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Um breve panorama das editoras cartoneras do Brasil

Luiza dos Santos Silveira


Mestrado em Estudos de Linguagens, linha IV — Edição, Linguagens e Tecnologias

1 INTRODUÇÃO

Durante a crise econômica e política que assolou a Argentina no início dos anos
2000, surge a primeira editora cartonera: Eloísa Cartonera, em 2003, fundada, em
Buenos Aires, com o slogan “mucho más que libros”. Cartón, em espanhol, significa
papelão; logo, cartonero seria o profissional que cata papelão — em português, catador
de papelão. Um livro cartonero utiliza o papelão que já cumpriu sua função na cadeia
industrial, como caixas que protegem e transportam produtos, ganha um novo sentido,
agora como capa de um livro (ALMEIDA, 2019, p. 13-14).
Apesar de ser um fenômeno relativamente novo, estima-se haver por volta de
trezentas editoras cartoneras espalhadas pela América Latina e por outros continentes
(VILHENA, 2016, p. 13) quase duas décadas após. A pioneira no Brasil, Dulcinéia
Catadora, surgiu em 2007 em São Paulo, após Lúcia Rosa, idealizadora da Dulcinéia,
ter conhecido integrantes da Eloísa na 27ª Bienal de São Paulo. Poucos anos depois, em
2009, por influência da Dulcinéia, surge a Catapoesia, em Minas Gerais. Nos anos 2010,
foram muitas mais: Butecanis Cartonera (2013, Santa Catarina), Vento Norte Cartonero
(2013, Rio Grande do Sul), Malha Fina Cartonera (2015, São Paulo), Candeeiro
Cartonera (2015, Pernambuco), Curupira Cartonera (2016, Mato Grosso), Cartonera das
Iaiá (2017, Bahia), para citar algumas de dezenas outras, em diversos cantos do país. A
rápida multiplicação das cartoneras não acontece apenas por inspiração pelas primeiras,
assim como não houve uma tentativa de replicação passiva das formas e significações
do que se refere a criação e o desenvolvimento de uma editora cartonera. Cada iniciativa
trabalha de maneira diferente, realizando adaptações locais, agregando sentidos
diferentes às suas práticas e discursos (KUNIN, 2013, p. 1). Essa proliferação dá-se
porque há um sentimento mútuo entre todas as editoras e os editores: de que um livro
cartonero é resistência não só às crises, mas às formas convencionais de se fazer um
livro (ALMEIDA, 2019, p. 16).
Este trabalho propõe-se a traçar um breve panorama de algumas das principais
editoras cartoneras no Brasil de hoje em dia, com um olhar através da edição de livros.
O critério de seleção se deu a partir do livro Letras de Cartón, lançado em 2019. A obra
foi idealizada por Marcelo Barbosa de Almeida (Candeeiro Cartonera, PE) e por
Solange Barreto (Catapoesia, MG), a fim de ser uma coletânea bilíngue
português-espanhol de poesias, além de um projeto de editoração colaborativa de um
livro cartonero, cujo tema inicial seria o papelão. Nesta primeira edição, participaram 21
autores/editores de 20 editoras cartoneras de diversos países. Além do Brasil,
colaboraram editoras da Argentina, Chile, Espanha, França, México; sendo oito
brasileiras (as destacadas em negrito são as quatro selecionadas para esta análise): da
região Nordeste: Candeeiro Cartonera (PE), Maracajá Cartonera (PE), Chita
Cartonera (SE) e Cartonera das Iaiá (BA); Sudeste: Catapoesia (MG) e Dulcinéia
Catadora (SP); Sul do país: Butecanis Editora Cabocla (SC) e Voz Cartonera (PR). 
Foram utilizadas fontes bibliográficas para o embasamento teórico e fontes
documentais para obter informações sobre as editoras cartoneras mencionadas, como
suas páginas virtuais nas redes sociais e entrevistas com alguns editores cartoneros para
dados complementares.

2 CARACTERÍSTICAS DO EDITOR CARTONERO

Partindo do pressuposto de que o editor cartonero é também um editor


independente, notam-se três características comuns a esse editor: é um agente cultural
em sua comunidade; é autônomo em suas atividades (WINNE; MALUMIÁN, 2016, p.
5-16); pode ser também o próprio autor do livro cartonero.
“O editor independente aspira a ser um agente de mudança, aporte e sustento da
cultura” (Ibid, p. 11, tradução nossa). Com isso, pode-se dizer que o editor cartonero é
um agente cultural em sua comunidade. Ou seja, é seu papel não só levar a cabo o
processo de geração do objeto livro, como também manter o diálogo entre livros e
sociedade, atuar na difusão do autor, na relação com os livreiros, com a imprensa e com
os leitores. Assim, se a conversa entre livros e sociedade é um fogo que deve ser
alimentado constantemente, a responsabilidade de botar lenha nessa fogueira é do
editor. O editor cartonero é um incendiário da cultura local, e o papelão é um material
inflamável.
Igualmente, o editor cartonero é autônomo em suas atividades. O fato das
lógicas do mercado editorial não afetarem as cartoneras é o que leva o editor a ser
completamente autônomo em suas atividades. É ele quem dita os tons dos processos de
confecção, publicação e de atuação como agente cultural em sua comunidade. Isto é,
cada cartonera possui objetivos próprios — havendo aquelas que ressaltam uma causa
específica em que acreditam, como “o social”, “o cultural”, “o estético”, “o político”, “o
ecológico” de seu trabalho (KUNIN, 2013, p. 1) — e modos próprios de fazer livros
artesanais. Do mesmo jeito vemos em Letras de Cartón: uma obra proposta por dois
editores cartoneros que acordaram o tema a ser tratado e convidaram mais 18 editoras a
participar, uma coedição de coautoria. Todo o processo editorial foi feito por eles,
tiveram a liberdade de idealizar e produzir o livro; de ser possível a coedição e a
coautoria.
Segundo Aníbal Bragança, o editor “dá forma, corpo e roupa à obra que fez
nascer — e finalmente chegará às livrarias. E que, só por isso, já faz dele também, de
alguma forma, seu autor” (BRAGANÇA, 2005, p. 5). O que no caso de Letras de
Cartón confirma-se, pois os editores cartoneros colaboradores são os próprios autores
dos textos que a compõem.

3 QUATRO EDITORAS CARTONERAS BRASILEIRAS

3.1 Butecanis Editora Cabocla (Santa Catarina)

Butecanis Editora Cabocla é uma editora de livros artesanais de Camboriú, Santa


Catarina, criada em 2013 pelo contador de histórias Daniel Rosa, como maneira de
publicar os seus próprios textos de maneira mais barata e em menor quantidade do que o
jeito tradicional. O trabalho com cartonaria veio só após alguns anos do início da
editora.  O conceito de Daniel Rosa com a Butecanis é juntar o punk à cultura cabocla
brasileira. Daí o lema: ”Faça você mesmo. Na falta de tecnologia, use o facão.”

3.2 Candeeiro Cartonera (Pernambuco)

Candeeiro Cartonera é de Caruaru, Pernambuco, criada em 2015. É um selo


editorial independente que produz livros de forma não industrial, com capas de papelão
reutilizado e coletado nas ruas. Sua proposta é incentivar a leitura e o consumo de
livros; divulgar e publicar autores locais, iniciantes e independentes; produzir projetos
literários e de artes visuais (CANDEEIRO CARTONERA, 2018).

3.3 Catapoesia (Minas Gerais)

O projeto Catapoesia iniciou-se em 2009, como uma das ações do Programa


“Leitura Viva”, de incentivo à leitura e à escrita realizada pela ONG Trilhas da Serra –
Educação, Cultura e Cidadania. Sua primeira ação aconteceu na Comunidade
Quilombola do Mato do Tição, em Japoticatubas, Minas Gerais, uma atividade de
resgate da memória com os mestres da história oral e a sua posterior documentação em
livro (CARTONERAS..., 2018).

3.4 Dulcinéia Cartonera (São Paulo)

Foi criada em 2007 após dois meses de trabalho colaborativo de Lúcia Rosa e
Peterson Emboava com integrantes de Eloísa Cartonera durante a 27ª bienal de São
Paulo.  Atualmente funciona dentro da Cooperativa de Materiais Recicláveis do
Glicério, em São Paulo, e conta com a participação ativa de Andréia Emboava, Maria
Dias Costa e Eminéia dos Santos, que trabalham diariamente na reciclagem, e Lúcia
Rosa.  O catálogo de Dulcinéia conta com mais de 140 títulos, da poesia às ciências
sociais, das intervenções sociais aos livros de artistas (CARTONERAS..., 2018).
CONSIDERAÇÕES FINAIS: AFINIDADES ENTRE AS EDITORAS
CARTONERAS

Letras de Cartón foi uma colaboração recente de editoras cartoneras que estão
distantes geograficamente uma das outras. A ideia do livro veio de uma interação virtual
entre Marcelo e Solange, o que é muito comum entre as cartoneras, na tentativa de
estreitar os laços entre as editoras. Mas o que permite que o movimento cartonero cresça
e se consolide tão rapidamente são os sentimento de afeto e carinho, tanto pelo objeto
livro quanto pela fortaleza de serem projetos que promovem o acesso à cultura. Assim,
o sentimento de afeto do editor cartonero se estende ao trabalho das demais editoras: há
uma certa irmandade, além do fato de que a grande maioria leva o sobrenome
“Cartonera”, de que todas vieram da mesma mãe (Eloísa Cartonera, de Buenos Aires,
Argentina) e que anseiam conhecer suas irmãs espalhadas pelo globo. Todas essas que
compartilham da mesma premissa social e sustentável: as capas devem ser de papelão. 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Marcelo Henrique Barbosa de. O que são esses livros com capa de
papelão?: aspectos da história dos livros cartoneros - 2003/2018. João Pessoa: Marca de
Fantasia, 2019. Disponível em:
https://www.marcadefantasia.com/livros/quiosque/cartonero/cartonero.pdf. Acesso em:
30 nov. 2020.

BRAGANÇA, Aníbal. Sobre o editor: notas para sua história. Em Questão, Porto
Alegre, v. 11, n. 2, p. 219-237, jul. / dez. 2005. Disponível em:
https://seer.ufrgs.br/EmQuestao/article/view/119. Acesso em: 30 nov. 2020.

CANDEEIRO CARTONERA. Sobre. 21 jan. 2018. Facebook: Candeeiro Cartonera.


Disponível em:
https://www.facebook.com/candeeirocartonera/about/?ref=page_internal. Acesso em: 18
maio 2020.

CARTONERAS em Tradução. Belo Horizonte: Catapoesia, 2018.

KUNIN, J. La multiplicación de las editoriales cartoneras latinoamericanas: análisis


de un caso e apropiación/es de sentidos. In: Jornadas interdisciplinarias de jóvenes
investigadores en Ciencias Sociales, 1., 2013, Buenos Aires. Atas. Buenos Aires:
Unsam, 2013. p. 1-17. Disponível em:
https://www.academia.edu/3852453/La_multiplicaci%C3%B3n_de_las_editoriales_cart
oneras_latinoamerican. Acesso em: 05 maio 2020.

LETRAS de Cartón. Belo Horizonte: Catapoesia, 2019.

VILHENA, F. B. K. O acontecimento Eloísa Cartonera: memória e identificação. 2016.


204 f. Tese (Doutorado) - Curso de Letras, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016. Disponível em:
https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8145/tde-20122016-140926/publico/2016_Flavia
BragaKraussDeVilhena_VCorr.pdf. Acesso em: 30 nov. 2020.

WINNE, Hernán López; MALUMIÁN, Víctor. Independientes, ¿de qué?: hablan los
editores de américa latina. Ciudad de México: Fondo de Cultura Económica, 2016.

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