotou para longe, deslizou para um
beco entre dois prédios e se foi.
Mantendo um olho atento para o shinobi à espreita, atravessei
correndo a estrada e me aproximei da entrada do Sapo da Sorte. Os
dois homens parados na porta eram muito grandes. Seus casacos
haori pendurados abertos na frente, mostrando seus estômagos
enormes e redemoinhos de pele pintada. Eu vi um tigre em combate
letal com uma cobra branca gravada no corpo de um homem,
enquanto seu amigo estava tão coberto de tinta colorida que parecia
que ele estava vestindo outra camisa. Eles me viram se aproximando e
se endireitaram, olhares perplexos cruzando seus rostos cheios de
papadas, mas antes que eu pudesse fazer ou dizer qualquer coisa, a
porta entre eles se abriu e um corpo passou por ela. Ele atingiu a beira
da rua e rolou até parar em uma nuvem de poeira, quando a luz da
lanterna tremulou sobre um familiar rabo de cavalo marrom-
avermelhado. Eu engasguei e corri para frente enquanto o corpo
gemia e se mexia na terra.
— Okame-san!
— Kuso. — Rosnou o ronin, lutando para ficar de pé. Erguendo a
cabeça, ele olhou para a porta, onde outro homem grande limpou as
mãos e se virou. — Eu não tinha nada em minhas mangas, seus
bastardos! — ele chamou. — E se você acha que eu era o único com
dados viciados lá, você é mais burro do que os macacos tatuados na
sua bunda!
— Você está bem, Okame-san? — Eu perguntei, enquanto o
ronin se levantava, cambaleando instavelmente. Suas roupas eram
diferentes, eu percebi; seu hakama marrom e seu haori vermelho sem
marcas estavam sem sangue e sujeira, e ele estava quase limpo. — O
que aconteceu com você? — O ronin me lançou um olhar sombrio e
ligeiramente azedo e se virou, escovando as calças.
— O que você está fazendo aqui, sacerdotisa? — ele rosnou, me
fazendo piscar em confusão, até que me lembrei que eu não era
Yumeko agora, eu era Reika. — Você veio até aqui para me dar um
sermão sobre os males de beber e jogar?
— Não, Okame-san. — Eu balancei minha cabeça. — Você
desapareceu do castelo, você e Daisuke-san. Nós... erm... Yumeko e
eu estávamos preocupadas com vocês.
— Eu tinha que limpar minha cabeça. — Okame resmungou. —
Sentar naquele castelo estava me deixando nervoso. Ficar bêbado e
perder muito dinheiro sempre funcionou no passado. — Ele fez uma
careta para as portas. — Exceto nas noites em que você tem uma maré
de sorte extrema e os brutamontes que comandam o salão o acusam
de trapacear. Esses eram os dados da casa que eu estava usando, seus
bastardos baratos! — ele rosnou para os dois homens grandes, que
olharam de volta carrancudos. O ronin bufou e quase caiu, o cheiro
adocicado e rançoso de saquê flutuando ao seu redor, mais forte do
que o normal. — Kuso. Ainda parcialmente sóbrio. Agora vou ter que
encontrar outro lugar para beber.
— Onde está Daisuke-san?
O nobre de repente se abaixou pelas portas do salão de jogos,
parecendo ao mesmo tempo envergonhado e se desculpando
enquanto avançava. Eu pisquei. Como Okame, o Taiyo usava um
haori limpo, mas não marcado, azul escuro com quatro diamantes
brancos estampados no ombro. Seus longos cabelos estavam presos
atrás dele, mas mesmo com um chapéu de palha de aba larga
empoleirado em sua cabeça, não havia como confundir seu porte
nobre.
— Minhas desculpas, Okame-san. — Daisuke disse ao se juntar a
nós. — Você estava indo tão bem. Eu não sabia que você tinha sido...
escoltado para fora. — Seu olhar deslizou para mim, erguendo as
sobrancelhas delgadas. — Reika-san. O que você está fazendo
aqui? Este não é um lugar para sacerdotisas respeitáveis.
— Ou samurai respeitáveis. — Okame murmurou.
— Rei... hum... Yumeko e eu estávamos preocupadas com vocês.
— Eu disse a eles. — Não conseguimos encontrar vocês no castelo e
pensamos que algo poderia ter acontecido.
Daisuke franziu o cenho ligeiramente. — Ímpar. Eu disse
especificamente a uma criada que íamos para a cidade e para avisar
nossos companheiros que voltaríamos na hora do Rato. Ninguém te
deu esta mensagem, Reika-san?
Comecei a responder quando um arrepio percorreu minhas
costas e minha cauda se eriçou. Meus instintos kitsune estavam me
dizendo que algo não estava certo.
— Acima de você, raposa! — sibilou uma voz estridente das
sombras. — No telhado!
Meu sangue gelou. Eu olhei para cima e vi uma figura de preto
empoleirada no telhado do outro lado da rua, o braço levantado como
se fosse arremessar algo.
— Daisuke, atrás de você! — Eu gritei, e o nobre girou ao redor,
sua espada liberada de sua bainha em um instante e cortando o ar na
frente dele. Houve um clangor e algo brilhou quando foi empurrado
para o lado, deslizando para a rua. Ao mesmo tempo, um lampejo de
metal frio e escuro passou pela minha cabeça, despenteando algumas
mechas de cabelo e se chocou contra a estaca atrás de mim.
Com o coração batendo forte, olhei para cima para ver a figura
no telhado disparar de volta para as sombras, e imediatamente corri
pela estrada, ouvindo Daisuke e Okame me chamarem. Esquivando-
me no beco entre os prédios, procurei nas telhas por uma figura de
preto, kitsune-bi formigando contra meus dedos, sem sucesso. O
misterioso agressor havia desaparecido na noite.
— Reika-san!
Passos estrondosos ecoaram atrás de mim, e o nobre e ronin
entraram no beco. — Reika-san. — Daisuke repetiu, enquanto Okame
tropeçava para frente, olhando ao redor com os olhos turvos. — Você
viu quem nos atacou? Ou para onde eles foram?
— Não. — Eu disse, e ele exalou.
— Como eu temia. — Ele se endireitou, olhando para os telhados
também, sua voz contemplativa. — Parece que alguém dos Kage se
ofendeu com nossa presença aqui.
— Isso não demorou muito. — Okame murmurou. — Embora eu
me pergunte se este foi um ataque planejado por algum nobre
pomposo que não se deu ao trabalho de fazer isso sozinho, ou se
algum shinobi ficou ofendido com minha cara e decidiu usá-lo para
praticar tiro ao alvo.
— Foi Senhor Iesada. — Acrescentei, fazendo as sobrancelhas
pálidas de Daisuke arquearem. — Ele está em desacordo com Dama
Hanshou sobre... uma coisa, e ele não queria que interferíssemos.
— Iesada-sama. — Daisuke não pareceu surpreso, embora
parecesse um pouco cansado. — Mesmo do outro lado do império...
— ele suspirou. — ...o jogo da corte nunca muda. Somos apenas peões
em uma luta sem fim de poder e favor, até que a sorte nos abandone e
sejamos removidos do tabuleiro. — Suas sobrancelhas baixaram, sua
voz assumindo um tom fraco. — Embora pareça que o método Kage
de remover peças problemáticas do jogo seja muito diferente do dos
Taiyo. O Clã do Sol não se rebaixaria a tais ataques covardes no
escuro. — Daisuke fungou e me lançou um olhar contemplativo,
inclinando a cabeça. — Como você descobriu isso, Reika-san? — ele
perguntou.
— É uma longa história.
— De fato. — Ele apertou sua mandíbula, parecendo severo. — E
uma melhor contada longe de becos escuros onde algo apenas tentou
nos assassinar. Devemos retornar ao castelo Hakumei imediatamente.
— Uma excelente ideia. — disse uma voz familiar vinda da
entrada do beco, que fez meu estômago embrulhar.
As sobrancelhas de Okame se ergueram. — R-Reika-san? — ele
gaguejou, quando a donzela do santuário se materializou na
escuridão, os braços cruzados, bloqueando o caminho para fora do
beco. Chu estava ao lado dela, olhando para todos nós com uma
expressão entediada em seu rosto canino. — Mas... você está bem
aqui... Como... esta é o sua gêmea perdida que não conhecíamos?
A sacerdotisa deu um suspiro muito alto e desesperado e se
virou para mim. — Está se divertindo? — ela perguntou. — Você se
importaria em mostrar a esses idiotas crédulos o que está acontecendo
ou eu tenho que ficar aqui e explicar o óbvio?
— Yumeko-san. — Daisuke murmurou assim que eu estendi a
mão e tirei a folha da minha cabeça, dissipando a ilusão em uma
nuvem de fumaça. Os olhos de Okame se arregalaram.
— Yumeko-chan! Então, era você o tempo todo, não a
sacerdotisa? — Ele olhou para trás e para frente entre mim e Reika. —
Por quê?
— Para que eu pudesse deixar o castelo. — expliquei, sentindo
todos os olhares deles sobre mim. — Eu não podia simplesmente sair
pelos portões da frente, não sem atrair a atenção de todo o Clã das
Sombras. Eles estavam me observando depois do meu encontro com
Dama Hanshou. Vocês não estavam em seus quartos e ninguém tinha
visto vocês no castelo, então pensamos que vocês poderiam estar em
apuros. Nós concordamos em procurar vocês.
— Não, nós não concordamos. — Reika estalou. — Combinamos
que eu iria procurá-los e você permaneceria em seu quarto no
castelo. Que parte disso você não entendeu? — Ela baixou a voz até
quase um sussurro, ainda olhando para mim. — Você é a portadora
do Você-Sabe-o-Que. Não podemos arriscar que o Clã das Sombras
descubra a verdade.
Okame soltou uma risadinha. — Ah, aí está a sacerdotisa tensa
normal que estávamos sentindo falta. Por um minuto, fiquei com
medo de que você estivesse morrendo.
— E você. — Reika voltou sua ira para o ronin. — O que te fez
pensar que era uma boa ideia deixar o castelo e vagar até a cidade à
noite no território do Clã das Sombras? Você sabe a importância da
nossa missão. Por que você arriscaria tudo apenas por uma noite de
putaria, jogo e embriaguez?
— Não é assim, Reika-san. — Daisuke interrompeu antes que o
ronin pudesse responder. — Perdoe-me, temo ter causado um mal-
entendido. Veja, fui eu quem sugeriu que viéssemos para a cidade.
— Taiyo-san. — Reika piscou para ele. — Você fez? Por quê?
— Eu queria discutir assuntos relacionados ao que vimos no
Caminho das Sombras. — disse Daisuke. — Okame-san foi gentil o
suficiente para ouvir. Não queríamos ser ouvidos no castelo, então
decidimos vir aqui.
— Não leve a culpa por mim, pavão. — Okame rosnou. — Eu
não preciso da sua pena. É melhor dizer a ela a verdade, que meu
objetivo esta noite era me embebedar e você estava com medo de que
eu terminasse de bruços em uma sarjeta em algum lugar. — Seu tom
ficou áspero. — Francamente, não sei por que você se incomodou em
vir.
Daisuke piscou. — Nunca foi uma pena, Okame-san. — Ele
respondeu em voz baixa. — Vim com você porque gosto da sua
companhia, nada mais. Apesar de tudo... — Ele se voltou para
Reika. — Talvez possamos discutir nossos planos no castelo? Parece
que fizemos um inimigo poderoso entre o Clã das Sombras, e
permanecer em um beco escuro quando há assassinos por perto não é
o curso de ação mais sábio.
— Isso eu posso concordar. — Reika acenou com a cabeça com
uma carranca final para mim. — Vamos logo, antes que aconteça mais
alguma coisa. Esperançosamente, quando voltarmos, o Clã das
Sombras não questionará exatamente como Yumeko escapou do
castelo sem ser vista, mas não há nada que possamos fazer sobre isso
agora.
Enquanto nos movíamos para deixar o beco, a consciência me fez
parar. Virei-me para olhar por cima do ombro e vi a gata preta
sentada em cima da cerca, nos observando partir com olhos verdes
brilhantes, seus rabos gêmeos balançando atrás dela. Sorri e fiz uma
breve reverência e, quando ergui os olhos novamente, a neko havia
sumido.
Capítulo 11
O castelo de demônios
Hakaimono

Dúzias de olhos me observavam enquanto eu caminhava pelo


pátio do castelo Onikage, sussurros me seguindo pelas pedras.
— Senhor Genno convocou um novo demônio?
— Quem é aquele? Não se parece com nenhum oni que eu tenha
visto antes.
— Espere. Esse é... Hakaimono-sama?
Yokai e alguns demônios menores me encararam de cantos e
sombras do pátio. Amanjaku, os mais baixos na hierarquia dos
demônios, escapuliram entre fendas, olhos amarelos arregalados
enquanto espiavam. De todas as criaturas aqui, eles pelo menos
sabiam quem eu era. O resto deles, pelo menos os que eu podia ver,
eram todos yokai monstruosos, desde a jorogumo inchada agachada
no topo do telhado do castelo, oito longas pernas dobradas contra seu
tórax, o kappa olhando para mim do lago rançoso, até o trio de
nezumi amontoados nos destroços de uma carroça destruída, me
observando com olhos redondos de roedor. Eles estavam cautelosos,
curiosos ou hostis, mas apenas alguns estavam abertamente com
medo. Eu sorri severamente. Isso mudaria depois que eu falasse com
Genno. Quando eu terminasse com o mago de sangue, eu voltaria e
lembraria a qualquer um que tivesse esquecido quem era o Primeiro
Oni e por que ele era temido.
Eu podia sentir Tatsumi por dentro também, observando os
demônios e yokai com cautela. Certamente, entrar tão casualmente em
um castelo cheio de criaturas que queriam matá-lo deixaria até mesmo
o matador de demônios nervoso. Sem falar no Mestre dos Demônios,
que ainda nos esperava no topo da fortaleza.
As bruxas me conduziram pelo pátio e depois por um lance de
degraus de pedra até a entrada do castelo. Uma humana parou diante
das portas duplas, esperando por nós, sua postura arrogante me
deixando arrepiado. As vestes humanas eram elegantes: pretas com
fios carmesins enfeitando as mangas como seda de aranha, mas a
própria mulher mal as preenchia. Ela era alta e magra, quase
emaciada, com membros alongados e um rosto magro e estreito. A
pele pálida agarrava-se firmemente aos ossos, dando-lhe uma
aparência esquelética, e seus olhos tinham ficado de um amarelo
sutil. Uma maga de sangue, tanto Tatsumi quanto eu vimos; alguém
que vinha praticando sua arte por um tempo, cuja alma e energia
foram drenadas por Jigoku, até que ela era algo não muito
humano. Eu dava a ela mais um ano, dois no máximo, antes que a
mancha invadindo seu corpo a consumisse, e ela se tornasse apenas
mais um demônio.
— O Mestre está esperando pelo oni. — A maga de sangue
murmurou, olhando para mim com olhos amarelos encapuzados. —
Devo levá-lo perante Senhor Genno, uma vez que a amarração seja
realizada.
Eu arqueei uma sobrancelha. Amarrar era uma tentativa humana
de controlar a criatura que eles invocaram, geralmente um demônio,
para que obedecesse a seus comandos. Também evitava que o
demônio se ligasse e ferisse o lançador, o que era uma preocupação
válida ao trabalhar com os habitantes de Jigoku. No entanto, Genno
era inteligente o suficiente para perceber que os senhores oni eram
poderosos demais para serem amarrados, que até mesmo sugerir isso
era um insulto.
Então, ou ele estava me testando, ou essa desculpa patética de
ser humano não tinha ideia com quem estava lidando.
As bruxas, pelo menos, pareciam em partes iguais enfurecidas e
apavoradas. — Uma... uma amarração? — a verde exclamou. — Não
seja ridícula, mortal! Você sabe quem é esse?
— Eu não sei. — A maga de sangue respondeu. — Eu vejo um
oni. Um oni muito pequeno, que de alguma forma encolheu para o
tamanho de um homem. Ou isso, ou um mestiço humano. Ainda
assim, as regras são claras. Os demônios que entram no castelo devem
ser amarrados, independentemente de quem ou o que sejam. Se vocês
não aprovam, conversem com Senhor Genno. Mas esta criatura se
submeterá à amarração antes de ser permitida na presença do
Mestre. Vocês não precisam se preocupar em me ajudar. — Ela disse
às bruxas. — Meu coven de sangue supervisionará o ritual.
— É assim mesmo? — Eu sorri, mostrando todas as minhas
presas. — E quem é você, humana?
— Eu sou a Senhora Sunako, a bruxa chefe do clã de sangue de
Senhor Genno, e aquela que irá amarrá-lo à vontade dele, demônio. É
por ordem do Mestre que estou aqui, e por sua vontade que você tem
permissão para vê-lo. — A bruxa ergueu a mão, um tanto agarrada
por dedos ossudos, e apontou a lâmina para mim. — Você se
submeterá à amarração ou não colocará um pé além deste
corredor. Resista e meu clã fará você desejar ter ficado em Jigoku. Está
claro?
As bruxas incharam de fúria, eriçando-se e abrindo a boca para
discutir, mas eu segurei uma garra. — Perfeitamente claro. — eu
disse, ainda sorrindo. — Realize o ritual então, humana. Vocês três...
— disse às irmãs. — Assegurem-se de não sermos
interrompidos. Fiquem de guarda nas escadas e não interfiram.
As bruxas olharam para a maga de sangue, como se
contemplassem afundar suas garras em sua carne pálida e arrancá-la
de seus ossos. Mas elas baixaram a cabeça para mim e se afastaram,
pairando no topo da escada.
Eu me virei para a bruxa e levantei meus braços. — Bem, eu
estou à sua mercê, eu suponho. Vamos acabar com isso.
Ela acenou com a cabeça vivamente e fez sinal para eu
entrar. Passei pelas portas para um corredor vasto e sombrio, pilares
de pedra negra marchando pelo centro e revestindo as paredes. Ao
contrário da maioria dos castelos humanos, o interior de Onikage era
totalmente despojado, sem adornos e, após várias décadas de
abandono, bastante sujo. O chão de madeira estava empenado e
apodrecido, a vegetação crescia nas paredes e teias de aranha
penduradas em todos os cantos. Apesar da sujeira e da horda de
monstros vagando do lado de fora, quase uma dúzia de humanos,
todas mulheres em vários estágios de corrupção, estavam em um
semicírculo solto no centro do salão. Olhos vazios em rostos
macilentos e pálidos me observaram quando entrei no meio do salão.
— Nenhum círculo de convocação. — Eu observei, olhando para
o chão nu aos meus pés.
A bruxa chefe olhou para mim, suspeita e antipatia estampadas
em seu rosto estreito. — Vejo que você não é estranho às amarras, oni.
— Ela murmurou. — Verdade, não há círculo de invocação, nem
palavras de poder para mantê-lo aqui. Talvez isso seja vital para um
novato chamando seu primeiro amanjaku, mas meu coven não é
estranho aos demônios, e eu danço com Jigoku há décadas. Minha
magia de sangue é superada apenas pelo próprio Mestre.
— Ah. Meu erro. Continue.
Franzindo os lábios, a Senhora Sunako ergueu um braço e sua
manga caiu para trás, revelando um membro frágil e parecido com
um pedaço de pau coberto de cicatrizes. — Não tente nada tolo,
demônio. — Ela avisou, colocando o fio da lâmina contra seu
antebraço. — Eu não sou uma senhora frágil que desmaia com a
simples menção de monstros. Liderei o coven de sangue de Senhor
Genno por meio século. Não sou alguém com quem se possa brincar, e
você faria bem em se lembrar disso.
— Eu não pensaria nisso. — Eu disse, e levantei os dois
braços. — Sem truques de minha parte, mortais. Vocês têm minha
palavra. Não vou me mover até que vocês terminem.
Seus olhos se estreitaram, mas ela passou a lâmina pelo
antebraço, abrindo um corte em sua carne fina. O sangue escorria,
escorrendo por sua pele, embora muito mais lentamente do que um
corte normal, como se a bruxa já tivesse usado a maior parte do
sangue em seu corpo. Quando começou a gotejar, a bruxa abaixou a
adaga e pegou o fio com a lâmina. À medida que mais sangue cobria o
aço, tornando-a vermelha e brilhante, ela e as outras bruxas
começaram a entoar vozes baixas e roucas, palavras de poder
sombrio, alimentadas pela energia de Jigoku.
Ainda cantando, Sunako ergueu a lâmina e jogou o sangue em
mim. Ele se arqueou no ar, flamejou vermelho e se transformou em
correntes brilhantes que se enrolaram em meus braços e peito. Por um
momento, elas queimaram como metal derretido, chiando contra
minha pele, embora não houvesse fumaça nem cheiro de carne
queimada. Então os elos pareceram derreter no meu corpo,
desaparecendo na pele e nos músculos, e o canto chegou ao fim.
Eu respirei fundo, testando a força do feitiço da bruxa, e sorri
agradavelmente. — Terminamos? — Eu perguntei. — Eu tenho
permissão para me mover pelo castelo agora?
Sunako fungou e deu um passo para trás. — Você é livre para
entrar. — Ela murmurou. — Embora esteja avisado, enquanto você
estiver dentro destas paredes, essa ligação irá prevenir você de
machucar qualquer mortal, seja ele mago de sangue, servo ou
escravo. Portanto, comporte-se enquanto estiver aqui, demônio. Não
gostaríamos de ter que mandar você de volta para Jigoku.
Eu ri e dei um único passo para frente. — Você realmente não
tem ideia de quem eu sou, não é? — Eu perguntei, e agarrei a bruxa
pela garganta.
As correntes explodiram instantaneamente, queimando minha
carne como antes, irritantemente dolorosas enquanto tentavam me
arrastar para o chão, para me forçar a me ajoelhar ou prostrar-me aos
pés da bruxa.
Eu levantei a humana do chão, observando seus olhos incharem
e sua boca ofegar por ar enquanto ela arranhou meus dedos. — O que
há de errado, mortal? — Eu perguntei, enquanto o resto do coven
ficava boquiaberto e olhava. — Achei que sua amarração deveria
evitar esse tipo de coisa.
— Solte ela! — Uma das bruxas gritou, levantando a mão
ensanguentada. Eu sorri e balancei meu braço em direção a ela,
colocando o corpo da bruxa chefe entre nós.
— Vá em frente e lance um de seus feitiços. — Eu desafiei. —
Mas certifique-se de me matar na primeira tentativa, caso contrário,
vou arrastar essa mortal para Jigoku comigo.
— Quem é você? — a bruxa chefe engasgou. A outra mão, a que
não estava presa na minha, moveu-se rapidamente, os dedos
sangrentos se contraindo enquanto ela tentava lançar outro feitiço. Eu
sorri.
— Bem, isso é algo que você deveria ter perguntado antes de
começar isso. — Eu disse a ela. — Se você tivesse, você saberia que
amarrar Hakaimono, o Destruidor, é um esforço inútil. Muitos antes
de vocês, tentaram e falharam. Não me curvo diante de ninguém.
As correntes apertando meus braços, peito, pernas e pescoço
estavam rapidamente se tornando insuportáveis. Meu corpo inteiro
parecia estar pegando fogo e, embora essa sensação fosse
desagradável, visto que a carne humana não queimava tão bem
quanto a de um oni, a pressão das correntes era a mais irritante. Elas
continuaram a apertar e puxar, tentando me forçar ao chão, e meu
temperamento explodiu. — Se vocês tivessem me perguntado quem
eu sou. — Continuei, olhando para o círculo ao nosso redor. — Vocês
teria descoberto que, embora nenhum humano possa me amarrar à
sua vontade, acho cada tentativa extremamente incômoda, e cada
humano que tentou viveu apenas o suficiente para se arrepender do
que fizeram, antes de eu arrancar a cabeça de seu pescoço e esmagar
suas entranhas sobre seu próprio círculo de convocação.
A bruxa chefe levantou o braço, os dedos brilhando vermelhos
com o poder, antes de se alongarem em garras negras de
obsidiana. Com um grito desesperado, ela os esfaqueou no meu rosto.
Eu agarrei seu pulso antes que as garras pretas pontudas
afundassem em meus olhos. Com um rosnado, arranquei o braço de
seu corpo, puxando-o para fora da cavidade em um jato de sangue e
rasgando tendões. A bruxa gritou, um som agudo e agonizante, sua
voz ressoando nas vigas e ecoando pelo saguão de entrada. Eu deixei
cair o braço no chão de madeira, enfiei minhas garras em seu meio
para agarrar sua coluna e separar a humana.
O sangue voou por toda parte, respingando no meu rosto e
espirrando no chão em poças. O grito da bruxa parou de gorgolejar, e
as correntes brilhantes em volta do meu corpo chamejaram uma vez e
desapareceram, levando a dor com elas.
Atrás de mim, algo gargalhou de alegria. Eu me virei, ainda
segurando as duas metades da humana, para ver uma dúzia ou mais
de rostos olhando para mim através das portas abertas da câmara. As
irmãs bruxas estavam de pé na moldura de madeira, sorrisos cheios
de dentes esticados de orelha a orelha. Uma multidão de yokai se
aglomerava atrás delas, obviamente atraídos pelos sons de violência,
os gritos e o cheiro de sangue. Seus olhos estavam enormes e
temerosos enquanto me encaravam por cima das bruxas, olhares
deslizando para a maga de sangue eviscerada em minhas garras. O
resto do coven parecia estar congelado de terror e atordoado. Deixei
cair as metades ensanguentadas aos meus pés, deixando-as molhar as
tábuas, e sorri para minha audiência por cima do corpo mutilado da
Senhora Sunako.
— Meu nome é Hakaimono. — Eu disse, levantando uma garra
que estava coberta de sangue até o cotovelo. — Se alguém quiser me
desafiar, dê um passo à frente agora. Se alguém quiser tentar outra
amarração... — eu continuei, olhando para o coven, que se encolheu.
— Vocês são bem-vindos para tentar novamente, mas um aviso justo,
desta vez não ficarei quieto. Qualquer um que quiser minha cabeça
pode tentar reivindicá-la. Eu não me importo se vocês vierem até mim
sozinhos ou todos de uma vez. Mas saibam que se vocês fizerem isso,
vou pintar as paredes com sangue e quebrar os ossos de todas as
criaturas vivas neste castelo antes de terminar. Esta é sua única chance
de decidir se vocês são aliados ou inimigos. — Eu estreitei meus olhos,
olhando ao redor do corredor. — Escolham sabiamente.
No início, ninguém se moveu. Os yokai estavam imóveis. O
coven nem parecia respirar, parados como estátuas congeladas em um
círculo.
As irmãs bruxas foram as primeiras a se apresentar. —
Hakaimono-sama. — A irmã vermelha disse, e caiu de joelhos,
tocando sua testa no chão. As outras duas seguiram seu exemplo.
Um por um, o resto dos yokai as seguiram, caindo de joelhos ou
curvando a cabeça em respeito silencioso. A jorogumo, os nezumi, até
mesmo o kappa solitário, curvando-se o melhor que podiam sem
derramar a água da tigela em sua cabeça. Os humanos, é claro, foram
os últimos a se mover, parados imóveis em seu círculo, talvez
orgulhosos demais para abaixar a cabeça para um demônio, uma
criatura que estavam acostumados a controlar. Eu me virei e descobri
minhas presas em um sorriso.
— Vocês conhecem o ditado, humanos. — Eu disse, encontrando
seus olhos planos e pedregosos. — O status entre um demônio e um
mortal só pode ser de mestre e servo. Não há espaço para
concessões. Se vocês desejam ser os mestres, é melhor colocarem uma
amarração em mim agora, caso contrário, posso ter nossa associação
confusa. E não gosto de ficar confuso. Então, o que é, mestre ou
servo? Vocês têm cinco segundos para decidir. Quatro. Três. Dois...
Os humanos empalideceram. Movendo-se com rigidez, eles se
curvaram para frente na cintura e, como um, baixaram
silenciosamente a cabeça. Eu sorri triunfantemente e levantei minha
voz.
— Que seja conhecido de todos. — Eu disse no silêncio mortal
que caiu sobre a câmara. — Hakaimono, o Destruidor, voltou. Todos
os que ficarem com ele viverão para ver a glória, mas qualquer um
que ficar em seu caminho será purgado tão completamente da
existência que ninguém vai se lembrar de seus nomes.
— Hakaimono!
Um trovão passou pela câmara, fazendo com que o chão
tremesse e as luzes do corredor brilhassem uma vez e se apagassem.
Uma luz azul fantasmagórica encheu a câmara e a forma
espectral do próprio Genno apareceu, pairando sobre a multidão. Seu
cabelo e manto ondulavam atrás dele, e ele não parecia satisfeito. Os
yokai se encolheram ainda mais, tentando se pressionar contra o chão,
e o círculo de humanos imediatamente se prostrou no chão. O
espectral Mestre dos Demônios olhou furioso para a turba encolhida,
então voltou seus olhos negros ardentes para mim.
— Senhor Hakaimono. — O fantasma disse em uma voz de fúria
controlada. Senti que ele estava mais zangado com a reação de seu
exército à minha presença do que com a morte da bruxa humana. —
Minhas desculpas por mantê-lo esperando. Por favor, venha para
meus aposentos. Acredito que temos muito o que discutir.

Não houve mais interrupções no caminho para a torre de


Genno. Segui um trio de irmãs bruxas alegres pelos corredores
escuros e sombrios de um castelo quase vazio, até chegarmos ao lance
de escadas de madeira que subia em espiral até a fortaleza mais alta.
— Não podemos ir mais longe a menos que sejamos chamadas.
— explicou a bruxa verde. — Os aposentos pessoais de Senhor Genno
ficam no topo das escadas.
Elas curvaram-se mais uma vez e desapareceram, deixando-me
sozinho para ir ver Genno.
Quando me aproximei dos degraus da fortaleza mais alta, meus
instintos se eriçaram. Um par de figuras descansava nos degraus no
centro da escada, bloqueando o caminho. Elas eram jovens, bonitas e
quase idênticas; irmãs gêmeas com pele clara e cabelos escuros
brilhantes presos em uma trança. Elas usavam roupas pretas justas
que lembravam os uniformes preferidos dos shinobi Kage, e seus
olhos eram orbes pretos brilhantes em seus rostos pálidos. Uma
corrente pontiaguda, letal e perversamente afiada, estava enrolada em
cada uma de suas cinturas, mas suas armas mais furtivas estavam
atrás delas, no final de suas longas tranças oscilantes, onde uma cauda
farpada de escorpião jazia enrolada e escondida nos fios.
As gêmeas Sasori, um par de yokai escorpião infame, sorriram e
acenaram para mim de seu lugar na escada. No passado, as irmãs
ofereciam seus serviços a magos de sangue, yokai monstruosos, até
mesmo humanos cruéis, agindo como guarda-costas e assassinas para
aqueles que podiam pagar. Em mais de uma ocasião, seus caminhos se
cruzaram com os matadores de demônios Kage, mas as irmãs eram
duras, habilidosas e extremamente protetoras uma com a outra. Eu as
assisti matar um matador de demônios, apenas para serem quase
mortas por outro algumas décadas depois. O mago de sangue que elas
serviam na época foi destruído, mas as gêmeas escaparam e
desapareceram por um tempo. Não era de se surpreender que
encontrassem o caminho até o castelo de Genno. As gêmeas Sasori
viviam para a matança e o derramamento de sangue, e o Mestre dos
Demônios forneceria isso por completo.
— Hakaimono-sama! — Uma das irmãs chamou com uma voz
brilhante e estridente. — É realmente você? Você veio para se juntar à
pequena e divertida rebelião do Mestre?
Eu sorri. — Possivelmente. Depende do que seu mestre e eu
pudermos concordar.
— Oh, eu espero que você possa se juntar a nós. — Disse a outra
gêmea, soando melancólica. — Eu adoraria assistir você no campo de
batalha. Ouvimos histórias de você massacrando exércitos inteiros de
humanos de uma vez. Seria uma honra lutar e matar ao lado do
Primeiro Oni de Jigoku.
— Sim, bem, para fazer isso, eu terei que me encontrar com
Genno primeiro. E o caminho para sua câmara parece estar
bloqueado.
As gêmeas riram. Como uma, elas pularam, tranças de escorpião
balançando atrás delas, e deram uma rápida reverência. — Bem-vindo
ao castelo Onikage, Hakaimono-sama. — Elas recitaram, como se
tivessem praticado para aquele momento. — Estamos ansiosas para
trabalhar com você.
Elas pularam da escada e bateram no chão com um baque, então
saíram correndo, rindo, as tranças mortais balançando ritmicamente
em suas costas. Suas vozes agudas ecoaram pelo corredor, então
sumiram no silêncio.
Eu balancei minha cabeça. Com o caminho finalmente livre, subi
os degraus até o topo da fortaleza e entrei sem esperar para ser
reconhecido.
Estava vazio. Ou, pelo menos, parecia vazio. A câmara em si era
pequena e quadrada, com janelas estreitas e uma abertura que levava
a uma varanda externa. Pelas portas abertas da varanda, uma lua
laranja doentia espiava por entre as nuvens como um olho malévolo e
inchado.
No centro da câmara, um pedestal de pedra negra estava
desprotegido, um pano de seda vermelha pendurado no topo. Uma
caveira nua e sorridente estava no topo do pedestal, brilhando com
um poder sutil, quase desafiando alguém a agarrá-la assim que
passassem pela porta. Eu bufei e cruzei os braços, quase me
divertindo com a tentação flagrantemente óbvia.
— Hakaimono.
As órbitas oculares vazias ganharam vida, e chamas roxas
brilhantes explodiram para engolfar o crânio, lançando a câmara em
uma luminosidade escura. Uma névoa fantasmagórica emergiu da
boca do crânio e flutuou para se solidificar na forma espectral do
Mestre dos Demônios, que ainda não parecia satisfeito enquanto
olhava para mim.
— Aquela exibição no salão principal foi totalmente
desnecessária, Hakaimono. — O mago de sangue disse, cruzando os
braços incorpóreos sobre o peito. — Se eu fosse um homem suspeito,
pensaria que você estava tentando um golpe.
— Não brinque comigo, humano. — Eu zombei. — Você
planejou toda aquela cena, só para ver o quão forte eu realmente
era. Enviar suas bruxas de estimação para amarrar um Senhor oni foi
uma aposta calculada, você sabia que elas iriam falhar, a menos que
eu tivesse ficado consideravelmente mais fraco por estar preso em um
corpo humano. Em seguida, você simplesmente executaria o ritual de
amarração sozinho, e me faria seu servo como todos os seus outros
demônios. — Dei de ombros. — Um estratagema tristemente
transparente. Muito parecido com este show de fumaça e luz que você
está apresentando agora. O crânio no topo desse pedestal não é
seu. Nenhum mago de sangue inteligente deixaria algo tão valioso em
aberto. É uma isca, caso algum de seus súditos excessivamente
ambiciosos tenha um desejo repentino de traí-lo. Tenho certeza de que
o crânio real está escondido com segurança, longe de olhos
curiosos. Provavelmente sendo vigiado por seu meio-demônio de
estimação no canto ali. Diga a ele que pode relaxar, não vou roubar os
castiçais.
O fantasma do Mestre dos Demônios grunhiu. — Aka. — Ele
chamou, e a criatura que estava espreitando na varanda entrou na
câmara. Como as gêmeas Sasori, ele parecia quase humano; os únicos
indícios de que ele era algo não natural eram os chifres, as orelhas
pontudas e a juba selvagem de cabelo ruivo caindo por suas costas.
Meus instintos se eriçaram e senti uma estranha pontada de
familiaridade, de reconhecimento. Aka, o Vermelho, um meio-
demônio cujo nome estava rapidamente subindo nas fileiras de
monstros e humanos, encontrou meu olhar com olhos carmesins
brilhantes que não continham nenhuma emoção. Suas origens eram
um mistério, mas de acordo com o boato do Clã das Sombras, dez
anos atrás uma criança com cabelos ruivos flamejantes foi vista no
centro de uma vila massacrada, coberta de sangue e lambendo o
sangue de suas mãos. Como ele sobreviveu sozinho, ninguém
sabia. Alguns contos afirmam que ele foi encontrado e criado por
bruxas da montanha, alguns que ele era a abominação profana de uma
mulher e um oni. Nos últimos anos, uma figura demoníaca com
cabelo vermelho começou a aparecer em Iwagoto, sempre nos locais
de assassinatos brutais, mas ninguém, nem mesmo os Kage, sabiam
muito sobre ele.
E agora, assim como as gêmeas Sasori, ele fora atraído para cá,
para o lado de Genno, provavelmente com promessas de sangue e
destruição. Ele era, eu percebi, a coisa mais perigosa no exército de
Genno, e era por isso que ele estava aqui, nos aposentos pessoais do
Mestre do Demônio. Um último recurso contra aqueles tolos o
suficiente para desafiá-lo.
Isso fez minhas garras coçarem, querendo rasgá-lo ao meio,
apenas para provar quem era o demônio mais forte do reino. Mas
abater o animal de estimação favorito de Genno não me daria os
resultados que eu queria aqui, então me contive.
— Vocês mortais são tão previsíveis. — Eu balancei minha
cabeça com o olhar fixo de Genno. — Mas é exatamente o que eu faria
se a situação se invertesse, então não posso culpá-lo por tentar. No
entanto... — Eu dei a ele meu sorriso mais dentuço, presas à
mostra. — Espero que você tenha percebido que forçar um Senhor Oni
a seu serviço não vai terminar bem para ninguém. Não sou servo de
ninguém, não me curvo a nenhum mestre e nenhum mortal jamais me
controlará. Vim aqui oferecendo uma parceria igualitária, nada
menos. Se você não puder aceitar isso, terei prazer em me despedir,
com minha oferta de amizade e uma grande quantidade de cabeças de
seus exércitos, antes de ir.
No canto, Aka, o meio-demônio, não se moveu, mas pude ver
um leve sorriso cruzar seu rosto brutal, como se ele me achasse
divertido. Eu o ignorei, embora uma parte de mim estivesse quase
esperando que ele tentasse algo, me desse uma desculpa para pintar
as paredes com sangue. Eu podia sentir que o meio-demônio não
cairia facilmente, que uma batalha com ele seria extremamente
desagradável, o que me incitava ainda mais.
— Não há necessidade de aborrecimentos, Hakaimono. —
Genno desceu mais, pairando a apenas alguns centímetros do solo. —
Certamente, uma parceria mútua nos beneficiaria muito. Embora eu
não seja um tolo. Você não veio aqui simplesmente para se juntar à
minha causa. O Hakaimono de que me lembro não se importava com
nossa visão do império. Ele simplesmente se deleitava com a matança
do Clã das Sombras. Vingar-se dos Kage sempre foi seu desejo, então
por que está aqui agora? Ah... — O fantasma do Mestre dos Demônios
balançou a cabeça lentamente, um sorriso curvando seus lábios
transparentes. — Você quer algo de mim. Algo que apenas o maior
mago de sangue do império poderia conceder. Você deseja fazer um
acordo.
— Eu quero algo. — Eu admiti. — Eu não vou negar isso. Mas,
em troca, estou oferecendo algo tão valioso quanto.
— Intrigante. — O espectro flutuou alguns passos para trás,
dando-me um olhar avaliador. Seus dedos longos e aranhados
dobraram-se sob o queixo pontudo. — E o que te faz pensar que eu
concordaria com isso? Você sabe o que dizem sobre fazer barganhas
com demônios.
— Quase o mesmo que fazer acordos com magos de sangue. —
Dei de ombros. — Em ambos os casos, você pode perder sua alma,
mas isso não é um grande problema para você, é?
— Bem colocado. — Genno balançou uma manga ondulada. —
Muito bem, então. Estou curioso. Digamos que considerarei sua
oferta. O que o grande Hakaimono, o Destruidor, o Primeiro Oni de
Jigoku, quer de mim? — Ele ergueu a mão. — Tendo em mente que eu
não sou exatamente o bruxo que era. Sem um corpo, meus poderes
são... um tanto limitados.
— Sim. — Eu disse. — Estou bem ciente. É por isso que acho que
você vai gostar do que vai ouvir. — Agarrando Kamigoroshi pela
bainha, puxei-a do meu obi e levantei-o para o fantasma. — Você sabe
o que é isso?
— Claro que sim. — respondeu Genno. — Todos nós já ouvimos
falar da Lâmina Amaldiçoada, a Assassina de Deuses, a lâmina que
prendeu o espírito de um Senhor Oni. O nome Kamigoroshi é uma
maldição entre deuses e yokai. O fato de um oni a usar agora é
provavelmente de grande preocupação para o Clã das Sombras. —
Seu olhar pálido se voltou para a lâmina em minha mão e reprimi um
sorriso. Até mesmo Genno, o Mestre dos Demônios, temia a espada
que poderia matar fantasmas e espíritos. O que acontecia com os
poucos yurei que Kamigoroshi destruiu no passado, ninguém, nem
mesmo o Clã das Sombras, poderia dizer com certeza. A noção de que
uma alma poderia morrer, que poderia deixar de existir sem qualquer
esperança de passar ou renascer, era tão horripilante para os mortais
que os matadores de demônios Kage eram proibidos de matar um
fantasma, a menos que suas próprias vidas estivessem em perigo.
Eu, é claro, não tinha essa preocupação.
— Então, sim. — Genno terminou, seu cabelo ondulando atrás
dele enquanto ele olhava para mim. Senti que ele estava
deliberadamente ficando em um lugar, em vez de recuar para colocar
distância entre nós. Não queria me dar a impressão de que ele estava
com medo. — Estou ciente de Kamigoroshi e do que ela é
capaz. Espero que não tenha sido uma ameaça sutil, Hakaimono. Por
que trazer a Assassina de Deuses se você não está planejando usá-la?
— Porque... — eu respondi, e bati a bainha no pedestal com um
estalo que ecoou nas paredes. — Eu quero destruí-la. — eu rosnei. —
Eu quero a maldição removida, para que da próxima vez que uma
flecha perdida acertar este corpo pateticamente fraco no coração, eu
não seja sugado de volta para Kamigoroshi por mais quatro
séculos. Não quero perder a cabeça de novo enquanto estiver preso
naquela lâmina miserável, sem fazer nada, apenas observando
enquanto algum mortal insignificante usa meu poder para matar
yokai. Eu quero me livrar disso, para que quando eu morrer, eu possa
finalmente voltar para Jigoku e renascer da cova como o resto de meus
parentes.
Bem dentro de mim, houve uma centelha de raiva e
horror; Tatsumi, reagindo ao plano de destruir Kamigoroshi de uma
vez por todas. Ele sempre soube, é claro. Compartilhar um corpo e
uma mente tornava impossível manter algo escondido um do outro
por muito tempo; ele conhecia meus pensamentos mais sombrios
assim como eu conhecia os dele. Mas barganhar com o Mestre dos
Demônios, acabar com a maldição de Kamigoroshi e libertar meu
espírito de uma vez por todas, esse era o pesadelo de todo Kage.
— Destruir Kamigoroshi. — Genno não pareceu surpreso. —
Acabar com a maldição e te libertar. Isso é o que você queria?
— Sim. — Eu descobri minhas presas. — A espada não pode ser
destruída por meios normais. Humanos, demônios e yokai
tentaram. A lâmina foi quebrada, amassada, partida e jogada ao
mar. Foi mergulhada no fogo, enterrada na terra e deixada no gelo no
topo do pico mais alto de Iwagoto. E, no entanto, sempre reaparece,
inteira e ilesa, dentro do santuário sagrado dos Kage. A única maneira
de destruir a espada é quebrar a maldição anexada a ela, aquela que
liga meu espírito à lâmina e me mantém aprisionado no reino mortal.
— E o que te faz pensar que sou capaz de tal façanha? — Genno
perguntou, e ergueu as palmas das mãos abertas, as mangas
ondulando atrás dele. — Ou que eu gostaria de desfazer uma
maldição tão poderosa? Tenho o hábito de amarrar demônios à minha
vontade, não de libertá-los.
— É exatamente por isso que acho que você pode. — Eu disse. —
Você sabe mais sobre prender e selar demônios do que qualquer
pessoa na história do império. Você estudou o conhecimento proibido
de maldições, selos e magia negra, e foi o mago de sangue mais
poderoso que o império já viu. Esta é a sua área de especialização. —
Eu cruzei meus braços. — Quanto ao motivo de você concordar em
me ajudar, você ainda não ouviu minha parte na barganha.
— Oh? — O Mestre dos Demônios inclinou a cabeça. — Então
me diga, demônio. O que você tem para oferecer? Se você deseja se
juntar ao meu exército e nos ajudar a destruir o império humano,
temo que não seja o suficiente. Eu ficaria feliz em recebê-lo em nossas
fileiras, e o grande Hakaimono certamente seria um aliado poderoso,
mas como você pode ver, eu tenho um exército. Um que está
crescendo diariamente. A ajuda de um único oni, embora uma grande
dádiva, não seria necessária.
— Você é um idiota se pensa assim. — eu disse calmamente,
fazendo-o franzir a testa. — Seu exército já responde a mim, eles
sabem quem eu sou e do que sou capaz. E se você acha que a ralé não
precisa de um general forte para liderá-los na batalha, você não
aprendeu nada nos últimos quatrocentos anos. Os demônios
respondem à força e os yokai cairão no caos se não puderem ser
controlados. Se a maioria de seu exército descobrir que você possui
apenas uma fração do poder que outrora possuía, quanto tempo você
acha que vai durar o seu domínio sobre eles?
— Sorte sua... — eu continuei, enquanto a carranca do mago de
sangue escurecia. — Eu não tenho interesse em derrubar o império ou
me tornar rei. Eu quero apenas uma coisa, me livrar dessa espada
amaldiçoada para que eu possa me vingar do Clã das Sombras. E você
vai me ajudar a conseguir isso.
— De novo... — Genno cruzou os braços. — Não consigo ver por
que deveria.
Eu dei a ele um sorriso largo e cheio de dentes, mostrando todas
as minhas presas. — Porque eu posso te dar a única coisa que você
precisa, humano. A única coisa que está entre você e o império. O item
que garantirá seu retorno glorioso. — Fiz uma pausa, apenas para
fazê-lo suar figurativamente, antes de fechar a armadilha. — Eu posso
te dar o Pergaminho do Dragão.
Houve um longo momento de silêncio, no qual Genno pareceu
meditar sobre minhas palavras e não parecer atordoado. Eu podia ver
a centelha de fome nos olhos do feiticeiro, embora ele tenha feito um
bom trabalho em permanecer calmo. — Você? — ele perguntou
cético. — Pode recuperar o Pergaminho do Dragão?
— As partes, na verdade. — eu corrigi. — Duas delas. Você já
tem uma, eu suponho.
Genno não se preocupou em responder a essa pergunta, que me
disse tudo o que eu precisava saber. O mago de sangue já tinha um
pedaço do pergaminho do dragão em sua posse. Eu estava
adivinhando, realmente. O Pergaminho das Mil Orações foi bem
escondido por aqueles que decidiram que tal poder não pertencia às
mãos dos mortais, mas Genno era determinado e astuto e, pelo que eu
tinha visto em sua primeira rebelião, completamente implacável. Se
ele tivesse decidido convocar o Precursor, ele estaria procurando pelas
peças que faltavam incansavelmente. Honestamente, fiquei um pouco
surpreso por ele ter encontrado apenas uma peça até agora.
— Perdoe-me, Hakaimono. — Genno disse lentamente. — Mas
venho tentando reunir os fragmentos do pergaminho do Dragão
desde que soube da vinda do Precursor. Tenho lacaios em Iwagoto
procurando pelas peças que faltam, por qualquer indício de onde
possam estar. Nós vasculhamos o império de ponta a ponta e ainda
não encontramos mais de um. Eu tinha uma criada na capital, que
jurou que poderia conseguir outra das peças, mas falhou. E a noite do
desejo está se aproximando rapidamente. — Genno se virou e olhou
para a lua doentia visível do lado de fora da varanda, sua voz ficando
sombria. — O tempo está se esgotando. — Ele meditou
sombriamente. — Se as peças não forem reunidas no momento em
que as estrelas do dragão desaparecerem sobre o império, o Desejo
será perdido e o Precursor não reaparecerá por mais um milênio. Não
posso permitir que isso aconteça, mesmo se eu tiver que sacrificar
todo o império a Jigoku, serei eu quem invocará o Dragão.
Genno voltou-se, levantando as mangas de modo que flutuassem
em um vento imaginário. — Então, imagine minha surpresa... — disse
ele. — Quando o demônio Hakaimono entra no meu castelo, depois
de séculos preso em Kamigoroshi, e casualmente anuncia que pode
me trazer exatamente o que todo o império está procurando. Você vai
ter que me desculpar se eu achar isso bastante difícil de acreditar.
— Acredite no que quiser. — Respondi, sabendo que ele estava
prestando atenção em cada palavra minha agora. — Mas eu sei onde o
pergaminho está. Ambas as peças, na verdade. E se você concordar
em ser bonzinho, vou até buscá-las para você.
Os olhos do humano brilharam. Ele queria o pergaminho, estava
desesperado para obtê-lo. Era, como eu sempre soube, a única coisa
que ele não podia deixar passar. Mas Genno não era estúpido; o
Mestre dos Demônios conhecia os perigos de barganhar com Jigoku e
era compreensivelmente cético. — Você iria? — ele perguntou,
estreitando o olhar. — E a ideia de invocar o Dragão não te
interessa? As peças finais da oração para convocar o Precursor estão
ao seu alcance, e você simplesmente as entregaria?
Eu bufei. — O Precursor não responde a demônios ou yokai, sua
barganha era com os humanos. Apenas uma alma mortal pode
chamar o Kami do Mar.
— É verdade, mas você sempre pode forçar alguém a fazer o
Desejo para você. — Raciocinou Genno. — Usá-lo para se libertar de
Kamigoroshi. Não é esse o seu maior desejo, Hakaimono? Você não
procuraria o pergaminho apenas para isso?
— Não. — Eu disse com firmeza. — Não tenho nenhum interesse
no Desejo do Dragão, nenhum desejo de invocar o Precursor da
Mudança. — Curvando um lábio, eu balancei minha cabeça. — Vocês
humanos e sua busca constante por poder... Não há nenhum mortal
em quem eu confiaria que, no penúltimo momento, não usasse o
Desejo para si mesmo. Além disso... — Eu zombei e olhei para
Kamigoroshi, ainda em seu pedestal. — Demônios e Kami não se dão
exatamente bem. Eu não confiaria no Precursor para desfazer o que
ele fez há um milênio. Na verdade, se o bastardo escamoso e
realizador de desejos aparecesse diante de mim, agora, estou bastante
certo de que pegaria Kamigoroshi e enfiaria em seu buraco de dragão.
Nenhuma mudança na expressão do Mestre dos Demônios. —
Você me traria os pedaços de pergaminho. — Ele repetiu. — Em troca
de quebrar a maldição de Kamigoroshi e permitir que seu espírito
retorne a Jigoku. Essa é a sua barganha?
Eu concordei. — Não poderia ter dito melhor.
Os lábios pálidos de Genno se estreitaram. — Muito bem. — ele
murmurou. — Se for necessário, então você tem um acordo,
Hakaimono. Mas tenho medo de precisar que você me traga o
pergaminho antes que eu possa tentar quebrar a maldição. — Ele
ergueu os braços transparentes para que a luz da lua se filtrasse por
suas mangas. — Como você pode ver, não estou com todas as minhas
forças. Depois que o Dragão for convocado e eu tiver meu novo corpo,
terei prazer em honrar seu pedido.
— Eu imaginei isso. — Pegando Kamigoroshi, enfiei-a no obi
novamente. — Não se preocupe, eu não sou um mago de sangue
conivente que tem que enviar lacaios para fazer o trabalho sujo para
ele. Você terá o pergaminho completo antes da noite do Desejo,
garanto-lhe.
— Por curiosidade... — Genno refletiu enquanto eu dava um
passo para trás. — Como você sabe onde encontrar o pergaminho,
Hakaimono? Minha criada, Dama Satomi, informou-me que sabia
onde estava uma peça, que estava perto de adquiri-la. Mas agora
parece que Dama Satomi está morta e o fragmento de pergaminho
perdido. Como é que você sabe onde as peças finais estão localizadas?
Eu sorri. — Jigoku é eterno, Mestre dos Demônios. — Eu
disse. — Eu sou mais velho do que você pode imaginar, e minha
memória é muito longa. Os Kage têm uma longa história com o
pergaminho do Dragão, o segundo desejo foi falado por Kage
Hanako, mais conhecida hoje como Dama Hanshou, que desejava a
imortalidade e governar o Clã das Sombras para sempre. Ela realizou
seu desejo, embora não da maneira que esperava. Acontece que a vida
eterna não é o mesmo que a juventude eterna.
Houve um leve farfalhar da alma dentro, a curiosidade de
Tatsumi agitando-se com esta nova revelação. Eu ri internamente com
sua ignorância. Se ele soubesse a verdade, qual era profundidade da
obsessão de sua daimyo.
— Mas mesmo antes dos Kage. — eu continuei, olhando para
Genno, — Eu não sou um estranho neste reino. Eu estava por perto
quando o império era jovem, quando os demônios e yokai eram mais
numerosos do que os homens. Lembro-me dos lugares que se
perderam na história da humanidade. E graças a uma menina raposa
ingênua, eu sei onde encontrar os últimos pedaços do pergaminho.
— O templo Pena de Aço. — disse Genno categoricamente,
revelando que ele também sabia onde o pergaminho estava sendo
guardado. Provavelmente de Dama Satomi. Mas ele não sabia onde o
templo em si estava localizado, porque os tolos guardiões que viviam
lá sabiam como a memória humana era curta e instável. Eles nem
mesmo precisaram de sua magia para se esconder; tudo que eles
tinham que fazer era não interagir com o mundo mortal por algumas
centenas de anos, e os humanos esqueceriam que eles existiram.
Mas Jigoku era eterno. Jigoku não esquecia.
Eu apenas sorri e a sobrancelha de Genno se ergueu. — Você
sabe onde fica o templo. — Afirmou ele em voz baixa.
Bem no fundo, eu podia sentir a raiva de Tatsumi, seu desespero,
mas principalmente, sua preocupação e preocupação por uma simples
camponesa que, enquanto conversávamos, estava a caminho do
templo. Cujo caminho certamente se cruzaria com o meu mais uma
vez.
— Sim. — Eu disse, saboreando o desespero de Tatsumi
enquanto respondia. — Eu sei.

Capítulo 12
Através do hume-no-sekai
Yumeko

— Dama Hanshou pediu que você fizesse o quê?


Retornamos ao castelo de Hakumei nas horas mais sombrias da
noite. O mais rápido que pudemos sem chamar atenção, nós
deslizamos pelos corredores e pelas portas do quarto do Mestre Jiro. O
velho sacerdote estava sentado contra a parede oposta quando
entramos, cachimbo de cabo comprido enrolando fios de fumaça no
ar, o cajado nodoso apoiado nos joelhos. Ko estava enrolada ao lado
dele, parecendo uma folha de dente-de-leão enorme, e mal mexeu a
orelha quando Reika e Chu nos conduziram pelas portas.
— Ah. — Mestre Jiro murmurou, tirando a ponta do cachimbo
de sua boca. — Você os encontrou, Reika-chan. Graças aos kami.
A donzela do santuário não respondeu imediatamente. Depois
de fechar as portas, ela enfiou a mão em seu haori e puxou um pedaço
de papel branco familiar, um ofuda, um dos talismãs que lhe permitia
trabalhar sua magia. Este tinha escrito silêncio em tinta preta absoluta,
e Reika pressionou firmemente no batente da porta entre os painéis
shoji. Senti uma onda de energia emanar da pequena faixa,
espalhando-se pelas paredes do quarto, uma barreira que impediria
ouvidos curiosos de ouvir nossa conversa. Quando a magia se
estabeleceu, senti uma pontada de satisfação vingativa. Há, tente nos
escutar agora, intrometidos Kage.
— Não, graças a esses três. — Reika rosnou, virando-se para me
encarar, Daisuke e o ronin. — Não vou nem mencionar a estupidez de
certos indivíduos que vagam pela capital do Clã das Sombras por
conta própria. Ou uma certa yokai mentirosa que me disse que ficaria
em seu quarto e depois saiu vagando pelas ruas de Ogi Owari sem
pensar em si mesma ou na coisa muito importante que carrega.
— Isso não é verdade. — Argumentei, fazendo-a dar uma
carranca para mim. — Estava pensando na coisa muito importante,
por isso me disfarcei de você. Ninguém sabia que eu saí do castelo. Eu
estava perfeitamente segura. Bem, até os assassinos.
Ko ergueu a cabeça e rosnou. Mestre Jiro piscou.
— Assassinos? — ele repetiu. Tirando o cachimbo da boca, bateu
com a ponta em um quadrado de lenço de papel e o colocou de
lado. — Temo que você terá que começar do início, Yumeko-chan. —
disse ele.
Então eu fiz. Começando com meu encontro com Dama
Hanshou, e seu pedido chocante para salvar Tatsumi e libertá-lo de
Hakaimono. Os olhos de Reika quase saíram do rosto quando ela
ouviu o pedido da daimyo, e ela estava gaguejando antes mesmo de
eu terminar a frase, levando à sua pergunta.
— Salvar o matador de demônios de Hakaimono? — a donzela
do santuário continuou, respondendo à sua própria pergunta. —
Quando seus próprios majutsushi não podem? — Ela gesticulou
ferozmente. — E o que você disse a ela?
— Eu disse a ela que tentaria. — eu disse baixinho, fazendo a
miko gemer. — Isso não muda nada, Reika-san. Íamos procurar
Tatsumi de qualquer maneira.
— Depois que levássemos o pergaminho ao templo, Yumeko! O
pergaminho é mais importante...
— Eu sei que é importante! — Eu prendi minhas orelhas e olhei
de volta para ela. — Eu sei que tenho que levar o pergaminho ao
templo e impedir a vinda do Dragão. Mas... eu não posso esquecer
Tatsumi. — Pensar no matador de demônios fez meu estômago
apertar e eu respirei rapidamente para me equilibrar. — Por favor. —
Eu disse, olhando ao redor do quarto. — Nós devemos isso a
ele. Tatsumi lutou contra os demônios de Satomi ao nosso lado. Ele
enfrentou um oni para nos permitir alcançar Mestre Jiro. Não
podemos abandoná-lo e não podemos esperar. O Clã das Sombras já
está rastreando Hakaimono. Tatsumi pode ser morto antes mesmo de
chegarmos a ele.
— Nós nem sabemos onde ele está.
— Sabemos. — Eu disse. — Dama Hanshou me contou. Ela disse
que Hakaimono foi visto viajando para o oeste, em direção a uma
floresta além das montanhas.
Reika bufou. — Pode ser um pouco mais específica? — ela disse,
e acenou uma manga ondulada. — Existem muitas florestas na
direção geral do oeste.
— Era a grande floresta entre as terras de Hino e Mizu. — Eu
disse, e vi os olhos de Mestre Jiro se estreitarem. — Qual era o seu
nome, mesmo? Dama Hanshou me contou, e parecia muito
ameaçadora. A floresta...
— A Floresta dos Mil Olhos. — Mestre Jiro terminou, e Reika se
ergueu como se tivesse sido picada. — O local onde o Mestre dos
Demônios reuniu seu exército para declarar guerra ao império.
— Aquele lugar maldito? — Reika ficou pálida e balançou a
cabeça ferozmente. — Absolutamente não. Eu me recuso a deixar
Mestre Jiro colocar os pés em qualquer lugar perto daquela
floresta. Encontrar Hakaimono é uma coisa. Entrar na Floresta dos Mil
Olhos é como entrar no próprio Jigoku.
— Vocês não têm que ir. — Eu disse. — Eu não vou pedir a
nenhum de vocês para me seguir. Mas... eu vou atrás de
Hakaimono. Eu já me decidi. Eu mesmo o encontrarei e, de alguma
forma, trarei Tatsumi de volta.
— Como? — Reika exigiu. — Você vive dizendo que vai salvá-lo,
mas não sabe nada sobre exorcismo, rituais de amarração ou a
natureza dos demônios. Como você acha que vai derrotar Hakaimono,
Yumeko?
— Eu vou salvar Tatsumi. Mesmo... mesmo que eu mesma tenha
que possuí-lo.
Houve algumas batidas de coração de silêncio após essa
declaração, um por um, meus companheiros perceberam o que isso
significava.
— Kitsune-tsuki. — Reika disse, seu tom de
desaprovação. Esperei que ela me repreendesse, me dissesse que era
mau, insistisse para que eu encontrasse outro caminho. Mas, pela
primeira vez, Reika ficou quieta, pensativa, como se percebesse que
isso poderia funcionar, mesmo que ela não gostasse.
— Eu sei que não é o ideal. — Eu disse, olhando ao redor do
quarto. Mestre Jiro parecia sério, a mandíbula de Reika estava firme,
até Okame parecia desconfortável com a conversa de posse. Ao lado
dele, o rosto do nobre era ilegível, mas seus olhos estavam escuros e
preocupados. — Eu preferiria não tentar o kitsune-tsuki se eu pudesse
escolher. Mas, se é a única maneira de expulsar Hakaimono, sinto que
devo tentar.
— Mas você é apenas meio kitsune, Yumeko-chan. — Okame
apontou. — Tem certeza de que pode fazer isso?
— Eu... acho que sim. — Gaguejei, ganhando sobrancelhas
levantadas de Reika e olhares preocupados de todos os outros. — Não
é algo que eu já tentei. — Admiti. — Mas me disseram que vem
naturalmente para os kitsune. Que, quando chegasse a hora, eu
saberia o que fazer. — Não mencionei que a pessoa que me encorajou
a usar esse talento kitsune em particular foi uma misteriosa raposa
branca que apareceu para mim em um sonho.
— Então, nosso plano, tal como é... — Reika continuou em uma
voz duvidosa. — É encontrar Hakaimono, de alguma forma contê-lo e
então você possuirá o matador de demônios usando uma habilidade
que você nem mesmo tem certeza de ter. E uma vez dentro, você vai...
o quê? Convencer Hakaimono a ir embora? Pedindo com
educação? Ou, você pretende lutar contra o demônio enquanto vocês
dois estão dentro de Kage Tatsumi?
— Se é isso que devo fazer. — Eu disse. Eu não gostava da ideia
de lutar contra Hakaimono, mas Reika estava certa; ele simplesmente
não iria embora se eu pedisse educadamente. — Custe o que custar, se
for preciso, eu mesma levarei Hakaimono para fora.
— E o que você acha que isso vai fazer com a alma do matador
de demônios?
— Eu... — vacilei, espetando minhas orelhas. — O que você quer
dizer?
Ela balançou a cabeça, mas havia tristeza no gesto, não
exasperação. — Kage Tatsumi foi totalmente possuído por
Hakaimono. — Ela me disse. — Uma alma, seja ela humana ou oni,
não pode ser destruída, apenas suprimida ou expulsa. Se o seu
kitsune-tsuki for bem-sucedido, haverá três presenças dentro dele,
três vontades separadas competindo pelo controle de sua mente e
corpo. Se você lutar contra Hakaimono dentro de Kage Tatsumi, o
matador de demônios pode não sair dessa provação ileso.
— O que vai acontecer?
A donzela do santuário ergueu as duas mãos. — Não faço ideia.
— disse ela. — Uma raposa possuindo um mortal para levar um
espírito oni de volta para uma espada nunca aconteceu antes. — Ela
fez uma careta e tentei não pensar no absurdo dessa última
afirmação. — No entanto. — Ela continuou. — Eu me lembro de um
caso de tanuki-tsuki que Mestre Jiro foi chamado para exorcizar. O
tanuki se apoderou de uma jovem e, quando a trouxeram ao
santuário, ela estava muito doente, tendo se fartado de saquê e bolos
de arroz por três dias seguidos. E ainda assim, ela continuou a chorar
de fome, exigindo que trouxéssemos comida e álcool. O espírito
tanuki foi expulso, mas, infelizmente, a jovem nunca se recuperou e
morreu alguns dias depois em sua casa.
— Por que você está me contando isso?
Eu senti um caroço frio nas minhas entranhas, o frio se
espalhando por todas as partes do meu corpo. Reika continuou a me
observar, sua expressão simpática ainda no lugar. — Tudo o que estou
dizendo é que a alma humana pode ser muito frágil, Yumeko. — Ela
disse suavemente. — Eu sei que você acha que o seu matador de
demônios é forte, mas não sabemos o que Hakaimono está fazendo
com ele, mental e fisicamente. Eu quero que você esteja
preparada. Mesmo se o salvarmos, Kage Tatsumi pode ser... diferente
do que era antes.
— Oh, pare já com a desgraça e a escuridão. — Okame se sentou,
dando à donzela do santuário um olhar enojado. — Nós vamos lidar
com esse problema quando chegarmos a ele. Primeiro, temos que
encontrar o bastardo oni, e então as coisas ficarão realmente
interessantes. Então, onde ele foi visto de novo? A Floresta dos Olhos
do Mal ou algo assim?
— A Floresta dos Mil Olhos. — Corrigiu Daisuke. — Também
chamada de Floresta de Um Milhão de Maldições. As histórias dizem
que qualquer humano que entre na floresta nunca mais será visto.
— Parece alegre. — Okame balançou a cabeça. — Então, acho
que partiremos em breve.
— Amanhã. — Eu disse. — Dama Hanshou deseja que façamos
isso rapidamente. Naganori-san nos levará através do Caminho das
Sombras até a borda do território do Clã do Fogo.
Ninguém pareceu satisfeito com essa declaração. Mestre Jiro
apertou os lábios e Reika franziu o nariz, mas Okame ficou um pouco
pálido, um punho cerrado em sua perna.
— Certo. Então, eu vou precisar estar muito, muito bêbado. —
Ele murmurou. — Dessa forma, se Yasuo me arrastar para fora do
Caminho para o Meido, pelo menos será tolerável.
— Isso não vai acontecer, Okame-san. — disse Daisuke. — Como
eu disse antes, estarei bem atrás de você. E se o seu irmão quiser
reivindicá-lo novamente, vou convencê-lo do contrário. Eu juro pela
minha vida.
A voz do nobre era silenciosamente intensa. Okame olhou para
cima e, por um momento, algo se passou entre os dois, alguma
vibração de emoção ou compreensão que não consegui
identificar. Mas antes que eu pudesse me perguntar por muito tempo,
Mestre Jiro pigarreou.
— Devíamos tentar descansar. — Anunciou o sacerdote. — A
noite está quase acabando, e temo que não teremos muita chance
depois. Certamente não haverá sono no Caminho. Mas, posso sugerir
que fiquemos juntos? Depois dos eventos desta noite, sinto que
ninguém deve ficar sozinho no castelo Hakumei.
— Claro, Mestre Jiro. — Reika se levantou, acenando com a mão
para mim. — Venha, Yumeko. Ficaremos no meu quarto. Chu... —
acrescentou ela, olhando para o cachorro. — Você e Ko ficam
aqui. Protejam Mestre Jiro, certo?
O cachorrinho laranja abanou o rabo de maneira muito solene,
depois se virou para se aproximar do sacerdote, juntando-se a Ko ao
seu lado.
Okame olhou para Daisuke, seu lábio curvado em um sorriso
fraco. — Acho que isso nos deixa, Taiyo-san. — Ele disse. — Se não
manchar sua honra dividir o quarto com um ronin, claro.
— Não há desonra nesse pedido, Okame-san. — Daisuke
respondeu, levantando-se suavemente. — Eu gostaria de receber sua
companhia. Se você não se importa em dividir o quarto com... qual era
a frase? Um pavão da corte arrogante.
— Eh, tenho certeza que vou conseguir de alguma forma.
— Yumeko-san. — Daisuke acenou para mim. — Mestre Jiro,
Reika-san. Oyasuminasai. Verei todos vocês em algumas horas.
— Boa noite. — Ecoei, e observei os dois homens saírem do
quarto, Okame me dando um sorriso ao passar. Depois de seguir
Reika até o quarto dela, observei enquanto ela pescava um segundo
ofuda da manga e o pressionava contra a porta, silenciando nossa
conversa para qualquer ouvido externo também.
— Você não está com raiva, está, Reika-san? — Aventurei-me
quando a miko finalmente se sentou no outro futon no canto. Ela me
lançou um olhar sombrio e suspirou.
— Não. — Ela murmurou, balançando a cabeça. — Eu estou
aterrorizada.
Chocada, sentei-me no futon de frente para ela, cruzando as
pernas. — Com Hakaimono?
— Hakaimono, a Floresta dos Mil Olhos, o pergaminho do
Dragão, tudo isso! — Ela gesticulou freneticamente para nada. —
Pode ser uma surpresa, Yumeko, mas esta é minha primeira vez fora
das terras dos Taiyo. Antes de você e os outros chegarem ao meu
santuário, meus dias eram pacíficos, conversando com os kami,
dançando em festivais, banindo um ou outro fantasma ou
yokai. Agora me encontro sentada no castelo Hakumei cercada por
aqueles que desejam nos matar, me preparando para rastrear o oni
mais perigoso que já existiu, na esperança de que uma kitsune que
nada sabe sobre o mundo possa de alguma forma conseguir derrotá-
lo. Desde que Hakaimono não nos mate no momento em que nos vir.
— Então, sim... — ela terminou, olhando para mim
novamente. — Eu estou aterrorizada. Receio saber como isso vai
acabar, e não é bom para nenhum de nós. E se falharmos, o que
acontecerá com o pergaminho do dragão? O melhor que posso esperar
é que a peça que você carrega se perca e o Precursor não seja
convocado nesta era.
— Por que você se preocupa tanto com o pergaminho do dragão,
Reika-san? — Eu perguntei, genuinamente curiosa. — Nunca foi seu
dever protegê-lo, mas você parece odiar o fato de que ele existe.
Reika deu um sorriso amargo. — Eu estudei a história do
pergaminho. — Ela respondeu. — Eu sei o que o desejo pode
trazer. Mas, mais do que isso, conheço o mal que se esconde na alma
dos homens. Você não precisa ser uma donzela de santuário para
adivinhar o que os mortais farão quando receberem o poder dos
deuses. O Dragão não é chamado de Precursor da Mudança por
nada. Prefiro não viver em um mundo criado pelo capricho de um
único homem.
Seu olhar se tornou desafiador. — Esse é o meu interesse no
pergaminho do dragão, Yumeko. — disse ela. — Minha razão para
nunca ver o Precursor ser chamado. Qual é o seu? Você ao menos tem
um? Ou você está tão cega pelo amor que esqueceu que seu primeiro
dever é proteger o pergaminho e impedir a vinda do Dragão?
— Eu... — Eu a encarei, sentindo como se tivesse levado um soco
no estômago. — Eu não... O que você está dizendo, Reika-san?
Ela suspirou. — Você nem mesmo vê, não é? É claro como o dia
para o resto de nós.
— Eu não amo Tatsumi. — Eu disse, ainda me recuperando da
implicação. — Eu não posso. Eu só...
Eu vacilei novamente, pois as palavras me faltaram. Amor era
um conceito estranho, algo que eu nunca tinha pensado. Eu li sobre
homens e mulheres se apaixonando; a biblioteca do templo Ventos
Silenciosos tinha um livro escondido entre os pergaminhos que
contava a história de um samurai que amava uma gueixa. Mas ele
tinha uma esposa e uma família, então ele a visitava à noite, onde eles
fantasiaram que algum dia pagariam sua dívida e fugiriam
juntos. Havia muita angústia interna da parte do samurai, pois
embora amasse a gueixa, seu dever era para com sua família e seu
daimyo, e ele não podia abandoná-los. A história terminou
tragicamente, com o samurai sendo chamado para a guerra e
morrendo em batalha, e a gueixa se jogando no rio de tristeza. As
ações do samurai foram muito elogiadas, entretanto, tanto por seus
companheiros quanto pelo próprio livro, por escolher o dever em vez
do amor, embora nunca mencionassem a mulher que havia morrido.
Não pintava o amor sob uma boa luz e, de fato, parecia um conto
de advertência sobre os perigos de emoções fortes, que o dever para
com o clã, família e daimyo sempre deveria estar em primeiro
lugar. Achei isso bastante deprimente e senti pena da pobre garota
que se afogou, mas não entendia como ela podia se tornar tão apegada
a um homem que preferia morrer a viver sem ele.
Certamente não era isso que eu sentia por Tatsumi. Eu me
preocupava com o matador de demônios, é claro. Quando imaginava
o que Hakaimono poderia estar fazendo com ele, me sentia
fisicamente doente. Quando nos conhecemos, Tatsumi era frio e
assustador; uma arma que matava sem hesitação ou
arrependimento. Mas em nossa jornada, conheci Kage Tatsumi e vi
vislumbres da alma que ele mantinha trancados, pequenos lampejos
de humor e até de bondade. Quando o perigo ameaçou, eu o vi lutar
para proteger os outros, embora ele não precisasse. E eu percebi, tarde
demais, por que ele nunca baixava a guarda.
Você o distrai, Hakaimono sussurrou para mim naquela noite. Faz
ele sentir coisas. Faz ele questionar quem ele é e o que deseja. E esse é todo o
convite de que preciso. Seu último pensamento esta noite, antes de finalmente
se perder, foi em você.
Então, era minha culpa que Hakaimono foi libertado. Minha
culpa foi que Tatsumi se perdeu para o oni, que ele estava
sofrendo. Que ele pensava que eu o tinha traído. Eu libertaria Kage
Tatsumi de Hakaimono e levaria o demônio de volta para
Kamigoroshi. Eu salvaria o matador de demônios, mesmo que isso me
custasse a vida. Mas isso não era amor.
Pelo menos, eu não achava que fosse.
Reika balançou a cabeça. — Bem, não importa. — Ela
suspirou. — Amanhã começaremos a caça ao Primeiro Oni, por mais
louco e suicida que pareça. — Ela gesticulou para o futon. — Descanse
um pouco enquanto pode. Eu não acho que vou dormir muito esta
noite.
Eu também não achei que fosse dormir. Minha mente estava
cheia de pensamentos turbulentos, sobre Tatsumi, Hakaimono e o
pergaminho do Dragão. Sobre Dama Hanshou, Senhor Iesada e o
ataque que acabamos de sobreviver. Eu fiquei lá na escuridão, me
perguntando onde Hakaimono estava agora, como iríamos derrotá-lo
e como eu iria possuir o matador de demônios quando o fizéssemos. E
me perguntei se Tatsumi estava pensando em mim do jeito que eu
pensava nele.
A próxima coisa que eu soube foi que estava sonhando.

A raposa branca estava esperando por mim, sentada em um


tronco sob a sombra de um pinheiro, sua cauda magnífica enrolada
em torno de seus pés. Vaga-lumes vagavam ao redor dele, raios de luz
verde piscando dentro e fora da escuridão. Olhos dourados
preguiçosos me observavam enquanto eu subia, minhas patas
afundando em musgo e sujeira, não fazendo barulho no chão da
floresta.
— Olá, pequena sonhadora.
— Olá de novo.
— Você já pensou em minha proposta?
Eu concordei. — Sim. Preciso saber como expulsar
Hakaimono. Por favor... — Hesitei mais um momento, então soltei:—
Mostre-me como salvar Tatsumi-san.
A raposa branca sorriu.
Sua cauda espessa desenrolou-se, erguendo-se no ar atrás dele,
balançando para frente e para trás como se tivesse vontade própria. —
Você não é páreo para Hakaimono no mundo físico. — Ele
sussurrou. — Seu sacerdote e sua donzela do santuário não serão
fortes o suficiente para forçá-lo a sair. Se eles tentarem, vocês todos
morrerão. A resposta está com você.
Sua cauda, balançando como uma serpente atrás dele, explodiu
abruptamente em chamas azuis na ponta. Elas piscaram e dançaram
sobre sua cabeça, lançando-o em uma luz fantasmagórica. — Um
aviso, pequena sonhadora. — Ele continuou, enquanto eu olhava para
os kitsune-bi na ponta de sua cauda. — Simplesmente possuir o
matador de demônios não será suficiente. Se você quiser libertar seu
humano, deve estar preparada para lutar contra Hakaimono dentro de
Kage Tatsumi.
Eu tremi, tirando meu olhar do balanço hipnotizante de sua
cauda. — Sim, mas como vou fazer isso? — Eu perguntei
desesperadamente. — Eu não tenho uma espada. Não sou uma
guerreira como Tatsumi-san. Eu não tenho nada que possa enfrentar
um demônio.
— No plano mortal, não. — A raposa branca torceu suas orelhas
compridas. — O mundo físico tem regras que devem ser seguidas. No
plano da alma, porém, é uma história diferente. Bem como em Yume-
no-Sekai, a realidade pode ser moldada, torcida em algo que se adapte
às suas necessidades, se você souber como. Por exemplo, no reino
mortal, sua raposa é uma distração na melhor das hipóteses, um vago
aborrecimento na pior. Mas aqui, no reino dos sonhos...
Ele balançou a cauda e uma bola de kitsune-bi voou pelo ar,
atingindo uma árvore a alguns metros de distância. Instantaneamente
explodiu em chamas, queimando um ofuscante azul-branco um
momento antes de ser consumida. Folhas queimadas até nada, galhos
enegrecidos e murchados, e o tronco se transformou em cinzas que se
espalharam ao vento.
Meu queixo caiu e eu senti o sorriso da raposa branca. — Pode
ser tão mortal quanto você desejar. — Ele disse presunçosamente. —
Mortal o suficiente para queimar até mesmo um senhor oni. Agora,
tente você. — Ele se virou, apontando um focinho elegante para um
carvalho nodoso a vários metros de distância na névoa. — Destrua a
árvore.
Eu segui seu olhar, de frente para a árvore, e respirei fundo. Com
um aceno de minha cauda, kitsune-bi ganharam vida, lançando-me
em um círculo de luz fantasmagórica. Colocando as orelhas para trás,
lancei um contra o carvalho.
A esfera de raposa atingiu o tronco nodoso e explodiu em uma
explosão de luz, línguas de chamas branco-azuladas flamejando
apenas para se dissolver no ar, retorcendo-se até o
nada. Decepcionada, olhei de volta para a raposa branca, que
balançou a cabeça.
— Você ainda não acredita que o fogo da raposa pode ser
perigoso. — Ele disse em uma voz serena. — Você deve saber, sem
qualquer dúvida, que dentro do reino dos sonhos e no plano da alma,
seus kitsune-bi podem queimar. Matar. Elimine qualquer incerteza de
sua mente. — Suas orelhas se contraíram e ele acenou com a cauda
emplumada para o carvalho. — Tente novamente.
Com um rosnado, encarei a árvore mais uma vez, curvando um
lábio para o gigante nodoso. Isto é por Tatsumi, disse a mim mesma,
enquanto o kiysune-bi ganhou vida mais uma vez, dançando na ponta
da minha cauda. Se você quiser salvá-lo de Hakaimono, você deve fazer
isso. Queime!
Soltei um rosnado desafiador e joguei a bola de raposa na árvore
novamente. Desta vez, quando as chamas atingiram o carvalho, houve
um rugido e um inferno azul surgiu para engolfar a árvore. Ela
brilhou como um minúsculo sol, cegante e intenso, e o enorme
carvalho desapareceu no clarão, transformando-se em cinzas em um
piscar de olhos.
Os pelos das minhas costas se arrepiaram e ouvi a raposa branca
rir atrás de mim. — Bom. — Ele disse, caminhando graciosamente ao
meu lado. — Dentro de uma alma mortal, a emoção pura é uma coisa
poderosa. Quanto mais forte a convicção, mais brilhante se torna a
magia. Apenas certifique-se de que não queime tão forte que consuma
tudo ao seu redor. — Ele me lançou um olhar solene de olhos
dourados. — Mas aprenda rápido, pequena raposa. E preste atenção a
este aviso. Hakaimono será um adversário desafiador. Mesmo se você
dominar seu poder, ele será o inimigo mais difícil que você
encontrará. Levá-lo de volta a Kamigoroshi não será tão simples
quanto atirar fogo na cara dele.
— Mas é um começo. — Eu sussurrei. — Isso me dará uma
chance de lutar.
— Irá. — A raposa branca concordou. — Infelizmente... — ele
continuou em uma voz de advertência. — Ainda há um pequeno
problema, que é o próprio matador de demônios. O espírito humano é
uma coisa frágil e não aceitará bem uma invasão em sua essência. Se
você usar o kitsune-tsuki para possuir Kage Tatsumi, muito
provavelmente danificará sua alma.
Pisquei, lembrando-me do que Reika disse mais cedo naquela
noite. — Como?
— Já está sob muita pressão com Hakaimono. — O kitsune
continuou. — Outra intrusão forçada poderia muito bem fazer com
que a mente do hospedeiro se partisse, não é incomum com mortais
que foram possuídos. Pior, se você começar a lançar kitsune-bi por aí,
e o matador de demônios for pego na batalha entre você e
Hakaimono, quem sabe o que isso fará com a alma dele? Ele pode
voltar diferente, ou louco... ou nem voltar.
Eu engoli a frustração que subia à minha garganta. — Então,
como vou ajudá-lo? — Eu exigi. — Se possuir Tatsumi só vai deixá-lo
louco, não serei melhor do que Hakaimono.
— Eu não disse que seria fácil. — disse a raposa branca, ainda
insuportavelmente calma. — Eu disse que daria a você os meios para
expulsar o demônio. No entanto, existe uma maneira de aliviar o
choque de mais uma presença forçando seu caminho para dentro de
sua alma. Você deve deixar o matador de demônios saber que você
está indo. Se ele reconhecer você como uma amiga e não uma inimiga,
ele pode aceitar mais sua presença. — A raposa branca agitou sua
cauda emplumada. — Claro, você ainda terá que ter cuidado para não
danificar sua alma enquanto luta contra Hakaimono, mas isso é um
problema para quando e se seu kitsune-tsuki for bem-sucedido.
— Avisar Tatsumi que estou indo? — Eu encarei a raposa
branca. — Como? Não posso enviar uma mensagem a ele. Qualquer
coisa que ele saiba, Hakaimono também sabe.
— Isso seria verdade, se estivéssemos no mundo físico. — disse o
kitsune. — No entanto, este é Yume-no-Sekai, o reino dos sonhos. E
até Hakaimono deve dormir às vezes.
— Venha. — Ele se levantou antes que eu pudesse perguntar o
que ele quis dizer, sua cauda espessa ondulando languidamente atrás
dele. — Me siga. Fique perto. E lembre-se, nada do que você vê aqui é
real, exceto os baku nativos, os comedores de sonhos, e as almas
daqueles que dormem.
— Onde estamos indo?
— Estou levando você para outro sonho. Mas devemos nos
apressar, nosso alvo tem sono muito leve. Assim que ele acordar, sua
presença desaparecerá de Yume-no-Sekai, e você não terá uma
segunda chance de falar com ele. Rápido agora.
Corri atrás da raposa branca e, de repente, a floresta fresca e
nublada que nos cercava mudou. Em um momento, estávamos
trotando por uma trilha sombreada através da vegetação rasteira
emaranhada, no próximo, estávamos na beira de uma ponte de
madeira em arco sobre um rio, uma lua cheia prateada brilhando
diretamente acima.
— Onde...?
— Não se assuste. — A raposa branca olhou para mim, os olhos
brilhando como velas ao luar. — Lembre-se, nada aqui é
real. Simplesmente deixamos o seu sonho e entramos no de outro.
— De quem?
— Pegue sua arma.
A voz calma e silenciosa flutuou sobre a ponte, fazendo com que
os cabelos da minha nuca se arrepiassem. Reconheci aquela maneira
baixa e elegante de falar. Olhando para cima, vi uma figura solitária
no meio da ponte, o peito nu e o cabelo branco solto, o luar brilhando
na máscara oni pálida que cobria seu rosto.
Eu pisquei. — Daisuke-san?
Oni no Mikoto, o demônio da ponte, me ignorou, seu olhar
focado em algo atrás de nós. Nas minhas costas, uma risada silenciosa
flutuou sobre a brisa.
— Acho que você cometeu um erro, Oni-san. — disse outra voz
familiar. Virei-me para ver Okame parado na beira da ponte, de frente
para o príncipe demônio. Seu arco estava faltando, embora uma
lâmina curta estivesse pendurada em seu obi, e ele não fez nenhum
movimento para sacá-la quando deu um passo à frente. A raposa
branca e eu deslizamos para o lado, e nenhum dos dois homens
pareceu nos notar. — Eu pensei que você só desafiasse guerreiros
honrados para duelos. Não são cães ronin imundos.
— De quem é esse sonho? — Sussurrei para a raposa branca,
hipnotizada pelo que estava acontecendo diante de mim. — Esse é o
sonho de Okame ou de Daisuke?
Ele me lançou um olhar ligeiramente irritado. — Isso
importa? Não tem nada a ver conosco, ou nosso objetivo. Vamos
continuar.
— Não houve nenhum engano. — respondeu o outro, e quando
olhei para trás, não era mais Oni no Mikoto com a máscara de
demônio e olhos frios, apenas Daisuke. Seu cabelo comprido ainda
ondulava e fluía ao redor dele, o luar brilhando ao longo do
comprimento da espada em sua mão. — E eu não vejo nenhum
guerreiro em desgraça na minha frente. Apenas um homem que
perdeu muito e está lutando para encontrar seu caminho.
Um sorriso afetado apareceu em um canto da boca do ronin. —
Não importa como você diga, Taiyo-san. — Ele disse, e embora sua
expressão fosse zombeteira, sua voz estava triste. — Não sou um
samurai. Eu ainda sou ronin, ainda sou um vira-lata selvagem e sem
honra, e nada vai mudar isso.
Daisuke deu um passo à frente, diminuindo a distância entre ele
e o ronin. — Isso é verdade. — disse ele calmamente. — Eu conheci
muitos samurai. Na corte, na capital e nas pontes de todo o país, vi
minha cota de homens ilustres. Sua lealdade ao império é irrefutável,
eles seguem religiosamente os princípios do Bushido, sua honra não
pode ser questionada. Como as pétalas de uma árvore sakura, eles são
impecáveis, perfeitos, irrepreensíveis. E como as pétalas de sakura...
exatamente iguais. Só se pode compor um tanto de poemas sobre as
flores de cerejeira antes que se canse de sua perfeição.
Okame olhou para cima, uma carranca cautelosa, quase
esperançosa, cruzando seu rosto. Daisuke sorriu e se
aproximou; agora, apenas alguns metros separavam os dois
homens. Eu não conseguia respirar, não conseguia me mover ou
desviar o olhar, apesar da crescente impaciência da raposa ao meu
lado.
— Ultimamente... — murmurou Daisuke. — Sinto-me fascinado
pelas violentas tempestades no mar, pela paixão, pela
imprevisibilidade e pelo perigo de tudo isso. E pelas águias que voam
sobre o topo das montanhas, selvagens e livres, sem dívidas a
ninguém. — Ele fez uma pausa, um olhar ligeiramente dolorido
cruzando seu rosto, antes de continuar. — É... uma coisa perigosa,
essa curiosidade. — Ele disse em um tom baixo. — Tenho medo de
que, se estender a mão para a águia, ela me agrida e voe para
longe. Mas eu não consigo me conter. — Ele fechou os últimos metros
entre eles, prendendo Okame contra a grade, seu olhar intenso. — Se
eu ficar com cicatrizes, então que seja.
— Você tem... certeza disso, pavão? — A voz de Okame estava
rouca. Seu corpo magro estava congelado contra os trilhos, como se
temesse que qualquer movimento destruísse o sonho ao redor
deles. — Eu não gostaria de perturbar o rabo de sua família ou trazer
desonra para toda a sua casa.
Em resposta, os longos dedos de Daisuke se ergueram, traçando
a lateral do rosto do ronin. A respiração de Okame engatou e ele
fechou os olhos. Por um momento, o nobre pairou ali, dividido entre
se inclinar e se afastar, enquanto o próprio sonho parecia prender a
respiração.
Houve um rosnado impaciente atrás de mim, a sensação de ser
puxada para trás, embora meu corpo não se movesse. A ponte com os
dois homens desapareceu, arrancada de mim como um pano cobrindo
uma pintura, substituída por outra cena inteiramente diferente. Soltei
um latido consternado e me virei para a raposa branca.
— Ei! O que aconteceu? Volte, quero ver como isso acaba.
— Esse sonhador não é a razão de estarmos aqui. — disse a
raposa branca calmamente, embora sua cauda chicoteasse seus flancos
em irritação. — A noite está ficando curta, pequena raposa, assim
como nosso tempo em Yume-no-Sekai. Você deseja ver o seu assassino
de demônios antes que ele acorde, ou não?
Eu prendi minhas orelhas. Tatsumi, pensei com culpa. Estou
chegando. Não desapareça de mim ainda. — Sinto muito. — Eu disse à
raposa branca. — Sim, estou pronta agora. Leve-me até ele.
Ele acenou com a cabeça e se virou, e nós deslizamos para as
sombras em constante mudança do mundo dos sonhos.

Parte Dois
Capítulo 13
Profecia para um hospedeiro
Suki

Suki estava inquieta. E não apenas porque ela era um fantasma.


Senhor Seigetsu estava meditando novamente, sentado em sua
almofada entre suportes de tochas idênticos, próximo ao lago sob as
árvores sakura. A mesma imagem perfeita, embora Suki não tivesse
mais ideia de onde eles estavam ou o que era real. Tudo em torno
desse homem misterioso de cabelos prateados parecia onírico e
surreal; ainda esta manhã, ela estava viajando em uma bela carruagem
que, pelo que ela poderia dizer, voava com o vento. Não havia cavalos
ou servos carregando-a, e nem Taka nem Senhor Seigetsu pareciam
preocupados com o fato de estarem voando entre as nuvens a
centenas de metros no ar, mas Suki estava tão perturbada que não
conseguia segurar sua forma humana fantasmagórica e passou a
maior parte do passeio como uma bola de luz trêmula no canto.
Quando a carruagem finalmente pousou, estava no mesmo pátio
perfeitamente preparado de antes, embora Suki tivesse ficado aliviada
demais por estar em solo firme novamente para prestar muita atenção
aos arredores. Senhor Seigetsu imediatamente pediu licença para
meditar, com instruções para não o perturbar, e Taka se afastou para
preparar uma refeição, deixando Suki flutuando lá sozinha.
Ela observou Seigetsu-sama por alguns minutos silenciosos, mas
ele estava tão quieto, como uma bela estátua ou uma pintura que não
foi capturada na tela, mas no próprio ar. Nem um sopro de vento
agitava suas roupas ou jogava seus longos cabelos prateados, como se
até mesmo os kami do ar estivessem obedecendo ao seu desejo de não
ser perturbado. Apenas seus olhos piscavam e se moviam sob suas
pálpebras fechadas, como se ele estivesse sonhando ou no meio de um
pesadelo. Resumidamente, Suki se perguntou com o que um homem
como Seigetsu-sama sonhava. Se ele fosse um homem.
— Suki-chan!
A voz de Taka chamou sua atenção, e ela se virou para ver o
pequeno yokai acenando para ela sob o tronco de um pinheiro
retorcido. À deriva, ela viu que Taka tinha enrolado uma esteira de
bambu e colocado um jogo de chá completo e vários pratos de comida
em cima dela. Tofu frito, feijão azuki vermelho e uma travessa de
bolos de arroz mochi coloridos cercavam a bandeja de chá laqueada,
enchendo Suki de uma sensação de saudade. Ela se lembrou da
doçura de uma bola de mochi, do simples prazer de tomar um gole de
chá em uma noite fria de inverno, sentindo o calor penetrar em seus
dedos. Coisas que ela nunca experimentaria novamente.
— Aí está você, Suki-chan. — disse Taka ao se juntar a ele sob o
pinheiro. — Eu não sabia se você ainda comia, então fiz um extra para
o caso. Você pode...? — Ele deu a ela um olhar de expectativa, mas
Suki sorriu tristemente e balançou a cabeça, fazendo-o piscar. — Oh,
que pena. — ele murmurou. — Me perdoe, Suki-chan. Não acho que
gostaria de ser um fantasma. — Ele ergueu seus pauzinhos, escolheu
uma bola de mochi rosa da travessa e a enfiou na boca, mastigando
pensativamente antes de engolir. — Bem, por favor, divirta-se de
qualquer maneira, Suki-chan. Senhor Seigetsu se juntará a nós em
breve. Ele está sempre com fome depois de meditar.
Suki olhou para trás em direção a Seigetsu, notando o brilho
fraco ao redor do homem, antes de se sentar ao lado de Taka. A
inquietação a consumia, como a sensação de estar perdida em um
sonho, a sensação de que o mundo ao seu redor não era totalmente
normal. Claro, ela era uma yurei, então talvez esse estranho mundo de
pesadelo de yokai e carruagens voadoras fosse algo que apenas
fantasmas experimentavam.
Por que estou aqui? Suki se perguntou em uma explosão
ondulante de clareza. Estou fazendo algo errado? Por que eu não mudei?
— Brr. — Taka estremeceu de repente e esfregou os braços. —
Isso é estranho, ficou frio de repente. — Ele murmurou. — Suki-chan,
você sentiu ...?
Ela se virou para encará-lo e Taka estremeceu, então ficou rígido
como um poste de aço. Seu enorme olho se arregalou, vidrado, a
pupila se expandindo até que nada restasse além da escuridão. Aquele
olhar terrivelmente vazio se fixou em Suki, enquanto sua boca se abriu
e uma voz sibilante emergiu.
— Alma perdida. — ele murmurou, e Suki se encolheu, quase
perdendo sua forma humana. — As correntes da saudade não podem
ser desfeitas, a flauta estala na sombra de um deus e o mundo fica
vermelho de sangue. O príncipe de cabelos brancos busca uma batalha
que não pode vencer. Ele vai quebrar a espada do demônio, e seu
cachorro irá segui-lo até a morte.
Aterrorizada, Suki flutuou para trás e sentiu uma sombra cair
sobre ela por trás. Tremendo, ela se virou para olhar os divertidos
olhos dourados de Seigetsu-sama.
— E ela finalmente entrou na história. — Sua voz era uma
carícia, gentil, mas triunfante ao mesmo tempo. — Eu estava me
perguntando se era você. — Ele continuou, enquanto Suki flutuava
em um medo abjeto e confusão. — Se você era realmente a 'alma
perdida' que Taka vislumbrava de vez em quando. — Um canto de
sua boca se curvou em sutil diversão. — Decifrar suas visões é uma
arte em si, que me levou muitos anos para aperfeiçoar, e mesmo
assim, devo trabalhar dentro dos limites da metáfora e da
vagueza. Elas geralmente não são tão literais.
Suki estremeceu. Parte dela queria fugir desse homem e de suas
assustadoras e terríveis previsões do futuro. Afirmar que ela era parte
de algo muito maior, algo que ela não entendia, a apavorava. Ela era
uma empregada simples, e o fantasma de uma empregada ainda por
cima. Ela era insignificante demais para desempenhar um papel em
sua grande história, fosse o que fosse.
Ao mesmo tempo, uma vozinha de curiosidade subiu ao fundo
de sua mente, quebrando o medo e a confusão. Poderia ela, uma
simples criada, ser importante na morte como nunca foi na vida? Foi
por isso que ela demorou?
— Você não precisa temer isso, hitodama. — De repente, Senhor
Seigetsu contornou-a e se ajoelhou no cobertor. Assustada, Suki
observou enquanto ele relaxava e tiritava Taka trêmulo de costas e
colocava a mão na testa. — Todas as almas têm um destino. Alguns
são simplesmente mais brilhantes do que outros. É muito difícil
mudar o destino de alguém, mesmo sabendo disso. Durma, Taka.
Um tremor percorreu o corpo do yokai, antes que ele
relaxasse. Sua boca se abriu e um ronco rouco emergiu entre as presas
afiadas. Seigetsu observou o yokai adormecido por um momento,
antes de se levantar com a fluidez da água e se virar para Suki
novamente.
— O futuro é uma amante muito inconstante. — disse ele. —
Pense nisso como milhões de riachos, correndo uns contra os outros,
se cruzando, formando uma rede infinita de rios. Se você represar um
riacho, ele simplesmente não para. Ele muda de curso e corre para
outro, que também pode transbordar suas margens, interrompendo
assim mais um fluxo. Às vezes, os resultados são insignificantes. Às
vezes, eles são catastróficos. Por muitos anos, cuidei desses riachos,
cuidadosamente os cutuquei na direção em que precisavam ir. Guiei
as almas que precisavam de minha ajuda e removi aqueles que as
impediriam. E agora, estamos chegando ao fim de uma longa partida
de shogi, e todas as peças estão finalmente no lugar. — Seus olhos
dourados pareciam perfurá-la, brilhantes e hipnotizantes. — Eu
preferiria ter todas as peças em minhas mãos, mas sei que não posso
forçá-la a ficar. Então, vou oferecer isso. Eu sei por que você demora,
hitodama. Por que você não pode seguir em frente.
Suki se ergueu com os olhos arregalados. Pensando, é claro, em
Dama Satomi e na morte que deu início a tudo. Seigetsu simplesmente
sorriu.
— Não tem nada a ver com vingança. — Ele continuou, como se
lesse os pensamentos de Suki. — Ou justiça, ou qualquer emoção a
respeito de sua própria morte. Se fosse esse o caso, você teria
desaparecido assim que Dama Satomi deixou o mundo. A resposta
para o motivo de sua demora pode ser encontrada na profecia que
Taka lhe deu esta noite.
Franzindo a testa, Suki pensou de volta, tentando se
lembrar. Sinceramente, ela ficou tão surpresa quando Taka virou
aquele olhar vazio para ela que ela mal ouviu as palavras que ele
disse. Algo sobre correntes e escuridão, e um deus manchando a terra
com sangue...
A flauta estala na sombra de um deus.
Tudo dentro dela ficou muito quieto. Os pensamentos
turbulentos cessaram, as emoções vacilantes se acalmaram. Uma
lembrança veio a ela, tão clara e distinta quanto sangue contra a neve:
o som agudo e doce de uma flauta, e o homem mais bonito de cabelos
claros se virando para sorrir para ela.
O príncipe de cabelos brancos busca uma batalha que não pode vencer.
— Sim. — Seigetsu murmurou, sua voz parecendo vir de uma
grande distância. — Agora você entende. Sua ligação com este mundo
não tinha nada a ver com vingança, ou raiva, ou justiça. Não é a
vingança que a mantém aqui, mas a saudade. Amor. — Ele balançou
sua cabeça. — A mais perigosa das emoções humanas.
Suki estava muito atordoada para tentar responder. Pensando
naquela noite terrível, de repente ela se lembrou de que, pouco antes
de o demônio a despedaçar, ela gritou por Daisuke-sama. Sabendo
que ele não a salvaria, que ele estava tão acima de sua posição que ela
nunca teria passado por sua mente, ela chamou seu nome, seu rosto
era a última coisa que ela tinha imaginado antes de deixar o mundo
dos vivos.
— Eu não invejo você, pequena hitodama. — Seigetsu deu um
passo para trás, dando a ela um olhar de simpatia. — A vingança é
facilmente corrigida. O amor não correspondido é muito mais
difícil. Agora sabemos por que seu destino se enreda com o dele, com
todos eles. A meia-raposa e o matador de demônios se aproximam
cada vez mais do fim, e o destino de milhões de almas os
segue. Incluindo o nobre Taiyo, que jurou proteger a meia-raposa com
sua vida. Embora pareça que seu destino o alcançará muito em breve.
Suki ergueu a cabeça e Seigetsu sorriu severamente. — Você não
ouviu o que foi predito? Ele vai quebrar a espada do demônio, e seu
cachorro irá segui-lo até a morte. — Sua voz se suavizou,
insuportavelmente gentil em sua finalidade. — Taiyo Daisuke está
fadado a morrer em batalha, Suki. Não é certo quando isso vai
acontecer, mas o tempo não está longe. Talvez quando ele morrer,
você pode finalmente seguir em frente, continuar sua jornada para
Meido ou onde quer que sua alma esteja destinada. — Ele encolheu
um ombro magro e elegante. — Ou talvez você permaneça neste reino
para sempre, uma alma inquieta e errante, incapaz de encontrar
paz. Como eu disse antes, a vingança é fácil. Nunca se pode ter certeza
com uma emoção tão perigosa e imprevisível como o amor.
— Não.
Seigetsu ergueu uma sobrancelha ao sussurro estrangulado que
saiu da boca de Suki. Ela o olhou fixamente, a angústia como uma
lâmina ardente e retorcida sob o peito, forçando as palavras a saírem
de seus lábios. — Pode... ser... alterado? — ela sussurrou. Sua voz
estava ofegante, quebrada pelo desuso, mas ela se forçou a
continuar. — Podemos... avisá-lo... de alguma forma?
Seigetsu lançou lhe um olhar longo e nivelado, fazendo com que
cobras fantasmagóricas se contorcessem e se enrolassem na boca do
estômago, antes que um canto de sua boca se curvasse. — O destino é
um amante inconstante. — Ele disse novamente. Sua voz era suave,
como se temesse que o próprio Destino pudesse estar ouvindo. — Ele
tem uma maneira de proteger a si mesmo e aos resultados daqueles
que estão presos em seu fluxo. É preciso saber até onde empurrar,
quanto mudar, para desviar o fluxo do futuro. No entanto, como eu
disse antes, estou muito investido neste jogo para cometer erros e
prefiro ter todas as peças à minha vista, em vez de vagar pelos ventos.
— Ele estendeu a mão e seu sorriso era como a promessa do sol. —
Raposa, demônio, cachorro, sacerdotisa, lâmina. Se um cair agora, o
jogo estará perdido. Vamos ver se não podemos mudar o destino de
seu príncipe de cabelos brancos.
Capítulo 14
Castelo de pesadelos
O Matador de Demônios

Eu estava perdido.
Os corredores do castelo me cercavam, escuros e
abandonados. Sombras aglomeradas ao longo das paredes e pisos
polidos, jogadas para trás por uma lanterna ocasional e fluxo de luar
através das janelas. Um silêncio pesado pairava no ar, quebrado
apenas pelos meus próprios passos quase sem som, como se eu fosse a
única alma viva aqui. Há quanto tempo estive vagando por este
lugar? Eu deveria estar caçando... alguma coisa, mas não conseguia
me lembrar o quê. Mesmo assim, eu precisava completar minha
missão. Eu não poderia retornar ao Clã das Sombras sem terminar
meu objetivo, fosse ele qual fosse.
Virando uma esquina, olhei com desânimo para a estátua do
demônio no final do corredor, sua boca com presas aberta em um
sorriso. Eu havia encontrado essa mesma estátua inúmeras vezes. Não
importa para onde eu virasse ou em que direção eu fosse, eu sempre
parecia me encontrar de volta aqui.
Uma sensação de cansaço tomou conta de mim. Eu estava
andando em círculos, sem objetivo e sem senso de direção. Quanto
tempo ficaria aqui, vagando por este castelo sem fim, vagando sem
rumo por corredores vazios como uma sombra, apenas para terminar
onde havia começado?
Com raiva, eu me sacudi, dissolvendo a desesperança e a fadiga
entorpecente que se instalou profundamente em meus ossos. Eu não
poderia desistir. Eu era o matador de demônios Kage e este era o meu
trabalho. Independentemente dos obstáculos e dificuldades em meu
caminho, mesmo que fossem impossíveis, esperava-se que eu
cumprisse minha missão. O fracasso nunca foi uma opção.
Quando recuei, pronto para virar para outro corredor mais uma
vez, um sussurro de som silenciou atrás de mim, o mais fraco silvo de
passos sobre madeira polida. Eu girei, minha lâmina fora de sua
bainha em um instante, pronta para cortar qualquer monstro que se
aproximasse de mim.
Uma garota estava parada no final do corredor, olhando para
mim com grandes olhos escuros. E por um momento, talvez pela
primeira vez na minha vida, meus músculos congelaram e minha
mente ficou em branco com o choque.
Yu... Yumeko?
A espada em minha mão tremia. Abaixei meu braço, mal
acreditando que ela estava lá. Tive o pensamento fugaz de que isso era
um truque, uma ilusão conjurada pelo castelo aparentemente
malicioso para me mostrar o que eu queria desesperadamente
ver. Mas... era Yumeko. Ela brilhava na escuridão do corredor, vestida
com um manto branco debruado em vermelho, o cabelo brilhante
caindo sobre os ombros. Apesar da impossibilidade de tudo, algo
dentro de mim saltou, como se reconhecesse o que vinha procurando
o tempo todo.
— Tatsumi. — Sua voz era um sussurro, suave com alívio. Ela
deu um passo à frente, e o corredor escuro parecia ondular conforme
ela passava, como a superfície de um lago que foi perturbado. Como
se o castelo fosse apenas uma sombra, um reflexo, e ela era a única
coisa real. Eu não conseguia me mover, só podia assistir enquanto a
garota se aproximava, vendo meu próprio reflexo em seus olhos
escuros.
— Eu encontrei você.
Uma mão se levantou e um arrepio passou por mim quando seus
dedos roçaram suavemente minha bochecha, seu olhar procurando,
como se tivesse certeza de que eu também era real. Quase contra a
minha vontade, meus olhos se fecharam e meu corpo relaxou,
submetendo-se ao seu toque.
— Yokatta. — Ela sussurrou, expressando seu alívio. — Tatsumi,
você está bem. Estou tão feliz. Eu pensei que Hakaimono poderia ter...
Hakaimono?
Um lampejo de apreensão passou por mim com o nome, uma
memória fora de alcance. Por que ela mencionaria Hakaimono? Ela
sabia sobre o demônio na espada? Eu... contei a ela sobre minha
ligação com Kamigoroshi? Tentei pensar, lembrar o que havia
acontecido entre nós, mas meus pensamentos estavam dispersos,
como mariposas voando ao redor de uma luz, e não conseguia me
fixar em nenhum deles.
— Yumeko. — Alcançando, eu peguei sua mão, enrolando meus
dedos em torno dos dela. Sua pele era macia, sua mão leve e delicada
sob a minha palma, e meu estômago apertou. Por um momento, tive
que recuperar o fôlego. — Você precisa sair. — Eu disse a ela
suavemente. — Você não pode estar aqui agora. Há um... — Fiz uma
pausa, ainda incapaz de me lembrar por que tinha vindo, o que eu
deveria estar caçando. — Há algo perigoso perambulando por este
castelo. — Eu terminei. — Eu tenho que encontrar. Eu não posso
deixar você me seguir.
Ela balançou a cabeça. — Não, Tatsumi, me escute. Isto é um
sonho. — Soltando o braço, ela pegou minhas mãos, olhando para
mim. — Você está sonhando agora. Nada disso é real.
Um sonho? Eu fiz uma careta. Não, isso não poderia estar
certo. Mestre Ichiro me enviou aqui para...
Eu vacilei. Não conseguia me lembrar por que estava aqui. Não
me lembrava de uma conversa com Mestre Ichiro, ou de quaisquer
detalhes sobre esta missão. E quanto mais eu pensava sobre isso, mais
improvável parecia. Eu era o matador de demônios Kage. Eu não
esquecia.
— Isso é um sonho. — Insistiu Yumeko. — Pense bem,
Tatsumi. Você se lembra do castelo de Dama Satomi? Nós cinco fomos
lá para encontrar o Mestre Jiro. Você se lembra do que aconteceu?
Mestre Jiro. O nome era familiar, assim como Dama
Satomi. Fechei os olhos, tentando acalmar as memórias que passaram
pela minha cabeça. — Dama Satomi... era uma maga de sangue. — Eu
disse lentamente. — Nós a conhecemos na festa do imperador e a
seguimos através de um espelho até um castelo do outro lado. —
Yumeko apertou minhas mãos, garantindo-me que eu estava certa,
encorajando-me a continuar. — Havia... um oni. — eu continuei,
franzindo a testa enquanto mais pedaços da noite voltavam para
mim. — Yaburama. Eu lutei com ele, e então...
E depois...
O fundo do meu estômago caiu. Minhas mãos tremiam e eu
cambaleei para trás quando a memória me invadiu, encharcando-me
em uma onda de gelo. No momento em que perdi o controle, o uivo
de triunfo do demônio entrou em minha mente. — Hakaimono. — Eu
sussurrei, sentindo o olhar de Yumeko em mim. — Ainda estou...
Entorpecido, encostei-me na parede, enquanto tudo voltava à
tona. Hakaimono estava livre. Eu falhei em mantê-lo contido, e agora
ele estava ameaçando não apenas o Clã das Sombras, mas todo o
império. Meu sangue gelou quando me lembrei de suas ameaças
contra os Kage, a matança que ele já havia causado e a carnificina em
massa que aconteceria se ele não pudesse ser interrompido.
Senti Yumeko se aproximar novamente, uma presença brilhante
e sólida contra a escuridão suspensa. — Tatsumi, ouça. — Ela disse,
enquanto eu olhava para cima e novamente via meu reflexo, sombrio
e angustiado, em seus olhos. — Estamos indo atrás de você. — Ela
continuou. — Não vou deixar Hakaimono vencer. Vamos encontrar
você, prender Hakaimono e forçá-lo a voltar para Kamigoroshi.
— Não. — Minha voz soou estrangulada em meus
ouvidos. Dando um passo à frente, agarrei seus antebraços, fazendo-a
piscar. — Yumeko, se você enfrentar Hakaimono sozinha, você vai
morrer. Todo aquele que o desafiar vai morrer. Você tem que matá-lo.
— Tatsumi...
— Por favor. — A intensidade da minha voz soou estranha,
como se pertencesse a outra pessoa. — Não há muito tempo. —
Continuei. — Leve esta mensagem ao Clã das Sombras, ao imperador
e a qualquer um que quiser ouvir. Hakaimono está livre e formou
uma aliança com Genno, o Mestre dos Demônios.
— Genno? — Seus olhos se arregalaram, indicando que ela
reconheceu o nome. Não duvidei que ela tivesse ouvido falar dele; o
Mestre dos Demônios foi o mago de sangue mais famoso e temido da
história de Iwagoto. Até Yumeko, com sua educação protegida, teria
sabido do homem que quase destruiu o império.
— Mas... Genno está morto. — Yumeko argumentou. — Isso
tudo aconteceu há quatrocentos anos, não é?
— Ele voltou. — Eu disse. — Sua alma foi convocada de Jigoku e
ligada ao reino mortal. Ele tem um exército de demônios e yokai
esperando nas ruínas de seu antigo castelo. A única razão pela qual
ele não atacou o império é porque ele não tem corpo, então ele não
está com toda sua força. Hakaimono pretende consertar isso... dando a
ele o pergaminho do dragão.
O sangue foi drenado de seu rosto. Ela desabou em minhas mãos
e suspeitei que ela poderia ter caído se eu não a estivesse
segurando. — Hakaimono... — ela sussurrou. — Está indo atrás do
pergaminho do dragão?
Eu concordei. — Ele sabe onde fica o templo Pena de Aço. — eu
disse, e ela ficou ainda mais pálida. — Ele está indo para lá agora. Se
você não o impedir, ele vai massacrar todos e levar os pedaços do
pergaminho de volta para o Mestre dos Demônios. Genno já tem um
fragmento da oração. Se ele adquirir os outros e convocar o Dragão, o
império será lançado no caos. Você tem que impedi-lo.
— Como... — Yumeko ainda parecia um pouco
atordoada. Cuidadosamente, eu soltei seus braços, deixando-a ficar de
pé sozinha, e esperei até que ela encontrasse meus olhos novamente.
— Me mate. — Eu disse a ela suavemente. — É a única
maneira. Antes que Hakaimono alcance o pergaminho. Acabe com
minha vida e mande Hakaimono de volta para a espada.
Ela recuou, um olhar de consternação cruzando seu rosto. —
Não. — ela sussurrou. — Eu não vou te matar. Tatsumi, por favor, não
me peça isso. — Ela deu um passo à frente, seu olhar suplicante, e
meu coração apertou dolorosamente no meu peito. — Nós podemos
salvar você. — Ela insistiu. — Apenas nos dê uma chance.
— Você não pode exorcizá-lo. — Fiz um gesto desesperado,
balançando a cabeça. — O Clã das Sombras tentou. Nossos melhores
sacerdotes e majutsushi mais poderosos tentaram exorcizar
Hakaimono no passado. Ele é muito forte. Ninguém jamais conseguiu,
da última vez que tentaram, Hakaimono se libertou e massacrou todos
os presentes. Eu não posso... assistir isso acontecer com você.
Yumeko apertou sua mandíbula, seu olhar desafiador. Eu sabia
que ela iria recusar novamente, pensando que ela poderia me salvar
de Hakaimono, e meu desespero aumentou. Hakaimono já havia
massacrado vários membros do meu clã, e eu não podia fazer nada
para impedir. Eu sabia que seu plano final era limpar os Kage da
existência, e eu teria que assistir, impotente, enquanto ele destruía
todos eles. E se Genno convocasse o Dragão e subisse ao poder, eu
seria responsável pela queda de todo o império. Minha honra se foi,
minha alma contaminada além de toda redenção. Mas a ideia de ela
morrer, de enfrentar o sádico Primeiro Oni apenas para ser morta
pelas minhas próprias mãos, era demais. Ele não iria apenas matá-
la; ele iria torturá-la, fazê-la sofrer, porque ele sabia que isso me
afetaria. E ele nunca me deixaria esquecer.
Hesitei, depois caí de joelhos diante dela e inclinei a cabeça,
ouvindo sua respiração aguda. — Por favor. — Eu disse
suavemente. — Eu vou implorar se eu precisar. Não posso ser o
instrumento que permite que Genno se levante novamente. Não posso
ser o catalisador que causará a destruição do Clã das Sombras. E eu...
— Minha voz vacilou; tive que fazer uma pausa, engolindo o aperto
na garganta antes de continuar. — Não posso vê-lo matar você,
Yumeko. — Sussurrei. — Hakaimono sabe... o quão importante você
é. Ele teria muito prazer em fazer você sofrer. De todas as atrocidades
que ele cometeu, se você morresse por minhas mãos... — Estremeci. —
Prefiro cortar meu estômago do que viver com isso.
Yumeko permaneceu em silêncio. Eu podia sentir o peso de seu
olhar sobre mim, solene e desamparado, talvez percebendo a verdade
de minhas palavras. — Minha vida não vale nada. — Continuei, ainda
olhando para o chão entre nós. — Se minha morte significa acabar
com a ameaça do Primeiro Oni e a segunda vinda do Mestre dos
Demônios, eu a ofereço de bom grado. Mas eu não posso fazer isso
sozinho. — Abaixei-me ainda mais, as pontas dos dedos de uma mão
tocando o chão. — Mate-me, Yumeko. — Eu sussurrei. — Acabe com
minha vida e leve Hakaimono de volta à espada para sempre.
Por alguns segundos, houve silêncio. Em seguida, um farfalhar
suave quando Yumeko se ajoelhou na minha frente, e um momento
depois sua palma fria pressionou contra minha bochecha.
— Eu não vou deixá-lo ter você. — Ela sussurrou com uma voz
feroz. — Sua vida é algo que vale a pena para mim. — Sua outra mão
tocou meu rosto, me fazendo estremecer. — Olhe para mim,
Tatsumi. Realmente olhe para mim e me diga o que você vê.
Arrastei meu olhar para o dela e encontrei um par de olhos
dourados cintilantes. Assustado, recuei um pouco, e o contorno de
Yumeko pareceu borrar por um momento, como se eu a estivesse
vendo através da água ou fumaça densa. A nebulosidade desapareceu
e eu estava olhando para os olhos dourados de uma raposa, orelhas de
ponta preta e cauda espessa destacando-se em minha visão periférica.
Kitsune. Yumeko era kitsune. De alguma forma, eu tinha
esquecido. Sua postura era rígida, como se ela estivesse esperando que
eu recuasse, e me lembrei da noite em que Hakaimono assumiu, ele
zombou alegremente da raposa, dizendo que eu podia ver exatamente
o que ela era agora, e que a desprezava para isso.
Eu não fazia. Eu havia ficado surpreso, é claro, chocado por estar
viajando com uma raposa, uma yokai, desde a noite em que a salvei
dos demônios. Mas mesmo isso empalideceu com o horror e a raiva
que eu sentia por mim mesmo por permitir que Hakaimono se
libertasse. A identidade da garota raposa era muito menos
preocupante do que o demônio possuindo meu corpo. E Yumeko ser
kitsune... Não era tão surpreendente, realmente. Lembrei-me das
vezes em que ela falara com os kamis, todas as ocasiões em que ela
podia ver espíritos e yurei tão facilmente quanto o mundo
mortal. Muitas coisas pequenas, aparentemente insignificantes na
época que não percebi. O fato de ela ser uma raposa, uma yokai,
deveria ter me irritado e enojado, mas Yumeko era... Yumeko. Kitsune
ou humana, ela ainda era a mesma.
Yumeko sorriu, embora fosse um sorriso um pouco triste, como
se ela soubesse que algo entre nós havia se quebrado e nunca poderia
ser recomposto. — Estou pedindo que confie em mim. — disse ela em
voz baixa. — Não como Yumeko, a camponesa, mas como uma
kitsune que jurou que não deixaria o demônio vencer. Hakaimono é
forte, mas a força não vence batalhas automaticamente, e existem
alguns truques que ele não viu. Eu não estou desistindo. Eu só preciso
que você espere por mim um pouco mais.
— O que você está planejando fazer? — Eu sussurrei.
Por um momento, ela pareceu perturbada, quase
envergonhada. Seu olhar caiu, e a ponta de sua cauda bateu em um
ritmo agitado contra o chão. — Eu preciso de sua permissão, Tatsumi.
— Ela disse, para minha confusão. — Todo mundo me disse que um
exorcismo normal não funciona no Primeiro Oni, que ele é muito forte
para qualquer coisa de fora. Então, quando chegarmos a Hakaimono,
pretendo enfrentá-lo... de dentro.
Demorou apenas um momento para perceber o que ela estava
dizendo. — Kitsune-tsuki. — Eu murmurei, e ela acenou com a
cabeça, estremecendo. — Yumeko. — Eu disse gentilmente. —
Hakaimono não será mais fácil de derrotar dentro de mim. Na
verdade, sua alma será ainda mais poderosa.
— Eu sei. — Ela sussurrou, e suas orelhas se achataram de
medo. — Mas eu vou fazer isso. Eu só... quero que você saiba que
estou indo, Tatsumi. E que lutarei por você, o mais forte que
puder. Vou libertar sua alma de Hakaimono, de uma forma ou de
outra.
Meu peito estava apertado. Ninguém em meus dezessete anos de
existência se importou tanto em tentar me salvar. Eu não era
nada; uma arma dos Kage, treinado para matar e obedecer. Se eu
morresse em uma missão, a única perda para o Clã das Sombras era
que eles teriam que encontrar um novo matador de
demônios. Ninguém se lembraria de mim. Ninguém lamentaria
minha morte. Dar minha vida a serviço do clã era uma honra, e o
preço do fracasso era a morte. Sempre foi assim.
Olhar para o rosto feroz e determinado de Yumeko, ver a
promessa queimando em seus olhos, fez meu estômago revirar com
emoções que eu não conseguia nem identificar. Que essa garota
enfrentaria um senhor demônio, o oni mais forte de Jigoku, para
salvar a alma sem valor e contaminada de um assassino... — E se você
não puder expulsá-lo? — Eu perguntei. — Se Hakaimono corre o risco
de roubar o pergaminho e matar todos que estiverem entre ele e seu
objetivo?
Seus olhos se fecharam. — Se não houver outra maneira. — ela
sussurrou, e sua voz estava um pouco embargada. — Se eu não puder
pará-lo, então eu... eu honrarei seu pedido, Tatsumi. Se eu devo... Vou
acabar com sua vida, e a de Hakaimono. O Primeiro Oni não alcançará
o pergaminho, eu prometo.
Baixei a cabeça, fechando as mãos nos joelhos. — Arigatou. —
Murmurei. — Se foi isso que você decidiu, Yumeko, então vou esperar
por você. E... sinto muito.
— Desculpe?
— Pelo que você vai ter que enfrentar para me alcançar.
— Eu não estou com medo. — Ela se aproximou, colocando as
mãos sobre as minhas. Eu olhei para cima e encontrei seu rosto a uma
distância de um fôlego, olhos dourados brilhando quando
encontraram os meus. — Se isso significa que vou ver você de novo,
vou lutar contra uma dúzia de Hakaimonos. — Ela piscou, e em cima
de sua cabeça, suas orelhas tremeram nervosamente. — Há apenas
um, certo?
Meu coração batia forte e eu respirei lentamente para acalmá-
lo. — Até onde sei.
— Oh, que bom. — Yumeko sussurrou, e caiu um pouco de
alívio. — Porque seria ainda mais assustador, agora que penso nisso.
Um tremor passou por mim. Espontaneamente, minha mão se
levantou e afastou o cabelo de sua bochecha, meus dedos percorrendo
sua pele. Yumeko não se moveu, segurando meu olhar, e a confiança
que vi naqueles olhos de raposa dourada fez minha respiração
parar. Ela sorriu para mim, apenas a menor curva de seus lábios,
respondendo à minha pergunta não dita, e o que restava da minha
determinação se desfez em pó. Quase sem pensar, inclinei-me para a
frente.
Mas assim que me movi, a garota tremeluziu como uma vela
apanhada por uma forte brisa. Franzindo a testa, recuei, vendo-a
tremer novamente, sua presença desapareceu e reapareceu em um
piscar. — Yumeko? O que está acontecendo?
Yumeko parecia em partes iguais abatida e arrependida. —
Gomen, Tatsumi. — Ela disse, fazendo uma careta enquanto piscava
mais uma vez. — Eu disse que estávamos no mundo dos sonhos,
certo? Sinto muito, mas acho que estou prestes a acordar...
E ela se foi.
Ajoelhei-me, sozinho, nos corredores de um castelo abandonado,
olhando para o local onde uma garota kitsune estivera momentos
antes. Eu podia sentir que estava desvanecendo também, a realidade
ao meu redor se desgastando quando minha consciência começou a se
agitar. O mundo já parecia mais escuro, mais frio, sem a presença da
alegre raposa. Eu me perguntei se eu realmente a veria novamente, se
ela iria me encontrar como prometeu, antes que eu ficasse com raiva
de minha própria fraqueza. Seria melhor para todos se ela ficasse
longe, longe de mim e do demônio que possui meu corpo. Yumeko
era corajosa, engenhosa e tinha muitos truques kitsune aos quais
podia recorrer, mas nunca enfrentou um inimigo tão terrível como
Hakaimono. Eu preferia que os Kage nos rastreassem e matassem nós
dois do que assistir Hakaimono rasgar a garota kitsune ao meio e rir
de mim por ter ousado ter esperança.
À minha volta, o castelo ficava menos substancial, menos real, a
cada segundo. Eu sabia que poderia abrir meus olhos a qualquer hora
que eu desejasse, mas por vários segundos, eu não me movi, querendo
que o sonho durasse o máximo que pudesse.
Para mim, o pesadelo continuaria assim que eu acordasse.
Capítulo 15
Chá com meu inimigo
Yumeko

— Hakaimono está indo atrás do pergaminho do dragão.


O silêncio seguiu meu anúncio, quatro pares de olhos me
encarando com alarme e descrença. Por insistência minha, todos nós
nos reunimos no quarto do Mestre Jiro, com o ofuda de Reika
firmemente do outro lado das portas para evitar a escuta. Ainda era
muito cedo; o castelo ainda estava escuro e Okame tinha congelado
com a boca aberta no meio do amanhecer, Daisuke parecia sombrio e
as bochechas de Reika estavam mortalmente pálidas. Mestre Jiro
estava sentado imóvel no canto, flanqueado por Chu e Ko. Eu vi seus
dedos enrugados apertarem em torno de seu cajado.
— Você tem certeza disso? — Reika foi a primeira a falar, sua
voz combinando com a expressão de descrença horrorizada em seu
rosto. — Como você sabe que o Primeiro Oni está indo atrás do
pergaminho do Dragão?
— Eu tive um sonho. — Diante de seus olhares incrédulos, me
apressei. — Eu fui para Yume-no-Sekai, o reino dos sonhos, e eu vi...
— Meu rosto esquentou, lembrando dos outros incidentes que
aconteceram enquanto eu estava com o kitsune branco no reino dos
sonhos. — Bem, Tatsumi estava lá também. — Eu continuei. — Ele me
disse que Hakaimono pretendia procurar o pergaminho do Dragão e
que tínhamos que detê-lo antes que ele pudesse alcançá-lo.
— O matador de demônios encontrou você... em um sonho? —
Daisuke disse lentamente. Ele e Okame sentaram lado a lado, eu
percebi de repente, seus joelhos quase se tocando. Nenhum dos dois
pareceu notar a proximidade, mas talvez eu estivesse vendo muito
nisso. — Você falou com Tatsumi-san diretamente?
Eu concordei. — Eu sei que parece ridículo, mas eu realmente
falei com ele.
— Mas... demônios não têm uso para o pergaminho do dragão.
— Reika argumentou. — Eles não podem convocar o Precursor ou
usar o Desejo. Apenas uma alma mortal pode fazer isso. Por que
Hakaimono de repente iria querer o pergaminho do dragão?
— Não é para ele. — Eu disse a ela. — É para Genno, o Mestre
dos Demônios.
Okame engasgou com sua jarra de saquê. Tossindo, ele se
curvou, tentando recuperar o fôlego, enquanto o resto de nós olhava
em leve alarme. — Desculpe. — Ele engasgou, sentando-se
novamente. Lágrimas escorreram pelo seu rosto quando seu olhar
vermelho e turvo encontrou o meu. — Muito inteligente, Yumeko-
chan. — Ele me disse. — Você quase me enganou. Pelo menos agora
sabemos que foi apenas um sonho.
— Estou falando sério, Okame-san. — Eu fiz uma careta para o
ronin, prendendo minhas orelhas. — O Mestre dos Demônios voltou e
mandou Hakaimono buscar o pergaminho do Dragão. Ele está a
caminho do templo Pena de Aço agora mesmo.
— Genno. — Okame largou a jarra de saquê e me lançou um
olhar duvidoso. — O cara dos pergaminhos da história que levantou
um exército de demônios e horrores mortos-vivos para derrubar o
império? Cujas façanhas foram tão hediondas que inspiraram o
festival Noite dos Oni com um desfile de 'monstros' fugindo da
cidade? Esse Genno?
— Há apenas um Mestre dos Demônios, ronin. — Reika
retrucou. — A menos que você possa pensar em um mago de sangue
diferente com um exército de mortos-vivos que quase destruiu o
império, acredito que estamos falando sobre a mesma pessoa.
— A mesma pessoa em livros, poemas e teatro Kabuki. —
Okame franziu a testa para a donzela do santuário. — Mitos e lendas
tendem a ficar maiores e mais exagerados quanto mais duram. O
verdadeiro Mestre dos Demônios não morreu há mais de meio século?
— Quatrocentos anos atrás. — Isto de Mestre Jiro, seu cachimbo
segurado pensativamente no queixo, Chu e Ko ao seu lado. — E,
infelizmente, a lenda do Mestre dos Demônios é uma comparação
pálida com a coisa real. Todas as histórias se concentram mais nas
façanhas dos heróis que se opuseram a ele, do que no próprio
homem. O império adora contos de honra e sacrifício, bravos
guerreiros lutando contra o impossível e triunfando no final,
geralmente dando suas vidas pela causa. Como a história da
resistência final do General Katsutomo no Vale dos Espíritos.
— Um conto comovente e fascinante. — Interrompeu Daisuke.
— A batalha de Tani Hitokage é uma lenda, um conto emocionante e
sangrento para o teatro Kabuki, do qual a tropa da Dança Silken na
cidade de Seiryu deu uma atuação exemplar no verão passado. — Ele
deu um pequeno suspiro, parecendo melancólico por um
momento. — Ah, Mizu Subato, seu retrato da morte nobre de
Katsutomo poderia fazer até uma pedra chorar.
— Sim. — Mestre Jiro disse, parecendo menos impressionado. —
Como você pode ver, o império adora a história de um herói trágico, e
os contos em torno do Mestre dos Demônios estão cheios deles. No
entanto, a verdade sobre a ascensão de Genno e a derrota final é muito
mais sombria. O império quase caiu. O Mestre dos Demônios e seu
exército marcharam direto pela capital até o palácio Imperial
praticamente sem oposição, massacrando e queimando tudo em seu
caminho.
— Onde estava todo mundo? — Eu me perguntei. — O resto dos
clãs, quero dizer? Eu acho que um enorme exército de demônios
atacando a capital seria motivo de preocupação.
— Todos estavam lutando entre si. — respondeu Reika. —
Ninguém consegue se lembrar como tudo começou, mas os Hino
declararam guerra contra os Mizu por algum desprezo imaginário, o
Clã da Terra estava lutando contra os clãs das Sombras e do Vento, o
Clã da Lua estava fazendo suas próprias coisas em suas ilhas como
normalmente e não se envolveram. Ninguém percebeu o perigo que
Genno representava até que fosse tarde demais.
— Sim. — Acrescentou Daisuke solenemente. — No dia em que
o Mestre dos Demônios marchou sobre a capital, os Taiyo ficaram
sozinhos, um único carvalho frente ao tsunami.
— Quatrocentos anos atrás. — Okame repetiu. — E o
império quase caiu, mas se recuperou. Os outros clãs tiraram suas
cabeças de suas bundas, se uniram e marcharam sobre a capital para
recuperá-la. Segundo as histórias, Genno foi derrotado, executado e
seus restos mortais estão enterrados em alguma tumba secreta e
remota. É difícil ameaçar o império quando você é uma pilha de ossos.
— A menos... — Reika acrescentou. — Que alguém esteja
tentado a reanimá-lo usando um artefato antigo e poderoso que
concederá um único desejo.
— Misericordiosa Kami. — suspirou Mestre Jiro. — Eu ouvi falar
de seitas, cabalas, de magos de sangue, que adoram o Mestre dos
Demônios como um deus caído. Cujas mentes foram corrompidas
pelo poder de Jigoku, então não são mais humanas. Que desprezam o
império e todas as almas honradas dentro dele, e veriam Genno se
erguer novamente para trazer o caos e as trevas para a terra. Se eles
puserem as mãos no pergaminho do dragão, se eles usaram o desejo
para trazer Genno de volta à vida...
— Eles não precisam. — Eu disse. — O Mestre dos Demônios já
está aqui.
Todos pararam e olharam para mim novamente. — Hakaimono
não está recuperando o pergaminho para um culto de magos de
sangue. — Eu disse. — Ele já fez um acordo com o Mestre dos
Demônios, ou seu fantasma, eu suponho, se ele fosse ao templo Pena
de Aço e recuperasse os pedaços do pergaminho, Genno quebraria a
maldição que o liga a Kamigoroshi.
— Jinkei, preserve-nos. — Sussurrou Reika, ficando muito
pálida. — Isso fica cada vez pior. Um Hakaimono libertado e um
Mestre dos Demônios de volta? A terra não vai sobreviver. — Seu
olhar se aguçou, me cortando. — Como você sabe disso? — ela exigiu,
repentinamente duvidosa novamente.
— Tatsumi me contou.
— Nos seus sonhos.
— Sim.
— Yumeko... — A donzela do santuário parou por um momento,
então suspirou. — Os sonhos são importantes, eu entendo isso
perfeitamente. — Ela começou. — Eles podem ser visões, avisos,
presságios do futuro. Mas às vezes, eles podem ser apenas sonhos. Eu
sei que você está desesperada para ajudar Kage Tatsumi, mas sua
visão pode não ser o que você pensa. As almas que podem viajar
conscientemente através de Yume-no-Sekai são poucas e distantes
entre si. Tem certeza de que esta não é sua preocupação e... outros
sentimentos pelo matador de demônios vindo à tona?
— Estou muito certa. — disse eu, ignorando deliberadamente a
última pergunta. — Eu caminhei por Yume-no-Sekai e encontrei
Tatsumi, que me disse que Hakaimono e o Mestre dos Demônios
haviam feito um acordo. Tatsumi disse que Hakaimono estava indo
para o templo Pena de Aço para pegar o pergaminho para o Mestre
dos Demônios, e que tínhamos que detê-lo. — Não importa o custo,
mesmo que tenhamos que matá-lo para impedir Hakaimono. Meu estômago
se apertou, lembrando o olhar nos olhos de Tatsumi, o desespero
silencioso enquanto ele implorava para que eu acabasse com sua
vida. Eu cerrei minha mandíbula. Não, não vou deixar isso acontecer,
prometi. Não vou perder Tatsumi para Hakaimono e não vou deixar o
Primeiro Oni vencer. Custe o que custar, vou trazê-lo de volta.
Reika suspirou, claramente incerta, então olhou para o sacerdote
mais velho no canto. — Mestre Jiro? O que deveríamos fazer?
O sacerdote ficou em silêncio por vários segundos.
— Isso não muda nada. — disse ele por fim. — Na verdade,
confirma a importância da nossa missão. Devemos alcançar o templo
Pena de Aço antes que Hakaimono o faça. Devemos derrotar o
demônio e levá-lo de volta a Kamigoroshi ou, se isso falhar, destruí-lo
e ao seu hospedeiro completamente. E devemos proteger as peças do
pergaminho a todo custo. Sob nenhuma circunstância podemos
permitir que Hakaimono os entregue ao Mestre dos Demônios.
— Então, temos que chegar ao templo Pena de Aço. — Okame
disse, franzindo a testa. — Aquele supostamente escondido e perdido
por centenas de anos. Parece fácil. Hum... onde estava mesmo?
— A parte norte das Montanhas da Espinha do Dragão. —
Mestre Jiro disse, soando como se estivesse citando a passagem de um
pergaminho de história. — Procure o lugar onde os kami da montanha se
reúnem e olhe para os corvos que apontarão o caminho. — Ele fez uma
pausa, com a sobrancelha ligeiramente franzida, antes de balançar a
cabeça. — Não é a mais clara das direções, eu garanto, mas é o que
devemos seguir.
— Vai ser uma longa caminhada. — Okame suspirou. — A
Espinha do Dragão separa as famílias Tsuchi e Mizu, e a parte norte
da cordilheira se estende até o território do Clã do Vento. Que, ao
contrário, está do outro lado do império. A menos que Hakaimono
esteja com uma perna quebrada ou esteja do lado de cá de Iwagoto
conosco, não vejo como vamos chegar primeiro lá.
— O Caminho das Sombras. — Eu disse, fazendo-o
estremecer. — É o caminho mais rápido e Dama Hanshou já nos deu
permissão para usá-lo. Devemos encontrar Naganori-san e fazê-lo
abrir o Caminho para nós.
Durante tudo isso, Daisuke ficou estranhamente quieto. Agora,
enquanto nos preparávamos para sair do quarto, ele contraiu o
maxilar e se levantou graciosamente do tapete.
— Perdoe-me. — disse o nobre, sua voz apologética, mas
firme. — Mas, infelizmente, não posso ir com vocês desta vez.
Eu pisquei para ele em choque. — Por que, Daisuke-san?
— Eu sou um Taiyo. — Ele olhou para todos nós, solene e
orgulhoso. — Meu dever é para com o imperador, minha família e
meu clã. Qualquer coisa que os coloque em perigo é uma afronta para
mim também. O Mestre dos Demônios é uma séria ameaça ao
império. A honra exige que eu retorne e informe a Sua Alteza o que
sei.
— Os Kage têm mensageiros, Taiyo-san. — Okame disse
imediatamente. — Mande uma missiva com um
deles. Aparentemente, eles são muito hábeis em viajar pelo país em
um piscar de olhos.
Mas Daisuke balançou a cabeça. — Sinto muito, Okame-san. Mas
eu não confiaria em algo tão importante com um clã que recentemente
tentou nos matar. Qualquer mensagem ou nota que eu enviar pode ser
vista por olhos errados, e não estou disposto a arriscar isso. Além
disso, o Clã das Sombras ganhou a reputação de ser... indigno de
confiança, nas terras do Sol. Melhor que eu entregue esta mensagem
pessoalmente. Minha família vai me ouvir.
— Você nos deixaria. — Reika exigiu, olhando furiosamente para
o nobre. — Sabendo o que está em jogo. Sabendo que devemos chegar
a Hakaimono antes que ele pegue o pergaminho.
— Sinto muito. — Repetiu Daisuke, parecendo arrependido, mas
firme. — Mas eu tomei minha decisão. Devo retornar à cidade
imperial para avisar o imperador. Yumeko-san. — Ele se curvou em
minha direção. — Foi uma honra. Desejo-lhe boa sorte em sua jornada
e realmente espero que você possa salvar Tatsumi-san. — Ele se virou,
deslizando a porta para o corredor. — Sayonara. Espero que algum
dia nossos caminhos se cruzem novamente.
— Nunca pensei que você fosse um covarde, Taiyo-san.
A voz de Okame estava zombando, e o silêncio frágil que se
seguiu foi algo tangível, fazendo os pelos da parte de trás do meu
braço se arrepiarem. Daisuke ficou muito quieto, de costas para nós,
mas vi sua mão pousar no punho da espada. Reika trocou um olhar
comigo, e então lentamente deslizou de volta contra a parede,
puxando Mestre Jiro e os dois cães com ela. Okame parecia alheio à
tensão, parado no centro do quarto com os braços cruzados, um olhar
furioso no rosto.
— Okame-san. — A voz de Daisuke tremia, mas era difícil dizer
se era de raiva ou qualquer outra coisa. — Eu pediria que você
retirasse isso.
O olhar do ronin se transformou em um sorriso malicioso. — Por
que eu deveria?
— Porque a honra exige que eu te desafie para um duelo por tal
insulto, ou que eu te corte aqui mesmo. E não tenho desejo de fazer
isso. Então, por favor... — Daisuke continuou sem se virar, mas seus
olhos se fecharam. — Retire sua declaração. Peça desculpas, para que
possamos esquecer isso e seguir em frente.
— Oh? Não sou digno de um duelo, então? — Okame deu um
passo à frente, seu sorriso desafiador. — Eu não sou o assassino de
demônios Kage, não seria um grande desafio. Ou é porque sou um
ronin? Não quer desperdiçar suas habilidades com os indignos, é isso?
— Eu não quero te matar, Okame-san! — Daisuke finalmente
girou, encarando o ronin, embora sua expressão fosse conflitante. —
Quantas vezes devo dizer antes de você acreditar em mim, não me
importo que você seja ronin, que você não seja mais um samurai. Você
é um bravo guerreiro. Eu vi você ficar conosco contra monstros,
demônios, assassinos e fantasmas vingativos. Você se tornou um
irmão de armas e eu o considero um amigo digno. Não quero desafiá-
lo, porque de longe prefiro você que viva, mas... — Ele suspirou,
fechando os olhos brevemente, como se estivesse sofrendo. — Eu não
vou negar a você um duelo. Eu darei a você uma morte honrosa, se é
isso que você deseja.
— Uma vez você desafiou Kage-san para um duelo. — Okame
disse, fazendo Daisuke franzir a testa em confusão. Reika também
franziu a testa, incerta para onde o ronin estava indo com isso. —
Lembra-se disso? Seria seu maior duelo, aquele que testaria suas
habilidades ao limite.
— Sim. — disse Daisuke lentamente. — Eu lembro. Mas, mesmo
antes de meus próprios desejos, meu dever para com o império vem
em primeiro lugar. Eu realmente lamento que nunca possa cruzar as
lâminas com Kage Tatsumi.
— Então, responda-me isso, nobre, e responda com sinceridade.
— Okame deu um passo à frente, encarando o nobre. — Você acha
que eu teria alguma chance contra Kage Tatsumi se eu o desafiasse
naquela ponte?
Surpreso, Daisuke franziu a testa para o ronin, pura
perplexidade cruzando suas feições. — Se... você fosse duelar com
Kage-san? — ele repetiu.
— Sim. — Okame cruzou os braços. — Se eu ficasse no caminho
de Kage Tatsumi e exigisse que ele lutasse comigo na ponte, o que
você acha que aconteceria?
— Okame-san... — Daisuke fez uma pausa, como se reunisse
seus pensamentos. — Você é... um guerreiro apaixonado. — ele
começou. — E sua habilidade com o arco é tal que nunca tinha visto
antes.
— Oh, pare com a bajulação, pavão. — Okame bufou,
balançando a cabeça. — Nós dois sabemos a resposta. Ele iria me
destruir. Se eu desafiasse Kage Tatsumi naquela ponte, eu nem teria
tempo de piscar antes que minha cabeça estivesse no rio.
Daisuke franziu a testa, mas não negou. Avançando, Okame
ficou a poucos metros do nobre Taiyo e se inclinou, seu olhar
intenso. Sua voz era baixa enquanto ele rosnava. — Então, o que te faz
pensar que serei capaz de proteger Yumeko-chan quando
enfrentarmos Hakaimono?
Daisuke deu um passo para trás, os olhos arregalados. Okame
não se moveu, continuando a encarar o nobre com duros olhos
negros. — Você viu a luta do matador de demônios. — Ele continuou,
sua voz severa. — Eu não teria chance. Sem Tatsumi, você é nossa
espada, Taiyo-san. Você é o único que pode ficar cara a cara com o
matador de demônios Kage e não ser cortado em pedaços na primeira
passagem. Posso ficar a cem metros de distância e irritá-lo com flechas
por um tempo, mas assim que ele diminuir a distância... estou
morto. E então Yumeko-chan, Reika e o sacerdote serão deixados para
enfrentar Hakaimono... sozinhos.
— Não nos dispense tão casualmente, ronin. — Reika
interrompeu, parecendo irritada. — Não estamos totalmente
indefesos. Chu e Ko lutarão até a morte, e Mestre Jiro e eu temos o
poder dos kami ao alcance de nossos dedos. Mesmo contra um
demônio como Hakaimono, nós daríamos a ele uma luta inesquecível.
— Eu sei. — disse Okame sem olhar para ela. Seu olhar ainda
estava cravado em Daisuke, que também não havia desviado o
olhar. — Eu sei que todos nós lutaríamos muito, e que estamos todos
prontos para dar nossas vidas para deter o matador de
demônios. Mas, pelo que ouvi de Hakaimono, será necessário que
cada um de nós trabalhemos juntos para ter alguma esperança de
derrubá-lo. Taiyo-san, se você sair agora... — Okame fez uma pausa,
pensando, então balançou a cabeça. — Não consigo nos ver
vencendo. Não sou o tipo de guerreiro que pode enfrentar um oni
com esse poder. Se você retornar à cidade Imperial, Hakaimono nos
matará. E então ele levará os pedaços do pergaminho para o Mestre
dos Demônios, que estará livre para invocar o Dragão. E o império
cairá.
Daisuke ficou em silêncio, seus traços inexpressivos. Okame
sustentou seu olhar, implacável. — Eu sei que sou um cão ronin sem
honra. — Ele disse calmamente. — Eu sei que perdi todo o conceito de
dever, obrigação e sacrifício. O imperador deve ser avisado que
Hakaimono está livre e o Mestre dos Demônios voltou, eu sei disso,
mas... agora, precisamos mais de você, Taiyo-san. Se você retornar à
cidade imperial e não conseguirmos impedir Hakaimono, talvez você
não tenha um império para proteger por muito mais tempo. Então,
estou pedindo a você, como amigo e irmão de armas, você nos ajudará
a salvar Kage Tatsumi? — Um canto de sua boca se contraiu, a
sugestão de um sorriso cruzando seu rosto. — Ou você ainda precisa
que eu caia de joelhos e humildemente implore seu perdão por
insinuar que você é um covarde? Normalmente não imploro por nada,
mas vou me prostrar agora, se for preciso.
— Okame-san... — Daisuke fechou os olhos. — Você...
— Desculpe. — Uma batida suave veio da porta, um momento
antes de a serva abri-la, olhando para nós de joelhos. — Perdoe a
interrupção. — disse ela, com um olhar arregalado para Daisuke e o
ronin, que se encaravam a poucos metros de distância. — Mas tenho
uma mensagem importante do Senhor Iesada. Antes de partir, ele
deseja que Dama Yumeko e o resto de seus companheiros se juntem a
ele para tomar chá na ala de outono do castelo. Se vocês me seguirem,
eu vou leva-los lá.
— Dê-nos um momento. — Reika disse brevemente. A
empregada piscou, surpresa ou ofendida, mas fechou a porta mais
uma vez, deixando-nos sozinhos. Eu enruguei meu nariz quando
Reika imediatamente se levantou, caminhou até a porta e pressionou
outro ofuda na moldura, silenciando o quarto novamente.
— Por que o Senhor Iesada quer nos ver? — Eu me perguntei. —
Ele tem sido terrivelmente rude, sem mencionar que seu shinobi
tentou nos matar na cidade. Você acha que ele deseja se desculpar? É
uma cerimônia do chá do tipo 'Sinto muito ter tentado assassiná-los'?
Reika bufou tão alto que os cães ergueram a cabeça e cutucaram
as orelhas para ela. — Certamente não. — disse ela, revirando os
olhos.
— Bem, não temos que comparecer, não é? — Eu perguntei. —
Podemos escapar furtivamente das terras Kage através do Caminho, e
o Senhor Iesada não saberia disso.
Daisuke se virou então, sua expressão levemente horrorizada ao
me encarar. — Isso seria um insulto enorme, Yumeko-san. — disse
ele. — Iesada-sama é um senhor dos Kage e nos dá uma grande
honra. Ignorá-lo seria imperdoavelmente rude. O próprio Clã das
Sombras pode se ofender com tal desrespeito.
— Porque você se importa com isso, Taiyo? — Okame exigiu
asperamente. — Eu pensei que você estava voltando para as terras do
Sol. Não se preocupe com o resto de nós, tenho certeza de que
podemos nos complicar de alguma forma.
Os ombros de Daisuke caíram e ele abaixou a cabeça com um
suspiro.
— Você me envergonha, Okame-san. — A voz do nobre era
suave. — Não conheço nenhum samurai que admitisse que um
oponente era forte demais para ele, mas você, um ronin, põe de lado
sua própria honra, seu próprio orgulho, para me fazer ver a
verdade. Você está absolutamente correto, avisar que o imperador não
realizará nada se o Mestre dos Demônios conseguir convocar o
Dragão. Meu lugar é aqui, com aqueles que jurei ajudar.
— Yumeko-san. — Ele continuou, levantando-se para me
encarar, sua expressão era intensa. — Eu devo implorar seu perdão,
também. Se você ainda me quer, deixe-me fazer um novo
juramento. Juro proteger você e o pergaminho do Dragão, ser a lâmina
que fica entre você e seus inimigos, enquanto eu tiver fôlego para
continuar lutando, ou até que o Precursor tenha passado do mundo
mais uma vez. Deixe-me acompanhá-la até lá, e enfrentar Hakaimono
com firmeza. Pela minha honra, ele não vai tocar em você enquanto eu
ainda respirar. Esse é meu novo juramento. Se você aceitar.
Eu concordei. — Arigatou, Daisuke-san.
— Bom. — Reika retrucou. — Então, se terminamos de fazer
juramentos e de sermos dramáticos com honra, talvez possamos ir
embora? Hakaimono não está indo mais longe do templo Pena de
Aço. E agora, temos que decidir se vamos assistir à cerimônia do chá
do Senhor Iesada. Embora eu possa estar ficando ligeiramente doente,
porque acho que concordo com o plano de Yumeko. O que nos
importa se insultar os Kage, se isso impede a vinda do Mestre dos
Demônios e do Dragão?
— Perdoe-me, Reika-san. — disse Daisuke, dando um passo
mais para dentro do quarto. — Mas insultar o Senhor Iesada não é o
único problema em questão. Às vezes, sentar-se de frente para o
inimigo é a maneira mais rápida de discernir seus segredos. — Ele
baixou a voz, embora o ofuda de Reika ainda estivesse agarrado à
porta, mantendo nossas conversas em segredo. — Assim que
deixarmos as terras dos Kage, devemos chegar ao templo Pena de Aço
o mais rápido possível para avisá-los sobre Hakaimono e nos preparar
para a chegada do demônio. Se alguém no Clã das Sombras pretende
nos impedir, devemos estar prontos para eles. O tático sábio mantém
suas intenções fechadas, fala suavemente e abre seu inimigo sem que
o outro perceba. Eu acredito que devemos assistir à cerimônia do
Senhor Iesada. Talvez possamos descobrir algo que não sabíamos
antes.
— Eu tenho que concordar. — Mestre Jiro falou, nos
surpreendendo. — Alguém no Clã das Sombras deseja nos
impedir. Devemos descobrir tudo o que pudermos para não sermos
pegos de surpresa. No entanto... — ele continuou, e colocou um
punho sobre a boca enquanto sua voz ficava rouca. — Eu acredito que
vou deixar vocês, jovens, assistirem à cerimônia. Por favor, diga ao
Senhor Iesada que não estou bem e enviem minhas desculpas. Vou
ficar aqui com Chu e Ko, certificar-me de que eles não se envolvam
em problemas.
Reika deu a seu mestre um olhar divertido e desconfiado. —
Como você pode ser um sacerdote e não gostar de chá? — ela
perguntou. Mestre Jiro fungou, puxando um cachimbo de suas vestes.
— Quando você fica velho, Reika-chan, tem permissão para
certas excentricidades. Não gostar de chá, ou qualquer coisa a ver com
isso, é uma delas.
Okame gemeu. — Ugh, eu odeio cerimônias de chá. Elas são tão
incrivelmente chatas. — Ele suspirou. — Vocês, tipos tagarelas,
podem falar. Vou apenas sentar e tentar me lembrar de todos os
passos que tenho que dar antes de realmente poder beber o
chá. Pisquem duas vezes se estiver prestes a fazer algo ofensivo. Eu
não gostaria de ter uma xícara de chá errada e trazer tanta desonra
para nosso nobre perfeito, que ele terá que cair sobre sua própria
espada de vergonha.
— Eu certamente não cairia sobre minha espada. — disse
Daisuke, lançando um olhar irônico para o ronin. — Isso implica que
tropecei e caí escada abaixo, empalando-me no fundo como um
búfalo-marinho sem graça. Eu me ajoelharia em um travesseiro e
realizaria o ritual com honra e precisão, como todo nobre samurai.
— Eu nunca fui a uma cerimônia do chá. — Pensei enquanto
todos nós nos levantávamos para sair do quarto. — Jin e Mestre Isao
costumavam recebê-las ocasionalmente, mas Denga disse que eu
estava proibida de comparecer até que ele tivesse certeza de que eu
não iria roubar todos os doces para mais tarde ou fazer o bule dançar
pelo cômodo. — Eu funguei. — Eu só fiz a coisa do bule duas
vezes. Denga-san nunca me deixava esquecer de nada.
Reika estremeceu e deu a mim e Okame um olhar resignado. —
Por que tenho a sensação de que isso não vai correr bem?

Okame estava certo. A cerimônia do chá foi incrivelmente


enfadonha. E longa. Pensei que iríamos assistir à reunião do Senhor
Iesada, tomar uma xícara de chá e depois pedir licença
educadamente. Mas a cerimônia propriamente dita começava pela
manhã e continuava no início da tarde. Fomos escoltados até um salão
de chá designado, onde o Senhor Iesada esperava por nós, e se
ajoelhou em travesseiros enquanto observávamos o mestre do chá
trazer os utensílios para o salão um por um. Foi então muita saudação
e reverência, observar os utensílios serem limpos e esperar que o
mestre do chá preparasse o chá, colocando com uma colher o pó de
chá verde brilhante e adicionando colheradas de água quente, antes
de espumá-lo. Mordisquei um prato de bolos de arroz doce que tinha
sido colocado diante de nós e tentei não me incomodar. Quando o chá
finalmente ficou pronto, uma única tigela foi usada para servir o chá
aos convidados: uma pessoa passou algum tempo admirando a tigela
e o próprio chá, antes de virar a tigela para a esquerda e tomar um
gole contemplativo. Ele então enxugou a borda com um pano especial
e o passou para o próximo convidado, que fez o mesmo. Era um chá
terrivelmente amargo; prendi a respiração enquanto engolia,
engasguei com um comentário sobre o sabor delicioso e rapidamente
passei o chá para Okame. Em seguida, tivemos que observar o mestre
do chá limpar novamente a tigela e os utensílios, lentamente e com o
maior cuidado, antes que todo o processo pudesse ser reiniciado.
— Estou curioso. — disse o Senhor Iesada, no intervalo entre a
espera pela próxima rodada de chá a ser servida. — Todos vocês
viajaram com o matador de demônios Kage por um tempo. Digam-
me, como é que ele não matou vocês?
Eu estremeci, fazendo com que Reika me desse uma olhada
nítida sobre o tatame. Felizmente, Daisuke sentou-se mais próximo do
Senhor Iesada e deu-lhe um sorriso sereno.
— Um tópico interessante, Iesada-sama. — Ele disse em uma voz
de polidez fria. — Eu mesmo estou curioso para saber por que alguém
mencionaria o assunto do assassino de demônios de seu clã. Por favor,
perdoe minha ignorância, nas terras do Sol, o tema dos demônios é
considerado impróprio para uma conversa educada.
Peguei outro doce, um bolo de arroz rosa brilhante enrolado em
uma folha, e deixei o sabor derreter o gosto amargo da minha
boca. Okame percebeu meu olhar e revirou os olhos, e eu reprimi um
sorriso.
— Ah, me perdoe. — Vontinuou o Senhor Iesada, sua própria
voz serena. — Eu esqueço que nas terras do Sol, tudo é muito mais
brilhante e seguro do que em nossas humildes terras das Sombras. As
pessoas de lá não precisam temer a escuridão, nem as criaturas que se
escondem lá dentro. Frequentemente, desejo que nossos próprios
samurais conhecessem tanta paz e frivolidade, mas, infelizmente, esse
perigo faz parte de nossa vida cotidiana. Não quis ofender, é claro.
— Claro. — respondeu Daisuke, ainda sorrindo. — Certamente,
é compreensível que os Kage às vezes possam lutar com os conceitos
de etiqueta e graças sociais. Estar tão longe das terras do Sol e da
capital imperial deve ser um fardo terrível para o seu clã. Dama
Hanshou deve ser elogiada por fazer tanto com tão pouco.
Mudei meu peso no travesseiro, distraidamente girando a folha
descartada entre meus dedos. Ao meu lado, ouvi o suspiro entediado
e quase inaudível de Okame. Sem olhar para mim, ele apontou para o
bule de ferro preto sobre o braseiro, então balançou dois dedos em um
movimento estranho e dançante. Reika, infelizmente, percebeu o gesto
e muito ligeiramente virou a cabeça, me prendendo com um olhar de
lábios apertados e olhos arregalados que dizia claramente não ouse.
— Taiyo-san é muito gentil. — A voz do Senhor Iesada estava
um pouco nervosa agora, antes que seu olhar negro e frio voltasse
para mim. — Mas o que nossa estimada convidada tem a dizer sobre o
matador de demônios? — ele ronronou. — Sei que ela viajou até a
capital com ele. Ele fez alguma coisa para colocá-la em perigo? Você
sabia que ele tinha um demônio escondido dentro de sua espada,
esperando para ser libertado?
Eu levemente segurei a folha em meus dedos, escondendo-a na
palma da minha mão enquanto uma vibração de magia de raposa
passou pelo ar. — Ele salvou minha vida. — Eu disse ao Senhor
Kage. — A estrada era muito perigosa, sim, mas eu não teria
sobrevivido se não fosse por Tatsumi-san.
— Tatsumi-san, não é? — O Senhor Iesada parecia divertido. —
Eu não tinha percebido que você e o matador de demônios estavam
tão próximos. Talvez você ache que tem uma dívida de gratidão com
ele, então? — Ele riu, balançando a cabeça. — Não ligue. O matador
de demônios nada mais é que uma arma. Uma ferramenta que o Clã
das Sombras usa para matar monstros perigosos e yokai, porque ele é
tão monstro quanto as criaturas que caça. Ele não tem sentimentos,
nem emoção, nem honra pessoal. Ele mal é humano. Você também
pode ter uma dívida de gratidão para com uma carroça de boi por
carregá-la para a próxima cidade.
— Sinto muito, Senhor Iesada, mas você está errado.
Senhor Iesada ergueu ambas as sobrancelhas finas como um
lápis em choque ou indignação. — Desculpe? — ele exclamou.
— Tatsumi não é apenas uma arma. — Eu disse. — Ele não é um
monstro insensível. Ele era corajoso e honrado e estava
constantemente preocupado com Hakaimono. E ele estava
preocupado com Hakaimono porque ele não queria me machucar ou
trazer vergonha para o Clã das Sombras. Essa não é a mentalidade de
uma criatura que mal é humana.
O Senhor Iesada olhou para mim com os olhos brilhando. —
Você é muito ousada para uma mulher e uma camponesa. — disse ele
por fim, conseguindo sorrir. — Considere-se sortuda por ser a
convidada de honra de Hanshou-sama, pois em minha propriedade
tal audácia não seria tolerada. Vou lhe contar uma verdade simples
sobre os assassinos de demônios de Dama Hanshou. Eles são
monstros, porque nós os treinamos para serem monstros.
Eu fiz uma careta. — O que você quer dizer?
— Você deseja saber como os matador de demônios Kage são
criados? Quando um matador de demônios morre, um menino é
escolhido entre os nossos tocados pelo kami para se tornar o próximo
portador da Lâmina Amaldiçoada. Ele passa por um treinamento
intenso para limpar todas as fraquezas de sua mente e corpo e para
preparar sua alma para a intrusão de Hakaimono. As demandas de
seu corpo são duras, alguns dizem que são muito duras, mas não é
nada comparado ao que sua mente deve suportar todos os
dias. Alguns meninos não sobrevivem. Alguns enlouquecem,
tentando resistir à presença constante de Hakaimono. Alguns morrem
devido aos rigores do treinamento, dilacerados pelos yokai ou
sucumbindo aos ferimentos infligidos por seus próprios sensei. Na
verdade, acredito que apenas um em cada quatro meninos sobrevive
nos primeiros meses. Os outros morrem em agonia, ou são mortos
porque não puderam resistir a Hakaimono. Garotos talentosos e
tocados pelos kami que poderiam ter se tornado samurai honrados,
em vez disso, desperdiçam suas vidas para alimentar aquela espada
amaldiçoada e o demônio que a habita. E aqueles que conseguem
passar pelo processo são irrevogavelmente alterados. Eles não são
mais humanos. Eles são simplesmente recipientes para o poder de
Hakaimono, uma mão que empunha Kamigoroshi em nome dos Kage.
O Senhor Iesada parou por um momento para pegar uma bola
de arroz colorida do prato com seus pauzinhos, admirar a cor e a
fragrância e colocá-la na boca. — Então... — ele disse, enxugando os
lábios com um guardanapo de seda. — Agora você entende. O
demônio Hakaimono é um monstro que deve ser detido e é dever dos
Kage derrubá-lo. O fato de o oni ter sido libertado e estar devastando
o país já trouxe vergonha e desonra para o Clã das
Sombras. Hanshou-sama sabe disso, sugerir que ela buscaria ajuda de
pessoas de fora dos Kage é uma noção absurda. Por que, se alguém se
intrometesse em nossos assuntos, teríamos que responder a tal insulto
em vigor. — Ele sorriu friamente sobre o tatame. — Mas minhas
desculpas, eu falo de nuvens que ainda não se formaram e de chuva
que ainda não caiu. Tenho certeza de que Dama Hanshou tem o
assunto de Hakaimono em mãos. Voltemos a assuntos mais
agradáveis, sim?
Eu ainda estava me acostumando com os idiomas floreados e
frases indiretas dos nobres da corte, mas tinha quase certeza de que
Senhor Iesada acabara de nos ameaçar. Ou pelo menos nos avisou
para não irmos atrás de Tatsumi. A raiva vacilou. Eles poderiam dizer
o que quisessem; eu estava indo salvar Tatsumi, mesmo se eu tivesse
que desviar shinobi do Clã das Sombras todo o caminho para o
templo Pena de Aço.
— Taiyo-san. — Senhor Iesada continuou, pegando um bolo de
arroz com seus hashis. — Você já provou as bolas de mochi de
Noriko-san? Eu simplesmente insisto que você experimente, elas têm
a fragrância mais delicada...
Ele tirou uma bola de arroz rosa do prato e uma cabeça peluda e
marrom apareceu, os bigodes se contorcendo quando o doce foi
removido. O Senhor Iesada soltou um grito, sacudindo a mão para
trás, enquanto o minúsculo roedor disparou do prato até o senhor e
desapareceu nas dobras de seu hakama.
— Nezumi! — O senhor Kage se levantou de um salto, agitando
os braços de forma que suas mangas chicoteassem como velas ao
vento. De olhos arregalados, observamos o nobre se agitar
descontroladamente, sacudindo as pernas e batendo em seu hakama
com o leque. O rato não reapareceu, embora uma folha de bola de
arroz esfarrapada se soltou e caiu no chão perto dos pés do Senhor
Iesada. Ninguém pareceu notar.
Finalmente, quando o rato não parecia estar escondido em seu
hakama, o Senhor Iesada se endireitou e com grande dignidade se
virou para se curvar para nós. — Por favor, perdoe minha explosão.
— Ele disse com uma voz calma e serena. — Temo, por razões óbvias,
que devemos encerrar a cerimônia mais cedo. — Sua mandíbula se
contraiu, as narinas dilatadas enquanto ele continuava. — Fiquem
tranquilos, encontraremos o responsável por esta atrocidade, mas, por
enquanto, devo me despedir de vocês.
Eu esgueirei um olhar para meus companheiros. Daisuke parecia
surpreso e ligeiramente divertido, mas, como Senhor Iesada, estava
fazendo um trabalho notável em esconder sua reação. No entanto, o
rosto de Okame estava vermelho de segurar sua risada, e o olhar
negro e duro de Reika estava fixo em mim, sua boca desenhada em
uma linha tensa. Nem um pouco enganada.
— Claro, Iesada-sama. — disse Daisuke com uma pequena
reverência. — Vamos nos retirar. Obrigado por nos convidar. Sua
hospitalidade é verdadeiramente inspiradora.
Okame e eu conseguimos manter o rosto sério até deixarmos o
salão de chá e estarmos bem longe no corredor. Mas no segundo em
que fizemos contato visual, o ronin engasgou e se dobrou, as mãos nos
joelhos, e eu me inclinei contra uma tela shoji, me apoiando na
moldura de bambu, enquanto as risadas ecoavam pelo corredor.
— Você... você... o viu se debater? — Okame ofegou. — Ele
parecia um galo tentando dançar Kabuki.
— Baka! — Reika deu um passo à frente e acertou o ronin na
cabeça, então se virou para olhar para mim. — Espero que vocês dois
tenham gostado. — disse ela. — Porque agora nós fizemos um terrível
inimigo de uma pessoa muito poderosa do Clã das Sombras. O Senhor
Iesada não perdoará este constrangimento, mesmo que nunca suspeite
de quem é o responsável.
— Ite. — Okame se endireitou, esfregando o crânio, para
enfrentar a miko. — Isso presumindo que ele não estava planejando
nos matar, de qualquer maneira. — ele respondeu. — Faz um tempo
que não sou um samurai, Reika-san, mas sei quando estou sendo
ameaçado.
Daisuke, assistindo a toda essa cena com um sorriso perplexo no
rosto, balançou a cabeça. — Divertido e perturbador como isso é, temo
que o ronin esteja certo, Reika-san. Senhor Iesada era nosso inimigo
muito antes de nos convidar para o chá. Se continuarmos nossa busca
pelo matador de demônios, é certo que encontraremos seus servos,
que tentarão nos impedir de alcançar nosso objetivo.
— Deixe-os tentar. — Eu disse, fazendo todos olharem para
mim. — Hakaimono está indo atrás do pergaminho do dragão. — Eu
os lembrei. — Não podemos deixar nada nos impedir. Temos que
chegar ao templo Pena de Aço antes dele.
— E espero que, assim que o fizermos, o Primeiro Oni não ria na
nossa cara, nos rasgue em pedaços sangrentos e leve o pergaminho de
volta ao Mestre dos Demônios. — Reika acrescentou. — Ainda não
tenho certeza de como vamos evitar isso, mas parece que nosso
caminho foi decidido. — Uma sombra de incerteza cruzou seu rosto e
ela balançou a cabeça. — No passado, Hakaimono e o Mestre dos
Demônios massacraram exércitos e arrasaram cidades inteiras. Somos
apenas cinco, sete, se você contar dois guardiões do santuário, que
estão entre o Primeiro Oni e o mago de sangue mais poderoso que o
país já conheceu.
— Sim. — acrescentou Daisuke, e havia uma corrente de
excitação por trás de sua determinação de aço. — Um pequeno grupo
que enfrenta adversidades intransponíveis, que dá a vida pela glória
do império? É sobre isso que o Bushido é construído. — Ele ergueu a
cabeça, um sorriso cruzando seu rosto enquanto olhava pela janela
para o céu noturno, seu cabelo branco ondulando com a brisa. — Eu,
pelo menos, agradeço a chance de testar minhas habilidades, de
enfrentar meus inimigos com honra e morrer com uma espada em
minhas mãos. Pense nos poemas que eles irão compor sobre nosso
nobre sacrifício.
Okame estremeceu. — Prefiro que escrevam poemas sobre nossa
nobre vitória.
— Nunca estive em um poema. — Ponderei. — Tem que ser
muito triste? Todos os poemas que li pareciam bastante tristes. Bem,
exceto por um haicai sobre um tanuki e a filha de um
fazendeiro. Nunca entendi muito bem isso, e Denga se recusou a me
explicar.
— Senhorita Yumeko?
Virei-me para encontrar a serva mais velha parada a alguns
metros de distância, novamente aparecendo silenciosamente como um
fantasma.
— Eu vim com uma mensagem de Kage Masao. — Ela nos
informou, tão formal como sempre. — Masao-san e Naganori-san
esperam por vocês no último andar do castelo. O Caminho das
Sombras está pronto.
Capítulo 16
O jardim congelado
Suki

Havia alguns dias em que Suki sentia falta de estar viva. Dias em
que uma memória se insinuaria, espontaneamente, em seu coração,
uma brisa fresca de primavera, a doçura de uma comida favorita, o
calor do sol em sua pele, e ela desejaria, apenas por um momento, que
não fosse um intangível fantasma.
Hoje não era um daqueles dias.
— Estou congelando. — Reclamou Taka, encolhendo os ombros
contra a neve que caía. Os lábios do pequeno yokai tinham ficado de
um azul sutil e seus dentes batiam enquanto ele ia miseravelmente
atrás de Senhor Seigetsu, seguindo os passos de seu mestre. O gelo
grudava em suas mangas, e o chapéu de aba larga em cima de sua
cabeça estava coberto de neve. — Estamos quase lá, mestre?
— Sim. — Seigetsu respondeu sem olhar para trás. — E o
governante desta floresta está ouvindo. Se você não deseja ter seus
lábios congelados e fechados para sempre, eu ficaria em silêncio.
Taka imediatamente estalou a mandíbula e se curvou ainda mais
em sua capa de palha, tornando-se muito pequeno. E embora Suki não
pudesse sentir o frio, ela estremeceu de qualquer maneira. Ao redor
deles, a floresta sombria estava congelada, pinheiros altos e
desgrenhados caindo sob o peso da neve e do gelo. Era um peso
opressor, Suki pensou, chegando mais perto de Taka. Fria e
dominadora, como se a neve fosse uma mestra cruel, exigindo silêncio
e respeito de tudo que tocava.
Quando eles entraram em uma clareira pequena e pacífica, a
neve que caia do céu cessou abruptamente e a floresta ao redor deles
ficou imóvel. Nem um sopro de vento agitava os galhos, embora Suki
quase pudesse ver o frio nos pingentes de gelo pendurados nas
árvores, nas nuvens ondulantes saindo dos lábios de Taka. Senhor
Seigetsu não parou; ele caminhou pelo terreno plano, Taka e Suki o
seguindo. A neve estava bem funda aqui e rangia sob os pés de Taka,
como se ele estivesse andando sobre galhos ou uma cama de seixos.
— Ite! — Taka parou de repente, pulando em um pé, como se
tivesse batido o dedo do pé. — Ow, ow ow, afiado! O que é isso? —
Senhor Seigetsu fez uma pausa, parecendo levemente irritado ao se
virar.
— Taka. — Sua voz foi um aviso.
— Sumimasen! — Taka sussurrou, estremecendo ao alcançar a
neve. — Perdoe-me, mestre. Acho que pisei em um galho quebrado...
Ele gaguejou até parar, seu olho ficando enorme, enquanto
puxava a metade quebrada de um crânio da neve. Com um grito, ele
deixou cair a mandíbula sorridente; bateu no chão com um estalo
abafado e rolou para longe, revelando outro crânio escondido sob o
manto branco.
Uma risada suave e feminina ondulou ao longo da borda da
clareira, carregada pelo vento e agitando a neve no ar. Bem-vindos ao
meu jardim, ela sussurrou, enquanto Suki olhava em volta
freneticamente e Taka disparava atrás do hakama de Seigetsu. Eu não
recebo muitos visitantes, não mais. Vocês gostariam de ficar por um
período? Talvez vocês queiram plantar algo aqui vocês mesmos?
O vento soprava, jogando neve no ar, chicoteando o cabelo de
Seigetsu e puxando suas mangas. Ele soprou para longe a parte
superior branca, revelando o tapete de ossos brilhantes
abaixo. Crânios, armaduras e armas apodrecendo, esqueletos
humanos e animais, todos deitados semienterrados no solo
congelado. Taka engasgou e Suki sentiu que perdia a forma,
transformando-se em uma bola de luz brilhante. A estranha voz riu de
suas reações. Seigetsu suspirou.
— Eu já vi seu jardim, Yukiko. — Ele gritou para o ar vazio. —
Não é a razão de eu estar aqui.
Oh, Seigetsu-sama, você não é divertido. A voz quase soou amuada
e a neve continuou a rodopiar ao redor da clareira. Enquanto Suki
observava, dedos rendados de neve soprada pelo vento roçaram a
manga de Seigetsu e se enrolaram em torno de Taka, puxando seu
chapéu. Tem certeza que não quer me deixar um presente? Ainda não tenho
uma caveira com um olho em minha coleção.
Taka se encolheu e choramingou, agarrando-se ao hakama de
seu mestre. Os olhos dourados de Seigetsu se estreitaram.
— Não, e não acho que você precisa de mais 'decorações'. —
disse ele com firmeza. Ele ergueu a mão e acenou através dos fios de
neve enrolados em torno dele. — Eu vim para receber meu favor,
nada mais.
As rajadas sopradas pelo vento voltaram. Isso foi há anos, Seigetsu-
sama, a voz quase gemeu. Séculos, e você nunca mais veio me visitar desde
então. Quase me esqueci disso.
— Mas eu não. — O tom de Seigetsu foi inflexível. — Você vai
honrar a promessa que me fez naquele dia, Yukiko, ou devo ficar
ofendido por ter sido enganado?
Um suspiro longo e dramático fez a neve girar freneticamente ao
redor da clareira. Não, Seigetsu-sama, a voz disse, parecendo
irritada. Vou honrar minha palavra. Que ninguém diga que Yukiko do Norte
não cumpre suas promessas. O que você precisa que eu faça?
Senhor Seigetsu sorriu.
— Há um oni chamado Hakaimono a caminho do templo Pena
de Aço neste momento. — respondeu ele. — Eu preciso que você o
impeça de chegar lá.
Capítulo 17
O preço da ilusão
Yumeko

Naganori nos esperava nas entranhas do castelo de Hakumei, de


pé com os braços cruzados no centro da câmara com paredes de
pedra, mas não era o único.
— Yumeko-san. — Kage Masao sorriu para mim do lado de
dentro da porta, a luz bruxuleante da tocha projetando seu rosto
pálido nas sombras. Ele estava vestido com calças hakama azuis e
mantos pretos como a meia-noite, com pétalas rosa e índigo flutuando
pelo tecido como chuva. Um leque de seda preta descansava entre
seus dedos enquanto ele acenava em minha direção. — E o resto de
nossos convidados de honra. — Ele fez uma ligeira reverência quando
o resto do grupo entrou na câmara. — Me perdoem, eu não tive a
chance de me apresentar antes. Sou Kage Masao, conselheiro chefe de
Dama Hanshou. Espero que sua estadia no castelo Hakumei tenha
sido agradável.
Okame bufou, o que se transformou em um grunhido quando
Reika o chutou no tornozelo. Masao educadamente recusou-se a
notar. — Eu me encarreguei de supervisionar os preparativos finais da
viagem. — Continuou o cortesão, e gesticulou para um servo, que saiu
do canto com um punhado de papéis em uma das mãos e um grande
pacote retangular pendurado na outra. A mochila era feita de bambu
trançado, com um par de tiras de couro que permitiam carregá-la nos
ombros. — Aqui estão seus documentos de viagem, assinados e
selados pela própria Dama Hanshou, que permitirão que vocês viajem
entre territórios sem assédio. E alguns suprimentos para chegar ao seu
destino final. Mestre Naganori foi gentil o suficiente para abrir o
Caminho das Sombras mais uma vez, então temo que seu tempo
conosco tenha chegado ao fim. — Enquanto Mestre Jiro pegava os
documentos e Okame pegava a mochila, seus olhos negros e
penetrantes se fixaram em mim. — Lembre-se, Yumeko-san, uma vez
que você deixar as terras dos Kage, você estará fora do alcance da
influência de Dama Hanshou. Aconselho cautela. Outros podem
tentar impedir sua jornada, e não seremos capazes de ajudar se você
se encontrar cercada por assassinos desonrosos.
Eu concordei. — Nós entendemos. Obrigada, Masao-san.
O cortesão sorriu e me deu o mais simples dos acenos, então se
virou para o carrancudo Kage Naganori no centro da câmara. —
Naganori-san? Você está preparado?
O majutsushi me deu um sorriso rígido e duro que não alcançou
seus olhos. — Sempre que estiverem prontos, Masao-san.
— Naganori-san usará o Caminho das Sombras para levá-los a
Jujiro, uma cidade mercante que fica na fronteira entre os territórios
do Clã do Fogo e da Água. — O cortesão continuou, voltando-se para
mim. — De lá, se vocês viajarem para o norte, chegarão à Floresta dos
Mil Olhos em dois dias. Não podemos levá-los mais perto do que isso.
— Masao abriu seu leque e me olhou por cima da seda preta. — Eu
gostaria de avisá-la, Yumeko-san, quando percebemos que
Hakaimono tinha ido para a floresta, enviamos uma unidade de
samurais e shinobi para proteger o perímetro, caso ele emergisse
novamente. — Ele fez uma pausa e continuou sombriamente: —
Nunca mais se ouviu falar desses homens.
Eu engoli a secura na minha garganta. — O que aconteceu?
— Não sabemos. — O nobre encolheu os ombros elegantes. —
Durante a noite, parece que a unidade inteira desapareceu. Até os
shinobi desapareceram sem deixar vestígios. Como se algo os
rastreasse e os silenciasse a todos.
— Só podemos presumir que Hakaimono se cansou de ser
caçado. — Continuou Masao. — E decidiu massacrar seus
perseguidores, tanto para acabar com a ameaça que eles
representavam quanto para nos cegar para o que quer que ele esteja
fazendo na floresta. O que significa que há algo na Floresta dos Mil
Olhos que ele não deseja que vejamos. Infelizmente, isso pode ser uma
série de coisas, um lugar maligno de poder, uma cabala de demônios
que sobrou da última guerra. — Sua voz ficou mais suave, gelando o
sangue em minhas veias. — E, claro, existem as ruínas do castelo de
Genno, bem no centro de tudo. Se eu arriscar um palpite, diria que
Hakaimono provavelmente está indo para lá. Por quais motivos, só
posso presumir o pior.
Um caroço frio se formou na boca do estômago e pude sentir o
peso do pergaminho, pesado e terrível, sob minhas vestes. Masao me
observou por cima do leque, olhos negros afiados avaliando. Como se
ele soubesse que eu não estava lhe contando algo.
Felizmente, naquele momento, Naganori deu um passo à frente,
irradiando impaciência. — Com sua licença, Masao-san. — Ele disse
com uma reverência rígida, e gesticulou para todos nós em direção ao
portão torii. — A noite diminui rapidamente e é perigoso deixar o
Caminho das Sombras aberto.
— Ah, claro. Por favor, deem-me licença. — Masao sorriu e se
afastou, agitando seu leque. — Desejo sorte a você e a seus
companheiros, Yumeko-san. — Ele disse alegremente, enquanto o
majutsushi nos dirigia para o portão. — Lembre-se de nos contar
assim que tiver concluído sua missão. Se tiver sucesso, você terá feito
o que os sacerdotes e majutsushi mais talentosos não conseguiram
realizar. Dama Hanshou ficará muito satisfeita, e você terá merecido o
favor de uma daimyo.
Eu não me importava muito com o favor da daimyo
Kage; parecia-me que ela queria Tatsumi como sua arma viva
pessoal. Mas dizer isso parecia terrivelmente rude, então eu apenas
sorri e fiz uma reverência ao cortesão, depois segui Naganori até o
portão torii no centro da câmara.
— Eu abri o caminho para vocês. — O majutsushi nos disse,
enquanto eu estremecia com o ar frio que soprava do espaço entre os
postes. — Vocês não vão precisar de mim para guiá-los neste
momento. Vocês devem simplesmente caminhar até chegar ao seu
destino. Haverá outro majutsushi esperando para abrir o caminho do
outro lado. Se nada acontecer e vocês não saírem cambaleando do
caminho para o Meido, vocês se encontrarão no porão de um dos
mercadores de Jujiro. Eles estarão esperando por vocês, mas não
demorem, e não tentem conversar com os donos da casa. Saiam da
propriedade o mais rápido possível e procurem o portão norte fora da
cidade. Seus documentos de viagem farão com que vocês passem
pelos guardas com pouco ou nenhum problema, mas ainda é
aconselhável serem cautelosos, mantenham a cabeça baixa e evitem
chamar a atenção.
Ele olhou para Okame ao dizer isso, fazendo o ronin sorrir. —
Oh, não se preocupe, Naganori-san. — Okame disse. — Uma onmyoji,
um ronin, um sacerdote e uma donzela do santuário, dois cães e um
nobre imperial caminhando juntos? Temos certeza de que nos
encaixamos perfeitamente.
A boca de Naganori se estreitou, mas ele se voltou para mim. —
Quando você encontrar o portão norte. — Ele continuou. — Tudo o
que vocês precisam fazer é seguir a estrada. Eventualmente termina
na aldeia abandonada de Takemura perto da borda da Floresta dos
Mil Olhos. Quando vocês chegarem a uma aldeia vazia e coberta de
vegetação, provavelmente assombrada por yurei e demônios, saberão
que está por perto. Vocês têm alguma pergunta antes de enviarmos
vocês?
Eu balancei minha cabeça, e o majutsushi deu um aceno
rápido. — Então não há mais nada a ser feito aqui. — disse ele, e
gesticulou para o portão torii. Entre os postes, o ar escureceu, como
uma sombra rastejando sobre o chão. Eu podia sentir os tentáculos
gelados do espaço entre estender a mão para mim, arranhar minha
pele e estremecer. — Sayonara. — disse Naganori, e se afastou, como
se já estivesse nos dispensando. — Boa sorte no caminho.
Eu olhei para a escuridão através do portão torii e respirei
fundo. Espere, Tatsumi. Estou chegando.
Flanqueada por Daisuke e Okame, e com Reika, Mestre Jiro e os
dois cachorros nas minhas costas, avancei para o Caminho das
Sombras. Assim que terminamos, a luz atrás de nós desapareceu, o
rasgo entre os reinos foi selado e ficamos sozinhos na terra dos
mortos.
Eu já podia sentir seus olhos sobre nós e, por um momento, só
pude ficar ali tremendo.
— Venha. — Mestre Jiro deu um passo à frente, Chu e Ko ao seu
lado. Os dois cães pareciam brilhar suavemente nas sombras escuras
do caminho, bolas gêmeas de luminância na escuridão. — Não vamos
repetir nossos erros da primeira vez que superamos. — disse o velho
sacerdote, sua voz soando fraca e áspera no escuro. — Nossa fé um no
outro deve ser mais forte do que o chamado dos mortos. Reika-chan,
se você...
— Hai, Mestre Jiro. — A donzela do santuário enfiou a mão na
manga e retirou um ofuda, o kanji para caminho escrito na tira de
papel com tinta preta. — Se vocês sentirem que estão escorregando. —
Mestre Jiro disse, quando Reika deu um passo à frente. — Olhe para
seus companheiros. Eles não vão deixar vocês caírem na escuridão.
Erguendo a mão, a miko soltou o ofuda, que espiralou no ar
como uma enguia na água. Ele nos circulou uma vez, então voou pelo
caminho, lançando um brilho fraco contra as sombras. Reika sorriu.
— Ele encontrou o caminho. — disse ela, observando a luz
tremeluzir e dançar contra a escuridão. — Se vocês começarem a se
perder, é só procurar a luz.
— Então vamos embora. — disse o sacerdote. — Antes que as
vozes dos mortos nos chamem.
Algo sussurrou meu nome no escuro, baixo e angustiado. A voz
de Tatsumi. Uma sombra apareceu, familiar e comovente, no canto da
minha visão. Colocando as orelhas para trás, fechei os olhos e me
virei, recusando-me a olhar para ele. Não é ele, lembrei a mim mesma,
engolindo o caroço que subiu à minha garganta. Tatsumi não estava
morto. Ele esperava por mim no final da estrada, no templo Pena de
Aço, onde o destino do pergaminho do Dragão seria decidido. Eu
veria o assassino de demônios novamente e o libertaria de
Hakaimono. Ou o Primeiro Oni mataria todos nós, e o Mestre dos
Demônios se levantaria novamente. Simples assim.
— Yumeko-chan? — Algo tocou meu braço. Eu pulei e abri meus
olhos para ver Okame olhando para mim, seus olhos preocupados. —
Você está bem?
— Hai, Okame-san. — Eu concordei. — Estou apenas...
pensando na missão e no que terei que fazer quando encontrarmos
Hakaimono.
Ele sorriu. — Não se preocupe com isso, Yumeko-chan. — Ele
disse brilhantemente. — Nós apenas temos que salvar o império do
Primeiro Oni e do Mestre dos Demônios. Coisas fáceis, certo?
Eu fiz uma careta para ele. — Não acho que será fácil, Okame-
san. Você?
— Não. — O ronin encolheu os ombros. — De modo
nenhum. Mas não posso levar isso muito a sério, considerando que
provavelmente todos vamos morrer. Pense nas baladas que eles vão
compor em nossa homenagem.
— Vocês dois. — Veio a voz impaciente de Reika lá de cima. —
Seja o que for que vocês estejam falando, isso não pode esperar até
que estejamos fora do Caminho das Sombras e fora do reino dos
mortos?
— Gomen, Reika-chan. — Okame chamou, sua voz ainda
obstinadamente alegre na escuridão. — Yumeko e eu estávamos
discutindo que tipo de baladas eles vão escrever sobre nossas mortes
tragicamente honradas enquanto lutamos contra
Hakaimono. Pessoalmente, gostaria que a minha fosse feita no haicai.
— Baka. — Reika murmurou, revirando os olhos enquanto se
virava. — Não componha nossos destinos antes mesmo de chegarmos
lá. Além disso, quem escreveria um poema sobre sua idiotice?
— O arqueiro que não se curvou. — Murmurou Daisuke
enquanto começávamos o caminho. — Aquele que o demônio quebrar
não conseguiu. Enquanto morria, ele riu.
— Ooh. — Eu disse, apontando minhas orelhas para frente. —
Isso foi impressionante, Daisuke-san.
O nobre riu. — Eu sou um homem de muitos talentos, Yumeko-
san. Eu acredito que se alguém se interessa por algo, deve se esforçar
para aperfeiçoá-lo e a si mesmo.
— Aquilo. — disse Okame, olhando para Daisuke com uma
expressão meio alegre, meio aborrecida. — Foi fácil demais, Taiyo. Eu
esperava que você passasse pelo menos uma semana agonizando com
as palavras da minha morte. — Ele fez uma pose dramática no
caminho, fazendo-nos parar. — Minha morte deve ser comovente e
tragicamente nobre, como o final de todas as peças de Kabuki.
— Okame-san. — Daisuke deu ao ronin um sorriso fraco, quase
triste. — Se você morrer nesta missão enquanto eu vivo de alguma
forma, juro que irei compor uma balada em sua homenagem que fará
até os kami chorarem. No entanto, você deve prometer fazer o mesmo
por mim, pois não pretendo ficar de braços cruzados. Quando chegar
a hora, pretendo encontrar essa morte gloriosa bem ao seu lado.
Meu estômago se revirou. — Alguém já compôs uma balada em
que os heróis vencem, o inimigo é derrotado e ninguém mais morre?
— Eu perguntei. — Talvez onde, no final da história, eles voltem para
casa com seus amigos, casem com seu amor e vivam uma vida pacífica
até o fim de seus dias?
Daisuke riu, um som estranho e leve na escuridão, com as vozes
dos mortos gemendo ao nosso redor. — Isso seria uma história muito
anticlimática, Yumeko-san. — Ele riu. Erguendo a mão, ele fez um
gesto para que avançasse novamente e nós seguimos o sacerdote e a
donzela do santuário na escuridão, seguindo um raio de luz que
tremulou e dançou à frente. — Nas melhores histórias, os heróis
sempre dão suas vidas, por honra, dever, sacrifício e pela glória do
império. Qualquer coisa a menos e não será uma grande história.

A jornada de volta através de Meido e do Caminho das Sombras


não foi tão desoladora e horripilante como da primeira vez; sabíamos
o que esperar e estávamos preparados para fechar nossos ouvidos aos
chamados dos mortos. Mas ainda não foi agradável. Vislumbrei
Denga e Nitoru novamente, carrancudos para mim, seus rostos
sombrios enquanto eles olhavam através da névoa que ladeava a
trilha. Eu sabia que não eram realmente eles, mas meu estômago se
contorceu e um nó ficou preso na minha garganta do mesmo
jeito. Meus amigos estavam ao meu lado desta vez, e eu sabia que não
deixaríamos um ao outro sair do caminho. O rosto de Daisuke estava
serenamente vazio enquanto ele avançava, sem olhar para a esquerda
nem para a direita. Atrás dele, Okame desceu o caminho com os
braços cruzados e os lábios torcidos em um sorriso malicioso. De vez
em quando, ele olhava para a névoa rodopiante e zombava, como se
estivesse desafiando os espíritos dos mortos a fazer o pior. Certa vez,
vi um espírito estender a mão para Reika, gemendo, mas havia um
dardo laranja na escuridão, quando Chu atacou o fantasma com um
latido minúsculo, mas feroz, e o yurei recuou, voltando para a névoa.
À nossa frente, a tira de ofuda brilhava como um dragão em
miniatura enquanto esvoaçava e disparava, sempre avançando, mas
sempre visível, mesmo que fosse apenas um fio de luz contra a
escuridão. Mas, exatamente quando eu estava me perguntando
quando essa jornada mórbida terminaria, a tira de papel piscou e
desapareceu na escuridão.
Eu me levantei. — Hum, Reika-chan? — Chamei, vendo a miko
olhar para mim por cima do ombro. — Seu ofuda. — eu apontei. —
Desapareceu. Você acha que um yurei pegou?
— Não. — A donzela do santuário sacudiu a cabeça, os ombros
curvados com visível alívio. — Deve ter encontrado o fim do
caminho. O que significa que estamos quase lá.
Enquanto ela falava, a escuridão desapareceu, como se
tivéssemos entrado na boca de uma caverna, e eu pisquei no brilho
repentino da luz laranja. Apertando os olhos através da névoa, me vi
em um pequeno cômodo, com piso de madeira áspero, paredes sem
janelas e um teto alto. Quando olhei por cima do ombro, vi um
pequeno portão torii vermelho encostado no que parecia ser uma
parede sólida. Alguns fiapos de névoa envolvendo nossos pés logo se
dissolveram nas sombras, mas não havia sinal do caminho ou da
entrada no reino dos mortos.
Estávamos em algum tipo de depósito. O resto da câmara tinha
prateleiras ao longo das paredes, cheias de todos os tipos de
engradados, caixas e sacos cheios do que imaginei ser arroz. Barris
estavam empilhados em três cantos do cômodo, e rolos de tecido
ficavam de pé.
Eu me virei para Reika. — Onde Naganori disse que iríamos
parar?
— No porão de uma das casas mercantes em Jujiro. — A donzela
do santuário respondeu, também olhando ao redor. — Pela aparência
das coisas, eu diria que conseguimos.
— Vocês chegaram.
Viramos com a voz baixa. Uma jovem vestindo longas túnicas
pretas e roxas estava parada na base dos degraus que
subiam. Maquiagem branca e lábios negros a marcaram como uma
majutsushi do Clã das Sombras. — Por favor, sigam-me. — ela disse
simplesmente, e se virou. — Vou acompanhá-los para fora.
Não muito depois, estávamos na esquina de uma estrada de
paralelepípedos, tremendo no silêncio da madrugada, enquanto a
cidade de Jujiro lentamente acordava. Do outro lado da rua, passando
por uma fileira de armazéns guardados por homens de aparência
rude, pude ver uma teia estruturada de docas de madeira e dezenas
de velas coloridas, flutuando ou balançando preguiçosamente na
água. Uma brisa constante soprava do porto, cheirando a peixe e água
do rio, ou talvez fosse por causa das fileiras de peixes sendo
destripados e cortados no mercado do outro lado da rua.
— Nunca ouvi falar de Jujiro. — disse eu, maravilhado com
todas as paisagens e sons do porto. — A que distância estamos das
Montanhas da Espinha do Dragão?
— Não tenho certeza. — disse Reika. — Eu nunca vim a Jujiro.
— Se vocês me permitem. — disse Daisuke, e assumiu a
liderança quando começamos a descer a estrada. — Já viajei por esta
área algumas vezes no passado. Deixe-me compartilhar o que consigo
lembrar. A cidade de Jujiro também é conhecida como Encruzilhada.
— Daisuke continuou, alheio ou indiferente a Okame revirando os
olhos trás. — E é a única cidade no império que não é controlada por
nenhuma família ou clã. Por estar em uma junção onde dois rios se
encontram, ela se tornou um importante centro de comércio e
crescimento econômico. No passado, as guerras eram travadas para
ver quem controlaria Jujiro, mas no final, o imperador decidiu que não
pertenceria a nenhum clã e a todos os clãs. — Ele acenou com a cabeça
para um armazém em uma das muitas docas, hasteando a bandeira de
uma lua familiar engolfada por um eclipse. — É por isso que os Kage
têm uma presença aqui, todos os clãs têm. Eu acredito que este é o Rio
de Ouro, que, se você seguir para o leste, acabaria por levá-lo a Kin
Heigen Toshi. — Sua voz ficou sombria quando ele apontou em outra
direção. — Se você viajar para o norte, em dois dias verá a orla de
Angetsu Mori, conhecida hoje como a Floresta dos Mil Olhos. Essa é
provavelmente a razão pela qual Dama Hanshou nos enviou
aqui. Jujiro é a cidade grande mais próxima daquela maldita floresta.
— No entanto... — ele continuou, enquanto eu estremecia no ar
fresco da noite. — Se ignorarmos os desejos de Dama Hanshou e
seguirmos o Rio de Ouro para o leste...
— Nós atingimos as Montanhas da Espinha do Dragão. —
Okame finalizou, e Daisuke concordou.
— Então esse é o nosso destino. — Mestre Jiro ofegou. Ele
cambaleou pela estrada, apoiando-se pesadamente em seu cajado,
Chu e Ko ficando perto de seus calcanhares. — Devemos encontrar o
portão leste, se tal coisa existe. — Ele tossiu, levando um punho à
boca, os ombros magros tremendo, até que o ataque passou. A seus
pés, Ko deu um gemido preocupado.
— Perdoe-me, Mestre Jiro. — disse Daisuke, com as sobrancelhas
franzidas. — Com todo o respeito, você está se sentindo bem? O
suficiente para uma longa caminhada até os terrenos montanhosos
mais difíceis?
— Eu estou bem. — O velho sacerdote descartou a preocupação
de Daisuke. — Meus pulmões não estão acostumados a essas
temperaturas que mudam rapidamente, mas vou me adaptar.
— Você tem certeza? — Okame perguntou, parecendo em
dúvida sobre seus braços cruzados. — Você está velho e não quero ter
que carregá-lo montanha acima.
— Eu vou ficar bem, Ronin. — A voz do Mestre Jiro estava um
pouco mais aguda agora. — Se eu pude fazer a Piedosa Peregrinação
de Shimizu no território do Clã da Água até o Santuário de
Heichimon nas terras de Hino, posso suportar uma caminhada até a
Espinha do Dragão. — Ele fungou. — Além disso, como vocês
planejavam amarrar Hakaimono por conta própria, mesmo o
suficiente para atrasá-lo? Vocês vão precisar de um sacerdote com
minha... aham... experiência, se quiserem prender um senhor oni.
— Supondo que possamos encontrar o templo Pena de Aço. —
Reika murmurou. — E se quem quer que viva lá, sejam monges,
sacerdotes ou fantasmas famintos, acreditará em nós quando
dissermos que não somos seus inimigos e que viemos impedir o
Primeiro Oni de invadir e roubar seu pedaço do pergaminho do
dragão. Por não o exterminar. — Ela suspirou, balançando a
cabeça. — Espero que quem mora lá seja do tipo compreensivo e não
decida nos matar a todos.
Deixamos o distrito das docas do Clã das Sombras, afastando-
nos do rio e dos armazéns e entrando no que parecia ser o centro da
cidade, a julgar pelo cruzamento convergente e a placa de sinalização
no meio que o proclamava. Apesar de bem cedo, Jujiro fervilhava de
atividade. Todo tipo de loja alinhava-se nas estradas, as portas já
abertas, os vendedores ocupados montando estandes e barracas de
madeira. Uma jovem com um quimono lindamente colorido passou
por ele, uma sombrinha equilibrada em um ombro. Seu rosto estava
pintado de branco, seus lábios e olhos tocados com carmesim, mas ao
contrário da maquiagem dos majutsushi, a fazia parecer elegante e
como uma boneca, em vez de rígida. Seu cabelo, preso com flores e
pentes de marfim, estava penteado de forma que nenhuma mecha
ficasse fora do lugar. Ela sorriu para nós ao passar, seu olhar
demorando em Daisuke, antes de continuar.
Enquanto caminhávamos em direção ao lado leste da cidade, os
primeiros raios do amanhecer finalmente apareceram no horizonte,
tocando o topo dos telhados com uma luz laranja suave. Respirei
fundo, aliviada por estar fora da escuridão opressiva do território do
Clã das Sombras. Longe dos Kage e de seus olhos e ouvidos curiosos,
onde eu não precisava me preocupar que cada movimento meu, cada
palavra minha, estivesse sendo observada, registrada e julgada. Onde
meus segredos não estavam em perigo constante de serem
descobertos e arrancados, e meus amigos não estavam sendo
ameaçados ou em perigo de serem mortos se algum desses segredos
viesse à tona.
Não admira que você sempre foi tão paranoico, Tatsumi. Fechei os
olhos, sorrindo fracamente, quando a luz do sol tocou meu rosto. Eu
sabia que não estávamos com o Clã das Sombras há muito tempo, e o
caso em que nos aventuramos fora do castelo foi à noite. Mas dentro
das paredes de Hakumei-jo, parecia que o sol não existia e toda a terra
estava envolta em trevas e sombras eternas. Se eu tivesse que viver com
os Kage por um mês ou dois, poderia ficar louca.
Meu estômago vibrou quando o demônio assassino invadiu
meus pensamentos novamente. Tatsumi... Espero que você esteja
bem. Estamos indo, para você e Hakaimono ambos. Espere por mim um pouco
mais.
Mestre Jiro começou a tossir novamente, um som áspero que fez
todos nós pararmos no meio da estrada e olharmos para ele com
preocupação.
Reika franziu a testa. — Mestre Jiro...
— Eu... estou bem. — O velho sacerdote insistiu, levantando a
mão. — Não se preocupem comigo. Vejam. — Ele apontou para a
estrada entre os edifícios, onde os cantos de um enorme portão em
arco podiam ser vistos sobre os telhados. — O portão leste está bem à
frente. Não podemos parar.
— Mestre Jiro, por favor. — Reika se colocou na frente dele, sua
expressão era de preocupação e determinação teimosa. Os dois
cachorros ficaram em seus tornozelos de frente para o velho sacerdote,
parecendo ecoar suas palavras. — A última vez que sua tosse
apareceu e você se esforçou, não conseguiu sair da cama por uma
semana.
— Hakaimono já pode estar se aproximando do templo. —
Mestre Jiro argumentou, sua voz fina e rouca. — Não podemos
permitir que o Mestre dos Demônios adquira nem mesmo um pedaço
do pergaminho. Não há tempo para nos atrasarmos. — Ele se
endireitou, segurando seu bastão com força. — Eu vou aguentar. Não
posso fazer menos, o destino de todos depende de nós.
— Isso pode ser verdade. — disse Okame, enquanto uma carroça
puxada por cavalos passou por nós, as rodas rangendo contra a
terra. — Mas isso não significa que devemos nos matar tentando
chegar lá. — Ele deu uma rápida olhada na carroça enquanto ele
continuava descendo a estrada, indo em direção ao portão, então
sorriu. — Esperem aqui. Eu volto já.
— Onde você está indo, Ronin? — A donzela do santuário
exigiu, mas Okame já estava correndo para longe. Observamos
quando ele alcançou a carroça, parou e teve uma rápida conversa com
o cocheiro. O homem, talvez um comerciante ou fazendeiro, a julgar
pelo número de caixotes vazios em sua carroça, olhou para mim
quando Okame apontou o dedo em nossa direção, e seus olhos se
arregalaram sob seu chapéu de palha cônico.
— Tudo bem. — Ele anunciou, caminhando de volta para nós
com um olhar bastante presunçoso em seu rosto. — Está
acordado. Roshi concordou em nos levar para o leste até chegar à sua
cidade natal, Mada Ike. A partir daí, é meio dia de caminhada até a
Espinha do Dragão.
Reika cruzou os braços. — E o que você disse ao pobre homem
para fazê-lo concordar com isso? — ela perguntou duvidosamente.
— Simples. Eu disse a ele que Yumeko é uma onmyoji distinta
que está em uma missão secreta, mas importante para o próprio
imperador, é por isso que Taiyo-san está aqui, e que era seu dever
ajudá-la de qualquer maneira que pudesse. Ele, é claro, ficou muito
feliz em obedecer.
— Então você mentiu.
— É realmente uma mentira se o próprio imperador acredita
nisso? — O sorriso de Okame era desafiador diante da carranca da
donzela do santuário. — De acordo com o palácio imperial, Yumeko é
uma onmyoji de grande renome, que recentemente se apresentou tão
bem para Taiyo no Genjiro que lhe foi oferecida uma posição na corte
do imperador. Tenho certeza de que, se nosso sábio imperador
soubesse o que estava acontecendo com Hakaimono e o Mestre dos
Demônios, ele iria querer que cumpríssemos nossa missão. — Seu
sorriso tornou-se afiado. — Você certamente não teve escrúpulos em
marchar para o palácio sob pretextos menos que honestos. Taiyo-san
está isento porque ele não sabia na época, mas você certamente sabia
que nossa boa onmyoji é na verdade um kitsune inteligente
disfarçada. E, da última vez que verifiquei, mentir para o imperador
de Iwagoto é punível com a morte.
— Isso era necessário. — Reika não recuou. — Tínhamos que
encontrar Dama Satomi e libertar Mestre Jiro de sua magia de sangue
maligna. Você está usando um espectador inocente e puxando-o para
nossos negócios. O que estamos tentando fazer é perigoso. A vida
deste homem estará em risco apenas por estar perto de nós.
— Você quer chegar à Espinha do Dragão rapidamente ou não?
— o ronin perguntou. — Poderíamos caminhar, é claro, e perder
tempo e a saúde de Mestre Jiro marchando pelas planícies. Ou
podemos aceitar a oferta generosa de Roshi e economizar pelo menos
meio dia para chegar à base da montanha.
Reika respirou fundo para argumentar, mas foi interrompido
pela mão levantada de Mestre Jiro.
— Se este homem realmente deseja ajudar, Reika-chan, então não
vejo razão para recusar. — O velho sacerdote olhou para a carroça que
esperava com o que quase poderia ser alívio. — Não devemos
envergonhar sua casa recusando tal generosidade. Para o bem do
império, é claro.
A miko suspirou, ignorando o sorriso triunfante do ronin. —
Como desejar, mestre.
Momentos depois, com exceção de Mestre Jiro, que se sentou ao
lado do cocheiro, todos nós nos amontoamos na parte de trás de uma
carroça de madeira que rangia e nos apertamos entre as pilhas de
caixotes e barris vazios, sentindo cada salto e sacudida no vagão
enquanto descia pela estrada.
— Bem. — Okame murmurou, estremecendo quando a carroça
bateu em um declive no caminho com um solavanco que fez meus
dentes estalarem. — Não é nenhum kago, mas estamos finalmente na
estrada e nos movendo mais rápido do que se estivéssemos a pé. Isso
é algo, pelo menos. — Ele olhou para o nobre, sentado em frente a ele
com as costas retas e as mãos no colo, e um leve sorriso curvou sua
boca. — Não se preocupe, Taiyo-san. Se encontrarmos algum samurai
vindo pela estrada, com certeza gritarei para que você se esconda em
um dos barris. Não gostaria que eles vissem um nobre Taiyo viajando
em uma carroça de vegetais com um bando de camponeses sujos.
Daisuke apenas sorriu.
— Deixe-os ver. — ele disse calmamente. — Viajo com os mais
interessantes e honrados companheiros, e não tenho vergonha. Se eles
não podem ver além da aparência externa, isso é uma mancha em sua
honra, não na minha. — Uma sobrancelha ergueu-se e ele olhou para
Okame de uma maneira quase desafiadora. — A menos que você
simplesmente queira me ver mergulhar em um dos barris de saquê,
Okame-san.
O ronin sorriu. — Você iria?
— Não. — Daisuke balançou a cabeça, embora seu próprio
sorriso se alargasse. — Pelo menos... não sozinho.
Ao meu lado, Reika fez um ruído estranho de engasgo no fundo
da garganta. Pisquei para ela, enquanto Chu e Ko, sentados em uma
pilha de caixotes vazios, colocavam a cabeça para fora para olhar para
nós. — Você está bem, Reika-san? Você precisa de um pouco de água?
— Talvez algum saquê. — Ela murmurou, esfregando os
olhos. — Misericordioso Jinkei, espero que não seja assim até o
templo. Você e o matador de demônios, e agora esses dois
baka. Parece que Mestre Jiro e eu somos os únicos com nossas cabeças
no lugar.
Eu olhei para os fiapos de nuvens riscando o céu vazio e franzi a
testa. — Eu não entendo, Reika-san.
Ela revirou os olhos, mas não explicou.

A carroça continuou a sacudir, ziguezagueando, mas com passo


constante, pelas terras do Mizu, o Clã da Água. Depois que deixamos
Jujiro, a terra se achatou, tornando-se planícies onduladas com
fragmentos de nuvens flutuando acima delas. Passamos por muitos
pequenos lagos e rios, onde bandos de grous brancos e pretos se
aglomeravam ao longo das margens e na água rasa. Às vezes, um par
deles se enfrentava em uma dança estranha e saltitante, asas abertas e
pescoços esticados para o céu, quase parecendo flutuar no ar. Daisuke
parecia compartilhar do meu fascínio, pois murmurou um poema
sobre águas ondulantes, uma lua de verão e dois grous
dançando. Parecia muito bonito, mas deve ter havido um significado
oculto que eu não entendi, pois Okame ficou extremamente vermelho
e ficou olhando para a lateral d a carroça por um longo tempo depois
disso.
Em algum momento da tarde, uma crista escura apareceu contra
o horizonte, iminente e ameaçadora, fazendo minhas entranhas se
curvarem.
As Montanhas da Espinha do Dragão.
O sol subiu mais alto no céu, deslizando para dentro e para fora
das nuvens, e as planícies ondulantes continuaram. Cochilamos na
parte de trás da carroça, Reika afundou contra as caixas, Daisuke com
as mãos no colo e a cabeça no peito. Okame roncava baixinho,
ecoando as respirações rasas e ofegantes de Mestre Jiro e tosse
ocasional de frente. Meus olhos tremularam fechados, e naquele lugar
estranho entre a consciência e os sonhos, pensei ter ouvido a voz de
Tatsumi. Chamando por mim.
Um pequeno rosnado cortou o silêncio.
Abri os olhos no momento em que Chu saiu da caixa que dividia
com Ko e pulou em uma pilha de caixotes, de frente para o
vento. Erguendo minha cabeça, eu apertei os olhos sob a luz forte do
sol e olhei ao redor. Estávamos em uma larga estrada de terra que
cortava planícies abertas, um mar de grama ondulante nos cercando
em todas as direções. O vento farfalhava através dos caules, e o sol
batia sobre nós implacavelmente, limpando os rostos e avermelhando
a pele. Mas, exceto pelo zumbido das cigarras e o balanço hipnótico da
grama, nada se movia no oceano verde-prata que nos rodeava.
Chu rosnou de novo e os pelos dos meus braços se
arrepiaram. Olhei para os outros e vi os olhos de Daisuke se abrirem,
seu olhar duro e assustador. Seus dedos se apertaram ao redor do
punho da espada em seu colo.
— Daisuke. — Eu sussurrei. — O que...
Eu ouvi então, um sibilo repentino ao nosso redor, como um
enxame de insetos voando pelo ar. Ergui os olhos bem a tempo de ver
uma saraivada de flechas atingir o cavalo e o assento do cocheiro de
duas direções, pegando Roshi e Mestre Jiro em um fogo cruzado
mortal. Quando as flechas os atingiram, os dois homens se sacudiram
e tombaram para o lado do assento.
Por um momento, o mundo pareceu parar, se cristalizando em
um momento estranho e surreal onde nada era real. Então o cavalo
deu um relincho estrangulado e desabou, flechas pretas salpicando
sua lateral e pescoço, e Reika gritou.
À nossa volta, a grama explodiu, enquanto várias formas pretas
se lançavam no ar. Eu congelei, mas Daisuke girou, já de pé, sua
lâmina cortando em um arco cruel diante dele. Ouviu-se um chiado
arrepiante de metal, quando ele arrancou várias coisas do ar, e elas
brilharam ao sol quando foram desviadas. Ao mesmo tempo, três
adagas pretas brilhantes atingiram a pilha de caixotes que eu estava
sentada ao lado, cravando-se na madeira com baques agudos. Chu
saltou da pilha de caixas bem a tempo de evitar ser empalado, e o
sangue congelou em minhas veias.
— Emboscada! — Gritou Daisuke, enquanto duas figuras
vestidas de preto com máscaras saltavam em direção a carroça. Sua
espada brilhou, cortando uma figura ao meio enquanto tentava pular
na carroceria, e o assassino gorgolejou quando caiu para trás,
deixando um rastro de sangue na madeira. O outro saltou para a
borda da carroça, erguendo a espada, e foi atingido no peito por uma
flecha antes de cair no chão. Fazendo uma careta, Okame puxou outra
flecha de sua aljava e se escondeu atrás de um barril de saquê.
Outra flecha atingiu a caixa, errando meu braço por pouco e
estremeci. Eu podia ver Okame atirando flechas na grama alta,
ouvindo batidas abafadas e corpos caindo a cada dardo
disparado. Pelo canto do olho, vi Daisuke acertar uma flecha no ar,
girar graciosamente com o cabelo branco esvoaçando atrás dele e
empalar um assassino que pulava para dentro da carroça.
— Reika! — Eu engasguei, vendo a donzela do santuário
encolhida atrás de outra pilha de caixas, o rosto branco e os olhos
fixos. — Onde estão Chu e Ko? Você pode mandá-los ajudar? — Um
casal komainu andando por aí certamente daria aos assassinos algo
em que pensar.
Ela me lançou um olhar frenético e balançou a cabeça. — Eles
não são cachorros, kitsune. — Ela cuspiu. — Eles são guardiões do
santuário sagrado, destinados a afastar demônios, yokai e espíritos
malignos. Eles não podem atacar humanos normais, apenas aqueles
corrompidos pela magia do sangue.
Uma sombra caiu sobre nós. Com o coração acelerado, girei para
ver um assassino empoleirado na beira da carroça, a foice kama
erguida, antes de cortá-la em minha direção.
Eu rosnei. Reagindo por instinto, levantei minha mão, liberando
uma bola de kitsune-bi em seu rosto. Ele gritou, girando para o lado
para evitá-la, mas foi momentaneamente cego pela explosão
repentina. Enquanto ele cambaleava, Reika agarrou uma das facas de
arremesso pretas espetadas para fora da caixa, levantou-se e
apunhalou-o no pescoço com a lâmina, então o empurrou de volta
para fora da carroça.
Instantaneamente, ela recuou para trás das caixas para evitar a
súbita chuva de flechas que voou acima. Respirando com dificuldade,
ela olhou para a faca ensanguentada em sua mão, tremendo. — Oh,
kami. — Eu a ouvi sussurrar, seu rosto ficando tão pálido quanto os
grãos de arroz espalhados entre as tábuas do chão. — O que eu fiz?
— Reika. — Alarmada, inclinei-me mais perto, agarrando sua
manga. — Você está bem?
Seus olhos brilharam enquanto ela olhava para mim. — Faça
alguma coisa! — ela sibilou, me fazendo cair para trás. — Você é
kitsune! Você tem magia.
— Magia de raposa. — Argumentei. — Ilusões e sombras. Nada
do que eu faço é real.
— Isso não importa! Não para eles. — Ela apontou ferozmente
para a batalha travando atrás de nós. — Eles não sabem que você é
kitsune, ou que sua magia é apenas ilusão. Use isso a seu favor, faça-
os acreditar que o que veem é real. Se você não fizer
algo, todos seremos mortos! Não deixe a morte do Mestre Jiro ser em
vão!
Um arrepio percorreu meu corpo. Virando-me, peguei um par
de gravetos que estava no fundo d a carroça, respirei fundo e alcancei
minha magia.
Tudo bem, Kage. Flechas ainda voavam pelo ar, atingindo a
carroça, enquanto Okame e Daisuke continuavam a se defender dos
atacantes. Um fogo desconhecido se acendeu, alimentado pela raiva e
pelo medo, e senti um rosnado subindo pela minha garganta. Vocês
são tão bons em brincar de sombras e encobrir a verdade com ilusões. Vamos
ver quão vocês são bons em ver através delas!
Eu me levantei e joguei os gravetos no ar. Com um lampejo e um
estalo de relâmpago, dois enormes dragões de fogo apareceram,
espiralando no céu sem nuvens. Traçando chamas azuis e brancas,
eles se enrolaram com rugidos gêmeos e mergulharam nos assassinos
que espreitavam na grama.
Gritos de alarme encheram o ar. A saraivada de flechas cessou
quando os assassinos mudaram de alvo, atirando nas duas feras
enormes que surgiram do nada. Eles certamente não achavam que os
dragões eram ilusões. Talvez eles soubessem que algo estava errado,
mas era difícil ignorar duas serpentes uivantes descendo como deuses
vingativos.
Uma alegria repentina e selvagem inundou minhas
veias. Pegando um punhado de arroz do chão, sorri e deixei minha
magia infundir os grãos em minha mão. Assassinos humanos! Vocês
deveriam ter ficado em casa, espionando visitantes e assassinando pessoas
aliadas das trevas. Agora vocês estão lidando com uma kitsune! Joguei o
arroz na carroça e uma dúzia de cabeças flutuantes apareceu, rindo e
rangendo os dentes, enquanto voavam para a grama. Endireitando-
me, estendi a mão e a grama explodiu em um círculo de cabeças,
brilhando em azul e branco ao nos cercar.
Gemidos se tornaram gritos. Os assassinos se espalharam como
formigas, golpeando descontroladamente as cabeças em disparada,
atirando nos dragões que caíam sobre eles. No canto do meu olhar, eu
vi Okame se agachar atrás de um barril, seu rosto pálido no clarão do
kitsune-bi, enquanto um dragão voava lá em cima. Daisuke estava na
beirada da carroça, seus olhos duros enquanto ele erguia a espada e
cortava uma cabeça voadora no ar. Ela desapareceu com um estalo e
uma pequena nuvem de fumaça. O fato de meus próprios
companheiros acreditarem na insanidade que acontecia ao redor deles
me pareceu hilário, embora ninguém, exceto Reika, tivesse me visto
usar magia de raposa antes.
Vocês não viram nada ainda. Com um sorriso, peguei outro
punhado de arroz e joguei no ar. Com pequenos estouros de fumaça,
assassinos mascarados idênticos apareceram, caindo na grama. Com
gritos de batalha arrepiantes, eles ergueram as espadas e começaram a
atacar seus colegas reais, que responderam com surpresa e depois
pânico. Em pé no topo das caixas, observei o caos: os dragões rugindo,
as cabeças gritando, os dragões rugindo e os homens mascarados
atacando uns aos outros com abandono selvagem, e ri de alegria.
— Yumeko!
Algo agarrou minha manga, me tirando da minha folia. Eu
pisquei e olhei para o rosto pálido e sombrio de Reika.
— Chega. — Ela sussurrou em uma voz trêmula. — Yumeko,
isso é o suficiente. Eles estão todos mortos.
Mortos?
Piscando, eu acenei minha mão, dispensando a magia. As
cabeças se transformaram em pequenas nuvens de fumaça, as figuras
mascaradas desapareceram e as chamas branco-azuladas se
extinguiram. Os dois dragões circulando no alto estremeceram em
espirais de névoa e se dissolveram no vento, quando um par de
gravetos caiu do ar e desapareceu na grama alta.
A carroça sob meus pés balançou e uma súbita tontura fez minha
cabeça girar. A próxima coisa que eu sabia, eu estava caída contra o
canto, os rostos borrados de Reika, Daisuke e Okame parados acima
de mim.
— Yumeko. — A voz de Reika parecia vir de uma grande
distância. Pisquei, e sua expressão preocupada entrou em foco. —
Você está bem?
— Estou. — Eu não tinha percebido quanta magia meu corpo
havia usado, e o quanto isso tirava de mim, até agora. Eu teria que ter
cuidado com isso no futuro; desmaiar no meio de uma batalha ou
uma luta por nossas vidas provavelmente era uma estratégia muito
ruim.
Eu me endireitei e congelei, olhando em volta para uma cena de
massacre. Os corpos dos assassinos estavam espalhados ao nosso
redor na grama. Alguns deles tinham uma única flecha projetando-se
do peito, alojada na garganta ou disparada na cabeça. Cortesia de
Okame, eu suspeitei; no pouco tempo que eu o conhecia, o ronin
nunca havia errado um tiro. E havia alguns deitados na grama logo
abaixo da carroça, sem cabeça ou abertos com um único golpe
preciso. Sua recompensa por tentar cruzar lâminas com Oni no
Mikoto.
Mas o resto deles, espalhados pela grama com os rostos
congelados de pânico, estavam livres de flechas e longe demais para
Daisuke matar. Muitos deles estavam aos pares, suas espadas
desembainhadas e ensanguentadas, com feridas abertas que deixavam
a grama ao redor deles vermelha. Alguns foram salpicados com
aquelas facas de arremesso pretas, as lâminas de ferro escuro
afundadas profundamente em sua carne. Um assassino estava deitado
de bruços a alguns metros de distância, preso ao solo por uma espada,
a arma curva projetando-se do centro das costas.
— O que aconteceu? — Sussurrei, virando em um círculo lento,
me sentindo um pouco doente enquanto percebia a carnificina. Isso
não poderia estar certo; eu não tinha atingido nenhum deles. — Minha
magia... nada disso era real. Minhas ilusões não poderiam ter matado
ninguém.
Reika suspirou.
— Não. — Ela concordou. — Não era real, mas
eles acreditaram que era real. Eles ficaram apavorados, e quando os
seus começaram a atacá-los, eles responderam da mesma forma. Suas
ilusões não os mataram, Yumeko-chan, eles mataram uns aos outros.
Mordendo meu lábio, olhei para os outros. Agora que o ímpeto
da magia da raposa havia desaparecido, quase me senti assustada com
o que havia feito. O que meu poder realmente poderia fazer. Esta não
foi uma brincadeira simples. Eu não tinha simplesmente incomodado
ninguém fazendo uma dança do bule, ou mudei minha aparência para
parecer outra pessoa. Pessoas morreram. Claro, eles estavam tentando
nos matar primeiro, então eu não iria derramar nenhuma lágrima por
eles. Mas isso ainda não mudava o que eu era responsável: puro caos
sem sentido. Loucura, confusão e morte.
— Yumeko-san. — A voz de Daisuke era sombria, sua expressão
entre horror e espanto enquanto me observava. — Os dragões, aqueles
monstros. Isso foi... você?
— Gomen. — Eu sussurrei, sem saber para quem eu estava me
desculpando, ou por quê. — Eu não...
Um gemido baixo veio de trás da carroça, nos fazendo
endireitar. Corremos ao redor do corpo amassado do cavalo morto até
onde Mestre Jiro estava deitado na grama alta, um Ko lamurioso ao
lado dele. A poucos metros de distância, Roshi, nosso cocheiro,
também esparramado imóvel na estrada, os olhos em branco
enquanto olhavam para o céu, um trio de flechas projetando-se de seu
peito.
— Mestre Jiro. — Reika se ajoelhou ao lado do sacerdote, seu
rosto tenso de dor e raiva. As flechas perfuraram seu estômago e
ombro, e um fio vermelho rastejou pelo queixo. Não havia nada que
pudéssemos fazer por ele e todos sabiam disso. — Maldito Senhor
Iesada. — Reika sibilou, mostrando os dentes. — Esses eram os
shinobi dele, tenho certeza disso. Outro ataque covarde para nos
impedir de alcançar o matador de demônios. Amaldiçoo as cortes e
sua política sem fim até as entranhas de Jigoku. — Ela tremia de fúria,
então respirou fundo, estremecendo para se recompor. — Sinto muito,
Mestre Jiro. — ela sussurrou. — Esta não era sua luta. Eu gostaria que
nunca tivéssemos arrastado você para essa confusão.
O sacerdote tossiu. — Não se arrependa, Reika-chan. — Ele
respirou. — O arrependimento não resolve nada. Ambos conhecíamos
os riscos... quando concordamos com esta missão. Mas agora, você
deve garantir que Yumeko e o pergaminho... cheguem ao
templo. Você não pode permitir... Hakaimono recuperar a oração para
o Mestre dos Demônios. Genno não pode convocar o dragão. Isso
significaria a ruína do mundo inteiro. — Sua mão murcha agarrou sua
manga com força desbotada, e ele olhou para mim agora, também. —
Pare Hakaimono. — ele ofegou. — Qualquer que seja o
custo. Prometa-me que não vai deixar o Mestre dos Demônios vencer.
— Mestre Jiro. — A voz de Reika estava entorpecida de
desespero, e ela olhou para o sacerdote moribundo em desespero. —
Por favor. Nós precisamos de você. Eu não posso... Eu não sou forte o
suficiente para amarrar Hakaimono sozinha.
— Sinto muito, Reika-chan. — Murmurou o sacerdote, sua voz
quase inaudível. — Eu temo... que devemos nos separar por
agora. Você deve certificar-se de que o pergaminho alcance o templo e
que Hakaimono seja parado. Nada mais importa. Mas eu ouço Meido
chamando, e devo ir. — Seus lábios se curvaram no mais fraco dos
sorrisos, enquanto a luz em seus olhos piscava e começava a
desaparecer. — Você sempre foi... tão talentosa. — Ele murmurou,
enquanto todo o seu corpo enrugado relaxava na grama. — Eu estou
orgulhoso.
Ele não se moveu novamente.
Reika fungou, claramente tentando não chorar, enquanto punha
as mãos no peito sem vida do sacerdote. — Eu vou vingar você. — Ela
sussurrou, um brilho de aço em seus olhos escuros. — Se o Senhor
Iesada foi o responsável por isso, eu o encontrarei novamente e o farei
pagar. E não vou deixar Hakaimono se aproximar do
pergaminho. Você tem minha palavra.
Atrás de nós, Ko jogou a cabeça para trás e uivou, fazendo todos
nós pularmos. O minúsculo corpo do cão branco começou a brilhar,
ficando cada vez mais brilhante até que, com um clarão ofuscante,
explodiu em partículas de luz e desapareceu. Sentado sozinho no
chão, Chu ergueu o focinho para o céu e uivou também, longo e
pesaroso, enquanto o sol pairava sobre as planícies vazias e as
montanhas da Espinha do Dragão surgiam no horizonte.
Capítulo 18
Yuki onna
Hakaimono

Tatsumi estava em silêncio novamente.


Nos dois dias desde que deixamos o castelo de Genno, eu não o
havia sentido em nada. Nenhum lampejo de emoção, nenhum indício
de pensamento ou sentimento que não fosse meu. Ele se retirou
profundamente dentro de si mesmo, fechando-me completamente, e
nada que eu fizesse parecia penetrar na parede que ele ergueu entre
nossas consciências. Se eu não estivesse tão concentrado em viajar
para o templo Pena de Aço, poderia ter ficado preocupado, ou pelo
menos curioso; por que essa mudança repentina? O que poderia ter
acontecido para fazê-lo esconder seus pensamentos de mim
completamente? Como estava, no entanto, eu tinha outros problemas
com que me ocupar.
Como encontrar um templo escondido em algum lugar nas
montanhas da Espinha do Dragão.
Pelo menos foram dois dias fáceis de viagem, viajando pelas
planícies onduladas e arborizadas do Clã da Água. Viajei à noite,
evitando as grandes cidades, fazendas e aldeias espalhadas pelas
planícies, como se alguém tivesse jogado um punhado de arroz e
deixado cair onde queria. Havia muitas cidades. Exceto pela família
imperial, os Mizu eram possivelmente os mais ricos dos grandes clãs
simplesmente em virtude da localização; suas terras eram exuberantes
e férteis, protegidas pelo oceano a oeste e pelas Montanhas da Espinha
do Dragão a leste. E a Floresta dos Mil Olhos separava suas terras de
seus vizinhos esquentados ao sul. Adicione o fato de que os Mizu
eram bem conhecidos por seu pacifismo, e que eles possuíam os
melhores curandeiros do império, e o Clã da Água raramente tinha
lutas com o resto do império. Ou, pelo menos, eles tinham menos
lutas do que os Hino, o Clã do Fogo, que, ao que parecia, declarava
guerra contra os outros clãs a cada dois anos.
Na terceira noite, finalmente cheguei ao sopé das Montanhas da
Espinha do Dragão. A maior cordilheira de Iwagoto começava bem ao
sul no território do Clã da Terra, curvava-se passando pelas terras do
Fogo e do Sol e terminava perto da Baía da Boca do Dragão no
território do Clã da Água, essencialmente cortando o império pela
metade. Era um trecho árido e interminável de picos gelados e
penhascos altos, e eu já estava um pouco irritado por ter que cruzá-lo
uma segunda vez. Havia uma passagem que cortava a Espinha do
Dragão, mas era mais ao sul e também fortemente protegida, e eu não
iria perder mais dois dias viajando ao redor das montanhas.
Encostado em um pinheiro na base das colinas, olhei para
cima. A Espinha do Dragão se erguia acima de mim, eriçada e escura,
exceto onde a neve tocava seus picos mais altos. Em algum lugar entre
aqueles penhascos e picos cobertos de gelo estava o templo que
continha as últimas peças do pergaminho.
Senti um lampejo de irritação que beirava a raiva. Eu era
Hakaimono, o Destruidor, o oni mais forte de Jigoku, sendo enviado
para buscar um item como um cachorro. O fato de Genno ter
prometido quebrar a maldição de Kamigoroshi não ajudava. Talvez
quando eu tivesse concluído esta tarefa e Genno tivesse confirmado
sua parte no negócio, eu lembraria ao Mestre dos Demônios por que
sempre era um negócio arriscado barganhar com Jigoku. Uma coisa
era certa, quando eu estivesse livre da espada e com todo o meu
poder, o Clã das Sombras pagaria pelos séculos de prisão, loucura e
tortura que eu sofri desde o dia em que Kage Hirotaka fez seu desejo
ao Dragão mil anos atrás. Eles morreriam em massa, homem, mulher
e criança, e eu não pararia até que fizesse meu caminho até sua
daimyo imortal, arrancasse a cabeça de seu pescoço murcho e
arrancasse o coração de seu peito para comê-lo na frente de dela.
Fiz uma pausa em meus pensamentos de vingança e voltei
minha consciência para dentro. Nada, Tatsumi? Pensei no vazio por
dentro. Eu sei que você ainda está aí. Nem mesmo um lampejo de remorso
pela destruição completa de seu clã? Você desistiu tão facilmente? Eu
ponderei isso, então sorri. Ou é outra coisa, alguma uma pessoa que você
está preocupado?
Houve um leve movimento, como uma aranha se afundando
ainda mais em uma fenda para escapar de um predador. Eu ri. Oh,
Tatsumi. Você não pode esconder o que sente por aquela garota de mim. Mas
não se preocupe; tenho algo especial planejado para ela. Ela vai morrer
lentamente, gritando de agonia, e você será forçado a assistir. Antes que ela
morra, vou garantir que ela saiba que você pode ver tudo e não pode salvá-
la. O que você acha disso?
Nada. Nenhuma centelha de emoção da alma por dentro; ele
havia fechado sua mente com força. Mas eu sabia que havia tocado em
um ponto nevrálgico; sua preocupação com a raposa era
flagrantemente óbvia, embora o próprio assassino de demônios não
entendesse o que ele estava sentindo. Os humanos eram
pateticamente fracos quando se tratava de emoções; que uma kitsune,
uma yokai que o enganou desde o início, que mentiu para ele, o fez de
bobo e o colocou em perigo inúmeras vezes, de alguma forma
conseguiu ter seu afeto, era a prova disso. Ele deveria tê-la matado
quando eles se encontraram pela primeira vez na estrada para o
templo Ventos Silenciosos. Ele deveria tê-la derrubado sem piedade, e
se salvado do tormento que viria depois.
Mas era tarde demais. Eu conhecia seu segredo. E quando
chegasse a hora e a garota raposa estivesse à minha mercê, eu
saborearia a raiva, a dor e o desespero de Tatsumi por muitos anos.
Comecei no sopé, seguindo uma trilha de caça estreita enquanto
ela serpenteava por entre árvores e pedras. O ar ficava mais frio à
medida que eu viajava, até que vi pequenas rajadas dançando com o
vento.
Eu pisquei. Inferno? O que é isso? Já era tarde demais para
neve; mesmo tão perto das Montanhas da Espinha do Dragão, eu não
deveria ter visto branco até passar da linha das árvores.
A neve, no entanto, piorou, os flocos ficando grandes e pesados
enquanto eu abria caminho para o sopé. Logo tudo, solo, árvores,
pedras e galhos, estava coberto por uma espessa camada de branco.
E ainda assim, a tempestade se intensificou.
A neve começou a cair, atingindo as árvores e galhos, cobrindo o
manto fresco de neve com uma camada de gelo. Doeu como pequenas
agulhas ao atingir minha pele, ensopando minhas roupas e cobrindo
meus chifres com gelo. A visibilidade desapareceu, junto com todo o
senso de direção. Era impossível ver para onde eu estava indo com a
neve, o gelo e o vento forte.
Tudo bem, isso é ridículo. Alcançando, eu raspei meia polegada de
gelo de meus chifres e balancei minha cabeça para desalojar a
neve. Sincelos pendiam de minhas presas e minhas calças hakama
estavam congeladas e duras. Quem quer que esteja por trás disso, você é
tão sutil quanto um demônio em uma casa de chá, e estou começando a ficar
irritado.
Protegendo meu rosto, tropecei em uma curva e a neve...
parou. Abaixei meu braço e me encontrei na beira de uma aldeia
abandonada completamente envolta em gelo. Cabanas com telhado de
colmo estavam espalhadas por toda a minúscula clareira, cada uma
perfeitamente preservada em uma camada de cristal. Enquanto eu
caminhava cautelosamente para frente, todos os sentidos alertas e
prontos para uma luta, eu rapidamente descobri que não estava
abandonado.
Uma velha, congelada no gelo, estava imóvel perto da cerca de
bambu que cercava a aldeia. Ela segurava um balde e seu rosto estava
voltado para cima, os olhos arregalados e congelados de terror. Um
cachorro congelado estava caído de lado a alguns metros de distância,
as pernas estendidas como se tivesse corrido de volta para a
aldeia. Atrás da velha, uma criança agachada na neve, um braço
estendido na direção do cachorro, pingentes de gelo pendurados em
dedos quebradiços. Curvando os lábios, tirei Kamigoroshi e atravessei
o portão da vila congelada.
Mais humanos e animais mortos e cobertos de gelo saudaram
meu olhar enquanto eu me aventurava mais adiante: uma mãe
carregando seu filho, um velho empurrando uma carroça, uma cabra
enrolada com o focinho enfiado na lateral, dormindo para
sempre. Uma quietude anormal pairava no ar, quebrada apenas pela
minha respiração e o som de gelo quebrando na brisa. A neve
começou a cair novamente, caindo do céu para cair sobre os telhados e
os corpos congelados. Exceto pelo leve ruído de meus pés, a vila
estava em um silêncio mortal.
Perto do poço no centro da aldeia, parei. Abaixando
Kamigoroshi, olhei ao redor da clareira silenciosa e envolta em gelo,
respirei fundo e levantei minha voz.
— Eu sei que você está aqui. — Eu chamei na quietude. — E eu
tenho certeza que você está esperando por mim. Pare de jogar e vamos
em frente.
Uma risada ecoou ao meu redor, impossível saber de qual
direção. Agarrei Kamigoroshi e esperei, examinando os espaços entre
as cabanas, o confuso jogo de luz sobre a superfície de gelo e neve.
A risada veio novamente, atrás de mim desta vez. Eu girei, mas
não havia nada lá, apenas uma nuvem de rajadas sendo levadas pelo
vento.
Eu sei quem você é, sussurrou uma voz, de mulher, na brisa. Por
que você não fica mais um pouco, Hakaimono, e me faz companhia?
Eu sorri. — Como esses aldeões estão fazendo companhia a
você? — Eu voltei. — Eu prefiro não, obrigado. Sem ofensa, mas odeio
o frio.
Uma fungada desdenhosa. Os mortais são criaturas tão chatas. A
voz varreu o solo congelado como uma brisa, nunca ficando em um
lugar, embora eu ainda não pudesse ver nada, exceto pequenos
redemoinhos de neve saltando sobre o gelo. Um toque, um beijo, e sua
pele fica azul, suas vísceras congeladas. Eu me pergunto se um oni de Jigoku
seria mais resistente?
Houve um brilho pálido no canto do meu olho e me virei.
Uma mulher estava na beira da clareira onde nada havia antes,
redemoinhos de neve e gelo cintilando ao seu redor. Suas vestes
esvoaçantes eram de um branco imaculado com espirais de um azul
gelo, as mangas arrastando até o chão congelado. O cabelo comprido e
preto esvoaçava ao vento, as pontas parecendo se contorcer na névoa,
assim como a bainha de seu manto e mangas. Sua pele era mais
branca do que a neve caindo ao nosso redor, seus lábios do azul claro
de um cadáver congelado.
A yuki onna sorriu para mim acima da clareira gelada, olhos
azuis frios brilhando como gelo, e levantou a mão. — Vamos
descobrir, vamos?
Eu mergulhei para longe quando uma rajada de ar frio gritou na
minha direção, deixando um rastro irregular de lanças de gelo em seu
rastro. Rolando para os meus pés, vi que a yuki onna apareceu a
poucos metros de distância, cabelos e mangas ondulando ao redor
dela enquanto ela sorria para mim. Eu levantei Kamigoroshi e avancei
com um grunhido, mirando naquele pescoço magro e pálido,
enquanto os lábios da yuki onna se separavam e ela soprava em
minha direção.
O vento guinchou ao meu redor, uivando em meus ouvidos,
rasgando minha crina e roupas. O gelo cobriu minha pele e se
espalhou rapidamente pelo meu corpo. Meus músculos enrijeceram e
congelaram com o frio entorpecente. O frio inundou meu nariz e boca,
tornando-se sólido, cortando o ar para meus pulmões e fazendo
minha visão embaçar.
A yuki onna parou e recuou com um sorriso sereno no rosto. Eu
não conseguia me mover, paralisado no meio de um mergulho com
Kamigoroshi estendida diante de mim. Através da minha visão
embaçada, eu podia ver meus braços e a espada cobertos de gelo com
vários centímetros de espessura, pendurados como lanças na minha
pele e no gume da lâmina.
A yuki onna riu, sua voz soando abafada em meus ouvidos
gelados. — Aí está, Hakaimono, você pode me fazer companhia,
afinal. — Ela disse, flutuando ao meu redor como uma escultora
admirando sua obra de arte. — Eu acho que você é possivelmente a
melhor das minhas estátuas. Certo que você deveria estar aqui, no
centro da vila, onde todos poderão te ver.
Tudo bem, agora eu estava com raiva. Eu não conseguia respirar,
não conseguia falar e, como afirmei antes, detestava sentir frio. A yuki
onna deu uma risadinha e girou no lugar, sorrindo para mim através
da prisão de gelo, e meu sangue ferveu.
Com um rugido e o som de porcelana quebrando, a prisão de
gelo se estilhaçou, cacos congelados voando em todas as direções. A
yuki onna girou, os olhos se arregalando, enquanto eu me sacudia e
dava um passo à frente, trazendo Kamigoroshi para a luz.
— Essa é a sua melhor tentativa? — Eu zombei, expondo minhas
presas e perseguindo em sua direção. A mulher da neve flutuou para
trás, seu rosto branco em branco. — Você pensou que poderia parar
um oni com frio e gelo? — Eu ri, o som ecoando na vila congelada. —
O fogo do Jigoku corre em minhas veias. Você também pode esperar
que uma bola de neve sobreviva a ser lançada em um vulcão.
— Demônio insolente. — O rosto da yuki onna se contorceu de
raiva e ela ergueu o braço. Neve girou em torno de seus dedos e, com
um lampejo de gelo, uma lança yari brilhante apareceu em sua
mão. Abaixando a arma, ela apontou a cabeça brilhante para mim. —
Eu sou Yukiko do Norte. — Ela anunciou, quando o vento começou a
soprar em seus cabelos e mangas, transformando-os em névoa. — O
fantasma das Montanhas Presa de Gelo. Eu congelei exércitos de
homens em seus rastros. Você não irá mais longe, Hakaimono.
Segurei Kamigoroshi e agachei-me. — Eu gostaria de ver você
me impedir.
A yuki onna estreitou os olhos azuis brilhantes... e desapareceu
em um redemoinho de neve. Contei três batimentos cardíacos antes de
girar, erguendo minha espada, quando a mulher apareceu atrás de
mim com uma rajada de vento, apunhalando sua yari no meu peito. A
arma de gelo foi arremessada com um guincho, e eu cortei
Kamigoroshi na cabecinha pálida de minha oponente, na esperança de
cortá-la de seu pescoço. Ela disparou para trás como uma marionete
amarrada a cordas, então voou para mim novamente com uma
enxurrada de estocadas incrivelmente rápidas. Eu caí para trás antes
do ataque, balançando com Kamigoroshi e jogando as pontas de lança
para longe enquanto a yuki onna me perseguia pela aldeia. Ela era
muito rápida, eu tinha que admitir, sorrindo enquanto eu voltava pela
aldeia. Muito mais rápida do que uma humana poderia esperar ser, e
bastante habilidosa com aquela yari de gelo. Esta seria uma boa
luta; eu estava me divertindo muito, embora algo me incomodasse no
fundo.
Desviando um golpe de lança, girei com o movimento,
circulando dentro do alcance da donzela da neve, e ataquei com
Kamigoroshi, mirando naquele pescoço esguio e branco. Os olhos da
yuki onna se arregalaram, mas um momento antes de a borda cortar a
cabeça de seu corpo, ela se dissolveu em um redemoinho de neve e
névoa. A lâmina passou sem causar danos, lançando rajadas em seu
rastro, e eu rosnei, balançando a cabeça.
Abaixando meu braço, olhei ao redor da vila, observando
cuidadosamente os redemoinhos de neve enquanto giravam e
dançavam no chão.
— Yukiko do Norte. — Eu repeti, virando-me em um círculo
lento, sabendo que a donzela da neve podia me ouvir. — Fantasma
das Montanhas Presa de Gelo. Os Kage contam histórias sobre você,
sabia disso? Você sabe por que eles nunca se preocuparam em enviar
seu assassino de demônios atrás de você? Porque eles não se
importavam com os exércitos invadindo o território de Sora, ou as
guerras entre os Clãs do Céu e do Vento. Porque o fantasma do Norte
permanecia no Norte, e contanto que você não se intrometa nos
assuntos Kage, eles não têm razão para vir atrás de você. Até mesmo
um yuki onna cujo território está cheio de ossos e armas de um
exército, escondido sob a neve.
Não houve resposta da aldeia congelada, apenas o vento
uivando pelas rochas e picos circundantes. Continuei a examinar os
arredores com cuidado, todos os sentidos preparados para responder
se necessário. — Então, minha única pergunta é o que o Fantasma das
Montanhas Presa de Gelo está fazendo aqui na Espinha do Dragão,
tão longe de casa? Este não é o seu território. Você não tem direito a
essas montanhas, nenhuma razão para estar aqui. A menos que... —
fiz uma pausa, sorrindo quando a razão óbvia veio à tona. — A única
razão de você estar aqui, neste exato local, neste exato momento, é
porque você sabia que eu estaria passando por aqui. — Eu disse. —
Você está aqui por mim.
Houve uma rajada de ar gelado nas minhas costas. Eu girei,
batendo para longe a lança de gelo que apunhalaria meu
peito. Imediatamente, a yuki onna desapareceu novamente,
dissolvendo-se em redemoinhos de neve, depois veio para mim mais
uma vez de outra direção. Eu mal evitei ser espetado uma segunda
vez, mas não tive tempo de responder antes de me encontrar me
defendendo de ataques rápidos de todos os lados. A donzela da neve
avançava, apunhalando meu peito ou rosto; eu desviava e ela
desapareceria em uma nuvem branca, apenas para repetir o ataque de
outra direção. Cambaleando sob o ataque implacável, eu ataquei
violentamente a donzela da neve na minha frente, apenas para vê-la
desaparecer como antes. Ao mesmo tempo, algo finalmente atingiu a
parte de trás do meu ombro, enviando um choque de dor pela minha
espinha.
O aborrecimento aumentou. A donzela da neve apareceu diante
de mim em um redemoinho branco, mas desta vez, em vez de desviar
o golpe de yari em meu peito, ignorei a arma e golpeei a yuki onna. A
ponta da lança gelada me atingiu nas costelas, alojando-se entre os
ossos, mas Kamigoroshi mordeu o braço da donzela da neve,
cortando-a no cotovelo. Com um grito agudo, a yuki onna recuou,
agarrando-se ao coto pálido, e desapareceu.
Estremecendo, eu me abaixei e arranquei um pedaço de gelo de
minhas costelas, a ponta pontiaguda coberta de sangue
fumegante. Enquanto eu observava, a coisa toda derreteu em minha
mão, correndo entre minhas garras e pingando na neve.
— Monstro.
A donzela da neve apareceu mais uma vez, olhando para mim
com olhos azuis brilhantes. Sua manga vazia ondulou e balançou com
o vento, mas enquanto eu observava, a neve girou em torno dela, e
um novo braço pálido emergiu da tempestade branca, segurando
outra yari de gelo que enrugou quando surgiu. Brandindo a arma, ela
me deu um sorriso arrepiante e triunfante.
— Você não pode me derrotar, Hakaimono. — disse a yuki onna,
avançando novamente. — Eu sou tão informe quanto a neve caindo,
tão eterna quanto o inverno. — Ela girou a yari, flutuando em minha
direção com uma expressão cruel e assassina no rosto. Eu reconheci
aquele olhar. Ela finalmente se cansou de brincar com sua presa e
estava vindo para matar. — Lutar comigo... — continuou o yuki onna
com uma voz suave e letal. — É tão fútil quanto tentar cortar uma
nevasca. Eu não sou de carne e osso, sou o frio ganhando vida. E eu
estou em todo lugar.
Flocos brancos giraram em torno dela, um redemoinho
chicoteando no ar. Enquanto ela falava, ele se separou, tornando-se
dois, quatro, oito redemoinhos separados que me
cercaram. Abruptamente, os ventos morreram, desaparecendo,
deixando-me cercado por oito donzelas idênticas, cada uma
apontando uma yari de gelo letal em minha direção.
— É hora de você morrer, Hakaimono. — As yuki onnas
disseram, oito vozes idênticas soando como uma. — Como todos os
mortais antes de você. Eles pensaram que poderiam sobreviver à
tempestade, e ao frio e ao gelo, e seus corpos congelados jazem sob a
neve, preservados para sempre. — As donzelas da neve giraram suas
lanças, e o vento ao nosso redor se tornou um vendaval. — E agora,
você pode se juntar a eles!
Elas voaram para mim de uma vez, lampejos cegantes de branco
contra a neve. Eu ataquei com Kamigoroshi, cortando duas no ar de
uma vez, então chicoteando a lâmina para cortar outro par. Com
gritos agudos, elas se dissolveram em rajadas e desapareceram.
Infelizmente, não pude matar todos elas.
Uma dor lancinante rasgou meu corpo, quando quatro lanças de
gelo se chocaram contra mim, arranhando o osso e cortando a carne
enquanto mergulhavam profundamente. Senti as pontas da navalha
perfurarem minhas costelas, meu ombro, minha coxa e costas,
espetando-me como uma boneca de palha, e apertei minha mandíbula
para não uivar.
Eu caí contra as lanças e ouvi a risada aguda das yuki onnas. —
Entendeu? — Elas zombaram, e três delas desapareceram em um
rodopiante pó branco. A última yuki onna mostrou os dentes em um
sorriso selvagem, a lâmina da yari afundada no meu ombro. — Você
não pode vencer contra o próprio frio, Hakaimono. Seu sangue e sua
carne congelarão e você morrerá, congelado em minha lança, para
sempre.
Levantando minha cabeça, encontrei seu olhar e sorri.
— Eu acho que você está esquecendo de algo. — Eu disse a ela,
fazendo suas sobrancelhas caírem bruscamente em uma carranca. —
O inverno não é eterno. Todos os anos ele se transforma na primavera
e depois morre no verão. Seu resfriado pode matar, congelar a carne e
transformar as coisas em gelo, mas o fogo e o calor irão levá-la de
volta e derreter você em uma poça que evapora com o vento.
Eu respirei, sentindo as lanças de gelo se dissolverem, enquanto
meu sangue jorrava e começava a escorrer para o chão, sibilando e
deixando buracos onde atingiu. Colocando minha mão livre em meu
estômago, eu sorri para a carrancuda yuki onna.
— O inverno não dura para sempre. — disse eu. — Nada neste
reino perdura. Mas Jigoku... Jigoku é eterno. E os incêndios que
queimam minha terra natal derreteriam este lugar em um piscar de
olhos. Eu carrego o fogo de Jigoku em minhas veias, e está mais do
que quente o suficiente para lidar com o seu gelo!
Eu estendi minha mão e um jato de sangue escuro e fumegante
atingiu a yuki onna no rosto. Chiava onde tocava, derretendo buracos
na pele pálida e delicada, queimando seu manto como fogo no
papel. A donzela da neve gritou, um som agudo que fez com que
pingentes de gelo surgissem do chão aos meus pés. Ela soltou a lança
e levou as duas mãos ao rosto, a neve girando em torno dela, tentando
curar as marcas de queimadura. Eu levantei Kamigoroshi, enquanto o
fogo roxo irrompeu ao longo do fio da espada, e o trouxe cortando a
yuki onna, dividindo-a em duas. Desta vez, ela não explodiu ou
desapareceu em uma nuvem de neve. As pontas onde eu a cortei ao
meio pegaram fogo, chamas índigo consumindo-a de baixo para cima
enquanto ela gritava e se contorcia na conflagração, cabelo e mangas
balançando descontroladamente e finalmente se dissolvendo em
cinzas.
Rangendo os dentes, caí e ajoelhei-me na neve enquanto a última
das lanças de gelo derretia e meu sangue vazava em rios para o
chão. Droga, eu não tinha tempo para tais distrações. Isso não me
mataria, mas até eu teria que me recuperar um pouco depois de ser
atravessado por pingentes de gelo gigantes. O confronto me lembrou
novamente como os corpos mortais realmente eram muito frágeis. O
Fantasma do Norte era uma antiga yuki onna que matou centenas de
humanos, congelando exércitos inteiros no lugar e deixando o chão de
seu território coberto de corpos brancos rígidos, mas eu não deveria
ter que confiar em derramar meu próprio sangue para destruir um
inimigo, mesmo um poderoso.
À minha volta, a neve estava derretendo na terra com a morte da
yuki onna. Os humanos congelados espalhados pela vila foram
lentamente descobertos enquanto o gelo derretia, seus corpos caindo
ou desabando no chão, perdendo a beleza mórbida de uma estátua de
gelo imaculada e revertendo para cadáveres comuns.
Cerrando o queixo, me endireitei e caminhei em direção a uma
das casas que estavam descongelando, deixando respingos de
vermelho atrás de mim na lama. Ser atravessado por várias lanças,
embora não fosse fatal, definitivamente levaria algum tempo para
curar. Que provavelmente era a intenção de quem tinha enviado a
yuki onna. O Fantasma do Norte não decidiu seguir esse caminho
exato por capricho, não quando sua cordilheira estava do outro lado
do império no território do Clã do Céu. Ela foi enviada aqui para me
atrasar ou para me impedir no caminho. O que significava que alguém
sabia que eu estava procurando pelo templo Pena de Aço e não queria
que eu chegasse lá.
Genno.
Eu balancei minha cabeça. Não, isso não fazia sentido. O Mestre
dos Demônios precisava de mim para alcançar o templo e o
pergaminho; tentar impedir meu progresso era contraproducente para
seus planos. Embora eu não o traísse depois de pegar o pergaminho,
ele não tentaria me impedir de pegá-lo, a menos que fosse muito
estúpido.
Yumeko?
Com um bufo, descartei esse pensamento também. A garota
kitsune não era velha ou poderosa o suficiente para lidar com algo
como a yuki onna. E mesmo se ela fosse, sua preocupação óbvia por
Kage Tatsumi a impediria de enviar um espírito tão poderoso para
bloquear seu caminho e possivelmente matá-lo. Ela se importava
muito com o matador de demônios para lhe causar mal.
Eu sorri, entrando na cabana. A água pingava do telhado de
palha, acumulando-se no chão de terra, mas um canto estava bastante
seco, já que a neve tinha ficado quase toda do lado de fora. Meia-raposa
tola, pensei, puxando a bainha de Kamigoroshi do meu obi e me
sentando. Tão transparente, você e Tatsumi. Seus sentimentos pelo matador
de demônios farão com que você e todos os seus amigos sejam mortos. Não
espere que eu mostre misericórdia quando finalmente nos encontrarmos.
Cerrando minha mandíbula, eu lentamente me inclinei contra a
parede, colocando Kamigoroshi contra um ombro enquanto me
recostava. A yuki onna fora mandada aqui para mim, isso era
certo. Então, se não foi Yumeko ou o Mestre dos Demônios que a
enviou, isso significava que havia outra pessoa, alguma outra coisa,
tentando me manter longe do pergaminho do Dragão. Outro jogador
neste jogo.
Tudo bem então. Inclinando minha cabeça para trás, fechei meus
olhos com um sorriso. A yuki onna havia me incomodado, mas
minhas feridas estavam cicatrizando lentamente. Achava que estaria
bem amanhã. As coisas estão ficando interessantes. Seja você quem for,
espero que esteja pronto para me enfrentar assim que eu chegar ao
templo. Porque nada vai me impedir de chegar ao pergaminho, mesmo que eu
tenha que abrir caminho em um exército para chegar até ele.
Capítulo 19
O som de uma flauta
Yumeko

Nós enterramos Mestre Jiro no topo de uma pequena colina nas


planícies onduladas do Clã água. Deixar seu corpo para os corvos e
necrófagos era impensável, pois seu fantasma poderia permanecer no
local de sua morte, incapaz de seguir em frente, se seu corpo não fosse
devidamente cuidado. Não tínhamos ferramentas para cavar uma
sepultura, então passamos a tarde procurando pedras, lentamente
construindo um monte para cobrir o sábio velho sacerdote. E, como
Okame insistiu, também construímos uma pequena sepultura para
Roshi, nosso cocheiro, o homem que foi morto simplesmente porque
concordou em nos ajudar. Quando terminamos, um par de sepulturas
de pedra estava no topo da elevação, o cajado de Mestre Jiro
empurrado para cima no centro da maior. E todos nós ficamos
solenemente enquanto Reika, seus olhos vidrados, mas determinados,
realizava o ritual de morte para ajudar uma alma a passar para o
próximo mundo. Sua voz cantante ecoou pelas planícies, carregada
pelos ventos, uma ladainha assombrosa que zumbia em minha cabeça
e se entrelaçava com meus pensamentos.
Isso é minha culpa.
Cerrei o punho sob a manga, sentindo minhas mãos
tremerem. Eles morreram por minha causa, me protegendo. Quantos
mais? Olhei para meus amigos, para Okame e Daisuke, parados lado a
lado. A expressão de Daisuke, como sempre, era composta,
expressando a mistura perfeita de remorso sereno. Okame, de pé com
os braços cruzados e a mandíbula cerrada, parecia que iria rosnar para
qualquer um que o tocasse ou cairia no choro. Reika cantava, sua voz
tremendo apenas ligeiramente, seu cabelo e mangas ondulando com o
vento, e Chu sentou-se afetadamente na grama, o topo das orelhas
quase invisível. Quantos mais morrerão antes que isso acabe? Quando eu
enfrentar Hakaimono e Tatsumi, serei forte o suficiente para fazer o que
precisa ser feito?
Estendi a mão e toquei o furoshiki sob minhas vestes, sentindo o
fino estojo do pergaminho dentro. A coisa que Mestre Jiro, e tantos
outros, deram suas vidas para proteger. Mestre Jiro, Mestre Isao e
todos os monges do templo Ventos Silenciosos. A lista de nomes dos
mortos estava crescendo, de fato. Temia que, ao final dessa aventura,
fosse ainda mais longa. E ainda era uma longa jornada até nosso
destino.
Um passo de cada vez, disse a mim mesma. Encontre o
templo. Enfrente Hakaimono, leve-o de volta para a espada e liberte
Tatsumi. Passe o pergaminho para os guardiões que estiverem esperando por
ele. Então você estará pronta. Você terá cumprido sua promessa ao Mestre
Isao. Depois disso...
Eu vacilei. Então o que? O que acontecia a seguir para mim
depois de entregar o pergaminho? Eu não tinha casa, nada para onde
voltar. Talvez, quem quer que vivesse no templo Pena de Aço me
deixaria entrar na ordem deles? Mas esse pensamento fez meu nariz
enrugar. Eu tinha visto muito. Eu estive na grande capital dourada e
nas terras envoltas em sombras dos Kage. Eu tinha conversado com
monstros, yokai, yurei e demônios. Eu havia lutado contra grandes
males, visto maravilhas e magia, e havia atuado para o próprio
imperador de Iwagoto. E, no entanto, eu sabia que havia mais por
aí. Mais para ver, para experimentar. Agora que estava fora das
paredes do templo, não queria voltar. Como poderia, quando
finalmente sabia o que havia além?
Não seja ingênua, Yumeko. Você realmente acha que tudo acabará
quando você entregar o pergaminho ao templo? E quanto a Dama Hanshou e
o Mestre dos Demônios? E quanto a Tatsumi?
Meu estômago se revirou. Tatsumi. O que aconteceria com o
matador de demônios se eu conseguisse libertá-lo e enfiar Hakaimono
de volta na espada? Sua missão, antes que o Primeiro Oni assumisse o
controle, era recuperar os pedaços do pergaminho do Dragão. Ele
continuaria sua missão, mesmo que isso significasse lutar contra os
guardiões do templo Pena de Aço? E... o resto de nós? Reika, eu sabia,
nunca permitiria que ele levasse o pergaminho de volta para Dama
Hanshou, e Daisuke protegeria sua família, seu clã e seu imperador a
todo custo. O único ponto de interrogação era Okame, mas tive a
sensação de que ele também não gostaria que o Clã das Sombras
colocasse as mãos no Desejo do Dragão. Tatsumi atacaria todos eles
para adquirir o pergaminho? Se ele fizesse, se fosse para escolher
entre Kage Tatsumi e proteger o pergaminho, o que eu faria? Com
quem eu ficaria?
Eu estava cometendo um erro terrível ao tentar salvá-lo?
— Yumeko.
A voz de Reika me puxou para fora das minhas reflexões
sombrias. A donzela do santuário estava diante de mim, parecendo
cansada. Ela tinha olheiras sob seus olhos e sua pele estava pálida,
mas seus olhos estavam secos. — Terminamos aqui. — disse ela em
voz baixa. — É hora de seguir em frente.
Silenciosamente, continuamos descendo a estrada a pé, longe
dos corvos e pássaros necrófagos que já se reuniam, e o local da
emboscada logo desapareceu atrás de nós.
Naquela noite, acampamos em um leito de riacho quase seco,
muito perto da estrada. De acordo com Okame, que havia falado com
Roshi antes da infeliz morte do cocheiro, chegaríamos a sua aldeia
amanhã à tarde, e então seria apenas uma curta caminhada até a base
da Espinha do Dragão.
— Devemos ser capazes de reabastecer os suprimentos na aldeia.
— disse ele, usando um galho para cutucar as chamas do fogo que
havia provocado. Uma pequena panela preta estava sobre palafitas
acima dela, borbulhando alegremente; parte do pacote de suprimentos
que Masao havia enviado conosco. Não continha arroz suficiente para
fazer de cada um de nós uma bola de arroz, mas não podíamos ser
exigentes. — Vamos querer mais arroz e vou precisar de cerca de um
litro de saquê no meu sistema antes de enfrentar a Espinha do Dragão.
— Ele mexeu na panela fervendo com o galho, depois se recostou e
suspirou. — E vou precisar encontrar a esposa e a família de Roshi,
avisar que ele não vai voltar para casa.
— Há tempo para isso? — Reika perguntou, sem grosseria. Mas
a boca de Okame se apertou e sua voz estava dura quando ele
respondeu.
— Nós vamos arranjar tempo.
Surpreendentemente, a donzela do santuário não discutiu.
Na noite seguinte, chegamos à vila, situada no sopé das
Montanhas da Espinha do Dragão. À medida que as aldeias iam,
parecia típico, com cabanas simples com telhado de palha espalhadas
em um padrão aleatório ao redor da praça central e uma série de
arrozais em camadas nas colinas gramadas. Notei vários cavalos em
pastagens cercadas ou amarrados a vários pontos da aldeia, algo que
nunca tinha visto antes.
Nós também estávamos sendo observados. Os aldeões pararam
o que estavam fazendo para nos observar enquanto passávamos, seus
olhares eram uma mistura de surpresa e curiosidade
cautelosa. Ninguém parecia abertamente temeroso, embora eu achasse
que uma donzela do santuário, um ronin, um nobre Taiyo e uma
garota com vestes onmyoji não passavam por esta vila com
frequência, se é que alguma vez. Eu sorri e acenei para uma menina
que nos observava do lado do caminho, e fui recompensada com um
sorriso tímido antes que ela disparasse.
— Esta aldeia parece estar indo bem. — comentou Daisuke
enquanto caminhávamos em direção à praça central, que era uma
grande área empoeirada com um único poço no meio. — Eu me
pergunto, talvez, se podemos adquirir os suprimentos de que
precisaremos para escalar a Espinha do Dragão. — Ele olhou na
direção dos picos irregulares distantes, recortados contra o sol poente,
e sua testa franzida. — Vai fazer muito frio nas montanhas. Alguns
cobertores ou roupas mais pesadas não seriam negligentes.
— Alguns cavalos também seriam bons. — Okame acrescentou,
olhando para as montarias espalhadas ao redor da vila. — Será que
podemos convencer alguém a se separar de um casal?
— Desculpe.
Uma mulher parou ao lado do caminho, nos observando nos
aproximar. Ela era uma mulher mais jovem, vestindo roupas de
camponesa simples, mas resistentes, o cabelo preso para trás e um
chapéu de aba larga empoleirado no alto da cabeça, amarrado sob o
queixo com uma tira de pano. Abaixo da borda, seus olhos escuros
estavam esperançosos e apreensivos.
— Perdoem-me. — disse ela, fazendo uma profunda reverência
quando paramos diante dela. — Não quero bisbilhotar, mas devo
perguntar, vocês, por acaso, vieram do Jujiro? E se vocês viram, eu me
pergunto se vocês viram uma carroça na estrada?
Fechei os olhos, enquanto um ar sombrio desceu sobre todos nós
e a culpa roeu a boca do meu estômago. — Meu marido deveria ter
voltado ontem à noite. — Continuou a mulher. — Mas ele ainda não
chegou, e temo que algo possa ter acontecido com ele. Por favor, se
vocês tiverem alguma informação, estarei em dívida com vocês. O
nome dele é Roshi, e ele dirige uma carroça de um cavalo daqui para
Jujiro e volta.
Por um momento, houve silêncio, enquanto cada um de nós se
perguntava quem iria dar a notícia, então Reika deu um passo à
frente.
— Sinto muito. — Ela começou, e o rosto da esposa de Roshi se
contraiu, já adivinhando a notícia. — Seu marido está morto.
A mão da mulher subiu à boca, tremendo, antes de ela respirar
fundo e abaixá-la novamente. — Eu... eu temia tanto isso. — Ela
sussurrou. — Eu sabia que deveria ter feito a viagem para orar no
santuário da montanha. Os kami foram misericordiosos quando
minha filha adoeceu na temporada passada. Eu deveria ter feito a
peregrinação pela Espinha do Dragão mais uma vez. Oh, Roshi. —
Sua voz falhou e ela cobriu o rosto com as duas mãos.
— Eu sinto muito. — Eu disse a ela. — Foi minha culpa. Roshi
teve a gentileza de nos oferecer uma carona até sua aldeia. Mas fomos
emboscados por shinobi em nosso caminho para cá.
— Shinobi? — A mulher deixou cair os braços, seu rosto ficando
pálido. — Eu pensei que shinobi fossem mitos. — Ela sussurrou. —
Histórias que nobres da corte contavam a seus filhos. Eu não sabia que
eles eram reais. Oh, Roshi, em que você se envolveu?
Reika me lançou um olhar exasperado, como se eu tivesse dito
algo que não deveria. Não entendi. Se eu fosse a esposa de Roshi,
gostaria de saber como ele morreu e quem foi o responsável.
A esposa de Roshi respirou fundo, se recompondo e nos encarou
novamente. — Se... se vocês fizerem a gentileza de me dizer onde está
o corpo dele. — ela disse. — Devo ir buscá-lo antes que os necrófagos
levem muito.
— Nós já o enterramos. — Reika disse suavemente. — E
realizamos os rituais de morte apropriados. A alma de seu marido não
deve permanecer neste mundo. Mas se você quiser ver por si mesma,
ele está enterrado a cerca de um dia de caminhada a leste daqui. Basta
procurar a colina com duas sepulturas ao lado da estrada.
A mulher deu um sorriso aguado. — Obrigada. — Ela sussurrou,
olhando para Reika e para mim. — Obrigada por não o deixarem, por
dar-lhe os rituais adequados para passar adiante. E eu conheço meu
Roshi. Ele não teria oferecido sua carroça para qualquer um. — Ela
olhou minhas vestes onmyoji, então olhou para Daisuke, observando
suas roupas e cabelo. Mesmo que ele não estivesse usando o símbolo
da família, seu porte nobre era óbvio. — Eu sei que vocês devem ter
assuntos importantes para tratar. — disse ela, voltando-se para
mim. — Por favor, desculpem minha ousadia, mas vocês estão
viajando para o santuário dos kami montanha perto do topo da
Espinha do Dragão?
Eu movi minhas orelhas. — Kami da montanha?
— Sim. — A esposa de Roshi assentiu. — Perdoe-me, mas pensei
que esse fosse o seu destino. — Ela se virou, apontando para as
silhuetas distantes contra o céu. — A cada poucos anos, um peregrino
passa por nossa aldeia para orar no santuário da montanha kami. É
uma jornada árdua, mas é dito que se seu coração for puro e suas
orações fervorosas o suficiente, os kami da montanha concederão a
você um pouco de seu conhecimento secreto. Esta é a última vila antes
de você alcançar o caminho que leva até a Espinha do Dragão. Eu
simplesmente presumi que era para onde vocês estavam indo
também.
— Onde fica esse santuário, se você não se importa de nos
contar? — Perguntou Daisuke.
A esposa de Roshi acenou com a cabeça para a estrada que
cortava as casas finais. — Depois de passar pela aldeia, vocês
encontrarão um caminho que segue para o leste. — disse ela. — Se
vocês o seguirem por meio dia, ele os levará para as Montanhas da
Espinha do Dragão, para um pico com vista para o vale. O santuário
fica bem no topo.
— Obrigada. — Eu disse, e fiz uma reverência para ela. — Você
foi muito gentil. Não vamos incomodá-la mais.
— Esperem. — A esposa de Roshi olhou para mim e depois para
meus companheiros. — Se vocês pretendem viajar pela Espinha do
Dragão, vocês não deveriam ir esta noite. — Ela avisou. — O caminho
é estreito e traiçoeiro no escuro. Um escorregão e você pode rolar
montanha abaixo, isso já aconteceu até mesmo com o mais seguro dos
viajantes. E a Espinha do Dragão é o lar de todos os tipos de espíritos
e yokai. A maioria é indiferente aos humanos, mas nenhum yokai é
previsível e alguns são muito perigosos. Se vocês pretendem fazer a
peregrinação ao santuário dos kami da montanha, é melhor fazê-lo na
luz.
Eu olhei para o sol se pondo atrás dos picos das montanhas e
balancei a cabeça. — Essa é provavelmente uma ideia sábia. Há um
lugar onde poderíamos ficar na aldeia, um ryokan ou uma espécie de
pousada?
Ela balançou a cabeça. — Somos uma pequena aldeia. Mesmo
com o santuário para os kami da montanha, não há viajantes
suficientes para justificar um ryokan. O chefe muitas vezes permite
que os peregrinos passem a noite em sua casa, desde que paguem
uma pequena taxa, ou façam um favor para a aldeia se não tiverem
dinheiro.
— Bem, isso soa como nós. — Okame disse com um sorriso
sardônico para Daisuke. — Deixamos Kin Heigen Toshi com tanta
pressa que nosso nobre Taiyo não teve tempo de pegar sua bolsa de
moedas. Agora ele é tão pobre quanto nós, camponeses e ronin.
— De fato. — A voz de Daisuke era irônica. — Embora eu deva
ressaltar que geralmente não preciso de moedas, e até mesmo discutir
questões de dinheiro é visto como de muito mau gosto. É meu direito,
como um samurai e de linhagem imperial, esperar que todas as
amenidades sejam oferecidas sem compensação, a serviço do
império. A maioria dos meus parentes concordaria que é um
privilégio para aqueles de posição inferior servir aos melhores
guerreiros do imperador, e eles deveriam se sentir honrados em
fornecer tudo o que os samurais solicitarem. Há pessoas na minha
família que nem mesmo sabem os valores dos diferentes tipos de
moeda.
Okame bufou, deixando todos saberem o que ele pensava disso,
e Daisuke sorriu. — No entanto. — Ele continuou. — Se você não
percebeu, Okame-san, eu mesmo às vezes guardo... opiniões
impopulares entre meu clã. Muitos se esqueceram, mas 'samurai'
significa aquele que serve. O Código de Bushido afirma que compaixão
e humildade são tão importantes quanto honra e coragem, e se eu não
posso mostrar essas virtudes para aqueles de status inferior, posso ao
menos me chamar de samurai?
— Oh? — Com os braços ainda cruzados, Okame ergueu uma
sobrancelha, um sorriso malicioso nos lábios. — Bem, se for esse o
caso, o que você acha de cortar lenha ou fazer telhado de colmo,
pavão? Trabalho árduo, quente e camponês, melhor feito com uma
tanga, não gostaria que suas roupas finas ficassem suadas, não é?
— Não seria a primeira coisa que eu faria de tanga, Okame-san.
— Daisuke disse facilmente, e enquanto eu me perguntava por que o
rosto de Reika tinha ficado vermelho, ele se virou para a esposa de
Roshi, ainda nos observando do lado da estrada. — Esposa do
honorável Roshi. — Ele começou, — Por favor, desculpe esta intrusão
em sua vida. Se você gentilmente nos indicar a residência do chefe,
estaremos em dívida com você.
— Convidados de honra. — A mulher juntou as mãos. — Não é
problema. Vocês me fizeram um favor hoje e eu conheço meu
Roshi. Se ele estivesse aqui, ele insistiria que vocês ficassem em nossa
casa esta noite. É pequena, mas temos um quarto extra na parte de trás
da casa que atenderá às suas necessidades. Por favor, fiquem conosco
esta noite, em homenagem a sua memória.
Eu olhei para meus companheiros. Reika, ainda com um curioso
tom de rosa, deu um breve aceno de cabeça e eu me virei para a
esposa de Roshi. — Obrigada. — Eu disse. — Se realmente não houver
problema, ficaríamos gratos.
Ela assentiu. — Esta noite prepararei um banquete em
homenagem ao meu marido. — Anunciou ela, trêmula. — E amanhã,
quando vocês visitarem o santuário dos kami da montanha, vocês
mencionariam o nome dele ao fazer suas orações? Isso é todo o
agradecimento de que preciso.
Eu dei um aceno solene. — Claro.

Acordei com o som de uma flauta.


Bocejando, levantei minha cabeça do travesseiro e olhei ao
redor. O quarto ainda estava escuro, iluminado apenas pelas brasas
do braseiro e pelo luar que entrava pela janela. A poucos metros de
distância, Reika dormia profundamente, seu cabelo caindo sobre o
travesseiro em uma cortina preta brilhante.
Chu estava sentado na porta aberta, orelhas triangulares em pé,
o luar lançando sua sombra sobre as tábuas do assoalho.
Comecei a me deitar, quando a melodia fraca veio novamente,
me fazendo parar. Eu meio que pensei que tinha sonhado, mas eu
ouvi agora, um refrão baixo e triste flutuando na brisa.
Com cuidado para não perturbar Reika, me levantei e caminhei
silenciosamente até a porta. Chu torceu a orelha para mim, mas não se
mexeu quando me agachei ao lado dele. Por um momento, eu me
irritei por estar tão perto do cachorro, minha natureza kitsune
reagindo instintivamente ao inu. Mas me lembrei de que Chu não era
realmente um inu; ele era um guardião do santuário, parte do mundo
espiritual e, honestamente, mais parecido comigo do que qualquer
cachorro normal.
— Konbanwa, Chu-san. — eu cumprimentei em um sussurro. —
Você ouve também?
Recebi um olhar ligeiramente desdenhoso do cão, antes que ele
trotasse para longe de mim e entrasse no quarto. Reivindicando uma
ponta do cobertor de Reika, ele se enrolou e deitou a cabeça nas patas,
embora mantivesse o olhar na porta, sempre vigilante e alerta. Ainda
assim, se Chu não achava que havia perigo, provavelmente estávamos
seguros e quem quer que estivesse tocando flauta não era uma
ameaça.
O que me deixou ainda mais curiosa.
— Eu já volto. — Sussurrei para o cachorro, grata por ser Chu
que estava acordado e não Reika. A miko não aprovaria que eu
escapulisse sozinha tarde da noite. — Não vou demorar, mas se você
me ouvir gritar, certifique-se de acordar Reika, ne?
O inu bocejou. Não sabendo se ele atenderia aos meus pedidos,
mas sabendo que ele entendia minhas palavras muito bem, saí pela
porta da varanda e escapei para o luar.
Segui o som perturbador da flauta pelo campo, sentindo o ar frio
da noite na minha pele. Vaga-lumes piscavam dentro e fora da
escuridão, subindo em enxames enquanto eu me movia pela
grama. As notas fracas e melódicas aumentavam e diminuíam com a
brisa e o farfalhar dos talos da grama, tornando-se cada vez mais
distintas conforme me aproximei de um velho cedro no meio do
campo.
Fiz uma pausa, de repente me sentindo uma intrusa. A música
era tão linda, me puxando para frente e puxando minhas emoções,
mas eu temia que chegar mais perto pudesse fazer com que parasse e
quem quer que estivesse tocando fugisse. Meu corpo humano
desajeitado não era feito para rastejar pela grama sem ser visto.
Minha raposa, por outro lado...
Fechei meus olhos e chamei minha magia. Ela veio à superfície
um momento antes de haver uma explosão silenciosa de
fumaça. Abrindo meus olhos, me encontrei muito mais perto do chão,
as pontas da grama me escondendo completamente. A noite estava de
repente muito mais clara, as sombras não tão escuras, o ar cheio de
vida e som. Minhas orelhas de raposa podiam ouvir tudo ao meu
redor: o zumbido dos grilos na grama, o trinado de um pássaro
noturno nas árvores, o zumbido das asas de um vagalume no ar. Uma
inundação de cheiros encheu minhas narinas, misteriosa e tentadora, e
fui atingida pelo desejo de deixar tudo para trás e sair pulando pela
grama alta, para perseguir ratos e insetos, para soltar orbes de
kitsune-bi no ar e dançar sob a luz da lua.
No entanto, o vislumbre de um estojo de pergaminho laqueado
escuro aberto na grama trouxe todos esses desejos a um
impasse. Colocando as orelhas para trás, rapidamente me lancei sobre
o estojo e agarrei-o com firmeza nas mandíbulas. A madeira era dura,
inflexível, a casca externa estalando contra meus dentes. Eu o rolei em
minhas mandíbulas, tentando encontrar uma posição confortável,
resistindo à vontade de cuspi-lo e deixá-lo no chão.
Bem, isso não é o ideal. Espero que ninguém me veja e se pergunte por
que uma raposa está carregando um estojo de pergaminho.
Finalmente, empurrei o estojo até a boca, segurando-o como um
cachorro faria com um osso. Levemente aborrecida com meu fardo,
mexi minhas orelhas e escorreguei pela grama, continuando em
direção ao grande cedro no centro do campo.
A música continuou, ficando mais clara à medida que me
aproximava da árvore. Enquanto me acomodava sob um arbusto, vi
um brilho branco nos galhos da árvore e congelei ao olhar para
cima. Uma figura estava sentada no V do tronco, recostada na árvore
com um pé plantado para se equilibrar, suas mangas e cabelos claros
refletidos nas águas abaixo. Ele levou um pedaço fino de madeira
escura aos lábios, e as notas doces e assustadoras encheram o ar ao seu
redor.
Daisuke?
Abaixando minha cabeça, eu rastejei mais perto, deslizando pela
grama alta em direção à árvore. Os olhos de Taiyo Daisuke estavam
fechados, seu cabelo e mangas ondulando suavemente com a brisa
enquanto vaga-lumes flutuavam ao seu redor, como se atraídos pela
própria música.
Eu ouvi outro conjunto de passos passando pela grama atrás de
mim e rapidamente me lancei para o lado assim que um par de longas
pernas passou. Um cheiro veio até mim, terreno e familiar, antes que
uma voz áspera e divertida quebrasse o encanto da flauta.
— Olha o que temos aqui. Achei que poderia ser você. — Okame
caminhou sob o tronco e parou, cruzando os braços enquanto olhava
para o nobre. — Então, você teve um momento melancólico de
samurai? — ele se perguntou. — O luar falou tanto com você que você
teve que compor uma música para a noite, ou você não conseguiu
dormir também?
Daisuke abaixou a flauta e olhou para baixo calmamente, um
pequeno sorriso presunçoso cruzando seu rosto. — Admito que me
senti bastante melancólico esta noite. — disse ele. — E o luar estava
muito bonito. Seria fácil me perder nisso, mas meu verdadeiro
propósito de brincar já foi cumprido. Isso atraiu você aqui.
Okame ergueu uma sobrancelha. — Você poderia apenas ter me
pedido para me juntar a você, pavão, em vez de me arrastar para fora
da cama tocando uma flauta misteriosa no meio da noite.
— Mas então eu não saberia do que eu precisava. — Daisuke
ergueu o braço, o instrumento segurado facilmente entre dedos
longos. — Eu não seria tão ousado a ponto de presumir. A música fez
as perguntas. Que você veio, que respondeu, é a resposta que eu
esperava.
— Taiyo-san. — Okame esfregou os olhos. — Faz um tempo que
não sou samurai e, mesmo assim, mal entendia a linguagem que vocês
nobres usam. Finja que está falando com um camponês ou talvez com
um macaco domesticado. Não consigo acompanhar todas as
metáforas e significados ocultos.
— Muito bem. — O nobre Taiyo enfiou sua flauta em seu obi e
caiu do tronco, pousando graciosamente ao lado do lago. — Por que
você nunca me chama de Daisuke, Okame-san?
— Porque você é um Taiyo. — Rosnou Okame. — E eu sou um
cão ronin desonroso. Até eu sei que isso é o mais distante em status
que você pode chegar. Posso muito bem estar falando com o
imperador de Iwagoto. E não me diga que a posição não significa
nada para você, Taiyo. É fácil dizer quando você faz parte da
linhagem imperial, mas se eu falasse tão casualmente com você em
uma corte, provavelmente teria minha cabeça cortada pelo insulto ao
nome de sua família.
— Você me despreza então, Okame-san? — A voz de Daisuke
era suave. — Porque eu sou um Taiyo, a classe nobre que você tanto
odeia? Minha linhagem me torna um vilão aos seus olhos?
Okame bufou. — Do que você está falando? — ele disse,
parecendo desconfortável. — Eu não tenho nada além de respeito por
você, embora um ano atrás eu teria cuspido na sua direção por ser um
macaco da corte. Pronto, eu disse isso. Isso faz você feliz?
Inesperadamente, Daisuke sorriu, seus olhos brilhando ao
encarar o ronin. — Arigatou. — Ele murmurou. — Estou feliz. Sua
opinião significa muito para mim, Okame-san.
Okame balançou a cabeça. — Não deveria. — Ele murmurou,
olhando para as sombras.
— Por quê? — Daisuke chegou mais perto, sua expressão
séria. — Eu admiro você, Okame-san. Eu esperava... — Ele fez uma
pausa, então disse em uma voz suave e séria:— Eu pensei que tinha
deixado meus sentimentos por você bem claros.
— Pare com isso. — A voz de Okame era um sussurro. O ronin
fechou os olhos, virando a cabeça do nobre a alguns metros de
distância. — Agora você está apenas brincando comigo. Não há
situação, em todo o império de Iwagoto, em que um nobre do Clã do
Sol com um cão ronin seja socialmente aceitável. A desonra seria tão
grande que famílias inteiras cometeriam seppuku de vergonha, e a
mancha seria passada para seus filhos, os filhos de seus filhos e os
filhos deles, para sempre. Cada geração posterior conheceria a história
da maior queda dos dourados Taiyo. Mesmo eu não sou tão profano.
— Se eu não fosse um Taiyo, então. — Daisuke não se
aproximou mais; ele ficou quieto perto do tronco, cabelos longos
ondulando com a brisa. — Se você pudesse ignorar meu nome, minha
família e minha linhagem por apenas um momento. Você seria capaz
de me olhar desse jeito? Essas emoções seriam correspondidas?
— Maldição. — Okame abriu os olhos para fitar o nobre,
mostrando os dentes. — Como não poderiam? — Ele quase rosnou. —
Desde o momento em que te vi naquela ponte, não tive nada além de
pensamentos proibidos girando em minha cabeça. Está ficando
bastante cansativo, normalmente não penso tanto. — Ele suspirou e
passou os dedos pelos cabelos, puxando-os para trás. — Eu queria
odiar você. — disse ele, embora sua voz estivesse cansada agora. —
Teria sido muito mais fácil. Se eu pudesse te desprezar como todos os
nobres pomposos e arrogantes que vieram antes. Porque não importa
o que eu penso. Não importa que estar perto de você seja doloroso,
que eu tenha que fingir que não sinto nada, que suas provocações e
comentários incisivos não me afetem em nada. — Ele suspirou de
novo, lançando a Daisuke um olhar de divertimento amargo. — Eu
não sou cego, Taiyo-san. Eu entendi as dicas. Eu só... eu conheço
minha casa. E não vou arrastar você para a lama comigo.
Daisuke ficou em silêncio por um momento. Então,
surpreendentemente, uma risada silenciosa flutuou sobre a grama,
fazendo Okame fazer uma carranca. — Eu sou tão divertido então,
nobre?
— Me perdoe. — Daisuke ergueu os olhos, ainda com um leve
sorriso no rosto. — Eu simplesmente acho irônico. — Ele meditou. —
Um ronin, que afirma desprezar os samurai e zomba do Código
sempre que pode, mas que fica tão preocupado em manchar minha
honra.
— Não dê muita importância a isso. — Okame arrastou um
pé. — Estou apenas protegendo minha própria cabeça. Eu preferiria
que ficasse no meu pescoço, se possível. Estar perto da linhagem real
fez com que muitos samuraia perdessem a cabeça no passado.
Daisuke se endireitou e deu dois passos para frente, fazendo
Okame se encolher e olhar para ele com cautela. — Minha família não
está aqui, Okame-san. — Ele disse em voz baixa. Ele levantou uma
manga ondulante em direção às montanhas distantes. — A corte
imperial fica a muitos quilômetros de distância. Ninguém está
olhando. Ninguém vai julgar. O que acontece aqui esta noite, o
mundo nunca precisa saber.
Eu precisava sair. O que estava acontecendo entre Daisuke e
Okame era problema deles. Eu era a intrusa, a par de algo que não
deveria ser visto, os olhos escondidos na grama. Mas eu não
conseguia me virar. Meu coração batia forte e eu não conseguia me
mover. Eu me agachei imóvel na grama, minha cauda enrolado em
minhas pernas e minhas orelhas girando para frente o máximo que
podiam, com medo de perder uma palavra.
— Você está brincando com fogo, nobre. — Okame disse. — Tem
certeza que quer isso? Eu não... — Ele hesitou novamente, então
suspirou. — Eu não quero acordar amanhã de manhã e descobrir que
você cometeu seppuku para absolver sua vergonha.
— Não. — disse Daisuke com um de seus sorrisos pequenos e
pesarosos. — Não tenha medo disso, Okame-san. Já prometi a
Yumeko que a acompanharia até a Espinha do Dragão e que a
protegeria de qualquer um que tentasse nos impedir. Não posso
morrer ainda, não quando minha maior batalha ainda está por vir. E o
final desta estrada é o templo Pena de Aço... e Hakaimono. — Seus
olhos brilharam de ansiedade e entusiasmo. — Estou pronto. Será
uma batalha gloriosa. E se eu cair, estarei a serviço do império,
lutando para impedir a ascensão do Mestre dos Demônios. Morrerei
de pé com minha espada na mão, enfrentando meus inimigos, como
todo samurai deve fazer. O que é uma noite, comparada a uma
eternidade de glória?
— Uma noite, hein? — Okame balançou a cabeça, um olhar
brilhante e ligeiramente feroz em seus olhos. — Ah, pro inferno com
isso. Quando você coloca dessa maneira...
Ele deu três passadas largas, agarrou a gola do robe do outro
com as duas mãos e puxou-o para perto, pressionando seus lábios.
Meus olhos se arregalaram e eu teria engasgado se fosse
humana. O próprio Daisuke respirou fundo, seu corpo enrijeceu, mas
depois de apenas um momento ele relaxou, suas mãos subindo para
agarrar os braços de Okame. Por várias batidas de coração, eles
ficaram assim sob o cedro gigante, o luar brilhando sobre os dois
corpos presos juntos, e por um momento, o mundo pareceu parar.
Por fim, Okame recuou, seus olhos ainda brilhantes e intensos,
olhando para o nobre. — É isso... o que você queria, Daisuke-san? —
Eu o ouvi perguntar, sua voz rouca e ligeiramente tensa. Daisuke deu
um sorriso fraco, seu próprio olhar febril enquanto ele olhava para
trás.
— É definitivamente um começo.
Os lábios de Okame se curvaram em um sorriso malicioso e ele
abaixou a cabeça mais uma vez.
Vá embora, Yumeko, pensei, enquanto a culpa finalmente
superava a curiosidade. Você precisa sair, agora mesmo!
Com esforço, desviei o olhar das figuras abaixo do
cedro. Mantendo o pergaminho preso firmemente em minhas
mandíbulas, me virei e escorreguei para a grama alta, deixando-os
realmente sozinhos.
Voltei a ser humana no portão e entrei na casa na ponta dos
pés. Quando entrei pela porta do quarto, Reika ainda estava
dormindo no canto, roncando baixinho, mas Chu ergueu a cabeça e
me lançou um olhar de desaprovação. Ignorando o cachorro, deslizei
para baixo dos cobertores novamente e puxei a colcha sobre a
cabeça. A noite além da porta estava tranquila; nenhuma música
assustadora agitava a brisa, nenhum som de flauta no vento. Uma
estranha sensação de desejo me preencheu, revirando meu estômago e
fazendo meu coração doer. Lembrei-me da ferocidade nos olhos de
Okame quando ele beijou Daisuke, a expressão no rosto do nobre
quando ele retribuiu.
E eu me perguntei se Kage Tatsumi algum dia olharia para mim
dessa maneira.
Capítulo 20
Guardiões da pedra
Yumeko

Um minúsculo santuário, envelhecido e cinza, ficava dentro de


uma alcova na encosta da montanha. Era fácil perder; sendo da
mesma cor das rochas e do céu manchado, quase se fundia com o
fundo. O próprio santuário mal chegava ao topo da minha cabeça e
estava cheio de flores mortas, moedas espalhadas e garrafas vazias de
saquê; oferendas aos kami da montanha. Em um ponto, a madeira
pôde ter sido pintada com cores vivas, talvez vermelhão, azul-
petróleo e branco de seus irmãos maiores. Mas o tempo e o clima
haviam varrido as pranchas de madeira, e agora parecia apenas outra
parte da montanha, tanto quanto as rochas e os poucos arbustos
desgrenhados cutucando as pedras.
— Bem. — Disse Okame, olhando para a pequena estrutura com
os braços cruzados. Ele parecia com frio, encolhendo os ombros por
causa do vento, mas tentando não demonstrar. Tinha sido uma
caminhada longa e fria nas montanhas da Espinha do Dragão,
seguindo um caminho estreito e sinuoso que era pouco mais que uma
trilha de cabras. Quanto mais alto subíamos, mais frio e hostil se
tornava o tempo; nevascas agora dançavam no ar, e o céu estava tão
cinza quanto o resto da montanha. — Encontramos o santuário para
os kami da montanha. — Murmurou o ronin. — O que agora?
Eu olhei ao redor, esperando ver um templo, ou qualquer dica
que pudesse apontar para um templo. Mas não havia nada além de
rochas e picos cobertos de neve até onde a vista alcançava. — Reika-
chan? — Eu perguntei, virando-me para a donzela do santuário. — O
que Mestre Jiro disse sobre encontrar o caminho para o templo?
— Procure o lugar onde os kami da montanha se reúnem. —
Reika respondeu. — E olhe para os corvos que apontarão o caminho.
Eu olhei para o céu cinza manchado. — Eu não vejo nenhum
corvo. — Ou quaisquer pássaros, por falar nisso. Nem mesmo os
falcões voariam tão alto.
Ela suspirou. — Bem, é melhor encontrarmos alguns
rapidamente, antes que a noite caia e fique muito frio.
Procuramos na área estátuas, sinais, desenhos riscados na rocha,
qualquer coisa que pudesse se parecer com um corvo ou qualquer tipo
de criatura emplumada. Mas depois de algumas horas, não
descobrimos nada. O santuário continuava sendo o único pedaço da
montanha diferente de tudo ao seu redor. E além dos picos distantes,
o sol estava começando a se pôr.
Estremeci com a rápida queda da temperatura, encolhi-me
contra a parede da alcova para escapar do vento. Kami, pensei,
enquanto uma brisa soprava uma nuvem de flocos de neve para o
espaço comigo, se vocês quiserem nos dar uma dica agora, nós
agradeceríamos.
— Talvez... — pensou Daisuke, olhando para o santuário com a
testa franzida. — Estejamos olhando para o lado errado. Temos
procurado por um corvo físico, uma espécie de sinal, para nos apontar
o templo Pena de Aço. E se o corvo de que o Mestre Jiro falou fosse de
natureza metafórica?
Okame franziu a testa. — Não tenho certeza se entendi, Daisuke-
san.
Eu vi a sobrancelha de Reika arquear com a declaração de
Okame, uma reação ao ronin chamar o nobre por seu primeiro nome,
o que ele nunca tinha feito antes. Meu rosto aqueceu e meu batimento
cardíaco acelerou. Felizmente, a atenção estava em Daisuke enquanto
ele refletia sobre a situação e o santuário.
— Você já ouviu a expressão 'em linha reta', certo? — perguntou
o nobre. — Refere-se à linha mais reta entre dois pontos, a rota mais
rápida que pode ser realizada sem desviar ou mudar de direção. —
Ele gesticulou para o santuário. — Já temos um ponto. E se nosso
'corvo' voasse direto para o templo Pena de Aço? Que direção ele
tomaria?
Nós olhamos ao redor. — Bem, ele não seria capaz de ir para o
norte. — Reika disse, olhando para a alcova onde o santuário
ficava. — E ele também não poderia voar para o sul, não com aquela
crista no caminho.
— Leste? — Okame sugeriu. — Pessoalmente, espero que não,
porque é um mergulho terrivelmente longo direto montanha
abaixo. Acho que não seria um problema se você fosse um corvo.
— Sim, mas olhe os picos. — disse Daisuke, apontando para o
topo das montanhas distantes. Ele se moveu diretamente para a frente
do santuário, erguendo o braço bem na frente dele e fechando um
olho. — A partir daqui, não há caminho direto entre qualquer um
deles. Você teria que passar por cima ou ao redor. Então, isso deixa...
Eu mudei. — Oeste. — Eu disse. — Bem acima daquela crista,
direto entre aqueles dois picos onde o sol está se pondo. É o único
caminho que você pode seguir sem esbarrar em nada.
— Se Taiyo-san estiver correto... — Reika disse. — Estamos indo
na teoria, afinal, mas neste momento, temo que não tenhamos escolha.
— Ela suspirou, olhando para Chu, que o encarou solenemente. —
Muito bem. Então, vamos percorrer o caminho e ver aonde nos leva.
O sol se pôs e a temperatura caiu drasticamente conforme
continuamos subindo a montanha, seguindo a trilha de um corvo
invisível que voava acima. À medida que a luz desaparecia, partículas
de neve começaram a cair do céu nublado, girando ao nosso redor e
dançando com a brisa. Eu me encolhi no chapéu mino e de palha que
a esposa de Roshi tinha providenciado e me peguei desejando uma
xícara de chá quente para envolver meus dedos.
Por fim, quando tínhamos perdido completamente a luz e
estávamos todos tremendo sob nossos minos, o caminho terminou no
sopé de um enorme penhasco. Ele se erguia direto no ar, o pico
coberto de neve escondido pelas nuvens, a base escura na sombra da
montanha.
— Bem. — Suspirou Okame, olhando para o obstáculo diante de
nós. Sua respiração se contorceu no ar antes de se transformar em
nada, e seus dentes batiam levemente enquanto ele falava. — Eu diria
que este caminho chegou ao fim. Nunca pensei que veria esse dia, mas
parece que você se enganou, Daisuke-san. A menos que o corvo voe
direto para o lado da montanha.
Direto para o lado da montanha. Eu me pergunto... Por impulso,
quando Reika e Okame começaram a discutir sobre o que fazer a
seguir, comecei a caminhar em direção ao penhasco. A enorme parede
de rocha e pedra surgiu diante de mim, antiga e inflexível, mas não
parei. Ouvi Okame chamar atrás de mim, querendo saber o que eu
estava fazendo, mas continuei andando até estar a apenas dois passos
da encosta da montanha.
Eu pisquei surpresa. Eu estava me preparando, esperando correr
direto para a parede, mas agora que estava tão perto, pude ver que
estava na boca de uma fissura, uma fenda estreita na encosta da
montanha. Estava tão bem escondida que, se eu não tivesse
literalmente entrado nela, nunca saberia que estava lá.
— Minna. — Chamei, dirigindo-me ao grupo por cima do
ombro. Com um movimento da minha mão, uma bola de kitsune-bi
ganhou vida, iluminando as paredes e o chão de um estreito túnel que
serpenteava para a escuridão. — Eu acho que encontrei algo.
O resto deles se amontoou atrás de mim, olhando para o
corredor. — Isso não parece a entrada de um templo antigo para mim.
— Okame ponderou, enquanto uma centopeia fugia do brilho
repentino do fogo de raposa, desaparecendo em uma fenda. — Mas
acho que é melhor do que ficar aqui no frio. — Ele olhou
duvidosamente para o túnel, então estremeceu quando uma forte
rajada de vento em nossas costas jogou seu rabo de cavalo e quase
arrancou o chapéu de sua cabeça. — Brrr. Certo, vamos para a
escuridão.
Entramos no túnel, seguindo a bola do kitsune-bi enquanto ela
flutuava e balançava à nossa frente, jogando para trás a escuridão. A
passagem era estreita e, às vezes, tão baixa que precisávamos nos
agachar para continuar. Invejei Chu, trotando enquanto descia o túnel
sem me importar e, embora fosse tentador mudar para minha forma
de raposa, transformar-me tão descaradamente na frente de outras
pessoas me deixava inquieta. Eles sabiam que eu era kitsune, sim, mas
havia uma diferença entre saber que alguém era yokai e andar por um
túnel escuro com a dita yokai ao seu lado. Enquanto eu fosse Yumeko,
minha natureza kitsune quase poderia ser esquecida. Não seria assim
se eu me tornasse uma raposa.
Depois de muitos minutos longos e apertados no escuro, a única
luz vindo da kitsune-bi pairando, o túnel se abriu e nós entramos em
uma caverna enorme. As paredes se elevavam na escuridão, tão altas
que não dava para ver o teto da caverna. Mas o solo abaixo de nós era
de pedra trabalhada, não o piso áspero da caverna. Enviei meu
kitsune-bi mais para dentro da câmara, e na luz azul fantasmagórica,
pudemos ver degraus desmoronados, paredes quebradas e pilares
estilhaçados espalhados pelo chão, indicando que em algum ponto,
esta câmara tinha sido habitada.
— O que é este lugar? — Eu me perguntei, enquanto nos
aventurávamos cautelosamente na caverna. Minha voz ecoou na
vastidão ao meu redor, e de repente me senti muito pequena. — Este
é... o templo Pena de Aço?
Atrás de mim, ouvi Okame espirrar na nuvem de poeira que
flutuava com nossos passos. — Se for... — Ele murmurou. — Nós
podemos ter um problema. Este lugar parece estar abandonado há
décadas.
— Este não pode ser o templo. — Reika disse, olhando ao redor
com desânimo. — Deve haver algum engano. Mestre Jiro não nos
enviaria para o templo se ele tivesse sido abandonado.
— A menos que ele não soubesse. — Ponderou Okame, sua voz
flutuando entre as colunas e remexendo séculos de poeira e teias de
aranha. — Quer dizer, já se passaram mil anos desde a noite do último
Desejo, certo? Talvez todos os guardiões tenham morrido ou mudado
para outro templo.
— Não. — Reika disse com firmeza, e uma meia dúzia não ecoou
em torno de nós. — Isso não pode ser verdade. — Ela insistiu, mas sua
voz estava silenciosamente desesperada. — Os guardiões estão aqui,
eles devem estar. O que estamos perdendo?
Enquanto eu contornava um pilar, uma figura apareceu de
repente, pairando sobre mim na escuridão. Soltei um grito e pulei
para trás, enquanto a kitsune-bi atingia o rosto severo e o olhar fixo de
um samurai de pedra, totalmente blindado e usando um magnífico
elmo com chifres. Ele carregava uma espada em cada mão. Um dos
chifres de pedra do capacete havia sido quebrado, e o tempo corroeu
as feições do samurai, mas ele ainda estava orgulhoso e severo em seu
pedestal, congelado em uma postura de eterna prontidão.
— Magnífico. — disse Daisuke nas minhas costas, fazendo-me
pular de novo. O nobre deu um passo à frente, olhando para a estátua
com fascínio aberto. — Eu acredito que este é Kaze Yoshitsune. —
disse ele em uma voz de admiração silenciosa. — Um daimyo da
família Kaze e um dos duelistas mais famosos do Clã do Vento. Sua
esgrima era a única que usava duas lâminas, usando a katana e a
wakizashi ao mesmo tempo. A família Kaze sempre afirmou que suas
técnicas de espada dupla descendem do próprio Yoshitsune e se
recusam a ensinar sua arte de espadachim a qualquer outro clã.
— Por que há uma estátua dele aqui? — Eu perguntei, e Daisuke
balançou a cabeça.
— Eu não sei. Talvez os guardiões do templo Pena de Aço façam
parte do Clã do Vento. Embora... — Daisuke bateu no queixo
pensativamente, enquanto Reika, Okame e Chu contornavam o
pilar. — Existe uma lenda de Kaze Yoshitsune, que é contada até hoje,
especialmente entre os clãs da espada. De como, quando Yoshitsune
era jovem, ele desapareceu do império por um tempo. E quando ele
voltou, foi como um espadachim habilidoso, imbatível em duelos, que
possuía o conhecimento oculto dos deuses. Embora ninguém saiba
com certeza, as lendas afirmam que Yoshitsune viajou para a casa dos
kami da montanha e viveu com eles por vários anos, que o próprio rei
da montanha ensinou ao príncipe Kaze esgrima e o caminho das
lâminas duplas. — Um sorriso cruzou o rosto do nobre. — A lenda de
Yoshitsune é uma que todo espadachim conhece. — Ele disse em uma
voz calmamente admirada. — Quantos de nós esperamos que os kami
nos considerem dignos de nos presentear com seus
conhecimentos? Kaze Yoshitsune foi um dos raros que o foram.
— Hã. — Okame deu um passo à frente, os braços cruzados
enquanto olhava para a estátua e depois para Daisuke. Uma expressão
azeda cruzou seu rosto e ele curvou um lábio. — Ele não parece nada
de especial para mim.
Reika deu uma risada quase inaudível. — O ciúme não é uma
virtude admirável, Okame-san. — Ela disse a ele. — Especialmente se
for de uma estátua de pedra.
— O que? — Okame exclamou, um olhar indignado cruzando
seu rosto. — Do que você está falando? — Mas a miko apenas sorriu e
passou por ele. — Oi, não finja que não me ouviu. O que você quis
dizer? Ei!
A miko e o ronin desapareceram em volta de uma parede
desmoronada, e o resto de nós correu para alcançá-los.
Conforme pressionávamos mais para dentro da câmara, mais
estátuas apareceram na luz bruxuleante do kitsune-bi. Havia samurais
com armadura e rostos severos e sérios, cujos olhos de pedra pareciam
nos seguir enquanto passávamos. Mas também havia várias mulheres,
monges, ronins, camponeses e até algumas crianças. Às vezes,
faltavam membros ou mesmo cabeças. Às vezes eles carregavam
espadas, levantadas acima de suas cabeças ou em pé de
prontidão. Uma estátua era de um homem enorme, de peito nu, com
um sorriso divertido e um círculo de enormes contas de oração em
volta do pescoço. Em vez de uma espada, ele carregava uma lança
com uma enorme lâmina em forma de meia-lua em seus ombros,
ambos os braços grossos pendurados sobre a haste.
— Todos esses são heróis do império. — Comentou Daisuke em
voz baixa, após olhar para a estátua do homenzarrão por vários
segundos. — Alguns deles eu não reconheço, mas muitos deles... Eu vi
suas imagens nos pergaminhos da história. Eu ouvi suas lendas e li
sobre seus feitos. Este é Tsuchi Benkei, que segurou uma ponte contra
um exército de trezentos guerreiros para proteger seu senhor. E ali
está Hino Misaka, que ergueu uma parede de fogo por sete dias
consecutivos para proteger uma aldeia do ataque de um yokai. Onde
quer que estejamos... — Ele continuou, olhando ao redor. — Este é um
lugar sagrado. Uma sala de lembranças. Eu me pergunto quem está
aqui, quem fez essas estátuas?
— É um pensamento fascinante e tudo, Daisuke-san. — disse
Okame. — Mas, não estamos procurando por um salão de heróis. A
menos que um deles nos dê instruções para o templo Pena de Aço, eu
diria que temos problemas maiores em que pensar.
Enquanto ele dizia isso, contornei a estátua de um jovem
empunhando um cajado e parei.
Do outro lado do chão da caverna, aparentemente esculpida na
própria pedra, uma ampla escada subia para a escuridão. O caminho
para lá era ladeado por samurais de pedra, em posição rígida, e mais
estátuas estavam em pedestais alinhados nas escadas. No topo da
escada, além de um patamar circundado por ainda mais estátuas, eu
pude apenas distinguir uma pequena abertura na parede da caverna,
uma entrada para o desconhecido.
— Minna. — Chamei animada, ouvindo minha voz ecoar no
vasto vazio que nos rodeava. — Acho que encontrei a saída.
Empolgada com a proximidade do fim da viagem, comecei a
cruzar o chão de pedra empoeirado. Mas, ao me aproximar da escada,
um tremor percorreu o solo, me fazendo tropeçar e arrepiar os cabelos
da nuca. Eu congelei, olhando para cima os degraus, sentindo uma
concentração no ar ao meu redor, um redemoinho de energia ancestral
quebrando com força, como o ar antes de uma tempestade com raios.
Magia, pensei, enquanto a tempestade invisível desaparecia e,
por um momento, a câmara parecia prender a respiração. Magia muito
antiga. Algo vai acontecer...
Outro tremor percorreu o solo. Com um estrondo e uma batida
de pedra contra pedra, duas das estátuas alinhadas na escada
desceram de seus pedestais e pousaram nos degraus com um
estrondo. Elas desceram os degraus, movendo-se muito mais rápido
do que algumas toneladas de pedra tinham o direito, cada passo
esmagando e raspando nas pedras, até chegarem ao fundo.
Eu engoli em seco. Era outro par de estátuas que tínhamos visto
antes, o jovem guerreiro em armadura com as espadas duplas e o
homem grande com a lança gigante. Como Daisuke os
chamou? Yoshitsune e Benkei? Por um momento, eles ficaram imóveis
na frente da escada, bloqueando o caminho, seu olhar vazio e oco fixo
em nós. Então, os lábios de pedra de Yoshitsune se separaram e uma
voz rouca emergiu, como areia deslizando sobre um poço de cascalho.
— Isso revela o caminho. Prove que você é digno de sair sem um
espinho. Ou morra nas pedras do ninho.
Eu pisquei. Isso... apenas nos deu um aviso?
Por um segundo, nenhum de nós se moveu. Então, Daisuke deu
um passo à frente, puxando sua espada com um guincho, fazendo
Okame se assustar. — Oi, Daisuke-san. — O ronin rosnou. — O que
você está fazendo, pavão? Você não vai lutar contra Boulder um e
Boulder dois, vai?
— Claro, Okame-san. — Daisuke olhou para trás, aquele sorriso
estranhamente ansioso no rosto. — Você não ouviu? Prove o seu valor
para passar. Yoshitsune foi um dos maiores espadachins que já
existiu. Se quisermos provar que somos dignos, devemos derrotá-lo
na batalha. Além disso... — Seu olhar se voltou para mim. — Eu
prometi escoltar Yumeko-san até o templo e proteger tanto ela quanto
o pergaminho do Dragão de qualquer um que desejasse adquiri-lo. Se
não posso derrotar esses guardiões, aqui e agora, como posso esperar
enfrentar Hakaimono quando chegar a hora?
— Não foi isso que os espíritos disseram, Daisuke-san. —
Interrompeu Reika, dando um passo à frente também. — Não é só
você que deseja passagem para o templo Pena de Aço. Todos nós
devemos provar nosso valor se quisermos passar. — Ela enfiou a mão
na manga e retirou um ofuda, segurando o pedaço de papel entre dois
dedos. — Este teste deve ser realizado juntos.
Eu fiz uma careta. Por algum motivo, essa situação não parecia
certa. — Tem certeza de que temos que lutar contra eles? — Eu
perguntei.
Okame deu uma risadinha. — Bem, eles estão bloqueando a
única maneira de subir os degraus, e a rima não disse 'sente-se e tome
um chá'. Eu não acho que eles vão nos deixar passar se apenas
pedirmos com educação, Yumeko-chan.
— Correto. — Reika concordou, e se virou para apontar para
mim. — Você deve se afastar, Yumeko. — ela ordenou. — Deixe seus
tutores cuidarem disso.
Eu fiz uma careta para a donzela do santuário. — Eu não estou
com medo.
— Eu não disse que você estava. — Reika me lançou um olhar
exasperado. — Mas você deve alcançar o templo Pena de Aço,
Yumeko. Estamos perto, resta apenas mais um desafio, e o resto de
nós está aqui apenas como seus escudos. Se cairmos, isso não é tão
importante quanto você entregar o pergaminho ao templo e avisá-los
sobre Hakaimono. — Seus olhos se estreitaram. — Então, desta vez,
ouça seus protetores, kitsune, e deixe-nos fazer o que viemos
fazer. Não precisamos de você tendo sua cabeça teimosa esmagada
nos degraus do templo. Vá. — Ela apontou, e só quando eu recuei
para o lado e pisei atrás de um pilar é que ela se virou para os
homens. O nobre esperava calmamente com uma mão no punho de
sua espada, e Okame tinha uma flecha encaixada em seu arco. —
Taiyo-san, Okame-san? Estamos prontos?
Daisuke concordou. Voltando-se para as estátuas, ainda olhando
rígido e imóvel na frente dos degraus, ele se curvou. — Espíritos
guardiões. — Ele anunciou em uma voz solene. — Nós não vamos
voltar atrás. Teremos a honra de aceitar seu desafio.
A expressão das estátuas não mudou. Sem aviso, o homem
grande balançou sua grande lança de pedra em um arco selvagem,
cortando todo o grupo. Okame gritou, recuando quando o acertou por
centímetros, e Reika mergulhou para fora do caminho. Daisuke saltou
direto no ar, sacando a espada enquanto o fazia, e cortou a estátua ao
descer. Mas Yoshitsune deu um passo à frente do homem grande,
erguendo uma de suas espadas, e a lâmina de Daisuke rangeu na
arma de pedra. Quase ao mesmo tempo, a segunda espada atacou,
cortando o nobre, e Daisuke girou para o lado, as mangas esvoaçando,
para evitá-lo. Ele girou para enfrentar o outro espadachim e teve que
pular para o lado para evitar que a gigante lança de pedra o
espatifasse no chão. A estátua menor avançou, ambas as lâminas se
movendo em uma dança giratória e mortal, e o nobre recuou, sua
própria espada girando para bloquear e aparar.
Uma flecha ricocheteou na cabeça da grande estátua, deixando
um corte branco na pedra, mas pouco mais. — Hum, podemos estar
com problemas, Daisuke-san. — Okame chamou, mirando no topo de
um pedestal de estátua vazio. Ele atirou novamente, mas flecha
atingiu o homem grande no pescoço e saiu voando para a
escuridão. — Alguma ideia sobre como perfurar granito sólido?
— Ainda estou trabalhando nisso. — Disse a voz ofegante e um
tanto irônica de Daisuke. Ele evitou uma rajada de golpes, então se
virou, saltou da cabeça de uma estátua e pousou no topo de uma
fileira de pilares quebrados que se erguiam como presas quebradas. A
estátua do espadachim não hesitou, mas saltou atrás dele, e Daisuke
recuou para a próxima coluna despedaçada. O clangor de suas armas
soou acima, enquanto os dois mestres espadachins continuavam seu
duelo a vários metros do chão.
Com um rugido, a grande estátua balançou sua lança contra o
ronin, e Okame mergulhou quando a arma quebrou o pedestal,
transformando-o em uma pilha desmoronando de seixos e
poeira. Okame caiu no chão e rolou para ficar de pé, mas uma pedra
do tamanho de um punho atingiu a parte de trás de sua cabeça e ele
cambaleou, caindo de joelhos. A grande estátua não fez barulho ao se
virar, erguendo a lança para esmagá-lo contra as pedras.
Eu engasguei e, sem pensar, saí de trás do pilar e joguei uma
bola de kitsune-bi em direção à estátua prestes a esmagar Okame. O
globo em chamas voou sobre o ronin e explodiu no rosto da estátua,
queimando um branco-azulado brilhante e banindo a escuridão como
um relâmpago. A estátua parou e cambaleou para trás, acenando com
a mão diante dos olhos.
Um uivo estrondoso ecoou pela câmara, e com uma faixa de
brilho vermelho e dourado, um enorme komainu saltou sobre uma
parede quebrada e pousou ao lado do ronin. Reika estava deitada de
costas, sentada entre seus ombros enormes e sua juba dourada,
enquanto a forma guardiã de Chu rugia para a estátua ainda pairando
sobre Okame. Reika segurou um ofuda diante dela, a tira de papel
tremulando loucamente, e puxou seu braço para trás quando a estátua
se virou, levantando sua lança.
— Quebre! — Gritou Reika, jogando o ofuda na direção da
estátua viva, enquanto Chu se esquivava da lâmina da lança que se
chocava contra a terra. O pequeno pedaço de papel atingiu o peito da
estátua e ficou lá por um momento, enquanto o kanji na superfície
começou a brilhar.
Com um estalo agudo, uma parte do tórax da estátua explodiu,
enchendo o ar com poeira e fragmentos de pedra e jogando o gigante
para trás alguns metros. Não fez nenhum som, mas se debateu
enquanto cambaleava, atacando violentamente com sua lança. O golpe
foi rápido e inesperado, e Chu não foi capaz de reagir com rapidez
suficiente. O cabo da arma o atingiu em um ombro carnudo,
levantando-o do chão e fazendo com que ele e Reika voassem pelo
ar. Eles caíram no chão, rolaram em uma base de estátua e ficaram ali
por um momento antes de lutarem debilmente para se levantar.
Com o coração batendo forte, olhei para o gigante. Havia um
buraco no peito da estátua, grande o suficiente para caber o capacete
de um samurai, mas o guerreiro de pedra ainda estava de pé. E
embora fosse quase impossível captar qualquer tipo de expressão em
suas feições pétreas, achei que parecia zangado agora.
O barulho de pedra no aço ecoou em algum lugar
acima. Daisuke e a outra estátua ainda estavam duelando nos pilares
que se erguiam do chão, subindo em colunas quebradas e pulando de
pilar em pilar, e uma ideia passou pela minha cabeça como uma
borboleta.
Abaixei-me, peguei uma pedra e me afastei da coluna em direção
à grande estátua, que estava voltando seu olhar aterrorizante para
Reika e Chu. Quando deu um passo estrondoso em direção a eles,
respirei fundo e lancei-me para fora.
— Desculpe! — Chamei, e a estátua virou seu olhar de pedra ao
redor, olhos vazios me encontrando em uma coluna despedaçada. Eu
levantei uma mão, uma esfera de kitsune-bi acendendo na minha
palma. — Você não se esqueceu de mim, não é? — Eu zombei e atirei
o fogo de raposa na estátua iminente.
A bola em chamas atingiu o quadrado gigante no buraco do
peito e explodiu em um lampejo de luz brilhante, mas a estátua não se
moveu ou mesmo se encolheu. Erguendo sua lança, ele se virou e
começou a vir em minha direção, seus passos pesados ecoando no
chão e fazendo o ar tremer. Eu alisei minhas orelhas e corri atrás de
um trio de pilares enquanto os tremores se aproximavam. Fechando
meus olhos, apertei a pedra na minha mão e senti meu poder ganhar
vida.
Vamos torcer para que essas coisas não possam ver através da magia.
Saí de trás dos pilares e atirei uma bola de kitsune-bi na estátua
que se aproximava, fazendo-a explodir em seu rosto. Com um
estrondo raivoso, ela avançou, balançando sua lança enorme no ar na
minha cabeça. Eu me abaixei e a lâmina se chocou contra o pilar atrás
de mim, esmagando pedras e cortando em uma demonstração
aterrorizante de força. Seixos e poeira voaram por toda parte
enquanto eu cambaleava para trás e batia em outro pilar atrás de mim,
assim que a estátua balançou sua lâmina gigante novamente. Eu me
esquivei e consegui colocar outro par de colunas entre mim e a
estátua, enquanto sua lâmina transformava outro pilar em escombros.
— Yumeko! — Eu ouvi Reika gritar enquanto eu me abaixava
freneticamente atrás de outra coluna. O barulho do metal ecoou em
algum lugar próximo, e então foi abafado quando a lança do gigante
quebrou a barreira como se fosse feita de sal.
Um tremor massivo percorreu o solo, enquanto pilares, estátuas
e colunas que estavam se sustentando desabaram com o rugido de um
deslizamento de terra. As colunas de granito se espatifaram no chão,
esmagando a grande estátua e tudo ao seu redor, incluindo a ilusão de
um kitsune que ele estava tentando quebrar na rocha. Acima, a
estátua do espadachim, que perseguia Daisuke através dos pilares,
parou quando a pedra abaixo dele cedeu. Os dois espadachins
tentaram pular para um lugar seguro; Daisuke saltou em cima de um
pilar que caía, correu ao longo da borda enquanto ele caía e se jogou
na enorme cabeça do Profeta de Jade. A estátua viva tentou segui-lo,
perdeu o equilíbrio e despencou como um saco de pedras no chão. Ele
atingiu as rochas e se quebrou em vários pedaços onde caiu, sua
cabeça rolando vários metros para longe e desaparecendo atrás de um
pedestal em ruínas.
Os estrondos diminuíram e a poeira começou a baixar. Eu exalei
e saí da coluna atrás da qual eu estava me escondendo enquanto o
guerreiro de pedra perseguia meu sósia ao redor da câmara. O
espadachim, Yoshitsune, estava espatifado contra os pilares e seu
enorme amigo não estava em lugar nenhum, enterrado sob várias
toneladas de granito. Eu duvidava que qualquer um deles viesse atrás
de nós novamente.
— Yumeko!
A voz frenética de Okame soou atrás de mim, um momento
antes de o ronin derrapar à vista a alguns metros de distância. Ele
estava ofegante, olhando furiosamente para a montanha de entulho,
as nuvens de poeira ainda ondulando no ar. Reika estava bem atrás
dele, ela também, olhando para a pilha de pedra em total
consternação.
— Não. — Ela sussurrou, e colocou a mão na boca. — Bons
Kami, por favor, não.
Confusa, dei um passo à frente. — Reika-san, Okame-san. —
Chamei, e os dois se viraram para mim com os olhos arregalados. —
Vocês estão bem? As estátuas estão destruídas. — Pisquei com a fúria
repentina no rosto de Reika e dei um passo para trás. — Ano... há algo
errado?
Minhas orelhas se achataram, pois a donzela do santuário estava
vindo em minha direção com uma expressão dura, quase
maníaca. Seus dedos cravaram em minha pele quando ela me agarrou
pelos ombros, seu rosto quase branco.
— Você está viva. — Ela sussurrou, me dando uma pequena
sacudida. — Você não é uma ilusão. Agradeça aos kami. — Ela soltou
a respiração em uma baforada, então olhou furiosamente. — Eu estou
pensando em matar você, raposa.
— Ite. — Reclamei, estremecendo quando dedos finos e
chocantemente fortes apertaram minha carne como um torno. —
Estou confusa, Reika-san. Você está feliz por eu estar viva ou não?
Felizmente, ela me soltou, ainda olhando para mim com olhos
como adagas de ônix. — Suponho que deveria ser grata por ter sido
uma ilusão que vi ser esmagada sob todas aquelas rochas e pedras. —
Ela retrucou, quase parecendo envergonhada. — Suponho que devo
ser grata por você nunca ouvir quando lhe falamos algo. Que você vai,
de fato, fazer exatamente o oposto, porque você é uma kitsune e o
caos flui em suas veias com tanta certeza quanto o mal através de um
oni.
Eu pisquei para ela. — Ainda estou confusa, Reika-san.
— Yumeko. — Okame suspirou e eu senti uma mão na minha
cabeça, descansando entre minhas orelhas, quando ele veio atrás de
mim. — Não nos assuste assim. Temos que descobrir algum tipo de
sinal quando você estiver prestes a fazer sua coisa kitsune, para que o
resto de nós não tropece em um penhasco ou mergulhe sob um
telhado desabando tentando salvar uma ilusão.
— De fato. — disse uma nova voz ligeiramente tensa, enquanto
Daisuke contornava a pilha de entulho. Ele se moveiasuavemente pelo
terreno rochoso em nossa direção, mas suspeitei que ele estava
fazendo o possível para não mancar. Okame enrijeceu e passou por
mim, com a testa franzida, enquanto o nobre se juntava a nós.
— Foi uma exibição impressionante, Yumeko-san. — disse
Daisuke, embora seu sorriso fosse dolorido. — Estou certo ao assumir
que você é a responsável pelo colapso repentino de tudo, certo? Minha
atenção foi um pouco desviada quando os pilares começaram a cair.
Eu estremeci. Tudo aconteceu tão rápido. Com a estátua gigante
pairando sobre Okame e Reika, eu tomei uma decisão em frações de
segundo. Só agora eu percebi que isso colocara Daisuke em perigo
também. — Gomennasai, Daisuke-san.
— Não. — Ele balançou sua cabeça. — Não há necessidade de
desculpas. Seu curso de ação foi possivelmente o melhor. Embora eu
admita que preferia ter terminado a luta sozinho, as lâminas de aço
podem fazer muito pouco contra a pedra sólida. — Ele olhou para sua
espada, olhos estreitos, antes de olhar para a pilha de escombros. —
Em qualquer caso, completamos o desafio. O caminho para a escada
deve estar desimpedido.
Abrindo caminho por cima de pilares caídos e estátuas
quebradas, voltamos para a escada. No entanto, assim que nos
aproximamos do último degrau, houve outro rangido alto de pedra, e
mais quatro estátuas desceram de seus pedestais para colidir com os
degraus, bloqueando nosso caminho.
— O que? — Okame cambaleou para trás, encarando os novos
guardiões que haviam se adiantado. — Mais deles? Quantas dessas
coisas vamos ter que lutar?
— Tantos quantos devemos. — Daisuke deu um passo à frente e,
embora estivesse ensanguentado, machucado e exausto, ergueu o
queixo e colocou a mão no punho da espada. — A sala inteira, se isso
significar que devemos superar este desafio.
Okame lançou um olhar nervoso para as dezenas, talvez
centenas, de estátuas alinhadas nos degraus e espalhadas pela
caverna. — Há uma quantidade enorme de estátuas aqui, pavão. Se
todas elas ganharem vida e nos atacarem, não teremos um bom dia.
Daisuke apenas sorriu. — Um verdadeiro guerreiro dá as boas-
vindas à batalha. — Afirmou calmamente. — Se ele tiver que enfrentar
um exército, ele sabe que sua morte será com honra.
— Daisuke-san. — Eu disse, com um súbito lampejo de
percepção. — Espere.
Pisando ao lado do nobre, agarrei sua manga, fazendo-o virar
com uma carranca perplexa. — O haicai no começo... — eu disse. —
Como era, de novo?
— Isso revela o caminho. — disse Daisuke, ainda de olho nas
estátuas. —Prove que você é digno de sair sem um espinho. Ou morra
nas pedras do ninho.
— E se não fosse um desafio ou um teste? — Eu meditei,
olhando para a linha de guardiões. — E se fosse um aviso? Tentamos
lutar contra eles e não funcionou. O que estamos perdendo?
Isso revela o caminho.
— Yumeko! — Reika chamou, enquanto Daisuke sacava sua
lâmina em um lampejo de aço. — Cuidado! — As estátuas de pedra
começaram a descer os poucos degraus que nos separavam,
levantando suas armas para atacar.
Oh!
— Esperem! — Eu gritei e alcancei minhas vestes, empurrando
minha mão entre camadas de tecido para encontrar o que eu
precisava. Dando um passo à frente, mesmo com as estátuas
assomando no alto, puxei o pergaminho e o segurei diante de mim. —
Parem!
As estátuas congelaram. Olhei para cima e com um calafrio, vi
que suas enormes lâminas de pedra haviam parado no meio do
movimento e todas apontadas para mim. — Isso é o que vocês
queriam, não é? — Sussurrei, de alguma forma conseguindo palavras
em torno do latejar do meu pulso. — Esta era a chave, o que revelava
o caminho. Vocês só precisavam ter certeza de que tínhamos o
pergaminho.
As estátuas não se moveram. Elas ficaram agrupadas nos
degraus, silenciosas e imóveis, como se tivessem estado ali, imóveis,
por centenas de anos. Estendi a mão e cutuquei uma junta de pedra, e
um pouco de poeira se soltou e caiu no chão.
Com muito cuidado, ainda segurando o pergaminho como uma
tocha, dei um passo à frente, pronta para pular se alguma delas se
contraísse. Nada aconteceu enquanto eu me acomodava entre os
braços de granito e os cotovelos de pedra, deslizando pela massa até
ficar acima das estátuas do outro lado. — Eu acho que é seguro agora.
— Eu disse, olhando para meus companheiros. — Eles sabem que não
somos intrusos. Que temos um pedaço do pergaminho do Dragão.
Reika soltou a respiração com pressa. — Um dia desses, sua sorte
vai acabar, raposa. — Ela avisou enquanto os outros começaram a
subir a escada. — E então o que você vai fazer?
— Não sei, Reika-san, mas tenho certeza que vou pensar em
algo.
Duas estátuas gigantescas guardavam os portões no topo da
escada, figuras gêmeas que diminuíam até mesmo a grande estátua
com a lança. Eles pareciam mais com kami ou yokai antigos do que
com homens mortais. Seus corpos e rostos eram humanos, mas
grandes asas emplumadas brotavam de suas costas e seus olhos eram
semicerrados como os de um pássaro. Eu me perguntei se esses eram
os guardiões finais, a última defesa contra intrusos se todas as outras
estátuas tivessem falhado. Olhando em suas feições severas e ferozes,
fiquei feliz por nunca ter que descobrir.
As grandes portas de ferro através do portal não estavam
bloqueadas, mas precisou de todos nós empurrando juntos para fazê-
las se moverem. Elas finalmente cederam com um gemido relutante, e
uma nuvem de poeira centenária subiu da abertura. Outra escada de
pedra estava além da soleira, desta vez levando a um retângulo de céu
marinho e estrelas.
Cautelosamente, subimos a escada final. O ar que entrava na
passagem era chocantemente frio e fresco, em vez do ar empoeirado e
viciado que havíamos deixado para trás na caverna. Acima, as estrelas
e uma lua laranja brilhante brilharam sobre nós, aparentemente mais
perto do que nunca.
Chegamos ao último degrau e saímos da passagem. Uma rajada
de vento gelado atingiu meu rosto, jogando meu cabelo e fazendo
minhas bochechas formigarem, e o ar tinha gosto de gelo.
— Sugoi. — Eu sussurrei, olhando para o que estava diante de
nós.
Um enorme pico de montanha erguia-se diretamente no ar,
irregular e não curvado. O topo, raspando o céu e varrendo as nuvens,
estava coberto de neve. Construído bem na lateral dos penhascos,
parecendo ter sido esculpido na própria montanha, um enorme
templo erguia-se contra as estrelas. Antigos telhados de pagode
varriam o céu, enrolados nos cantos como asas, tão desgastados pelo
tempo e varridos pelo vento que pareciam mais pedra do que
ladrilhos. As paredes do templo podiam ter sido de qualquer cor
antes, mas agora eram do mesmo cinza uniforme da face do
penhasco. Pelo que pude ver, não havia estradas, escadas, até mesmo
uma trilha traiçoeira de cabras da montanha serpenteando pelos
picos. Ou havia um caminho secreto para entrar no templo que eu não
estava vendo ou teríamos que aprender a voar.
— Você finalmente veio, portadora do pergaminho.
Nós viramos. Um par de figuras estava atrás de nós,
empoleiradas graciosamente no topo de duas pilhas de pedras que
flanqueavam a passagem que tínhamos acabado de sair. Elas eram
altas e de aparência severa, vestidas com túnicas pretas, seus geta de
madeira as tornavam ainda mais altos. A da direita era mais jovem,
com o cabelo preto meia-noite solto ao redor dos ombros e
emoldurando o rosto. Por alguma razão, me lembrou de uma juba de
penas. A segunda figura, também um homem, era mais velho, seus
olhos afiados e negros e seu nariz muito comprido.
Atrás de cada um deles, chamejando para os lados e brilhando
negros ao luar, um par de asas gigantes ondulou e tremulou ao vento.
— Bem-vinda, portadora do pergaminho. — O homem alado
mais velho sorriu para mim e levantou a mão, as unhas nas pontas
dos dedos afiadas e curvas como as de um pássaro. — Bem-vinda ao
templo Pena de Aço e a casa dos tengu.
Capítulo 21
O templo de penas de aço
Yumeko

Eu estava certa. Não havia maneira fácil de entrar no templo.


Os dois tengu nos orientaram até a base do penhasco, onde uma
grande cesta havia sido baixada com cordas que rangiam, e subimos a
montanha dois de cada vez. Reika e eu, com a donzela do santuário
segurando Chu nos braços, depois Okame e Daisuke, com o ronin
parecendo ligeiramente verde enquanto cambaleava para fora da cesta
no chão sólido. De lá, seguimos nossos guias tengu através de um par
de grandes portões de madeira, através de um pátio alinhado com
estátuas e um jardim de pedras cuidadosamente ajuntado, e subimos
os degraus do templo. Depois das portas, os tengu deram um passo
rápido por longos corredores e corredores estreitos, e eu me apressei
para acompanhar, observando as penas em suas asas magníficas
tremularem e ondularem a cada passo.
Tengu. Meu coração bateu mais rápido com a palavra. De acordo
com a lenda, os tengu eram yokai poderosos que possuíam grande
conhecimento e ficavam longe dos negócios dos mortais. Houve
histórias de homens que buscaram a sabedoria dos tengu, que
enfrentaram grandes perigos e dificuldades para encontrá-los e provar
que eram dignos. A maioria não teve sucesso e, dos poucos que o
fizeram, menos ainda conquistou o respeito do tengu.
Pelo menos, era isso que as histórias afirmavam. Mas, se isso
fosse verdade, se eles eram tão indiferentes, por que eram os
protetores de um pedaço do pergaminho do dragão? Mestre Isao
nunca me contou realmente como a oração foi separada, ou quem
havia decidido seu destino. Eu não esperava que o templo Pena de
Aço estivesse cheio de uma raça ancestral de yokai, mas pensando
bem, imaginei que os tengu tinham tantos motivos para não ver o
Dragão convocado quanto os humanos. Afinal, era o mundo deles
também.
Então, esses eram os guardiões da segunda peça do pergaminho
do Dragão. O pensamento de que havíamos conseguido, de que
finalmente havíamos encontrado o templo, só me deixou doente de
preocupação e com um pouco de arrependimento. Em outra situação,
outra vida, esse seria o fim da busca. Eu poderia entregar meu
fragmento do pergaminho e pronto. Teria cumprido minha promessa
a Mestre Isao, as peças estariam seguras com seus verdadeiros
protetores e eu estaria livre.
Mas... esses não eram tempos normais. E a missão estava longe
de terminar. Hakaimono estava chegando; quem sabia o quão perto
ele estava agora? Meu estômago embrulhou como um ninho de
cobras. Eu estaria pronta para enfrentar o Primeiro Oni quando ele
chegasse, com a intenção de pegar o pergaminho do
Dragão? Qualquer um de nós estaria?
— Por aqui, por favor. — disse um de nossos guias tengu, o mais
jovem com a juba de penas, que se apresentara como Tsume. Ele abriu
uma porta e me deu um sorriso irônico. — Cuidado com os passos.
Uma rajada de vento frio nos atingiu quando o painel foi aberto,
e meu coração deu uma guinada violenta. Através das portas, não
havia espaço, nenhum corredor ou mesmo um piso. Os painéis se
abriam para o céu e um mergulho direto e de parar o coração pela
lateral da Espinha do Dragão. A lua brilhava na moldura, parecendo
rir de nós, e os topos dos picos nevados erguiam-se no ar como dentes
afiados.
Eu podia sentir a diversão irradiando do tengu ao meu lado,
especialmente o mais jovem. Forçando-me a não me afastar daquela
queda abrupta, me virei para olhar para ele.
— Ano... para onde exatamente estamos indo? As raposas não
voam muito bem, embora sejamos boas em quedas.
O tengu deu uma risadinha. — Nosso daitengu está esperando
para falar com vocês naquele pico ali. — O mais velho explicou, e
enfiou um dedo longo pela porta, apontando para a
esquerda. Certificando-me de que meus pés estavam em solo sólido,
espiei ao redor da moldura. Uma estreita escada de pedra envolvia a
parede externa, enrolando em uma saliência, onde uma figura sentada
podia ser vista no topo.
— Oh, isso vai ser divertido. — Okame suspirou. — Os humanos
são ótimos em voar. Para baixo, em alta velocidade. Mas não são tão
bons no pouso.
O tengu mais velho franziu a testa para o ronin. — Apenas a
portadora do pergaminho pode prosseguir daqui. — disse ele. — O
daitengu chamou por ela sozinha. O resto de vocês deve esperar até
que eles terminem.
Eu olhei de volta para eles, com os olhos arregalados. Daisuke
me deu um sorriso encorajador. — Esta é uma grande honra, Yumeko.
— Ele disse suavemente. — Tenho certeza que você vai ficar bem.
— Só não olhe para baixo. — Okame acrescentou inutilmente, e
soltou um grito quando Reika chutou seu tornozelo.
— Seja educada ao falar com o daitengu, Yumeko. — Ela me
disse, com um olhar de advertência. — Responda a todas as suas
perguntas. E o que quer que você faça, não olhe para o seu... — Ela
parou, apontando um dedo furtivo para o rosto. Eu fiz uma careta em
confusão, mas ela não elaborou.
Engolindo em seco, voltei para o caminho minúsculo e
estreito. Mantendo meu corpo pressionado o mais perto que pude da
parede, comecei a subir os degraus.
O vento me puxava, puxando minhas roupas e fazendo meus
olhos lacrimejarem. Minhas mangas ondulando como velas, tentando
pegar a brisa e me jogar da encosta da montanha. Resumidamente, eu
me perguntei, se eu caísse, algum dos tengu me pegaria antes que eu
atingisse o fundo? Será que Tsume entraria e me resgataria com suas
grandes asas negras? De alguma forma, isso não parecia
provável. Abraçando as pedras, subi a escada de quatro, até que
finalmente cheguei ao topo.
Cuidadosamente, levantei-me, protegendo-me do vento, e
caminhei ao longo do pico até o homem sentado de pernas cruzadas
na beirada. Ele estava de costas para mim, e grandes asas
emplumadas se projetavam de seus ombros, pretas como a noite e
tremulando ao vento. Sentindo que era a coisa certa a fazer, sentei-me,
imitando sua pose no chão, e esperei.
— Portadora do pergaminho. — Sua voz era um sussurro rouco,
mas eu podia facilmente ouvi-lo por cima do uivo do vento em meus
ouvidos. — Você finalmente chegou.
Engoli. — Como você sabia que eu estava vindo?
— Eu comungo com o vento kami todas as manhãs e todas as
noites, pequena raposa. Eles me trazem notícias do mundo lá
embaixo. Tínhamos ouvido sussurros sobre a destruição do templo
Ventos Silenciosos e sabíamos que o pedaço do pergaminho estava a
caminho daqui.
— Se você sabia, por que não ajudou?
— Porque esse não é o nosso jeito.
Ele se virou para ficar de frente para mim por cima das pedras, a
lua em suas costas. Seus antigos olhos negros pareciam perfurar os
meus. Eu pisquei. Um velho com cabelo branco rebelde e uma longa
barba olhava para mim, garras murchas em seu colo. Sua pele era de
um vermelho vivo e brilhante, a cor do sangue na neve. Ele usava
uma túnica cinza esvoaçante e tamancos de madeira, e um pequeno
chapéu preto estava empoleirado no topo de sua cabeça, amarrado
com um cordão abaixo do queixo. Um nariz vermelho enorme e fino,
provavelmente com mais de trinta centímetros de comprimento,
projetava-se de seu rosto como o cabo de uma vassoura.
— Kitsune. — disse o daitengu, e o enorme dedo balançou com o
vento enquanto ele inclinava a cabeça. — Por favor, diga-me o que é
tão interessante.
Tarde demais, lembrei-me do aviso de Reika sobre não olhar, e
imediatamente abaixei meu olhar. — Sumimasen. — Eu me
desculpei. — Eu não estava olhando para o seu... ah...
desculpe. Obrigada por me receber.
Ele suspirou. — Por séculos, os tengu permaneceram aqui,
isolados e distantes dos assuntos do mundo mortal. — Ele me
disse. — Nós observamos e às vezes oferecemos orientação para almas
excepcionais, mas não temos nenhum desejo de nos enredarmos na
vida curta e caótica dos humanos. — Suas sobrancelhas espessas
baixaram, sua voz rouca ficando sombria. — No entanto, mil anos
atrás, um mortal fez um desejo ao Dragão que lançou a própria terra
em tal turbulência, que sabíamos que não podíamos ficar mais
parados. Enquanto a guerra dos humanos avançava e o mundo ficava
encharcado de sangue, um conselho secreto de yokai, kami e humanos
foi formado pela primeira vez. Juntos, decidimos que o Pergaminho
de Mil Orações era perigoso demais para ser usado novamente. O
pergaminho foi feito em pedaços, e cada grupo pegou um dos
fragmentos, prometendo mantê-lo escondido para que a sombra do
Precursor nunca pudesse ameaçar o mundo novamente.
Seu enorme nariz se inclinou para mim. — Seu templo era a
ordem humana que jurou manter seu fragmento seguro. — Ele disse,
sem acusar. — Outra peça reside aqui, no topo das Montanhas da
Espinha do Dragão, vigiada pelos tengu que chamam este lugar de
seu lar.
— E a terceira? — Eu perguntei.
Sua boca se curvou em uma carranca severa. — O terceiro
pedaço do pergaminho foi levado pelos kodama de Angetsu Mori e
escondido nas profundezas da floresta. Esses kodama não existem
mais. Angetsu Mori, ou a Floresta dos Mil Olhos como é conhecida
hoje, foi completamente corrompida por Genno e a mancha de sua
magia do sangue, e os kami que viviam lá fugiram ou foram
corrompidos. Só podemos presumir que a última parte do
pergaminho está perdida ou nas mãos do Mestre dos Demônios.
Estremeci, lembrando-me do aviso de Tatsumi de que Genno já
tinha um pedaço do pergaminho. O daitengu suspirou e a ponta de
seu nariz tremeu. — De qualquer forma... — ele continuou. — Você
está aqui e se saiu muito bem para alguém tão jovem. A viagem não
deve ter sido fácil. Os ventos nos transmitem o que está acontecendo
no mundo mortal, como as coisas sombrias estão surgindo com a
chegada do Precursor. Tem sido assim desde que o Dragão foi
convocado pela primeira vez. Mas você sobreviveu e protegeu o
pergaminho. É tudo o que poderíamos ter pedido e, por isso, você
ganhou a gratidão do templo Pena de Aço.
— Arigatou gozaimasu. — Sussurrei. — Sou grata e sei que o
Mestre Isao ficaria satisfeito se nosso pedaço do pergaminho chegasse
ao templo, para que pudesse ser protegido. Mas... — Eu hesitei, sem
saber como dizer a ele.
— Mas... a luta ainda não acabou, não é? — O daitengu terminou
suavemente.
Levantei os olhos com surpresa e ele ofereceu um sorriso severo.
— Ele vem. — disse o velho tengu com uma voz que me causou
arrepios na espinha. — Para o pergaminho. Para você e seus
companheiros. Sentimos sua aproximação com o vento, sentimos sua
mácula na neve que se agita ao nosso redor. Podemos senti-lo na
encosta da montanha, a sombra que espreita os picos, seus passos
cada vez mais próximos. Você sabe de quem eu falo.
Entorpecida, eu assenti. — Hakaimono.
— Ele vem buscar o pergaminho. — O daitengu disse
novamente, soando severamente divertido. — Mas ele não vai
conseguir. Não vamos deixar que caia nas mãos de quem mandou
Hakaimono contra nós. Mesmo que nosso inimigo seja o próprio
Primeiro Oni, os guerreiros deste templo lutarão e nós defenderemos
os últimos pedaços do pergaminho até o último suspiro. Vamos
morrer antes de deixarmos aquele monstro receber a oração do
Dragão.
— Ano... — Eu gaguejei, fazendo-o me olhar com seu olhar
sombrio. — Na verdade, eu esperava que o templo Pena de Aço nos
ajudasse em algo... em relação a Hakaimono.
O daitengu ergueu uma sobrancelha muito espessa. — Ajudar
você com o primeiro Oni? — ele repetiu, e seu tom tornou-se
cauteloso. — O que você quer fazer, raposa?
Eu respirei fundo.
— Salvar o matador de demônios. — Eu disse, e a outra
sobrancelha se ergueu para se juntar à primeira. — Kage Tatsumi foi
possuído por Hakaimono... — eu continuei. — Eu quero salvá-lo e
conduzir o demônio de volta a Kamigoroshi.
— Impossível. — O daitengu disse, sua voz plana. — Você sabe
o quão forte é Hakaimono, kitsune? Mesmo agora, sabemos que
vamos perder muitas almas quando aquele monstro romper nossos
portões. Ele é mais fraco em um corpo humano, mas se fizermos
qualquer coisa menos do que o destruir, nosso clã será massacrado até
o filhote mais jovem. Não há ninguém que possa exorcizar aquele
demônio do mortal que ele possui. Você provavelmente faria mais
mal à própria alma.
— Não estamos tentando um exorcismo. — disse ao antigo
tengu. — Não no sentido tradicional. Eu mesma vou possuir Tatsumi
e forçar o espírito de Hakaimono de volta para a espada por dentro.
— Kitsune-tsuki? — O daitengu piscou. — Isso nunca foi feito
antes... — ele meditou. — Nenhuma raposa jamais possuiria um
mortal com o espírito de um oni dentro dele. Especialmente se esse
oni for Hakaimono.
— Eu gostaria. — Eu disse com firmeza. — Quer dizer... eu
vou. Eu vou. Possuir Tatsumi e enfrentar Hakaimono eu mesma.
Ele me lançou um olhar longo e nivelado. Eu podia senti-lo me
avaliando, medindo minha estatura, e eu flexionei meu queixo,
olhando para ele. Finalmente, ele balançou a cabeça. — Você sabe o
quão perigoso será? — ele perguntou. — Enfrentar Hakaimono, o
Destruidor, com toda a sua força, dentro de uma alma mortal?
— Eu sei. — Eu disse, e estremeci. — Mas eu tenho que fazer
isso. Eu tenho que tentar. Prometi a Tatsumi que libertaria sua alma
de Hakaimono, de uma forma ou de outra. Ele está esperando por
mim e não vou quebrar minha promessa. Mas, para ter uma chance,
vou precisar da sua ajuda, da ajuda de todos. Para possuir Tatsumi,
vou precisar de algum tipo de abertura, uma distração, para que
Hakaimono não me mate assim que eu entrar.
O daitengu ainda estava me observando, seu rosto ilegível. Eu
engoli em seco. — Sei que estou pedindo muito... — Comecei.
— Você está. — Concordou o outro.
— E eu sei que tentar pegar Hakaimono vivo será muito mais
perigoso do que tentar matá-lo imediatamente...
— E resultará em muito mais mortes. — Acrescentou o daitengu.
— Mas eu tenho que fazer isso. — Eu disse, sentindo um nó
subir na minha garganta. — Tatsumi salvou minha vida, e eu jurei que
o libertaria de Hakaimono. Você não o viu. Ele... — Eu me lembrei de
Tatsumi no mundo dos sonhos, a desolação absoluta em seus olhos, e
as palavras me falharam. — Eu tenho que ajudá-lo. — eu terminei. —
Eu prometi que faria. E enfrentarei Hakaimono, com ou sem sua
ajuda. E se você não pode me ajudar, peço apenas que não tente matar
Hakaimono até que tenha certeza de que falhei em salvar a alma
dentro dele.
O daitengu olhou para mim por um longo momento, depois
suspirou. — Garota tola... — ele murmurou, balançando a cabeça. —
Você vai morrer, e sua teimosia provavelmente fará com que todos os
seus amigos morram também. Mas, posso ver que você não será
persuadida. — Ele fechou os olhos por um momento, então acenou
com a cabeça. — Se é isso que você deseja fazer, o templo irá ajudá-la
no que pudermos. Mas... — acrescentou ele, segurando uma garra
murcha. — Não abandonaremos nosso dever sagrado de proteger o
pergaminho. Se parecer que Hakaimono está em perigo de adquirir o
que busca, não teremos escolha a não ser destruí-lo.
— Eu entendo. — Eu disse, e fiz uma reverência ao antigo
tengu. — Arigatou gozaimasu.
Ele se levantou, suas grandes asas chamejando atrás dele. —
Você e seus amigos são bem-vindos no templo. — disse-me ele. —
Mas temo que não tenhamos muito tempo. — Ele olhou para o céu,
onde uma massa de nuvens podia ser vista sobre os picos distantes, e
franziu a testa. — Há uma tempestade chegando. Coma, descanse e
ore aos kami, pois agora planejaremos o que devemos fazer quando o
Primeiro Oni chegar à nossa porta.
— Obrigada. — eu disse novamente. — Verdadeiramente. Ah, e
quanto...?
Peguei meu furoshiki e retirei o pergaminho, estendendo-o para
ele. O daitengu olhou para ele solenemente, como se pudesse ouvir os
pensamentos do próprio pergaminho, então balançou a cabeça.
— Por enquanto, segure seu fardo, raposinha. — Ele disse. —
Você o trouxe longe e o protegeu de muitos males. Em todas as suas
viagens, o matador de demônios nunca percebeu que exatamente o
que estava procurando estava bem debaixo de seu nariz, o que
significa que o Primeiro Oni também não conhece o seu
segredo. Mantenha-o seguro por mais algum tempo. Pelo menos até a
luta com Hakaimono terminar.
Engoli e devolvi o pergaminho ao meu furoshiki, colocando-o
com segurança nas dobras novamente. Eu não sabia o que ele viu, se
ele viu alguma coisa, mas fiquei surpreendentemente aliviada por não
ter que desistir de meu fardo ainda. Eu o carreguei por tanto tempo,
mantive-o escondido e seguro; quase parecia uma parte de mim
agora.
O daitengu me lançou um olhar perscrutador, seus olhos
sombrios à luz da lua. — Hakaimono será o adversário mais difícil
que você já enfrentou, pequena raposa. — alertou. — Se cometermos
um único erro, o menor erro de julgamento, o Primeiro Oni não terá
misericórdia de nós. Será necessário cada grama de bravura,
determinação, força e malandragem que pudermos reunir para
derrotá-lo. Se já houve um momento para ver exatamente o que sua
magia pode fazer, é agora.
Capítulo 22
Perguntas de Yurei
Suki

Senhor Seigetsu foi meditar novamente.


Dentro do interior de madeira vermelha e escura da carruagem
voadora, tudo estava quieto. Taka, exausto de sua marcha gelada pelo
território da mulher da neve, tinha se enrolado sob vários cobertores
em um canto e estava morto para o mundo. Resmungos e roncos
ocasionais vinham do caroço acolchoado, quebrando o silêncio, mas
não parecia perturbar Seigetsu, que estava sentado imóvel com as
costas para a parede e as mãos no colo. Sua bola estava faltando, Suki
notou. O que era estranho, porque ela tinha certeza de ter visto
quando ele começou a meditar, equilibrada nos polegares como de
costume. Mas não estava lá agora, então ela deve ter imaginado.
Suki vagou sem rumo ao redor da carruagem, flutuando de um
lado para o outro, se perguntando quando eles alcançariam seu
destino. Por um momento, ela invejou Taka, que roncava
distraidamente no canto. Quando o pequeno yokai estava acordado,
sua tagarelice alegre e constante era uma boa distração. No silêncio,
ela ficou com seus próprios pensamentos, que a aterrorizaram e sobre
os quais ela nada podia fazer.
— Deve ser cansativo nunca dormir.
Suki ergueu os olhos. Os olhos do Senhor Seigetsu estavam
abertos agora, brilhando como ouro na escuridão da carruagem,
observando-a. Suki abaixou a cabeça, pensando que sua deriva sem
rumo o havia perturbado, mas ele deu um pequeno sorriso, indicando
que não estava com raiva, e enfiou as mãos nas mangas. Ele parecia...
cansado, Suki percebeu. Seus ombros caíram um pouco, e seu rosto
elegante e equilibrado parecia um pouco abatido. Seigetsu deve ter
percebido que ela estava olhando, pois uma sobrancelha se arqueou
em sua direção e ele ergueu a cabeça.
— Você deve achar tudo isso muito estranho. — disse ele. — Eu
me esqueço de como você é nova em tudo isso. Que há pouco tempo
você era uma humana simples, com uma vida humana simples. E
agora, você foi lançada neste mundo de yokai e magia, demônios e
profecias. Deve ser opressor.
Desconfortável, Suki ergueu as mãos de uma maneira
desamparada, mas Seigetsu franziu a testa.
— Não. — Ele disse, fazendo-a ficar rígida. — Fale comigo,
hitodama. Fale suas palavras em voz alta, caso contrário, você pode
perder a capacidade de fazer barulho. Você tem perguntas. Pergunte-
as e farei o meu melhor para responder.
Suki se encolheu, murchando com a ideia de ter que falar, então
se recompôs com determinação. Falar com ele, dissera Senhor
Seigetsu. Perguntar. Ela tinha perguntas, ela percebeu. Muitas. Por
que ela morreu? Qual era o pergaminho que Dama Satomi queria
tanto? Quem era o Mestre dos Demônios? Por que Daisuke-sama
estava viajando com uma kitsune, e por que Senhor Seigetsu parecia
tão interessado nessa raposa? Por falar nisso, Suki pensou, por
que todo mundo parecia tão interessado nessa raposa? De Dama
Satomi, ao Mestre dos Demônios, ao terrível Hakaimono, ao próprio
Seigetsu-sama. Todo mundo estava atrás desta kitsune e do
pergaminho que ela possuía. Por quê?
Tantas perguntas que faziam sua cabeça doer. Ela se sentia como
se tivesse apenas algumas pequenas peças de um enorme quebra-
cabeça, que o resto das peças haviam sido espalhadas ao vento, e que
apenas Senhor Seigetsu sabia como era a versão completa.
Senhor Seigetsu.
Ela olhou para cima, encontrando os olhos dourados
luminosos. Ela soube, de repente, que pergunta ela queria fazer.
— Quem... quem é você?
Seigetsu-sama riu. — Eu sou um simples mestre shogi. — ele
respondeu. — Aquele que move as peças pelo tabuleiro há muito,
muito tempo. Cada jogada foi deliberada. Cada peça foi colocada e
retirada com o máximo cuidado. — Ele olhou para Taka, ainda
dormindo no canto. — Claro que ajuda saber os movimentos do
adversário antes deles, mas mesmo assim foi um jogo longo e
exaustivo. Mas a jogada final está à vista, se eu conseguir chegar ao
fim sem erros.
— E... qual é o fim, Seigetsu-sama? — Suki sussurrou. — O que
acontece... quando o jogo... terminar?
Os olhos de Seigetsu brilharam e um sorriso lento cruzou seu
rosto. Naquele momento, Suki viu um lampejo de ambição crua em
seus olhos amarelos, uma fome que enviou um calafrio por todo seu
corpo. Mas ele apenas disse, sua voz baixa e controlada. — Eu não
posso entregar o final, Suki-chan. Isso apenas estragaria a surpresa,
para todos.
Suki fez uma pausa, reunindo seus pensamentos e sua coragem
para fazer mais perguntas. Foi como se uma represa tivesse sido
aberta dentro dela; de repente ela queria saber tudo. Mas antes que ela
pudesse dizer outra palavra, o caroço no canto de repente estremeceu
e engasgou. Taka sentou-se ereto, tirando os cobertores, para olhar
freneticamente ao redor da carruagem, seu único olho enorme de
medo.
— Mestre!
Imediatamente, Seigetsu se levantou e cruzou a carruagem para
se ajoelhar diante dele, agarrando o yokai pelo ombro enquanto ele se
sacudia e ofegava em respirações curtas e em pânico. — Estou aqui. —
disse ele, sua voz profunda firme e suave ao mesmo tempo. — Sou
eu. Acalme-se, Taka.
Taka estremeceu, ofegando e choramingando, mas
obedientemente ainda estava nas garras de seu mestre. Suki flutuou,
pairando ansiosamente ao lado do par, enquanto os olhos de Seigetsu
se estreitaram. — Um pesadelo? — ele perguntou baixinho, e o yokai
acenou com a cabeça, mordendo o lábio. — O que você viu?
— Um exército de demônios. — Taka sussurrou. — Marchando
para as montanhas. Eles atacaram um templo e mataram todos
lá. Havia muito sangue. Ninguém sobreviveu, nem mesmo a raposa.
Parte Três
Capítulo 23
A vinda dos destruidores
Hakaimono

Os portões do templo se abriram com estrondo, e os tremores


vibraram de onde eu estava, por todo o caminho até a montanha. Com
a silhueta na moldura dos portões em ruínas, o luar lançando uma
longa sombra com chifres sobre as pedras, eu sorri.
Olá, protetores do pergaminho do Dragão. Estou aqui. Espero que vocês
estejam prontos para mim.
Silêncio. Um pátio vazio, varrido pelo vento e perfeitamente
mantido, foi minha saudação enquanto as portas balançavam e
balançavam em suas dobradiças, o estrondo ainda reverberando no
ar. À minha esquerda, um jardim de rocha imaculado brilhava ao luar,
milhares de seixos brancos rastelados formando um mar rochoso em
torno de algumas ilhas maiores. À direita, estátuas de guerreiros
humanos lideravam o caminho para o salão principal, me fazendo
torcer os lábios em diversão. Eu ainda estava coberto de poeira, meu
corpo doendo e machucado pelo último pequeno desafio. Eu esperava
que o escultor que havia criado todas aquelas estátuas guardiãs
estivesse morto, porque seu coração provavelmente explodiria de
choque quando ele não encontrasse nada remanescente de suas
criações além de cascalho e poeira.
Nas minhas costas, o vento gelado uivava pela queda abrupta da
encosta da montanha, uma montanha que eu tive que escalar para
chegar ao templo no topo do penhasco. Notei um sistema de polia
com uma grande cesta perto do portão; eles obviamente puxaram a
cesta na esperança de que isso me impedisse. Muito ruim para eles,
esta não era a primeira montanha que escalava. Eu esperava que uma
caverna cheia de estátuas vivas e uma subida ligeiramente
desafiadora ao lado de um penhasco não fossem as únicas defesas que
esses protetores tinham, ou eu ficaria desapontado.
Com Kamigoroshi brilhando em um roxo maligno em minha
mão, eu atravessei os portões do templo Pena de Aço.
Nada aconteceu. Eu estava me preparando para flechas,
armadilhas, para uma explosão de magia enquanto as defesas do
templo disparavam. Um vento frio uivava sobre os telhados, mas
além de uma folha seca saltando pelo pátio, não havia movimento ou
sinal de vida em qualquer lugar.
O que significava que eles sabiam que eu estava aqui e que
estava caminhando para uma emboscada.
Suspirei. — Bem, esta não é uma configuração óbvia? Vocês
sabem que só vou ficar bravo quando vocês pularem o que quer que
estejam planejando. — Eu chamei, caminhando firmemente pelo pátio
em direção aos degraus do templo. Kamigoroshi cintilou e pulsou em
minha mão, lançando sombras misteriosas sobre as pedras. — Vocês
poderiam me poupar alguns problemas e me atacar agora, ou
continuarem se escondendo e me forçar a caçá-los. O resultado será o
mesmo de qualquer maneira.
Sem resposta. O pátio estava escuro e silencioso quando subi as
escadas e passei pelas portas para o corredor principal. O chão dessa
câmara sombria era de ônix e jade polidos, com linhas de ouro
enfiadas no ladrilho. Grandes pilares de jade desciam de cada lado do
salão, e ainda mais estátuas de humanos e tengu cobriam as
paredes. Se este fosse um templo normal, o fundo do salão seria
reservado para a estátua gigantesca do Profeta de Jade dos humanos,
que não era nem kami nem deus, mas simplesmente um mortal que
aparentemente havia alcançado a iluminação. Mas, como eu havia
adivinhado antes, os guardiões deste templo eram tengu, que
acreditavam estar acima da iluminação mortal. Em vez de uma
enorme estátua verde de uma mulher meditando, um grande dragão
serpentino foi esculpido na parede, cabeça e espirais parecendo
emergir da pedra. A cabeça que rugia pairava sobre um altar feito de
madeira escura e ouro, onde uma longa caixa laqueada repousava em
um pedestal bem no centro. Mas o estrado que o segurava não estava
vazio.
Um único humano com longos cabelos brancos estava parado
calmamente em frente ao altar, um pedaço de aço brilhante segurado
frouxamente ao seu lado. Seu rosto estava coberto com uma máscara
oni pálida, uma paródia grotesca de minha família, com uma boca
vermelha sorridente e cheia de presas e um par de chifres ondulando
na testa.
Eu sorri, reconhecendo o nobre das memórias de Tatsumi,
percebendo que se ele estivesse aqui, ela estaria também.
— Oni no Mikoto. — Eu disse lentamente, caminhando para
frente. — Ou devo dizer Taiyo Daisuke do Clã do Sol? Onde estão
seus amigos, o arqueiro ronin e aquela irritante donzela do
santuário? E a meia-raposa? — Ele não respondeu e eu ri. — Só você,
então? Os tengu aqui realmente acreditam que um único humano
pode me impedir de pegar o pergaminho do dragão? Ou você está
tentando recriar nosso primeiro encontro na ponte?
— Você não vai tocar no pergaminho do dragão, demônio. — A
voz do humano era fria, serena. Ele deu um passo à frente para me
encontrar e ergueu a espada de maneira protetora. — Pela minha
honra, irei protegê-lo, e a este templo, com minha vida.
Eu balancei minha cabeça. — Um guerreiro humano não pode
me parar, e os guardiões aqui sabem disso. — Com um sorriso
malicioso, entrei mais no salão, levantando Kamigoroshi e
aumentando minha voz. — Mas muito bem, vou continuar com esta
pequena farsa, apenas para fazer as coisas andarem. Não acredito por
um momento que estejamos sozinhos, mas se você quiser seu duelo
final, mortal, então terei o prazer de lhe dar uma morte honrosa
quando arrancar a cabeça de seu corpo.
Oni no Mikoto hesitou por um momento, então calmamente
desceu do estrado e afundou em uma postura elevada, sua lâmina
mantida paralela sobre sua cabeça, a ponta apontada para mim. —
Então vamos dançar.
Ele se lançou, um movimento rápido através do piso de madeira,
vindo muito rápido para um humano. Eu me esquivei do primeiro
golpe, deixando a espada errar minha cabeça por centímetros, então
ataquei na mesma moeda, com o objetivo de dividir o corpo magro ao
meio. Ele girou com uma graça impressionante, evitando o contra-
ataque, e veio para cima de mim novamente.
Dançamos assim pelo chão por alguns minutos, esquivando-nos,
aparando, evitando a lâmina de nosso oponente e respondendo por
sua vez. Oni no Mikoto era bastante habilidoso, eu poderia admitir
isso. Eu tinha encontrado vários mestres espadachins em meus longos
anos no reino mortal, e este Taiyo estava entre os melhores.
No entanto, ele ainda era apenas humano. E nunca concordei em
seguir as regras.
O Taiyo me golpeou de novo, um golpe preciso e bastante
violento com o objetivo de arrancar a cabeça do meu corpo. Eu me
virei para me esquivar enquanto levava Kamigoroshi para me
defender, e o barulho de metal contra metal subiu pelo meu braço. Ao
mesmo tempo, eu liberei meu aperto na espada com uma mão, apertei
em um punho e golpeei na cabeça do humano. Acertei-o na têmpora,
levantando-o do chão e lançando-o contra um pilar com um estalo
abafado. O humano desabou na base da coluna, deixando uma
mancha de sangue na madeira, e lutou debilmente para se endireitar.
Sorrindo, eu caminhei para frente, parando a alguns metros de
distância para assistir o humano se colocar de joelhos. O sangue cobria
a lateral de seu rosto, manchando seu cabelo branco, e um fragmento
de osso pontudo apareceu através de sua manga direita, indicando
um braço quebrado.
— Oh, desculpe, mortal. — Eu zombei, sorrindo quando ele
ergueu a cabeça e olhou para mim. — Isso não era permitido? Esqueci
de mencionar que não jogo de acordo com suas regras humanas.
— Demônio. — O Taiyo rangeu os dentes... e ficou de pé,
segurando a espada com a mão boa. Seu membro quebrado pendendo
desajeitadamente, mas ele ergueu a lâmina e se preparou, olhando
para mim em desafio. — Pelo menos me dê a honra de morrer em pé.
Eu sorri. — Como quiser.
Kamigoroshi brilhou, um brilho de aço na escuridão, e a cabeça
do humano tombou de seus ombros, batendo no chão com um baque
e rolando atrás de um pilar. O cadáver sem cabeça balançou no lugar
por um breve momento, antes que também desabasse e vazasse
sangue por todas as pranchas de madeira.
Eu bocejei. — Bem, isso foi ligeiramente divertido. Previsível,
mas divertido. Esse é o único obstáculo que vocês vão jogar em mim,
então? Um humano com uma espada? — Nenhuma resposta das
sombras aparentemente vazias ao meu redor, e eu suspirei. — Tudo
bem. — Eu murmurei, virando-me e caminhando em direção ao altar
agora desprotegido. — Então vou pegar o pergaminho e sair
agora. Sintam-se à vontade para me parar se vocês...
Assim que coloquei os pés no estrado, houve uma erupção de
fumaça aos meus pés e o piso sob meus pés mudou. Eu olhei para
baixo para ver um anel brilhante de poder, rodeado por símbolos e
runas que reconheci instantaneamente.
Um círculo obrigatório.
Com várias erupções de fumaça em todo o salão, as estátuas
desapareceram, retorcendo-se no nada enquanto as ilusões se
dissolviam. Tengu solenes e carrancudos emergiram da névoa que se
dissolvia, suas expressões severamente determinadas enquanto me
rodeavam fora do círculo. Várias vozes se ergueram no ar, enquanto
eles começaram a entoar as palavras para amarrar um demônio e
enviá-lo de volta para Jigoku.
Apesar da armadilha, senti um sorriso selvagem cruzar meu
rosto. Ela estava perto. Eu não a vi, mas os sinais reveladores da ilusão
mágica kitsune não poderiam ser mais óbvios. As estátuas e o chão
cheiravam a magia de raposa, embora eu tivesse que admitir, ela
estava ficando mais poderosa com suas ilusões, para ser capaz de
controlar tantas de uma vez.
Sua garotinha raposa está aqui, Tatsumi. Espero que goste do show
quando eu a encontrar.
— Hakaimono!
A donzela do santuário deu um passo à frente, um komainu
rosnando ao lado dela, e brandiu um ofuda para mim. Do outro lado
dela, com o rosto vermelho e um nariz que parecia o cabo de uma
vassoura, estava o daitengu do templo, ambas as garras enroladas em
um cajado, segurando-o diante dele como um escudo. Ele começou a
cantar, assim como o círculo de tengu ao meu redor, suas vozes
subindo em uníssono para ecoar nos pilares. Aos meus pés, o círculo
de ligação ficou vermelho.
— Você não é bem-vindo aqui, demônio. — A donzela do
santuário chamou, quando a tira de papel em sua mão começou a
brilhar, iluminando as palavras sagradas rabiscadas nela. — E você
nunca vai tirar o fragmento de pergaminho deste lugar sagrado,
mesmo que tenhamos que selá-lo por mil anos, você nunca vai colocar
suas garras do mal na oração do Dragão.
Ela jogou o ofuda em mim, onde voou direto como uma flecha,
estalando com energia espiritual. O canto do tengu ficou mais alto, e a
tira de papel brilhou branca enquanto voava em minha direção.
Eu cortei o ofuda no ar, Kamigoroshi queimando com força
quando a lâmina atingiu o papel e o cortou em dois. Quando as tiras
caíram inofensivamente no chão, levantei minha cabeça e sorri para a
miko, mostrando todas as minhas presas.
— Você vai ter que fazer melhor do que isso, amadora. — Eu
rosnei, vendo a cor sumir de seu rosto. — Eu não sou um amanjaku
fraco que você pode selar com um aceno de seu ofuda. Dezenas de
sacerdotes e magos de sangue antes de você tentaram me amarrar, e
eu decorei os círculos de ligação com seus interiores. — Eu olhei ao
meu redor, para o anel de cantos de tengu e levantei minha espada. —
Sempre me perguntei se corvo tem gosto de frango. Acho que é minha
noite de sorte.
Inesperadamente, a donzela do santuário deu um sorriso
sombrio. — Não esta noite, Hakaimono. — Ela disse. — Você não vai
dar um passo adiante. Sua agitação termina aqui, e você nunca
colocará os olhos no pergaminho.
Ela ergueu uma manga ondulada, como se estivesse dando um
sinal. Senti o perigo atrás de mim e girei, exatamente quando uma
flecha saiu das vigas acima e me atingiu no peito.
Rosnando, eu cambaleei para trás, vendo a haste enterrada
abaixo da minha clavícula, e estendi a mão para arrancá-la. O
arqueiro, quem quer que fosse, havia errado meu coração, e esse erro
custaria muito a ele.
Mas então, eu vi o familiar pedaço de papel enfiado na metade
do caminho para baixo, ganhando vida assim que a flecha tocou
minha pele, e rosnou uma maldição.
O ofuda explodiu em raios de luz, erguendo-se e girando ao meu
redor como um enxame frenético de enguias. Com um lampejo, elas se
tornaram correntes brilhantes que se enrolaram em meus braços e
pernas, me prendendo às pedras. Eu rugi, minha voz crescendo
através das vigas, enquanto caia de joelhos, sentindo as correntes se
apertarem ao meu redor. O canto dos tengu aumentou, enchendo o ar
com poder, alimentando a magia do círculo e derramando força no
selo.
Lutei por um momento, então olhei para a donzela do santuário,
forçando um sorriso malicioso. — Oh, muito bem, humana. — Eu
zombei. — Eu estou amarrado. Mas isso durará apenas enquanto você
e seus amigos pássaros se concentrarem. Você não será capaz de
manter isso para sempre.
Seu olhar endureceu. — Não tem que ser para sempre. Só o
suficiente para isso.
Houve uma onda de movimento ao meu lado, e ela deu um
passo para fora com uma onda vermelha e branca. Suas orelhas e
cauda eram claramente visíveis, e seus olhos brilhavam em um
dourado sutil nas sombras do corredor. Ela parecia diferente da
kitsune apavorada que havíamos deixado no castelo de Satomi. Esta
Yumeko parecia... mais dura, mais velha, claramente não a ingênua
meio-yokai que sorria para os fantasmas e era inocente para os
caminhos do mal. Seus olhos dourados exibiam uma tristeza que não
existia antes.
Bem no fundo, senti uma vibração de emoção quando a raposa
entrou na luz, uma agitação de medo e alívio cauteloso da alma
dentro. E eu sorri, saboreando aqueles sentimentos hesitantes de
esperança, tanto de Tatsumi, quanto nos olhos da kitsune na minha
frente. Eles pensaram que tinham uma chance.
— Hakaimono. — A garota raposa disse, parando do lado de
fora do círculo de ligação. Ela parecia calma, mas sua cauda tremia em
um ritmo nervoso e agitado por trás de suas vestes. — Vou pedir isso
a você apenas uma vez. Solte Tatsumi e volte para a espada. Não
queremos ter que matar você.
Encontrando o olhar luminoso da garota, comecei a rir.
— Oh, pequena meia-raposa ingênua. — Eu ri, enquanto os
tengu ao meu redor endureciam, mesmo enquanto eles continuavam a
cantar. — Você não tem ideia do que está pedindo. Ou o que você está
tentando fazer. — Eu balancei minha cabeça e sorri para a kitsune,
furtivamente testando a força das correntes quando encontrei seu
olhar. — Veja, eu sabia que você estava aqui em algum lugar. Esta
pequena armadilha astuciosa tinha o fedor de magia de raposa por
toda parte. Tinha vontade de ver você de novo, Yumeko-
chan. Tatsumi também. — Eu ri, mesmo enquanto a alma dentro de
mim surgia, mais forte do que eu já havia sentido antes. — Eu queria
que você saísse e brincasse, pequena raposa. — Eu continuei,
enquanto Tatsumi se enfurecia comigo, desesperado e furioso. — Eu
não queria você se escondendo nas sombras, olhando enquanto o
resto de seus amigos gritavam e morriam. As raposas não são as
únicas que podem pregar peças. E agora que você finalmente saiu do
esconderijo, a verdadeira diversão pode começar.
Ela empalideceu, suas orelhas de ponta preta achatadas contra
seu crânio. Atrás dela, a donzela do santuário puxou outro ofuda, e o
canto do tengu ficou mais alto, mais insistente. Eu podia sentir as
correntes se apertando ao meu redor, queimando enquanto cravavam
em minha pele e revelavam minhas presas.
Observe com atenção, Tatsumi. Dê uma boa olhada no rosto de sua
preciosa kitsune, pois esta é a última vez que você a verá viva.
Com um rugido, eu subi, quebrando as correntes que me
prendiam, e a amarração espalhada ao vento.
Instantaneamente, o komainu se lançou contra mim com um
rosnado, mandíbulas abertas para arrancar meu rosto. Eu recuei,
levantei Kamigoroshi e empalei o cão na garganta. Com um uivo
retumbante, o komainu se dissolveu em um redemoinho de névoa
vermelha e dourada e desapareceu.
Erguendo Kamigoroshi, eu avancei através da nuvem vermelha,
varrendo a lâmina em meus alvos. Yumeko saltou para trás com um
grito, mas a donzela do santuário deu um passo à frente, levantando
seu ofuda, em uma tentativa tola de me interceptar. A lâmina cortou,
cortando a carne, e a miko gritou quando seu braço caiu no chão,
cortado no cotovelo, os dedos ensanguentados ainda segurando a tira
de papel.
Uma flecha me atingiu nas costas, me fazendo cambalear. Virei-
me com um grunhido e avistei a figura do lado de fora do salão, já
encaixando outra flecha em seu arco. Ele disparou atrás de um pilar,
enquanto os tengu que estava cantando na borda do círculo agora
desembainharam espadas e lanças e se lançaram sobre mim com
gritos furiosos.
Rugindo, eu me lancei no meio dos guerreiros yokai, espada
brilhando. Eles se separaram como sacos de arroz, sangue e penas
voando pelo ar. Enquanto apunhalava um tengu na garganta, estendi
a mão e agarrei sua lança enquanto ela caía, arrancando-a de suas
mãos. Girando, eu cortei outro guerreiro corvo e quando o yokai caiu,
ergui a lança e a arremessei através do espaço que o corpo em queda
havia deixado. A arma atingiu o irritante arqueiro ronin enquanto ele
puxava seu arco, jogando-o para trás e prendendo-o à coluna. Sua
boca se abriu, as mãos agarrando a lança em seu meio, antes que ele
caísse sem vida contra a madeira.
Dois já foram. Eu sorri, me divertindo muito agora. Girando para
trás, girei e cortei as últimas fileiras de tengu, cortando-os em pedaços,
até que apenas o velho daitengu sobrou. Ele não tentou lutar ou se
proteger quando eu entrei, coberto com o sangue de seu clã
massacrado. Ele simplesmente me encarou, queixo erguido, enquanto
eu derrubava Kamigoroshi e dividia o antigo yokai ao meio.
Agora, para o final.
Endireitando-me, me virei e voltei para o altar, dando um golpe
casual na donzela do santuário que gemia baixinho, ajoelhada no chão
enquanto eu passava. A lâmina passou facilmente pelo pescoço esguio
e sua cabeça tombou para frente, caindo com um baque atrás
dela. Sem cabeça, a miko caiu no chão. Eu olhei para cima, sobre o
campo de morte e carnificina, e encontrei os olhos vidrados e
aterrorizados da kitsune, sentada com suas costas contra o altar que
segurava o pergaminho.
Por dentro, Tatsumi estava muito quieto. Talvez ele estivesse
reunindo forças para uma tentativa final e desesperada de intervir. Ou
talvez tenha percebido que não havia nada que pudesse fazer e
estivesse se preparando para o inevitável. A kitsune olhou para mim
enquanto eu me aproximava, tremendo quando pisei sobre os corpos
de seus amigos para ficar diante dela. Seus olhos estavam enormes,
vidrados de horror e descrença. Mas ela ainda encontrou meu olhar
firmemente, como se procurasse pela alma presa dentro de mim. Era
quase cativante aquela esperança desesperada de que de alguma
forma, mesmo agora, ela pudesse alcançar Tatsumi.
Balançando minha cabeça, eu me agachei para que estivéssemos
no nível dos olhos, vendo meu reflexo em seu olhar de raposa
amarelo. — Você realmente achou que isso funcionaria? — Eu
perguntei com um sorriso coloquial. — Eu abati exércitos que ficaram
no meu caminho, pequena raposa. Eu matei sacerdotes e homens
santos em templos inteiros que tentaram exorcizar e selar-me de volta
na espada. Uma kitsune meio adulta e sua coleção heterogênea de
desajustados não é um grande desafio. — Sorrindo, inclinei-me,
baixando minha voz. — Eu disse que esse dia chegaria, não disse? —
Eu sussurrei. — Eu prometi que mataria todo mundo com quem você
se importava, que todos próximos a você iriam morrer, e eu sempre
mantenho minhas promessas. Agora é a sua vez, raposinha. Receio
que você tenha perdido este jogo. Vou pegar os fragmentos de
pergaminho, o Mestre dos Demônios vai invocar o Dragão e eu
finalmente estarei livre desta patética concha mortal. Mas isso foi
divertido, e eu não sou completamente sem coração. Antes de morrer,
vou deixar você falar com Tatsumi uma última vez, se houver algo
que você queira dizer a ele. — Sentei-me nos calcanhares, dando a ela
um pouco de espaço. — Então, vá em frente. Eu sei que ele está
ouvindo. Saiba que qualquer coisa que você disser irá assombrá-lo
para sempre e terei grande prazer em continuamente lembrá-lo deste
momento, mas esta é a última vez que você falará com ele, então eu
não a desperdiçaria.
A kitsune fechou os olhos. — Gomennasai, Tatsumi. — Ela
sussurrou. — Me perdoe. Eu tentei. Sinto muito não termos sido fortes
o suficiente para libertá-lo. — Seus olhos se abriram, dourados e
desafiadores, olhando para mim. — Mas o que quer que Hakaimono
diga a você, não é sua culpa. Não me arrependo de conhecê-lo, e se
nos encontrássemos novamente nas mesmas circunstâncias, eu não
mudaria nada.
— Muito tocante. — comentei. — Você terminou?
Ela tremeu, então respirou fundo, preparando-se. — Sim.
— Bom. — Eu disse, e enfiei minhas garras em seu peito,
sentindo os ossos se quebrarem e quebrarem, para agarrar seu
coração. — Então eu vou pegar o que é meu. — Eu disse a ambos os
espectadores atordoados, e puxei meu braço para trás.
O sangue jorrou de seu peito, formando um arco no ar em um
jato quente. A raposa soltou um suspiro estrangulado e caiu para o
lado, atingindo o chão do templo com um baque e um respingo de
vermelho. Sua boca se abriu, os dedos se contraíram, antes que seu
corpo se acalmasse e seus olhos dourados se tornassem vidrados e
cegos. O sangue desceu os degraus do buraco aberto em seu meio,
cobrindo o estrado de vermelho.
De algum lugar lá dentro, houve um grito silencioso de raiva e
horror, de ódio me perfurando como uma flecha. Um breve momento
de puro e lindo desespero antes que a vontade de Tatsumi desabasse e
ele desabasse em resignação entorpecida.
O silêncio caiu sobre o corredor. Eu me levantei, esmagando o
órgão em meu punho, então o joguei casualmente no chão. À minha
volta, os tengu e restos humanos jaziam nas pranchas de madeira,
sangue e penas espalhadas por toda parte. Aos meus pés, o cadáver
da garota kitsune sangrava no estrado, olhos dourados olhando para o
nada. Havia um vazio na boca do estômago que não era meu, um
atoleiro de desespero e auto aversão, enquanto Tatsumi se enfurecia
com sua própria impotência e lamentava sua ingênua garotinha
raposa. A primeira alma que o viu como mais do que uma arma. A
primeira pessoa de quem ele se permitiu cuidar. Sua angústia era tão
bela quanto eu esperava. O espírito do matador de demônios foi
verdadeiramente quebrado. Eu venci.
E, no entanto, algo não parecia certo.
Pisando pelo cadáver da raposa, fui até o altar e peguei o
pergaminho do dragão de seu suporte. A caixa laqueada saiu
facilmente, sem armadilhas finais ou surpresas ocultas, e eu olhei para
o item em minha mão, curvando um lábio.
Uma coisa tão pequena, que faz todo este reino perder a cabeça. Eu
balancei minha cabeça. Mortais tolos. Vocês nunca estão satisfeitos e,
depois de todo esse tempo, ainda precisam descobrir que o desejo do Precursor
nunca é atendido da maneira que vocês esperam.
Com um bufo, me afastei do altar, segurando meu prêmio em
uma garra. Esse é um pedaço do pergaminho do Dragão. Agora, para
encontrar o último fragmento. Onde esses pássaros velhos estariam
escondendo isso?
Erguendo minha cabeça, examinei a câmara espalhada pela
carnificina mais uma vez, franzindo a testa enquanto olhava ao redor
para a matança. Algo ainda me incomodava, uma sensação de
inquietação da qual não conseguia me livrar. O que havia de errado
com essa cena?
Respirei devagar e de repente soube. Não havia cheiro. Nenhum
cheiro de morte, nenhum doce aroma de sangue no ar, nenhum fedor
de restos saindo dos corpos. Toquei com a língua o sangue
manchando minhas garras e não provei nada além de meu próprio
suor e pele. A diversão cintilou, mas por baixo disso, eu senti uma
leve onda de desconforto.
Outra ilusão.
Cerrei o punho e senti o pergaminho do dragão enrugar em
minha mão. Como papel? Franzindo a testa, eu olhei para ele.
Não era mais um pergaminho.
Abrindo minhas garras, olhei incrédulo para o ofuda em minha
mão, dezenas deles, descansando em minha palma. E cada um dos
pedaços de papel trazia as palavras de um ritual de encadernação em
tinta preta. Enquanto eu ficava boquiaberto em choque, as palavras
brilharam vermelhas com poder.
— Kuso! — Deixei cair o pacote como se estivesse pegando fogo,
mas era tarde demais. Como um enxame de mariposas, o ofuda
espiralou para cima, tornando-se raios de luz que enxamearam ao
meu redor. Senti a mordida das correntes mais uma vez, o que parecia
ser centenas de elos me envolvendo, me prendendo ao chão.
Aos meus pés, o corpo da kitsune desapareceu, desvanecendo-se
em uma nuvem de fumaça branca. Com estalos semelhantes, os
corpos dos tengu e dos humanos massacrados também
desapareceram. Sob minhas botas, o piso de madeira explodiu em
fumaça, as paredes, pilares, altar, teto, tudo se transformando em
névoa ao meu redor enquanto eu olhava em choque.
O templo todo era uma ilusão?
Atordoado, eu olhei para baixo para o enorme círculo de ligação
ao meu redor, selos sobre selos, comigo bem no centro. Quando a
fumaça se dissipou, olhei para cima para ver uma dúzia de tengu
parados na beirada, suas vozes aumentando em um canto unificado.
Enfurecido, furioso com o truque elaborado, tentei me lançar
para frente, lutando contra as amarras que me prendiam. Mas este
círculo era enorme e extremamente poderoso, extraindo força da terra
e do canto dos tengu que o cercavam. Quanto mais tempo eu
permanecia dentro de suas fronteiras, mais fraco eu me tornava. Todo
esse truque foi criado para me manter dentro do anel, para me distrair
enquanto eu perdia meu tempo matando ilusões, enquanto o círculo
de ligação real minava minha força e ficava mais poderoso a cada
segundo.
As correntes ao meu redor ficaram ainda mais pesadas,
apertando meus membros e tirando o fôlego dos meus
pulmões. Cerrando a mandíbula, plantei meus pés e me preparei,
determinado a não me ajoelhar, a não ser forçado a cair no chão. Eu
não me submeteria. Os tengu podiam cantar até que suas gargantas
murchassem e as vozes deixassem seus corpos, mas eu não seria
derrotado. E eu mataria qualquer um que se aproximasse o suficiente
para tentar acabar com minha vida.
Quando o resto da fumaça se dissipou, o anel se abriu e um rosto
familiar apareceu na borda do círculo. Viva. Ilesa. Sem um buraco
onde seu coração deveria estar. Seu olhar encontrou o meu sobre o
círculo de ligação e ela deu um passo à frente.
Eu sorri enquanto ela se aproximava. — Isso... foi um ardil
inspirador, raposa. — Eu disse, reunindo minhas forças para atacar
quando chegasse a hora certa. — Estou quase impressionado. Não
pensei que você tivesse o poder para esse tipo de engano elaborado,
mas você é kitsune, afinal. Então, agora a pergunta se torna... você tem
sangue frio o suficiente para me matar?
Sua mandíbula cerrou quando ela se aproximou, uma sombra de
fúria e angústia cruzando seu rosto, e eu ri. — Consegue fazê-lo? —
Murmurei. — Enfie sua adaga em meu coração e me mande de volta
para a espada, sabendo que seu precioso Tatsumi morrerá e sua alma
irá para o que vida após a morte espera?
A kitsune balançou a cabeça e seus olhos brilharam quando ela
olhou para cima. — Não, Hakaimono. — Ela sussurrou, parando
apenas uma estocada de distância. — Eu não vou matar Tatsumi, mas
eu estou indo para lhe enviar de volta para a espada. Por minha vida,
você retornará a Kamigoroshi, mesmo que eu deva destruir minha
própria alma no processo.
Eu rosnei e ataquei, lutando contra as correntes para afundar
uma garra no tecido solto de suas vestes. Ao mesmo tempo, a kitsune
se lançou para frente, assustando-me, e agarrou meu rosto com as
duas mãos. Seus lábios se separaram, a boca escancarada, enquanto
uma névoa brilhante com a forma vagamente de uma raposa emergia
entre seus dentes e pairava diante de mim. Com um solavanco,
percebi o que ela estava fazendo e tentei empurrar seu corpo para
longe, mas a névoa em forma de raposa mergulhou para frente,
enchendo minha visão, e a última coisa que me lembrava era de cair.
Capítulo 24
Mudando o destino
Suki

Da borda do pico coberto de neve, Suki observou o enorme


exército rastejar lentamente montanha acima e sentiu-se nauseada de
terror.
— Bem. — Senhor Seigetsu meditou em uma voz sombria. Ele
ficou na beira do penhasco, os braços cruzados, observando a massa
escura de demônios, yokai monstruosos e outros horrores escalando
os picos da Espinha do Dragão. — Parece que Genno decidiu não
esperar por Hakaimono, afinal.
A seus pés, Taka estremeceu, seu único olho enorme e redondo
enquanto observava os demônios subirem. — Esse é o exército do
meu sonho. — Ele sussurrou. — Aquele que matou todos no templo.
— Sim. — Murmurou Seigetsu. — Genno não é bobo. Seu
exército está seguindo a trilha que Hakaimono estabeleceu. No ritmo
em que estão marchando, eles chegarão ao templo em algumas horas.
— Ele não parecia angustiado ou surpreso, observando os demônios
como se fosse um jogo de go particularmente interessante. — Uma
boa estratégia. Com todos no templo distraídos pelo Primeiro Oni,
ninguém espera que um exército passe pelos portões. Eles serão pegos
de surpresa e provavelmente mortos na primeira onda.
— Não. — Suki sussurrou. Ela podia apenas ver o telhado
extenso do templo, quase invisível contra o pico de uma montanha
distante. A garota kitsune estava lá, assim como Daisuke-sama. —
Podemos... não podemos avisá-los, Seigetsu-sama? — ela implorou,
olhando para o homem de cabelo prateado, que levantou uma
sobrancelha para ela. — Nós poderíamos... voar para lá e... avisar que
o exército está chegando. Eles podem fugir... antes que os demônios
cheguem.
Senhor Seigetsu balançou a cabeça. — Eu não posso. — Ele disse
a ela baixinho, fazendo seu coração afundar. — Eu sou... bastante
conhecido no templo, Suki-chan. Eles não confiariam em nada que eu
tivesse a dizer. Taka é um yokai, ele seria atacado, talvez morto, antes
que pudesse avisá-los. Os guardiões lá são bastante fanáticos sobre o
que eles protegem. — Um canto de seu lábio se curvou sem humor,
antes que ele ficasse sério novamente. — Receio que nossas mãos
estejam atadas neste assunto. É provável que todos no templo sejam
mortos, exatamente como Taka sonhou.
— Eu posso avisá-los, Seigetsu-sama.
Seigetsu piscou, olhando para Suki com leve surpresa. — Você,
Suki-chan? — ele perguntou, e ela concordou vigorosamente.
— Eles... eles não me conhecem. — Ela continuou, gaguejando
um pouco enquanto tentava forçar as palavras para fora, para
continuar falando. — Sou apenas um espírito errante. Eu posso
encontrar Daisuke-sama... dizer a ele que os demônios estão
vindo. Eles podem... fugir antes que o exército chegue lá. Eles teriam
uma chance então, certo?
Seigetsu inclinou a cabeça, olhando para ela com intensos olhos
dourados. — Talvez. — Ele quase sussurrou. — Certamente, se eles
tivessem um aviso, eles poderiam estar prontos para o ataque. Mas
você está disposta a enfrentar um exército de monstros e o Mestre dos
Demônios para salvar seu nobre, Suki-chan? Você não está com
medo?
Suki tremeu, lembrando-se da noite de sua própria morte, os
demônios, o terrível Yaburama e a maga de sangue que a havia
sacrificado aos monstros. — Estou com medo. — Ela admitiu. —
Mas... eu quero salvar Daisuke-sama. E todo mundo. Eu não quero
que os demônios matem todos eles. Por favor... Senhor Seigetsu. Eu
posso... avisá-los. Deixe-me tentar.
Seigetsu sorriu. — Eu não posso impedir você, Suki-chan. — Ele
disse calmamente, e levantou uma manga ondulada em direção ao
templo distante. — Vá, com minha bênção. — Seus olhos brilharam e
a mais leve nota de triunfo entrou em sua voz. — Talvez seja
necessário um fantasma para mudar o curso do destino esta noite.
Por alguma razão, isso causou um tremor na espinha de Suki,
mas ela não parou para pensar nisso. Abandonando sua imagem
humana, ela estremeceu em uma bola sem forma de luminância,
lançando Seigetsu e Taka em uma luz bruxuleante e misteriosa. Por
um momento, ela pairou ali, reunindo sua coragem, observando a
massa de demônios e yokai enxamear contra a neve. Então, com uma
explosão de determinação, ela subiu em espiral, acima dos penhascos,
e disparou na direção do templo.
Capítulo 25
O plano da Alma
Yumeko

Na noite em que chegamos ao templo Pena de Aço, a raposa


branca estava esperando por mim em meus sonhos mais uma vez.
— Você não tem ideia do que fazer contra Hakaimono, não é? —
ele perguntou como forma de saudação.
Eu me ericei, então caí. — Não. — Eu admiti. — Na verdade não.
— Nós, eu, Daisuke, Okame e Reika, passamos várias horas com os
tengu e o daitengu, tentando bolar um plano para derrotar
Hakaimono sem que nenhum de nós fosse morto. Os tengu eram
místicos habilidosos e tinham uma certa quantidade de poder mágico
que extraíam da própria montanha, mas não o suficiente para segurar
Hakaimono por muito tempo.
A raposa branca suspirou. — Para ser jovem e ingênua de novo.
— disse ele, sacudindo o focinho pálido. — Você tem o que precisa
para derrotar Hakaimono, pequena raposa. Você simplesmente não
está pensando como uma kitsune. Não somos humanos, atacando
nossos inimigos de frente como touros furiosos. Batalhar com uma
raposa é como tentar pegar um reflexo em um lago. Somos sombras
sobre sombras, tecendo nossos próprios mundos, nossas próprias
realidades. Enredando nossos inimigos tão completamente, eles não
têm ideia do que é real e do que não é. Nada que apresentamos ou
revelamos é a verdade. — Ele acenou com a cauda pensativamente. —
Mas não se pode subestimar esse oponente. — Alertou. — Hakaimono
não se deixa enganar por simples pegadinhas. Vai levar todo o seu
talento, toda a sua magia de raposa e cada grama de astúcia e
malandragem que você tem, para derrotá-lo.
— Eu não sou tão forte. — Eu sussurrei. — Minhas ilusões são
coisas simples. Não tenho ideia do que posso fazer contra Hakaimono.
— Você realmente acredita nisso, depois de tudo o que
fez? Depois de enganar um imperador e deixar os assassinos do Clã
das Sombras loucos de medo?
— Homens. — Eu concordei com um aceno de cabeça. — Não
oni. Não matadores de demônios. Estarei enfrentando
Hakaimono e Tatsumi. Nenhum deles terá medo de qualquer coisa
que eu possa fazer.
— Eu vejo. — A raposa branca estremeceu com irritação na
cauda. — Se é nisso que você realmente acredita, então vou lhe dar a
força de que você precisa para sair vitoriosa.
Sua boca se abriu, o focinho escancarado, e uma esfera brilhante
de luminância branco-azulada emergiu de sua garganta e flutuou em
minha direção. Conforme se aproximava, eu podia ver as chamas
fantasmagóricas piscando ao redor de uma pequena bola branca do
tamanho de um punho humano. Ela circulou sobre minha cabeça,
brilhando suavemente por dentro, então desceu até tocar a ponta do
meu focinho. Chamas frias fizeram cócegas em meu nariz e eu
espirrei. Ao fazer isso, senti algo pequeno e redondo voar em minhas
mandíbulas e descer pela minha garganta, queimando minha língua
por onde passou. Tossi e engasguei, sentindo como se estivesse
engasgando com um caroço de pêssego, mas o objeto estranho
ignorou minhas tentativas de vomitar e se acomodou em meu
estômago, iluminando minhas entranhas com o que parecia chamas
de gelo.
Tossi mais uma vez e olhei para cima. A raposa branca estava me
olhando com um olhar desinteressado em seu rosto estreito.
— Esse é meu hoshi no tama. — Ele me disse. — Minha Esfera
Estelar. Ela contém uma pequena quantidade de meu poder. Com ela,
você terá a destreza mágica de uma dúzia de kitsune, talvez mais. —
Ele deu um sorriso sombrio enquanto eu olhava boquiaberta para ele,
atordoada e cambaleando. Quem era ele para ter tanto poder? — É
muito querida para mim. — A raposa branca continuou. — E eu
gostaria dela de volta quando você terminar. Mas, por enquanto, você
terá a força necessária para desafiar até mesmo Hakaimono, se puder
parar de pensar como uma humana e começar a conspirar como uma
raposa.
— Quem é você? — Eu perguntei, olhando para ele. A pergunta
já havia sido feita antes, mas parecia ainda mais importante agora. —
Por que você está me ajudando?
Ele apenas deu aquele sorriso misterioso e ergueu o rosto para a
lua, como se sentisse algo no vento. — Hakaimono está perto. —
Afirmou, fazendo meu estômago se contorcer de medo e
ansiedade. — Você terá talvez um dia antes de ele chegar, então
planeje com sabedoria. Lembre-se, Hakaimono está esperando uma
armadilha. Ele sabe que não pode simplesmente pegar o pergaminho
do dragão sem resistência, que os guardiões aqui irão defender os
pedaços do pergaminho com suas vidas. Hakaimono assume que ele é
forte o suficiente para resistir a tudo o que é jogado contra ele, e ele
está certo. Ele é um inimigo muito poderoso para se enfrentar de
frente. Portanto, faça o que fazemos de melhor. Dance ao redor
dele. Faça-o pensar que ganhou. Se você for muito inteligente, pode
derrotar Hakaimono em seu próprio jogo. Se você não for... — A
raposa branca balançou a cauda e começou a desaparecer, a luz da lua
brilhando por seu corpo enquanto ele desaparecia de vista. — Você e
seus amigos morrerão, Genno usará o poder do Desejo do Dragão
para mergulhar Iwagoto na escuridão e a alma de Kage Tatsumi
estará perdida para sempre. Algo para lembrar quando você enfrentar
Hakaimono pela última vez.

O silêncio latejava em meus ouvidos e eu abri meus olhos.


Um arrepio percorreu minha espinha. Eu estava em uma
pequena clareira na floresta cercada por árvores antigas, grandes
galhos retorcidos entrelaçados para cobrir o chão de sombras. Através
do dossel, o céu era de uma luz estranha, vermelho-sangue e
carmesim, filtrando-se pelas folhas e manchando o solo.
Algo farfalhou atrás de mim. Virei-me e vi um trio de crianças
ajoelhadas no chão, um homem de rosto severo parado ao lado delas
com os braços cruzados. Dois meninos e uma menina, de não mais de
seis ou sete invernos, vestidos com calças haori e hakama pretas
idênticas. Suas cabeças estavam inclinadas, olhares fixos no chão à sua
frente, mas meu coração se torceu quando reconheci o menino no
final, seus ombros pequenos definidos em determinação.
Tatsumi. Avancei, pronta para chamar o jovem matador de
demônios, mas parei. Nenhum dos humanos olhou para mim ou
reconheceu minha presença. Eu fiquei lá, à vista de todos, e nenhuma
menção foi feita sobre a garota estranha que apareceu do nada.
Isso não é real, eu percebi, olhando ao redor do vale. Tem que ser
uma memória. Uma das memórias de Tatsumi. Olhando para a versão
mais jovem de Tatsumi, senti meu estômago apertar. Mesmo nessa
idade, ele ainda mantinha a mesma expressão intensa e solene,
olhando fixamente para o chão, como se tentasse ser invisível. Diante
do homem e das crianças estava um par de figuras altas e magras com
rostos brancos pintados e lábios negros. Os olhares gêmeos varreram
cada um deles por sua vez. — E esses são seus melhores alunos? —
Um majutsushi perguntou ao homem parado ao lado do grupo. Sua
voz era monótona e fria, e vi os ombros do outro garoto tremerem. —
As crianças tocadas por kami mais promissoras da escola?
— Sim. — Respondeu o homem, acenando com a cabeça para o
trio a seus pés. — Kage Ayame, Makoto e Tatsumi. Cada um
demonstrou uma compreensão notável da magia das Sombras. Eles
são os melhores em sua classe, eles dominam as técnicas básicas dos
shinobi e adquirem novas habilidades quase
imediatamente. Qualquer um deles serviria à daimyo
esplendidamente.
O majutsushi refletiu sobre isso. — E desses três... — um bruxo
perguntou, olhando para o trio. — Quem você consideraria o mais
digno de servir a nossa grande senhora? Para suportar a honra e o
fardo de ser o próximo matador de demônios Kage? Se você tivesse
que escolher, agora, qual criança você enviaria de volta conosco?
Os olhos do homem se enrugaram de desgosto, mas ele
respondeu com calma. — Ayame é a mais rápida. — Ele disse, uma
pequena pitada de orgulho em seu tom. Eu olhei para a garota e vi o
mais fraco dos sorrisos cruzar seu rosto, mas ele sumiu na próxima
piscada. — Ela pode correr em círculos ao redor desses dois, mas
também é teimosa. Tem um temperamento. Estamos trabalhando
nisso. Makoto é um aluno naturalmente talentoso, e sua magia das
Sombras é a mais forte de todas, mas ele não tem a ambição e o
impulso de ser realmente o melhor. — O homem suspirou. —
Honestamente, se eu fosse escolher o próximo matador de demônios,
seria aquele. — Ele disse, e apontou para a terceira criança, o menino
na ponta, que não moveu um músculo o tempo todo. — Kage
Tatsumi.
— E por que ele? — perguntou o majutsushi em um sussurro
rouco. — O que faz ele tão especial?
— Por que Tatsumi? — Em vez de responder à pergunta, o
homem ofereceu um sorriso bastante misterioso. — No verão
passado... — ele começou. — Um dos cachorros da aldeia teve
filhotes. A mãe estava fraca e o parto foi demais para ela, então ela
morreu. Todos os filhotes morreram também, exceto um, o menor da
ninhada. Este aqui... — Ele continuou, acenando para Tatsumi. — Me
perguntou se ele poderia tentar salvá-lo. Eu disse a ele que sim, ele
poderia tentar. Então ele ficou acordado com aquele cachorrinho por
várias noites a fio, cuidando dele para recuperá-lo. Para surpresa de
todos, o nanico sobreviveu. Logo, começou a segui-lo por toda parte,
ficando do lado de fora da porta de suas aulas, esperando por ele. Os
outros alunos chamavam de Kagekage, a sombra da sombra, porque
você não conseguia encontrar um sem o outro. Depois de um tempo,
eles eram inseparáveis. — O homem deu um sorriso sombrio. — Até o
dia em que coloquei uma adaga na mão de Tatsumi e disse a ele para
matá-la em nome dos Kage.
O homem olhou para o menino, que ainda não havia se movido
ou levantado a cabeça, embora os ombros estivessem rígidos. — Eu
ordenei que ele fizesse isso rapidamente, e me trouxesse a prova de
sua morte. Ele não disse nada, mas naquela noite veio até mim, com
lágrimas escorrendo pelo rosto, com a cabeça de seu cachorrinho em
uma caixinha laqueada, e nós o enterramos no campo naquela noite.
Senti um nó subir na minha garganta e pisquei para conter as
lágrimas, mesmo quando um dos majutsushi soltou um longo e
sibilante som de satisfação. — Excelente. — Ele sussurrou. — Muito
encorajador. — Ele pressionou dois dedos nos lábios enegrecidos,
parecendo pensativo. — Haverá provas, é claro. Testes para ver qual
desses candidatos será escolhido. Mas acredito que podemos ter
encontrado nosso próximo matador de demônios. Diga-me, garoto...
— Ele avançou até que estava pairando sobre Tatsumi, lançando a
pequena forma em sua sombra. — Você sabe por que teve que fazer o
que fez? Por que você teve que matar seu cachorro? Me responda.
Pela primeira vez, um tremor percorreu os ombros de Tatsumi,
pequenas mãos em punhos em seus joelhos. — Eu matei Kagekage...
— o jovem Tatsumi disse, sua voz suave e calma fazendo meu coração
doer por ele. — Porque o Clã das Sombras me disse para fazer
isso. Porque recebi uma ordem direta. Isso é tudo que eu preciso saber
para obedecer.
Eu podia ver os olhos do majutsushi brilhar, o sorriso curvando
seus lábios enquanto ele se endireitava. — Isso é tudo. — Ele
murmurou, enquanto o par recuava. — Você fez seu trabalho
admiravelmente, e a senhora ficará satisfeita. Alunos... — Ele
continuou, sua voz ficando áspera. — Vocês vão nos seguir.
Um rugido distante ecoou sobre as árvores, fazendo os cabelos
da minha nuca se arrepiarem. Ninguém mais parecia ouvir; Tatsumi e
as outras duas crianças se levantaram obedientemente e começaram a
seguir os magos para fora da clareira. Mas, por entre as árvores, pude
ver algo se movendo. Algo enorme. Membros gemeram e galhos
estalaram como gravetos, enquanto a enorme forma escura avançava
em minha direção através da floresta.
Hakaimono, eu percebi, quando um calafrio diferente de tudo que
eu senti antes subiu pelas minhas costas. O Primeiro Oni em sua
forma real e terrível, estava vindo para mim. Tenho que encontrar
Tatsumi, pensei, recuando e olhando ao redor da clareira. O verdadeiro
Tatsumi. Sua alma tem que estar aqui, em algum lugar. Eu tenho que ir mais
fundo. Esta é apenas uma memória superficial. Eu tenho que encontrar a
alma de Tatsumi antes de poder enfrentar Hakaimono.
A forma maciça nas árvores se virou para mim, olhos como
brasas brilhando na escuridão, e minhas entranhas se retorceram de
medo.
— Kitsune! — rugiu uma voz profunda e terrível, fazendo o
próprio chão tremer. — Eu sei que você está aqui, pequena raposa! Eu
posso sentir você. Mostre-se, se você acha que pode me expulsar!
A memória ao meu redor ondulou, como uma libélula pousando
na superfície de um lago. Achatando minhas orelhas, me virei e fugi
para as árvores, para longe de Hakaimono, e a clareira da floresta
desapareceu na escuridão.

Cambaleei da escuridão para um pequeno cômodo e


imediatamente tive que pular para trás para evitar a figura vestida
correndo pelo chão. Quando meu olhar o seguiu, meu estômago se
revirou e minhas mãos voaram para a minha boca em horror.
Tatsumi estava deitado em uma mesa perto da parede de trás, o
rosto voltado para o teto, olhando fixamente para cima. Sua camisa
estava fora, e a metade superior de seu peito estava coberta de sangue,
respingado em sua pele e pingando no chão. Dois homens em túnicas
cinza-cinzas movimentavam-se em torno dele, enxugando o sangue e
pressionando o pano na carne rasgada. Eles não estavam sendo
particularmente gentis, eu percebi, encolhendo-se quando um deles
despejou um líquido claro de um frasco em uma tira de pele
enegrecida ao longo do braço de Tatsumi, fazendo-a borbulhar e
soltar fumaça. A mandíbula de Tatsumi apertou, e seus dedos
agarraram a borda da mesa até que os nós dos dedos ficaram brancos,
mas ele não fez nenhum som.
A porta se abriu com um estalo e um homem entrou. Baixo e
atarracado, com olhos negros agudos e feições estranhamente
esquecíveis, ele marchou até o lado da mesa e olhou para o demônio
matador ferido. Levei um momento para reconhecê-lo como o homem
que conheci nos corredores do castelo do Clã das Sombras. Sensei de
Tatsumi. Depois de um piscar de olhos carrancudo, o homem bufou e
balançou a cabeça em desgosto.
— Onde ele foi encontrado? — ele murmurou, parecendo mais
irritado do que aliviado.
— Bem dentro do portão. — Uma das figuras vestidas de manto
respondeu, sem desviar os olhos de sua tarefa de enfaixar o braço
destruído do matador de demônios. — Taro o viu chegando pouco
antes do amanhecer. Ele provavelmente se arrastou de volta de onde
foi enviado antes de desmaiar devido à perda de sangue.
— Ele está muito danificado? Ele vai viver?
— Provavelmente. Os ferimentos superficiais curarão
rapidamente, mas as queimaduras no peito e no braço são bastante
graves e levarão tempo. Felizmente, não parece haver nenhum dano
aos nervos, mas ele vai sentir uma grande dor até que sarem.
O homem bufou novamente. — Sim, bem, talvez da próxima vez
ele se lembre de não esfaquear uma nue com uma espada de aço
quando ela estiver se preparando para disparar um raio. —
Descruzando os braços, ele olhou para Tatsumi novamente. —
Matador de demônios. — Ele disse, inclinando-se mais perto do rosto
do matador de demônios. — Você pode me ouvir, garoto?
— Eu... ouço você, sensei.
Minha garganta fechou. Sua voz estava tensa de dor, mas ele
ainda tentou falar com calma. O homem se endireitou, olhando para
ele sem um pingo de compaixão. — O que deu errado? — ele
perguntou com uma voz dura. — Eu te avisei sobre a mortalha de
relâmpagos da nue. Isso não deveria ter acontecido, Tatsumi.
— Perdoe-me, sensei. — Tatsumi rangeu. — Havia... — Ele fez
uma pausa, fechando os olhos, quando um dos homens de manto
espirrou aquele líquido claro em seu peito, fazendo com que bolhas
brancas espumassem onde caiu. — Havia duas delas. — Tatsumi
continuou depois de um momento. — A nue deve ter tido uma
companheira. Quando a primeira foi morta, a segunda... me
emboscou.
— Duas delas. — O sensei de Tatsumi parecia duvidoso, mas
sombrio. — Bem, isso explica a quantidade de desaparecimentos na
área. Nue são mal-humoradas e territoriais nos melhores
momentos. Graças aos kamis, elas são relativamente raras. Você
matou a segunda?
— Sim... sensei. — Tatsumi respondeu.
— Bom. Isso significa que você não precisa ir caçá-la quando
estiver de pé novamente. — O homem se endireitou e olhou para as
figuras vestidas com mantos. — Mantenham-me atualizado sobre sua
condição. Se ele piorar ou parecer que vai morrer, informe-me
imediatamente.
— Sim senhor.
O homem deu um passo para trás, mas eu o vi fazer uma pausa,
apenas um momento, olhando para o matador de demônios em
sofrimento. Um lampejo do que poderia ter sido simpatia passou por
seus olhos, embora tenha desaparecido entre uma piscada e a
próxima. Sem outra palavra para o gravemente ferido Tatsumi, o
homem se virou e saiu. Enquanto os curandeiros voltavam a trabalhar
no matador de demônios, Tatsumi apertou sua mandíbula e lançou
seu olhar para o teto, olhando novamente para o nada.
Mordi meu lábio para evitar que meus olhos embaçassem. Meu
coração doeu, desejando poder ir até ele e pegar sua mão, apenas para
deixá-lo saber que não estava sozinho. Que alguém em sua existência
dura e solitária se importava se ele vivia ou morria. Mas esta era
apenas outra memória; os dois curandeiros continuaram seu trabalho
sem olhar para mim e, sobre a mesa, o matador de demônios jazia em
um silêncio sofredor. Esperando que isso acabasse.
Mais profundo, pensei. A alma de Tatsumi não está aqui. Eu tenho que
ir mais fundo.
Afastando-me da cena horrível, eu me afastei, seguindo o sensei
de Tatsumi para fora da porta, e o mundo desapareceu ao meu redor.

Hakaimono me seguia. Nem sempre eu podia vê-lo ou ouvi-lo,


mas podia senti-lo; uma presença terrível e sombria se aproximando
cada vez mais. Perseguindo-me através das camadas da consciência
de Tatsumi. Às vezes, eu fugia de uma memória sabendo que ele
estava bem atrás de mim, que se eu esperasse mais um momento, ele
estenderia a mão e me pegaria. Não ajudou que eu não tivesse ideia
de para onde estava indo. Eu estava perdida no labirinto da mente de
Tatsumi, onde cada memória era mais sombria, mais sangrenta e mais
deprimente do que a anterior. Tudo que eu sabia era que precisava
alcançar sua alma, que ela estava em algum lugar, nessa paisagem
desolada manchada pela presença de Hakaimono, e precisava
continuar procurando até encontrá-la.
Mais uma vez, me vi em uma clareira na floresta, o céu
manchado de vermelho e preto por entre as árvores. Um velho poço
de pedra estava situado no centro da clareira, delineado na luz
carmesim da lua e do céu. Ele lançava uma sombra longa e
ameaçadora sobre a grama e fez minha pele arrepiar só de olhar para
ela.
Um arrepio passou pela clareira e Tatsumi se materializou fora
das árvores como uma sombra se tornando real. Em uma mão,
Kamigoroshi estava fora da bainha e brilhava em um roxo sutil contra
a luz carmesim assustadora.
O matador de demônios caminhou firmemente pela clareira até
ficar a poucos metros do poço. Acima, a lua cheia emergiu de trás de
uma nuvem, lançando raios vermelhos doentios sobre a figura
solitária parada imóvel na grama.
Uma mão pálida ergueu-se da escuridão do poço, agarrando a
borda das pedras. Outra seguiu, quando algo branco e irregular abriu
caminho para fora do buraco; uma mulher com um vestido funerário
branco e ensopado, cabelos longos cobrindo o rosto. Suas mãos eram
garras retorcidas, unhas curvas brilhando na luz, e sua pele era de um
pálido cinza-azulado. Enquanto eu recuava horrorizada, a yurei virou
a cabeça na direção de Tatsumi, que se manteve firme enquanto o
espectro rastejava para fora da borda do poço e cambaleava em sua
direção.
— Eu sou bonita? — sussurrou, sua voz transformando meu
sangue em gelo. Ambos os braços se estenderam em direção a
Tatsumi, a água pingando de sua pele cinza para desaparecer na
grama. — Eu sou bonita? — Ele ergueu a cabeça e vi as listras
vermelhas escorrendo pelo manto, saindo da garganta cortada, os
olhos brancos e mortos espiando através da cortina de cabelo. — Você
vai me amar?
— Não, Mizu Tadako. — A voz de Tatsumi me
surpreendeu. Calmo e quase gentil. — Os ossos de uma dúzia de
sacerdotes e homens santos jazem no fundo do seu poço. A hora do
exorcismo já passou. — Ele ergueu sua espada, e o brilho roxo e frio
de Kamigoroshi cobriu seu rosto, que parecia solene e determinado na
luz bruxuleante. — Para onde quer que Kamigoroshi a envie, que seu
espírito encontre paz.
O rosto do espectro se contorceu de raiva, e ela se lançou contra
Tatsumi com um grito de entorpecer os ossos.
— Encontrei você, pequena raposa.
Meu sangue gelou por um motivo diferente, e meu estômago
revirou de medo, quando sua presença se materializou atrás de
mim. Sem pensar, pulei para frente, sentindo algo agarrar as pontas
do meu cabelo enquanto eu disparava para longe. Com o coração
batendo forte, corri para o centro da clareira, onde Tatsumi e a mulher
fantasma estavam girando em torno um do outro, seus gritos furiosos
ecoando nas árvores. Sem olhar para trás, saltei para a beira do poço e,
antes que perdesse a coragem, caí na escuridão escancarada, ouvindo
o rosnado de frustração de Hakaimono me seguindo para a escuridão.
Eu bati no chão com força, mas consegui transformar a queda em
um rolar e tombei dolorosamente na base de uma
parede. Estremecendo, eu me endireitei e olhei ao redor, me
perguntando onde eu tinha acabado desta vez.
Eu estremeci. Um enorme castelo surgiu diante de mim, sua
silhueta negra contra o céu vermelho assustador. Raios brilhavam
através das nuvens, fios não naturais brilhando em preto-púrpura, e
na não luz bruxuleante, eu reconheci este lugar. Hakumei-jo, o castelo
do Clã das Sombras, erguia-se diante de mim como uma grande e
paciente besta. Mas era de alguma forma mais escuro e distorcido do
que sua contraparte no mundo real. Vinhas gordas e vermelhas
deslizavam por suas paredes e se enrolavam nos cantos, pulsando
como se estivessem vivas. Coisas pequenas e deformadas rastejavam
ao longo dos telhados em camadas, olhando para mim com olhos
como carvão em brasa. A escuridão aqui parecia uma coisa
viva; sombras se moviam e rastejavam ao longo do chão e paredes,
presas a nada, mas ainda estendendo a mão para mim.
E de repente, eu soube.
Ele está aqui. A alma de Tatsumi... está em algum lugar dentro do
castelo.
Em algum lugar acima, quase afogado pelo gemido do vento no
pátio, houve um rugido abafado que fez meu estômago
embrulhar. Hakaimono ainda estava vindo.
Corri escada acima para o castelo, certificando-me de não pisar
nas grossas vinhas vermelhas que pulsavam com raiva quando me
aproximei, e abri as pesadas portas de madeira no topo. Elas
gemeram, relutantemente balançando para trás, e eu escorreguei pela
abertura para a escuridão além.
Lá dentro, os corredores estavam escuros, as paredes e o piso
polido cobertos com mais vinhas carmesim que deslizavam pelas
janelas e passavam por rachaduras na madeira. O próprio castelo
parecia estar respirando, as paredes se expandindo e se contraindo,
embora eu não pudesse dizer se isso era minha imaginação.
Tatsumi, pensei, olhando em volta consternada. Onde você está?
De algum lugar lá embaixo, obtive uma resposta. A pulsação
mais fraca de um batimento cardíaco, quase imperceptível, vibrando
através do castelo. Eu respirei fundo e me lancei para frente, e as
sombras se fecharam ao meu redor.
Capítulo 26
Batalha pelo templo Pena de
Aço
Suki

Ela mal conseguiu chegar a tempo.


Daisuke-sama, Suki pensou, voando sobre as paredes do
templo. Atrás dela, assustadoramente perto, ela podia ouvir a
respiração ofegante de demônios, o arranhar de garras contra a
rocha. Os sons a apavoraram, mas ela se forçou em sua imagem
humana, olhando ao redor loucamente. Onde você está?
Ela o viu então, no centro do pátio de pedra, seu cabelo branco e
haori brilhante destacando-se na escuridão. Figuras o cercavam,
criaturas vestidas com garras e grandes asas negras crescendo de seus
ombros. Mais monstros, Suki pensou, hesitando de medo. As criaturas
parecidas com pássaros formavam um grande círculo, dois dedos
estendidos diante de cada um deles, entoando palavras que fizeram o
ar estremecer como ondas de calor.
Suki olhou para baixo, avistando o que o anel de pássaros
monstros havia cercado, e teria engasgado se ela tivesse fôlego.
Um terrível demônio jazia no centro do círculo, um oni com pele
negra como tinta e uma juba branca selvagem emoldurando seu
rosto. Seus olhos estavam fechados, embora suas pálpebras se
contraíssem e seus dedos em garras tivessem espasmos, como se ele
tivesse sido pego no meio de um pesadelo. Correntes brilhantes,
parecendo ter emergido das próprias pedras, envolviam os membros e
o peito do oni, prendendo-o ao chão e latejando como se estivessem
vivas.
Ao lado do demônio, deitada de costas com as mãos cruzadas
sobre o estômago na pose de morte, estava a kitsune. A mesma
kitsune que Suki guiou pelo castelo de Dama Satomi na noite em que
ela veio para resgatar o sacerdote. A pele da raposa estava pálida
como um pergaminho, seu rosto e seu corpo flácidos. Uma donzela de
santuário, seus lábios pressionados em uma linha apertada, ajoelhada
ao seu lado, uma mão esguia na testa da kitsune. Morta, Suki pensou
com terror e uma dor repentina e surpreendente. A raposa está morta. O
demônio deve tê-la matado.
Mas quando ela se aproximou, a donzela do santuário soltou um
suspiro que quase soou como se ela estivesse lutando contra um
soluço. — Aguente firme, Yumeko. — Suki ouviu a miko sussurrar. —
Se alguém pode trazer de volta Kage-san, será você. Você é teimosa
demais para deixar Hakaimono vencer.
Suki estava quase no limite do círculo agora. Ela podia ver o
rosto de Daisuke, sombrio e solene enquanto ele olhava para as duas
figuras no chão, como se esperasse que algo acontecesse. Todos, desde
os humanos aos monstros pássaros e até mesmo o pequeno cachorro
laranja sentado ao lado da miko, pareciam focados nos dois corpos no
centro do ringue. Mas quando ela se aproximou, sua luz caindo sobre
os ombros encurvados das figuras que cercavam a dupla, Taiyo
Daisuke ergueu a cabeça e a avistou.
— S-Suki-san?
Suki congelou ao ouvir o nome dela em seus lábios. Todos
olharam para ela, e de repente ela se viu presa por uma dúzia de
olhares largos e assustados.
Taiyo Daisuke piscou, balançou levemente a cabeça como se
quisesse clareá-la, depois olhou para ela novamente com os olhos
arregalados. — É... é você, não é? — ele falou. — Exatamente como
aquela noite no castelo de Satomi. Eu pensei... ouvir sua voz. Afinal,
foi você. — Sua testa franziu, enquanto os olhos redondos dos
monstros corvos pareciam perfurá-la de todos os lados. — Por que
você veio, Suki-san? — ele perguntou com uma voz levemente
triste. — Você deseja vingança? Você está aqui para me assombrar
pelo meu fracasso?
Não! Suki balançou a cabeça violentamente. Nunca, Daisuke-sama,
ela queria dizer. Eu nunca faria nada para te deixar infeliz. Mas as
palavras ficaram presas em sua garganta, recusando-se a sair de seus
lábios, e ela só conseguiu balançar a cabeça em uma negação muda.
— Hitodama. — A donzela do santuário se levantou, seus olhos
duros, e se afastou dos corpos imóveis do demônio e do kitsune. —
Você já nos ajudou antes, então eu só posso supor que você veio pelo
mesmo motivo. Mas nosso tempo é curto e estamos no meio de um
procedimento muito perigoso. Não podemos perder muito tempo ou
atenção, então seja breve. Por quê você está aqui?
— Demônios.
A voz de Suki ainda era um sussurro, mas se ergueu no ar,
fazendo com que todos se endireitassem imediatamente. — O exército
de Genno... está chegando. — Suki continuou no silêncio horrorizado
que se seguiu. — Eles... seguiram Hakaimono... até este lugar. Eles
pretendem matar todos! — Seu olhar encontrou o de Daisuke,
suplicante. — Vocês devem fugir... antes que eles cheguem!
Assim que as palavras deixaram sua boca, um uivo estrondoso
ecoou da direção dos portões, fazendo com que todos girassem. Suki
pôde ouvi-los de repente, dezenas de garras e botas e pés, raspando
contra a pedra, subindo os degraus, e o desespero apertou sua
garganta. Era tarde demais. Ela veio tarde demais. O exército havia
chegado.
— Eles já estão aqui. — Um dos monstros pássaros deu um
passo à frente. Ao contrário dos outros, sua pele era de um vermelho
brilhante, um enorme nariz carmesim perfurando o ar diante dele. —
Eles vieram pelo fragmento de pergaminho. Devo protegê-lo a todo
custo! — Ele girou sobre os outros monstros pássaros, os olhos se
estreitaram e os dentes arreganhados enquanto ele apontava para o
templo. — Não os deixem entrar no salão sagrado. Custe o que custar,
não podemos deixar as peças do pergaminho caírem nas mãos do
Mestre dos Demônios!
Um grito estremeceu nas pedras. Suki ergueu os olhos e sentiu o
terror engoli-la em uma onda imobilizadora. Criaturas estavam se
derramando no pátio, uma horda de demônios, yokai e outros seres
saídos de seus pesadelos. Criaturas minúsculas com orelhas
esfarrapadas e uma boca cheia de dentes pontiagudos enxamearam
sobre as rochas, cacarejando e brandindo armas rudes. Uma centopeia
do tamanho de um cavalo correu pela parede, sua carapaça preta
segmentada brilhando ao luar. Uma criatura enorme e inchada com
oito membros finos e o rosto pálido de uma mulher subiu para se
empoleirar em uma torre, sorrindo ao observar o caos abaixo.
Suki tremeu, observando os demônios se aproximando,
esperando o momento em que o pequeno grupo ao redor dela se
dispersaria. Mas, em vez de fugir, os monstros pássaros alados
ergueram suas lanças e avançaram com gritos de batalha
desafiadores. Eles encontraram o exército no centro do pátio, e o
pandemônio estourou.
Uma risada familiar arrancou Suki de seu torpor. Atordoada, ela
ergueu os olhos para ver Daisuke desembainhar a arma, um sorriso
feroz e desafiador no rosto enquanto dava um passo em direção à
horda que se aproximava.
— Venha, Okame-san! — disse ele, erguendo a espada à sua
frente. — Nossa morte gloriosa se aproxima. Vamos enfrentá-la com
honra.
O outro homem amaldiçoou e lançou uma flecha riscando o
caos. — E quanto a Yumeko? — ele ofegou, colocando uma flecha na
garganta de um rato gigante bípede correndo em direção a eles. —
Não podemos deixá-la desprotegida, ela vai ser despedaçada. Reika-
san?
Com um uivo, o cachorrinho aos pés da miko empinou-se,
tornando-se uma enorme criatura vermelha com uma crina dourada e
patas enormes. A donzela do santuário puxou um ofuda das mangas e
o brandiu diante dela. — Ainda não sabemos o que está acontecendo
com ela dentro de Kage-san. — Ela retrucou, jogando o pedaço de
papel na batalha furiosa, onde explodiu em uma explosão de fogo. —
Ela não vai acordar a menos que seu espírito retorne ao corpo, ela
ainda deve estar procurando pela alma do demônio, ou lutando
contra Hakaimono. Eles provavelmente não sabem o que está
acontecendo.
O arqueiro uivou, esquivando-se quando uma lança foi
arremessada em sua direção, depois cravou uma flecha no demônio
que a havia atirado. — Bem, se não recuarmos, ela não terá um corpo
para o qual voltar! — ele rosnou. — Estamos muito expostos aqui,
precisamos recuar.
Mais monstros invadiram o pátio. O guardião da miko rugiu
enquanto ela empinava e esmagava uma centopeia gigante sob suas
patas. A donzela do santuário fez uma careta e deu um passo para
trás, parecendo desesperada, então seu olhar se voltou para Suki.
— Você... — ela murmurou, mas naquele momento um uivo
estrondoso sacudiu o ar, e uma enorme cabeça voadora, dentes à
mostra e chamas laranja arrastando, caiu em direção a eles como uma
pedra.
Capítulo 27
Encontrando o perdido
Yumeko

As sombras estavam me perseguindo.


Há quanto tempo estava aqui, nos recessos mais sombrios da
alma de Tatsumi, não tinha certeza. Coisas escuras e inexpressivas
assombravam meus passos, me arrastando pelos estreitos corredores e
quartos vazios. Eu não sabia o que eram; suas formas negras como
tinta pareciam homens, samurais ou shinobi me seguindo pelos
corredores do castelo, sombras vivas ganhando vida. Talvez eles
fossem parte da influência de Hakaimono, talvez fossem os medos e
arrependimentos de Tatsumi, pedaços de si mesmo que ele havia
perdido. Eu só sabia que não queria topar com eles.
As sombras não eram as únicas coisas me perseguindo. Em
algum lugar do castelo entupido de vinhas, a presença sombria de
Hakaimono espreitava pelos corredores, chegando cada vez mais
perto. Eu podia sentir sua diversão fria através das próprias paredes,
procurando pacientemente por mim, sabendo que nossos caminhos
eventualmente se cruzariam. Eu não poderia me esconder dele para
sempre. Uma ou duas vezes, eu sabia que ele estava perto, talvez
apenas outro corredor de distância, algumas paredes de papel fino
nos separando. Eu podia sentir seus passos no chão, fazendo o ar
estremecer. Severamente, eu continuei, irremediavelmente perdida,
seguindo um batimento cardíaco fraco que me chamava como um
farol.
Mais fundo.
Finalmente, depois de alguns minutos ou uma vida inteira de
busca, os corredores chegaram ao fim e eu sabia que não poderia
voltar atrás. Diante de mim, no final do corredor, uma escada de
madeira levava à escuridão total. De pé na borda, fechei meus olhos e
escutei, sentindo uma pulsação fraca de vida em algum lugar lá
embaixo.
Chamando uma pequena bola de fogo de raposa para minha
mão, desci para a escuridão.
Eu parecia me aventurar nas profundezas da própria terra. Ou
talvez as partes mais sombrias da alma. Quando os degraus
finalmente terminaram, entrei em uma grande câmara, o piso e as
paredes feitos de pedra trabalhada, com pesadas vigas de madeira
sustentando o teto. Tochas com chamas roxas doentias bruxuleavam
em suportes ao longo das paredes e pilares, lançando sombras
misteriosas sobre as fileiras de celas que revestiam a sala. Barras de
ferro grossas, enferrujadas e de aparência antiga, estavam inseridas
profundamente na pedra, sem portas ou fechaduras visíveis.
Um gemido baixo saiu de uma das celas e meu coração apertou.
Tatsumi? Você está aqui?
Ainda segurando o globo de kitsune-bi, caminhei até o primeiro
conjunto de barras e espiei dentro.
Eu suspirei. Uma criança estava sentada no canto traseiro da
cela, os joelhos encostados no peito e os braços em volta deles. Eu
estendi minhas mãos através das barras, e o fogo de raposa atingiu o
rosto de um menino com olhos roxos brilhantes, seu cabelo escuro
caindo em seu rosto.
— Tatsumi? — Chamei e o menino ergueu a cabeça. Seu olhar
lacrimoso e de olhos arregalados encontrou o meu, embora ele
parecesse estar olhando através de mim.
— Eu não posso fazer isso, sensei. — O jovem Tatsumi
sussurrou. — Eu estou assustado. Essa voz... está sempre na minha
cabeça agora, sempre sussurrando. Eu não posso fechar isso. Mestre
Ichiro, por favor, deixe-me ir para casa.
Mestre Ichiro? O sensei de Tatsumi? Pensei no homem com os
olhos frios e impassíveis, imaginei-o parado imóvel sobre o menino,
com o rosto impassível enquanto Tatsumi implorava e chorava, e
apertei minha mandíbula. Ichiro-san se importava com você, Tatsumi. Ele
simplesmente nunca poderia mostrar isso.
— Pare com isso. — O jovem Tatsumi sussurrou, curvando-se
sobre si mesmo. — Por favor, faça isso ir embora. Eu estou
assustado. Eu não posso mais fazer isso.
E, em frente ao meu olhar chocado, ele piscou e desapareceu, e
eu estava olhando para uma cela vazia.
Não Tatsumi, pensei atordoada, me afastando das grades. Não o
verdadeiro ele, de qualquer maneira. Talvez fosse uma memória que ele
havia trancado, uma emoção que reprimiu. Lembrei-me de algo que
Hakaimono me disse, há muito tempo, ao que parecia, quando ele
assumiu o demônio pela primeira vez.
Você o distrai, o fez sentir coisas. O fez questionar quem ele é e o que ele
quer, e esse é todo o convite que eu precisava.
E então o golpe final e terrível. Seu último pensamento esta noite,
antes de finalmente se perder, foi em você.
Eu estremeci. Eu percebi agora porque Tatsumi tinha sido tão
frio, porque ele nunca falava muito e se mantinha afastado, distante
de todos. Por que ele suprimiu toda dor, medo, raiva e tristeza. Não
porque ele fosse um assassino sem alma, mas para manter o oni em
sua mente sob controle. Se Hakaimono falava a verdade, e eu era a
responsável pela liberação do demônio da espada, então eu teria que
ser a única que o empurraria para trás e bateria a porta na sua cara
para que ele não pudesse voltar para nos torturar.
Mas primeiro, antes de enfrentar Hakaimono, eu encontraria
Tatsumi e diria a ele o quanto eu estava arrependida, que nunca quis
que isso acontecesse. Se eu falhasse, e o Primeiro Oni fosse demais
para mim, afinal, pelo menos Tatsumi saberia que eu mantive minha
promessa. Ele saberia que alguém se importava o suficiente para
tentar salvá-lo, e não porque ele fosse uma arma ou um peão em um
jogo sem fim. Porque eu tinha visto um vislumbre do menino sob
máscara gelada do Matador de Demônios, e ele era quem eu estava
tentando resgate.
E então, eu tive uma percepção súbita e séria. Se eu tivesse
sucesso aqui, se conseguisse levar Hakaimono de volta para
Kamigoroshi, nunca mais veria aquele menino. Não com um senhor
oni frustrado e enfurecido pronto para assumir o controle do coração e
da alma do matador de demônios ao menor momento de
fraqueza. Sem dúvida, Tatsumi teria que ser duplamente vigilante
contra a influência do demônio em sua mente, o que significava que
ele nunca poderia baixar a guarda, com Hakaimono... ou comigo.
Eu balancei minha cabeça, com raiva de meus pensamentos
egoístas. Meus sentimentos pessoais pelo assassino de demônios
Kage, fossem eles quais fossem, não eram importantes. Contanto que
Tatsumi estivesse livre de Hakaimono no final, eu arriscaria tudo para
ver o demônio selado de volta na espada mais uma vez.
Um tremor percorreu o chão sob meus pés, uma onda de pura
raiva que parecia emanar das próprias paredes. As sombras ao meu
redor cresceram, como garras agarradas estendendo-se, procurando
por mim. Hakaimono estava perto. Eu tinha que continuar me
movendo.
Eu vi lampejos de movimento dentro das celas conforme
continuei pela masmorra, lampejos do canto do meu olho enquanto eu
passava. Às vezes, vozes chegavam até mim, fragmentos de palavras
ou sugestões de uma conversa que eu não conseguia
entender. Continuei me movendo, sentindo-me culpada enquanto
passava correndo pelos medos ocultos e memórias mais sombrias de
Tatsumi. As emoções que ele mantinha bloqueadas até mesmo de si
mesmo.
Depois de um tempo, porém, as celas ficaram silenciosas, vazias
e começou a esfriar. Minha respiração se contorceu no ar, enquanto o
gelo começou a se formar nas paredes, cobrindo as barras e
pendurando em espinhos brilhantes do teto. Tremendo, eu continuei,
um globo de kitsune-bi a única luz na escuridão, chamas branco-
azuladas dançando e cintilando no gelo enquanto eu continuava.
E então, abruptamente, cheguei a um beco sem saída: uma sólida
parede de gelo no final do corredor. Eu me virei e olhei de volta para
o corredor, me perguntando se havia uma passagem lateral. Eu tinha
perdido uma porta que levava a outra parte deste labirinto
congelado? Não. Eu sabia que não tinha esquecido nada, assim como
sabia que a alma de Tatsumi estava aqui, em algum lugar.
Enfrentando a parede de gelo, estendi a mão e coloquei uma mão
hesitante na barreira congelada, sentindo um frio escaldante queimar
minhas palmas e pontas dos dedos como uma chama.
E eu senti isso. Um pulso. Um lampejo de emoção, em algum
lugar do outro lado.
Meu coração deu um salto. Ele estava aqui. Além desta última
barreira, apenas fora de alcance. Mas como eu iria chegar até ele? Se
eu tivesse os meios, rasgaria a parede de gelo aos poucos, até romper,
mas nosso tempo estava se esgotando. Hakaimono logo estaria
aqui. Eu tinha que falar com Tatsumi agora.
Aqui, no reino dos sonhos, seu kitsune-bi é tão mortal quanto você
precisa que seja.
Dando alguns passos para trás, levantei os dois braços, os dedos
bem abertos em direção ao obstáculo que bloqueava meu
caminho. Chamei meus kitsune-bi e senti-os subindo pelo meu corpo,
subindo pelos braços e ganhando vida em minhas mãos, chamas
branco-azuladas que iluminavam a escuridão como uma tocha. Com
um uivo mental, reuni minha magia e, com um forte empurrão, enviei
uma coluna de kitsune-bi em direção à parede de gelo. Onde as
chamas fantasmagóricas atingiram, a parede soltou um assobio
ensurdecedor, como se estivesse com dor, e o vapor subiu como a
respiração de um dragão, enrolando-se em torno de mim e agarrando
meu cabelo e roupas. Mas não estava derretendo rápido o suficiente.
Mais brilhante, pensei, despejando mais magia nas chamas. Mais
brilhante, mais quente. Corte essa barreira como uma espada em uma tela
shoji. Estou tão perto de alcançar Tatsumi, e isso não vai me impedir!
De repente, de forma impossível, o próprio gelo pegou fogo,
acendendo como uma folha de pergaminho perto de uma
chama. Kitsune-bi rugiu enquanto engolfava toda a parede, e o vapor
subiu até que era impossível ver através das nuvens brancas
rodopiantes. Semicerrando os olhos, eu me virei, levantando um braço
para proteger meu rosto até que o vapor se dispersou e o fogo de
raposa se apagou, mergulhando o corredor na escuridão novamente.
Por um segundo, foi como se algo tivesse me
engolido. Rapidamente, eu abri minha palma, e um minúsculo globo
de raposa estalou para a vida mais uma vez, iluminando um buraco
onde a parede de gelo estava... e algo pendurado no teto da câmara
além.
Tatsumi. Sem pensar, entrei em uma câmara tão escura e vazia
como o fundo de um poço insondável. O solo sob meus pés brilhava
como um oceano de agulhas, e minhas sandálias se enrugaram contra
o solo congelado enquanto eu corria para frente, enviando ecos
quebradiços na escuridão.
— Tatsumi?
Minha voz soou minúscula na escuridão crescente, as palavras
abafadas pela sombra e vazio. Um brilho sinistro queimava no escuro,
vindo de um emaranhado de correntes vermelhas brilhantes que
pendiam do preto do teto e se erguiam do chão, uma teia maligna que
convergia no centro da câmara. Uma figura pendurada nas correntes,
segurava uma águia aberta com a cabeça baixa e os olhos
fechados. Não havia algemas presas em seus membros; os elos
brilhantes cravavam em seu corpo e desapareciam sob sua carne.
— Tatsumi!
Correndo por baixo da teia, olhei para a figura imóvel, meu
coração torcendo dolorosamente na minha garganta. Tatsumi não se
moveu ou abriu os olhos; ele estava pendurado frouxamente nas
correntes, seu corpo tremeluzindo com uma luz sutil.
Engoli em seco e estendi a mão para ele, sentindo a energia do
mal pulsando dos elos, como se tentasse sugar toda a vida. —
Tatsumi. — Chamei mais uma vez, embora minha voz saísse ofegante
e sufocada. — Estou aqui. Eu vim, como prometi. Você pode me
ouvir?
Por alguns segundos, não houve resposta. Então, uma pequena
ruga vincou a testa de Tatsumi. Suas pálpebras tremularam, se
abriram e eu vi o mais leve brilho de violeta quando ele olhou para
mim.
— Yumeko. — Sua voz era um sopro, um sussurro de descrença
e esperança. — Você está aqui? Mas, eu pensei... — Lentamente, como
se estivesse com dor, ele balançou a cabeça. — Eu vi Hakaimono
matar você.
— Ilusões. — Eu disse a ele suavemente, minha voz um tanto
trêmula de alívio. — Sombras, truques e magia de raposa,
Tatsumi. Nada que Hakaimono viu era real.
— Você é real? — Tatsumi sussurrou. — Ou isso é... outro
sonho? Eu não posso dizer mais. — Uma onda de angústia cruzou seu
rosto e ele fechou os olhos. — Não. — Ele murmurou. — Não me
atrevo a esperar... Ela simplesmente terá ido embora quando eu olhar
para cima novamente.
Minha visão ficou turva e pisquei rapidamente para limpá-la. —
Eu não sou um sonho. — Eu disse a ele, dando mais um passo. — Eu
não vou desaparecer desta vez, Tatsumi. Olhe para mim. — Aqueles
olhos penetrantes fixaram-se em mim novamente, e tentei não
estremecer sob aquele olhar intenso. — Eu prometi que viria. — Eu
sussurrei. — Não vou deixar Hakaimono vencer. Se ele quiser você,
vai ter que me matar primeiro.
Kitsune-bi ganharam vida em minhas mãos. Eu olhei para as
correntes do mal, que tremeluziam, cuspiam e se enrolavam mais
apertado em torno de Tatsumi, como se soubesse que tinha vindo para
destruí-las. Hesitei por mais um momento, observando a pulsação e
tremulação sinistra, então estendi a mão e envolvi meus dedos em
torno dos elos latejantes.
A dor queimou minha mão. Eu engasguei, mas me concentrei e
segurei, enquanto o fogo de raposa branco-azulado chamejava e
estalava contra o brilho raivoso das correntes. Elas silvaram, enviando
fios de relâmpagos vermelho-escuros pelos elos, fazendo tudo pulsar
descontroladamente. Acima, Tatsumi gritou, cerrando os punhos e
arqueando a cabeça para trás, fazendo meu coração torcer. Sob meus
dedos, eu podia sentir a corrente se contorcendo, como se estivesse
viva. Minha palma estava pegando fogo, queimando, trazendo
lágrimas aos meus olhos. Eu queria, tanto, deixar ir. De repente, senti
que se agarrasse por muito tempo, eu também ficaria presa, enredada
na vontade de Hakaimono, sem esperança de me libertar ou a alma
que vim salvar.
Com um grunhido, endireitei minhas orelhas e imaginei o fogo
de raposa em minhas mãos, imaginando um inferno incandescente
que poderia derreter o aço e queimar todo o mal do mundo. Você não
pode ficar com ele, rosnei para a teia de correntes, para o próprio
Hakaimono, onde quer que ele estivesse. Vou lutar até a morte, se for
preciso. Deixe-o ir!
O kitsune-bi surgiu com um rugido, mais forte do que eu já senti,
engolindo os elos brilhantes em minha mão e correndo pelo
comprimento da corrente. Sob meus dedos, a corrente tremeu
descontroladamente... e então se dissolveu quando o fogo da raposa a
consumiu, transformando-se em fumaça preta que se enrolou no
nada. Kitsune-bi correu pelas corrente, engolfando toda a teia
enquanto, por um momento, o fogo da raposa branco-azulado era
quase brilhante demais para olhar.
Com um grito que soou quase humano, o emaranhado de
correntes desapareceu na onda de kitsune-bi, tornando-se fios escuros
que se enrolaram no vazio. Sem mais nada para consumir, o fogo
acendeu mais uma vez e se apagou, mergulhando a câmara na
escuridão.
Tatsumi, finalmente libertado das correntes sugadoras de almas,
caiu no chão.
Por um momento, ele ficou ajoelhado ali, cabeça baixa, ombros
arfando com respirações profundas e irregulares. Com o coração
batendo forte, caí na frente dele e olhei em seu rosto. Seus olhos
estavam fechados, sua pele acinzentada, mas a luz sutil que emanava
de dentro estava ficando mais brilhante.
— Tatsumi? — Muito suavemente, toquei seu ombro. — Você
está bem?
O matador de demônios respirou fundo novamente e se
endireitou lentamente, olhando para as mãos, como se ainda
esperasse ver correntes cravando-se sob sua carne. — Elas se foram. —
Ele ofegou, e cerrou os dois punhos. — Eu estou livre. Eu nunca
pensei... — Os olhos índigo brilhantes finalmente se ergueram para os
meus, lentamente se concentrando enquanto toda a dor, desespero e
desesperança começaram a desaparecer. — Yumeko. — Ele sussurrou,
ainda parecendo incerto se o que via era real. Cuidadosamente, uma
mão se levantou, as pontas dos dedos roçando minha bochecha, e
então sua palma áspera e calejada estava contra minha pele.
— Você está aqui. — Tatsumi murmurou, e naquele olhar aberto
e cheio de alma, tudo que eu ia dizer parecia inadequado. Eu me
lancei para frente e joguei meus braços ao redor dele, pressionando
meu rosto em seu pescoço enquanto o abraçava apertado.
Eu podia sentir seu choque; por um momento ele ficou rígido,
congelado no abraço repentino. Muito gradualmente, seus músculos
relaxaram, seus ombros relaxaram e seus braços me envolveram. A
princípio hesitante, como se não tivesse certeza do que fazer. Mas
então, ele soltou um suspiro, e pareceu liberar todo o medo, incerteza,
horror e dúvida do pesadelo passado. Ele me apertou contra o peito,
agarrando-se a mim como uma tábua de salvação, como se eu fosse
sua sanidade e ele estivesse com medo de que eu o abandonasse.
— Arigatou. — Ele murmurou em meu ouvido, e sua voz saiu
embargada. Fechei meus olhos e saboreei a sensação dele em meus
braços, seu batimento cardíaco contra o meu. — Yumeko...
obrigado. Não vou esquecer isso.
Uma risada profunda, baixa e sinistra, vibrou no ar ao nosso
redor. — Bem. — Veio a voz fria e divertida do Primeiro Oni, ecoando
na escuridão e fazendo o chão tremer. — Isso não foi
divertido. Parabéns, raposa, você encontrou Tatsumi, mas não há mais
para onde correr. Agora, ele pode assistir enquanto eu rasgo sua alma
em pequenos pedaços e a espalho ao vento.
Senti Tatsumi estremecer quando nos separamos, suas mãos se
fechando em punhos. Minhas entranhas se retorceram de medo, mas
me levantei com o matador de demônios e olhei para o vazio, sentindo
a presença do oni ao nosso redor.
Uma alma não pode ser morta, a raposa branca havia dito. Uma
alma não pode ser destruída permanentemente, mas pode ser enfraquecida,
adoentada, ferida. E, às vezes, pode ser quebrada. Se você quiser levar
Hakaimono de volta à espada, você deve enfraquecer o Primeiro Oni o
suficiente para que Kage Tatsumi o force a sair com sua força de
vontade. Mas cuidado; as almas são coisas frágeis. Se Hakaimono for muito
forte, se ele quebrar seu espírito, ele fugirá de volta para seu corpo e, a partir
de então, você não será a mesma.
— Não estou fugindo mais. — Chamei, minha voz ecoando no
vazio. — Pela minha vida, não vou deixar este lugar até que Tatsumi
esteja verdadeiramente livre e você esteja selado de volta na espada
para sempre!
Tatsumi moveu-se ao meu lado. Ele estava brilhando
intensamente agora, o halo ao redor dele jogando para trás a
escuridão, embora o olhar em seus olhos fizesse minha pele
formigar. — Venha então, Hakaimono. — ele disse, sua voz dura com
determinação. — Não há espaço aqui para nós dois, e você tem usado
meu corpo por muito tempo. — Ele ergueu a mão, e a luz cresceu
entre seus dedos, estendendo-se em um feixe de luminância antes de
se transformar em uma espada. — Não vou permitir que cometa mais
atrocidades em meu nome. Mostre-se, a menos que tenha medo de
enfrentar o verdadeiro dono do que roubou.
Hakaimono riu novamente, e se transformou em uma risada
profunda e terrível que ecoou pelo vazio e fez com que o gelo aos
nossos pés se quebrasse e se espalhasse. — Muito bem, Tatsumi. —
Ele retumbou, enquanto eu pressionava perto do matador de
demônios, olhando para a escuridão para discernir nosso inimigo. —
Se você está tão ansioso para me ver retalhar sua garota raposa e bater
em você de volta à submissão, ficarei feliz em obedecer. Desta vez, seu
espírito estará tão quebrado, você nem saberá quem você é quando eu
terminar com você. Vocês estão prontos para mim, pequenos
mortais? Aqui vou eu.
Senti sua aproximação antes de vê-lo; do vazio acima, algo caiu
em nossa direção como uma pedra, enorme e escura, com olhos como
brasas brilhantes na noite. Ele atingiu o solo como o tetsubo de um
deus atingindo a terra, e a onda de choque que irradiava da cratera
quebrou o gelo em milhões de cacos que giraram ao nosso redor como
uma nevasca de cristal. Enquanto os tremores diminuíam e a terra se
acalmava, eu abaixei meu braço e olhei para cima... e para cima... para
o rosto de um demônio.
O Primeiro Oni, o grande general demônio de Jigoku, elevava-se
sobre nós, sua boca dividida em um sorriso brilhante que gelou o
sangue em minhas veias. Ele era enorme, muito maior do que
Yaburama, o oni que destruiu o templo Ventos Silenciosos e matou
todos lá. Sua pele era negra como tinta, com runas vermelhas
brilhantes subindo por seus braços, palavras e símbolos que eu não
reconheci. Quando tentei lê-las, elas queimaram meus olhos, fazendo-
me estremecer e desviar o olhar. Chifres de brasa, tremeluzindo e
pulsando como se estivessem em chamas, brotaram de sua testa,
ombros e costas, e uma juba branca selvagem emoldurava seu rosto
terrível. Uma mão com a ponta de uma garra agarrava não um tetsubo
ou clava com espinhos, mas uma espada curva com uma lâmina que
brilhava como obsidiana, tão escura e de aparência maligna quanto
seu dono.
Por um momento, Hakaimono ficou ali, sorrindo, deixando-nos
olhar para ele com horror. Olhei para o rosto do maior oni de Jigoku e
me senti muito como um grilo que tolamente decidiu enfrentar um
gato.
O olhar ardente e antigo de Hakaimono encontrou o meu, e o
Primeiro Oni riu. — Você parece surpresa, pequena raposa. — Ele
disse em um tom zombeteiro. — Não era isso que você estava
esperando? Você acha que minha verdadeira forma se parece com
Tatsumi com chifres e dentes afiados? — Ele sorriu, e ao meu lado,
Tatsumi deu um passo à frente, colocando-se entre mim e Hakaimono,
seu olhar nunca deixando o monstro elevando-se sobre
nós. Hakaimono olhou para ele e riu novamente. — Tatsumi sempre
soube. Ele podia me sentir, como uma mancha em sua alma, uma
sombra sobre tudo. Ele sabia que se aquela sombra surgisse, ele seria
consumido.
Ele inclinou a cabeça, olhando para nós de uma maneira quase
condescendente. — Meus Deuses, mas vocês mortais são minúsculos e
patéticos, não são? Eu poderia tornar isso esportivo, suponho. Pisar
em vocês como insetos parece um tanto bárbaro, algo que um bruto
como Yaburama faria. Ele nunca entendeu que no momento da morte,
quando você vê a alma fugindo dos olhos de seu oponente, no
momento em que eles percebem que estão mortos, isso é a coisa mais
linda do mundo. — A ansiedade em seu rosto fez minha pele
arrepiar. — Eu sempre quis lutar com você cara a cara, matador de
demônios. — O oni continuou. — Não me decepcione agora.
Ele ergueu os braços e desapareceu em uma nuvem de chamas
que parecia explodir de sua pele. A conflagração explodiu por apenas
um momento, me fazendo estremecer e me virar. Tão repentinamente
quanto apareceram, no entanto, as chamas desapareceram e eu encarei
a figura deixada para trás.
Um Hakaimono de tamanho humano sorriu para minha
expressão atordoada. Ele estava muito menor agora, mas seu tamanho
não era tudo o que havia mudado. Ele era mais magro, não tão
volumoso e maciço, embora os músculos ondulando sob sua pele
escura fossem como cordas de aço. Sua cabeça ainda estava coroada
com chifres de brasa brilhantes, e sua crina pendurada no centro das
costas. Ele parecia... quase humano agora; um guerreiro extremamente
perigoso, sua lâmina de obsidiana segurada frouxamente ao seu
lado. E estranhamente, esta forma era ainda mais assustadora do que
o enorme Senhor oni que se ergueu sobre nós alguns segundos atrás.
— Pronto. — Hakaimono disse, sua voz suave e letal. Ele ergueu
sua espada e sorriu para nós através da lâmina. — Agora veremos
quem é realmente digno de controlar este corpo. Porque eu nunca
voltarei voluntariamente para aquela espada amaldiçoada. Você vai
ter que forçar minha alma quebrada e ensanguentada de volta a essa
tortura sem fim. Então, Tatsumi... — Ele voltou aquele sorriso sem
humor para o matador de demônios. — Você é forte o suficiente para
me derrotar?
— Talvez não sozinho. — Tatsumi respondeu com uma voz
igualmente suave. — Mas não sou só eu agora. Eu não tenho que fazer
isso sozinho. — Seu olhar se voltou para mim, e algo naquele olhar fez
meu coração disparar. Com um pequeno sorriso, Tatsumi voltou-se
para Hakaimono. — A questão é: você é forte o suficiente para
enfrentar nós dois?
Hakaimono sorriu afetadamente. — Veremos. — disse ele, e se
abaixou, os olhos brilhando, a terrível lâmina negra mantida atrás
dele. — O vencedor leva este corpo, o perdedor retorna ao
esquecimento. Vamos jogar.

Capítulo 28
Kitsune-bi e demônio de fogo
Tatsumi

Eu não perderia essa luta.


Sozinho, eu não teria chance. Eu sabia. Eu tinha vivido com
Hakaimono tempo suficiente para saber que ele era mais forte do que
eu. Mesmo aqui, no reino da alma, a vontade e o poder absoluto de
Hakaimono rapidamente dominariam os meus. Se eu enfrentasse o
demônio sozinho, cairia e ele assumiria mais uma vez.
Mas, eu não estava sozinho. Ela estava aqui. E só a presença dela
me fazia mais forte, me dava um motivo não só para lutar, mas para
vencer. Eu podia vê-la ao meu lado, determinação delineando cada
parte dela, seus olhos dourados brilhando com resolução. Suas orelhas
de raposa estavam altas e orgulhosas, sua cauda de ponta branca
eriçada atrás dela, me lembrando do que ela era, mas em vez de ser
nojento, me encheu de esperança. Yumeko não era uma guerreira ou
samurai; ela não podia exercer magia sagrada ou o poder dos kami,
mas era uma kitsune que superou tudo o que estava contra ela. Ela
tinha feito o impossível: enganou Hakaimono, possuiu um Senhor
demônio e libertou a alma que ele mantinha cativa. Juntos, tínhamos
uma chance.
Embora isso não fosse ser fácil, de forma alguma.
Por um momento, Hakaimono ficou imóvel, sua lâmina e pele
negras se misturando ao vazio ao nosso redor. Seus chifres e olhos
brilhavam vermelhos na escuridão, e eu podia sentir a energia se
acumulando ao redor dele, a atração de um poder terrível. Erguendo
minha espada, forcei meus músculos a relaxarem, me preparando
para responder quando Hakaimono se movesse.
Eu fui quase lento demais. Um segundo, o oni estava congelado
contra o vazio, no próximo ele estava na minha frente, e aquela lâmina
de obsidiana estava ceifando em direção ao meu rosto. Eu saltei para
trás por instinto, levantando minha espada, e senti o tinido estridente
das duas lâminas vibrar na minha espinha. Hakaimono não me deu
tempo para me recuperar. Ele avançou com golpes incrivelmente
rápidos que me fizeram recuar, desesperadamente os defendendo. O
clangor e o chiado das espadas ecoavam ao nosso redor, faíscas
voando entre as lâminas e brilhando no sorriso selvagem do demônio.
Com um raio de luz brilhante, algo riscou as costas de
Hakaimono, e o oni girou, abaixando a cabeça quando uma esfera de
chamas branco-azuladas brilhou entre seus chifres, deixando alguns
fios de cabelo em chamas. Girando para trás, ele bloqueou meu
impulso em seu coração e respondeu com um golpe violento na minha
cabeça que me forçou a recuar alguns passos. Mas então outro
kitsune-bi riscou a escuridão, e Hakaimono não conseguiu se esquivar
rápido o suficiente. Enquanto ele se virava, o kitsune-bi atingiu seu
braço da espada e explodiu em um lampejo de luz brilhante.
O rosnado de dor do oni me chocou. Fogo de raposa não era
nada além de luz e ilusão; não era perigoso, a menos que você fizesse
algo tolo e se deixasse atrair para o desconhecido. Mas quando
Hakaimono abaixou o braço, eu vi os fios de fumaça subindo de sua
pele e seus lábios se contraíram em uma careta de dor. De alguma
forma, o kitsune-bi de Yumeko havia se tornado mortal, mortal o
suficiente para queimar um senhor oni.
— Bem. Não foi uma surpresa. — A voz de Hakaimono era
suave, perigosa, enquanto ele voltava toda sua atenção para
Yumeko. Seu braço já estava se curando, a carne chamuscada ficando
cheia e saudável em questão de batimentos cardíacos. — Você
aprendeu alguns truques, pequena raposa. Vejo que vou ter que levar
você um pouco mais a sério, afinal.
Yumeko, parada desafiadoramente com as orelhas para trás e as
mãos brilhando com kitsune-bi, encontrou o sorriso terrível do oni e
não recuou. — Vamos então, Hakaimono. — Ela desafiou, e de
repente, seu corpo se dividiu, tornando-se dois, seis, dez, doze
Yumekos, nos rodeando em um círculo. As sobrancelhas de
Hakaimono se arquearam e o anel de kitsune sorriu. — Pegue-me se
puder.
Eu voei para o oni com um rosnado, cortando minha lâmina em
direção ao seu pescoço, na esperança de pegá-lo desprevenido. Com
um grunhido quase irritado, ele bloqueou minha espada e me
surpreendeu atacando com um braço longo, garras afiadas alcançando
meus olhos. Eu me esquivei de volta, mas não rápido o suficiente, e
garras pretas curvas abriram quatro sulcos profundos em minha
bochecha.
A dor explodiu em meu rosto e a força do golpe me jogou para o
lado. Não havia sangue quando rolei para cima, embora eu
certamente sentisse a agonia latejante cortando minha pele, pedaços
de minha alma que haviam sido arrancados. Passei uma manga em
meu rosto e olhei para cima, assim que o anel de Yumekos deu um
grito unificado de fúria e arremessou uma dúzia de kitsune-bi no oni
entre nós. Hakaimono curvou os ombros e protegeu o rosto enquanto
todos convergiam para o centro, e os globos do kitsune-bi se chocaram
contra ele com o rugido de um inferno. O Primeiro Oni desapareceu
nas chamas e, por um momento, a conflagração branco-azulada
estalou e cintilou como uma fênix enfurecida no centro do vazio.
Eu respirei e abaixei meu braço, enquanto o exército de kitsune
desaparecia com rajadas de fumaça branca até que apenas uma
restasse. Quando as chamas do kitsune-bi começaram a piscar e
morrer, ela se virou e me deu um sorriso triunfante, a luz
fantasmagórica da raposa dançando em seus olhos.
Uma risada baixa cortou a escuridão, nos fazendo congelar, e
Hakaimono saiu das chamas. Kitsune-bi agarravam-se a ele, chamas
branco-azuladas estalando ao redor de seus ombros e braços. Ele
estava definitivamente ferido; fitas de fumaça vermelha subiam de
sua pele, fragmentos de seu espírito se enrolando na escuridão. Mas
ele estava longe de ser derrotado, e o sorriso em seu rosto, iluminado
por um azul assustador do fogo de raposa, era assustador.
— Isso é tudo que você tem? — ele perguntou a Yumeko, cujas
orelhas se achataram ao ver o Primeiro Oni, saindo do inferno
aparentemente ileso. — Concedido, vou dar crédito a quem é devido,
isso doeu como o inferno. Mas você está esquecendo de algo, raposa.
— Ele ergueu os braços, kitsune-bi dançando para cima e para baixo
em sua carne. — O fogo do Jigoku flui nas veias de todos os
oni. Nossas próprias almas estão inundadas com seu poder. Você não
pode matar um demônio com fogo, mesmo que seja um fogo de
raposa ofensivamente brilhante, assim como não pode afogar um
kappa. Mas parabéns, vou parar de brincar com você agora.
Ele brandiu sua espada e ergueu-a na frente dele, e os kitsune-bi
dançando ao longo de seus ombros chamejaram em um sombrio tom
de preto e vermelho. Hakaimono respirou fundo, enquanto chamas
infernais irrompiam de sua pele, engolindo o fogo de raposa e
banhando o oni com um brilho vermelho. Elas brilharam ao longo de
sua espada negra, transformando a arma em uma marca de fogo, e o
calor que irradiava do demônio se tornou palpável. Abaixando a
cabeça, ele nos deu um sorriso por cima da espada flamejante.
— Eu também tenho alguns truques na manga. — disse
Hakaimono, enquanto Yumeko recuava em minha direção, kitsune-bi
ganhando vida em suas mãos mais uma vez. — Vamos ver de quem é
o fogo que vai queimar mais quente? Aposto que será meu.
Severamente, eu levantei minha espada, e Yumeko se
aproximou, suas feições dançando com o fogo da raposa, enquanto a
forma em chamas do Primeiro Oni passeava em nossa direção. Fogo
do inferno estalando ao longo de seus ombros, cintilando em seus
chifres, e seus olhos estavam de um vermelho terrível nas chamas
demoníacas.
Ele estava a apenas alguns metros de distância, perto o suficiente
para sentir o calor monstruoso que irradiava de sua pele, quando o
vazio acima explodiu em luz.
Uma esfera brilhante apareceu acima de todos nós, flutuando na
escuridão como uma pequena lua, lançando-nos a todos em uma
luminosidade nebulosa. Enquanto observávamos, curiosos e
hipnotizados, ela se aproximou, deixando uma longa cauda atrás dela
antes de, em um raio de luz, mudar. Uma jovem com vestes simples
pairava diante de nós, seus longos cabelos flutuando atrás dela como
se não pesassem nada. Ela era translúcida, pálida como papel de arroz
e brilhava suavemente contra o vazio.
Eu pisquei em choque. Um hitodama, uma alma humana errante
que foi incapaz de morrer depois que seu corpo morreu. O que estava
fazendo aqui? Eu nunca tinha visto essa garota antes.
Hakaimono bufou, erguendo a mão em desgosto. — Outra? —
ele exclamou. — Estamos emitindo um sinal de alguma forma? Está
ficando lotado aqui. — Curvando um lábio, ele olhou para mim. —
Sua alma é muito popular hoje, Tatsumi. Talvez você devesse começar
a cobrar o aluguel.
— Eu conheço você. — Sussurrou Yumeko, e a yurei voltou seu
olhar para a garota. — Você nos guiou pelo castelo de Satomi quando
estávamos procurando por Mestre Jiro. — O espectro flutuante
abaixou sua cabeça, lançando seu olhar para o chão, e Yumeko deu
um passo em sua direção. — Você... você é Suki?
Hakaimono deu uma risada sombria. — Eu não me importo com
quem é. — o demônio disse. — Mas estou ficando cansado de
espíritos aleatórios aparecendo para interferir. Se você está aqui para
possuir este... — ele apontou sua espada para mim. — Entre na
fila. Caso contrário, saia antes que eu rasgue você em pequenas fitas
fantasmas e o espalhe ao vento.
A hitodama ergueu a cabeça. Seus olhos estavam enormes agora
enquanto ela olhava para todos nós, seu olhar demorando em
Yumeko. — Ge... Genno. — Ela sussurrou, fazendo Yumeko e
Hakaimono se levantarem. Sua voz estava trêmula, fragmentada, mas
o nome era muito claro. — Reika-san... me enviou aqui... para avisar
você. O Mestre dos Demônios... seu exército invadiu o templo.
— Aqui? — Hakaimono exigiu, assim como Yumeko perguntou:
— O que você quer dizer?
— Exército... de Genno. — Continuou a hitodama, torcendo as
mãos fantasmagóricas. — Eles... romperam as paredes do
templo. Enquanto você estava lutando... eles invadiram o templo Pena
de Aço. Eles estão matando todo mundo agora.
Yumeko engasgou quando eu virei um olhar furioso para
Hakaimono. — Você trouxe o Mestre dos Demônios aqui?
— Não. — Rosnou Hakaimono. — Esse não foi o acordo que
fizemos, e você sabe disso. O acordo era que eu recuperasse o
pergaminho para ele. Ele não deveria enviar seu maldito exército. Se
eles estão aqui, ele está resolvendo o problema com as próprias mãos.
— Eles estão matando todo mundo. — Repetiu a hitodama. Seus
olhos claros se arregalaram ainda mais, como se ela visse algo que não
podíamos. — Eles são... oh! Ah não!
Sua boca se abriu de medo e consternação, pouco antes da
imagem da garota estremecer de volta em uma esfera brilhante de
luz. Elevando-se no ar, ele voou como um pássaro assustado na
escuridão e desapareceu no vazio.
— Kuso. — Hakaimono jurou. — O que aquele bastardo está
fazendo? Se ele me traiu, vou despedaçá-lo e a todo o seu exército. —
Com uma curva do lábio, ele olhou para mim. — Parece que teremos
que colocar este duelo em espera por enquanto, matador de demônios.
— Ele disse. — Eu sei que compartilhar este corpo não é o que
qualquer um de nós quer, mas se for pisoteado por algum bakemono
estúpido enquanto estamos aqui discutindo, nós dois morremos.
Eu dei um aceno curto. — Por enquanto. — Eu concordei,
embora me irritasse dizer as palavras reais. Mas o Primeiro Oni estava
certo; se o Mestre dos Demônios tivesse invadido, não poderíamos
ficar aqui lutando uns contra os outros enquanto minha forma física
corresse o risco de ser destruída.
Eu olhei para Yumeko. — Você deveria retornar ao seu próprio
corpo. — Eu disse a ela. — Não se preocupe comigo, vou ficar
bem. Mas seu corpo ficará tão indefeso quanto o meu se você não
voltar para ele logo.
Ela parecia dividida, olhando entre Hakaimono e eu, percebendo
a verdade de minhas palavras, mas claramente não queria ir
embora. — Tatsumi, eu...
Hakaimono rosnou. — Estamos perdendo tempo! Eu não vou
ficar aqui e latir enquanto há uma batalha sendo travada ao nosso
redor. Fique aqui se quiser, vou ver o que está acontecendo.
Sua forma estremeceu, tornou-se uma bola carmesim brilhante e
voou para o vazio como o hitodama havia feito. Voltando à
consciência para assumir o controle do corpo. Meu corpo. Cerrei meus
punhos e olhei para Yumeko, que assentiu.
— Vá, Tatsumi. — Ela sussurrou, e eu fui, subindo através das
camadas de pensamento e memória, de volta ao mundo desperto.

olhos... e encarava o rosto do Mestre dos Demônios.


Genno pairava sobre mim, o luar brilhando através de suas
vestes translúcidas, lançando-o em uma luz doentia. Aka, o Vermelho,
permanecia em silêncio atrás dele, chifres e olhos vermelhos brilhando
na escuridão. Notei uma bolsa de seda vermelha e protuberante
amarrada à cintura do meio-demônio, pendurada sob seu obi, e me
perguntei se ela continha o crânio do Mestre dos Demônios, a âncora
que prendia Genno ao reino mortal. À minha volta, gritos e uivos de
batalha se elevavam no ar, e o clangor das armas ecoou nas pedras do
templo. Eu peguei rajadas frenéticas de movimento pelos cantos dos
meus olhos e senti o cheiro forte de sangue metálico no vento. Mas
Genno pairava sobre mim, tranquilo e sereno no caos que nos cercava,
seus lábios finos desenhados em um sorriso satisfeito.
— Ah, aí está você, Hakaimono. — Ele disse, olhando para
mim. — Você parece ter se metido em uma situação difícil.
Tentei me levantar e descobri que não conseguia me mover. Eu
ainda estava deitado de costas no centro do círculo de ligação, embora
não pudesse ver nenhum sacerdote ou tengu nas bordas. Com esforço,
consegui levantar a cabeça e vi elos vermelhos brilhantes enrolados
em meus membros e cruzados sobre o peito, prendendo-me nas
pedras.
Também percebi que estava sozinho no círculo de ligação. O
corpo de Yumeko, que estaria indefeso e vulnerável sem sua alma,
estava longe de ser visto. Eu esperava que ela estivesse segura.
— Genno. — Ouvi-me dizer, embora não fosse eu quem
falasse. A presença furiosa de Hakaimono lotava a minha, encarando
o mago de sangue através dos meus olhos. — O que você está
fazendo? Eu disse que pegaria os fragmentos de pergaminho.
— Mmm. Você parece ter falhado. — O Mestre dos Demônios
levantou um dedo fantasmagórico e bateu contra o queixo. — Mas
você me mostrou exatamente onde encontrar o templo, pelo qual
agradeço. E os guardiões aqui estavam tão preocupados com a sua
chegada que não viram meu exército chegando até que fosse tarde
demais. Você foi uma distração perfeita, Hakaimono. Meu exército
nunca teria conseguido subir a montanha se os tengu soubessem. Mas
você pensou por um minuto que eu realmente faria um acordo com o
Primeiro Oni? — Sua boca sem sangue se curvou. — Eu não terei
minhas próprias forças me questionando, nem terei nenhuma
competição. Eu sou o Mestre dos Demônios. Eu não faço barganhas
com aqueles que deveriam ser meus escravos.
— Seu desgraçado. — Hakaimono deu uma risada baixa e
perigosa. — Então você me traiu antes que eu pudesse traí-lo. Não
posso dizer que não faria o mesmo, embora você saiba que vou
destruir você e todo o seu pequeno exército por isso.
— Acho que não. — Genno ergueu um braço, fazendo meu
sangue gelar. Kamigoroshi estava agarrado em uma mão pálida, a
lâmina lançando uma luz violeta pulsante. Ao meu lado, Hakaimono
ficou tenso, e outra presença roçou em mim, com raiva e horrorizada
enquanto ela olhava através dos meus olhos para o Mestre dos
Demônios.
Yumeko! Eu pensei. Saia daqui! Volte para o seu próprio corpo antes
que seja tarde demais. Mas eu não poderia dizer nada sem alertar o
Mestre dos Demônios.
— Você é um risco, Hakaimono. — A voz de Genno estava
pensativa enquanto ele erguia a lâmina, um leve sorriso cruzando seu
rosto enquanto observava a arma. — Uma ponta solta. Eu seria um
tolo se firmasse uma parceria com o Primeiro Oni. Ainda mais tolo
libertá-lo sobre o mundo sem restrições. Acho que é hora de você
voltar para a espada, e eu generosamente libertarei a pobre alma
aprisionada deste corpo também. Eu não preciso do assassino de
demônios Kage aparecendo na minha porta quando estou prestes a
derrubar o império.
— Mestre.
Passos se arrastaram atrás de Genno e as gêmeas Sasori
apareceram com sorrisos iguais. Ambas estavam cobertas de sangue,
suas tranças de cauda de escorpião balançando ritmicamente atrás
delas. As correntes com pontas de ferro enroladas em seu peito e
ombros deixavam respingos de vermelho nas pedras enquanto elas
subiam. Genno fez uma pausa, entregando a espada a Aka, e voltou
sua atenção para as gêmeas escorpiões.
— Bem?
A yokai da esquerda sorriu e ergueu o braço. Presa em seus
dedos estava a cabeça decepada de um tengu antigo, o nariz vermelho
proeminente apontando como um dedo acusador enquanto girava
preguiçosamente. Lá de dentro, Yumeko deu um grito silencioso de
horror enquanto a yokai ria. — Missão bem-sucedida, Mestre. — Ela
disse. — O velho corvo nos deu muitos problemas, mas... nós o
encontramos.
Sua irmã deu um passo à frente, ajoelhou-se e ergueu uma longa
caixa laqueada em suas mãos para o Mestre dos Demônios.
— Excelente. — Um sorriso lento e triunfante se espalhou pelo
rosto de Genno enquanto ele estendia a mão, dedos fantasmagóricos
escovando o pergaminho. Enrolando a mão em torno do estojo, ele o
ergueu diante de si, olhos claros brilhando fanaticamente. — Só
sobrou um. — Ele murmurou. — Mais uma peça e o império será
meu. Aka.
O meio-demônio deu um passo à frente e aceitou o pergaminho
do Mestre dos Demônios com um arco antes de fazê-lo desaparecer
em suas vestes. Genno assentiu satisfeito. — Encontrem o outro. —
disse ele às irmãs, que imediatamente se curvaram e começaram a
recuar. — Está aqui em algum lugar. Rasgue este templo e mate cada
alma viva até encontrá-lo.
Reunindo minhas forças, me endireitei, lutando contra as
amarras que me prendiam. Elas queimaram minha pele, queimando e
agonizando, mas Hakaimono adicionou sua força à minha, e uma
torrente de poder me encheu. Com pequenos gritos, várias das
correntes quebraram, desfazendo-se em espirais de névoa antes de
desaparecer com o vento, e Genno olhou para trás, erguendo uma
sobrancelha em surpresa divertida.
— Hakaimono. — Ele balançou sua cabeça. — Você é tão forte
quanto dizem as lendas. É uma pena. Você poderia ter sido um
recurso poderoso para o meu novo reino. — Lutei para ficar de
joelhos, cerrando os dentes contra a queima das correntes enquanto
tentava reunir a força de que precisava para quebrá-las
completamente. Genno observou minha luta com calma. — Ainda
assim, eu nunca seria capaz de confiar em você, e não tenho nenhum
interesse em demônios que não se dobram à minha vontade. Se você
não é meu súdito ou um servo, então você é um inimigo.
— Você é um idiota, Genno. — Hakaimono rosnou, enquanto
lutávamos contra as correntes que nos prendiam. Quase lá. Basta
mantê-lo falando por mais alguns segundos. — Você não me quer como
inimigo.
— Eu vou aproveitar minhas chances. — Genno acenou com a
cabeça satisfeito e recuou. — Talvez em mais quatro séculos eu vou
permitir que você saia e brinque novamente. Embora a essa altura, o
mundo será muito diferente do que você conhece agora. Aka, se você
faria as honras?
— Com prazer. — O meio-demônio deu um passo à frente,
sorrindo. Seus olhos vermelhos brilharam com antecipação enquanto
ele olhava para mim e ele balançou a cabeça. — Pena que você não me
reconheceu antes, Hakaimono. — Ele declarou, e eu senti uma onda
de choque e fúria do demônio compartilhando meu corpo. — Depois
de todos os bons momentos que compartilhamos, quase fiquei
magoado por você nem ter dito olá quando finalmente nos
encontramos de novo.
— Rasetsu. — Hakaimono rosnou, enquanto eu sentia a mesma
vibração de choque. Rasetsu era o nome de um dos Quatro Generais
Oni de Jigoku, os demônios mais poderosos que existem. Rasetsu,
Yaburama, Akumu e seu líder, o oni mais temido e famoso de todos:
Hakaimono. — Por que você está trabalhando com Genno? —
Hakaimono exigiu. — E como você ficou preso no corpo de um mortal
patético?
— Você está me perguntando? Isso é bastante irônico. — O meio-
demônio parecia divertido, inclinando a cabeça de uma maneira
zombeteira e interrogativa, antes de ficar sombrio novamente. — O
mundo mudou, Hakaimono. Você esteve longe de Jigoku por um bom
tempo, e O-Hakumon fez planos sem você. Talvez da próxima vez,
não seja sugado por uma espada amaldiçoada e você pode fazer parte
de tudo em vez de ficar no nosso caminho.
Eu fiquei tenso, sentindo as correntes esticarem até o ponto de
quebrar, a momentos de quebrar, enquanto Hakaimono rosnava: —
O-Hakumon? O que o governante do inferno está planejando sem
mim?
Rasetsu sorriu. — Pergunte a ele você mesmo. — disse ele, e
apunhalou Kamigoroshi pelo meio. Senti a ponta explodir nas minhas
costas e ouvi alguém, talvez Yumeko, gritar de horror. Atordoado, eu
olhei para baixo para mim mesmo, onde o comprimento brilhante da
espada foi enfiado no meio do meu peito, assim que o meio-demônio
a puxou para fora novamente, liberando um borrifo carmesim que
sibilou pelo ar e respingou contra a pedra.
Quando desabei, ouvi a voz de Genno, monótona e
desinteressada, já se virando, voltando para o massacre. — Sayonara,
Hakaimono. Você sobreviveu à sua utilidade e não preciso mais de
você. Que o seu próximo milênio na espada seja pacífico.
Minha visão escureceu.
Capítulo 29
Fusão de alma
Yumeko

Tatsumi!
Eu senti a espada entrar no corpo de Tatsumi, senti o terrível
rasgo da lâmina deslizando pela carne, senti ela se alojar entre os
músculos e tendões, e precisei de tudo que eu tinha para não fugir do
assassino de demônios mortalmente ferido para segurança do meu
próprio corpo. Cada instinto gritava para que eu corresse,
abandonasse o hospedeiro moribundo e voltasse a mim. Eu não
conseguia sentir a dor, mas podia sentir a reação do corpo a ela, a
gritaria dos nervos e a contração dos músculos, e era quase
demais. Quando o corpo de Tatsumi caiu molemente nas pedras, girei
e me vi de volta ao vazio, um oni atordoado e uma alma humana
aparecendo contra a escuridão.
Tatsumi fez uma careta e caiu de joelhos, fazendo o alarme
disparar por mim como uma flecha. Ele piscou uma vez e ficou
fantasmagórico, enquanto o brilho sutil ao seu redor crescia contra a
escuridão.
— Não!
Correndo, eu me joguei na frente dele, agarrando seus braços. —
Tatsumi, não. — Implorei, enquanto seu olhar triste e estranhamente
calmo se fixou no meu. — Você não pode morrer. Não desapareça
agora. Fique comigo.
— Eu não posso. — Ele ergueu as mãos, olhando para os dedos
transparentes, e fechou os olhos. — Eu posso sentir... algo me
puxando. — Ele sussurrou. — Meido, ou talvez Jigoku, está
chamando. Sinto muito, Yumeko. — Uma mão subiu ao meu rosto,
seus olhos suaves quando encontraram os meus. — Arigatou. — Ele
respirou. — Por um tempo, meu mundo ficou mais brilhante... porque
eu conheci você.
As lágrimas me cegaram, mas com um rosnado que abalou o
vazio ao nosso redor, Hakaimono avançou, os olhos brilhando de
fúria e, eu pisquei em choque, desespero.
— Droga, humano! — ele rosnou, pairando sobre nós. — Não
ouse desistir e morrer. Eu me recuso a passar mais um minuto em
Kamigoroshi. Eu ficarei neste corpo e neste reino, mesmo se eu tiver
que manter sua frágil e patética alma mortal aqui pela força.
— Você não pode parar isso, Hakaimono. — Tatsumi disse
calmamente. Inesperadamente, o mais fraco dos sorrisos cruzou seu
rosto. — Este corpo está quase acabado, e você não pode ficar aqui
depois que a alma partir. Pelo menos morrerei sabendo que você será
selado de volta em Kamigoroshi, esperançosamente para sempre
desta vez.
— E o que acontecerá com o império quando Genno vencer? —
Hakaimono exigiu. — O que acontece com o seu clã? E sua preciosa
garotinha raposa? — Ele balançou a cabeça e se aproximou, os dentes
à mostra, os olhos brilhantes e furiosos enquanto ele se inclinava. —
Ouça-me, matador de demônios. Não vou fingir que me importo com
nada disso, mas sei que você se importa. E agora, nossa sobrevivência
depende de nós dois. Pretendo rastrear Genno e arrancar a cabeça
traidora de seu corpo, mas não posso fazer isso preso em uma espada.
— Ele parou por um momento, como se estivesse lutando consigo
mesmo, então rosnou uma maldição e estendeu uma garra. — Minha
alma está mais forte. Funda-se comigo, e ainda podemos sobreviver a
isso.
Eu encarei Hakaimono em choque. O que ele quis dizer? Uma
alma mortal e um demônio poderiam se unir? E, Tatsumi seria salvo
se o fizessem?
— Tornar-me um com um demônio. — A voz de Tatsumi era
monótona e um sorriso sem humor torceu um canto de sua boca. —
Eu tenho muito pouca honra sobrando. — disse ele. — Mas pelo
menos minha alma estará limpa quando eu chegar em Meido, ou
mesmo em Jigoku. Ao contrário de você, Hakaimono, nunca tive
medo de morrer.
— Hakaimono. — Eu encarei o demônio, ainda de pé com sua
garra estendida, até que ele encontrou meu olhar. — Você pode salvá-
lo?
— Não. — O Primeiro Oni rosnou. — Eu
estaria nos salvando. Não posso possuir um cadáver. Assim que a
alma partir, serei forçado a voltar para a espada, e este corpo não
passará de uma casca. — Ele gesticulou com raiva para Tatsumi. —
Seu corpo está morrendo e quando isso acontecer, a alma de Tatsumi
será puxada para Meido ou Jigoku ou para onde quer que ele vá. Se
ele se fundir comigo, se nossas almas se unirem, posso ser capaz de
curar o dano feito à carne, o suficiente para salvar sua vida, de
qualquer maneira.
— Mas o que acontece com a alma de Tatsumi se vocês dois se
juntarem?
— Eu não tenho ideia. — Hakaimono retrucou. — Mas tenho
certeza do que acontecerá se não o fizermos. Nós dois perdemos,
Genno invoca o Dragão e o império é invadido por demônios e magia
de sangue. Muitas pessoas morrem. É isso que você quer, matador de
demônios? — Ele olhou para Tatsumi. — Sua garotinha raposa veio
até aqui para salvá-lo, e agora ela vai assistir Genno massacrar seus
amigos e tudo que ela gosta, antes de morrer também. Porque você
falhou em salvá-la. Você pode viver com isso pelo resto da
eternidade?
— Eu... — O olhar angustiado e torturado de Tatsumi se voltou
para mim. — Yumeko. — Ele sussurrou. — Se eu fizer o que
Hakaimono sugere, eu... eu não sei o que vai acontecer. Não sei se
ainda vou ser eu mesmo. Se eu te machucar... — Suas palavras
vacilaram, seus olhos se fecharam, como se aquele pensamento fosse
muito doloroso para continuar. — Eu não sou o assassino de
demônios Kage. — Ele murmurou. — Eu deixei Hakaimono entrar e
não sou mais digno de portar Kamigoroshi. Mesmo se eu sobreviver
aqui, o clã pedirá minha morte. Só posso esperar que eles sejam
misericordiosos e me permitam tirar minha própria vida com honra.
— Seu olhar encontrou o meu novamente, a resignação pairando
sobre seus traços. — Mas até então, até que eles venham por mim,
minha vida é sua. O que você deseja que eu faça?
O brilho inundando Tatsumi ficou mais forte, quase
cegando. Seu corpo tremeu, tornando-se transparente, e espirais de
luz começaram a subir, desaparecendo na escuridão. Hakaimono
rosnou uma maldição.
— Estamos sem tempo, matador de demônios. — O oni rosnou, e
estendeu a garra mais uma vez. — Desistir ou continuar
lutando? Decida, agora!
— Tatsumi. — Emoldurei seu rosto com as mãos e, embora não
pudesse mais senti-lo, seus olhos perfuraram a distância entre
nós. Brilhantes e comovente enquanto sussurrava a palavra final. —
Fique.
Tatsumi baixou a cabeça e, por um momento, meu coração
afundou. Mas seus olhos se abriram mais uma vez, duros com
determinação, enquanto ele girava em direção a Hakaimono e agarrou
a garra estendida.
A luz ao redor de Tatsumi chamejou, expandindo para fora, e
tanto humano quanto demônio desapareceram no brilho. Protegendo
meus olhos, eu apertei meus dedos, tentando ver o que estava
acontecendo, de repente com medo de que, quando a luz se apagasse,
Tatsumi teria ido embora e Hakaimono seria a única alma
remanescente.
O brilho diminuiu para quase nada, e eu respirei fundo, meu
coração parecendo parar no meu peito. Um corpo se ajoelhou onde
Tatsumi estivera um momento antes, ombros curvados e cabeça baixa,
respirando com dificuldade, como se estivesse com dor. Tamanho
humano. De aparência humana... quase. As tatuagens de aparência
maligna de Hakaimono subiam por seus braços e ombros, e um par de
chifres de brasa brilhantes enrolados em sua testa, mas esse era o
único sinal do demônio. Sem pele escura, sem crina, garras ou presas
brancas. Ele parecia Kage Tatsumi.
Então ele ergueu a cabeça e um choque passou por mim como
um raio. Eu estava olhando para os dois, duas entidades de alguma
forma fundidas em uma. Suas almas se sobrepunham, emaranhadas,
mas ainda eram indivíduos separados. Eu podia ver
Hakaimono e Tatsumi olhando para mim, e a surrealidade de tudo
isso fez minha cabeça doer.
A figura diante de mim caiu, inclinando a cabeça, e minha
preocupação aumentou. — Tatsumi. — Eu sussurrei, caindo ao lado
dele. — Você está bem?
Ele deu um aceno dolorido. — Quase não cheguei a tempo. —
Ele murmurou, e eu não pude dizer se era a voz de Tatsumi falando
comigo ou de Hakaimono. Ou ambos. Erguendo a cabeça, ele me
olhou nos olhos e sacudiu a cabeça. — Vá, Yumeko. — disse ele. — O
Mestre dos Demônios ainda está lá fora, com seu exército. Encontre
seus amigos, veja se algum deles ainda está vivo. Você tem que evitar
que Genno pegue o último pedaço do pergaminho.
— E você?
— Eu tenho que... me recuperar um pouco. — Levantando a
mão, ele cerrou o punho, antes de deixá-lo cair. — Este corpo ainda
está fraco, precisei de tudo que eu tinha para mantê-lo vivo. Eu não
acho que posso me mover ainda. — Ele estendeu a mão novamente e
agarrou meu ombro, me fazendo pular. — Vá. — Ele ordenou
novamente. — Pare Genno. Não se preocupe comigo. Eu não... vou
desaparecer. Não dessa vez.
Mordi meu lábio, paralisada com a escolha, sentindo-me
dividida em várias direções ao mesmo tempo. A preocupação com
meus amigos e todos no templo estava me dando nós no estômago. Eu
esperava desesperadamente que Reika, Daisuke e Okame estivessem
bem. Para encontrá-los, eu tinha que retornar ao meu próprio corpo
antes que um demônio faminto ou yokai o destruísse. Poderia já ser
tarde demais, mas estava relutante em abandonar a alma que vim
salvar, deixando-a com o demônio que eu tinha jurado expulsar. —
Você promete?
— Yumeko. — Seu olhar encontrou o meu, e por um momento,
era apenas Kage Tatsumi ajoelhado diante de mim e mais
ninguém. Inclinando-se para frente, ele encostou sua testa na minha,
fechando os olhos. — Minha vida é sua agora. — Ele sussurrou. —
Depois que você veio tão longe para me salvar, eu não vou a lugar
nenhum, eu prometo.
Minha visão se inundou de lágrimas. Agarrando a parte de trás
de sua cabeça, eu fechei meus olhos com força e o segurei por um
momento, sentindo seu brilho nos cercar, pulsando levemente contra
a escuridão.
Abruptamente, ele se afastou, se libertando do meu aperto. — Vá
em frente. — Ele ordenou asperamente, parecendo desconfortável
agora. — Eu me juntarei a você se eu puder. Pare Genno, isso é tudo
que importa. — Eu ainda hesitei, e sua voz se tornou um rosnado
gutural. — Mova-se!
Colocando minhas orelhas para trás, eu voltei à minha forma de
espírito de raposa e fugi, sentindo o olhar de Tatsumi e Hakaimono
em mim por todo o caminho. Saltando para fora do vazio, voei direto
para cima, passei pela concha externa de Tatsumi e voltei ao mundo.
Estava assustadoramente vazio. O pátio onde montamos a
emboscada estava abandonado, embora os sinais da batalha
estivessem por toda parte. Corpos jaziam espalhados, sangrando e
imóveis nas pedras, demônios, yokai e tengu. Um guerreiro tengu
alado caiu com sua lança enfiada no peito de um oni menor, embora
parecesse que o demônio havia acertado um golpe fatal ao
morrer. Horrorizada, olhei em volta para a carnificina. Os corpos de
uma donzela do santuário, um nobre e um ronin não estavam entre os
mortos, pelo que pude ver. Um grupo de amanjaku jazia no chão,
flechas familiares de penas pretas projetando-se do peito e entre os
olhos, indicando que meus companheiros haviam participado da
batalha. Onde eles estavam agora? E onde estava o Mestre dos
Demônios?
Quando olhei por cima do ombro, meu coração gelou. Tatsumi
estava deitado de costas no meio do círculo de ligação, a frente de sua
camisa e as pedras ao redor dele cobertas de sangue. Kamigoroshi
estava deitada ao lado de uma mão mole, a lâmina morta e cega, e
seus olhos estavam fechados. Ele parecia total e completamente
morto, e eu mal me impedi de mergulhar de volta em sua alma para
ver se ele ainda estava lá.
Meu corpo, percebi, também havia sumido. Ele estava deitado ao
lado de Hakaimono quando meu espírito o deixou para possuir
Tatsumi, mas agora o círculo de ligação estava vazio, exceto pelo
demônio imóvel.
Bem, isso vai ser um problema. Onde meu corpo foi parar?
Um estrondo vindo do salão principal do templo me fez
levantar, bem a tempo de ver uma nuvem de fogo explodir pela
parede, espalhando madeira e pedras por toda parte. A fumaça saiu
das portas principais, ondulando no céu, e línguas de chamas laranja
tremeluziram através dos buracos na parede e no telhado.
E de repente, eu estava lá novamente. No templo Ventos
Silenciosos, rodeada por chamas e sangue, assistindo um exército de
demônios massacrar todos que eu me importava.
Achatando minhas orelhas, eu corri pelo pátio em direção ao
corredor principal, percebendo no meio do caminho que eu estava
realmente voando sobre as pedras em forma de espírito. A emoção
dessa descoberta foi ofuscada pelo rugido do fogo e os sons da batalha
pelas portas abertas, silhuetas sombrias correndo para frente e para
trás dentro. Subi os degraus do templo e entrei no salão principal,
então parei e olhei ao redor com horror.
Mais corpos espalhados pelo chão, espalhados entre as chamas e
manchas de sangue, guerreiros tengu, yokai e demônios. O outrora
elegante e espaçoso corredor havia sido destruído, enormes pilares
quebrados como gravetos, as estátuas de heróis humanos caídas de
seus pedestais e quebradas no chão. O fogo queimava, enchendo o ar
de fumaça, e figuras nebulosas dispararam através das nuvens,
lâminas e dentes brilhando na luz infernal. Um tengu mergulhou
entre dois pilares, pousou atrás de uma cobra gigante e cravou sua
lança nas costas do yokai. A enorme cobra sibilou ao morrer, e o tengu
abriu suas asas para voar novamente, mas uma horda de demônios
amanjaku enxameou sobre o pilar e se lançou sobre o guerreiro antes
que ele pudesse escapar. Mordendo e apunhalando, eles o
derrubaram no chão, e o sangue se espalhou pelo piso de madeira
polida enquanto o guerreiro morria.
Não, pensei, vendo demônios enxameando o templo Ventos
Silenciosos mais uma vez, arrastando Satoshi para o chão. Mestre Isao,
levantando-se para enfrentar o oni assassino enquanto o templo
queimava ao seu redor. Isso não pode estar acontecendo
novamente. Voando para cima de um pilar quebrado, procurei
freneticamente por meus amigos em meio ao caos. Por favor, estejam
bem, todos. Por favor. Eu não poderia suportar se algum de vocês...
Meu coração parou. Contra a parede oposta, abaixo do mural do
grande dragão, Reika estava ao lado de Chu, ofuda na mão, seu haori
branco antes imaculado manchado de vermelho. O komainu se
agachou ao lado dela, rosnando e mostrando dentes enormes para
qualquer coisa que se aproximasse demais, mas sem vontade de
deixar sua senhora desprotegida. O chão ao redor deles estava cheio
de corpos, algumas cabeças ou membros faltando, alguns queimados
e vários crivados de flechas.
Entre a carnificina, Okame e Daisuke lutavam lado a lado com
um punhado de tengu, talvez os últimos sobreviventes do massacre
brutal. O arco de Okame estava descartado no canto, a aljava vazia e
uma lança nas mãos do ronin.
Atrás de todos eles, meio escondido e aparentemente esquecido
no caos, um corpo familiar caído contra a parede em um canto
escuro. Seu queixo estava apoiado no peito, e suas orelhas e cauda de
raposa eram visíveis na fumaça e nas luzes bruxuleantes.
Alívio e terror passaram por mim. Saltando do pilar, mergulhei
em meu corpo, mergulhando de volta em mim mesma. Houve um
momento de tontura enquanto eu afundava em minha consciência, e
então, uma sensação de plenitude me engolfou por dentro, a casca
mortal dando boas-vindas à sua alma perdida.
Com um suspiro, abri meus olhos. O rugido das chamas me
saudou, assim como o cheiro de sangue e o fedor acre de
fumaça. Lutei para ficar de pé e quase caí quando uma súbita tontura
fez minha cabeça girar. Colocando minha mão na parede, cerrei
minha mandíbula e dei um passo cambaleante para frente.
Reika se virou então, e seus olhos se arregalaram quando ela me
viu. — Yumeko. — Ela gritou, correndo para frente. — Você está
bem. Graças aos kami. Estávamos com medo de que você tivesse
partido.
— Reika, o que... — Eu cerrei meus dentes enquanto o chão
balançava sob meus pés. As chamas dançaram ao nosso redor, o calor
pulsando contra meu rosto e pele nua. A donzela do santuário
estendeu a mão e colocou a mão sob meu braço, me firmando. — O
que aconteceu?
— O exército de Genno atacou não muito depois de você possuir
Hakaimono. — A miko respondeu. — O oni deve tê-los conduzido
direto para o templo. Nós os seguramos o melhor que pudemos, mas
eram muitos. Fomos forçados a recuar pra cá. — Ela olhou para onde
Okame e Daisuke lutavam lado a lado, seus rostos sombrios e
determinados. — Não podíamos deixar seu corpo indefeso ao lado de
Hakaimono, mas... você encontrou a alma de Kage-san? Você foi
capaz de conduzir Hakaimono de volta para a espada?
Eu estremeci. — Não exatamente.
Reika fechou os olhos e se apoiou em Chu enquanto o komainu
se aproximava. — Então, temo que estejamos todos perdidos.
Comecei a responder, mas um silêncio de repente caiu sobre o
salão, os sons da batalha diminuindo conforme os demônios e yokai
recuaram alguns passos. Respirando com dificuldade, Daisuke,
Okame e o último dos tengu ficaram juntos, as armas levantadas,
enquanto algo flutuava pela fumaça para pairar sobre nós. Um
homem, um yurei, em uma túnica branca esvoaçante, seus longos
cabelos negros esvoaçando atrás dele.
Um arrepio passou por mim e senti minha cauda eriçar como um
gato apavorado. Ao contrário dos poucos yurei que encontrei, este
homem irradiava maldade; eu podia sentir a mácula emanando dele
em ondas, sufocante e doentia. Seus olhos, planos e impiedosos,
olharam para nós, e um canto de sua boca se curvou em um sorriso
pequeno e cruel. Um trio de figuras o seguiu, e cada uma causou um
novo arrepio na minha espinha. As gêmeas yokai com tranças de
cauda de escorpião e sorrisos afetados pareciam perigosas, mas foi a
terceira figura que fez os pelos do meu pescoço se arrepiarem. Um
guerreiro alto e magro vestido de preto, seu cabelo carmesim
amarrado atrás dele, teria sido assustador mesmo sem os chifres e
presas reveladores que o marcavam como um demônio. O punho de
uma espada aparecia sobre seu ombro e seus olhos vermelhos e frios
nos observavam sem um pingo de misericórdia.
A cor sumiu do rosto de Reika e, por um momento, ela parecia
que ia desmaiar. Seus olhos estavam arregalados e cheios de terror
enquanto ela olhava para o fantasma, um estremecimento passando
por ela quando ela cambaleou um passo para trás.
— Genno. — O sussurro parecia arrastado da parte mais escura
de sua alma. A donzela do santuário bateu na parede e caiu no chão,
sua expressão em branco. Chu gemeu e empurrou a cabeça quadrada
para o lado dela, mas ela não pareceu notar. Com o coração batendo
forte, olhei para trás para o fantasma Mestre dos Demônios, flutuando
sobre nós como um fantasma.
— Bem. — Genno inclinou a cabeça ao nos observar, ainda
sorrindo. — Estes parecem ser os últimos de vocês. Suponho que
nenhum de vocês vai me dizer onde está o último pedaço do
pergaminho? — Ele ergueu as duas mãos em um movimento quase
generoso. — Seu daitengu já nos presenteou com uma parte. Eu farei
suas mortes rápidas e honrosas se vocês me pouparem tempo.
Minhas entranhas se agitaram. Eu podia sentir o peso do
pergaminho sob minhas vestes, pesado e agonizante. Os demônios e
yokai que nos cercavam se aproximaram, a sede de sangue brilhando
em seus olhos, lâminas e dentes à mostra. Okame, Daisuke e os
últimos tengu não se moveram, embora eu tenha visto os guerreiros
enrijecerem. Uma batida de coração de silêncio, e então Tsume, o
jovem tengu com a crina de cabelo que parecia uma pena, deu um
passo à frente.
— Não. — Eu sussurrei, enquanto outra memória flutuava
diante da minha visão, sobrepondo a cena na minha frente. Denga,
orgulhoso e desafiador, enfrentando Yaburama, proclamando que eles
nunca se curvariam ao mal, logo antes do oni esmagá-lo e os
amanjaku invadirem o salão. O começo do fim. E não pude fazer nada
para salvá-los.
— Mestre dos Demônios. — Sem saber do meu horror, Tsume
brandiu sua espada, enquanto Genno o olhava divertido. —
Abominação profana! — ele cuspiu. — Seu nome é uma maldição,
uma praga na terra. Nós nunca iremos nos curvar a você. Nunca
desistiremos do pergaminho. Eu morrerei antes de permitir que você
possua o poder do Dragão!
Ele abriu suas asas e avançou pelo ar no Mestre dos Demônios, a
espada erguida bem alto.
Genno apenas sorriu.
Antes que Tsume pudesse alcançar seu alvo, duas correntes com
cravos dispararam do par de yokai fêmeas no chão. Rápido como um
relâmpago, elas envolveram o tengu como cobras, circulando seu
corpo e enredando suas asas. O guerreiro vacilou no ar, lutando
furiosamente contra as correntes, suas asas incapazes de sustentá-
lo. Ele começou a despencar, mas antes de atingir o chão, as gêmeas
yokai puxaram suas armas de volta, e o corpo de Tsume explodiu em
uma nuvem de penas e sangue. Ele caiu no chão em pedaços, sua
cabeça rolando para trás para olhar boquiaberto para nós, enquanto a
multidão de demônios e yokai uivava de excitação.
Minhas mãos voaram para a boca para não gritar e para impedir
que meu estômago subisse pela garganta. Estava acontecendo de
novo, exatamente como antes.
— Se for esse o seu desejo. — disse Genno, e as irmãs yokai
deram um passo à frente, sorrindo. — Então, certamente iremos
conceder-lhe uma morte dolorosa e honrosa.
As correntes mortais avançaram novamente, desta vez em
direção a Daisuke e Okame. Quando dei um grito de terror, uma delas
envolveu o ronin e prendeu seus braços ao lado do corpo enquanto
cortava sua pele. Okame soltou uma maldição assustada, sua lança
caindo de suas mãos, enquanto a garota escorpião puxava a corrente
esticada, colocando-o de joelhos. A outra, movendo-se em direção a
Daisuke, foi afastada pela espada do nobre. Instantaneamente, a
garota yokai puxou a corrente de volta e a atirou nele novamente, e
mais uma vez, a espada de Daisuke brilhou, jogando-a de lado. Mas
desta vez a arma se enrolou e veio para ele por trás, envolvendo-o em
seus elos farpados. Daisuke conseguiu agarrar a corrente com a mão
livre antes que pudesse enrolar em seu pescoço, mas o braço da
espada, amarrado ao lado do corpo, ficou indefeso. Sorrindo, os
ombros da yokai se contraíram enquanto se preparavam para puxar
para trás e estripar suas vítimas.
— Pare!
Fogo de raposa explodiu, surgindo em um incêndio branco-
azulado, envolvendo todo o meu corpo. A maior parte do exército se
encolheu com o brilho, e as gêmeas escorpiões congelaram, seus olhos
arregalados enquanto se fixavam em mim. Eu as ignorei, meu olhar
buscando o Mestre dos Demônios enquanto eu levantava a última
parte do Pergaminho das Mil Orações sobre minha cabeça com um
braço, uma tocha acesa segura no outro.
Os olhos de Genno se arregalaram e ele ergueu a mão,
impedindo seu exército yokai de avançar. Eles obedeceram, embora
eu pudesse sentir a sede de sangue irradiando da multidão e soubesse
que apenas a vontade de Genno os impedia de avançar para me
devorar. Minhas mãos tremeram; eu podia sentir o antigo rolo de
pergaminho em meus dedos, quebradiços e secos, mas forcei minha
voz a não tremer. — Isso é o que você queria, não é? — Eu perguntei,
segurando as chamas da tocha a apenas alguns centímetros da parte
inferior do pergaminho. — Chame seus demônios, ou queimarei este
pedaço da oração aqui mesmo. — Olhando para Okame e Daisuke,
meus olhos se estreitaram e eu olhei de volta para o Mestre dos
Demônios. — Deixe-os ir e... podemos negociar.
— Yumeko! — Reika ficou de pé, enquanto os tengu restantes
giravam, seus olhos arregalados em choque. — Não fale com ele! Não
negocie com o Mestre dos Demônios! Não desistiremos do
pergaminho, em nenhuma circunstância.
— Yumeko-san. — Daisuke acrescentou, sua voz suave, mas
tensa. — Ouça Reika-san. Não barganhe com Genno por nossa
conta. Vamos morrer com honra, protegendo o pergaminho.
O Mestre dos Demônios riu. Sua voz profunda e cruel ecoou nas
vigas da viga, elevando-se sobre o uivo e o estalo das chamas. — Você
não pode destruir o Pergaminho de Mil Orações, kitsune. — Ele me
disse, mas seu exército não se aproximou mais. — É um texto sagrado
dos próprios kami. Por que você acha que o pergaminho foi separado
e não destruído por seus fanáticos amantes da paz? Porque artefatos
sagrados e antigos sempre têm uma maneira de retornar às mãos dos
homens. Queime-o, enterre-o, jogue-o no mar, a oração simplesmente
aparecerá no mundo novamente.
Meu coração despencou, mas mantive minha voz firme. — Isso
pode ser verdade. — Eu disse. — Mas não aqui. E agora não. Se eu o
destruir, você terá que começar sua busca novamente, e o tempo está
se esgotando. Você pode não encontrar este pedaço do pergaminho
antes que a noite para invocar o Dragão tenha passado. — Genno não
disse nada, e eu sabia que havia tocado um nervo. Respirei fundo e
joguei minha última carta. — Esta é a minha oferta. Vou te dar a
oração, se você jurar por sua honra pegar seu exército e partir. Sem
mais morte. Sem mais derramamento de sangue. Você nos deixa em
paz e ninguém mais morre. O que são algumas vidas humanas e
tengu se você tem a última parte do pergaminho em suas mãos?
Por um momento, Genno não respondeu, e os dois lados
prenderam a respiração, os demônios prontos para se lançar para
frente e nos fazer em pedaços, os tengu e humanos preparados para
morrer. Daisuke e Okame estavam congelados, seus rostos tensos e
seus corpos rígidos contra as correntes letais, sabendo que uma
palavra do Mestre dos Demônios significaria uma morte muito
sangrenta.
Finalmente, Genno sorriu. — Muito bem. — Ele disse
calmamente. — Você tem um acordo, raposa. Dê-me o pergaminho e
pegarei meu exército e irei embora. Meus tenentes não vão matar
vocês, pelo menos, não hoje. Você tem minha palavra.
Eu olhei para as gêmeas yokai, ainda segurando seus cativos, e
fiz uma careta. — Deixe Okame e Daisuke irem primeiro. — Eu
disse. — Então eu vou te dar o pergaminho. Não antes.
As duas yokai fizeram uma careta para mim, mas Genno
simplesmente assentiu e levantou a mão. Imediatamente, as gêmeas
relaxaram a tensão nas correntes farpadas, deixando-as cair no
chão. Com outro gesto do Mestre dos Demônios, o terceiro tenente, o
terrível oni de cabelo vermelho, deu um passo à frente e estendeu
uma garra para mim, o significado muito claro.
Respirei fundo e dei um passo à frente, tentando ignorar os
olhares furiosos do último dos tengu, as penas em suas asas
tremendo, como se estivessem lutando contra a vontade de voar para
frente e me apunhalar no coração. Qualquer coisa para me impedir de
desistir do pergaminho. Eu entendia seu desânimo; eles estavam
prontos para morrer para protegê-lo, para evitar que caísse nas mãos
do mal. Assim como Mestre Isao, e todos no templo Ventos
Silenciosos. Mas eu não poderia assistir isso de novo, especialmente
agora. Daisuke, Reika, Okame... nós tínhamos chegado tão longe. Eu
não os deixaria morrer. Desta vez, eu poderia fazer algo para impedir.
— Sem truques, kitsune. — A voz de Genno ecoou baixinho no
alto, um aviso sutil. — Sem ilusões, sem magia de raposa. Eu vou
saber se o que você me dá é real. Faça de mim um tolo, e suas mortes
não serão rápidas.
O demônio apareceu diante de mim, seu olhar vermelho frio
fazendo minha pele arrepiar. Com o coração batendo forte, coloquei o
pergaminho em sua mão estendida e observei suas garras se curvarem
sobre a madeira. Recuando, uma sensação doentia de traição roeu
minhas entranhas; eu podia de repente sentir uma centena de olhares
decepcionados perfurando minha alma. Mas eu não me arrependeria
de minha decisão.
Sinto muito, Mestre Isao, todos. Eu sei que falhei com meu dever. Mas
o que importa se eu impedir a vinda do Dragão, se todos os que me interessam
se forem?
Com o pergaminho na mão, o meio-demônio se virou para
Genno e, com um sorriso fraco e autodepreciativo, ajoelhou-se e
ergueu a caixa para o Mestre dos Demônios. Genno desceu
lentamente, pairando alguns metros do chão enquanto corria dedos
fantasmagóricos ao longo da extensão da madeira. Seus olhos
brilharam e um sorriso triunfante se espalhou por seu rosto quando
ele assentiu.
— Finalmente. O poder do Desejo do Dragão é meu. — Com
uma risada suave, ele flutuou de volta, a alegria em seus olhos
realmente assustadora. — Nada vai me parar, agora. Aka, prepare o
navio. Partimos para as terras de Tsuki imediatamente.
Sem dizer uma palavra, o meio-demônio se levantou, colocou o
pergaminho em seu obi e acompanhou seu mestre para fora do
corredor. As duas garotas yokai imediatamente se viraram e
seguiram, tranças gêmeas de escorpião balançando juntas atrás
delas. O exército, entretanto, permaneceu.
Na porta do templo, Genno se virou, seu olhar encontrando o
meu através do chão coberto de escombros. Seus três tenentes
seguiram em frente, desaparecendo pela moldura, mas o Mestre dos
Demônios gesticulou casualmente, como se estivesse jogando um
caroço de ameixa no mato.
— Acabem com eles. — Ele ordenou, e se foi.
Meu coração congelou quando o exército de demônios e yokai
deu um rugido ensurdecedor de sede de sangue e avançou.
O tempo pareceu diminuir. Eu assisti a abordagem do exército
de demônios em transe, enquanto o círculo de aço, presas e garras se
fechavam ao nosso redor. Na minha visão periférica, eu estava ciente
de Daisuke, Okame e o último dos tengu levantando suas armas para
uma luta final. Eu ouvi o uivo desafiador de Chu e vi Reika alcançar
em suas mangas um ofuda, gritando algo para mim ou para os
demônios. Então uma sombra caiu sobre mim, e eu olhei para o rosto
distorcido de um oni azul, os olhos brilhando quando ele trouxe um
porrete com cravos na minha cabeça.
O tempo voltou a se movimentar e eu recuei, preparando-me
para morrer enquanto o fogo da raposa subia para as pontas dos meus
dedos. Sabendo que não seria o suficiente.
O sangue salpicou meu rosto, quente e nojento, me fazendo
estremecer. Eu fui atingida. Eu estou morrendo. Mas não houve dor,
nenhuma indicação de que havia levado um golpe fatal, e depois de
um momento de espera para ver se cairia morto, abri os olhos.
O oni azul ainda estava diante de mim... mas apenas sua metade
inferior. Enquanto eu observava, entorpecida, as pernas grossas e
cabeludas se dobraram, e o demônio eviscerado caiu no chão, batendo
ao lado de sua metade superior decepada, o rosto selvagem congelado
em choque.
Kage Tatsumi se virou para mim, os olhos brilhando em
vermelho na luz infernal. Chifres enrolados em sua testa e tatuagens
brilhantes subiam por seus braços, enrolando em torno de seu
peito. Uma mão agarrava Kamigoroshi, a lâmina chamejando e
estalando com fogo roxo. Ele me deu um sorriso assustador, então
lentamente se virou para enfrentar o exército à sua frente. Os
demônios e yokai ficaram congelados a alguns metros de distância,
olhando para o recém-chegado com os olhos arregalados de
reconhecimento e medo.
— Yumeko. — Eu pulei ao som de sua voz, nem Hakaimono
nem Tatsumi, mas o eco de ambos. — Você está machucada?
Eu balancei minha cabeça.
— Bom. Fique aí, eu já volto.
Hakaimono rugiu, o som fazendo os pilares ao nosso redor
tremerem, e se lançou no meio do exército.
O que aconteceu a seguir foi difícil de descrever. Hakaimono
moveu-se através de ondas de inimigos como uma foice, selvagem e
imparável. Kamigoroshi explodiu, cortando membros, cabeças e
corpos, separando demônios e yokai. Amanjaku se atiraram contra
ele, arranhando e mordendo, e explodiram em pequenas nuvens de
sangue antes de se transformar em névoa. Um hari onago recuou
desesperadamente, cortando freneticamente com as dezenas de farpas
nas pontas de seu cabelo, mas o matador de demônios ignorou os
ganchos que rasparam sua carne e avançou, cortando sua cabeça com
um golpe de sua lâmina. Um oni menor uivou ao balançar uma clava
de ferro contra ele; o matador de demônios ergueu o braço, recebendo
o golpe sem fazer uma careta, antes de cortar as pernas do demônio
na altura do joelho. Gritando, o oni desabou em uma poça de seu
próprio sangue, e Hakaimono nem mesmo olhou para baixo enquanto
dirigia Kamigoroshi por suas costas.
No espaço de alguns batimentos cardíacos que pareciam
estações, tudo acabou. Os últimos inimigos, um trio de ratos yokai
conhecido como nezumi, tentaram fugir da fúria oni da morte
enquanto ele cortava o demônio final. Com um grunhido, o matador
de demônios avançou atrás deles, cortando dois assim que eles
alcançaram a saída. O terceiro conseguiu escapar pela moldura, mas
uma flecha cortou o ar, errando por pouco o matador de demônios, e
atingiu o nezumi nas costas. Ele caiu para a frente com um guincho,
caiu escada abaixo e desapareceu. A alguns metros de distância,
Okame abaixou seu arco com um sorriso severo, o lado de seu rosto
coberto de vermelho, antes de cambalear e cair.
Daisuke o pegou e baixou o ronin suavemente até o chão para se
ajoelhar ao lado dele. Os dois homens respiravam com dificuldade,
suas roupas estavam rasgadas e ensanguentadas, e as belas vestes de
Daisuke nunca mais seriam as mesmas. Mas eles ignoraram seus
ferimentos, e os montes de mortos amontoados ao redor deles, seus
olhos apenas um para o outro.
— Desculpe, pavão. — Ouvi o murmúrio de ronin, enquanto
Daisuke segurava sua mão contra o peito. — Eu não... consegui
morrer uma morte gloriosa por você. — Sua outra mão se levantou,
pegando uma mecha de cabelo branco prateado entre os dedos
ensanguentados. — Parece que você não vai conseguir compor esse
poema, afinal.
— Okame-san. — A voz de Daisuke estava grossa e ele balançou
a cabeça de maneira quase pesarosa. — Esse dia chegará em breve. —
ele sussurrou, segurando o olhar do ronin. — Chegará o momento em
que teremos uma morte gloriosa e espero estar ao seu lado quando
isso acontecer. Mas agora, lutamos esta batalha e ainda vivemos. Isso
terá que ser motivo suficiente para comemorar.
Meu estômago apertou. Afastando-me, observei as
consequências horríveis da luta com o exército de Genno e cerrei a
mandíbula para não perder meu magro café da manhã. O interior do
templo era agora um campo de batalha encharcado de sangue,
sufocado com cinzas e fumaça e coberto de sangue coagulado. Tengu
e yokai estavam espalhados pelas pranchas de madeira, com espirais
de névoa demoníaca vermelho-escura flutuando ao redor deles. Para
onde quer que eu olhasse, não via nada além de morte, sangue e
fracasso. Nós falhamos. Eu tinha falhado. O pergaminho havia
sumido e Genno logo convocaria o Dragão. Eu tinha perdido essa
batalha.
Mas você não perdeu tudo.
— Yumeko.
Reika abriu caminho através da carnificina com Chu atrás dela,
suas patas enormes rangendo contra a madeira. A donzela do
santuário estava branca, de horror ou raiva, ou ambos, seus olhos
estalando furiosamente quando encontraram os meus. — Como você
pôde? — ela sussurrou, enquanto Daisuke puxava Okame de pé e
começava a mancar em nossa direção. — Você deu o pergaminho a
Genno. Agora, Iwagoto será perdido quando ele invocar o Dragão.
— Nós vamos pará-lo. — Eu disse, encontrando sua raiva de
frente. Olhei para meus amigos, ensanguentados, exaustos, mas ainda
vivos. Okame encostou-se a Daisuke, um braço envolto em seu
pescoço, o braço do nobre em volta de sua cintura. A poucos metros
de distância, o último dos tengu estava se arrastando pelo corredor,
fazendo um balanço de seus feridos e mortos, e não queria olhar para
mim.
— Vamos parar Genno. — Eu disse novamente. — Vamos
rastrear seu exército e usar tudo em nosso poder para recuperar o
pergaminho. Ainda temos um pouco de tempo. O dragão ainda não
foi convocado.
— E quanto a mim? — perguntou uma voz suave nas minhas
costas.
Meu coração deu um salto. Eu me virei para encarar Tatsumi, ou
talvez Hakaimono, parado a alguns metros de distância. Sua espada
estava embainhada, e o carmesim ardente em seus olhos havia
desaparecido, assim como as garras, presas e as tatuagens subindo por
seus braços e ombros. Ele parecia Kage Tatsumi novamente, exceto
pelos chifres pequenos, mas conspícuos, ondulando em sua
testa. Lembrando-nos que, mesmo agora, ele não era humano.
— Depende. — Surpreendentemente, foi Daisuke quem
respondeu, a mão do nobre descansando facilmente no cabo de sua
lâmina. — Quem é você? Você destruiu o exército de Genno, mas não
tenho certeza de sua motivação. É com Hakaimono que estamos
falando ou Kage-san?
Tatsumi fez uma pausa e balançou a cabeça. — Não sei
exatamente. — respondeu ele, com voz resignada. — Ambos. E
nenhum. Pedaços de cada um de nós, talvez. Eu mesmo não estou
totalmente certo.
— Isso não é exatamente reconfortante. — Okame murmurou. —
Sem ofensa se for realmente você, Kage-san, mas como sabemos que
não estamos lidando com um demônio que vai arrancar nossas
gargantas no momento em que deixarmos nossos guardas no chão?
— Você não precisa. — O olhar sombrio de Tatsumi encontrou o
meu. — Você não deveria. As palavras de um demônio não são
confiáveis. Mas, talvez isso seja o suficiente.
E antes de todos eles, ele se ajoelhou na minha frente, curvando a
cabeça. — Yumeko. — Ele murmurou. — Se você realmente acredita
que um demônio ainda te ameaça, me mate agora. Ou me mande
fazer isso sozinho. Eu vou obedecer, enquanto eu tiver o controle
deste corpo. Minha lâmina pertence a você, assim como minha vida,
até que os Kage decidam tirá-la de mim. Ou até que minha mente não
seja minha. — Eu vi o mais fraco dos tremores passar por ele, como se
ele tivesse que lutar para tirar essa última parte. — Até então, faça o
que quiser com ela.
— Tatsumi... — Eu engoli o caroço na minha garganta e balancei
minha cabeça. — Levante-se. — Eu disse a ele, e ele obedeceu
instantaneamente, levantando-se, seu olhar no chão entre nós. Eu
gostaria de poder tocá-lo, mesmo por um momento, mas ele estava
diferente agora. Eu não sabia quanto de Tatsumi, o verdadeiro
Tatsumi, restava. E, por mais que o pensamento de Hakaimono ainda
escondido na alma de Tatsumi me assustasse, nós precisávamos de
sua força se queríamos ter uma chance de parar o Mestre dos
Demônios.
— Você não pode morrer ainda. — Eu disse a ele com firmeza. —
Precisamos de sua ajuda para encontrar Genno e pegar o pergaminho
de volta. Não importa o que aconteça, não podemos deixá-lo convocar
o Dragão.
Ele balançou a cabeça gravemente, e eu peguei a faísca vermelha
de fúria em seus olhos quando ele ergueu a cabeça. — Tenho uma
conta a acertar com Genno. — disse ele em uma voz letalmente baixa,
e não havia dúvidas sobre quem estava falando agora. — Não estou
preocupado com o pergaminho ou com o Dragão, mas o Mestre dos
Demônios morrerá gritando por misericórdia, posso prometer isso.
— Se pudermos encontrá-lo. — Reika disse, os olhos duros
enquanto observava-o, como se estivesse com medo que ele de
repente saltasse sobre ela, as presas à mostra. — Ele provavelmente irá
ao local para invocar o Dragão, onde quer que seja. Há apenas um
local onde você pode chamar o Precursor, e os pergaminhos da
história não estão totalmente claros onde é ou foram perdidos
deliberadamente. Mas devemos encontrá-lo o mais rápido
possível. Temo que não haja muito tempo.
— Eu sei onde é. — Tatsumi, ou talvez Hakaimono, disse. — Das
três vezes que o Dragão foi chamado usando o pergaminho, duas
delas foram pelo Clã das Sombras. É um dos segredos que os Kage
mantêm por perto. — Ele se virou e olhou para fora da porta do
corredor, sua voz sombria, mas triunfante. — Eu sei para onde Genno
está indo. O lugar onde o Precursor apareceu pela primeira vez, nas
falésias de Ryugake, na ilha de Ushima.
— Território do Clã da Lua. — disse Daisuke.
Okame fez uma careta. — Parece que vamos precisar de um
barco.
Epílogo
O amanhecer estava surgindo no horizonte, afastando as estrelas
e tingindo as nuvens de rosa. Parado imóvel no topo do penhasco
nevado da montanha, Seigetsu ergueu o rosto para os primeiros raios
de sol e fechou os olhos.
— Foi ela. — Murmurou Taka a seus pés. Ele parecia aliviado,
mas infeliz, como se ainda estivesse desconfortável com a decepção
que Seigetsu exigia dele. — Ela os salvou.
— Sim. — Seigetsu concordou. — Exatamente como você
predisse. A raposa possuiria Hakaimono, o exército de Genno atacaria
o templo e a alma perdida os avisaria da destruição que viria. Ela só
precisava de um pequeno empurrão para encontrar sua coragem.
— O que fazemos agora?
— Genno tem todas as peças da oração do Dragão. — Seigetsu
deu um aceno de satisfação e se afastou da borda. Por hábito, ele
quase enfiou a mão na manga para pegar a bola, antes de lembrar que
ela não estava mais lá. — Ele irá para a Ilha de Ushima prontamente
para a invocação. A garota kitsune e seu demônio irão seguir, é
claro. Tudo está pronto. A última peça está prestes a começar.
Por apenas um momento, talvez a primeira vez em séculos,
Seigetsu se permitiu sentir um pequeno lampejo de excitação. Anos de
planejamento, observação, espera, estavam finalmente chegando
juntos. Já estava quase na hora.
— Venha, Taka. — Com um turbilhão de vestes e cabelos
prateados, Seigetsu caminhou em direção à carruagem empoleirada
na neve a alguns metros de distância. Taka cambaleou
obedientemente depois, pulando passo a passo para evitar os montes
de neve.
— Para onde estamos indo agora, mestre? Ilha de Ushima?
— Sim. — Seigetsu sacudiu o pó branco de suas vestes e entrou
na carruagem. — Há um último item, mais uma peça para adquirir,
antes da manobra final. — Ele observou Taka entrar na carruagem,
tirando furiosamente a neve das calças, e sorriu. Fazia sentido que o
jogo chegasse ao fim no local onde tudo começou. A garota kitsune
não tinha ideia da tempestade que ela estava enfrentando, ou o que
ela encontraria quando ela chegasse lá, mas seria interessante, para
dizer o mínimo.
— Prepare-se, Taka. Viajamos para a ilha dos kami, para o
próprio local de nascimento da profecia, para encontrar a lasca que
enlouquecerá um deus.
Glossário
amanjaku: demônios menores de Jigoku
arigatou: obrigado
ashigaru: soldados camponeses
ayame: iris
baba: um título honorífico usado para uma mulher idosa
baka/bakamono: tolo, idiota
chan: um título honorífico usado principalmente para mulheres
ou crianças
chochin: lanterna de papel pendurada
daikon: rabanete
daimyo: senhor feudal
daitengu: yokai; o mais velho e sábio dos tengu
Doroshin: Kami; o deus das estradas
furoshiki: um pano usado para amarrar os pertences de uma
pessoa para facilitar o transporte
gaki: fantasmas famintos
gashadokuro: esqueletos gigantes convocados por magia
maligna
geta: tamancos de madeira
gomen: um pedido de desculpas; desculpe
hai: uma expressão de reconhecimento; sim
hakama: calças plissadas
hannya: um tipo de demônio, geralmente mulher
haori: casaco quimono
Heichimon: Kami; o deus da força
hitodama: a alma humana
inu: cachorro
ite: ai
Jigoku: o Reino do Mal; inferno
Jinkei: Kami; o deus da misericórdia
jorogumo: um tipo de aranha yokai
jubokko: uma árvore carnívora sugadora de sangue
Kaeru: sapo de cobre; moeda de Iwagoto
kago: palanquin
kama: foice
kamaitachi: yokai; fuinha
Kami: deuses maiores; as nove divindades nomeadas de
Iwagoto
kami: deuses menores
kappa: yokai; uma criatura do rio com uma depressão em forma
de tigela no topo de sua cabeça cheia de água que, se derramada, a faz
perder sua força
karasu: corvo
katana: espada
kawauso: lontra de rio
kitsune: raposa
kitsune-bi: fogo de saposa
kitsune-tsuki: possessão de raposa
kodama: kami; um espírito da árvore
komainu: cachorro leão
konbanwa: boa noite
kunai: faca de arremesso
kuso: um palavrão comum
mabushii: uma expressão que significa “tão brilhante”, como o
brilho do sol
majutsushi: mago, usuário de magia
Meido: o Reino da Espera, onde a alma viaja antes de renascer
miko: uma donzela de santuário
minna: uma expressão que significa “todos”
mino: capa de chuva de palha trançada
nande: uma expressão que significa “por que”
nani: uma expressão que significa “o quê”
neko: gato
netsuke: uma peça de joalheria entalhada usada para prender o
cordão de uma bolsa de viagem ao obi
nezumi: rato yokai
Ningen-Kai: o reino mortal
nogitsune: uma raposa selvagem malvada
nue: yokai; uma fusão quimérica de vários animais, incluindo
um tigre, uma cobra e um macaco que é dito ser capaz de controlar
relâmpagos
nurikabe: yokai; um tipo de parede viva que bloqueia estradas e
portas, tornando impossível passar por elas ou contorná-las
obi: faixa
ofuda: talismã de papel com habilidades mágicas
ohiyou gozaimasu: bom dia
okuri inu: yokai; grande cachorro preto que segue os viajantes
nas estradas e os despedaçará se eles tropeçarem e caírem
omachi kudasai: por favor, aguarde
omukade: uma centopéia gigante
oni: demônios semelhantes a ogros de Jigoku
onikuma: um urso demônio
onmyodo: magia oculta com foco principalmente em
adivinhação e leitura da sorte
onmyoji: praticantes de onmyodo
onryo: yurei; um tipo de fantasma vingativo que causa
maldições terríveis e infortúnios para aqueles que o injustiçaram
oyasuminasai: boa noite
ryokan: uma pousada
ryu: dragão de ouro; moeda de Iwagoto
sagari: yokai; a cabeça sem corpo de um cavalo que cai dos
galhos das árvores para assustar os transeuntes
sama: um título honorífico usado ao se dirigir a uma das mais
altas posições
san: um título honorífico formal frequentemente usado entre
iguais
sansai: planta selvagem comestível
saquê: bebida alcoólica feita de arroz fermentado
seg: emblema da família ou brasão
sensei: professor
seppuku: suicídio ritual
shinobi: ninja
shogi: um jogo tático semelhante ao xadrez
shuriken: estrela ninja
sugoi: uma expressão que significa “incrível”
sumimasen: Sinto muito; Com licença
tabi: meias ou botas com bico dividido
Tamafuku: Kami; o deus da sorte
tanto: faca curta
tanuki: yokai; pequeno animal semelhante a um guaxinim,
nativo de Iwagoto
tatami: esteiras de bambu
Tengoku: o céu celestial
tengu: yokai; criaturas semelhantes a corvos que lembram
humanos com grandes asas negras
tetsubo: grande clava de duas mãos
tocado por kami: aqueles que nascem com poderes mágicos
tora: tigre de prata, moeda de Iwagoto
tsuchigumo: uma aranha gigante da montanha
ubume: yurei; um tipo de fantasma que morreu no parto
usagi: coelho
wakizashi: lâmina pareada mais curta para a katana
yamabushi: sacerdote da montanha
yari: lança
yojimbo: guarda-costas
yokai: uma criatura com poderes sobrenaturais
yokatta: uma expressão de alívio; obrigado Senhor
yuki onna: mulher da neve
Yume-no-Sekai: o reino dos sonhos
yurei: um fantasma
zashiki warashi: yurei; um tipo de fantasma que traz boa sorte
para a casa que assombra

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