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Bruno Latour

Tradução de Carlos lrineu da Costa

editorall34
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coleção TRANS

Bruno Latour

JAMAIS FOMOS
MODERNOS
Ensaio de antropologia simétrica

Tradução
Carlos Irineu da Costa

editorall34
EDITORA 34
Editora 34 Ltda.
Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455-000
São Paulo· SP Brasil Tel/Fax (11) 3816-6777 www.editora34.com.br

Copyright© Editora 34 Ltda. (edição brasileira), 1994


Nous n'avons jamais été modernes © Éditions La Découverte, Paris, 1991
A FOTOCÓPIA DE QUALQUER FOLHA DESTE LIVRO É ILEGAL E CONFIGURA UMA
APROPRIAÇAO INDEVIDA DOS DIREITOS INTELECTUAIS E PATRIMONIAIS DO AUTOR.

Edição conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Título original: JAMAIS FOMOS MODERNOS


Nous n'avons jamais été modernes Ensaio de antropologia simétrica
Capa, projeto gráfico e editoração eletrônica:
Bracher & Malta Produção Gráfica 1. Crise ................................................................................ 7
Revisão: 2. Constituição .................................................................... 19
Claudia Moraes 3. Revolução .....•................................................................... 53
4. Relativismo ...................................................................... 91
5. Redistribuição .................................................................. 129
1" Edição· 1994 (4 Reimpressões), 2" Edição• 2009 Bibliografia ...................................................................... 145

CIP � Brasil. Catalogação�na-Fonte


(Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ, Brasil)
l.atour, Bruno
L383j Jamais fomos modernos: ensaio de
antropologia simétrica / Bruno Latour; tradução
de Carlos Irineu da Costa. - Rio de Janeiro:
Ed. 34, 1994.
152 p. (Coleção TRANS)
Tradução de: Nous n'avons jamais été modemes
Inclui bibliografia
ISBN 85•85490·38· 1
1. Filosofia francesa. 2. Filosofia moderna.
I. Costa, Carlos Irineu da. II. Título. III. Séríe.
CDD - 194
1.
CRISE

A PROLIFERAÇÃO DOS HÍBRIDOS

Na página quatro do jornal, leio que as campanhas de medidas so­


bre a Antártida vão mal este ano: o buraco na camada de ozônio aumen­
tou perigosamente. Lendo um pouco mais adiante, passo dos químicos que
lidam com a alta atmosfera para os executivos da Atochem e Monsanto,
que estão modificando suas linhas de produção para substituir os inocen­
tes clorofluorocarbonetos, acusados de crime contra a ecosfera. Alguns pa­
rágrafos à frente, é a vez dos chefes de Estado dos grandes países industria­
lizados se meterem com química, refrigeradores, aerossóis e gases inertes.
Contudo, na parte de baixo da coluna, vejo que os meteorologistas não
concordam mais com os q9ímicos e falam de variações cíclicas. Subitamente
os industriais não sabem o que fazer. Será preciso esperar? Já é tarde de­
mais? Mais abaixo, os países do Terceiro Mundo e os ecologistas metem
sua colher e falam de tratados internacionais, direito das gerações futu­
ras, direito ao desenvolvimento e moratórias.
O mesmo artigo mistura, assim, reações químicas e reações políticas.
Um mesmo fio conecta a mais esotérica das ciências e a mais baixa políti�
ca, o céu mais longínquo e uma certa usina no subúrbio de Lyon, o perigo
mais global e as próximas eleições ou o próximo conselho administrati­
vo. As proporções, as questões, as durações, os atores não são compará­
veis e, no entanto, estão todos envolvidos na mesma história.
Na página seis do jornal, recebo a informação de que o vírus da AIDS
de Paris contaminou o vírus que estava no laboratório do professor Gallo,
que os senhores Chirac e Reagan haviam contudo jurado solenemente não
questionar novamente o histórico desta descoberta, que as indústrias quí­
micas estão demorando a colocar no mercado remédios fortemente reivin­
Agradecimentos:
dicados por doentes organizados em associações militantes, que a epide­
Sem François Gêze eu não teria escrito este ensaio, cujas imperfeições são mui­ mia se dissemina na África negra. Novamente, cabeças coroadas, quími­
tas, mas decerto seriam ainda mais numerosas sem os preciosos conselhos de Gérard cos, biólogos, pacientes desesperados e industriais encontram-se envolvi­
De Vries, Francis Chateauraynaud, lsabelle Stengers, Luc Boltanski, Elizabeth Claverie dos em uma mesma história duvidosa.
e de meus colegas da École des Mines. Gostaria de agradecer a Harry Collins, Ernan Na página oito, são computadores e chips controlados pelos japone­
McMullín, Jim Griesemer, Michel Jzard, Clifford Geertz e Peter Galison por me terem ses, na página nove embriões congelados, na página dez uma floresta em
permitido testar os argumentos aqui contidos durante os diversos seminários que gen­
tilmente organizaram para mim.
chamas, levando em suas colunas de fumaça algumas espécies raras que
alguns naturalistas desejam proteger; na página onze, baleias munidas de
um terreno ao redor de uma mina do Norte, símbolo da exploração industrial, classificar. Por falta de opções, nos autodenominamos sociólogos, histo­
acaba de ser classificado como reserva ecológica devido à flora rara que lá riadores, economistas, cientistas políticos, filósofos, antropólogos. Mas,
se desenvolveu. Na página doze, o papa, os bispos, Roussel-Uclaf, as trom­ a estas disciplinas veneráveis, acrescentamos sempre o genitivo: das ciên­
pas de Falópio e os fundamentalistas texanos reúnem�se em torno do mes­ cias e das técnicas. Science studies é a palavra inglesa; ou ainda este vo­
mo anticoncepcíonal formando uma estranha legião. Na página quatorze, cábulo por demasiado pesado: "Ciências, técnicas, sociedades". Qualquer
o número de linhas da televisão de alta definição interconecta o sr. Delors, que seja a etiqueta, a questão é sempre a de reatar o nó górdio atraves­
Thomson, a CEE, as comissões de padronização, os japoneses mais uma vez, sando, tantas vezes quantas forem necessárias, o corte que separa os co­
e os produtores de filmes. Basta que o padrão da tela seja alterado por umas nhecimentos exatos e o exercício do poder, digamos a natureza e a cul­
poucas linhas e bilhões de francos, milhões de televisores, milhares de ho­ tura. Nós mesmos somos híbridos, instalados precariamente no interior
ras de filmes, centenas de engenheiros, dezenas de executivos dançam. das instituições científicas, meio engenheiros, meio filósofos, um terço ins­
Felizmente há, no jornal, algumas páginas relaxantes nas quais se fala truídos sem que o desejássemos; optamos por descrever as tramas onde
de política pura (uma reunião do partido radical), e o suplemento de livros quer que estas nos levem. Nosso meio de transporte é a noção de tradu­
onde os romances relatam as aventuras apaixonantes do eu profundo (ie ção ou de rede. Mais flexível que a noção de sistema, mais histórica que
t'aime� moi nonplus). Sem estas páginas calmas, ficaríamos tontos. Multipli­ a de estrutura, mais empírica que a de complexidade, a rede é o fio de
cam-se os artigos híbridos que delineiam tramas de ciência, política, economia, Ariadne destas histórias confusas.
direito, religião, técnica, ficção. Se a leitura do jornal diário é a reza do ho­ No entanto, estes trabalhos continuam sendo incompreensíveis por­
mem moderno, quão estranho é o homem que hoje reza lendo estes assuntos que são recortados em três de acordo com as categorias usuais dos críti­
confusos. Toda a cultura e toda a natureza são diariamente reviradas aí. cos. Ou dizem respeito à natureza, ou à política, ou ao discurso.
Contudo, ninguém parece estar preocupado. As páginas de Economia, Quando MacKenzie descreve o giroscópio dos mísseis intercontinen­
Política, Ciências, Livros, Cultura, Religião e Generalidades dividem o layout tais (MacKenzie, 1990),"" quando Callon descreve os eletrodos das pilhas
como se nada acontecesse. O menor vírus da AIDS nos faz passar do sexo de combustível (Callon, 1989), quando Hughes descreve o filamento da
ao inconsciente, à África, às culturas de células, ao DNA, a São Francisco; lâmpada incandescente de Edison (Hughes, 1983a), quando eu descrevo
mas os analistas, os pensadores, os jornalistas e todos os que tomam decisões a bactéria do antraz atenuada por Pasteur (Latour, 1984a) ou os peptídeos
irão cortar a fina rede desenhada pelo vírus em pequenos compartimentos do cérebro de Guillemin (Latour, 1988a), os críticos pensam que estamos
específicos, onde encontraremos apenas ciência, apenas economia, apenas falando de técnicas e de ciências. Como estas últimas são, para eles, mar­
representações sociais, apenas generalidades, apenas piedade, apenas sexo. ginais, ou na melhor das hipóteses manifestam apenas o puro pensamen­
Aperte o mais inocente dos aerossóis e você será levado à Antártida, e de lá to instrumental e calculista, aqueles que se interessam por política ou pe­
à universidade da Califórnia em Irvine, às linhas de montagem de Lyon, à las almas podem deixá-las de lado. Entretanto, estas pesquisas não dizem
química dos gases nobres, e daí talvez até à ONU, mas este fio frágil será respeito à natureza ou ao conhecimento, às coisas-em-si, mas antes a seu
cortado em tantos segmentos quantas forem as disciplinas puras: não mistu­ envolvimento com nossos coletivos e com os sujeitos. Não estamos falan­
remos o conhecimento, o interesse, a justiça, o poder. Não misturemos o do do pensamento instrumental, mas sim da própria matéria de nossas
céu e a terra, o global e o local, o humano e o inumano. "Mas estas confusões sociedades. MacKenzie desdobra toda a marinha americana e mesmo os
criam a mistura- você dirá-, elas tecem nosso mundo?" - "Que sejam deputados para falar dos giroscópios; Callon mobiliza a EDF e a Renault,
corno se não existissem", respondem os analistas, que romperam o nó górdio assim como grandes ternas da política energética francesa, para compreen­
com uma espada bem afiada. O navio está sem rumo: à esquerda o conhe­ der as trocas de íons na ponta de seu eletrodo; Hughes reconstrói toda a
cimento das coisas, à direita o interesse, o poder e a política dos homens. América em torno do fio incandescente da lâmpada de Edison; toda a so­
ciedade francesa do século XIX vem junto se puxamos as bactérias de
Pasteur, e torna-se impossível compreender os peptídeos do cérebro sem
REATANDO O NÓ GÓRDIO acoplar a eles uma comunidade científica, instrumentos, práticas, diver­
sos problemas que pouco lembram a matéria cinza e o cálculo.
Há cerca de vinte anos, eu e meus amigos estudamos estas situações
estranhas que a cultura intelectual em que vivemos não sabe bem como '' As referências entre parênteses remetem à bibliografia no final do livro.

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"Mas então é política? Vocês reduzem a verdade científica a interes­ contextualização e semiótica, mas de uma nova forma que sç conecta ao
ses e a eficácia técnica a manobras políticas?" Eis aí o segundo mal-enten­ mesmo tempo à natureza das coisas e ao contexto social, sem contudo
dido. Se os fatos não ocuparem o lugar ao mesmo tempo marginal e sa­ reduzir-se nem a urna coisa nem a outra.
grado que nossas adorações reservam para eles, imediatamente são redu­ Nossa vida intelectual é decididamente mal construída. A epistemo­
zidos a meras contingências locais e míseras negociatas. Contudo, não logia, as ciências sociais, as ciências do texto, todas têm uma reputação,
estamos falando do contexto social e dos interesses do poder, mas sim de contanto que permaneçam distintas. Caso os seres que você esteja seguin­
seu envolvimento nos coletivos e nos objetos. A organização da marinha do atravessem as três, ninguém mais compreende o que você diz. Ofereça
americana será profundamente modificada pela aliança feita entre seus es­ às disciplinas estabelecidas urna bela rede sociotécnica, algumas belas tra­
critórios e suas bombas; EDF e Renault se tornarão irreconhecíveis de acor­ duções, e as primeiras extrairão os conceitos, arrancando deles todas as
do com sua decisão de investirem na pilha de combustível ou no motor a raízes que poderiam ligá-los ao social ou à retórica; as segundas irão am­
explosão. A América não será a mesma antes e depois da eletricidade; o putar a dimensão social e política, purificando-a de qualquer objeto; as
contexto social do século XIX não será o mesmo se for construído com terceiras, enfim, conservarão o discurso, mas irão purgá-lo de qualquer
pobres coitados ou com pobres infestados por micróbios; quanto ao sujeito aderência indevida à realidade - horresco referens - e aos jogos de po­
inconsciente estendido sobre seu divã, corno será diferente caso seu cérebro der. O buraco de ozônio sobre nossas cabeças, a lei moral em nosso cora­
seco descarregue neurotransmissores ou caso seu cérebro úmido secrete hor­ ção e o texto autônomo podem, em separado, interessar a nossos críticos.
mônios. Nenhum destes estudos pode reutilizar aquilo que os sociólogos, Mas se uma naveta fina houver interligado o céu, a indústria, os textos,
psicólogos ou economistas nos dizem do contexto social para aplicá-lo às as almas e a lei moral, isto permanecerá inaudito, indevido, inusitado.
ciências exatas. A cada vez, tanto o contexto quanto a pessoa humana en­
contram-se redefinidos. Da mesma forma como os epistemólogos não re­
conhecem mais, nas coisas coletivizadas que lhes oferecemos, as ideias, con­ A CRISE DA CRÍTICA
ceitos e teorias de sua infância, também as ciências humanas seriam inca­
pazes de reconhecer, nestes coletivos abarrotados de coisas que nós desdo­ Os críticos desenvolveram três repertórios distintos para falar de nosso
bramos, os jogos de poder de sua adolescência militante. Tanto à esquerda mundo: a naturalização, a socialização, a desconstrução. Digamos, de for­
quanto à direita, as finas redes traçadas pela pequena mão de Ariadne con­ ma rápida e sendo um pouco injustos,_Çh?-.t,!g�ux, Bo�rdieu, Derrida. Quando
tinuam a ser mais invisíveis do que aquelas tecidas pelas aranhas. o primeiro fala de fatos naturalizados, não há mais SOC1edãâ'C,h"ein sujeito,
"Mas se vocês não falam nem das coisas-em-si nem dos humanos­ nem forma do discurso. Quando o segundo fala de poder sociologizado, não
-entre-eles, quer dizer que vocês falam apenas do discurso, da representa­ há mais ciência, nem técnica, nem texto, nem conteúdo. Quando o terceiro
ção, da linguagem, dos textos." Este é o terceiro mal-entendido. Aqueles fala de efeitos de verdade, seria um atestado de grande ingenuidade acredi­
que colocam entre parênteses o referente externo - a natureza das coisas tar na existência real dos neurônios do cérebro ou dos jogos de poder. Cada
- e o locutor - o contexto pragmático ou social só podem mesmo falar uma destas formas de crítica é potente em si mesma, mas não pode ser com­
dos efeitos de sentido e dos jogos de linguagem. Entretanto, quando Mac­ binada com as outraS:l¾Jcl'êillos imaginar um estudo que tornasse o buraco
Kenzie perscruta a evolução do giroscópio, está falando sobre agenciamen­ de ozônio algo naturalizado, sociologizado e desconstruído? A natureza dos
tos que podem matar a todos; quando Callon segue de perto os artigos fatos seria totalmente estabelecida, as estratégias de poder previsíveis, mas
científicos, ele fala de estratégia industrial, ao mesmo tempo em que fala apenas não se trataria de efeitos de sentido projetando a pobre ilusão de uma
de retórica (Callon, Law et ai., 1986); quando Hughes analisa os cader­ natureza e de um locutor? Uma tal colcha de retalhos seria grotesca. Nossa
nos de notas de Edison, o mundo interior de Menlo Park logo se tornará vida intelectual continua reconhecível contanto que os epistemólogos, os so­
o mundo exterior de toda a América; quando descrevo a domesticação dos ciólogos e os desconstrutivistas sejam mantidos a uma distância conveniente,
micróbios por Pasteur, mobilizo a sociedade do século XIX, e não apenas alimentando suas críticas com as fraquezas das outras duas abordagens.
a semiótica dos textos de um grande homem; quando descrevo a inven­ Vocês podem ampliar as ciências, desdobrar os jogos de poder, ridicularizar
ção-descoberta dos peptídeos do cérebro, falo realmente dos peptídeos em a crença em uma realidade, mas não misturem estes três ácidos cáusticos.
si, e não de sua representação no laboratório do professor Guillemin. É Ora, de duas coisas urna: ou as redes que desdobramos realmente não
verdade, entretanto, que se trata de retórica, estratégia textual, escrita, existem, e os críticos fazem bem em marginalizar os estudos sobre as ciên-

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cias ou separá-los em três conjuntos distintos- fatos, poder.,__dis.c1JJSO - turas aquilo que é possível fazer em outros lugares, em outras culturas. Por
, ou então as redes são tal como as descrevemos, �-ãt"f;y;;;;_m a fro�eira quê? Porque nós somos modernos. Nosso tecido não é mais inteiriço. A
entre os grandes feudos da crítica - não são nem objetivas, nem sociais, continuidade das análises tornou-se impossível. Para os antropólogos tradi­
nem e.feitos de discurso, sendo ao mesmo tempo reais, e coletivas, e dis­ cionais, não há, não pode haver, não deve haver uma antropologia do mun­
cursivas. Ou nós devemos desaparecer, portadores de más notícias que so­ do moderno (Latour, 19886). As etnociências podem associar-se em parte
mos, ou então a própria crítica deve entrar em crise por causa destas re­ à sociedade e ao discurso, mas a ciência não pode. É justamente porque
des contra as quais ela se debate. Os fatos científicos são construídos, mas somos incapazes de nos estudar desta forma que somos tão sutis e tão dis­
não podem ser reduzidos ao social, porque ele está povoado por objetos tantes quando vamos estudar os outros sob os trópicos. A tripartição crítica
mobilizados para construí-lo. O agente desta dupla construção provém de nos protege e nos autoriza a restabelecer a continuidade entre todos os pré­
um conjunto de práticas que a noção de desconstrução capta da pior for­ -modernos. Foi solidamente apoiados nesta tripartição crítica que nos tor­
ma possível. O buraco de ozônio é por demais social e por demais narra­ namos capazes de fazer etnografia. Foi aí que buscamos nossa coragem.
do para ser realmente natural; as estratégias das firmas e dos chefes de A formulação do dilema encontra-se agora modificada: ou é impos­
Estado, demasiado cheias de reações químicas para serem reduzidas ao sível fazer uma antropologia do mundo moderno - e é correto ignorar
poder e ao interesse; o discurso da ecosfera, por demais real e social para aqueles que pretendem oferecer uma pátria às redes sociotécnicas; ou então
ser reduzido a efeitos de sentido. Será nossa culpa se as redes são ao mes­ esta antropologia é possível, mas seria preciso alterar a própria definição
mo tempo reais como a natureza, narradas como o discurso, coletivas como do mundo moderno. Passamos de um problema limitado- porque as redes
a sociedade? Será que devemos segui-las abandonando os recursos da crí­ continuam a ser incompreensíveis?- a um problema maior e mais clássi­
tica, ou abandoná-Ias posicionando-nos junto ao senso comum da tripar­ co: o que é um moderno? Ao cavar a incompreensão de nossos ancestrais
tição crítica? Nossas pobres redes são como os curdos anexados pelos ira­ em relação a estas redes que acreditamos tecer nosso mundo, percebemos
nianos, iraquianos e turcos que, uma vez caída a noite, atravessam as fron­ suas raízes antropológicas. No que somos ajudados, felizmente, por acon­
teiras, casam-se entre eles e sonham com uma pátria comum a ser extraí­ tecimentos de porte considerável que enterram a velha toupeira da crítica
da dos três países que os desmembram. em seus próprios túneis. Se o mundo moderno tornou-se, por sua vez, ca­
Este dilema permaneceria sem solução caso a antropologia não nos paz de ser antropologizado, foi porque algo lhe aconteceu. Desde o salão
houvesse acostumado, há muito tempo, a tratar sem crises e sem crítica o de madame de Guermantes, sabemos que é preciso um cataclismo como o
tecido inteiriço das naturezas-culturas. Mesmo o mais racionalista dos da Grande Guerra para que a cultura intelectual modifique ligeiramente
etnógrafos, uma vez mandado para longe, é perfeitamente capaz de jun­ seus hábitos e receba em sua casa os esnobes anteriormente indesejáveis.
tar em uma mesma monografia os mitos, etnociências, genealogias, for­
mas políticas, técnicas, religiões, epopeias e ritos dos povos que estuda.
Basta enviá-lo aos arapesh ou achuar, aos coreanos ou chineses, e será Ü MIRACULOSO ANO DE 1989
possível obter uma mesma narrativa relacionando o céu, os ancestrais, a
forma das casas, as culturas de inhame, de mandioca ou de arroz, os ritos Todas as datas são convencionais, mas a de 1989 é um pouco menos
de iniciação, as formas de governo e as cosmologias. Nem um só elemen­ convencional que as outras. A queda do Muro de Berlim simboliza, para
to que não seja ao mesmo tempo real, social e narrado. todos os contemporâneos, a queda do socialismo. "Triunfo do liberalismo,
Se o analista for sutil, irá retraçar redes que se parecerão ao extremo do capitalismo, das democracias ocidentais sobre as vãs esperanças do mar­
com as tramas sociotécnicas que nós traçamos ao seguir os micróbios, os xismo", este é o comunicado vitorioso daqueles que escaparam por pouco
mísseis ou as pilhas de combustível em nossas próprias sociedades. Nós do leninismo. Ao tentar acabar com a exploração do homem pelo homem,
também temos medo que o céu caia sobre nossa cabeça. Nós também relacio­ o socialismo multiplicou-a indefinidamente. Estranha dialética esta que
namos o gesto ínfimo de pressionar um aerossol a interdições que envolvem ressuscita o explorador e enterra o coveiro após haver ensinado ao mundo
o céu. Nós também devemos levar em conta as leis, o poder e a moral para como fazer uma guerra civil em grande escala. O recalcado retorna e retor­
compreender o que nossas ciências dizem sobre a química da alta atmosfera. na em dobro: o povo explorado, em nome do qual a vanguarda do prole­
Certo, mas não somos selvagens, nenhum antropólogo nos estuda tariado reinava, volta a ser um povo; as elites com seus longos dentes, que
desta maneira, e é impossível, justamente, fazer em nossas naturezas-cu!- pareciam ser desnecessárias, voltam com toda força para retomar, nos bancos,

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nos comércios e nas fábricas seu antigo trabalho de exploração. O Ociden­ zes de acreditar nas promessas duplas do socialismo e do "naturalismo",
te liberal não se contém de tanta alegria. Ele ganhou a guerra fria. os pós-modernos também evitam duvidar totalmente delas. Ficam suspensos
Mas este triunfo dura pouco. Em Paris, Londres e Amsterdã, neste entre a dúvida e a crença;enquanto esperam o fim do milênio.
mesmo glorioso ano,cle 1_9.8_9,_ �-�-◊.l�-'::�i�.'.:1:���---a,,:__p:}_1:::i_r,_�-� �5J�f��ª��t<:t�,.fü}Qre Enfim, aqueles que rejeitam o obscurantismo ecológico ou o obscuran­
. .o
estado global do planeta, o que simboliza, para alguns - observadores, o
tismo antissocialista, e que não ficam satisfeitos com o ceticismo dos pós­
fim d6··capfràHSffiõ"ê-cfe· suas vãs esperanças de conquista ilimitada e de -modernos, decidem continuar corno se nada ocorresse e permanecem de­
dominação total sobre a natureza. Ao tentar desviar a exploração do ho­ cididamente modernos. Continuam acreditando nas promessas das ciên­
mem pelo homem para uma exploração da natureza pelo homem, o capi­ cias, ou nas da emancipação, ou nas duas. Contudo, sua crença na mo­
talismo multiplicou indefinidamente as duas. O recalcado retorna e retor­ dernização hoje não soa muito bem· nem na arte, nem na economia, nem
na em dobro: as 'multidões que deveriam ser salvas da morte caem aos na política, nem na ciência, nem na técnica. Nas galerias de arte, assim como
milhões na miséria; ·as naturezas que deveriam ser dominadas de forma nas salas de concertos, ao longo das fachadas dos imóveis assim como nos
absoluta nos dominam de forma igualmente global, ameaçando a todos. institutos de desenvolvimento, é possível sentir que o espírito da coisa não
Estranha dialética esta que faz do escravo dominado o mestre e dono do está mais presente. A vontade de ser moderno parece hesitante, algumas
homem, e que subitamente nos informa que inventamos os ecocídios e ao vezes até mesmo fora de moda.
mesmo tempo as fomes em larga escala. Quer sejamos antimodernos, modernos ou pós-modernos, somos to­
A simetria perfeita entre a queda do muro da vergonha e o desapare­ dos mais uma vez questionados pela dupla falência do miraculoso ano de
cimento da natureza ilimitada só não é vista pelas ricas democracias oci­ 1989. Mas iremos retomar nossa linha de pensamento se considerarmos
dentais. De fato, os socialismos destruíram ao mesmo tempo seus povos e este ano justamente como uma dupla falência, como duas lições cuja admi­
seus ecossistemas, enquanto que os do Ocidente setentrional puderam sal­ rável simetria nos permite compreender de outra forma todo nosso passado.
var seus povos e algumas de suas paisagens destruindo o resto do muµdo e E se jamais tivermos sido modernos? A antropologia comparada se
jogando os outros povos na miséria. Dupla tragédia: os antigos socialismos tornaria então possível. As redes encontrariam um lar.
pensam poder remediar seus dois problemas imitando o Oeste; este acredi­
ta ter escapado aos dois e poder, na verdade, ensinar lições enquanto deixa
morrer a Terra e os homens. Acredita ser o único a conhecer o truque que Ü QUE É UM MODERNO?
permite ganhar sempre, justamente quando talvez tenha perdido tudo.
Após esta dupla digressão cheia de boas intenções, nós, modernos, A modernidade possui tantos sentidos quantos forem os pensadores
aparentemente perdemos um pouco de confiança em nós mesmos. Teria ou jornalistas. Ainda assim, todas as definições apontam, de uma forma
sido melhor não tentar acabar com a exploração do homem pelo homem? ou de outra, para a passagem do tempo. Através do adjetivo moderno,
Teria sido melhor não tentar tornar-se mestre e dono da natureza? Nos­ assinalamos um novo regime, uma aceleração, uma ruptura, uma revolu­
sas mais altas virtudes foram colocadas a serviço desta tarefa dupla, uma ção do tempo. Quando as palavras "moderno", "modernização" e "mow
do lado da política, outra do lado das ciências e tecnologias. E no entanto dernidade" aparecem, definimo$, por contraste, um passado arcaico e es­
nos voltaríamos tranquilamente para nossa juventude entusiasta e com­ tável. Além disso, a palavra encontra-se sempre colocada em meio a uma
portada, da mesma forma como os jovens alemães s_e voltam para seus pais polêmica, em uma briga onde há ganhadores e perdedores, os Antigos e
grisalhos: "A que ordens criminosas estávamos obedecendo?" "Poderemos os Modernos. "Moderno", portanto, é duas vezes assimétrico: assinala uma
dizer que não sabíamos?" ruptura na passagem regular do tempo; assinala um combate no qual há
Esta dúvida sobre o bom fundamento das boas intenções faz com que vencedores e vencidos. Se hoje há tantos contemporâneos que hesitam em
alguns de nós tenham se tornado reacionários de duas formas diferentes: empregar este adjetivo, se o qualificamos através de preposições, é porque
é preciso não mais querer acabar com a dominação do homem pelo ho­ nos sentimos menos seguros ao manter esta dupla assimetria: não pode­
mem, dizem alguns; é preciso não mais tentar dominar a natureza, dizem mos mais assinalar a flecha irreversível do tempo nem atribuir um prêmio
os outros. Sejamos definitivamente antimodernos, dizem todos. aos vencedores. Nas inúmeras discussões entre os Antigos e os Modernos,
Por outro lado, a expressão vaga de pós.:.modernismo resume bem o ambos têm hoje igual número de vitórias, e nada mais nos permite dizer
ceticismo malresolvido daqueles que recusam estas duas reações. Incapa- se as revoluções dão cabo dos antigos regimes ou os aperfeiçoam. De onde

14 Jamais fomos modernos Crise 15


o ceticismo interessantemente chamado de "pós"-moderno, ainda que ele mais nos proibimos de pensar os híbridos, mais seu cruzamento se torna
não saiba se é capaz de suceder para sempre aos modernos. possível; este é o paradoxo dos modernos que esta situação excepcional
Voltando atrás ao que dissemos, devemos retomar a definição da em que nos encontramos nos permite enfim captar. A segunda questão diz
modernidade, interpretar o sintoma da pós-modernidade, e compreender respeito aos pré-modernos, às outras naturezas-culturas. A hipótese, tam­
porque não nos dedicamos mais por inteiro à dupla tarefa da dominação bém demasiado ampla, é que, ao se dedicar a pensar os híbridos, eles não
e da emancipação. Será então preciso mover o céu e a terra para abrigar permitiram sua proliferação. É esta diferença que nos permitiria explicar
as redes de ciências e técnicas? Sim, é exatamente isso: o céu e a terra. a Grande Separação entre Nós e Eles, e que permitiria resolver finalmente
A hipótese deste ensaio- trata-se de uma hipótese e também de um a insolúvel questão do relativismo. A terceira questão diz respeito à crise
ensaio - é que a palavra "moderno" designa dois conjuntos de práticas atual: se a modernidade foi assim tão eficaz em seu trabalho de separação
totalmente diferentes que, para permanecerem eficazes, devem permane­ e de proliferação, por que ela está enfraquecendo hoje, nos impedindo de
cer distintas, mas que recentemente deixaram de sê-lo. _ü primeiro , conjunto sermos modernos de fato? Daí a última questão que é também a mais di­
de p�4�ic:_e3:_s__ cr_ia_,___po_r__"_t_�� d�!ão..'_' , mistura_s_ :��r_e �_ê_Il_e �?,s_A �_..8-.��5:-� �ggiple­ fícil: se deixamos de ser modernos, se não podemos mais separar o traba�
-
taffié�t� rn:,;os,_ h,_í�rid()s__d_e· n3_�llreza_ e_ �l1-ltuí,-í:l : ó _s,�gg�_4g__ ç_ri�,..P.9I,..�-'Euri­ lho de proliferação e o trabalho de purificação, o que iremos nos tornar?
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ficação", dua·s io:n_ai 9IJtoiógiç�_$ __in_t_��i�-�e,_nt_e 1 istin_t_as_,_ _ :ôl_ .99§ . J:iq�?:_gos, Como desejar as Luzes sem a modernidade? A hipótese, também por de­
dC lJin laclo_ _ e_:�. d9_s não-hu_ma_QQS,. de .OLttr9. Sem o primeiro conjunto, as masiado enorme, é de que será preciso reduzir a marcha, curvar e regular
práticas de �urÜÍcaÇ-ã�-�eriam vazias ou supérfluas. Sem o segundo, o tra­ a proliferação dos monstros através da representação oficial de sua exis­
balho da tradução seria freado, limitado ou mesmo interditado. O primeiro tência. Seria necessária uma outra democracia? Uma democracia estendi­
conjunto corresponde àquilo que chamei de redes, o segundo ao que cha­ da às coisas? Para responder a estas perguntas, deverei distinguir entre os
mei de crítica. O primeiro, por exemplo, conectaria em uma cadeia contí­ pré-modernos, os modernos, e mesmo entre os pós-modernos aquilo que
nua a química da alta atmosfera, as estratégias científicas e industriais, as eles têm de durável e o que têm de fatal. Perguntas demais, bem o sei, para
preocupações dos chefes de Estado, as angústias dos ecologistas; o segun­ um ensaio que não tem outra desculpa que não sua brevidade. Nietzsche
do estabeleceria uma partição entre um mundo _natural que sempre esteve dizia, sobre os grandes problemas, que eram como os banhos frios: é pre­
aqui, uma sociedade com interesses e questões previsíveis e estáveis, e um ciso entrar rápido e sair da mesma forma.
discurso independente tanto da referência quanto da sociedade.
Enquanto considerarmos separadamente estas práticas, seremos real­
mente modernos, ou seja, estaremos aderindo sinceramente ao projeto da
p�1rifi�.:_!,_ção� çrJ!!ca, ainda que este se desenvolva somente através da proli­
fe;a"Ção dos híb;lâos. A partir do momento em que desviamos nossa aten­
ção simultaneamente para o trabalho de purificação e o de hibridação,
deixamos instantaneamente de ser modernos, nosso futuro começa a mu­
dar. Ao mesmo tempo, deixamos de ter sido modernos, no pretérito, pois
tomamos consciência, retrospectivamente, de que os dois conjuntos de
práticas estiveram operando desde sempre no período histórico que se
encerra. Nosso passado começa a mudar. Enfim, se jamais tivéssemos sido
modernos, pelo menos não da forma como a crítica nos narra, as relações
tormentosas que estabelecemos com as outras naturezas-culturas seriam
transformadas. O relativismo, a dominação, o imperialismo, a má-fé, o
sincretismo seriam todos explicados de outra forma, modificando então a
antropologia comparada.
Qual o laço existente entre o trabalho de tradução ou de mediação e
o de purificação? Esta é a questão que eu gostaria de esclarecer. A hipóte­
se, ainda muito grosseira, é que a segunda possibilitou a primeira; quanto

16 Jamais fomos modernos Crise 17


2.
CONSTITUIÇÃO

A CONSTITUIÇÃO MODERNA

A modernidade é muitas vezes definida através do humanismo, seja


para saudar o nascimento do homem, seja para anunciar sua morte. Mas
o próprio hábito é moderno, uma vez que este continua sendo assimétrico.
Esquece o nascimento conjunto da "não-humanidade" das coisas, dos
objetos ou das bestas, e o nascimento, tão estranho quanto o primeiro, de
um Deus suprimido, fora do jogo. A modernidade decorre da criação con­
junta dos três, e depois da recuperação deste nascimento conjunto e do
tratamento. separado das três comunidades enquanto que, embaixo, os hí- •
bridos continuavam a multiplicar-se como uma consequência direta deste
tratamento em separado. É esta dupla separação que precisamos recons­
tituir, entre o que está acima e o que está abaixo, de um lado, entre os
humanos e os não-humanos, de outro.
Ocorre com estas duas separações aproximadamente o mesmo que
ocorre com aquela que distingue o judiciário do executivo. Esta última não
teria como descrever os múltiplos laços, as influêndas cruzadas, as nego­
dações contínuas entre os juízes e os políticos. No entanto, aquele que negar
a eficácia desta separação estará enganado. A separação moderna entre o
mundo natural e o mundo sodal tem o mesmo caráter constitudonal, com
o detalhe que, até o momento, ninguém se colocou em posição de estudar
os políticos e os cientistas simetricamente, já que pareda não haver um lugar
central. Em certo sentido, os artigos da lei fundamental que diz respeito à
dupla separação foram tão bem redigidos que nós a tomamos como uma
dupla distinção ontológica. Do momento em que traçamos este espaço
simétrico, restabelecendo assim o entendimento comum que organiza a se­
paração dos poderes naturais e políticos, deixamos de ser modernos.
Damos o nome de constituição ao texto comum que define este acordo
e esta separação. Quem deve escrevê-lo? No caso das constituições políti­
cas, a tarefa cabe aoS j uristas, mas estes só fizeram um quarto do trabalho
até agora, uma vez que esqueceram tanto o poder dentífico quanto o tra­
balho dos híbridos. No que diz respeito à natureza das coisas, a tarefa cabe
aos cientistas, que também fizeram apenas outro quarto do trabalho, pois
fingem esquecer o poder político, além de negarem aos híbridos qualqu.er
eficácia, ao mesmo tempo em que os multiplicam. Quanto ao trabalho de
tradução, é tarefa para os que estudam as redes, mas estes cumpriram

Constituição 19
apenas metade de seu contrato, já que não explicaram o trabalho de puri­ e por que estes ramos se separam, assim como os múltiplos arranjos que
ficação que se realiza acima deles, o qual explica esta proliferação. os reúnem. O etnólogo de nosso mundo deve colocar-se no ponto comum
Quanto aos coletivos estrangeiros, é tarefa da antropologia falar ao onde se dividem os papéis, as ações, as competências que irão enfim per­
mesmo tempo sobre todos os quadrantes. Na verdade, como já disse, qual­ mitir definir certa entidade como animal ou material, uma outra como
quer etnólogo é capaz de escrever, na mesma monografia, a definição das sujeito de direito, outra como sendo dotada de consciência, ou maquinal,
forças presentes, a repartiçã o dos poderes entre humanos, deuses e não­ e outra ainda como inconsciente ou incapaz. Ele deve até mesmo compa­
-humanos, os procedimentos de consensualização, os laços entre a religião rar as formas sempre diferentes de definir ou não a matéria, o direito, a
e os poderes, os ancestrais, a cosmologia, o direito à propriedade e as consciência, e a alma dos animais sem partir da metafísica moderna. Da
taxonomias de plantas e vegetais. O etnólogo evitará escrever três livros mesma forma que a constituição dos juristas define os direitos e deveres
- um para os conhecimentos, outro para os poderes, e um último para as dos cidadãos e do Estado, o funcionamento da justiça e as transmissões
práticas. Escreverá apenas um, como aquele, magnífico, em que Descola de poder, da mesma forma esta Constituição - que escrevo com maiús­
tenta resumir a constituição dos achuar da Amazônia (Descola, 1986): cula para distingui-la da outra- define os humanos e não-humanos, suas
propriedades e suas relações, suas competências e seus agrupamentos.
"Os achuar, entretanto, não se apropriaram completa­ Como descrever esta Constituição? Escolhi concentrar-me sobre urna
mente da natureza nas redes simbólicas da domesticidade. Cla­ situação exemplar, no início de sua escrita, em pleno século XVII, quan­
ro, o campo cultural aqui é particularmente abrangente, uma do Boyle, o cientista, e Hobbes, o cientista político, discutem entre si a
vez que nele se encontram classificados animais, plantas, e es­ respeito da repartição dos poderes científicos e políticos. Esta escolha po­
píritos que dizem respeito ao domínio natural em outras socie­ deria parecer arbitrária se um livro notável não tivesse acabado de se agregar
dades ameríndias. Nã o encontramos, portanto, nos achuar, a esta dupla criação de um contexto social e de uma natureza que lhe es­
esta antinomia entre dois mundos fechados e irredutivelmente caparia. Boyle e seus descendentes, Hobbes e seus seguidores irão servir­
opostos: o mundo cultural da sociedade humana e o mundo -me de exemplo e resumo para uma história muito mais longa que sou in­
natural da sociedade animal. Há, ainda assim, um momento capaz de retraçar aqui, mas que outros, mais bem equipados que eu, irão
em que o continuum de sociabilidade é interrompido para dar sem dúvida narrar.
lugar a um universo selvagem irredutivelmente estranho ao
homem. Incomparavelmente mais reduzido que o domínio da
cultura, este pequeno segmento de natureza compreende o con­ BOYLE E SEUS OBJETOS
junto das coisas com as quais nenhuma comunicação pode ser
estabelecida. Aos seres possuidores de linguagem (aents), dos "Não concebemos a política como algo exterior à esfera
quais os humanos são a encarnação mais completa, opõem-se científica e que poderia, de certa forma, sobrepor-se a ela. A
as coisas mudas, que povoam universos paralelos e inacessíveis. comunidade experimental [criada por Boyle] lutou, justamen­
A incomunicabilidade é muitas vezes atribuída a uma falta de te, para impor este vocabulário da demarcação, e nos esforça­
alma (wakan) que afeta algumas espécies vivas: a maior parte mos para situar historicamente esta linguagem e para explicar
dos insetos e dos peixes, os animais rastejantes e numerosas os avanços destas novas convenções do discurso. Se desejamos
plantas são, assim, dotados de uma existência maquinal e in­ que nossa pesquisa seja respeitada do ponto de vista histórico,
consequente. Mas a ausência de comunicação é por vezes fun­ é preciso que evitemos usar de forma superficial a língua des­
ção da distância; infinitamente afastada e prodigiosamente tes atores em nossas próprias explicações. É precisamente esta
móvel, a alma dos astros e dos meteoros permanece surda aos linguagem que permite conceber a política como algo exterior
discursos dos homens" (p. 399). à ciência que tentamos compreender e explicar. Chocamo-nos,
neste ponto, com a visão geral dos historiadores da ciência que
A tarefa da antropologia do mundo moderno consiste em descrever pensam ter ultrapassado há muito as noções de "interior" e
da mesma maneira como se organizam todos os ramos de nosso governo, "exterior" da ciência. Grave erro! Estamos apenas começando
inclusive os da natureza e das ciências exatas, e também em explicar como a entrever os problemas colocados por estas convenções de de-

20 Jamais fomos modernos Constituição 21


limitação. Como, historicamente, os atores científicos distribui ço de Torricelli no alto de um tubo de mercúrio entornado em um recipiente
os elementos de acordo com seu sistema de delimitação (e não do mesmo metal, ele tenciona investigar apenas o peso e a elasticidade do
de acordo com o nosso), e como podemos estudar empirica­ ar sem tomar partido na briga entre plenistas e vacuístas. O aparelho que
mente as formas que eles possuíam de conformar-se a este siste­ ele desenvolve a partir do modelo de Otto von Guericke para expulsar de
ma? Isto que chamamos de "ciência" não possui nenhuma de­ forma duradoura o ar de um recipiente de vidro transparente é o equiva­
marcação que possamos tomar como fronteira natural" (p. 342). lente, para a época, em termos de custo, de complicação, de novidade, de
um dos grandes equipamentos da física contemporânea. Já é B ig Science.
Esta longa citação, extraída do fim de um livro de Steven Shapin e A grande vantagem das aparelhagens de Boyle é a de permitir a visão através
Simon Schaffer (Shapin e Schaffer, 1985), marca o verdadeiro princípio das paredes de vidro e de poder introduzir ou mesmo manipular amostras,
de uma antropologia comparada que leva a sério a ciência (Latour, 1990c). graças a uma série de mecanismos engenhosos de válvulas e de redomas.
Eles não mostram como o contexto social da Inglaterra podia justificar o Nem os pistões da bomba, nem os vidros espessos, nem as juntas são su­
desenvolvimento da física de Boyle e o fracasso das teorias matemáticas ficientemente bons. Boyle deve, portanto, fazer com que a pesquisa tecno­
de Hobbes, eles lidam com o próprio fundamento da filosofia política. Lon­ lógica avance o suficiente para que ele possa realizar a experiência que lhe
ge de "situar os trabalhos científicos de Boyle em seu contexto social" ou é mais cara: a do vácuo no vácuo. Ele fechou um tubo de Torricelli na
de mostrar como a política "deixa vestígios" nos conteúdos científicos, eles redoma de vidro da bomba e obteve, assim, um primeiro espaço no topo
examinam como Boyle e Hobbes brigaram para inventar uma ciência, um do tubo invertido. Depois, fazendo com que um de seus técnicos - por
contexto e uma demarcação entre os dois. Eles não estão em posição de sinal, invisíveis (Shapin, 19916) - acionasse a bomba, suprimiu o peso
explicar o conteúdo pelo contexto, já que nem um nem outro existiam desta do ar o suficiente para fazer descer o nível da coluna que chega quase a
forma nova, antes que Boyle e Hobbes tivessem atingido seus respectivos atingir o nível do mercúrio da bacia. Boyle irá desenvolver dezenas de
fins e resolvido suas diferenças. experiências no interior da redoma lacrada de sua bomba de ar, destina­
A beleza deste livro deve-se ao fato de eles terem desenterrado os das a detectar o vento de éter postulado por seus adversários, ou a expli­
trabalhos científicos de Hobbes- que os cientistas políticos ignoravam, car a coesão de cilindros de mármore, ou ainda a sufocar pequenos ani­
pois tinham vergonha das elucubrações matemáticas de seu herói - e ti­ mais e apagar velas, tal como a física de entretenimento do século XVIII
raram do esquecimento as teorias políticas de Boyle- que os historiado­ iria popularizar mais tarde.
res da ciência ignoram porque tentam esconder o trabalho de organiza­ No momento em que uma dúzia de guerras civis são deflagradas,
ção de seu herói. Ao invés de uma assimetria e de uma divisão Boyle Boyle escolhe um método de argumentação, o da opinião, ridicularizado
com a ciência, Hobbes com a teoria política-, Shapin e Schaffer traçam pela mais ancestral tradição escolástica. Boyle e seus colegas abandonam
um belo quadro: Boyle possui uma ciência e uma teoria política; Hobbes a certeza do raciocínio apodítico pela doxa. Esta doxa não é a imagina­
uma teoria política e uma ciência. O quadro não seria interessante se os ção divagante das massas crédulas, mas sim um dispositivo novo para
heróis destas duas histórias possuíssem pensamentos por demasiado dis­ conseguir a adesão dos pares. Ao invés de fundar-se sobre a lógica, a ma­
tantes- se, por exemplo, um deles fosse um filósofo na linha de Paracelso temática ou a retórica, Boyle funda�se sobre uma metáfora parajurídica:
e o outro um legista no estilo Bodin. Por sorte, entretanto, eles concordam testemunhas confiáveis, bem-aventuradas e sinceras reunidas em torno da
sobre quase tudo. Ambos desejam um rei, um parlamento, uma Igreja dócil cena da ação podem atestar a existência de um fato, the matter of fact,
e unificada, e são adeptos fervorosos da filosofia mecanicista, Mas ainda mesmo se não conhecerem sua verdadeira natureza. Boyle inventou, as­
que ambos sejam profundamente racionalistas, suas opiniões divergem sim, o estilo empírico que usamos até hoje (Shapin, 1991a).
quanto àquilo que deve ser esperado da experimentação, do raciocínio Ele não deseja a opinião dos cavalheiros, mas sim a observação de
científico, das formas de argumentação política e, sobretudo, da bomba um fenômeno produzido artificialmente em um lugar fechado e protegi­
de ar, verdadeiro herói desta história. As diferenças entre estes dois ho­ do, o laboratório. Ironicamente, a questão chave dos construtivistas- os
mens, que no entanto concordam sobre todo o resto, os tornam as "dro­ fatos são completamente construídos no laboratório? - é exatamente a
sófilas" da nova antropologia. mesma que Boyle levanta e resolve. Sim, os fatos são inteiramente construí­
Boyle abstém-se cuidadosamente de falar sobre a bomba de vácuo. dos nesta nova instalação que é o laboratório, e através da intermediação
A fim de colocar ordem nos debates que se seguem à descoberta do espa- artificial da bomba de ar. O nível realmente desce no tubo de Torricelli

22 Jamais fomos modernos Constituição 23


inserido na redoma transparente da bomba acionada por técnicos sem fô­ são ainda mais quando invocam os poderes ativos da matéria e a interpre­
lego. "Os fatos são feitos )', diria Bachelard. Mas seriam eles falsos por se­ tação livre da Bíblia para desobedecer a seus príncipes legítimos. Uma
rem construídos pelo homem? Não, já que Boyle, assim como Hobbes, matéria inerte e mecânica também é tão essencial à paz civil quanto uma
estende ao homem o "construtivismo )' de Deus- Deus conhece as coisas interpretação puramente simbólica da Bíblia. Em ambos os casos, é im­
porque ele as cria (Funkenstein, 1986). Nós conhecemos a natureza dos portante evitar a qualquer custo que determinada facção possa invocar uma
fatos porque os elaboramos em circunstâncias perfeitamente controladas. Entidade superior - a Natureza ou Deus - que não seria plenamente
A fraqueza torna-se urna força, contanto que limitemos o conhecimento à controlada pelo soberano.
natureza dos fatos instrumentalizada e que deixemos de lado a interpre­ Este reducionismo não levaria a um Estado totalitário, já que Hobbes
tação das causas. Novamente, Boyle transforma uma imperfeição- pro­ o aplica à própria República: o soberano será apenas um ator designado
duzimos apenas matters of fact criados em laboratório, que só possuem pelo contrato social. Não há direito divino, não há instância superior que
valor local - em uma vantagem decisiva: estes fatos jamais serão muda­ possam ser invocados pelo soberano para que ele possa agir como quiser
dos, aconteça o que acontecer em termos de teoria, de metafísica, de reli­ e desmantelar o Leviatã. Neste novo regime, no qual o conhecimento se
gião, de política ou de lógica. iguala ao poder, tudo se encontra reduzido: o soberano, Deus, a matéria e
a multidão. Hobbes se proíbe até mesmo de tornar sua própria ciência do
Estado a invocação de uma transcendência qualquer. Todos seus resulta­
HOBBES E SEUS SUJEITOS dos científicos são obtidos não através da opinião, da observação ou da
revelação, mas sim através de uma demonstração matemática, o único
Hobbes desacredita todo o dispositivo de Boyle. Ele também quer ter­ método de argumentação capaz de obrigar todos a concordar; e esta de­
minar com a guerra civil; ele também quer abandonar a interpretação livre monstração, ele chega até ela não através de cálculos transcendentais, corno
da Bíblia pelos padres e pelo povo. Mas é através de uma unificação do corpo o rei de Platão, mas sim por um instrumento de computação pura, o cére­
político que ele deseja atingir seu objetivo. O soberano criado através do bro mecânico, predecessor do computador. Mesmo o famoso contrato
contrato, "este Deus mortal ao qual devemos, sob o Deus imortal, nossa social é apenas o resultado de um cálculo ao qual todos os cidadãos ater­
paz e nossa proteção", é apenas o representante de uma multidãb. "É a rorizados que buscam libertar-se do estado natural chegam juntos subita­
unidade daquele que representa, não a unidade do representado, que torna mente. Este é o construtivismo generalizado de Hobbes para pacificar as
única a pessoa." Hobbes tem uma obsessão por esta unidade da Pessoa que guerras civis: nenhuma transcendência, qualquer que seja ela, nem recur­
é, em suas palavras, o Ator do qual nós, cidadãos, somos o Autor (Hobbes, so a Deus, nem a uma matéria ativa, nem a um poder de direito divino,
1971). É por causa desta unidade que não pode haver transcendência. As nem mesmo às ideias matemáticas.
guerras civis irão proliferar enquanto existirem entidades sobrenaturais que Agora, tudo está pronto para o confronto entre Hobbes e Boyle. Depois
os cidadãos se sentirão no direito de invocar quando as autoridades deste que Hobbes reduziu e reunificou o corpo político, eis que surge a Royal
mundo os perseguirem. A lealdade da velha sociedade medieval- Deus e Society para dividir tudo de novo: alguns cavalheiros proclamam o direito
Rei- não é mais possível se cada um pode, diretamente, implorar a Deus de possuir uma opinião independente, em um espaço fechado, o laborató­
ou designar seu rei. Hobbes quer negar todos os apelos a entidades ditas rio, sobre o qual o Estado não exerce nenhum controle. E quando estes agi­
superiores à autoridade civil. Deseja reencontrar a unidade católica, mas tadores alcançam um acordo entre eles, não é através de uma demonstra­
fechando, ao mesmo tempo, o acesso à transcendência divina. ção matemática que todos seriam forçados a aceitar, mas sim através de
Para Hobbes, o poder é conhecimento, o que significa que só pode experiências observadas pelos sentidos enganosos, experiências que perma­
existir um único conhecimento, um único poder caso se deseje dar um basta necem sem explicação e pouco conclusivas. Pior ainda, esta nova confraria
às guerras civis. É por isso que a maior parte do Leviatã faz a exegese do decide concentrar seus trabalhos sobre uma bomba de ar que produz no­
Antigo e do Novo Testamento. Um dos maiores perigos para a paz civil vamente corpos imateriais, o vácuo, como se Hobbes já não tivesse tido
vem da crença em corpos imateriais, como os espíritos, os fantasmas ou problemas suficientes para livrar-se dos fantasmas e dos espíritos! Eis que
as almas, aos quais as pessoas apelam contra o julgamento do poder civil. estamos novamente, teme Hobbes, em plena guerra civil! Não teremos mais
Antígona seria perigosa, ao proclamar a superioridade da piedade sobre a que aguentar os Levellers e os Diggers, que contestavam a autoridade do
''razão de Estado" de Creonte; os equalitários, os Levellers e os Diggers o rei em nome de sua interpretação pessoal de Deus e das propriedades da

24 Jamais fomos modernos Constituição 25


matéria - já que foram adequadamente exterminados-, mas será preci­ bomba, cujo ar é aspirado graças a uma manivela acionada por um técni­
so suportar esta nova claque de sábios que irá se meter a contestar a auto­ co. Como a experiência do pássaro pode traduzir, deslocar, transportar,
ridade de todos em nome da natureza, invocando para isso acontecimen­ deformar todas as outras controvérsias, de tal forma que aqueles que do­
tos de laboratório inteiramente fabricados! Se for permitido que as expe­ minam a bomba dominam também o rei, Deus, e todo seu contexto?
riências produzam suas matters of fact e se elas deixam o vácuo infiltrar-se Hobbes bem que tenta contornar tudo que se parece com trabalho
na bomba de ar, e a partir daí, na filosofia natural, então a autoridade es­ experimental, mas Boyle faz com que a discussão passe por um conjunto
tará dividida: os espíritos imateriais irão novamente levar todos à revolta, de detalhes sórdidos relativos aos vazamentos, às juntas e manivelas de sua
ao oferecer um tribunal de recursos às frustrações. O conhecimento e o poder máquina. Da mesma forma, os filósofos da ciência e os historiadores das
estarão novamente divididos. As imagens estarão "duplicadas", segundo a ideias gostariam de evitar o mundo do laboratório, esta cozinha repugnan­
expressão de Hobbes. Estas são as advertências que ele dirige ao rei para te onde os conceitos são refogados com ninharias. Shapin e Schaffer obri­
denunciar os atos da Royal Society. gam suas análises a girarem em torno do objeto, em torno de um vazamen­
to, da junta de determinada bomba de ar. A prática da fabricação dos ob­
jetos retoma o lugar preponderante que havia perdido na crítica. O livro
A MEDIAÇÃO DO LABORATÓRIO de nossos dois amigos não é empírico apenas por possuir uma abundância
de detalhes, mas também por fazer a arqueologia deste objeto novo que nasce
Esta interpretação política do plenismo de Hobbes não seria sufi­ no século XVII no laboratório. Shapin e Schaffer, assim como Hacking
ciente para tornar o livro de Shapin e Schaffer a base da antropologia com­ (Hacking, 1989), fazem, de forma quase etnográfica, aquilo que os filóso­
parada. Qualquer bom historiador das ideias poderia, afinal, ter feito o fos da ciência não fazem mais: mostrar os fundamentos realistas das ciên­
mesmo trabalho. Mas em três capítulos decisivos nossos autores deixam cias. Mas, ao invés de falar da realidade exterior out there, eles fixam a
os confins da história intelectual e passam do mundo das opiniões e da realidade indiscutível da ciência, down there, no chão.
argumentação para o da prática e das redes. Pela primeira vez nos estu­ As experiências nunca funcionam bem. A bomba vaza. É preciso
dos sobre as ciências, todas as ideias relativas a Deus, ao rei, à matéria, ajeitá-la. Aqueles que são incapazes de explicar a irrupção dos objetos no
aos milagres e à moral são traduzidas, transcritas e obrigadas a passar coletivo humano, com todas as manipulações e práticas que eles necessi­
pelos detalhes de funcionamento de um instrumento. Antes deles, outros tam, não são antropólogos, uma vez que aquilo que constitui, desde a época
historiadores da ciência haviam estudado a prática científica; outros his­ de Boyle, o aspecto mais fundamental de nossa cultura, foge a eles: vive­
toriadores haviam estudado o contexto religioso, político e cultural da mos em sociedades que têm por laço social os objetos fabricados em labo­
ciência; mas ninguém até então havia sido capaz de fazer os dois ao mes­ ratório; substituímos as ideias pelas práticas, os raciocínios apodíticos pela
mo tempo. doxa controlada, e o consenso universal por grupos de colegas. A boa
Da mesma forma como Boyle conseguiu transformar a bricolagem ordem que Hobbes tentava reencontrar foi anulada pela multiplicação dos
em torno de uma bomba de ar ajeitada no assentimento parcial de cava­ espaços privados nos quais é proclamada a origem transcendental de fa­
lheiros quanto a fatos que se tornaram indiscutíveis, da mesma forma Sha­ tos que, apesar de fabricados pelo homem, não são de autoria de ninguém
pin e Schaffer conseguem explicar como e por que discussões que dizem e que, conquanto não possuam uma causa, podem ser explicados.
respeito ao corpo político, a Deus e seus milagres, à matéria e seu poder, Como estruturar uma sociedade, se pergunta Hobbes, indignado,
devem passar pela bomba de ar. Este mistério jamais foi esclarecido pelos sobre o fundamento deplorável dos matters of fact? Ele se irrita particular­
que procuram uma explicação contextualista através das ciências. Eles mente com a mudança relativa na escala dos fenômenos. De acordo com
partem do princípio que existe um macrocontexto social - a Inglaterra, Boyle, as grandes questões relativas à matéria e aos poderes divinos po­
a disputa dinástica, o capitalismo, a revolução, os mercadores, a Igreía- dem ser submetidas a uma solução experimental, e esta solução será par­
e que este contexto, de certa forma, influencia, forma, reflete, repercute e cial e modesta. Ora, Hobbes rejeita a possibilidade do vácuo por motivos
exerce uma pressão sobre "as ideias relativas" à matéria, à elasticidade do ontológicos e políticos cujos princípios são filosóficos, e continua a ale­
ar, ao vácuo e aos tubos de Torricelli. Mas eles nunca explicam o estabe­ gar a existência de um éter invisível que deve estar presente, mesmo quan­
lecimento prévio de uma ligação entre Deus, o rei, o Parlamento, e dete r ­ do o operário de Boyle está cansado demais para acionar sua bomba. Em
minado pássaro sufocando n o recipiente fechado e transparente de uma outras palavras, ele exige uma resposta macroscópica a seus "macro"-

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argumentos, uma demonstração que provaria que sua ontologia não é ne­ A primeira vista, o repertório de Boyle não traz nada de muito novo.
cessária, que o vácuo é politicamente aceitável. E como Boyle responde? Os eruditos, os monges, os juristas e os escribas haviam elaborado todos
Escolhe, ao contrário, tornar sua experiência mais sofisticada, para mos­ estes recursos por mais de um milênio. Mas é seu ponto de aplicação que
trar o efeito que o vento de éter postulado por Hobbes (na esperança de é novo. Até então, os testemunhos haviam sempre sido humanos ou divi­
invalidar a teoria de seu detrator) tem sobre um detector - uma simples nos - nunca não-humanos. Os textos haviam sido escritos por homens
pena de galinha! (p. 182). Ridículo! Hobbes levanta um problema funda­ ou inspirados por Deus - jamais inspirados ou escritos por não-huma­
mental de filosofia política e desejam refutar suas teorias com uma pena nos. As cortes de justiça viram passar inúmeros processos humanos e di­
no interior de um recipiente de vidro no interior do castelo de Boyle! Obvia­ vinos - nunca causas que colocassem em jogo os comportamentos de não­
mente, a pena não se move nem um milímetro, e Boyle chega à conclusão -humanos em um laboratório transformado em tribunal de justiça. Ora,
que Hobbes está errado, que não existe um vento de éter. Entretanto, para Boyle as experiências em laboratório possuem mais autoridade que
Hobbes não pode estar enganado, já que ele se recusa a admitir que o fe­ os depoimentos não confirmados por testemunhas honrosas:
nômeno do qual ele fala possa produzir-se em qualquer outra escala que
não a da República inteira. Ele nega aquilo que irá tornar-se a caracterís­ "Em nossa experiência [do sino do mergulhador] expos­
tica essencial do poder moderno: a mudança de escala e os deslocamentos ta aqui, a pressão da água possui efeitos visíveis sobre os cor­
que o trabalho de laboratório pressupõe. Boyle, novo Gato de Botas, pre­ pos inanimados que são incapazes de preconceitos ou de dar
cisará apenas pegar o Ogro reduzido ao tamanho de um rato. apenas informações parciais, e terá mais peso junto às pessoas
sem preconceitos que as narrativas suspeitas e por vezes con­
traditórias de mergulhadores ignorantes, cujas ideias preconce�
Ü TESTEMUNHO DOS NÃO-HUMANOS bidas estão sujeitas a flutuações, e cujas próprias sensações,
como as da plebe, podem ser condicionadas por predisposições
A invenção de Boyle está completa. A despeito da opinião de Hobbes, ou muitas outras circunstâncias, e podem facilmente induzir ao
ele se apossa do velho repertório do direito penal e da exegese bíblica, para erro" (p. 218).
aplicá-los contudo ao testemunho das coisas testadas no laboratório. Con­
forme escrevem Shapin e Schaffer: Eis que intervém, na escrita de Boyle, um novo ator reconhecido pela
nova Constituição: corpos inertes, incapazes de vontade e de preconceito,
''Sprat e Boyle invocavam 'a prática das cortes de justiça mais capazes de mostrar, de assinar, de escrever e de rabiscar sobre os
na Inglaterra' para garantir a veracidade moral de suas conclu­ instrumentos de laboratório testemunhos dignos de fé. Estes não-huma­
sões e para dar mais validade a seu argumento de que a multi­ nos, privados de alma, mas aos quais é atribuído um sentido, chegam a
plicação dos testemunhos suscitava um'acúmulo de probabili­ ser mais confiáveis que o comum dos mortais, aos quais é atribuída uma
dades'. Boyle usava a cláusula da lei sobre a traição de Claren­ vontade, mas que não possuem a capacidade de indicar, de forma confiá­
don em 1661 segundo a qual, nos diz ele, dois testemunhos vel, os fenômenos. De acordo com a constituição, em caso de dúvida, mais
bastam para condenar um homem. Vemos que os modelos ju­ vale apelar aos não-humanos para refutar os humanos. Dotados de seus
rídicos e sacerdotais da autoridade representavam os principais novos poderes semióticos, aqueles irão contribuir para uma nova forma
recursos dos experimentadores. Os testemunhos confiáveis per­ de texto, o artigo de cíência experimental, híbrido entre o estilo milenar
tenciam, por isso mesmo, a uma comunidade digna de fé: os da exegese bíblica - até então aplicado exclusivamente às Escrituras e aos
papistas, os ateus e os sectários tinham sua narrativa questio­ clássicos - e o novo instrumento que produz novas inscrições. A partir
nada, o estatuto social do testemunho contribuía à sua credi­ de então, será em torno da bomba de ar em seu espaço fechado, e a res­
bilidade, e a coincidência entre as versões de muitas testemunhas peito do comportamento dotado de sentido dos não-humanos, que as tes­
tornava possível descartar os extremistas. Hobbes coloca no­ temunhas irão continuar seus debates. A velha hermenêutica irá continuar,
vamente em causa o fundamento desta prática: ele mostra o mas ela acrescentará a seus pergaminhos a assinatura trêmula dos instru­
costume que justificava a prática do testemunho como sendo mentos científicos (Latour e Noblet, 1985; Lynch, 1985; Latour, 1988a;
ineficaz e subversivo" (p. 327). Law e Fyfe, 1988; Lynch e Woolgar, 1990). Assim, com uma corte de jus-

28 Jamais fomos modernos Constituição 29


tiça renovada, todos os outros poderes serão derrubados, e é isto que tan­ simetria na invenção do repertório moderno, devemos compreender por­
to perturba Hobbes; mas esta reviravolta só é possível se qualquer laço com que Shapin e Schaffer permanecem assimétricos em sua análise, porque eles
os ramos políticos e religiosos do governo tornar-se impossível. atribuem maior penetração e capacidade explicativa a Hobbes do que a
Shapin e Schaffer levam a limites extremos sua discussão sobre os Boyle, quando seria preciso ter levado a simetria até o fim. Sua hesitação,
objetos, laboratórios, competências e mudanças de escala. Se é verdade.que na verdade, revela as dificuldades da antropologia comparada e, como o
a ciência não está fundada sobre ideias, mas sim sobre uma prática, se ela leitor provavelmente irá compartilhá-la, é interessante nos determos nela.
não está do lado de fora, mas sim do lado de dentro do recipiente transpa­ Em certo sentido, Shapin e Schaffer deslocam para baixo o centro de
rente da bomba de ar, se ela tem lugar no interior do espaço privado da referência tradicional da crítica. Se a ciência está fundada sobre as com­
comunidade experimental, então como ela poderia estender.:.se "por toda petências, os laboratórios e as redes, onde então iremos situá-la? É certo
parte", a ponto de tornar�se tão universal quanto as "leis de Boyle"? Bem, que nãÓ do lado das coisas em si, uma vez que os fatos são fabricados. Mas
ela não se torna universal, ao menos não à maneira dos epistemólogosl Sua é certo também que não será do lado do sujeito - sociedade/cérebro/es­
rede se estende e se estabiliza. A brilhante demonstração deste fato está em pírito/cultura -, uma vez que o pássaro que sufoca, as esferas de mármo­
um capítulo que é, assim como a obra de Harry Collins (Collins, 1985; re, o mercúrio que desce não são nossas próprias criações. Será então que
Collins, 1990) ou de Trevor Pinch (Pinch, 1986), um exemplo marcante da devemos situar a prática da ciência no meio desta linha que liga o polo
fecundidade dos novos estudos sobre as ciências. Ao seguirem a· reprodu­ objeto ao polo sujeito? Ela é um híbrido ou uma mistura? Um pouco ob­
ção de cada protótipo de bomba de ar através da Europa e a transforma­ jeto e um pouco sujeito?
ção progressiva de um eqüipamento custoso, pouco confiável e atravancante
em uma caixa preta de baixo custo, que aos poucos se torna um equipa­ Figura 1
mento comum em todos os laboratórios, os autores trazem a aplicação uni­ Polo Hobbes

0
Polo Boyle

01-----�
versal de uma lei física de volta ao interior de uma rede de práticas padro­ Homens-entre-eles

----1
Coisa-em-si

o
nizadas. Evidentemente, a interpretação da elasticidade do ar dada por Boyle
se propaga, mas se propaga exatamente com a mesma velocidade que a
comt,midade dos experimentadores e seus equipamentos. se desenvolvem.
Nenhuma ciência pode sair da rede de sua prática. O peso do ar certamen­
te continua a ser um universal, mas um universal em rede. Graças à exten­
I�

são desta, as competências e o equipamento podem tornar-se suficientemente
rotineiros para que a produção do vácuo torne-se tão invisível quanto o ar Construção no laboratório
que respiramos, mas universal como antigamente, nunca. de um objeto e de um contexto

Os autores não nos fornecem uma resposta final a esta pergunta. Da


0 ARTIFÍCIO DUPLO DO LABORATÓRIO E DO LEVIATÃ mesma forma que Hobbes e Boyle estão de acordo sobre tudo, exceto quanto
à forma de praticar a experimentação, os autores, que estão de acordo sobre
A escolha de tratar ao mesmo tempo de Hobbes e Boyle tem algo de tudo, não chegam a um acordo quanto à forma de tratar o contexto "so­
genial, uma vez que o novo princípio de simetria, destinado a explicar ao cial", quer dizer, a invenção simétrica, por Hobbes, de um humano capaz
mesmo tempo a natureza e a sociedade (ver abaixo) nos é imposto pela de ser representado. Os capítulos finais do livro oscilam entre uma expli­
primeira vez nos estudos sobre a ciência através de duas grandes figuras cação hobbesiana do próprio trabalho dos autores e um ponto de vista boy­
do início da era moderna. Hobbes e seus seguidores criaram os principais liano. Esta tensão apenas torna sua obra mais interessante, e fornece à an­
recursos de que dispomos para falar do poder - representação, sobera­ tropologia das ciências uma nova linhagem de "drosófilas" perfeitamente
no, contrato, propriedade, cidadãos -, enquanto que Boyle e seus segui­ adequadas, já que se distinguem apenas por uns poucos traços. Shapin e
dores elaboraram um dos repertórios mais importantes para falar da na­ Schaffer consideram as explicações macrossociais de Hobbes relativas à
tureza experiência, fato, testemunho, colegas. O que nós ainda não ciência de Boyle como sendo mais convincentes que os argumentos usados
sabíamos, é que se tratava de uma dupla invenção. Para compreender esta por Boyle para refutar Hobbes! Formados no âmbito do estudo social das

Constituição 31
30 Jamais fomos modernos
ciências (Callon e Latour, 1991 ), é mais difícil para eles desconstruir o con­ nos oferece esta forma assimétrica de explicar o saber pelo poder? Hobbes
texto macrossocial do que a natureza out there. Parecem acreditar que real­ novamente, e sua construção de uma macroestrutura monista na qual o único
mente existe uma sociedade up there que explicaria o fracasso do progra­ lugar que cabe ao conhecimento é o de sustentar a ordem social. Os auto­
ma de Hobbes. Ou, para ser mais exato, não chegam a fechar a questão, res desconstroem magistralmente a evolução, a difusão e a banalização da
anulando na conclusão aquilo que haviam demonstrado no capítulo VII, e bomba de ar. Por que então não desconstroem a evolução, a difusão e a
mais uma vez anulando sua argumentação na última frase do livro: banalização do "poder" ou da "força" ? A "força" seria menos problemá­
tica do que a elasticidade do ar? Se a natureza e a epistemologia não são
"Nem nosso conhecimento científico, nem a constituição constituídas de entidades trans-históricas, então a história e a sociologia
de nossa sociedade, nem as afirmações tradicionais relativas às também não o serão - a menos que adotemos a posição assimétrica dos
conexões entre nossa sociedade e nosso conhecimento conti­ autores e que sejamos simultaneamente construtivistas para a natureza e
nuam a ser vistos como predefinidos. À medida que descobri­ racionalistas para a sociedade! Mas é pouco provável que a elasticidade do
mos o estatuto convencional e construído de nossas formas de ar tenha fundamentos mais políticos do que a própria sociedade inglesa...
conhecimento, somos levados a compreender que somos nós -
e não a realidade - que estamos na origem daquilo que sabe­
mos. O conhecimento, assim como o Estado, é produto das REPRESENTAÇÃO CIENTÍFICA E REPRESENTAÇÃO POLÍTICA
ações humanas. Hobbes tinha razão" (p. 344).
Se formos até o fim da simetria entre as duas invenções de nossos dois
Não, Hobbes estava errado. Como poderia ter razão, quando foi ele autores, compreenderemos que Boyle não criou simplesmente um discurso
que inventou a sociedade monista na qual conhecimento e poder são uma científico enquanto Hobbes fazia o mesmo para a política; Boyle criou um
única e mesma coisa? Corno utilizar uma teoria tão grosseira para expli­ discurso político de onde a política deve estar excluída, enquanto que Hobbes
car a invenção de Boyle de uma dicotomia absoluta entre a produção de imaginou uma política científica da qual a ciência experimental deve estar
um conhecimento dos fatos e a política? Sim, "o conhecimento, assim como excluída. Em outras palavras, eles inventaram nosso mundo moderno, um
o Estado, é produto das ações humanas", mas é justamente por isso que a mundo no qual a representação das coisas através do laboratório encon­
invenção política de Boyle é muito mais fina do que a sociologia das ciên­ tra�se para sempre dissociada da representação dos cidadãos através do
cias de Hobbes. Para compreender o último obstáculo que nos separa de contrato social. Não foi, portanto, de forma alguma por engano que os
uma antropologia das ciências, devemos desconstruir a invenção consti­ filósofos políticos esqueceram tudo aquilo que está relacionado à ciência
tucional da Hobbes, de acordo com a qual haveria uma macrossociedade de Hobbes enquanto que os historiadores da ciência esqueceram as posi­
muito mais fechada e robusta que a natureza. ções de Boyle sobre a política das ciências. Era preciso que, a partir de então,
Hobbes inventa o cidadão calculador nu, cujos direitos se limitam a todos "vissem imagens duplicadas" e não fosse estabelecida uma relação
possuir e a ser representado pela construção artificial do soberano. Cria direta entre a representação dos não-humanos e a dos humanos, entre o
também a linguagem do poder = conhecimento, que está na base de toda artifício dos fatos e a artificialidade do corpo político. A palavra "repre­
real politik moderna. Oferece, igualmente, um repertório de análise dos sentação )' é a mesma, mas a controvérsia entre Hobbes e Boyle tornou im­
interesses humanos que, ainda hoje, continua a ser o vocabulário básico de pensável a similitude dos dois sentidos da palavra. Hoje em dia, quando não
toda a sociologia, juntamente com o de Maquiavel. Em outras palavras, ainda somos mais totalmente modernos, os dois sentidos aproximam�se novamente.
que Shapin e Schaffer tenham tomado muitas precauções para não usar a Os dois ramos do governo elaborados por Boyle e Hobbes, cada um
expressão "fato científico" como um recurso, mas sim como uma invenção de seu lado, só possuem autoridade quando claramente separados: o Es�
histórica e política, não tomaram nenhum cuidado com a língua política em tado de Hobbes é impotente sem a ciência e a tecnologia, mas Hobbes fala
si. Empregam as palavras "poder )' , "interesse" e "política') de forma total­ apenas da representação dos cidadãos nus; a ciência de Boyle é impotente
mente inocente no capítulo VIL Mas quem inventou estas palavras com seu sem uma delimitação precisa das esferas religiosa, política e científica, e é
significado moderno? Hobbes! Nossos autores, portanto, também veem por isso que ele está tão preocupado em suprimir o monismo de Hobbes.
"imagens duplicadas" e perdem o fio da meada, criticando a ciência mas São dois pais fundadores, agindo em conjunto para promover uma única
engolindo a política corno a única fonte de explicações válida. Mas quem e mesma inovação na teoria política: cabe à ciência a representação dos

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32 Jamais fomos modernos Constituição 33

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não-humanos, mas lhe é proibida qualquer possibilidade de apelo à polí­ discípulos, começamos a conceber o que é uma força natural, um objeto
tica· cabe à política a representação dos cidadãos, mas lhe é proibida qual­ mudo, mas que possui - ou ao qual foram dados sentidos.
que� relação com os não-humanos produzidos e mobilizados pela ciência Em seu debate, os descendentes de Hobbes e de Boyle nos fornecem
e pela tecnologia. Hobbes e Boyle brigam para definir os dois recursos que os recursos que usamos até hoje: de um lado, a força social, o poder; do outro,
até hoje utilizamos sem pensar no assunto, e a intensidade de sua dupla a força natural, o mecanismo. De um lado, o sujeito de direito; do outro, o
batalha revela claramente a estranheza daquilo que inventam. objeto da ciência. Os porta-vozes políticos irão representar a multidão impli­
Hobbes define um cidadão nu e calculador que constitui o Leviatã, cante e calculadora dos cidadãos; os porta-vozes científicos irão de agora
este deus mortal, esta criatura artificial. O que sustenta o Leviatã? O cál­ em diante representar a multidão muda e material dos objetos. Os primeiros
culo dos átomos humanos gerado pelo contrato, o qual decide quanto à traduzem aqueles que os enviam, que não saberiam como falar todos ao
irreversível composição da força de todos nas mãos de um único. Do que mesmo tempo; os segundos traduzem aqueles que representam, que são
é feita essa força? Da autorização dada por todos os cidadãos nus a uma mudos de nascimento. Os primeiros podem trair, os segundos também. No
única pessoa que pode falar em seu nome. Quem age quando ele age? Nós, século XVII, a simetria ainda é visível, os porta-vozes ainda disputam entre
que delegamos a ele, de forma definitiva, nosso poder. A República é uma si, acusando-se mutuamente de multiplicar as fontes de conflito. Basta apenas
criatura artificial paradoxal, composta de cidadãos unidos apenas através um pequeno esforço para que sua origem comum torne-se invisível, para
da autorização dada a uma pessoa para representá-los todos. O soberano que só haja um porta-voz do lado dos homens, para que a mediação dos
fala em seu nome ou em nome daqueles que o autorizam? Questão inso­ cientistas torne-se invisível. Em breve a palavra "representação" tomará dois
lúvel que a filosofia moderna nunca terminou de desembaralhar. De fato sentidos diferentes, dependendo de estarmos falando de eleitos ou de coisas.
é o soberano quem fala, mas são os cidadãos que falam através dele. O
soberano torna-se seu porta-voz, sua persona, sua personificação. Ele tra­
duz os cidadãos e portanto pode traí-los. Estes últimos o autorizam e por­ As GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DOS MODERNOS
tanto podem interditá-lo. O Leviatã é feito apenas de cidadã_<>s, de cálculos,
de acordos e disputas. Resumindo, é feito apenas de relaçoes sociais. Ou Se a Constituição moderna inventa uma separação entre o poder cien­
antes, com Hobbes e seus seguidores, começamos a compreender o que tífico encarregado de representar as coisas e o poder político encarregado
significam as relações sociais, poderes, forças, sociedades. de representar os sujeitos, não devemos tirar disto a conclusão que os sujeitos
Mas Boyle define um artefato ainda mais estranho. Ele inventa o la­ estão longe das coisas. Hobbes, em seu Leviatã, refaz ao mesmo tempo a
boratório no interior do qual máquinas artificiais criam fenômenos por física, a teologia, a psicologia, o direito, a exegese bíblica e a ciência polí­
inteiro. AÍnda que artificiais, caros, difíceis de reproduzir e apesar do pe­ tica. Em seus escritos e suas cartas, Boyle retraça ao mesmo tempo a retó­
queno número de testemunhas confiáveis e treinadas, estes fatos represen­ rica científica, a teologia, a política científica, a ciência política e a herme­
tam a natureza como ela é. Os fatos são produzidos e representados no nêutica dos faros. Em conjunto descrevem como Deus deve reinar, como o
laboratório, nos textos científicos, admitidos e autorizados pela comuni­ novo rei da Inglaterra deve legislar, como os espíritos ou os anjos devem

l
dade nascente de testemunhas. Os cientistas são os representantes escru­ agir, quais as propriedades da matéria, como se deve questionar a natureza,
pulosos dos fatos. Quem fala quando eles falam? Os próprios fatos, sem quais os limites da discussão científica ou política, como manter a plebe
dúvida nenhuma, mas também seus porta-vozes autorizados. Quem fala, afastada, quais os direitos e os deveres das mulheres, o que devemos esperar
então: a natureza ou os homens? Questão insolúvel com a qual a filosofia da matemática. Na prática, portanto, eles se situam na velha matriz antropo­
das ciências irá defrontar-se durante quase três séculos. Em si, os fatos são lógica, repartem as competências das coisas e das pessoas, e ainda não fazem
mudos as forças naturais são mecanismos brutos. Os cientistas, porém, nenhuma separação entre a força social pura e o mecanismo natural puro.
afirma:U não falar nada: os fatos falam por si mesmos. Estes mudos são Este é todo o paradoxo moderno: se levamos em consideração os
portanto capazes de falar, de escrever, de significar �entro da redoma a:­ híbridos, estamos apenas diante de mistos de natureza e cultura; se consi­
_
tificial do laboratório ou naquela, ainda malS rarefeita, da bomba de va­ deramos o trabalho de purificação, estamos diante de uma separação to­
cuo. Pequenos grupos de cavalheiros fazem com que as forças naturais tes­ tal entre natureza e cultura. É a relação entre os dois processos que eu
temunhem, e testemunham uns pelos outros que eles não traem, mas an­ gostaria de compreender. Enquanto Boyle e Hobbes metem-se ambos em
tes traduzem o comportamento silencioso dos objetos. Com Boyle e seus política e religião e técnica e moral e ciência e direito, eles repartem as tarefas

34 Jamais fomos modernos Constituição 35


entre si de forma que um se limita à ciência das coisas e o outro à política dade aos murros, mas também que o Leviatã é durável e sólido, imenso e
dos homens. Qual a relação íntima entre seus dois movimentos? Será esta forte, que mobiliza o comércio, as invenções, as artes, e que o soberano
purificação necessária para permitir esta proliferação? Serão necessárias tem em suas mãos a espada de aço temperado e o cetro de ouro. Apesar
centenas de híbridos para que haja uma política simplesmente humana e de sua construção humana, o Leviatã ultrapassa infinitamente o homem
coisas simplesmente naturais? Será necessária esta distinção absoluta en­ que o criou, pois mobiliza em seus poros, em seus vasos, em seus tecidos
tre os dois movimentos para que permaneçam ambos eficazes? Como ex­ as coisas inumeráveis que lhe dão sua consistência e duração. E no entan­
plicar a potência deste arranjo? Qual é o segredo do mundo moderno? Para to, apesar desta duração obtida pela mobilização das coisas e revelada pelo
tentar captá-lo, é preciso generalizar os resultados de Shapin e Schaffer e trabalho da mediação, somos nós e somente nós que o constituímos uni­
definir a Constituição completa, já que Hobbes e Boyle escreveram ape­ camente pela força de nosso cálculo, nós, pobres cidadãos nus e desarma­
nas um de seus primeiros esboços. dos - conforme é demonstrado pelo trabalho de purificação.
Como para qualquer Constituição, é preciso medir as garantias que Mas estas duas garantias são contraditórias, não apenas uma em re­
ela oferece. O poder natural que os descendentes de Boyle definiram em lação à outra, mas cada uma por si, uma vez que fazem apelo ao mesmo
oposição aos descendentes de Hobbes, e que permite que os objetos mu­ tempo à transcendência e à imanência. Boyle e seus inumeráveis sucessores
dos falem com o auxílio de porta-vozes científicos fiéis e disciplinados, jamais cessarão de construir artificialmente a natureza e, ao mesmo tem­
oferece uma garantia capital: não são os homens que fazem a natureza, po, dizer que a descobrem; Hobbes e os cidadãos recentemente definidos
ela existe desde sempre e sempre esteve presente, tudo que fazemos é des­ não deixarão de construir o Leviatã pelo cálculo e pela força social, mas a
cobrir seus segredos. O poder político que os descendentes de Hobbes cada vez irão recrutar mais objetos para sustentá-lo de forma durável. Men­
definiram em oposição aos descendentes de Boyle faz com que diversos tem? Enganam-se? Nos enganam? Não, pois acrescentam urna terceira garan­
cidadãos falem a uma só voz através da tradução/traição de um sobera­ tia constitucional: primeiramente, a separação completa entre o mundo
no, o qual diz apenas aquilo que eles dizem. Este poder oferece uma ga­ natural - portanto, construído pelo homem - e o mundo social - por­
rantia igualmente capital: são os homens e apenas os homens que cons­ tanto, sustentado pelas coisas-, e, em segundo lugar, a separação total entre
troem a sociedade e que decidem livremente acerca de seu destino. o trabalho dos híbridos e o trabalho da purificação. As duas primeiras ga­
Se, assim como a filosofia política moderna, considerarmos estas duas rantias só serão contraditórias enquanto a terceira não afastá-las para sempre
garantias separadamente, elas continuam a ser incompreensíveis. Se a natu­ uma da outra, fazendo de uma simetria por demasiado óbvia duas assimetrias
reza não é feita pelos homens nem para eles, então ela continua a ser estran­ contraditórias que a prática resolve sem nunca poder expressar.
geira, para sempre longínqua e hostil. Sua própria transcendência nos esmaga
ou a torna inacessível. Simetricamente, se a sociedade é feita apenas pelos Figura 2
homens e para eles, o Leviatã, criatura artificial da qual somos ao mesmo
tempo a forma e a matéria, não seria capaz de se sustentar. Sua própria ima­
Primeiro paradoxo
A natureza não é uma construção nossa: A sociedade é uma construção nossa:
nência iria dissipá-lo imediatamente na guerra de cada um contra os outros. ela é transcendente e nos ultrapassa ela é imanente à nossa ação.
Mas não é separadamente que devemos considerar estas duas garantias cons­ infinitamente.
titucionais, a primeira assegurando a não-humanidade da natureza e a segun­
da, a humanidade do social. Elas foram criadas juntas. Sustentam-se mu­ Segundo paradoxo
tuamente. A primeira e a segunda garantias servem de contrapeso mútuo, Nós construímos artificialmente a Não construímos a sociedade, ela é trans•
natureza no laboratório: ela é imanente. cendente e nos ultrapassa infinitamente.
de checks and balances. Elas são apenas dois ramos do mesmo governo.
Olhando-as em conjunto, e não em separado, iremos perceber que Constituição
as garantias se invertem. Os descendentes de Boyle não dizem apenas que Primeira garantia: ainda que sejamos nós Segunda garantia: ainda que não sejamos
as leis da natureza escapam a nosso domínio, eles também as fabricam no que construímos a natureza, ela funciona nós que construímos a sociedade, ela
laboratório. Apesar de sua construção artificial na bomba de vácuo - é a como se nós não a construíssemos. funciona como se nós a construíssemos.
fase de mediação ou tradução -, os fatos escapam totalmente a toda e Terceira garantia: a natureza e a sociedade devem permanecer
qualquer fabricação humana - é a fase de purificação. Os descendentes
absolutamente distintas; o trabalho de purificação deve
permanecer absolutamente distinto do trabalho de mediação.
de Hobbes não afirmam apenas que os homens criam sua própria socie-

36 Jamais fomos modernos Constituição 37


Serão necessários muitos outros autores, muitas outras instituições, mo desdobramento que haviam aplicado à natureza e à sociedade. Sua
muitos outros regulamentos para completar este movimento esboçado pela transcendência o afastava infinitamente, de forma que ele não atrapalha­
disputa exemplar de Hobbes e Boyle. Mas a estrutura do conjunto pode va nem a ação livre da natureza, nem a da sociedade, mas conservava-se,
ser, agora, facilmente captada: estas três grandes visões de conjunto irão de qualquer forma, o direito de apelar a esta transcendência em caso de
permitir a mudança de escala dos modernos. Estes poderão fazer com que conflito entre as leis da natureza e as da sociedade. O homem moderno
a natureza intervenha em todos os pontos na construção de suas socieda­ podia ser ateu ao mesmo tempo em que permanecia religioso. Podia inva­
des sem deixar, com isso, de atribuir-lhe sua transcendência radical; po­ dir o mundo material e recriar livremente o mundo social, sem com isso
derão tornar-se os únicos atores de seu próprio destino político sem dei­ sentir-se um órfão demiurgo abandonado por todos.
xar, com isso, de sustentar sua sociedade através da mobilização da natu­ Ao reinterpretar os antigos temas teológicos dos cristãos, foi possí­
reza. De um lado, a transcendência da natureza não irá impedir sua ima­ vel colocar em jogo ao mesmo tempo a transcendência de Deus e sua ima­
nência social; do outro, a imanência do social não irá impedir o Leviatã nência. Mas este longo trabalho da Reforma do século XVI teria chega­
de continuar a ser transcendente. É preciso confessar que é uma bela cons­ do a resultados muito diferentes caso não se misturasse ao trabalho do
trução, que permite fazer tudo sem estar limitado por nada. Não é de se século XVII sobre a invenção conjunta dos fatos científicos e dos cida­
estranhar que esta Constituição tenha permitido, como se dizia outrora, dãos (Eisenstein, 1991). A espiritualidade foi reinventada, isto é, a trans­
"liberar algumas forças produtivas"... cendência do Deus todo-poderoso no foro íntimo sem que Ele intervies­
se em nada no foro exterior. Uma religião totalmente individual e espiri­
tual permitia criticar tanto a dominação da ciência quanto a da socieda­
A QUARTA GARANTIA: A DO DEUS SUPRIMIDO de, sem com isto obrigar Deus a intervir em uma ou na outra. Tornava­
-se possível, para os modernos, serem ao mesmo tempo laicos e piedosos.
Era preciso, entretanto, evitar o restabelécimento de uma simetria A garantia constitucional não era dada por um Deus supremo, mas sim
demasiado perfeita entre as duas garantias da Constituição, o que teria por um Deus ausente- e contudo sua ausência não impedia que dele se
impedido o duo de trabalhar a todo vapor. Era preciso que uma quarta dispusesse à vontade na intimidade do coração. Sua posição tornava-se
garantia resolvesse a questão de Deus, afastando-o para sempre da du­ ideal, uma vez que era colocado duas vezes entre parênteses. Uma primeira
pla construção social e natural, deixando-o ao mesmo tempo apresentá­ vez na metafísica, uma segunda na espiritualidade. Não mais atrapalha­
vel e intercambiável. Os sucessores de Hobbes e Boyle dedicaram-se à ta­ ria o desenvolvimento dos modernos, ao mesmo tempo em que perma­
refa com sucesso, os primeiros esvaziando a natureza da presença divi­ necia eficaz e fraternal no espírito dos humanos.
na, os segundos esvaziando a sociedade de qualquer origem divina. O Três vezes a transcendência e três vezes a imanência em uma tabe­
poder científico "não mais precisava desta hipótese"; quanto aos políti­ la que fecha todas as possibilidades. Nós não criamos a natureza; nós
cos, podiam fabricar o ''deus mortal" do Leviatã sem levar em conta o criamos a sociedade; nós criamos a natureza; nós não criamos a socieda­
Deus imortal cuja Escritura, já em Hobbes, só era interpretada pelo so­ de; nós não criamos nem uma nem outra, Deus criou tudo; Deus não
berano de forma figurativa. Ninguém é realmente moderno se não acei­ criou nada, nós criamos tudo. Quem não percebe que as quatro garan­
tar afastar Deus tanto do jogo das leis da natureza quanto das leis da Re­ tias servem umas às outras de checks and balances nada entende sobre
pública. Deus tornou-se o Deus suprimido da metafísica, tão diferente do os modernos. As duas primeiras permitem alternar as fontes de poder ao
Deus pré-moderno dos cristãos quanto a natureza construída em labora­ passar sem dificuldades da pura força natural à pura força política, e
tório o é da antiga physis ou quanto a sociedade o é do velho coletivo an­ inversamente. A terceira garantia impede qualquer contaminação entre
tropológico todo povoado por não-humanos. aquilo que pertence à natureza e aquilo que pertence à política, ao mes­
Mas um afastamento demasiado completo teria privado os moder­ mo tempo em que as duas primeiras garantias permitem a alternância
nos de um recurso crítico que lhes permitia completar seu dispositivo. Os entre uma e outra. A contradição seria por demais visível entre a tercei­
gêmeos natureza e sociedade estariam suspensos sobre o vazio sem que ra, que separa, e as duas primeiras, que alternam? Não, porque a quar­
ninguém pudesse decidir, em caso de conflito, qual dos dois ramos do ta garantia constitucional estabelece como árbitro um Deus infinita­
governo deveria predominar sobre o outro. Pior ainda, sua simetria teria mente distante que é ao mesmo tempo completamente impotente e juiz
aparecido claramente. Os modernos aplicaram ao Deus suprimido o mes- soberano.

38 Jamais fomos modernos Constituição 39


A modernidade não tem nada a ver com a invenção do humanismo, tureza e cada disciplina foi vivenciada como uma revolução total através
com a irrupção das ciências, com a laicização da sociedade, ou com a da qual ela se separava enfirn do Antigo Regime. Ninguém é moderno se
mecanização do mundo. Ela é a produção conjunta destas três duplas de não sentiu a beleza desta aurora e não vibrou com suas promessas.
transcendência e imanência, através de uma longa história da qual apre­ Mas a crítica não se dirigiu somente da natureza para os preconcei­
sentei apenas uma etapa por intermédio das figuras de Hobbes e Boyle. tos humanos. Logo começou a percorrer a outra direção, que levava das
O ponto essencial desta Constituição moderna é o de tornar invisível, im­ ciências sociais recém-fundadas rumo à falsa natureza. Estas foram as se­
pensável, irrepresentável o trabalho de mediação que constrói os híbri­ gundas Luzes, as do século XIX. Desta vez, o conhecimento preciso da
dos. Seria isto capaz de interromper este trabalho? Não, pois o mundo sociedade e de suas leis permitiu criticar não apenas os preconceitos do
moderno pararia imediatamente de funcionar, uma vez que ele vive da obscurantismo usual, como também os novos preconceitos das ciências
mistura, como todos os outros coletivos. A beleza do dispositivo surge naturais. Solidamente apoiado pela ciência da sociedade, tornava-se pos­
aqui em toda sua intensidade. A Constituição moderna permite, pelo con­ sível distinguir nas outras ciências uma parte realmente científica e uma
trário, a proliferação dos híbridos cuja existência - e mesmo a possibi­ outra devida à ideologia - a acusação crítica por excelência. Nas mistu­
lidade - ela nega. Usando três vezes seguidas a mesma alternância entre ras das primeiras Luzes, as segundas viram apenas uma mistura inaceitá­
transcendência e imanência, é possível mobilizar a natureza, coisificar o vel que era preciso purificar, separando cuidadosamente a parte que per­
social, sentir a presença espiritual de Deus defendendo ferrenhamente, ao tencia às coisas em si e a parte devida à economia, ao inconsciente, à lin­
mesmo tempo, que a natureza nos escapa, que a sociedade é nossa obra guagem ou aos símbolos. Todos as formas de pensar de outrora - aí in­
e que Deus não interfere mais. Quem teria resistido a uma tal constru­ cluídas certas ciências - tornaram-se ineptas ou aproximativas. Ou antes
ção? Foi realmente pi:eciso que acontecimentos inusitados viessem enfra­ uma sucessão de revoluções radicais criou, por contraste, um "outrora"
quecer este possante mecanismo para que, hoje, eu possa descrevê-lo com obscuro que em breve seria dissipado pela aurora luminosa das ciências
esta distância e esta simpatia de etnólogo para com um mundo em vias sociais. As armadilhas da naturalização e da ideologia científica se dissi­
de desaparecimento. pavam,- finalmente. Ninguém é moderno se não ansiou por esta aurora e
não vibrou com suas promessas.
Tornou-se mesmo possível aos invencíveis modernos combinar as
A POTÊNCIA DA CRÍTICA duas, tomando as ciências naturais como forma de criticar as falsas pre­
tensões do poder e utilizando as certezas das ciências humanas para criti­
Hoje, quando as capacidades críticas dos modernos se esgotam, é car as falsas pretensões das ciências e da dominação científica. O saber total
conveniente medir, pela última vez, sua prodigiosa eficácia. estava, enfim, ao alcance da mão. Se o marxismo pareceu, durante um longo
Liberados da hipoteca religiosa, tornaram-se capazes de criticar o tempo, incontornável, foi porque na verdade cruzava os dois recursos mais
obscurantismo dos antigos poderes ao desvelarem os fenômenos naturais poderosos que já foram desenvolvidos pela crítica e os congelava para
que estes dissimulavam - ao mesmo tempo em que inventavam os fenô­ sempre. Permitia que fosse conservada a parte de verdade das ciências
menos na redoma artificial do laboratório. As leis da natureza permiti­ naturais e sociais, ao mc:smo tempo em que eliminava cuidadosamente sua
ram que as primeiras Luzes demolissem totalmente as pretensões malfun­ parte maldita, sua ideologia. Ele fechava - nos dois sentidos da palavra,
damentadas dos preconceitos humanos. Ao aplicar seu padrão de leitu­ como iríamos em breve descobrir - todas as esperanças das primeiras lu­
ra, viram nos antigos híbridos apenas misturas indevidas que era preciso zes, bem como as das segundas. A distinção necessária entre os mecanis­
purificar, separando os mecanismos naturais das paixões, dos interesses mos materiais e as ilusões do obscurantismo, assim como a segunda dis­
ou da ignorância dos humanos. Todas as formas de pensar de outrora tor­ tinção entre a ciência e a ideologia continuam a ser, hoje, as duas princi­
naram-se ineptas ou aproximativas. Ou, antes, a simples aplicação da pais fontes da indignação moderna, ainda que não possam mais congelar
Constituição moderna define um "outrora" absolutamente diferente do a discussão como os marxistas faziam, e ainda que seu capital de crítica
belo presente (ver abaixo). O obscurantismo das idades passadas, que mis­ encontre-se, hoje, disseminado pelas mãos de pequenos investidores. Quem
turavam indevidamente necessidades sociais e realidade natural, foi subs­ nunca sentiu vibrar dentro de si esta dupla potência, ou quem nunca foi
tituído por uma aurora luminosa que separava claramente os encadeamen­ obstinado pela distinção entre o racional e o irracional, entre falsos sabe­
tos naturais e a fantasia dos homens. As ciências naturais definiam a na- res e verdadeiras ciências, jamais foi moderno.

40 Jamais fomos modernos Constituição 41


Figura 3 nos invencíveis. Se você os criticar dizendo que a natureza é um mundo
construído pelas mãos dos homens, irão mostrar que ela é transcendente
e que eles não a tocam. Se você lhes disser que a sociedade é transcenden­
Ponto de referência Possibilidade crítica

Transcendência da natureza Nada podemos contra as leis naturais te e que suas leis nos ultrapassam infinitamente, irão dizer que somos li­
vres e que nosso destino está apenas em nossas mãos. Se você fizer uma
Imanência da natureza Possibilidades ilimitadas
objeção dizendo que estão usando duplicidade, irão mostrar que não mis­
Imanência da sociedade Somos totalmente livres turam nunca as leis da natureza e a imprescritível liberdade humana. Se
você acreditar neles e desviar sua atenção, irão aproveitar para introduzir
milhares de objetos naturais no corpo social, dotando-o da solidez das
Transcendência da sociedade Nada podemos contra as leis sociais

coisas naturais. Se você se virar bruscamente, como na brincadeira infan­


Solidamente apoiado sobre a certeza transcendental das leis da natu­ til "estátua!", eles ficarão paralisados, com ar inocente, como se não ti­
reza, o moderno pôde criticar e desvendar, denunciar _e se indignar frente vessem se mexido: �quenin,,. as coisas em si; à direita, a sociedade livre
às crenças irracionais e às dominações não justificadas. Solidamente apoiado dc,_s _�ujeitos falantes e pensantes. Tudo acontece no meio, tudo trarisita entre
- -
sobre a certeza de que o homem constrói seu próprio destino, o moderrÍo asàt�a-�-'- �- �-?.?__o�_ orre_ _p��- rr,i�(ff�ção, Pº.�- -�-r�4u_çª?..�..P9J: _r_edes,. .n1�$� _�5te lug�
pôde criticar e desvendar, denunciar e se indignar frente às crenças irracio­ Ilãõ ·_e-�(St�, :1 ã·o_ o·�-�rr:�- [ifuiJ2s;.nsa"ª2., i�Pensável dos modegg;i_s�..,Qual
º
nais, às ideologias científicas, à dominação não justificada dos especialis­ óurra tOfffia de "E:s"fCilder os coletivos seria melhor do que juntar tanto a
tas que pretendiam traçar limites à ação e à liberdade. A única transcendência transcendência da natureza quanto a_ .,IQJ;.a.l lib(;rd:ld�-��Qlªna, incorporando
de uma natureza que não é obra nossa, bem como a única imanência de uma ao mesmo te_mpo a natureza e limitando de forma absoluta as margens de
sociedade que construímos por completo, iriam no entanto paralisar os liberdade? Isto permite, na verdade, que se faça tudo e também o contrário.
modernos, por demais impotentes diante das coisas e por demais potentes Os índios não estavam errados ao dizer que os brancos tinham a língua
frente à sociedade. Que enorme vantagem poder inverter os princípios sem dividida. Ao separar as relações de força de ordem política das relações de
que haja mesmo uma aparência de contradição. A natureza transcendente razões de ordem científica- mas sempre apoiando a razão sobre a força e

i
permanece, apesar de tudo, mobilizável, humanizável, socializável. Os la­ a força sobre a razão - os modernos sempre tiveram duas cartas sob as
boratórios, as coleções, os centros de cálculo e de lucro, os institutos de mangas. Tornaram-se invencíveis. Você acredita que o trovão é uma divinda­
pesquisa e os escritórios de desenvolvimento misturam esta natureza, dia­ de? A crítica irá mostrar que se trata, neste caso, de mecanismos físicos sem
ríamente, aos múltiplos destinos dos grupos sociais. Inversamente, apesar influência sobre os acontecimentos do mundo humano. Você está preso em
de construirmos a sociedade por inteiro, ela dura, ela nos ultrapassa, nos uma economia tradicional? A crítica irá mostrar que os mecanismos físicos
domina, ela tem suas leis, é tão transcendente quanto a natureza. Isto por­ podem transtornar a evolução do mundo humano ao mobilizarem gigantes­
que os laboratórios, as coleções, üs centros de cálculo e de lucro, os insti­ cas forças produtivas. Você acredita que os espíritos dos ancestrais o prendem
tutos de pesquisa e os escritórios de desenvolvimento traçam diariamente eternamente a suas leis? A crítica irá mostrar que os espíritos e as leis são
os limites da liberdade dos grupos sociais e transformam as relações huma­ construções sociais que você criou para si mesmo. Você pensa que pode fazer
nas em coisas duráveis que ninguém criou. É nesta dupla linguagem que reside tudo e desenvolver sociedades de qualquer forma que desejar? A crítica irá
a potência crítica dos modernos: podem mobilizar a natureza no seio das mostrar que as leis ferrenhas da sociedade e da economia são muito mais
relações sociais, ao mesmo tempo em que a mantêm infinitamente distante inflexíveis que as dos ancestrais. Você está indignado porque o mundo está
dos homens; são livres para construir e desconstruir sua sociedade, ao mesmo sendo mecanizado? A crítica irá falar sobre o Deus criador ao qual tudo
tempo em que tornam suas leis inevitáveis, necessárias e absolutas. pertence e que deu ao homem todas as coisas. Você está indignado que a
sociedade seja laica? A crítica irá mostrar que a espiritualidade foi libertada
por este laicismo, e que uma religião completamente espiritual é bem supe­
A INVENCIBILIDADE DOS MODERNOS rior. Você pensa ser religioso? A crítica irá rir de você até não poder mais!
Como as outras culturas-naturezas poderiam ter resistido? Tornaram­
Por· crer na separação total dos humanos e dos não-humanos, e por -se, por contraste, pré-modernas. Elas poderiam ter se oposto à natureza
simultaneamente anular esta separação, a Constituição tornou os moder- transcendente, ou à natureza imanente, 'ou à sociedade criada pelas mãos

42 Jamais fomos modernos Constituição 43


dos homens, ou à sociedade transcendente, ou ao Deus distante, ou ao Deus purificação. Ou antes, mesmo esta diferença encontra-se inscrita na Cons­
íntimo, mas como resistir à combinação dos seis? Ou, pelo contrário, te­ tituição, já que o jogo duplo entre imanência e transcendência de cada uma
riam conseguido resistir se os seis recursos da crítica fossem visíveis em das três instâncias permite fazer tudo e qualquer coisa. Nunca houve Cons­
conjunto, como uma única operação, assim como os desenho hoje. Mas tituição que permitisse na prática tal margem de manobra. Mas o preço a
estes recursos pareciam estar separados, em conflito uns com os outros, pagar por esta liberdade foi que os modernos permaneceram incapazes de
misturando ramos do governo que se digladiavam, cada um deles apelan­ pensar a si mesmos. Todo o trabalho de mediação escapa do quadro cons­
do a fundamentos distintos. Além disso, todos estes recursos críticos da titucional que o traça e o nega.
purificação eram imediatamente refutados pela prática de mediação sem Não há nenhuma relação simples entre as características de um mo­
que, por isso, esta contradição tivesse qualquer influência quer sobre a mento histórico e a questão de saber se ele é ou não moderno. A moderni­
diversidade das fontes de poder, quer sobre sua unidade dissimulada. dade seria portanto uma ilusão? Não, é muito mais que uma ilusão, e muito
Ç)s modernos sentiram-se livres das últimas restrições que ainda po­ menos que uma essência. É uma força acrescentada a outras, as quais por
diam limitar sua expansão. Os _po_bre� _c?��tiv_os_ pré,-m_od�,rn_9s f()_r�m. acusa­ muito tempo teve o poder de representar, de acelerar ou de resumir, mas
.
_dºl- -�-��J!!.i&n1rªx.horrivelmenie -aS:·c:oiSãs�.CJ?SJi;�ig_a,_Ilos_, enqu �nt�-•que-Seus a partir de agora não mais, não completamente. A revisão que proponho
§��.?()_n?s...�º.n?e,��..iram _e_nfim ..s�pa1:�-�� s to�_a_lmerúe =· ·p'ãiâ��tSturl"-las é parecida com a realizada sobre a Revolução francesa há cerca de vinte
-
lOJ�2. e�..·s_;::?_�í?_:ª...I1.� r11a es�aJ_a_ja_ii!<�Jfy..fafa:,.�té ent_��ô... Co�ô'0S mo·crerllos anos- e as duas são na verdade uma única, como veremos a seguir. Des­
éSteilde"rã in eStá Gr·a�de bivisão no tempo;··aTéffi 'de a terem estendido no de os anos setenta, compreendemos que a leitura revolucionária da Revo�
espaço, selltiram-se absolutamente livres para não mais seguir as restrições lução acrescenta-se aos acontecimentos da época, organiza a historiografia
ridículas de seu passado que exigia que pessoas e coisas ... fossem
. levadas em desde 1789, porém não mais define os acontecimentos em si (Furet, 1978).
-- --
conta ao t11�smo tempo. Eres;êoritUãõ;'Tê\íàVà'iTI -erri c"õ"rifâ ffi{:dtõ mais coi- Como Furet propõe, é preciso distinguir a Revolução "modalidade da ação
---- . -
sas e mmto mars pessoas... histórica" e a "Revolução processo". O_s acontecimentos de J].8.9-.nãoJor-am­
""-•-;-•,�--•.-,�.,--�-�

Nem mesmo é possível acusá-los de serem céticos. Diga-lhes que são rev�luci(?_Il_átig-�,,,.ª-�§i!P�S:QffiQ..Q}!!!-!E..42�
- i_g2:.��o foi moQ.�.r,no. Os atores
ateus, e irão falar sobre o Deus todo-poderoso infinitamente afastado para ecro·nrstaS de 1789 usaram a noção d·� revoluçào para compreender o que
além do mundo. Diga-lhes que este Deus suprimido é de fato estrangeiro, lhes acontecia e para modificar seu destino. Da mesma forma, a Consti­
e dirão que Deus fala na intimidade do coração e que nunca deixaram de tuição moderna existe e age na história, de fato, porém não mais define
ser morais e piedosos, apesar de suas ciências e políticas. Fique espantado aquilo que aconteceu conosco. A modernidade ainda espera seu Tocqueville
perante uma religião que não tem nenhuma influência sobre os rumos do e as revoluções científicas seu François Furet.
mundo e da sociedade, eles irão dizer que esta religião julga ambos. Peça A modernidade, entretanto, não é a falsa consciência dos modernos,
para ler estes julgamentos, e irão objetar que a religião ultrapassa infini­ e nós devemos prestar atenção para reconhecer na Constituição, assim como
tamente a ciência e a política e que ela não seria capaz de influenciá-las, na ideia de Revolução, uma eficácia própria. Longe de ter eliminado o traba­
ou que a religião é uma construção social ou ainda um efeito dos neurônios. lho de mediação, esta permitiu seu crescimento. Da mesma forma como a

-
O que lhes dizer, então? Eles detêm todas as fontes de poder, todas ideia de Revolução levou os revolucionários a tomarem decisões irreversíveis
as possibilidades críticas, mas as deslocam de instância em instância com que não teriam ousado sem ela, a Constituição forneceu aos modernos a
tal rapidez que nunca é possível pegá-los com a mão na massa. Sim, deci­ audácia de mobilizar coisas e pessoas em uma escala que seria proibitiva
didamente, eles são, foram, quase foram, acreditaram-se invencíveis. sem ela. Esta modificação de escala não foi obtida, como os modernos acre­
ditam, através da separação dos humanos e não�humanos, mas sim, pelo
contrário, pela amplificação de sua mistura. Este crescimento é, por sua vez,
Ü QUE A CONSTITUIÇÃO ESCLARECE E O QUE ELA OBSCURECE facilitado pela ideia de uma natureza transcendente - contanto que per�
maneça mobilizável-, pela ideia de uma sociedade livre - contanto que
Entretanto, o mundo moderno jamais existiu, no sentido que jamais permaneça transcendente- e pela ausência de toda e qualquer divindade
funcionou de acordo com as regras de sua Constituição, separando as três contanto que Deus fale ao coração. Enquanto seus contrários permane­
regiões do Ser das quais falei e recorrendo, separadamente, aos seis recur­ cerem simultaneamente presentes e impensáveis e o trabalho de mediação
sos da crítica. A prática de tradução foi sempre diferente das práticas de multiplicar os híbridos, estas três ideias permitem a capitalização em gran-

44 Jamais fomos modernos Constituição 45


de escala. Os modernos pensam que só conseguiram tal expansão por te­ tir a estes que apareçam, em um momento qualquer', como elementos da
rem separado cuidadosamente a natureza e a sociedade (e colocado Deus "sociedade real". Os modernos, ao tornarem os mistos impensáveis, ao
entre parênteses), quando na verdade só o fizeram por terem misturado mas­ esvaziarem, varrerem, limparem, purificarem a arena traçada no meio de
sas muito maiores de humanos e não-humanos, sem colocar nada entre suas três instâncias, permitiram que a prática de mediação recombinasse
parênteses e sem proibir qualquer tipo de combinação! Foram gerados pela todos os monstros possíveis sem que eles tivessem um efeito qualquer so­
ligação do trabalho de purificação e do trabalho de mediação, mas só atri­ bre a construção da sociedade, e nem mesmo contato com ela. Por mais
buem os motivos de seu sucesso ao primeiro. estranhos que fossem, estes monstros não criavam nenhum problema, uma
A solução deste paradoxo talvez não seja tão difícil. Para ousar tais vez que não existiam socialmente e que suas consequências monstruosas
combinações, é importante acreditar que elas não têm qualquer tipo de permaneciam inimputáveis. Aquilo que os pré-modernos sempre proibi­
consequências graves sobre a ordem constitucional. O ,dualismo nature­ ram a si mesmos, nós podemos nos permitir, já que nunca há uma corres­
za/sociedade é indispensável aos modernos para que pos�ã'rü , justamellte, pondência direta entre a ordem social e a ordem natural.
�Wã-escala dos mistos entre objetos e sujeitos. Os pré-modernos, A bomba de ar de Boyle, por exemplo, poderia parecer uma quime­
por no fundo serem todos monistas na constituição de suas naturezas-cul­ ra bastante temível, uma vez que produz artificialmente um vácuo de la­
turas, se acreditarmos no que dizem os antropólogos (Lévi-Strauss, 1952), boratório, que permite definir ao mesmo tempo as leis da natureza, a ação
se proíbem, pelo contrário, de praticar aquilo que suas representações apa­ de Deus e a resolução dos conflitos na Inglaterra da Revolução Gloriosa.
rentemente permitiriam. "O indígena é um capitalizador lógico", disse Lévi­ De acordo com Horton, o pensamento selvagem teria imediatamente con­
-Strauss, "ele refaz, sem cessar, os laços, redobra incansavelmente sobre jurado esta quimera. Ora, o século XVII inglês irá, a partir de então, cons­
si mesmos todos os aspectos do real, sejam eles físicos, sociais ou mentais" truir a realeza, a natureza e a teologia com a comunidade científica e o
(Lévi-Strauss, 1962, p. 353). Ao saturar com conceitos os mistos de divi­ laboratório. A elasticidade do ar irá acrescentar-se aos atores que povoa­
no, humano e natural, limitam a expansão prática destes mistos. É a im­ vam a Inglaterra. E no entanto, este recrutamento de um novo aliado não
possibilidade de mudar a ordem social sem modificar a ordem natural - coloca nenhum problema, já que não há quimera, já que nada monstruo­
e inversamente - que obriga os pré-modernos, desde sempre, a ter uma so foi produzido, já que tudo que se faz é descobrir as leis da natureza.
grande prudência. Todo monstro torna-se visível e pensável e expõe ex­ "Circulando, não há nada para ver". A amplitude da mobilização é dire­
plicitamente graves problemas para a ordem social, o cosmos ou as leis tamente proporcional à impossibilidade de pensar diretamente suas rela­
divinas (Horton, 1990a; 19906). ções com a ordem social. Quanto menos os modernos se pensam mistura­
dos, mais se misturam. Quanto mais a ciência é absolutamente pura, mais
"A homeostasia das 'sociedades frias' da Amazônia, para se encontra intimamente ligada à construção da sociedade. A Constitui­
usar como exemplo os escritos de Descola sobre os achuar, re­ ção moderna acelera ou facilita o desdobramento dos fOletivos, mas não
sultaria portanto menos da recusa implícita da alienação política permite que sejam pensados.
que Clastres creditava aos "selvagens" do que do efeito de inér­
cia de um sistema de pensamento que só consegue representar
o processo de socialização da natureza através das categorias 0 FIM DA DENÚNCIA
que ·normatizam o funcionamento da sociedade real. Indo no
sentido contrário do determinismo tecnológico que frequente­ Quando afirmo que a Constituição, para ser eficaz, deve ignorar aquilo
mente impregna as teorias evolucionistas, poderíamos postular que permite, pratico um desvelamenro, que no entanto não afeta mais os
aqui que a transformação realizada por uma sociedade em sua mesmos objetos que a crítica e que não é mais ativado pelos mesmos mecanis­
base material é condicionada por uma mutação prévia das for­ mos. Enquanto aderíamos de boa vontade à Constituiç�o, ela permitia regular
mas de organização social que servem de esqueleto ideal ao o conjunto dos conflitos e servia de fundamento ao espírito crítico, forne­
modo material de produzir" (Descola, 1986, p. 405). cendo às pessoas a justificativa de seus ataques e de suas operações de desve­
lamento. Mas se o conjunto da Constituição surge_ asara co�o sendo· ape!}_�s
Se, ao contrário, nossa Constituição permite tudo, o que há na ver­ uma parte(luênãõ"ffi�í�P�:mit_� a c9�1?,��ensão·aes�.�t.�.l!l�tade, en­
dade é a socialização acelerada dos não-humanos, sem no entanto permi- tãü e o propno fundarrierit·o da crítica que se encontra mal fundamentado.

46 Jamais fomos modernos Constituição 47


Ao recorrer algumas vezes à natureza, outras vezes a Deus, e ao opor continuar acusando com sinceridade quando o mecanismo sacrificatório
constantemente a transcendência de cada um destes três termos a sua ima� torna-se tão evidente? Mesmo as ciências humanas deixaram de ser o re­
nência, a mola de nossas indignações encontrava-se bem comprimida. O curso final que permitiria enfim discernir os motivos reais sob as aparên­
que seria, de fato, um moderno que não estivesse mais apoiado sobre a cias. Elas também fazem parte da análise (Chateauraynaud, 1991); elas tam­
transcendência da natureza para criticar o obscurantismo do poder? So­ bém montam casos na justiça e se indignam e criticam. A tradição das ciên­
bre a imanência da natureza para criticar a inércia dos humanos? Sobre a cias humanas não mais possui o privilégio de sobrepor-se ao ator ao dis­
imanência da sociedade para criticar a submissão dos homens e os peri­ cernir, sob suas ações inconscientes, urna realidade que deveria ser trazida
gos do naturalismo? Sobre a transcendência da sociedade para criticar a à tona (Boltanski, 1990). As ciências humanas não podem escandalizar­
ilusão humana quanto a uma liberdade individual? Sobre a transcendên­ -se, sem com isso passarem a ocupar uma das entradas na tabela de nos­
cia de Deus para apelar contra o julgamento dos homens e contra a obsti­ sos dois amigos. O denunciador é irmão das pessoas comuns que ele ten­
nação das coisas? Sobre a imanência de Deus para criticar as Igrejas esta­ cionava denunciar. "Você é outro deles". Ao invés de acreditarmos real­
belecidas, as crenças naturalistas e os sonhos socialistas? Seria um pobre mente nisto, percebemos agora o trabalho de denúncia como uma "mo­
moderno, este, ou então seria um pós-moderno: sempre tomado pelo de­ dalidade histórica') que atua, é verdade, em nossas atividades, mas que não
sejo violento de denunciar, não teria mais a força necessária para acredi­ as explica, assim como a modalidade revolucionária não explicava o pro­
tar na legitimidade de nenhum destes seis tribunais de recurso. Retirar a cesso dos acontecimentos de 1789. Tanto a denúncia quanto a revolução
indignação de um moderno significa privá-lo, ao que parece, de qualquer encontram�se hoje esgotadas.
respeito por si mesmo. Retirar dos intelectuais orgânicos e críticos os seis O trabalho de Boltanski e Thévenot conclui este movimento previsto
fundamentos de suas denúncias aparentemente é o mesmo que retirar-lhes e descrito por René Girard, segundo o qual os modernos não podem mais
roda razão para viver. Quando perdemos a adesão sincera à Constituição, acusar com sinceridade mas, contrariamente a Girard, eles não desdenham
não ternos a impressão que perdemos o melhor de nós mesmos? Não era os objetos. Para que o mecanismo sacrificatório funcione, era preciso que
esta a origem de nossa energia, de nossa força moral, de nossa deontologia? o acusado, sacrificado coletivamente por toda a multidão, fosse realmente
E, no entanto, Luc Boltanski e Laurent Thévenot esvaziaram a denúncia culpado (Girard, 1978). Quando este se torna um mero bode expiatório, o
moder�a em um livro tão importante para este ensaio quando o de Steve mecanismo de acusação passa a ser visível: um pobre joão-ninguém inocente
Shapin e Simon Schaffer. Fizeram, em relação ao trabalho de indignação de todo e qualquer crime é injustamente acusado, sem qualquer motivo que
crítica, o que François Furet já havia feito em relação à Revolução france­ não o de reconciliar o coletivo às suas custas. A passagem do sacrifício ao
sa. "A denúncia acabou": este poderia ser o subtítulo de Economies de la bode expiatório esgota assim a acusação. Este esgotamento ainda assim não
grandeur (Boltanski e Thévenot, 1991). Até então, o desvelamento crítico acalma os modernos, já que o motivo de seus crimes em série é justamente
parecia ser algo dado. Era apenas questão de escolher uma causa para a o de nunca poder acusar sinceramente um verdadeiro culpado (Girard, 1983).
indignação e opor-se às falsas denúncias, colocando nisto toda a paixão Mas Girard não percebe que, desta forma, ele acusa ainda mais fortemen­
desejável. Para nós, modernos, desvelar era a tarefa sagrada. Revelar sob te, uma vez que acusa os objetos de não importarem realmente. Enquanto
as falsas consciências os verdadeiros cálculos ou sob os falsos cálculos os imaginarmos que nossos conflitos são questões objetivas, estaremos presos
verdadeiros interesses. Quem ainda não sente, escorrendo pela boca, um resto na ilusão do desejo mimético. É este desejo, e somente ele, que investe os
de espuma desta raiva? Boltanski e Thévenot, porém, inventaram o equi­ objetos com um valor que não possuem. Em si mesmos, não contam, não
valente de uma vacina antirrábica, comparando tranquilamente todas as são nada. Ao relevar o processo de acusação, Girard, assim como Boltanski
fontes de denúncia - as Cidades que fornecem os diversos princípios da e Thévenot, esgotam para sempre nossa capacidade de acusar. Mas prolon­
justiça-, e cruzando as mil e uma maneiras de que dispomos hoje, na França, gam ainda mais es_t,a,, ten4ê.�c_i_� �?-� _1?1().d_ern_() s,_4ç 9.í::5-Pr�-�ar, os_ ().bj��os- e
para montar um caso na justiça. Eles não denunciam outros. Não os desve­ Girard profere está ác�;;ção-com tóéíâ sinceridade, acreditando de fato nela
lam. Antes, mostram as artimanhas que nós todos usamos para acusar-nos e enxergando neste desprezo adquirido a duras penas a mais alta prova de
mutuamente. O espírito crítico torna-se um recurso, uma competência entre moralidade. Para um denunciador, um denuncíador e meio. A importân­
outras, a gramática de nossas indignações. cia do livro de Boltanski e Thévenot vem do fato de eles esgotarem a de­
Em breve, graças a esta pequena distância introduzida pelo estudo 1 núncia, ao mesmo tempo em que fazem do objeto envolvido nas provas do
sistemático, não somos mais capazes de aderir completamente a isso. Como julgamento o centro de suas análises.

48 Jamaís fomos modernos Constituição 49


Sob o julgamento moral por denúncia, há outro julgamento que sem­ rências e denúncias sem fundamento, uma vez que os pós-modernos não
pre funcionou por triagem e seleção. Nós o chamamos de combinação, com­ mais acreditam nas razões que lhes permitiriam denunciar e indignar-se.
binazione, mamata, mas também de negociação ou consenso. Péguy dizia Uma outra solução surge a partir do momento em que seguimos ao
que a moral flexível é infinitamente mais exigente que a moral rígida. Ocor­ mesmo tempo a Constituição e aquilo que ela proíbe ou permite, a partir
re o mesmo com a moral oficiosa que seleciona e reparte incessantemente do momento em que estudamosde perto o trabalho de produção de hí­
as soluções práticas dos modernos. Ela é desprezada porque não permite bridos e o trabalho de eliminação destes mesmos híbridos. Percebemos
a indignação, mas é ativa e generosa porque segue as inúmeras sinuosida­ então que jamais fomos modernos no sentido da Constituição. A moder­
des das situações e das redes. É desprezada porque leva em conta os obje­ nidade jamais começou. Jamais houve um mundo moderno. O uso do
tos que não são nem questões arbitrárias de nosso desejo, nem tampouco pretérito é importante aqui, uma vez que se trata de um sentimento retros­
simples receptáculo de nossas categorias mentais. Da mesma forma como pectivo, de uma releitura de nossa história. Não estamos entrando em uma
a Constituição moderna despreza os híbridos que abriga, também a mo­ nova era; não continuamos a fuga tresloucada dos pós-pós-pós-modernis­
ral oficial despreza os consensos práticos e os objetos que a sustentam. Sob tas; não nos agarramos mais à vanguarda da vanguarda; não tentamos ser
a oposição dos objetos e dos sujeitos, há o turbilhão dos mediadores. Sob ainda mais espertos, ainda mais críticos, aprofundar mais um pouco a era
a grandeza moral, há a triagem meticulosa das circunstâncias e dos casos. da desconfiança. Não, percebemos que nunca entramos na era moderna.
Esta atitude retrospectiva, que desdobra ao invés de desvelar, que acres­
centa ao invés de amputar, que confraterniza ao invés de denunciar, eu a
]AMAIS FOMOS MODERNOS caracterizo através da expressão não-moderno (ou amoderno). É..umJ!.ª-.O­
-modern_o.. todo__aq_u_ele_ qll_� lev_a_r_ _e_fil c_?_n!a__ �-() _ rn_e_si:pq_ t��PQ...fL..Ç_onstitui­
Posso agora escolher: ou acredito na Constituição moderna, ou en­ ção Jós môâernõse os agruparnentos de híbridos que ela nega.
tão estudo tanto o que ela permite quanto o que proíbe, o que ela revela e - • •• Ã COiiSfü:uiçãO expiicâVa "illdO ffias esq"Ueciíl tudO que es·ta'va no meio.
o que esconde. Ou defendo o trabalho de purificação - e me torno tam­ "Não é nada, nada mesmo", dizia sobre as redes, "um simples resíduo".
bém um purificador e um vigilante da Constituição -, ou então estudo Mas os híbridos, os monstros, os mistos cuja explicação ela abandona são
tanto o trabalho de mediação quanto o de purificação, mas então deixo quase tudo, compõem não apenas nossos coletivos mas também os outros,
de ser realmente moderno. abusivamente chamados de pré-modernos. No exato instante em que as
Ao acreditar que a Constituição moderna não permite sua própria duplas Luzes do marxismo pareciam ter explicado tudo; no exato instan­
compreensão, ao me dispor a revelar as práticas que permitem sua exis­ te em que a falência de sua explicação total leva os pós-modernos a per­
tência, ao assegurar que o mecanismo crítico se encontra agora esgotado, derem-se no desespero da autocrítica, tomamos consciência de que as ex­
ajo como se entrássemos em uma época nova, sucessora da era moderna. plicações ainda não haviam começado, e que sempre foi assim, que jamais
Eu seria então, literalmente, pós-moderno? �s-modernisrnu..é'" uITLsiT1:: fomos nem modernos, nem críticos, que jamais houve um antigamente ou
t_�ma �,,nã_o __unia_ �o�� sol���o�Vivescrõa Constituiç�na mas não, antigo regime (Mayer, 1983), que nunca deixamos por completo a velha
. -
à-éfedíiá- ffiãlS iiàS gãi-iiiitiãS {}ue esta oferece. Sente que há algo de errado matriz antropológica - e não podia ser de outra forma.
com a crítica, mas não sabe fazer nada além de prolon_gg.r:. )1,__cx!.r:,i_ç"ªA§_G.1:n...tJO Perceber que jamais fomos modernos e que estamos separados dos
:
entanto acreditaremseus fundament9s (Lyotarã,l.979). Ao invés de pas­ outros coletivos apenas por pequenas divisões não nos torna reacionários.
sar para o estlldO dnpfriCo âa"s•·redCs, qu: dá ser1.r_id� _ao tr_abaJhq_ ,4e _ pt1ri­ Os antimodernos combatem selvagemente os efeitos da Constituição mas
ficaçã9 '!lle.de_nuncia, o pós-modernisrno rejeitaquâfqí,ês_trahalho.empírico aceitam-na por inteiro. Desejam defender os locais, ou o espírito, ou a
c_�n:!Q §Çp_çl9___U_1:!§.QEi2. .�. --�.!!J����Õi.1taéiOnãli's'iáS" cléêepcionados, seus adep- matéria pura, ou a racionalidade, ou o passado, ou a universalidade, ou a
tos sentem claramente que o modernismo terminou, mas continuam a liberdade, ou a sociedade, ou Deus, como se estas entidades existissem
aceitar sua forma de dividir o tempo e não podem, portanto, recortar as realmente e tivessem de fato a forma que lhes é atribuída pela Constitui­
épocas senão através de revoluções que se sucederiam umas às outras. ção moderna. Eles variam apenas o signo e a direção de sua indignação.
Sentem que vieram "depois" dos modernos, mas com o desagradável sen­ Chegam mesmo a aceitar a maior esquisitice dos modernos, a ideia de um
timento de que não há mais depois. No future, é o seu slogan que acres­ tempo que passaria irreversivelmente e que anularia, atrás de si, todo o
centa-se ao dos modernos, No past. O que lhes resta? Instantes sem refe- passado. Quer se deseje conservar este passado, quer se deseje aboli-lo, em

50 Jamais fomos modernos Constituição 51


ambos os casos é mantida a ideia revolucionária por excelência de que urna 3.
revolução é possível. Ora, esta ideia em si nos parece exagerada, uma vez REVOLUÇÃO
que a revolução é um recurso em meio a tantos outros em histórias que
não têm nada de revolucionário, nada de irreversível. "Potencialmente" o
mundo moderno é urna invenção total e irreversível que rompe com o
passado, da mesma forma que "potencialmente'' as Revoluções francesa
ou bolchevique são as parteiras de um novo mundo. "Em rede'\ o mundo Os MODERNOS, VÍTIMAS DE SEU SUCESSO
moderno, assim como as revoluções, permite apenas prolongamentos de
práticas, acelerações na circulação dos conhecimentos, uma extensão das Se o aparelho crítico dos modernos os tornava invencíveis, por que
sociedades, um crescimento do número de actantes, numerosos arranjos eles hoje hesitam quanto a seu destino? Se a eficácia da Constituição de­
de antigas crenças. Quando olhamos para elas "em rede'', as inovações dos pendia justamente de sua parte obscura, por que posso agora conectá-la a
ocidentais permanecem reconhecíveis e importantes, mas não há o bastante sua parte luminosa? É de fato necessário que a conexão entre os dois con­
aí para se construir toda uma história, uma história de ruptura radical, de juntos de práticas tenha mudado muito para que eu possa seguir ao mes­
destino fatal, de tristezas ou felicidades irreversíveis. mo tempo as práticas de purificação e as de trâdução. Se não podemos mais
Tanto os antimodernos quanto os pós-modernos aceitaram o terre­ aderir com toda sinceridade às tarefas da modernização, foi preciso que
no de seus adversários. Um outro terreno, muito mais vasto, muito menos alguns obstáculos imprevistos tenham bloqueado sua mecânica. Qual foi
polêmico, encontra-se aberto para nós, o terreno dos mundos não-moder­ a ocorrência que tornou o trabalho de purificação impensável quando,
nos. É o Império do Centro, tão vasto quanto a China, tão desconhecido apenas alguns anos antes, era o desdobramento das redes que parecia ab­
quanto ela. surdo ou escandaloso?
Digamos que os modernos foram vítimas de seu sucesso. É uma ex­
plicação grosseira, concordo, e no entanto tudo acontece como se a am­
plitude da mobilização dos coletivos tivesse multiplicado os híbridos a
ponto de tornar impossível, para o quadro constitucional que simultanea­
mente nega e permite sua existência, mantê-los em seus lugares. A Consti­
tuição moderna desabou sob seu próprio peso, afogada pelos mistos cuja
experimentação ela permitia, uma vez que ela dissimulava as consequên­
cias desta experimentação no fabrico da sociedade. O terceiro estado se
tornou numeroso demais para se sentir fielmente representado pela ordem
dos objetos ou pela dos sujeitos.
Quando surgiam apenas algumas bombas de vácuo, ainda era possí­
vel classificá-las em dois arquivos, o das leis naturais e o das representa­
ções políticas, mas quando nos vemos invadidos por embriões congela­
dos, sistemas especialistas, máquinas digitais, robôs munidos de sensores,
milho híbrido, bancos de dados, psicotrópicos liberados de forma con­
trolada, baleias equipadas com rádio-sondas, sintetizadores de genes, ana­
lisadores de audiência, etc.; quando nossos jornais diários desdobram to­
dos estes monstros ao longo de páginas e páginas, e nenhuma destas qui­
meras sente-se confortável nem do lado dos objetos, nem do lado dos su­
jeitos, nem no meio, então é preciso fazer algo. É como se os dois polos
da Constituição acabassem se confundindo, devido à própria prática de
mediação que esta Constituição liberava quando a condenava. É como se
não houvesse mais um número suficiente de j uízes e de críticos para tra-

52 Jamais fomos modernos Revolução 53


tar dos híbridos. O sistema de purificação fica tão entulhado quanto nosso humanizadas pela intenção dos motoristas, e homens transfor­
sistema judiciário. mados em forças naturais pela energia física da qual eles se
Talvez o quadro moderno houvesse conseguido se manter por mais tornam os mediadores. Não se trata mais da operação de um
algum tempo caso seu próprio desenvolvimento não houvesse estabeleci­ agente sobre um objeto inerte, nem da reação de um objeto,
do um curto-circuito entre a natureza, de um lado, e as massas humanas, promovido ao papel de agente, sobre um sujeito que se teria
de outro. Enquanto a natureza permaneceu longínqua e dominada, ainda despossuído em favor do objeto sem nada pedir-lhe em retor­
se parecia vagamente com o polo constitucional da tradição. Parecia re­ no, ou seja, situações envolvendo, de um lado ou do outro, uma
servada, transcendental, inesgotável, longínqua. Mas como classificar o certa dose de passividade: os seres em presença se defrontam
buraco de ozônio, o aquecimento global do planeta? Onde colocar estes ao mesmo tempo enquanto sujeitos e objetos; e, no código usado
híbridos? Eles são humanos? Sim, humanos pois são nossa obra. São na­ por eles, uma simples variação na distância que os separa tem
turais? Sim, naturais porque não foram feitos por nós. São locais ou glo­ a força de um exorcismo mudo" (Lévi-Strauss, 1962, p. 294).
bais? Os dois. As massas humanas que as virtudes e os vícios da medicina
e da economia multiplicaram também não são fáceis de mapear. Em que Para acolher tais quase-objetos, na verdade não muito diferentes da­
mundo abrigar estas multidões? Estamos no campo da biologia, da socio­ queles do pensament()__S�a&et?__ (y,e_r a_baix�), devemos traçar um espaço
logia, da história natural, da sociobiologia? É nossa obra, e no entanto as que já não é mais o da Constituição moderna, uma vez que preenche a
leis da demografia e da economia nos ultrapassam infinitamente. A bom­ zona mediana que esta pretendia esvaziar. À prática de purificação - li­
ba demográfica é global ou local? Os dois. Portanto, tanto do lado da na­ nha horizontal -, convém acrescentar as práticas de mediação linha
tureza quanto do lado do social, não podemos mais reconhecer as duas vertical.
garantias constitucionais dos modernos: as leis universais das coisas, os
direitos imprescritíveis dos sujeitos. O destino das multidões famintas, assim Figura 4
como o de nosso pobre planeta, encontram-se ligados no mesmo nó górdio, Polo natureza Polo sujeito/sociedade
que mais nenhum Alexandre virá cortar.
Digamos então que os modernos quebraram. Sua Constituição po­
dia absorver alguns contraexemplos, algumas exceções, até mesmo alimen­
tava-se disto; mas torna-se impotente quando as exceções proliferam,
quando o terceiro estado das coisas e o terceiro mundo se misturam para
invadir em massa todas as suas assembleias. Como Michel Serres, cha­
mo estes híbridos de quase-objetos, porque não ocupam nem . a posição
de objetos que a Corístituição prevê para eles, nem a de sujeitos, e por-
.....________.-.. �-...,_,,o,,,
Dimensão não-moderna
que é impossível encurralar todos eles na posição mediana que os torna­
ria uma simples mistura de coisa natural e símbolo social. Curiosamen­ Ao invés de acompanhar a multiplicação dos quase-objetos apenas
te, é Lévi-Strauss, procurando um exemplo para nos mostrar o quanto o através de sua projeção sobre a longitude, convém também localizá-los com
pensamento selvagem nos é próximo, quem melhor define esta íntima o auxílio de uma latitude. O diagnóstico da crise com a qual comecei este
fusão através da qual os rastros dos dois componentes da natureza e da ensaio torna-se então evidente: o crescimento dos quase-objetos saturou
sociedade se apagam - componentes que ele diz estarem de frente um o quadro constitucional dos modernos. Estes praticavam as duas dimen­
ao outro, "como em um espelho": sões mas só desenhavam explicitamente uma delas, de modo que a segun­
da permanecia em pontilhado. É preciso que os não-modernos desenhem
"Um observador exótico julgaria sem dúvida que a cir­ as duas, de forma a compreender ao mesmo tempo os sucessos dos mo­
culação automobilística no centro de uma grande cidade ou em dernos e seus recentes fracassos, sem com isso naufragar no pós-moder­
uma rodovia ultrapassa as faculdades humanas; e de fato é as­ nismo. Ao desdobrar as duas dimensões simultaneamente, talvez possa­
sim, uma vez que esta circulação não coloca face a face nem mos acolher os híbridos e encontrar um lugar para eles, um nome, uma
homens nem leis naturais, mas sim sistemas de forças naturais casa, uma filosofia, uma ontologia e, espero, uma nova constituição.

54 Jamais fomos modernos Revolução 55


0 GRANDE DISTANCIAMENTO DAS FILOSOFIAS MODERN!ZADORAS quase-objetos sem com isso atribuir-lhes uma ontologia que novamente
colocaria em causa a "revolução copernicana". Esta formulação kantiana
Como foi que as grandes filosofias tentaram absorver ao mesmo tem­ é visível ainda hoje, cada vez que acreditamos que o espírito humano é capaz
po a Constituição moderna e os quase-objetos, este Império do Centro que de impor, arbitrariamente, formas a uma matéria amorfa mas real. Claro,
não parava de se estender? Se simplificarmos muito, podemos discernir três o rei Sol ao redor do qual giram os objetos será derrubado em nome de
grandes estratégias. A primeira consiste em fazer a grande separação en­ muitos outros pretendentes - a Sociedade, as epistemes, as estruturas
tre os objetos e os sujeitos, cuja distância não para então de crescer; a se­ mentais, as categorias culturais, a intersubjetividade-, mas estas revolu­
gunda, sob o nome de "vertente semiótica", preocupa-se com o meio, ções palacianas não irão modificar a posição do foro que irei chamar, por
abandonando os extremos; a terceira, enfim, isola o pensamento do Ser este motivo, de sujeito/sociedade.
do pensamento dos entes. A grandeza da dialética está em ter tentado percorrer uma última
Vamos sobrevoar rapidamente as primeiras. Quanto mais os quase­ vez o círculo completo dos pré-modernos, englobando todos os seres di­
-objetos se multiplicam, mais as grandes filosofias tornam os dois polos vinos, sociais e naturais, a fim de evitar a contradição do kantismo entre
constitucionais incomparáveis, ao mesmo tempo em que afirmam que não o papel da purificação e o da mediação. Mas a dialética enganou-se quan­
há nenhuma tarefa mais urgente do que reconciliá-los. Portanto, elas per­ to à contradição. Discerniu corretamente aquela existente entre o polo do
correm o paradoxo moderno à sua maneira, proibindo aquilo que permi­ sujeito e o do objeto, mas não viu a outra, existente entre o conjunto da
tem e permitindo aquilo que proíbem. Cada uma destas filosofias é com Constituição moderna, que estava sendo implementada, e a proliferação
certeza infinitamente mais sutil do que este mísero resumo; cada uma é, dos quase-objetos, que marca tanto o século XIX quanto o nosso. Ou
por definição, não-moderna, e defronta-se com este mesmo problema que antes, a dialética acreditou que iria absorver a segunda ao resolver a pri­
estou abordando desajeitadamente, mas suas interpretações oficiais e po­ meira. Ora, ao acreditar que abolia a separação de Kant entre as coisas­
pularizadas, entretanto, mostram quanto a isto uma espantosa coerência: -em-si e o sujeito, Hegel a intensifica ainda mais. Eleva-a à condição de
como multiplicar os quase-objetos sem com isso conceder-lhes a cidada­ contradição, fazendo desta contradição levada ao extremo e depois ultra­
nia, a fim de que seja mantida a Grande Divisão que nos separa tanto de passada o motor da história. A distinção existente no século XVII torna­
nosso passado quanto dos outros coletivos? -se uma separação no século XVIII, e depois uma contradição no século
Hobbes e Boyle, como vimos, só estavam brigando tanto porque quase XIX, completa a ponto de tornar-se a mola de toda a intriga. Como ilus­
não eram capazes de separar o polo dos não humanos mudos e naturais trar melhor o paradoxo moderno? A dialética aumenta ainda mais o abis­
daquele dos cidadãos conscientes e falantes. A separação dos dois artifí­ mo que separa o polo do objeto do polo do sujeito, mas como ela irá
cios ainda lhes parecia tão frágil que só operavam uma leve distinção en­ superá-lo e anulá-lo no final, fica com a impressão de ter ultrapassado
tre os híbridos. É com o kantiSg!O que no_ssa Constituiç.��:tx.���.h,e.J>J1gJ..QJ­ Kant! Ela só fala de mediações, contudo as inumeráveis mediações com
mulação verdade1ramenté c·�nônica. O que era uma simples distinção trans­ que povoa sua história grandiosa são apenas intermediários que transmi­
forlTl�-se_ em·-�fü� · -,s,�p_a_r:a.·��(5 total;•ú1tiâ:·.·ré�'?lii�â6" ê()P�r•�'íc�.11:�t'.j\ie.o, �Sas­ tem as qualidades ontológicas puras, seja do espírito em sua versão de
�e�:srt�ifl_ám·--��- _itl�_c_:Ss_ívê_is_ eri_qu�_n_to _9ue,_ �frne_tr,i1a.inCúie,..o'.sujei:to�trans­ direita, seja da matéria em sua versão de esquerda. No fim das contas, se
·cenaei;taI
-. d'lSi'allcía-se irifiriitarn.enfe do mutld0. As duas garantias, entre­ existe uma dupla que ninguém é capaz de reconciliar é o polo da nature­
tà'ilto', .s· ao·· afrida "êlà'fã.m:ehte·simétrieas•,, um11' vez que o conhecimento só é za e o do espírito, já que sua própria oposição é conservada e abolida,
possível no ponto mediano, o ponto dos fenômenos, através de uma apli­ quer dizer, negada. Para um moderno, moderno e meio. Nossos maiores
cação das duas formas puras, as da coisa-em-si e as do sujeito. Os híbri­ modernizadores foram sem dúvida os dialéticos, ainda mais poderosos
dos de fato têm uma cidadania, mas apenas enquanto mistura das formas porque pareciam recolher a totalidade do saber e do passado e porque
puras em proporções iguais. Claro, o trabalho de mediação continua visí­ cruzavam todos os recursos da crítica.
vel, já que Kant multiplica as etapas a fim de passar do mundo longínquo Mas os quase-objetos continuavam a proliferar, monstros da primeira,
das coisas ao mundo ainda mais longínquo do ego. Entretanto, estas me­ da segunda, da terceira revolução industrial, fatos socializados e humanos
diações apenas são reconhecidas então como simples intermediários, que que se tornaram mundo natural. Mal eram finalizadas, as totalidades ra­
nada mais fazem do que deslocar ou transmitir as formas puras, as únicas chavam em todos os lados. Os fins da história, apesar de tudo, davam
reconhecíveis. Folhear os intermediários permite a aceitação do papel dos continuidade a uma história.

- :l'.:
•a�;
56 Jamais fomos modernos Revolução 57
todos estes grandes movi­
Figura 5 ce com um número de equilibristas. Até aqui,
mentos filosóficos eram sérios e profundos; eles fundavam, exploravam,
Hi erincomensurabilidade ( ós-modernos)
quase -objetos, desejavam
Incomensurabilidade (Habermas) . acompanhavam o prodigioso crescimento dos
( ) acreditar que era possível, apesar de tudo, encaix á�los e digeri-los. Falan­
Tensão insuperável (fenomenologia) ho dos híbridos.
( ) do somente de pureza, visavam apenas capta r o trabal
Contradição (Hegel) Trabalho de
mente pelas ciências
( ) purificação Todos estes pensadores interessavam-se apaixonada
(eparação (kantismol heciam ao mesm o tempo
Polo natureza Polo sujeito/sociedade exatas, pelas técnicas e economias, porque recon
Dzsti ão (Hobb5s e B �/e) fias que vieram de­
Dimensão moderna
( seu perigo e sua salvação. Mas o que dizer das filoso ten­
p rq e não
pois deles? Aliás, que nome lhes dar? M?der� as? Não, � � _
as. Amda nao, o
tam mais segurar as duas pontas da cadeia. Pos-modern
ar atenção para
pior está para vir. Digamos, pré�pós-modernas, para cham
Trabalho de elevam aquilo que era apenas uma
0 fato de que são uma transição. Elas
mediação o, depois uma
Quanto mais os quase-objetos Multiplicação distinção, depois uma separação, depois uma contradiçã
se multiplicam, mais cresce a dos quase-objetos tensão insuperável ao nível de uma incomensurabilidade.
a comum
distinção entre os dois polos Dimensão não-moderna A Constituição moderna inteira já dizia que não há medid
va imediatamente
entre o mundo dos sujeitos e o dos objetos, mas ela anula
e coisas em con­
A fenomenologia iria realizar, uma última vez, a grande separação, esta distância ao praticar o contrário, ao medir humanos
de intermediá­
mas desta vez soltando lastro, abandonando os dois polos da consciência junto com as mesmas medidas, ao multiplicar, sob o nome
itam realmen­
pura e do objeto puro, e deitando-se, literalmente, no meio, para tentar cobrir rios os mediadores. Os pré-pós-modernos, por sua vez, acred
al e à eficácia
com sua grande sombra o espaço agora vazio que ela sentia não ser mais te g'ue O sujeito falante é incomensurável ao objeto natur
nte. Eles an� ­
capaz �e ab�orver No�amente, o paradoxo moderno é levado mais longe.
: técnica, ou que deverá sê-lo caso ainda não o seja o basta
que pensam salva­
� noçao de mtenc10nahdade transforma a distinção, a separação, a contra­ lam, então, o projeto moderno, ao mesmo tempo em
ituiçã o que fala de pureza e_nquanto
d1çã� e� um: tensão insuperável entre o objeto e o sujeito. As esperanças -lo, pois seguem a metade da Const
d1tam que
da d1alet1ca sao abandonadas, uma vez que esta tensão não oferece nenhu­ ignoram a outra metade que apena s pratic a a hibrid açã ? ·. Acr�
. Do lado dos su1e1to s, mven ta� a
ma resolução. Os fenomenólogos têm a impressão de ter ultrapassado Kant não há, que não deve haver mediadores .
deixa m o mund das c01sas de 1var
e Hegel e Marx, uma vez que não atribuem mais nenhuma essência nem ao palavra, a hermenêutica, o sentido, e ? . �
do espelh o, e claro, os c1ent1 stas
sujeiw �uro nem ao objeto puro. Eles têm a impressão de falar apenas de lentamente em seu vazio. Do outro lado
simét rica. Quan to mais a herm e­
med1açao, sem que a mediação esteja ligada a polos. Entretanto, tudo O que
_ e os tecnocratas mantêm uma atitude
alismo expan de o seu. Mas esta
fazem e desenhar um traço entre polos reduzidos a quase nada. Moderni­ nêutica expande seu território, mais o natur
geux e seus neu­
zadores inquietos, p �dem apenas estender a "consciência de alguma coisa"
_ repetição das divisões da história torna-se caricata: Chan
de outro . Seu casal de gêmeos
que e �ome�te uma fma passarela sobre um abismo que aumenta aos pou­ rônios de um lado; Lacan e seus analisandos
que eles não mais se esfor­
cos. So podiam mesmo rachar. E racharam. Na mesma época, a obra du­ não é mais fiel à intenção moderna, uma vez
plicar os híbridos cuja
pla de Bachelard, exagerando ainda mais a objetividade das ciências às custas çam para pensar o paradoxo que consiste em multi
de rupt�ras co� o se�s� c?mum, e exagerando simetricamente a potência
. existência se proíbe por outro lado.
do pengo
sem ob!et� do 1magmano as custas de rupturas epistemológicas, represen­
, É ainda pior quando tentam proteger o projeto moderno
o desesp erado (Ha­
ta o propno s1mbolo desta crise impossível, deste esfacelamento. de seu desaparecimento. Habermas exprime este esforç
separ ou profu n­
bermas, 1988) . Será que ele vai mostrar que nada nunca
projet o mode rno,
damente as coisas das pessoas? Será que irá retomar o
Ü FINAL DOS FINAIS
s da Constituição?
demonstrar os arranjos da prática por sob as justificativa
confusão entre os
Pelo contrário ele acredita que o perigo supremo vem da
n tural e técnica
A continuação desta história toma um rumo involuntariamente cô­ sujeitos falan:es e pensantes com a pura racionalidade �
i todas as vezes
mico. Quanto mais a grande separação é tensionada, mais o caso se pare- permitida pela antiga filosofia da consciência! "Eu o suger
59
58 Jamais fomos modernos Revolução
no momento crucial: era preciso substituir o paradigma do conhecimento "Eu defendo apenas que a expansão científica não tem
dos objetos pelo do acordo entre sujeitos capazes de falar e de agir" (p. 350). nada de humano. Talvez nosso cérebro seja apenas o portador
Se algum dia alguém esteve enganado quanto aos inimigos, decerto foi este provisório de um processo de complexificação. A tarefa agora
kantismo deslocado em pleno século XX que se esforça para aumentar o seria a de desconectar este processo daquilo que o transportou
abismo entre os objetos conhecidos pelo sujeito, de um lado, e a razão co­ até o momento. Estou convencido que é isto que vocês [ os cien­
municacional, do outro, enquanto a antiga consciência tinha ao menos o tistas!] estão fazendo. A informática, a engenharia genética, a
mérito de visar o objeto e, consequentemente, de lembrar a origem artifi­ física e a astrofísica, a astronáutica, a robótica já trabalham com
cial dos dois polos constitucionais. Mas Habermas quer tornar os dois polos esta preservação da complexidade em condições de vida inde­
incomensuráveis, no momento exato em que os quase-objetos multiplicam­ pendentes da vida sobre a Terra. Mas não vejo o que isto tem
-se de tal forma que parece impossível encontrar apenas um deles que se de humano, se por humano entendermos as coletividades com
pareça, um mínimo que seja, com um sujeito falante livre ou com um ob­ suas tradições culturais, estabelecidas ·desde determinada épo­
jeto da natureza reificado. Kant já não conseguia .fazê-lo em plena revolu­ ca sobre zonas precisas deste planeta. Tenho certeza que este
ção industrial; como poderia Habermas consegui-lo depois da sexta ou sétima processo "a-humano" possa ter, além de seus efeitos destrutivos,
revolução? O velho Kant ainda multiplicava a superposição dos interme­ algumas boas consequências para a humanidade. Mas isto não
diários, o que lhe permitia restabelecer as transições entre o númeno e o ego tem nada a ver com a emancipação do homem" (Lyotard, 1988,
transcendental. Nada disso ocorre quando a razão técnica deve ser mantida p. XXXVIII).
tão longe quanto possível da livre discussão dos homens.
Ocorre com os pré-pós-modernos o mesmo que ocorreu com a rea­ Aos cientistas surpresos com este balanço desastroso e que ainda
ção feudal bem no fim do Antigo Regime; nunca a honra foi tão minucio­ acreditam na utilidade dos filósofos, Lyotard responde, lúgubre: "Creio
sa nem o cálculo dos quartos de sangue azul mais preciso, e no entanto já que vocês irão nos esperar por um longo tempo!". Mas esta é a falência
era um pouco tarde para separar radicalmente a plebe e os nobres! Da do pós-modernismo (Hutcheon, 1989), e não a da filosofia. Os pós-mo­
mesma forma, é um pouco tarde demais para tentarmos novamente o golpe dernos acreditam que ainda são modernos porque aceitam a divisão to­
da revolução copernicana, fazendo as coisas rodarem em torno da inter­ tal entre o mundo material e a técnica de um lado, os jogos de linguagem
subjetividade. Habermas e seus discípulos só mantêm o projeto moderno dos sujeitos falantes de outro. Mas estão enganados, porque os verdadei­
porque se abstêm de qualquer estudo empírico (Habermas, 1987); caso ros modernos sempre multiplicaram, na surdina, os intermediários a fim
contrário, o terceiro estado iria tornar-se visível rápido demais e misturar­ de tentar pensar o formidável crescimento dos híbridos ao mesmo tem­
-se com excessiva intimidade aos pobres sujeitos falantes. Que morram as po em que pensavam sobre sua purificação. As ciências sempre estiveram
redes, contanto que a razão comunicacional pareça triunfar. ligadas aos coletivos de forma tão íntima quanto a bomba de Boyle ao
Ainda assim, Habermas é ainda honesto e respeitável. Mesmo na ca­ Leviatã de Hobbes. É a dupla contradição que é moderna, contradição
ricatura do projeto moderno, podemos reconhecer ainda o brilho enfraque­ entre as duas garantias constitucionais., de um lado., e entre esta Consti­
cido das Luzes do século XVIII ou o eco da crítica do século XIX. Mesmo tuição e a prática de mediação., de outro. Ao acreditar na separação to­
nesta obsessão de separar a objetividade da comunicação, podemos captar tal dos três termos, ao acreditar realmente que os cientistas são extrater­
um rastro, uma lembrança, uma cicatriz da própria impossibilidade de fazê­ restres, os pós-modernos concluem o modernismo, tirando-lhe para todo
-lo. Com os pós-modernos, o abandono do projeto moderno foi consuma­ o sempre a mola propulsara de sua tensão.
do. Não fui capaz de encontrar uma palavra suficientemente vil para de­ Há apenas uma coisa positiva a ser dita sobre os pós-modernos: de­
signar este movimento, ou antes, esta imobilidade intelectual através da qual pois deles, não há mais nada. Longe de ser o fim do fim, representam o
os humanos e os não humanos são abandonados à deriva. Não estamos mais fim dos fins, quer dizer, o fim das formas de terminar e de passar que fa­
falando de incomensurabilidade, mas da "hiperincomensurabilidade". ziam com que críticas cada vez mais radicais e mais.revolucionárias se
Basta um exemplo para mostrar a derrota do pensamento e do proje­ sucedessem a uma velocidade cada vez mais vertiginosa. Como podería­
to pós-moderno. "Este filósofo que sou traz um balanço desastroso", res­ mos ir mais longe na ausência de tensão entre natureza e sociedade? Seria
ponde Jean-François Lyotard, a quem alguns nobres cientistas pediam que preciso imaginar alguma super-hiperincomensurabilidade? Os "'pomôs",
refletisse sobre o laço que conecta a ciência ao coletivo humano: como dizem os ingleses chiques, são o fim da história, e o mais engraçado

60 Jamais fomos modernos Revolução 61


é que � l�s re�lmente acreditam nisso. E, para deixar bem claro que mas ao invés de tornar-se mais ou menos transparente ou mais ou menos
. não são
s1mplonos, fmgem comprazer-se deste fim! "Vocês não devem espera opaca, mais ou menos fiel ou mais ou menos traidora, ela tomou todo o
r nada
de nós." Realmente não. Mas eles não podem terminar a históri espaço. A linguagem tornou-se, em si, sua própria lei e seu próprio mun­
a, assim
como não podem deixar d"e ser simplórios. Simpl esmente, encon do. O "sistema da língua", os "jogos de linguagem", o "significante", a
tram-se
em um impasse, aquele traçado pelas vanguardas que ningué "escritura", o "texto", a "textualidade", as "narrativas", o "discurso",
m mais se­
gue. Vamos deixá-los �ormir até � fim do milênio, como quer estes são alguns dos termos que designam o Império dos signos. Enquan­
Baudrillard,
e passemos a outra co1Sa. Ou antes, voltemos atrás. Chega de passar to as filosofias modernizadoras aumentavam cada vez mais a distância que
.
separava os objetos e os sujeitos, tornando-os incomensuráveis, as filoso­
As VERTENTES SEMIÓTICAS
fias da Enguagem, do discurso ou do texto ocupavam o meio que havia
sido abandonado, acreditando-se muito distanciadas das naturezas e das
sociedades que haviam colocado entre parênteses (Pavel, 1986).
Enqu�nto as filosofias modernizadoras criavam a grande separa Sua grandeza foi a de desenvolver, abrigada da tirania tanto do refe­
ção
entre os dois polos da Consti tuição a fim de absorver a proliferaçã rente quanto do sujeito falante, os conceitos que dão sua dignidade aos
o dos
qu�se-o �Jet�s, urna outra estratégia era desenvolvida para tornar conta mediadores, que deixam de ser simples intermediários ou simples veículos
do
meio, cuia dimensão não parava de crescer. Ao invés de concen transportando o sentido da natureza aos locutores ou destes à natureza.
trar-se sobre
os extremos do trabal ho de purificação, ela se concentrava sobre O texto e a linguagem criam o sentido; chegam mesmo a produzir refe­
uma de
suas mediações, a linguagem. Quer as chamemos de "semiótica" "sernio rências internas aos discursos e locutores instalados no discurso ( Greimas
­
logia" ou "verte nte linguística", todas estas filosofias têm co�o e Courtes, 1979). Para produzir naturezas e sociedades, precisam apenas
_ objeto
tornar o discurso não um intermediário transparente que colocaria de si mesmos, e apenas a forma das narrativas lhes serve de matéria. O
o su­
jeito humano em contato com o mundÜ natura l mas sim um significante sendo primeiro, os significados agitam-se a seu redor sem mais
mediador
independente tanto da natureza quanto da socied�de. Esta autono nenhum privilégio. O texto torna-se original, aquilo que ele exprime, ou
mização
da esfera do sentido manteve ocupadas as melhores mentes de nosso veicula, torna-se secundário. Os sujeitos falantes transformam-se, cada um
tem­
p� dur�nte o últim� meio s�culo. Se eles também nos levaram a um impass deles, em ficções geradas pelos efeitos de sentido; quanto ao autor,, ele é
e,
nao foi por terem esquecido do homem ,) ou "abandonado a referên apenas artefato de seus escritos (Eco, 1985). Os objetos de que falamos
cia"
corno afirma hoje a reação modernista, mas porque eles mesm tornam-se efeitos de realidade deslizando na superfície da escritura. Tudo
os limita�
ram sua tarefa apenas ao discurso. torna-se signo e sistema de signos, a arquitetura e a cozinha, a moda e as
mitologias, a política e até mesmo o inconsciente (Barthes, 1985).
Figura 6 A grande fraqueza destas filosofias foi a de terem tornado mais difí­
ceis as conexões entre um discurso autônomo e a natureza ou o sujeito/
Polo natureza Linguagem Polo sujeito/sociedade sociedade que elas haviam deixado intactos, guardando-os provisoriamente
no armário. É difícil, realmente, imaginar durante um longo período de
tempo que somos um texto que escreve a si mesmo, um discurso que se

X
fala sozinho, um jogo de significante sem significado. Difícil reduzir todo
o cosmos a uma grande narrativa, a física das partículas subatômicas a um
Autonomização
do discurso
texto, todas as estruturas sociais a um discurso. O Império dos signos não
durou muito mais que o de Alexandre e foi, ele também, desmembrado
entre seus generais (Pavel, 1. 988). Alguns tentaram tornar o sistema autô­
Estes filósofos acharam que só seria possível autonomizar o sentido nomo da língua menos irracional, restabelecendo o sujeito falante ou mes­
s: duas que�tõ�s fossem colocadas entre parênteses. A primeira, a ques­ mo o grupo social e, para tanto, foram buscar a antiga sociologia. Outros
tao da referencia ao mundo natura l; a segunda, a identidade dos desejaram tornar a semiótica menos absurda restabelecendo o contato com
sujeitos
fala�tes e ?ensantes. Para eles, a linguagem ainda ocupa este lugar median o referente, e tomaram o mundo da ciência ou o do senso comum a fim de
o
-,
da filosofia moderna - o ponto de encontro dos fenômenos em Kant ancorar novamente o discurso. Sociologização, naturalização, a escolha

62 Jamais fomos modernos Revolução 63


nunca é importante. Outros mantiveram o rumo original do Império e pensamento recairá na pobreza de sua essência provisória. Irá reunir a lin­
começaram a desconstruir a si mesmos, glosas autônomas sobre glosas guagem frente ao simples dizer. Assim, a linguagem será a linguagem do Ser,
autônomas, até a autodissolução. como as nuvens são as nuvens do céu" (Heidegger, 1964, p. 172).
Desta vertente fundamental, aprendemos que o único meio de esca­ Mas esta bela simplicidade é logo perdida pelo filósofo. Por quê? Por
par às armadilhas simétricas da naturalização e da sociologização consis­ um artifício da história, ele mesmo indica a razão desta perda em um apólogo
te em conceder à linguagem sua autonomia. Como desdobrar, sem ela, este sobre Heráclito. Est: _ab_r_ig�va-_s_<;:_)JO,, foin_o ,4�_ mp padeiro. "Einai gar -�ai
espaço mediano entre as naturezas e as sociedades para nele acolher os en�{lutt_a ,t,�r:,.?,_tis'.'_. '.�fàll1_b_éin aqui os - deuses- estão presentes", disse Herá­
quase-objetos, quase-sujeitos? As semióticas oferecem uma excelente cai­ Cüt�� ·aíg·u�s ·v{Sitãflt�S-que estavam espantados por vê-lo esquentar-se como
xa de ferramentas para seguir de perto as mediações da linguagem. Mas um mortal vulgar. "Auch hier ndmlich wesen GOtter an" (p. 145). Da mesma
ao eludir o problema duplo das ligações com o referente e com o contex­ (()t_ma, �ei1e����--�--�-� �-�- ��g�!!9gr_e_s J:§p�,r,a.111 �p_çgr:i�r�rg_$eqm,ic�file�.t�j1os
to, elas nos impedem de seguir os quase-objetos até o fim. Estes, como eu carni.nhm.querúolevam a),,gar l)tJ1humdaHore$ta Negra. Nos outros lu­
disse, são ao mesmo tempo reais, discursivos e sociais. Pertencem à natu­ ga-res, há apenas o deserto. Os deuses não podem residir na técnica - este
reza, ao coletivo e ao discurso. Se autonomizarmos o discurso, entregan­ puro Arrazoado do ser (Ge-Ste/1), este destino inelutável (Geschick), este
do para tanto a natureza aos epistemólogos e a sociedade aos sociólogos, perigo supremo (Gefahr). Não devemos tampouco procurá-los na ciência,
tornamos impossível a conciliação dessas três fontes. uma vez que sua única essência é a da técnica. Estão ausentes da política,
A condição pós-moderna acabou de tentar justapor, sem conectá-los, da sociologia, da psicologia, da antropologia, da história - que é a história
estes três grandes repertórios da crítica: a natureza, a sociedade e o dis­ do Ser e conta suas épocas em milênios. Os deuses não poderiam residir na
curso. Caso sejam mantidos distintos e separados do trabalho de hibridação, economia - este cálculo puro colado para sempre no ente e na preocupa�
eles geram uma imagem terrível do mundo moderno: uma natureza e uma ção. Também não estão na filosofia, nem na ontologia, que esqueceram seu
técnica absolutamente homogêneas, uma sociedade feita apenas de refle,­ destino há 2500 anos. Desta forma, Heidegger faz com o mundo moderno
xos, de falsas aparências e de ilusões, um discurso constituído somente por aquilo que os visitantes fizeram com Heráclito: o golpe do desprezo.
efeitos de sentido separados de tudo. Motivo suficiente para levar alguém E no entanto "também aqui os deuses estão presentes", na central
ao suicídio. É isto que causa o desespero morno dos pós-modernos, que hidrelétrica às margens do Reno, nas partículas subatómicas, nos tênis
vem substituir o desespero angustiado dos mestres do absurdo que vieram Adidas tanto quanto nos velhos tamancos de madeira talhados à mão, na
antes deles. E no entanto jamais teriam -atingido este grau de sarcasmo e agricultura industrializada tanto quanto nas velhas paisagens, no cálculo
ironia se não houvessem acreditado, ainda por cima, que eles haviam es­ comercial tanto quanto nos versos despedaçantes de H0lderlin. Mas por
quecido o Ser. que os filósofos não os reconhecem mais? Porque acreditam naquilo que
a Constituição moderna diz sobre si mesma! Este paradoxo não deveria
mais nos espantar. Os modernos afirmam, de fato, que a técnica nada mais
QUEM ESQUECEU O SER ? é que uma pura dominação instrumental, a ciência puro arrazoado e puro
ato (Das Ge-Stell), que a economia é puro cálculo, o capitalismo pura re­
No começo, portanto, o pensamento da diferença entre o Ser e os entes produção, o sujeito pura consciência. É o que fingem crer, mas é preciso
parecia um bom meio para abrigar os quase-objetos, meio que se acrescen­ sobretudo nunca acreditar neles completamente, já que aquilo que afirmam
tava tanto ao das filosofias modernizadoras quanto ao das vertentes linguís­ é apenas a metade do mundo moderno, o trabalho de purificação que destila
ticas. Os quase-objetos não pertencem à natureza, nem à sociedade nem ao aquilo que o trabalho de hibridação lhe fornece.
sujeito, e também não pertencem à linguagem. Ao desconstruir a metafísi­ Quem esqueceu o Ser? Ninguém, nunca, pois caso contrário a nature­
ca isto é, a Constituição moderna tornada isoladamente -, Heidegger za seria realmente "vista como um estoque". Olhem em volta: os objetos
traça o ponto central onde tudo está contido, distante tanto dos sujeitos científicos circulam simultaneamente enquanto sujeitos, objetos e discurso.
quanto dos objetos. "O que é surpreendente neste pensamento do Ser é sua As redes estão preenchidas pelo ser. E as máquinas estão carregadas de
simplicidade. E é justamente isto que nos afasta dele" (p. 167). Girando em sujeitos e de coletivos. Como é que o ente poderia perder sua continuidade,
torno deste umbigo, deste omphalos, o filósofo afirma a existência de uma sua diferença, sua incompletude, sua marca? Ninguém jamais teve tal poder,
articulação entre a purificação metafísica e o trabalho de mediação. "O senão precisaríamos imaginar que fomos verdadeiramente modernos.

64 Jamais fomos modernos Revolução 65


'?
Entretanto, houve realmente alguém que esqueceu o Ser? Sim, aque­ Mas como fazer trabalhar juntos recursos críticos que apenas se de­
le que acredita sinceramente que o Ser foi esquecido para sempre. Como }kii
<Ji,' senvolveram através de suas críticas? Precisamos voltar atrás, a fim de des�
diz Lévi-Strauss, "o bárbaro é antes de tudo o homem que crê na barbá­ dobrar um espaço intelectual suficientemente vasto para abrigar ao mes­
rie". Aqueles que deixaram de estudar empiricamente a ciência, as técni­ mo tempo as tarefas de purificação e as de mediação, quer dizer, o mun­
cas, o direito, a política, a economia, a religião e a ficção perderam as pis­ do moderno oficial e o mundo moderno oficioso. Mas como voltar atrás?
tas do Ser distribuídas entre os entes. Caso, ao desprezar o empirismo, você O mundo moderno não é marcado pela flecha do tempo? Ele não devora
se afaste das ciências exatas, depois das ciências humanas, depois da filo­ o passado? Não rompe com este passado para sempre? A própria causa
sofia tradicional, depois das ciências da linguagem, e então você se reco­ da prostração atual não vem justamente de uma época "pós" �moderna que
lha em sua floresta, certamente irá sentir uma falta trágica. Mas é você que sucederia inelutavelmente à precedente, a qual sucedia, através de uma série
sente falta, não o mundo. Os seguidores de Heidegger transformaram esta de sobressaltos catastróficos, às épocas pré-modernas? A história não ter­
fraqueza notável em uma força. "Nad_a dq que �.a!J.�mos .G �.mpí_rico, mas minou? Uma vez que desejamos abrigar tanto os quase-objetos quanto sua
não importa, porque o __mundo de vocês é va,�i9Ae.Ser. Nós protegemos a Constituição, somos obrigados a levar em conta o quadro temporal dos
pequena chama do pe_r,i�_�!Il�.IJJ.9. �fo __$_er _ç_qntra tJ.!sl...9,.J! vocês que têm todo modernos. Já que nos recusamos a existir "depois" dos pós-modernos, não
o resto, não têm nada. '_'__ Pelo contrário, temos tudo, porque temos o Ser, e podemos voltar a este mundo não-ffioderno - que jamais deixamos - sem
os erites, e n�nca esquecemos a diferença entre o Ser e os entes. Realiza­ uma modificação na própria passagem do tempo.
mos o projeto impossível de Heidegger que acreditava naquilo que a Cons­ Isto porque o tempo também possui uma longitude e uma latitude.
tituição moderna dizia sobre si mesma sem compreender que isto era ape­ Ninguém exprimiu melhor esta ideia do que Péguy em seu Clio, a mais bela
nas a metade de um dispositivo mais vasto que nunca abandonou a velha das meditações sobre a mesclagem das histórias (Péguy, 1961). O tempo
matriz antropológica. Ninguém pode esquecer o Ser, já que nunca houve que o calendário marca situa claramente os acontecimentos em relação a
mundo moderno e, por isso, nunca houve metafísica. Nós ainda somos pré­ uma série regular de datas mas a historicidade situa os mesmos aconteci­
-socráticos, pré-cartesianos, pré-kantianos, pré-nietzschianos. Nenhuma mentos em relação à sua intensidade. É o que a musa da história explica,
revolução radical poderá separar-nos destes passados. Sim, Heráclito é um de forma engraçada, comparando as Burgraves de Victor Hugo - acúmulo
guia mais confiável que Heidegger: "Einai gar kai entautha theous". de tempo sem historicidade - com uma pequena frase de Beaumarchais
exemplo típico de historicidade sem história (Latour, 1977):

Ü INJCIO DO TEMPO QUE PASSA "Quando me dizem que Hatto, filho de Magnus, marquês
de Verona, prefeito de Nollig, é o pai de Gorlois, filho de Hatto
A proliferação dos quase-objetos foi, portanto, acolhida por três es­ (bastardo), prefeito de Sareck, não estão me dizendo nada, disse
tratégias diferentes: primeiro, a separação cada vez maior entre o polo da ela [Clio]. Eu não os conheço. Jamais os conhecerei. Mas quando
natureza - as coisas em si - e o polo da sociedade ou do sujeito - os me dizem que Querubin morreu, na tomada de um forte para
homens-entre-eles; segundo, a autonomização da linguagem ou do senti­ o qual ele não estava designado, aí então me dizem algo, disse
do; enfim, a desconstrução da metafísica ocidental. Quatro repertórios ela. E sei muito bem o que me dizem. Um sobressalto secreto
diferentes permitem que a crítica desenvolva seus ácidos: o da naturaliza­ me avisa que realmente entendi" (p. 276).
ção, o da sociologização, o da colocação em discurso e, enfim, o do esque­
cimento do Ser. Nenhum destes repertórios permite, por si só, compreen­ Ora, a passagem moderna do tempo nada mais é do que uma forma
der o mundo moderno. Colocados em conjunto, mas mantidos separados, particular de historicidade. De onde nos vem a ideia de um tempo que
é ainda pior, já que resultam apenas neste desespero cujo sintoma é o pós­ passa? Da própria Constituição moderna. A antropologia está aí para nos
-modernismo. Todos estes recursos críticos têm em comum o fato de não lembrar que a passagem do tempo pode ser interpretada de diversas for­
seguirem o trabalho de proliferação dos híbridos e o de purificação simulta­ mas, como ciclo ou como decadência, como queda ou como instabilida­
neamente. Para sair da hesitação dos pós-modernos, basta reutilizar todos de, como retorno ou como presença continuada. Chamemos de tempo­
estes·recursos, porém juntando-os uns com os outros e tornando-os adequa­ ralidade a interpretação desta passagem, de forma a distingui-la claramente
dos ao acompanhamento a curta distância dos quase-objetos ou das redes. do tempo. Os modernos têm a particularidade de compreender o tempo

66 Jamais fomos modernos Revolução 67


que passa como se ele realmente abolisse o passado antes dele. Pensam todos sos inimigos pós-modernos- a flecha do tempo não possui qualquer am­
que são Átila, atrás do qual a grama não crescia mais. Não se sentem dis­ biguidade: podemos ir sempre em frente, mas então é preciso romper com
tantes da Idade Média por alguns séculos, mas separados dela por revolu­ o passado; podemos decidir voltar atrás, mas então precisamos romper com
ções copernicanas, cortes epistemológicos, rupturas epistêmicas que são as vanguardas modernizacloras, as quais rompiam radicalmente com seu
tão radicais que não sobrou nada mais deste passado dentro deles- que passado. Este diktat organizava o pensamento moderno até estes últimos
nada mais deste passado deve sobreviver neles. anos, sem contudo ter qualquer efeito sobre a prática de mediação, que
sempre misturou épocas, gêneros e pensamentos tão heterogêneos quanto
"Esta teoria do progresso acaba sendo, essencialmente, os dos pré-modernos. Se existe algo que somos incapazes de fazer, pode­
uma teoria de caderneta de poupança", disse Clio. "Como um mos vê-lo agora, é urna revolução, quer seja na ciência, na técnica, em
todo, e universalmente, ela supõe, ela cria uma enorme cader­ política ou filosofia. Mas ainda somos modernos quando interpretamos
neta de poupança universal, uma caderneta de poupança comum este fato como uma decepção, corno se o arcaísmo houvesse invadido tudo,
para toda a comunidade humana, uma grande caderneta de como se não existisse mais um depósito de lixo onde fosse possível empilhar
poupança intelectual geral e mesmo universal, automática para o que foi recalcado. Ainda somos pós-modernos quando tentamos ultra­
toda a humanidade comum, automática no sentido que a hu­ passar esta decepção através da justaposição por colagem de elementos de
manidade estaria sempre depositando e nunca retiraria nada. todos os tempos, todos igualmente ultrapassados, fora de moda.
E os juros seriam acrescentados sempre, incansavelmente. Esta
é a teoria do progresso. Este é seu esquema. É um andaime"
(Péguy, 1961, p. 129). 0 MILAGRE REVOLUCIONÁRIO

Já que tudo aquilo que acontece é para sempre eliminado, os moder­ Qual é o laço entre a forma moderna de temporalidade e a Consti­
nos têm realmente a sensação de uma flecha irreversível do tempo, de uma tuição moderna que une, sem nunca dizê-lo, as duas assimetrias da natu­
capitalização, de um progresso. Mas como esta temporalidade é imposta a reza e da sociedade e permite a proliferação dos híbridos por debaixo dos
um regime temporal que corre de forma totalmente diversa, os sintomas de panos? Por que a Constituição moderna nos obriga a sentir o tempo como
um desentendimento se multiplicam. Como Nietzsche havia observado, os uma revolução que deve sempre ser recomeçada? Porque ela suprime as
modernos têm a doença da história. Querem guardar tudo, datar tudo, por­ origens e os destinos dos objetos da Natureza e porque faz de sua súbita
que pensam ter rompido definitivamente com seu passado. Quanto mais re­ emergência um milagre.
voluções eles acumulam, mais eles conservam; quanto mais capitalizam, mais O tempo moderno é uma sucessão de aparições inexplicáveis, elas
colocam no museu. A destruição maníaca é paga simetricamente por urna mesmas devidas à distinção entre a história das ciências ou das técnicas e a
conservação também maníaca. Os historiadores reconstituem o passado nos história pura e simples. Se suprimirmos Boyle e Hobbes e suas discussões,
mínimos detalhes com um cuidado muito maior, pois este se perdeu para eliminarmos o trabalho de construção da bomba de ar, a domesticação dos
sempre. Estaremos realmente tão distantes de nosso passado quanto dese­ colegas, a invenção de um Deus suprimido, a restauração da realeza ingle�
jamos crer? Não, já que a temporalidade moderna não tem muito efeito sobre sa, como então daremos conta das descobertas de Boyle? A elasticidade do
a passagem do tempo. O passado permanece, ou mesmo retorna. E esta ar não possui mais urna origem. Simplesmente irrompe do nada, toda pronta.
ressurgência é incompreensível para os modernos. Tratam-na então como Para explicar aquilo que se torna um grande mistério, será preciso construir
o retorno do que foi recalcado. Fazem dela um arcaísmo. "Se não tornar­ uma imagem do tempo que se adapte a esta irrupção miraculosa de coisas
mos cuidado, pensam eles, iremos voltar ao passado, iremos recair na ida­ novas que já existem desde sempre, e também a construções humanas que
de das trevas." A reconstituição histórica e o arcaísmo são dois dos sinto­ nenhum homem jamais construiu. A ideia de revolução radical é a única
mas da incapacidade dos modernos de eliminar aquilo que eles devem, to­ solução que os modernos puderam imaginar para explicar a irrupção dos
davia, eliminar a fim de ter a impressão de que o tempo passa. híbridos que é simultaneamente proibida e permitida por sua Constituição,
Se explico que as revoluções tentam abolir o passado mas não po­ e para evitar este monstro: que as próprias coisas tenham uma história.
dem fazê-lo, pareço ser um reacionário. Isto porque, para os modernos- Há boas razões para acreditarmos que a ideia de revolução política
assim como para seus inimigos antimodernos, assim corno para seus fal- foi tomada emprestada à ideia de revolução científica (Cohen, 1985). Po-

68 Jamais fomos modernos Revolução 69


demos entender por quê. Como a química de Lavoisier poderia deixar de natureza intemporal e aquilo que vem dos humanos. O tempo moderno
ser uma novidade absoluta, já que o grande sábio apagou todas as pistas provém de uma superposição da diferença entre o ?ª:sado e o �u.tur� com
de sua construção e cortou todos os nós que o tornavam dependente de seus esta outra diferença, mais importante, entre a medtaçao e a punficaçao. O
predecessores, mergulhados assim na obscuridão? Que sua vida tenha sido presente é traçado por uma série de rupturas radicais, as revoluções, que
cortada com a mesma guilhotina e em nome do mesmo obscurantismo é uma formam engrenagens irreversíveis para impedir-nos, para sempre, de vol­
ironia sinistra da história (.Bensaude-Vincent, 1 989). A gênese das inova­ tar atrás. Em si mesma, esta linha é tão vazia quanto a escansão de um
ções científicas ou técnicas só é tão misteriosa na Constituição moderna metrônomo. É, sobre ela, entretanto, que os modernos irão projetar a mul­
porque a transcendência universal de leis locais e fabricadas torna-se impen­ tiplicação dos quase-objetos e traçar, graças a eles, duas séries de progres­
sável, e deve permanecer assim sob pena de provocar um escândalo. A his­ são: uma para cima, o progresso; outra para baixo, a decadência.
tória dos homens, por sua vez, irá permanecer contingente, agitada pelo
barulho e pelo furor. Haverá portanto duas histórias diferentes, uma sem
outra historicidade que não a das revoluções totais ou dos cortes epistemo­ Ü FIM DO PASSADO ULTRAPASSADO
lógicos, que tratará das coisas eternas desde sempre presentes, e outra que
falará apenas da agitação mais ou menos circunstancial, mais ou menos A mobilização do mundo e dos coletivos em uma escala cada vez maior
durável dos pobres humanos separados das coisas. multiplica os atores que compõem nossas naturezas e nossas sociedades. Mas
Através desta distinção entre o contingente e o necessário, o históri­ nada nesta mobilização implica uma passagem ordenada e sistemática do
co e o intemporal, a história dos modernos será pontuada graças à irrup­ tempo. Entretanto, graças a sua forma peculiar de temporalidade, os mo­
ção dos não-humanos - o teorema de Pitágoras, o heliocentrismo, a lei dernos irão ordenar a proliferação de novos atores quer enquanto uma ca­
da gravidade, a máquina a vapor, a química de Lavoisier, a vacina de pitalização, um acumulo de conquistas, quer enquanto uma invasão de bár­
Pasteur, a bomba atômica, o computador- e, a cada vez, será calculado baros, uma sucessão de catástrofes. Progresso e decadência são seus dois
o tempo a partir destes começos miraculosos, laicizando para isso a encar­ grandes repertórios e têm ambos a mesma origem. Sobre cada uma destas
nação na história das ciências transcendentais. Será feita a distinção entre três linhas poderemos assinalar os antimodernos, que mantêm a tempora­
o tempo "antes') e "depois" do computador assim como os anos "antes lidade moderna mas invertem seu sentido. Para apagar o progresso ou a
de Cristo" e "depois de Cristo'). Com os tremores de voz que muitas ve­ decadência, desejam retornar ao passado- como se houvesse um passado!
zes acompanham as declarações sobre o destino moderno, chega-se mes­ De onde vem a impressão tão moderna de viver um tempo novo que
mo a falar de uma "concepção judaico-cristã do tempo'\ quando se trata rompe com o passado? De uma ligação, uma repetição que não tem, em
de um anacronismo, já que nem as místicas judaicas nem as teologias cristãs si, nada de temporal (Deleuze, 1968). A impressão de passar irreversível·
tinham qualquer tipo de inclinação para a Constituição moderna. É em mente só é criada quando ligamos entre si a enorme quantidade de elemen­
torno da Presença (ou seja, de Deus) que elas construíam seu regime tem­ tos que compõem nosso universo cotidiano. É sua coesão sistemática, bem
poral, e não em torno da emergência do vazio, do DNA, dos chips, ou das como a substituição de seus elementos por outros que se tornarão igual�
fábricas automatizadas... mente coerentes no período seguinte, que nos dão a impressão de um tempo
A temporalidade moderna nada tem de "judaico-cristã" e, felizmen­ que passa, de um fluxo contínuo indo do futuro ao passado, de um andaime.
te, nada tem de durável também. �E'.'i�s],2.<io Lmpério.(hCentrosobre É preciso que as coisas andem na mesma velocidade e sejam substituídas
um3-ljg.b.a.transformada emflecha.atra'lés da separação.brutal entre aqui- por outras igualmente bem alinhadas para que o tempo se torne um flu­
- _
lo___g_!:.IJ�: .n�Q__te.rn. história _ n:i;1_s_ _q�I_é: . �jr1,.Q9:_g_$_sim.emerge..na histórfa •.:....:::·as-- .Cõí- xo. A temporalidade moderna é o resultado desta disciplina.
sas_ c:Ia__na_tur_�_za- e a_qgi_lp _ (J.l!�...DllflÇ_;l__.'4t:_i_�-ª- - ê,__hisr()_rt_a -:-:- os tràhãlhõS ê__as A bomba de vácuo, em si, não é nem moderna nem revolucionária.
pai:,c_��-td.o. homent,,A assimetria entre natureza e culturâ tõrna-se entãÕ. Z:/m"à Ela associa, combina e redefine inúmeros atores, alguns novos e frescos
aSsirltetria entre passado e futuro. O passado era a confusão entre as coisas - como o rei da Inglaterra, o vácuo, o peso do ar- mas que não podem
e os homens; o futuro, aquilo que não os confundirá mais. A moderniza­ ser considerados todos como novos. Sua coesão não é suficientemente
ção consiste em sair sempre de uma idade de trevas que misturava as neces­ grande para que possamos romper nitidamente com o passado. É precis�
sidades da sociedade com a verdade científica para entrar em uma nova idade todo um trabalho suplementar de classificação, de limpeza e de reparti·
que irá, finalmente, distinguir de forma clara entre aquilo que pertence à ção. Se colocarmos as descobertas de Boyle na eternidade e as fazemos cair

70 Jamais fomos modernos Revolução 71


classificar em um único gru­
agora sobre a Inglaterra de uma só vez; se as conectarmos às de Galileu e plos não mais cessaram. Ninguém mais pode
tempo". Ninguém mais
Descartes, ligando-as em um "método científico" e se, finalmente, rejei­ po coerente os atores que fazem parte do "mesmo
zes, os aeros sóis, a revolução verde, a
tarmos como sendo arcaica a crença de Boyle nos milagres, obteremos então sabe se o urso dos Pireneus, os kolko
ão muçulmana, a caça à
a impressão de um tempo moderno radicalmente novo. A noção de seta vacina antivaríola, a guerra nas estrelas, a religi
catos da a fusão a frio, o bol­
irreversível - progresso ou decadência - provém de uma classificação dos perdiz, a Revolução francesa, os sindi EDF,
o eslov eno, etc., es��.9Jq_t�. �tt:/�:19da,
quase-objetos cujo crescimento os modernos não podem explicar. A irre­ chevismo, a relatividade, o nacionalism .
inexi stent es . ou perm anentes. E este
versibilidade no curso do tempo é ela mesma devida à transcendência das enLc.li.ª,__s.ã.Q.iJ.1.tuiistas,jntemporais,·
" no fluxo temporal que os pós-modernos identificaram tão bem
�iências e das técnicas, que na verdade escapam a qualquer compreensão. turbilhão
(Hutcheon, 1989).
E um processo de classificação para dissimular a origem inconfessável das nas duas vanguardas das belas-artes e da política
Como sempre, o pós-moderno é um sinto ma e não uma solução: ele
entidade� naturais e sociais. Da mesma forma como eliminam as origens
época da redução do ser ao
e os destmos de todos os híbridos, assim também os modernos interpre­ "revela a essência da modernidade como a
come çar, e.a identificação
tam as reorganizações heterogêneas como sendo totalidades sistemáticas novum... A pós-modernidade nada faz além de
somb ra sobre nós, assim
que dariam conta de tudo. O progresso modernizador só pode ser pensa­ do ser com o novum... continua projetando sua
(Vattimo, 1987, p.
como o Deus já morto do qual fala a Gaia Ciên
cia"
_do se todos os elementos que são contemporâneos de acordo com O ca­ mas dispersam
mode rno,
lendário pertenc.erem ao mesmo tempo. Estes elementos devem, para tan­ 173 ). Os pós-modernos conservam o panorama
em um pelot ão bem-or­
to, formar um sistema completo e reconhecível. Então, e somente então, os elementos que os modernizadores agrupavam
rsão - qualq uer agru­
o tempo forma um fluxo contínuo e progressivo, do qual os modernos denado. Os pós-modernos têm razão quanto à dispe
estão errad os ao desejar
proclamam-se a vanguarda e os antimodernos a retaguarda. pamento contemporâneo é politemporal -, mas ade
exigê ncia de novid
T �do se ;orna m�is confuso se os quase-objetos misturam épocas, conservar o panorama geral e ainda acreditar na do
rar eleme ntos do passa
ontologias e generos diferentes. Rapidamente, um período histórico pas­ contínua requerida pelo modernismo. Ao mistu quan to
os recon hecem o
sa a dar a impressão de uma grande montagem. Ao invés de um belo flu­ sob a forma de colagem e de citação, os pós-modern
exatament e porqu e estão
xo laminar, frequentemente teremos um fluxo turbulento de turbilhões e estas citações estão realmente ultrapassadas. E é
desen cavá- las, a fim de choca r as antigas vanguar­
corredeiras. O tempo deixa de ser irreversível para tornar-se reversível. No ultrapassadas que vão
grande distância entre
começo, isto não perturba os modernos. Tudo aquilo que não avança no das que não sabem mais a que apelar. Mas há uma
abolido e a repetição, a
ritmo do progresso é considerado por eles como arcaico, irracional ou con­ a citação provocadora de um passado realmente
do.
servador. E como há, efetivamente, alguns antimodernos muito felizes em revisão de um passado que jamais teria desapareci
desempenhar o papel de reacionários que lhes são reservados no esquema
moderno, os grandes dramas do progresso luminoso em luta contra O obs­
curantismo (ou o antidrama da revolução louca contra o conservadorismo SELEÇAO E TEMPOS MÚLTIPLOS
sensato) podem desdobrar-se para o deleite dos espectadores. Mas, para
ade moderna com
q�e a temporalidade modernizadora continue a funcionar, é preciso que Felizmente, nada nos obriga a manter a temporalid
antim odern os que retornam àqui­
a impressão de uma frente ordenada continue a ser verossímil. É preciso, sua sucessão de revoluções radicais, seus
duplo de elogio s e reclamações
portanto, que não haja um excesso de contraexemplos. Caso estes últimos lo que acreditam ser o passado, e seu jogo
a ou a favor da degeneres­
se multiplicarem a torto e a direito, torna-se impossível falar de arcaísmo, contra ou a favor do progresso contínuo, contr
semp re a esta temporali­
ou de retorno daquilo que foi recalcado. cência contínua. Não estamos amarrados para
nosso passa do, nem nosso
A proliferação dos guase-objetos rompeu a temporalidade moderna, dade que não nos permite compreender nem dos
histó ria a totali dade
bem como sua Constituição. A corrida para frente dos modernos talvez tenha futuro, e que nos força a enviar aos porões da tem­
vale dizer que os
parado há vinte anos, ou talvez dez, ou mesmo um, com a multiplicação de terceiros mundos humanos e não-humanos. Mais
s nos lamentar por isso,
exceções cujo lugar no fluxo regular do tempo não podia ser reconhecido pos modernos deixaram de passar. Mas não vamo
na_cla" �.!§.�.5��. .E�f�ç,§��
por ninguém. Primeiro foram os arranha-céus da arquitetura pós-moder­ uma vez que nossa verdadeir�� �i_st?_ri? nunc_a _ teve -
m<?<:fru" úiéld.Qr_e&_,e,.seus
na, depois a revolução islâmica de Khomeiny, sobre os quais ninguém mais muito .vagas_ con� _ e_s,�-�- -C�f!1.ª�. :�eJ�'f,9S�iJ9-:cfü:e:.:Qi:.
conseguia dizer se estavam adiantados ou atrasados. Desde então, os exem- immi gos 'lfíe-íITlP"US"etám: • - " " • - '
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72 Jamais fomos modernos Revolução
. O_ te � p o n ão é u m panorama ger al, m as ant es o r es u lt do r o i ó . A ide ia d e uma trad ­
i
a p hv s ­ N ó s s omo s tradi ci o na is, ent ã o ? Tam bém não
r �o da li�aç ao ent re os sere s . A disci pli na moder n a agru a v , e n c a va , s pólo g os há muit o nos li�raram .
a n a çã o est á v el é uma ilusão da q u al o antro
s1sten:iattza :a p a ra mant er u ni da a pleto ra de element ops co nt em g p o ntem. Ocor _re 7,ºm a m�1? r, �ar
t e
r ân e o s T od a s as tr adições imut áveis mu d a ra m an eo
t
e, assim, elimm . ar aquel es q ue n o s
ã o p ertencia m ao sis te m a. Es ta t en a tiv do s folc lores ances trais O me sm o que ocorre
u c om o kilt cente na no d
fracasso u, e la sem p re fracasso u . Nã o há ma s, n un c ho u ve na da a lém t d a 1 983 ,
séc ulo �I X (Hobsb awr�,
i a e e sc o c es es, totalme ntei n ventado no iní cio do )
element os q ue escapa m d o sist em a, o bjet os c u a da t e du ra ã o r e vi n h o d e m mha peque na cid ade n a
j a ç s ã o ­ ou c o m os C avalei o o s pro ad es d
certa s . Nã o..�sã _o,, ap�fl:a.s.. os . beduín os ou... os - kun g q ue m is tura ...m o s .t r n s i n ­
v o r

do qu e cinqu�nta ano s. " O s


a si B o r g o nha, cujo ri tual m i lenar nã o tem mais
tor es . e os costum es_ tradicion a s , os baldes d _e plástico e . odr es . e m . . �)e s acr ed1ta:arr: t er �m a
p o vo s s e m história" foram i venta do s por aqu eles q; �
1
i p
d_e a�1_ma l. Ha, algu m pa ís que_ nã o se a um a "terr a de c on ra ste s ? Ac
n

prati ca, o s pnme1ros : no ­


j t " a ­ h i s t ó ri a r a d ic alm ente n ov a (Go od y, 1 979). Na e
bam os tod o s mistu rand o os t empo s. Tornamo s- no s to d os p ré- o de o .s �e�as m e�ma s revoluçoes
m rn v a m s e m pa rar, os segu n d os pas s am sem c essar
S e nã o pode�o s ma s progred r com o o s mod er n o s, d e e o s re r e d . t�adic���-� l,. 7. .�IP�... e,$ç olha.q
u e
i i
com o . � s anttmod�rnos ? Nã o, d ev e mo s p assa r d e um tem o
v m
lid ade
g ir pe l a s me sma s c ontrov ér s ias �.i r.igt1é m 1:1.�sce
. ideia d e um a repe nç ao 1dent1ca do_ pass� ­
a p ra a �e faz qu and () s � ir �?Y ª IT:�li�o. A s
out ra J a qu e, e m sr mesm a, um a tem por a l idad e na d a te d e t e m o a l. - dica l com t od os os pa ssad:'s, sao do i
m p r É do , b e m co� ·ó ã.""d e um a ru ptura ra
u,m _ a form a d � �las ifi açã o para lig ar o s elemen t o s. S e m uda r m o s O p r ­ do te mpo. _:N,:_;i o pod��o s
� � n r e su lta os si m étr i c os d e u m a mesma con cepção
c1p1 0 d e class1ficaçao, iremo s o bte r um a o u tr a tem pora l id a d e a p di d _ t . es: es g::'andGs do1;1mi� s
a rt r o s v_qlt_q. r.. ao p as s a d o., .à _t r a d�çào., à repe ição., porq ue
i
mesmo s aco ntecimentos .
_ tida desta ter.r.. a que,
.. .. hoJe, n ao nos ..est. a m�-i s
i�(w, eis... 5-� 9 a_ im ag_e m i nver
Suponhamo s, po r exem p o, q nó s reagr u pe m o s o s ele m e nt o c o n­ penn anent e, a rnode rmz�çao .
p � Q��Ú4�: ._.;:c o rddª p ,1r aJrente, a re volução
l u e
s
temporâneo s a o long od e um a espir l e nã o ma s d e um a linh . Ce t a m e t e rec ua r? o:slocar nos _ a
O qu e fazer se não pod em os ne m ava nçar nem
s
a i a r
temo s um futur o e um passado , ma s o futur o s e p re c e com u m c írc n l ••
pre. sel c10namo s a ­
o a t e nção . Nós nunc a avançamos n em recu a m.os. Sem
e ti
a
em expansã o em toda s a s dire ções , e o passad o nã o s e e n co n t u l ra u ­ e rente s. A mda podem�s se ­
s v a me nt e ele mentos pert enc en tes a t m pos di fe
sado , ma s retomado , repetido , envolvido , protegido , r e co mbin d ot r pein a ­ ao. O
ra

a e cio n a r. É a s e le ç ã o que fa z o t empo , e não o tempo qu e fa z a seleç


terpretad o e refeito . Algun s elemento s qu e parec iam e sta r di a nt e s ' s e e l od e n sm o mode rn os -era a pena . s uma
s s ­ m _ e seus corolári os a nti-e p ós-
gui rmo s a espira l podem esta r muit o próxim o quando co m pt a ra o o s r i
muit os
. Se 1;1a�s e mais pes ­
s sel e ção f eita por alguns pouc o s em n�me de
an�i s . Inversamente , elemento s bastant e contempo âneo s q n do o m lh mo s sel e c 10nar , porconta pro p n a., os elemen­
r u a a o
s a s r e cupe a rem a cap acidad e de
a lmh a to rnam-s e muit o distante s s e percorremo s u m raio . T a l te m o a l
r
e
os. reenco ntra r a liberdad e .d
r ­ tos qu e faz em pa rte de n o ss o tem po, i rem
dad e nã o forç a o us o do s rótulos "a rcaicos " o " a vanç ado s " á e p t o doi berda de qu e na v erda de J ­
m o vi m e nto q ue O mod ern is mo nos neg a v a , li
a
, j q u
agrupament o d e elemento s co ntem porâneo s pod u e junta r e l me e n to s e rt en c01�­
­ m a i s hav íamos per i do. N ã o eme rgim o s de um pa ssado d e tr evas qu e
c�nte s a todo o s tempos . Em um q u adro dest e ti p o , no ssa s a õ e s p ão e n d
ir um fut ur,o no qua: os d01,s

fim reconhecida s com o politemp o r a i s .
ç s ­ fu n di a as natur ez as e a s cultur a s p ara ating
a oluçao c�ntl­
c on jun os es tar ão enfi m cl a ramen te separ ados, gr ças a rev
Eu talvez u s e uma fur ad e ir elétrica ma també m um rt l . t
a e o A
. s em u m fl uxo h omogene
n ua d o pres ente J ama is e st ivem os m ergu lhado
o
a s
primeira tem vint e anos , o segundo centen a s d e milh re de a mo s. Eu e r e un ezas d as era s. A m od e r­
a s n s e pla n e t ário vi n do seja do fu tu r o , se j a das prof d
um carpi?teiro " d e contrastes " porque mist ro g e s t o p ro e n ie nt e s de i . é um a ma� é que há muito. sob e e que hoi
e
s o
u
tempos diferentes ? Eu sere i uma cu riosidade ant ropológ i a ? Ao co
v n i z aç ã o nunc a correu Não . o demo s se grn r em fr ente, qu e r
tr r io es at r i a re flu i ndo. Jamais h ouv e u ma mare
P
á
c
mostrem-me uma ati vidade que se ja homogênea do ponto de is t don e r s a s c o s s e s e r e e a m e o tra rm a
.
v a t e m p� e
di z r , to r n à r e a r s vi i a u m p s u ir d u
moderno . Alguns dos meus genes têm 500 milhões de ano s o t s 100 000 d q g fo
, u ro .
e meus hábitos variam entre alguns dias e alg uns milha r e de a o s
s n .
Como dizia a C!io de Péguy, e como Michel Se r es repe te h o j e, " o
r s ­ UM A C RA R R E V O L UÇ Ã O C O P E RN I CA
mos tro.cado res e misturadores de tempo " (Ser es, 1992 ). É es t a tr o c a u e ONT NA
r q
nos defme, e não o cale ndário ou o fluxo que os mo de r n o s tin h m c o ­ por ma is tem�o,
a n s S e ho u vésse mos s id o c apa z es d e r ec alcar atrá s de nós,
truído para nós. Enfileire os Burgr a ves uns at rás do s o u t o s e o r es ulta do uman o, pr ovave lmen te podena­
continuará não sendo tempo. Desça lateralme nte p ra c ap t r a o
r
d as m ulti dões h uman as e o a m bi en te não h
t realme nte p ass avam,
a a s o a mo s c o n ti n ua r ac red it an do que os empos mo ern os

a
d
morte de Quer ubim em toda sua intensidade , e o te mp o est r á pc r e e n e o e m s u a a s s a e m. o e r e o e s t e v o ta .
a s t
. e li o g as u i c a a d d l
m in a dn t u d p M q fo lc á
74 J a m ais fom o s m o de r n os 7 5
R e v ol u ç ã o
par­
A2l[l.ª1i.S,<tsJ:rn.m"ªn_a� _e_sJ0,Q_ . n,ovarg�nte pres_e_ntes, as ?o Leste como a_ do Sul ção fracionada, uma nova mistura progressiva. A explicação crítica
o meio, inicialm ente ponto de
e__a__i!2ii.::.�-��- - Y.�Xi��1�.de... daâ..ffiê.?,§_�-.t!l��Q]llJffiiQi�:g�:a��rõ:cra:
- ·�pªrté.�·E1as não tia sempre dos dois polos e se dirigia para
recurso s oposto s. Desta forma
pÜ1em_ln_ais, �e1:_ex_glora�9-s_.J;'.las não podem mais �er suP��;Ja·s· j)"õt<]lte'i1ada clivagem e depois ponto de encontro dos
mais as ultrapassa. Não há nada maior do que a natureza ambiente; os povos o meio era mantido e abolido ao mesmo tempo.
?º Leste não estã� mais reduzidos a suas vanguardas proletárias; quanto
Figura 7
as massas do Terceiro Mundo, nada irá circunscrevê-las. Corno se livrar delas,


perguntam-se os modernos, angustiados. Como modernizar todas elas? Era Polo sujeito/sociedade
Polo natureza Ponto de clivagem
possível, acreditava-se que fosse possível, não é mais possível acreditar. Corno

O
e de encontro
um grande navio freado e depois atolado no mar de Sargaços, o tempo dos
�odernos finalmente parou. Mas o tempo nada tem a ver com a história. r--f---+- --+------t--
Interme1 diários t---t-----i----i--
E a ligação entre os seres que constitui o tempo. É a ligação sistemática dos
Purificação
)
Composição
contemporâneos em um todo coerente que constituía o fluxo do tempo
moderno. Agora que este fluxo laminar tornou-se turbulento, podemos A explicação parte de um dos extremos
diários
e aproxima-se do ponto de encontro pela multiplicação dos interme
abandonar as análises sobre o quadro vazio da temporalidade e retornar
ao tempo que passa, quer dizer, aos seres e a suas relações, às redes cons­
trutoras de irreversibilidade e reversibilidade. Se estamos tentando desdobrar o Império do Meio em si, somos obri­
clivagem e
Mas como modificar o princípio de classificação dos seres? Como dar gados a inverter a forma geral das explicações. O ponto de
. As explica ções não partem mais das
às multidões ilegítimas uma representação, uma linhagem, um estado ci­ encontro torna-se o ponto de partida
enos, mas sim do centro em direção
vil? Como explorar esta terra incógnita que, entretanto, nos é tão familiar? formas puras em direção aos fenôm
mais o ponto de apoio da realida de,
�:9rgqicdo mt•.JJ<lo. dos objeto;; ou dos sujeitos àquilQ que chamei .de qua­ aos extremos. Estes últimos não são
is. As camad as dos interm ediário s
s_�-obj_etos ou quase-suj_eit()s,? -- _Çomp_ passar. .da.. _n a_turez_a _ _t_ran�_c_e11ciente/ mas sim resultados provisórios e parcia
dores, de acordo com o model o pro­
\121..a,.�_�rúe _a esta nat11r.�_z_a_, _)&.��l-�1t,qte____real, ..mas extraÍda d� {;b�ratÓrio e são substituídas por cadeias de media
(Hen­
Ôepois transfQrmaclê,�!JÚGJ!ida<le,exterior? Como deslizar da soci;dade posto por Antoine Hennion, que serve como base para este ensaio
dos híbrido s- e de recons tituí­
'}manente/transcendente rumo aos coletivos de humanos e de não-huma­ nion, 1991). Ao invés de negar a existência
ediário s-, este modelo expli­
nos? Como passar do Deus suprimido transcendente/imanente ao Deus das -los desastradamente sob o nome de interm
ação como
origens que talvez fosse preciso denominar Deus de baixo? Como atingir cativo permite, pelo contrário, a integração do trabalho de purific
palavr as, a explica ção inclui
as redes, estes seres de topologia tão curiosa e de ontologia ainda mais um caso particular de mediação. Em outras
a separa damen te, nega
es�ranha, nos quais residem as capacidades de conectar e de separar, ou a Constituição, enquanto que esta última, tomad
o sentido da palavra
se1a, de produzir o espaço e o tempo? Como pensar o Império do Centro? aquilo que lhe dá sentido. O que mostra o quanto
mediad or - definid o
Já disse, precisamos traçar ao mesmo tempo a dimensão moderna e a dí- mediação difere do sentido de intermediário ou de
produç ão ou de cria­
como aquilo que difunde ou desloca um trabalho de
1:1ensão não-moderna, desdobrar a latitude e a longitude que irão permi­
ttr o traçado de mapas adaptados ao trabalho de mediação e purificação. ção que dele escaparia (Debray, 1991).
Os modernos sabiam muito bem como pensar este Império. Faziam
com que desaparecesse através da limpeza e negação. Cada vez que o Figura 8
Polo sujeito/sociedade
trabalho de mediação era concluído, o trabalho de purificação começa­ Polo natureza
va. Todos os quase-objetos, todos os híbridos eram concebidos como urna
mistura de formas puras. As explicações modernas consistiam portanto ,,
Trabalho de purificação

em clivar os mistos para deles extrair o que era proveniente do sujeito (ou
do social) e o que era proveniente do objeto. Em seguida, os intermediá­
o o Trabalho de medi�ção
o 0 0
rios eram multiplicados para que sua unidade fosse recomposta através
resultados;
da mistura das formas puras. Estes processos de análise e de síntese, por­ A explicação parte dos mediadores e atinge os extremos enquanto
ção torna-s e uma mediaçã o em particu lar
tanto, tinham sempre três aspectos: uma purificação prévia, uma separa- o trabalh o de purifica

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76 Jamais fomos modernos Revolução
A revolução copernicana de Kant, como vimos anteriormente, ofere­
global ao contexto local e mostraríamos como os gestos de B � yle e a pres­
ce o modelo completo das explicações modernizadoras, ao fazer com que
são da Royal Society permitem que eles compreendam os defeitos da bom­
o objeto gire em torno de um novo foro ao multiplicar os intermediários
ba, seus vazamentos e suas aberrações. Através da multiplicação dos ter­
para anular aos poucos a distância. Mas nada nos obriga a tomar esta re­
mos intermediários acabaríamos colando de volta as duas partes- natu­
volução como um acontecimento decisivo que nos teria colocado para sempre
reza e social - que, anteriormente, estavam infinitamente afastadas.
no caminho seguro da ciência, da moral e da teologia. Ocorre, com esta
Neste exemplo trabalhei com situações ideais e supus historiadores
inversão, o mesmo que com a Revolução francesa, que está ligada a ela; são
simétricos. Na prática, infelizmente, haverá apenas historiadores para a
excelentes instrumentos para tornar o tempo irreversível, mas não são, em
Inglaterra do século XVII, que só estarão interessados em fazer a bomba
si, irreversíveis. Dou o nome de contrarrevolução copernicana a esta inver­
surgir milagrosamente do Céu das Ideias para estabelecer sua cronologia.
são da inversão. Ou antes este deslizamento dos extremos rumo ao centro
Por outro lado, os cientistas e epistemólogos irão descrever a física do vá�uo
e para baixo, que faz girar tanto o objeto quanto o sujeito em torno da prática
sem preocupar-se nem um pouco com a Inglaterra ou com Boyle. Deixe­
dos quase-o bjetos e dos mediadores. Não precisamos apoiar nossas expli­
mos estas duas tarefas assimétricas, uma que esquece os não-humanos, e
cações nestas duas formas puras, o objeto ou o sujeito-sociedade, já que elas
outra que esquece os humanos, para analisar o resultado da explicação
são, ao contrário, resultados parciais e purificados da prática central, a única
anterior, que se esforçava para ser simétrica.
que nos interessa. São produto do craking purificador, e não sua matéria
Em uma explicação deste tipo, no fundo nada teria ocorrido. Para
prima. A natureza gira, de fato, mas não ao redor do sujeito-sociédade. Ela
explicar nossa bomba de ar, teríamos mergulhado nossa mão, alternada­
gira em torno do coletivo produtor de coisas e de homens. O sujeito gira,
mente, seja na urna que compreende eternamente os seres da nature�a,
de fato, mas não em torno da natureza. Ele é obtido a partir do coletivo
seja naquela que compreende os recursos sempiternos do mundo social.
produtor de homens e de coisas. O Império do Centro se encontra enfim
' ' A natureza sempre foi idêntica a si mesma. A sociedade sempre foi com­
representado. As naturezas e sociedades são os seus satélites.
posta pelos mesmos recursos, mesmos interesses, me�mas paixõ�s. �a
perspectiva moderna, a natureza e a sociedade pe�m1tem ., a exphcaç_ao
porque elas, em si, não precisam ser explicadas. Ex1stem,...�---�l-�E?.�...?�......1_�.. �.
Dos INTERMEDIÁRIOS AOS MEDIADORES
_ Jt?.mente o d.�. ....�..��-�E. .��!....�i-��!-�_1?__..�.�:.r_�___a.�--��..��'
terme1iá_�i,9,§___ç_µjQ. _papel .é_j µ
�sii§ s_Q _ podem..criar_asJ . igações.... porq.ue,. .justam.e.n.t.�,... .n.ªo pos�µ_e_r.n
A partir do momento em que realizamos a contrarrevolução coper­
q�;,Jn;;Ldignidade ol)tológicg , Nada fazem além de transponar, veicular,
nicana, e que��-��-u_amos_ o �-uase-objeto_ aci_f:12�--<J�-�)g_�-��Jmente distante_d_�
. · · �deslocar a potência dos dois únicos seres reais, natureza e sociedade. Cla­
ª-�ti_�-�-� ��-i-���=�0_:5_r
- - êt_aos_·a,�os��
- -�§:-_e11tr,r�.el��' quando vo Iramos à•• ro, podem transportar mal, podem ser infiéis ou obtusos. Mas esta falta
-
prática de sempre; ·pêfêehéniOS Cille não há mais rãzão para limitar a duas
de fidelidade não lhes dá nenhuma importância própria, uma vez que é
as variedades ontológicas (ou três, se contarmos o Deus suprimido).
ela qu�m prova, pelo contrário, seu estatuto de intermediário. Eles não
A bomba de vácuo que nos serviu como exemplo até aqui é, por si
possuem competência original. Na pior das hi__p�-���- �-�- '.....�..�.2J,�g��-..?--�......�.­
só, uma variedade ontológica? No mundo da revolução copernicana, de­
cravos, e na melhor, servidore_s �[a_,is.
veríamos dividi-la em duas; uma primeira parte iria para a esquerda e se
- Se realizarmos a contrarr-êVÕl�ção copernicana, seremos obrigados
tornaria "leis da natureza"; uma segunda parte iria para a direita e se tor­
a levar muito mais a sério o trabalho dos intermediários, já que estes não
naria "a sociedade inglesa do século XVII'"; talvez houvesse ainda uma
irão mais transmitir a potência da natureza e da sociedade indo todos pro­
terceira, o fenômeno, que marcaria o lugar vazio onde as outras duas de­
duzir, portanto, os mesmos efeitos de realidade. Se contarmos �gora �s
veriam reunir-se. Em seguida, através da multiplicação dos intermediários,
entidades dotadas de um estatuto autônomo, encontraremos mmto mais
deveríamos aproximar aquilo que separamos. Diríamos que a bomba do
do que duas ou três. Encontraremos dezenas delas. A natureza tem ou não
laboratório "revela" ou "representa" ou "materializa" ou "permite a com­
horror ao vácuo? Há um verdadeiro vácuo na bomba ou algum éter sutil
preensão" das leis da natureza. Diríamos também que as "representações"
teria entrado nela sorrateiramente? Como as testemunhas da Royal Society
dos ricos cavalheiros ingleses permitem a "interpretação" da pressão do
vão dar conta das fugas na bomba? Como o rei da Inglaterra vai aceitar
ar e a 1'aceitação" da existência de um vácuo. Se nos aproximarmos ain­
que seus súditos comecem novamente a falar das propriedades da matéria
da mais do ponto de encontro e de clivagem, passaríamos do contexto
e que sejam novamente formados cenáculos privados exatamente no mo-

78 Jamais fomos modernos 79


Revolução
mento em que começava a ser resolvida a questão do poder absoluto? A elasticidade do ar da mesma forma que a morte de Querubim. A história
autenticidade dos milagres encontra-se ou não apoiada pela mecanização não é mais simplesmente a história dos homens, mas também a das coisas
da matéria? Boyle irá se tornar um experimentador respeitado caso prati­ naturais (Serres, 1989a).
que estas experiências vulgares e abandone a explicação dedutiva, a única
digna de um cientista? Todas estas perguntas não estão mais encurrala­
das entre a natureza e a sociedade, já que todas elas redefinem aquilo de DA COISA-fü\tt-SI AO QUESTIONAMENTO
que a natureza é capaz e o que é a sociedade. Natureza e sociedade não
são mais os termos explicativos, mas sim aquilo que requer uma explica­ Esta contrarrevolução copernicana equivale a modificar o lugar do
ção conjunta (Latour, 1989a). Ao redor do trabalho da bomba se forma objeto para retirá-lo da coisa-em-si e levá-lo ao coletivo sem, entretanto,
um novo Boyle, uma nova natureza, uma nova teologia dos milagres, uma aproximá-lo da sociedade. O trabalho de Serres é tão importante quanto
nova sociabilidade científica, uma nova sociedade que incluirá, a partir de o de Shapin e Schaffer ou o de Hennion para que possamos atingir este
agora, o vácuo, os cientistas e o laboratório. deslocamento, esta descida. "Procuramos descrever a emergência do ob­
Não iremos mais explicar a inovação da bomba de ar mergulhan­ jeto, não apenas da ferramenta ou de uma bela estátua, mas da coisa em
do alternadamente a mão nas duas urnas da natureza e da sociedade. Pelo geral, ontologicamente falando. Como o objeto chegou até a hominidade",
contrário, iremos encher estas urnas ou, ao menos, modificaremos pro­ escreve Michel Serres em um de seus melhores livros (Serres, 1987, p. 162).
fundamente seu conteúdo. A natureza vai sair mudada do laboratório de Mas o problema é que ele não pode
Boyle, e também a sociedade inglesa, mas tanto Boyle quanto Hobbes irão
mudar também. Tais metamorfoses são incompreensíveis se eternamente "encontrar o que quer que seja nos livros que descreva a expe­
existirem apenas dois seres, natureza e sociedade, ou se a primeira per­ riência primitiva durante a qual o objeto enquanto tal consti­
manece eterna enquanto a segunda é agitada pela história. Estas metamor­ tuiu o sujeito hominiano, já que os livros são escritos para re­
foses, no entanto, tornam-se explicáveis se redistribuirmos a essência por cobrir com o esquecimento este empírico ou lacrar sua porta, e
todos os seres que compõem esta história. Mas então eles deixam de ser que os discursos expulsam com seu barulho aquilo que ocor­
simples intermediários mais ou menos fiéis. Tornam-se mediadores, ou reu nesse silêncio" (p. 216).
seja, atores dotados da capacidade de traduzir aquilo que eles transpor­
tam, de redefini-lo, desdobrá-lo, e também de traí-lo. Os servos tornaram­ Possuímos centenas de mitos contando como o sujeito (ou o coleti­
-se cidadãos livres. vo, ou a intersubjetividade, ou as epistemes) construiu o objeto a revo­
Quando oferecemos a todos os mediadores o ser até então cativo na lução copernicana de Kant sendo apenas um exemplo de uma longa linha­
natureza e na sociedade, a passagem do tempo já se torna mais compreen­ gem. Não temos, entretanto, nada para nos contar o outro aspecto da his­
sível. No mundo da revolução copernicana, onde tudo deveria poder ser tória: como o objeto faz o sujeito. Schapin e Schaffer dispõem de milhares
colocado entre os dois polos da natureza e da sociedade, a história no fundo de páginas de arquivos sobre as ideias de Boyle e de Hobbes, mas nada
não valia nada. Tudo o que se fazia era descobrir a natureza ou desdobrar sobre a prática tácita da bomba de ar ou sobre a destreza que ela reque­
a sociedade ou aplicar uma sobre a outra. Os fenômenos nada mais eram ria. Os testemunhos sobre · esta segunda metade da história não são cons­
do que o encontro de elementos que sempre estavam presentes anterior­ tituídos de textos ou linguagens, mas de restos silenciosos e brutais assim
mente. Havia uma história contingente, mas apenas para os humanos,
desvinculada da necessidade das coisas naturais. A partir do momento em
11 como bombas, pedras e estátuas. Ainda que a arqueologia de Serres esteja
situada diversas camadas abaixo da arqueologia da bomba de ar, ele se
que partimos do meio, em que invertemos as setas da explicação, que to­ 1 choca com o mesmo silêncio.
mamos a essência acumulada nas duas extremidades para redistribuí-la pelo í
conjunto dos intermediários, que elevamos estes últimos à dignidade de "O povo de Israel entoa salmos frente ao muro desman­
mediadores de fato, então a história torna-se realmente possível. O tem­ telado das lamentações: do templo não sobrou pedra sobre pe­
po se torna realmente presente. Algo de fato ocorre com Boyle, com a elas­ dra. O que viu, o que fez, o que pensou o sábio Tales frente às
ticidade do ar, com o vácuo, com a bomba de ar, com o rei, com Hobbes. pirâmides do Egito, em uma época tão antiga para nós quando
Todos saem mudados. Todas as essências tornam-se acontecimentos, a o nome de Quéops era arcaico para ele, por que ele inventou a

80 Jamais fomos modernos Revolução 81


geometria frente a este amontoado de pedras? O Islã inteiro terminar com as guerras civis. Obrigando a matéria a ser inerte, pedindo
sonha viajar para Meca onde está conservada, na Caaba, ne­ a Deus que não estivesse presente diretamente, construindo um novo es­
gra, a pedra. A ciência moderna nasce, na Renascença, a partir paço fechado em um recipiente onde a existência do vácuo ficaria clara,
da queda dos corpos: caem as pedras. Por que Jesus fundou a renunciando a condenar as testemunhas por suas opiniões. Não haverá mais
igreja cristã sobre um homem cujo nome era Pedro? Misturo à nenhuma acusação ad hominem, nos diz Boyle, nenhuma testemunha hu­
vontade religiões e conhecimentos nestes exemplos de ins­ mana será levada em conta, somente os indicadores não humanos e ins­
tauração" (p. 213). trumentos observados por cavalheiros serão válidos. A acumulação obs­
tinada dos matters of fact irá estabelecer os fundamentos do coletivo pa­
Por que deveríamos levar a sério uma generalização tão apressada cificado. Esta invenção dos fatos não é, entretanto, a descoberta das coi­
de todas estas petrificações, misturando a pedra negra religiosa à queda sas out there, é uma criação antropológica que redistribui Deus, a vonta­
dos corpos de Galileu? Pelo mesmo motivo que levei a sério o trabalho de de, o amor, o ódio, e a justiça. Serres concorda. Não temos a menor ideia
Schapin e Schaffer "misturando à vontade religiões e saberes em seus exem­ quanto ao aspecto que as coisas teriam fora do tribunal, fora de nossas
plos de instauração" da ciência e da política moderrias. Eles haviam fun­ guerras civis, fora de nossos processos e nossos tribunais. Sem acusação,
damentado a epistemologia com este novo ator desconhecido, a bomba de não temos nenhuma causa para defender e não podemos atribuir causas
ar improvisada, artesanal e que vaza. Serres fundamenta a epistemologia aos fenômenos. Esta situação antropológica não se limita a nosso passa­
com este ator desconhecido, as coisas silenciosas. Todos s_ão movidos pela do pré-científico, posto que pertence mais a nosso presente científico.
mesma razão antropológica: a ciência e a religião estão ligadas por uma Assim, não vivemos em uma sociedade que seria moderna porque,
profunda reinterpretação do que significa acusar e julgar. Para Boyle, como contrariamente a todas as outras, estaria enfim livre do inferno das rela­
para Serres, a ciência é um ramo do judiciário: ções coletivas, do obscurantismo da religião, da tirania da política, mas
porque, da mesma forma que todas as outras, redistribui as acusações,
"Em todas as línguas da Europa, ao norte bem como ao· substituindo uma causa- judiciária, coletiva, social- por uma causa-
sul, a palavra coisa, qualquer que seja sua forma, tem como científica, não social, matter-of-factual. Em nenhum lugar podemos ob­
origem ou raiz a palavra causa, proveniente da área jurídica, servar um objeto e um sujeito, uma sociedade que seria primitiva e outra
política ou da crítica em geral. Como se os objetos em si exis­ moderna. Uma série de substituições, de deslocamentos, de traduções mo­
tissem apenas de acordo com os debates de uma assembleia ou bilizam povos e coisas em escala cada vez maior.
de acordo com uma decisão pronunciada por um júri. A lingua­
gem quer que o mundo venha somente dela. Ao menos é o que "Imagino, originalmente, um turbilhão rápido no qual a
diz" (p. 111). "Era assim que o latim chamava res, a coisa, de constituição transcendental do objeto pelo sujeito se alimenta­
onde tiramos a realidade, objeto do procedimento jurídico ou ria, como por retroalimentação, da constituição simétrica do
a própria causa, de forma que, para os antigos, o acusado era sujeito pelo objeto, em semiciclos vertiginosos e constantemente
chamado de reus porque os magistrados o citavam. Como se retomados, retornando à origem. [ ... ] Existe um transcenden­
toda realidade humana viesse apenas dos tribunais" (p. 307). tal objetivo, condição constitutiva do sujeito pela aparição do
"Ali nos esperam o milagre e a resolução do enigma final. A objeto como objeto em geral. Da condição inversa ou simétri­
palavra causa designa a raiz ou origem da palavra coisa: cau­ ca sobre o ciclo turbilhonante, temos testemunhos, restos ou nar�
sa, cosa; da mesma forma, thing ou D ing. [... ] O tribunal colo­ rativas, escritos nas línguas instáveis. [ ...] Mas da condição cons­
ca em questão a identidade da causa e da coisa, da palavra e titutiva direta à partir do objeto temos testemunhos tangíveis,
do objeto ou a passagem subsritutiva de ambos. Algo emerge visíveis, concretos, formidáveis, tácitos. Por mais que voltemos
aí" (p. 294). na história falante ou na pré-história silenciosa, eles nunca dei­
xam de estar presentes" (p. 209).
É assim que Serres generaliza, em três citações, os resultados que
Schapin e Schaffer montaram com tanto esforço: as causas, as pedras e os Serres, em sua obra tão pouco moderna, nos conta uma pragmato­
fatos nunca ocupam a posição da coisa-em-si. Boyle perguntava-se como gonia, tão fabulosa quanto a velha cosmogonia de Hesíodo ou a de Hegel.

82 Jamais .fomos modernos Revolução 83


A sua não procede por metamorfose ou dialética, mas por substituições. como um gradiente que varia a estabilidade das entidades continuamente
As novas ciências que desviam, transformam, petrificam o coletivo em coi­ do acontecimento até a essência. Nada sabemos ainda sobre a bomba de
sas que ninguém fez, nada mais são do que retardatários nesta longa mi­ ar quando dizemos que ela é a representação das leis da natureza ou a re­
tologia das substituições. Aqueles que acompanham as redes ou que es­ presentação da sociedade inglesa ou uma aplicação da primeira sobre a
tudam as ciências não fazem nada senão documentar a enésima volta desta segunda ou vice-versa. Precisamos ainda decidir se estamos falando da
espiral cujo começo fabuloso é esboçado por Serres. A ciência contem­ bomba de ar-acontecimento do século XVII, ou da bomba de ar-essência
porânea é uma forma de prolongar aquilo que sempre fizemos. Hobbes estabilizada no século XVIII ou no século XX. O grau de estabilização-
construiu um corpo político a partir de corpos nus animados- ele se vê a latitude - é tão importante quanto a posição sobre a linha que vai do
às voltas com a gigantesca prótese artificial do Leviatã; Boyle concentra natural ao social - a longitude.
todo o conflito das guerras civis em torno de uma bomba de ar-, ele se
vê às voltas com fatos. Cada volta da espiral define um novo coletivo e Figura 9
uma nova objetividade. O coletivo em permanente renovação que se or­
ganiza em torno das coisas em permanente renovação jamais deixou de
evoluir. Jamais deixamos a matriz antropológica - estamos ainda na Polo natureza 1 Polo sujeito/sociedade
Essência
idade das trevas ou, se preferirmos, estamos ainda na infância do mundo. E' C' A' B' D'
latitude D"
E' D vazio nº 4
ONTOLOGIAS DE GEOMETRIA VARIÁVEL
E vazio n º S

C vazio n" 3.� - ----1 C"


A partir do momento em que atribuímos a historicidade a todos os
atores, a fim de acolher a proliferação dos quase-objetos, a natureza e a '' --�B vazio nº 2
eB�-
sociedade tornam-se tão inexistentes quanto o Oeste e o Leste. Tornam­
A vazio nº 1

-se referências cômodas e relativas que os modernos empregam para dife­ Existência
renciar os intermediários, alguns sendo chamados de "naturais" e outros longitude!
de "sociais", enquanto que outros serão "totalmente na'turais" e outros
ainda "totalmente sociais". Os analistas que vão em direção à esquerda A ontologia dos mediadores, portanto, possui uma geometria variá­
serão chamados de realistas, enquanto os que forem para a direita serão vel. O que Sartre dizia dos humanos, que sua existência precede sua es­
chamados de construtivistas (Pickering, 1 992). Os que desejarem manter­ sência, é válido para todos os actantes, a elasticidade do ar, a sociedade, a
-se exatamente no meio inventarão inúmeras combinações para separar a matéria e a consciência. Não temos que escolher entre o vácuo n º 5, reali­
natureza da sociedade ( ou sujeito), alternando a "dimensão simbólica" das dade da natureza exterior cuja essência não depende de nenhum humano,
coisas com a "dimensão natural" das sociedades. Outros, mais imperia­ e o vácuo nº 4, representação que os pensadores ocidentais levaram séculos
listas, tentarão naturalizar a sociedade integrando-a na natureza, ou en­ para definir. Ou antes, só poderemos escolher entre os dois quando hou­
tão socializar a natureza, fazendo com que seja digerida pela sociedade ( ou, verem ambos sido estabilizados. Não podemos afirmar se o vácuo nº 1,
o que é mais difícil, pelo sujeito). muito instável no laboratório de Boyle, é natural ou social, mas apenas que
Entretanto, estas referências e estes debates continuam a ser unidi­ ocorre artificialmente no laboratório. O vácuo nº 2 pode ser um artefato
mensionais. Classificar todas as entidades segundo uma única linha que fabricado pela mão do homem, a menos que se transmute em vácuo nº 3,
vai da natureza à sociedade seria o mesmo que elaborar mapas geográfi­ que começa a tornar-se uma reação que escapa aos homens. O que é o
cos somente com a longitude, o que os reduziria a um único traço! A se­ vácuo, então? Nenhuma destas posições. A essência do vácuo é a trajetó­
gunda dimensão permite dar qualquer latitude às entidades e desdobrar o ria que liga todas elas. Em outras palavras, a elasticidade do ar possui uma
mapa que registra, como eu disse anteriormente, ao mesmo tempo a Cons­ história. Cada um dos actantes possui uma assinatura única no espaço
tituição moderna e sua prática. Como iremos definir este equivalente do desdobrado por esta trajetória. Para traçá-los, não precisamos construir
Norte e do Sul? Misturando as metáforas, eu diria que é preciso defini-lo nenhuma hipótese sobre a essência da natureza ou a da sociedade. Basta

84 Jamais fomos modernos Revolução 85


superpor todas estas assinaturas para obter a forma que os modernos cha­ torna-se, graças à própria proliferação dos híbridos, um gradiente contí­
mam erroneamente, para resumir e purificar, de "natureza" e "sociedade". nuo que somos capazes de percorrer tão logo nos tornamos novamente
Mas se projetarmos todas estas trajetórias sobre a linha única que aquilo que jamais deixamos de ser, ou seja, não-modernos. Se acrescen­
liga o antigo polo da natureza ao antigo polo da sociedade, não compreen­ tarmos à versão oficial e estável da Constituição sua versão oficiosa e quente
deremos mais nada. Todos os pontos (A, B, C, D, E) estarão projetados - ou instável-, é o meio, pelo contrário, que fica cheio, e os extremos
unicamente ao longo da longitude (A', B', C', D', E'), sendo que o ponto se esvaziam. Compreendemos por que os não-modernos não sucedem aos
central A estará localizado no local dos antigos fenômenos, onde nada modernos. Tudo que os primeiros fazem é oficializar a prática desviada
deveria ocorrer de acordo com a hipótese moderna. Com esta linha, ape­ dos segundos. Pelo preço de uma pequena contrarrevolução, podemos en­
nas, realistas e construtivistas poderão brigar durante cento e sete anos para fim compreender, retrospectivamente, aquilo que sempre havíamos feito.
interpretar o vazio: os primeiros irão afirmar que ninguém fabricou este
fato real; os segundos que este fato social foi fabricado apenas com nos­
sas mãos. Os partidários do ponto exatamente intermediário irão balan­ LIGAR OS QUATRO REPERTÓRIOS MODERNOS
çar entre os dois sentidos da palavra "fato", usando de vez em quando a
fórmula "não apenas... mas também ... ". Isto porque o fabrico encontra­ Ao construir estas duas dimensões, moderna e não-moderna, ao ope­
-se abaixo desta linha, no trabalho de mediação, visível unicamente se le­ rar esta contrarrevolução copernicana, ao fazer com que o objeto e o su­
varmos em conta também o grau de estabilização (B", C", D", E"). jeito deslizassem para o centro e para baixo, talvez sejamos capazes de
Ocorre, com as grandes massas da natureza e da sociedade, o mes­ capitalizar os melhores recursos críticos. Os modernos desenvolveram qua­
mo que ocorre com os continentes resfriados na tectônica das placas. Se tro repertórios diferentes, que acreditavam ser incompatíveis, para acomo­
desejarmos compreender seu movimento, precisamos descer nessas fendas dar a proliferação dos quase-objetos. O primeiro repertório trata da rea­
em chamas onde o magma irrompe e a partir do qual serão produzidas, lidade exterior de uma natureza da qual não somos mestres, que existe fora
muito mais tarde e mais longe, por resfriamento e empilhamento progres­ de nós e que não conta nem com nossas paixões nem com nosso desejo,
sivo, as duas placas continentais sobre as quais nossos pés estão firmemente ainda que sejamos capazes de mobilizá-la e de construí-la. O segundo re­
fixados. Nós também devemos descer e aproximar-nos desses lugares onde pertório trata do laço social, daquilo que liga os humanos entre si, das
são criados os mistos que irão tornar-se, muito mais tarde, coisas naturais paixões e desejos que nos agitam, das forças personificadas que estruturam
ou sociais. Seria muito pedir que, em nossos debates, de agora em diante, a sociedade - a qual nos ultrapassa, ainda que seja construída por nós.
tenhamos que definir tanto a latitude quanto a longitude das entidades de O terceiro trata da significação e do sentido, dos actantes que compõem
que falamos, e que consideremos todas as essências como trajetórias? as histórias que contamos uns aos outros, das provas que eles enfrentam,
Agora podemos compreender melhor o paradoxo dos modernos. Uma das aventuras que atravessam, dos tropas e dos gêneros que os organizam,
vez que utilizavam ao mesmo tempo o trabalho de mediação e o de puri­ das grandes narrativas que nos dominam infinitamente, ainda que sejam
ficação, mas representavam apenas o segundo, eles jogavam ao mesmo simultaneamente texto e discurso. O quarto, enfim, fala do Ser, e des­
tempo com a transcendência e com a imanência das duas instâncias da constrói aquilo de que nos esquecemos quando nos preocupamos apenas
natureza e da sociedade. O que resultava em quatro recursos contraditó­ com o ente, ainda que a diferença do Ser esteja distribuída pelos entes, coex­
rios, que lhes permitiam fazer tudo e qualquer coisa. Ora, se traçarmos o tensivos à sua própria existência.
mapa das variedades ontológicas, iremos perceber que não há quatro re­ Estes recursos só são incompatíveis na versão oficial da Constitui­
giões, mas somente três. A dupla transcendência da natureza, de um lado, ção. Na prática, é difícil distinguir os quatro. Misturamos, sem o menor
e da sociedade, do outro, corresponde às essências estabilizadas. Em com­ pudor, nossos desejos com as coisas, o sentido com o social, o coletivo
pensação, a imanência das naturezas-naturantes·e dos coletivos corresponde com as narrativas. A partir do momento em que seguimos de perto qual­
a uma mesma e única região, a da instabilidade dos eventos, a do traba­ quer quase-objeto, este nos aparece algumas vezes como coisa, outras
lho de mediação. A Constituição moderna, portanto, está certa: há de fato como narrativa, outras ainda como laço social, sem nunca reduzir-se a
um abismo entre a natureza e a sociedade, mas este abismo é apenas um um simples ente. Nossa bomba de ar traça a elasticidade do ar, mas tra­
resultado tardio da estabilização. O único abismo que conta é o que sepa­ ça também a sociedade do século XVIII e define, igualmente, um novo
ra o trabalho de mediação da moldagem constitucional, mas este abismo gênero literário, o da narrativa de experiências em laboratório. Quando

86 Jamais fomos modernos Revolução 87


a seguimos, devemos fazer de conta que tudo é retórico, ou que tudo é em que os belos sábios finalmente as descubram. Nossos coletivos são mais
natural, ou que tudo é construído socialmente, ou que tudo é arrazoado? ativos, mais produtivos, mais socializados do que as cansativas coisas�em­
Devemos supor que, em sua essência, a mesma bomba é algumas vezes -si nos deixavam ver.
objeto, algumas vezes laço social e algumas vezes discurso? Ou que é um Vocês não estão cansados destas sociologias construídas sobre o so­
pouco dos três? Que algumas vezes é um simples ente, e algumas vezes é cial que se sustentam através da ?imples repetição das palavras "poder" e
marcada, separada, rachada pela diferença? E se fôssemos nós, os moder­ "legitimidade" porque não podem encaixar nem o mundo dos objetos nem
nos, que dividíssemos artificialmente uma trajetória única que, em prin­ o das linguagens que, no entanto, as constroem? Nossos coletivos são mais
cípio, não seria nem objeto, nem sujeito, nem efeito de sentido, nem puro reais, mais naturalizados, mais discursivos do que os cansativos homens­
ente? E se a separação dos quatro repertórios só se aplicasse a estados -entre-eles nos deixavam ver.
estabilizados e tardios? Estamos cansados dos jogos de linguagem e do eterno ceticismo da
Nada prova que estes recursos continuem a ser incompatíveis quan­ desconstrução dos sentidos. O discurso não é um mundo em si, mas uma
do passamos das essências aos acontecimentos, da purificação à mediação, população de actantes que se misturam tanto às coisas quanto às socieda­
da dimensão moderna à dimensão não-moderna, da revolução à contrar­ des, que sustentam ambas, e que as mantêm. O interesse pelos textos não
revolução copernicana. Vamos dizer apenas que os quase-objetos quase­ nos afasta da realidade, já que as coisas também têm direito à dignidade
-sujeitos traçam redes. São reais, bem reais, e nós humanos não os cria­ de serem textos. Quanto aos textos, por que negar-lhes a grandeza de se­
mos. Mas são coletivos, uma vez que nos ligam uns aos outros, que cir­ rem o laço social que nos mantém juntos?
culam por nossas mãos e nos definem por sua própria circulação. São Não aguento mais ser acusado, eu e meus contemporâneos, de ter­
discursivos, portanto, narrados, históricos, dotados de sentimento e po­ mos esquecido o Ser, de vivermos em um submundo esvaziado de toda
voados de actantes com formas autônomas. São instáveis e arriscados, exis­ substância, de todo sagrado, de toda arte. Tampouco creio precisar per­
tenciais e portadores de ser. Esta ligação dos quatro repertórios nos per­ der o mundo histórico, científico e social em que vivo para reencontrar estes
mite construir uma morada vasta o bastante para que nela abriguemos o tesouros. O envolvimento com as ciências, as técnicas, os mercados e as
Império do Centro, a verdadeira morada comum do mundo não-moder­ coisas não nos afasta nem da diferença entre o Ser e os entes nem da so�
no e, ao mesmo tempo, de sua Constituição. ciedade, da política ou da linguagem.
A síntese é impossível enquanto permanecermos realmente moder­ Reais como a natureza, narrados como o discurso, coletivos como a
nos, já que a natureza, o discurso, a sociedade, o Ser nos ultrapassam in­ sociedade, existenciais como o Ser, tais são os quase-objetos que os moder­
finitamente, e que estes quatro conjuntos só podem ser definidos através nos fizeram proliferar, e é assim que nos convém segui-los, tornando-nos
de sua separação, a qual mantém nossas garantias constitucionais. Mais a simplesmente aquilo que jamais deixamos de ser, ou seja, não�modernos.
continuidade torna-se possível se acrescentarmos às garantias a prática que
ela permite justamente por negá-la. Os modernos estão certos ao deseja­
rem ao mesmo tempo a realidade, a linguagem, a sociedade e o ser. Ao invés
de analisar sempre o percurso dos quase-objetos fazendo uma separação
de seus recursos, por que não podemos escrever como se estes devessem
ligar-se continuamente uns aos outros? Provavelmente sairíamos da pros­
tração pós-moderna.
Confesso que não aguento mais sentir-me eternamente fechado so­
mente na linguagem ou prisioneiro das representações sociais. Desejo um
acesso às coisas em si, e não a seus fenômenos. O real não está longe, mas
sim acessível em todos os objetos mobilizados ao redor do mundo. A rea­
lidade exterior não abunda no meio de nós?
Estamos cansados do domínio eterno de uma natureza transcenden­
te, que não se pode conhecer, inacessível, exata, e simplesmente verdadei­
ra, povoada de entidades sonolentas corno a Bela Adormecida, até o dia

88 Jamais fomos modernos Revolução 89


4.
RELATIVISMO

COMO ACABAR COM A ASSIMETRIA?

No início deste ensaio, eu propus a antropologia corno modelo de


descrição de nosso mundo, já que apenas ela poderia ligar em um mesmo
todo a trajetória estranha dos quase-objetos. Reconheci, entretanto, que
este modelo não era viável, já que não se aplicava às ciências e às técnicas.
Se as etnociências eram capazes de retraçar os laços que as ligavam ao
mundo social, não se pode dizer o mesmo das ciências exatas, incapazes
de fazê-lo. Para compreender por que era tão difícil aplicar às redes socio­
técnicas de nosso mundo a mesma liberdade de tom, foi preciso que eu
compreendesse o que entendemos por moderno. Se o que entendemos é
esta Constituição oficial que deve distinguir totalmente os humanos e os
não-humanos, então, de fato, é impossível que haja uma antropologia do
mundo moderno. Mas se desdobrarmos ao mesmo tempo a Constituição
e o trabalho de mediação que lhe dá sentido, nos apercebemos retrospec­
tivamente que jamais fomos realmente modernos. Portanto a antropolo­
gia, que até então chocava-se com as ciências e as técnicas, pode novamente
tornar-se o modelo de descrição que eu desejava. Incapaz de comparar os
pré-modernos aos modernos, poderia compará-los aos não-modernos.
Infelizmente, é difícil reutilizar a antropologia em seu estado atual.
Formada pelos modernos para compreender aqueles que não o eram, ela
interiorizou, em suas práticas, em seus conceitos, em suas questões, a im­
possibilidade da qual falei anteriormente (Bonte e Izard, 1991). Ela mes­
ma evita estudar os objetos da natureza e limita a extensão de suas pes­
quisas apenas às culturas. Permanece assimétrica. Para que se torne com­
parativa e possa ir e vir entre os modernos e os não-modernos, é preciso
torná-la simétrica. Para tanto, deve tornar-se capaz de enfrentar não as
crenças que não nos tocam diretamente - somos sempre bastante críti­
cos frente a elas - mas sim os conhecimentos aos quais aderimos total­
mente. É preciso torná-la capaz de estudar as ciências, ultrapassando os
limites da sociologia do conhecimento e, sobretudo, da epistemologia.
Este é o primeiro princípio de simetria, que abalou os estudos sobre
as ciências e as técnicas, ao exigir que o erro e a verdade fossem tratados
da mesma forma (Bloor, 1982). Até então, a sociologia do conhecimento
só explicava, através de uma grande quantidade de fatores sociais, os des­
vios em relação à trajetória retilínea da razão. O erro podia ser explícado

Relativismo 91
socialmente, mas a verdade continuava a ser sua própria explicação. Era O princípio de simetria restabelece, pelo contrário, a continuidade,
possível analisar a crença em discos voadores, mas não o conhecimento a historicidade e, vale lembrar, a justiça. Bloor é o anti-Canguilhem, da
dos buracos negros; era possível analisar as ilusões da parapsicologia, mas mesma forma que Serres é o anti-Bachelard, o que, por sinal, explica a total
não o saber dos psicólogos; os erros de Spencer, mas não as certezas de incompreensão, na França, tanto da sociologia das ciências quanto da an­
Darwin. Fatores sociais do mesmo tipo não podiam ser igualmente apli­ tropologia de Serres (Bowker e Latour, 1987). "O único mito puro é a ideia
cados aos dois. Nestes dois pesos, duas medidas, encontramos a antiga de uma ciência purificada de qualquer mito", escreve este último ao rom­
divisão da antropologia entre ciências- impossíveis de estudar- e etno­ per com a epistemologia (Serres, 1974, p. 259). Para ele, bem como para
ciências - possíveis de estudar. os historiadores das ciências propriamente ditos, Diderot, Darwin, Malthus
Os pressupostos da sociologia do conhecimento jamais teriam inti­ e Spencer devem ser explicados de acordo com os mesmos princípios e as
midado por muito tempo os etnólogos se os epistemólogos não houves­ mesmas causas. Ao dar conta da crença em discos voadores, verifique se
sem elevado a nível de princípio fundador esta mesma assimetria entre as as mesmas explicações podem ser empregadas, simetricamente, para os bu­
verdadeiras ciências e as falsas. Apenas estas últimas- as ciências "pros­ racos negros (Lagrange, 1990); ao atacar a parapsicologia, é possível usar
critas"- podem estar ligadas ao contexto social. Quanto às ciências "san­ os mesmos fatores para a psicologia (Collins e Pinch, 1991)? Ao analisar
cionadas n , apenas se tornam científicas porque se separam de qualquer o sucesso de Pasteur, será que os mesmos termos irão permitir dar conta
contexto, qualquer traço de contaminação, qualquer evidência primeira, de seus fracassos (Latour, 1984)?
chegando mesmo a escapar de seu próprio passado. Esta é a diferença, para Antes de mais nada, o primeiro princípio de simetria propõe um re­
Bachelard e seus discípulos, entre a história e a história das ciências. A pri­ gime de emagrecimento para as explicações. Havia se tornado tão fácil dar
meira pode ser simétrica, mas isto não importa porque nunca trata da ciên­ conta do erro! A sociedade, as crenças, a ideologia, os símbolos, o incons­
cia; a segunda jamais deve ser simétrica, a fim de que o corte epistemoló­ ciente, a loucura, tudo era tão acessível que as explicações tornavam-se
gico permaneça total. obesas. Mas a verdade? Ao retirarmos esta facilidade do corte epistemo­
Um único exemplo será suficiente para mostrar até onde pode levar lógico, nós que estudamos as ciências percebemos que a maior parte de
a rejeição de toda e qualquer antropologia simétrica. Quando Canguilhem nossas explicações não valia muito. A assimetria organizava todas elas e
faz a distinção entre as ideologias científicas e as verdadeiras ciências, não apenas dava um pontapé nos vencidos. Tudo muda se a disciplina do prin�
somente afirma que é impossível estudar Darwin - o sábio - e Diderot cípio de simetria nos força a conservar apenas as causas que poderiam servir
o ideólogo - nos mesmos termos, mas também que deve ser impossí­ tanto para o vencedor quanto para o vencido, para o sucesso e para o fra­
vel colocá-los no mesmo saco (Canguilhem, 1968). "A separação entre a casso. Equilibrando com precisão a balança da simetria, a diferença tor­
ideologia e a ciência deve impedir que sejam colocados em continuidade, na-se mais clara e permite compreender por que uns ganham e outros per­
em urna história das ciências, alguns elementos de uma ideologia aparen­ dem (Latour, 19896). Aqueles que pesavam os vencedores com uma ba­
temente conservados e a construção científica que destituiu a ideologia: por lança e os perdedores com outra, gritando, como Brennus, "vai victisr',
exemplo, procurar no Rêve de d'Alembert elementos precursores de A até aqui tornavam esta diferença incompreensível.
origem das espécies" (p. 45). Só é científico aquilo que rompe para sem­
pre com a ideologia. Se seguirmos tal princípio, é de fato difícil seguir os
quase-objetos em seus princípios e fins. Após terem passado pelas mãos Ü PRINCÍPIO DA SIMETRIA GENERALIZADA
do epistemólogo, todas suas raízes terão sido arrancadas. Só irá sobrar o
objeto extraído de toda a rede que lhe dava sentido. Mas por que chegar O primeiro princípio de simetria oferece a incomparável vantagem
mesmo a falar de Diderot e de Spencer, por que o interesse pelo erro? Por­ de livrar-nos dos cortes epistemológicos, das separações a priori entre ciên­
que sem ele o brilho da verdade seria insuportável! "O enlace da ideolo­ cias "sancionadas" e ciências "proscritas", e das divisões artificiais entre
gia e da ciência deve impedir que a história de urna ciência seja reduzida as sociologias do conhecimento, da crença e das ciências. Outrora, quan�
à platitude de um histórico, ou seja, de um quadro sem sombra de relevo" do o antropólogo retornava de algum local longínquo para descobrir, em
(p. 45). O falso é aquilo que dá valor ao verdadeiro. O que Racine fazia sua cultura, ciências que haviam sido purificadas pela epistemologia, era
para o Rei-Sol sob o belo título de historiador, Canguilhem faz por Darwin, impossível para ele estabelecer uma relação entre as etnociências e os sa­
sob o rótulo, igualmente usurpado, de historiador das ciências. beres. Abstinha-se, portanto, e com razão, de estudar a si mesmo, conten-

92 Jamais fomos modernos Relativismo 93


tando-se em analisar as culturas. Hoje, quando retorna e descobre, em sua entre parênteses, jogando todo o peso das explicações apenas sobre o polo
cultura, estudos cada vez mais numerosos sobre suas próprias ciências e da sociedade. Construtivista para a natureza, é realista para a sociedade
técnicas, o abismo já não é tão grande. Ele pode transitar, sem maiores di­ (Collins e Yearley, 1992; Callon e Latour, 1992).
ficuldades, da física chinesa à física inglesa (Needham, 1991); dos nave­ Mas a sociedade, como sabemos agora, também é construída, tanto
gantes trobriandeses aos navegantes da US Navy (Hutchins, 1983); dos cal­ quanto a natureza. Se formos realistas para uma, devemos sê-lo para a
culadores do oeste da África aos matemáticos da Califórnia (Rogoff e Lave, outra; se formos construtivistas para uma, também devemos sê-lo para
1984 ); dos técnicos da Costa do Marfim aos prêmios Nobel de La Jolla ambas. Ou antes, como nossa investigação sobre as duas práticas moder­
(Latour, 1988); dos sacrifícios ao deus Baal à explosão do ônibus espacial nas nos mostrou, é preciso compreender ao mesmo tempo como a nature­
Challenger (Serres, 1987). Ele não precisa mais limitar-se às culturas, já za e a sociedade são imanentes - no trabalho de mediação - e transcen­
que as naturezas tornam-se igualmente passíveis de estudo. dentes após o trabalho de purificação. Natureza e sociedade não ofere­
No entanto, o princípio de simetria definido por Bloor nos leva ra­ cem nenhuma base sólida sobre a qual possamos assentar nossas interpre­
pidamente a um impasse (Latour, 1991). Se por um lado ele obriga a uma tações- assimétricas no sentido de Canguilhem, ou simétricas no sentido
disciplina ferrenha quanto às explicações, por outro ele é, em si, assimétrico, de Bloor -, mas sim algo que deveríamos explicar. A aparente explica­
como podemos ver no diagrama a seguir: ção que dela provém só aparece posteriormente, quando os quase-objetos
estabilizados transformaram-se, após a clivagem, em objetos da realidade
Figura 10 e;terior, por um lado, e sujeitos da sociedade, de outro.

o o
Para que a antropologia se torne simétrica, portanto, não basta que
Polo natureza Polo sujeito/sociedade
acoplemos a ela o primeiro princípio de simetria que só dá cabo das
Explicações injustiças mais óbvias da epistemologia. É preciso que a antropologia ab­
assimétricas sorva aquilo que Michel Callon chama de princípio de simetria generaliza­
da: o antropólogo deve estar situado no ponto médio, de onde pode acom­

o
O que é verdadeiro é O que é falso é
explicado pela natureza explicado pela sociedade panhar, ao mesmo tempo, a atribuição de propriedades não humanas e de
propriedades humanas (Callon, 1986). Não lhe é permitido usar a reali­
dade exterior para explicar a sociedade, nem tampouco usar os jogos de
Primeiro
poder para dar conta daquilo que molda a realidade externa. Também não
princípio de
simetria
lhe é permitido alternar entre o realismo natural e o realismo sociológico,
A natureza não explica nem o que Tanto o que é verdadeíro quanto o que ,
_ _! f:!_15.::., ::_e� o_q1::._e � V:_!d::_d:!r� _é falso são explica�osye}_a :_ociedade usando "não apenas, a natureza, "mas também" a sociedade, a fim de con­
servar as duas assimetrias iniciais, ao mesmo tempo em que dissimula as
fraquezas de uma sob as fraquezas da outra (1.atour, 1989a).
A natureza e a sociedade Princípio

Enquanto éramos modernos, era impossível ocupar este lugar, já que


de simetria
generalizada
ele não existia! A única posição central que a Constituição reconhecia, como
vimos anteriormente, era o fenômeno, ponto de encontro onde convergem
A explicação parte

os dois polos da natureza e do sujeito. Mas este ponto permanecia terra


dos quase-obíetos

Este princípio exige, de fato, que o verdadeiro e o falso sejam expli­ de ninguém, um não-lugar. Tudo muda de figura, conforme descobrimos,
cados com os mesmos termos; mas quais são os termos escolhidos? Aque­ quando, ao invés de alternar sempre entre os dois polos da dimensão mo­
les que as ciências da sociedade oferecem aos descendentes de Hobbes. Ao derna, apenas, nós descemos ao longo da dimensão não-moderna. O não­
invés de explicar o verdadeiro através da adequação com a realidade na­ -lugar impensável torna-se o ponto de irrupção, na Constituição, do traba­
tural, e o falso através da restrição das categorias sociais, das epistemes, lho de mediação. Longe de estar vazio, é lá que os quase-objetos, quase­
ou dos interesses, este princípio tenta explicar tanto o verdadeiro quanto -sujeitos proliferam. Longe de ser impensável, torna-se o terreno de �odos
o falso usando as mesmas categorias, as mesmas epistemes e os mesmos os estudos empíricos realizados sobre as redes.
interesses. É portanto assimétrico, não mais porque divide, como o fazem Mas este lugar não seria exatamente aquele que a antropologia pre­
os epistemólogos, a ideologia e a ciência, mas porque coloca a natureza parou durante um século, com tanta dificuldade, e que o etnólogo ocupa

94 Jamais fomos modernos Relativismo 95


hoje sem nenhum esforço quando ele estuda outras culturas? De fato, po­ é, ou ao menos tal como as ciências a conhecem, ciências que permane­
demos vê-lo passar, sem mudar seus instrumentos de análise, da meteo­ cem na retaguarda, impossíveis de serem estudadas, jamais estudadas. No
rologia ao sistema de parentesco, da natureza das plantas à sua represen­ centro da questão do relativismo encontra-se, portanto, a questão da ciên­
tação cultural, da organização política à etnomedicina, das estruturas mí­ cia. Se os ocidentais houvessem apenas feito comércio ou conquistado,
ticas à etno.física ou às técnicas de caça. É bem verdade que a coragem do pilhado e escravizado, não seriam muito diferentes dos outros comercian­
etnólogo para desdobrar este tecido inteiriço vem de sua convicção ínti­ tes e conquistadores. Mas não, inventaram a ciência, esta atividade em tudo
ma de estar tratando apenas de representações, nada mais que represen­ distinta da conquista e do comércio, da política e da moral.
tações. A natureza, ela, permanece única, exterior e universal. Mas se efe­ Mesmo aqueles que, sob o nome do relativismo cultural, tentaram
tuarmos a superposição desses dois lugares - aquele que, sem maiores es­ defender a continuidade das culturas sem ordená-las em uma série progres­
forços, o etnólogo ocupa para estudar as culturas e aquele que, a muito siva, e sem isolá-las em suas prisões (Lévi-Strauss, 1952), acreditam que
custo, definimos para estudar nossa cultura -, a antropologia compara­ só podem fazê-lo aproximando-as o máximo possível das ciências.
da torna-se possível, ou mesmo simples. Ela não mais compara as cultu­
ras colocando a sua de lado, como se esta possuísse, por um espantoso "Foi preciso esperar até o meio deste século", escreveu
privilégio, a natureza universal. Ela compara naturezas-culturas. Seriam Lévi-Strauss em O pensamento selvagem, "para que os cami­
estas realmente comparáveis? Semelhantes? Iguais? Talvez agora possamos nhos, tanto tempo separados, se cruzassem: o que tem acesso
resolver a insolúvel questão do relativismo. ao mundo físico pela via da comunicação [o pensamento sel­
vagem], e aquele que, como descobrimos recentemente, tem
acesso ao mundo da comunicação pela via da física [a ciência
A IMPORTAÇÃO-EXPORTAÇÃO DAS DUAS GRANDES DIVISÕES moderna]" (p. 357).
"De urna só vez achava-se superada a falsa antinomia entre
"Nós, ocidentais, somos completamente diferentes dos outros", este mentalidade lógica e mentalidade pré-lógica. O pensamento
é o grito de vitória ou a longa queixa dos modernos. A Grande Divisão entre selvagem é lógico, no mesmo sentido e da mesma forma que o
Nós, os ocidentais, e Eles, todos os outros, dos mares da China até o Yucatán, nosso, mas apenas como é o nosso quando aplicado ao conhe­
dos inuit aos aborígenes da Tansmânia sempre nos perseguiu. Não impor­ cimento de um universo cujas propriedades físicas e semânti­
ta o que façam, os ocidentais carregam a história nos cascos de suas caravelas cas ele, pensamento, reconhece simultaneamente. [ ... ] Alguém
e canhoneiras, nos cilindros de seus telescópios e nos êmbolos de suas se­ fará a objeção de que subsiste uma diferença fundamental en­
ringas de injeção. Algumas vezes carregam este fardo do homem branco como tre o pensamento dos primitivos e o nosso: a teoria da infor­
uma missão gloriosa, outras vezes como uma tragédia, mas sempre como mação se interessa por mensagens que são autênticas, enquan­
um destino. Jamais pensam que apenas diferem dos outros como os sioux to que os primitivos tomam por mensagens, erroneamente, sim­
dos algonquins, ou os baoulés dos lapões; pensam sempre que diferem ra­ ples manifestações do determinismo físico. [... ] Ao tratar as pro­
dicalmente, absolutamente, a ponto de podermos colocar, de um lado, o priedades sensíveis do reino animal e do reino vegetal como se
ocidental, e de outro, todas as outras culturas, uma vez que estas têm em fossem elementos de uma mensagem, e ao descobrir neles 'as­
comum o fato de serem apenas algumas culturas em meio a tantas outras. sinaturas' - e portanto, signos -, os homens [do pensamento
O Ocidente, e somente ele, não seria uma cultura, não apenas uma cultura. selvagem] cometeram erros de atribuição: o elemento significan­
Por que o Ocidente se pensa assim? Por que justamente ele, e apenas te nem sempre era aquele que supunham. Mas na falta dos ins­
ele, seria algo mais que uma cultura? Para compreender a profundidade trumentos avançados que lhes teriam permitido situar-se no
desta Grande Divisão entre Eles e Nós, é preciso retornar a esta outra lugar em que ele está mais frequentemente, isto é, no nível mi­
Grande Divisão entre os humanos e os não-humanos que defini anterior­ croscópico, eles já discerniam, "como em uma nuvem", prin­
mente. De fato, o primeiro é a exportação do segundo. Nós, ocidentais, cípios de interpretação para os quais foram necessárias desco­
não podemos ser apenas mais uma cultura entre outras porque mobiliza­ bertas recentes - telecomunicações, calculadoras e microscó­
mos também a natureza. Não mais, como fazem as outras sociedades, uma pios eletrônicos- que nos revelassem seu valor heurístico e sua
imagem ou representação simbólica da natureza, mas a natureza como ela congruência com o real" (Lévi-Strauss, 1962, p. 356).

96 Jamais fomos modernos Relativismo 97


Lévi�Strauss, este advogado generoso, não consegue imaginar outras A Grande Divisão interior explica, portanto, a Grande Divisão ex­
circunstâncias atenuantes que não a de assemelhar seu cliente às ciências terior: apenas nós diferenciamos de forma absoluta entre a natureza e a
exatas! Se os primitivos não diferem de nós tanto quanto pensamos é por­ cultura, entre a ciência e a sociedade, enquanto que todos os outros, se�
que eles antecipam, com instrumentos inadequados e "erros de atribuição", jam eles chineses ou ameríndios, zandés ou barouyas, não podem separar
as mais recentes conquistas da teoria da informação, da biologia molecular de fato aquilo que é conhecimento do que é sociedade, o que é signo do
e da teoria da física. As próprias ciências que servem para esta elevação são que é coisa, o que vem da natureza como ela realmente é daquilo que suas
mantidas fora do jogo, fora da prática, fora do campo. Da forma como a culturas requerem. Não importa o que eles fizerem, por mais adaptados,
epistemologia as concebe, elas permanecem objetivas e exteriores, quase­ regrados e funcionais que possam ser, permanecerão eternamente cegos por
-objetos expurgados de suas redes. Basta dar aos primitivos um microscó­ esta confusão, prisioneiros tanto do social quanto da linguagem. Não im­
pio e eles pensarão como nós. Como afogar melhor aqueles cujas cabeças porta o que nós façamos, por mais criminosos ou imperialistas que seja­
desejávamos salvar? Para Lévi-Strauss (assim como para Canguilhem, Lyo­ mos, escapamos da prisão do social ou da linguagem e temos acesso às pró­
tard, Girard e a maioria dos intelectuais franceses), este novo conhecimen­ prias coisas através de uma porta de saída providencial, a do conhecimento
to está totalmente fora da cultura. Esta transcendência permite que todas científico. A partição interior dos não-humanos define uma segunda par­
as culturas sejam relativizadas, tanto as dos outros quanto as nossas. Com tição, desta vez externa, através da qual os modernos são separados dos
a diferença, é claro, que é justamente a nossa, e não a dos outros, que foi pré-modernos. Nas culturas Deles, a natureza e a sociedade, os signos e
construída através da biologia, dos microscópios eletrônicos e das redes de as coisas são quase coextensivos. Em Nossa cultura, ninguém mais deve
telecomunicações... O abismo que desejávamos atenuar se amplia. poder misturar as preocupações sociais e o acesso às coisas em si.
Em algum lugar, em nossas sociedades, e somente nelas, uma transcen­
dência inusitada manifestou-se: a natureza como ela realmente é, a-humana,
por vezes inumana, sempre extra-humana. Após este acontecimento quer A ANTROPOLOGIA VOLTA DOS TRÓPICOS
o situemos na matemática grega, na física italiana, na química alemã, na
física nuclear americana, na termodinâmica belga-, passou a haver uma Quando a antropologia volta dos trópicos para juntar-se à antropo­
total assimetria entre as culturas que consideram a natureza e aquelas que logia do mundo moderno, que a espera, inicialmente age com cautela, para
consideram apenas sua cultura ou as versões deformadas que elas podem não dizer com pusilanimidade. Primeiro, acredita que só pode aplicar seus
ter da matéria. Aqueles que inventam as ciências e descobrem os determi­ métodos quando os ocidentais confundem os signos e as coisas da mesma
nismos físicos não se encontram nunca, a não ser por acidente, nas puras forma que o pensamento selvagem o faz. Ela irá buscar, então, aquilo que
relações humanas. Os outros possuem apenas representações da natureza mais se assemelha a seus terrenos tradicionais, da forma corno a Grande
mais ou menos distorcidas ou codificadas pelas preocupações culturais dos Divisão os definiu. É bem verdade que foi preciso sacrificar o exotismo,
humanos, que os preenchem por inteiro, e apenas por acidente percebem mas o preço a pagar é aceitável, uma vez que ela mantém sua distância
- "como através de uma nuvem" - as coisas como elas realmente são. crítica ao estudar apenas as margens, as fraturas, e tudo aquilo que está
para além da racionalidade. A medicina popular, a feitiçaria do Bocage
Figura 11 (Favret, Saada, 1977), a vida dos camponeses nos arredores das centrais
nucleares (Zonabend, 1989), o comportamento em nossos salões aristo­

B
Primeira Grande Divisão interna
cráticos (Le Witta, 1988), são todos terrenos férteis para investigações, por
sinal excelentes, porque a questão da natureza ainda não está presente neles.
Contudo, o grande repatriamento não pode parar aí. Ao sacrificar o
exotismo, o etnólogo perdeu aquilo que tornava suas pesquisas originais
em relação àquelas, dispersas, dos sociólogos, economistas, psicólogos ou
"Nós" historiadores. Sob os trópicos, o antropólogo não se contentava apenas em
------ Segunda Grande Divisão externa ------ estudar as margens das outras culturas. Se ele permanecia marginal por
vocação e por método, ainda assim era o próprio centro dessas culturas
Partição moderna Recuperação pré-moderna que tencionava reconstituir, seu sistema de crenças, suas técnicas, suas

98 Jamais fomos modernos Relativismo 99


etnociências, seus jogos de poder, suas economias, em suma, a totalidade Vamos supor, agora, que nossa etnóloga volte para casa e tente su­
de sua existência. Se ele volta para casa mas se contenta em estudar os primir a Grande Divisão interior. E vamos supor que, por uma série de
aspectos marginais de sua própria cultura, perde todas as vantagens con­ felizes coincidências, comece a analisar uma tribo qualquer entre outras,
quistadas a duras penas pela antropologia, como, por exemplo, Marc Augé digamos, uma tribo de cientistas ou de engenheiros. A situação agora está
que, estudando os habitantes dos pântanos da Costa do Marfim, desejava invertida, porque ela irá aplicar as lições de monismo que aprendeu no
compreender, em sua totalidade, o fenômeno social da feitiçaria, mas que, périplo anterior. Sua tribo de sábios acredita que ela é capaz de separar
ao voltar para casa, limita-se a estudar apenas os aspectos mais superfi­ corretamente o conhecimento do mundo e as necessidades da política ou
ciais do metrô (Augé, 1986) ou do jardim do Luxemburgo. Se ele fosse si­ da moral (Traweek, 1988). Entretanto, aos olhos da observadora, esta
métrico, ao invés de estudar alguns grafites nas paredes dos corredores do separação nunca fica muito clara, ou nunca se torna algo mais que o sub­
metrô, teria estudado a rede sociotécnica do próprio metrô, tanto seus produto de uma atividade muito mais misturada, uma construção de la­
engenheiros quanto seus maquinistas, tanto seus diretores quanto seus boratório. Seus informantes acreditam ter acesso à natureza, mas a etnó­
clientes, o Estado patrão e tudo mais. Simplesmente, faria em casa o mes­ grafa percebe que este acesso é restrito a uma visão, a uma representação
mo que sempre fez nos outros lugares. Ao voltarem para casa, os etnólogos da natureza (Pickering, 1980). Esta tribo, assim como a precedente, pro­
não ficariam limitados à periferia, de forma que, assimétricos como sem­ jeta sobre a natureza suas categorias sociais mas, fato inusitado, acredita
pre, são audaciosos com relação aos outros e tímidos quanto a si mesmos. não tê-lo feito. Quando a etnóloga explica a seus informantes que eles não
Entretanto, para serem capazes de uma tal liberdade de movimentos podem separar a natureza da representação social que dão a ela, estes fi­
e de tom, é preciso que vejam com os mesmos olhos as duas Grandes Di­ cam chocados ou não a compreendem. Nossa etnóloga vê nessa ira e nes­
visões, considerando-as ambas como uma definição particular de nosso ta incompreensão a própria prova de sua obsessão moderna. O monismo
mundo e de suas relações com os outros. Ora, estas Divisões não nos de­ no qual ela vive agora- os humanos encontram-se misturados para sem­
finem e tampouco definem os outros; assim como a Constituição e a tempo­ pre aos não-humanos é intolerável para eles. Nossa etnóloga irá con­
ralidade moderna, tomadas individualmente, as Divisões também não são cluir que, por razões sociais, esta cultura precisa de uma atitude dualista.
um instrumento de conhecimento (conforme anteriormente explicado). É Entretanto, ambas as conclusões estão erradas, porque ela não sou­
portanto preciso contornar as duas Divisões ao mesmo tempo, não acredi­ be ouvir direito seus informantes. O objetivo da antropologia não é o de
tando nem na distinção radical dos humanos e dos não-humanos em nossa escandalizar duplamente ou o de suscitar uma dupla incompreensão. Urna
sociedade, nem na superposição total do saber e das sociedades nas outras. primeira vez, ao exportar a Grande Divisão interior e ao impor o dualismo
Imaginemos uma etnóloga que se dirija aos trópicos exportando a a culturas que o negariam, e uma segunda vez, ao anular a Divisão exte­
Grande Divisão interior. A seus olhos, o povo estudado confunde cons­ rior e ao impor o monismo a uma cultura, a nossa, que iria negá-lo com­
tantemente o conhecimento do mundo - que, como qualquer bom oci­ pletamente. A antropologia contorna a questão e transforma as duas Gran­
dental, a pesquisadora toma como ciência inata - e as necessidades do des Divisões não mais em algo que descreve a realidade - tanto a nossa
funcionamento social. A tribo que a acolhe, portanto, possui apenas uma quanto a dos outros-, mas em algo que define a forma particular que os
visão do mundo, uma representação da natureza. Para retomar a famosa ocidentais têm de estabelecer suas relações com os outros. Hoje nós pode­
expressão de Mauss e Durkheim, esta tribo projeta sobre a natureza suas mos evitar esta forma particular porque o próprio desenvolvimento das
categorias sociais (Durkheim, 1903 ). Quando nossa etnóloga explica a seus ciências e das técnicas nos impede de sermos totalmente modernos. Contan­
informantes que estes deveriam tomar mais cuidado para separar o mun­ to que sejamos capazes de imaginar uma antropologia um pouco diferente.
do como ele realmente é da representação social que eles lhe dão, ou fica­
riam chocados ou não a compreenderiam. A etnóloga veria nesta ira e neste
mal-entendido a própria prova da obsessão pré-moderna dos informan­ NÂO EXISTEM CULTURAS
tes. O dualismo no qual ela vive - os humanos de um lado, os não-hu­
manos de outro, os signos de um lado e as coisas· de outro é intolerável Suponhamos que, tendo voltado definitivamente dos trópicos, a an­
para eles. Nossa etnóloga irá concluir que, por razões sociais, esta cultura tropologia decida ocupar uma posição triplamente simétrica: explica com
precisa de uma atitude monista. "Nós comerciamos nossas ideias; o etnó­ os mesmos termos as verdades e os erros - é o primeiro princípio de si­
logo faz disso um tesouro." metria; estuda ao mesmo tempo a produção dos humanos e dos não-hu-

100 Jamais fomos modernos Relativismo 101


man os - é o princíp o de simetr ia generalizad a; finalment e, ocu p a u m a
i d e for maç ã o i r r e s i s tí vel i mp o st a pe las estru turas sociai s a todas as perce ­
posiçã o interm ediár a ent re os terreno s tradiciona is e os n ov o s, p o q p
ç õ e s ( o i s e L u ke s, 1 9 82 ). Os prim eiros serão derrot ad os se puder mos mo ­
i r u e s
H ll

suspende toda e qua lq u er a irmaçã o a re s p ei to daqui lo q ue distin gu ir i s


a tr a r q u e a s c u lt u r as não s uperpõ em s u a s cat egoriais; os segundo s f carã o
f

ocidenta is d os Outro s . É v e rdad e, el a perd e o e xotis m o , m as anh a n o v o o


i

g e o e e .
s e nfr aqu c id s s p ud r m os p ro va r q u e elas se s uperp õem (Br own, 1976 )
terrenos que l he permitirã o estud ar o dispo sitiv o ce tr al de to do s os c o l r a
n ­ N a p á t i c a, p or t a nt o, as si m q ue a nat u reza entra em jogo sem est r
tivo s, a té mesm o os nosso s . E a p e rde su a ligaçã o excl u s iv a co as u l tue
l m
­ l ga da a u m a c ult ur a em pa r ti cu l ar , h á s empre um ter ceiro mo del o que em �
ra s - o u co m a s dimensõ es cultura s - , m as ganh a a s natur e z a s, c 0 q
i

u e p re ga m o s p o r de b aix o d o s pa no s , qu e o do u ni versal ismo que e u chama ­


te m u m val or inestimáve l. As dua s posiçõe s que situ ei des de o in íc de s e é
i

i r a d e "p a u la . U m a das soc ieda d e s - sem pre a nos sa- defi ne o quadr
o rt i c r '' o
ensa o - aque a qu e o etnólog o ocupav a se m faz er esforço , e a u el a u t i
i l
q q
e ge ra l da n a t ur e z a e m rel açã o ao qual as o utras e sta rão situa das. É a solu ­
o analist a da s ciência s pesq uis av a co m tant a dificu ldad - o de m a go r a
e p çã o de L év i - S tra u s s, q ue distin g uia ent re uma socie dade ocide ntal com a cess o
se r s up erposta s. A anális e da s rede s estend e a mã o à a n t ro po lo g lh
ia e e à n a t u r ez a e a pr pri a n a t ur eza, miraculosa mente c onh ecida por nossa so ­
ó

oferec e a posiçã o centr al qu e hav a preparad o par a ela . e a e m


i c i e a de . A p r i me i ra m t d e des t a rgum ento pe r i te o re lativism o modes ­
d

Com isso, a questã o d o relativism o j á s e encontr a si m plific a da . S a o - n o mo s a p e nas u m a c ul tura entr e outras - ,m as a segunda pe rm ­
ciênci a, concebid a so b o pont o d e vist a do s epistemólog o s, to rn a v a o pe o t ó s s i
­ t e o r e t o r n o s ub -r ep t í cio do un i ve rs al i smo arrogante - con tinuamos a se r
blem a insolúve l, bast a -com o tanta s o u tra s veze - muda r a co n ce p çr ão
s abs o lu ta m e nt e dif e r entes . Nã o h á qualqu er con t radição, no entant o, ao s
da s prática s c i entífica s par a qu e a s dificuldade s artificia s d e sa ar e a m . v s s s s
i p o i h ios ãd e L é i- S t rau , entr e a s duas met ades , já que, j u ta mente, no ssaCon ­
Aquil o qu e a razã o complica , a s rede s expli cam . A peculiar idad e d o sç o c
l

­ a t
t t u ç o , a pe n a s el , p e r m i e distin guir uma s o ciedade A composta p or hu ­
dentai s foi a d e te r imposto , a tr a vé s d a Constitu içã o , a se par a çã o tota l do i s e
ma no s e u m a s o cie d a de A' co mpo s ta por nã o - h umanos e pa ra sempre afas ­
humano s e do s não-humano - Grand e Di visã o interio - te nd o a s s im
r t a a da pr i m eira A co ntr a di ç ãos ó é ap a ren te, h o je, aos olho s da ant r o po lo ­
s d

criad o artificialment e o cho qu e do s outros . "Com o alguém o d e s e r e r sa " !


p p ? gia s m tri
c a. E s e ú lt im o m odel o é o f undo comu m dos dois out ros, o qu
t e
i é

Com o é possíve l qu e alguém nã o vej a um a dife renç a radica l ent r a na t q u e r u di a m o s r a t v s a , u n u nc a r e a v z a m n a a a m u .


e u ­
q e g
el i i t s q e l t
i i
d lé d a s c ltu r a s
rez a un iversa l e a cultur a relativa ? Ma s a p róp ri a no ç ã o d e cultu r a é m
u
artefat o criad o po r noss o afastamen t o d a natur eza . Ora , não ex istem n em Fi 1 2
u
cultura s - dife rente s o u un iversai s - nem um a naturez a universa l. Ex is t m
e
g ra

apena s natu rezas- cultura s , a s q uai s constituem a únic a bas e po s s í ve l p r


comparações . A pa rti rdo moment o em qu e l e vam o s em conta ta n to a s
tica s d e mediação quanto a s prática s d e purifica ção , percebe m o ue n r m
a a
p á ­
D
oe o o B
s q e
OG o e
F

bem os moderno sepa ram os humanos d o não human o nem e


s s - s bm os
"outros " superpõem totalment e o s signo s e a s c oisa s (Guille - E s cu r te 1 989) .
oE
,
o

Posso agora compara ra s forma s d e relativismo seguindo o c ritério de


elas levarem ou não em conta a const rução da natu rezas . O r elat iv is o
R ela smo absoluto Relativism o cu ltural

s
tivi
m

absoluto supõ e cultur a s separada s e incomensu r á veis que ne n hu m a hie


A nat ureza est á presen te mas fo ra d as cul­
ra ­
C u lt ur a s sem h i e ra rqui a e sem co ntat o s ,
r tcood loa scaidnac oàmpensut r á v e is; a n ta ure za fo i tu ras; t odas as culturas possue m um pon t o
quia seria capaz de ordena r . É inúti l fala r sobre ele , uma vez q ue e le co l c
a
a natureza entre parênteses . No quediz respeito ao relati vismo cu lt ural, m o ais
a re . d e v si t a m a i s o u m e on s p r e c i s o s o b r e e l a .
n at u r eza sociedade A
sutíl, a natureza entra em cena, mas para existi ela não sup õe ne nhu m
Pol ur
r a P o /o s o cie da d e
(s oci e d a d e ) o n a t e za
sociedade, nenhuma construção, nenhuma mobilização, ne nhu ma r ede . T ra
­ B
ta-se po rtanto da natu reza revista e co rrigida pela epistemo logi a , p a a
ra q ua l e
a prática científica continua fora do jogo. Para esta t radição, as c u lt a s es tã s o ci e da d e A outras
repart idas como diversos pontos de vista mais ou menos precis os s o b e es to a
ur
( n a t u r e z a} s o ci e d a d e s
r
natu reza única . Alguma s sociedades a enxerga m "em um a nu v em ", out s Uni v re sa mo pa rt ic ular Antro pol ogia simé trica

em uma névoa espe ssa, outras em tempo claro . Os racional is ta s i ã o in sis


is
l
Todos os coletiv o s constitue m n at u r e z as e
­
U m a leda s cu lt uras (A) p os sui u m acesso
r
ra

tir nos aspectos comuns de todos estes pontos de v ista , os r elati v istas n a
p r i v i gia d o à n atu re z ,a o q u e a s aep r a culturas; ap ena s a dim e n sã o d a
.
d a s o u t r as . m o b i l i z aç ã o ír á v a ir a r
102 J a mais fo
m o s m o e rno
d
s R el at i v i s m o 10 3
Os relativistas jamais foram convincentes quanto à igualdade das cul­ natureza dos epistemólogos - as coisas-em-si. Aos olhos da antropolo­
turas, uma vez que consideram apenas estas últimas. E a natureza? De acordo gia comparada, estes coletivos todos se parecem, como eu já disse, por­
com eles, ela é a mesma para todos, uma vez que a ciência universal a de­ que repartem ao mesmo tempo os futuros elementos da natureza e os fu­
fine. Para escapar a esta contradição, eles precisam então limitar todos os turos elementos do mundo social. Ninguém jamais ouviu falar de um co­
povos a uma simples representação do mundo fechando-os para sempre na letivo que não mobilizaria, em sua composição, o céu, a terra, os corpos,
prisão de suas sociedades (Wilson, 1970); ou, pelo contrário, reduzir todos os bens, o direito, os deuses, as almas, os ancestrais, as forças, os animais,
os resultados científicos a simples produtos de construções sociais locais e as crenças, os seres fictícios... Esta é a antiga matriz antropológica, que
contingentes, a fim de negar à ciência toda e qualquer universalidade (Bloor, jamais deixamos de lado.
1982; Bloor, 1983). Imaginar milhares de homens aprisionados em visões Mas esta matriz comum define apenas o ponto de partida da antro­
deformadas do mundo desde a aurora dos tempos é tão difícil quanto ima­ pologia comparada. Realmente, todos os coletivos diferem bastante no que
ginar os neutrinos e os quasares, o DNA e a atração universal enquanto diz respeito a como eles repartem os seres, quanto às propriedades que eles
produtos sociais texanos, ingleses ou borgonheses. Ambas as respostas são lhes atribuem, quanto à mobilização que acreditam ser aceitável. Estas
igualmente absurdas, e é por isto que os grandes debates do relativismo nunca diferenças formam diversas pequenas divisões sem que qualquer Grande
levam a lugar nenhum. É tão impossível universalizar a natureza quanto Divisão seja visível. Entre estas pequenas divisões, existe uma que nós agora
reduzi-la à perspectiva restrita do relativismo cultural. sabemos reconhecer como tal e que distingue a versão oficial de certos
A solução surge no mesmo momento em que o artefato das culturas segmentos de certos coletivos há mais de três séculos. É nossa Constitui­
se dissolve. Todas as naturezas-culturas são similares por construírem ao ção que atribui a um conjunto de entidades o papel de não-humanos, a
mesmo tempo os seres humanos, divinos e não-humanos. Nenhuma delas um outro conjunto o papel de cidadãos, e a um terceiro a função de um
vive em um mundo de signos ou de símbolos arbitrariamente impostos a Deus árbitro e impotente. Por si mesma, esta Constituição não nos separa
uma natureza exterior que apenas nós conhecemos. Nenhuma delas, e so­ mais dos outros, uma vez que vem acrescentar-se à longa lista dos traços
bretudo não a nossa, vive em um mundo de coisas. Todas distribuem aqui­ diferenciais que compõem a antropologia comparada. Poderíamos fazer
lo que receberá uma carga de símbolos e aquilo que não receberá (Claverie, disso um conjunto de fichas no grande banco de dados do Laboratório de
1990). Se existe uma coisa que todos fazemos da mesma forma é construir antropologia social do Collêge de France - sendo apenas conveniente
ao mesmo tempo nossos coletivos humanos e os não-humanos que os cer­ mudar seu nome para Human and Non-Human Relations Area Files.
cam. Alguns mobilizam, para construir seu coletivo, ancestrais, leões, es­ Em nossa distribuição das entidades de geometria variável, somos tão
trelas fixas e o sangue coagulado dos sacrifícios; para construir os nossos, diferentes dos achuar quanto estes diferem dos tapirapé ou dos arapesh.
nós mobilizamos a genética, a zoologia, a cosmologia e a hematologia. "Mas Nem mais nem menos. Entretanto, tal comparação respeitaria apenas a
estas são ciências", irão gritar os modernos, horrorizados com esta confu­ produção conjunta de uma natureza e de uma sociedade, apenas um dos
são, "é claro que elas escapam completamente às representações da socie­ aspectos dos coletivos. Satisfaria nosso espírito de justiça mas recairia, por
dade". Ora, a presença das ciências não é suficiente para romper a sime­ outras vias, no mesmo erro que o relativismo absoluto, uma vez que abo­
tria, foi o que descobriu a antropologia comparada. Do relativismo cultu­ liria imediatamente as diferenças, tornando-as todas igualmente diferen­
ral, passamos ao relativismo "natural". O primeiro levava a diversos ab­ tes. Não permitiria dar conta deste outro aspecto que busco desde o iní­
surdos, o segundo irá permitir que reencontremos o senso comum. cio deste ensaio, a amplitude da mobilização, amplitude que é ao mesmo
tempo a consequência do modernismo e a causa de seu fim.
Isto porque o objetivo do princípio de simetria não é apenas o de
DIFERENÇAS DE TAMANHO estabelecer a igualdade - esta é apenas o meio de regular a balança no
ponto zero - mas também o de gravar as diferenças, ou seja, no fim das
Isto não será suficiente para resolver a questão do relativismo. Ape­ contas, as assimetrias, e o de compreender os meios práticos que permi­
nas a confusão criada pelo afastamento da natureza se encontra por hora tem aos coletivos dominarem outros coletivos. Ainda que sejam semelhantes
eliminada. Nos encontramos agora frente a produções de naturezas-cul­ pela coprodução, todos os coletivos diferem pelo tamanho. No começo da
turas que irei chamar de coletivos, para deixar claro que eles são diferen­ pesagem, uma central nuclear, um buraco na camada de ozônio, uma rede
tes tanto da sociedade dos sociólogos- os homens-entre-si- quanto da de satélites, um aglomerado de galáxias não são mais pesados do que uma

104 Jamais fomos modernos Relativismo 105


cada vez, �ma nova tra­
fogueira de gravetos, o céu que pode cair sobre nossa cabeça, uma genea­ pistões, o inconsciente e os neurotransmissores. A
logia, uma carroça, espíritos visíveis no céu, ou uma cosmogonia. Estes dução de quase-objet os reinicia a redefi nição do corpo social, tanto dos
as, em nossa soc�e?ade,
quase-objetos, com suas trajetórias hesitantes, traçam ao mesmo tempo sujeitos quanto dos objetos. As ciências e as técnic
e as estruturas sociais nas
formas da natureza e formas de sociedades. Mas no fim da medição, 0 não a refletem, assim como a natureza não reflet
-se de construir os pró­
primeiro lote traça um coletivo totalmente diferente do segundo. Também outra s. Não se trata de um jogo de espelhos. Trata
verdade q�e há diferenças
estas diferenças devem ser reconhecidas. prios coletivos em escalas cada vez maiores. É
e menos amda de cultura.
Usando uma metáfora, estas diferenças são de tamanho e de corte. de tamanho. Não há diferenças de natureza-
São importantes- e o relativismo erra ao tentar ignorar este fato-, mas
são apenas de tamanho e corte - e o universalismo erra ao tentar trans­
formar isto em uma Grande Divisão. Todos os coletivos se parecem, a não Q GOLPE DE ARQUIMEDES
ser por sua dimensão, assim como as volutas sucessivas de uma espiral.
ficar profundamente
Que sejam necessários ancestrais e estrelas fixas em um dos círculos ou O tamanho relativo dos coletivos irá se modi
cular de não-h umanos. Para com­
genes e quasares em outro, mais excêntrico, isto pode ser explicado �ela através do envolvimento de um tipo parti
há símb olo mais impress�o �ante
dimensão dos coletivos em questão. Um número muito maior de objetos preender esta variação de tamanho, não
rco narro u e que consntm, se­
exige muito mais sujeitos. Muito mais subjetividade requer muito mais do que a experiência impossível que Pluta
" (Auth ier, 1989 ):
objetividade. Se desejamos Hobbes e seus descendentes, precisamos de Boyle gundo Michel Authier, o "canhão do sábio
e de seus descendentes. Se desejamos o Leviatã, precisamos da bomba de
parente e
vácuo. É isto que permite respeitar ao mesmo tempo as diferenças (as vo­ "Arquimedes havia escrito ao rei Hieron, seu
é possí vel move r um
lutas têm, de fato, dimensões diferentes) e as semelhanças (todos os cole­ amigo, dizendo que com determinada força
encid o do vigor de
tivos misturam da mesma forma as entidades humanas e não-humanas). certo peso . E dizem que, orgulhoso e conv
esse outra Terra
Os relativistas, que tentam nivelar todas as culturas, transformando-as em sua demonstração, ele declarou que se houv
do, pediu que
codificações igualmente arbitrárias de um mundo natural cuja produção disponível, poderia levantá-la. Hieron, maravilha
grande mas­
não é explicada, não conseguem respeitar os esforços que os coletivos fa­ colocasse a teoria em prática e lhe mostrasse uma
o [Arqu imedes]
zem para dominar uns aos outros. Por outro lado, os universalistas são sa movimentada por uma pequena força. Entã
de muit esfor­
os
incapazes de compreender a fraternidade profunda dos coletivos, uma vez fez com que fosse levado para terra, ao custo
de transporte de
que são obrigados a oferecer o acesso à natureza apenas aos ocidentais e ços e de uma enorme mão de obra, um navio
grande número
a trancar todos os outros em sociedades das quais eles só escaparão caso três mastros da marinha real; fez com que um
habitual, e,
se tornem cientistas, modernos e ocidentalizados. de homens subis sem no navio, além de sua carga
tranquilo da
As ciências e as técnicas não são notáveis por serem verdadeiras ou sentado à distância, sem esforço, com um gesto
sas polias, de
eficazes- estas propriedades lhes são fornecidas por acréscimo e por ra­ mão, acionou uma máquina composta por diver
sobressaltos,
zões outras que não as dos epistemólogos (Latour, 1989a) -, mas sim forma a deslocar o navio fazendo-o deslizar, sem
e compreen­
porque multiplicam os não-humanos envolvidos na construção dos cole­ como se navegasse sobre o mar. O rei, estupefato
óteles para
tivos e porque tornam mais íntima a comunidade que formamos com es­ dendo o poder da ciência [da técnica], contratou Arist
inas contr a qualq uer espéc ie de sítio,
tes seres. É a extensão da espiral, a amplitude dos envolvimentos que irá que este construísse máqu
para o ataqu e" ( Vie de Marc ellus, trad.
suscitar, a distância cada vez maior onde irá recrutar estes seres que ca­ seja para a defesa, seja
racterizam as ciências modernas e não algum corte epistemológico que Amyot, La Pléiade).
romperia de uma vez por todas com seu passado pré-científico. Os sabe­
não apenas as �ela­
res e os poderes modernos não são diferentes porque escapam à tirania do Através da polia composta, Arquimedes inverte
ões polít icas, ofere cendo ª.º :e1 u�
social, mas porque acrescentam muito mais híbridos a fim de recompor o ções de força como também as relaç
m mais forte que uma mulndao. Ate
laço social e de aumentar ainda mais sua escala. Não apenas a bomba de mecanismo real para tornar um home
idão da qual era o porta-v?z mas
vácuo, mas também os micróbios, a eletricidade, os átomos, as estrelas, então, o soberano representava a mult ta um
:,
va-se mais forte . Arqu imed es forne ce ao Lev1a
as equações de segundo grau, os autômatos e os robôs, os moinhos e os nem por isso torna

107
106 Jamais fomos modernos Relativismo
outro princípio de composição ao transformar a relação de representação Siracusa com a ajuda de máquinas que podem ser dimensionadas, o cole­
política em uma relação de proporção mecânica. Sem a geometria e a es­ tivo aumenta proporcionalmente, rnas a origem desta variação de escala,
tatística, o soberano deveria compor com as forças sociais que o dominam desta comensurabilidade, irá desaparecer para sempre, deixando o Olimpo
infinitamente. Mas basta que a alavanca da técnica seja acrescentada ao
das ciências como uma fonte de forças novas, sempre disponíveis, nunca
jogo da representação política para que um indivíduo possa tornar-se mais visíveis. Sim, a ciência é de fato a política executada por outros meios, os
forte que a multidão, para que ele possa atacar e defender-se. Não há nada quais só têm força porque permanecem radicalmente outros.
de espantoso no fato de Hieron ficar "estupefato pela potência da técni­ Ao descobrirmos o golpe de Arquimedes - ou melhor, de Plutarco
ca )'. Ele não havia pensado, até então, em compor a potência política com -, nós localizamos o ponto de entrada dos não-humanos no próprio teci­
a polia composta (Latour, 1990a). do do coletivo. Não se trata de buscar como a geometria "reflete" os inte­
Mas a lição de Plutarco vai mais longe. A este primeiro instante no resses de Hieron, ou como a sociedade de Siracusa "encontra-se restringida"
qual Arquimedes torna comparáveis a força (física) e a força (política) -
pelas leis da geometria. Um novo coletivo é constituído envolvendo a geo­
graças à relação de proporção entre o pequeno e o grande, entre o mode­ metria e negando, ao mesmo tempo, que o fez. A sociedade não pode ex­
lo em escala reduzida e a aplicação em tamanho real - ele acrescenta um plicar a geometria, uma vez que é uma sociedade nova, "geométrica", que
segundo, ainda mais decisivo: começa quando as muralhas de Siracusa são protegidas de Marcelo. A so­
ciedade "movida pelo poder político" é um artefato obtido através da eli­
"Arquimedes possuía um espírito tão elevado e profun­ minação das muralhas e das alavancas, das polias e dos gládios, da mesma
do e havia adquirido um tesouro tão rico de observações cien­ forma como o contexto social do século XVII na Inglaterra só podia ser
tíficas que não quis deixar, a respeito das invenções que lhe obtido mediante a excisão prévia da bomba de vácuo e da física então nas­
deram o renome e a reputação de uma inteligência não huma­ cente. É somente quando retiramos os não-humanos misturados pelo cole­
na, mas divina, qualquer anotação escrita; considerava a me­ tivo que o resíduo, ao qual chamamos de sociedade, torna-se incompreen­
cânica e, em geral, todas as artes relacionadas às necessidades sível. Nem seu tamanho, nem sua rigidez, nem sua duração têm uma causa
da vida como trabalhos manuais vis, e consagrava seu zelo ape­ qualquer. Seria o mesmo que sustentar o Leviatã apenas com os cidadãos
nas aos objetos cuja beleza e excelência não estavam mistura­ nus e o contrato social, sem a bomba de vácuo, sem a espada, sem o gládio,
dos com nenhuma necessidade material, que não podem ser as faturas, os computadores, os relatórios e os palácios (Callon e Latour,
comparados aos outros, e nos quais a demonstração se equipara 1981; Strum e Latour, 1987; Latour, 1990b). O laço social não se sustenta
ao assunto, este fornecendo grandeza e beleza, e a primeira uma sem os objetos que o outro ramo da Constituição permite mobilizar ao mesmo
exatidão e uma potência sobrenaturais". tempo em que os torna eternamente sem comparação com o mundo social.
A demonstração matemática continua sendo incomparável aos tra­
balhos manuais vis, à política vulgar, às simples aplicações. Arquimedes é RELATIVISMO ABSOLUTO E RELATIVISMO RELATIVISTA
divino, e a potência da matemática, sobrenatural. Qualquer resto de com­
posição, de conexão, de aliança, se apaga agora. Até mesmo os escritos
Nem por isso a questão do relativismo está encerrada, mesmo se le­
devem desaparecer sem deixar vestígios. O primeiro momento produziu
varmos em conta ao mesmo tempo a semelhança profunda nas naturezas­
um híbrido desconhecido graças ao qual o mais fraco torna-se o mais for­ -culturas a velha matriz antropológica - e a diferença de tamanho -,
te através da aliança que estabelece entre as formas da política e as leis da a amplidão da mobilização destes coletivos. O tamanho, como já disse tan­
proporção. O segundo momento purifica e torna impossível a compara­
tas vezes, está ligado à Constituição moderna. É precisamente porque a
ção entre a política e a ciência, o império dos homens e o Olimpo (Serres,
Constituição garante que os quase-objetos serão transformados de forma
19896). O ponto de Arquimedes não deve ser procurado no primeiro mo­
absoluta e irreversível, seja em objetos da natureza exterior, seja em sujei­
mento, mas sim na conjunção dos dois: como fazer política através de novos tos da sociedade, que a mobilização destes quase-objetos pode tomar uma
meios que subitamente tornaram-se comensuráveis com ela, ao mesmo amplidão até então desconhecida. A antropologia simétrica deve, portan­
tempo em que é negada qualquer ligação entre atividades absolutamente to, fazer jus a esta particularidade, sem acrescentar a ela nenhum corte epis­
incomensuráveis? O balanço é positivo, em dois sentidos: Hieron defende
temológico, nenhuma Grande Divisão metafísica, nenhuma diferença en-

108 Jamais fomos modernos Relativismo 109


tre sociedades_ pré-lógicas _e lógicas, "frias" e "quentes", entre um Arqui­
. Isto equivale a faze r pouco caso da prática e da própria palavra rela­
u mentos
medes envolvido com pol1t1ca e um Arquimedes divino a te sta banhad tivismo. Estabelecer relações; tornar comensurável; regular instr
r digir dicion ários de corres pon­
no céu das Ideias. Toda a dificuldade encontrada neste �xercício está e; de medida• instituir cadeias metrológicas; e
norma s e dos padrõ esi stende r
provocar o máximo de diferenças através de um mínimo de meios (Goody dências; di�cutir sobre a compatibilidade das
e
' m tros, est s são alg ns dos
1979; Latour, 1985). redes calibradas; montar e negociar os valorí e e u

elativismo absolu to,


Os modernos de fato diferem dos pré-modernos porque se recusam a sentidos da palavra relativismo (Latou r, 1988c). O r
, squec que os instrumentos
pensar os quase:objetos como tais. Os híbridos representam para eles O horror assim como seu irmão inimigo, o racionalismo e e
cer o trabalho da instru­
que deve ser ev1tad? a qualquer custo através de uma purificação incessan­
, de medida devem ser montados e que, ao esqu e
sobr e a própria n? ção
�e e mam� ca. P_or s1 mesma, esta diferença na representação constitucional mentação, não é possível compre ender mais nada
trabal ho dos ociden­
1mportana muito pou co, uma vez que não seria suficiente para separar os de comensurabilidade. Esquece mais ainda o e norm e
do-os comensuráveis
mo�ernos dos o�tr�s. Have�ia t� ntos coletivos quantas fossem as represen­ tais para "tirarem a medida" dos o utros povos tornan .
es d e medida que
taçoes. Mas � maquma de cnar diferenças é ativada por esta recusa de pensar e criando, através do fogo, do saber e do sangue, padrõ
os quase-ob1.etos, porque ela gera a proliferação inédita de um certo tipo não existiam ante riormente.
tante acres­
de �er:_ o ob7eto construtor do sociat uma vez expulso do mundo social, Mas para compreender este trabalho da medida, é impor
ista traz de volta a
atnbuzdo a um mundo trans e dente que no entanto não é divino, e que
�� centar o adjetivo ao substantivo. O relativismo relativ
s do adj etivo, a
produz, por contraste, um su1etto flutuante portador de direito e de mora­ compatibilidade que julgávamos p� rdida. Desfaz, atravé
que , n st percu rso,
lidade. A bomba de vácuo de Boyle, os micróbios de Pasteur, a polia com­ aparente estupidez do substantivo. E verdade contudo
e e
_
posta de Ar�mmedes :ão objetos deste tipo. Estes novos não-humanos pos­ el e precisa abandonar aquilo que const
ituía o argum.ento com u m tant � a�s
istas, ou sep, o absoluto. Ao mves
sue� pro� r�edades miraculosas, uma vez que são ao mesmo tempo sociais universalistas quanto dos primeiros relativ
e �ao-sociais, produtores de naturezas e construtores de suje itos. São os de parar no meio do caminho, ele continua até o fim ; �
e e ncont ra, so_b a
vers1a, de conqmsta
trzcksters da antropologia comparada. Através desta brecha as ciências e forma de trabalho e de montagem, de prática e de contro
elacionar. Um pouco de r elativism� nos
as_ técnicas. irão irromper de forma tão misteriosa na sociedade que este e de dominação, a possibilidade de r
a ele, mas e um
milagre vai forçar os ocidentais a se pensarem como sendo totalmente di­ afasta do unive rsal; muito relativismo nos traz de volta
dade misteriosa.
fe:entes dos outros. O primeiro milagre gera um segundo- por que os outros universal em rede que já não possui qualque r proprie
nao fazem o �esmo?- e depois um terceiro- por que nós somos tão ex­ Os universalistas definiam uma única hierar q u ia. Os relativistas ab­
cepcionais : E esta característica que irá e ngendrar, e m cascata, todas as Os relativ istas r lativis tas, mais modestos
solutos tornavam todas elas iguais. e

pequenas d1fer.enças, as �uais serão recolhidas, resumidas e amplificadas pela os instru mento s as cad eias qu e foram
porém mais empíricos, mostram e

grande narrativa do Ocidental radicalmente à parte de todas as culturas. ades, hi rarq ias difere nças (Callon,
usadas para criar assimetrias e iguald e u e

ráv is ou incom ensur áveis àqueles


Uma vez qu� �sta característica te nha sido inventariada, e portanto 1991). Os mundos só parecem comens u e
contornada, o relat1v1smo não oferece maiores dificuldades. Nada nos impede Porém , todas as edidas , t�nto na
que ficam presos às medidas me didas. �
são s mpre m didas m didoras e
de �e�antar novamente a questão de como os cole tivos estão relacionados ciência rígida quanto na ciência flexível, e e e

qu não xistia ant s q fossem


defmmdo para tal dois relativismos que até o momento têm sido confundi� estas constroem uma comensurabilidade e e e ue

d tível ou irredu tív l a qual­


dos. O primeiro é absoluto, e o segundo, relativo. O primeiro trancava as desenvolvidas. Nenhuma coisa é, por si só, r e u e

por inter édio d ma outra


cul.turas �o exotismo e na estranheza, porque aceitava O ponto de vista dos q uer outra. Nunca por si mesma, mas sempre � e u

acr ditar q e os mund os


umversa !1stas ao mesmo tempo em que recusava unir-se a ele: que a mede e transfere esta medida à coisa. Como
u
se não existe
e
é o própr io c rn das rela­
ne�hum mstrumento de medida comum, único e transcendental então todas não podem se r traduzidos quando a tradução
e e

são �ispersos �ua�­


as lmguagens são intraduzíve is, todas as emoções incomunicá;eis todos os ções estabelecidas entre eles? Como dizer que o� mundos
polog ia, uma cienc1a
ritos igual�ente �espeitáveis, todos os paradigmas incomensurávei/ De gosto do nós os totalizamos o tempo todo? A própna antro
partic ipa deste trabalho
e de cor nao s discu te. Enquanto os universalistas afirmam
� que esta medi­ entre tantas outras, uma rede entre muitas outras,
gos de museus, de
da cc�m�m existe de fato, os relativistas absolutos ficam felizes por sua não de estabelecimento de relações, de constr ução de catálo
e
. mapa s, de_ questioná­
exrstencia. De forma quase eufórica, todos concordam quanto ao fat� de envio de missões, de expedições e de pesquisadores, de
Stock mg, 1986).
que a referência a uma medida absoluta é essencial para sua discussão. rios e de arquivos (Copans e Jamin, 1978; Fabian, 1983;

111
110 Jamais fomos modernos Relativísmo
A etnologia é uma destas medidas medidoras que soluciona na prática a americanizado, racionalizado, cientificizado, tecnicizado. Chega de chorar
questão do relativismo ao construir, dia após dia, uma certa comensura­ sobre o desencanto do mundo! Não basta o terror que já foi feito em torno
bilidade. Se a questão do relativismo for insolúvel, o relativismo relativista do pobre europeu, jogado em um cosmos frio e sem alma, girando em uma
ou, de forma mais elegante, o relacionismo, não oferece nenhuma dificul­ terra inerte em um mundo desprovido de sentido! J�í. não sofremos o bas­
dade a priori. Se deixarmos de ser totalmente modernos, ele irá tornar-se tante diante do espetáculo do proletário mecanizado submetido ao domínio
um dos recursos essenciais para relacionar os coletivos, que tentaremos não absoluto de um capitalismo técnico, de uma burocracia kafkiana, abando­
mais modernizar. Servirá de organon para a negociação planetária sobre nado em meio aos jogos de linguagem, perdido no concreto e na fórmica!
os universais relativos que estamos construindo aos poucos. J�í. lamentamos por demais o motorista de ônibus que só levanta de seu banco
para jogar-se no sofá em frente à televisão onde ele é manipulado por forças
mediáticas e pela sociedade de consumo! Como adoramos vestir a mortalha
PEQUENOS ENGANOS SOBRE O DESENCANTO DO MUNDO do absurdo e como gozamos mais ainda com o absurdo do pós-moderno!
Entretanto, jamais abandonamos a velha matriz antropológica. Jamais
Realmente somos diferentes dos outros, mas estas diferenças não de­ deixamos de construir nossos coletivos com materiais misturados aos pobres
vem ser colocadas no lugar onde a questão - agora encerrada - do re­ humanos e aos humildes não-humanos. Como poderíamos desencantar o
lativismo acreditava ser correto. Enquanto coletivos, somos todos irmãos. mundo, se nossos laboratórios e fábricas criam a cada dia centenas de híbri­
Exceto pela dimensão, dimensão que é ela mesma causada por pequenas dos, ainda mais estranhos que os anteriores, para povoá-lo? A bomba de
diferenças na repartição das entidades, podemos perceber um gradiente vácuo de Boyle por acaso é menos estranha do que a casa dos espíritos arapesh
contínuo entre os pré- e os não-modernos. Infelizmente, a dificuldade exis­ (Tuzin, 1980)? Ela também não constrói a Inglaterra do século XVII? Em
tente no relativismo não resulta apenas da supressão da natureza. Resulta que sentido seríamos vítimas do reducionismo, se cada cientista multiplica
também de uma crença relacionada a esta supressão, a de que o mundo centenas de vezes as novas entidades quando tenta eliminar algumas delas?
moderno está realmente desencantado. Não é apenas por arrogância que Como dizer que somos racionais, se continuamos não enxergando mais que
os ocidentais acreditam ser diferentes dos outros, mas também por deses­ um palmo à frente de nosso nariz? Como dizer que somos materialistas
pero e autopunição. Gostam de sentir medo de seu próprio destino. Sua voz quando cada uma das matérias que inventamos possui novas propriedades
treme quando opõem os bárbaros aos gregos, o Centro à Periferia, ao cele­ que nenhuma outra matéria nos permite unificar? Como poderíamos ser
brar a Morte de Deus ou a do Homem, a Krisis da Europa, o imperialismo, vítimas de um sistema técnico total, quando as máquinas são constituídas
a anomia, ou o fim das civilizações que sabemos, hoje, serem mortais. Por por sujeitos e não chegam nunca a fechar-se em algum sistema razoavelmente
que sentimos tanto prazer em nos percebermos tão diferentes dos outros e estável? Como poderíamos ser congelados pelo sopro frio das ciências, quan­
também de nosso passado? Que psicólogo terá sutileza suficiente para ex­ do estas são quentes e frágeis, humanas e controvertidas, cheias de bambus
plicar este deleite moroso por estarmos em crise perpétua e pelo fim da pensantes':- e de sujeitos que estão, por sua vez, povoados por coisas?
história? Por que adoramos transformar em dramas gigantescos as peque­ O erro dos modernos quanto a si mesmos é muito fácil de compreen­
nas diferenças de tamanho dos coletivos? der, uma vez que tenhamos restabelecido a simetria e que levemos em con­
Para superar completamente o pathos moderno que não nos deixa reco­ ta ao mesmo tempo o trabalho de purificação e o trabalho de tradução. Eles
nhecer a fraternidade dos coletivos, o que nos permitiria reordená-los livre­ confundiram produtos com processos. Acreditaram que a produção da ra­
mente, é preciso que a antropologia comparada meça exatamente estes efeitos cionalização burocrática supunha burocratas racionais; que a produção de
de tamanho. Contudo, a Constituição moderna nos obriga a confundir os uma ciência universal dependia de sábios universalistas; que a produção de
efeitos de dimensionamento de nossos coletivos com suas causas, as quais técnicas eficazes acarretava a eficácia dos engenheiros; que a produção de
ela não poderia compreender sem antes tornar-se inútil. Justamente espan­ abstração era, em si, abstrata, corno a de formalismo deveria ser formal. O
tados com o tamanho dos efeitos, os modernos acreditam que é necessário que equivale a dizer que uma refinaria produz petróleo de forma refinada,
encontrar causas imensas para ele. E como as únicas causas que a Constitui­ ou que um laticínio produz manteiga de forma leiteira! As palavras ciência,
ção reconhece são, realmente, miraculosas, uma vez que se encontram inver­
tidas, é necessário que eles acreditem ser diferentes do resto da humanida­
'' Cf. Pascal, "L'homme est un roseau pensant", um ser frágil, porém capaz de
de. Em suas mãos o ocidental se torna um mutante, desenraizado, aculturado, dominar a matéria através de seu pensamento. (N. do T.)

112 Jamais fomos modernos Relativismo 113


técnica, organização, economia, abstração, formalismo, universalidade, de dernizadores, digamos que os modernos simplesmente inventaram as re­
fato designam efeitos reais que devemos respeitar e dos quais precisamos des amplas através do envolvimento de um certo tipo de não-humanos. A
tomar consciência. Mas não designam nunca as causas destes efeitos. São ampliação das redes estava interrompida até então e forçava a manuten.,,
bons substantivos, mas maus adjetivos e como advérbios são execráveis. A ção de territórios (Deleuze e Guattari, 1972). Mas ào multiplicar estes seres
ciência não é produzida cientificamente, assim como a técnica não o é tecni­ híbridos, meio objetos meio sujeitos, a que chamamos de máquinas e fa­
camente, a organização organizadamente ou a economia economicamente. tos, a topografia dos coletivos mudou. Como o envolvimento destes no­
Os cientistas de verdade, descendentes de Boyle, sabem tudo isto, mas quando vos seres gerou efeitos extraordinários de dimensionamento, ao provocar
começam a pensar sobre aquilo que fazem, pronunciam as palavras que osso­ a variação das relações entre o local e o global, embora continuemos a pen­
ciólogos e os epistemólogos, descendentes de Hobbes, colocam em suas bocas. sar-las com as antigas categorias do universal e do circunstancial, temos
O paradoxo dos modernos (e dos antimodernos), é o de ter aceito desde tendência a transformar as redes ampliadas dos ocidentais em totalidades
o início explicações cognitivas ou psicológicas gigantescas para explicar sistemáticas e globais. A fim de dispersar este mistério, basta seguir os
efeitos igualmente gigantescos enquanto que, em todos os outros domínios caminhos não habituais que possibilitam esta variação de escala e consi­
científicos, eles procuravam pequenas causas com grandes consequências. derar as redes de fatos e leis mais ou menos como as de gás e esgotos.
O reducionismo nunca foi aplicado ao mundo moderno, embora este mundo A explicação profana dos efeitos de tamanho específicos do ocidente
acreditasse que o estava aplicando a tudo! Nossa mitologia é exatamente a é facilmente compreensível nas redes técnicas. Caso o relativismo houvesse
de nos imaginarmos radicalmente diferentes, antes mesmo que tenhamos sido inicialmente aplicado a elas, não teria a menor dificuldade para enten­
procurado pequenas diferenças e grandes divisões. E no entanto, no mo­ der este universal relatívo que é seu maior troféu. Uma ferrovia é local ou
mento em que a dupla Grande Divisão desaparece, esta mitologia se des­ global? Nem uma coisa nem outra. É local em cada ponto, já que há sem­
mancha com ela. Quando o trabalho de mediação é levado em conta junto pre travessias, ferroviários, algumas vezes estações e máquinas para venda
com o trabalho de purificação, a humanidade ordinária, a inumanidade automática de bilhetes. Mas também é global, uma vez que pode transpor­
ordinária devem retornar. Mas, para nossa grande surpresa, percebemos tar as pessoas de Madri a Berlim ou de Brest a Vladivostok. No entanto,
que sabíamos pouco sobre aquilo que causa as ciências, as técnicas, as orga­ não é universal o suficiente para poder transportar alguém a todos os luga­
nizações e as economias. Basta abrir os livros de ciência social e de episte­ res. É impossível chegar de trem a Malpy, uma pequena cidade da Auvergne,
mologia para ver o uso que fazem dos adjetivos e dos advérbios "abstrato", ou a Market Drayton, pequena cidade de Staffordshire. Só há caminhos
"racional", "sistemático ", "universal", científico", "organizado", "total", contínuos para nos transportar do local ao global, do circunstancial ao uni­
"complexo". Procurem então aqueles que tentam explicar os substantivos versal, do contingente ao necessário se pagarmos o preço das baldeações.
"abstração" , "racionalidade", "sistema", ''universal" , ''ciência", "organi­ O modelo da ferrovia pode ser estendido a todas as redes técnicas
zação", "totalidade", "complexidade", sem nunca empregar os advérbios que encontramos diariamente. Ainda que o telefone tenha se disseminado
e adjetivos anteriores; será difícil encontrar mais do que uma dúzia. Para­ universalmente, sabemos que podemos esperar até a morte ao lado de uma
doxalmente, sabemos mais sobre os achuar, os arapesh, ou os alladians do linha caso não estejarp.os ligados a ela por uma tomada e um número. Por
que sobre nós mesmos. Enquanto as pequenas causas locais geram efeitos mais que o sistema de esgotos seja abrangente, não é possível provar que
locais, somos capazes de segui-las. Por que seríamos incapazes de seguir os o papel de chiclete jogado no chão do meu quarto irá chegar até ele por
mil caminhos de estranha topologia que levam do local ao global e retor­ conta própria. As ondas magnéticas estão em toda parte, mas ainda assim
nam ao local? A antropologia estaria para sempre reduzida aos territórios, é preciso ter uma antena, uma assinatura e um decodificador para assistir
sem nunca poder seguir as redes? a televisão a cabo. Portanto, no caso das redes técnicas, não temos a me­
nor dificuldade em reconciliar seu aspecto local e sua dimensão global. São
compostas de locais particulares, alinhados através de uma série de cone­
MESMO UMA REDE AMPLA xões que atravessam outros lugares e que precisam de novas conexões para
CONTINUA A SER LOCAL EM TODOS OS PONTOS
continuar se estendendo. Entre as linhas da rede não há nada, a rigor: nem
trem, nem telefone, nem dutos, nem televisão. As redes técnicas, como o
Para ter uma noção exata quanto às nossas diferenças, sem reduzi­ nome já diz, são redes de caça jogadas sobre espaços e que deles retêm
-las como antes fazia o relativismo e sem exagerá-las como faziam os mo- apenas alguns elementos raros. São linhas conectadas, e não superfícies.

114 Jamaís fomos modernos 115


Relativismo
Nada têm de total, de global, de sistemático, mesmo se elas encerram su­ na racionalização nada mais é do que um erro de categoria. Um ramo da
perfícies sem recobrdas e se se estendem bastante. matemática foi tomado como se fosse outro. O percurso das ideias, do saber
O trabalho de universalização relativa continua sendo uma categoria ou dos fatos teria sido facilmente compreendido caso os houvéssemos tra­
, tado como redes técnicas (Shapin e Schaffer, a ser publicado, capítulo VI;
facilmente compreensível que o relacionismo pode seguir passo a passo.
Todas as ramificações, todos os alinhamentos, todas as conexões podem Schaffer, a ser publicado; Warwick, a ser publicado). Felizmente, esta as­
ser documentados e possuem tanto traçadores quanto um custo. É possível similação foi facilitada, não apenas pelo fim da epistemologia, mas tam­
estender-se em quase todas as direções, disseminar-se tanto no tempo quanto bém pelo fim da Constituição, e pelas transformações técnicas que ela
no espaço, sem contudo preencher o tempo e o espaço (Stengers, 1983). Para permitia sem no entanto compreendê-las. O percurso dos fatos torna-se
as ideias, os saberes, as leis e as competências, o modelo da rede técnica parece tão facilmente traçável quanto o das ferrovias ou dos telefones, graças a
inadequado às mesmas pessoas que ficam tão impressionadas com os efeitos esta materialização do espírito que as máquinas de pensar e os computa­
de difusão, e que acreditam naquilo que a epistemologia afirma sobre as dores permitem. Quando medimos as informações em bits e bauds, quan­
ciências. Torna-se mais difícil seguir os traçadores, seu custo não pode mais do somos assinantes de um banco de dados, quando estamos conectados
ser documentado claramente e nos arriscamos a perder o caminho trepidante ou desconectados de uma rede de processamento distribuído, é mais difí­
que leva do local ao global (Callon, 1991). Então, aplicamos a eles a antiga cil continuar vendo o pensamento universal como um espírito flutuando
categoria filosófica do universal radicalmente diferente das circunstâncias. sobre as águas (Lévy, 1990). Hoje, a razão se assemelha muito mais a uma
Parece então que as ideias e os conhecimentos podem estender-se em rede de televisão a cabo do que às ideias platônicas. Torna-se mais fácil
todas ªs direções gratuitamente. Algumas ideias parecem ser locais, outras do que anteriormente, então, ver em nossas leis e nossas constantes, nos­
. sas demonstrações e nossos teoremas, objetos estabilizados que circulam
globais. A gravitação universal parece - e estamos convencidos disto -
agir e estar presente em todos os lugares. A lei de Boyle ou de Mariotte, como bem longe, de fato, mas ainda assim no interior das redes metrológicas bem
as constantes de Planck, legislam e são constantes em todos os lugares. Quan­ gerenciadas das quais eles são incapazes de sair - exceto através de rami­
to ao teorema de Pitágoras e os números transfinitos, parecem ser tão uni­ ficações, assinaturas e decodificação.
versais que chegariam mesmo a escapar de nosso mundo terreno para jun­ Para falar de forma vulgar de um assunto que foi idolatrado demais,
tar-se às obras do divino Arquimedes. É aí que o antigo relativismo e sua os fatos científicos são como peixes congelados: nunca devem ficar fora
cara-metade, o racionalismo, mostram sua face, já que é em relação a estes do congelador, por um instante que seja. O universal em rede produz os
universais, e somente em relação a eles, que os humildes achuar ou os po­ mesmos efeitos do que o universal absoluto, mas já não possui as mesmas
bres arapesh ou os infelizes borgonheses parecem ser desesperadamente con­ causas fantásticas. É possível comprovar "em todos os lugares" a gravita­
tingentes e arbitrários, aprisionados para sempre entre os limites estritos de ção, mas com o custo da extensão relativa das redes de medidas e de in­
suas peculiaridades regionais (Geertz, 1986). Se tivéssemos tido apenas as terpretação. A elasticidade do ar pode ser verificada em toda parte, mas
economias mundiais dos mercadores venezianos, genoveses ou americanos, somente quando estamos conectados a uma bomba de vácuo que se disse­
se tivéssemos tido apenas telefones e televisões, ferrovias e esgotos, a domi­ minou pela Europa graças às múltiplas transformações dos experimenta­
nação dos ocidentais jamais teria parecido ser outra coisa que não uma dores. Tentem comprovar o mais simples dos fatos, a menor lei, a mais
extensão provisória e frágil de algumas redes frouxas e tênues. Mas há a humilde constante, sem antes conectar-se às diversas redes metrológicas,
ciência, sempre renovando e totalizando e preenchendo os buracos vazios aos laboratórios, aos instrumentos. O teorema de Pitágoras ou a constan­
deixados pelas redes, transformando-as em superfícies lisas e unidas, abso­ te de Planck se estendem às escolas e aos foguetes, às máquinas e aos ins­
lutamente universais. Apenas a ideia que até hoje tínhamos quanto à ciên­ trumentos, mas não saem de seus mundos, assim como os achuar não saem
cia tornou absoluta uma dominação que, de outra forma, permaneceria re­ de suas aldeias (Latour, 1989a, capítulo VI). Os primeiros formam redes
lativa. Todas as finas trilhas levando continuamente das circunstâncias aos alargadas, os segundos territórios ou anéis, diferença importante e que
universais foram rompidas pelos epistemólogos e nos encontramos com devemos respeitar, mas nem por isso devemos transformar os primeiros
algumas pobres contingências, de um lado, e Leis necessárias, de outro - em universais e os segundos em localidades. Claro que o ocidental pode
sem que, é claro, fôssemos capazes de pensar suas relações. acreditar que a atração universal é universal mesmo quando não há ne­
Local e global, entretanto, são conceitos bem-adaptados às superfí­ nhum instrumento presente, nenhum cálculo ou laboratório, da mesma
cies e à geometria, mas inadequados para as redes e a topologia. A crença forma que os bimin-kuskumin da Nova Guinéa são capazes de acreditar

Relativismo 117
1 16 Jamais fomos modernos
que eles são toda a humanidade, mas estas são crenças respe
itáveis que a território bem delimitado; é quase impossível distinguir as conversas dos
antropologia comparada não precisa mais compartilhar.
diretores daquelas dos empregados; quanto aos vendedores, estão sempre
devolvendo o troco e preenchendo formulários. Seriam os macroagentes
Ü LEVIATÃ É UM NOVELO DE REDES
compostos por microagentes (Garfinkel, 1967)? Seria a IBM composta por
uma série de interações locais? E a Brigada Vermelha por um agregado de
Os modernos não só exageraram a universalidade conversas de cantina? O ministério por uma pilha de papéis? O mercado
de suas ciências mundial por uma pletora de escambos locais e de acordos?
- ao arrancar a fina rede de práticas, instrumentos e
instituições que co­ Encontramos aqui o mesmo problema que já havíamos encontrado
bria o caminho que levava das contingências às neces
sidades- como tam­ antes, com os trens, os telefones ou as constantes universais. Como conec­
bém, simetricamente, exageraram o tamanho e a duraç
ão de suas socie­ tar-se sem, contudo, tornar-se local ou global? Os sociólogos e os econo­
dades. Acreditaram que eram revolucionários, porq
ue inventaram a uni­ mistas modernos não sabem como colocar esta pergunta. Ou permanecem
versalidade das ciências, arrancadas para sempre dos
particularismos lo­ no "micro" e nos contextos interpessoais, ou então passam subitamente
cais, e também porque inventaram organizações
gigantescas e racionais para um nível "macro" e só lidam, segundo eles, com racionalidades des­
que rompiam com todas as lealdades locais do passa
do. E ao fazerem isto, contextualizadas e despersonalizadas. O mito e a burocracia sem alma e
estragaram duplamente a originalidade daquilo que
estavam inventando: sem agente, assim como o do mercado puro e perfeito, apresenta a ima­
uma nova topologia que permitia atingir quase todos
os lugares sem que, gem simérrica àquela do mito das leis cienríficas universais. Ao i_nvés da
para tal, fosse necessário ocupar mais do que estreitas
linhas de força. Glo­ caminhada contínua da pesquisa, os modernos impuseram uma diferença
rificaram-se por virtudes que não podem possuir -
a racionalização - ontológica tão radical quanto a que separava, no século XVI, o mundo
mas também se flagelaram por pecados que são incap
azes de cometer _: sublunar - vítima da corrupção ou da incerteza - e os mundos supra­
esta mesma racionalização. Em ambos os casos,
tomaram o tamanho,ou lunares, que não conheciam quálquer alteração ou dúvida. (Por sinal, são
a conexão como se fossem diferenças de nível. Acred
itaram que realmente estes os mesmos físicos que se gabaram, com Galileu, desta distinção on­
havia pessoas, pensamentos, situações locais e organ
izações, leis, regras tológica, mas que a restabeleceram imediatamente depois de forma a pro­
globais. Acreditaram que havia contextos e outras
situações que gozavam teger as leis da física de toda e qualquer corrupção social...)
da misteriosa propriedade de serem "descontextualiz
ados" ou i'deslocali­ Desta forma existe um fio de Ariadne que nos permitiria passar con­
zados". E, de fato, se a rede intermediária form
ada pelos quase-objetos tinuamente do lo�al ao global, do humano ao não-humano. É o da rede
não for reconstruída, torna-se difícil compreender
tanto a sociedade quan­ de prátícas e de instrumentos, de documentos e traduções. Uma organi­
to a verdade científica, ambas pelas mesmas razõe
s. Os intermediários que zação, um mercado, uma instituição não são objetos supralunares feitos
foram apagados sustentavam tudo, enquanto que
os extremos, uma vez de uma matéria diferente daquela de nossas relações locais sublunares. A
isolados, não são mais nada.
única diferença vem do fato de que os primeiros são compostos por hí­
. S�m os inúi:rieros objetos que asseguram tanto sua duração quanto bridos e, para sua descrição, precisam mobilizar um grande número de
s�a :1g1dez, os ob1e os tradicionais da teoria social-
. : império, classes, pro­ objetos. O capitalismo de Fernand Braudel '?u de Marx não é o capita­
fissoes, orgamzaç oes, Estados - tornam-se misteriosos (Law,
1986a; lismo total dos marxistas (Braudel, 1979). E um labirinto de redes um
19866; Law e Fyfe, 1988). Qual é, por exemplo,
o tamanho da IBM, ou pouco longas que envolvem, de forma incompleta, um mundo a part�r de
da Brigada _Yermelha, ou do ministério francês da
Educação, ou do mer­ pontos que se transformam em centros de cálculo ou de lucr�. Segmndo
cado �und1al_? Certamente são todos atores de grand .
_ e porte, uma vez que esta rede de perto jamais seremos capazes de ultrapassar o !tmes miste­
mobilizam milhares ou mesmo milhões de agen
tes. Sua amplitude deve, rioso que deveria separar o local do global. A organização de uma gran­
portanto resultar de causas que ultrapassam de form
: a absoluta os peque­ de empresa americana, tal como ela é descrita por Alfred Chandler, não
nos coletivos do passado. Entretanto, se passearmo
s pela IBM, se seguir­ é a Organização de Kafka (Chandler, 1989; Cbandler, 1990). É um ema­
mos a cadeia de comando da Brigada Vermelha,
se pesquisarmos nos cor­ ranhado de redes materializadas em faturas e organogramas, em proce­
redores do ministério da Educação, se estudarmo
s a compra e venda de dimentos locais e acordos particulares, os quais permitem, na verdade, que
um sabonete, não teremos nunca saído de um plano
local. Estamos sem­ esta rede seja estendida sobre um continente, contanto que não cubra este
pre interagindo com quatro ou cinco pessoas; o
porteiro possui sempre um continente. Podemos seguir o crescimento de uma organização do início
118
Jamais fomos modernos Relativismo 119
ao fim, sem nunca descobrirmos a racionalidade "desc
ontextualizada" Figura 13
O próprio tamanho de um estado totalitário só pode
ser obtido atravé�
da construção de uma rede de estatísticas e de cálc
ulos, de organismos e
de pesq uisas, que não obedece de modo algum à
topografia fantástica de
um Estado total (Desrosiêres, 1984
Global
). O império tecnocientífico de lorde
Kelvin, descrito por Norton Wise (Smith e Wise,
1989), o u o mercado da
eletricidade, descrito por Tom Hughes (Hughes,
19836), nunca nos levam trabalho de mediação
para fora das particularidades dos laboratórios, das
salas de reuniões on
das centrais de controle. Contudo, estas "redes de
poder" e estas "linhas
de força" de fato se estendem em escala global. Os merc
ados descritos pela Local
economia de convenções são de fato regu lados e
globais, sem que nenhu­
ma das causas desta regulação e desta agregação seja,
em si, global ou to­
tal. Os agregados são feitos da mesma madeira q
u e eles agregam (Thé­
venot, 1989; 1990). Nenh uma mão, seja visível
ou invisível, surge subi­ Este esquartejamento permite que a tragédia do homem moderno se
tamente p ra colocar em ordem os átomos individuai
� s, dispersos e caóti­ desenvolva de forma absoluta e irremediavelmente diferente de todas as
cos. Os �ois extre�os, local_ lobal, são bem meno
�� s interessantes do que outras humanidades e de todas as outras naturalidades. Mas uma tragé­
os agenc1amentos mtermedianos que aqui chamamos
de redes. dia deste tipo não é inevitável, se lembrarmos q ue estes quatro termos são
representações sem relação direta com os coletivos e as redes que lhes dão
sentido. No meio, onde supostamente nada acontece, quase t udo está pre­
sente. E nas extremidades, onde reside, segundo os modernos, a origem
0 GOSTO DAS MARGENS

de todas as forças, a natureza e a sociedade, a universalidade e a localida­


Assim como ?s adjetivos natural e social designam
representações do de, não há nada além de instâncias purificadas que servem de garantias
. que, em s1, nada tem de natur
coletivo al ou de social, as palavras local e constitucionais para o conjunto.
global p�ssibilitam p�ntos de vista sobre redes que
não são, por natureza, A tragédia torna-se ainda mais dolorosa quando os antimodernos,
nem locais nem globais, mas que são mais ou menos
longas e mais ou menos acreditando sinceramente naquilo que os modernos dizem sobre si mesmos,
conectadas. Aquilo q ue chamei de exotismo mode
rno consiste em tomar desejam resgatar algum bem daquilo que lhes parece ser um naufrágio irre­
estas duas duplas de oposições como sendo aquilo
que define nosso mun­ mediável. Os antimodernos acreditam profundamente que o Ocidente ra­
do e que nos tornaria distintos de todos os outro
s. Quatro regiões dife­ cionalizou e desencantou o mundo, que ele realmente povoou o social com
rentes são criadas desta forma. O natural e o socia
l não são compostos dos monstros frios e racionais que estariam saturando todo o espaço, que ele
mesmos ingredientes; o global e o local são intrin
secamente distintos. Mas transformou de vez o cosmos pré-moderno em uma interação mecânica de
nós nada sabemos sobre o social além daq uilo q ue
é definido pelo q ue nós matérias p uras. Mas, ao invés de ver nisto, como os modernizadores, con­
acreditamos saber sobre o natural, e vice-versa. Da
mesma forma só defi­ quistas gloriosas- ainda que dolorosas - os antimodernos veem nisto um.a
nimos o loc�l através das �aracterísticas que acred
itamos pode/ atribuir catástrofe sem igual. A não ser pelo sinal, tanto modernos quanto anti­
ao global, e mversamente. E possível, então, comp
reender a força do erro modernos compartilham integralmente suas convicções. Os pós-modernos,
q ue o mundo moderno inflige a si mesmo, q uando
as d uas duplas são sempre perversos, aceitam a ideia de que estamos realmente face a uma
unid_as: no meio, não há nada de pensável, nem colet
_ ivo, nem rede, nem catástrofe, mas afirmam que devemos comemorar ao invés de lamentarmos
med1açao; todos os recursos conceituais encontram
-se acumulados nos os fatos! Reivindicam a fraqueza corno sua última virtude, como afirma um
quatro extremos. Nós, pobres sujeitos-objetos, hu
mildes sociedades-natu­ deles em seu estilo inigualável: "A Vermindung da metafísica é exercida
rezas, pequenos locais-globais, nos encontramos litera
lmente esquartejados enquanto Vermindung do Ge-Stell" (Vattimo, 1987, p. 184).
entre regiões ontológicas que se definem mutuamen
te mas que não se as­ O que fazem, então, os antimodernos diante deste naufrágio? Encar­
semelham mais a nossas práticas.
regam�se da corajosa tarefa de salvar aquilo q ue pode ser salvo: a alma, o
espírito, a emoção, as relações interpessoais, a dimensão simbólica, o calor

120
Jamais fomos modernos
1
Relativismo 121

., J;
humano, os particularismos locais, a interpretação, as margens e as perife­ àquilo que é essencial: somos completamente diferentes dos outros e rom­
rias. Missão admirável, mas que seria ainda mais admirável caso todos estes pemos para sempre com nosso passado. Mas as ciências e as técnicas, as
sem
cálices sagrados estivessem realmente ameaçados. Mas de onde vem esta organizações e as burocracias são a própria prova desta catástrofe
podem os perceb er me­
ameaça? Certamente não vem dos coletivos, incapazes de deixar suas frá­ precedentes e é justamente através delas que nós
lhor e de forma mais direta a permanência da velha matriz antropo lógica.
geis e estreitas redes povoadas por almas e objetos. Certamente não das
basta
ciências, cuja universalidade relativa deve ser paga, dia após dia, através de É verdade que a inovação das redes ampliadas é importante, mas não
ramificações e calibragem, instrumentos e alinhamentos. Certamente não para construir toda uma história.
das sociedades, cujo porte só varia quando os seres materiais de ontologias
variáveis são multiplicados. De onde ela vem, então? Ora, em parte dos
IDOS
próprios antimodernos e de seus cúmplices, os modernos, que assustam uns NÃO ACRESCENTAR NOVOS CRIMES AOS QUE JÁ FORAM COMET
aos outros e acrescentam causas gigantescas aos efeitos de tamanho. "Vocês
a
desencantam o mundo, mas eu conservarei os direitos do espírito". "Ah, É contudo muito difícil acalmar o delírio moderno, pois este surge
co­
você quer conservar o espírito? Então nós iremos materializá-lo". "Redu­ partir de um sentimento que, em si, é respeitável: a consciência de ter
íveis contra os outros mundo s naturai s e cultura is,
cionistas!". "Espiritualistas!". Quanto mais os antirreducionistas, os român­ metido crimes incorrig
ticos, os espiritualistas desejam salvar os sujeitos, mais os reducionistas, os e também contra si mesmo , crimes cujo tamanh o e os motivo s parecem
co­
cientistas, os materialistas acreditam possuir os objetos. Quanto mais os romper com tudo. Corno trazer os modernos de volta à humanidade
mum e à inumanidade comum sem, com isto, absolvê -los depress a demais
segundos se vangloriam, mais os outros ficam amedrontados; quanto mais
acre­
eles ficam assustados, mais os outros realmente acreditam ser terríveis. dos crimes dos quais eles, com razão, querem ser castigados? Como
crimes são hediond os mas que ainda as­
A defesa da marginalidade supõe a existência de um centro totalitá­ ditar, de forma justa, que nossos
s são grande s mas que também elas são
rio. Mas se este centro e sua totalidade são ilusões, o elogio das margens é sim são comuns; que nossas virtude
bastante ridículo. É muito louvável querer defender as reivindicações do muito comuns?
corpo que sofre e do calor humano contra a fria universalidade das leis Quanto a nossos crimes, assim como quanto a nosso acesso à natu­
efei­
científicas. Mas se esta universalidade advém de diversos lugares nos quais reza, é preciso não exagerar suas causas enquanto moderamos seus
si, causa de crimes ainda maiore s.
sofrem corpos que são feitos de carne e calor, esta defesa não se torna gro­ tos, uma vez que este exagero seria, em
crítica, benefic ia o totalita rismo.
tesca? Proteger o homem da dominação das máquinas e dos tecnocratas é Toda e qualquer globalização, ainda que
de­
uma tarefa digna de elogios, mas se as máquinas estão cercadas por ho­ Não devemos acrescentar a dominação total à dominaªção real. Não
, 1984, 2 parte). Ao impe­
mens que as saúdam, tal proteção é absurda (Ellul, 1977). Demonstrar que vemos acrescentar a força à potência (Latour
smo,
a força do espírito transcende as leis da matéria mecânica é uma tarefa rialismo real, não devemos permitir o imperialismo total. Ao capitali
a (Deleuz e e Guattar i,
admirável, mas tal programa é uma imbecilidade caso a matéria não seja não devemos acrescentar a desterritoralização absolut
r à verdad e científi ca
material, nem as máquinas mecânicas. É um belo gesto querer, em um grito 1972). Da mesma forma como não devemos permiti
a
desesperado, salvar o Ser justamente quando a mentalidade técnica pare­ e à eficácia técnica, ainda por cima, a transcendência, também total, e
quanto para o
ce dominar tudo, porque "onde há perigo também cresce o que salva". Mas racionalidade - também absoluta. Tanto para os crimes
com­
é bastante perverso querer tirar proveito arrogantemente de uma crise que domínio, tanto para os capitalismos quanto para as ciências, devemos
efeitos (Arendt ,
ainda não começou! preender as coisas banais, as pequenas causas e seus grandes
Se procurarmos a origem dos mitos modernos, quase sempre iremos 1963; Meyer, 1990).
descobrir que esta origem está relacionada com aqueles que tentam blo­ É claro que a diabolização nos é mais satisfatória, já que, mesmo no
e
quear o modernismo com a barreira intransponível do espírito, das emo­ mal, continuamos a sermos excepcionais, separados de todos os outros
de nosso próprio passado, modernos para pior, ao menos, após termos
ções, do sujeito ou da margem. Ao tentar oferecer um suplemento espiri­
so­
tual ao mundo moderno, acabam retirando sua alma, a que ele tem, a que acreditado que o éramos para melhor. Mas a totalização toma parte
im­
ele tinha, aquela que ele não poderia nunca perder. Esta subtração e acrés­ bretudo, por vias tortas, naquilo que ela pretende abolir. Nos torna
Não
cimo são as duas operações que permitem aos modernos e aos antimodernos potentes diante do inimigo ao qual ela atribui propriedades fantásticas.
total e homog êneo. Não é possível recomb inar
de ameaçarem-se mutuamente, ao mesmo tempo em que concordam quanto é possível julgar um sistema

123
122 Jamais fomos modernos Relativismo
uma natureza transcendental e homogênea. Ninguém consegue redistribuir cemos depois da guerra, e antes de nós houve os campos negros e depois
um sistema técnico totalmente sistemático. Ninguém consegue reagenciar os campos vermelhos, sob nós a fome, sobre n�ós o apocalipse nuclear e, à
fa­
uma sociedade kafkaniana. Jamais alguém será capaz de redistribuir um nossa frente, a destruição global do planeta. E de fato difícil negar os
sem hesitar , nas virtu­
capitalista "desterritorializador" e completamente esquizofrênico. Não é tores de escala, mas é ainda mais difícil acreditar,
ou econô­
possível argumentar sobre um Ocidente radicalmente separado das outras des incomparáveis das revoluções políticas, médicas, científicas
con�ec emos apenas a
naturezas-culturas. Assim como não é possível avaliar culturas aprisiona­ micas. E no entanto nascemos no meio das ciências,
sar isto? - as técni­
das para sempre em representações arbitrárias, completas e coerentes. paz e a prosperidade, e adoramos - devemos confes
stas das geraçõ es
Ninguém salvará um mundo que tenha esquecido completamente do Ser. cas e os objetos de consumo que os filósofos e os morali
técnica s não são
Nenhuma alma poderá reordenar um passado do qual estamos para sem­ precedentes nos aconselhavam a abominar. Para nós, as
sim coisas
pre separados por cortes epistemológicos radicais. novas e nem modernas no sentido mais banal da palavra, mas
er outra,
Todos estes suplementos de totalidade são atribuídos, por seus crí­ que d;sde sempre fazem parte de nosso mundo. Mais que qualqu
Isto porque
ticos, a seres que pediam bem menos. Vamos tomar como exemplo um nossa geração as digeriu, integrou, ou mesmo humanizou.
nos peri­
empresário, procurando hesitantemente algumas peças, um concorrente somos os primeiros a não acreditar mais nem nas virtudes nem
seus vícios
qualquer tremendo de febre, um pobre cientista fazendo experiências em gos das ciências e das técnicas; somos os primeiros a partilhar
seja mais
seu laboratório, um humilde engenheiro agenciando aqui e ali algumas e virtudes sem neles ver o céu ou o inferno, assim como talvez nos
homem
relações de forças favoráveis, um político gago e amedrontado, solte os fácil pesquisar suas causas sem ter que _apelar para o fardo do
ade do capital ismo, para o destino europe u, para a
críticos em cima deles e o que teremos em retorno? O capitalismo, o im­ branco, para a fatalid
mais fácil,
perialismo, a ciência, a técnica, a dominação, todos igualmente absolu­ história do Ser ou da racionalidade universal. Talvez nos seja
em nossa própri a estranh eza. Não somos exóti­
tos, sistemáticos, totalitários. Os primeiros tremiam. Os segundos não hoje, abandonar a crença
que, conseq uentem ente, també m faz com que os
tremem mais. Os primeiros podiam ser derrotados. Os segundos não o cos, mas sim comuns. O
s. São como nós, jamais deixar am de ser nos­
podem mais. Os primeiros ainda estavam bem próximos do humilde tra­ outros deixem de ser exótico
radi­
balho das mediações frágeis e mutáveis. Os segundos, purificados, tornam­ sos irmãos. Não devemos acrescentar o crime de nos acreditarmos
-se todos igualmente formidáveis. calmente diferentes a todos os outros que já comete mos.
O que fazer, então, com estas superfícies lisas e preenchidas, com
estas totalidades absolutas? Bem, virar todas elas pelo avesso, subvertê­
-las, revolucioná-las. Que belo paradoxo! Por seu espírito crítico, os mo­ TRANSCENDÊNCIAS ABUNDANTES
dernos inventaram ao mesmo tempo o sistema total, a revolução total para
acabar com ele, e a impossibilidade igualmente total de realizar esta re­ Se não somos mais inteiramente modernos, mas nem por isso somos
Como
volução, impossibilidade que os desespera absolutamente! Não é esta a pré-modernos, em que iremos apoiar a· comparação dos coletivos?
oficial o trabalh o
causa de muitos dos crimes de que nos acusamos? Ao levar em conta a sabemos agora, é preciso acrescentar à Constituição
às cultura s descri­
Constituição ao invés do trabalho de tradução, os críticos imaginaram que oficioso da mediação. A comparação da Constituição
smo
estávamos realmente incapacitados para compromissos, para experimen­ tas pela antiga antropologia assimétrica nos levava apenas ao relativi
compa ramos
tar, para misturar e para triar. A partir das frágeis redes heterogêneas que e a uma modernização impossível. Por outro lado, quando
da an­
formam os coletivos desde sempre, eles elaboraram totalidades homogê­ o trabalho de tradução dos coletivos, possibilitamos a existência
problem as
neas que não poderíamos tocar sem que, com isso, as revolucionássemos tropologia simétrica e, ao mesmo tempo, dissolvemos os falsos
dos recurso s
totalmente. E como esta subversão era impossível, mas eles tentaram fazê­ do relativismo absoluto. Mas ficamos também desprovidos
o, sem falar
-la assim mesmo, foram passando de um crime a outro. Como este Noli desenvolvidos pelos modernos: o social, a natureza, o discurs
agora que
me tangere dos totalizadores ainda seria capaz de passar como uma pro­ do Deus suprimido. Esta é a última dificuldade do relativismo:
os coleti­
va de moralidade? A crença em uma modernidade radical e total levaria, a comparação se tornou possível, em que espaço comum todos
lhados?
portanto, à imoralidade? vos, produtores de naturezas e de sociedades, se encontram mergu
. Talvez fosse menos injusto falarmos de um efeito de generalização, Estariam eles na natureza? Claro que não, pois esta natureza exte­
produção
amda que só alguns poucos de nós sejam capazes de senti-lo agora. Nas- rior, homogêne�, transcendente, é o efeito relativo e tardio da

125
124 Jamais fomos modernos Relativismo
ocaram contra os modernos devído
coletiva . Estari am na sociedade? Ta mbém não, uma vez q ue esta é a penas As outr,as culturas sempre se ch as •1ama1s • cotoca-
o artefa to simé trico da natureza , aqu ilo q ue sob ra quando arrancamos
ao as pecto d·1fusO de
suas forças ativas ou e"spi. rituais . El ,.
mc pu . O p
ou fo rças mec
tntos e os
todos os objetos e cri amos a tra nscendê ncia misteriosa do L eviatã. Esta­ em jogo matérias p uras
a as ras s es

s a tudo . �m com pa­


ri am na ling ua gem, entã o? Impossível, u ma vez que o di scurso é um ou­ e ce t rai s estavam mi sturado
:;:tes os deuses os an s
arecia ?es encan�ado , ; v�
s z1ado �e seus
tro artefa to que só adq ui re senti do quando co locamos entre parênteses a ração, 1;ara eles O mundo moderno p d c1a pura a q ual
omogene s
realidade exterior do referente e o contexto social. Estari am em Deus ? Pro­ i stérios dominados pelas forças h
a a 1ma nen

s alg uma dimensão sin:1b


�lica e para alé!n
vavelmente n ão, uma vez q ue a enti dade metafisica que é assi m cha mada :enas nÓs, humanos, impúnhamo O ra , se nao
ocupa a penas o lugar de um árbi tro distante , a fim de manter o m ai s di s­
das quais existia , talvez
, a transcendência do Deus su primido.
t , enc anto se tor-
tante p oss ível a s duas i nstânci as simétricas da natureza e da socie dade . · ane'nc·a 1 , se há somente red '
es agentes, acta n es o des
• .
ha· im m 6 . a nte a "d1-
E stari am então no Ser? Menos provável ainda , já que, devido a um para ­ nó q c cen . . . ttra n me
,
na n· a 1· mposs1·vel. Na~ o ,,s os ar
som s ue a res ta

doxo surpreendente, o pensamento do Ser tornou-se o próprio resíduo , uma orças puramente mate
na1s. _A_ss111: como nos , �stas
mensão simbólica" a f aces�o a na -
vez que toda ciência , toda técnica , toda sociedade, toda história , toda lín­ também são transcenden
tes, ativas, agitadas e esp1ntua 1s. O _
D primido. No
g ua , toda teo logia foram entregues à meta física, ao puro expansionis mo ~ i·ato do q ue à soci eda
eus su
turez a nao e• mai• s 1·med
de ou ao
d d s quais •
s entre três enti dades , c , �
lu gar do jogo sutil dos mode rno
uma
do ente. Natura lização , soci alizaçã o, di�cursivizaçã o, ontol ogização, to­
a a
umca pro:
e i manente, obtemos uma
das estas "-izações " são , ela s também, impossívei s. Nenhuma delas for­ e ra ao mesmo tempo transcendente p f aze �ace a
o polêmico inventa �
liferação de transcendências. Term
ara
ma o fundo comu m sobre o q ual sã o ap oi ados os co letivos , tornados en­
do

p ala vra de v m od ificado


i , e i
pretensa i nvasão da i ma nê
e ser
tão comp arávei s. Não, n ão passa mos da nat urez a ao social, do socia l ao nc a o s nt do da

discurso , do discurso a D eus, de De us ao Ser. Estas instânci as s ó ti nham caso não h aja mai s oposição . . _
ência sem opos�o. A en�nc1aça� ,
uma função constitucional enquanto fossem disti ntas. Nenhuma delas pode Chamo de delegação esta tran scend i­
mensage iro permite cont
cobri r, preencher, subsumir as outras , nenh uma delas pode servir para des­ o de mensa gem ou de
ou a deleg açã o ou O envi ::1 � ­
ab andona �os
sej a, exi sti r. Quando
o und o mo
crever o trabalho de mediação ou de tradução. nua r e m pre sença , ou n
,
bre alguém ou sobre a lguma co1S �
a o reca 1mo s
Onde estamos , então? Em que i remos recai r? Enqua nto nos colocar­ de rno , não reca ímos so
p ces , b e movimento ,. uma
mos est a perg u nta , é certo q u e estaremos no mund o moder no, obcecados sobre uma essência, mas si m sobre
um ro so so r um
a tem �os J ogo
o senti�o que es�a :alavr
com a construção de uma imanênci a ( immanere: residir em) ou na descons­ passagem, literalmente , um p�ss�e , � a- co�tmua por

trução de alguma outra . Permanecemos ainda , p ara usar um termo do voca­ i e x en c1a contmua e arriscad
de b ola. P e 1st
­
ência; p� rti mos da co_locaçao em pre
art mos d uma
bulári o antigo, na meta física . Ora , ao percorrer estas redes,' n ão encontra­ que é arriscada - e não de uma e:s s1, da passa ge m e
mos nada que sej a pa rticul armente h omo gêneo. Permanecemos, antes, em sença e não da perma
nência . Par timos do vmculum em ,
p p ti pe . � ueles �eres s� 1dos
uma i nfr afísica . Nós somos imanentes, entã o, tex tos entre outros textos, da rel ação , c it como ont o de ar da a nas a

d1scurs1�a. N� o p� rnm
a e and o
tempo coletiva , . real e
os
sociedade entre outras socieda des, entes entre os entes ? desta rel ação ao mesmo
m , mais tardia a m . O
tário , nem da lmgua g� .
da
Também n ão, uma vez que, se ao i nvés de ligarmos os pobres fenô­ dos homens , este ret arda d ,
menos às a marras sóli das da natureza e da sociedade, deixarmos que os O m undo do se r são
um uruco � mesmo mun o o
mundo dos sentidos e
ção , do passe . Dire1:1os, sobre �ua,�-
mediadores produz am as naturezas e as sociedades, teremos i nvertido o da tradução , da . substi tuição, da delega ,
sentido das transcendências m oder nizadoras. Naturezas e sociedades trans­ ~ de uma essência , que ela é "desprovida de sentido
· ao
quer outra defm1ç r -
nç , para durar. To� a
ara ma nter-se em prese a
du a
formam-se nos produtos relativos da história . Portanto , não recaímos ape­ des provida de mei os p iadores.
ia dever á r p g p r
ção toda dureza, toda permanênc
seus med
nas na i manência , uma vez que as redes nã o estão mergulhadas em nenhum
se a a o

t n c endênci a se 1;1 �posto


q�e t orna nosso
fl uido . Não preci samos encontrar um éter misterioso para que elas se pro­ É e ;ta expl oraçã u s
iadores, �eleg a­
o de ma ra

erno, com todos s eus n


unc 10 ,
paguem. Não precisamos preencher os va zios. Ê a concepção dos termos
med
mundo tão pouco mod
s
tantes,_ a nJ oS, te­
transcendência e imanê nci a q ue se encontra modificada p elo retorno dos dos, fetiches, máquinas
, estatuetas, instrumentos , represen
erubins. Que m undo é este
que nos o�nga a le�ar
modernos ao não-moderno. Quem disse que a transcendência deveria pos­ nentes porta-palavras qu
za das c0 1sas , as tec:
e
' mpo e de uma só vez a n • t r
suir um op osto? Nós somos, nós p ermanecem os , nós jam ais abandonamos em Conta ' ao m esmo te
a u e
• ·, '
is as econom i os mconsc1entes. E
1 , os seres fi cciona
· as e

a transcendência, ou seja, a m anutenção na presença através da mediação nicas, as c1en" c·as ' sub s-
deixou de ser moderno depms que
do envio. justamente nosso mu ndo . O qua l
127
126 Jamais fomos modernos Relativismo
tituímos cada uma d:is essências por mediadores, delegados
e tradutores
que l�e dão sentid�. . E por isso que ainda não somos capazes
5.
de reconhecê­
-lo. Ele parece antiquado com todos esses delegados, anjos
REDISTRIBUIÇÃO
e tenentes. Ao
mesmo tempo não se parece muito com as culturas estud
adas pelos etnó­
logos, uma vez que estes nunca realizaram o trabalho simétr
ico de convo­
car �elegados, mediad?res. e tradutores para sua casa,
para seu próprio
colenvo. A antropologia foi toda feita com base na ciênci
_ a, ou com base A MODERNIZAÇÃO IMPOSSÍVEi.
na s0� 1edade, ou c�n:1 base na linguagem, alternando sempr
e entre O uni­
versalismo e o relativismo cultural, e no fim das contas nos
dizia bem pou Após ter esboçado a Constituição moderna e as razões que a torna­
co tanto sobre "Eles" quando sobre "Nós".
ram invencível; após ter mostrado por que a revolução crítica terminou e
com� a irrupção dos objetos nos obriga, para dar sentido à Constituição,
a passar da dimensão única da modernidade à dimensão não-moderna, que
permaneceu prese_nte o tempo todo; após ter restabelecido a simetria en­
tre os coletivos e ter, desta forma, medido suas diferenças de tamanho
resolvendo simultaneamente a questão do relativismo, posso agora fechar
este ensaio abordando a mais difícil das perguntas, a do mundo não-mo­
derno no qual pretendo qt�e entremos sem jamais termos saído.
A modernização, mesmo tendo destruído a ferro e sangue quase to­
das as culturas e naturezas, tinha um objetivo claro. Modernizar permitia
distinguir claramente as leis da natureza exterior e as convenções da so­
ciedade. Em toda parte os conquistadores operaram esta partição, retor­
nando os híbridos seja ao objeto seja à sociedade. Um front coerente e con­
tínuo de revoluções radicais, nas ciências, nas técnicas, na administração,
na economia, na religião os acompanhava, verdadeira pá de trator atrás
da qual o passado desaparecia para sempre, mas na frente da qual se abria
ao menos um futuro. O passado era a mistura bárbara; o futuro, a distin­
ção civilizadora. É verdade que os modernos sempre reconheceram que,
no passado, também eles misturaram objetos e sociedades, cosmologias e
sociologias. Isto porque eram apenas pré-modernos. Conseguiram livrar­
-se deste passado através de revoluções cada �ez mais aterrorizantes. Como
as outras culturas ainda misturam as restrições da ciência às necessidades
de sua sociedade, era preciso ajudá-las a sair desta confusão através da anu­
lação de seu passado. Os modernizadores sabiam que ilhas de barbárie per­
manecem nos locais onde a eficácia técnica e o arbitrá.rio social estão por
demais misturados. Mas em breve teríamos completado a modernização,
líquidado estas ilhas, e estaríamos todos sobre um mesmo planeta, todos
igualmente modernos, todos igualffiente capazes de tirar proveito das coi­
sas que escapam, para todo sempre, à sociedade: a racionalidade econô­
mica, a verdade científica, a eficiência técnica.
Alguns modernizadores ainda falam como se tal destino fosse possí­
vel e desejável. No entanto, basta descrevê-lo para que seu absurdo se tor­
ne claro. Como poderíamos completar enfim a purifiCação das ciências e

128
Jamais fomos modernos Redistribuição 129
re maior. T ��bém
das sociedades quando os próprios mo dernizadores causam a proliferação íntimo e pro fundo, que contin ua ho je n uma escala semp
usando a for ma militante
dos híbridos graças à mesma Constituição que nega sua existência? Durante não precisamos lutar contra a modernização -
nos -, uma vez q �e,
um longo tempo esta contradição foi mascarada pelo próprio crescimento dos antimodernos ou a d ecepcionada dos pós-moder
ição, a qual reforçar�a­
dos modernos. Revoluções constantes no Estado, revoluções constantes nas neste caso, estaríamos apenas atacando a Constitu
re, lhe fornece e�erg �a.
ciências, revoluções constantes nas técnicas iriam terminar absorvendo, pu ­ mos ainda mais ao ignorar aquilo que, desde semp
r a mo dermz�çao
rificando e civilizando estes híbridos, através de sua colo caçã o na so cieda­ Será que este diagnóstico possibilita uma solução pa �
o do livro, qu e a C�ns­
de ou na natureza. Mas a falência d upla da q ual parti, a do so cialismo - impossível? Caso seja verdade, como eu disse ao long
e se recu�a a p.e nsa-los
pátio e a do naturalismo - jardim! -, tornou o trabalho de p urificação tituição permita a proliferação dos híbridos porqu A
se a ex1stenc1a destes
mais improvável e a contradição mais visível. Não há mais revoluções em como tais, ela só continuaria eficaz enquanto negas
as partes - o trabalho
estoq ue para continuar a fuga para frente. Os híbridos são tão nu merosos híbridos. Ora, se a contradição fecunda entre as du
que ninguém mais entende como absorvê-los na antiga terra prometida da oficial de p urificação e o trabalho
oficioso de mediação - tornar-sedar_a­
ficaz? A modermzaçao
modernidade. De onde a súbita h esitação dos pós-modernos. mente visível, a Constituição não deixaria de ser e
s, t na m s a ser , pré-modernos?
A modernização foi impiedosa para os pré�modernos, mas o q ue dizer não se t ornaria impossível? Seremo ou or re o

ode nos? Ou contin uaremos, por falta


sobre a pós-mode rnização? Ao menos a violência imperialista oferecia um Devemos resignar-nos a sermos antim r
a forma c pusc 1ar dos " pomoA s" )
fut uro, mas esta fraqueza súbita dos conquistadores é muito pior, já que, de opções, a ser modernos, mas sem a fé,
u

d re

além de romper com o passado, ela rompe agora com o fut uro. Após ter
aguentado as chicotadas da realidade moderna, os povos pobres devem agora
aguentar a hiper-realidade pós-moderna. Nada mais tem valor, tudo é refle­ EXAMES DE ACEITAÇÃO
xo, sim ulacro, são todos símbolos fl utuantes - e esta .fraqueza, segundo
separar as. diver:as
eles, irá quem sabe salvar-nos da invasão das técnicas, das ciências, das razões. Para resp onder a estas perguntas, devemos antes
ma a co nst rutr o nao­
Será preciso destruir tudo para que seja possível introduzir mudanças estru­ posições q ue esbocei ao longo deste ensaio , de f?r
iremo gu�r�a� do,s mo­
s
turais? O mundo vazio no qual evoluem os pós-mode rnos é um mundo esva­ -moderno com o que elas têm de melhor. O que
ziado por eles, e por eles apenas, porque levaram os modernos ao pé da letra. Constttutçao, a q u�l
dernos? Tudo, exceto a confiança exclusiva em sua
eza vem de ter em f:1-
O pós-modernismo é um sintoma da contradição do modernismo, mas não se rá preciso acrescentar algumas emendas. Sua grand
rado a produçao
saberia diagnosticar este último, uma vez que compartilha a mesma Consti­ to proliferar os híbridos, expandido um tipo dnede, acele
t uição - as ciências e as técnicas são extra-h umanas - mas não comparti­ dos vestígios, m ultiplicado os delegados,
produzido umversa1s rela:1vos at�a­
pes�rnsa, . sua movaç:o,
lha mais aquilo que lhe dava força e grandeza - a proliferação dos quase­ vés de aproximações su cessivas. Sua audácia, sua
ampla de �ua açao,
-objetos e a multiplicação dos intermediários entre h umanos e não-humanos. sua bricolagem, sua sandice juvenil, a escala sempre mais .
so ciedade, a liberd ade
Não é difícil, contudo , formu lar o diagnóstico , agora que somos obri­ a criação de objetos estabilizados independentes da
manter. Por outro
gados a considerar de forma simétrica o trabalho de purificação e o de media­ de uma sociedade livre dos objetos, é isso que queremos
va) que �le� têm
ção. Mesmo durante os piores momentos do imperium ocidental, jamais se lado , não podemos conservar a ilusão (negativa ou positi
: ateus, matenalistas,
separou claramente as leis da natureza das convenções sociais. Tratava-se sobre si mesmos e que desejam generalizar para todos
ais, críticos, r�­
sempre de construir coletivos mistu rando, em uma escala sempre maio r, um espir itualistas, teístas, racionais, eficazes, objetivos, univers
o s, separados de seu passado, cuia
certo tipo de não-humanos e um certo tipo de h umanos, o bjetos do tipo B oyle, dicalmente diferentes dos outros coletiv
nicam ent e pelo historicismo, sepa rado s �a
sujeitos como Hobbes (sem falar do Deus sup rimido). A inovaçã o das re­ so brevida artificial é mantida u .
des extensas é uma particularidade interessante, mas não chega a ser sufi­ natureza sobre a qual o sujeito o u a soci e dade imporiam formas arb1trana­
esmo s.
ciente para nos separar radicalmente dos o utros ou nos cortar para sempre mente denunciadores sempre em guerra contra si m
de nosso passado . Nã o pr ecisamos co ntin uar a modernização reunindo :Êstávamos distantes dos pré-mo de rn o s d e vid o à Grande Divisão exte­
nossas forças, ignorando os pós-modernos, trincando os dentes, continuando a Grand e Divisão in�er�or. Ao
rior, simples exportação, como já disse, d
tamb ém desap arece, subst1tm�a por
apesar de t udo a acreditar nas promessas duplas do naturalismo e do so­ acabar com esta última divisão, a o utra
estam os mais distan tes dos pre-mo­
cialismo , urna vez que esta modernização jamais começou . Jamais deixou diferenças de tamanho . Agora que não
iá-l s tamb ém. Cons ervemos, so-
de ser algo além da rep resentação oficial de um outro trabalho muito mais dernos, devemos nos perguntar como t r o

,;-:ç_u 131
130 Jamais fomos modernos Redistribuição

;�&;1;:-,
Figura 14
bretudo, aquilo que eles têm de melhor, sua a·ptidão para refleti r de fo rma O que rejeitamos
exclusiva sobre a produção dos híbridos d e natureza e sociedade , de coisa O que conservamos
e signo, su a ce rteza de que· as transce ndência s abu ndam, su a ca pacidade de Separação da natureza
Redes extensas
conceber o passado e o futuro e nquanto repetição e renovamento, a multi­ Dos modernos
Tamanho
e da sociedade
plicação de outros tipos de n ão-humanos que não os dos modernos. Por outro Clandestinidade das práticas
Experimentação
de mediação
lado, não poderíamos manter o conjunto dos li mites que eles impõem ao Universais relativos
nde Divisão exterior
Gra
dimensionamento d os col e tivos, a loca lização por te rritóri o, o processo de Separação da nat ureza
e Den úncia crítica
acus ação expiatório, o etnocentrismo e, finalmente, a indiferenciação du­ objetiva e da socíedade livr
Universalidade, racionalidade
radoura entre na tu rezas e socieda des.
Mas a triagem parece impossível e mesmo contra ditória já que o di­ Obrigação de ligar sempre
Não-separabilidade das
mensiona mento dos coletivos depende do silêncio ma ntido em relação aos
Dos pré-modernos a ordem social e natural
coisas e dos signos
Mecanismo de acusação
quase-objetos. Como conservar o tamanho, a pesquisa, a proliferação , e a o Transcendência sem oposto
expiatório
mesmo tempo torna r explícitos os híbridos? Este é, en tretanto, o amálgama Multiplicação dos
Etnocentrismo
não-humanos
que p rocuro: manter a colocação em natu reza e a colocação em socie dad e Território
Temporalidade por
que permitem a mudança de tamanho a través da criação de uma verdade intensidade
Escala
exterior e de um sujeito de direito, sem com isso ignorar o trabalh o contínuo
Crença no modernismo
de construção conjunt a das ciências e das sociedades. Usar os pré-modernos Dos pós-modernos Tempo múltiplo
Impotência
para pensar os híbridos, mas conservando , dos modernos, o resultado final Desconstrução
Desconstrução crítica
do tra balho de purificação, ou seja , a colocação e m caixa-preta de uma nature­ Re(lexívídade
Reflexividade irônica
Desnaturalização
za exterior claramente distinta dos sujeitos. Seguir de f orma contínua o gra­ Anacronismo
dien te que leva das existências instáveis às essência s estabiliza das - e in­
versame nte. Obter o trabalho de purificação, mas co mo caso pa rticular do antimodernos que m
ereça ser salvo.
traba lho de mediação. Manter todas as vantagens do dualismo dos modernos Infelizmente' n ão vejo nada nos t uilo que os modernos
s ipre na d_efensiva, a�redit ;; c::�:��e:::i ; ::f
sem seus inconvenientes- ad andestin idade dos quase-objetos; conserva r :u: s mver
;: 0 a r e ucionários, tinha m a
diziam ?e �1 11:e�mo ,
todas as vanta gens do monismo dos pré-modernos sem sofrer suas limitações o de rnos ua nt o ao
passado e à tradição. Os
mesma ,de1a ntc la q_ue os ;; � é r íduo deixado por seus
-, a restrição de tamanho devido à confusão durável entre saberes e poderes. � i oram alg al m do es
valores que de en em iama dos modernos
Os pós-mod erno$ sentiram a crise, e p ortanto também merecem o a orn preender que a o-randeza
exa me e a triagem. Impossível conservar sua iron ia, seu desespero, seu desâ­ inimigos, sem que chegasstm � o : seus combates na reta­
r esidia , na prática, n
os va ores mversos. Mesm e o que lhe s
nimo, seu niilismo, sua autocrítica , uma vez que todas estas belas qualidades r, ocupando sempre o banquinh
guarda, n ão conseguira m inova m capa-
d ependem de uma concepção do modernismo que este jamais p raticou real­ e favor, não se pod
e nem mesmo d1·zer que fora
era reservad o. A s u pre ,
mente. Por outro l ado, podemos ficar com a desconstrução - que , despr o­ . os quais f or am sem
nesi dos modernos, d
vida agora de oposto, torna -se construtivismo e não est� mais liga da à auto­ zes de colocar um f.re10 no fre
ar as
no fundo, os melhores c omp � . g f v ável . Podemos con-
destruição; podemos manter sua recusa à Í1aturalização - mas como a pró­ d
O balanço este ex me na o c he a a ser des a or
pria natureza não é ma is natural, este refúgio não mais nos afasta das ciências nidade, conta nt o que
remos, n a Cons-
r einteg
a

já constituída s, mas a ntes nos aproxima das ciências atu ant es; p odemos servar as L uzes. sem a moder. ,.. . icas , qu ase-objetos entre ta
n-
• ~ o, os obJetos das c1encia s e das te'cn
tttm• ça
conservar seu forte gosto p ela reflexivida de - mas como esta p ropriedade
tos u os, 1• gênese nao
. se r clandestina ' mas antes acoate-
d eve mais
m

riginam
� : ���\ p asso, dos acon tecimentos quentes qu: o� o
~
é compartilhada por todos os atores, perde sua car'acterística de paródia para
tornar-se positiva ; en fim, podemos rejeitar, c om el es, a ideia de um tempo p an a a .p a a m ess cias da nature­
. que os tra nsf or
este resfria mento p rogre ss1vo
m e en

coerente e homogêneo que avançaria a passo de ganso - mas sem manter


za ou ue permitiri a o reco�hec i­
seu gosto pela citação e pelo anacronismo que mantém a crença em um passa­ Constituição q
s�:;;��s��:t�laborar uma erm-
do rea lmente ultrapassado . Se ti rarmos d os pós-modernos o que eles pensam que fazê-lo, uma vez que a mo
mento oficial deste trabalho? Temos
sobre os modernos, seus vícios tornam-se virtudes, virtudes não-modernas.
133
132 Jamais fomos modernos Redistribuição
zação à antiga não poderá mais absorver nem
os outros povos nem a na­ existe mais um prático-inerte ao qual possamos colar a pura liberdade da
tureza- ao menos foi esta convicção
que originou este ensaio. mundo existência humana. Opô-lo ao Deus suprimido (ou, inversamente, recon­
moderno, para seu próprio bem, não o
pode mais estender-se sem voltar ciliá-lo com Ele) é igualmente impossível, uma vez que é justamente em
ser aquilo que na prática jamais deix a
ou de ser, ou seja, como todos os sua comum oposição com a natureza que a Constituição moderna definiu
outros, u:11 mu do não-moderno. Esta
� fraternidade é essencial para absor­ os três. Será então preciso mergulhá-lo na natureza? Mas se fossemos buscar
v_er os do1� c�nJuntos ue a modernizaçã
� o revolucionária deixava atrás de alguns resultados em determinadas disciplinas científicas para vestir este
s1: as multrdoes naturais que não dom
, . inam os mais , as multidões humanas robô animado com neurônios, com pulsões, com genes egoístas, com ne­
que nmg. uem m:1s dom�. na. A temporalidade moderna
de um aceleraçao contmua, relegando dava a impressão cessidades elementares e cálculos econômicos, jamais deixaríamos os mons­
� . ao vazio do passado massas cada tros e as máscaras. As ciências multiplicam as formas sem com isso conse­
vez ma10res de uma rmstura de humano
s e não-humanos. A irreversibilidade guir deslocá-las, reduzi-las ou unificá-las. Elas acrescentam realidade, não
mudou de campo. Se há uma coisa da
qual não podemos mais nos livrar a subtraem. Os híbridos que inventam no laboratório são ainda mais exó­
das naturezas e das massas, ambas igua é
lmente globais. A tarefa política ticos que aqueles que pretendem reduzir. Será preciso anunciar solenemente
recomeça da estaca zero. Foi preciso
. mudar completamente a fabricação a morte do homem e dissolvê-lo nos jogos de linguagem, reflexo evanescente
de nossos c�let1vos para absorver o cida
dão do século XVlll e O operári de estruturas inumanas que escapariam a toda e qualquer compreensão?
do XIX. Sera prec1s uma transformaç o
_ � ão equivalente para abrir espaço par Claro que não, uma vez que não estamos no discurso, assim como não es­
os nao-humanos cnados pelas ciências a
e técnicas. tamos na natureza. De qualquer forma, não há nada que seja suficiente­
mente inumano para que lá possamos dissolver o homem e anunciar sua
Ü HUMANISMO REDISTRIBUÍDO morte. Suas vontades, suas ações, suas palavras são por demais abundan­
tes. Será então preciso evitar a questão tornando o humano algo de trans­
Antes que possamos emendar a Con cendental que nos afastaria para sempre da simplicidade da natureza? Se­
stituição, devemos deslocar O hu­ ria recair em apenas um dos polos da Constituição moderna. Será preciso
mano, �o:iual o humanismo não faz jus.
O sujeito de direito, 0 cidadão ator estender à força alguma definição provisória e particular inscrita nos di­
d� L�v1ata, a face perturbadora da pess
. _ oa humana, o ser de relações, a con reitos do homem ou nos preâmbulos das constituições? Seria traçar de novo
c1encia, o cogito, o homem de palavra s­
que busca sua expressão O hermeneu as duas Grandes Divisões e acreditar na modernização.
o eu profu?do, o voc - o voce- mesmo ' ta
. �� da comunicação, a presença em si' Se por um lado o humano não possui uma forma estável, isso não quer
mesmo, a mtersub1et1v1dade, são toda
s figuras magníficas que os moder­ dizer que não tenha nenhuma forma. Se, ao invés de o ligarmos a um dos
nos souberam desenhar e preservar. Tod
as, porém, permanecem assimétrica polos da Constituição, nós o aproximarmos do meio, ele mesmo se �or�a o
uma vez �ue ão as pendências do obje s
� to das ciências, que jaz órfão, aban� -
clonado as maos daqueles que tanto mediador e o permutador. O humano não é um dos polos da Const1tmçao
os epistemólogos quando os sociólo­ que se oporia aos não-humanos. As duas expressões de humanos ou de não­
go� d1zem ser r dutores, objetivos, raci
. : . onais. Onde estão os Mounier das -humanos são resultados tardios que não bastam mais para designar a outra
maqumas, os Levmas dos animais, os Ricoeur dos fatos?
podemos compreender agora, só pod O humano, como dimensão. A escala de valores não consiste em fazer deslizar a definição do
e ser captado e preservado se devol­ humano ao longo da linha horizontal que conecta o polo do objeto ao do
vermos ª. ele esta o�tra metade de si
mesmo, a parte das coisas. Enquan sujeito, mas sim em fazê-la deslizar ao longo da dimensão vertical que de­
o h �ma�1smo for feito por contraste to
com o objeto abandonado à epistem fine o mundo não-moderno. Caso seu trabalho de mediação seja revelado,
logia, nao compreenderemos nem o o­
humano, nem O não-humano ele toma forma humana. Caso encoberto, iremos falar de inumanidade, ainda
C:nde �i.tuar o �uman�? Sucessões históricas de
. tos, e 1mposs1vel defm .
se-suJe1 � quase-objet�s qua­ que se trate da consciência ou da pessoa moral. A expressão "antropomór­
1-lo a traves de uma essência como há muito
sabem?s. Sua história e sua antropo fico" subestima nossa humanidade, em muito. Deveríamos falar em mor­
logia são por demasiado diversas para fismo. Nele se entrecruzam os tecnomorfismos, os zoomorfismos, os fisimor­
que seia possível fechá o definitivam
� ente. Mas a astúcia de Sartre, que fismos, os ideomorfismos, os teomorfismos, os sociomorfismos, os psico­
def1�e com� u1:1� ex1stencia livre que 0
se emancipa de uma natureza des­ morfismos. São suas alianças e suas trocas, como um todo, que definem o
provida de s1gmftcado, não nos é pos
sível, uma vez que devolvemos a ação antropos. Urna boa definição para ele seria a de permutador ou recombinador
a vontade, a significação e mesmo a pala
vra a todos os quase-objetos. Nã� de morfismos. Quanto mais próximo desta repartição, mais humano ele será.
134
Jamais fomos modernos Redistribuição 135
. ão, deslocada em rel ação à
dernos. Est a" nova posiç
Q uant o m ais distante, mais ele irá tomar formas múltiplas nas quais sua te assimétrico, dos mo por emendas na Constituição.
deve agora ser garanr'tda
hu manida de rapida men te torna-se impossível de discernir, ainda que suas do sujeito/sociedade,
formas sejam as da pess oa, d o i ndivíduo ou do eu. Qua ndo tentamos isolar
sua forma daquela s q ue ele mistura, não o p rotegemos- nós o perdemos. NÃO-MODERNA
Como ele poderia ser ame a çado pelas máquina s? Ele as criou, trans­ A CONSTITUIÇÃO
os
. a simetria entre
p ortou -se nelas, repartiu nos membros da s máquinas seus próprios me m­ . si m�lesme nte restabeleci
Ao longo deste ensaio, a téc nic - e
bros, construiu se u próp rio corpo com elas. C omo p oderia ser ameaçado c01s as - chamado ciênci
e a o

is a m s d g over�o , O d�as s p deres e tre �s


pel os objetos? Todos eles foram qu ase-s uj eitos circulan do no coletivo que do ção d
mb e p r que a sepa ra
r o o o o n

traçavam . Ele é feito destes objetos, tanto quanto estes são feitos dele. Foi dos homens. Mostrei ta f ; era ção dos hí bridos, não mais
ter p oss1 b1 it a o a p rolif
do is r s, ap ós o. Urna constitui çã
multiplicando as co isas q u e ele defi niu a si mesmo. Como poderia ser en­ ovo terce,·ro estad
amo o

pr sen tar d·1g namente este n der n s, c m


re . m
podi que e1a ofer· ece• A dos
o
ganado p ela política? Fo i ele q ue a criou, recompo ndo o coletivo através a e o o o
,
ga d d e ac r d o c.om as garantias ara .
ti s q e s
é jul . . q tr o g
o
das con trovérsias co ntínua s sobre a representação que permitem dizer a a o
mina a m anute nç -
ao de ua n a
.
u
.
cada momento o q ue ele é e o que ele quer. Como ele seria obscu recido estamos lembrado s, per as t od as em con1 u
· nto ' com a cond1ç .
ao de
, . qu a d t d d1mensa- o
.possmam senti do • A pn. me·, ra assegura va a
n o oma
pela religião? .É através dela qu e ele se conecta a todos seus semelh antes, nte separa das
ecere estnta me • co da s ciedad e-
que ele se conhece como pessoa presente nas en uncia ções. Como p oderia perman m
do-a d'ist1'nta do fabri
o
e d e te d n atureza ' tor.nan n t ra l ea
ser man ip u lado pela economi a? Sua forma provisória não p ode ser defi­ transc ; u a entre a o rdem
a
ltgaça- o contin
n a u

n
e te, p r t ª nto ' à e nsã 1. a-
contrari ava a di
rnos A segund a assegur
o
nida se m a circula ção dos bens e da s dívidas, sem a repa rtição contí nua ,
am n m o m

ci. al dos pre- mode p ra re-


ordem so nte livres
dos la ços sociais que nós tecemos pela graça das cois as. Aí está ele, dele­ "s ct'd ada- os. completa me
a
. nando o
gado, mediado, repartido, en via do, enunciado, irredutível. De on de vem nente d a sacied ad e, tor na te à liga ção conti n ua en-
n te - contra
m e en
• l
m
construír e - rt1 • fj -modernos a mo-
a a meaça? Em parte da q ueles que deseja m reduzi-lo a uma essência e q ue, natural que o brigava os pré
m na a icia
• a m
e esta du pla separa çao
em soci l orde
a o desprezarem a s coisas, os objetos, a s máq ui nas, o social, ao cortarem tre a ord a
o. M as c omo
s ao mesmo temp .
dificar sem p e as d n ada i manen -
a naturez•a - tor
ua
todas a s delegações e tod os os passes, a o constru írem por pree nchi mento r
. iliz ar e constrmr
rati ca, m b du-
.
pernuua, na . p ; . versamente torna r esta; vel e
o
níveis homogêneos e plenos, ao misturarem tod as as ordens de serviço, to r­ stru ça- o - e, m
iliz ç ão e con de ão­
nam o humanismo uma coisa frágil e preciosa esmagada pela natureza, pela te p or mob dente via o ;nv olviment
a o n
. d a de - t r nada transcen av
ra doura a so c1e sseg
uma terceira ga rantia a •i · •
o a
socied ade o u p or Deus.
ur
d a vez m ais numerosos -, 1 1za ça
Os h umanistas modernos sã o redutores, já que ten tam relacionar a -huma nos ca •is ramos do governo: ain . da que passível de mob
o

a junção entre
s d ã c m
- te ndo qualquer rel. aç
o a
ação com determinadas p otênci as apenas, transformando o resto do mundo ,
o o o
t eza c ontm . u ara ; nao ter
e construçao, - n ur
man tid a pelas c01sas,
nao - a
em meros intermediários ou si mples forças muda s. Q uando redistribuímos
a
e
a
que trans cen den te • • l-
soc1e . d ad e, a qual ' ainda . quase-ob jetos serao of'1c1a
a ação entre todos os mediad ores perdemos, é verdade, a fo rma reduzida n turez a Ou seJ a , os
mais uma rela ç - o co m a a
• ;i - e as redes de tra dução irão t •ar- r
do hom em, mas g anhamos uma outra, que devemos chamar de irreduzida.
a o n
o ta b us. '
mente 6am'd. os - O u m esm de p unfi' caçao ,
O humano está no próp r io a to de delegação, no passe, no arremess o, na
re uma contraparte ao trabalho
-se clandestm as, o cendo od er-
a té q ue os pós-m
f e
troca contínua da s f ormas. É claro que ele não é urna cois a, mas a s coisas
teme n te pens ada e cobe ta -
a qual será in
cess n Deus supri-
A qua;ta garantia ' a do
a
t ambém n ão são coisas. É claro que ele não é um a mercadoria, mas as com p leto.
nos ven ham o
bl't er á - la por . fosse estab1Tiza -
mercadoria s também não são mercad orias. É cl aro que ele nã o é u ma má­ assimétrico
n mo d'uarista e
1
qu e este meca udo ,
quina , mas aq ueles que já viram as máquina s sabem quão po uco maqui­ mido, permiti a ; m sem que houvesse, cont
r ma fu çã o e arb itrage
do, ao assegura u n
nais elas são. Claro que ele nã o pertence a este m undo , ma s também este
presença e poder. que
mundo não pertence a este mu ndo. Claro que ele não está em Deus, mas . . ça- o moderna' basta levar em conta aquilo
Pa ra esboçar a C surm mos man­
antias que quere
on
qua l a relação existente entre o Deus do alto e aquele que deverí amos di­ d de lado e escoIher as gar
a primeira havi
deix os. Para
ça~o p.a ra os quase-objet
a o
zer de ba ixo? O huma nismo só pode manter-se dividindo-se entre todos
a
s a uma repr esenta
. , que era ela q ue tornav
1 dar
os seus enviados. A natureza humana c onsiste no c onj unto de seus dele­ ter. Estamos d ec1'd'd o
ceir
.
a ga rantia , l ª
a
• ir a ter
g ados e de seus representa ntes, de suas figura s e de seus mensageiros. Este tanto, precisamos. � su nm
T ise d estes qu ase-ob
jeto s. A n atureza a e
mdad e d a
impossível a contm
a na
un iversal do qual falamos, simétrico, vale m uito bem o outro, d upla rnen-
137
136 Jamais fornos modernos Redistribuição
onstitui�ão �o�er�a , uma
sociedade não são dois polos distintos , m as antes uma mesma produção de A historicida de não possuía um lugar na C
enti s cui a ex1s tenc1 a reco-
sociedades-na turezas, de cole tivos. A primeira garantia torna -se, port anto , vez que era enquadrada Pelas três únicas
dade
uma nos e a revo luçao
~
para h
a não-separabilidade dos q uase-obj etos e dos quase-su jeitos. Qualquer con­ nhecia. A história contingente só existia
os
o de compreender seu passa
tornava-se, para os modernos, o único mei
do
c eito , ins tituiçã o ou prática q ue a trapa lhar o desdobra mento contín uo dos
t t lmen t m ele. M
como mostrei a nte ri ormente-, ro mpen
e co as o
coletivos e sua experimentação de híbridos será tachado como p erigoso,
do o a
· , or um l d l pend e o-
tempo nao e um fluxo ho mogêneo • Se p
ass
-
de das
nefasto e imoral. O trabalho de mediação torna-se o próprio centro do duplo
a o e e
,, 1
nã d pen em le. Nã o deve ser mais poss1ve
poder na tural e soci al. As redes saem da clandestinidade. O Império do Cen­ ciações , por outro estas o e d de
, amen­
tro está representado . O terceiro estado, q ue não era nada, torna-se tudo. usar O golpe do tempo qu
e passa definitivamente atraves do agrup
os que pertenc � e t s te
to, em um conj unto coerente, de element . ��
odo os s
Não desej amos, contudo, voltarmos a ser pré-modernos. A não-sepa ­
a

perar a cap de tmç �


e todas as ontologias. Se desej a mos recu � de d1s a
rabilidade das na turez as e das sociedades possu ía o inconveniente de im­
ac1d

n m lid e e q ue d�fi� e o h uma no, e


possibilitar a experimentação em gra nde escala, uma vez que toda tra ns­ que parece se r essenci a l para ossa ora ad .
t mp l ente lnmt ando nossa li­
formação da nat ureza devia estar de acordo , ponto a ponto, com uma trans­ preciso que não h aj a nenh u m fl u xo � � .
ra coer
as outras,
a , tao importante quanto
formação social. O contrár io é igualmente verdadeiro . Ora , nós queremos berdade de escolha . A terceira garann n te que esco ­
sociações sem n
é a de poder combinar livremente as as
u ca r
conservar a maior inovação dos moder nos: a separabilidade de uma na ­
o, o local e o glob l, c �t ural e o
lher entre O arcaísmo e a mode rnizaçã
a o u
turez a que ninguém const rui u - tra nscendência - e a liberdade de ma - is ape nas
rdad e não se encont � m
universal, 0 na tural e O social. A libe
r a
nobra de urna soci edade que é nossa obra - imanência . Aind a assim, não 1-se
o e a pa rte de �a o . o�no: 1x , t
desej amos herda r a cl andestinid ade do mecanismo inverso que p ermite no polo social, ela ocupa também o mei c10te cm .
e de recombinação das confusoes so
cas
cons trui r a nat ureza - imanência- e também estabilizar de forma d ura ­ capac1·d ade de diferenci ação
uer corte epistemo l' og·1co , q l q
Qualquer novo apelo à revolução, qua lq
ua uer
doura a sociedade - tra nscendência .
e pr t n ã e lt assar para s empre
P odemos conservar as duas primeiras garantias da antiga Constitui­ reviravolta coper nicana , qua
lq u r e e s o d u
_: �
a
.
da p10r aos olhos
o perigosa ou, o qu e e a m
ção sem manter a duplicidade, hoj e visível, de sua terceira garantia. A trans­ certas p ráticas será vista com
cendência da nat ureza , sua obj etividade, ou a imanência da sociedade, sua dos modernos, ultra passadas.
subj etividade, provêm ambas do trabalho de mediação sem contudo de­
pender de uma separação entre elas, como faz crer a Constituição dos Figura 15
modernos. O trabalho de co locação em nat ureza o u de colocação em so­ Constituição moderna Constituição não-moderna
ciedade vem da conclusã o durável e i rreversível do trabalho comum de
Primeira garantia: não-separabilidade
dele gação e de trad uçã o. No fim das contas, há de fato uma na t ureza qu e Primeira garantia: a natureza é
da produção comum das sociedades e
não cria mos, e uma soci edade q ue podemos mudar, há fatos científicos transcendente, porém mobilizável
das naturezas.
indiscutíveis e sujeitos de direito, mas estes tornam-se consequência de uma (imanente).
Segunda garantia: acompanhament� c?n­
prática contin uamente visível, ao invés de serem, como para os modernos, Segunda garantia: a sociedade é
tínuo da colocação em natureza, ob1etwa,
as ca usas lo ngínquas e opost as de uma prática invisível q ue os contradiz. imanente mas nos ultrapassa
e da colocação em sociedade, livre. No fim
Nossa segunda garantia permite, port anto, a recuperação das duas primei­ infinitamente (transcendente).
das contas, há de fato uma transcendência
ras garantias d a Constituição modern a , mas sem separá-las . Todos os con­ da natureza e imanência da sociedade,
ceitos, todas as ins tituições, todas as p ráticas q ue vierem a atra palh a r a mas as duas não estão separadas.
objetivação progressiva da na tureza - a colocação em caixa-preta - e Terceira garantia: a líberdade é redefinida
Terceira garantia: a natureza e a
simultaneamente a subjetivação da sociedade - a liberdade de manobra como uma capacidade de triagem das
sociedade são totalmente distintas e o
- serão vistas como nefastas , perigosas e, resu mindo , imorai s. Sem e sta combinações híbridas que não depende
trabalho de purificação não está rela­
se gunda gara ntia, as r edes liber tadas pela primei ra m anteria m s eu caráter
mais de um fluxo temporal homogêneo.
cionado com o trabalho de mediação.
s elva gem e cl andestino. Os moder nos não estava m eng anados ao quere­ Quarta garantia: a produção de híbridos,
Quarta garantia: o Deus suprimido
r em não-h umanos objetivos e sociedades livr es. Apenas estava e rrada s ua ao tornar-se explícita e coletiva, torna-se
;;tá totalmente ausente, mas assegura
certeza de que esta produção exigia a distinção a bsolut a dos doi s termos objeto de uma democracia ampliada que
a arbitragem entre os dois ramos do
regula ou reduz sua cadência.
e a repressão contínua do trabalho de mediação . governo.

!39
138 Jamais fomos modernos Redistribuição
Mas se eu estou certo quanto à minha interpre tação da Constitui­
mento dos mudos, o laboratório, onde apenas os cientistas, simples inter­
ção moderna, se ela realmente permitiu o desenvolvimento dos coletivos
mediários, falavam em nome das coisas. O que diziam estes representan­
ao proibir oficialmente aquilo que permitia na prática, como é que nós
tes? Nada além daquilo que as coisas teriam dito por si mesmas caso pu­
poderemos continuar a fazê-lo, agora que tornamos sua prática visível e
dessem falar. Os descendentes de Hobbes haviam definido, longe do la­
oficial? Ao oferecer estas garantias para substituir as anteriores, nós não
boratório, a República, onde os cidadãos nus, já que não podiam falar todos
tornamos impossíveis tanto esta dupla linguagem quanto o crescimento
ao mesmo tempo, escolhiam para representá-los um dentre eles, o sabera­
dos coletivos? É exatamente o que desejamos fazer. É nesta desacele ração,
. nó, simples intermediário porta-voz de suas ideias.- O q� e dizia este repre-
nesta moderação, nesta regulamentação que buscamos nossa moralida­
sentante? Nada além daquilo que os cidadãos tenam dito caso pudessem
de. A quarta garantia, talvez a mais importante, é a de substituir a louca
falar todos ao mesmo tempo. Mas há uma dúvida que surge de imediato
proliferação dos híbridos por uma produção regulamentada e consensual
quanto à qualidade desta dupla tradução. E se os cientistas falassem sobre
dos mesmos. Talvez seja chegada a hora de voltar a falar em democra­
si mesmos ao invés de falarem das coisas? E se o soberano segmsse seus
cia, mas de uma democracia estendida às coisas em si. Não podemos cair
próprios i�teresses, ao invés de recitar o script que seus mandantes �:viam
de novo no golpe de Arquimedes.
escrito para ele? No primeiro caso, perderíamos a natureza e recainamos
Será preciso acrescentar que o Deus suprimido, nesta nova Consti­
nas discussões humanas; no segundo, recairíamos no estado natural e na
tuição, foi libertado da posição indigna que faziam com que ocupasse?
guerra entre cada um dos indivíduos. Quando definimos uma separa�ão
A questão de Deus está reaberta, e os não-modernos não precisam mais
total entre as duas representações, científica e política, a dupla traduçao­
tentar generalizar a metafísica improvável dos modernos, a qual os for­
-traição tornava-se possível. Jamais saberemos se os cientistas traduzem
çava a crer na crença.
ou traem. Jamais saberemos se os mandatários traem ou traduzem.
Durante o período moderno, os críticos sempre se alimentaram des­
tas duas dúvidas, bem como da impossibilidade de solucioná-las. O mo­
dernismo, portanto, escolheu este arranjo mas desconfia �onstantemente
0 PARLAMENTO DAS COISAS

destes dois tipos de representantes sem, no entanto fazer �isto u� p��ble­


Queremos que a triagem meticulosa dos quase-objetos torne-se pos­
ma único. Os epistemólogos se questionaram sobre o realismo ctent1f1co e
sível, não mais de forma oficiosa e em surdina, mas sim oficialmente e
a fidelidade das ciências às coisas; os politicólogos se questionaram sobre
publicamente. Nesta vontade de trazer à luz, de dar voz e de trazer a pú­
0 sistema representativo e a fidelidade relati�a dos ele�tos e dos_ ��rta-vo­
blico, continuamos a nos reconhecer como pertencentes à intuição das
zes. Todos tiveram em comum o fato de odiarem os mtermedianos e de
Luzes. Mas esta intuição jamais teve como ambição a antropologia. Ela
desejarem um mundo imediato, esvaziado de seus mediadores. Tod_?s pen­
compartilhou o humano e os não-humanos e acreditou que os outros não
saram que este seria o preço a pagar pela fidelidade da representaçao, sem
o faziam. Apesar de talvez ter sido necessário para aumentar a mobili­
nunca compreender que a solução para seu problema encontrava-se no
zação, esta divisão tornou-se supérflua, imoral e, falando francamente,
outro ramo do governo.
anticonstitucional. Fomos modernos. Tudo bem. Não podemos mais sê­
Ao longo deste ensaio, revi esta divisão de tarefas, uma vez que ela
-lo do mesmo jeito. Ao emendar a Constituição, continu amos acreditan­
não mais permitia construir a casa comum que seria capaz de abrigar as
do nas ciências , mas ao invés de encará-las através de sua objetividade,
sociedade;-naturezas que os modernos nos legaram. Não há dois proble­
sua frieza, sua extraterritoriali dade - qualidades que só tiveram um dia
mas de representação, apenas um. Não há dois ramos, apenas um único
devido ao tratamento arbitrário da epistemologia -, iremos olhá-las atra­
cujos produtos só podem ser distinguidos a posterior � e após ex�me co­
vés daquilo que elas sempre tiveram de mais interessante: sua audácia, sua
mum. Os cientistas só dão a impressão de trair a realidade extenor por­
experimentação, sua incerteza, seu calor, sua estranha mistura de híbri­
que constroem ao mesmo tempo suas sociedades � suas naturezas. O so­
dos, sua capacidade louca de recompor os laços sociais. Apenas retiramos
berano só parece trair seus mandatários porque mistura ª? mesmo �e�po
delas o mistério de seu nascimento e o perigo que sua clandestinidade re­
os cidadãos e a massa enorme de não-humanos que permite ao Leviata se
presentava para a democracia.
sustentar. A desconfiança com relação à representação científica vinha
Sim, somos os herdeiros das Luzes, e seu racionalismo assimétrico ª�
apenas do fato de que, segundo se acreditava, sem .ª poluição soci:l na­
não basta para nós. Os descendentes de Boyle haviam definido um parla-
tureza seria acessível de forma imediata. A desconfiança com relaçao a re-

140 Jamais fomos modernos 141


Redistribuição
parlamenta, não se­
presentação política vinha do fato de que, segundo se acreditava, sem a Não temos outra escolha. Se não mudarmos o .
cultu ras que não ma1s pod�mos do­
perversão das coisas o laço social se tornaria transparente. "Eliminem o remos capazes de absorver as outras .
er este e10 ª1:1�1ente que
social e vocês terão finalmente uma representação fiel", diziam alguns. "Eli­ minar, e seremos eternamente incapazes de acolh ;
olar. Nem a natu reza nem os utros 1r�o tornar-
minem os objetos e vocês terão finalmente uma representação fiel", afir­ não podemos mais contr , de mudar. Ou entao o· Muro
mavam outros. Todo seu debate vinha da divisão definida pela Constitui­ -se modernos. Cabe a nos mudar nossas formas · �e ano, , nos
mira culos o do B1cen
ção moderna. de Berlim terá caído em vão neste ano �
e do
conju nta do socialismo
Se retomarmos as duas representações enquanto uma dúvida dupla oferecendo esta tição ímpar sobre a falência
quanto à fidelidade dos mandatários, então o Parlamento das coisas estará naturalismo.
definido. Em seu recinto encontra-se recomposta a continuidade do coleti­
vo. Não há mais verdades nuas, mas também não há mais cidadãos nus.
Os mediadores dispõem de todo o espaço. As Luzes encontraram enfim seu
lugar. As naturezas estão presentes, mas com seus representantes, os cien­
tistas, que falam em seu nome. As sociedades estão presentes, mas com os
objetos que as sustentam desde sempre. Pouco nos importa que um dos
mandatários fale do buraco de ozônio, que um outro represente as indús­
trias químicas, um terceiro represente os operários destas mesmas indús­
trias químicas, um quarto os eleitores, um quinto a meteorologia das regiões
polares, que um outro fale em nome do Estado; pouco nos importa, con­
tanto que eles se pronunciem todos sobre a mesma coisa, sobre este quase­
-objeto que criaram juntos, este objeto-discurso-natureza-sociedade cujas
novas propriedades espantam a todos e cuja rede se estende de minha gela­
deira à Antártida passando pela química, pelo direito, pelo Estado, pela
economia e pelos satélites. Os imbróglios e as redes que não possuíam um
lugar possuem agora todo o espaço. São eles que é preciso representar, é
em torno deles que se reúne, de agora em diante, o Parlamento das coisas.
"A pedra rejeitada pelos construtores tornou-se a pedra angular."
Não teremos que criar este Parlamento passo a passo, apelando para
mais uma revolução. Temos simplesmente que homologar aquilo que to­
dos nós fazemos desde sempre, contanto que repensemos nosso passado,
que sejamos capazes de compreender retrospectivamente o quanto nós ja­
mais fomos modernos, e que juntemos as duas metades deste símbolo par­
tido por Hobbes e Boyle corno forma de identificação. Metade de nossa
política é feita nas ciências e nas técnicas. A outra metade da natureza se
faz nas sociedades. Se reunirmos as duas, a política renasce. É pouco ho­
mologar publicamente aquilo que já se faz? Corno descobrimos ao longo
deste ensaio, a representação oficial é eficaz; foi ela que permitiu, na anti­
ga Constituição, a exploração dos híbridos. Se pudéssemos escrever uma
nova, modificaríamos profundamente o fluxo dos quase-objetos. É pedir
muito de uma mudança de representação que parece apoiar-se apenas no
pedaço de papel de uma Constituição? Provavelmente, mas eu realizei meu
trabalho de filósofo e de constituinte quando reuni os temas esparsos da
antropologia comparada. Outros saberão convocar este parlamento.
143
Redistribuição
142 Jamais fomos modernos
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150 Jamais fomos modernos


Mas ... e se jamais tivermos sido moderH
nos? Esta é a hipótese radical que Bruno La­
tour lança neste ensaio. Partindo de uma in­
vestigação da ''constituição" moderna, La­
tour disseca a construção ideológica que fun­
damenta a modernidade, criando a grande
divisão que separa as nossas sociedades mo­
dernas das sociedades dos "outros", os não­
-modernos. Ao colocar em crise o conceito de
modernidade, Latour cria novas possibilida­
des para que pensemos nossas sociedades pa­
ra além da atual divisão modernos/anti-mo­
dernos/pós-modernos.
Se, de fato, não formos modernos, se nun­
ca tivermos sido modernos, então estamos
fazendo as perguntas erradas, e estamos pa­
rados frente à imagem falsa de uma esfinge
que criamos e que agora bloqueia nosso ca­
minho. Latour não tem respostas mágicas pa­
ra todos os problemas de nossa suposta mo­
dernidade, mas suas ideias abrem um cami­
nho bastante promissor.
Cabe a nós percorrê-lo.

Carlos lrineu da Costa

Sobre o autor:

Bruno Latour possui doutorado em filo­


sofia e é professor da École Nationale Su­
périeure des Mines, em Paris, e da University
of Ca!ifornia, em San Diego. Realizou diver­
sos estudos etnográficos na África e na AméH
rica. É também autor de Les Microbes: guerre
Esn: UVRO FO! COMPOSTO EM SABON

etpaix (A.-M. Métailié, 1984); La Vie de la­


PELA BRACHER & MALTA, COM CTP E
IMPRESSÃO DA PROL EOlTORA GRAFICA
EM PAPEI. PóLEN Son 80 chi2 DA ÜA. boratoire (La Découverte, 1988); La Science
5UZANO DE PAPEL E CELULOSE PARA ,\ en action (La Découverte, 1989).
El)ITORA 34, EM AGOSTO OE 2009.

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