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MEMÓRIA
O plano
do Brasil
do Príncipe
“F
iquei muito feliz”, conta o his- mente Saldanha pôde ler o texto acima
toriador português Nuno Salda- dos desenhos, com as medidas do navio,
nha, da Universidade Europeia, ilegíveis na versão do site do museu – ele
em Lisboa, ao lembrar-se do dia havia pedido essas informações, sem su-
em que identificou o plano de construção cesso, durante sete anos.
de um navio de guerra construído no Ao conferir as medidas com as des-
Brasil entre 1797 e 1802 que integrou a crições de navios do século XIX que
frota usada pela Corte portuguesa para guardou ao longo de uma década, Sal-
se mudar para o Brasil em 1808. danha concluiu que se tratava da nau
Foi no início do ano passado, quando Príncipe do Brasil. O desenho e as me-
ele recebeu em sua casa, também em didas coincidiam também com a descri-
Embarque da família Lisboa, uma encomenda muito aguar- ção e as fotos do livro Modelos de navios
real portuguesa para dada do Museu Marítimo Nacional, de existentes na Escola Naval que pertence-
o Brasil em 1807, Greenwich, em Londres. Era uma cópia ram ao Museu de Marinha, escrito pelo
pintura do século XIX
atribuída a
de uma folha com desenhos de constru- capitão de fragata João Braz de Oliveira
Nicolas-Louis-Albert ção do até então identificado apenas co- (1851-1917) e publicado em 1896 pela Im-
Delerive mo “Navio português sem nome”. Final- prensa Nacional de Portugal.
A
de construção deve ter sido enviado de nha de Portugal.
Lisboa inicialmente a Plymouth, estalei- “Provavelmente o Príncipe do Brasil, pós examinar os desenhos e o
ro do sudoeste da Inglaterra onde a nau como as outras naus, chacoalhava muito artigo de Saldanha a pedido de
foi reformada, antes de ser remetido ao e rangia o tempo todo, além da água que Pesquisa FAPESP, Assi obser-
museu em 1811. Uma versão digital es- devia entrar continuamente, porque as vou que o Príncipe tinha uma
tava no site do museu e na Wikimedia, linha de flutuação apenas 20 centíme-
nos dois casos sem detalhes. tros (cm) acima da superfície do mar e
Até sua identificação, detalhada em um centro de estabilidade, o chamado
um artigo publicado em novembro na metacentro, alto, sugerindo que ele de-
revista Navigator, o único plano de cons- via balançar sempre de um lado para
trução de um navio da frota de 1808 era o o outro. Tinha um perfil mais afilado
da Rainha de Portugal, também guarda- No final do século que o da Rainha e ambos eram mais
do, com identificação precisa, no Museu alongados que os similares ingleses e
Marítimo. As duas naus tinham três mas-
XIX, os navios franceses. “Quanto mais fino o perfil do
tros e o mesmo comprimento, 55,5 me- ganharam navio, menor a resistência à água e maior
tros (m), e larguras próximas, a Rainha a velocidade”, diz ele. “Inversamente,
com 14,5 e o Príncipe com 14,9. Eram na-
velocidade com navios bojudos, como as caravelas, car-
vios de guerra – tanto a Rainha quanto o um perfil em forma regavam muita carga, mas eram lentos.”
Príncipe com 74 canhões – usados para Segundo Saldanha, o Príncipe cons-
integrar a esquadra de 17 embarcações,
de U, em vez de V – titui “a primeira prova da aplicação dos
escoltadas por 4 fragatas da Marinha bri- uma inovação princípios de Chapman na construção
tânica, que trouxe para o Brasil a Corte de naus portuguesas”. Fredrik Chap-
e seu séquito, um total aproximado de
do engenheiro man (1721-1808) era um construtor sueco
15 mil pessoas. catarinense de navios e oficial da Marinha, pioneiro
Com capacidade para 670 pessoas, o na aplicação de métodos científicos na
Rainha trouxe as filhas de Carlota Joa-
Trajano de Carvalho construção naval, que ressaltavam a im-
quina (1775-1830), mulher do rei dom portância da formação em cálculo, geo-
João VI (1767-1826), Maria Francisca de metria e hidrodinâmica. Se por um lado
92 | ABRIL DE 2022
Retratos de dom João VI, pintado por
Nau Rainha de Portugal, em
Albert Gregorius, e de sua mulher,
Lisboa depois da sua vitória
Carlota Joaquina, de autor desconhecido.
sobre a esquadra de D. Miguel
Ao lado, pintura de M. Yarwood da nau
no Cabo de São Vicente.
Rainha de Portugal, do mesmo porte que
Retratos de D. Joao VI e Carlota
o Príncipe do Brasil, após vencer uma
Joaquina
batalha em 1833
N
da Armada Real do Arsenal da Bahia. Exposição Universal de Viena, três anos
Ele chegou a Salvador em 1796 com um a viagem inaugural, em 1802, depois. Os navios ingleses incorporaram
alvará da rainha dona Maria I conce- com 370 pessoas a bordo, o o novo formato de casco depois de os tes-
dendo-lhe algo bastante incomum – to- Príncipe transportou uma tes do engenheiro naval inglês William
tal liberdade de criação. “O reinado de remessa de plantas, sementes Froude (1810-1879), autoridade mundial
dona Maria I foi de grande incentivo e pássaros coletados pelo naturalista nessa área, registrarem uma economia
para o desenvolvimento da Marinha”, baiano Alexandre Rodrigues Ferreira de cerca de 30% de carvão, usado como
explica o historiador. Há relatos de que (1756-1815), que percorreu a Amazô- combustível nos motores a vapor. Tra-
as autoridades da Marinha portuguesa nia de 1783 a 1792 e havia regressado jano morou alguns anos na Inglaterra e
no Brasil tentaram intervir no projeto, a Lisboa. Depois da viagem de 1808, o permitiu que a Marinha brasileira, da
mas o construtor lembrou-lhes de sua Príncipe permaneceu no Brasil, pro- qual ele saiu em 1889, usasse sua inven-
liberdade real e não acatou as sugestões. vavelmente navegou ao longo da costa ção sem pagar royalties. n