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Os Livreiros Lisboetas durante o Estado Novo

O Caso específico do livreiro Sá da Costa

Unidade Curricular: Culturas Urbanas e Populares


Docente: Luísa Tiago de Oliveira
Discente: Teresa Osório
Mestrado em História Moderna e Contemporânea
Ano Lectivo: 2016/2017
1. Introdução

Este trabalho tem como objectivo principal perceber como se exercia a


actividade de livreiro durante o Estado Novo e quais os constrangimentos
estabelecidos através da política coorporativista, da censura e do contexto socio-
cultural, abordando o caso específico da Livraria Sá da Costa.
Umas das principais formas de mediação da leitura, acontece nos locais de
venda através do aconselhamento do vendedor do livro, o livreiro. Para além dos
críticos literários, das comunidades de leitura ou até da orientação pessoal de
professores, amigos ou familiares, o livreiro exerce uma função fulcral no incentivo à
leitura de determinada obra. E ao considerar-se aqui o livreiro, deve-se abranger toda
a envolvência em que ele se insere, isto é, há que ter em conta o espaço em que ele
comunica e sobre o qual ele actua, que é a livraria. Este local ao mesmo tempo que é
subordinado ao gosto e disposição (cada vez menos autónomos) do livreiro, também
exerce sobre ele determinada influência. Portanto, quando se objectifica o livreiro é
fulcral ter em atenção que livreiro e livraria se acoplam no contexto de mediação de
leituras.1
Importa assim investigar como se dava a actuação deste actor num país onde
existiam taxas elevadas de analfabetismo 2, em que a censura na indústria livreira era
realizada frequentemente à posteriori, com os livreiros a terem que liquidar os livros
censurados e em que a política coorporativista dominava o sector ainda que a
integração no Grémio Nacional de Editores e Livreiros fosse de carácter faculativo.

2. O Papel do Livreiro no Comércio do Livro


1
MEDEIROS, Nuno (2006) Editores e livreiros: que papéis de mediação para o livro? em: Diogo
Ramada Curto (org.), Estudos de Sociologia da Leitura em Portugal no século XX, Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, p. 358 e em MEDEIROS, Nuno, MELO, Daniel, MEDEIROS, Fá tima Ribeiro de,
LIVREIROS, Sá da Costa (2013) Dossiê os Livreiros e o Seu Património, Cultura Revista de Histó ria
e Teoria das Ideias , volume 32, p. 7
2
MEDEIROS, Nuno (2008) Editores e Livreiros no Estado Novo: O papel do Grémio Nacional dos
Editores e Livreiros, em Análise Social, Vol. XLIII,( 4º) 2008, p. 796

1
Sendo a leitura considerada no âmbito deste trabalho como o processo de
apropriação de um texto na sua amplitude física e linguística, revela-se de extrema
importância perceber como se dá a posse de uma obra e quem são os seus mediadores.
O processo de recepção de um livro tem origem, em primeiro lugar, no autor que
produz o conteúdo, seguindo-se-lhe na cadeia produtiva, o editor que serve de
mediador entre os autores e os mercados e, por fim, os distribuidores onde se inserem
os livreiros. O processo finda quando alguém adquire um livro.
Neste sistema da indústria editorial, o livreiro revela-se como a última
instância entre o livro e o leitor. É assim importante apurar quais as estratégias
utilizadas por este actor para ter êxito nas funções de filtrar, recomendar e influenciar
a leitura.
Existem no geral dois tipos de perfis de livreiros: aqueles que servem como
aprovisionadores de determinada obra, já pré-conhecida pelo leitor e aqueles que
aconselham e sugerem determinado livro ou tema a quem lhes entra pelo
estabelecimento dentro, assumindo o papel de alavanca do gosto pela leitura e
extravasando o mero conhecimento de um título, através da recomendação de uma
determinada edição, autor, prefaciador ou assunto.3
Mas nem só do grau de conhecimento das obras se faz o sucesso de um
livreiro. A disposição da livraria também contribui para o êxito comercial de um
estabelecimento. Até metade da década de setenta, as livrarias eram quase os únicos
locais onde eram comercializados livros, o que lhes dava um grande dinamismo, que
exigia uma certa preocupação com a montra e com a disposição e organização gerais e
ainda a criação de espaços confortáveis de leitura e troca de ideias. Para representar o
seu papel social, o livreiro usufrui assim de um espaço que pode utilizar a seu bel-
prazer. Tal qual o artista faz com o palco.
Topograficamente falando, a livraria possui a capacidade de potencializar ou
não a leitura e a compra de livros, frequentemente esta capacidade de influência é
anterior à do livreiro. Por exemplo, se uma montra convocasse o olhar de um
transeunte, mais rapidamente ele entrava num estabelecimento. Em 1944, em resposta
ao inquérito de Irene Lisboa, A. M. Pereira referiu-se à importância das montras: “Há
sociedades comerciais e artísticas que estudam o aproveitamento e a apresentação das
montras.”4
Existe aliás quem defenda que a existência, no interior das livrarias, de
corredores largos que permitam uma observação e um passeio demorados, a criação
de espaços de manejo do livro, a organização das prateleiras por géneros e a
criatividade dos expositores são preponderantes para a sedução a um leitor. 5 Também
a realização de lançamentos de obras, convívios entre autores, exposições de arte e
encontros de membros de clubes de leitura são formas de ocupação da livraria, que se
assume assim, como um espaço multiusos e não apenas como um mera loja comercial.
Destas variadas estratégias de apropriação do espaço, facilmente se deduz que
a profissão de livreiro requeria uma capacidade especial de entrelaçar a memória e o
3
MEDEIROS, Nuno (2006) Editores e livreiros: que papéis de mediação para o
livro? em: Diogo Ramada Curto (org.), Estudos de Sociologia da Leitura em Portugal
no século XX, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, p. 359
4
LISBOA, Irene (1944) Inquérito ao Livro em Portugal – Editores e Livreiros,
Lisboa: Seara Nova, vol. I, p. 8
5
MEDEIROS, Nuno (2006) Editores e livreiros: que papéis de mediação para o
livro? em: Diogo Ramada Curto (org.), Estudos de Sociologia da Leitura em Portugal
no século XX, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, p. 361

2
conhecimento de temas, obras e autores com acontecimentos actuais, relacionando-os
e extraindo deles possibilidades de dinamização da sua actividade que culminavam,
na melhor das hipóteses, na arrecadação de novos leitores ou frequentadores das suas
livrarias.
Falta ainda referir que não raras vezes, a profissão de livreiro era concebida pelo seu
carácter menos comercial do que afectuoso.

2.1. O Grémio Nacional dos Editores e Livreiros

3
O início do século XX foi um período bastante próspero para a actividade
editorial e livreira, criaram-se inúmeros estabelecimentos e havia uma relativa
salubridade no sector, de que a quantidade de editores-livreiros e editores de Camilo é
exemplo.6 No entanto, só em 1923 é que os trabalhadores desta área económica se
associaram, ainda que sob a alçada de outra organização. Assim, data desde ano a
criação da subsecção de Livreiros da Associação Comercial dos Lojistas de Lisboa,
integrada na Associação Comercial dos Lojistas de Lisboa. É no âmbito desta
primeira tentativa de cooperação que se registam as primeiras discussões à volta dos
descontos sobre os livros (ainda bastante actuais 7) e se estabelece a primeira divisão
categórica entre actores do sector: os editores, os livreiros e os editores-livreiros.8
Três anos mais tarde, concretizando-se os desejos de autonomização 9, a
Subsecção de Livreiros desmembra-se da Associação Comercial de Lojistas de Lisboa
e passa a chamar-se Associação de Classe dos Livreiros de Portugal, ampliando a sua
actividade a todo o país.
Esta associação com sede na Praça Luís de Camões, número 46, foi a primeira
a criar as feiras do livro em Lisboa e no Porto, estimuladas certamente pelo Almirante
Augusto Osório, que tinha estado num evento do género em Madrid. As duas
primeiras feiras do livro portuguesas tiveram lugar em Lisboa, no Rossio e no Porto,
na Praça da Liberdade.
Com o ingresso de Oliveira Salazar nos comandos da nação e a promulgação
da Constituição de 1933, emerge em Portugal a economia do corporativismo. Este
tipo de organização económica possibilitava o intervencionismo do Estado como
regularizador e vigilante, ao mesmo tempo que garantia a livre iniciativa privada. A
única diferença entre o capitalismo e o corporativismo português é que a iniciativa
privada e o lucro existiam dentro ou integrados num quadro nacional. Ao Estado cabia
o papel de integrar para controlar não económica ou financeiramente, mas sim
ideológica e simbolicamente. Conduzindo e fomentando um pensamento nacionalista.
A existência de corporações extinguia assim as divergências advindas da iniciativa
privada, servindo elas próprias de centro de convergência comum. 10
É neste contexto que ao nono dia do mês de maio de 1933, é assinado um
alvará pelo Instituto de Seguros Sociais Obrigatórios e de Previdência Social,
dependente do Presidente do Conselho que altera o nome da associação para
Associação de Classe dos Editores e Livreiros de Portugal (ACEL) e lhe reserva
novos estatutos, dos quais não existem vestígios.11

6
GUEDES, Fernando (1993), Os livreiros em Portugal e as suas Associações desde o
século XV até aos nossos dias, Lisboa: Verbo, p. 83
7
Nuno, MELO, Daniel, MEDEIROS, Fátima Ribeiro de, LIVREIROS, Sá da Costa
(2013) Dossiê os Livreiros e o Seu Património, Cultura Revista de História e Teoria
das Ideias , volume 32, p. 6
8
GUEDES, Fernando (1993), Os livreiros em Portugal e as suas Associações desde o
século XV até aos nossos dias, Lisboa: Verbo, p. 85
9
MEDEIROS, Nuno (2008) Editores e Livreiros no Estado Novo: O papel do Grémio
Nacional dos Editores e Livreiros, em Análise Social, Vol. XLIII,( 4º) 2008, pp. 799-
800
10
ROSAS, Fernando (1996) Dicionário de História do Estado Novo, Venda Nova:
Bertrand, 1º vol, pp. 216-219
11
GUEDES, Fernando (1993), Os livreiros em Portugal e as suas Associações desde
o século XV até aos nossos dias, Lisboa: Verbo, p. 89

4
Entre os organismos organizados pelo Estado estavam os grémios, instituídos
em 1933 como obrigatórios, pelo Decreto-Lei nº 23 049 e a 3 de dezembro de 1934
seria promulgado o Decreto-Lei nº 24 715, que instaurava os grémios facultativos.
Estas organizações gremiais opcionais, apesar de poderem ser criadas por iniciativa
dos associados, eram obrigadas a requerer a sua formação ao Subsecretário de Estado
das Corporações e Previdência Social, dependendo do mesmo e ficando sujeitas a
regular fiscalização e vigilância do Instituto Nacional do Trabalho e Previdência.
Também na sua ação técnica e económica deviam seguir as orientações traçadas pelo
Governo, sendo todas por igual obrigadas a subordinar “os respectivos interesses ao
interesse da economia nacional, em colaboração com o Estado e com os organismos
corporativos superiores e repudiar simultaneamente a luta de classes e o predomínio
de plutocracias”.12
Quatro anos mais tarde, no dia 8 de dezembro de 1938, instaurava-se o
Decreto-Lei nº 29 232, em que se estipulava a transfiguração das associações
patronais em grémios, salvo aquelas cujos membros refletissem uma heterogeneidade
impossível de se adaptar ao sistema gremial e, por isso, teriam permissão para manter
os seus estatutos enquanto associações.
Pese embora se tivessem verificado algumas resistências na transformação da
Associação da Classe dos Editores e Livreiros em Grémio Nacional de Editores e
Livreiros, no primeiro dia de fevereiro do ano de 1939 a Subsecretaria de Estado das
Corporações e Previdência Social recebeu todos os documentos necessários à
integração da ACEL no corporativismo nacional. A 13 de junho do mesmo ano foram
aprovados os primeiros estatutos do grémio recentemente criado, estatutos esses que
sofreram alterações em 1941 e 1957.
Um ano depois é eleita a primeira direção constituída por António Maria
Pereira (Parceria António Maria Pereira), João de Araújo Morais (João de Araújo
Morais, Ltdª, mais tarde Livraria Morais) e José Francisco Oliveira (Empresa Literária
Fulminense).
Todos os agremiados estavam proibidos de integrar qualquer organização
internacional ou participar em algum evento fora do país sem a devida autorização e a
eleição dos corpos diretivos e administrativos estavam sujeitos, assim como a escolha
ou consulta de advogados, médicos, professores ou empregados, à aprovação do
Subsecretário de Estado das Corporações e Previdência Social. 13 Apesar deste
controlo, a que se devem juntar a censura e o estabelecimento do livro escolar único,
os livreiros, editores e editos-livreiros lisboetas optaram, na sua maioria, pela
aderência ao grémio, menos por concordarem com o regime, do que pelas benesses
que esta entidade poderia trazer, num contexto sociológico marcado pelo
analfabetismo e em que, por exemplo, a permissão para editar e distribuir o livro
escolar único era indispensável para o equilíbrio de contas deste sector.14
Pelo seu carácter facultativo, no Grémio Nacional dos Editores e Livreiros não
se verificou uma influência política direta do Estado na atividade quotidiana editorial
e livreira, mesmo nos tempos de António Ferro e da sua política do espírito.
12
Decreto-Lei nº 24 715, de 3.12.1934, Artº .1º, 2º, 10º e 13º em ROSAS, Fernando
(1996) Dicionário de História do Estado Novo, Venda Nova: Bertrand, 1º vol, pp.
222-223
13
Estatutos do Grémio Nacional dos Editores e Livreiros (1939), Artº. 3º e 29º (em
anexo)
14
MEDEIROS, Nuno (2008) Editores e Livreiros no Estado Novo: O papel do
Grémio Nacional dos Editores e Livreiros, em Análise Social, Vol. XLIII,( 4º) 2008,
pp. 801-803

5
Tal facto poderá dever-se às boas relações que, pelo menos até 1957 (ano em
que A. M. Pereira abandona o cargo de presidente do Grémio), a direção gremial
manteve com os dirigentes do Estado Novo, visíveis pelo tipo de atividades que o
Grémio veio a patrocinar, desenvolver e incentivar de que são amostras: por incentivo
de António Ferro e por intermédio do Secretariado de Propaganda Nacional, a
proposta de criação da casa do Livro Português no Rio de Janeiro, assim como uma
exposição de livros portugueses na mesma cidade e, mais tarde, em Madrid; a criação
do concurso literário “Procura-se um romancista...”, com apenas uma edição e em
cujo regulamento se lia não serem “admitidos temas ou simples referencias de
apologia contrária à orientação do Estado Novo ou à Religião Cristã, nem tão pouco
são admitidos assuntos que ofendam a moral ou os bons costumes.” 15; o auxílio
prestado pelo Grémio Nacional de Editores e Livreiros à Festa Popular do Livro e da
Leitura organizada pela Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho, através da
realização do concurso da estante popular e da conferência sobre os primeiros
livreiros de Lisboa16, para além do carácter laudatório do regime que frequentemente
o boletim mensal Livros de Portugal (editado pelo Grémio Nacional de Editores e
Livreiros) adoptava.
Mas a atividade do Grémio Nacional de Editores e Livreiros não se cingia
àquelas que a relacionavam com o regime, esta organização de classe tinha a sua
própria agenda e programa de atividades, de que são exemplos a criação do curso de
livreiro em 1947; a edição do boletim mensal Livros de Portugal, criado em 1941 e
publicado até à transformação do grémio em Associação Portuguesa de Editores e
Livreiros (em 1974) com um interregno de dois anos (1947 e 1948).
Nesta revista do Grémio Nacional de Editores e Livreiros constavam todos os
livros publicados em Portugal nesse mês, páginas dedicadas a escritores portugueses,
uma secção chamada Bolsa Livresca com livros raros e de ocasião, outra com
perguntas e respostas e ainda uma página dedicada a curiosidades, sendo que a sua
assinatura avulso tinha o preço de um escudo, a anual custava dez escudos e aos
assinantes anuais estrangeiros era cobrado o preço de quinze escudos.
Em 1943 surge a ideia de se implantar o curso de livreiro que só é criado em
1947, ano em que se dá - apesar do artigo terceiro dos Estatutos de 1939 - o ingresso
do Grémio Nacional de Editores e Livreiros na União Internacional de Editores, fruto
da tentativa de abertura do regime que o fim da Segunda Guerra Mundial suscitou. No
entanto, a participação nos congressos anuais realizados por esta organização
internacional só aconteceu em 1955, no congresso de Florença-Roma. No boletim
Livros de Portugal de outubro/novembro de 1954 há uma página que menciona o 13º
Congresso Internacional de Editores com sede em Zurique, no qual Portugal não
participaria devido “aos encargos pesados inerentes”.17
O ano de 1947 é ainda marcado pelas dificuldades financeiras do Grémio
Nacional de Editores e Livreiros, de que a suspensão do boletim mensal é
consequência e o desvio de fundos de quase 15 mil escudos praticado pelo então chefe
de serviços (posteriormente demitido do cargo) um ano depois é expoente 18. No
relatório de contas dos anos 1947 e 1948 pode ler-se o seguinte: “O ano de 1947
ficará memorável como um mau, um péssimo ano comercial para editores e livreiros.
15
Ver figura 1 em anexo
16
Ver figura 2 em anexo
17
Ver figura 3 em anexo
18
Relató rio de Contas do Grémio Nacional de Editores e Livreiros – Exercício de
1947 e 1948 pode ler-se o seguinte (p. 16): “Durante o ano deu-se a substituição
do novo chefe de serviços (...)”

6
Verifica-se acentuado decréscimo na expansão do livro português; os mercados
acusam inquietante declínio”, para este facto apontava-se o regresso à normalidade
que o fim da Segunda Guerra Mundial trouxera, como principal causa, na medida em
que “(...) os anos de guerra provocaram incremento nas transacções livreiras(...)” 19,
aumentando os posteriores fundos não escoáveis dos livreiros. Corroborando esta
hipótese, Augusto Sá da Costa afirma a Irene Lisboa em 1944 que naquele tempo
existiam principalmente leitores de livros sobre guerra, rádio e política.20
Foi também na década de 40 que a Assembleia do Grémio emitiu um parecer
relativamente à censura onde pedem que “o editor, livreiro ou distribuidor sejam
indemnizados pelos prejuízos que lhes são causados quando um livro ou publicação
tendo sido submetidos à Censura prévia e autorizados, sejam depois proibidos ou
apreendidos”.21
Em 1956 é eleita uma nova direção, constituída por Luís Borges de Castro,
Augusto Sá da Costa e Nicolau Firmino e no ano de 1964 voltam a realizar-se
eleições, passando a integrar a direção António Alçada Baptista, Augusto Petrony e
Rogério de Mendes Moura. No entanto esta nova direção, resultante de plebiscito
legal, não foi homologada pelo Ministério das Corporações e, durante os cinco anos
subsequentes, o Grémio Nacional de Editores e Livreiros funcionou num estado de
indefinição, do qual sobreviveu por Luís Borges de Castro, à época o presidente do
Grémio, ter assumido o controlo das atividades gremiais. Este afigura-se como o
único caso de atrito concreto e direto entre os agremiados e o regime.
É então que acontecem, corria o ano de 1969, novas eleições para os corpos
sociais do Grémio, às quais concorrem, pela primeira vez, duas listas: a que havia sido
eleita em 1964 e uma outra composta por Fernando Guedes, Luís Forjaz Trigueiros e
Eduardo Ferreira, que saiu vencedora do escrutínio e se manteve até 1972, ano em que
entra em funções a última direção do Grémio Nacional de Livreiros, encabeçada por
Rogério Mendes de Moura, Luís Forjaz Trigueiros e Pedro Tamen.

3. O Caso específico do livreiro Augusto Sá da Costa


Nascido a 6 de novembro de 1883 no Cartaxo, Augusto Sá da Costa veio ainda
criança com os pais para Lisboa, de modo a que ele e seus irmãos pudessem
prosseguir os estudos. Mas o seu percurso escolar viria a ser interrompido por motivos
de saúde, facto que o levou a iniciar a atividade de livreiro na Livraria Avelar
Machado, situada na zona do Poço Negro.

19
Relató rio e Contas do Grémio Nacional de Editores e Livreiros – Exercício de
1947 e 1948
20
LISBOA, Irene (1944), Inquérito ao Livro em Portugal – I Editores e Livreiros.
Lisboa: Seara Nova, p. 30
21
MEDEIROS, Nuno (2008) Editores e Livreiros no Estado Novo: O papel do
Grémio Nacional dos Editores e Livreiros, em Análise Social, Vol. XLIII,( 4º) 2008,
p. 810

7
Foi enquanto trabalhador deste estabelecimento situado na convergência de
vários polos académicos, como o Liceu Passos Manuel, a Escola Politécnica e da
Academia de Ciência, a Escola Comercial Rodrigues dos Santos, o Instituto Superior
Técnico, as Faculdades de Letras e de Belas Artes, que Augusto Sá da Costa começou
a estabelecer ligações com alunos e professores e a desenvolver as suas aptidões de
livreiro.
Assim, aos 29 anos de idade, resolveu abrir, em parceria com o seu irmão José
Augusto Sá da Costa, a sua própria livraria no largo do Poço Negro, portas meias com
o seu antigo local de trabalho, o que lhe permitia um conhecimento privilegiado dos
potenciais clientes do seu novo estabelecimento.
A livraria começa então por focar-se na venda de livros escolares, científicos,
técnicos e infanto-juvenis, promovidos através da publicação de catálogos temáticos
específicos, de que são exemplos o catálogo das edições depositadas na livraria, das
edições de fundo e outras aquisições, das edições de todos os portugueses e
estrangeiros ou ainda o catálogo dos livros de ocasião.22
Em 1929, Augusto Sá da Costa integrou o grupo dos, pelo menos dezanove
livreiros, que constituíam a Associação de Classe dos Livreiros de Portugal.
Guiando-se por três motes essenciais no que à venda do livro dizia respeito, o
livreiro defendia, em primeiro lugar, o combate ao analfabetismo e, ao mesmo tempo,
a educação literária daqueles que aprenderam a ler, mas não liam. Depois, falava da
necessidade de baratear as publicações para que o número de leitores pudesse
aumentar e, por último, Augusto Sá da Costa mencionava a indispensabilidade da
publicidade a preços acessíveis como factor determinante para a venda do livro. 23
Num inquérito realizado por Irene Lisboa 24 a Augusto Sá da Costa, o livreiro conta
um episódio que ilustra a falta de hábitos de leitura em Portugal: certo dia, um
advogado entra em contato com ele para editar um livro e, em conversa, Augusto Sá
da Costa pergunta-lhe como ocupa o seu tempo. O outro disse-lhe que exercia
advocacia e que à noite também se ocupava do trabalho. Perante esta resposta, o
livreiro perguntou então como é que o advogado tencionava fazer editar um livro
numa edição de 5 a 10 mil exemplares, se nem ele próprio tinha o hábito de ler.
Além de vender a retalho livros da época, a livraria possuía uma secção de
alfarrabista no âmbito da qual se promoviam leilões de importantes bibliotecas
particulares. Outra quota das suas receitas era arrecadada pelo fornecimento de livros
a bibliotecas, ministérios, consulados e câmaras municipais, aceitando também
encomendas de livros em qualquer idioma.
De 1933 a 1939, a livraria possuía o monopólio da distribuição dos livros
editados pelo Centro de Estudos Filológicos e pelo Núcleo de Matemática, Física e
Química, ainda nesta altura Augusto Sá da Costa integrara o grupo de livreiros e
editores que se assumiram contra a transformação da Associação de Classe dos
Editores e Livreiros de Portugal em Grémio Nacional de Livreiros, ainda que
posteriormente (em 1964) tenha assumido um cargo na direção.25
A partir de 1920, Augusto Sá da Costa acumulou a atividade de editor à de
22
GUEDES, Fernando (1993), Os livreiros em Portugal e as suas Associações desde
o século XV até aos nossos dias, Lisboa: Verbo, p. 87
23
OLIVEIRA, Marta Susana Matos (2011), Livraria Sá da Costa – Uma Livraria e
Editora através da História (1913 – 2011). Aveiro: Universidade de Aveiro, Tese de
Mestrado em Estudos Editoriais, p. 50
24
LISBOA, Irene (1944), Inquérito ao Livro em Portugal – I Editores e Livreiros.
Lisboa: Seara Nova.

8
livreiro, facto que motivou o crescimento económico do seu estabelecimento e que
reflete a sua vontade de mudar o rumo da alfabetização e interesse literário em
Portugal. Através da atividade de editor, Augusto Sá da Costa passou a ter todas as
ferramentas para atuar no mercado do livro. Assim, começou a editar as coleções
Educar é Saber, Colecção de Clássicos Sá da Costa e Os Grandes Livros da
Humanidade, todas criadas sob a égide do seu grande lema: “educar”. Lema esse que
também impulsionou a edição e venda de livros técnicos e científicos e a criação da
revista Ciência e Indústria, que deixou de ser publicada findos nove anos de
existência, apesar de ser barata e com um carácter exclusivo em Portugal.
O capital da livraria é reforçado em 1939 e a sociedade passa a ser composta
por doze sócios, sendo apenas um (Carlos Henrique da Silva) externo à família Sá da
Costa. Este sócio estava autorizado a legar a sua quota à esposa, mas a sociedade tinha
o direito de compra sobre os outros herdeiros.
Quatro anos depois, no dia de Portugal, de Luís de Camões e das
Comunidades Portuguesas, a livraria muda a sua sede para a Rua Garrett nos números
100 e 102, onde entre 1772 e 1858 já havia estado a livraria Borel & Borel. À
inauguração do novo estabelecimento comparecem altas figuras do regime como o
Presidente da República, o Sub-secretário de Estado da Educação Nacional e das
Colónias, o Governador Civil de Lisboa e o Presidente da Câmara Municipal, mas
Augusto Sá da Costa não deixou de proferir algumas palavras.
No seu discurso, o livreiro falou da falta de hábitos de leitura e das suas
consequências para o comércio livreiro: “Quantas vezes se sai da escola e (...) se
põem de parte os livros para nunca mais se olhar para eles!... Este é a nosso ver, um
dos nossos males!...” e em “(...) num país de pouco mais de sete milhões de habitantes
só uma percentagem mínima dos que sabem ler, é que criaram hábitos de leitura.” 26.
Também a sua concepção da indústria do livro e da atividade livreira foi abordada:
“Não pode ser bom livreiro ou bom editor aquele que só tem por estímulo a parte
económica, o que não quer dizer que esse elemento não deva ter-se em linha de conta
no que ele possa representar de vida e, portanto, continuidade do organismo que se
administra.”27, consideração semelhante foi dada pelo mesmo, um ano mais tarde
aquando do inquérito realizado por Irene Lisboa: “o negócio dos livros não é de
sucesso imediato, um bom livreiro que o é de coração ou de raiz, não se compadece
com a precipitação nem com os expedientes fulminantes.” 28 Ainda no mesmo evento,
Augusto Sá da Costa anuncia a formação da Estante Popular “(...) para que o vulgo
aqui entre sem acanhamento (...)”, revelando assim uma faceta do espírito da livraria:
“(...) facilitar o contacto com o livro à parte mais simples do nosso povo (...)” 29 e
revelou ainda a doação de uma quantidade considerável de exemplares a tabernas 30,
hospitais, cadeias, asilos, bibliotecas e escolas, deixando assim sublinhado um dos

25
GUEDES, Fernando (1993), Os livreiros em Portugal e as suas Associações desde
o século XV até aos nossos dias, Lisboa: Verbo, p. 90
26
COSTA, Augusto Sá da (1943), Palavras proferidas na inauguraçã o da nova
sede da Livraria Sá da Costa em Livros de Portugal junho de 1943, pp. 7-10
27
Idem ibidem
28
LISBOA, Irene (1944), Inquérito ao Livro em Portugal – I Editores e Livreiros.
Lisboa: Seara Nova.
29
COSTA, Augusto Sá da (1943), Palavras proferidas na inauguraçã o da nova
sede da Livraria Sá da Costa em Livros de Portugal junho de 1943, pp. 7-10
30
Ver figura 4 em anexo

9
seus principais ideais: “(...) a cultura sã das classes populares (...)”.31
Quanto ao papel do livreiro e do espaço da livraria, Augusto Sá da Costa não
deixou de tecer observações: ao livreiro competia satisfazer as exigências do seu
cliente e a livraria não devia ser um mero depósito de livros, mas um local
organizado, onde o leitor pudesse ter autonomia e vontade exploratória: “(...) E se a
instalação devia ser de molde que o livro ficasse, como se impunha, em lugar de
honra, como na escola se faz ao professor, não o devia ser menos em relativa
comodidade para as pessoas eruditas, estudiosas ou mesmo as mais simples.”32.
Na nova sede da livraria Sá da Costa existiam um espaço só de consulta com
enciclopédias e algumas obras portuguesas e estrangeiras e outro para venda de
material e mobiliário escolar às escolas, universidades e liceus. Era também frequente
realizarem-se reuniões e tertúlias neste local onde participavam importantes autores
como Jaime Cortesão, António Sérgio, Aquilino Ribeiro ou João de Barros. O
atendimento prestado pelos funcionários primava pela eficiência, sendo que estavam
proibidos de dizerem que não tinham determinado livro ou que ele estava esgotado,
sem o confirmarem e sem verificarem se, por acaso, não havia nenhum exemplar em
segunda mão. Caso não houvesse o livro em questão, os livreiros deviam sugerir um
livro que o pudesse substituir.
Quando existiam livros que se antecipava serem passíveis de proibição,
informavam-se os clientes que poderiam estar interessados na sua compra e a venda
efetuava-se nos bastidores. Apesar deste procedimento, existiram casos de censura de
livros como o de um livro que fora proibido por ter uma espada na capa. 33
Em 1960, Augusto Sá da Costa morre e é o seu filho mais velho, João Sá da
Costa que assume a gestão da livraria.
A livraria prossegue a sua atividade com sucesso e continua a servir de única
depositária para efeitos de distribuição e venda de publicações de várias organizações
estatais como o instituo de Alta Cultura, o Centro de Estudos Históricos Ultramarinos
ou a Comissão Reguladora do Arroz, entre muitas outras instituições de cariz cultural
e académico como a Faculdade de Letras de Lisboa e a Gulbenkian. Mas aos poucos e
poucos essa exclusividade vai cessando o que poderá ter contribuído, entre outros
factores, para o início da decadência da livraria.
Com o 25 de Abril, a editora tenta dar vazão ao desejo de compra de autores
proibidos e começa a publicar também livros de escritores mais à esquerda, como
Agostinho Neto e Carlos de Oliveira.
Mas a democracia trazia consigo mais competitividade e com a abertura de
novas editoras e livrarias, a livraria Sá da Costa deixa de conseguir competir com os
demais estabelecimentos.

31
COSTA, Augusto Sá da (1943), Palavras proferidas na inauguraçã o da nova
sede da Livraria Sá da Costa em Livros de Portugal junho de 1943, pp. 7-10
32
Idem Ibidem
33
OLIVEIRA, Marta Susana Matos (2011), Livraria Sá da Costa – Uma Livraria e
Editora através da História (1913 – 2011). Aveiro: Universidade de Aveiro, Tese de
Mestrado em Estudos Editoriais, p. 46

10
4. Conclusão

Através deste estudo de caso onde se tentou traçar o panorama da atividade


livreira nos anos que cobriram o Estado Novo pode concluir-se que, apesar dos vários
constrangimentos exercidos quer pela política corporativista do regime, quer pela falta
de hábitos de leitura e pelos reduzidos graus de alfabetismo da população portuguesa,
a indústria livreira registou um período de grande desenvolvimento, principalmente no
período entre guerras, quando se deu um relativo aumento de empresas do sector
editorial e livreiro e de compra de livros preferencialmente acerca de política e guerra.
Finda a Segunda Guerra Mundial, verificou-se uma ligeira crise no sector

11
refletida nas dificuldades financeiras do Grémio Nacional dos Editores e Livreiros
entre os anos 1947 e 1948.
Quanto às restrições políticas advindas da adesão da Associação de Classe de
Editores e Livreiros de Portugal ao corporativismo estatal, pode-se deduzir que o
Grémio teve um papel mais de mediador entre os agremiados e o regime, do que
propriamente de opressor. No entanto, os constrangimentos impostos pelo Estado
Novo existiam, sendo exemplo disso mesmo a política do livro único, a proibição dos
agremiados participarem em eventos internacionais ou integrarem organizações
transfronteiriças e, não menos importante, a política censória que, atuando à posterior,
não deixou de ser um rolo compressor nas finanças dos livreiros.
No que à livraria e ao livreiro Sá da Costa diz respeito, pode-se constatar a sua
constante demanda social, combatendo ativamente para aumentar os níveis de
alfabetismo e hábitos de leitura, por um lado criando a Estante Popular e oferecendo
livros a estabelecimentos marcadamente frequentados pelas classes populares como as
tabernas, asilos, prisões, hospitais e escolas, por outro lado, publicando e distribuindo
livros técnicos e científicos e obras de elevado valor literário como os clássicos Sá da
Costa. Algumas vezes ameaçado pela PIDE, Augusto Sá da Costa cedo mostrou que
tinha consciência do regime instaurado em Portugal, primeiro quando se opôs à
transformação da Associação de Classe de Editores e Livreiros de Portugal em
Grémio Nacional de Editores e Livreiros e depois ao incorporar a única direção
gremial não homologada pelo Ministério das Corporações e – claro – ao publicar ou
distribuir por baixo do balcão livros proibidos ou passíveis de o serem. No entanto, o
livreiro aqui estudado também sempre se mostrou audaz na adaptação a esta realidade
política, por exemplo, convidando altas figuras de Estado para a inauguração da nova
sede da sua livraria, mas esperando que o Presidente da República abandonasse as
hostes para proferir o seu tão emblemático discurso 34 ou quando percebeu da
importância da integração no Grémio para poder distribuir o livro escolar único.
Importa por fim sublinhar que este trabalho, mais do que tudo, serviu para a
tomada de consciência de que ainda muito falta e faltou – aqui – explorar, num tema
que levanta questões e hipóteses de vária índole, mas que tem sempre no livro a pedra
de toque.

5. Anexos

Figura 1: Anúncio do Concurso literário promovido pelo


SPN

34
No boletim mensal Livros de Portugal de junho de 1943, p.8 lê-se o seguinte:
Depois de se ter retirado o chefe de Estado, o arrojado editor – que tem a sua
vontade educada a saber esperar meses ou anos, as sequências dos seus
empreendimentos, - quis justificar o que representava a abertura de mais uma
livraria, e pronunciou as seguintes palavras (...).

12
Figura 2: Notícia sobre a Festa Popular Livro e da leitura
promovida pela Fundação Nacional para a Alegria no
Trabalho

13
Figura 3: Anúncio no Congresso Internacional de Escritores no
Boletim Livros de Portugal , outubro/novembro de 1954

14
15
Figura 4-: Cartoon de Francisco Valença a propósito da oferta de livros a tabernas

Estatutos Grémio Nacional de Editores e Livreiros


(1939):

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