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MEMÓRIA

O plano
do Brasil
do Príncipe

MUSEU NACIONAL DOS COCHES, LISBOA / WIKIMEDIA COMMONS


VERSÃO ATUALIZADA EM 10/05/2022

Historiador português identifica o projeto


de um navio construído no Brasil guardado
em um museu britânico desde 1811
Carlos Fioravanti

“F
iquei muito feliz”, conta o his- mente Saldanha pôde ler o texto acima
toriador português Nuno Salda- dos desenhos, com as medidas do navio,
nha, da Universidade Europeia, ilegíveis na versão do site do museu – ele
em Lisboa, ao lembrar-se do dia havia pedido essas informações, sem su-
em que identificou o plano de construção cesso, durante sete anos.
de um navio de guerra construído no Ao conferir as medidas com as des-
Brasil entre 1797 e 1802 que integrou a crições de navios do século XIX que
frota usada pela Corte portuguesa para guardou ao longo de uma década, Sal-
se mudar para o Brasil em 1808. danha concluiu que se tratava da nau
Foi no início do ano passado, quando Príncipe do Brasil. O desenho e as me-
ele recebeu em sua casa, também em didas coincidiam também com a descri-
Embarque da família Lisboa, uma encomenda muito aguar- ção e as fotos do livro Modelos de navios
real portuguesa para dada do Museu Marítimo Nacional, de existentes na Escola Naval que pertence-
o Brasil em 1807, Greenwich, em Londres. Era uma cópia ram ao Museu de Marinha, escrito pelo
pintura do século XIX
atribuída a
de uma folha com desenhos de constru- capitão de fragata João Braz de Oliveira
Nicolas-Louis-Albert ção do até então identificado apenas co- (1851-1917) e publicado em 1896 pela Im-
Delerive mo “Navio português sem nome”. Final- prensa Nacional de Portugal.

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“É um desenho importantíssimo, Assis (1800-1834) e Isabel Maria (1797- Plano de construção da


porque quase não existem mais planos 1818), na esquadra que saiu de Lisboa em agora identificada nau
Príncipe do Brasil,
de navios antigos portugueses”, ressal- 29 de novembro de 1807, chegou a Sal- guardado desde 1811
ta Saldanha. Projetado pelo arquiteto vador em 22 de janeiro do ano seguinte em um museu de Londres
construtor português Manuel da Costa e terminou no Rio de Janeiro em 8 de
(1774-1824), o Príncipe é, afirma ele, “o março. O Príncipe, com cerca de mil pas-
primeiro navio construído no Brasil com sageiros, incluindo a tripulação, trouxe juntas entre as madeiras nunca eram
desenho próprio”, porque o mais habi- a rainha dona Maria (1734-1816), dom vedadas perfeitamente”, comenta o en-
tual era os construtores aproveitarem João e seus filhos Pedro (1798-1834) e genheiro naval Gustavo Assi, da Escola
desenhos enviados de Lisboa. Miguel (1801-1866), mas sofreu avarias – Politécnica da Universidade de São Pau-
“Os ingleses não sabiam o que tinham os mastros se quebraram –, e as duas lo. “Nenhuma viagem de barco naquela
em mãos”, observa o historiador. O plano princesas foram transferidas para o Rai­ época era confortável, segura e saudável.”

A
de construção deve ter sido enviado de nha de Portugal.
Lisboa inicialmente a Plymouth, estalei- “Provavelmente o Príncipe do Brasil, pós examinar os desenhos e o
ro do sudoeste da Inglaterra onde a nau como as outras naus, chacoalhava muito artigo de Saldanha a pedido de
foi reformada, antes de ser remetido ao e rangia o tempo todo, além da água que Pesquisa FAPESP, Assi obser-
museu em 1811. Uma versão digital es- devia entrar continuamente, porque as vou que o Príncipe tinha uma
tava no site do museu e na Wikimedia, linha de flutuação apenas 20 centíme-
nos dois casos sem detalhes. tros (cm) acima da superfície do mar e
Até sua identificação, detalhada em um centro de estabilidade, o chamado
um artigo publicado em novembro na metacentro, alto, sugerindo que ele de-
revista Navigator, o único plano de cons- via balançar sempre de um lado para
trução de um navio da frota de 1808 era o o outro. Tinha um perfil mais afilado
da Rainha de Portugal, também guarda- No final do século que o da Rainha e ambos eram mais
do, com identificação precisa, no Museu alongados que os similares ingleses e
Marítimo. As duas naus tinham três mas-
XIX, os navios franceses. “Quanto mais fino o perfil do
tros e o mesmo comprimento, 55,5 me- ganharam navio, menor a resistência à água e maior
tros (m), e larguras próximas, a Rainha a velocidade”, diz ele. “Inversamente,
com 14,5 e o Príncipe com 14,9. Eram na-
velocidade com navios bojudos, como as caravelas, car-
vios de guerra – tanto a Rainha quanto o um perfil em forma regavam muita carga, mas eram lentos.”
Príncipe com 74 canhões – usados para Segundo Saldanha, o Príncipe cons-
integrar a esquadra de 17 embarcações,
de U, em vez de V – titui “a primeira prova da aplicação dos
escoltadas por 4 fragatas da Marinha bri- uma inovação princípios de Chapman na construção
tânica, que trouxe para o Brasil a Corte de naus portuguesas”. Fredrik Chap-
e seu séquito, um total aproximado de
do engenheiro man (1721-1808) era um construtor sueco
15 mil pessoas. catarinense de navios e oficial da Marinha, pioneiro
Com capacidade para 670 pessoas, o na aplicação de métodos científicos na
Rainha trouxe as filhas de Carlota Joa-
Trajano de Carvalho construção naval, que ressaltavam a im-
quina (1775-1830), mulher do rei dom portância da formação em cálculo, geo-
João VI (1767-1826), Maria Francisca de metria e hidrodinâmica. Se por um lado

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Retratos de dom João VI, pintado por
Nau Rainha de Portugal, em
Albert Gregorius, e de sua mulher,
Lisboa depois da sua vitória
Carlota Joaquina, de autor desconhecido.
sobre a esquadra de D. Miguel
Ao lado, pintura de M. Yarwood da nau
no Cabo de São Vicente.
Rainha de Portugal, do mesmo porte que
Retratos de D. Joao VI e Carlota
o Príncipe do Brasil, após vencer uma
Joaquina
batalha em 1833

brasileira, depois foi convertido em ca-


deia e, talvez por falta de manutenção,
desmontado em 1822; o Rainha teve uma
vida mais longa, de 1791 a 1848. Por sua
FOTOS 1 MUSEUS REAIS DE GREENWICH / WIKIMEDIA COMMONS 2 E 3 PALÁCIO NACIONAL DA AJUDA, LISBOA / WIKIMEDIA COMMONS 4 MUSEU DE MARINHA, LISBOA / WIKIMEDIA COMMONS

vez, Costa fez outros navios e, depois


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da Independência, voltou a Lisboa. “Co-
a adoção desses métodos tornou o ofício mo outros portugueses que retornaram
mais profissional, por outro causou uma nessa mesma época, ele teve dificuldade
elitização e reduziu as chances de car- para encontrar outro emprego”, observa
pinteiros especializados na construção Saldanha.
de navios assumirem postos mais altos, No final do século XIX, o engenhei-
como antes. “Chapman sistematizou os ro naval catarinense Trajano Augusto
conceitos sobre estabilidade naval”, re- de Carvalho (1830-1898) fez o caminho
força Assi. Nos planos de construção de inverso, com um formato inovador de ca-
navios em seu livro Architectura navalis rena, a parte submersa do casco de uma
mercatoria (O mercador de arquitetura embarcação. No primeiro navio cons-
naval, em latim), de 1768, o sueco sempre truído no Arsenal da Marinha da Corte
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mencionava as distâncias do centro de após a Guerra do Paraguai (1864-1870), a
gravidade ao metacentro e deste à linha A construção do Príncipe demorou Corveta Trajano, ele implantou um novo
de flutuação, que constam nos desenhos seis anos, prazo muito longo para a épo- tipo de carena, com bordas retangulares,
da nau portuguesa. ca. As madeiras locais eram boas, mas a em forma de U, em vez da habitual, em
Costa aplicou os conceitos de Chap- mão de obra era escassa e fugidia, atraí- V (ver Pesquisa FAPESP nº 70).
man porque os aprendera com seu mes- da por ganhos maiores oferecidos pelos “Ao mudar a geometria do casco, ele
tre Torcato José Clavina (1736-1793), res- estaleiros privados. Era demorado e caro revolucionou a hidrodinâmica, porque
ponsável pelo projeto e construção da importar ferragens, cordas e velas. O na- a resistência da água diminuiu e o navio
nau Rainha. Costa trabalhou por mais vio custou 233 contos de réis, cerca de ganhou velocidade e estabilidade”, co-
de 20 anos no Arsenal de Lisboa até ser R$ 28,7 milhões em valores atualizados, menta Assi. A inovação foi patenteada
indicado construtor de naus e fragatas o dobro do Rainha de Portugal. em 1870 na Inglaterra e apresentada na

N
da Armada Real do Arsenal da Bahia. Exposição Universal de Viena, três anos
Ele chegou a Salvador em 1796 com um a viagem inaugural, em 1802, depois. Os navios ingleses incorporaram
alvará da rainha dona Maria I conce- com 370 pessoas a bordo, o o novo formato de casco depois de os tes-
dendo-lhe algo bastante incomum – to- Príncipe transportou uma tes do engenheiro naval inglês William
tal liberdade de criação. “O reinado de remessa de plantas, sementes Froude (1810-1879), autoridade mundial
dona Maria I foi de grande incentivo e pássaros coletados pelo naturalista nessa área, registrarem uma economia
para o desenvolvimento da Marinha”, baiano Alexandre Rodrigues Ferreira de cerca de 30% de carvão, usado como
explica o historiador. Há relatos de que (1756-1815), que percorreu a Amazô- combustível nos motores a vapor. Tra-
as autoridades da Marinha portuguesa nia de 1783 a 1792 e havia regressado jano morou alguns anos na Inglaterra e
no Brasil tentaram intervir no projeto, a Lisboa. Depois da viagem de 1808, o permitiu que a Marinha brasileira, da
mas o construtor lembrou-lhes de sua Príncipe permaneceu no Brasil, pro- qual ele saiu em 1889, usasse sua inven-
liberdade real e não acatou as sugestões. vavelmente navegou ao longo da costa ção sem pagar royalties. n

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