Você está na página 1de 26

DESNECESSIDADE DO USO DA PROVA DE

GEOLOCALIZAÇÃO NO PROCESSO
TRABALHISTA: PRESERVANDO A
PRIVACIDADE E OS DIREITOS
FUNDAMENTAIS

Maria Inês Vasconcelos1


Resumo:

O presente artigo aborda o debate sobre o uso da


geolocalização como meio probatório para comprovação
de horas extras no contexto de processos trabalhistas. Sob
o prisma da legislação brasileira a privacidade e proteção
de dados pessoais são fundamentais, especialmente diante
das tecnologias de monitoramento adotadas pelas
empresas. Destaca-se que a adoção indiscriminada da
geolocalização para fins de prova junto aos tribunais do
trabalho no Brasil, via de regra pode ameaçar a dignidade
humana em prol da produtividade. A coleta de dados sem
justificativa concreta e plausível à luz da legislação e
também na inteligência de autores e pensadores do direito
pode ser entendida e interpretada como abusiva, e
decisões judiciais têm reforçado a importância de
1
VASCONCELOS, Maria Inês Advogada. Graduada em Direito pela UFMG e Pós graduação em Direito
Empresarial pela PUC MINAS. Master in Advanced Tecnologies in Education pela Must University-
USA.
respeitar os direitos fundamentais dos trabalhadores. A
tecnologia existe para promover também justiça na
existência humana. A harmonização entre a LGPD e o
uso de dados de geolocalização como prova nos
processos trabalhistas é uma intersecção que requer
sensibilidade e cautela. Sem óbices, o respeito à
privacidade e aos direitos humanos deve ser preservado
em meio ao avanço tecnológico no mundo do trabalho
contemporâneo.

Palavras chave: Geolocalização, Privacidade,


Tecnologia, Horas Extras, Ética.

Abstract:

This article addresses the debate on the use of


geolocation as a means of proving overtime in the context
of labor lawsuits. Under the prism of Brazilian
legislation, privacy and protection of personal data are
fundamental, especially in view of the monitoring
technologies adopted by companies. It is noteworthy that
the indiscriminate adoption of geolocation for purposes
of proof before the labor courts in Brazil, as a rule, can
threaten human dignity in favor of productivity. The
collection of data without concrete and plausible
justification in the light of the legislation and also in the
intelligence of authors and legal thinkers can be
understood and interpreted as abusive, and judicial
decisions have reinforced the importance of respecting
the fundamental rights of workers. Technology exists to
also promote justice in human existence. Harmonization
between the LGPD and the use of geolocation data as
evidence in labor proceedings is an intersection that
requires sensitivity and caution. Without obstacles,
respect for privacy and human rights must be preserved
in the midst of technological advances in the
contemporary world of work.

Keywords: Geolocation, Privacy, Technology, Overtime,


Ethics.
1. Introdução
1.1 O Uso de Dados de Geolocalização como
Prova nos Processos Trabalhistas no Brasil:
desafios e implicações.

Nos últimos 10 anos, a tecnologia tem desempenhado


um papel cada vez mais importante na coleta de
evidências em diversos contextos, incluindo a esfera
trabalhista. O uso de dados de geolocalização como prova
junto aos processos trabalhistas no Brasil é uma prática
que levanta questões éticas, legais e de privacidade.
Embora ofereça benefícios em termos de precisão e
objetividade, essa abordagem também suscita
preocupações relevantes.

É inegável que a geolocalização tem potencial para


fornecer informações cruciais no que diz respeito às
atividades laborais. Empresas podem utilizar esses dados
para verificar a presença de funcionários em determinados
locais, bem como para rastrear horários de entrada e saída.
Isso pode ser especialmente útil em situações nas quais
seja objeto de controvérsia os reais horários
desempenhados e o cumprimento de jornadas de trabalho.
No entanto, a implementação indiscriminada da
geolocalização como meio de prova suscita análises.

A privacidade dos trabalhadores é um direito


fundamental, e o uso desses dados levanta preocupações
sobre vigilância excessiva e invasão de privacidade. O
mero fato de ser monitorado constantemente pode afetar
negativamente o bem-estar dos funcionários, gerando um
ambiente de desconfiança e ansiedade, além de danos ao
aparato psicológico quando a monitoração vem acoplada
de gestão por psicoterror e outras dinâmicas alienantes que
sobrecarregam o trabalhador do ponto de vista emocional.

Além disso, questões legais relacionadas à coleta,


armazenamento e uso desses dados também surgem
durante a vigência e posteriormente ao seu encerramento.
O Marco Civil da Internet e a Lei Geral de Proteção de
Dados (LGPD) estabelecem diretrizes para a utilização de
informações pessoais, incluindo dados de localização. O
uso não autorizado desses dados pode resultar em sérias
infrações legais.

Para equilibrar a coleta de provas dentro do processo


e conciliar essa dinâmica com Direito a preservação da
privacidade dos trabalhadores, é crucial a implementação
de salvaguardas adequadas. Empresas devem adotar
políticas transparentes e estratégias de consentimento
informado ao utilizar dados de geolocalização. A coleta
deve ser justificada por necessidades reais e proporcionais,
evitando abusos e excessos e pode ser feita através de
termos de consentimento expressos, em que tal
autorização seja colhida sem coação.

Em síntese, o uso de dados de geolocalização como


prova nos processos trabalhistas no Brasil não é irrestrito,
qualificando-se como uma ferramenta que apresenta
potencial e desafios. A busca pelo equilíbrio entre a
obtenção de evidências precisas e a preservação dos
direitos dos trabalhadores é fundamental para garantir um
ambiente justo e ético. A regulamentação clara e o respeito
aos princípios de privacidade e proteção de dados são
essenciais para orientar o uso responsável dessa tecnologia
no contexto legal.

2. Desenvolvimento
2.1 Contexto histórico, e o fato social
contemporâneo.
Harari (2018 registra que: “No século XXI, o desafio
apresentado ao gênero humano pela tecnologia é
indubitavelmente muito maior do que o desafio que
representaram, em época anterior, os motores a vapor, as
ferrovias e a eletricidade.”

O fato social não pode ser negligenciado, se


assemelhando às sombras projetadas na caverna de Platão,
se evidencia os desafios éticos e jurídicos advindos de
uma pseudo “ditadura digital”, uma vez que a sociedade
enfrenta novas questões relacionadas à privacidade, aos
direitos fundamentais e à proteção dos dados pessoais em
um mundo cada vez mais dominado pelas tecnologias
digitais.

A produção de prova de geolocalização para fins de


comprovação de horas extras vem sendo matéria debatida
com frequência e se faz cada vez mais presente nas cortes
judiciais brasileiras. Conforme a perspectiva dos
tribunais, a produção probatória no contexto do processo
trabalhista deve restringir-se aos elementos vinculados
estritamente ao desempenho laboral e à existência do
contrato de trabalho, evitando, assim, qualquer surpresa
excessiva e desproporcional em aspectos pessoais da vida
do indivíduo. Tais aspectos se encontram regulados.

De acordo com a redação expresso no inciso VI do


artigo 7º da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais
(LGPD), é essencial assegurar a privacidade e proteção
dos dados pessoais, especialmente no contexto das
tecnologias de geolocalização, em consonância com a lei,
pois a eventual dispensa da exigência do consentimento
não desobriga os agentes de tratamento das demais
obrigações previstas nesta Lei, especialmente da
observância dos princípios gerais e da garantia dos direitos
do titular.

Embora a crescente adoção de tecnologias de


monitoramento e controle de jornada por parte das
empresas possa trazer benefícios em termos de
organização do trabalho e prevenção de fraudes, é preciso
atentar para os riscos associados à invasão da privacidade
dos trabalhadores. Afinal, a coleta massiva de dados de
geolocalização pode ser interpretada como uma violação
dos direitos fundamentais à intimidade, à vida privada e à
imagem das pessoas, garantidos pelos incisos XX, XII e
LXXIX do artigo 5º da Constituição da República
Federativa do Brasil, os quais devem ser protegidos
também em concordância com as normas de proteção de
dados, como expresso nas diretrizes da LGPD e, também,
de forma ampliada, destaca-se ainda a Lei Nº 9.307, de 23
de setembro de 1996, que trata da arbitragem como meio
alternativo de solução de conflitos, reforçando a
importância do equilíbrio entre a busca pela verdade
processual e a salvaguarda dos direitos individuais.

A tecnologia, por mais que traga inúmeras vantagens


para a sociedade, também pode se tornar uma espécie de
"treva" quando utilizada de forma indiscriminada ou sem o
devido respeito à ética e aos valores humanos. A adoção
da geolocalização para controle de jornada, sem o
consentimento expresso e esclarecido do trabalhador, pode
gerar um cenário distópico, onde a privacidade é violada e
a dignidade humana é comprometida em nome da
produtividade e do lucro.

Além disso, a tecnologia pode ser empregada no


“modo” emancipação, com cuidados no seu emprego e no
seu percurso para evitar a alienação laborativa, já que
produz uma complexa alteração na organização de
trabalho. Caso contrário, como alerta James Bridle em sua
“Idade das trevas”2, estaríamos ampliando poder sem
discernimento. “A história da automação e do
conhecimento computacional, desde os moinhos de
algodão até os microprocessadores, não é apenas de
máquinas qualificadas que aos poucos tomam o lugar de
operários humanos. É também uma história de
concentração de poder em menos mãos, e concentração de
discernimento em menos cabeças. O preço da perda de
poder e discernimento é, por fim, a morte.”

O requerimento de provas digitais como diligências


no Google, Facebook, Apple, é uma questão delicada tal
qual um cristal fino. Com uma perspectiva humanista de
natureza legal e ética que vem causando recorrentes
análises jurídicas e debates sobre a proteção dos direitos
individuais, uma vez que pode comprometer a privacidade
dos indivíduos sem justificativa legítima.

Um dos maiores paradoxos ligadas ao tema é a


complexidade do debate que se trava acerca dos impactos
de tais diligências sobre a privacidade dos indivíduos,
trabalhadores ou partes no processo, sem justificativas
legítimas.

2
Bridle, James (2019). A nova idade das trevas: a tecnologia e o fim do futuro. São Paulo: Todavia.
É mister salientar que a ciência do direito, como
campo de estudo, transcende a filosofia pura do direito ao
abraçar uma abordagem multidisciplinar e interconectada.
Ela busca compreender as complexidades da aplicação e
evolução das normas jurídicas em um contexto social,
político e tecnológico em constante transformação.
Enquanto a filosofia do direito explora as bases teóricas e
os princípios fundamentais, a ciência do direito abraça a
dinâmica prática e empírica da legislação, dos sistemas
judiciais e da interação entre o direito e a sociedade.

Nessa direção e sentido, a sútil perspectiva da


violação dos direitos de privacidade por si só recomenda
cautela no enfrentamento deste tema; muito embora alguns
magistrados entendam que a prova digital seja mais eficaz,
auto declarativa, auto produtiva e dispensar autenticação.

Várias inquietações surgem diante do sistema em


vigor e do conflito com a suposta pertinência das provas
digitais.

Como todas as outras formas de obtenção de provas,


estas são regidas por normas que visam preservar Direitos
fundamentais, garantindo ética e justiça no processo,
reafirmando de forma incontestável a proteção da
privacidade dos titulares ou partes envolvidas.

As alternativas tecnológicas coletadas entram em


conflito com os direitos da personalidade. Retomando a
trajetória percorrida, a disseminação prejudicial da era
digital tem obstaculizado o progresso. O confronto entre
essas duas esferas é a expressão desse embate. Na
atualidade, os magistrados podem deparar-se com a
imensa quantidade de informações ao aceitar um tipo de
prova dessa dimensão e natureza, o que pode não raro
pode acarretar consequências significativas, sobretudo,
porque os dados de geolocalização são dados pessoais do
trabalhador.

De acordo com a interpretação dos artigos 765 da


CLT e 370 do CPC, o magistrado pode rejeitar provas
desnecessárias ou irrelevantes, assegurar a proteção dos
direitos fundamentais dos trabalhadores e inibir práticas
invasivas que violem a privacidade sem uma justificação
plausível. A violação da privacidade em redes sociais e os
efeitos prejudiciais da tecnologia são temas discutidos de
maneira abrangente.
As esferas públicas e privadas são demarcadas por
uma barreira sólida, erguida para evitar equívocos e
consequentemente injustiças. Enquanto os dados de um
celular pertencem ao seu titular, o magistrado exerce uma
função de interesse público. Então decorre a relevância de
uma tutela jurisdicional inibitória, a fim de evitar que os
desvios no uso das tecnologias e na obtenção de provas
como esta violem valores de inestimável importância,
sendo a liberdade o mais significativo entre eles. A
indispensabilidade da observância dos Direitos
Fundamentais e do Devido Processo Legal é indiscutível.

Observe-se que os trabalhadores (parte mais frágil no


enlace do trabalho) tem celulares cooperativos e portam
também celulares pessoais. O primeiro é um insumo
utilizado para o trabalho cuja finalidade é o
monitoramento de produtividade e acesso aos
trabalhadores para fim de contato. Já o celular particular, é
um bem privado destinado a uso pessoal e íntimo do
trabalhador e seus dados pertencem ao trabalhador.

As decisões abaixo descritas nos processos 0021176-


14.2019.5.04.00083 e 1000892-21.2020.5.02.03854
3
TRT-4 00211761420195040008, Data de Julgamento: 02/06/2022, 4ª Turma, RELATOR: ANDRE
REVERBEL FERNANDES.
4
TRT-2 10008922120205020385 SP, Relator: MARCOS CESAR AMADOR ALVES, 8ª Turma -
reforçam a importância de se respeitar a privacidade e os
direitos fundamentais dos trabalhadores, não admitindo a
utilização indiscriminada desse meio de prova.de
geolocalização no processo trabalhista.

AUSÊNCIA DE NULIDADE POR CERCEAMENTO


DE DEFESA. INDEFERIMENTO DA PRODUÇÃO DE
PROVAS DIGITAIS. GEOLOCALIZAÇÃO. LEI
GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS (LGPD). O
conjunto probatório constante dos autos já se demonstrou
suficientemente apto ao deslinde do feito, inclusive no
tocante à discussão relacionada à jornada de trabalho e às
horas extras. Desse modo, o indeferimento da produção
de provas digitais não cerceou o direito de defesa do réu.
Ademais, a geolocalização do aparelho celular particular
da reclamante apresentaria, quando muito, apenas um
indício de seu paradeiro, sendo inviável presumir, de
forma absoluta, que a obreira sempre estivesse com seu
celular nos momentos em que se encontrava trabalhando
em benefício do reclamado, sobretudo porque não se
tratava de telefone móvel corporativo. Não se pode
olvidar, por fim, do direito fundamental à proteção dos
dados pessoais, inclusive nos meios digitais (artigo 5º,
LXXIX, da CF/88, recentemente acrescido pela Emenda
Constitucional nº 115/2022), bem como do respeito à
privacidade e à intimidade como fundamento da proteção
dos referidos dados (artigo 2º, I e IV, da Lei nº
13.709/2018 - LGPD). Preliminar rejeitada. (TRT-2
10008922120205020385 SP, Relator: MARCOS CESAR
AMADOR ALVES, 8ª Turma - Cadeira 5, Data de
Publicação: 21/07/2022)
Cadeira 5, Data de Publicação: 21/07/2022.
CERCEAMENTO DE DEFESA. INOCORRÊNCIA.
INFORMAÇÕES DE GEOLOCALIZAÇÃO. A produção
de prova requerida pela ré a respeito das informações de
geolocalização da reclamante atentaria contra os direitos
fundamentais de intimidade e privacidade da trabalhadora
previstos no art. 5º, incisos X e XII, da CF/88. O
deferimento de tal medida apenas se justificaria caso os
fatos que a demandada pretendesse demonstrar com a
utilização da referida prova não pudessem ser apurados
de outra forma menos gravosa. A ré dispunha de outros
meios de prova para comprovar os horários de trabalho
realizados pela autora. Ainda, a prova produzida nos
autos é suficiente para o deslinde do litígio. Por fim a
desnecessária produção de provas atenta contra os
princípios da celeridade e da economia processual.
Recurso da reclamada desprovido. REGISTROS DE
HORÁRIO. INVALIDADE. Os registros de horário
apresentados pela reclamada são inválidos como meio de
prova, porque resta demonstrado, por intermédio da prova
testemunhal a realização de jornada mais extensa do que a
anotada. Recurso ordinário da reclamada desprovido no
aspecto. (TRT-4 - ROT: 00211761420195040008, 4ª
Turma, Data de Publicação: 02/06/2022)
Pela pertinência, transcreve-se na sequência, trecho
do voto contido no Agravo de Instrumento (AI) 0001020-
73.2021.5.13.0011, elaborado pelo Desembargador
Wolney Macedo, também, no mesmo sentido:
“As instituições financeiras têm insistido nesta prova.
(...) A geolocalização pretendida por ele é do celular do
trabalhador. É um dado sensível. As teses que estão
chegando agora é que a gente vá agora expor toda rotina
do trabalhador, a partir do seu celular particular.
Colocar isso no processo pra fazer prova, cujo ônus é da
outra parte é uma tese devastadora do ponto de vista da
intimidade do cidadão. Isso tem sido repetido e insistido.
Porque, bom, se a empresa desse um equipamento, para
que ele faça, aí a geolocalização vem do próprio
equipamento; aí, é diferente. Agora, do celular do
trabalhador pra fazer prova, onde o ônus é dela. É algo
bastante preocupante. Já tivemos oportunidade dessa
Turma ter decidido dessa forma, deixa-me pontificar."
[texto original]

Para finalizar, no que pertine à compreensão dos


pretórios, a decisão prolatada em sede de Mandado de
Segurança, pelo TRT da 3ª Região:

DADOS DE GEOLOCALIZAÇÃO. REQUISIÇÃO.


OFENSA AO DIREITO AO SIGILO TELEMÁTICO E
À PRIVACIDADE. Embora a prova digital da
geolocalização possa ser admitida em determinados
casos, ofende direito líquido e certo ao sigilo telemático e
à privacidade, a decisão que determina a requisição de
dados sobre horários, lugares, posições da impetrante,
durante largo período de tempo, vinte e quatro horas por
dia, com o objetivo de suprir prova da jornada a qual
deveria ser trazida aos autos pela empresa. Inteligência
dos incisos X e XII do art. 5º da CR.
(TRT-3 - MS: 00111555920215030000 MG 0011155-
59.2021.5.03.0000, Relator: Marco Antonio Paulinelli
Carvalho, Data de Julgamento: 27/10/2021, 1a Secao de
Dissidios Individuais, Data de Publicação: 04/11/2021.)
O inciso I do artigo 7o da LGPD determina que: "O
tratamento de dados pessoais somente poderá ser realizado
nas seguintes hipóteses: (...) I - mediante o fornecimento
de consentimento pelo titular", fomentando ainda mais as
decisões acima.

Na contemporaneidade, emerge uma realidade


perturbadora: a dos trabalhadores cativos digitais. Esses
indivíduos estão profundamente envolvidos em
ecossistemas digitais, sendo constantemente monitorados e
explorados por plataformas e empresas que visam extrair
valor de suas interações online. Eles se tornam cativos não
apenas por escolha, mas também pela complexa rede de
algoritmos que os mantém engajados em um ciclo
interminável de uso de aplicativos, redes sociais e serviços
online. Essa forma moderna de catividade transcende o
ambiente físico, atingindo a esfera digital, onde
empregados são transformados em commodities para fins
de lucro.

Figura 1 - Cativos digitais - Elaborado pela autora

Em verdade as redes sociais " põe a funcionar" desse


determinado modo, ainda que involuntariamente, seres
humanos em cativos digitais. Esse modo é o domínio
completo de nosso cotidiano, com a apropriação de nossas
vidas, nosso corpo, gestos, gostos e até nosso pensamento
(...) Duplamente explorado ele compra o próprio jugo: o
"aparelho (se quisermos lembrar Flusser), o "dispositivo"
(se quisermos lembrar Foucault) que transforma cada um
em cativo digital social.” 5A tecnologia, como vetor, é

5
JUNIOR, Maciel, 2018, p. 11-33.
amorfa, desviada para a ferramenta que causa danos à
personalidade, bem como insumo de censura, vigilância,
adestramento e monitoração, reduzindo pessoas e o valor
do trabalho.

No entanto, a tecnologia, como um instrumento


originalmente admirável, quando desviada para prejudicar
a personalidade, torna-se uma ferramenta vil e cruel
quando desvirtuada de seus princípios fundamentais. O
desconforto e a invasão de privacidade serão as marcas
dessa nova era. A utilização de provas obtidas por meio de
geolocalização para a confirmação de horas extras nos
conduz verdadeiramente a uma situação obscura, dentro da
conjuntura de hiper vigilância e comércio de dados
digitais.

É inegável que o devido processo legal se adapta à


preservação dos direitos de privacidade e à proteção dos
dados pessoais, inclusive nos meios digitais. O artigo 74
da CLT atribui ao empregador a responsabilidade pelo
controle da jornada de trabalho, salvo em casos de
estabelecimentos com menos de 20 empregados, tornando
facultativa essa prática. Contudo, é importante destacar
que a coleta de dados de geolocalização sem uma
justificativa plausível invade a esfera de proteção pessoal
dos indivíduos, extrapolando os limites do controle de
jornada.

Figura 2 – segurança de dados – elaborado pela


autora

A violação de trabalho não recai apenas sobre a


pessoa do trabalhador, mas também sobre a integridade do
próprio conceito de dignidade laboral. O monitoramento
intrusivo/invasivo das atividades pessoais dos
trabalhadores, muitas vezes por meio de tecnologias
digitais, coloca em risco não apenas a privacidade
individual, mas também a noção de equilíbrio e respeito
nas relações empregatícias. A subordinação não recai
sobre a pessoa do empregado, isso é cardeal no Direito do
Trabalho e por assim ser, a prova telemática se
considerarmos que os dados digitais são de propriedade do
empregado, leva à intensos debates.

É inegável que a tecnologia trouxe novas


possibilidades de controle e gerenciamento, mas é
imperativo que tais avanços sejam regulamentados para
evitar excessos e abusos. A subordinação no ambiente de
trabalho não pode ser estendida para invadir esferas
pessoais, mantendo-se fundamentada em uma abordagem
equitativa e respeitosa das liberdades individuais.

Ao considerar o uso de provas digitais no contexto


laboral, é crucial reconhecer que as normas que regem
essas evidências não podem estar dissociadas ou mesmo
alienada dos princípios fundamentais que sustentam o
sistema jurídico e seu arcabouço. A privacidade e os
direitos fundamentais devem ser protegidos em todas as
etapas do processo legal, de tal sorte a garantir que a
coleta e apresentação de provas digitais não comprometam
valores éticos e sociais mais amplos. Isso é condição “sine
qua non” e exige a adoção de regulamentações internas
claras e a capacitação dos operadores do direito para
avaliar a legitimidade e a relevância dessas evidências,
evitando julgamentos baseados ou mesmo alicerçados em
invasões de privacidade.

Não obstante, a discussão sobre o uso de provas


digitais no contexto trabalhista transcende a esfera legal,
tocando questões éticas e sociais mais profundas. A busca
por um equilíbrio entre a proteção da privacidade
individual e a busca pela verdade no processo judicial é
mais que um desiderato; é um desafio complexo, mas é
um imperativo para preservar a justiça e a integridade nas
relações de trabalho. O estabelecimento de diretrizes
sólidas, baseadas em valores éticos e princípios de
respeito, é fundamental para garantir que as provas digitais
sejam usadas de maneira responsável e justa no âmbito
jurídico.

Nessa direção e sentido, o Juiz, por sua vez, pode


indeferir as provas desnecessárias ou inúteis, nos termos
dos arts. 765 da CLT e 370 do CPC. Assim, cabe ao
magistrado zelar pela proteção dos direitos fundamentais
dos trabalhadores e coibir práticas invasivas que violem a
privacidade sem justificativa plausível.

É preciso reconhecer que a questão da privacidade se


choca frontalmente com as esferas da intimidade, e a visão
de que a coleta excessiva de dados de geolocalização é
desnecessária, invasiva e agressiva é compartilhada por
muitos juristas e especialistas em direitos humanos. Essa
prática fere princípios fundamentais de proteção à
privacidade, bem como os demais direitos humanos, e
precisa e DEVE ser coibida pelo Poder Judiciário.

3. Conclusão:

A produção de prova consistente na geolocalização


do empregado, colide frontalmente com os direitos de
liberdade e esferas de intimidade do trabalhador. O uso de
celular pessoal no trabalho é um direito do trabalhador e o
equipamento é um bem de natureza privada. Portanto, sua
utilização não pode ser interpretada como consentimento
para coleta indiscriminada de dados de geolocalização.

Conclui-se, portanto, que a produção de prova de


geolocalização no processo pode ser considerada
desnecessária, visto que a cognição judicial já foi
satisfatória se com base nas demais provas colhidas
houver como se aferir a jornada. Por outro lado, sendo o
juiz, o guardião da justiça, tem a prerrogativa de poder
determinar as diligências necessárias ao deslinde do
processo, e o poder de indeferir provas desnecessárias ou
inúteis, na conformidade dos arts. 765 da CLT e 370 do
CPC. Essa postura é essencial para garantir o respeito à
privacidade, à dignidade e aos direitos fundamentais dos
trabalhadores em meio ao avanço tecnológico e as "trevas"
que podem cercar o uso inadequado das inovações no
mundo do trabalho.
Referências

-BRIDLE, James (2019). A nova idade das trevas: a


tecnologia e o fim do futuro. São Paulo: Todavia.

- HARARI, Yuval Noah. 21 lições para o século 21.Trad.


Paulo Geiger. 1° ed. São Paulo: Companhia das Letras.
2018.

- TRT-2 – ROT: 10008922120205020385 SP, Relator:


MARCOS CESAR AMADOR ALVES, 8ª Turma -
Cadeira 5, Data de Publicação: 21/07/2022.

- TRT-3 - ROT: 00108133920205030079 MG, Relator:


Angela C. Rogedo Ribeiro, 1ª Turma, Data de Julgamento:
04/10/2022, Data de Publicação: 07/10/2022.

- TRT-4 – ROT: 00211761420195040008 AM, Relator:


ANDRE REVERBEL FERNANDES, 4ª Turma, Data de
Julgamento: 02/06/2022.
- TRT-13 - ROT: 00004528720225130022 PB, Relatora:
DESEMBARGADORA MARGARIDA ALVES DE
ARAUJO SILVA, 1ª Turma, Data de Julgamento:
07/03/2023, Data de Publicação: 13/03/2023.

- TST - AIRR: 00010207320215130011 PB, Relator:


EVANDRO PEREIRA VALADAO LOPES, Data de
Publicação: 05/05/2023.

Você também pode gostar