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1. Dedicatória
2. Linhagens Vivas
3. Linhagens Extintas
5. Portadores do fogo
6. Imortal
7. Rios escuros
8. Mortal
Para minha família grega.
Por sete dias, a cada sete anos, andarão como mortais para que vós, homens,
e todos os vossos herdeiros doravante, possam desfazer vosso predestinado
caminho e transformar fio vital em ouro eterno. Revelai vossas forças e
aptidões, e recompensar-vos-ei com o manto e com o poder imortal do deus
cujo sangue manchar vossa ousada lâmina. Para que tenham essa
oportunidade, peço muito de vós.
Assim será até o último dia, quando apenas um restará, e será refeito por
inteiro.
Zeus em Olímpia,
mortal.
O orvalho na grama escoava para dentro de seu fino manto azul, e ele sentiu
a terra salpicada nas pernas e nos pés desnudos. Um tremor humilhante
passou por ele, se estendendo do couro cabeludo até os calcanhares. Pela
primeira vez em sete anos, sentiu um calafrio.
O sangue mortal que fluía dentro dele era como lama em comparação com a
luz solar líquida do icor que havia incinerado todos os vestígios de sua
mortalidade e o lançado de volta ao mundo. Por sete anos, percorreu terras
próximas e distantes, avivou os corações perversos de assassinos, nutriu as
brasas dos conflitos até se tornarem chamas. Havia sido fúria encarnada.
Ele não passaria por isso. Esta seria a última vez que provaria o gosto da
mortalidade.
Sangue escuro fluía pelos rios à sua volta. Uma jovem garota, com a
máscara arrancada de seu rosto, o observava com olhos cegos da borda da
cratera. Uma faca ainda estava enterrada em sua garganta. A cabeça de um
homem, arrancada do corpo, vestia a máscara de um cavalo. Um punhal se
equilibrava em sua mão frouxa, em que faltavam dedos.
Havia um tênue arrastar de passos à sua direita. Ele tateou, procurando uma
espada que não mais estava em seu flanco. Três vultos saíram das sombras
de árvores próximas dali. Cruzaram a trilha pavimentada entre eles, com
rostos escondidos por máscaras de bronze, cada uma ostentando o
semblante de uma serpente.
O mais alto dos três caçadores se aproximou. Belen. O novo deus assistia,
entretido, conforme o jovem removia as flechas dos corpos em uma colheita
impiedosa.
Uma pena que sua única prole sobrevivente era um bastardo. Não poderia
ser o herdeiro de Aristos Cadmou, o mortal que o deus fora. Ainda assim,
seus lábios se curvaram em um sorriso, e ele deu boas-vindas ao
incandescente orgulho que sentiu ao ver o jovem.
garoto agora era parecidíssimo com ele. A pele marcada pelas décadas fora
arrancada do novo deus quando ele ascendeu, se tornando jovem
novamente.
lealdade. Estamos aqui para protegê-lo com nossas vidas até que chegue a
hora de o senhor renascer novamente ao poder.
Ele sabia que o mesmo ritual estava sendo realizado por outras linhagens
em todo o parque.
— Seu último poder útil foi tomado de você — disse o novo deus. Segurou
um punhado do cabelo marrom encaracolado do deus antigo e forçou sua
cabeça para trás, fazendo-o olhar para cima.
Ele precisava apenas saber que ela não havia sido destruída. A fúria do
novo deus era seu tipo peculiar de euforia. Levou a lâmina afiada de sua
espada até a pele macia e mortal do deus antigo.
— É assim que as coisas são, não é mesmo? — disse o novo deus. Ele se
inclinou, assistindo enquanto o último vestígio de vida deixava os olhos do
deus antigo. — Assim eram com seu pai, e com o pai dele. Os deuses
antigos devem morrer para permitir que os novos ascendam.
novo deus lançou um último olhar para a cabeça antes de jogá-la na lona
mais próxima junto com os outros restos. Até o amanhecer, não restará
nenhum sinal dos últimos oito deuses que surgiram como raios dentro dos
limites do Central Park ou daqueles caçadores que tombaram na tentativa
assassiná-los.
A cidade vibrava à sua volta, inchada de caos, a ponto de doer. Ela cantava
ao novo deus a canção do terror que estava por vir. Ele entendeu aquele
anseio — de ser libertada.
— Eu sou Fúria.
Uma nova era estava ao alcance, esperando ser dominada por aquele forte o
bastante para ousar fazer isso.
alguém era lutando com essa pessoa. Na experiência de Lore, a única coisa
que lutar revelava mesmo era a área do corpo em que o oponente menos
queria ser atingido.
Para seu oponente, essa área era claramente a nova tatuagem no peito
esquerdo, que ainda estava coberta com um curativo.
Lore ergueu suas luvas de boxe de 400g e deixou que elas absorvessem
outro golpe desleixado. Seus tênis guincharam no tatame azul e barato
conforme recuava um passo para trás. As tiras de fita adesiva prateada que
mantinham o ringue improvisado no lugar começavam a descolar após
cinco lutas naquela noite, com toda a umidade e calor. Ela grunhiu enquanto
selava a fita mais próxima com o calcanhar.
Suor escorria por seu rosto até que tudo que pudesse sentir fosse o gosto de
sal. Lore recusou-se a secá-lo, mesmo quando o suor fez com que seus
olhos ardessem. A dor era boa. A mantinha focada.
Isso — a luta — nada mais era do que um hábito ruim recente, que lhe
trouxe uma libertação da qual necessitava desesperadamente após a morte
de Gil, seis meses atrás. Mas a promessa original de ser só essa luta
desaparecera assim que sentiu aquela onda familiar de adrenalina.
Uma luta fora o suficiente para abafar o luto ensurdecedor, tirá-la de dentro
de seus pensamentos e levá-la de volta ao corpo. Duas lutas a
desconectaram da profunda dor no coração. Três trouxeram uma
surpreendente quantidade de dinheiro.
Seu oponente era um garoto quase da sua idade — todo molenga, com a
pele sem marcas e uma confiança sem causa. Ele riu, apontando um dedo na
direção dela conforme a escolhia entre todos os lutadores disponíveis de
Frankie. Lore decidira que o destruiria e devastaria qualquer pedaço
esfarrapado que sobrasse de seu orgulho muito antes de ele chamá-la de
bebezinha e soprar um beijo bêbado em sua direção.
— Vou tentar adivinhar — disse ela, por entre o protetor bucal. Lore acenou
a cabeça na direção do curativo no peito do adolescente, que cobria uma
tatuagem recente —, foco, força e fé? Carpe diem?
O movimento, combinado com sua pouca força, deixou o peito aberto. Lore
tinha um alvo claro quando bateu na pele macia e tatuada.
— Tenho certeza de que você não devia me chamar disso — disse ela, o
rodeando —, até porque é você quem está de quatro.
Gil lhe diria para sair de perto desse garoto idiota — ele sempre fora rápido
em lembrar Lore, com aquele jeito de avô, sem julgamentos, que não era
preciso se jogar em todas as brigas que aparecessem. A verdade era que ele
teria odiado essa situação, e Lore também sofria com essa culpa de
desapontá-lo.
Ela começou a ver rostos familiares pela cidade há umas duas semanas,
enquanto fazia os últimos preparativos para hoje à noite. O choque a atingiu
como uma faca nos pulmões; cada vez que os via, confirmava que toda a
sua esperança e toda a sua súplica silenciosa foram em vão. Por favor —
pensou ela, repetidamente, nos últimos meses — faça com que esse ciclo
seja em Londres. Faça com que seja em Tóquio.
Lore sabia que não deveria ter corrido o risco de sair esta noite, não quando
a matança estaria no auge. Se um único caçador a reconhecesse, as
linhagens não estariam apenas caçando deuses. Também estariam atrás do
seu couro.
De canto de olho, Lore viu Frankie checar seu relógio de bolso ridículo,
dando-lhe o sinal para finalizar a luta. Ela supôs que o homem tinha que ir a
algum lugar ou sair para deitar em uma cama de dinheiro.
Conforme ela se virava para se esquivar de um golpe, seu colar pulou para
fora de sua blusa. O pingente nele, uma pena dourada, refletiu a luz fraca e
brilhou. A luva de seu oponente o acertou. De alguma forma, ele deve ter
prendido a luva na corrente fina, porque, assim que Lore se movimentou de
novo, o fecho se rompeu e, de repente, o pingente estava no chão aos seus
pés.
Lore usou os dentes para abrir a tira de velcro da luva e deixar a mão livre.
Lore voltou-se para o garoto, lembrando a si mesma que não podia matá-lo.
Ela viu o punho vindo em sua direção com a visão periférica e se virou bem
a tempo de levar um soco na lateral da cabeça, em vez de no olho. O mundo
escureceu, então explodiu novamente em claridade e cor, mas ela conseguiu
se manter de pé. O garoto cantou vitória, jogando os braços para o alto, com
Lore levou instintivamente as luvas até o peito em defesa, mas não era onde
ele estava mirando. O garoto passou o braço ao redor do pescoço dela e
esmagou os lábios nos dela.
O pânico era cegante, explodindo da pele de Lore como gelo; isso a trancou
fora da própria mente. Ele pressionou o corpo dele mais firmemente, e sua
língua desajeitadamente na dela, enquanto a multidão uivava ao redor deles.
A próxima coisa da qual Lore se lembra foi de ser puxada para longe do
chão, ainda chutando e rosnando. Suas luvas estavam cheias de sangue, e o
que restou do rosto dele estava irreconhecível.
O coração de Lore esmurrava suas costelas, batendo rápido demais para que
ela recuperasse o fôlego. Seu corpo estremecia enquanto Grande George a
colocou de volta no chão, segurando-a, até que ela assentiu com a cabeça,
indicando estar bem. Da parte dele, Grande George foi lentamente até o
garoto, gemendo no tatame, e o cutucou com o pé.
Essa não sou eu — pensou ela, limpando o suor do buço. — Não mais.
— Você não ganhou… você roubou — disse o garoto. — Não foi justo…
você roubou!
Esse era o problema de garotos como ele. O que ele sentia naquele
momento, aquela raiva, não era o mundo caindo sobre ele. Era uma ilusão
sendo quebrada, aquela que o fez pensar que merecia ter tudo, e que isso lhe
era devido simplesmente por existir.
Lore começou a andar na direção de Frankie. Foi um erro vir aqui nesta
noite. Mesmo agora, ela não conseguia distinguir se seu corpo queria sair
correndo dali ou gritar.
Ela foi até a borda do ringue quando a próxima luta foi anunciada.
Lore ergueu dez dedos. Frankie fez uma careta, mas gesticulou para que ela
voltasse ao ringue. Ela calçou as luvas novamente e se virou. Se esse era
um dos amigos do garoto, ela pelo menos se divertiria.
Não era.
Lore cambaleou para trás. Seu oponente estava de pé bem onde a luz
lançada pela luminária acima não alcançava, claramente dando boas-vindas
à escuridão. O jovem deu uns passos para frente, o suficiente para que o
fraco brilho capturasse a máscara de bronze que obscurecia seu rosto.
Caçador.
DOIS
Mas seu instinto exigia outra coisa, e o corpo obedeceu. Ela entrou em
postura de combate, sentindo gosto de sangue enquanto mordia o interior de
sua boca. Cada parte de si parecia vibrar, eletrificada por medo e fervor.
Você é uma idiota — disse Lore a si mesma. Teria que matá-lo na frente de
todas essas pessoas ou encontrar um jeito de levar a briga para fora e fazer
isso lá. Aquelas eram as únicas opções que permitiu-se considerar. Lore não
estava prestes a morrer em um tatame encharcado de bebida no porão de um
restaurante chinês que não servia nem mesmo mapo tofu.
A altura do oponente era muito superior à de Lore, de tal modo que a fez
tentar fingir que não se preocupava com isso. Ele tinha pelo menos quinze
centímetros de vantagem sobre ela, apesar de ela mesma ser alta. A blusa
cinza simples e a calça de moletom que usava eram justas demais para ele,
esticando-se sobre sua forma atlética. Cada músculo de seu corpo era
perfeitamente definido, como os daqueles homens que ela apenas vira nos
vasos antigos de seu pai. A máscara que usava era a de um homem com
expressão raivosa, como se soltasse um grito de guerra.
A Casa de Aquiles.
— Imaginei.
Castor.
Os seus traços de outrora prometiam se tornar algo parecido com o que ela
via ali, mas estavam ainda mais afiados e definidos agora que a plenitude da
juventude se esvaiu de seu rosto. Era assustador o quando sua voz estava
grave.
Mas Castor Aquileu não havia sumido. As dores da luta anterior de Lore
ainda estavam ali, latejando. O cheiro de bebida e fritura estava em todo
canto. Ela sentia cada gota de suor grudando em sua pele, correndo por seu
rosto e costas. Isso era real.
Mas Lore ainda não conseguia se mexer. Não conseguia parar de olhar para
o rosto dele.
Ele é real.
Castor estava vivo e a deixara sofrer com o luto por sete anos.
Lore passou uma das mãos enluvadas pelo rosto, tentando recuperar o foco,
mesmo quando parecia que seu corpo se dissolveria. Já era travado um
combate ali. Ele encaixara o primeiro golpe, mas esta era a pessoa que
outrora fora seu melhor amigo, e ela sabia a melhor forma de retribuir .
— Por que eu estaria? — disse Lore, com dificuldade. — Não faço ideia de
quem você é.
Não havia como tirá-lo dali sem fazer uma cena, e não havia como ela
deixá-lo sair desse porão ileso depois de tudo que aconteceu. Lore deu
meia-volta para dar o sinal a Frankie, na esperança de que ninguém pudesse
ver seu coração tentando fugir de seu peito a marteladas.
Vá embora — pensou ela, encarando Castor por cima das luvas. — Me deixe
em paz.
Ele não se importara o suficiente para tentar encontrá-la nos últimos sete
anos, então qual era sua intenção agora? Zombar dela? Tentar forçá-la a
voltar?
— Por favor, seja gentil. — Castor ergueu as mãos, olhando para fenda em
uma das luvas que pegou emprestado. — Não treino há um tempo.
E ele nunca foi atrás da amiga. Nem quando ela mais precisou dele.
Lore manteve seus passos leves, rodeando-o. Sete anos se estendiam entre
eles, como o mar vinho-escuro.
— Não tão rápido, espero — disse ele, com outro sorriso aparecendo em
seus lábios.
Seus olhos escuros capturaram a luz das lâmpadas que balançavam no teto,
e suas íris pareciam faiscar. Ele tinha um nariz longo e retilíneo; apesar de
ter
sido quebrado inúmeras vezes nos treinamentos, seu maxilar foi esculpido
em ângulos perfeitos e suas maçãs do rosto eram como lâminas.
Lore desferiu o primeiro soco. O jovem se esquivou para o lado para evitá-
lo. Era mais rápido do que ela lembrava, mas seus movimentos vacilavam.
Por mais forte que seu corpo aparentasse ser, Castor estava fora de ritmo.
Fez uma finta para a direita e lançou um soco hesitante no ombro dela.
Lore bateu com o punho no rim de Castor e, enquanto ele se curvava, sua
mão esquerda esmurrou a orelha do rapaz. Ele cambaleou até cair apoiado
em um dos joelhos, quando não conseguiu recuperar o equilíbrio.
Ela desferiu outro soco, dessa vez direcionado ao rosto, mas ele ainda tinha
reação suficiente para bloqueá-lo. O impacto reverberou pelo braço da
jovem.
— Continue brincando comigo — alertou ela. — E veja no que isso vai dar.
Castor a encarou por entre o cabelo escuro e bagunçado, que caía nos olhos,
e a pele de marfim dele estava corada. Ela o encarou de volta. Suor pingava
do queixo de Lore, e seu corpo ainda pulsava com a força da tempestade
dentro dela. As luzes balançantes dançavam nas íris escuras dele
novamente, quase de maneira hipnótica. O último resquício de humor havia
deixado o rosto dele, como se ela o tivesse arrancado de lá.
Ele se lançou para frente, passando um braço por detrás dos joelhos dela e
puxando-os para a frente. Em um momento, Lore estava em pé, no outro,
com as costas estateladas no chão, ofegando para conseguir puxar o ar. O
Levantou uma perna para chutá-lo para longe e ouviu a voz agradável de
Frankie alertar:
— Sem chutes!
Certo.
Lore abaixou a cabeça e se dirigiu direto ao peito dele. Foi como bater em
uma parede de cimento. Cada articulação de seu corpo sentiu o baque, e sua
visão estava cheia de pontinhos pretos, mas ele caiu, e ela foi junto.
Castor rolou com ela para que pudesse ficar por cima, tendo cuidado para
não esmagá-la com seu peso conforme a pressionava no tatame. Lore se
satisfez por ouvi-lo respirando com a mesma dificuldade que ela.
— Você morreu — disse ela, com pouco ar, enquanto lutava contra o corpo
dele.
— Não tenho muito tempo — disse ele. Então, ele mudou para a língua
antiga. — Preciso da sua ajuda.
O sangue de Lore gelou com aquelas palavras, ditas em uma língua que ela
tentava se forçar a esquecer.
— Algo está acontecendo — disse ele. A luta havia aquecido o corpo dele
de um jeito que quase queimava ao toque. — Não sei em quem posso
confiar.
O olhar de Castor estava fixo na escada, na figura que ela vira de relance
antes. Evander — parente de Castor e eventual parceiro de brincadeiras
deles quando eram crianças.
— Espere — disse Lore, mesmo sem saber por quê. Mas Castor já a havia
levantado de cima dele. Suas mãos se demoraram na cintura dela um
segundo a mais do que eles pareceram perceber.
— Você pode estar cansada do Ágon, mas não acho que o Ágon se cansou
de você. Tenha cuidado. — O olhar dele se tornou intenso quando se
abaixou e sussurrou em seu ouvido. — Você ainda luta como uma Erínia.
Alguém agarrou o pulso de Lore, tentando erguer seu braço no ar, mas Lore
já estava em movimento, passando por entre a multidão.
Ela trombou com alguém perto das escadas, com força o suficiente para que
ele cambaleasse para trás, contra a parede mais próxima. Lore girou no
próprio eixo com parte de um pedido de desculpas já escapando de seus
lábios, quando viu quem era.
Merda.
A pele dele era branca como osso, seus olhos escuros se arregalaram de
uma forma quase cômica quando encontraram os dela. Descolado, com o
cabelo raspado de um jeito meio hipster. Porte magro e jeans justos. Colar
feito de crina de cavalo trançada.
Miles.
Inacreditável — pensou ela. Como diabos essa noite conseguiu ficar pior?
Tinta.
Apodidraskinda.
Lore jogou o copo fora em uma lixeira ali perto e saiu dali.
TRÊS
Miles a esperava do lado de fora. Nos poucos minutos que levaram para que
Lore voltasse à rua, ele já tinha dado um jeito de ficar sem fôlego — por
andar rápido demais, por ensaiar o discurso que estava prestes a dar ou por
uma combinação das duas coisas. Ele se acalmou quando a viu saindo pela
porta, fingindo que estava só checando o celular esse tempo todo.
De todas as coisas que esperava ouvir dele, “Quer comer alguma coisa no
Martha’s?” não era uma delas.
Lore hesitou. O que ela queria mesmo era ir para casa, tomar um banho e
dormir pelos próximos seis dias, até que essa caçada nojenta chegasse mais
uma vez ao fim e o próximo ciclo de sete anos começasse. Mas Miles tinha
um efeito tranquilizante nela.
— Nada — disse ele, olhando para o céu nublado. — Vamos, antes que a
gente acabe tomando um banho. Nós dois sabemos que só você precisa
dele.
Isso, é claro, não era verdade. Miles cuidava do corpo como se fosse uma
obra de arte, deixando-o falar por ele — seu temperamento, seus interesses
e as pessoas que carregava em seu coração. Sua pele era tomada por uma
variedade de tatuagens, indo de belíssimos desenhos florais e vinhas que se
entrelaçavam no peito e rostos de arte moderna que ele mesmo desenhara a
montanhas, olhos e conjuntos de formas cujo significado apenas ele sabia.
Eles andaram pela estação de metrô Canal Street para pegar a linha A até a
125th Street. Lore estava na metade da escada quando ouviu o metrô se
aproximando e sentiu a rajada de ar que o anunciava chicotear pela estação.
Eram três e meia da manhã, mas o serviço do metrô era mais lento nas
horas fora de pico, fazendo o vagão ficar cheio. Ela segurou com o
antebraço a porta que fechava bem quando Miles passou correndo por ela.
Lore já estava abalada por ver os caçadores na cidade. Sabia que deveria
temer que Aristos Cadmou — ou seja lá quem ele havia se tornado como
deus — a encontrasse. Seria ainda mais cuidadosa agora e deixaria a cidade
mais tarde naquele dia, se afastando das lutas e dele. De todos eles.
Mas o sentimento predominante não era o de pânico. Lore sabia que poderia
se esconder, porque vinha fazendo isso com sucesso nos últimos três anos.
Em vez disso, havia uma inquietação em seu corpo da qual não conseguia
se desfazer, uma rigidez indesejável no peito toda vez que seus
pensamentos conjuravam o rosto de Castor.
— Mentira.
— Por favor, para de falar alface — disse Lore. — Você pode dar um tempo
nos contatinhos, sabe.
— Mas — disse ele — é que aquele cara na luta, e a forma como você
reagiu…
A mão de Lore apertou a alça da mochila.
— Como eu deveria agir com ele vindo até mim daquele jeito? — indagou
Lore. — Ele mereceu ter a cara destruída. Talvez assim ele pense duas
vezes antes de fazer isso com garotas.
— O cara que parecia ter sido feito no molde de cada uma das minhas
fantasias de adolescente — esclareceu Miles.
A voz de Castor era calorosa em sua mente. — Você ainda luta como uma
Erínia.
O Harlem era como uma terra desconhecida quando Lore se mudou para o
prédio de Gil na 120th Street; sua família sempre morou em Hell’s Kitchen,
e ela nunca teve motivo para ir na direção norte além da 96th Street. Mas
naquele momento quatro anos haviam se passado desde a morte de sua
família, e ela tinha passado a maior parte deles morando fora. A cidade
tinha a sensação de roupas velhas que ela outrora deu para outra pessoa.
Nada cabia. Tudo estava igual e, ainda assim, diferente.
No entanto, Lore valorizava os três anos que se seguiram, até seis meses
atrás, o derradeiro momento em que Gil faleceu — atropelado por um carro
enquanto atravessava a rua. Após isso, o primeiro instinto de Lore foi o de
fazer as malas e ir embora, apenas para descobrir que não era tão simples
assim. Gil deixara o prédio e todo o resto para ela.
Lore podia ter vendido o imóvel num piscar de olhos e ido para qualquer
lugar. Miles ficaria bem, mesmo que encontrar um lugar novo na cidade
fosse uma dor de cabeça. Mas cada vez que ela pensava seriamente a
respeito, as ruas pareciam envolvê-la. As fachadas familiares das lojas, as
crianças brincando na varanda duas casas ao lado, a Sra. Marks lavando a
calçada toda segunda às dez horas da manhã… tudo isso a acalmava. Tudo
isso represava aquela sensação de desmoronamento em seu peito, com todo
o peso do choque e do luto.
sua própria, porque, nesses momentos mais sombrios de sua vida, aquela
resiliência foi o que a salvou.
Eram quatro horas da manhã, mas Lore não estava surpresa em ver outra
pessoa se deliciando com uma refeição tão cedo na lanchonete, mesmo em
um mês tão calmo como agosto.
Lore usava esse nome há anos, mas ouvi-lo ainda a pegava desprevenida.
— Seca, pelo menos — disse Mel, por detrás do balcão. Tirou o olhar do
que contava na caixa registradora. — Os dois vão querer o de sempre para
viagem?
— Granulado de chocolate?
Levou um segundo para que Lore percebesse que ele falava com ela.
Levantou o olhar que estava focado no chão.
— Eu vou ter dor de barriga só de ver você comendo isso — disse Lore, se
recostando contra a lateral do assento revestido de vinil. Seu pulso saltou,
como se ela tivesse sido pega fazendo algo que não devia.
— O engraçado é que isso vem de alguém que come uma refeição que
alimenta três pessoas.
Bo, o Gato da Bodega, apareceu há dois anos, tomou a loja do Sr. Herrera
como seu reinado e nunca foi embora. A primeira vez que o viu, Lore o
confundiu com um rato extremamente grande e se perguntou seriamente se
não tinha subido do Mundo Inferior. Agora, sua atividade preferida para o
fim das manhãs de domingo era ficar sentada no banco em frente à loja e
compartilhar o salmão defumado de seu bagel com seu companheiro
temperamental.
Lore não tinha certeza por que se ofereceu, sabendo que provavelmente
deixaria a cidade hoje. A presença de Castor, sem contar seu aviso, deveria
tê-la feito fugir imediatamente, com ou sem suprimentos.
só não esperava por… ele. Ele, como um todo. Aqueles olhos mansos
conhecidos. Sua altura. A força de seu corpo.
— O que foi?
— Não vou cobrar ninguém que queira aprender como se proteger — disse
Lore, mantendo a voz baixa. O dono da academia na 125th Street a deixava
usar os equipamentos quando estava frio demais para correr do lado de fora
em troca de que ela desse aulas de graça, e isso era mais do que o suficiente
para ela. — E não é sobre dinheiro.
— Eles não são nojentos, eu os lavo sempre que uso. O que você está
fazendo para salvar o meio ambiente?
— Por sinal, síndica, você poderia dar uma passada lá e consertar minha
janela antes do inverno?
Lore fez uma cara feia, alisando os cabelos com uma das mãos para
controlar o frizz com que a chuva lhe presenteara.
— Ok, tem um pouco a ver com dinheiro — admitiu ela —, mas com outras
coisas também.
A pena que cai de uma asa não está perdida — disse Gil a ela —, está livre.
O colar a lembrava todos os dias disso, do que ela havia ganhado quando se
ofereceu para trabalhar com Gil. Ela foi contratada para tomar conta dele
depois que ele levou um tombo feio e ficou claro que não poderia mais ficar
morando sozinho, mas Gil fizera muito mais por ela. Foi um amigo, um
mentor e um lembrete de que nem todos os homens são tão duros e tão
cruéis quanto aqueles que a rodeavam enquanto crescia.
ergueu a mão. — Tudo o que quero dizer é que estou aqui e sempre quero
falar sobre ele.
— Bom, eu não — disse Lore. Gil disse-lhe que algumas vezes é preciso
afastar as coisas ruins até que elas a deixem de vez. Um dia a dor da perda
não doerá tanto.
— Você não precisa gostar de algo que precisa fazer — apontou Miles.
— Você não precisa fazer algo de que não gosta — rebateu Lore.
— Eu só acho que… o que quer que tenha acontecido com você, é preciso
começar a pensar no futuro, senão o passado sempre vai impedir que você
siga em frente.
— Saí com meu amigo da faculdade ontem à noite e ele começou a contar
sobre esse ringue de luta superlouco e supersecreto, e mencionou uma
garota com uma cicatriz que ia do canto externo do olho até o queixo, e eu
disse
Sem pensar, ela esfregou aquele lado do rosto no ombro. A cicatriz era fina,
mas não desapareceu com o tempo.
— Seu amigo não é o cara que eu derrotei, certo? — perguntou ela. — Só
para ter certeza.
Seu telefone deu um toque estridente, fazendo com que os dois dessem um
pulo.
— Ugh. Está bem. Você checou todos os cabos, certo? — perguntou ele. —
Miles lançou um olhar de desculpas para Lore, mas ela não se importava
nem um pouco com aquilo. Na verdade, era legal. Mesmo que não fosse
nada demais, dava-lhe a oportunidade de imaginá-lo crescendo como um
bebê gótico no meio das palmeiras e dos tons pastéis e brilhantes da
Flórida. Ele era filho único, e às vezes, como agora, dava realmente para
notar isso.
— Obrigado, Michael.
Miles, exasperado, espalmou a mão no rosto, tanto pela dúvida dela quanto
por tê-lo chamado pelo nome de batismo; apenas sua família o chamava
assim; disse que a amava, em coreano e em inglês, e desligou.
— Ela me fez mudar o toque quando fui visitá-la no mês passado — disse
Miles. — Ela achou que eu não atendia porque o outro era muito baixo, e
agora eu me sinto culpado de mudar o toque de novo.
Lore sorriu, mesmo enquanto algo se retorcia no fundo de seu peito. Você
nunca sente falta das ligações até que elas parem de chegar.
Ela quer que você se lembre dela, pensou Lore. Sua mente começou a
vagar, de repente livre. O mundo ao redor tornou-se envolto em uma aura
de escuridão até que ela só conseguisse ver o rosto de Castor e a forma
como as sombras o acariciaram.
Por Gil.
Eles passaram de volta à luz fraca da rua, carregando seus cafés da manhã
com firmeza. A tempestade se transformara em um fino manto de neblina.
A cidade de Nova York era um dos poucos lugares no mundo que parecia
mais sujo depois de chover, mas Lore amava isso.
Ele foi se aproximando da parede da Martin’s Deli, o lugar que baniu Lore
por reclamar dos seus bagels vergonhosamente amanhecidos, e passou os
dedos por uma mancha de alguma substância escura. Lore o puxou para trás
apavorada.
— Ok, acho que você precisa de um lembrete das regras de Nova York: um,
não pegue nada que tentem dar a você na Times Square; dois, não toque em
substâncias misteriosas no chão e paredes…
Miles se projetou para a frente, levando a cabeça de um lado para outro para
procurar a pessoa que estava sangrando. Lore o agarrou pelas costas da
camisa com uma das mãos e, depois de entregar-lhe sua comida e café, tirou
um canivete de seu chaveiro com a outra.
Era como seguir o rastro de uma presa ferida. A vítima pareceu ter
cambaleado, se movendo de um ponto de apoio para outro — um poste de
luz, um corrimão, um carro estacionado. Com uma crescente sensação de
receio, Lore percebeu que o rastro estava indo na direção de sua casa.
Lore estava surpresa por ela ter conseguido chegar tão longe.
Seus pensamentos eram todos lógicos, mas Lore sentia como se estivesse se
movendo por um sonho.
— Dê-me assistência.
Lore deu um pulo. Meio morta ou não, cada uma de suas palavras soavam
como uma espada atingindo um escudo. Elas vibraram pelos nervos de Lore
até que cada pelo de seu corpo arrepiasse. Havia tanto tempo desde que
Lore ouvira alguém falar uma forma tão pura da língua antiga que ela
precisou de um momento para traduzir.
QUATRO
Lore arrancou o celular das mãos dele, finalizando a ligação antes que ela se
completasse.
— Preciso que faça uma coisa — disse Lore a ele enquanto se ajoelhava ao
lado de Atena. — Preciso que vá até a mercearia do Sr. Herrera e consiga
máximo de garrafas de alvejante que ele tiver… espere. De preferência,
aquele à base de água oxigenada, mas, se só tiver o comum, traga ele
mesmo.
— De água oxigenada, o máximo que ele tiver. Peça para pôr na minha
conta.
Miles parecia atordoado demais para fazer qualquer coisa a não ser o que
ela pedira. Ele pulou sobre o sangue, teve ânsia de vômito pela última vez,
antes de bater a porta atrás dele.
O fígado e o rim haviam sido perfurados. Lore conhecia esse serviço; foi
um corte de perito, feito por uma léaina — uma das jovens mulheres
enviadas pelas linhagens para caçar deuses e trazer a presa ferida para seus
líderes a matarem.
— Acorde. Acorde!
Lore fez a única coisa que conseguia pensar. Deu um tapa no rosto da
deusa.
Você só consegue se convencer de que está diante de uma presa até que essa
presa se vire para você e lhe mostre os dentes.
Até agora.
Uma estudou a outra. Se Atena estava tentando medir o valor de Lore, sua
força, a jovem teria sido a primeira a dizê-la para não perder tempo.
— Estou fora. — Havia muitas palavras bonitas que Lore poderia ter usado
para bajular a deusa. Para se humilhar e apelar à vaidade e ao orgulho
exaustivos da espécie dela. Lore não se deu ao trabalho de se lembrar de
nenhuma delas. — E não vou deixar você ou qualquer outra pessoa me
puxar de volta.
A deusa a encarou, e sua boca, em um ângulo sério, não relaxou uma única
vez sequer. Lore não esperava outra coisa. Não haveria a opção de ceder;
como uma espada, Atena se manteria firme ou se quebraria.
— Eu sei que você fala esse idioma — disse Lore, recusando-se a dar à
deusa o que ela claramente queria. A língua antiga era uma mistura de
muitos dialetos milenares que, por fim, se tornaram o grego moderno, mas a
versão de Atena era de uma qualidade épica.
— Seja lá qual for o motivo de ter vindo aqui, não há nada a encontrar —
continuou Lore. — Se isso for um truque e você estiver aqui por vingança,
está atrasada demais. Todos que carregavam meu nome estão mortos. Sou a
última dos Perseídeos. A Casa de Perseu está acabada.
— Foi você quem veio até mim — disse Lore, orgulhosa por sua voz soar
tão estável. — Diga-me o que quer e seja breve. Sei que é um conceito
difícil para você, mas seu tempo está acabando e meus planos para esta
manhã não incluem essa esquisita disputa de quem pisca primeiro com uma
divindade.
Atena olhou para ela novamente enquanto falava, e sua voz agora estava
mais fraca.
— Minha irmã.
— Tipo, Ártemis?
A deusa a fuzilou com os olhos. Sua outra irmã, Afrodite, havia sido morta
por um caçador um século antes, e um novo deus com seus poderes nasceu.
Agora… preciso… de… proteção. Até que eu… me cure. Una seu
destino…
ao meu.
— Por que diabos eu faria isso — disse Lore — quando eu posso ficar aqui
sentada vendo você morrer?
— Não diga uma palavra a ele quando ele entrar — disse Lore. — Finja que
está dormindo.
— Beleza, eu proíbo que você morra agora — disse Lore, com a pulsação
saltando. — Tenho que limpar a bagunça que você fez antes que os cães
farejadores encontrem seu rastro e guiem os caçadores até aqui.
Merda — pensou Lore, com tristeza. A deusa podia sangrar, podia ficar
inconsciente, mas nunca se esqueceria desse detalhe crucial se não estivesse
no aperto.
— Vou limpar tudo antes que alguém veja o sangue e chame a polícia —
disse Lore. — E você vai subir e ir para a cama. Miles fitou a forma fraca
de Atena.
— Me escute — disse Lore, com a voz firme. Miles recuou, mas ela não
conseguia sentir pena, não por isso. Ele não fazia ideia de para onde havia
sido arrastado. — Vá lá para cima. Não abra a porta para ninguém. Se vir
alguém suspeito do lado de fora, me ligue.
Ela foi embora antes que ele pudesse fazer outra reclamação ou, pior, outra
pergunta. Lore demarcou os degraus da entrada, fazendo a curva no portão
que dava para o apartamento no subsolo, que era usado como para guardar
coisas. Quase não havia mais tempo. O sol despertava por trás da cortina de
nuvens, assim como os nova-iorquinos.
Lore seguiu o caminho que Atena fizera, limpando e esfregando até que a
chuva lavasse todas as manchas visíveis e tudo escorresse pelo esgoto.
Em vez de entrar pela porta da frente, Lore entrou pelo porão. O perfume da
colônia de sândalo de Gil estava por todos os cantos, junto com o odor
tênue de poeira e mofo. Ao procurar pelas caixas que ela deixou lá
embaixo, Lore jogou para o lado uma caixa contendo a vasta coleção de
gravatas borboletas com estampas de Natal e encontrou um par de shorts e
uma camiseta na caixa logo abaixo.
conforme olhava em volta, e ela quase conseguiu rir. Miles limpou o sangue
do corredor, apagou as luzes da sala e deixou um copo de água e aspirina ao
lado de Atena.
Que amigo prestativo — pensou Lore, com uma onda de afeto por ele.
Olhou para a esquerda. Miles não apenas havia trancado a porta; mas
reforçado a maçaneta com as costas de uma cadeira — como se aquilo fosse
impedir os caçadores de colocar explosivos suficientes para destruir a frente
da casa.
—, mas você já sabe disso. Por isso que veio até aqui, não foi?
— Então, o que eu ganho com isso, exatamente? — disse Lore, dando outro
passo para mais perto. — Entendo que essa é uma experiência nova para
você, mas, mesmo que se cure mais rápido que um mortal normal, não está
nada bem. Então, por que eu vincularia minha vida a uma deusa que pode
não durar algumas horas, tampouco alguns dias?
A garganta de Lore se fechou até que ela quase não pudesse mais falar. —
Atena a olhou de novo, dessa vez com uma expressão de quem sabe que
venceu.
CINCO
Lore respirou fundo e pressionou uma das mãos contra os olhos, com força
suficiente para que a luz e as cores dançassem sob suas pálpebras. Isso
distraiu sua mente do caminho sombrio que começara a traçar novamente,
mas só por um momento.
Ela não sabia como havia sido capaz de manter a voz tão calma enquanto
dizia:
— Isso não importa. Foi ele quem deu a ordem — disse Lore. — Ele era o
líder da linhagem e depois se tornou o deus deles. Todos eles são
responsáveis, cada homem, mulher e criança que se ajoelhou perante ele,
mas somente ele tem o poder de pôr tudo em ação.
— Por que você… não os vinga? — ofegou Atena. — Todos esses anos…
você não fez nada… Não… reconhece sua moira… Nunca buscou por…
Lore afundou no chão, com as pernas cruzadas sob ela e as abraçou, lutando
contra a costumeira pressão que se expandia em seu peito. Sua moira — seu
quinhão na vida, seu destino.
— Essas palavras não significam mais nada para mim — disse Lore, com a
voz rouca. Mas ouvi-las foi como ter cicatrizes sendo abertas.
Poinê. Vingança.
Aedos. Vergonha.
Nos anos que se passaram, ela havia matado para evitar que a matassem.
Viajou a pé, de barco, de avião, só para acabar voltando para a cidade que a
criou. Escapou do labirinto de juramentos tramado como uma armadilha
para prendê-la até o dia que o Ágon a convidaria a sacrificar seu último
suspiro.
foi fraca… nunca foi impotente… então lhe pergunto… por que não fez
nada… para vingar sua família?
— Não é isso… Você não entenderia. A única coisa real neste mundo é o
que você pode fazer pelos outros. Como pode cuidar deles.
Você não sabe querer nada além disso e, por isso, não acredita em mim
quando digo que não quero reivindicar o poder dele. Não quero fazer parte
alguma desse jogo doentio.
— Ser livre.
— Não — disse Atena, fazendo esforço para falar. — Não é isso. O que
você… nega a si mesma?
Uma visão floresceu em sua mente, intensa e pura, mas Lore balançou a
cabeça negativamente.
— Minta para… si mesma… mas não para mim — disse Atena. — Você
sabe… que nunca será… livre enquanto as sombras de sua família… sofrem
e vagam por aí. Incapazes de descansar enquanto ele viver.
— Você nega sua herança… Você nega sua honra… Você nega seus
ancestrais e seus deuses. Mas isto, você não pode negar — disse Atena. —
Lore havia negado isso por anos; forçado a verdade para um canto escuro
dentro de si. Tudo em prol de ser bondosa, de merecer a nova vida que lhe
foi dada. Ela não estava envergonhada do quanto queria aquilo ou da
frequência em que sonhava com a morte dele, mas sim do quão ingrata isso
a tornava por causa da segunda chance que lhe foi concedida ao trabalhar
para Gil.
— Mas não posso fazer isso — continuou Lore, com a garganta doendo. —
Mesmo que pudesse chegar perto o suficiente para tentar matar Aristos, isso
significaria reivindicar seu poder. Não quero ser uma deusa. Eu só quero
viver. Quero saber que a minha família está… em paz.
— Matarei o falso Ares em seu nome — disse Atena, lutando para respirar.
Isso, sim, era algo. Além disso, não apenas destruiria Aristos Cadmou. Um
deus não podia absorver o poder de outro deus. Atena efetivamente
removeria o perigoso poder de Ares do Ágon — e do mundo mortal —
totalmente.
E então assentiu.
— Você sabe o que isso significa, não sabe? O que o juramento traz
consigo?
— Sei.
Lore estaria concordando em proteger Atena com a vida, em lhe dar abrigo,
e teria que torcer para que a deusa não morresse desse ferimento ou de
qualquer outro. Era um risco que teria que correr. Um juramento era, afinal
de contas, uma maldição posta em si mesma — ela seria condenada se
falhasse e condenada se fosse bem-sucedida. Mas nunca teria uma
oportunidade como esta novamente.
Lore tentou se lembrar das palavras que seu pai e sua mãe sempre
costumavam dizer na hora de fazer um juramento, mas não foi capaz de
invocar o nome de nenhum deus.
— Vou ajudá-la a sobreviver a esta semana, e você destruirá o deus uma vez
conhecido como Aristos Cadmou, o inimigo de meu sangue — disse Lore
silenciosamente. Ela segurou a mão gelada da deusa. — Se este é o acordo,
então eu prometo pelos poderes abaixo que honrarei meu juramento ou
enfrentarei a ira dos céus.
A deusa assentiu.
Um calor envolveu as mãos unidas delas, seguido por um arrepio nos sulcos
da coluna de Lore, passando como a ponta de uma faca. Isso era perfeito —
o poder de Atena vinha apenas na forma de aço e dor.
— Cauterize.
Miles — pensou ela, distante. Precisava checar se Miles estava bem quando
terminasse.
Miles se sentou na escada, com o olhar fixo no que conseguia ver da sala
por entre o corrimão. Não parecia restar um pingo de cor em seu rosto, e
Lore sabia, mesmo antes de ele olhar na direção dela e para a faca em suas
mãos, que ele ouvira tudo.
— Eu acho — disse ele finalmente, com a voz rouca — que é melhor você
me contar o que diabos está acontecendo.
SEIS
terminar de explicar por alto para Miles o que era o Ágon, falar dos nove
deuses para os quais o Ágon havia sido criado como forma de punição —
incluindo aquela cujo ferimento ela havia cauterizado na sala — e das nove
linhagens descendentes dos heróis antigos escolhidos para caçar os deuses.
Ela destilou mais de mil anos de história em meros minutos, se sentindo
mais e mais maluca enquanto o rosto dele permanecia com uma expressão
cuidadosamente neutra.
Não era como se Lore pudesse culpá-lo; ouvir a si mesmo dizer aquelas
palavras — Durante sete dias, a cada sete anos, os deuses andarão sobre a
terra como mortais. Caso consiga matar um deles, você se tornará um novo
deus e lhe tomará o poder e a imortalidade, mas também será caçado no
próximo Ágon — a deixou com um nó no estômago, não apenas por ter
sido ensinada desde nova a nunca revelar seu mundo para estranhos.
falharam.
Como uma piada, os caçadores chamavam seus chás de néktar, a bebida dos
deuses. Usavam tomilho — a erva da coragem —, gengibre, limão e mel
para se fortificarem durante os treinos e o Ágon.
Mas ambas as canecas estavam frias, intocadas onde ela as havia deixado,
sobre a mesa.
— Tipo… — disse ele, alisando o cabelo com a mão. Seu olhar estava fixo
na mesa. — Seu nome nem é Lauren.
— Você entende por que eu não podia usar o meu nome real, não entende?
— perguntou ela. — Não era apenas para ficar oculta. Lauren Pertho era o
nome falso nos documentos e no passaporte que a linhagem da mãe de Lore
havia falsificado para tirá-la do país após o assassinato de sua família. Eram
os únicos documentos que ela tinha.
Ultimamente tem sido aqui, mas também costumam dar foco em cidades
em ilhas, como Londres e Tóquio, porque fica mais difícil para os deuses
fugirem.
— Pensei que Hércules… Héracles? Pensei que tinha sido ele quem montou
Pégaso — disse Miles. — Você está dizendo que o meu desenho favorito
mentiu para mim?
Lore suspirou.
Com aquela explicação, a repulsa de Lore aumentou até que ela pudesse
sentir o sabor amargo na boca. Ela havia um dia acreditado naquilo também
Até hoje?
— Beleza, mas por que essa Poseidona representa a morte da sua… casa?
Miles suspirou.
Mas somente aqueles que fazem parte da linhagem que carrega o nome da
casa podem usar seus respectivos presentes. Os Cadmídeos podem ter
roubado a égide, mas nenhum deles conseguia usá-la. E a verdadeira razão
pelo qual seu tataravô sobreviveu foi ainda mais sinistra do que ela havia
contado. Lore achou melhor poupá-lo, da mesma forma que ela havia um
dia sido poupada: a égide desapareceria quando o último dos Perseídeos
morresse.
— E irmãs.
Miles ficou atônito. Lore havia contado a ele e Gil apenas que sua família
havia morrido e que ela havia sido levada contra a sua vontade para ser
criada por um membro da família da mãe. Ambas as informações estavam
corretas, de certa forma.
Lore se assustou com o som baixo da voz de Atena. Miles, mais do que
isso. Pulou da cadeira, derrubando-a no chão, e foi aos tropeços até o balcão
da cozinha, com a mão no peito.
Em alguns minutos, Lore serviu três pratos de ovos mexidos com bacon na
mesa e três copos de água. Ela e Miles assistiam, ambos segurando seus
Na opinião de Lore, comida de graça era mais saborosa, mas estava claro
que a deusa não pensava assim. Ela deu uma mordiscada para provar a
comida e todo seu corpo de 1,80m estremeceu.
Mesmo tendo sido enganado por anos, Miles, sempre leal, deu uma grande
mordida e declarou:
— Se não quiser comer, não come — disse Lore para Atena, friamente.
intolerável.
Miles a fitou, surpreso, mas, dessa vez, guardou os pensamentos para si.
O olhar que Atena lançou ao jovem teria incinerado todo o quarteirão se ela
estivesse em seus plenos poderes.
— Seu escudo?
Carreguei o escudo de meu pai. Foi dado por ele aos caçadores há séculos,
junto com muitas de nossas armas e bens divinos. Eu não o vi desde então
nem poderia usá-lo, se assim eu desejasse. A não ser que esteja em minhas
mãos até o último dos sete dias, quando recupero minha forma imortal.
— Estou cansada de mentir para ele — disse Lore, lutando para se manter
calma. — Sei que esse é um conceito estranho para você. Me avise se
precisar que as definições de amigos sejam atualizadas. Acho que Ártemis
foi a última amiga que você teve, até ela te apunhalar.
— Não acredito que estou prestes a dizer isso, mas tirando a punhalada,
que, uau, me deixou feliz pela primeira vez por não ter uma irmã — disse
Miles, parecendo um pouco aflito —, Ártemis é a única original que sobrou
no Ágon?
Lore a ignorou.
Uma pontada de curiosidade pura passou por Lore antes que ela pudesse
suprimi-la. Juntou as mãos bem apertadas debaixo da mesa até que o
sentimento indesejado passasse.
— Apolo supostamente foi morto no último Ágon, mas ninguém
testemunhou isso — disse Lore. — São apenas rumores, que podem muito
bem terem vindo de uma linhagem com intenção de despistar as outras para
que somente ela soubesse caçá-lo no ciclo seguinte. Se ele está morto, a
casa que está com o novo Apolo, qualquer que seja ela, mantém sua
identidade em segredo. Pessoalmente, eu acho que é alguém da Casa de
Teseu. Eles fizeram investimentos consideráveis em energia solar no ano
passado.
Lore já havia explicado a Miles como um novo deus pode vir a beneficiar a
sua família financeiramente se intrometendo nos eventos mundiais, para
promover os próprios interesses. O novo Afrodite, por exemplo, conduziu a
Casa de Odisseu a projetos extremamente bem-sucedidos em Hollywood.
Um novo Ares, incluindo Aristos Cadmou, poderia inflamar conflitos
internacionais para dar apoio aos investimentos da sua linhagem na
indústria armamentista, e um novo Dionísio poderia inaugurar uma
megaigreja ou uma
— Você vai para o seu estágio — disse Lore. — E vai encontrar um amigo
com quem possa ficar até o próximo domingo.
— A lógica — disse Lore — era fazer você entender que isso tudo é muito
perigoso.
— Se é tão perigoso, então eu não vou abandonar essa casa nem você —
disse ele. — Vou mandar um e-mail para meu chefe e falar que estou com
uma infecção de garganta. Mas não vou embora, e você não pode me
obrigar a ir.
— Este mortal não sabe nem o combate com faca básico — disse Lore, se
levantando para juntar os pratos vazios. — Então, se você for derrubada
antes dele, boa sorte.
Lore se voltou novamente para Miles. — Não sei por quanto tempo esta
casa estará segura. Tudo o que fiz foi confundir os cães farejadores que
possam ter rastreado o cheiro dela. Mas isso pode não ser suficiente.
— Não serei uma prisioneira nesta casa — disse Atena. — Usarei meu
poder para disfarçar minha presença, se necessário. Aceito permanecer aqui
enquanto esta casca mortal recupera as forças. Entretanto, para completar
nosso juramento, preciso deixar essas paredes. E você, Melora Perseus,
sabe menos do que acredita saber; não sabe nem o que o falso Ares passou
esses últimos sete anos procurando.
— Esse… poema que você tanto gosta, que recita como se fosse um fato,
ou está incompleto, ou ele procura por uma versão distinta. Versão esta que
conta como o Ágon termina e como o vencedor reclamará um poder
incomensurável.
Não havia para onde fugir, e nada que as suas mãos pudessem segurar a não
ser seu outro braço.
— O quê?!
Tenho certeza de que não preciso alertá-la sobre toda a sorte de ruína que
ele trará para este mundo se for capaz de encontrá-la. Precisamos agir com
celeridade. Se localizarmos esse fragmento ou… essa nova iteração… isso
nos colocará diretamente em seu caminho, e eu o liquidarei.
— Você não vai conseguir matar ninguém nesse estado — disse Lore à
deusa. — Provavelmente está precisando de uma transfusão de sangue e
algum tipo de antibiótico, no mínimo.
perguntou Miles.
Castor havia sido treinado como curandeiro e teria acesso aos suprimentos
da sua linhagem — remédios, sangue e tudo aquilo que Lore nunca seria
capaz de comprar na rua. Ela estava mais que disposta a engolir boa parte
de seu orgulho para tentar encontrá-lo se isso significasse a morte de Aristos
Cadmou. Mas ela sentira raiva, e ficou meio irracional quando Castor foi
até ela. Embora o amigo que ela um dia conheceu nunca fora do tipo que
guarda rancor, a jovem não conhecia nem um pouco esse novo Castor.
Apodidraskinda.
— Está aqui — disse Atena. — Estou certa disso, parece que o falso Ares
ainda está aqui também. Independentemente de estar guardado em um cofre
ou na memória de alguém, o encontraremos nesta cidade.
Lore assentiu.
— Sua irmã tentar terminar o trabalho que começou será uma preocupação
para nós?
— Ártemis apenas me feriu para que ela própria pudesse fugir dos
caçadores da linhagem de Cadmo que nos caçaram durante o Despertar —
disse Atena. — Nossa aliança pode ter chegado ao fim, mas ela tem
outras…
A deusa retirou uma mecha de cabelo que estava grudada na bochecha com
sangue e assentiu. Ansiosa para selar a paz depois de deixar os dois, Lore
preparou a banheira e adicionou sais e óleos de banho. Deixou curativos
limpos próximos à pia.
— Vou procurar uma muda de roupa para você — disse Lore à Atena
enquanto saía do cômodo apertado e a deusa entrava. — Preciso te alertar
que pode ser que não esteja de acordo com o seu padrão.
Atena olhou para trás, e seus olhos brilhavam.
— Vou ter que sair por um tempinho — disse Lore, em voz baixa —, para
encontrar um curandeiro para você. Miles vai ficar seguro aqui, porque eu
não sei o que eu faria se algo acontecesse com ele.
— Há uma parte da nossa história que você pode ter interpretado errado —
disse Atena. — Não fomos punidos pelas vidas perdidas, mas por interferir
nas terras de outros deuses, o que ameaçou a paz da nossa própria terra; o
mundo além do conhecido pelos mortais.
— Por que você não foi embora? — sussurrou ele. — Você podia ter ido
embora semana passada. Eu teria ajudado.
— Você não pode lutar com caçadores, Miles. Eles são treinados para matar
deuses e qualquer um que fique no caminho. Eu nem mesmo encontraria
seu corpo.
— Não vou lutar com eles — disse Miles. — Vou me esconder no porão e
ligar para a polícia, como uma pessoa normal.
— Você pode fazer isso? — perguntou ela, passando o colar para ele. —
Não tenho uma corrente para trocar e não quero correr o risco de perder ele
usando uma linha.
— Obrigada — disse Lore. Ela tinha poucas coisas que estimava. Tudo que
tinha em sua vida antiga se perdera.
O medo inicial de contar tudo para Miles já havia sido substituído por um
exausto alívio. Uma pequena parte de si era até mesmo grata pelo fato de
ela ter tido a opção de decidir como contar a história.
— Não faria sentido para você — disse Lore. Não faria sentido para
ninguém que tivesse sido criado fora do mundo dela. Às vezes, nem mesmo
para ela fazia sentido.
O toque agudo do celular de Miles fez com que os dois dessem um pulo.
SETE
Agora, Lore sabia que tinha que ter medo — não apenas da chance de
queda, mas também do que encontraria do lado de dentro daquelas paredes.
Ela fez força e subiu mais quatro tijolos, passando pelas varandas e janelas
do terceiro andar. Antes que pudesse prosseguir para o andar, seus ouvidos
captaram algo. Música distante, acompanhada pelo tilintar de cristais e o
fraco burburinho de vozes animadas.
Lore ajustou seu peso, olhando para cima, depois para baixo, antes de
inclinar o corpo para a esquerda para espreitar por entre os vidros filmados
das portas da varanda. Alguém havia deixado a porta aberta.
Uma festa.
É melhor que você esteja aqui, Cas — pensou Lore, incomodada, apesar de
se surpreender por também sentir uma pontada de entusiasmo.
Antes que pudesse se permitir pensar com calma na tamanha estupidez que
era essa invasão, Lore se arrastou rapidamente pelo parapeito até a varanda.
Você não tem tempo para isso. Ande logo — pensou ela.
Os painéis de vidro nas portas eram à prova de balas, mas o alarme preso a
eles representava um problema maior. Ou teria representado, se o Castor de
onze anos fosse só um tantinho mais resistente à estratégia diabólica de
Lore de dez anos: apenas entrar em apostas que sabia que iria ganhar.
Havia um único tijolo solto bem acima da soleira da porta. Lore usou seu
canivete para soltá-lo com mais facilidade e agradeceu em silêncio ao
caçador apaixonado — aquele que Castor observara usar esse truque para
ver o homem com o qual havia sido proibido de se casar.
Lore pegou o ímã da ONG Kars4Kids que estava no bolso de seu short
jeans, desenrolando o cadarço que prendeu nele com fita. Cuidadosamente,
baixou o ímã pela abertura na parede e usou o cadarço para balançá-lo de
um lado para o outro até ouvir o denunciante clique do objeto magnético
beijando o sensor do alarme.
Por favor, funcione — pensou ela. — Por favor, que pelo menos essa parte
seja fácil.
Quando teve certeza de que nenhum alarme silencioso havia sido acionado,
Lore deslizou para dentro e fechou a porta cuidadosamente. Recebeu de
bom
Como ela já esperava, o cômodo ainda era usado para armazenamento. Era
um labirinto de caixas e baús velhos, tudo com um cheiro de umidade,
como se houvessem sobrevivido por um triz a uma inundação no porão.
Lore foi tateando-os até encontrar um conjunto de mantos pretos mofados
de caçador.
Ela vestiu um deles por cima do short jeans rasgado e da regata preta
encharcada de suor.
A única coisa que ela não havia sido capaz de achar foi algum tipo de arma,
cortante ou não.
OITO
— Eu… — ela começou a dizer, falando a primeira coisa que veio à mente.
Acompanhantes?
Visto que a desgraça vinha sendo uma companheira constante de Lore pelos
últimos sete anos, ela tinha certeza de que seus ancestrais não tinham como
odiá-la mais do que já odiavam.
A mulher gesticulou para as meninas, e todas elas, cada uma das nove,
ficaram em silêncio e imóveis, e seus pequenos corpos se enrijeceram com
o que Lore sabia ser obediência polida pelo medo.
Ele circulou pelas meninas com um olhar de desgosto. Uma delas arriscou
lançar um olhar na direção dele. O dorso da mão do homem chicoteou na
têmpora dela.
A raiva cresceu dentro de Lore. Ela deu um passo na direção deles, mas
parou quando a menina se endireitou novamente, com o rosto
cuidadosamente impassível conforme erguia o queixo.
Você precisa encontrar Castor — lembrou Lore a si mesma. — Não se
entregue tão facilmente.
Mas as meninas… essas crianças… ela não podia suportar. Estar dentro da
Casa Tétis de novo a deixara vulnerável por um momento, mas agora Lore
se lembrava de seu ódio — dos caçadores, dessa vida. Isso a atingiu como
um raio.
A visão da menina se curvando para aquele porco com um respeito que ele
não merecia, na esperança de nada além de agradá-lo, fez com que ela
quisesse gritar.
Philip não ligava para aquelas crianças, assim como não ligou para Castor.
— Que assim seja. Lembre-se de que não é apenas a minha decepção que
você deve temer.
— Por que estão parados aí como idiotas preguiçosos, querem levar uma
surra?
Nem Lore nem o outro caçador precisaram de nenhum outro incentivo para
fugir escada abaixo.
Podem ter se passado sete anos desde a última vez que pisou ali, mas sua
aparência não mudou tanto assim com a idade, e qualquer um que
conhecesse
a mãe de Lore a veria agora no rosto dela. Ela tinha o mesmo cabelo
indisciplinado e grosso, a pele morena e os olhos castanhos.
Mas talvez não a reconhecessem. Sua mãe estava morta, e, ainda que
ressentimentos pudessem ser alimentados por si mesmos ao longo dos
séculos, memórias desapareciam com o passar dos anos. Não havia
ninguém ali que se importasse em se lembrar de Helena Perseus.
Lore arrastou a cortina de seda para o lado, apenas para ser interrompida.
Conforme Lore dava outro passo para a frente, a ilusão se revelou. Imagens
holográficas fantasmagóricas estavam sendo projetadas nos espelhos
transparentes que cobriam as paredes e o teto. Colunas reais e falsas se
erguiam em direção à imagem digital de um teto abobadado, decorado com
cores ousadas e aparentemente enfeitadas de dourado e prata.
Julgando pelo que já havia visto, Lore tinha a impressão de que a primeira
opção estava correta.
Sentindo-se mais firme após colocar comida no estômago, Lore voltou sua
total atenção para o enorme salão e adentrou mais fundo nas sombras,
caminhando pela extensão da parede mais à direita. As imagens projetadas
não pareciam nada mais do que distorções, agora que ela olhava de perto.
Estar de volta ali, naquele lugar, no meio daquelas pessoas… era ruim para
ela. Lore queria ir embora, mesmo que não fosse. Queria desviar o olhar,
mesmo que não conseguisse.
Esse mundo era como as projeções distorcidas ao seu redor. Templos uma
vez foram locais sagrados de adoração, não de excessos autoindulgentes. As
linhagens foram despidas das verdadeiras crenças de seus rituais há séculos;
sua única religião era a brutalidade febril e o materialismo. Somente o
próprio Zeus recebia qualquer agradecimento, e mesmo assim os sacrifícios
eram gestos rasos nascidos da superstição, não da devoção.
Como gerente de longa data da Casa Tétis, ele morava no edifício e seria o
responsável por organizar tal festa.
Você já perdeu muito tempo — pensou Lore, indo em direção à entrada. Ela
precisava usar a distração da celebração para procurá-lo nos quartos do
andar de cima, e, se fracassasse nisso, roubaria qualquer suprimento médico
que pudesse encontrar e o levaria de volta para Atena.
Mas Lore não dera nem um passo quando um silêncio caiu sobre a Casa de
Aquiles. Os caçadores se inclinaram em direção à entrada, se afastando do
caminho iluminado até o altar. Os olhares famintos nos rostos ao redor e os
olhos brilhando febris com o vinho e a excitação embrulharam o estômago
dela.
Isso tudo foi feito para parecer com o Grande Templo na ilha de Delos.
Estavam todos errados, até mesmo Lore. O novo Apolo não residia na Casa
de Teseu, mas sim na Casa de Aquiles.
Elas também formaram uma procissão até a piscina. Uma a uma, sentaram-
se na extensão da borda e colocaram suas velas na água. As chamas
flutuaram junto com as flores brancas.
— estava chegando.
Lore soube que devia prestar atenção na cena antes mesmo de ouvir os
fracos suspiros. Um calor repentino percorreu sua pele, um poder
incendiário
Ele desceu as escadas como o primeiro raio de sol adentra pela janela de
manhã. Sua constituição era imaculada — alto, cheio de músculos e com
um rosto que ecoava na região mais doce da memória de Lore.
Castor.
Abriu os olhos e deu de cara com o rosto do pai pairando sobre o dela.
— Chrysaphenia mou — sussurrou ele, com seu típico afeto. Minha áurea.
Seu rosto era terno. — Ainda quer treinar? Encontrei um lugar para você.
Lore olhou para Olympia, aninhada ao seu lado como um filhote de gato na
caminha, em seguida olhou de volta para o pai. Estava repentinamente
desperta. Todo seu corpo parecia estar prestes a explodir.
— O agogê?
O pai assentiu.
— Os Aquilídeos vão te aceitar no treinamento deles, mas você vai ter que
começar hoje.
Lore jogou as cobertas para o lado, pulando da cama tão rápido que fez seu
pai rir. Ele se curvou sobre ela, dando um beijo em sua cabeça. Ela
retribuiu.
Lore fingiu lacrar os lábios, mas não conseguia parar de sorrir. Ela quicava
sobre os pés.
— Lá não é como os lugares dos seus livros — disse ele, alisando o cabelo
dela com a mão. — Não quero ver você desapontada quando chegar lá e
perceber que não é nenhuma Esparta.
— Hoje? — disse ela, apenas para certificar-se de que não estava sonhando.
— De verdade?
Lore correu até a pequena cômoda que compartilhava com sua irmã,
arrancando a gaveta do topo. As fotos em cima dela chacoalharam, fazendo
com que Olympia se revirasse na cama. Lore olhou na direção do tufo de
cabelo escuro misturado ao lençol e se forçou a pegar silenciosamente uma
blusa, um suéter e um par de jeans, e então fechou a gaveta. Foi até a cama
novamente e puxou as cobertas sobre Pia, se certificando de que a boneca,
Coelhinha, estava ao alcance da menina.
Três meses antes, seus pais sentaram-se com ela à pequena mesa da cozinha
e explicaram que talvez ela não pudesse começar o treinamento com as
outras crianças caçadoras de sua idade.
— Não é o momento disso — disse sua mãe. — Eu sei que é chato, mas
também sei que você vai entender que não somos como as outras linhagens.
A minha… a Casa de Odisseu não vai abrir as portas para nós depois que
renunciei ao meu nome, e mesmo assim a escola deles fica do outro lado do
oceano. Seu pai e eu vamos ter que cuidar de seu treinamento. Quando o
verão chegar, talvez eu consiga trabalhar menos horas, e a Sra. Osbourne
poderá cuidar das suas irmãs…
Ela caiu em um sono profundo, e ali seu destino veio até ela, cintilando.
Ela guardou o sonho para si. Agora, ao que parecia, as Moiras estavam
prontas para ela.
Lore riu.
— Ela é uma Perseus mesmo — disse ele às filhas, com orgulho. — Olha
como ela tem força na mão!
Lore assentiu, ansiosa, deixando que a mãe penteasse seu cabelo ondulado e
cuidadosamente o tecesse em uma trança, enquanto ela acabava
rapidamente com a comida diante de si. Papai e mamãe conversavam
baixinho sobre as notícias no rádio.
O pai riu.
Seu pai segurou sua mão, resistindo aos esforços de Lore de se desvencilhar
dele até que finalmente chegassem a um grande edifício de tijolos
aparentes.
— Estamos honrados por sua benevolência — disse seu pai, e fez uma
reverência, abaixando a cabeça e levando a mão ao bolso interno do casaco
para pegar um envelope grosso. O homem o aceitou sem pensar duas vezes.
— Sou Philip Aquileu, arconte dos Aquilídeos — disse ele e deu meia-
volta, deixando a porta aberta. — Venha, criança. A entrada de seu pai não
é permitida aqui.
Mas Lore não olhou para trás, nem mesmo quando a porta bateu e trancou,
selando a luz do sol da manhã. O edifício não era nada mais do que uma
casca vazia, percebeu ela. Havia carros estacionados na parte de dentro.
Lore respondeu sim, como se tudo aquilo fossem perguntas. Ela faria o que
fosse necessário para permanecer. Treinaria o quanto fosse preciso para
alcançar a aretê — aquela perfeita combinação de coragem, força,
habilidade e sucesso — e, um dia, o kleos. Seu destino era um presente, e
agora ela o manifestaria.
O arconte a levou até o segundo andar do local, um espaço iluminado,
apesar da falta de janelas. O chão era revestido de madeira e já havia alguns
grupos de crianças ali, algumas tão novas quanto ela, com uns sete ou oito
anos de idade. Algumas eram mais velhas, e havia aquelas ainda mais
velhas.
mortal. Lore examinou os rostos com avidez e estava surpresa por encontrar
olhares de desgosto e apreensão ali.
Eles só não te conhecem — pensou ela. — Você precisa mostrar a que veio,
como as histórias dizem.
Você é uma filha de Perseu. Ela repetiu o pensamento até que virasse uma
armadura que só ela pudesse ver. Você é uma filha de Perseu.
O garoto era mais ou menos da altura dela, mas seus membros eram como
gravetos. Sua pele era pálida, como se ele não visse a luz do sol há meses.
Ele está doente — percebeu ela. Ou havia estado, já que agora estava neste
lugar.
Ela gostava ainda menos das risadas das outras crianças agora, e gostou
ainda mais do garoto por não reagir quando começaram a rir de novo. Lore
olhou nos olhos escuros dele, estreitando os dela. O garoto parecia exausto,
mas estava aqui, mesmo que os outros claramente acreditassem que não
deveria.
Mas ele está destinado a ser aprendiz do curandeiro, e não estará sempre
disponível para você. Nesses momentos, você apenas observará. Nesse
meio-tempo, vocês devem estar… no mesmo nível.
Há sempre rivalidades entre as casas — pensou ela. Mas com ela e Castor
não haveria nada disso. Seu sangue corria animado nas veias por saber que
tinha um parceiro. Lore ergueu o queixo. Eles não tinham ideia do que ela
era capaz ou qual seria seu destino. Ela não decepcionaria sua linhagem e
não decepcionaria seu hetaîros.
Lore acenou com a cabeça para Castor. Ele acenou de volta, com olhar
suave, mas determinado. Ela gostava dele. A calma do menino a acalmava
também.
Não caia — pensou Lore, tentando chamar a atenção dele. — Não caia.
Castor estava cambaleando, seu corpo tremia com o esforço para não cair.
Ele a lançou outro olhar e se forçou a endireitar a postura, assim como ela.
Não vou morrer — pensou Lore, com a escuridão tumultuando sua visão.
— Seus pais e suas mães podem até tê-los dado à luz em suas linhagens —
disse o instrutor. — Mas eles não são suas famílias. Estes à sua volta são
seus irmãos e irmãs. Seu arconte é seu guardião, sua luz e seu líder. Ele é
seu pater. Seu pai de verdade. É por ele que você aprende a sentir dor. É por
ele que você sangra.
Lore cuspiu sangue, quase se engasgando com ele. Seu pai era seu arconte.
— Vocês almejarão por aretê, mas não há morte mais honrosa do que a de
um guerreiro que conquistou a imortalidade do kleos para si e para sua
linhagem — disse o instrutor. — Honra. Glória.
Os outros — todos no salão de treinamento — repetiram junto com ele.
— Honra.
Golpe.
— Glória.
Golpe.
— Honra.
Golpe.
— Glória.
Eles não sabem — pensou Lore. — Não sabem qual é o meu destino.
Ela teria honra e glória. Ela conquistaria o kleos e restabeleceria sua casa.
Castor se apoiou nela, ainda tremendo. Ela vislumbrou relances dele entre
os golpes, entre os olhares de desdém e diversão à sua volta. Muco e sangue
escorriam pelo rosto do menino, e ele piscava, tentando clarear a visão. Ela
agarrou o pulso dele, ajudando-o a se firmar.
Lore percebeu que ainda segurava o pulso de Castor, mas estava receosa
demais para soltar.
Eles mancaram até a entrada, Lore seguia Castor por um lance de escada até
o vestiário. Ambos encontraram quitões vermelhos dobrados e empilhados
por tamanho e cada um escolheu o seu.
NOVE
NÃO.
Mesmo com seu corpo poderoso, sua maneira de andar não tinha a
confiança rígida de Atena ou a passada firme e reservada de Philip e
Acantha.
Havia apenas a mesma estranheza que ela havia notado durante a luta deles,
como se os músculos do rapaz estivessem apertados enquanto caminhava
até o altar.
Lore não entendia como não percebera antes — era muito estranho ele ter
crescido tanto em relação a ela e estar no auge de sua forma física quando
os curandeiros Puro-sangues e os médicos Mundanos, por todos aqueles
anos, diziam que a morte poderia acometê-lo a qualquer momento. Ela até
mesmo considerou que as faíscas de poder nos olhos dele eram nada mais
do que suas íris escuras refletindo a luz das lâmpadas do porão do
restaurante.
Ela criou uma história na qual pudesse crer. Vira um fantasma em vez de
um deus.
A máscara abafou sua respiração quente e rápida e a soprou de volta contra
seu rosto até que ela tivesse a sensação de estar sufocada. Como se sentisse
sua presença, o novo deus começou a se virar na direção dela, apenas para
ser interrompido.
— Meu senhor — chamou Philip. Castor virou-se para onde ele e Acantha
ainda estavam, nas laterais do trono. — Podemos começar? O sol está no
pico, ardendo intensamente pelo senhor.
— É claro — disse o novo deus tomando seu assento. Então, com mais
firmeza e força: — Minhas desculpas.
Castor era um garoto de doze anos no último Ágon. Mal tinha forças para
levantar a cabeça, muito menos para matar um dos últimos deuses antigos.
Isso tinha que ser um engano — de algum modo, isso era um engano.
É real — uma voz sussurrou em sua mente. Então, por que ele a procurou
no ringue? Por que os Aquilídeos se permitiram serem despistados por ele
após o recuperarem com segurança no Despertar?
confiar.
Ela ainda não havia visto o pai dele — por sinal, também não vira Evander.
Philip vai matá-lo — pensou Lore. Castor estava marcado agora, fosse deus
ou não. Ele quebrou seu juramento com o arconte e derramou sangue que
não cabia a ele derramar.
Esse espetáculo todo era isso? Uma ilusão para atrair o bezerro de ouro até
o altar de sacrifício, para que então Philip pudesse tomar o poder para si?
Mas a linhagem honrou e serviu a Philip Aquileu por muito mais tempo que
ao novo deus, que no passado era nada além de um estorvo aos olhos deles.
Quando Lore olhou para a cadeira novamente, tudo que conseguia ver eram
as diversas formas de torná-la letal para um deus mortal. Um veneno
poderia ter sido misturado no ouro, como aconteceu com a túnica de Nesso
dada a Héracles. Ou uma lâmina poderia estar escondida dentro de um
painel, pronta para deslizar para dentro da pele macia do novo deus.
Mas se Philip queria o poder de Castor, teria que dar o golpe final. Lore
sacudiu a cabeça, liberando um pouco da tensão acumulada entre as
escápulas. Ele não faria aquilo ali, na frente de todos.
O rosto do homem era calmo, mas Lore percebeu o desprezo que estava
reprimido. Philip e Acantha foram os primeiros a se ajoelharam diante de
Castor. Quando Philip falou, usou a língua antiga, tão melódico quanto um
rio fluindo em direção ao mar.
— Nós o honramos, ó Deus Resplandecente, o agradecemos por guiar o sol
através do vasto paraíso. Auriga, matador de serpentes. Atirador distante,
trabalhador distante; portador da peste, curandeiro do homem; arauto da
canção, da poesia e do hino, voz da profecia; flagelo do mal, mestre do
furor…
— Sim — interrompeu Castor com um tom engraçado que era muito atípico
ao que ela estava acostumada vir dele. — Acredito que esses sejam quase
todos os títulos.
Se havia algo que Castor sempre fora era respeitoso. Não exatamente dócil,
mas nunca desafiador. Se alguma vez existisse uma pessoa sem a menor
chance de que a divindade recém-descoberta subisse à cabeça, seria ele.
Essa ideia já era — pensou Lore, esfregando uma das mãos no peito. Poder
era a droga mais forte de todas.
disse Philip. — Como sinal de nossa gratidão, minha esposa, Acantha, filha
de…
— Preferiria que dessem a carne para os famintos desta cidade — disse ele,
com a voz insuportavelmente fria.
Todas as crianças devem ser protegidas disso — disse Castor, e sua voz
aumentava a cada palavra. — Você é o arconte desta linhagem, Pater, mas
eu sou seu deus. Se deseja receber as minhas bênçãos, isso é o que lhe peço.
Existe alguma regra da qual não estou ciente ou você está questionando
tanto a qualidade do nome quanto minha decisão?
— Com esse assunto resolvido, diga-me como está a Casa de Aquiles e qual
favor você busca, Arconte.
Evander. Ele teceu caminho por entre a multidão, com a mão esquerda
ajeitando a fronte de seu manto de seda prateado. A outra mão, envolta em
uma luva preta, permanecia imóvel sobre o estômago.
Van era muito sagaz, a ponto de se prejudicar por isso, e não deixava
absolutamente nada passar. Até um falcão se submeteria a ele em vez de
confiar nos próprios olhos.
O que significava que ela realmente devia ter ido embora há cinco minutos.
Castor também o avistou, e seu olhar rapidamente encontrou o do jovem
antes de voltar a atenção para Philip, que estoicamente continuava relatando
os casamentos, mortes, as várias propriedades da Casa e os
empreendimentos.
que este seja apenas o começo do que alcançaremos, se o senhor utilizar seu
poder para aumentar a demanda.
Philip recuou.
— Meu senhor…
— Estou certo — interrompeu Castor, com o mesmo tom rígido — de que
não preciso lembrá-lo do motivo pelo qual o Ágon teve início e pelo qual
Zeus negou a Apolo e aos seus sucessores tal poder, muito menos preciso
lembrá-lo das muitas moléstias horríveis já existentes neste mundo. Talvez
você deva até mesmo perguntar o que fiz para ajudar aqueles afligidos pela
mesma doença que me acometeu em minha vida mortal, e como você
continuará a girar a roda que eu pus no lugar estabelecendo preços
razoáveis a medicamentos.
Acantha se curvou.
Outro pensamento, que conseguia ser ainda pior, lhe ocorreu — preciso
contar a ela.
Claro, o número poderia ser reduzido à Ártemis se Lore não fosse embora
agora e encontrasse outro apoiador para Atena, mas essa… essa era uma
informação útil.
Van tinha um jeito de ser bem específico, uma calma enervante, mesmo
diante de más notícias, como a que trazia agora:
— Ele o matou sabendo que não seria capaz de tomar-lhe o poder? — disse
Philip, enfurecido.
— Ela estava viva, mas por muito pouco. Minhas fontes me disseram que
Fúria queria extrair informação dela sobre algo, mas que ela não voltou a
acordar e ele terminou o trabalho em seu recinto.
Não… não poderia ser isso. A Portadora da Maré não teria ideia de onde ela
estava, ou como ele poderia encontrá-la.
Van não disse nada, mas lançou um olhar cheio de significado na direção de
Castor. — Creio que ele esteja tentando fazer mais do que isso, e que
devemos fechar a guarda. A Casa de Teseu se aliou formalmente à Casa de
Cadmo. Ambas estão sob o comando de Fúria.
— Como deve lembrar, a Casa de Teseu perdeu grande parte das suas
parthénoi durante o último Ágon após Ártemis localizar o esconderijo delas
— disse Van.
Tão rápido quanto veio, o som dos tambores parou. Castor então se
levantou, como se já soubesse o que vinha pela frente.
DEZ
Á
O MEDO QUE VARREU LORE PARECEU CORTÁ-LA POR
DENTRO. O SUOR
Lore tentou espernear para esticar os membros inferiores sob si mesma, mas
eles não respondiam. Respirou fundo pelo nariz e se contorceu, procurando
por Castor.
— Deixará que o mortal fale por você, jovem deus? — questionou Fúria.
ONZE
LORE APROVEITOU O CAOS QUE SUCEDEU A DECLARAÇÃO
DE GUERRA DE FÚRIA para fugir rapidamente.
Mas Castor…
Ele poderia curá-la — pensou Lore. A conversa anterior confirmara que ele
havia herdado esse poder de Apolo. Seria uma solução fácil para seu
problema mais complicado.
Não. Ela não poderia levá-lo consigo. Sabia disso, o que não aliviou o
remorso que se apossara dela. Atena nunca permitiria que o assassino de
seu irmão vivesse, e não havia maneira alguma de tirar o novo deus da Casa
Tétis sem que os Aquilídeos fossem atrás deles e provavelmente os
rastreassem até sua casa. Ela não podia colocar nenhum deles — Miles,
Castor ou Atena —
Castor estaria mais seguro aqui, com sua linhagem. Até mesmo com Philip,
mesmo depois da declaração de guerra de Fúria. Ainda que a mensagem do
novo deus da guerra tenha sido perigosa por ter tratado Castor como fraco
diante dos Aquilídeos, ela, de certa forma, também salvou o novo Apolo.
Lore deu uma última olhada furtiva ao redor, com a mente acelerada.
Van saiu do local onde conversava com Acantha e foi até Castor, cruzando
o salão em poucas passadas largas. Ele passou a centímetros de distância de
Lore, perto o suficiente para que ela sentisse o aroma de laranja e sândalo
de seu perfume, e por muito pouco resistiu à vontade de agarrá-lo.
Muito tempo havia passado desde a última vez que o vira. Eles ainda eram
crianças na época, correndo livremente pela cidade. Enquanto Castor
sempre foi um livro aberto, feliz de ser lido e entendido, Van era o diário
mantido trancado e escondido debaixo do colchão, exceto nos momentos
em que culpava Lore por colocar Castor em apuros ou de influenciá-lo a
fazer algo que Van julgava ser perigoso, ou seja, praticamente tudo que era
divertido.
Então, ela seguiu escada acima, refazendo o mesmo caminho que traçara ao
descer, sentindo-se mais inquieta a cada momento que passava. Um
insuportável peso ancorava no fundo de seu estômago. Lore subiu os
últimos degraus com dificuldade e falta de ar conforme um pânico
desolador novamente a cercou.
Fúria.
A voz dele havia ecoado nas áreas mais quebradas dela, trazendo à tona
imagens de seus pais e irmãs que por anos lutou para suprimir.
Se a Casa de Teseu se aliara a ele, teriam somado centenas de pessoas entre
ele e Atena; a deusa antiga não conseguiria chegar perto do deus para
cumprir sua parte do juramento. O pensamento a escaldou.
Se Fúria estava indo atrás dos outros deuses, antigos e novos, seus
caçadores viriam atrás de Atena implacavelmente. Aristos Cadmou nunca
foi um homem de resoluções pequenas ou objetivos pacatos. Ele estava
E Cas…
Lore tinha tão poucos vínculos com a vida anterior que a ideia de encontrar
outro havia sido uma droga poderosa, independentemente de ela querer
admitir isso ou não. A jovem não acreditava mais nas Moiras há anos, mas
podia vê-las claramente em seus pensamentos, o reluzir de suas adagas
cortando alegremente a tudo e a todos, até que ela não tivesse mais nada,
mais ninguém.
— Controle-se, sua bêbada chorona — murmurou Lore. Ela teve uma vida
boa e decente aqui na cidade, um verdadeiro lar. E tinha Miles, que ainda
esperava por ela em casa com a deusa que, de muito bom grado, faria uso
de seu sangue.
Mas ela queria a única pessoa que sempre foi capaz de acalmar tanto seu
temperamento como seu medo. Queria a única pessoa na qual sempre
confiou, sabendo que ela o encontraria ali.
Queria Castor.
Merda.
O quarto estava escuro, mas tinha luz solar suficiente entrando pela
claraboia fumê para iluminar todo o cômodo. Uma cama grande e
impressionante com dossel de seda branca ficava no centro, bem entre duas
janelas bloqueadas por tijolos. Um armário que parecia ter passado de
geração em geração ao longo dos séculos estava encostado em uma parede,
pintado com uma cena desbotada pastoril contendo gado e fazendeiros.
Almofadas felpudas estavam arrumadas como pétalas de flores no chão e,
em todo o canto, espalhados pelo quarto, havia elaborados candelabros
aguardando para serem acesos.
Uma fina linha de baba pendia de sua boca até o edredom de seda. Seus
olhos enormes abriram. Ele ergueu a cabeça, como se a reconhecesse.
Ela ergueu a máscara para dar uma olhada melhor nele, e uma pequena
explosão de felicidade acendeu dentro dela. Ele ainda estava vivo — ele
devia ter, o que, quatorze anos agora? Ela se aproximou do pastor-grego
devagar, estendendo a mão.
— Não imagino que você tenha aprendido a falar e pode me dizer como sair
daqui, não é?
O tapete grosso absorvia seus passos enquanto ela circulava pelo quarto.
Sem varanda, sem janelas, com exceção da claraboia. O mesmo servia para
o banheiro surpreendentemente luxuoso anexo a ele. Lore continuava
vislumbrando sua expressão irritada no piso de mármore preto.
Ela lançou outro olhar para a claraboia, pensando. Se ela conseguisse subir
ali, talvez pudesse abrir o suficiente para se esgueirar por ela, mas ainda
teria que lidar com os caçadores no telhado — e eles estavam no auge de
suas condições de combate. Lore estava atualmente lutando contra os
últimos fragmentos remanescentes de seu orgulho, mas até mesmo ela
conseguia reconhecer que não havia comparação entre lutar contra
caçadores e bater em crianças ricas e mimadas.
Lore vestiu a máscara e mergulhou debaixo da cama, apenas para rolar para
fora quando percebeu que ainda podia ser vista da porta. Começou a ir em
direção ao armário, mas Philip e Acantha trocariam de roupa em algum
momento, e enquanto Lore podia arrumar desculpas para um monte de
coisas,
não tinha certeza de que era capaz de inventar uma explicação decente que
justificasse estar enfiada dentro daquele móvel. Restava a pior opção.
Esgueirou-se para trás do biombo, que com sorte seria decorativo, no canto
inferior do quarto conforme a porta era destrancada e se abria. Havia um
vão entre os dois painéis, largo o suficiente para que ela pudesse ver os três
homens que entraram.
DOZE
A postura de Quíron era rígida, sua cabeça abaixou, assim como sua
cauda… mas ele não encarava Philip. Estava de olho em Castor.
Mensageiro, é claro. O broche que Van usava, uma asa dourada para indicar
sua posição como emissário da linhagem. A função era nada mais do que
espionar, hoje em dia, mas os Mensageiros eram protegidos da matança sob
um juramento entre as casas. Dessa forma, poderiam levar mensagens sem
temerem a morte e lidarem com as trocas dos corpos coletados por outras
linhagens.
— Tem certeza de que isso não é sua rivalidade com Aristos Cadmou
falando no lugar da razão? — perguntou Van, sem precisar erguer a voz
para dar às suas palavras um tom afiado.
Lore estava chocada por eles não terem sido capazes de ouvir sua
respiração irregular.
Ela podia ver agora — a maneira como os dedos da mão direita eram
ligeiramente mais longos e duros do que os da esquerda. Ele tinha
movimento nos dedos e conseguia curvá-los um pouco, mas todos os
movimentos eram mais lentos e seu alcance, mais limitado. Ele, assim
como muitos caçadores, havia perdido parte do corpo e o substituído com
uma prótese avançada.
Deve ter sido algum tipo de acidente de combate. A mão direita de Van era
a dominante, pelo menos até onde ela conseguia se lembrar das poucas
sessões de treinamento das quais ele fez parte enquanto os pais do jovem
tocavam negócios na cidade.
Lore sempre viu aquilo como uma prática revoltante; se alguém queria
lutar, se queria se empenhar para alcançar o kleos, deveriam permiti-lo,
disse Castor. — Esse não é um dos meus poderes. Sinto que devo lembrá-lo
novamente de que, ainda que eu tenha alguns dos poderes de Apolo, não
sou ele.
Lore prendeu a respiração enquanto o novo deus dava alguns passos em sua
direção, tirando as luvas de ouro e colocando-as na mesinha ao lado do
biombo.
— Sim, meu senhor. Claro, todos estamos ansiosos para ouvir a história de
como um inocente garoto de doze anos derrotou um dos deuses originais
mais fortes e ascendeu. Talvez você possa falar com um dos historiadores
de nossa linhagem…
— Basta — disse Castor, soando cansado. Ele estava tão perto agora que
Lore podia sentir o cheiro de incenso impregnado em sua pele. Por um
momento, ela teve certeza de que os olhos do novo deus relancearam e
encontraram os dela, mas ele foi em direção à cama. — Gostaria de
descansar antes de viajarmos.
— Eu disse basta — disse Castor, agarrando uma das colunas da cama com
tanta força que a fez rachar. — Me chamem quando for a hora de partir.
Castor assentiu, mas não fez qualquer menção de trancá-la até que ambos
tivessem deixado o quarto e se passasse um longo intervalo. Ele deu meia-
volta, batendo com o joelho no baú ao pé da cama e xingou. Lore teria rido
Lore levou um susto quando uma porta de metal deslizou cobrindo a outra.
Castor não tirou a mão até que Quíron atacasse, mordendo seu punho.
Lore pressionou a mão contra a boca de novo para evitar emitir qualquer
barulho. Claro que Quíron não se lembra dele. Esse não era o corpo do
garoto que o cão amava tanto e protegia. Ele era… outra coisa.
Não havia nada a temer; ele foi até ela pedir ajuda — não teria nenhum
motivo para matá-la, mesmo que ela tenha invadido sua casa. Mas, ainda
assim, Lore não conseguia se mover. Sentia-se como uma das estátuas de
outrora, sempre presas em uma única pose, com olhos eternamente abertos.
Era como uma espécie de ritual silencioso, cada toque de seus respeitosos
dedos. Lore conseguia apenas distinguir seu perfil e a interminável
tempestade de emoções que atravessava seu rosto. Ele murmurou algo para
si e ela não conseguiu ouvir.
Finalmente, ele parou no centro do quarto, estremecendo. Erguendo as
mãos, o novo deus tirou a coroa de cima de seu escuro cabelo e a segurou
entre os dedos. Houve um pequeno estalo quando ele a partiu em dois e
deixou os pedaços caírem no chão.
Mas não houve som algum quando o painel escondido na parede atrás dele
se abriu e um caçador vestindo uma máscara de minotauro entrou
silenciosamente no quarto.
Não era nenhuma faca, mas quando arremessada traçou uma espiral no ar,
como ela esperava. Ela ricocheteou na máscara do atacante, jogando-o no
chão.
Ela se lançou para a frente enquanto o caçador tentava aos tropeços voltar
para a porta secreta, furiosa demais e temendo deixá-lo escapar.
O caçador sacou uma longa adaga da bainha em seu flanco. Quíron saltou
da cama, latindo descontroladamente… aquilo foi distração suficiente para
que Lore pudesse pegar um pequeno busto de mármore no armário e o
esmagasse na cabeça do caçador. Uma vez. Duas vezes.
Lore pegou a chave de fenda de volta e cambaleou até ele, procurando por
A cabeça dele tombou para trás. Ela pressionou o ouvido no peito dele, mas
não conseguiu escutar nada além da própria pulsação.
Ele não reagiu. Lore pressionou a palma da mão contra o peito dele,
fazendo força para baixo repetidas vezes. Castor voltou a si rapidamente,
arfando. Virou de lado, desorientado, com as pernas e os braços deslizando
sobre o tapete.
O novo deus se arrastou para longe, erguendo uma das mãos na direção
dela.
Um agudo suspiro de surpresa foi o único som que Lore conseguiu emitir
antes que o ar se transformasse em fogo em seus pulmões e uma massa
disforme de calor e luz explodisse das pontas dos dedos de Castor.
TREZE
Ela treinava por horas e dias infindáveis com bastões de treino, adagas,
lanças e escudos, repetindo aqueles movimentos letais até que não tivesse
mais força para segurar as armas. Seus cabos deixaram sulcos escuros de
recordação em suas palmas, como os rios no Mundo Inferior. Ela
estimulava aqueles calos, que deixavam sua pele mais grossa para que não
mais descascasse.
Lore queria que seu corpo se lembrasse de tudo: do peso das armas, do
ângulo do golpe, da força exata que ela precisava extrair dos músculos.
Alguma parte dela sempre entendeu que chegaria o momento em que sua
mente se esvaziaria por conta da exaustão ou dor, e tudo que ficaria
guardado seria aquele trabalho todo, aquele treinamento. Um momento em
que a habilidade enraizada se mistura com o reflexo.
Como agora.
Ficou sem ar quando foi lançada contra a parede atrás dela. O braço de
Castor envolveu o peito dela como uma barra de aço.
Ele mudou de posição, levando o braço até a garganta dela. Pontos escuros
começaram a surgir na visão periférica de Lore conforme sua fonte de ar era
cortada. Não havia emoção alguma no rosto de Castor; era como se ele
também estivesse agindo puramente por instinto agora, e seu corpo
estivesse se esforçando para sobreviver.
Ela dava chutes violentos no ar, tentando atingir as rótulas dele. Em algum
ponto no plano de fundo, ela estava ciente de latidos, do borrão escuro atrás
do oponente mordendo-o e atacando-o.
Ela envolveu o tórax dele com as pernas e o girou, para que pudesse ficar
por cima. Lore levou a chave de fenda até a garganta dele, mas Castor
agarrou o metal e empurrou a ponta de volta na direção do rosto dela. O
Quíron latia sem parar, agarrando o outro braço do novo deus com a boca.
Ele não parecia sentir os dentes afiados ou a força bruta do enorme cão. As
pupilas de Castor dilataram, aneladas pelas brasas douradas de seu poder.
Ele olhava para ela, mas não a via, mesmo quando arrancou sua máscara.
A transição que tomou conta do rosto do novo deus foi como o lento abrir
de uma asa. A fúria se transformou em choque e, então, em pânico.
Quíron trotou até ela com as patas firmes e, por um momento, Lore não fez
nada a não ser pressionar o rosto no pelo do pescoço dele. Sua parte fraca
queria desaparecer ali dentro.
— Surpresa?! — disse ela, porque Lore nunca enfrentou uma situação que
não poderia ficar ainda mais constrangedora, a ponto de doer.
— Eu devia ter percebido que era você com aquele primeiro golpe — disse
ele. — Só você iria direto na cabeça. Posso saber onde conseguiu aquela
máscara?
— Não que eu não tenha gostado de quase ter sido apunhalado por uma
chave de fenda — disse Castor. — Depois de como você reagiu naquela
luta, não achei que ia te ver de novo… mas você veio.
O cão talvez fosse uma forte dica, mas vamos deixar esse detalhe para lá.
— Acho que eu acabei de ajudar você. Será que devo falar do fato de você
ter só ficado parado ali enquanto o seu quase assassino atirava na sua
Lá embaixo, com toda aquela bravura, não era Castor. Este era Castor.
Ele esfregou o joelho que havia batido sem querer mais cedo.
rebateu ele. — Sem nenhuma prova de ele ter me atacado primeiro? Não
tem câmeras aqui dentro. Eu já chequei.
Lore titubeou com as palavras totalmente cruas de Castor, mas ele não
concluíra seu argumento.
— Que ele iria o quê? Se tornar ainda mais insuportável? Abusar de ainda
mais poder? — pressionou Lore.
— Pelo menos ele seria capaz de controlar essa energia — disse Castor. —
Aquilo não fazia sentido para ela; por que Castor teria matado Apolo, se
não fosse pelos seus poderes?
Ele lutou contra uma forma agressiva de leucemia desde que tinha quatro
anos, enfrentando quimioterapia, radioterapia e transplantes de células-
tronco ao longo dos anos. A doença havia voltado com força total pouco
antes do início do último Ágon, e todos, incluindo o próprio Castor,
acreditaram que ele morreria por causa dela.
— Que jeito?
— Não estou com medo — disse ela. — Estou preocupada. Estou tentando
entender o que está acontecendo e como isso — ela gesticulou na direção
dele como um todo — aconteceu.
Até agora, Lore nunca havia pensado sobre o quão esmagador deve ser, de
repente, ter que lidar com o peso das necessidades de sua linhagem ou
perder
a pessoa que foi um dia. Talvez aquilo explicasse o peso que via sobre ele
agora e a relutância de aceitar quem era. Mas também havia outra coisa —
— Não, não entrou — disse ele, olhando para Lore por debaixo da franja de
seu cabelo escuro. — Tem caçadores em todas as escadas de emergência.
— Que bom que não usei as escadas de emergência, então — disse ela.
Ela havia dito isso a ele — assim como disse que as Erínias preferem o
gosto da pele macia de garotos e que a iniciação de caçador envolvia beber
xixi de sátiro e correr pelado sob a lua.
Não era a primeira vez que Lore percebia que foi um pouco babaca quando
criança. Agora, entretanto, não havia sido o caso.
— Eu não quis que você ficasse preocupado — disse ela, rispidamente.
— Era o único jeito de entrar quando você estava… quando eles pararam de
deixar que eu viesse ver você.
Lore agitou a mão com desleixo, voltando-se para onde Philip ainda estava
deitado de costas, com a respiração fraca.
— Você disse que não sabia em quem confiar — disse Lore. — É isso que
quis dizer?
— Sim — disse ele, respirando fundo. — Mas também eu só… queria ver
você e alertar sobre Aristos… sobre Fúria. Van me levou até você em vez
de virmos direto para cá do Despertar no Central Park.
— Por quê? — perguntou ela. Lore odiou o tom grosseiro com que aquelas
palavras saíram. — Você teve sete anos para vir me encontrar antes disso. A
mortalidade fez com que se você sentisse particularmente nostálgico ou só
estava a fim de acabar com a minha noite?
— Eu tentei — disse ele. — Tentei encontrá-la por anos, mas foi como se
você tivesse desaparecido. Não tinha vestígio nenhum seu.
— É, isso foi meio que de propósito — disse Lore, e seu coração batia forte
com essa lembrança.
— Pensei que talvez estivesse morta, mas Van conseguiu rastrear você
ontem à tarde — disse Castor. — Ele estava preocupado com Philip e
pensou… eu pensei… que você talvez estaria disposta a ajudar a me
esconder ou me tirar da cidade.
Ela estava com alguma placa pendurada nas costas oferecendo abrigo para
todos os imortais em perigo?
— Mas você está certa — disse ele. — Você está certa. Não foi justo jogar
esse peso em você. Acho que eu só pensei…
— O quê? Que ainda éramos amigos? — concluiu ela, antes que pudesse se
segurar.
Ele titubeou e tentou disfarçar ficando de pé. Lore também se levantou, não
gostando da sensação de estar na sombra dele.
— Então por que você veio aqui? — perguntou ele baixinho. — Você me
disse claramente que não tinha nenhuma vontade de me ajudar, então por
que
se arriscar?
A pergunta pendeu como uma espada acima de seu pescoço. Lore se voltou
novamente para ele, tendo dificuldade para responder.
Havia sido burrice da parte dela escolher esse apelido para o ringue de
Frankie, mas foi a primeira coisa que veio na cabeça, e Frankie gostou
demais para deixá-la trocar na semana seguinte. Era uma brincadeira com o
apelido carinhoso que seus pais usavam, que por si só era uma ode ao mel.
— Acho que sei o que é — disse ela. — O que ele está procurando.
— O quê? — perguntou ele. Seus olhos estavam fixados nela. Ela não sabia
dizer o que a mantinha ali, esperando, com a mão ainda estendida. Mas
então o toque veio novamente, e a ponta dos dedos dele deslizaram até o
pulso da jovem, passando pela curva do polegar, até, finalmente, se
engancharem no pedaço da coroa, e Lore lembrou que deveria soltá-la.
Antes de vir, Lore queria encontrar o novo poema por dois motivos.
Primeiro porque sabia que Fúria procurava por ele pessoalmente e arriscaria
sair de seu esconderijo para encontrá-lo, dando à Atena a rara chance de
matá-lo. A outra era de evitar que caísse nas mãos de algum deus, novo ou
antigo, que poderia usá-lo para se tornar um verdadeiro imortal com um
poder inimaginável capaz de destruir ou subjugar a humanidade.
Mas ela já havia se aliado a outro deus. Que não hesitaria em matar Castor
na primeira oportunidade que tivesse.
— Foi outro aviso que eu recebi essa semana — disse Lore. — De outra
pessoa.
— Vou ver se Van sabe de alguma coisa — assegurou Castor. — Isso vai,
pelo menos, dar um ponto para reforçar a investigação dele.
Quando ela arriscou um olhar por debaixo das mechas soltas de seu cabelo,
Castor fitava sua mandíbula. Fitava a longa cicatriz que percorria seu rosto.
— Não quero falar sobre isso — disse ela, abruptamente. — Uma das
vantagens de virar deus não é parar de se importar com as vidas dos mortais
Ela balançou a cabeça negativamente, com uma risada triste, mesmo que
sentisse um aperto no peito.
Este era Castor, mas de alguma forma não era. Ela só precisava olhar em
seus olhos para ter certeza. Ele pode ter mantido parte do destino genético
de Castor com sua aparência, mas ele havia sido… aprimorado. As
imperfeições que o tornavam um ser humano tão desajeitado quanto os
demais foram suavizadas, e o resultado era atordoante, em várias maneiras.
Contudo, ela também não era mais a Lore que ele conhecia.
— Van achou que você pudesse estar com a linhagem da sua mãe, mas
ninguém quis confirmar — disse Castor. — Ninguém quis arriscar ser
punido pelos Cadmídeos por proteger você. Mas por que ele iria atrás da
sua família, para começo de conversa?
— Não é óbvio? — disse Lore. — Fúria quis terminar o que seu avô
começou. Ele quis que a Casa de Perseu fosse eliminada da caça.
— Por que ele não ordenou isso antes? — perguntou Castor. — Por que
esperar até que ascendesse? Por que ele não veio e tratou disso com as
próprias mãos, como um imortal?
— Não quero falar disso — disse Lore abruptamente. — Eu não sei por que
ele fez isso, beleza? Porque o meu pai rejeitou a oferta dele. Porque o meu
pai o humilhou. Porque ele estava a fim. Tudo que eu sei é que os
Cadmídeos os tiraram de mim. Tiraram tudo de mim.
Mas aquilo não era verdade, e ela tinha a prova disso bem em sua frente.
Sua garganta ficou embargada, mas Lore não era mais uma garotinha.
Eu não pude ajudar você. Eu não pude ajudá-los. Eu não pude fazer nada,
por anos. Mesmo que eu te encontrasse, você nunca saberia.
— Eu não conseguia manifestar uma forma física. — Castor deu uma risada
sombria e sem humor. — Pelo visto eu sou tão fraco e inútil como um deus
do que quando eu era um mortal.
Lore franziu o cenho. Acantha havia dito algo sobre durante a cerimônia. A
propriedade que construímos para o senhor nas montanhas permaneceu
vazia, e as oferendas, intocadas.
— Você não é inútil — disse ela. — E nunca foi. Nunca, não importa o que
qualquer um dessa linhagem horrorosa tenha dito para você.
— Não pude nem salvar meu pai — disse ele, e olhou para as próprias
mãos. — Ele está morto agora, sabia? Eu vi acontecer… eu estava lá,
vagando por entre os lugares que costumava ir e as pessoas que queria ver.
— Não sabia — disse ela, suavemente.
— Eu vim atrás de respostas — disse ele, com a voz tão obstinada quanto o
olhar. — É o suficiente para me manter vivo. Você não precisa se preocupar
comigo.
— Os guardas — disse ela. Eles deviam ter ouvido ela e Philip lutando.
Deviam ter ouvido ela e Castor lutando. Deviam ter ouvido Quíron, do jeito
que vinha se comportando. Ela não deveria ter sido capaz de encaixar um
único golpe nele sem que uma bala ou lâmina a atravessasse. — Cadê eles?
prosseguiu Philip —, mas nunca imaginei que seria tola o suficiente para
dar as caras aqui.
— Engraçado — disse Lore —, eu sempre me lembrei de você como um
cuzão e eu com certeza pensei que você seria tolo o suficiente para tentar
— Tentar? — repetiu Philip, com deboche. — Tentar! Não pense que não
sei que você tinha planejado nos abandonar; planejado ir embora da cidade,
deixando sua linhagem para trás. Você sempre foi fraco, mas agora sua
fraqueza egoísta envergonhou a todos nós.
Lore agarrou o livro com mais força, pensando em qual ponto fraco do bode
velho ela deveria atingir. Ela viu uma breve expressão de medo no rosto de
Castor — a preocupação de que fosse verdade o que Philip dissera, de que
ele não seria bom o bastante — e seria liquidado em dois golpes: um na
garganta e outro nas entranhas.
Philip entrou em postura de combate.
Um fino feixe de luz do sol passou cortando o tapete próximo aos pés de
Lore. Ela olhou para baixo, confusa, e não viu a flecha que atravessou
rasgando o coração de Philip.
QUATORZE
caminho da flecha.
— Se afaste! — disse Castor. Quando ela não se mexeu, ele agarrou a frente
do manto da amiga e a girou para trás de si. Houve um pesado baque contra
o chão quando alguém saltou da claraboia, fazendo a mobília estremecer e
as pernas de Lore ficarem instáveis.
Uma voz se ergueu como um vento noturno frio por entre as árvores:
— Assassino de Deuses.
Era Ártemis.
A deusa mostrou os dentes, mas o olhar de Lore estava fixo na forma como
os seus dedos se fechavam em garras em volta do arco composto.
Não era terra no rosto da deusa, era sangue seco. Que havia ensopado a
frente do seu manto, de um tecido azul-celeste espetacular. O olhar de Lore
se fixou na aljava amarrada nas costas da deusa — estava presa ali não com
uma faixa de couro desgastado, mas com cabelo humano trançado. Todos
com cores e texturas diferentes, todos pegajosos com sangue e pedaços de
escalpo.
O estômago de Lore embrulhou violentamente.
— Você devia saber que eu viria atrás de você. Que eu iria caçá-lo, até a
Casa de Hades, até as profundezas obscuras do Tártaro, até qualquer
escuridão infernal na qual você esperava se esconder.
Sem pensar, Lore pôs a mão no ombro de Castor para alertá-lo e sentiu os
músculos da área se enrijecerem em resposta.
— Por favor — disse ele —, você não é minha inimiga, e eu não sou o seu.
Preciso perguntar uma coisa para você. Se estava lá naquele dia. Se viu o
que aconteceu.
O olhar de Lore foi em direção a porta trancada atrás deles, e ela percebeu.
Tudo que precisava era chegar perto o suficiente para cortar um dos tendões
ou artérias da perna da deusa. Isso pelo menos os faria ganhar tempo
suficiente para que escapassem.
Me responda.
Lore sentiu as palavras como gotas frias em sua pele. Ela não entendia por
que Castor ainda não tinha atacado a deusa, por que continuava fazendo
aquela pergunta.
Castor se curvou para a frente e Lore se moveu mais rápido do que já havia
se movido antes na vida, deslizando a lâmina para fora e a arremessando.
Sangue escorreu para dentro de seu olho, vindo de onde a lateral da flecha
havia passado de raspão, ao longo da têmpora e do couro cabeludo. Ela
limpou o sangue com o ombro e se levantou, ignorando o olhar preocupado
de Castor.
A deusa se voltou para a cama, sibilando. Seus olhos foram até Quíron, que
tentou da melhor forma que pôde espremer o corpo enorme embaixo da
cama.
Quíron choramingou, depois ganiu como se ela o tivesse furado com uma
lâmina. O cão ficou rígido, e seus pelos se arrepiaram. Ele expôs os caninos
e o seu rosnado se estendeu pelo quarto como um trovão.
Fome e raiva.
QUINZE
cão. Uma rajada de energia explodiu das mãos estendidas dele, clareando o
ar enquanto ia na direção de Ártemis.
Lore jogou um dos braços sobre os olhos, para protegê-los. Fragmentos de
concreto e tijolos voaram e a parede do quarto fez um estrondo quando foi
estourada.
Tão rápido quanto veio, a luz intensa se foi. Lore abaixou o braço. O quarto
esfriou em volta dela enquanto a energia se dissipava em centelhas quentes
e oscilantes.
— Por que você não fez aquilo antes? — disse Lore, sentindo como se
ofegasse a cada palavra.
Não sou um antílope que ela possa caçar e matar. — Castor apontou para a
parede que desabou. — Se ela me der o bote, será que eu consigo fugir
saltitando?
O que você está fazendo? — pensou ela, furiosa consigo mesma. — Você
ainda pode fugir se passar pela claraboia.
Atena precisava dela, e Lore precisava que Atena permanecesse viva. Ela
tinha que encontrar um médico ou algum posto de saúde clandestino para
tratar eventuais ferimentos internos que Atena ainda tivesse — e logo, se
eles quisessem pegar Fúria quando ele emergisse de seu esconderijo para
abater Castor e os outros novos deuses.
Se Fúria tentaria atacar outro deus, elas precisariam tirar vantagem de sua
saída para fazê-lo, e rápido, antes que ele matasse Castor ou voltasse para
qualquer buraco no qual estava se escondendo.
Castor estendeu um braço na frente dela. — Está tudo bem, Van. É apenas a
Lore.
— Isso não foi culpa minha — alertou ela. Depois, complementou, sem
verbalizar: Dessa vez. — Van abaixou a arma.
— Não, não foi desse jeito — disse Lore. — Ninguém nunca pensou em ver
se havia entradas escondidas…?
Van ergueu a mão, interrompendo-a.
— Por mais que eu amasse ficar parado aqui discutindo, há pelo menos
duzentos Cadmídeos vindo nessa direção, e metade dos nossos caçadores
está lá fora procurando pelos nossos mortos. Castor, você precisa ir embora.
Agora.
Ele podia odiar os Aquilídeos, podia odiar o Ágon, mas não seria Castor se
fosse embora sabendo que a morte estava chegando para os demais e ele
pudesse impedir.
— Você não tem que provar nada para eles — argumentou ela.
— Não vou partir — disse Castor. — Não importa o que eu acho deles ou o
que acham de mim. Eu tenho uma responsabilidade com eles.
— Charmosa, como sempre, Melora — disse Van. — Que mal lhe pergunte,
o que está fazendo aqui? Anteriormente, você não quis ajudá-lo.
Mas mesmo nesse momento sua mente gritava para que ela saísse dali.
Você precisa ir embora antes que ele e suas serpentes cheguem aqui —
pensou ela, e um medo frio penetrou seu corpo. — Você precisa voltar para
Atena. Precisa contá-la sobre Hermes, Ártemis, Portadora da Maré e
Fúria…
Van lançou um olhar frio e avaliador sobre ela. Lore lutou contra o impulso
de desviar o olhar daquele exame minucioso ou de exigir saber o que raios
ele estava analisando. Aquele olhar e aquele silêncio, mesmo quando eram
crianças, sempre a fizeram se sentir escandalosa, suja e simplória.
contou Castor a ele. — Alguém a disse que é isso que Fúria está
procurando.
— Você não ouviu nada a respeito? — questionou Castor. Lore sentiu uma
espécie estranha de culpa por, até mesmo nesse momento, ele ainda tentar
ajudá-la, colocando suas necessidades em primeiro lugar, da forma que
sempre fez.
— Não… se ele existe, com muito destaque no se, seria algo que os
Odisseídeos saberiam. Eles possuem os arquivos mais detalhados de todas
as
famílias. Vou falar com a minha fonte de lá, mas você precisa sair daqui,
Cas.
Imediatamente.
Merda — pensou Lore. Ela devia ter pensado nos arquivos dos Odisseídeos,
mas geralmente queria evitar pensar na Casa de Odisseu.
— Exatamente — disse Van vindo ficar do lado dela. — E por isso, você
vai com Melora.
— Você sabe que isso não é verdade — disse Castor a ela, de maneira
abrupta.
Lore se exaltou e forçou-se a respirar. Ela sempre foi desse jeito; mesmo
quando crianças, Castor tentava puxá-la quando estava à beira de estourar,
não importando se tinha ou não algo a ver com Van. A diferença era que
agora ela era mais que capaz de decidir quando se jogar.
Ela não podia explicar tudo a eles; não podia contar sobre o acordo que fez
e lidar com a revolta deles e, com toda a certeza desse mundo, ela não podia
levar mais problemas para casa.
Van ergueu a mão enluvada e inclinou a cabeça, estudando-a de um jeito
que Lore odiava. Ela teve que resistir para não ter um espasmo de raiva
quando ele disse:
— O problema de fato aqui é que você não acredita que pode protegê-lo,
não é? Nunca pensei em você como uma covarde, Melora.
Lore sabia que ele estava lhe jogando uma isca. Ela sabia que seu
temperamento era reativo e que se arrependia depois do desenrolar dos
fatos, mas havia algo naquela palavra — covarde. Não foi como se ele a
tivesse arremessado como uma faca; ela já estava dentro da jovem, como
uma infecção dolorosa. Ao ouvir seu chamado, a palavra começou a sair de
dentro dela, dilacerando-a.
Que todos os covardes sejam devorados por sua desonra — sua mãe
costumava dizer.
Lore se voltou para ele, assustada com a veemência naquelas palavras. Até
mesmo Van pareceu um pouco pego de surpresa.
Pneus cantaram do lado de fora, esse barulho foi seguido pelo som de
motores roncando e gritos vindos dos andares inferiores da Casa Tétis.
— Não posso.
— Você tem que ir — disse Van. Era o tom presunçoso de alguém que já
sabia que vencera a luta. — Você pode estar disposto a sacrificar sua vida,
mas eu sei que não está disposto a sacrificar a dela. — Van acenou com a
cabeça na direção de Lore.
— Ela não o deixará aqui agora, sabendo que estão vindo matá-lo. Vai
arriscar que a encontrem?
Lore e Van trocaram outro olhar; ela leu o dele perfeitamente. Confio
Castor a você.
Ela resmungou.
— Não até eu descobrir o que puder — disse Van. — Vou perguntar sobre o
poema. Onde posso encontrar vocês quando tudo isso acabar?
Lore cerrou a mandíbula. Castor confiava nele, mas isso não significava que
ela tinha que confiar.
Lore estava estupefata com a rapidez que o tempo curto deles passava.
— Vamos. Esta é uma luta que você não vai ganhar. Às vezes você precisa
esquecer esse lance de honra…
Ela soltou o braço dele, sentindo como se o amigo a tivesse queimado com
as palavras. Lore se moveu para a beirada da parede destruída novamente,
voltando o olhar para a lixeira.
Um raio passou em suas veias ao som das passadas pesadas indo em direção
à claraboia aberta.
— Está com medo? — disse ele. — Acha que eu vou derrubar você?
— Não, acho que vou ter que raspar o seu corpo mortal do concreto —
As vozes eram altas o suficiente agora para ela captar fragmentos do que
diziam.
— Se você me derrubar, eu juro que vou voltar como uma Keres e não vou
deixar nada de você a não ser cinzas e sangue.
Lore deu relutantemente um passo para o lado dele, ficando na ponta dos
pés para envolver um dos braços ao redor do pescoço de Castor. Ele se
— Pronta?
Castor soltou uma das mãos e lançou uma explosão de energia nos
caçadores escalando as paredes abaixo e nos que atiravam nele do chão.
Ela assentiu. Então, Castor a segurou com força, pegou uma das cordas
penduradas e deu um passo para o vazio.
— Você está bem? — disse ela, ofegando e se arrastando para fora dos
braços dele. A mão de Castor estava esfolada pelo atrito da corda. Ele fez
uma careta, um brilho emanou ao redor da palma de sua mão e a pele se
regenerou sozinha.
Castor olhou para trás uma última vez, mesmo que houvesse balas e flechas
novamente caindo como chuva acima deles.
— Não me perca de vista — alertou Lore. — Não vou parar por sua causa.
— Vou dar meu melhor para conseguir acompanhar você — disse ele,
visivelmente chateado.
Lore aceitou a ajuda dele para subir na entrada do elevador, depois deu
meia-volta, oferecendo-lhe uma das mãos.
Ele pegou sua mão, mesmo que ela soubesse que não era preciso, e
seguiram adiante de novo.
Despiu-se de seu manto de caçadora, mas para Castor isso não adiantava
muito. Nova York era uma das poucas cidades em que um homem vestido
inteiramente em trajes antigos não seria nem a terceira coisa mais estranha
que as pessoas veriam ao longo do dia. Mesmo assim, tudo sobre ele, desde
sua altura até seu físico e seu rosto, conspiravam para atrair olhares.
Castor não havia dito uma palavra sequer desde que deixaram a Casa Tétis.
Ela sempre cuidaria do bairro que cuidou dela. Era uma cláusula do
contrato assinado quando se era uma nova-iorquina.
— Vamos — disse a ele, guiando Castor até a porta dos fundos. Ela bateu,
tentando prestar atenção na rua.
Levou alguns minutos, mas o rosto de Mel apareceu atrás da porta enquanto
ela se abria. Seus olhos se arregalaram em choque com a aparência de Lore.
— Pensei que fosse a entrega de frutas. Você está bem? O que aconteceu?
— Obrigada.
Castor esperou até que Lore estivesse em frente à pia, jogando água no
rosto, para perguntar:
— Quem é Miles?
Ela ergueu o olhar na direção dele por debaixo da toalha de papel que usava
para limpar o corte na testa.
outra pessoa fora de uma luta. O tamanho dele e sua plenitude absoluta
tomavam o pequeno espaço.
— Não foi culpa sua — disse ela. — Você teve que fugir.
Lore jogou sua toalha de papel molhada no rosto dele. Ele se assustou e a
encarou, em choque.
— Agora eu sei que você está mentindo — disse ele. — Na maioria das
vezes, eu mal conseguia acompanhar você.
— Você é a pessoa mais forte que eu conheço, Castor Aquileu, e não foi por
correr rápido ou bater forte. Mas porque mesmo quando você foi
nocauteado, lutou para se reerguer. Você tem que fazer isso de novo agora.
O
que quer que esteja sentindo, precisa ficar no tatame e você tem que se
levantar.
Lore havia deixado passar o incidente com Philip por conta do caos que o
sucedeu, mas não havia esquecido disse.
— Você precisa ficar vivo — disse ela. — Se quiser ajudá-los, você tem que
viver.
O rosto de Castor era tão bonito que olhar para ele quase doía. Então, Lore
não olhou.
Lore não disse nada. E nem podia dizer, não com seu maxilar cerrado com
tanta força.
— Seus pais não gostariam que você os vingasse e não gostariam que
ficasse presa no inferno que é ser imortal. Ou ser caçada — disse Castor. —
— Você não faz ideia do que está falando. Eles merecem descansar. Eles
merecem… eles foram… isso foi um erro.
— Lore?
Seu pulso estava forte e rápido, a ponto de escurecer as vistas. Ela tentou
respirar, tentou se lembrar de onde estava, mas tudo que conseguia ver era
Olympia e Damara com as órbitas escuras, sem globos oculares. O sangue
ainda fresco em suas faces, como lágrimas.
— Sério? — disse ele, com o olhar ainda fixo nela. — Soube que foi de
rachar o bico.
A pressão se dissipou, aliviando seus ombros e seu peito até que ela
estivesse rindo.
Lore olhou para seus pés, para o azulejo antigo debaixo deles, e tentou
esconder a vergonha. Gil costumava contar-lhe histórias sobre sua vida
como professor, as anedotas sobre seus alunos ou suas longas viagens em
uma entonação baixa e calma, até que ela voltasse a si. Eles beberiam chá e
conversariam, o quanto Lore fosse capaz.
Mas ela não queria falar sobre isso agora. Castor, pelo menos, pareceu
entender.
— É fácil ser tomado pela exasperação ao lidar com imortais — disse ele,
com simplicidade.
— Nem me fale — disse ela, quando confiou que a sua voz havia se
estabilizado. — Vocês todos dão mais trabalho do que deviam.
O ar se aqueceu ao redor de Lore. Essa foi a única razão pela qual sua pele
se aqueceu com o sorriso que ele a deu.
— Amada! Tem uma pessoa aqui procurando por uma garota que é
igualzinha a você. Ele é alto, negro, parece que acabou de sair de um
comercial de perfume…
— Pode falar para ele vir aqui? — perguntou Lore. — Desculpe. Prometo
que vamos sair do seu pé logo.
— Querem algo para comer antes de irem? — perguntou Mel. — Algo para
levar?
O novo deus foi até a pia e jogou água no rosto e nos braços. Lore abriu a
porta do banheiro um pouco e fechou de novo quando viu que era, de fato,
Van quem vinha na direção deles. Ele estava usando calça jeans e uma blusa
de linho bonita, com as mangas enroladas. Por um momento, ela se
perguntou como ele chegou até a parte alta da cidade sem estar com a roupa
amarrotada e nem suado.
Assim como os outros. Estou esperando o contato dos nossos caçadores que
foram recuperar os corpos. — Ele entregou a Castor uma sacola de plástico.
— Aqui, para você se trocar.
— Nike? Sério?
— Não é fácil comprar roupa para você — disse Van, gesticulando para o
tamanho de Castor. — Foi a única coisa que pensei que caberia. Além
disso, é bom ter um pouquinho da deusa da vitória ao nosso lado.
— Me passe as outras roupas depois que se trocar — disse Lore para Castor
enquanto abria a porta do banheiro e saía.
— Por quê? — perguntou Van, rispidamente. — O que vai fazer com elas?
Ela nem fez questão de esperar pela resposta. Como prometido, Castor lhe
entregou as roupas após se trocar.
— Para onde estamos indo? — perguntou Van, assim que voltaram para a
rua.
Lore se forçou a parar. Essa não era uma conversa para terem a céu aberto.
— Estamos indo para a minha casa. Mas vocês vão precisar me ouvir com
atenção e fazer exatamente o que eu disser quando a gente chegar lá.
— Agora vocês entendem por que eu não achei que seria uma boa ideia Cas
vir comigo? — perguntou ela.
matá-la ou não.
— Ela ainda está viva. Tenho certeza disso — disse Lore, olhando para
baixo. Van também não deixou aquilo passar.
— Você não fez isso — disse ele, lentamente. — Me diga que não foi burra
a esse ponto.
— Você vinculou seu destino ao dela? O que diabos ela prometeu para fazê-
la concordar com isso?
Ela pensou em mentir, mas parecia inútil, devido ao perigo que corriam
agora.
— Ela prometeu matar Fúria.
Ela deu-lhes as costas com firmeza, deixando que ambos trocassem olhares
atrás dela. Quando Lore teve certeza de que não estavam sendo seguidos
por nenhum caçador na rua, guiou-os até sua casa em silêncio.
— É aqui — disse Lore. — Vamos pelos fundos, pelo porão. Vou tirar
vocês da rua e me dar tempo para prepará-la.
Ela conduziu os dois para o porão entulhado, trancando a porta atrás deles.
Pela primeira vez, Lore guardou sua resposta áspera. Ela virou para a
escada que dava para o andar de cima e chamou:
— Sou eu!
— Estou entrando.
DEZESSETE
Ela olhou para Miles, tanto para confirmar o que disse quanto para se
certificar de que ele estava bem. A boca do amigo se esticou em um sorriso
aflito.
— Sim — disse ele, por entre os dentes cerrados. — Ela é muito criativa.
Atena estendeu novamente a mão para trás, tateando outra lança rudimentar
Lore se posicionou entre os dois deuses, erguendo as mãos.
— Você ousa trazer esta… esta abominação para cá, para este santuário?
— vociferou Atena.
— Ele está aqui para curar você — disse Lore, tentando uma tática
diferente. — Ele vai ajudar a gente. É uma estratégia. Pensei que você fosse
gostar disso.
— A não ser que o tenha trazido aqui para me matar, não vejo estratégia
alguma — vociferou Atena. — Eu soube, impostor, que mesmo com os
poderes de Apolo você não pôde manifestar uma forma corporal. Que
desperdiçou os últimos anos patéticos que lhe foram concedidos em
relutância, como um novilho desgarrado.
Apenas quando Miles ficou movendo o olhar entre todos eles, visivelmente
ansioso, que Lore percebeu que estavam falando na língua antiga.
—, então suponho que eu ainda tenho que aprender algumas coisas sobre
como ser um deus.
Atena não exibia sua face mais aterrorizante quando a sua pele estava
vermelha de raiva, nem quando vociferava juras de morte. Mas em
momentos como esse, seus olhos relaxavam e o seu corpo ficava imóvel,
com a confiança de um predador que não deixava nada escapar. A mão de
Castor repousou no ombro de Lore, como se quisesse gentilmente afastá-la
para o lado.
Lore puxou o trunfo que mais importaria para a deusa e o pôs na mesa sem
rodeios.
— O quê? Sério?
— Ele diz a verdade, Deusa — disse ele, mais como uma confirmação. —
Nós dois viemos aqui não como seus inimigos, mas aliados.
Miles se endireitou quando o olhar de Van caiu sobre ele, e suas orelhas
ficaram coradas.
— Eu posso ser novo nisso tudo, mas não sou inútil — disse Miles. — Que
tal você me conhecer por mais de dez segundos?
juntou à Lore e Castor no Central Park, ele falava apenas por educação —
mesmo que ficasse claro que ele não suportava Lore, pelo motivo que fosse.
Ele não fazia ideia de quem Miles era e definitivamente não fazia ideia de
quem Lore se tornara.
— Eu aprecio este mortal — disse Atena, ao lado de Miles. — Ele
permanece.
Lore olhou para a prótese de mão de Van e para sua postura rígida enquanto
a mantinha na altura do estômago.
— Se você vai insultar meu amigo, pode ir embora — disse Lore. Fitou
Miles, para ver como ele havia recebido as palavras de Van. Em vez de
medo, ela viu um olhar francamente desafiador, daqueles que ele guardava
apenas quando via estranhos roubando táxis e para o preço do kimchi na
mercearia.
— Sim — disse Van, de forma direta. — Porque sabem o que eu faria com
eles se mentissem.
— A sua irmã ainda está viva — disse Lore. — Isso eu testemunhei em
primeira mão. Ela atacou Castor em uma das bases dos Aquilídeos.
— E isso é direito dela. Ela não cessará até que o impostor esteja morto —
— A presença dele garante que minha irmã nos encontrará antes do previsto
— Você está com medo dela? — perguntou Lore. Por mais que ela quisesse
lançar a isca para a deusa, havia uma parte dela que verdadeiramente se
perguntava se um ser como ela era capaz de sentir medo. Temer significaria
aceitar que não se é infalível.
— O medo é uma terra estrangeira que nunca hei de visitar e um idioma que
nunca proferirei — disse Atena. — Os descendentes do divino Aquiles
estavam lá para protegê-lo?
— Vinte e sete.
— Eu sei — respondeu Van. — Eu sei que você quer ajudar, mas não pode.
Não agora. Fúria quer matar todos os outros deuses e fundir as linhagens
em uma só força sob seu comando. Ele não vai parar de caçar você até que
ele mesmo esteja morto, então essa tem que ser nossa prioridade. Se você
morrer, os Aquilídeos que restarem estão sob os pés dele. Diga-me que
entende isso.
— Eu entendo.
— Ora, veja como o rebanho corre para o abrigo do protetor mais apto.
Castor girou no próprio eixo, e sua expressão era selvagem, puro sofrimento
e raiva.
disse Lore. Ela se voltou para Atena. — Eles eram caçadores que teriam
seguido Castor e nos ajudado. Agora vamos ter que lidar com um círculo de
proteção maior ao redor de Fúria e mais caçadores na rua procurando por
você.
— Necessita, sim — disse Lore. — Acredite na mortal que já teve sua cota
de feridas. Eu estanquei o sangramento, apenas. Se você concordar com
essa aliança, ele vai curar você e restaurar a sua força. Não vai precisar
desperdiçar dias em repouso.
Lore não era tola, sabia que qualquer parceria entre os deuses duraria
somente até o fim deste Ágon, e que, em algum momento, Atena e Castor
entrariam no caminho um do outro, livres da caçada. Isso era apenas adiar o
inevitável, principalmente se a nova versão do poema existisse e
confirmasse que o vencedor seria o último deus de pé.
— Não vou fazer um juramento de vínculo com você — disse Castor, por
fim. — Mas como sua vida está vinculada à de Lore, não posso, e não vou,
deixar você morrer.
Os outros se sentaram pela sala, Van em uma das cadeiras, Miles e Lore no
chão, ao lado da mesinha de centro de vidro.
Castor pôs uma das mãos no ferimento da deusa. Uma luz emanou das
pontas dos seus dedos; não aquela energia escaldante e crepitante das
rajadas que ele lançou, mas um brilho suave e pulsante.
perguntou ela.
— Com certeza, assim como também sabe que o novo Afrodite está com
eles — disse Lore. — Eu apostaria qualquer coisa nisto: eles são o próximo
alvo de Fúria. A única questão é quando.
— Então eles não temem ser vistos por quem está fora do Ágon — afirmou
Atena a Van. — Diga-me, então, como pode falar com tanta certeza de que
a Casa de Cadmo atacará esta noite? Suas “fontes”, presumo?
— Conte a eles.
— Porque eu descobri algo sobre ele, e ele morreria antes de revelar para a
sua linhagem. Porque eu sempre consigo o que eu quero no final.
— Parece que teremos uma oportunidade real de matar o falso Ares esta
noite e talvez até mesmo coletarmos informações sobre o poema.
Lore apertou os lábios à menção do poema, torcendo para seu rosto não
trair seus pensamentos. Se dependesse dela, nem Atena nem Fúria saberiam
nada sobre o poema.
— E mesmo que ele não apareça em pessoa para matar o novo Afrodite —
disse ela —, os Cadmídeos vão ter que levar o novo deus de volta para onde
estão se escondendo. Podemos segui-los.
— De fato.
Lore percebeu que Castor a fitava, mas se recusou a fitá-lo de volta e ver a
preocupação que estaria em seu olhar.
— É simples; vamos pedir aos Odisseídeos e ao seu falso deus uma trégua
por algumas horas — disse Atena. — Certamente um de vocês tem vínculos
com a linhagem e pode entrar em contato, não é?
Lore queria sumir no ar quando Castor e Van voltaram suas atenções para
ela. Ela talvez conseguisse contatar Iro, se pudessem encontrá-la…
Não.
Independentemente do que Iro sentia por ela agora, Lore sabia que a prima
se sentiria no dever de matá-la pelo que Lore fizera na noite em que fugiu
da casa delas.
— Problemas de família.
— Na visão deles? Sim — disse Lore. — Não é como nos tempos antigos,
quando você podia compensar o malfeito ou se exilar.
As leis antigas eram focadas na raiva, a raiva de quem sofreu pelo crime, e
a necessidade de retribuir o dano. A raiva era como uma doença da alma e
nenhum aspecto dela era mais contagioso do que a violência. Se pudesse ser
evitada, um ciclo vicioso seria extinto antes de começar. Mas esta era uma
sociedade viciosa.
— Não sei — disse Lore. — Estava pensando em nunca pagar para ver.
— Então você passou um tempo com eles — disse Van. Pela forma que ele
a fitava agora, Lore sabia que o rapaz tinha uma boa ideia do que ela fizera,
mesmo antes que ele falasse. — O novo Afrodite, o Guardião do Amor…
— Espere aí… não — disse Lore. — Eu não acho que é uma boa ideia.
— disse Miles.
— Miles…
— Me deixa fazer alguma coisa — disse Miles. — Eu não posso lutar, mas
conheço esta cidade e sei como me virar nela.
— Você continua tendo o segredo sujo dele — retrucou Miles, mais que
disposto a encarar o olhar frio de Van. — Ele não vai fazer nada que
arrisque sua retaliação.
Miles sorriu.
O outro jovem se sentava com as costas rígidas e o olhar fixo na luz que se
infiltrava pelas cortinas pálidas da janela.
— Você está mesmo com tanta pressa assim de se matar? — disse Van. E
pegou o celular. — Eu vou avisar ao meu contato para adiar o encontro para
amanhã…
— Não — disse Miles. — Fim de papo. Lore vai guiar todo mundo até onde
os Odisseídeos estão para que vocês possam oferecer uma trégua, pegar
Fúria e saber mais sobre o poema. Castor vai jogar na defesa contra ele.
Atena vai jogar no ataque. Eu vou para esse encontro e conseguir essa
informação que o seu contato tem, qualquer que seja ela, porque você não
tem outra escolha.
DEZOITO
Depois de vestir uma calça jeans e uma blusa preta limpas, Lore foi para o
corredor, tentando ouvir as vozes dos outros. Mas a casa estava em silêncio.
Lore deu uma última olhada em tudo, segurando o corrimão liso. Ela estava
prestes a continuar descendo as escadas quando um movimento no quarto
de Gil chamou a sua atenção.
Van estava lá, analisando algo na cômoda de Gil — uma estatueta antiga
que ele amava, apesar de ser claramente horrorosa; uma tartaruga de prata.
Lore não reparou que havia encurtado a distância entre eles, mas de repente
estava ali, arrancando o objeto das suas mãos.
Com cuidado, ela a devolveu para o devido lugar, ao lado de uma velha
caixa de madeira e uma foto dela, Gil e Miles, tirada logo após Gil oferecer
o
Lore olhou em volta no quarto. Antes de Gil morrer, ela vinha aqui centenas
de vezes, seja para dar bronca nele para que tomasse os remédios, para
ajudá-lo a deitar e a se levantar da cama nos dias em que a idade furtara a
força de seu corpo ou simplesmente para trazer chá ou um jogo de tabuleiro
para distrair a si mesma das sombras de sua mente. Ele a chamava de
“querida”, e Lore tinha quase certeza que essa era uma palavra que ninguém
mais, nem mesmo seus pais, teriam usado para descrevê-la.
Embora Lore nunca tenha conhecido os avôs — ambos morreram anos
antes de ela nascer —, ela amava a ideia deles, a fantasia que havia criado a
partir das histórias de seus pais. Mas ela amava o Gil real, exasperado e
obstinado como era. Ela queria ficar com ele apenas por uns meses, até que
seu braço e sua perna quebrados estivessem curados e ela tivesse juntado
dinheiro suficiente para um recomeço; mas, assim como a cidade, ela não
foi capaz de deixá-lo. Ele era gentil, brilhante, e tinha a habilidade infalível
de fazê-la rir. Ele atravessou todas as defesas da jovem.
— Esta casa não é exatamente o que eu teria imaginado para você — disse
Van. — O estilo é bem…
Lore congelou.
— Você tinha inveja de mim? — disse ela, voltando-se novamente para
Van. — O que você cobiçava? A pobreza, o ostracismo e a humilhação
eterna ou a constante ameaça de extinção?
Van apertou sua prótese com a outra mão, deixando que ambas repousassem
à frente. Teria sido uma postura relaxada se ele não estivesse segurando a
prótese com tanta força.
— Você sempre soube exatamente quem era e o que deveria fazer. Como
você desejava muito as coisas, elas pareciam vir fáceis a você — disse ele.
—
— Eu era uma criança idiota — disse Lore. — Achava que sabia de tudo,
mas não sabia.
— Você foi embora porque nunca soube o que é o medo — disse ele. —
Não… não deixe seu amigo ficar preso aqui com o resto de nós.
Mas logo antes de ele fechar a porta do banheiro, Lore se ouviu dizer:
— Eu escolhi ficar — disse ele. — Não vou sair antes de pegar as pessoas
que me enjaularam.
Essas palavras acompanharam Lore para o andar de baixo e a perturbavam
ainda mais por refletirem sua própria conjuntura. Ela pensou em voltar para
o andar de cima, em contar a ele o que os últimos anos a haviam ensinado:
que é a sua mente que fortalece a jaula.
Ela escolhera fazer o voto para Atena. Escolhera entrar na jaula esta última
vez para pegar o homem que havia lhe tirado tudo.
Castor estava no sofá, alongando o corpo alto e deixando que seus pés
pendessem na borda. Ele havia entrelaçado os dedos e os apoiado no peito.
Curiosidade.
Enquanto Castor abria seus olhos, Atena foi até a fileira de armas
improvisadas que havia organizado caprichosamente na parede. Ele se
sentou, correndo os olhos por todas elas.
— Você não deixará este santuário sem uma arma para se defender — disse
Atena. — Não enquanto nossos destinos estiverem vinculados. Então,
pergunto novamente, você foi treinada para lutar com esta arma?
Não era uma mera lança, era uma dory, a arma carregada pelos exércitos
antigos da Grécia e por muitos dos maiores guerreiros. Atena havia criado a
ponta da lança em formato de folha com pedaços de metal, mas ela
equilibrou o peso da arma usando outro espigão de metal como sauroter. A
criação era rudimentar, mas feita cuidadosamente. Lore não tinha dúvidas
de que a lança seria tão robusta e mortal em suas mãos do que qualquer
outra criada por um ferreiro qualificado.
Atena a fitou, e duas chamas prateadas ardiam no seu olhar. O que quer que
tenha visto no rosto de Lore, a convenceu. Ela a entregou a lança.
— Você tem certeza de que quer ir no encontro? Não é tarde demais para
desistir.
— Sim! — disse ele, e depois abaixou o tom de voz. — Sim, eu estou bem.
— Não deixe o Van te afetar — disse Lore. — Mas ele está certo sobre uma
coisa. Só vai ficar mais perigoso daqui para frente. Você não tem que provar
nada, nem para ele, nem para mim.
— Não é isso que eu quero dizer. Depois de hoje à noite, eu preciso que
você vá embora. Visitar os seus pais. Fazer uma viagem. Sair da cidade.
Promete?
— Eu vou prometer uma coisa — disse Miles. — Uma nova vassoura. Ok,
duas coisas, porque a gente precisa de um esfregão novo. E, na verdade,
você vai precisar de um cabideiro novo para o seu armário.
— Mais alguma coisa? — perguntou ela, aflita.
— Você viu aquela caixa velha de panos de chão que Gil não me deixou
jogar fora?
Miles puxou o celular de Lore do bolso de trás dela enquanto a seguia para
o andar de cima.
Ela o fitou, contrariada, mas lhe deu a senha. No andar de cima, ele
devolveu o celular e observou, junto com Castor e Atena, enquanto Lore
colocava o espanador de penas amarelas em uma das pontas da dory e a
cabeça do esfregão na outra.
perguntou Lore. Ela se abaixou para amarrar vários panos de chão em uma
das pontas da sua dory.
Atena estendeu a outra lança para Van, mas ele balançou a cabeça
negativamente. A deusa se incomodou visivelmente com a rejeição.
— Estou indo — disse Miles aos outros. — Vejo vocês em algumas horas.
— Sai do meu caminho — disse Miles, passando por ele com uma
ombrada. Ele voltou o olhar à Lore uma última vez e disse: — Não se
esqueça de mandar mensagem.
Mas quando eles caminhavam pela rua e chamavam o primeiro táxi, ela de
súbito fitou novamente sua casa, só para o caso de ser a última vez que a
via.
DEZENOVE
suficiente para a linhagem inteira usar para se reunir durante o Ágon. Foi
uma aquisição recente, feita durante o primeiro ano em que Lore morou
com eles.
Ela teve sua resposta assim que o táxi em que Atena e ela estavam parou no
cruzamento da 37th Street com a 6th Avenue, e teve um vislumbre do
edifício a um quarteirão de distância.
A casa dos Odisseídeos, o Baron Hall, tinha outro nome dentro da família:
Casa Ítaca. O edifício histórico havia sido construído no estilo arcaico,
ambas as entradas de arenito cinza eram decoradas com colunas coríntias.
Em sua vida anterior, fora um banco. Agora, nos anos de intervalo do Ágon,
foi alugado como um espaço para eventos grandiosos como fachada por
seus verdadeiros donos.
Estacionado ao lado da entrada da 6th Avenue estava um ônibus grande
com janelas filmadas. Uma tenda havia sido erguida para conectar a porta
do ônibus e a entrada, mas Lore conseguia ver a luz do lado de dentro
oscilando enquanto pessoas passavam apressadamente por ela. O ônibus
balançava enquanto embarcavam nele.
Castor veio ficar ao seu lado, mantendo as costas viradas para a parede.
— Tem uma cúpula grande de vidro que dá para o saguão central, mas eles
seriam burros de não vigiarem — disse Lore. — E eu tenho certeza de que
eles têm caçadores de guarda lá em cima.
— Ah, sim, qualquer coisa que não venha dos deuses é horrível — disse
Lore, revirando os olhos. — Bem, eu estou impressionada.
O corpo de Castor irradiava calor enquanto ele estava ali, próximo a ela.
— Isso me parece incomum, pelo que sei acerca da covardia dos caçadores
— disse Atena.
concluiu Atena.
Lore estava certa sobre outra coisa. Os Odisseídeos haviam construído uma
cobertura de concreto sobre a enorme cúpula de vidro colorido.
— Aquilo é uma porta?
— Parece que sim — disse Van, guiando o drone para mais perto.
— Tudo bem, então — disse Castor. Ele caminhou até as portas de vidro do
térreo de um dos edifícios vizinhos. As maçanetas brilharam sob as mãos
dele, e as fechaduras de metal amoleceram o suficiente para que ele os
puxasse e os abrisse.
Lore se abaixou, indo até a extremidade de uma das janelas, fora de vista
dos caçadores abaixo. Atena se posicionou ao lado oposto de Lore,
removendo o espanador da lâmina de sua dory com uma petulância óbvia.
Van a olhou nos olhos, erguendo o braço do outro caçador para revelar a
mesma coisa.
Os seus olhos vagaram até Atena. A deusa olhava para baixo pela enorme
cúpula de vidro, com lábios apertados e expressão fúnebre.
VINTE
— Isso não precisa ser difícil. — A voz de Fúria crepitou pelos pontos
eletrônicos que eles haviam roubado dos caçadores. — Diga-me como abrir
o cofre e permitirei que estes homens ajoelhados vivam. Permitirei que você
me sirva na nova era.
— Eu sou ela.
— Mate cinco deles a cada minuto que ela permanecer escondida. Peguem
os que estão no ônibus, se for preciso.
Vários lutaram contra suas amarras, mas não houve hesitação quando um
dos prisioneiros falou, fazendo a voz masculina ecoar:
— Eu sou Iro.
— Parece que aqui temos um que deseja servir a seu novo senhor.
Castor olhou para Lore. Ela balançou a cabeça negativamente, e seu pavor
se intensificou. Mas havia algo a mais…
— Já que o pai não nos contará, talvez sua filha esteja inclinada a isso —
Ele foi até o cofre, erguendo a mão para dar uma batidinha debochada.
— Criança. Você não gostaria de se juntar a nós? Não creio que você
gostaria de assistir enquanto faço o seu pai sangrar até morrer nem
enquanto extermino toda a Casa de Odisseu. É algo terrível ser a última da
sua linhagem.
— Você lembra como chegar a ela? — perguntou Van. Lore hesitou, mas
assentiu.
Lore olhou para baixo novamente, para onde Fúria se demorava, próximo à
porta do cofre.
Por quatro anos da vida de Lore, Iro havia sido a única pessoa em que ela
podia confiar completamente, e Lore havia sido a única amiga verdadeira
que a menina tinha, já que sua linhagem ficava competindo por poder e por
favores do pai de Iro, que havia ascendido recentemente. As duas falavam
aquele idioma secreto e silencioso do luto enquanto perdiam todos que lhes
eram próximos.
Lore sempre idolatrou a prima, como ela parecia calma e perfeita diante da
incerteza, quando as emoções de Lore pareciam grandes demais para caber
no corpo. Exceto por aquela última vez, elas haviam sempre protegido uma
à outra, e Lore sabia que a insistência de Iro para treinar com ela havia sido
a única coisa que estava entre Lore e uma vida como serviçal da
propriedade dos Odisseídeos.
Abandoná-la foi uma das decisões mais angustiantes que Lore já tomara na
vida. Não faria aquilo novamente.
VINTE E UM
daquilo — não era como se Van não pudesse se defender ou usar seu poder
de persuasão para se livrar do perigo, mas ele não fazia ideia de quantos
Cadmídeos estavam naquele ônibus ou do que estavam dispostos a fazer
para manter seus prisioneiros.
— Por aqui — disse Lore, indo na direção do que aparentava ser o estoque
dos fundos. Lá, embaixo de um alçapão escondido por um tapete de
borracha, havia uma escada.
Lore ergueu seu celular para iluminar o que estava ali embaixo, mas não foi
necessário. Algumas luzes dispersas piscaram até acender quando elas
passaram por um sensor escondido, revelando o túnel inacabado escondido
embaixo dos edifícios e ruas.
Van deve ter colocado o celular no mudo antes de entrar no ônibus, porque
foi Castor quem trouxe as novidades.
— Van está… parece que… eles partiram — disse ele. As palavras ficaram
picotadas por chiados, depois cessaram de vez com a queda da ligação.
— Não tem sinal aqui embaixo — disse Lore, correndo para a frente.
— …peguem as motos…
Atena tateou as bordas da porta sem nenhum vão, depois deu um passo para
trás, erguendo um dos punhos. Lore deu um pulo quando ela deu uma
pancada bem no centro da porta. A pele dos nós de seus dedos rachou,
deixando uma mancha de sangue no metal. Ela bateu de novo.
— Ela é reforçada para aguentar uma explosão. Você não vai conseguir
abrir na pancada… — protestou Lore.
Mas não havia ninguém do lado de dentro. Iro abrira a porta do cofre.
E a matança.
Aquilo foi a última coisa que Lore notou antes que o mundo explodisse.
Castor esperou o máximo que pode, Lore sabia disso, mas uma pequena
parte dela ecoava a frustração de Atena quando a energia do novo deus caiu
em ira sobre a cúpula. Seu ataque as ajudaria a salvar Iro, o que Lore queria
desesperadamente, mas também forçaria Fúria a recuar novamente para as
sombras, e Atena perderia a melhor chance de matá-lo.
Atena abaixou a cabeça e entrou na briga com um grito feroz, apenas para
ser impedida quando o calor da rajada de Castor a jogou para trás.
— Papai!
Lore passou a dory por debaixo dos pés de um caçador próximo, fazendo-o
cambalear direto para um raio ardente. Ela tossiu, se engasgando com a
fumaça espessa enquanto tinha dificuldade para avançar.
Iro gritou.
Até Lore chegar a ela, os restos mortais do Guardião do Amor estavam aos
seus pés, com o tórax partido ao meio. A garota se ajoelhou lentamente,
com o rosto rígido de choque. Suas mãos tremiam quando tocou o rosto do
pai.
E Fúria não estava em lugar nenhum.
Lore segurou Iro envolvendo o seu peito com os braços, puxando-a para
trás.
— Sou eu… sou eu, Lore! Precisamos sair daqui! Iro, precisamos ir…
Iro se desvencilhou de Lore, girando para encará-la. Ela tirou a dory da mão
de Lore e pôs a ponta na garganta dela em questões de segundos.
— Você não devia estar aqui! Você precisa ir embora! Ele não pode vê-la!
Atena avançou na direção delas por trás, espalhando fumaça e brasas. Sem
dizer palavra, ela ergueu a haste da sua dory e acertou o pescoço de Iro. A
garota caiu amolecida nos braços de Lore.
A deusa caminhou até o cofre que as esperavam, passando por cima dos
corpos e destroços no caminho. Lore se ajoelhou, erguendo Iro nos ombros.
Elas haviam acabado de alcançar a sala segura quando Lore sentiu uma
pressão na base de sua nuca. Ela deu meia-volta lentamente.
A deusa percebeu que Lore não a seguia e deu meia-volta. Ao avistar Fúria,
pegou a arma de Iro e a lançou com toda a sua força. Fúria girou, deixando
que ela passasse raspando pela sua bochecha enquanto cortava o ar ao seu
lado.
Aristos Cadmou havia sido o monstro dentro do labirinto de sua mente por
muito tempo, ela tinha uma memória quase perfeita do seu rosto cheio de
cicatrizes e da forma como seu cabelo escuro e grosso era salpicado de
grisalho. Ele parecia mais jovem agora do que Lore lembrava, como se a
imortalidade o tivesse feito voltar algumas décadas.
— Encontrei você.
Lore carregou obedientemente o pequeno pacote que sua mãe lhe dera e o
acompanhava a um passo de distância. O seu pai amava sorrir, mas não dera
nem mesmo um risinho naquela manhã. Ele e mamãe nem se falaram.
Agora, suas escápulas estavam contraídas como as asas de uma vespa. A
julgar pela expressão no rosto do pai, ela estava com medo de perguntar
sobre o destino deles, sob risco de ser ferroada por uma palavra pontiaguda.
O mês de abril havia feito desabrochar toda a vida secreta da cidade. Lore
evitava cuidadosamente as pequenas flores e a grama que cresciam
apertadas entre as rachaduras da calçada. Os pássaros que cantarolavam no
topo das árvores ao longo da rua deles a cumprimentavam quando ela
passava. Lore sorriu para eles.
Apesar de Lore estar mais velha, e mais alta, a sua visão do seu papai nunca
parecia mudar. Para a menina, ele era tão grande e forte quanto qualquer
edifício do centro da cidade que cortava o céu como lustrosos punhais de
vidro.
Lore se apressou para acompanhar o ritmo das longas passadas do seu pai.
— Me conta — disse ele, mantendo o tom de voz leve —, como vai o seu
Castor?
Com o sol atrás dele, Lore não conseguia ver o seu rosto.
Lore mordeu o interior da boca tão forte que sentiu o gosto metálico de
sangue. Ela se encontrava com Castor fora da Casa Tétis o tempo todo. Nos
dias que não havia nenhuma lição para a turma deles ou quando eram
liberados mais cedo, e nem seus pais, nem sua babá, a Sra. Osbourne,
sabiam disso.
A menina era grata por ter irmãs mais novas. Elas podem ter roubado o seu
velho cobertor e Coelhinha, mas mantinham o olhar de Sra. Osbourne
constantemente afastado dela.
— Agora ele está treinando cada vez mais com a Curandeira Kallias —
disse Lore, tentando não soar tão magoada quando se sentia com aquilo.
Um dia, Castor seria o melhor curandeiro que os Aquilídeos teriam, mas,
até lá, não queria treinar com nenhum dos outros que perderam seus
parceiros, que foram treinar com os arquivistas e os ferreiros. — Eu acho
que não me importaria de encontrar Castor fora do treino…
— Fora do treino… por exemplo, quando vocês foram para o Central Park,
na última quinta-feira?
Ela poderia dizer que teve que voltar andando para casa por um caminho
diferente por causa do trânsito ou de obras…
— Ahá! — disse ele. — Nunca se corrige uma mentira com outra.
— Me prometa que vocês não vão lá de novo sem um adulto — disse seu
pai.
O queixo de Lore caiu. Não é seguro? Ontem seu instrutor lhe mostrara
entre quais costelas deveria enfiar uma lâmina para acertar o coração. Ela
havia praticado os movimentos esta manhã na frente do espelho do
banheiro.
O pai parou novamente, respirando fundo. Uma expressão passou pelo rosto
dele, e Lore não o compreendeu. Não era exatamente medo — era mais
como se ela tivesse lhe socado o estômago e ele estivesse lutando para não
se curvar. Ele ficou em silêncio por um longo tempo.
Lore se afastou, saindo do alcance dele. Ela abraçou o pacote junto dela.
O coração de Lore começou a palpitar. Ela apertou o pacote com tanta força
que amassou o papel pardo.
Lore não disse nada. Sua raiva resmungava no peito, forte e torturante. Ela
daria conta de qualquer um — ou de qualquer coisa — que tentasse atacá-
la.
Monstros tinham presas, mas por isso foram dadas garras às leoas.
— O pai de Castor é um conhecido meu — disse ele. — Vou falar com ele
sobre vocês se verem fora da aula e pedir a permissão de Philip Aquileu, se
for necessário. Mas você… você precisa me prometer.
— A sua irmã vai se juntar a você na Casa Tétis logo. Você gostaria disso?
Lore deu de ombros. Ela não conseguia imaginar Pia, com seus olhos
grandes e seus pequenos dedos sempre manchados com tinta, levando
golpes dos bastões de treino de seus colegas de turma. A ideia fez o peito de
Lore resmungar de novo, apesar de ela não ter certeza do motivo.
Lore deu de ombros novamente. Ela já sabia o que daria para a irmã como
presente: uma promessa de arrumar a cama e trançar o cabelo dela todos os
dias até o verão ser varrido pelos ventos do outono.
— Ver um filme? — arriscou ela. O seu pai não gostava muito de ver
filmes, mas talvez dessa vez…
Sem parar, eles ficaram trocando ideias até que se esgotaram as coisas que
haviam feito e tiveram que inventar coisas que nunca fariam.
Lore ajeitou o pacote nas mãos. Não era pesado, mas o tilintar dentro dele a
fazia ficar curiosa.
— Não, chrysaphenia mou — disse ele, olhando para frente. — Não vamos
levá-la ali. É um lugar de monstros.
Lore não reconheceu o restaurante. Nem mesmo achou que estivesse aberto.
— Não fale nada — disse o pai, com o tom de voz baixo, pegando o pacote
de suas mãos. — Você se lembra do que eu ensinei sobre como as visitas
devem se comportar? Os Cadmídeos nos convidaram em um gesto de boa
vontade e paz.
Lore recuou.
Ela respirou fundo pelo nariz, segurando o ar para evitar que dissesse algo.
— Eu não podia recusar sem que ficasse parecendo um insulto. Eles não são
conhecidos por reagirem com cortesia quando se sentem desprezados.
— Mas papai…
disse ele. — Não tenha medo. Eu estou com você, e somos estranhos aqui.
Lore sabia que sua família não era como as outras linhagens. Mas uma
coisa era treinar na casa do grande Aquiles, outra era ir até o pior inimigo
dos Perseídeos em busca de armas, armaduras e informação. Ela odiava que
tivesse que ser daquele jeito. Perseu era um herói muito maior do que
Cadmo.
— Quem é?
A mulher que abriu a porta era bem mais velha, com cabelo branco e pele
desgastada. Ela trancou a porta assim que entraram.
O homem tinha a aparência que Lore sempre imaginou que Hades teria
enquanto comandava o reino dos mortos.
Sentado próximo aos seus pés estava um garoto que parecia ter por volta da
idade de Lore. Ele vestia um traje parecido com o do homem — uma túnica
sombria de seda, calças sombrias, botas sombrias e um sorriso sombrio. Ele
a olhou com o nariz empinado, como se ela fosse um cão que ele pretendia
chutar para longe.
Lore ouvira histórias sobre Aristos Cadmou. Suas esposas mortas. Ártemis
quase ter sido assassinada por ele. Sua impiedosa ascensão na hierarquia da
própria linhagem para se tornar arconte. Seu rosto contava todas essas
histórias, suas linhas de expressão profundas e suas cicatrizes brutas faziam
parecer que a face fora esculpida da mesma árvore que deu origem a seu
trono.
Pelo que Lore sabia, ele era apenas dez anos mais velho que o seu pai, mas
ela supôs que uma alma vil o apodreceria de dentro para fora mais rápido
até mesmo que do que Cronos conseguiria fazer.
semana. Era ouro líquido para eles, mas o garoto, Belen, enrugou o seu
narizinho de porco ao vê-los.
Aristos estalou os dedos para uma das mulheres ali perto, que se curvou
diante dele e trouxe uma garrafa antiga.
O seu pai a cutucou para que fosse aceitar o presente. Lore encarou a
mulher enquanto ela avançava lentamente, uma massa de músculos e
tendões.
Seus olhos eram delineados por kajal preto, assim como os de muitas das
outras mulheres e garotas com cerca de sua idade reunidas à sua volta. A
pintura fazia com que os seus olhos parecessem brilhar.
Lore estava com as narinas dilatadas de raiva, mas o pai se mantinha calmo.
— Ora, de fato.
O seu pai olhou para Belen, que estava esfregando ranho na frente da
túnica.
— Certamente as crianças são muito jovens para terem os seus futuros
decididos…
— Não estou tão certo quanto a isso — respondeu seu pai. — Creio que
escolhemos o que vamos nos tornar.
— Não a quero para Belen — disse ele. — Quero-a para mim mesmo.
Os dedos de Lore ficaram frouxos, e apenas seu reflexo lhe permitiu que
pegasse a garrafa antes que caísse no chão e quebrasse. Ela voltou o olhar
para o pai, implorando em silêncio para irem embora agora, antes que
outras palavras depravadas saíssem dos lábios de cobra do homem.
— Ela tem apenas dez anos — disse seu pai. — Você é meio século mais
velho do que ela… e suas outras esposas…
— Não vejo dessa forma — disse seu pai. — Ela é minha herdeira…
— Seja sensato, Demos. Você tem duas outras filhotinhas para desovar em
outras linhagens — disse Aristos. — Se livre de uma sanguessuga e
respirará com mais facilidade. Pagarei muito bem por ela.
Levou um momento para que Lore percebesse que o fraco som de rosnado
que ouvia estava vindo dela.
— Você me acha tão tolo — disse ele —, a ponto de não saber o real motivo
de sua oferta?
— Isso deve assombrá-lo, assim como assombrou o seu pai e o pai dele —
continuou o pai de Lore —, ter tal herança em sua posse e ela não poder ser
nada além de decoração. Quão pesada ela é em suas mãos? Você consegue
levantá-la sem nenhuma ajuda, como as minhas filhotinhas conseguiriam?
— E como vai assombrá-lo saber que a herança que perdeu está bem
debaixo dos seus pés, a apenas um andar abaixo — disse Aristos. —
Lore viu lampejos vermelhos conforme o calor dentro dela crescia. Eles
estavam falando sobre a égide, o escudo de Zeus carregado por Atena. A
herança que Zeus presenteara à sua linhagem nos primórdios do Ágon, a
herança que os Cadmídeos haviam roubado deles. Ela estava aqui.
Mas minhas filhas nunca lhe darão um filho que possa portá-la.
— Não posso imaginar que deseje a imundície em que vive agora. Não
gostaria de viver em meio a uma linhagem mais poderosa; de possuir ouro,
joias e seda? — perguntou Aristos.
Seu pai lhe havia dito para que não falasse. Ela sabia que não deveria,
mesmo agora, mas não podia evitar. O orgulho queimou em seu coração.
— Você, uma léaina? — disse Aristos. — Tenho muitas delas, como pode
ver. Todas mais corajosas, mais rápidas e mais fortes que você…
A mão do seu pai a prendeu pelo pulso, puxando-a para trás antes que o
vidro pudesse perfurar a garganta da garota. Por um momento, Lore não viu
nada além do rosto dele, o horror estampado ali. Seu peito subia e descia
com força, e ela não entendia por que aquilo lhe dava vontade de chorar.
Ele a afastou das leoas e do Cadmídeo que veio na direção dela. Pela
primeira vez na vida, Lore ouviu medo de verdade na voz do pai.
— Por favor — começou ele —, ela é apenas uma criança… não conhece o
próprio temperamento, e não houve a menor intenção de insultá-lo como
anfitrião. Se formos punidos, que seja a mim, que falhei em criá-la melhor.
— Saiam.
— Só há uma coisa que quero — disse Aristos Cadmou. — Por sorte, gosto
de fogo nas minhas mulheres… — disse ele, se inclinando para mais perto
—
e do desafio de extingui-lo.
O arconte deslizou um envelope para dentro do bolso da blusa do pai.
— Está é a minha oferta pela garota. Dê-me sua resposta até o fim do Ágon.
Seu pai deu um curto assentir de cabeça, agarrando a mão dela com tanta
força que Lore não tinha escolha a não ser segui-lo até a porta. Ela não
ousou olhar para trás, nem mesmo quando o outro homem falou pela última
vez.
— Este é o futuro dela — disse ele. — Não há nada mais para ela em nosso
mundo. Eu me certificarei disso, de um jeito ou de outro.
Eles haviam andado por quase vinte minutos quando o pai diminuiu o
ritmo.
Ele não disse nada quando se ajoelhou e a puxou para um forte abraço.
— Desculpe, papai…
Ele a pegou no colo, apertando-a junto dele, como fazia quando a filha era
VINTE E DOIS
A PORTA DO COFRE SE FECHOU.
— Por quê? — vociferou ela. — Logo agora, que nosso inimigo estava ali,
ao nosso alcance…
Lore deu um jeito de dizer alguma coisa, mesmo que as mãos frias do terror
ainda agarrassem sua garganta, sufocando-a.
A porta vibrou com um bang ensurdecedor quando algo bateu nela. Atena
ajeitou a postura assim que ouviu o som, controlando o suficiente a raiva
para apenas vociferar:
Lore engoliu a bile em sua boca e sentiu seu coração ainda furioso no peito.
Não… o risco era grande demais agora. Era preciso ajudar Castor e levar
Iro para um local seguro.
Bang bang.
Tarde demais.
Tarde demais.
A salvo.
Lore ajeitou o peso de Iro. A garota era mais alta que Lore, o que
dificultava bastante a tarefa de carregá-la.
O olhar de Atena foi rapidamente na direção dela. — Por que você fechou a
porta? Sua fé em nosso objetivo vacilou?
— Não. É que… nós estávamos expostas demais. Tem uma diferença entre
ter poucas chances de vencer e estar certa da derrota, e somente havia a
última opção.
— Seu medo o alimentará — disse Atena. — Dará prazer a ele. Não lhe
conceda isso. Ele é tão mortal quanto você nesses próximos seis dias. Se
você fraquejar novamente, lembre-se do que ele lhe tirou. Ele pode ser
poderoso, mas você tem retidão. E, caso isso a abandone, lembre-se de que
estou ao seu lado, e eu não a deixarei fracassar.
Lore tentou pensar em uma resposta. Ver Fúria vindo na direção dela,
sabendo que ele a reconheceu, havia sido como uma onda de dúvida
quebrando contra a sua confiança. Não é que ela queria menos a morte dele
em relação a outrora. O que houve foi a repentina e dura percepção de que o
Ágon poderia lhe pedir que fosse ela a responsável pela morte de um
homem.
O endereço que Van dera a ela e a Castor antes de se separarem era uma
lavanderia a umas vinte quadras ao norte, em Hell’s Kitchen.
— Vou encerrar por hoje. Fale para o Evander deixar o pagamento no cofre,
dessa vez com notas diferentes.
— Veja só você, fazendo amigos aonde quer que vá — disse Lore, enquanto
Atena deixava Iro em uma das cadeiras do escritório. A deusa se afastou,
deixando Lore sentir o pulso de Iro e tentar acordá-la.
— Você não bateu com força demais, não? — perguntou Lore. Iro estava
inconsciente há quase vinte minutos.
— Por que eu estou com a sensação de que as coisas não saíram como
planejadas?
Fúria está vivo, o Guardião do Amor está morto e Iro pode saber a outra
versão do poema ou onde encontrá-la.
— Todos já voltaram?
Van parecia menos preocupado com esse fato do que Lore. Ele parou na
porta, assimilando a visão de Miles. Os seus lábios estavam contraídos, mas
não disse nada enquanto o estudava.
— Quer dizer que eu sei quanto tenho que pagar para garantir que ela se
esqueça de tudo que vê e escuta — disse Van.
Lore deu um pulo quando pelo menos três dúzias de bolos de notas de cem
e de vinte dólares atingiram o piso. Ele agarrou o notebook no fundo antes
que caísse junto com o dinheiro.
Lore cobriu um dos bolos com o pé e tentou trazê-lo para perto de si sem
ser notada.
Havia uma faísca de algo nas suas palavras — uma alegria, como uma
criança que havia acabado de se safar depois de burlar as regras pela
primeira vez. Seus olhos brilhavam quase febris com aquela lembrança, e
suas bochechas estavam coradas, do jeito que sempre ficavam quando ele se
animava.
— Claro, eu parei para me mimar com uma refeição cara — retrucou Miles.
— Não sou ladrão. Ele tinha outra informação, mas queria mais dinheiro
por ela.
— Então, me diz aí, qual informação é mais valiosa para a gente agora? —
Van se levantou, mas Miles não recuou, nem mesmo para fugir do olhar
furioso de Van.
Castor limpou o suor do rosto no ombro, mas sua blusa já estava colada em
cada linha do seu peito e braços.
Castor rasgou uma sacola de roupas que estava esperando ali perto para ser
entregue e fuçou por entre as peças até encontrar uma toalha.
— Ataquei quando era para ter desviado — disse Lore, com dificuldade,
tentando se concentrar no rosto dele.
— Ela está…
— Não — disse Lore, se afastando. — Iro primeiro. Iro. Ela… ela precisa
acordar.
— Não vou ficar assistindo enquanto você sangra bravamente até a morte
— Iro primeiro.
Castor passou por Atena e foi até o escritório. Lore não se juntou a eles até
que a luz do poder de Castor se infiltrasse no corredor escuro. Ele trabalhou
rapidamente, assentindo enquanto Miles repetia o que havia descoberto do
informante Cadmídeo.
Castor suspirou.
— Isso o assustaria.
— Ela olhou para Atena. — Você disse que não tinha conseguido sentir a
presença de Hermes nesses últimos anos, acha que tem a ver com isso?
— Estamos supondo que Fúria ainda não percebeu o que estamos tentando
fazer — destacou Castor —, e que ele não vai prever isso.
— Não… — disse Lore, lentamente. — Não acho que ele vá perceber. Não
isso. Ele pode saber que estamos indo atrás dele, mas não tem ideia de que a
gente sabe sobre o Folião quebrando a aliança deles. Nem mesmo Van
soube sobre eles serem aliados, e ele aparentemente tem fontes em todo
lugar.
Castor voltou a fitar Van, parecendo indagar algo. Van não disse nada,
apenas balançou a cabeça negativamente em resposta.
A toalha estava ficando pesada, assim como sua cabeça. Ela precisou
encostar a têmpora contra o batente da porta para se manter na vertical.
— Não seria mais rápido? — perguntou Castor a ele.
— Quase nada além do que todo mundo já sabe — disse Van. — Ele
ascendeu há pouco mais de cem anos. Ele era conhecido como Iason
Heracliou na sua vida mortal, filho do arconte Iason, o Ancião. Ele
assassinou a família inteira quando ascendeu e destruiu todos os registros
deles para aumentar a dificuldade de caçá-lo.
Acho que não ter mais uma linhagem para puni-lo por ser um assassino de
parentes ajudou.
— Além disso, ele tem sido o Dionísio menos empreendedor que já vimos,
o que quer dizer que não conseguimos rastreá-lo por meio dos negócios —
precisamos estar preparados para tudo. Não esqueçam que o poder dele
pode induzir uma sensação de entorpecimento e frenesi. Ele é conhecido
por lançar ilusões na mente dos caçadores para poder fugir.
— Você tem uma foto dele, Van? — perguntou Lore. — Eu nunca o vi.
Van deu uma risada alta, para a surpresa de Lore, e até mesmo, ao que
pareceu, do próprio Van. Ele se recuperou rapidamente, contraindo os lábios
como se para apagar completamente o sorriso.
— Há rumores de que ele foi arquiteto — disse Van. — Já ouvi também que
ele morava aqui, na cidade, mas não tem nada que fundamente isso.
— Bom, nós sabemos de uma outra coisa — disse Miles. — Ele está em pé
no Frick.
Lore estava tão concentrada em tentar analisar o rosto do homem que mal
prestou atenção no cômodo ao redor dele.
— No quê?
— Boa — disse Castor —, e enquanto você faz isso… — Ele soltou a mão
de Iro com cuidado. — Ela deve acordar em alguns minutos.
VINTE E TRÊS
Ela tomou conta de Gil por anos e se acostumou a assumir esse papel. A
estranheza de ser cuidada — a relutância que sentiu — a fez se lembrar de
algo que Gil dissera a ela três anos atrás, na noite em que se encontraram.
Lore ficou abismada, e apesar do próprio medo e cansaço, ela carregou Gil
nas costas até o hospital mais próximo e sentiu-se compelida a ficar lá com
ele, não tinha intenção de deixar aquele homem vulnerável sozinho. Ela
fingiu ser sua neta para cadastrá-lo e ouviu quando ele falou sobre si mesmo
— um professor solteiro da cidade de Nova York, e ele sabia que essa seria
sua última viagem para o exterior. Quando o médico suturou as feridas de
Gil e tratou do corte em sua face, a ideia havia se formado completamente
na cabeça de Lore.
Gil não fazia parte do mundo dela, e estava sozinho no seu. O que Lore
propusera foram apenas negócios: ela viajaria para Nova York com ele e
trabalharia como cuidadora até que ele não precisasse mais de cadeira de
rodas. Ele ruminou essa ideia com uma relutância tão óbvia que Lore havia
se preparado para o desapontamento. Enquanto esperavam que lhe dessem
alta, Lore indagou o que o fizera mudar de ideia. Ele respondeu:
Ele é lindo demais — pensou ela. Não apenas pelo que havia se tornado,
mas de um jeito que era inegavelmente único.
Ele a lançou um olhar desconfiado enquanto tirava a toalha das mãos dela e
a deixava cair no chão. Cuidadosamente, sem incomodar com o ferimento,
ele puxou o colarinho da blusa dela para poder ver melhor.
Ele pareceu ignorar o comentário, mas Lore podia dizer que o amigo foi
parcialmente afetado por ele.
A alça de seu sutiã estava sobre ele, presa na casca de uma das feridas mais
superficiais. Os dedos de Castor hesitaram sobre a alça, e eram quentes
sobre a pele lisa. O sangramento havia diminuído, mas o frio que ela sentiu
se acumular debaixo da pele estava se aprofundando.
Ela assentiu com a cabeça, engolindo a seco. Ele cortou a alça, observando
a face de Lore o tempo todo.
— Não está doendo mais — disse ela. — Isso é um bom sinal, certo?
— Isso é o oposto de bom sinal — disse Castor, com a voz firme. — Quem
deu o golpe?
— Por que quer saber? Vai me vingar? — indagou ela, e tentou olhar para
baixo para ver o ferimento. — Está tão ruim assim? Não parece estar.
— Eu acho que você está em choque — disse ele. — Quem foi? Eu perdi
você de vista quando a poeira e a fumaça aumentaram.
Mas, então, a mão dele estava ali, pressionando firmemente o sangue que
escorria do ferimento. Lore sentiu calor, uma queimadura aguda que se
desfazia em um calor anestesiante.
— Você teria contraído o músculo e seria mais difícil tirar o vidro — disse
Castor. — Parece que eu ainda me lembro de algumas coisas que a
curandeira Kallias me ensinou.
Ela sabia que ele estava certo, mas isso não queria dizer que Lore não
ficaria chateada com aquilo por um tempinho.
Castor pegou a mão dela. Lore fechou os olhos e encostou a cabeça contra o
espelho atrás de si. Segurou-se no amigo, querendo ficar naquele momento,
querendo se apoiar em alguma coisa real antes que os poderes dele
deixassem sua mente leve.
— Fui eu? — perguntou ele, baixinho. — Fui eu que fiz isso com você?
Lore se forçou a abrir os olhos. O dourado nas íris dele rodopiava, brilhante
na escuridão do banheiro sujo.
— Fui eu, por não conseguir controlar a minha força? — perguntou ele
novamente.
— Queria que fosse fácil assim — disse ele —, e que eu pudesse explicar
isso melhor, mas… desde que recuperei minha forma física, é como se eu
não conseguisse recuperar totalmente meu equilíbrio. Tem uma desconexão
entre o que a minha mente espera e o que o meu corpo realmente faz.
— Eu sei — disse ele. — Mas eu era fraco, por um bom tempo, e não por
A vida que ele teve. A vida que seria interrompida impiedosamente cedo
demais, não fosse pela ascensão. Ela podia quase sentir a história que ele
estava guardando. A forma como se agitava debaixo da sua pele, como se
estivesse desesperada para ser contada.
O pomo de Adão dele subiu e desceu quando ele engoliu em seco. Ele
parecia refletir sobre algo, e Lore quase desejou não ter perguntado. De
todas as coisas que havia mudado entre eles, ela não tinha certeza se
poderia lidar pela primeira vez com uma mentira dele.
— Eu não sei.
— O quê?
— Eu sei — disse ele, tenso. — Não havia câmeras no meu quarto. Van me
disse que as outras câmeras de segurança pararam de funcionar quando
Apolo entrou na Casa Tétis. Eu estava sozinho quando aconteceu.
— Van sabe? — perguntou Lore. Ela não tinha motivo nenhuma para se
sentir magoada com a revelação, mas estava.
— Ele não sabe sobre a perda de memória — disse Castor. — Eu sei que ele
vem tentando descobrir sozinho. É que…
— Por isso que você estava tentando falar com Ártemis? — disse Lore,
finalmente ligando os pontos. — Você acha que ela pode saber?
Ele assentiu.
— Eu não sei como era a conexão deles ou se ela viu o que aconteceu.
Atena não parece saber. Ártemis teria contado a ela se tivesse testemunhado
a morte de Apolo?
Lore.
Castor deu um sorriso pequeno e efêmero. Lore pegou a mão livre do rapaz
e a apertou.
Lore sentiu algo no seu peito se partir com o desespero silencioso nas
palavras dele.
que quer que tenha acontecido, foi porque você era você. Nós vamos
descobrir o que houve, eu prometo. Pode me cobrar.
Castor assentiu.
O calor desapareceu do toque dele quando terminou de curá-la, mas ele não
se afastou, nem Lore. Ele umedeceu uma toalhinha de rosto e começou a
limpar o sangue da nova pele corada de sua amiga com uma ternura que
quase partiu o coração dela. Lore abriu as pernas, deixando-o se aproximar
mais, e fechou os olhos.
— Você pode — disse Castor. — Não deixe que puxem você de volta. Não
há nada além de sombras aqui.
precisar dela.
— Eu sei — disse Castor. — Mas nunca pensei que você venceria o Ágon.
VINTE E QUATRO
Ela tentou prender os braços da garota junto ao corpo, mas Iro sempre foi
mais rápida e com instintos mais aguçados. Lore não notou nenhuma
racionalidade no rosto da garota quando ela agarrou um dos pesados
fichários da estante e o atirou na direção de Castor.
Ao ver Lore, Iro avançou, não para atacá-la, mas para protegê-la dos outros;
— Eu… o quê?
Lore afugentou a perplexidade que sentiu ao perceber que Iro a protegia e
conseguiu segurar a garota em seus braços antes que ela pudesse se
recuperar.
— Me solte! Você precisa sair daqui! — disse Iro, por entre dentes
cerrados, fazendo força e se debatendo para se soltar de Lore. Seu fraco
sotaque francês nunca ficava tão forte quanto nos raros momentos em que
ela levantava a voz.
— Pare — disse Lore, forçando as duas para o chão com uma queda brusca
— com isso! Ninguém vai para lugar nenhum. Você está segura aqui… eu
estou segura aqui.
Assim como Atena, ele está trabalhando com a gente para tentar matar
Fúria.
Ele usou o poder para ajudar você a escapar. E não vai machucá-la.
Nenhum de nós vai.
Iro se livrou de Lore, se levantando para poder encará-la. Seu manto preto
de caçadora estava torto, revelando o fino colete à prova de balas que ainda
usava por baixo deles. Pareceu levar um momento para que ela entendesse o
que Van lhe dissera.
— Sim, é ele — disse Lore, vindo ficar ao lado dele. — Ele é o Castor, do
mesmo jeito que o Guardião do Amor era o seu pai.
— Ele… ele não era… — disse Iro, sem conseguir achar as palavras certas.
Ele havia sido o arconte dos Odisseídeos por anos antes de ascender para se
tornar o novo Afrodite no último ciclo do Ágon. Lore chegou à família
depois e não estava presente quando o novo deus manifestou uma forma
física e apareceu para eles.
Pelas histórias que ouviu de Iro e de outros membros da família, ele era
severo, mas não um pai totalmente desprovido de amor pela única filha.
Todos na sala pareceram se voltar para Castor de uma vez só, cujo rosto
mudava como o céu ao nascer do sol. A perplexidade se tornou negação e,
depois, desespero.
— Se ela não diz a verdade — disse Atena a Castor —, então diga-a você.
— Você pode não se importar — disse Iro, alternando o olhar entre os dois
deuses. — Mas eu vou fazer o que Melora não conseguiu. Vou garantir que
a Casa de Odisseu traga a morte a vocês e retomarei o kleos roubado do
meu senhor em morte.
Ouviu os seus pais e os seus instrutores. Ouviu as frases dos textos antigos
que leu de novo e de novo. Nem mesmo a lógica apagaria dezessete anos de
um cuidadoso condicionamento psicológico.
Iro suavizou sua postura rígida. Pela primeira vez, Lore sentiu algo que
remetia a uma abertura.
— Precisamos saber o que você contou para Fúria — disse Lore. — Foi
sobre o poema da origem? Uma versão alternativa dele?
Iro se levantou, com os pés enraizados no chão, mãos fechadas em punho.
Querendo correr, querendo lutar, mas presa ali pela sua mente.
— Só nós duas? — hesitou a outra garota, e nada doía mais em Lore do que
aquilo.
— Não apareceu ninguém ainda. Mas tem uma classificação nova que pode
te interessar, Lore.
Ele virou o celular para que Lore visse o que estava na tela.
Melora Perseus aparecia na lista bem abaixo do nome do Folião, mas antes
do de Castor. Quando ela clicou nele, o mapa de Manhattan se acendeu com
marcadores brilhantes que destacavam supostos locais em que a viram.
Lore pressionou a mão livre contra os jeans, tentando esconder como ela
estava suada. O chiado aumentava em seus ouvidos novamente. Ela tentou
falar, mas nenhuma palavra saiu de sua boca.
— Somente Fúria teria ordenado algo assim — acrescentou Van. — Ele
deve ter um número grande de caçadores procurando por você, já que estão
revirando tantas pistas.
dela podiam fazê-lo voltar a ser o garoto que fora. Ele já tinha que lidar
com coisas demais nesta semana para ter que temer por ela.
— E é por isso que nós temos que encontrá-lo primeiro — disse Lore.
Lore seguiu Van pela porta lateral para tentar debater sobre a localização do
armazém, apenas para descobrir que Iro a seguira. A garota saiu para a rua,
cruzando os braços na altura do peito.
Lore observou Van desaparecer na escuridão e ficou tentada a ligar para ele.
Contudo, Iro falou primeiro.
— A mão dele — disse Iro. — A história que me contaram foi que o pai
estava tão envergonhado da falta de vontade do filho de lutar, da sua
inaptidão para o combate, que cortou a mão da espada de Evander para dar-
lhe uma desculpa honrosa para não lutar.
— Eu acho que ele mesmo fez aquilo — disse Iro, e sua expressão se
tornou pensativa. — Não por fraqueza, mas por força. Pela vontade de
decidir o próprio caminho.
— E essa caçada, essas famílias que fariam Van lutar contra a própria
vontade; é esse o mundo no qual você acredita? — perguntou Lore. — Ao
qual tem tamanha lealdade?
— Nenhum mundo é perfeito. Nem o dos deuses, nem o mortal, nem o dos
caçadores — disse Iro. — Acredito no nosso propósito divino. Acredito em
honra e no kleos, e que nunca seremos destruídos. Acredito nisso, mesmo
que você tenha se permitido desviar do caminho.
— Você sabe por que eu fui embora — disse Lore. — Todo mundo sabia o
que aquele homem era e ninguém disse uma palavra. Onde está a honra na
sua linhagem ao elevá-lo à posição mais alta? Onde está o kleos nisso, Iro?
— Não precisa acreditar para que seja verdade — disse Lore. — Você
consegue afirmar honestamente que eles não teriam me matado pelo que eu
fiz?
— Não sei o que eles teriam feito — disse Iro. — Nós não falamos sobre o
ocorrido. Tudo agora é considerado somente um terrível acidente.
— Eu sei que lhe parece errado que eu esteja trabalhando com deuses —
disse Lore. — Mas veja Prometeu… ele nos trouxe o fogo, mesmo sabendo
o que isso lhe custaria. Há um ponto em que você precisa decidir o que é
certo e agir, não importando as consequências.
— Toda a minha família está morta — disse Lore. — Eu não quero perder
você de novo. Por favor, fique com a gente. Nos ajude.
— Eu não posso procurar pelo Folião com você — disse Iro, com o sotaque
suavizando as palavras até que pareceram sair juntas em um sussurro. — Eu
tenho um dever com a minha linhagem. Mas há uma dívida que deve ser
paga, até mesmo eu sei disso, porque nenhum de nós sobreviveria sem
você.
A garota ficou de pé, com as mãos fechadas à sua frente. Lore esperou,
lutando para esconder a impaciência.
O seu coração ficou como uma pedra no peito quando Iro balançou a cabeça
negativamente.
— Sobre onde encontrá-lo — disse Iro. — Lore, ele diz que o texto
completo está inscrito na égide.
— Não acho que saiba — disse Iro. — A carta dizia que o texto estava
oculto ou de alguma forma protegido por um enigma. O único motivo para
ele ter descoberto isso foi porque alguns dos caçadores invadiram o cofre
onde guardávamos a carta original.
— Ele queria saber onde você estava — disse Iro. — Acho que ele acredita
que você sabe como ler a inscrição e, qualquer que seja o plano dele,
precisa de você para dar continuidade.
VINTE E CINCO
Ela passou por Atena e a sua dory quando a deusa saiu do táxi a vários
quarteirões ao nordeste do edifício. As pontas de ambas as lanças delas
estavam cobertas por fronhas roubadas das trouxas de roupas sujas que
alguém deixou na lavanderia. O motorista mantinha o olhar fixo nas armas
ocultas com certa suspeita, mas não o suficiente para não querer completar a
corrida.
— Por aqui — disse Lore, se apressando pela calçada. Ela deu meia-volta
quando percebeu que Atena não a seguia.
— Certo — disse Lore, lentamente. — Então por que você está olhando
como se quisesse destruir o lugar com as próprias mãos?
— Você não está com raiva? — perguntou Atena. — Seu próprio modo de
vida foi ameaçado.
— Que bom — disse Lore. — Já foi tarde. Esse é um jeito horrível de viver.
Demorou muito para acabar.
Uma centelha de surpresa passou pelo rosto da deusa. Ela parecia mudar de
ideia sobre o que estava prestes a dizer, apesar de sua voz não traí-la.
— Não negue sua herança — disse Atena. — Você não é uma mera mortal.
Já a vi lutar. Você pode silenciá-la, pode suprimir sua gloriosa raiva, mas
uma guerreira ainda vive dentro de você.
— Elas não têm nada a ver com isso. Eu recuso qualquer coisa que esteja
fora do meu controle.
— Você pode negar as Moiras, mas elas não a negarão — disse Atena. —
Lutar contra elas não a salvará do que está por vir. Apenas acelerará o curso
das coisas.
— É o que você diz — disse Lore. — Mas isso significaria que você acha
que sempre esteve destinada a cair em desgraça e ser caçada. Todas as Eras
dos Homens chegaram a um fim, de um jeito ou de outro, com exceção
desta.
— A Era dos Deuses é eterna. — Atena segurou sua dory com mais força, e
Lore perguntou a si mesma se um dia se acostumaria com os olhos da
deusa, com a forma como eles pareciam destruir suas defesas. — Posso ter
sido fadada à desgraça, mas assim o foi para que mais uma vez eu possa
provar meu valor ao meu pai.
— Tenha bom ânimo, Melora. Se Fúria crê que você possui a chave para
desbloquear os segredos do poema, sobreviveremos a esta caçada. Ele não
pode matá-la. Sua morte como a última dos Perseídeos a removeria deste
mundo.
Mas mesmo assim este pensamento lhe deu calafrios. Com a morte recente
da Portadora da Maré, Lore era, de fato, a última de sua linhagem.
— Eles não a perderam… ela foi roubada, junto com todo o resto.
Lore mordeu o interior da boca com tanta força que sentiu gosto de sangue.
Fúria já estava com o poema, que detinha a chave para escapar do Ágon,
seria mais um motivo para que se concentrasse totalmente em sua busca.
Obviamente, o problema seria lidar com o que aconteceria uma vez que
Fúria estivesse morto e Atena percebesse que ele não estava com a égide,
no fim das contas.
Mas esse era um problema futuro, e, pela primeira vez em todo aquele dia,
Lore se sentiu mais calma. Segura, pelo menos, por saber que nenhum dos
deuses encontraria o escudo ou os segredos que carregava.
— Não se aflija, Melora. É vantajoso que ele a procure. Isso o trará direto
para a frente da minha lança.
Mas se o mundo persistir como está agora, quem restará para atender-lhes?
— Você não liga para essa cidade, nem para qualquer outra — prosseguiu
Lore, incapaz de se conter. — Tudo o que importa para você é poder.
Lore odiava o seu temperamento mais do que odiava qualquer outra parte
de si; odiava a velocidade em que saía de uma faísca a uma explosão,
incinerando todos ao redor.
Mas antes que pudesse se voltar à deusa, algo pontiagudo pressionou sua
lombar, bem na altura do rim. Ela olhou para trás.
— Eu não faria isso — alertou ele. — Eu não faria nada além de largar a
lança e vir comigo, quietinha.
Lore vasculhou a rua à sua volta, mas Atena não estava em lugar nenhum.
Ela deu uma estocada com a dory, mas ele bateu nela com sua arma e partiu
o cabo de madeira da lança de Lore em dois. Lore girou para a frente,
evitando o alcance dele quando veio com tudo na sua direção novamente
com a adaga. A única coisa que finalmente o parou foi a sensação da ponta
da dory, uma faca de cozinha, cortando a fronha e fazendo pressão na
traqueia do caçador.
O caçador girou para a esquerda, chutando o peito dela com força suficiente
para derrubá-la na calçada. O pedaço da dory voou das mãos dela, rolando
para debaixo de um carro estacionado ali perto.
Ele estava em cima dela em questão de instantes, levando sua adaga direto
para o ombro da jovem. Lore a bloqueou com um braço, tentando aparar o
golpe, mesmo enquanto tateava pelo chão procurando a ponta da dory. Sua
mão encontrou outra coisa em vez disso.
Lore saiu de cima dele. O caçador estava jogado no chão, com o rosto
ensanguentado. Ele respirava fazendo um ruído chiado, devido ao líquido
nos pulmões desesperados por ar.
Lore abaixou a cabeça, e suas mãos estavam cruzadas com força, agarrando
os braços.
E não era. Mas naquele momento Lore quase invejou Atena por ter um
espaço oco dentro de si onde sua humanidade mortal deveria estar.
— Desculpe — disse Lore, com voz mansa. Sua vida não era inteiramente
sua naquela semana.
VINTE E SEIS
Frick, muitas vezes. Passava por ele e nunca pensou em parar e dar uma
olhada no belo e grande edifício que se estendia da 70th à 71th Street. Esta
cidade era um lugar no qual só se vê o que se procura.
Ela sentiu um cheiro assim que abriu a porta. Putrefação, mofo e sangue. Os
pelos de seu corpo se arrepiaram.
— Ele não vem. Mandou mensagem para o Castor falando para a gente se
encontrar com ele em casa.
— Por que você não vai? — disse ela. — Não precisa voltar lá dentro.
A garganta da mulher havia sido cortada tão profundamente que Lore podia
ver o osso branco de sua espinha dorsal pela abertura. Consequência de uma
morte rápida, mas brutal. Ela não foi nem capaz de gritar.
O outro vigilante teve a face espancada, mas qualquer sofrimento que tenha
suportado acabou assim que foi esfaqueado no coração.
Talvez esse seja o seu limite — pensou Lore. Talvez Miles tenha percebido
que um Mundano mortal não seria poupado da matança se entrasse no
caminho do Ágon.
— Todos estavam… — disse ele, parecendo escolher uma palavra melhor
para descrever a chacina na frente deles — dilacerados. Os caçadores não
usam armas de fogo?
Ela observou enquanto Atena passava um dos cassetetes dos vigilantes nas
maçanetas das portas, reforçando as fechaduras arrombadas.
— Sim — disse Atena, segurando sua dory com firmeza. — Ele não
sobreviveu esse tempo todo por ter uma natureza gentil.
— Mal posso esperar para conhecê-lo — disse Miles, aflito. — Mas agora
acho que temos que seguir em frente, antes da troca de turnos.
Lore tirou o celular do bolso de trás e acendeu a lanterna. Ela guiou o grupo
enquanto seguiam em direção à primeira das duas galerias interligadas pelo
longo corredor. Pinturas e documentos haviam sido removidos para a
reforma, deixando paredes vazias e plaquinhas informativas para trás.
Atena removeu uma das portas, erguendo sua dory. Lore gesticulou para
que Miles ficasse mais para trás. A luz do celular passou por um escritório e
um depósito. Ambos pareciam ter sido estripados e sangraram materiais de
escritório e papelada.
Eles seguiram a trilha de mobília quebrada por entre os cômodos além dali.
O cofre do museu.
Ela saltou quando uma colisão estrondosa rasgou o ar, seguida por outra, e
mais outra — vidro se estilhaçando — e uma única voz soltou um grito
áspero e contrariado.
Lore sacou a adaga do caçador morto, que ela havia amarrado na coxa com
uma tira de tecido. Apagou a lanterna e passou o celular para Miles. Ele
assentiu, compreendendo o que fazer quando ela pressionou um dedo nos
lábios, mas ignorou quando ela ordenou com um gesto que ele ficasse ali
enquanto a amiga se aproximava da porta e a empurrava.
Ele arrastou uma das caixas de uma prateleira ali perto e a jogou no chão,
grunhindo. Ela se quebrou em um instante, permitindo-o fuçar seu
conteúdo.
Lore tateou para trás e, sem olhar, agarrou Miles pela blusa. Ela o empurrou
para trás, depois apontou para o corredor, indicando um lugar seguro.
Este, é claro, foi o exato instante em que o celular de Miles, que estava no
bolso, soltou um toque de estourar os tímpanos.
celular deixou sair a voz: — Miles, preciso da sua ajuda com uma coisa…
Lore o encarou.
Onde ele está? — pensou ela, e o suor se acumulou em gotas no seu buço.
VINTE E SETE
Ela golpeou para cima com a adaga por repetidas vezes, até que finalmente
acertasse o antebraço do Folião. Ele uivou de dor e afrouxou a mão o
suficiente para que ela caísse de joelhos e rolasse para longe, tossindo.
O Folião retraiu o braço pela parede. O buraco que ele abriu revelou o resto
da sala, de modo que uma parte dela se estendia até quase o local exato que
ela havia escolhido ficar.
— Folião! Não estamos aqui para matá-lo! — disse Lore, com a voz rouca.
— Vá buscar Castor!
encurralou em um canto, e tudo que ele tinha para se defender era a adaga
de Lore, arrancada de seu braço, e a tampa de uma caixa que usava como
escudo.
— É claro. Que os deuses amaldiçoem a todos. Não sei por que esperava
outra pessoa nessa merda de ciclo.
— Caguei para isso, e, mesmo que não cagasse, Euristeu dos Perseídeos
tentou destruir todos os filhos de Héracles antes da existência do Ágon.
— A não ser que prefira lutar — disse Atena. — Vamos extrair as respostas
de você de qualquer maneira.
— Acha que eu não sei que você e a caçadora psicótica estão em missão
querendo coletar todas as cabeças dos novos deuses? — rugiu ele. — Pois
venham. Eu as desafio.
— Se esse fosse realmente o caso — disse Lore —, então por que ela
estaria trabalhando com o novo Apolo?
O Folião apontou a adaga para Lore.
— Mentirosa.
— Ela não está mentindo — disse Castor, e sua voz vinha de trás deles. Ele
passou pela abertura na parede, e seu olhar disparou até Lore antes de se
fixar no novo deus.
— Seja como for — disse Castor, parando ao lado de Lore —, Fúria é quem
está matando os novos deuses, não ela.
O Folião zombou.
Eu. Mais ninguém. Vou matar qualquer merdinha que ficar no meu
caminho.
— Isso não vai acontecer se Fúria pegar você primeiro — disse Lore.
— Acha que não sei disso? — disse ele, em tom de zombaria. — Eu sabia o
que me custaria fugir dele.
pior do que o que ela lhe causara. Já estava ficando vermelho por causa do
avanço de uma infecção.
— Por que veio a esse lugar? — perguntou Atena. A repulsa tomou conta
do seu semblante enquanto assimilava a arte destruída ao redor. — O que
procura tão desesperadamente?
— Pensei que ele tivesse deixado algo para mim. Que ele tivesse escondido
aquilo — disse o Folião, olhando para Atena e Lore.
— Por que você decidiu trabalhar com Fúria depois do último Ágon? —
— Prometa que não vai matar ninguém do meu grupo e que vai responder
às nossas perguntas — disse Castor —, e eu curo você.
O Folião zombou.
— Você vai ter uma chance maior de sobreviver se puder fugir dos
caçadores, Iason, e ainda mais se nos ajudar.
Finalmente, disse:
Um dia comandou civilizações e agora não é nada mais do que uma história
que vai sumindo a cada geração. A cada batida ridícula dos corações destes
mortais, você deve se coçar de vontade para arrancá-los.
Atena deu um passo firme à frente, fazendo com que o concreto sob seus
pés se envergasse.
Despertar — disse ele. — Se há mortos neste edifício, não foi minha mão
que os abateu.
VINTE E OITO
— Tudo bem? — disse Lore, apenas movendo os lábios, sem emitir sons.
— Está bem, então eu começo — disse Miles. Lore abriu a boca para
impedi-lo, mas já era tarde demais. — Por que você concordou em trabalhar
com Fúria quando Hermes recusou?
Lore estava prestes a perguntar o que, exatamente, era aquela visão, além de
Fúria assassinando os seus rivais e procurando pelo poema, mas Miles falou
de novo.
— Nossa, ele ter chamado você de tolo e virado as costas depois deve ter
doído — disse ele. — Mas você não fugiu até o Despertar, mesmo que
soubesse que Fúria mataria os seus inimigos, o que incluía Hermes… Isso
significa que parte do seu acordo era que Fúria não podia matá-lo, presumo.
Mesmo na escuridão, Lore conseguia ver a forma como o lábio superior do
Folião subiu, expondo os dentes dele.
— E se você estava tão certo de que Hermes tinha escondido alguma coisa
aqui, em um lugar que representava algo para você — continuou Miles —,
isso quer dizer que você estava em contato com Hermes antes do começo
do Ágon e sabia o que ele estava fazendo nos anos entre os Ágons. A não
ser que apenas suponha que ele deixou algo aqui e não abandonou você, o
que é, obviamente, uma possibilidade.
— Então, no fim das contas, Hermes não queria nada com você. Ele não te
deixou nada. Provavelmente nem se despediu.
— Sua estúpida…
Atena golpeou com a dory de cima para baixo no espaço entre os dois,
impedindo que Castor o imobilizasse.
— Chega.
— Você nos deu respostas que sabe que queremos, mesmo assim, não
respondeu à pergunta que fiz — disse Atena. — Qual é o papel de Melora
Perseus nisso tudo?
— Ainda não é uma resposta — disse Castor, dessa vez com um tom de
alerta mais intenso em sua voz.
disse o Folião. — Posso contar apenas a você, garota. É o que ele disse.
— Minha única missão para Fúria era encontrá-la — disse ele, sem
delongas. — Ele acha que você está com a égide e vai fazer qualquer coisa
para pegá-la de volta.
— Não tem por que mentir para mim. — O novo deus se voltou para Lore,
e ela não conseguia dizer se o que passou por seu rosto era asco ou pena. —
— Hermes — disse o Folião. — Você sabe onde ele estava todos esses anos
em que desapareceu… você sabe, porque ele estava com você.
VINTE E NOVE
— Ele escolheu uma forma patética, mas funcionou contigo, não é? Aquele
homenzinho franzino. Ele fez que você sentisse pena dele. Fez com que
você quisesse ajudá-lo.
— Você achou mesmo que um estranho qualquer faria tanta coisa assim
para pagar o que você fez? Dar a você uma merda de casinha e uma vidinha
doce? — Seu tom passou a ser debochado. — Ele protegia aquela casa e
você. Ninguém podia entrar a não ser que fosse convidado. Demorei dias
para entender isso quando encontrei aquela casa. Que havia alguma coisa…
alguém… lá dentro que eu não conseguia ver. Ele usou seus poderes para
deixá-la invisível para todos nós, deuses. Muito esperto, Hermes. Você é só
uma merdinha que deu sorte por ninguém ter descoberto isso.
— Isso é impossível — disse Lore, lutando para manter a voz firme. Mas as
palavras de Castor já haviam ressurgido na sua memória: Tentei encontrá-la
por anos, mas foi como se você tivesse sumido. Não tinha vestígio nenhum
seu.
claro, ele teria encantado essa coisa para fazer com que você se sentisse
inclinada a continuar usando, independentemente do que acontecesse. Ele
teria feito seu pequeno cérebro estúpido pensar que essa ideia era sua. Que
você amava o presente.
As mãos de Lore foram até seu pescoço desnudo. O colar com a pena.
— Mesmo depois que encontrei a casa, Hermes ainda não queria me ver —
Folião ergueu a mão, como se fosse agarrar o pescoço dela novamente, mas
a deixou parada no ar.
Ela viu Gil na sala de estar, ligando seu toca-discos barulhento, fingindo
que a vassoura era um par de dança enquanto a música enchia o ar. Porém,
quando Lore se aproximou, viu que os pés do idoso estavam pairando sobre
o chão.
— Gil? — O Folião soltou uma risada perversa. — Era assim que ele
chamava a si mesmo?
A imagem de Gil se alterou diante dela. Ele ficava mais alto, com braços e
pernas mais musculosos, a pele macia, plena de juventude. Um brilho
diáfano crescia à sua volta.
Mas…
Quais eram as chances de Gil estar jogado na sarjeta por horas naquela
noite e ninguém ter ouvido o assalto nem seus gritos por socorro? De ele ter
sido violentamente espancado em uma cidadezinha pacata? Até mesmo o
médico ficou pasmo por um ataque desses ter acontecido ali.
Quando faleceu, poucos meses antes do início do Ágon Hermes saberia que
ele, Gil, desapareceria no começo da semana, sendo levado para o lugar em
que o Ágon aconteceria naquele ciclo, não importando onde. Que havia
uma chance de que morrer durante a caçada, deixando Lore à deriva sobre o
que houve com Gil.
Talvez a “morte” de seu disfarce tenha sido uma gentileza, mas só fez Lore
ficar mais furiosa. Ele deveria ter contado a verdade. Deveria ter se
revelado.
Lore pensou ter ouvido Castor chamar por ela, mas não conseguia virar o
corpo na direção do chamado. Não podia se mover.
Foi mentira.
— Pare — disse Lore, levando as mãos à cabeça. — Eu não quero ver isso.
A sua casa queimou até tudo em volta dela escurecer e o Frick voltar, sem
— Diga-me — disse o Folião —, aquela casa tinha muito veludo verde? Ele
sempre teve um gosto horrível.
— Tudo que eu queria dizer a ele era o motivo de Fúria querer a égide, mas
ele já devia saber, senão por que diabos se importaria em proteger você? —
disse o Folião. — Pensei que ele podia ter trazido o escudo para cá… não
para que eu o entregasse a Fúria, mas para que eu o destruísse. Não entendo
por que o idiota simplesmente não o destruiu e não acabou com isso e com
você!
— Não, sua merdinha — vociferou ele, baixinho. — O que não faz sentido
é por que você…
Castor os arrastou para trás das colunas que cercavam o chafariz, até que
estivessem fora de vista do atirador desconhecido sobre o teto em forma de
domo. Com a visão periférica, ela viu Miles correr para a entrada do museu.
Uma expressão de culpa esmagadora passou pelo rosto do novo deus e ele
fez menção de ir até elas. Lore o puxou para trás.
— Elas não merecem — disse Lore, e uma raiva terrível floresceu nas suas
palavras. — Deixe-as morrerem.
Castor a encarou, e ela ficou ressentida com esse olhar chocado. O que ele
esperava?
Com um último olhar para ela, Castor se soltou e correu pelo pátio na
direção das duas leoas. Lore teria ido atrás dele, não fosse o gemido
agonizante que a alcançou primeiro.
Ela deu meia-volta e se deparou com Folião lutando para firmar os pés nos
azulejos escorregadios enquanto tentava, em vão, sair da fonte.
— Castor!
O novo deus deu meia-volta ao ouvir o chamado, soltando a leoa que havia
imobilizado. O brilho que a envolvia se apagou.
Um crac ecoou por entre as colunas de pedra quando Atena fechou a mão e
quebrou o pescoço dele.
— Ele não podia ser salvo. Você preferia que o assassino ficasse com seu
poder? Você preferia tomá-lo para si?
— Aquele tolo nunca nos ajudaria — disse Atena. — Melhor morrer pela
minha mão misericordiosa do que pela dos inimigos.
Talvez não tivessem sido as leoas que atiraram no Folião, afinal de contas.
Ela irrompeu porta afora, com os pés derrapando na calçada. Uma silhueta
sombria descia da parede que dava para o telhado. Ele pulou a uns cento e
Não era Fúria. O caçador deu meia-volta, sua máscara de serpente refletia o
luar. Ele escalou a cerca que demarcava a obra e pulou para a 70th Street.
Ela o seguiu.
parque estava fechado a essa hora, mas os postes de luz ainda estavam
acesos. Se o caçador pensou que a despistaria ali, logo no seu parque,
estava prestes a ficar extremamente desapontado.
Gil…
Não, isso era bom. Agora ela manteria o olhar adiante, não olharia mais
para trás. Se não reconhecesse a dor, ela a abandonaria, assim como todo o
resto. A dor a abandonaria. A raiva, por uma vez na vida, lhe seria útil. Ela
a faria seguir em frente.
Lore não sentia apenas raiva, mas humilhação — todo esse tempo, ela
acreditou que existia fora do alcance dos deuses, que finalmente estava no
comando da própria vida.
Nem o amor que sentiu por Gil, nem a esperança, nem mesmo os dias bons.
Lore não queria mudar uma única coisa sequer da sua casa ou mover um
único objeto. Ela sentia que preservar sua memória era uma coisa que devia
a Gil, mas tudo que fizera foi criar outro santuário para um deus.
— Construir uma nova vida, uma vida melhor — Gil a dissera — , vai
manter você seguindo adiante, até que, um dia, vai perceber que não está
mais tentada a continuar voltando para tudo o que perdeu.
Hermes. Hermes dissera-lhe aquilo. E para quê? Para ver se ela
eventualmente lhe entregaria a égide?
Pela primeira vez em sete anos, pensar no escudo não fazia o seu corpo
paralisar, como normalmente acontecia. Quase podia se imaginar
segurando-a
Ela podia pegá-la. Podia tomar de volta o que era seu por direito. Se o Ágon
não a deixasse sair, derrotaria os seus integrantes no seu próprio jogo e
acabaria com eles antes que acabassem novamente com ela.
Lore enviaria a Fúria e a todos os outros uma mensagem que não poderiam
ignorar.
A ampla passarela era ladeada por bancos de jardim e olmeiros. Ela ficou
um pouco mais atrás, mas ele já havia parado no centro do caminho.
Belen jogou a sua besta para o lado, mas sacou um punhal comprido da
bainha amarrada na parte interna de seu braço. Lore empunhava a própria
faca, fazendo uma análise rápida dele. Lore era alta, mas o oponente era um
pouco mais. Lutar usando uma arma curta daria uma vantagem a ele, que
teria o alcance mais longo.
Mas ela estava mais furiosa. Belen era um presente. Não teria forma melhor
de mandar uma mensagem para Fúria do que deixando o corpo do jovem no
parque para que o deus da guerra o achasse.
— É assim que você cumprimenta seu velho amigo depois de tanto tempo?
— Na última vez que eu o vi, você estava sentado aos pés do seu pai como
um cachorrinho obediente — disse Lore, olhando para o rapaz de cima a
baixo. — Parece que nada mudou.
— Para uma mulher, você quer se impor demais — disse ele, observando
Lore saltar sobre a pequena cerca.
— Que irônico, já que esta é a primeira vez que estou ouvindo você falar
por si próprio — disse ela. — O papai afrouxou a coleira, foi?
— Como será que o seu senhor e pai vai reagir ao saber que você não
conseguiu matar nenhum dos três deuses que estavam no museu?
Ela se esforçou para que sua surpresa não deslizasse sorrateiramente para
sua expressão.
— Estou lisonjeada.
— Ele quer aquilo de volta, Melora — disse Belen. — Ele não vai parar até
que o tenha novamente.
— O que quer que seja aquilo, não está comigo — disse Lore,
aproximando-se enquanto o circulava novamente. — Você está
desperdiçando seu tempo.
— Eu disse isso a ele — informou Belen, apontando sua faca. — Que você
já a teria usado se ainda estivesse com ela ou a teria entregado para um dos
deuses dos quais você vem se escondendo atrás.
— E mesmo assim, cá estamos nós — disse Lore. — Parece que ele não
liga muito para o que você pensa.
Lore bloqueou o golpe com o braço livre, caindo sobre um dos joelhos e
girando para longe antes que ele pudesse prendê-la em uma posição
vulnerável. Ela se endireitou de novo, mantendo a arma em movimento para
evitar que ele se aproximasse muito.
Ele deveria ter outra adaga enfiada na bota e, muito provavelmente, outra
nas costas ou no quadril, mas ambas estavam escondidas sob seu manto de
caçador. Ela respirou fundo, tentando acalmar o aumento veloz de sua
pulsação. O problema dos combates de faca era que a maior parte envolvia
luta de contato. Raramente dava para sair ileso de uma situação dessas.
— Não sei como você escapou da primeira vez, mas não vai acontecer de
novo — disse ele. — Ouvi dizer que eles arrancaram os olhos das
garotinhas primeiro, mas as deixaram vivas por tempo o suficiente para
ouvirem os pais morrerem, só para que soubessem que ninguém viria salvá-
las.
Lore avançou para cima dele, golpeando com a faca, forçando-o a manter
uma das mãos alta, para proteger o peito e o pescoço. Sua mente se
desconectou do corpo, e tudo o que lhe restou foi o poço profundo de pura
dor que cozinhava dentro dela por anos.
Belen tirou o peso de cima dela apenas o suficiente para que a virasse
bruscamente. Ela ofegava, escorria sangue pelos braços dele, derramado das
mãos que bloquearam o golpe dela. Eles rolaram e rolaram, com a grama
grudando na face e nos braços da jovem que o agarrava, lutando para
imobilizá-lo. Ela aproveitou uma oportunidade e levou uma das mãos à bota
dele para ver se conseguia achar uma faca oculta, e achou. Pegando-a pelo
cabo, fez um corte na testa de Belen.
Ele soltou um grito abafado; não foi um corte profundo, mas uma cortina de
sangue escorreu até os seus olhos. A distração deu a ela tempo suficiente
para agarrar o pulso e dedos dele, desarmando-o. Ela deu outro golpe,
enfiando a
Belen tentou girar para se livrar dela, mas Lore o imobilizara, passando as
pernas ao seu redor e aumentando a força da pegada nos braços dele. Ele
cuspia como um cão raivoso. Lore ergueu a faca de novo, observando o
rápido subir e descer do peito dele, onde o coração estaria batendo sob
armadura, pele e ossos.
Lore teria enfiado a lâmina ali, se não fosse pelo sussurro de lógica que
escapou por entre a parte mais animalesca de seu cérebro.
Matá-lo não será o bastante.
Havia outra mensagem que ela podia enviar ao pai dele. Uma ainda melhor.
— Ele foi alertado de que não seria capaz de controlar os cavalos selvagens
da carruagem, mas sua arrogância o fez pensar que poderia tentar —
Belen rosnou, tentando novamente tirá-la de cima dele por meio de sua
força bruta.
Lore aliviou um pouco da pressão nos braços dele; deixou que ele pensasse
que ela havia se distraído, que ele tinha uma chance. As mãos de Belen se
ergueram, um brado se originou em seus pulmões, e ele foi na direção dela
—
Ela o cortara com uma faca, mas sua verdadeira arma foi o próprio Ágon —
todas as realidades cruéis que homens como ele e o pai adoravam infligir
nos outros. Agora ele as sentiria na própria pele.
— Lore!
Castor estava a uma curta distância deles, com o rosto pálido de choque.
Seu peito ficou apertado com a maneira com que Castor a olhava. Ele
devolveu a nitidez para o mundo: o céu que estava clareando conforme as
horas pendiam para a manhã; o sangue em suas mãos, braços e jeans, a
respiração que entrava e saía dela queimando.
Lore se viu através dos olhos de Castor, e como ela devia parecer meio
selvagem a ele. Como se fosse um monstro.
Ele fez um inventário mental dos cortes nos braços dela, metade dos quais
ela nem havia notado ou sentido, e estendeu a mão para curá-la. Lore
resistiu, não querendo ser tocada nem sentir nada que fosse gentil.
Lore não disse nada. Ele tentou passar por ela, apenas para ser novamente
impedido.
— Aquele era Belen Cadmou? — perguntou ele. — Por que você o deixou
fugir?
— Ele vai ser uma mensagem melhor do que um corpo — disse Lore.
— Mas você não está apenas se arriscando ao irritar Fúria — disse ele, de
forma direta. — Está arriscando a todos nós, incluindo Miles.
O zumbido estava de volta em sua cabeça, transformando o ar em chiado
nos seus ouvidos. A sua pulsação deu um salto e sua visão periférica ficou
escura. Miles…
— Não — disse Castor. — Você é uma boa pessoa, Melora Perseus. Você
não é o que eles tentaram fazer de você, nem mesmo o que tentou ser por
eles. Nenhum de nós é.
não santos. E não, matar Fúria não mudará o que aconteceu, mas é a única
coisa que eu sei fazer. É a única coisa que fomos ensinados a fazer.
As mãos de Lore foram como garras contra o peito dele, mas ele mantinha a
leveza ao segurar-lhe os pulsos, como se a desafiasse. O calor que ele emitia
afastava o ar frio e o cheiro da grama. Ele apagou o resto do mundo. Criou
o próprio eclipse.
— Eu quero que Fúria sofra — sussurrou ela. — Eu quero que ele sinta
medo e quero ser a pessoa que tomará a vida de seu corpo.
Castor se aproximou. Dessa vez, Lore foi quem se afastou. Aquilo pareceu
alarmá-lo mais do que qualquer coisa. Ele se afastou, dando um espaço que
Lore não queria — quando Lore não tinha certeza do que queria.
Ele fechou os olhos.
— Lore…
Uma tempestade estourou dentro dela. Lore o atingiu com o braço e Castor
bloqueou, como ela sabia que ele faria, deixando a parte central vulnerável,
como ele sempre deixava.
Castor ficou imóvel como uma pedra, seus lábios se abriram levemente. Ele
não se afastou. Nem Lore. Os dedos dela deslizaram por entre o cabelo
grosso e encaracolado dele.
— Lore…
Ela queria que ele continuasse dizendo o seu nome daquele jeito, como se
fosse a única palavra que conhecesse.
Ela era sem jeito, inexperiente e selvagem, mas Castor também era. Suas
mãos cobriram as dela, as mesmas mãos que a ajudaram a levantar do chão
inúmeras vezes. As mesmas mãos que a ergueram para alcançar patamares
mais altos enquanto escalava. As mesmas mãos que ela segurou enquanto
ele se deitava, morrendo.
Castor a envolveu até que nada mais importasse no mundo a não ser seus
lábios e seu toque. O calor dentro dela aumentou, absorvendo a sensação da
pele dele e amolecendo o seu corpo novamente contra os traços rígidos do
corpo dele. A língua de Castor acariciou a dela, e ele a puxou para mais
perto, até que ela sentisse a necessidade gritante que ele tinha dela, e um
peso se instalou em seu estômago em resposta.
Nos anos em que treinaram juntos, Lore passou a conhecer o corpo do
amigo tão bem quanto o seu próprio. Mas cada parte dele era como uma
revelação para ela agora, algo que ela precisava, mas não sabia que queria
até agora. Eles estavam lutando de novo, tentando recuperar a noção, para
controlar o beijo.
— Faça isso de novo quando você realmente quiser, Áurea — disse ele,
com a voz grave. — Não para me distrair.
Ele não esperou pela resposta de Lore; partiu, procurando por Belen. Lore
tentou recuperar o fôlego, passando as mãos no cabelo e agarrando-o.
Belen estava a uns quatro quarteirões à frente, mas ainda cambaleava. Seu
celular acendeu em suas mãos, e ele tinha dificuldade de segurá-lo.
Castor cerrou o punho até que brilhasse de energia. Ele o ergueu, como se
fosse enviar uma rajada na direção do caçador, mas parou. A luz crepitante
desapareceu quando ele relaxou a mão.
Houve um fraco zumbido ali perto, como o de abelhas. Lore deu meia-
volta, avistando Belen de pé, bem do outro lado da rua.
— Ei, Melora — disse ele, com voz irregular. — Já ouviu falar dos pássaros
de Estinfália?
Um drone desceu, ficando entre eles, com penas gravadas nas suas asas
metálicas. Um bracinho mecânico surgiu debaixo delas e soltou algo — um
dispositivo, uma faixa de prata.
A explosão…
— Lore — disse uma voz tensa, acima dela. — Está… tudo bem…
A dor era latejante, tomando vida assim que Lore voltou a si. As palmas de
suas mãos estavam em carne viva, e suas roupas, rasgadas. Corria uma dor
incômoda por seu corpo, que não era nada em comparação à dor na cabeça,
que latejava como se tivesse sido aberta.
— O quê…?
Sua boca estava coberta de poeira e cinzas. Lore tossiu, lutando para se
manter de pé, para escapar do calor que ondulava atrás dela. Ela não
conseguia entender o que via.
Lore esticou o pescoço para trás, erguendo a cabeça. Ela conhecia esse
poder.
Ela balançava no ar, montada na explosão de calor e luz. Aquela era a fonte
do som de areia se movendo que ela ouvira. O concreto estava sendo
incinerado até virar um pó fino, escorrendo pelas bordas da barreira e se
empilhando ao redor.
Pingava suor de seu queixo, e Lore percebeu que o próprio corpo estava
encharcado de transpiração.
— Fique. Perto.
Belen.
— Eu tentei…
Vivo. Lore tentou imaginar como ele encurtou a distância entre eles e a
protegeu, não só da explosão, mas também da queda. Ela imaginou a cena
de diversas maneiras, mas cada uma fazia menos sentido do que a outra.
Pelo menos esse receio era uma ferramenta. Lore o transformou em base
enquanto o terror maior se desprendia de sua mente.
— Cas? — chamou ela, com a garganta doendo. Quando ele não respondeu,
ela o chacoalhou. — Cas!
O peso de Castor era insuportável, mas Lore não tinha escolha. Ela foi
conduzindo o amigo para a esquerda, onde havia um caminho mais óbvio,
mesmo que instável, para subir e sair do entulho que desmoronou.
Atena estava a uns metros de distância. Seus braços estavam erguidos acima
da cabeça, aguentando o peso de uma das pedras gigantescas da fachada de
um edifício vizinho. A pedra pairava sobre as pessoas que carregavam as
vítimas e os feridos para longe do local da explosão. Se alguém notou
tamanha exibição de poder, estava muito grato por estar vivo para prestar
atenção nisso.
As ruas e calçadas estavam tomadas por corpos, alguns explodiram em
formas grotescas, outros estavam estendidos sobre poças do próprio sangue.
Atena esperou até que o último ferido fosse removido antes de abaixar os
braços, soltando os destroços em brasa na calçada com um cuidado
inabalável.
Lore se preparou para a ira da deusa, para ouvir o quanto fora egoísta por
arriscar a vida deles. Em vez disso, enquanto passava por entre uma parede
de fumaça para alcançá-los, Atena a olhou com aqueles olhos cinzentos e
sábios.
— O que você fez foi necessário — disse ela. — Sua conduta irritará o
falso Ares, mas também o deixará impulsivo, e isso, Melora, nós podemos
usar a nosso favor.
— Castor acha que tudo o que eu fiz foi pôr um alvo maior nas costas de
todo mundo — disse Lore, fitando-o brevemente.
— Então talvez seja hora de nos separarmos dos outros — disse Atena. —
Eles não entenderão o que deve ser feito agora. Vejo que você se culpa pelo
que aconteceu, mas essa culpa não deveria recair sobre os ombros do falso
Apolo? Não foi você quem optou por seguir Belen Cadmou.
Atena podia odiar os mortais que a rejeitaram, mas não renunciou ao seu
cargo sagrado. Palas Atena, a temida defensora das cidades.
— Sempre farei o que deve ser feito — disse Atena. — Ainda assim, a
questão permanece a mesma, você fará?
Não deixe que puxem você de volta — Castor a havia alertado. — Não há
nada além de sombras aqui.
Mas ele não entendeu o que Lore acabara de fazer. Monstros vivem nas
sombras. Para caçá-los, você não pode temer segui-los. E a única forma de
destruí-los era ter os dentes mais afiados e o coração mais sombrio.
TRINTA E DOIS
Ela não lutou contra a raiva desta vez. Deixou que o sentimento falasse por
ela.
Lore assentiu com a cabeça. Esperava que sim. Então, reparou que alguém
não estava lá.
— Miles?
Van suspirou.
— O chefe do estágio pediu que ele fosse até a prefeitura, no centro, para
ajudar com a demanda da mídia e com briefings sobre o ataque. Ele disse
que estaria de volta em algumas horas.
Miles.
Com uma relutância óbvia, Van se voltou para o computador e depois a ela.
Atena fez o que ele pediu, seguindo cuidadosamente pelo corredor para não
bater com Castor nas paredes, apesar de Lore saber que ela queria fazer
isso.
— Não muito, além de que estão suspeitando ser uma atividade terrorista
É claro. Lore não tinha dúvidas que os Cadmídeos puseram as mãos nas
gravações do Central Park e as deletaram também. Ela tentou contar a ele o
que aconteceu no Frick, sobre Belen, sobre a explosão, mas era como se a
sua mente não conseguisse formar frases que expressassem seus
pensamentos.
A deusa assentiu.
O quarto fedia à fumaça rançosa, um cheiro que emanava dos dois. Ela
ficou ali por um momento, olhando para Castor, para seu grande corpo
fazendo a armação da cama envergar. Apesar das fortes linhas de seu rosto e
de seu maxilar quadrado, ele parecia quase um garoto para ela ali.
Vulnerável.
Ela havia feito aquilo incontáveis vezes na Casa Tétis depois de treinarem,
quando não significava nada além de cuidar do seu amigo e hetaîros. Mas
enquanto ia limpando o pescoço e o rosto dele, Lore sentiu repentinamente
livre ao perceber que aquilo não era a mesma coisa que foi um dia.
Sua mão estremeceu quando ela passou a toalha pelos lábios dele, lutando
contra a onda de calor que serpenteava em seu corpo. Ela estava com raiva
de si mesma por tê-lo beijado, por ter cruzado o limite, por tê-lo chateado,
por ter mudado tudo.
— Não me odeie — sussurrou ela. — Por favor, não me odeie…
Lore a segurou, levando-a até a testa, enquanto tentava sair do sono que
persistia em sua mente.
Seu polegar acariciou os nós dos dedos de Castor, e ela sentiu… não soube
ao certo o quê. Antes, Lore estava muito segura de que os sentimentos que
se moviam dentro dela, uma dolorosa fusão de afeto, saudade e proteção,
eram bem diferentes dos que existiram entre eles quando crianças. Mas
eram mesmo? Ou a ausência e o tempo simplesmente os deixaram em
evidência de um jeito que ela pudesse finalmente compreendê-los?
Lore teve sua família. Sua linhagem. Seu nome. Ela carregou o peso dessas
responsabilidades desde o primeiro momento que aprendeu a palavra Ágon.
Lore segurou a mão de Castor com mais força, e ele emitiu um ruído suave
e reconfortante. Ela pensou que seu coração se despedaçaria quando ele se
voltou para ela, cujos cílios escuros roçavam-lhe as faces. Lore se forçou a
ficar de pé, para gentilmente descansar o braço de Castor em seu tórax, pois
a única opção que restava era ceder à necessidade de chorar como uma
criança e implorar aos deuses pela misericórdia que ela sabia não merecer.
— Olá?
Ela começou a descer as escadas, querendo muito vê-lo, estando mais que
um pouco desesperada para se certificar que ele estava bem, mas diminuiu o
ritmo quando ouviu o barulho dos armários da cozinha se abrindo e se
fechando e o começo de uma conversa em voz baixa.
— Descansando.
Van deu uma risada, mas voltou a dar atenção para aquilo em que estava
trabalhando, o que quer que fosse. Atrás de Lore, na sala de estar, a
televisão estava ligada, mas o volume era bem baixo. Ela se concentrou no
som da TV
Após alguns minutos, bem quando Lore estava tentada a anunciar a sua
presença, Miles pôs duas canecas na mesa e abriu o próprio notebook.
— Está certo, aqui vai uma — disse Miles. — Uma boa quantidade de
caçadores da sua linhagem abandonou Castor, então por que você é tão leal
a ele?
— Não… — disse Van. — Não faça isso. Não sinta pena de mim. As coisas
simplesmente aconteceram assim. Ao contrário de todo o resto, ele nunca
me diminuiu por não querer combater e por ser relativamente ruim nisso.
Ele não gostava de lutar, e ainda não gosta.
— Eu sei que você acha que eu estou sendo… duro. Mas a única coisa com
a qual me importo é protegê-lo e garantir que ele sobreviva a essa semana.
Eu não pude ajudá-lo antes, quando teve uma recaída e o câncer voltou. Eu
não consegui convencê-lo a parar de treinar quando nos falamos no
telefone, mesmo que isso o deixasse exausto.
— Por causa da Lore — disse Van. — Ele não queria desapontá-la, porque
ela perderia o parceiro de treino e teria que abandoná-lo. Mas, além disso,
ele
sempre queria se encontrar com ela. Sempre queria segui-la, mesmo se isso
desse diretamente em algum perigo.
— Não tenho esse tipo de sentimento por ele — disse Van, concluindo. —
Nunca tive.
Miles emitiu um ruído baixinho, como quem diz “sei”. Van tomou um gole
do leite. Miles fez o mesmo com o chá.
— Enfim, por que você é tão leal à Lore? — quis saber Van. — Você mal
conhecia o passado dela e o pouco que conhecia era uma mentira.
— Nem tudo — disse Miles. — Sempre soube que a família dela morreu,
mas não os detalhes sobre como ou o que aconteceu com ela nos anos que
seguiram. Levou um bom tempo para ela se abrir para mim. Tipo… meses
depois de Gil deixar eu alugar o quarto extra. Eu tive que cavar de
pouquinho em pouquinho, e valeu a pena, porque eu amo o coração mole
que encontrei debaixo da superfície meio ranzinza. Essa parte nunca foi
mentira. É muito raro encontrar alguém que aceita você completamente, e
eu tento devolver isso a ela.
Miles assentiu.
— Obrigado — disse Miles, dando outro gole no chá. — Achei que você
fosse gostar. Tudo é vida, morte e riscos épicos com vocês. Eu preciso
descer a esse nível.
Parece que… que a estátua, que é oca, teve um pedaço removido para que
os corpos pudessem ser lacrados lá dentro. Há diversos relatos ainda não
Castor ficou mais afastado, com o rosto virado para não assistir. Mas Lore
se recusou a desviar o olhar. Ela já sabia que, não importando se as crianças
eram Puro-sangues ou Mundanas, seriam duas garotinhas.
Lore sabia que viria uma retaliação de Fúria pelo que fizera com Belen, mas
cometeu o erro de presumir que ele a atacaria fisicamente. Diretamente.
Não emocionalmente. Não desse jeito.
Ela não cometeria o mesmo erro de novo.
Miles pode não ter reconhecido, mas todas as outras almas vivas naquela
sala sabiam que Fúria e os Cadmídeos transformaram a famosa estátua
próxima a Wall Street em um touro de bronze; um instrumento
indescritivelmente perverso de tortura da Idade Média que assava as vítimas
vivas em sua barriga metálica.
Lore se voltou para Van e perguntou se ele podia acessar a câmera, e viu
que ele já estava a um passo à frente, entregando com uma das mãos uma
nova caneca de leite morno para Miles e equilibrando o seu notebook com a
outra; o aparelho já estava com o programa ativo.
— Isso vai ajudar — disse Van. Sua mão foi até o ombro de Miles, mas ele
a afastou rapidamente, antes que Miles parecesse notar o toque.
— Eu sei que isso não é um jogo — disse Miles. — Eu sei disso. Mas por
que eles fariam… isso?
Lore mordeu o interior da boca com tanta força que sentiu gosto de sangue.
Os dedos de Van passavam pelo trackpad, voltando o vídeo que acabara de
ver.
Van virou a tela e apertou play. A gravação, feita em modo visão noturna,
estava com resolução granulada, e a câmera estava em um ângulo alto. O
tom esverdeado dava à cena um ar macabro. Seis caçadores estavam ao
redor do touro, e suas máscaras de serpente estavam parcialmente
escondidas pelos capuzes dos mantos. Um deles se ajoelhou para atear fogo,
que surgiu e ardeu rapidamente. Outro chegou à parede mais próxima do
touro, usando um pincel e um pequeno balde de tinta para pintar letras na
superfície pálida. As letras vermelhas escorriam, como se estivessem
chorando.
TRAGA-A DE VOLTA
Mas que escolha ela tinha naquele momento? Precisava contar alguma
coisa, se não a verdade, uma versão na qual acreditariam. Que não
levantaria suspeitas em Atena nem poria Lore na posição de fazer algo que
jurou que nunca faria.
— O Folião… ele me disse que Fúria está procurando por mim porque acha
que eu estou com a égide — disse Lore, com a pulsação trovejante a ponto
de fazer o corpo estremecer. O chiado aumentava em seus ouvidos de novo,
mas ela fez força para prosseguir, tentando manter sua voz a mais regular
possível. — O dever do Folião era me rastrear… e rastreá-la.
Van estava confuso.
— E só para confirmar…
— Não estou com ela — disse Lore, firme, evitando o olhar preocupado de
Castor, que caiu sobre ela. — Ninguém na minha família a possuiu desde
que os Cadmídeos expurgaram nossa linhagem. O Folião disse que ela
desapareceu no final da última caçada. O meu palpite é que tenha sido um
trabalho interno.
— Ele pode achar que um dos seus pais a pegou — disse Castor, com a
testa franzida de preocupação —, e que eles contaram a você onde a
esconderam. Caramba… não me surpreende essa obsessão dele em te
encontrar.
— Isso — disse Miles, rapidamente, apontando para ele. — Essa opção, por
favor.
Mesmo que Lore soubesse qual era o outro motivo pelo qual ele queria
encontrar a deusa, ela ainda estava assustada com a ideia de procurar um ser
que queria tanto matá-lo.
— Posso procurá-la de novo — disse Van, se oferecendo. — Não a avistei
desde que ela deixou a Casa Tétis… Você tem certeza de que realmente
quer encontrá-la, Cas? Não consigo enxergar Ártemis como uma recruta
animada.
— Sei bem que ela quer arrancar meu coração e comer — disse Castor. —
Mas é bom confirmar que você prefere ver sua irmã morta do que arriscar
que ela a encontre primeiro. Você tem mesmo tanto medo por haver
somente um vitorioso, filha de Zeus?
disse Atena, ignorando a isca nas palavras dele. — E como ela me feriu
para se salvar, não sinto nenhuma urgência de partir em seu auxílio.
Entretanto, concordo que uma nova estratégia é necessária para desfazer os
planos de nosso inimigo e sua busca por Melora. — Ela se voltou para Van.
— Você tem mais conhecimento sobre o patrimônio e as propriedades dele?
Talvez haja uma vulnerabilidade nesse aspecto.
— Claro que tenho — disse Van. — Tenho arquivos de todos os líderes e
anciãos das linhagens. Acredite ou não, um dia eu fui inocente o suficiente
para acreditar que poderia neutralizar as linhagens divulgando todos os
esquemas sujos e tendo todos os seus bens apreendidos e seus líderes
presos.
— Por que o Ágon é uma hidra — disse Van. — Não importa se eu cortar a
cabeça da linhagem. Sempre terão mais caçadores para substituí-las, e
mesmo que eu tivesse exposto o Ágon para o mundo, alguns deles ainda
encontrariam um jeito de continuar a caçada.
Ocorreu a ela, então, como nunca ocorrera antes, que todos eles queriam, na
verdade, que o Ágon acabasse, mas por diferentes motivos e diferentes
meios.
— Entendo o que está dizendo — disse Castor. — Mas tem alguma coisa
que poderia ser divulgada para a imprensa para levar atenção indesejada até
Fúria? Ele pode ter algum oficial da cidade ou da polícia nas mãos, mas não
é dono de todos eles…
— Sei de alguns deles — disse Van. — Não tenho dúvida de que eles têm
mais cofres do que eu conheço, aqui na cidade e fora dela.
— Como ele havia dedicado muitos caçadores à busca por Melora e por
seus deuses rivais, esses cofres e arsenais podem não estar tão bem vigiados
como em outrora — disse Atena.
Uma lança de culpa a atravessou, mas Lore o ignorou. Atena estava certa.
— Pessoal — disse Van —, não precisa ser uma coisa ou a outra. Podemos
seguir os dois planos de uma vez só. Eu vou deixar uma busca permanente
correndo no Argos…
O celular de Van vibrou na mesa. Ele o pegou, e a tela brilhava contra a sua
pele negra enquanto ele lia a nova mensagem.
— O contato Cadmídeo disse que sabe de algo que pode nos interessar
sobre os próximos movimentos de Fúria.
— Mas?
— Eu não acho mais que essa seja uma boa ideia — disse Van. — Não
depois do que aconteceu com Belen, e agora isso… alguma coisa não me
cheira bem. Ele está insistindo que apenas se encontrará com Miles.
— Você pode, mas não quer dizer que deva — disse Van.
— Quantas vezes eu vou ter que provar que você está errado? — exigiu
Miles. — Eu posso…
— Não — vociferou Van, rodeando-o. — Você não é um de nós e não
decide nada sobre isso, beleza?
— E você não me diz o que fazer. Eu tenho mesmo que ficar te lembrando
que você não teria chegado tão longe se não fosse por mim?
Miles ficou ao lado de Lore, até que estivesse do lado oposto dos outros no
cômodo.
— Quais delas?
O corpo de Lore congelou. Ela respirou fundo, segurando o ar até que seu
peito começasse a doer.
— Por que eu não posso? — retrucou Lore. — Se alguém vai com ele, esse
alguém sou eu.
— Não — disse Miles. — Digo, obrigado aos dois, mas ninguém vai
comigo. O cara é cheio de coisinha e não vai em frente com o encontro se
suspeitar que eu levei alguém comigo. E ele pode ter algo de que realmente
precisamos ou, pelo menos, uma pista do paradeiro atual de Fúria.
— Lore?
Quanto mais ela pensava sobre isso, mais se perguntava se Castor não tivera
a melhor ideia quando sugeriu que ficassem ocultos e se concentrassem na
procura por Ártemis, em vez de realizar os ataques aos arsenais. Se
conseguissem convencer a deusa a se aliar a eles — e esse é um se enorme
e mortal —, talvez não precisassem depender da informação do contato de
Van ou se arriscar com o encontro. Ártemis poderia rastrear qualquer um e
qualquer coisa, coletando informações conforme necessário.
A deusa irradiava uma certeza serena e, de algum jeito, apenas por estar
perto a ajudava a ter clareza mental. Ela deu a coragem que faltava em
Lore; deu força para o que Lore sabia que era certo e necessário.
Mas mesmo enquanto dizia aquilo, Lore sabia que Atena estava certa.
Ártemis nunca concordaria em trabalhar com eles, e nunca daria a Castor a
informação que ele queria sobre a morte de Apolo, se é que a tinha. Talvez
até lá Fúria já tenha saído do buraco em que esteja se escondendo, seja onde
for, e assim não precisem arriscar a vida de Castor tentando persuadir a
deusa, cuja determinação é tão inflexível quanto aço.
Lore mal ouviu os outros enquanto subiam as escadas, com certeza indo
dormir como pedras pelo resto da noite. Apenas Castor ficou ali, com uma
das mãos no corrimão e observando Lore pegar o celular. Ela digitou a
mensagem para Iro com mãos trêmulas.
Quando ela ergueu novamente o olhar, Castor já não estava mais ali.
TRINTA E TRÊS
Depois que eles souberam pelos Aquilídeos que os ataques foram bem-
sucedidos e não houve nenhum problema ou baixas entre eles, Lore ainda
não tivera notícias de Iro, exceto pela curta resposta da garota à mensagem
com as instruções do ataque: Confirmado .
Apesar disso, Lore não estava preocupada, principalmente depois que Van
se encontrou com um dos caçadores Aquilídeos e trouxe para casa um
conjunto grande de armas que eram dos Cadmídeos. Atena ficou
obviamente satisfeita por separá-las e examiná-las uma a uma, incluindo
uma dory de verdade. Mas qualquer animação que Lore sentira com este
sucesso desapareceu no buraco negro emocional do silêncio de Van e
Castor.
O pingente de pena no colar piscava para Lore ao refletir a luz solar. Ela
hesitou por um momento, passando os dedos levemente na borda dele.
Lore passou a mão sobre a cômoda, fazendo com que o colar caísse dentro
de uma pequena lixeira ao lado. Mas ela sentia sua presença, mesmo que
não pudesse mais vê-lo. Precisando fugir dele, e da casa, Lore abriu a janela
e passou para a escada de emergência, subindo até o telhado. Lá, viu
carregadas nuvens cinzentas vagarem ao longe.
Lore olhou para trás por cima do ombro ao ouvir alguém na escada, mas
relaxou quando viu quem era.
Atena examinou o terraço deserto. Não havia muito para ver além de Lore,
duas espreguiçadeiras velhas e o motor do ar-condicionado. Na verdade,
ninguém devia subir ali, mas Miles e Lore às vezes faziam essa escalada
quando o clima estava bom e queriam beber vinho. Eles conversavam sobre
fazer alguma coisa no local, um pequeno jardim, talvez, mas isso foi antes
de Gil morrer.
Depois de Hermes ir embora — corrigiu-se Lore, esfregando os braços. Ela
se voltou novamente para as nuvens prateadas de tempestade que se
reuniam ao leste.
— Era Hermes.
Ela não sabia exatamente por que era mais fácil contar para a deusa. Talvez
fosse por saber que Atena, franca como a parte cega de uma espada, não
tentaria consolá-la ou fazê-la conversar sobre isso.
— O homem para o qual eu trabalhei… a pessoa que era dona desta casa e a
deixou de herança para mim — disse Lore, engolindo em seco. — Era
Hermes o tempo todo. Quando ele sumiu, veio para cá. O Folião me contou
tudo no museu.
Lore assentiu.
Deve ter sido uma frustração enorme para ele quando percebeu que eu não a
tinha, e que ele fez todo… — sua voz ficou presa de um jeito que ela
odiava.
— Imaginei que ele teria feito isso — disse Atena, lentamente. — Como
disse, segui seus rastros ao longo dos anos e procurei por você. Só a vi uma
única vez, há três anos, caminhando por uma das ruas perto daqui, e a segui
até sua casa. Mesmo assim, nunca a vi novamente e, no início desta caçada,
tudo que pude fazer foi esperar que você ainda morasse no mesmo lugar.
Deve ter sido logo depois de Lore voltar para lá com Gil — com Hermes.
— Não está comigo — disse Lore. — Talvez ele tenha descoberto que
Aristos Cadmou ficou se vangloriando para meu pai sobre saber onde ela
estava.
Lore se lembrou, então, do que Belen dissera. Você é uma distração. Ela é
uma distração.
— Você acha que isso pode ter a ver com algo a mais do que só o poema…
— Ele pode ter muitos motivos para a desejar. Ele anseia saber o segredo de
como vencer o Ágon. Anseia reparar o orgulho ferido por ter sido superado
por uma garotinha. Anseia obter a glória da égide como um símbolo de
poderio — disse Atena —, e usá-la como uma ferramenta. Ela pode evocar
o trovão e conjurar o relâmpago, mas não precisa ser usada em seu poder
máximo para instigar medo nos corações daqueles que a veem.
— Se você não entregar o escudo a ele por vontade própria, ele irá precisar
que você o empunhe, e fará o que for preciso para coagi-la a isso.
— Você fala isso como se você se importasse — disse Lore. — Por que
fingir que liga para mim além dos termos do nosso acordo?
— Você sabe por que caçadoras não devem tomar o poder de um deus,
como os anciãos das linhagens sempre disseram? — questionou Lore,
deixando anos de raiva silenciada preencherem seu peito, como vapor. —
— Minha presença aqui, agora, é tudo que é necessário para que se entenda
o que acontece com aqueles que perturbam a ordem natural das coisas. Que
traem o pai.
— Você não ficou com raiva? — perguntou Lore, ouvindo sua voz oscilar.
— Como pode não estar furiosa por nem mesmo você ter sido totalmente
livre para decidir quem ou o que queria ser?
Você deixou os homens usarem o seu nome e sua imagem para reforçarem
as próprias regras… você representava o que eles poderiam, por si mesmos,
se empenhar para ser — disse Lore. — Mas e o resto de nós? Todas nós,
que nos intitulamos mulheres, e todos os outros, que não são tão facilmente
definidos?
— Sabe, o que quase torna isso pior é que você realmente se enxerga como
o mito que os homens criaram. Você acabou de afirmar que nasceu da mente
de seu pai, mas teve uma mãe, não teve? Métis. A própria sabedoria. Esse
dom era dela, não de Zeus, e ele devorou vocês duas para se salvar, e o
tomou
para si. Negá-la é negar quem você é. É negar o que os homens são capazes
de fazer.
— Você lança suas opiniões com total certeza, mas sem base alguma —
disse Atena. — Contudo, não é contra mim que está batalhando agora. Sua
raiva não me é direcionada, mas a você mesma. Por quê?
Lore passou a mão no cabelo, segurando-o.
— Você está com muita raiva. Eu a senti desde o primeiro momento em que
lhe vi, e quanto mais você tenta reprimi-la, mais ela cresce e fica poderosa
— disse Atena. — Você me questiona, pois não julguei adequado usar meu
poder da forma que você usaria, e mesmo assim você limita seu próprio
potencial. Não imaginei que fosse tão covarde.
Que não perceberia seu interesse em indagar a todos que encontra sobre a
morte de meu irmão? Por que mais ele pareceria menosprezar e ressentir o
seu poder? Por qual outro motivo ele iria querer encontrar minha irmã,
sabendo que ela apenas deseja que ele morra?
— Ele… — Lore começou a dizer, insegura. Ela não queria falar sobre isso.
A sensação era de que trairia Castor. — Ele não quer que eu vá longe
demais.
Lore confiou em Castor por toda a vida, sabia que ele nunca a machucaria
intencionalmente. Mas o jeito que ele a olhou quando a encontrou no
Central Park, o choque e a repulsa em seu rosto…
Talvez ele realmente não tenha entendido. Os sete anos que perderam nunca
pareceram tão longos.
— Não — interrompeu Atena. — Não acho que odeie. Você odeia o que ele
custa a você, mas este mundo a entedia. Você pertence ao Ágon. Essa é sua
herança por direito. Você sempre foi destinada à glória, mas ela lhe foi
tirada, e agora você nunca se sentirá satisfeita, nunca se sentirá inteira, até
possuir o que merece.
Na sua cabeça, Lore ouviu a versão mais nova de si mesma dizendo aquelas
palavras novamente. Meu nome se tornará uma lenda.
— Não diga isso — sussurrou Lore — Por favor, não diga isso.
Mas agora ela se viu falando sobre ele, e as palavras se desenrolavam com
tanta força que Lore não tinha certeza se seria capaz de pará-las nem se
tentasse.
— Quando o pai de Iro ascendeu e virou o novo Afrodite, ele não tinha
nenhum filho — disse Lore — e nenhum parente imediato do sexo
masculino. Um primo de segundo grau se tornou o arconte interino dos
Odisseídeos. Ele nunca ia à casa deles nos primeiros dois anos que eu morei
lá. Durante esse tempo, me concentrei no meu treinamento com a Iro. Disse
a mim mesma que, mesmo que não tivesse nada, teria o Ágon. Eu ainda
poderia trazer honra para minha família.
— Foi aí que o novo arconte dos Odisseídeos chegou. Para ficar. E parecia
estar em todos os lugares ao mesmo tempo, sempre nos seguindo, nos
observando da janela enquanto a gente treinava e lutava, do outro lado da
mesa nas refeições, enquanto a gente nadava no lago… — disse Lore, e
suas mãos se fecharam ao se lembrar disso. — Ele encontrava qualquer
desculpa para me tocar… para corrigir minha postura quando eu não
precisava, ou passar a mão no meu braço ou na minha perna quando estava
passando por perto. Meu instrutor me disse para nunca contar isso para
ninguém, senão o
arconte descobriria como eu era ingrata pelo apoio e pela atenção. Que eu
seria jogada na rua com apenas uma faca para me defender e mais nada.
Sem dinheiro, sem futuro.
— Uma noite, depois do jantar, ele me disse para ir até seu escritório e
esperar por ele lá — continuou ela. — Os outros na mesa deveriam saber o
que aconteceria, mas ninguém fez nada. Os criados olharam para o outro
lado. Iro estava tão animada… Ela pensou que ele ia me oferecer uma
posição como léaina.
Ela precisou respirar fundo para encontrar as palavras certas. A bile subiu
até a sua garganta.
— O escritório estava escuro, a não ser pelo fogo na lareira. Ele trancou a
porta. Me disse que eu não continuaria o meu treinamento. Que eu apenas
serviria a ele. Às vontades dele.
Atena sibilou.
— Eu sabia que ele estava certo. Eu não tinha ninguém. Não tinha família.
Foi naquele momento que eu percebi que meu futuro estava inteiramente
nas mãos dele… só que aí… — Lore respirou fundo de novo. — Ele
colocou as mãos em mim… Forçou a boca dele na minha e me prensou na
mesa. Ele era maior. Mais pesado. E eu pensei: Eu não sou especial ou
escolhida. Aquele era o escudo que eu usei contra a verdade por anos… a
certeza de que eu estava destinada a algo mais. Mas naquele momento, com
ele sobre mim, foi quando eu entendi o que aquele mundo era. Sempre
haveria um homem decidindo o meu destino, seja ele meu pai, um arconte
ou um marido.
Pelo menos, não uma com consequências que ela compreendesse antes de
escolher.
Ele puxou o colarinho da blusa dela até rasgar. O tecido cedeu facilmente,
mas não tanto quanto a pele da garganta dele.
Mas do que Lore mais se lembrava daquela noite era de sua raiva. A forma
como ela ardia por sobre seu medo, choque e desespero, e dava o que ela
precisava para sobreviver.
Lore fizera o que foi treinada, esfaqueando o corpo dele até que não se
movesse mais e ar não percorresse os pulmões dele. Foi a raiva que a
carregou descalça através dos campos e estradas de terra. Foi a raiva que a
manteve viva e em movimento. A sua raiva a alimentou quando ela sentiu
fome.
E depois Lore fez exatamente o que Atena a acusava de ter feito. Reprimiu
essa emoção, reduzindo-a, tornando-a irrelevante e desmerecida. E depois
Hermes a encontrou, quando ela estava quase vazia.
— É por isso… — Lore começou a dizer. — É por isso que me mata saber
que eu estava errada a respeito de Gil. Eu devia saber. Eu sabia. Mas deixei
minha guarda baixa, mesmo depois do que aconteceu com o arconte, porque
eu pensei que era eu quem estava fazendo as escolhas. Que ele não seria
capaz de me machucar ou me controlar, como os homens do Ágon tentaram
fazer.
— Assim como agora agimos por necessidade. Você teme o julgamento dos
outros sobre a nossa busca pelo Ares impostor, mas não se arrependerá das
suas escolhas quando ele estiver morto… somente das oportunidades que
perderá permitindo que os temores alheios a mantenham prisioneira de sua
própria dúvida.
— Isso é puro papo. Você não deu nenhuma escolha para ela, deu? —
retrucou Lore. — E agora a história se lembra dela como uma vilã que
mereceu morrer.
— Não. Isso é como os homens a retrataram, por meio da arte e dos contos
mundo de volta, sem medo. Não é o que a própria linhagem fez por séculos,
olhar por detrás da máscara dela?
Lore não era velha o suficiente para ter a sua, embora uma das suas
lembranças mais vivas era ela tirando a máscara da mãe do embrulho de
seda e trazendo-a para perto do rosto. A sensação das cobras de bronze em
seus pequenos dedos e o que ela viu refletido no espelho a fizeram se sentir
mais poderosa.
Lore conseguia se ver claramente com o escudo, a forma como seu rosto
refletiria a expressão de Medusa fundida em prata. Não havia medo e nem
vergonha em pensar aquilo, e nenhum dos arrependimentos agonizantes que
a preveniram de dizer o seu nome por anos.
A égide deveria ser carregada por ela. Era o seu direito de nascença, sim,
mas mais do que isso: era a representação de tudo que ela tinha a ganhar, e
tudo que ela sempre quis realmente ser. Não a farsa que Hermes a
convenceu de que precisava viver, mas a fome poderosa que ainda habitava
dentro dela.
— Mas… você deu o escudo para Perseu — disse Lore. — Que o usou para
matá-la. Você o guiou, e era como uma amiga para ele.
— Tive meu papel em muitos jogos perversos e vivi à mercê de deuses mais
poderosos. Tenho meu temperamento e desfrutei das vezes que ataquei
aqueles que feriram meu orgulho ou me desonraram.
Você pode chamar isso de complacência, e talvez seja. Eu creio que seja
sobrevivência.
— Como você pode ter tanta certeza de que seu destino foi escrito para
você? — indagou Lore. — E se você sempre teve a chance de viver sob
seus próprios termos e não enxergou isso?
— Tudo o que sempre desejei foi fazer o que nasci para fazer.
— Eu não escolhi guiar mulher alguma por uma grande aventura, mas as
aconselhei. Não por malícia ou por crer que eram criaturas inferiores. Pelo
contrário, senti que, ao elevar uma delas dessa forma, estaria desonrando
minha grande amiga, que não se compara a ninguém nesta terra, seja em
vida ou em morte.
— A única coisa da qual sempre tive medo foi de ser impotente. De não ser
capaz de proteger as pessoas que amo. Mas não sei o que vai acontecer
comigo se eu ceder — disse Lore. Com tudo que sinto. Com tudo que quero
fazer.
A chuva começou a apertar, batendo em sua pele com força, mas Lore não
conseguia se mexer. Ela se sentia esgotada, mas não de um jeito que a
deixava fraca. Pela primeira vez em dias, talvez até em anos, sua mente
estava clara. Lore se apegou à dor aguda dentro de si e não soltou mais. Ela
segurou firme, esperando que suas garras se projetassem para fora.
socorro
socorro
socorro
TRINTA E QUATRO
mostrava o celular para Van. Ele o pegou de sua mão, tendo dificuldade em
controlar a raiva.
Castor ficou atrás dela, encostado na escada. Ele não disse nada, o que por
si só já dizia tudo. Nem ele nem Van olhavam para ela.
— Não vamos sair daqui — disse Lore. — Ele pode nem ter sido levado.
Lore queria acreditar nela. Queria acreditar nela mais do que qualquer
coisa.
Van foi até a cozinha pegar seu segundo notebook. Enquanto um estava
com o Argos aberto, procurando ativamente por Miles, ele usou o outro
para ver os vídeos salvos.
disse Van. Ele deu play e, juntos, assistiram a Miles desaparecer ao virar a
esquina.
Estava offline.
— Imagino que ele teria mandado uma mensagem ou ligado assim que
surgisse algum problema.
Miles caminhavam por ele, indo da 123rd Street até a 110th Street inúmeras
vezes; às vezes, ela o encontrava lá depois que as aulas dele terminavam, ou
porque ele lhe prometera pagar o almoço.
Enquanto caminhavam até uma das entradas do parque, Lore avistou uma
câmera de segurança ali perto e a mostrou para os outros.
— Eu coloquei as transmissões de todas as câmeras do parque em loop —
— Nada — disse Lore. — Mas não quero esperar mais. Se eles vierem,
vieram.
— Vamos.
— Foi minha irmã — disse Atena, segurando sua dory com firmeza. —
Ártemis.
TRINTA E CINCO
Cães uivadores eram usados por caçadores para perseguir e depois cercar as
suas presas. Eles latiam e uivavam para manter a caça encurralada até que
os cães de presa, ou o caçador, chegassem.
Com a visão periférica, Lore avistou vultos escuros se reunindo nas árvores
logo atrás da cabeça de Atena. Pássaros e esquilos se agrupavam nos
galhos, empoleirados um ao lado do outro com uma tranquilidade anormal e
com os olhos brilhando com o dourado do poder de Ártemis.
Eles não podiam nem fugir. A perseguição faria o sangue dos cães
esquentar, e eles os destruiriam.
Eles teriam sorte se ouvissem o sussurro da flecha antes que perfurasse seus
corações.
Os cães os cercaram. Os que estavam atrás vieram mais para a frente, se
aproximando, enquanto os da frente deram meia-volta e começaram a
seguir uma trilha. Não para guiá-los, ela percebeu, mas para evitar que
escapassem.
— Nós vamos simplesmente ficar aqui que nem idiotas e esperar que eles
nos ataquem? — disse Lore, sacando a faca da bainha amarrada em sua
perna. — Vamos lá.
Sua respiração soava em seus ouvidos enquanto seguiam a trilha para o sul.
Havia mais corpos: homens e mulheres que foram correr, outros que
claramente faziam o trajeto de ir e vir da escola e do trabalho. Todo o ser de
Lore se contorceu ao vê-los, alimentando a sua raiva.
Ártemis responderia por aquelas mortes. Atena tinha razão esse tempo todo.
Sua irmã estava fora de si. Castor poderia tentar, poderia ter esperança, mas
Ártemis nunca se aliaria a ele, e naquele momento Lore nunca aceitaria a
ajuda da deusa, mesmo que fosse oferecida.
— Como Ártemis soube que ele estava envolvido nisso? — sussurrou Lore.
— Não é óbvio? — disse Atena. — Ela vem observando e rastreando
nossos movimentos. Ela precisava de uma forma de nos atrair.
— Não tem mesmo um jeito de falar com ela? — sussurrou Van. — Ela é
sua irmã.
— Ela não é uma fera que deve ser acalmada — alertou Atena. — Quando
Apolo caiu, a sua mente se desgastou e ela se tornou uma alma pela metade.
Castor não disse nada enquanto olhava para o parque pouco iluminado.
— Não! — gritou Van, pulando por cima do banco e correndo para o lago,
espalhando água fria para todo lado ao entrar no lago na hora em que
Ártemis fez sua flecha alçar voo.
TRINTA E SEIS
Ártemis saltou para longe, desaparecendo entre as árvores bem quando Van
se atirou sobre Miles para protegê-lo. Castor e Atena correram em direções
opostas em volta do lago, no encalço dela. Os cães correram atrás deles,
latindo e rosnando.
Isso vai chamar a atenção de alguém — pensou Lore. Ela passou por cima
do banco e mergulhou no lago. — Ele está…?
Van ergueu uma das mãos, impedindo que se aproximasse. Sua voz furiosa
tinha um tom baixo.
— Você sempre… você sempre faz isso. É sempre sobre o que você quer e
todo mundo tem apenas que… Só… não encoste nele.
Ela não sabia o que fazer, exceto se afastar, enquanto Van arrastava Miles
para fora do lago. Ele se ajoelhou, colocando Miles sobre o ombro e, então,
correu de volta para a segurança das ruas mais próximas.
Lore se abalou. Ela podia lidar com as consequências do que aconteceu com
Miles depois; nesse momento, ele estava a salvo com Van, e havia outro
problema mais urgente a se lidar.
Ela subiu correndo pelo lance de escadas mais próximo, parando quando
alcançou a trilha estreita de pedestres. Ela não conseguia ver ninguém por
entre o véu de chuva e os arbustos frondosos, mas podia ouvir vozes sem
corpos enquanto ecoavam pelos penhascos. Ela freou quando alcançou a
trilha do nível acima, vasculhando as árvores.
— Vá embora, irmã! — gritou Ártemis. — Você sabe que este abate é meu!
— disse Ártemis. — Deveria tê-lo trazido até mim. Você prometeu que ele
era meu!
Lore tentou correr na direção do som das vozes ecoantes, mas elas pareciam
vir de todos os lugares ao mesmo tempo.
Lore subiu correndo outro longo lance de escadas para ter um melhor ponto
de observação. Os penhascos estavam reforçados com alguns blocos de
Deixando o arco de lado, ela sacou uma pequena faca de caça que havia
amarrado no braço. Castor foi forçado a andar em zigue-zague para evitar
os ataques erráticos dela. Ele sibilou quando a faca cortou seu antebraço e
ela redobrou os esforços, disparando adiante e mirando a lâmina no pescoço
dele.
— Não! — Lore se jogou no chão para pegar a dory que Atena havia
deixado cair e a arremessou na direção de Ártemis.
A deusa a bloqueou com facilidade e com uma risada sem humor, mas Lore
não tentava matá-la. Ela só precisava dar uma segunda oportunidade a
Castor.
E ele a aproveitou. Quando Ártemis recuou para evitar a lança, ele deu um
soco em seu pulso, forçando-a a derrubar a faca, e a derrubou no chão em
luta corpo a corpo.
Finalmente livre da rede, Atena seguiu aos tropeços na direção dos outros
deuses com o som do grito voraz de Ártemis. A ferocidade do grito fez com
que os pássaros ali perto piassem em uma cacofonia estridente. Ártemis
chutou Castor para longe dela, o fazendo estatelar as costas na grama e na
lama.
— Pare com isso, Ártemis! — disse Atena. — A caçada é tão nossa inimiga
quanto os caçadores. Juntos, nós podemos acabar com isso…
— Não acredito nisso — disse Atena, dando outro passo na direção da irmã.
Ela levantou a mão para evitar que Lore a seguisse.
— Você não entende! — gritou Ártemis. — Senão o teria trazido até mim!
Nós devemos matá-los, todos os impostores! Todos eles!
Mas à medida que Ártemis se movia, Lore notou que parte do escoamento
chuva estava sendo drenado para baixo de um monte de folhas e lama ali
perto. Enquanto observava aquilo, uma camada de terra foi levada,
revelando a borda de um buraco e a cuidadosa camada de galhos finos que
foi posta sobre ele.
— Parem… com isso… — disse ela, lutando contra o frenesi deles. Saliva
quente voava para todo lado.
— Sim, você tem razão — disse Atena, mantendo os olhos fixos na irmã.
Um dos cães tentou se soltar para atacar Castor, mas Lore o afastou com o
galho e virou o pescoço na direção dos deuses, só por um momento, para
ver o que estava acontecendo.
mente dela estava em algum lugar aonde a dor não chegava. Usando a outra
mão, cravou a faca na coxa de Castor.
— O quê?
Um trovão soou estrondoso sobre eles. Ártemis se atirou para cima dele
mais uma vez, socando-lhe o estômago, os rins e qualquer outro lugar que
conseguisse. Sangue irrompeu da perna do novo deus, se misturando com a
água da chuva.
Ártemis o empurrou para trás com um único chute. Ele a bloqueou com um
braço e, com a outra mão, a esfaqueou no ombro, usando a faca da própria
deusa.
— Não se mexa — alertou Castor. — Por favor… ele não gostaria que
você…
Castor lançou outra rajada de energia brilhante nela, depois outro, tentando
fazê-la ir para a trilha e afastá-la da formação rochosa. O vento os açoitava
por todos os lados, forçando Castor a se ajoelhar e usar uma das mãos para
se proteger e não cair da borda.
Castor lançou uma última rajada, e, sem pensar, Ártemis deu um passo para
esquerda, se desviando.
E caiu.
TRINTA E SETE
Lore teve dificuldade de ir até eles, apoiando as mãos nas árvores e pedras,
rastejando até que alcançasse a borda da cachoeira.
A alça da aljava de Ártemis ficou presa em um galho sobre a cachoeira,
quebrando seu pescoço em um instante.
E o rosto da deusa…
O grito de choque ainda estava preso na garganta de Lore, tentando sair. Ela
pensou que, se tentasse respirar, ele a sufocaria.
— Eu sint… — Lore começou a dizer, sem saber como continuar. Ela não
sentia muito. Mas… — O que fazemos agora? Você quer que eu a solte para
que você possa… possa enterrá-la até que o Ágon termine?
— Como se enterra um deus? — disse Atena. — Ela era poder, não carne e
osso. Isso nada mais era do que um recipiente rudimentar. Agora ela está…
livre.
E Lore se deu conta de que Atena era a última dos nove deuses originais.
Ele continuava no mesmo lugar, curando sua perna. O novo deus ainda
parecia estar em agonia quando se levantou, embora claramente não tivesse
nada a ver com a dor.
— Você está bem? — perguntou ela, estendendo uma das mãos para ajudá-
lo com os últimos passos perigosos da formação rochosa.
Lore olhou com descrença para o novo rasgo em sua blusa, para o sangue
brotando de seu ombro. Atrás dela, uma flecha tremia no tronco da árvore
que havia acertado.
— Lore…
Lore gritou, avançando para pegar o braço dele, mas foi devagar demais. Os
lábios do novo deus formaram uma última palavra silenciosa.
Lore.
estava errado.
Isso seria daqui a nove dias. Seu pai lhe disse para não se preocupar, ele
nunca diria sim. Mas Lore não conseguia parar de pensar nisso.
O rosto dele a preocupava também. Ela passou a ver uma sombra sobre ele,
como acontece quando uma nuvem passa sobre o sol e escurece o mundo
abaixo.
Pá-pá-pá.
Lore colocou mais força no último golpe com o bastão de treino. Castor
recuou um passo, e seu pé de apoio escorregou na poça de suor que se
formava debaixo dele.
— Pronto?
No último pá, Lore testou a sua teoria, batendo mais forte do que precisava.
Lore olhou para o instrutor. O homem estava de costas para eles enquanto
andava pelo salão de treinamento, corrigindo os alunos e dando elogios
sutis.
Enquanto Castor se recuperava, Lore fingiu dar um golpe de luta livre nele,
se inclinando para frente até que suas testas se tocassem e ela pusesse a mão
na sua nuca. Era a única forma que encontrou para conseguir falar com ele
fora dos intervalos.
Evander, um dos primos distantes de Castor, veio ficar na Casa Tétis por
uns meses antes do Ágon, mas foi levado para casa pelos pais depois de
uma sequência desastrosa de sessões de treinamento. Lore tinha ciúmes
dele, por se intrometer no tempo que ela tinha com Castor e ainda mais
pelas lições nas quais os instrutores a mandavam apenas olhar para que
Castor e Evander pudessem formar uma dupla.
Lore bateu sua garrafa de água com força no banco e voltou a atenção para
ele. Castor apertava levemente o pulso da amiga, impedindo-a.
— Você sabe bem sobre essas coisas — disse Castor —, já que consegue
viver bem com metade do cérebro. Não se preocupe, ninguém percebeu que
você ainda não dominou as habilidades de espada do primeiro ano. Estamos
todos torcendo por você.
Os alunos da turma dele cochicharam entre si, olhando para o instrutor para
ver se ele interviria. Ele estava ocupado consultando outro instrutor. Outros
sorriram maliciosamente, antecipando a briga que estava prestes a
acontecer.
— Pelo menos eu não vou virar noiva de uma serpente — zombou Orestes.
— Ela não contou para você? — disse ele, enquanto voltavam aos tatames
finos de treinamento. — Este é o último dia dela aqui. O pater está furioso
pelo babaca do pai dela ter concordado em fazer o casório da filhinha com o
arconte dos Cadmídeos. Os anciões se reuniram ontem à noite e decidiram
expulsar essa garota. Meu pai me contou. O único motivo de ainda não
terem mandado ela para casa hoje de manhã foi porque o pai dela implorou
que nem um cachorro por um último dia.
Ela não contara a ele sobre o encontro com os Cadmídeos porque… porque
ela ainda não entendia direito o que aconteceu. Mas o seu pai recusaria a
oferta de Aristos Cadmou. Nunca a entregaria a ele.
— Ninguém diz não para o arconte dos Cadmídeos — disse Orestes a ela,
de forma presunçosa. — Talvez ele te estrangule enquanto estiver em cima
de você como…
Castor deu um soco na parte lateral da cabeça de Orestes, fazendo-o tombar
para o lado. Os outros transbordaram de alegria quando Orestes investiu
contra Castor.
Se ele estivesse com toda a sua força, Castor nunca teria caído da maneira
que caiu.
Ele não reagiu. Os olhos dele reviraram e todo o seu corpo começou a
convulsionar.
— O que você fez? — gritou para Orestes. Mas até mesmo o garoto parecia
chocado. O instrutor colocou uma mão embaixo da cabeça de Castor para
evitar que ele a batesse no chão de madeira.
rosto do garoto era uma massa sangrenta e mole. As mãos dela estavam
cobertas com esse sangue.
— Você precisará esperar mais sete anos para tentar, pequena górgona —
rosnou o instrutor. — Isso é, se a serpente deixar que você saia do seu covil.
Quíron dormia aos pés de Castor. Ele lambeu a mão da menina quando ela
acariciou atrás de sua orelha.
— Você acha que eu estava errada? — sussurrou ela. Ela viu o não nos
olhos escuros de Quíron e concordou.
O coração dela batia forte no peito, ecoando os golpes que ela desferira
contra Orestes. Ela tocou as ataduras ásperas que o pai de Castor passou em
volta de seu punho depois que a Curandeira Kallias se recusou a fazê-lo.
Ela ouviu pela fresta na porta do quarto seus pais chegarem. Como zelador
do edifício, o pai de Castor podia passar escondido com eles por uma
entrada lateral e subir pelo elevador de serviço, diminuindo as chances de
serem vistos pelos Aquilídeos. Lore estava envergonhada com o quanto que
ela queria sua mãe e ser abraçada por ela até as palavras da curandeira
desaparecerem.
Não há mais nada a ser feito. Nenhum tratamento Mundano pode curá-lo.
Fragmentos da conversa baixa deles vagaram pelo cômodo, interrompendo
os suaves zunidos e bipes dos estranhos aparelhos médicos em volta da
cama de Castor. Lore foi até a porta, com ouvidos aguçados para ouvi-los,
mas lendo os lábios deles para captar as palavras completamente, da forma
como ela e Castor ensinaram um ao outro para espionar os anciões de sua
linhagem.
— Não, claro que não — respondeu a mãe de Lore, com voz baixa e
tranquilizadora enquanto segurava as mãos dele. — Sempre há esperança.
Lore cerrou os punhos nas laterais do corpo, e todo seu ser, da pele até a
alma, começou a vibrar de raiva. Isso não era certo. Não era para ser
assim…
— Não há nada a fazer senão nos rendermos ao tecer das Moiras e permitir
que ele tenha uma morte digna — disse Cleon.
— Não! — Ela irrompeu pela porta. Quíron latiu atrás dela, assustado com
o barulho e com o movimento. Seu corpo parecia que ia explodir enquanto
ela ralhava com aquele arremedo de pai. Ele queria que Castor morresse;
ele deixaria Castor partir. Um caçador sempre luta, como os homens das
lendas; eles nunca deveriam desistir
— Peça desculpas agora — disse seu pai, voltando a filha para Cleon
Aquileu.
O seu pai a arrastou de volta para o quarto com uma ordem ríspida:
E o pai fechou a porta. Lore bateu nela com ambas as mãos, e as lágrimas
escorriam por suas bochechas. Dentro dela havia um turbilhão de dor e
confusão, e ela não aguentava isso.
Os instrutores disseram por repetidas vezes que não há desonra maior que a
covardia. O pai de Castor pode ter desistido, mas ela nunca o faria. Levaria
Castor a todos os médicos na cidade, nem que tivesse que carregá-lo nas
costas. Lutaria até que seu corpo não aguentasse mais e depois se arrastaria,
se fosse preciso.
Lore ergueu o olhar, limpando as lágrimas nos olhos com o braço. Foi até
ele e subiu na cama estreita. Castor chegou para o lado no colchão o
máximo que pôde para dar espaço a ela. A menina deitou, com as mãos
ainda tremendo quando as repousou na barriga. Quíron soltou um barulho
rabugento enquanto se movia para dar espaço para seus pés.
— Eu não ligo — sussurrou Lore, voltando-se para ele a fim de fitá-lo. A
pele do menino ainda estava pálida, quase tão translúcida quanto os tubos
em seu nariz, que lhe forneciam oxigênio. Mas então ele sorriu e a fez se
sentir um pouco melhor.
— Você vai ficar bem — disse ela. — Sempre tem um outro jeito.
— A Curandeira Kallias disse que eu não posso sair desta cama — disse
Castor. — Que… eu preciso descansar.
Nossa vizinha me deu alguns trocados por regar as plantas dela quando ela
estava fora da cidade…
— Lore — disse ele, e então usou aquela palavra que ela odiava mais do
que qualquer outra. — Pare… Está tudo bem. É sério.
Ela respirou fundo. Algo selvagem cravou garras dentro de seu peito.
— Não está tudo bem! Você vai melhorar. A Curandeira Kallias é uma
idiota. Ela não sabe de nada.
— Está tudo bem — disse ele, suavemente. — Vou ver minha mãe de novo.
— Não vou deixar você ir — disse ela, com a voz baixa e determinada. Não
deixaria. Ele era o seu amigo e hetaîros, seu companheiro e parceiro em
todas as coisas. Ela o defenderia se ele caísse, derrotaria qualquer coisa e
qualquer um que o ameaçasse; sua lâmina era dele, e a dele, era dela.
— O quê?
— Ninguém queria fazer par com eles porque tinham dois pés esquerdos.
Ele deu de ombros ligeiramente, mas mesmo seu fraco sorriso sumiu
quando o silêncio caiu sobre eles e sua respiração ficou mais ofegante.
— Você não vai morrer — sussurrou Lore. — Não vai. E se morrer, eu vou
te seguir até o Mundo Inferior e te arrastar de volta. Eu também não tenho
medo. Não tenho medo de nada.
Ele a observou, com os lábios pálidos contraídos formando uma linha fina.
Ele lutava contra a fadiga, piscando para afastar seu toque. Lore também
não queria aquilo, então se forçou a assentir.
— Não — disse ele. — Não, Lore… me prometa que você não vai.
Quando ela não prometeu, Castor agarrou-a pela nuca, encostando sua testa
na da amiga. A mão do menino estremeceu com o esforço, mas Lore fingiu
não perceber.
TRINTA E OITO
Morto.
Outra flecha voou, desde vez de um caçador diferente. Ela passou cortando
o braço de Lore. A dor ardente rompeu seu estado de choque. Iro vociferou
algo para os caçadores, alguns se espalharam, voltando para as ruas da
cidade. Os outros pararam de mirar os arcos em Lore e apontaram para
onde Atena estava escondida, atrás de uma árvore.
Mais flechas voaram. Atena se agachou ainda mais, mantendo a cabeça
cuidadosamente coberta enquanto lascas do tronco voavam acima dela.
Todo o corpo de Lore latejava com as batidas de seu coração. Ela não
parecia conseguir trazer sua mente de volta a si.
Morto.
— Precisamos sair deste lugar — gritou Atena. Ela fez algo cruzar a
distância entre elas deslizando pela superfície úmida. Lore olhou para baixo
e
Morto.
Uma pequena chama cresceu no centro de seu peito. Ela se prendeu àquilo,
deixou que queimasse, porque era algo no meio daquele vazio dormente.
Fúria.
A punir Iro. Seria justo. Seria até mesmo obrigatório, pelas regras da
caçada.
Iro e o caçador que disparou a flecha mortal foram até a beira do lago e
caminharam com dificuldade em meio à chuva implacável. Ele deixou o
arco cair e desembainhou lentamente uma espada, com o olhar fixo na
forma sombria de Castor boiando de bruços na água. Iro tinha uma dory na
outra mão e a usou para manter o equilíbrio enquanto atravessavam a bacia
do lago, que não se podia ver.
Sua cabeça latejava com a força alucinante dos pensamentos. Lore chegou
ao nível inferior do parque, passando pelo rio de lama, chuva e pedras soltas
até a borda do lago.
Iro girou quando Lore pulou na água, erguendo sua dory. Ela acenou para
os outros caçadores que pairavam pelo lago. — Fique longe, Lore!
— Como você pôde? — vociferou Lore. — Depois de tudo que fizemos por
você…
A dory de Atena.
Lore virou a dory nas mãos, ainda caminhando na direção dela. O caçador
ao lado de Iro se moveu, sem saber direito o que fazer.
— Você nem mesmo foi capaz de fazer o trabalho sujo — criticou Lore. —
— Você vai… você vai ascender — disse Iro, com dificuldade. — Por que o
poder não foi tomado…?
As palavras passaram por Lore como se fossem ditas em um idioma que ela
não entendia. Não havia nada mais no mundo além da lança em sua mão e
Iro.
— Ele pode não estar… — disse Iro, tentando estancar com a mão o sangue
que escorria pelo seu rosto, cuspindo um pouco do que estava na boca. —
Ela se inclinou para a esquerda quando Iro deu uma estocada. Lore tentou
golpear o pé de Iro com a sauroter, mas era quase impossível ver qualquer
coisa sob água se movimentando freneticamente. A chuva caía sobre elas.
Iro agachou, recuperando a faca do pescoço do caçador morto e a
arremessando.
Lore se defendeu com o corpo metálico da dory, com tal força que soltou
uma faísca.
O combate estabeleceu seu ritmo, e Lore sumiu em meio à força do seu
corpo, indo ao passado, até encontrar a garotinha que teria arrancado o
coração de seu oponente para declarar vitória.
Então a libertou com toda a sua ferocidade. Cada perda agonizante, cada
humilhação e cada lembrança daquela desesperança sufocante revoltaram-
se dentro dela como uma tempestade.
Que ela se torne o monstro que assombrou as lendas de todos. Seu kleos
seria a infâmia gloriosa.
Lore fingiu que golpearia o estômago de Iro em uma finta para ter tempo de
enfiar a mão debaixo d’água e pegar novamente a faca. A parte branca dos
olhos de Iro faiscou quando Lore esfaqueou a coxa da garota e virou a dory
para conduzir a sauroter à garganta da oponente.
Lore novamente foi em direção a ela, lentamente. A ferida não teria tempo
de cicatrizar. Iro ergueu a dory para afastá-la, lutando para ficar de pé.
TRINTA E NOVE
Ela o viu morrer. O olhar de Lore foi ao peito dele, onde a flecha perfurara
o coração. Por baixo do rasgo manchado de sangue na blusa estava uma
pele nova e sem marcas onde o ferimento deveria estar. O que significava
que…
— Vá — disse ele.
Desta vez, Iro teve o bom senso de sair correndo. Ela lutou contra a chuva e
a água, segurando a perna machucada. Castor não prestou atenção nela, mas
olhou de novo para os corpos do caçador.
A breve alegria que ela sentiu se transformou em cinzas em sua boca. Como
ele se atreve… como ele se atreve a julgá-la desse jeito, como se fossem
— Mas não é isso que está fazendo — disse ele. — Eu não acredito que isso
seja realmente o que você quer… matar pessoas, ser uma caçadora.
sobrevivência.
— Você está se ouvindo? Acha que é isso que os seus pais iriam querer…
Qualquer coisa que Castor falou depois disso desapareceu quando Atena se
intrometeu.
— Nada — disse ele, olhando para Lore. — Eu não consigo explicar isso…
— O que sabe sobre o Ágon que nós não sabemos? — continuou Atena. —
Não acredito que você não se lembre de nada. Se você é um imortal nesses
sete dias, você aprendeu algo… fez algo… e guardou isso para si mesmo,
escondendo de nós, suas aliadas.
— Você mente — disse Atena. — Você está aqui, mas não faz parte da
caçada. Não de verdade. Diga-nos o que você é. A minha irmã está correta,
sua energia passa uma sensação de algum modo diferente. Sempre passou…
por isso que não tomou uma forma humana nos últimos sete anos? Você
estava mesmo nesta dimensão?
Nem Gil, nem sua vida aqui, nem mesmo Castor e o abrigo que a sua
presença familiar dava ao seu coração eram reais.
Lore não podia cair na armadilha de outro deus. Não podia se reduzir a uma
peça no jogo do qual não queria fazer parte. Mas este era Castor.
Não era?
Ela e Atena fariam o que fosse necessário, o que fosse justo, até que o
último fôlego de vida deixasse o corpo mortal de Fúria.
Castor nunca quis ajudá-las a levar o plano adiante. Se ele realmente não
sabia como ascendeu e não podia morrer… se realmente não tivesse
nenhum motivo oculto para trabalhar com elas… Lore precisava que ele a
convencesse agora. Seria sua última oferta: junte-se a nós ou vá embora.
Com um último olhar sobre ela, ele deu as costas e foi embora.
Um tremor passou pelo chão, como uma serpente na areia. A vibração subiu
pelas pernas de Lore e foi para sua coluna, incendiando cada um de seus
nervos. Um trovão soltou um pequeno murmúrio de desprazer.
Água escura. Uma quantidade enorme dela, mais do que Lore já tinha visto
em toda a vida, correndo, correndo, correndo, vinda do rio mais próximo,
rasgando as ruas. As ambulâncias e as viaturas em todo o parque
desapareceram debaixo da onda crescente, sendo arrastadas como
brinquedos, e suas luzes se apagavam repentinamente. Os policiais e
socorristas correram, mas não eram rápidos o suficiente.
E mesmo assim a água não estava satisfeita.
QUARENTA
A deusa olhou para o nível crescente das águas, assimilando o que via e o
cheiro que sua agitação fazia subir.
O rosto de Atena era impassível. Não havia nenhum traço do pânico que
Lore sentia, tampouco havia sinal de desamparo. Havia lembrança. Ela vira
inundações maiores e piores, que tinham como objetivo apagar a
humanidade da face da Terra. Dilúvios deveriam significar uma nova vida
na Terra após os fracassos dos homens condenados da Idade da Prata e do
Bronze.
— Isso não pode ser só uma maré de tempestades — sufocou Lore. — Tem
água demais, e não está parando… isso não pode ser natural. E as pessoas
que moram nos andares mais baixos dos edifícios e das casas…
Lore não suportou concluir o pensamento em voz alta. Nenhum deles teria
tempo de fugir.
quanto mais se vai para o interior, mas os litorais mais baixos — as áreas
residenciais margeando os dois rios — e as regiões mais ao sul até a 34th
Street estavam propensos a enchentes.
O medo a cortou, fazendo até sua alma doer. Se Van não tivesse levado
Miles para bem longe, para um terreno mais alto…
— Não são os rios — disse Atena, com uma sombra em seu rosto. — É
uma deusa.
— Você tem certeza de que não tem chance de o falso Ares ter encontrado a
égide? — perguntou Atena novamente. — Como um dos Perseídeos, ela
seria capaz de decifrar o poema…
— Tenho… quer dizer, eu não sei — disse Lore. Seu medo aumentava com
a ideia de que ela não havia sido tão cuidadosa como pensou. — Podia ser
pior do que isso. Mesmo como deusa, ela poderia empunhar a égide para
Fúria.
— Não acho que ele esteja com a égide, pelo menos não ainda. Ainda
temos tempo de matá-lo e acabar com isso.
Lore virou as costas para Morningside Heights, seu corpo estava tenso com
a necessidade de se mexer.
Mesmo quando as ruas estavam vazias, com exceção dos poucos táxis que
rodavam de manhã cedo, ela sabia que a cidade ainda estava viva. Que a
água passava pelos canos subterrâneos. Que os trens levavam vagões vazios
de estação em estação. Os cabos de energia murmuravam uma canção que
apenas o concreto conseguia ouvir.
Seis andares acima, Lore tinha uma visão clara dos quarteirões inundados
da cidade e dos nova-iorquinos que eram corajosos o suficiente para se
aventurar por águas que iam até a cintura. Equipes da prefeitura tentavam
drenar a água das ruas, mas os rios, tanto o East quanto o Hudson,
continuavam a encher. A água parada era tão profunda em alguns lugares
que a polícia de Nova York e a guarda costeira usavam barcos e
helicópteros para resgatar pessoas que ficaram ilhadas ou levar suprimentos.
Ela e Atena ouviram fragmentos de boatos em sua lenta jornada até o centro
da cidade e os uniram para traçar um panorama do que a cidade havia se
tornado. Uma tempestade histórica. Erros na previsão do tempo. O nível
crescente do mar. Uma louca convergência de eventos. Todos tinham uma
teoria diferente.
É isso que Fúria quer — pensou Lore. Deixar a cidade tensa, drenar todos
os recursos.
Ela fechou a mente e o coração para o dilúvio nas ruas, para a visão dos
feridos, para o choro copioso. Fechou o coração de qualquer coisa, exceto o
que tinha que ser feito agora.
— Mesmo que eu a divida com oito milhões de pessoas, sempre foi meu
relacionamento menos complicado.
— Se apegue ao que sente por seu lar — disse Atena. — Ele nunca a
abandonará se servi-lo bem, pois não é tão instável quanto mortais.
O rosto de Castor surgiu nos seus pensamentos. Lore o apagou antes que
ficasse ali por tempo demais.
— Isso é verdade, talvez — disse Lore, por fim. Ela se debruçou na borda
da cobertura, vasculhando rapidamente a calçada abaixo. — Cadê essa
garota?
Atena bebeu o resto de sua água, jogando a garrafa fora. Lore sentou-se
apoiada nos calcanhares e, pela primeira vez, começou a duvidar do plano
que criaram. Elas não tinham tempo para ficar esperando a leoa descansar
ou se encontrar com qualquer pessoa lá dentro. Precisavam de outra pista.
disse Atena. — Ela não estava bem e perdeu a noção de seus pensamentos.
No entanto, havia algo ali, algo que Lore não conseguia decifrar.
— É o Castor — disse Lore, mais certa disso agora do que quando ele
estava bem na frente dela. — De algum jeito… ele é o Castor. Ele sabia
demais do meu passado para ser qualquer outro.
— Talvez você esteja correta e seja mesmo Castor dos Aquilídeos — disse
Atena. — Apolo se foi. O falso deus possui seu poder, apesar de a sensação
ser estranha… não entendo. Não há explicação lógica.
— Você ainda volta para a sua cidade? A que foi nomeada em sua
homenagem?
— Volto para todas elas — disse Atena. — E sempre voltarei, até que a
última voz chamando por mim seja vencida pelo tempo.
— E o que fará depois? — perguntou Lore.
nosso inimigo roubará essa força. Precisarei de sua ajuda para derrotá-lo…
A não ser, é claro, que deseje tomar o poder dele.
Ela nunca mais queria se sentir sendo caçada e presa. O poder de Ares
levaria a sua mente ao limite.
Não. Os poderes de Ares eram tanto uma maldição quanto uma bênção,
mesmo que tenha trazido o kleos aos incontáveis caçadores que o tomaram.
Lore já havia causado danos e mortes suficientes na sua curta vida. Mas
havia aquela garotinha dentro dela, ainda faminta. A última do seu nome no
mundo todo. Quem se lembraria dela?
Mesmo com a égide, Lore ficaria fraca sob o efeito do poder de Fúria. Mas
se estivesse nas mãos de alguém mais forte… alguém que soubesse usá-la
em seu potencial máximo…
— Você acha mesmo que não consegue lidar com ele sozinha? —
Após séculos sendo caçada, Atena apenas queria deixar este mundo e voltar
para o próprio lar. Ela mesma disse isso, tanto para Ártemis quanto agora
pouco.
Entregar o escudo à Atena não mudaria o passado, mas talvez desse início
ao caminho de Lore, e da própria Atena, rumo à absolvição.
Quando alcançaram a 78th Street, a leoa fez uma curva acentuada para a
direita, e fez Lore parar.
Ela havia esquecido algo. Anos atrás, ela e Castor criaram um jogo no qual
tinham que encontrar todos os esconderijos das linhagens na cidade. Muitos
não eram tão secretos assim, porém ainda mais existiam entre os que não
passavam de rumores e os que existiam de fato. Eles só encontraram esse
lugar depois de ouvir um dos instrutores falando a respeito, dando palpites
de onde poderia ser.
Atena diminuiu o passo, olhando para ela. À frente delas estava o Rio East,
e no trecho entre ele e elas havia uma série de edifícios residenciais
construídos antes da guerra.
Esse lugar acabou sendo uma janela com grade de uma escola pública do
outro lado da rua. Após entrarem por uma porta na York Avenue, elas
seguiram pelos corredores da escola até encontrarem uma janela com visão
desobstruída do edifício dos Cadmídeos.
Um porão, talvez?
Lore não conseguia entender o que estava vendo. Os pais lhe contaram que
ficariam por sete dias dormindo em um hotel na cidade, para garantir que
ninguém os seguiria até em casa.
Suas irmãs eram novas demais para tocá-las, mas ela, não. Lore gostava de
passar os dedos sobre os padrões esculpidos no punho, fechar os olhos e
imaginar.
Mais um ciclo — dissera sua mãe. — Você só precisa se esforçar mais e ser
paciente até lá.
Mais um ciclo, e ela poderia salvar Castor. Ele ainda estava vivo e
continuaria lutando, em seu âmago, sabia disso. Se ela ajudasse papai a
matar um deus, eles teriam dinheiro suficiente para encontrar médicos
melhores e remédios para o amigo.
Mais um ciclo.
ser diferente: ela guardaria o prato, jogaria a caixa da pizza congelada pelo
duto da lixeira, escovaria os dentes, daria um beijo de boa-noite em Damara
no berço e depois iria para cama com Pia, cobrindo-as com o cobertor que
tinha o perfume de flor de laranjeira que a mãe usava.
— O que vocês estão fazendo aqui?
— Ah… não achei que ainda estaria acordada — disse a mãe, indo até ela.
Os seus pais trocaram um olhar que Lore não entendeu. O pai não se
barbeava há dias e o rosto dele pinicava por isso. Havia um corte acima do
olho esquerdo, e ele parecia se estar ligeiramente manco. Lore sondou a
mãe, encontrando apenas um hematoma na bochecha e um em volta do
pulso.
Nenhum dos dois tinha uma lesão grave o suficiente para forçá-los a deixar
a caçada de forma precoce e enfrentar a desonra dessa escolha. Nenhum que
ela pudesse ver.
— Eu estava cuidando bem delas — insistiu Lore. — Estava sendo uma boa
garota. Fiz tudo o que vocês me pediram.
O pai se ajoelhou em sua frente, tentando envolver Lore com os braços. Ela
se afastou até ir encostar no balcão.
Ela se voltou para ele, ofegante. Lore odiou a forma como sua voz vacilou.
Todas as outras linhagens cuspiam neles e riam sempre que o seu pai
oferecia uma aliança. A linhagem deles perdeu sua herança; eles lutavam
com armas malfeitas que as outras linhagens descartavam. Mas Lore nunca
pensou que perderiam o orgulho. Honra era a coisa mais importante e a
única que os restava.
Você não poderia sobreviver sem ela e você não desejaria isso.
— Eu sei o que dissemos, Melora — disse o pai. — Mas isso não pode
continuar. Não aguentamos este mundo. Aristos Cadmou tomou o poder do
Ares. Você entende o que isso significa?
Lore se ofendeu com a pausa cautelosa dele, com a suposição implícita de
que ela não poderia lidar com a verdade.
Entendia que, em sete anos, iria apunhalá-lo até que o sangue mortal dele
escorresse, e que ela o traria para que o seu pai pudesse matá-lo.
— Estamos fazendo isso por você e pelas suas irmãs — continuou ele. —
Ela nunca seria mais do que era agora: uma garota de pé na divisa de um
— Não — disse Lore. As facas da avó esperavam por ela, era uma
promessa que ainda tinha que ser cumprida. — Vocês são covardes. Vocês
são covardes e, se não vão caçar, eu vou!
— Você não vai falar conosco desse jeito, Melora — disse o pai. A raiva
nas palavras dele a fizeram se sentir ainda mais enojada.
— Muito bem — disse seu pai, fitando-a com o rosto envolto em sombras.
— Pelo menos estará viva para odiar.
Ela passou por ele aos empurrões, cruzando o apartamento correndo até o
quarto que dividia com as irmãs. Seu corpo tremia enquanto ela estava
parada no escuro e as lágrimas escorriam pelo rosto. As tábuas do chão
rangeram do outro lado da porta. Ela ouviu a conversa baixa dos pais.
Não querendo falar com eles, não querendo olhar para eles, subiu na cama
ao lado de Olympia e puxou o cobertor por cima da cabeça.
— Não quero que as garotas vivam com medo — disse o pai. — Não quero
que isso as assombre
A mãe persistiu:
— Ela precisa entender que ele ascendeu. Nós devíamos ter ido embora
antes que a semana começasse.
Os passos deles se afastaram, e as vozes iam junto com eles. Lore cerrou os
punhos e fechou os olhos com força. Seu corpo tremia de raiva e ela pensou
Seus pais estavam tirando tudo dela só porque estavam com medo.
Lore não tinha medo de nada, nem dos deuses, nem da morte, nem de
Aristos Cadmou e suas serpentes.
Eles não seriam os últimos Perseídeos, e ela não deixaria Castor morrer.
Lore aguçou os ouvidos, tentando escutar os pais, mas não captou nada
além da suave brisa do ar-condicionado na cozinha. Ela se afastou
cuidadosamente de Olympia, que a segurava dormindo, e trocou de roupa.
Seu coração pulava pela boca enquanto ela amarrava os tênis e se levantava,
dando um beijo na testa da sua irmã. Ela foi até Damara, reclinando sobre o
berço para dar-lhe um beijo também.
O senhorio não permitiu que seu pai bloqueasse nenhuma janela do
apartamento alugado deles, mas ele as reforçou com fechaduras extras e um
sistema de alarme. Lore descobriu há meses que o alarme funcionava como
o da Casa Tétis. Tudo que ela tinha que fazer era colocar um imã da
geladeira no sensor e ele não seria acionado. Ela guardava um no fundo da
gaveta desde então.
Lore se esgueirou pela abertura da janela, olhando para o pequeno pátio que
ladeava o edifício. Eles estavam no sexto andar, mas os tijolos aparentes lhe
dariam apoio suficiente para que escalasse sem precisar usar a escada de
emergência. Ela estaria de volta antes que os pais acordassem.
Imaginar o rosto deles quando vissem o que ela havia feito a fez sorrir e seu
coração bater forte com animação.
Logo depois, foi exatamente o que ela fez, abraçando o travesseiro. Lore
fechou lentamente a janela, deixando-a só um pouquinho aberta para
quando voltasse.
Então, ela desceu, saltando para o chão nos últimos centímetros, e correu
para as ruas escuras.
QUARENTA E UM
Nenhuma lixeira, nenhum carro, nem mesmo uma porta para o prédio ou
para o seu subsolo. A entrada da garagem dava direto para a 79th Street,
bloqueada apenas por portões em cada extremidade.
— Hum. — Lore manteve as costas viradas para a parede do prédio,
tentando ter uma vista ampla o suficiente da rua para ter certeza de que não
deixou nada passar.
Atena estava a uns centímetros de distância, e seu olhar passava pela água
imunda e para o solo abaixo dela.
— Nada mal — disse Lore, lutando contra a água que passava jorrando por
ela direto para a abertura. Ela se inclinou para a frente, olhando para o túnel
abaixo.
Lore acendeu a lanterna do celular. O caminho era bem rudimentar, mas era
mais largo do que Lore imaginou originalmente.
O túnel se estendia sem fim, virando para a direita, depois para a esquerda,
aparentemente sem motivo, até que, finalmente, se dividia. Ela parou na
junção dos túneis, iluminando um deles com a lanterna do celular e depois o
outro.
A batida de um coração.
Sua mão segurou firme a faca. Ela virou para a direita, seguindo o som por
mais curvas e divisões.
O caminho delas foi cortado por outra via, perpendicular ao que estavam. O
tum-tum continuava, cada vez mais alto e insistente. Elas estavam perto.
O homem lhe parecia familiar, mas não o suficiente para que viesse um
nome na sua cabeça. Tum-tum. Ele quicava uma pequena bola
emborrachada no chão, depois em uma das duas portas de metal na parede
oposta à que ele estava, sentado em um banquinho. Uma lanterna elétrica
em forma de lampião brilhava aos seus pés.
Atena estava acima dela, estreitando os olhos para a tela. Lore desligou e
guardou o celular no bolso de trás. Pondo um dedo nos lábios, ela
gesticulou para que a deusa aguardasse, e então saiu.
sua cabeça. No último segundo, sua mão mudou de posição e ela acertou o
ombro em vez disso.
Seu coração ainda batia forte quando Atena passou por cima do caçador,
tirando a lâmina do ombro dele e a devolvendo para Lore. A jovem teve
uma ligeira lembrança do que sua mãe costumava dizer para ela e suas
irmãs, a velha superstição que uma faca passada entre pessoas evitava um
conflito entre elas.
Lore voltou o foco para a primeira das duas portas de metal na frente delas,
pressionando o ouvido na superfície gelada. Atena a guiou para fora do
caminho, depois levou a mão ao cadeado pesado. Ela quebrou em dois,
caindo pesadamente.
A câmara era maior do que parecia ser do lado de fora. Suportes de metal,
quase como pés, foram deixados para trás, junto com algumas ferramentas
espalhadas.
— Estranho. Por que deixar um vigia aqui embaixo se não há nada para
vigiar?
Esse, também, era um rosto que Lore reconhecia. Dessa vez, no entanto, ela
sabia seu nome.
Portadora da Maré.
QUARENTA E DOIS
Ê
— O QUE VOCÊS ESTÃO FAZENDO AQUI?
A voz da Portadora da Maré estava rouca, mas seus tons melódicos ainda
estavam ali, cada palavra subia e descia como o infinito movimento do mar.
Lore ignorou o olhar de advertência que Atena lançou a ela e foi buscar as
chaves. Quando voltou para a pequena prisão escura e infernal, o cheiro de
restos humanos que emanava de um balde ali perto quase a derrubou.
— Faça as honras.
— E você foi tola o suficiente para crer que ele lhe permitirá viver? —
questionou Atena.
— Ele acha que seu pai recuou totalmente para o reino divino e deixou este
mundo para ser reclamado pelo vencedor do Ágon — disse a Portadora da
Maré.
— Que absurdo — disse Atena, rispidamente. — Meu pai não controla todo
o mundo. Há muitas terras e muitos deuses.
Atena reagiu instintivamente a isso, recuando como uma cobra prestes a dar
o bote. Em vez dela, foi Lore quem fez seguiu falando.
Você sabe alguma coisa sobre o que está gravado nela? Sobre como ler essa
inscrição?
Portadora da Maré a fitou, e o terror lento e crescente no seu rosto, evidente
e cristalino, causou um guincho estridente nos ouvidos de Lore.
— Eles estão com o escudo há anos… você realmente acredita que eles não
vasculharam cada centímetro dele? A inscrição está atrás, no interior do
forro de couro. Tudo que precisaram fazer foi removê-lo — disse a
Portadora da Maré, balançando a cabeça negativamente e soltando um ruído
de frustração.
— Vocês chegaram tarde demais. Ele não passou essa semana procurando
pelo escudo, esteve colocando o plano em ação. Ele está a dias… a horas…
de vencer a caçada.
— Eu só… — disse Lore, repetindo tudo na sua cabeça, tudo que Iro lhe
dissera, a sua conversa com Belen, a mensagem na parede. O vômito subiu-
lhe até a garganta, deixando um gosto amargo na boca. Ela o engoliu, junto
com o medo. — Não… não é tarde demais. Ele ainda precisa da égide,
senão não estaria procurando por mim.
— Rezo para que esteja certa — disse a Portadora da Maré. — Ele de fato
precisa de você. Não posso empunhar a égide ou entregá-la a ele nem
mesmo se eu quisesse. Só pode ser feito pelo último mortal da linhagem.
— E você não sabe para que ele precisa dela? — perguntou Lore. — Ele
não deu nenhuma pista?
— Não tenho certeza… era alguma coisa química, pelo que eu consegui
ouvir e sentir o cheiro. Alguma espécie de explosivos, eu acho — disse a
Portadora da Maré, arrancando a outra algema. Seus olhos fitaram Atena
brevemente, depois voltaram para Lore. — Seja o que for, já matou alguns
deles enquanto trabalhavam. Há algumas horas, antes da inundação, eles
carregaram a coisa em que estão trabalhando pelo túnel.
O guarda.
Ela saiu, não precisando correr. Seria uma perseguição lenta e confiante.
Alguém segurou o pulso de Lore, a puxando para trás. A dor subiu pelo seu
braço e seu pulso dobrou quando atingiu o chão.
Lore cambaleou até ficar de pé, com pulmões apertados enquanto tateava
para pegar a faca.
— Sua idiota! — sibilou a Portadora da Maré. — O que você está fazendo
com ela?
— O que ela poderia oferecê-la que seja maior do que ela já tomou para si?
— Do que você está falando? — indagou Lore. Aquele receio gelado, o que
despertou nela na primeira vez em que pôs os olhos na deusa moribunda na
porta de sua casa, rastejou pelo seu sangue, sussurrando — Você sabe.
— Depois que eu soube o que houve, procurei por você pelo mundo todo,
mas você desapareceu… não consegui achá-la — disse a Portadora da
Maré.
— Não, criança, para alertá-la… eu teria ido até você há dias se não tivesse
sido capturada no Despertar — disse a Portadora da Maré. — Eu só
concordei com os termos de Fúria porque pensei que isso me manteria viva
por tempo bastante para fugir e encontrar você. Para dizer que Hermes a viu
naquela noite e que contou para ela. Ele contou para ela, sabendo o quanto
ela queria aquilo de volta… como achava que precisava daquilo…
Lore odiava os Cadmídeos por diversas razões ao longo de seus dez anos de
existência, mas somente então, de pé no pátio apertado atrás d’O Fenício,
foi que ela os odiou mais por agirem como se nem precisassem fazer
esforço.
Entre as viagens, a porta dos fundos do restaurante era sempre fechada atrás
deles. Todos digitavam o mesmo código na trava eletrônica.
3-9-6-9-3-1-5-8-2.
Ela repetiu a sequência na cabeça por várias vezes. Não a esqueceria.
Vozes soaram de repente ali perto. Lore foi para debaixo da mesa de aço
inox e recuou para as profundezas de suas sombras. Ela pôs o punho na
boca e esperou.
Lore se inclinou para frente de novo, estreitando os olhos para ver o código
que inseriram no teclado à direita do frigorífico: 1-4-6-9-0. Ela deu um
sorriso maquiavélico quando desapareceram e ressurgiram alguns minutos
depois sem trajarem mantos ou estarem armados.
— Vamos, Chares. Vou te levar para casa, para sua mãe — disse o primeiro
caçador ao rapaz enquanto os outros seguiam para a entrada lateral. Quando
passaram pela mesa de Lore, ela se encolheu e prendeu a respiração.
Pensando duas vezes, ela segurou a porta antes que fechasse e usou um
pesado corte congelado de carne para mantê-la aberta, deixando entrar mais
calor e luz.
Ela deu um leve sorriso quando viu o alçapão vulnerável sem nenhum
cadeado — sua família não cometeria o mesmo erro.
Não havia tranca para abrir a proteção de vidro, e ela era grande demais
para Lore erguê-la sozinha. Só a restava uma opção para soltar a égide, e
era uma muito, muito ruim.
Então, sem arriscar outro minuto duvidando de si mesma, Lore voltou para
a égide. Com um sorriso, usou toda a força do seu corpo para empurrar a
proteção de vidro e o pedestal.
Houve um alto bangue, que fez Lore quase pular para fora da pele. Ela
girou no próprio eixo. A escotilha fechou quando o alarme foi acionado,
mas a espada estava ali e a manteve aberta.
Uma explosão de pressão e luz foi emanada do escudo, abrindo a porta, que
caiu no chão do frigorífico com tanta força que quebrou as dobradiças
motorizadas e foi escorregando para baixo de uma estante. Lore olhou para
a porta da escotilha por um momento e depois para a égide. O surdo baque
da porta do frigorífico abrindo e fechando contra o pedaço de carne a trouxe
de volta para o presente e a fez correr novamente.
Lore passou em disparada pela abertura até a cozinha escura. A porta que
dava para o lado de fora havia se trancado quando o alarme foi ativado, mas
Lore, desenvolvendo rapidamente uma teoria, bateu nela com a égide. A
porta de metal caiu no asfalto irregular do pátio.
Lore correu até que o mundo fosse apenas um borrão à sua volta. O escudo
batia na lateral de seu corpo e embaixo do queixo, mas sentia como se
estivesse usando sandálias aladas enquanto fugia para o leste de Manhattan,
passando pela malha de ruas vazias.
Cada parte dela, dos ossos até a alma, parecia impregnada com orgulho e
satisfação. A égide estava de volta ao seu lugar, e os Cadmídeos nunca se
esqueceriam dessa noite e do seu nome. Sua família não deixaria o Ágon
nem a cidade, e Lore não deixaria Castor.
A noção do que fizera desceu sobre ela da mesma forma que o olhar de
Medusa transformava os homens em pedra.
Os Cadmídeos nunca esqueceriam o seu nome, porque eles saberiam
exatamente quem roubou o estimado tesouro deles. Ela não teve o cuidado
de
checar se havia câmeras no cofre. Qualquer uma delas poderia ter capturado
o seu rosto.
Lore começou a chorar copiosamente, e seu coração batia forte nas costelas,
ao ponto de pensar que vomitaria. Havia muitos Cadmídeos e pouquíssimos
Perseídeos.
Mas a égide não pertencia aos Cadmídeos, não era deles, e agora que eles
tinham um novo deus, agora que Aristos Cadmou se desfizera de sua pele
mortal, ele poderia ser capaz de usá-la. Seu pai lhe contou que aquilo não
era verdade, mas ele já errou antes.
QUARENTA E TRÊS
O corpo não parecia mais ser completamente seu. Lore foi cambaleando até
a parede, desorientada.
O corpo de Lore tremeu com tanta força que foi um desafio manter a
empunhadura de sua faca. Sua visão estava repleta de pontos pretos. Se
Hermes contou para Atena que Lore roubara a égide… se Atena sabia onde
encontrar sua família e tivesse ido procurar pelo escudo naquele dia…
Ela os matou.
Não foi Fúria. Não foram os Cadmídeos. Foi Atena esse tempo todo.
Ela a deixara sozinha com Miles e Van… ela havia confiado na deusa para
honrar o juramento de não ferir Castor… ela havia… ela havia…
Acreditado nela.
coração é só um músculo.
— Você os matou — disse Lore, e sua voz não chegava nem a ser um
sussurro. — Por quê?
Lore levou as mãos aos cabelos, sua respiração ficava irregular, seu
coração, à beira da autodestruição batendo em suas costelas. O desespero
inundou suas veias.
— Mas eu esperei, até que seus pais viessem vê-las, até que meus poderes
estivessem totalmente restaurados com o fim do ciclo. — Atena parou
diante de Lore, olhando-a de cima. — E então fui arrancando um pedaço de
cada garota a cada pergunta que se recusavam a responder. Sobre a criança
desaparecida. Sobre onde você poderia estar se escondendo.
A lembrança de suas irmãs, cortadas a ponto de ficarem irreconhecíveis,
estourou a pressão contida em seu peito. A raiva e o luto a rasgaram inteira;
o mundo saiu do eixo, e Lore atacou.
Ela golpeou com a sua faca na direção do peito de Atena. A deusa usou sua
dory para apará-la com pouco esforço e a face inexpressiva, então girou a
arma, atingindo o ombro direito de Lore.
Lore caiu para trás com a força do golpe, mas usou a distância para jogar a
faca para a mão esquerda, mudando a empunhadura. Ela fez uma finta para
a direita, e, quando a deusa foi tentar bloquear, Lore golpeou de baixo para
cima. Atena desviou, mas a ponta da lâmina atingiu seu queixo. O corte
tingiu a lateral do pescoço dela de sangue.
Atena deixou escapar uma única risada ácida. Ela esfregou o corte com o
polegar, estudando-o por um momento.
Lore gritou. Sua voz saiu rasgada, separada de uma parte de si que havia se
quebrado. Ela se entregou à dor, cortando e arranhando até que a cela
desaparecesse em sua volta e ela começasse a se dissolver em puro instinto.
O golpe da dory veio por trás, batendo em cheio em sua cabeça. A faca
voou de sua mão enquanto Lore ia ao chão. Ela rolou, para ficar de frente,
mas Atena lhe deu outra pancada, depois afundou a sauroter da dory na
coxa dela. Com um único golpe, ela perfurou músculo, quebrou osso e
prendeu Lore no lugar.
A agonia era tão forte que Lore mal conseguiu puxar ar suficiente para
chorar. Atena girou a lança, cravando ainda mais sua ponta. O instinto de
sobrevivência rugia dentro dela. Lore batia a mão no chão úmido,
procurando a faca por meio do tato e conseguindo pegá-la, triunfante.
Mas, antes que pudesse erguê-la, Atena agarrou sua mão, arrancando a faca.
E então, com todo o esforço que seria necessário para esmagar as pétalas de
uma flor, ela fechou a mão em torno dos dedos de Lore e quebrou todos os
seus ossos.
— Elas chamaram por você — disse Atena. Quando a deusa puxou a dory,
a sauroter se soltou, ficando enterrada na perna de Lore. — Ambas as
meninas. Acha que elas sabiam que foi você quem as matou?
para fora de suas camas, as sombrias órbitas nas quais seus olhos deveriam
estar.
— Por que você não me torturou para descobrir o que aconteceu com ela?
Lore arranhou a própria garganta. Ela quase a deu a ela, há apenas uma
hora. E pensava que o faria por ideia própria. Porque seria inevitável.
— Eu o segui até esta cidade, curiosa com o motivo de ele estar vestindo
um rosto falso — disse Atena. — Tive minha resposta logo. Senti o poder
do encanto de afastamento que ele lançou na sua casa. Eu não podia entrar
nem me aproximar. Havia mais de uma razão para ele ir tão longe para me
impedir. Havia apenas uma mortal pela qual ele iria tão longe para proteger.
O corpo de Lore ficou pesado como chumbo, e manter a faca erguida ficou
impossível. Jorrava sangue de sua perna, que latejava a cada batida de seu
coração. Ela pressionou as costas na parede, e a umidade encharcou sua
blusa.
— Como se minha irmã fosse capaz de desferir tal golpe sem meu
consentimento — disse Atena. — Nós planejamos matar todos os
impostores deste ciclo, mas ela concordou em me auxiliar na armadilha
quando eu lhe contei sobre sua conexão com o rapaz que assassinou nosso
irmão. Mas ele é tão intrigante, não é mesmo? Soube assim que senti seu
poder que não poderia matá-lo. Não até que eu descobrisse o que ele é. Isso
a irritou, mas permitiu que eu me aproximasse o suficiente de alguns dos
outros impostores para garantir que morressem nas mãos de um verdadeiro
deus.
Ártemis não estava louca, como a sua irmã alegara, Atena havia traído
Ártemis ao não entregá-la Castor.
Lore a encarou, despejando cada grama de sua raiva trêmula no olhar. Sua
mente era uma torrente de terror e descrença.
— Mas Fúria… Ele virá atrás de você — disse Lore, com a voz rouca. —
— Quando eu alcançar a ascensão final, ele não será nada senão uma
minhoca que esmagarei sob meu calcanhar — disse Atena. — Junto a todos
que se atreverem a virar as costas para os deuses verdadeiros. Fique
avisada, Melora, destruirei tudo e todos que ama, um por um, até que me
leve até ela.
Não.
Havia uma última escolha. Pelo menos seria ela quem tomaria a decisão.
Sinto muito — pensou ela. Haveria apenas um deus restante para que Castor
enfrentasse, mas ninguém tomaria posse da égide de novo.
— Criança impertinente…
— A escolha é minha.
Em vez disso, a morte era apenas um torpor. Sua mente se fechou para
protegê-la do choque do aço rasgando sua pele e raspando osso.
— Ah, sua tola — vociferou Atena. — Não vou deixar que faça isso… não
vou permitir que a tire de mim!
— Você achou que eu seria tola ao ponto de vincular minha vida a uma
mortal impetuosa? A você? Você fez isso em vão!
O pânico passou cortando por dentro de Lore. Ela encarou a deusa, lutando
para manter o foco enquanto a escuridão manchava a sua visão. Logo, ela
Não havia sido apenas para matar Atena. Lore queria se certificar que
ninguém se apossasse da égide de novo. Pelo menos ela fizera direito, a
única coisa correta, depois de tantos erros.
Não…
Lore abriu ligeiramente a boca, mas as palavras que ela queria dizer se
afundaram na crescente escuridão da sua mente e desapareceram. Uma
sensação congelante inundou as veias onde o sangue esteve há um
momento.
— É uma pena que você não tenha tido nem mesmo a coragem de cravar a
lâmina em seu coração.
Estava fechada.
As mentiras eram tão fáceis — quando ela foi ver Castor, queria assistir às
últimas horas do Ágon, cogitou fugir e voltar —, mas a verdade a fez sentir
como se estivesse esfaqueando a própria barriga. Ela tinha que contar a
eles.
O castigo nunca seria tão ruim quanto o que os Cadmídeos fariam. Seus
pais saberiam o que fazer.
Lore nem quis saber de escalar até a janela do quarto. Usou a porta da
frente.
cidade, apesar do que havia acontecido. Ela não queria deixar Castor nem
Nova York. Não desse jeito.
Sangue escuro escorria pela fresta debaixo da porta e formava uma poça em
torno de seus pés.
QUARENTA E CINCO
Ela estava sentada na cama que dividiam, com o cabelo bagunçado pelo
sono e os olhos cansados demais para se concentrarem. Lore ocupou o
espaço ao lado da irmã, observando enquanto o vento se esgueirava pela
janela mais próxima e balançava os desenhos de Olympia que Lore havia
colado na parede.
Vá dormir.
Era tão fácil. Uma coisa tão simples. Mas quando ela estava prestes a
dormir, foi impedida pelo cheiro de algo afiado e metálico.
Não brigue.
Ela abriu os olhos e viu as lacunas escuras das cavidades oculares das suas
irmãs a encarando de volta.
Lore cambaleou para frente. Ela não podia olhar em volta, não quando sabia
o que encontraria: a sua mãe estirada no chão perto da porta, dilacerada da
barriga até a garganta, o seu pai na cozinha, com a coluna quebrada e o
crânio esmagado. Ela já esteve aqui antes. Já viu isso antes.
Vá dormir.
Sua mente ficou em silêncio e o seu corpo estava imóvel quando Lore
passou pela porta do quarto. Uma névoa fresca acariciou as suas bochechas.
A luz ainda estava lá, logo além do véu de névoa prateada, mas agora eram
muitas. Agora eram sete, e as luzes tinham formas, rostos que observavam,
inexpressivos, do outro lado de um rio. Uma se separou das outras e vagou
até ela, ficando maior e mais intensa a cada batida lenta de seu coração.
Uma mão pesada caiu sobre seu ombro. Ela deu meia-volta lentamente.
Seu corpo ganhou vida com uma dor que a serrou. Seus membros se
contorceram em formas agonizantes. Ela ofegou e arranhou o chão. Ela
estava fria… tão fria… rachando como gelo…
O mundo sombrio do rio tremeluziu na cela subterrânea, até que Lore não
conseguisse mais distinguir um do outro.
— Aguente firme, Melora — disse a mesma voz. — Temo que o pior ainda
esteja por vir.
Um rosto brilhante pairou sobre o dela. Ele era jovem e lindo, seus lábios
formavam um sorriso travesso. Seu cabelo era cacheado de uma forma
quase angelical; acima dele, asas batiam nas laterais de seu elmo, seguindo
o ritmo da pulsação dela.
Outra pessoa.
Lore ergueu a mão trêmula e a passou nos olhos para clarear a confusão.
Um senhor de idade estava diante dela agora, e seus pés não tocavam
direito
o chão. Seu cabelo parecia pairar no ar, tremulando como ondas em volta da
cabeça, acima de seu rosto comprido. Sua pele branca era marcada pela
idade e por veias, seus ombros estavam curvados. Seus olhos verdes
brilhavam enquanto ele a observava.
— Não — disse Gil rispidamente. — Olhe para mim. Eu preciso que você
olhe para mim.
Lore tentou.
Ela havia pensado ser suficiente para caçar, para salvar a sua cidade, para
proteger os seus amigos e vingar sua família. E agora não lhe restava nada.
— Faça isso por você mesma — disse Gil, e sua voz era um bálsamo para a
mente confusa de Lore. — Não para dar o troco nela. Não por raiva. Por
você mesma.
Isso… havia força suficiente nela para isso. Para se levantar. Para ir até os
outros. Para alertá-los…
Lore estendeu o braço, apoiando a mão na parede atrás dela, tateando por
algo que pudesse servir como âncora. Seus dedos se engancharam em uma
depressão que a perfuração irregular deixara para trás. Seu ombro e seu
braço doíam à medida que sustentavam seu peso, mas ela cerrou os dentes.
Sibilou devido ao esforço necessário para que ficasse de pé.
Sua perna direita estava boa, mas a esquerda, a que Atena empalara, estava
quebrada. Qualquer peso depositado nela fazia subir uma dor aguda no
membro. O joelho de Lore cedeu quando ela tentou dar um passo, mas ela
escorou o ombro na parede.
O lado direito de seu quadril era lançado para frente repetidas vezes, seus
músculos paralisavam com o esforço que precisava fazer. Adiante. Adiante.
Gil sabia o caminho, como sempre soube, fazendo todas as curvas com
confiança. Lore a deixou guiar, e seus olhos estavam fixos na luz que
emanava da tocha que agora aparecia na mão daquele homem.
A chama era hipnotizante, pregando peças nos olhos de Lore, fazendo ver
coisas que não estavam ali.
Lore estendeu uma mão para a mulher, os seus dedos tocando levemente o
rosto.
Ela se apoiou com muita dificuldade na parede, usando o resto da força para
se arrastar para a frente com a sua mão intacta, rastejando pela água fria, se
esforçando para manter a cabeça acima da água.
Talvez essa fosse sua punição por tudo o que fizera. Ela seria forçada a
fazer esta jornada pela escuridão, a viver naquela pequena eternidade, para
sempre. Repetindo a agonia, repetindo a percepção de que nunca voltaria
para a entrada dos túneis ou encontraria forças para subir a escada.
Uma pequena badalada soou docemente em algum lugar atrás dela, depois
outra, até que se transformasse em uma canção, como pássaros de manhã.
Fiquem comigo.
— Pela minha parte nisso, eu sinto muito — disse Gil, e sua voz estava
próxima a ela. Ele tocou a testa dela de uma forma gentil e afetuosa.
Lore não conseguia mais dizer se seus olhos estavam abertos. Seu corpo
vagava abaixo dela, e sua mente estava solta. Quando Gil falou novamente,
as palavras floresceram na mente dela, e sua voz se derreteu em outra, mais
profunda e limpa.
Não me deixem…
QUARENTA E SEIS
Lore seguiu o som da mesma forma que Orfeu deve ter olhado para a luz
acima dele enquanto tentava guiar Eurídice para fora do Mundo Inferior.
Ela sabia que se olhasse para trás para procurar pelos rostos da presença fria
que permanecia atrás ela, estaria perdida.
Seus olhos estavam encrostados com sujeira, mas ela se forçou a abri-los.
Os olhos de Castor estavam fechados, e seu rosto, inclinado para cima,
revelando a nítida linha de seu maxilar. Sua energia pulsava ao redor deles,
queimando a frieza do túnel. Ele transformara a água parada em uma névoa
espessa que preenchia o ar.
Ela estava envolta nas pernas dele, erguida do chão áspero. O novo deus a
segurava sobre um dos ombros para suportar seu peso e a outra mão
descansava no flanco da jovem, onde a lâmina a havia cortado.
Lágrimas escorriam pelo rosto dela, molhando seu cabelo enquanto ela o
fitava. Seu corpo parecia como se estivesse repleto de ar e luz solar, etéreo
demais para se mover. Castor mal parecia estar respirando.
Ela levantou a mão livre e traçou levemente a ponta do dedo pela bochecha
dele. Castor guiou a mão e a pressionou contra o peito, bem onde seu
coração mortal batia.
Ele a olhou nos olhos. Não disse nada, mas, naquele momento, não
precisava. Seu rosto era um livro que fora escrito apenas para ela. Seu
enredo se desenrolava enquanto ele a via observá-lo.
Pelo erro que cometeu e que nunca poderia ser reparado, e pelas preciosas
vidas que ele custou.
Mas parece que ficaram com ela somente até que a luz de Castor pudesse
substituí-las.
Castor tirou o cabelo de cima das bochechas molhadas de Lore, colocando
os cachos para trás de suas orelhas. Ela queria contar-lhe o que aconteceu,
se explicar, mas ele já sabia. Assim como era fácil ler o rapaz, Castor
sempre soube interpretá-la.
É uma pena que você não tenha tido nem mesmo a coragem de cravar a
lâmina em seu coração.
— Eu não deveria ter ido embora, mas achei que seria o único jeito de fazer
você ver… eu nunca deveria ter deixado você sozinha com ela — disse
Lore viu o exato momento em que ele entendeu o que ela quis dizer. O
— Foi ela — sussurrou Lore. — Todo esse tempo, foi ela que os matou.
Castor levou a mão dela até a boca, dando um beijo suave na palma
calejada. Ele pareceu se afundar em pensamentos enquanto sua energia se
dissipava em torno deles.
— Não — disse Lore. — Não de acordo com as histórias. Eu acho que teria
que cravar a faca nela, mas eu não estava… Eu não estava muito bem…
Ding.
Ding.
O que houve?
As badaladas. Os sons que ela ouviu foram reais, não foram alucinações.
Mas então…
Ela pôs sua adaga entre os dentes. A escotilha rangeu ao abrir. Luz fraca e
água escorreram pela abertura. Lore se afastou, deixando que enchessem o
túnel a seus pés.
Lore assentiu, agarrando a primeira barra da escada até que suas mãos
parassem de tremer. Sua perna curada estivera com uma dor oca, mas até
mesmo isso se dissipava conforme ela galgava o próximo degrau e, aos
poucos, subia na direção de Castor e do escaldante pôr do sol que o
coroava.
QUARENTA E SETE
barreiras em volta do Central Park para atravessar para o lado oeste. Era um
escritório vazio situado sobre uma loja de roupas fechada com tábuas, não
muito longe do Lincoln Center.
Castor removeu o plástico que cobria o sofá, guiando Lore até ele. Ela se
jogou nele, exausta. Quando a noite caiu e a cidade permanecia sem
energia, os olhos dela começaram a se ajustar à crescente escuridão. O novo
deus fechou a mão em um punho, gerando um leve brilho em torno dela.
Pela primeira vez em dias, Lore se sentiu segura o suficiente para parar de
fingir que conseguia continuar em frente, apesar da dor e da fadiga.
Foi por isso — pensou ela. Atena havia trabalhado em uma lenta e
metódica manipulação. Cada sugestão tinha como objetivo separá-la dos
outros, daqueles que talvez fossem capazes de perceber o que estava
acontecendo, e aprofundar a crença de Lore na deusa e somente nela.
Castor deu a ela um sorrisinho reconfortante enquanto pegava outro papel
toalha e começava a limpar o outro braço, passando o papel gentilmente nas
manchas escuras da mão que Atena havia quebrado e ele curara. Lore o
observou, e seu coração estava tão quente que poderia derreter.
A deusa não era mortal e não tinha uma compreensão humana do mundo.
Emoções são estorvos para uma mente puramente racional, mas até mesmo
Atena reconheceu a ameaça que os outros representavam simplesmente por
estarem perto. Uma pessoa sozinha poderia ser controlada, mas uma pessoa
amada pelos outros sempre estaria sob a proteção deles.
Lore havia sentido raiva por muito tempo — do mundo, do Ágon, mas,
acima de tudo, de si mesma. Não era questão da raiva ser inerentemente boa
ou má. Ela podia conceder força, propósito e determinação, mas, quanto
mais ela vive descontrolada dentro de você, mais venenosa se torna.
Até mesmo agora, cada fibra de seu ser estava se esforçando para descer de
novo a escada, para sair cidade afora com nada a não ser uma faca e a
imagem do deus que deveria queimar como uma estrela na sua mente. Este
impulso colidia-se com ela por todas as direções, e seu corpo inteiro tremia
com o esforço de se forçar a ficar inerte.
Finalmente, ele prestou atenção no rasgo em sua blusa, duro por causa do
sangue seco. O ponto em que ela havia cravado a faca.
Lore segurou espontaneamente o antebraço dele com as duas mãos, o
interrompendo.
— Lore, sério…
Ela prosseguiu:
— Me desculpe pela maneira que eu te tratei. Por não ter ficado do seu lado
imediatamente na questão de procurar por Ártemis, apesar de saber o
motivo de você querer procurar por ela, e por não cumprir minha promessa
de ajudar você a descobrir o que houve.
— Não — interrompeu ela. — Não está. Se tem uma única coisa eu tenho
certeza absoluta na vida, é que você sempre está ao meu lado. Que eu
sempre posso confiar em você.
— Você disse algo antes que eu não entendi completamente — disse Lore.
— Não naquela hora. Que o motivo de você precisar saber como matou
Apolo era porque precisava que isso significasse algo. Você precisava que
tivesse um motivo, que não tivesse sido apenas acaso.
— Foi minha culpa, Cas. Os meus pais voltaram para casa do Ágon e me
disseram que estavam deixando a caçada. Que deixaríamos a cidade. Eu não
consegui… Eu não consegui entender. Pensei que eram fracos e covardes,
mas…
— Eles sabiam que, quando Aristos ascendeu, puniria meu pai por recusar
me entregar a ele — disse Lore. — E eles sabiam que se ele descobrisse que
ainda não poderia usar a égide sendo um deus, encontraria um jeito de nos
forçar a usá-la para ele ou a entregar por vontade própria. Então eu pensei
que ela não pertencia a ele. Era nossa. Deveria ser nossa. Eu estava bem
convencida de que, se meus pais estivessem com ela de novo, bastaria para
fazê-los ficar.
— Roubei. Eu era só uma criança idiota e queria muito ser destinada a algo
maior. A algo mais.
— Isso não é idiota — disse ele. — É como eles nos criaram. Não é algo
que se supera facilmente.
pensei: vou levá-la de volta. Vou devolvê-la e eles não poderão me punir,
nem a meu pai, nem à minha mãe, nem à Damara, nem à Olympia. Mas não
consegui fazer isso. Não consegui devolver nossa herança. Então eu a
escondi no único lugar que eu sabia que eles não pensariam em procurar.
Eu… os encontrei.
todos eles. Mas foi ela. Foi ela esse tempo todo.
— O que aconteceu não foi culpa sua — disse Castor, com voz
determinada. — Você era só uma criança. Não tinha como saber.
Lore começou a chorar, deixando as lágrimas saírem de uma vez.
— Eles devem ter sentido tanta dor. As meninas devem ter ficado tão
assustadas… Eu não consigo parar de pensar nisso. Eu me preocupo que um
dia essa seja a única lembrança que eu tenho deles. Que eu vá esquecer seus
rostos, suas vozes…
— Eu passei os últimos dias mentindo para você sobre ter pegado a égide
— disse Lore. — Para todos vocês. Eu disse a mim mesma que, enquanto
ela estivesse escondida, Fúria não ia poderia ficar com ela nem se ele
quisesse…
que, se a tivéssemos buscado, eu faria de tudo para garantir que apenas você
visse o poema. Que você seria o vencedor e sairia do Ágon. Mas, no final,
eu quase a entreguei para ela. Por querer tanto ver Fúria morto.
— Não — disse ele, com vigor. — Eles amam você. Eles sempre vão amar.
— Eu devia ter trazido o escudo para você, mas não consegui. Eu não
consegui encará-la.
A herança que ela queria mais do que qualquer coisa havia se tornado a
arma que destruiu a sua família.
— Nenhum de nós pode mudar o que aconteceu — sussurrou ele. — Queria
que tivesse sido diferente. Quis isso mil vezes nos últimos sete anos. Mas
seus pais queriam deixar o Ágon porque queriam que você estivesse segura.
Que fosse feliz. Você ainda tem essa chance. É tudo o que importa para eles
agora.
Ela o apertou com mais intensidade e tentou não imaginar a sua família ali,
na melancolia cinzenta do Mundo Inferior, eternamente presa devido ao que
ela lhes fizera. Lore sentiu o perfume dele e fechou novamente os olhos,
esperando o aperto doloroso em seu peito e sua cabeça diminuírem.
— Se tem algo que aprendi esta semana, foi isto — disse Castor depois de
um tempo. — Quando não podemos mudar o passado, a única coisa que nos
resta é seguir em frente. Eu preciso fazer o mesmo. Eu preciso parar de
questionar um presente que me permite proteger as pessoas com quem eu
mais me importo.
Lore se afastou.
— Mas para que serve um deus egoísta? — disse ele. — Ou… qualquer
coisa que eu seja.
— Não acho que você poderia ser egoísta nem se tentasse — disse Lore.
— De início, eu não o vi. Ele sabia como brincar com as sombras e a luz.
— Ele parecia… — disse Castor, com sua voz se perdendo. — Ele estava
coberto de sangue. Tinha um ferimento na lateral do corpo.
— O que você fez? — perguntou Lore. — Não tinha como você estar
armado.
Lore o encarou.
Aníatos. Incurável.
— Ele perguntou qual era meu nome e riu quando eu falei. Era um som
horrível, como uma trombeta. Mas algo me atraía para ele. Era… era como
todas aquelas vezes que falam para você não olhar para o sol, mas algo diz
para tentar, só uma vez — disse Castor. — Ele perguntou por que eu ofereci
ajuda. Eu disse que ele parecia precisar descansar. — Castor finalmente a
fitou. — Isso é tudo que eu lembro. Queria que fosse uma história melhor.
Queria que eu pudesse contar que fui corajoso e forte, que mereci esse
poder, mas não posso, e mesmo sabendo que eu talvez tenha que deixar isso
para lá, essa ideia me mata. Eu faria qualquer coisa para me provar para
você.
— Você não tem que me provar nada — disse Lore. — Por que acha isso?
Castor desviou o olhar comum sorriso amarelo em seu rosto. Mas seus
olhos arderam com seu poder e com aquela mesma sensação selvagem e
irrepreensível em que ela estava se afogando…
Lore começou a tremer. Sua respiração ficou superficial, tão rápida e leve
quanto seu pulso, que pegava fogo em suas veias.
Como ela diria isso? Como qualquer um diria? Era como desamarrar sua
armadura, soltar a faca e expor cada parte mole de si para o mundo. Mesmo
assim, no momento em que ele falou, Lore reconheceu aquela sensação de
inevitabilidade que atravessou todos os momentos deles juntos, antigos e
recentes. Como ela vinha tropeçando na direção dele, mesmo enquanto ela
se afastava desse vínculo.
Lore havia beijado outras pessoas antes. Quase sempre bêbada e no escuro,
deixando o álcool se tornar a barreira entre ela e as emoções que não queria
sentir e as coisas que queria esquecer. O que aconteceu naquela noite na
casa dos Odisseídeos era como uma maré fantasma que fluía e recuava em
sua mente, marcando mais profundamente a areia cada vez que retornava.
Às vezes, ela podia passar semanas sem pensar nisso, às vezes dias, às
vezes apenas algumas horas. Mas então ela vinha de novo: o
desprendimento do corpo que ela batalhou duro para deixar forte, a
sufocante sensação de impotência.
Talvez isso sempre seria parte dela, mas estava aprendendo a passar por isso
e a se ancorar voluntariamente. Nesse momento, com Castor, ela não se
sentia impotente. Sentia-se triunfante. Como se tudo em seu corpo estivesse
repentinamente conectado e eletrificado.
— O que vai acontecer com você quando o Ágon acabar? — sussurrou ela.
— Talvez eu goste de ter você por perto — disse ela. — Você é um colírio
para os olhos.
Por quê?
QUARENTA E OITO
Lore olhou para o rosto de Castor, para seu perfil estonteante realçado pelas
nuvens manchadas pela noite. O clima estava quente devido à umidade que
novamente caía sobre a cidade e causava uma sensação sonolenta. Se não
fosse pelo fedor da água rançosa e da podridão, ela poderia pensar que
estava sonhando.
Ele era realmente lindo. Lore se perguntara, desde quando descobriu o que
ele se tornara, o quanto do antigo Castor restava nele, como se os anos
afastados também não a tivessem mudado. Ela perguntou uma vez ao pai se
herdar um poder divino implicava absorver as crenças, a personalidades e a
aparência do deus.
O mesmo valia para Castor, mas o poder apenas fortaleceu o que ele tinha
de bom em seu coração. Cada vez que o olhava nos olhos, Lore via todas as
coisas que perdera quando ele saiu de sua vida. Coisas que pensou que
nunca teria novamente.
Era doloroso demais pensar naquilo, então ela resolveu não pensar.
Por um momento, Lore não soube ao certo do que ele estava falando.
— Da última vez que viemos aqui, nos imaginei mais velhos, entrando de
fininho no bar, debaixo dos narizes de todos os Cadmídeos, e pedindo uma
bebida — disse ele. — Você se lembra da máscara de serpente que eles
penduravam na janela?
Castor lhe deu uma piscadela. Lore corou, virando a cabeça para que ele
não visse seu rosto ficando vermelho. Ela se deitou ao lado dele novamente,
A água imunda subiu até seus tornozelos quando seguiram adiante. O fedor
de lixo a fez voltar instantaneamente a esse mesmo lugar, há sete anos.
Onde está?
A corrente intensa de água que passou por ela quase a empurrou para
dentro.
Não era uma queda muito grande; a escuridão do duto de drenagem parecia
muito mais profunda do que realmente era. A água rugia em volta de Lore,
correndo para ir de encontro ao duto maior, ao qual aquela abertura se
conectava. Estava mais cheio do que da última vez que esteve ali, mas ela
não tinha medo.
Lore olhou para cima, lançando um olhar de tranquilidade para Castor,
visivelmente preocupado.
Em vez de seguir o caminho que a água fazia, Lore foi para o outro lado,
atravessando a cachoeira criada pelo bueiro. Havia um pequeno espaço
parecido com uma alcova, onde o esgoto encontrava a parede do porão do
restaurante. Ela parou, encarando o saco de lixo preto encostado ali,
exatamente onde o havia deixado.
Houve um som parecido com sussurros, mil vozes sedosas falando uma por
cima da outra, instigando-a a seguir adiante.
Lore lutou contra a água corrente para erguê-la até onde Castor pudesse
alcançar. Ele arquejou levemente de surpresa quando seus braços ficaram
rijos e ele quase caiu dentro do bueiro.
— O que você colocou junto com ela aqui dentro? — perguntou ele, tendo
dificuldade para tirar o saco completamente da abertura.
Então, respirando fundo, abriu o saco até que o rosto feroz de Medusa os
encarasse do centro da égide.
Como?
A égide era dela. Como a usaria de agora em diante era decisão dela,
somente dela.
Castor não disse nada, mas Lore sentiu o olhar dele sobre ela o tempo todo.
Ela virou o escudo de modo que sua curvatura interna estivesse voltada para
eles. Tateando pela borda couro macio e gasto que revestia o interior, ela
encontrou uma pequena lingueta e a puxou. Ali, bem como Portadora da
Maré informara, estava o poema, escrito na língua antiga.
Castor suspirou de surpresa ao vê-lo, se aproximando para ler por cima do
ombro de Lore.
— Assim será até o dia — Lore leu, traduzindo por alto — em que restará
apenas um, refeito por inteiro, que me evocará com a fumaça dos altares
que serão construídos pela temerária e derradeira conquista. — Ela fitou o
rosto pensativo de Castor. — O que você acha que quer dizer?
— Não tenho ideia — disse Castor. — Mas não gosto nada de como soa a
temerária e derradeira conquista.
— Eu não sei… Isso me deixou com mais dúvidas do que eu tinha antes.
Ainda não sei se é possível que mais de um de nós fique vivo — disse
Castor.
— E como um deus pode ser “refeito por inteiro” se eles não têm acesso aos
plenos poderes mesmo na forma divina? E essa ação, o que quer que seja, é
algo que somente um deus pode realizar para vencer o Ágon? Ou todos os
deuses que sobreviverem têm que executar isso individualmente para
libertarem a si mesmos e os caçadores do Ágon?
Essa última ideia despertou em Lore uma esperança ardente que ela mesma
achava que não mais seria capaz de sentir. Todos eles estariam livres.
Atena vira nela o desejo secreto de ser algo mais. Lore apenas se enganara
quando pensou que seria capaz de se afastar dessa semana e voltar para a
vida que criou. O Ágon era um vício e apenas seu fim verdadeiro o
expurgaria de
Lore — não apenas dela, mas de todos os outros que lutaram e mataram por
séculos por esse mesmo algo mais.
Com o tempo, no entanto, ela poderia aceitar aquilo. Poderia ficar satisfeita
sabendo que ele estaria em algum lugar…
— Nesse caso, acho que Zeus teria sido um pouco mais específico —
resmungou Lore.
Ela assentiu.
— Sabe — disse Lore, quando algo mais lhe ocorreu —, Atena ficou
pensando se você é um deus verdadeiro ou outro, disfarçado… mas isso
significaria que você, de algum modo, pegou emprestado o poder de Apolo;
ele não teria que estar vivo para que isso fosse verdade?
— Você acha que Apolo descobriu o significado disso tudo e fugiu? Talvez
ele tenha precisado mesmo da sua ajuda de alguma forma e você não
consegue se lembrar disso porque Zeus quer que todos os deuses descubram
por si mesmos.
— Mas então por que eu tenho o poder dele? Atena não estava errada.
Lore esfregou a testa, tentando não pensar em sua família. No que a deusa
fizera com eles.
— Por favor, não vamos testar essa teoria de novo, ok? — pediu Lore.
— Não tem outra alternativa — disse ele. — Quando eles estiverem mortos
e a semana terminar, nós teremos sete anos para descobrir o enigma da
égide antes que a próxima caçada comece.
E sete anos para descobrir como perder você para sempre — pensou Lore,
com profunda tristeza.
Lore pegou a égide, passando o braço na alça de couro. De algum modo, ela
sabia o que fazer.
Ela bateu com o punho contra a frente do escudo e o rugido que ele emanou
era mais profundo que o trovão — era primordial.
Ele subiu pelo ar, furioso, retumbando pelas ruas silenciosas. Ela bateu nele
de novo, e de novo, até que seus ouvidos zumbissem e ela ouvisse a
conjuração ecoar em edifícios distantes. O poder fulgurava nela. Ela se
sentiu invencível.
Pare — pensou ela. — Eu não quero que ele tenha medo nunca.
Sim — uma voz parecia sussurrar de volta. — Ele não é nosso inimigo.
QUARENTA E NOVE
para o escritório, girando o celular para cima e para baixo nas mãos. Ele
estava tão perdido em seus pensamentos que levou um segundo para
perceber a presença deles.
Miles soltou uma risada surpresa e sem fôlego antes de apertar muito a
amiga.
— Você está bem? — indagou ela, quase chorando de alívio por vê-lo.
— Se eu estou bem? — repetiu ele, se soltando do abraço para dar uma boa
olhada nela. Os olhos de Lore se fixaram em um hematoma brutal na testa
dele.
— Sinto muito pelo que aconteceu — disse ela. — Com o encontro, com
Ártemis…
— Bem onde você disse que ela estaria. — confirmou Castor.— Onde o app
disse que estaria — disse Miles, com tristeza.
Lore o abraçou. A nova pele sobre suas costelas repuxou com o movimento,
mas ela aguentou, se agarrando a Miles da mesma forma que ele se
agarrava a ela.
Então, foi ótimo. Ela estava prestes a entrar no carro e vir dirigindo até
aqui.
Eu falei para ela não vir, mas ela se recusou a desligar até que eu mandasse
uma foto no maior estilo refém para provar que estava bem.
Miles passou a mão em seu cabelo escuro. Uma barba bem rala começava a
crescer e havia hematomas escuros sob seus olhos. Mas quando ele sorriu,
todo a estafa e os danos da semana pareceram desaparecer.
— Por que e como você sempre consegue deixar as suas roupas na nossa
máquina de lavar e eu que tenho que secar e dobrar tudo?
Ele pegou um top esportivo, uma camiseta preta com uma logomarca
misteriosa desbotada e meias limpas.
Lore sorriu.
— Obrigada.
— Sem problemas — disse ele. — Esse seu estilo “não estou nem aí” é bem
fácil de encontrar.
Havia algo no bolso da camiseta. Lore enfiou a mão nele, apenas para se ver
encarando o colar de ouro que Hermes dera a ela. O amuleto de pena estava
frio ao toque.
Lore passou levemente o dedo por cima dele. Os olhos dos deuses estão
sobre você.
Lore não conseguia nem falar. Ela assentiu, abrindo o fecho para colocá-lo.
Qualquer poder que ele tivera já perdera o efeito, deixando para trás apenas
o leve peso e o significado que a fez se apegar nele. E isso nunca foi tão
importante quanto agora.
Não estou perdida. Estou livre.
Castor ficou imóvel ao seu lado. Lore acompanhou seu olhar até a porta.
Iro estava ali, ofegante. Não usava mais o manto preto de caçador, mas as
roupas típicas que vestiam por baixo deles: blusa preta, calças largas, colete
à prova de balas.
Ela fitou Lore com um olhar de súplica, mas não disse nada.
— Eu… eu sei que cometi um erro. O que aconteceu foi um erro. Eu…
— É verdade — disse Miles. — Iro nos achou quando estávamos indo nos
encontrar com os Aquilídeos. Eles dividiram suprimentos e informações.
Lore abriu a boca para falar, mas a voz baixa de Castor a interrompeu.
— Está bem.
— O quê?
— É por isso que eu sempre disse para você ser rancoroso quando éramos
crianças. Mas você sempre foi muito bonzinho. — Para Iro, ela disse: — Se
esse for outro truque…
Passos pesados subiram pela escada atrás de Iro. Todos se voltaram para ver
um Van ligeiramente sem fôlego se apoiando no corrimão. Uma sacola de
mercado, cheia de garrafas d’água e comida pré-cozida embalada, estava
pendurada em seu pulso.
Van levantou a mão e a agitou como se dissesse que sim. Ele virou a cabeça
para encarar a escada, mas não conseguiu evitar que Lore reparasse em seus
lábios contraídos e em seus olhos bem apertados devido ao alívio que
sentia, tão forte que chegava a doer.
Lore percebeu que esta era sua família agora. E ela estava bem na sua
frente, esperando para ser vista por todo o tempo em que ela ficou
perseguindo o passado.
— Espera… Eu pensei que ela estava só… na verdade, nem sei o que eu
pensei.
— Por que ele me deu abrigo? — disse Miles. — Por que me ofereceu um
lugar para morar? Deve ter sido para ajudar a ocultar você, eu só não sei
como.
— Talvez ele apenas gostasse de você — disse Lore. Talvez Hermes tenha
pensado que ela precisaria de alguém como Miles.
— Não me surpreende você ter ficado tão chateada — disse Castor, com a
voz tensa. — Eu sabia que tinha sido algo horrível, mas não sei se
conseguiria imaginar isso.
Ele abriu um pequeno pacote branco, em seguida foi até onde Miles estava
sentado e cuidadosamente tirou o cabelo dele da testa para que pudesse
colocar uma bolsa de gelo azul-claro sobre seu hematoma.
— Ele não deu nenhum sinal de que sabia do conteúdo dele — disse Iro à
Lore, se desculpando. — Eu não esconderia isso de você.
— Eu sei. Se é culpa de alguém, é minha — disse Lore a todos. — Fui eu
quem trouxe todos vocês para dentro disso. Fui eu quem a deixou se
aproximar.
— E você pegou mesmo a égide — disse Iro, com um olhar suave. — Por
todo esse tempo, você nunca disse nada… nem quando falávamos dela no
treinamento.
— Sim
— Ostentando o Gorgonião…
— Não é melhor se sentar? — perguntou Lore, com tom sério. Van esticou
a mão na direção da égide e a puxou de volta antes que os dedos tocassem
Medusa. Como se ela pudesse morder. Mas nenhum deles estava com
medo.
Lore se questionou se teria sido o fato de ela estar segurando o escudo que
instigava medo nos outros e se ela precisava querer que esse efeito
acontecesse.
— Foi você quem fez aquilo há mais ou menos uma hora atrás? —
Lore assentiu.
— Eu queria que Atena soubesse que eu estava viva e que eu estava com
ela. Eu posso não saber o que ela está planejando, mas pelo menos isso vai
ajudar a atraí-la.
Castor havia contado a verdade sobre sua ascensão para os outros, mas a
história só gerou mais perguntas.
— Desculpe.
— Ele voltou para o Waldorf Astoria — disse Iro, levando a mão ao rosto.
Nós temos olhos por ali e eles reportaram que todos os caçadores
Cadmídeos retornaram. Eu posso apenas presumir que ele também tenha
feito isso.
— Ah, sim… na verdade, perdeu — disse Miles. — Foi o que a fonte nos
Cadmídeos me contou no último encontro. O hotel está fechado para
reformas há anos e não está previsto a abrir por mais alguns meses. Os
Cadmídeos pagaram uma fortuna para os donos pararem a reforma essa
semana. Estão usando as suítes da cobertura.
— Eles não irão atacar o Waldorf Astoria — disse Van. — E fitou Miles.
— O hotel está vazio, com exceção dos caçadores. Mas o que houve quando
ocorreu a inundação?
— Vamos partir do pressuposto de que você não está — disse Van, guiando-
o novamente a uma cadeira.
Miles entregou o celular para Lore. Ela foi arrastando o artigo tela abaixo
enquanto Castor o lia por cima de seu ombro.
disse Miles. — Mas com certeza teriam que passar por ela.
disse Lore.
— Verdade.
— Essa é a parte simples — disse Lore. — Tenho algo que os dois querem,
e agora ambos sabem disso.
Castor suspirou.
— Não vai — concordou Lore. — Tanto ele quanto Atena estão se iludindo
se acham que podem usá-la na forma divina, tenho certeza. E eu nunca a
entregarei voluntariamente.
— Isso não vai bastar para acabar inteiramente com o Ágon — lembrou
Miles. — E ainda não sabemos o que os novos versos querem dizer.
Ela foi até as escadas e pegou uma pesada mala de mão preta que deixara
ali quando chegou.
Iro assentiu.
Iro entregou para Lore a sua própria xiphos, a bainha, assim como a de
Castor, estava presa a um talabarte, uma tira longa de couro que passava do
ombro ao quadril, permitindo que a lâmina pendesse ali. A espada era
desprovida de qualquer adorno, mas Lore gostou de senti-la na mão.
— Me refiro a tudo — disse Lore. — Isso não é apenas sobre impedir Fúria.
É sobre acabar com o Ágon e a destruição de tudo que você conhece.
destruiu. Tudo tem que mudar agora. Fúria rasgou todas as regras e crenças
que carregávamos conosco pelos séculos, tudo isso para revelar a podridão
que sempre esteve ali, fora de vista. Se não acabarmos com o Ágon, ele
acabará conosco.
Lore assentiu.
— Sim. Exatamente.
— Eu não contei isso para você antes — disse Iro quando chegou à porta
que dava para a rua —, quando você me perguntou sobre ela. Minha mãe
está viva, afinal.
Iro assentiu.
— Tudo o que posso fazer agora — disse Iro — é dizer que eu sinto muito
por tudo que aconteceu e que estarei lá quando me chamar.
Eu faço a guerra.
Lore sorriu.
CINQUENTA E UM
Ela ouviu uma voz suave, um sussurro de seu nome, e olhou para cima. Do
outro lado das águas do rio estavam sete formas douradas, e suas silhuetas
brilhavam na paisagem deserta e rochosa.
Não era possível distinguir seus rostos, pareciam cópias, mas Lore
reconheceu todos eles. Hermes, Afrodite, Hefesto, Poseidon, Ártemis, Ares
e Dionísio.
Se eles realmente eram os deuses do Ágon, se não foi tudo uma
alucinação… deveria haver oito. Mas isso significava… o quê? Que ela
estava certa e Apolo escapara da morte de alguma forma?
Castor dormia no chão ao seu lado, com os dedos entrelaçados uns nos
outros sobre o peito, mas o olhar de Van estava fixo onde Miles dormia,
todo
— Ou em ouvir. Mas eu respeito você e não quero mais que as coisas sejam
assim. Nós nos importamos com as mesmas pessoas e, independentemente
de como você se sinta com relação a mim, eu me importo com você
também.
Desculpe se eu fiz você sentir que eu não me importava.
Ele suspirou.
— Não é como se eu também tivesse sido justo com você. Apesar de, só
para registrar, você ainda ter uma relação tóxica com o perigo.
Lore deu uma risada suave e seguiu o olhar de Van, que se voltava para
Miles.
— Quanto a isso, não sei. Nunca me permiti refletir sobre… talvez naqueles
poucos momentos em que acreditei que o Ágon poderia mesmo acabar, mas
sempre havia mais trabalho a fazer.
Van deu de ombros, mas seus olhos vagaram instintivamente de volta para
Miles, que murmurava enquanto dormia.
— Conte-me.
— Você acha que o deus ausente pode ser Apolo? — perguntou ele, quando
Lore terminou.
— Eles podem nem ter sido deuses — lembrou ela. — Perda de sangue não
é moleza.
— Enquanto você olhava para Miles? Será que eu quero ouvir a respeito?
Antes que Lore pudesse responder, seu celular vibrou em cima da bateria
portátil que Miles lhe dera para carregá-lo. A tela trincada acendeu quando
ela abriu a mensagem de Iro.
— É com você — disse ele. — Vamos precisar de algumas horas para juntar
os últimos suprimentos.
Por fim, às 10:30, Miles voltou de uma tarefa que insistiu fazer.
— Para você — disse ele, entregando uma pilha de baterias portáteis para
Van.
Miles pôs a mão em sua sacola e entregou uma camisa preta comprida e
jeans pretos para Castor, e, para Lore, um suéter escuro para vestir por cima
de sua blusa.
Quando ele voltou, Miles lhe entregou um colete à prova de balas, depois
deu meia-volta e entregou outro para Lore.
— Não consegui achar tiras de couro, mas tenho um pouco de fita adesiva,
se acharem que precisam para cobrir os pulsos e as mãos — disse Van.
— E por último, mas não menos importante — disse Van, sacando dois
pequenos dispositivos presos em chaveiros, um dourado e outro prateado.
Lore assentiu.
Logo antes de se separarem, Lore puxou Miles para conversar longe dos
outros.
— Depois que você alertar todo mundo, tente sair da ilha — disse ela. —
— Não vou ser pego — disse Miles. — Mas, por favor, me prometa que vai
ficar bem.
Lore lhe deu um abraço apertado.
— Vou ficar. Depois disso, vamos fazer todas aquelas coisas idiotas de
turista que eu nunca quis fazer, beleza? Então você precisa ficar bem
também.
Lore fez uma careta. Ele a abraçou uma última vez e depois deu meia-volta.
Van estava de costas para eles e procurava alguma coisa em sua mochila.
Houve um instante de total inércia, e então Van segurou o rosto dele com as
duas mãos, se inclinou para a frente e deu-lhe um beijo ardente.
Castor sussurrou o que parecia ser uma leve oração na língua antiga quando
os dois seguiram seus caminhos em direções opostas. Quando Van passou
por eles pela última vez, ainda tinha a expressão atordoada.
Ele assentiu.
Eles haviam coberto a égide com lençóis, mas agora Lore os removeu,
portando o escudo próximo ao corpo.
Ela olhou para Castor, entrelaçando seus dedos nos dele enquanto seguiam
em silêncio, passando pela inundação até chegarem à estação de metrô da
37th Street.
Com seu escudo ou sobre ele. Era o que inúmeras mães espartanas diziam
aos filhos e maridos quando entregavam os escudos a eles antes da batalha.
Castor segurou o braço dela, forçando-a a olhar para ele. A estação estava
escura, fazendo com que as faíscas de energia brilhassem mais intensas em
seus olhos quando ele disse:
Nem os espartanos eram espartanos — seu pai havia lhe dito. — Não é
sempre a verdade que sobrevive, mas sim as histórias em que queremos
acreditar. As lendas mentem.
Como seriam lembrados nunca seria tão importante quanto o que fariam no
presente. O seu pai também havia lhe dito isso.
Eles seguiram a curva dos trilhos da 34th Street até a Times Square,
entrando em um cuidadoso silêncio conforme atravessavam com água até
os tornozelos. A água ali tinha mais espaço para se dispersar, ficando
apenas na altura do tornozelo. O ar no túnel estava inerte e pesado, e as
paredes ao redor estavam escorregadias devido à umidade. Lore aguçou
seus ouvidos, tentando captar o som de vozes ou passos, mas tudo que
ouviu foi o caminhar apressado dos ratos e o gotejar constante de água a seu
redor.
Cada segundo que passava era como um corte na pele de Lore. Ela ficou na
frente dele, erguendo a égide na direção do brilho vermelho-sangue do
sinalizador.
O coração de Lore estava na boca. Ela sabia que não poderia parar nem por
um instante, não com eles tão perto e o tempo tão curto.
Ela olhou para trás para fitar Castor uma última vez. Deixou que a
expressão de determinação e confiança do novo deus ficasse marcada a fogo
em sua memória.
Lore se saltou para a frente, sua espada cortava as lanças dos caçadores, que
estavam ganindo, mesmo enquanto morriam. A égide absorveu os golpes
fortes das espadas e armas menores enquanto Lore abria caminho com ela.
A ponta de uma lança passou de raspão em sua nuca, mas Lore seguiu
adiante, entrecortando o caminho pelos golpes que explodiam em volta de
si.
Lore olhou para trás a tempo de ver um caçador passar pela fileira de corpos
se reduzindo a cinzas e saltar, descendo a espada em um golpe. O aço
acertou a alça do colete de Castor, cortando o ombro dele.
CINQUENTA E DOIS
túneis embaixo da Grand Central Station. Lore não imaginou que o subsolo
seria tão confuso na interseção de três linhas diferentes do metrô com os
trilhos da companhia Metro-North.
Cas está com problemas — digitou ela no chat com os outros. — Quinta
Avenida, Linha 7. Vou indo na frente.
O mapa do GPS não era detalhado o suficiente para dizer qual túnel pegar,
apenas sinalizava que ela estava na direção certa.
Quando Lore encontrou o último túnel, todo seu corpo estava tenso de
frustração. Enquanto estava em pé na entrada do túnel, olhando para a
escuridão aveludada à frente, Lore hesitou, subitamente incerta.
Lore se perdera tantas vezes que não entendia totalmente como chegou ali.
Por um momento, ela soube como Teseu devia ter se sentido no Labirinto,
mas ela não tinha o fio de Ariadne para guiá-la de volta.
Agarrou o colar, o pingente de pena, até que o metal deixasse uma marca na
palma de sua mão.
Ela não era Teseu no labirinto nem Perseu no covil da Górgona. Não era
Héracles realizando seus trabalhos. Não era Belerofonte, que cavalgou pelo
céu, nem Meléagro na sua caçada, nem Cadmo combatendo a serpente. Não
era nem Jasão, triunfante no limite do mundo com o Velo de Ouro em mãos.
Não lhe havia nada predestinado. Lore não fora escolhida para isto;
escolheu vir por vontade própria. Cada passo que dava e cada erro cometido
a trouxeram até aqui.
Ela estava aqui porque o pai a ensinou a segurar uma espada, porque a mãe
a ensinou a ser forte e orgulhosa, porque as irmãs seriam para sempre
pessoas inacabadas.
Ela estava aqui pela cidade que a criou, e veio com o orgulho de seus
ancestrais e a força de seu coração, e nada disso lhe falharia.
Lore correu, disparando pelo túnel como uma flecha atirada pelas mãos
mais firmes.
— Fiquem comigo…
O ar mudou, e Lore sabia que estava perto. Uma corrente de energia tocou
seus sentidos, guiando-a para fora daquela linha, a um túnel menor.
Belen — pensou ela. Lore levou a mão à orelha e tirou um dos fones de
ouvido para escutar melhor.
— Duvida de mim?
A voz de Fúria chegou até ela, baixa e ameaçadora. Ele deu a volta no
vagão-prancha, ficando visível. Ali perto, um elevador enorme se
aproximava, que sem dúvidas dava para o estacionamento do hotel.
A forma sombria e sublime do deus fazia dele um monstro, e seu corpo era
todo rígido devido aos músculos. Ele superaria até mesmo a altura de
Castor, assim como superava a de Belen.
O fulgor na pele de Fúria só podia ser obra de alguma tinta dourada. Ela
cobria todo o seu corpo sob a seda marfim de sua túnica. Ele vestia uma
armadura de bronze sobre o peito, assim como manoplas e grevas. Mas o
pior era a conhecida pele de animal áspera e de tom bronzeado que vestia.
A cabeça da criatura há muito tempo fora fundida em bronze para ser usada
como elmo, assim como Fúria usava agora. A pele pertencia ao leão de
Nemeia e tornava o corpo que cobrisse invulnerável a armas cortantes.
Lore ficou aterrorizada. Se ele estava trajado para a guerra, horas antes do
pôr do sol…
Lore sacou o celular, mas ainda estava sem sinal. Cogitou ir embora e tentar
subir à superfície para alertar os outros, caso já não tivessem descoberto por
si só, mas Belen falou novamente, desta vez em um tom mais desesperado.
senhor tem a nós e lhe somos devotos. Todos nós, meu senhor.
— Você não precisa dela — continuou Belen, e sua voz foi ficando
esganiçada.
O sangue de Lore gelou nas suas veias com aquela palavra. Ela.
— Pergunte a si mesmo por que ela concordaria em ajudá-lo… por que ela
veio até você agora, quando já está tão perto de obter tudo que sempre
sonhou em ter — disse Belen. — Ela e a irmã planejavam matá-lo e a todos
os outros deuses, e agora ela quer prestar servidão? Ela é traiçoeira…
roubará seu plano, roubará aquilo e o matará… ela o destruirá, Pai. Por
favor…
Atena se moveu e ficou ao lado do novo deus, segurando uma dory. Ela
também trajava um curto manto cerimonial, impecavelmente branco, e sua
pele estava revestida pelo mesmo dourado reluzente. Sua armadura era tão
robusta quanto a de Fúria, assim como seu elmo, que estava cravejado com
o que pareciam ser diamantes e safiras na extensão de seu penacho branco.
O ódio que Lore sentiu olhando para ambos agora era de tirar o fôlego.
Toda a raiva que ela disse para si mesma que não precisava, que não queria,
veio borbulhando até a superfície.
Ela esqueceu sua calma, esqueceu seu plano, esqueceu a desonra que ele
tentou usar como munição para extinguir sua linhagem e o desejo do novo
deus de tirar-lhe a vida, mesmo quando era apenas uma garotinha. Ela não
viu nada além do rosto do homem que quis destruir sua família e a deusa
impiedosa que havia, de fato, a destruído.
— Ela o trairá… o destruirá, assim como fez com todos os outros — disse
Belen, desta vez com medo de verdade. — Me escute… ela está
alimentando-o com mentiras! O senhor não precisa dela!
A bile subiu pela garganta de Lore; mesmo depois de tudo que ela havia
feito, as palavras de Atena, seu tom suave e bajulador, pareciam uma nova
traição. No terraço de sua casa, Lore havia contado tudo a ela, seu passado,
seus medos, e ela acreditou na deusa, sentiu a própria raiva e frustração
suprimidas de Atena.
Cada parte de Lore parecia se atirar para frente, mesmo que ela estivesse
inerte.
Belen teve tempo de sussurrar — Por favor — antes que o pai sacasse uma
pequena faca oculta em uma bainha no antebraço e cortasse sua garganta.
Fúria o assistiu morrer, e uma euforia sombria se espalhou por seu rosto.
Ele não deu meia-volta novamente enquanto falava, mas sua voz carregava
as palavras pela distância entre ambos.
— Filha de Perseu.
Fiquem comigo — pensou Lore uma última vez enquanto segurava firme as
alças da égide e seguia em direção à estação.
Fúria disse:
CINQUENTA E TRÊS
Lore apertou as alças da égide com ainda mais força, imaginando os deuses
se acovardando perante seu poder. Mas essa ideia não lhe agradou.
Lore tinha a própria raiva, a própria força e queria que temessem a ela, que
soubessem que foi ela quem os derrotou.
Seu olhar não vacilou quando encontrou o de Fúria. Ele ria enquanto ela se
aproximava com a égide erguida e uma das mãos repousando sobre o cabo
de sua espada. O som ecoou em volta deles, se ampliando até tornar-se um
rugido. Lore se recusou a olhar para Atena, mas a acompanhou de canto de
olho quando a deusa falou.
— Quanta astúcia de sua parte, meu senhor — disse, em voz baixa e suave
— Não — disse Fúria, com um sorriso arrogante. Ele falava com o tom que
um pai usaria ao mimar uma criança ingênua. — Você não é forte o bastante
para portá-lo. Permitirei que o carregue depois que nosso trabalho estiver
terminado e eu não precisar mais dele.
Lore ergueu a égide para esconder que estava colocando novamente o fone
de ouvido. Ela não mais conseguia ouvir a própria voz.
Ele entrou no meio das duas, impedindo que ambas se vissem. Seu peito se
estufou quando ele se empertigou, encarando Lore de cima.
mas você sempre foi empolgadinha, não foi? O diabretezinho que precisava
ser domado. Deste dia em diante, você me servirá de todas as formas que eu
desejar — você e aquela garota Odisseídea. Terei uma em cada joelho. Essa
espera só aumentará a doçura disso.
— Então quer dizer que você e Ártemis entraram nesse Ágon com o plano
de matar os novos deuses — disse Lore para Atena enquanto se movia para
a direita, para longe de Fúria e na direção do reservatório. — E você se
aproximou de mim, na esperança de que eu entregasse a égide e que isso
desse a oportunidade de matar o novo Apolo… talvez até alguns dos outros
novos deuses também, incluindo esse aqui.
Ela levou a mão subitamente até o fone de ouvido para ativá-lo. As novas
crueldades sardônicas que ele estava prestes a proferir tornaram-se um
sussurro silencioso e anormal.
O sorriso frio de Atena era intencional, como se ela soubesse cada um dos
pensamentos de Lore.
Lore sabia o que ela esperava — que seu temperamento tomasse conta, que
ela perdesse a cabeça e fosse destruída pela mesma raiva impulsiva que
Atena ajudou a alimentar.
Após anos de prática na Casa Tétis, Lore leu com facilidade a ordem nítida
nos lábios dele. O deus estendeu uma das mãos na direção dela, seu olhar
estava concentrado, sua face, radiante de triunfo, e a jovem soube que ele
estava usando seu poder. Ela fingiu ter dificuldade com o peso do escudo e
cambalear.
Traga-o para mim — dizia ele. Com toda a pintura e as vestimentas que
usava, com a imponência que as sombras o faziam parecer que tinha, ela
apenas via o velho que ele um dia foi, sentado em um trono sem
significado.
— Dê-me a égide.
dele. Ela fez uma careta retorcida, tensionando o rosto para mostrar que
lutava, mesmo quando deu um passo na direção dele. Mesmo quando usou
a égide para esconder que sacava a lanterna do bolso.
Lore virou a chave da lanterna para a potência mais alta possível e assistiu
aos dois deuses protegendo os rostos.
— Esta boa menina — disse Lore, enfurecida — está esperando que você a
pegue.
Ela protegeu novamente o corpo com a égide, mas quando afastou do deus
agitado, começou a ouvir novamente pelo ouvido esquerdo. O fonezinho
havia caído.
Uma veia latejava em sua testa quando a encarou com um olhar que
prometia uma dor que iria além de todos os limites.
— Não lhe dê ouvidos, meu senhor. Seu intento é nos dividir. Levante-se e
prove o quão forte realmente é.
— Presumo que o seu falso deus a curou — disse Atena, com um tom de
provocação em sua voz. — Onde ele está agora, Melora? Você o perdeu
para a escuridão?
Ele está vivo — disse Lore para si mesma. — Ele está vivo e virá.
Lore presumira que Atena queria o escudo puramente pelo poema e o que
ele revelava, mas a deusa já possuía essa informação agora e mesmo assim
permaneceu ao lado de Fúria e continuou com sua farsa.
Então por que não usar sua indomável força para arrancá-la das mãos de
Lore, da maneira que tanto ela quanto Lore sabiam que podia?
Porque — sussurrou uma pequena voz na sua mente — ela se tornou parte
do plano dele.
— Por que você quer o escudo? Diga — disse Lore enquanto recuava; não
por medo, mas para se aproximar o suficiente do vagão que carregava o
reservatório, a fim de tentar dar uma olhada nele. Devia haver uma forma de
desativar um eventual motor ligado ao carro.
Um canto da boca da deusa se curvou para cima.
— Você entende agora — disse Atena. — Por muito tempo, eu pensei que
esta caçada era uma punição quando, na realidade, era meramente um teste.
Todo esse tempo, meu pai desejou que provássemos nossa lealdade
acabando com a pior era do homem. Para começar uma nova raça, fiel aos
deuses.
— É apenas uma prova do que está por vir — disse Atena, não se
preocupando em olhar para ele. — Quando o mundo perceber seu destino.
—
Ela deu um passo na direção de Lore, e seus olhos fitaram a égide, apenas
por um momento. — Mas não será a água que purificará as terras. Não será
a água que limpará este mundo. Será o fogo.
Fogo grego. Lore respirou fundo. Uma arma lendária do Império Romano
do Oriente. Uma vez aceso, qualquer coisa que os compostos químicos
tocassem arderia em chamas, e a água, em vez de apagá-lo, ajudaria a
carregá-lo e a aumentar o fogo. Ela ferveria as ruas por baixo, causando
destruição em massa à medida que se alimentasse de qualquer material que
encontrasse pela frente. Em uma cidade inundada, levaria dias, senão
semanas, para ser totalmente apagado. E até lá…
— Sim — sussurrou Fúria. — O fogo se alastrará por baixo das ruas, por
todos os diversos túneis, devorando de baixo para cima.
— Essa é uma ameaça vazia — ela se forçou a dizer. — Eles vão descobrir
o que está acontecendo assim que virem que os seus caçadores foram
embora.
— Criança — disse ele —, quem disse que todos os meus caçadores foram
embora? Eu precisei de apenas dois deles para prender todos os outros aqui
e começar o incêndio.
— Você vai, você vai, você vai — repetiu ele, por vezes seguidas,
debochando de Lore. Ele ficou novamente ao lado de Atena, usando seu
cinto como um torniquete para o braço. — Todos eles devem, finalmente,
morrer para que o mundo renasça. Eles deveriam se sentir honrados por
saber que serão os primeiros sacrifícios para uma nova e gloriosa era.
— Você não pode fazer isso — implorou Lore. — Você não matará apenas
os caçadores… se o plano dele for bem-sucedido, matará pessoas inocentes.
— Você realmente acha que ela evocará Zeus para vir assistir a você
destruir uma cidade? — perguntou Lore. — Não funciona assim, idiota!
— Funciona do jeito que eu quiser que funcione — disse Fúria, por entre os
dentes cerrados.
— Você realmente acha que ela o deixará viver? — indagou Lore a Fúria,
lutando para fazer as palavras saírem. Seu corpo estremeceu quando plantou
os pés no chão sob a água em uma última tentativa de se manter em pé. —
O verdadeiro motivo para Atena estar ali iluminou-se para ela como um
feixe de luz solar passando entre as nuvens. A razão pela qual a deusa fez
tudo o que podia para recuperar o escudo.
Fúria se esqueceu de sua lesão e tentou bater nela com o braço fantasma.
Lore não vacilou, nem mesmo quando a dory de Atena surgiu entre eles,
impedindo o segundo ataque de Fúria. Seus olhos estavam ardentes na
escuridão.
— Você está certa, eu sou uma tola — disse Lore a ela. — E você estava
certa antes também, ao debochar por eu ter acreditado no que você disse. A
verdade é que eu não somente acreditei no que você disse… eu acreditei em
você. Quando você protegeu aquelas pessoas da explosão e dos escombros.
Quando me contou sobre Palas, sobre sua cidade, sobre a função que nasceu
para exercer e sobre o que queria para si mesma.
— Isso não é um teste, é uma lição — disse Lore. — Por que Zeus iria
querer que você matasse pessoas inocentes… adoradores de outros
deuses…
quando esse foi um dos motivos de vocês serem punidos? Mesmo depois de
tudo que ele fez a você e aos outros, eu nunca ouvi você falar dele com
raiva ou ressentimento. No seu ponto de vista, não há ninguém como ele. E
ele nunca daria o mundo para o vencedor do Ágon.
As palavras que Van dissera naquela manhã voltaram à Lore de uma só vez,
e ela prosseguiu, destemida.
— Eu vou arrancar a sua língua — disse Fúria — como eu deveria ter feito
quando você não era nada além de uma cachorrinha.
— Você já fez isso? — perguntou Lore à Atena. — Você já buscou a
penitência pelo que aconteceu tantos séculos atrás? Ou gastou mais de mil
anos tentando justificar o que aconteceu colocando a culpa nas Moiras…
tudo porque não consegue suportar saber que você, e somente você, é a
única culpada por perder o amor do seu pai?
A expressão de Atena estava escondida pela escuridão, mas Lore sabia que
ela era impassível, e isso acabou com o resto de esperança que tinha. Não
havia uma forma de comovê-la, não agora.
— Você deveria ser a protetora das cidades — disse Lore —, não a causa da
destruição delas!
Fúria rosnou quando se projetou para a frente, arremessando Lore para trás
e fazendo a água esguichar em volta deles.
O som abalou as paredes do túnel, fazendo cair sobre eles algumas pedras
que se soltaram. Assim que Lore tomou fôlego, sentiu o poder do escudo
preenchê-la mais e mais, mesmo enquanto Fúria tentava enfraquecê-la.
De uma vez só, tudo parou. De algum modo, Lore sabia o que estava por
vir.
Lore odiou aquela frase, mais até do que odiava o novo deus.
Ela se acalmou.
Combate normal. Ela não precisava lutar nos termos dele, como se fosse
uma caçadora.
— Eu tenho outro provérbio antigo para você — disse Lore, tirando o braço
das alças internas da égide. — Vai se foder.
Ela jogou o escudo nele. Fúria tentou pegá-lo, mas sua risada eufórica foi
interrompida assim que foi atingido bem no peito, quebrando ossos. Ele
ficou sem ar e caiu de costas no chão, preso momentaneamente sob o peso
insuportável do escudo.
A adrenalina superou seu bom senso. Lore deu uma estocada com a espada,
seu coração estava borbulhando com o anseio de perfurar o dele.
— Seu maior erro foi se prender nesta cidade comigo — disse Lore.
Lore tentou inclinar sua espada para cravá-la no peito de Fúria, mas a
lâmina deslizou na armadura que cobria seu tronco.
Ele não merecia nada além do que Lore queria dá-lo. Lore estocou…
Mas freou assim que a ponta estava prestes a perfurar a pele à mostra do
pescoço.
Ela poderia matá-lo… e agora sabia disso. Matá-lo e tomar seu poder,
utilizando-o para se equiparar à Atena, golpe a golpe. Poderia marcar seu
nome na memória de todos os caçadores.
Saber que ele havia sido derrotado por ela, uma mera garota, era o bastante.
Aquilo, para ele, era um destino pior que a morte. A vingança originou o
Ágon, e não seria a vingança que lhe daria fim. Matar qualquer um deles
apenas faria a caçada continuar por mais um ciclo. Para ela e para Castor.
Lore voltou-se para Atena lentamente, com essas palavras soando dentro de
si.
O que seria sacrifício para os deuses, senão abrir mão da única coisa que
eles desejavam de verdade além de suas próprias vidas e de poder?
Sacrificar aquilo que eles mais queriam — a temerária e derradeira
conquista. As brasas nos olhos de Atena brilhavam no centro escuro de seu
elmo.
— Você torturou e matou duas garotinhas por ela. Matou meus pais e
inúmeros outros para poder segurá-la novamente — disse Lore. — Estou
entregando-a a você por vontade própria. Pelo menos tenha a coragem de
pegá-la.
— Não tem nada a ver com o poema, não é? Não mesmo — disse Lore,
tomada por uma calma estranha. — Ela nem mesmo evoca seu pai, como
você fez Fúria acreditar que evocava.
— Isso é verdade?
A deusa não parecia ouvi-lo. Todo o seu ser estava concentrado na égide
sob a água rasa. A expressão da deusa exibia como o peso de sua escolha a
torturava.
Atena poderia sair do Ágon e talvez extingui-lo para todos eles, mas apenas
se destruísse a única coisa que mais lhe importava.
— Destrua a égide — disse Lore. — Tem que ser você. Você precisa acabar
com isso!
Uma adaga surgiu na mão de Fúria, depois voou dela, girando pela
escuridão.
Não!
Castor.
Morrendo…
Lore não podia lutar. Não podia se mover. A agonia a rasgava por dentro.
— Nossa vitória.
— Estou certa de que você quis dizer nossa vitória — vociferou ela.
— Assim como estou certa de que não lhe dei meu consentimento para
matar esta mortal.
CINQUENTA E CINCO
Atena bateu a égide contra a armadura peitoral dele com tanta força que
criou uma chuva de faíscas. O novo deus foi arremessado quando o escudo
rugiu, e seu enorme corpo derrapou pelos trilhos e pela água. Ela caminhou
lentamente na direção dele, apreciando a maneira como ele rastejava até o
vagão-tanque.
Fúria girou rapidamente, atirando uma faca, depois outra. Atena foi rápida o
suficiente para desviar da primeira, mas Lore não conseguiu ver o que
houve com a segunda antes que caísse na água. A deusa esperou até que ele
ficasse de pé, até que estivesse a poucos centímetros de distância do vagão;
perto o suficiente para acreditar, por um momento, que ele o tocaria.
Atena, envolvida nos laços da escuridão, deu um salto bem alto no ar,
passando acima da cabeça de Fúria, com a dory firmemente empunhada. O
A espada de Fúria caiu no chão quando ele tombou sobre os joelhos, com a
cabeça pendente. Atena pegou a espada do novo deus na água, depois parou
na frente dele. Ela levou a égide até o rosto de Fúria, até que ele fosse
forçado a encarar o olhar da Medusa.
O vagão emitiu um clangor alto assim que começou a avançar. Ele formava
ondas enquanto acelerava pelos trilhos, deixando um rastro do fogo grego
atrás dele.
Fúria soltou o dispositivo e lutou para pegar outra coisa dentro de sua
armadura — um isqueiro.
O fogo rastejou para perto dela, mas Lore não conseguia se mexer. Aquela
palavra, que ela temera por toda a vida, soou em seus pensamentos.
Impotente.
— Você — disse ele, ofegante, com sangue pingando dos lábios. — Você…
perdeu!
Lore fechou os olhos diante do calor que aumentava à sua volta. A agonia
descia por sua coluna e suas pernas conforme era arrastada pela água.
A deusa não parecia bem para Lore. Sua pele estava pegajosa de suor e
havia um corte ficando escuro em seu maxilar. O próprio brilho dos olhos
da
Mas Lore estava ruim demais para falar. Sua alma começou a se afastar de
seu corpo, e o mundo estava desaparecendo.
Mas Atena voltou logo depois, empunhando com dificuldade uma das
adagas de Fúria.
Pela primeira vez, uma história era contada no rosto da deusa. A emoção se
agitava em seu semblante plácido. Raiva. Arrependimento. Aceitação.
Ela não… Atena nunca faria isso, e mesmo com seu profundo ódio por ela,
mesmo que estivesse desesperada para achar uma maneira de proteger
quem amava, Lore nunca iria querer que ela fizesse isso. Ela nunca iria
querer isso.
— É assim que deve ser — disse Atena, com a voz rouca. O seu corpo
tremia violentamente agora, tentando lutar contra os efeitos do veneno. —
Eu não tenho… salvação… Você nascerá de novo. Terá mais tempo. Lute
de novo… até o fim. Esta… é a única… escolha lógica. A cidade… deve
ser protegida.
A deusa apontou a ponta da lâmina para seu coração. Ela deu à Lore a
escolha final.
contra escuridões impossíveis. Queria a vida que lutou tanto para construir,
e estava tão desesperada por isso quanto pelo próximo fôlego. Queria
chorar como não chorava desde criança. Queria os seus pais.
Lore nasceu nesta jaula e agora morreria nela; se não pelo corpo, então pela
alma.
— No coração.
A deusa olhou para Lore uma última vez, estendendo a mão para a égide.
Ela gritou quando a dor se instalou. Ela estava tomada por energia,
consumindo o seu sangue, músculos e ossos. Era um esvaziamento. A
erradicação de cada pedaço de matéria que já viveu dentro dela.
Lore não sabia o que lhe restaria, sabia apenas que talvez não tivesse como
tocar o tanque de fogo grego, quanto mais pará-lo.
— Eu preciso… — Ela precisou gritar mais alto que o turbilhão de vento
chicoteando e forças ressoando à sua volta. — Eu preciso ficar… eu preciso
de um pouco mais de tempo… eu preciso ficar!
Houve uma explosão de energia em sua coluna assim que seu corpo caiu na
água em chamas. Lore cambaleou até ficar de pé. Dentro dela, algo se
debatia, pulsando contra a barreira de sua pele.
Lore alcançou o vagão logo antes que ele passasse pelo túnel que o enviaria
para baixo da Grand Central Station. Bradando, se colocou na frente dele,
segurando a borda plana do vagão com as próprias mãos. Enterrando os pés
nos trilhos, ela se esforçava para impedir a força do motor.
O vagão estalava e rangia enquanto lutava para seguir adiante. Lore cerrou
a mandíbula, soltando um grito áspero quando ergueu o pé para acertar a
roda frontal do lado direito e depois a do lado esquerdo, até entortá-las. Ela
inclinou o vagão todo para frente, amassando e esmagando o metal como se
fosse papel, até que ele não pudesse mais se mover.
Lore rolou o reservatório para a estação o máximo que sua força permitiu,
para as águas que não estavam pegando fogo.
O fogo não podia ser extinto por água. Seu pai lhe contou sobre fogo grego,
ele disse…
Lore deu meia-volta e olhou para os trilhos abaixo da Grand Central uma
última vez. Para as plataformas distantes que ela poderia usar para escalar
para fora do inferno ardente e encontrar os outros.
O caminho do fogo estava impedido por enquanto, mas ele não pararia de
queimar enquanto houvesse água. Se o calor se acumulasse demais, faria as
ruas acima desabarem. Ela tinha que encontrar um jeito de extingui-lo. De
acabar com o oxigênio.
Lore correu para o trajeto de onde veio. O calor a dilacerava por todas as
direções, mas ela não parou até alcançar a Linha 61. A estação inteira
estava pegando fogo; aquilo não tinha fim. Nem havia maneira de drenar a
água.
Ela caiu de joelhos e pressionou os punhos contra o solo oculto por baixo
da água em chamas.
Ela poderia mandar a água e o fogo para o ventre da terra, onde ele não
poderia se alimentar de ar nenhum, apenas da escuridão.
Ela a libertou.
A energia se reuniu em sua mão, brilhando como ouro derretido. Lore bateu
com o punho na terra, soltando um grito gutural. O chão rugiu em resposta
ao se partir. Rachaduras como teias de aranha surgiram, emitindo um brilho
dourado sob as chamas e a água.
fugir daquilo. Ela seria levada para a escuridão e extinta, junto com as
chamas. Sozinha. Ela estava sozinha…
Ela sentiu a família em sua volta; seu toque terno, acariciando suas faces,
envolvendo-a. E, além deles, havia uma presença que seus olhos não
conseguiam ver.
Ela olhou para cima, procurando por ele em meio à fumaça e o encontrando
no elevador.
De soslaio, viu Castor correr para frente, protegendo o rosto das chamas.
— Não faça isso! — gritou ele. — Nós precisamos sair daqui! Não há nada
que você possa fazer!
O fogo grego caiu nas profundezas da fenda, que drenou a estação. Ela deu
outro soco no túnel, pulverizando mais pedras a fim de soterrar o fogo. O
Apenas uma ideia lhe fazia sentido. Ela precisava enterrar o fogo… Mas ela
estava machucada… Todo o seu corpo estava em chamas…
A energia dela deixou marcas na pele do novo deus. Isso gerou um estímulo
nela, puxando-a para longe da luz abismal na qual ela se dissolvia. Estou
machucando ele.
Castor a beijou. Beijou-a até que aquele poder ofuscante não mais
controlasse a mente e o corpo de Lore. Senti-lo se tornou um vínculo como
o mundo, e ela se apegou a isso com tudo que tinha.
A energia ardente se dissipou em volta deles. Nada parecia real, exceto ele.
Não restava mais nada em sua mente. Não havia restado nada dela neste
corpo. E quando a escuridão finalmente veio buscá-la, não pareceu um fim,
mas um começo.
CINQUENTA E SETE
para trás.
A cidade cantava para ela a sua velha canção, a princípio, baixinho, mas
aumentando em volume e ritmo. Dezenas de motores roncavam pelas ruas,
o começo do que talvez estivesse por vir nos próximos dias. Equipamentos
de construção tiniam e ressoavam ao esforço da remoção dos escombros.
As pessoas andavam pelas ruas, rindo, e aquele era o som ao qual Lore se
apegou, o ruído que se enfiava em seu coração assim que abria os olhos.
Lore tentou pensar no que dizer a ele. Agora que estava acordada, aquela
sensação desconcertante estava de volta. O poder se movia dentro dela,
inquieto em seu confinamento. Seu corpo, que a havia servido tão bem por
tantos anos, que ela fortaleceu, amou e deixou cicatrizes, parecia
insubstancial demais para Lore agora. Em vez disso, ela olhou em volta.
Lore estava surpresa por esse simples pensamento a deixar à beira das
lágrimas. Ela pigarreou.
— Sábado — disse ele. — Você está dormindo desde que Castor curou suas
feridas.
Castor está…?
— Ele está bem. Todo mundo está bem. Quero dizer… bem sem contar o
trauma levinho que acontece quando a gente não processa direito o que
houve, mas bem. — Miles esfregou a nuca. — Eles subiram para o terraço
há um tempinho para respirar ar fresco.
Ela percebeu que ainda segurava a mão de Miles, mas não a soltou.
sussurrou ele. — Você vai sumir? Vai ser caçada como os outros daqui a
sete anos?
— E se o Ágon levar você junto e não puder mais voltar? Atena disse que
os deuses moram em um mundo além do nosso… é para lá que você vai?
quer dizer.
— Que você vai correr que nem louca atrás do ônibus para a Terra se o vir
chegando mas estiver longe do ponto? — disse Miles.
— Talvez. — Lore riu com vontade, mas viu que ele precisava de outra
garantia. — Talvez eu precise ficar longe por um tempo, mas nunca vou
deixar você para sempre. Não se eu puder evitar.
— Tá, mas a questão é que eu não quero nem que você vá — disse Miles.
— Sabe, esta cidade é uma zona — disse Lore depois de um tempo. — Mas
é uma zona lindíssima.
Quando ele a viu, ela percebeu o lampejo de preocupação que passou pelos
seus olhos, embora ele tenha feito o melhor que pôde para disfarçá-la.
disse Miles, tranquilamente. — É não ter que pagar uma multa exorbitante.
quando eu fui para Flórida nas férias você matou as minhas plantas, porque
se esqueceu de regar.
— Como você sabia que eu estava com desejo de comer isso? — perguntou
Van, tirando um do pacote.
— Porque nós estamos comendo que nem ratos de metrô nos últimos dois
dias e você já comeu o salgadinho de queijo esta manhã.
Ela se inclinou para trás e olhou para o céu. Sem a iluminação habitual da
cidade, era fácil ver as estrelas.
Castor, Miles e Van foram para a beirada do telhado, e o novo deus apontou
para as mesmas constelações que Lore havia notado silenciosamente.
O pai de Lore ensinou-as para ela e Castor, contando-lhes os mitos por trás
de cada uma. Como os heróis de outrora e tantos outros, ela acreditava que
a única honra maior que o kleos era os deuses lhe concederem um lugar
entre as estrelas.
Lore levou a mão ao peito, esfregando-o. Com o tempo, sabia que os veria
novamente, mas não agora. Ela fugiu da morte tantas vezes que parou de
contar, mas não esqueceu que o ser que destruiu sua vida foi o que lhe deu
uma segunda.
Iro veio deitar ao lado dela, observando o céu escuro. Lore voltou-se para
fitá-la.
— Se fosse assim tão simples… Eu quero que eles me escutem, mas ainda
tem uma pequena parte de mim que sente como se… eu não esteja
destinada a liderar.
— Que bom — disse Lore. — Isso é bom, Iro. Não sei se tem algo que eu
possa fazer para ajudar, mas vou tentar.
Iro debochou.
Lore não queria que as eras passassem como apenas momentos ou que o
tempo perdesse o significado para ela. Ela não queria decidir como e
quando usar o seu poder e sabia que inevitavelmente cometeria erros.
Ela não queria continuar viva depois que todos os seus amigos morressem.
— Nós não sabemos o que vai acontecer até que chegue a hora — disse Iro,
enquanto os outros voltavam. — Mas até lá, vamos ficar aqui juntos, pelo
tempo que a noite nos permitir.
Lore assentiu, mas as duas sabiam exatamente quanto tempo seria. Até
meia-noite.
CINQUENTA E OITO
arco no céu.
Os outros dormiam por ali, esparramados sob as estrelas. Van e Miles, com
as mãos entrelaçadas, Iro com o suave semblante de estar sonhando.
Lore prometera a Miles e aos outros que ela e Castor os acordariam antes da
meia-noite. Ainda assim, quando sua mão pairava sobre o ombro dele, ela
não conseguiu cumprir a promessa. Ela já havia passado por muitas
despedidas na vida, todas dolorosas, e nenhuma como ela queria.
Em vez disso, pegou o celular de Miles que estava ao lado do amigo, fez
uma careta, tirou uma foto e colocou como papel de parede. Depois, na
pasta de rascunhos do e-mail, deixou instruções de como acessar a conta do
banco intocada que Gil — Hermes — havia deixado para ela e onde
estavam as chaves para a caixa segura com a escritura da casa.
Castor estava cochilando há uma hora, mas ele deve ter sentido a mudança
no mundo também. Ele levantou-se e se alongou, girando os ombros para
trás e balançando os braços, como se quisesse se recordar da sensação de tê-
los.
Lore pôs um dedo nos lábios, pedindo silêncio enquanto colocava o celular
ao lado de um dorminhoco Miles. Ela estendeu a mão para pegar a de
Castor.
Ele olhou para a cidade escura, imóvel, sem suas luzes deslumbrantes.
— Eu lembrei.
— Era isso o tempo todo? — perguntou Lore. — Eles tinham que dar a vida
voluntariamente para um humano?
— Acho que é mais do que isso. Você se lembra do que o Folião disse? —
perguntou Castor. — Que até Apolo sabia que isso nunca acabaria e que
tudo… o Ágon, a matança, era tudo em vão? Eu vi isso nele. A percepção
que estava destruindo-o. Ele me disse que conseguia sentir a doença em
mim e ficou zangado. Ele quebrou o quarto, destruindo tudo que tocava.
Pensei que fosse porque estava furioso por eu ter ousado olhá-lo nos olhos,
ou por ter sido encontrado, mas não foi isso.
Castor respirou fundo mais uma vez.
— Ele ficou parado. Toda aquela raiva, e depois… silêncio. Uma reflexão.
— Por que ele simplesmente não curou você? Ele podia fazer isso, não?
— Não sei — disse Castor. — O Ágon estava quase no fim. Ele recuperaria
seu poder total em alguns momentos. Mas acho que ele queria se libertar
disso… queria fugir da interminável dor, violência e perda, tanto quanto
nós.
— Eu não sei se foi um sacrifício genuíno, porque, de certa forma, foi útil
para ele. Acho que eles precisam se lembrar do verdadeiro propósito deles e
só podem fazer isso desistindo do poder que tentavam preservar com tanto
desespero.
— Vai ser a mesma sensação que tive na estação? Ir embora vai doer?
— Eu não sei — disse Castor, tirando o cabelo do rosto dela. — Não sei
muito bem o que vai acontecer.
Lore ficou de pé, segurando o rosto dele entre as mãos e se abaixando para
beijá-lo antes que fosse tarde demais.
— disse Castor. — Mas ainda me sentia como antes, quando era um garoto.
Grato pelos dias bons, quando sentia meu corpo forte. Grato por qualquer
momento que passo com você.
Lore abraçou Castor pela cintura. Ele descansou a bochecha no cabelo dela.
Eu não quero ir — pensou ela. — Eu não quero perder isso, nem por um
momento.
Ela não queria a eternidade. Só queria abraçar Castor. Só queria saber que
seus amigos estavam a salvo e por perto. Só queria ouvir o coração da
cidade batendo, ficando mais firme a cada dia.
Liberte-nos.
A implacável pressão cedeu à medida que o poder que cintilava dentro dela
foi removido de seu corpo como um fio se desenrolando. Ela respirou fundo
com a sensação e novamente quando ela passou. O ar ficou sereno e os sons
da cidade voltaram.
— Cas…?
Ele abriu os olhos. Por um momento ela apenas conseguiu encará-lo com
um silencioso espanto. Os olhos de Castor estavam escuros novamente, sem
as centelhas de poder nas íris. Eram os olhos que ela via todos os dias,
quando criança. Os olhos que ela amava.
Castor soltou uma leve e contente risada, e suas mãos tocavam os braços, o
cabelo e o rosto de Lore, como se precisassem se certificar de que não era
um sonho.
LISTA DE PERSONAGENS
DEUSES
NOVOS DEUSES
MEDUSA
Rhea Perseus — Mulher mortal que se tornou a Portadora da Maré, a nova
Poseidon; tem parentesco distante com Lore.
OUTRAS CASAS
AGRADECIMENTOS
MEU PRIMEIRO CONTATO COM A MITOLOGIA GREGA VEIO
POR MEIO DE UMA CÓPIA do D’Aulaires Book of Greek Myths [Livro
de Mitos Gregos de D’Aulaire], que meus irmãos e eu herdamos de nossa
mãe, que estava ansiosa para começar a nos apresentar nossa herança grega.
Fui abençoada com uma grande família grega que é tudo o que os caçadores
neste livro não são: incrivelmente amorosa, solidária, divertida e sempre
tendo uma vasta coletânea de lendas familiares. Eu gostaria de começar
agradecendo a todos eles.
Eles, junto com Katalina Edwards e Joel Christensen, também foram muito
gentis ao avaliarem as transliterações do grego original e ao discutirem as
diversas maneiras de abordar os nomes das linhagens. (Se você fala
qualquer versão desse idioma, notará que fiquei inclinada a utilizar os
nomes romanizados para deixar as coisas mais claras para o leitor, mas
tentei preservar um pouco da “pureza” da língua, por assim dizer, sempre
que possível.)
Este livro também se valeu muito dos escritos de Mary Beard e Christine
Downing, os quais me ajudaram a refinar minha própria visão de Atenas e
muitos dos mitos discutidos nesta história, bem como o trabalho de
tradução feito por Richmond Lattimore, Emily Wilson, Samuel Butler,
Robert Fagles e Hugh G. Evelyn-White. Fãs da mitologia grega, assim
como eu, perceberão que fiz algumas perguntas sobre quais versões dos
mitos eu queria utilizar
Para Emily Meehan, Seale Ballenger, Melissa Lee, Augusta Harris, Dina
Sherman, LaToya Maitland, Holly Nagel, Elke Villa, Andrew Sansone,
Sean Weigold, Jennifer Chan, Guy Cunningham, Meredith Jones, Dan
Kaufman, Sara Liebling, Shane Jacobson, Alexandra Sheckler, Kim
Greenberg e toda a equipe comercial: obrigada por todo o trabalho árduo e
pela dedicação em dar aos livros a melhor vida que eles podem ter. Marci
Senders: esta capa ficou linda, fiquei sem palavras. Eu também gostaria de
agradecer a Billelis pela arte da capa, que é de arregalar os olhos (piada
intencional) e a Keith Robinson pela maravilhosa arte do interior.
Não consigo descrever o quanto sou grata à minha incrível amiga Anna
Jarzab, por acreditar nesta história e por me ajudar a pensar nela. Obrigada
a Susan Dennard, por sempre estar disposta a pesar quando preciso de outra
opinião confiável e por sua compaixão ilimitada. Finalmente, obrigada a
Erin Bowman, Leigh Bardugo, Victoria Aveyard e Amie Kaufman, por
serem um coro de vozes de apoio!
Uma Educação Mortal
Novik, Naomi
9786555205732
336 páginas
Orion lake precisa morrer. eu sabia disso desde que ele salvou minha vida
pela segunda vez. Antes, não me importava tanto assim com ele, mas tenho
meus limites. Tudo estaria bem se ele tivesse me salvado um número
considerável de vezes, sei lá, dez ou treze. Treze é um número que chama a
atenção. Orion Lake, meu segurança particular. Eu poderia viver com isso.
Mas o fato é que já se passaram quase três anos que estamos aqui na
Scholomance, e até agora ele não tinha apresentado qualquer inclinação
para me tratar de um jeito diferente ou especial. Você deve me achar egoísta
por contemplar com essas intenções assassinas o herói responsável pela
recorrente sobrevivência de um quarto da nossa turma. Bem, só lamento
pelo bando de perdedores que não conseguem se virar sem a ajuda dele.
Seja como for, não fomos todos feitos para sobreviver mesmo. A escola
precisava se alimentar de alguma forma.
Prazeres Violentos
Gong, Chloe
9786555205817
464 páginas
Compre agora e leia
Afinal, se não puderem impedir essa catástrofe, não sobrará cidade alguma
para dominarem.
9786555205756
256 páginas
Preocupados com a saúde mental de Lila, seus pais traçam um novo plano
para ela: passar três meses com amigos da família em Winchester,
Inglaterra, para relaxar e se restabelecer. Mas, com a falta de sol, uma
cozinheira rabugenta da pousada e uma pequena cidade sem o sabor de
Miami (tanto a comida quanto outras coisas), o que seria uma viagem dos
sonhos para alguns parece mais um pesadelo para Lila... Até ela conhecer
Orion Maxwell.
Balconista de uma loja de chás com seus próprios problemas, Orion está
determinado a ajudar Lila a superar a tristeza e se autodenomina seu guia
turístico pessoal. Do cenário musical repleto de drama de Winchester
paisagem inglesa do campo, não demorou muito para que Lila ficasse
encantada não apenas com Orion, mas também com a Inglaterra. Logo um
novo futuro começa a se formar na mente de Lila ― um que significaria
abandonar tudo o que ela planejou.
Goodman, Jessica
9786555206012
336 páginas