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coleção TRANS
Bruno Latour
JAMAIS FOMOS
MODERNOS
Ensaio de antropologia simétrica
Tradução
Carlos Irineu da Costa
editorall34
EDITORA 34
Editora 34 Ltda.
Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455-000
São Paulo· SP Brasil Tel/Fax (11) 3816-6777 www.editora34.com.br
A CONSTITUIÇÃO MODERNA
Constituição 19
apenas metade de seu contrato, já que não explicaram o trabalho de puri e por que estes ramos se separam, assim como os múltiplos arranjos que
ficação que se realiza acima deles, o qual explica esta proliferação. os reúnem. O etnólogo de nosso mundo deve colocar-se no ponto comum
Quanto aos coletivos estrangeiros, é tarefa da antropologia falar ao onde se dividem os papéis, as ações, as competências que irão enfim per
mesmo tempo sobre todos os quadrantes. Na verdade, como já disse, qual mitir definir certa entidade como animal ou material, uma outra como
quer etnólogo é capaz de escrever, na mesma monografia, a definição das sujeito de direito, outra como sendo dotada de consciência, ou maquinal,
forças presentes, a repartiçã o dos poderes entre humanos, deuses e não e outra ainda como inconsciente ou incapaz. Ele deve até mesmo compa
-humanos, os procedimentos de consensualização, os laços entre a religião rar as formas sempre diferentes de definir ou não a matéria, o direito, a
e os poderes, os ancestrais, a cosmologia, o direito à propriedade e as consciência, e a alma dos animais sem partir da metafísica moderna. Da
taxonomias de plantas e vegetais. O etnólogo evitará escrever três livros mesma forma que a constituição dos juristas define os direitos e deveres
- um para os conhecimentos, outro para os poderes, e um último para as dos cidadãos e do Estado, o funcionamento da justiça e as transmissões
práticas. Escreverá apenas um, como aquele, magnífico, em que Descola de poder, da mesma forma esta Constituição - que escrevo com maiús
tenta resumir a constituição dos achuar da Amazônia (Descola, 1986): cula para distingui-la da outra- define os humanos e não-humanos, suas
propriedades e suas relações, suas competências e seus agrupamentos.
"Os achuar, entretanto, não se apropriaram completa Como descrever esta Constituição? Escolhi concentrar-me sobre urna
mente da natureza nas redes simbólicas da domesticidade. Cla situação exemplar, no início de sua escrita, em pleno século XVII, quan
ro, o campo cultural aqui é particularmente abrangente, uma do Boyle, o cientista, e Hobbes, o cientista político, discutem entre si a
vez que nele se encontram classificados animais, plantas, e es respeito da repartição dos poderes científicos e políticos. Esta escolha po
píritos que dizem respeito ao domínio natural em outras socie deria parecer arbitrária se um livro notável não tivesse acabado de se agregar
dades ameríndias. Nã o encontramos, portanto, nos achuar, a esta dupla criação de um contexto social e de uma natureza que lhe es
esta antinomia entre dois mundos fechados e irredutivelmente caparia. Boyle e seus descendentes, Hobbes e seus seguidores irão servir
opostos: o mundo cultural da sociedade humana e o mundo -me de exemplo e resumo para uma história muito mais longa que sou in
natural da sociedade animal. Há, ainda assim, um momento capaz de retraçar aqui, mas que outros, mais bem equipados que eu, irão
em que o continuum de sociabilidade é interrompido para dar sem dúvida narrar.
lugar a um universo selvagem irredutivelmente estranho ao
homem. Incomparavelmente mais reduzido que o domínio da
cultura, este pequeno segmento de natureza compreende o con BOYLE E SEUS OBJETOS
junto das coisas com as quais nenhuma comunicação pode ser
estabelecida. Aos seres possuidores de linguagem (aents), dos "Não concebemos a política como algo exterior à esfera
quais os humanos são a encarnação mais completa, opõem-se científica e que poderia, de certa forma, sobrepor-se a ela. A
as coisas mudas, que povoam universos paralelos e inacessíveis. comunidade experimental [criada por Boyle] lutou, justamen
A incomunicabilidade é muitas vezes atribuída a uma falta de te, para impor este vocabulário da demarcação, e nos esforça
alma (wakan) que afeta algumas espécies vivas: a maior parte mos para situar historicamente esta linguagem e para explicar
dos insetos e dos peixes, os animais rastejantes e numerosas os avanços destas novas convenções do discurso. Se desejamos
plantas são, assim, dotados de uma existência maquinal e in que nossa pesquisa seja respeitada do ponto de vista histórico,
consequente. Mas a ausência de comunicação é por vezes fun é preciso que evitemos usar de forma superficial a língua des
ção da distância; infinitamente afastada e prodigiosamente tes atores em nossas próprias explicações. É precisamente esta
móvel, a alma dos astros e dos meteoros permanece surda aos linguagem que permite conceber a política como algo exterior
discursos dos homens" (p. 399). à ciência que tentamos compreender e explicar. Chocamo-nos,
neste ponto, com a visão geral dos historiadores da ciência que
A tarefa da antropologia do mundo moderno consiste em descrever pensam ter ultrapassado há muito as noções de "interior" e
da mesma maneira como se organizam todos os ramos de nosso governo, "exterior" da ciência. Grave erro! Estamos apenas começando
inclusive os da natureza e das ciências exatas, e também em explicar como a entrever os problemas colocados por estas convenções de de-
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Polo Boyle
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versal de uma lei física de volta ao interior de uma rede de práticas padro Homens-entre-eles
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Coisa-em-si
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nizadas. Evidentemente, a interpretação da elasticidade do ar dada por Boyle
se propaga, mas se propaga exatamente com a mesma velocidade que a
comt,midade dos experimentadores e seus equipamentos. se desenvolvem.
Nenhuma ciência pode sair da rede de sua prática. O peso do ar certamen
te continua a ser um universal, mas um universal em rede. Graças à exten
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são desta, as competências e o equipamento podem tornar-se suficientemente
rotineiros para que a produção do vácuo torne-se tão invisível quanto o ar Construção no laboratório
que respiramos, mas universal como antigamente, nunca. de um objeto e de um contexto
Constituição 31
30 Jamais fomos modernos
ciências (Callon e Latour, 1991 ), é mais difícil para eles desconstruir o con nos oferece esta forma assimétrica de explicar o saber pelo poder? Hobbes
texto macrossocial do que a natureza out there. Parecem acreditar que real novamente, e sua construção de uma macroestrutura monista na qual o único
mente existe uma sociedade up there que explicaria o fracasso do progra lugar que cabe ao conhecimento é o de sustentar a ordem social. Os auto
ma de Hobbes. Ou, para ser mais exato, não chegam a fechar a questão, res desconstroem magistralmente a evolução, a difusão e a banalização da
anulando na conclusão aquilo que haviam demonstrado no capítulo VII, e bomba de ar. Por que então não desconstroem a evolução, a difusão e a
mais uma vez anulando sua argumentação na última frase do livro: banalização do "poder" ou da "força" ? A "força" seria menos problemá
tica do que a elasticidade do ar? Se a natureza e a epistemologia não são
"Nem nosso conhecimento científico, nem a constituição constituídas de entidades trans-históricas, então a história e a sociologia
de nossa sociedade, nem as afirmações tradicionais relativas às também não o serão - a menos que adotemos a posição assimétrica dos
conexões entre nossa sociedade e nosso conhecimento conti autores e que sejamos simultaneamente construtivistas para a natureza e
nuam a ser vistos como predefinidos. À medida que descobri racionalistas para a sociedade! Mas é pouco provável que a elasticidade do
mos o estatuto convencional e construído de nossas formas de ar tenha fundamentos mais políticos do que a própria sociedade inglesa...
conhecimento, somos levados a compreender que somos nós -
e não a realidade - que estamos na origem daquilo que sabe
mos. O conhecimento, assim como o Estado, é produto das REPRESENTAÇÃO CIENTÍFICA E REPRESENTAÇÃO POLÍTICA
ações humanas. Hobbes tinha razão" (p. 344).
Se formos até o fim da simetria entre as duas invenções de nossos dois
Não, Hobbes estava errado. Como poderia ter razão, quando foi ele autores, compreenderemos que Boyle não criou simplesmente um discurso
que inventou a sociedade monista na qual conhecimento e poder são uma científico enquanto Hobbes fazia o mesmo para a política; Boyle criou um
única e mesma coisa? Corno utilizar uma teoria tão grosseira para expli discurso político de onde a política deve estar excluída, enquanto que Hobbes
car a invenção de Boyle de uma dicotomia absoluta entre a produção de imaginou uma política científica da qual a ciência experimental deve estar
um conhecimento dos fatos e a política? Sim, "o conhecimento, assim como excluída. Em outras palavras, eles inventaram nosso mundo moderno, um
o Estado, é produto das ações humanas", mas é justamente por isso que a mundo no qual a representação das coisas através do laboratório encon
invenção política de Boyle é muito mais fina do que a sociologia das ciên tra�se para sempre dissociada da representação dos cidadãos através do
cias de Hobbes. Para compreender o último obstáculo que nos separa de contrato social. Não foi, portanto, de forma alguma por engano que os
uma antropologia das ciências, devemos desconstruir a invenção consti filósofos políticos esqueceram tudo aquilo que está relacionado à ciência
tucional da Hobbes, de acordo com a qual haveria uma macrossociedade de Hobbes enquanto que os historiadores da ciência esqueceram as posi
muito mais fechada e robusta que a natureza. ções de Boyle sobre a política das ciências. Era preciso que, a partir de então,
Hobbes inventa o cidadão calculador nu, cujos direitos se limitam a todos "vissem imagens duplicadas" e não fosse estabelecida uma relação
possuir e a ser representado pela construção artificial do soberano. Cria direta entre a representação dos não-humanos e a dos humanos, entre o
também a linguagem do poder = conhecimento, que está na base de toda artifício dos fatos e a artificialidade do corpo político. A palavra "repre
real politik moderna. Oferece, igualmente, um repertório de análise dos sentação )' é a mesma, mas a controvérsia entre Hobbes e Boyle tornou im
interesses humanos que, ainda hoje, continua a ser o vocabulário básico de pensável a similitude dos dois sentidos da palavra. Hoje em dia, quando não
toda a sociologia, juntamente com o de Maquiavel. Em outras palavras, ainda somos mais totalmente modernos, os dois sentidos aproximam�se novamente.
que Shapin e Schaffer tenham tomado muitas precauções para não usar a Os dois ramos do governo elaborados por Boyle e Hobbes, cada um
expressão "fato científico" como um recurso, mas sim como uma invenção de seu lado, só possuem autoridade quando claramente separados: o Es�
histórica e política, não tomaram nenhum cuidado com a língua política em tado de Hobbes é impotente sem a ciência e a tecnologia, mas Hobbes fala
si. Empregam as palavras "poder )' , "interesse" e "política') de forma total apenas da representação dos cidadãos nus; a ciência de Boyle é impotente
mente inocente no capítulo VIL Mas quem inventou estas palavras com seu sem uma delimitação precisa das esferas religiosa, política e científica, e é
significado moderno? Hobbes! Nossos autores, portanto, também veem por isso que ele está tão preocupado em suprimir o monismo de Hobbes.
"imagens duplicadas" e perdem o fio da meada, criticando a ciência mas São dois pais fundadores, agindo em conjunto para promover uma única
engolindo a política corno a única fonte de explicações válida. Mas quem e mesma inovação na teoria política: cabe à ciência a representação dos
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não-humanos, mas lhe é proibida qualquer possibilidade de apelo à polí discípulos, começamos a conceber o que é uma força natural, um objeto
tica· cabe à política a representação dos cidadãos, mas lhe é proibida qual mudo, mas que possui - ou ao qual foram dados sentidos.
que� relação com os não-humanos produzidos e mobilizados pela ciência Em seu debate, os descendentes de Hobbes e de Boyle nos fornecem
e pela tecnologia. Hobbes e Boyle brigam para definir os dois recursos que os recursos que usamos até hoje: de um lado, a força social, o poder; do outro,
até hoje utilizamos sem pensar no assunto, e a intensidade de sua dupla a força natural, o mecanismo. De um lado, o sujeito de direito; do outro, o
batalha revela claramente a estranheza daquilo que inventam. objeto da ciência. Os porta-vozes políticos irão representar a multidão impli
Hobbes define um cidadão nu e calculador que constitui o Leviatã, cante e calculadora dos cidadãos; os porta-vozes científicos irão de agora
este deus mortal, esta criatura artificial. O que sustenta o Leviatã? O cál em diante representar a multidão muda e material dos objetos. Os primeiros
culo dos átomos humanos gerado pelo contrato, o qual decide quanto à traduzem aqueles que os enviam, que não saberiam como falar todos ao
irreversível composição da força de todos nas mãos de um único. Do que mesmo tempo; os segundos traduzem aqueles que representam, que são
é feita essa força? Da autorização dada por todos os cidadãos nus a uma mudos de nascimento. Os primeiros podem trair, os segundos também. No
única pessoa que pode falar em seu nome. Quem age quando ele age? Nós, século XVII, a simetria ainda é visível, os porta-vozes ainda disputam entre
que delegamos a ele, de forma definitiva, nosso poder. A República é uma si, acusando-se mutuamente de multiplicar as fontes de conflito. Basta apenas
criatura artificial paradoxal, composta de cidadãos unidos apenas através um pequeno esforço para que sua origem comum torne-se invisível, para
da autorização dada a uma pessoa para representá-los todos. O soberano que só haja um porta-voz do lado dos homens, para que a mediação dos
fala em seu nome ou em nome daqueles que o autorizam? Questão inso cientistas torne-se invisível. Em breve a palavra "representação" tomará dois
lúvel que a filosofia moderna nunca terminou de desembaralhar. De fato sentidos diferentes, dependendo de estarmos falando de eleitos ou de coisas.
é o soberano quem fala, mas são os cidadãos que falam através dele. O
soberano torna-se seu porta-voz, sua persona, sua personificação. Ele tra
duz os cidadãos e portanto pode traí-los. Estes últimos o autorizam e por As GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DOS MODERNOS
tanto podem interditá-lo. O Leviatã é feito apenas de cidadã_<>s, de cálculos,
de acordos e disputas. Resumindo, é feito apenas de relaçoes sociais. Ou Se a Constituição moderna inventa uma separação entre o poder cien
antes, com Hobbes e seus seguidores, começamos a compreender o que tífico encarregado de representar as coisas e o poder político encarregado
significam as relações sociais, poderes, forças, sociedades. de representar os sujeitos, não devemos tirar disto a conclusão que os sujeitos
Mas Boyle define um artefato ainda mais estranho. Ele inventa o la estão longe das coisas. Hobbes, em seu Leviatã, refaz ao mesmo tempo a
boratório no interior do qual máquinas artificiais criam fenômenos por física, a teologia, a psicologia, o direito, a exegese bíblica e a ciência polí
inteiro. AÍnda que artificiais, caros, difíceis de reproduzir e apesar do pe tica. Em seus escritos e suas cartas, Boyle retraça ao mesmo tempo a retó
queno número de testemunhas confiáveis e treinadas, estes fatos represen rica científica, a teologia, a política científica, a ciência política e a herme
tam a natureza como ela é. Os fatos são produzidos e representados no nêutica dos faros. Em conjunto descrevem como Deus deve reinar, como o
laboratório, nos textos científicos, admitidos e autorizados pela comuni novo rei da Inglaterra deve legislar, como os espíritos ou os anjos devem
l
dade nascente de testemunhas. Os cientistas são os representantes escru agir, quais as propriedades da matéria, como se deve questionar a natureza,
pulosos dos fatos. Quem fala quando eles falam? Os próprios fatos, sem quais os limites da discussão científica ou política, como manter a plebe
dúvida nenhuma, mas também seus porta-vozes autorizados. Quem fala, afastada, quais os direitos e os deveres das mulheres, o que devemos esperar
então: a natureza ou os homens? Questão insolúvel com a qual a filosofia da matemática. Na prática, portanto, eles se situam na velha matriz antropo
das ciências irá defrontar-se durante quase três séculos. Em si, os fatos são lógica, repartem as competências das coisas e das pessoas, e ainda não fazem
mudos as forças naturais são mecanismos brutos. Os cientistas, porém, nenhuma separação entre a força social pura e o mecanismo natural puro.
afirma:U não falar nada: os fatos falam por si mesmos. Estes mudos são Este é todo o paradoxo moderno: se levamos em consideração os
portanto capazes de falar, de escrever, de significar �entro da redoma a: híbridos, estamos apenas diante de mistos de natureza e cultura; se consi
_
tificial do laboratório ou naquela, ainda malS rarefeita, da bomba de va deramos o trabalho de purificação, estamos diante de uma separação to
cuo. Pequenos grupos de cavalheiros fazem com que as forças naturais tes tal entre natureza e cultura. É a relação entre os dois processos que eu
temunhem, e testemunham uns pelos outros que eles não traem, mas an gostaria de compreender. Enquanto Boyle e Hobbes metem-se ambos em
tes traduzem o comportamento silencioso dos objetos. Com Boyle e seus política e religião e técnica e moral e ciência e direito, eles repartem as tarefas
Transcendência da natureza Nada podemos contra as leis naturais te e que suas leis nos ultrapassam infinitamente, irão dizer que somos li
vres e que nosso destino está apenas em nossas mãos. Se você fizer uma
Imanência da natureza Possibilidades ilimitadas
objeção dizendo que estão usando duplicidade, irão mostrar que não mis
Imanência da sociedade Somos totalmente livres turam nunca as leis da natureza e a imprescritível liberdade humana. Se
você acreditar neles e desviar sua atenção, irão aproveitar para introduzir
milhares de objetos naturais no corpo social, dotando-o da solidez das
Transcendência da sociedade Nada podemos contra as leis sociais
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permanece, apesar de tudo, mobilizável, humanizável, socializável. Os la a força sobre a razão - os modernos sempre tiveram duas cartas sob as
boratórios, as coleções, os centros de cálculo e de lucro, os institutos de mangas. Tornaram-se invencíveis. Você acredita que o trovão é uma divinda
pesquisa e os escritórios de desenvolvimento misturam esta natureza, dia de? A crítica irá mostrar que se trata, neste caso, de mecanismos físicos sem
ríamente, aos múltiplos destinos dos grupos sociais. Inversamente, apesar influência sobre os acontecimentos do mundo humano. Você está preso em
de construirmos a sociedade por inteiro, ela dura, ela nos ultrapassa, nos uma economia tradicional? A crítica irá mostrar que os mecanismos físicos
domina, ela tem suas leis, é tão transcendente quanto a natureza. Isto por podem transtornar a evolução do mundo humano ao mobilizarem gigantes
que os laboratórios, as coleções, üs centros de cálculo e de lucro, os insti cas forças produtivas. Você acredita que os espíritos dos ancestrais o prendem
tutos de pesquisa e os escritórios de desenvolvimento traçam diariamente eternamente a suas leis? A crítica irá mostrar que os espíritos e as leis são
os limites da liberdade dos grupos sociais e transformam as relações huma construções sociais que você criou para si mesmo. Você pensa que pode fazer
nas em coisas duráveis que ninguém criou. É nesta dupla linguagem que reside tudo e desenvolver sociedades de qualquer forma que desejar? A crítica irá
a potência crítica dos modernos: podem mobilizar a natureza no seio das mostrar que as leis ferrenhas da sociedade e da economia são muito mais
relações sociais, ao mesmo tempo em que a mantêm infinitamente distante inflexíveis que as dos ancestrais. Você está indignado porque o mundo está
dos homens; são livres para construir e desconstruir sua sociedade, ao mesmo sendo mecanizado? A crítica irá falar sobre o Deus criador ao qual tudo
tempo em que tornam suas leis inevitáveis, necessárias e absolutas. pertence e que deu ao homem todas as coisas. Você está indignado que a
sociedade seja laica? A crítica irá mostrar que a espiritualidade foi libertada
por este laicismo, e que uma religião completamente espiritual é bem supe
A INVENCIBILIDADE DOS MODERNOS rior. Você pensa ser religioso? A crítica irá rir de você até não poder mais!
Como as outras culturas-naturezas poderiam ter resistido? Tornaram
Por· crer na separação total dos humanos e dos não-humanos, e por -se, por contraste, pré-modernas. Elas poderiam ter se oposto à natureza
simultaneamente anular esta separação, a Constituição tornou os moder- transcendente, ou à natureza imanente, 'ou à sociedade criada pelas mãos
Nem mesmo é possível acusá-los de serem céticos. Diga-lhes que são rev�luci(?_Il_átig-�,,,.ª-�§i!P�S:QffiQ..Q}!!!-!E..42�
- i_g2:.��o foi moQ.�.r,no. Os atores
ateus, e irão falar sobre o Deus todo-poderoso infinitamente afastado para ecro·nrstaS de 1789 usaram a noção d·� revoluçào para compreender o que
além do mundo. Diga-lhes que este Deus suprimido é de fato estrangeiro, lhes acontecia e para modificar seu destino. Da mesma forma, a Consti
e dirão que Deus fala na intimidade do coração e que nunca deixaram de tuição moderna existe e age na história, de fato, porém não mais define
ser morais e piedosos, apesar de suas ciências e políticas. Fique espantado aquilo que aconteceu conosco. A modernidade ainda espera seu Tocqueville
perante uma religião que não tem nenhuma influência sobre os rumos do e as revoluções científicas seu François Furet.
mundo e da sociedade, eles irão dizer que esta religião julga ambos. Peça A modernidade, entretanto, não é a falsa consciência dos modernos,
para ler estes julgamentos, e irão objetar que a religião ultrapassa infini e nós devemos prestar atenção para reconhecer na Constituição, assim como
tamente a ciência e a política e que ela não seria capaz de influenciá-las, na ideia de Revolução, uma eficácia própria. Longe de ter eliminado o traba
ou que a religião é uma construção social ou ainda um efeito dos neurônios. lho de mediação, esta permitiu seu crescimento. Da mesma forma como a
-
O que lhes dizer, então? Eles detêm todas as fontes de poder, todas ideia de Revolução levou os revolucionários a tomarem decisões irreversíveis
as possibilidades críticas, mas as deslocam de instância em instância com que não teriam ousado sem ela, a Constituição forneceu aos modernos a
tal rapidez que nunca é possível pegá-los com a mão na massa. Sim, deci audácia de mobilizar coisas e pessoas em uma escala que seria proibitiva
didamente, eles são, foram, quase foram, acreditaram-se invencíveis. sem ela. Esta modificação de escala não foi obtida, como os modernos acre
ditam, através da separação dos humanos e não�humanos, mas sim, pelo
contrário, pela amplificação de sua mistura. Este crescimento é, por sua vez,
Ü QUE A CONSTITUIÇÃO ESCLARECE E O QUE ELA OBSCURECE facilitado pela ideia de uma natureza transcendente - contanto que per�
maneça mobilizável-, pela ideia de uma sociedade livre - contanto que
Entretanto, o mundo moderno jamais existiu, no sentido que jamais permaneça transcendente- e pela ausência de toda e qualquer divindade
funcionou de acordo com as regras de sua Constituição, separando as três contanto que Deus fale ao coração. Enquanto seus contrários permane
regiões do Ser das quais falei e recorrendo, separadamente, aos seis recur cerem simultaneamente presentes e impensáveis e o trabalho de mediação
sos da crítica. A prática de tradução foi sempre diferente das práticas de multiplicar os híbridos, estas três ideias permitem a capitalização em gran-
- :l'.:
•a�;
56 Jamais fomos modernos Revolução 57
todos estes grandes movi
Figura 5 ce com um número de equilibristas. Até aqui,
mentos filosóficos eram sérios e profundos; eles fundavam, exploravam,
Hi erincomensurabilidade ( ós-modernos)
quase -objetos, desejavam
Incomensurabilidade (Habermas) . acompanhavam o prodigioso crescimento dos
( ) acreditar que era possível, apesar de tudo, encaix á�los e digeri-los. Falan
Tensão insuperável (fenomenologia) ho dos híbridos.
( ) do somente de pureza, visavam apenas capta r o trabal
Contradição (Hegel) Trabalho de
mente pelas ciências
( ) purificação Todos estes pensadores interessavam-se apaixonada
(eparação (kantismol heciam ao mesm o tempo
Polo natureza Polo sujeito/sociedade exatas, pelas técnicas e economias, porque recon
Dzsti ão (Hobb5s e B �/e) fias que vieram de
Dimensão moderna
( seu perigo e sua salvação. Mas o que dizer das filoso ten
p rq e não
pois deles? Aliás, que nome lhes dar? M?der� as? Não, � � _
as. Amda nao, o
tam mais segurar as duas pontas da cadeia. Pos-modern
ar atenção para
pior está para vir. Digamos, pré�pós-modernas, para cham
Trabalho de elevam aquilo que era apenas uma
0 fato de que são uma transição. Elas
mediação o, depois uma
Quanto mais os quase-objetos Multiplicação distinção, depois uma separação, depois uma contradiçã
se multiplicam, mais cresce a dos quase-objetos tensão insuperável ao nível de uma incomensurabilidade.
a comum
distinção entre os dois polos Dimensão não-moderna A Constituição moderna inteira já dizia que não há medid
va imediatamente
entre o mundo dos sujeitos e o dos objetos, mas ela anula
e coisas em con
A fenomenologia iria realizar, uma última vez, a grande separação, esta distância ao praticar o contrário, ao medir humanos
de intermediá
mas desta vez soltando lastro, abandonando os dois polos da consciência junto com as mesmas medidas, ao multiplicar, sob o nome
itam realmen
pura e do objeto puro, e deitando-se, literalmente, no meio, para tentar cobrir rios os mediadores. Os pré-pós-modernos, por sua vez, acred
al e à eficácia
com sua grande sombra o espaço agora vazio que ela sentia não ser mais te g'ue O sujeito falante é incomensurável ao objeto natur
nte. Eles an�
capaz �e ab�orver No�amente, o paradoxo moderno é levado mais longe.
: técnica, ou que deverá sê-lo caso ainda não o seja o basta
que pensam salva
� noçao de mtenc10nahdade transforma a distinção, a separação, a contra lam, então, o projeto moderno, ao mesmo tempo em
ituiçã o que fala de pureza e_nquanto
d1çã� e� um: tensão insuperável entre o objeto e o sujeito. As esperanças -lo, pois seguem a metade da Const
d1tam que
da d1alet1ca sao abandonadas, uma vez que esta tensão não oferece nenhu ignoram a outra metade que apena s pratic a a hibrid açã ? ·. Acr�
. Do lado dos su1e1to s, mven ta� a
ma resolução. Os fenomenólogos têm a impressão de ter ultrapassado Kant não há, que não deve haver mediadores .
deixa m o mund das c01sas de 1var
e Hegel e Marx, uma vez que não atribuem mais nenhuma essência nem ao palavra, a hermenêutica, o sentido, e ? . �
do espelh o, e claro, os c1ent1 stas
sujeiw �uro nem ao objeto puro. Eles têm a impressão de falar apenas de lentamente em seu vazio. Do outro lado
simét rica. Quan to mais a herm e
med1açao, sem que a mediação esteja ligada a polos. Entretanto, tudo O que
_ e os tecnocratas mantêm uma atitude
alismo expan de o seu. Mas esta
fazem e desenhar um traço entre polos reduzidos a quase nada. Moderni nêutica expande seu território, mais o natur
geux e seus neu
zadores inquietos, p �dem apenas estender a "consciência de alguma coisa"
_ repetição das divisões da história torna-se caricata: Chan
de outro . Seu casal de gêmeos
que e �ome�te uma fma passarela sobre um abismo que aumenta aos pou rônios de um lado; Lacan e seus analisandos
que eles não mais se esfor
cos. So podiam mesmo rachar. E racharam. Na mesma época, a obra du não é mais fiel à intenção moderna, uma vez
plicar os híbridos cuja
pla de Bachelard, exagerando ainda mais a objetividade das ciências às custas çam para pensar o paradoxo que consiste em multi
de rupt�ras co� o se�s� c?mum, e exagerando simetricamente a potência
. existência se proíbe por outro lado.
do pengo
sem ob!et� do 1magmano as custas de rupturas epistemológicas, represen
, É ainda pior quando tentam proteger o projeto moderno
o desesp erado (Ha
ta o propno s1mbolo desta crise impossível, deste esfacelamento. de seu desaparecimento. Habermas exprime este esforç
separ ou profu n
bermas, 1988) . Será que ele vai mostrar que nada nunca
projet o mode rno,
damente as coisas das pessoas? Será que irá retomar o
Ü FINAL DOS FINAIS
s da Constituição?
demonstrar os arranjos da prática por sob as justificativa
confusão entre os
Pelo contrário ele acredita que o perigo supremo vem da
n tural e técnica
A continuação desta história toma um rumo involuntariamente cô sujeitos falan:es e pensantes com a pura racionalidade �
i todas as vezes
mico. Quanto mais a grande separação é tensionada, mais o caso se pare- permitida pela antiga filosofia da consciência! "Eu o suger
59
58 Jamais fomos modernos Revolução
no momento crucial: era preciso substituir o paradigma do conhecimento "Eu defendo apenas que a expansão científica não tem
dos objetos pelo do acordo entre sujeitos capazes de falar e de agir" (p. 350). nada de humano. Talvez nosso cérebro seja apenas o portador
Se algum dia alguém esteve enganado quanto aos inimigos, decerto foi este provisório de um processo de complexificação. A tarefa agora
kantismo deslocado em pleno século XX que se esforça para aumentar o seria a de desconectar este processo daquilo que o transportou
abismo entre os objetos conhecidos pelo sujeito, de um lado, e a razão co até o momento. Estou convencido que é isto que vocês [ os cien
municacional, do outro, enquanto a antiga consciência tinha ao menos o tistas!] estão fazendo. A informática, a engenharia genética, a
mérito de visar o objeto e, consequentemente, de lembrar a origem artifi física e a astrofísica, a astronáutica, a robótica já trabalham com
cial dos dois polos constitucionais. Mas Habermas quer tornar os dois polos esta preservação da complexidade em condições de vida inde
incomensuráveis, no momento exato em que os quase-objetos multiplicam pendentes da vida sobre a Terra. Mas não vejo o que isto tem
-se de tal forma que parece impossível encontrar apenas um deles que se de humano, se por humano entendermos as coletividades com
pareça, um mínimo que seja, com um sujeito falante livre ou com um ob suas tradições culturais, estabelecidas ·desde determinada épo
jeto da natureza reificado. Kant já não conseguia .fazê-lo em plena revolu ca sobre zonas precisas deste planeta. Tenho certeza que este
ção industrial; como poderia Habermas consegui-lo depois da sexta ou sétima processo "a-humano" possa ter, além de seus efeitos destrutivos,
revolução? O velho Kant ainda multiplicava a superposição dos interme algumas boas consequências para a humanidade. Mas isto não
diários, o que lhe permitia restabelecer as transições entre o númeno e o ego tem nada a ver com a emancipação do homem" (Lyotard, 1988,
transcendental. Nada disso ocorre quando a razão técnica deve ser mantida p. XXXVIII).
tão longe quanto possível da livre discussão dos homens.
Ocorre com os pré-pós-modernos o mesmo que ocorreu com a rea Aos cientistas surpresos com este balanço desastroso e que ainda
ção feudal bem no fim do Antigo Regime; nunca a honra foi tão minucio acreditam na utilidade dos filósofos, Lyotard responde, lúgubre: "Creio
sa nem o cálculo dos quartos de sangue azul mais preciso, e no entanto já que vocês irão nos esperar por um longo tempo!". Mas esta é a falência
era um pouco tarde para separar radicalmente a plebe e os nobres! Da do pós-modernismo (Hutcheon, 1989), e não a da filosofia. Os pós-mo
mesma forma, é um pouco tarde demais para tentarmos novamente o golpe dernos acreditam que ainda são modernos porque aceitam a divisão to
da revolução copernicana, fazendo as coisas rodarem em torno da inter tal entre o mundo material e a técnica de um lado, os jogos de linguagem
subjetividade. Habermas e seus discípulos só mantêm o projeto moderno dos sujeitos falantes de outro. Mas estão enganados, porque os verdadei
porque se abstêm de qualquer estudo empírico (Habermas, 1987); caso ros modernos sempre multiplicaram, na surdina, os intermediários a fim
contrário, o terceiro estado iria tornar-se visível rápido demais e misturar de tentar pensar o formidável crescimento dos híbridos ao mesmo tem
-se com excessiva intimidade aos pobres sujeitos falantes. Que morram as po em que pensavam sobre sua purificação. As ciências sempre estiveram
redes, contanto que a razão comunicacional pareça triunfar. ligadas aos coletivos de forma tão íntima quanto a bomba de Boyle ao
Ainda assim, Habermas é ainda honesto e respeitável. Mesmo na ca Leviatã de Hobbes. É a dupla contradição que é moderna, contradição
ricatura do projeto moderno, podemos reconhecer ainda o brilho enfraque entre as duas garantias constitucionais., de um lado., e entre esta Consti
cido das Luzes do século XVIII ou o eco da crítica do século XIX. Mesmo tuição e a prática de mediação., de outro. Ao acreditar na separação to
nesta obsessão de separar a objetividade da comunicação, podemos captar tal dos três termos, ao acreditar realmente que os cientistas são extrater
um rastro, uma lembrança, uma cicatriz da própria impossibilidade de fazê restres, os pós-modernos concluem o modernismo, tirando-lhe para todo
-lo. Com os pós-modernos, o abandono do projeto moderno foi consuma o sempre a mola propulsara de sua tensão.
do. Não fui capaz de encontrar uma palavra suficientemente vil para de Há apenas uma coisa positiva a ser dita sobre os pós-modernos: de
signar este movimento, ou antes, esta imobilidade intelectual através da qual pois deles, não há mais nada. Longe de ser o fim do fim, representam o
os humanos e os não humanos são abandonados à deriva. Não estamos mais fim dos fins, quer dizer, o fim das formas de terminar e de passar que fa
falando de incomensurabilidade, mas da "hiperincomensurabilidade". ziam com que críticas cada vez mais radicais e mais.revolucionárias se
Basta um exemplo para mostrar a derrota do pensamento e do proje sucedessem a uma velocidade cada vez mais vertiginosa. Como podería
to pós-moderno. "Este filósofo que sou traz um balanço desastroso", res mos ir mais longe na ausência de tensão entre natureza e sociedade? Seria
ponde Jean-François Lyotard, a quem alguns nobres cientistas pediam que preciso imaginar alguma super-hiperincomensurabilidade? Os "'pomôs",
refletisse sobre o laço que conecta a ciência ao coletivo humano: como dizem os ingleses chiques, são o fim da história, e o mais engraçado
X
fala sozinho, um jogo de significante sem significado. Difícil reduzir todo
o cosmos a uma grande narrativa, a física das partículas subatômicas a um
Autonomização
do discurso
texto, todas as estruturas sociais a um discurso. O Império dos signos não
durou muito mais que o de Alexandre e foi, ele também, desmembrado
entre seus generais (Pavel, 1. 988). Alguns tentaram tornar o sistema autô
Estes filósofos acharam que só seria possível autonomizar o sentido nomo da língua menos irracional, restabelecendo o sujeito falante ou mes
s: duas que�tõ�s fossem colocadas entre parênteses. A primeira, a ques mo o grupo social e, para tanto, foram buscar a antiga sociologia. Outros
tao da referencia ao mundo natura l; a segunda, a identidade dos desejaram tornar a semiótica menos absurda restabelecendo o contato com
sujeitos
fala�tes e ?ensantes. Para eles, a linguagem ainda ocupa este lugar median o referente, e tomaram o mundo da ciência ou o do senso comum a fim de
o
-,
da filosofia moderna - o ponto de encontro dos fenômenos em Kant ancorar novamente o discurso. Sociologização, naturalização, a escolha
Ü INJCIO DO TEMPO QUE PASSA "Quando me dizem que Hatto, filho de Magnus, marquês
de Verona, prefeito de Nollig, é o pai de Gorlois, filho de Hatto
A proliferação dos quase-objetos foi, portanto, acolhida por três es (bastardo), prefeito de Sareck, não estão me dizendo nada, disse
tratégias diferentes: primeiro, a separação cada vez maior entre o polo da ela [Clio]. Eu não os conheço. Jamais os conhecerei. Mas quando
natureza - as coisas em si - e o polo da sociedade ou do sujeito - os me dizem que Querubin morreu, na tomada de um forte para
homens-entre-eles; segundo, a autonomização da linguagem ou do senti o qual ele não estava designado, aí então me dizem algo, disse
do; enfim, a desconstrução da metafísica ocidental. Quatro repertórios ela. E sei muito bem o que me dizem. Um sobressalto secreto
diferentes permitem que a crítica desenvolva seus ácidos: o da naturaliza me avisa que realmente entendi" (p. 276).
ção, o da sociologização, o da colocação em discurso e, enfim, o do esque
cimento do Ser. Nenhum destes repertórios permite, por si só, compreen Ora, a passagem moderna do tempo nada mais é do que uma forma
der o mundo moderno. Colocados em conjunto, mas mantidos separados, particular de historicidade. De onde nos vem a ideia de um tempo que
é ainda pior, já que resultam apenas neste desespero cujo sintoma é o pós passa? Da própria Constituição moderna. A antropologia está aí para nos
-modernismo. Todos estes recursos críticos têm em comum o fato de não lembrar que a passagem do tempo pode ser interpretada de diversas for
seguirem o trabalho de proliferação dos híbridos e o de purificação simulta mas, como ciclo ou como decadência, como queda ou como instabilida
neamente. Para sair da hesitação dos pós-modernos, basta reutilizar todos de, como retorno ou como presença continuada. Chamemos de tempo
estes·recursos, porém juntando-os uns com os outros e tornando-os adequa ralidade a interpretação desta passagem, de forma a distingui-la claramente
dos ao acompanhamento a curta distância dos quase-objetos ou das redes. do tempo. Os modernos têm a particularidade de compreender o tempo
Já que tudo aquilo que acontece é para sempre eliminado, os moder Qual é o laço entre a forma moderna de temporalidade e a Consti
nos têm realmente a sensação de uma flecha irreversível do tempo, de uma tuição moderna que une, sem nunca dizê-lo, as duas assimetrias da natu
capitalização, de um progresso. Mas como esta temporalidade é imposta a reza e da sociedade e permite a proliferação dos híbridos por debaixo dos
um regime temporal que corre de forma totalmente diversa, os sintomas de panos? Por que a Constituição moderna nos obriga a sentir o tempo como
um desentendimento se multiplicam. Como Nietzsche havia observado, os uma revolução que deve sempre ser recomeçada? Porque ela suprime as
modernos têm a doença da história. Querem guardar tudo, datar tudo, por origens e os destinos dos objetos da Natureza e porque faz de sua súbita
que pensam ter rompido definitivamente com seu passado. Quanto mais re emergência um milagre.
voluções eles acumulam, mais eles conservam; quanto mais capitalizam, mais O tempo moderno é uma sucessão de aparições inexplicáveis, elas
colocam no museu. A destruição maníaca é paga simetricamente por urna mesmas devidas à distinção entre a história das ciências ou das técnicas e a
conservação também maníaca. Os historiadores reconstituem o passado nos história pura e simples. Se suprimirmos Boyle e Hobbes e suas discussões,
mínimos detalhes com um cuidado muito maior, pois este se perdeu para eliminarmos o trabalho de construção da bomba de ar, a domesticação dos
sempre. Estaremos realmente tão distantes de nosso passado quanto dese colegas, a invenção de um Deus suprimido, a restauração da realeza ingle�
jamos crer? Não, já que a temporalidade moderna não tem muito efeito sobre sa, como então daremos conta das descobertas de Boyle? A elasticidade do
a passagem do tempo. O passado permanece, ou mesmo retorna. E esta ar não possui mais urna origem. Simplesmente irrompe do nada, toda pronta.
ressurgência é incompreensível para os modernos. Tratam-na então como Para explicar aquilo que se torna um grande mistério, será preciso construir
o retorno do que foi recalcado. Fazem dela um arcaísmo. "Se não tornar uma imagem do tempo que se adapte a esta irrupção miraculosa de coisas
mos cuidado, pensam eles, iremos voltar ao passado, iremos recair na ida novas que já existem desde sempre, e também a construções humanas que
de das trevas." A reconstituição histórica e o arcaísmo são dois dos sinto nenhum homem jamais construiu. A ideia de revolução radical é a única
mas da incapacidade dos modernos de eliminar aquilo que eles devem, to solução que os modernos puderam imaginar para explicar a irrupção dos
davia, eliminar a fim de ter a impressão de que o tempo passa. híbridos que é simultaneamente proibida e permitida por sua Constituição,
Se explico que as revoluções tentam abolir o passado mas não po e para evitar este monstro: que as próprias coisas tenham uma história.
dem fazê-lo, pareço ser um reacionário. Isto porque, para os modernos- Há boas razões para acreditarmos que a ideia de revolução política
assim como para seus inimigos antimodernos, assim corno para seus fal- foi tomada emprestada à ideia de revolução científica (Cohen, 1985). Po-
73
72 Jamais fomos modernos Revolução
. O_ te � p o n ão é u m panorama ger al, m as ant es o r es u lt do r o i ó . A ide ia d e uma trad
i
a p hv s N ó s s omo s tradi ci o na is, ent ã o ? Tam bém não
r �o da li�aç ao ent re os sere s . A disci pli na moder n a agru a v , e n c a va , s pólo g os há muit o nos li�raram .
a n a çã o est á v el é uma ilusão da q u al o antro
s1sten:iattza :a p a ra mant er u ni da a pleto ra de element ops co nt em g p o ntem. Ocor _re 7,ºm a m�1? r, �ar
t e
r ân e o s T od a s as tr adições imut áveis mu d a ra m an eo
t
e, assim, elimm . ar aquel es q ue n o s
ã o p ertencia m ao sis te m a. Es ta t en a tiv do s folc lores ances trais O me sm o que ocorre
u c om o kilt cente na no d
fracasso u, e la sem p re fracasso u . Nã o há ma s, n un c ho u ve na da a lém t d a 1 983 ,
séc ulo �I X (Hobsb awr�,
i a e e sc o c es es, totalme ntei n ventado no iní cio do )
element os q ue escapa m d o sist em a, o bjet os c u a da t e du ra ã o r e vi n h o d e m mha peque na cid ade n a
j a ç s ã o ou c o m os C avalei o o s pro ad es d
certa s . Nã o..�sã _o,, ap�fl:a.s.. os . beduín os ou... os - kun g q ue m is tura ...m o s .t r n s i n
v o r
o·
perguntam-se os modernos, angustiados. Como modernizar todas elas? Era Polo sujeito/sociedade
Polo natureza Ponto de clivagem
possível, acreditava-se que fosse possível, não é mais possível acreditar. Corno
O
e de encontro
um grande navio freado e depois atolado no mar de Sargaços, o tempo dos
�odernos finalmente parou. Mas o tempo nada tem a ver com a história. r--f---+- --+------t--
Interme1 diários t---t-----i----i--
E a ligação entre os seres que constitui o tempo. É a ligação sistemática dos
Purificação
)
Composição
contemporâneos em um todo coerente que constituía o fluxo do tempo
moderno. Agora que este fluxo laminar tornou-se turbulento, podemos A explicação parte de um dos extremos
diários
e aproxima-se do ponto de encontro pela multiplicação dos interme
abandonar as análises sobre o quadro vazio da temporalidade e retornar
ao tempo que passa, quer dizer, aos seres e a suas relações, às redes cons
trutoras de irreversibilidade e reversibilidade. Se estamos tentando desdobrar o Império do Meio em si, somos obri
clivagem e
Mas como modificar o princípio de classificação dos seres? Como dar gados a inverter a forma geral das explicações. O ponto de
. As explica ções não partem mais das
às multidões ilegítimas uma representação, uma linhagem, um estado ci encontro torna-se o ponto de partida
enos, mas sim do centro em direção
vil? Como explorar esta terra incógnita que, entretanto, nos é tão familiar? formas puras em direção aos fenôm
mais o ponto de apoio da realida de,
�:9rgqicdo mt•.JJ<lo. dos objeto;; ou dos sujeitos àquilQ que chamei .de qua aos extremos. Estes últimos não são
is. As camad as dos interm ediário s
s_�-obj_etos ou quase-suj_eit()s,? -- _Çomp_ passar. .da.. _n a_turez_a _ _t_ran�_c_e11ciente/ mas sim resultados provisórios e parcia
dores, de acordo com o model o pro
\121..a,.�_�rúe _a esta nat11r.�_z_a_, _)&.��l-�1t,qte____real, ..mas extraÍda d� {;b�ratÓrio e são substituídas por cadeias de media
(Hen
Ôepois transfQrmaclê,�!JÚGJ!ida<le,exterior? Como deslizar da soci;dade posto por Antoine Hennion, que serve como base para este ensaio
dos híbrido s- e de recons tituí
'}manente/transcendente rumo aos coletivos de humanos e de não-huma nion, 1991). Ao invés de negar a existência
ediário s-, este modelo expli
nos? Como passar do Deus suprimido transcendente/imanente ao Deus das -los desastradamente sob o nome de interm
ação como
origens que talvez fosse preciso denominar Deus de baixo? Como atingir cativo permite, pelo contrário, a integração do trabalho de purific
palavr as, a explica ção inclui
as redes, estes seres de topologia tão curiosa e de ontologia ainda mais um caso particular de mediação. Em outras
a separa damen te, nega
es�ranha, nos quais residem as capacidades de conectar e de separar, ou a Constituição, enquanto que esta última, tomad
o sentido da palavra
se1a, de produzir o espaço e o tempo? Como pensar o Império do Centro? aquilo que lhe dá sentido. O que mostra o quanto
mediad or - definid o
Já disse, precisamos traçar ao mesmo tempo a dimensão moderna e a dí- mediação difere do sentido de intermediário ou de
produç ão ou de cria
como aquilo que difunde ou desloca um trabalho de
1:1ensão não-moderna, desdobrar a latitude e a longitude que irão permi
ttr o traçado de mapas adaptados ao trabalho de mediação e purificação. ção que dele escaparia (Debray, 1991).
Os modernos sabiam muito bem como pensar este Império. Faziam
com que desaparecesse através da limpeza e negação. Cada vez que o Figura 8
Polo sujeito/sociedade
trabalho de mediação era concluído, o trabalho de purificação começa Polo natureza
va. Todos os quase-objetos, todos os híbridos eram concebidos como urna
mistura de formas puras. As explicações modernas consistiam portanto ,,
Trabalho de purificação
em clivar os mistos para deles extrair o que era proveniente do sujeito (ou
do social) e o que era proveniente do objeto. Em seguida, os intermediá
o o Trabalho de medi�ção
o 0 0
rios eram multiplicados para que sua unidade fosse recomposta através
resultados;
da mistura das formas puras. Estes processos de análise e de síntese, por A explicação parte dos mediadores e atinge os extremos enquanto
ção torna-s e uma mediaçã o em particu lar
tanto, tinham sempre três aspectos: uma purificação prévia, uma separa- o trabalh o de purifica
77
76 Jamais fomos modernos Revolução
A revolução copernicana de Kant, como vimos anteriormente, ofere
global ao contexto local e mostraríamos como os gestos de B � yle e a pres
ce o modelo completo das explicações modernizadoras, ao fazer com que
são da Royal Society permitem que eles compreendam os defeitos da bom
o objeto gire em torno de um novo foro ao multiplicar os intermediários
ba, seus vazamentos e suas aberrações. Através da multiplicação dos ter
para anular aos poucos a distância. Mas nada nos obriga a tomar esta re
mos intermediários acabaríamos colando de volta as duas partes- natu
volução como um acontecimento decisivo que nos teria colocado para sempre
reza e social - que, anteriormente, estavam infinitamente afastadas.
no caminho seguro da ciência, da moral e da teologia. Ocorre, com esta
Neste exemplo trabalhei com situações ideais e supus historiadores
inversão, o mesmo que com a Revolução francesa, que está ligada a ela; são
simétricos. Na prática, infelizmente, haverá apenas historiadores para a
excelentes instrumentos para tornar o tempo irreversível, mas não são, em
Inglaterra do século XVII, que só estarão interessados em fazer a bomba
si, irreversíveis. Dou o nome de contrarrevolução copernicana a esta inver
surgir milagrosamente do Céu das Ideias para estabelecer sua cronologia.
são da inversão. Ou antes este deslizamento dos extremos rumo ao centro
Por outro lado, os cientistas e epistemólogos irão descrever a física do vá�uo
e para baixo, que faz girar tanto o objeto quanto o sujeito em torno da prática
sem preocupar-se nem um pouco com a Inglaterra ou com Boyle. Deixe
dos quase-o bjetos e dos mediadores. Não precisamos apoiar nossas expli
mos estas duas tarefas assimétricas, uma que esquece os não-humanos, e
cações nestas duas formas puras, o objeto ou o sujeito-sociedade, já que elas
outra que esquece os humanos, para analisar o resultado da explicação
são, ao contrário, resultados parciais e purificados da prática central, a única
anterior, que se esforçava para ser simétrica.
que nos interessa. São produto do craking purificador, e não sua matéria
Em uma explicação deste tipo, no fundo nada teria ocorrido. Para
prima. A natureza gira, de fato, mas não ao redor do sujeito-sociédade. Ela
explicar nossa bomba de ar, teríamos mergulhado nossa mão, alternada
gira em torno do coletivo produtor de coisas e de homens. O sujeito gira,
mente, seja na urna que compreende eternamente os seres da nature�a,
de fato, mas não em torno da natureza. Ele é obtido a partir do coletivo
seja naquela que compreende os recursos sempiternos do mundo social.
produtor de homens e de coisas. O Império do Centro se encontra enfim
' ' A natureza sempre foi idêntica a si mesma. A sociedade sempre foi com
representado. As naturezas e sociedades são os seus satélites.
posta pelos mesmos recursos, mesmos interesses, me�mas paixõ�s. �a
perspectiva moderna, a natureza e a sociedade pe�m1tem ., a exphcaç_ao
porque elas, em si, não precisam ser explicadas. Ex1stem,...�---�l-�E?.�...?�......1_�.. �.
Dos INTERMEDIÁRIOS AOS MEDIADORES
_ Jt?.mente o d.�. ....�..��-�E. .��!....�i-��!-�_1?__..�.�:.r_�___a.�--��..��'
terme1iá_�i,9,§___ç_µjQ. _papel .é_j µ
�sii§ s_Q _ podem..criar_asJ . igações.... porq.ue,. .justam.e.n.t.�,... .n.ªo pos�µ_e_r.n
A partir do momento em que realizamos a contrarrevolução coper
q�;,Jn;;Ldignidade ol)tológicg , Nada fazem além de transponar, veicular,
nicana, e que��-��-u_amos_ o �-uase-objeto_ aci_f:12�--<J�-�)g_�-��Jmente distante_d_�
. · · �deslocar a potência dos dois únicos seres reais, natureza e sociedade. Cla
ª-�ti_�-�-� ��-i-���=�0_:5_r
- - êt_aos_·a,�os��
- -�§:-_e11tr,r�.el��' quando vo Iramos à•• ro, podem transportar mal, podem ser infiéis ou obtusos. Mas esta falta
-
prática de sempre; ·pêfêehéniOS Cille não há mais rãzão para limitar a duas
de fidelidade não lhes dá nenhuma importância própria, uma vez que é
as variedades ontológicas (ou três, se contarmos o Deus suprimido).
ela qu�m prova, pelo contrário, seu estatuto de intermediário. Eles não
A bomba de vácuo que nos serviu como exemplo até aqui é, por si
possuem competência original. Na pior das hi__p�-���- �-�- '.....�..�.2J,�g��-..?--�......�.
só, uma variedade ontológica? No mundo da revolução copernicana, de
cravos, e na melhor, servidore_s �[a_,is.
veríamos dividi-la em duas; uma primeira parte iria para a esquerda e se
- Se realizarmos a contrarr-êVÕl�ção copernicana, seremos obrigados
tornaria "leis da natureza"; uma segunda parte iria para a direita e se tor
a levar muito mais a sério o trabalho dos intermediários, já que estes não
naria "a sociedade inglesa do século XVII'"; talvez houvesse ainda uma
irão mais transmitir a potência da natureza e da sociedade indo todos pro
terceira, o fenômeno, que marcaria o lugar vazio onde as outras duas de
duzir, portanto, os mesmos efeitos de realidade. Se contarmos �gora �s
veriam reunir-se. Em seguida, através da multiplicação dos intermediários,
entidades dotadas de um estatuto autônomo, encontraremos mmto mais
deveríamos aproximar aquilo que separamos. Diríamos que a bomba do
do que duas ou três. Encontraremos dezenas delas. A natureza tem ou não
laboratório "revela" ou "representa" ou "materializa" ou "permite a com
horror ao vácuo? Há um verdadeiro vácuo na bomba ou algum éter sutil
preensão" das leis da natureza. Diríamos também que as "representações"
teria entrado nela sorrateiramente? Como as testemunhas da Royal Society
dos ricos cavalheiros ingleses permitem a "interpretação" da pressão do
vão dar conta das fugas na bomba? Como o rei da Inglaterra vai aceitar
ar e a 1'aceitação" da existência de um vácuo. Se nos aproximarmos ain
que seus súditos comecem novamente a falar das propriedades da matéria
da mais do ponto de encontro e de clivagem, passaríamos do contexto
e que sejam novamente formados cenáculos privados exatamente no mo-
-se referências cômodas e relativas que os modernos empregam para dife Existência
renciar os intermediários, alguns sendo chamados de "naturais" e outros longitude!
de "sociais", enquanto que outros serão "totalmente na'turais" e outros
ainda "totalmente sociais". Os analistas que vão em direção à esquerda A ontologia dos mediadores, portanto, possui uma geometria variá
serão chamados de realistas, enquanto os que forem para a direita serão vel. O que Sartre dizia dos humanos, que sua existência precede sua es
chamados de construtivistas (Pickering, 1 992). Os que desejarem manter sência, é válido para todos os actantes, a elasticidade do ar, a sociedade, a
-se exatamente no meio inventarão inúmeras combinações para separar a matéria e a consciência. Não temos que escolher entre o vácuo n º 5, reali
natureza da sociedade ( ou sujeito), alternando a "dimensão simbólica" das dade da natureza exterior cuja essência não depende de nenhum humano,
coisas com a "dimensão natural" das sociedades. Outros, mais imperia e o vácuo nº 4, representação que os pensadores ocidentais levaram séculos
listas, tentarão naturalizar a sociedade integrando-a na natureza, ou en para definir. Ou antes, só poderemos escolher entre os dois quando hou
tão socializar a natureza, fazendo com que seja digerida pela sociedade ( ou, verem ambos sido estabilizados. Não podemos afirmar se o vácuo nº 1,
o que é mais difícil, pelo sujeito). muito instável no laboratório de Boyle, é natural ou social, mas apenas que
Entretanto, estas referências e estes debates continuam a ser unidi ocorre artificialmente no laboratório. O vácuo nº 2 pode ser um artefato
mensionais. Classificar todas as entidades segundo uma única linha que fabricado pela mão do homem, a menos que se transmute em vácuo nº 3,
vai da natureza à sociedade seria o mesmo que elaborar mapas geográfi que começa a tornar-se uma reação que escapa aos homens. O que é o
cos somente com a longitude, o que os reduziria a um único traço! A se vácuo, então? Nenhuma destas posições. A essência do vácuo é a trajetó
gunda dimensão permite dar qualquer latitude às entidades e desdobrar o ria que liga todas elas. Em outras palavras, a elasticidade do ar possui uma
mapa que registra, como eu disse anteriormente, ao mesmo tempo a Cons história. Cada um dos actantes possui uma assinatura única no espaço
tituição moderna e sua prática. Como iremos definir este equivalente do desdobrado por esta trajetória. Para traçá-los, não precisamos construir
Norte e do Sul? Misturando as metáforas, eu diria que é preciso defini-lo nenhuma hipótese sobre a essência da natureza ou a da sociedade. Basta
Relativismo 91
socialmente, mas a verdade continuava a ser sua própria explicação. Era O princípio de simetria restabelece, pelo contrário, a continuidade,
possível analisar a crença em discos voadores, mas não o conhecimento a historicidade e, vale lembrar, a justiça. Bloor é o anti-Canguilhem, da
dos buracos negros; era possível analisar as ilusões da parapsicologia, mas mesma forma que Serres é o anti-Bachelard, o que, por sinal, explica a total
não o saber dos psicólogos; os erros de Spencer, mas não as certezas de incompreensão, na França, tanto da sociologia das ciências quanto da an
Darwin. Fatores sociais do mesmo tipo não podiam ser igualmente apli tropologia de Serres (Bowker e Latour, 1987). "O único mito puro é a ideia
cados aos dois. Nestes dois pesos, duas medidas, encontramos a antiga de uma ciência purificada de qualquer mito", escreve este último ao rom
divisão da antropologia entre ciências- impossíveis de estudar- e etno per com a epistemologia (Serres, 1974, p. 259). Para ele, bem como para
ciências - possíveis de estudar. os historiadores das ciências propriamente ditos, Diderot, Darwin, Malthus
Os pressupostos da sociologia do conhecimento jamais teriam inti e Spencer devem ser explicados de acordo com os mesmos princípios e as
midado por muito tempo os etnólogos se os epistemólogos não houves mesmas causas. Ao dar conta da crença em discos voadores, verifique se
sem elevado a nível de princípio fundador esta mesma assimetria entre as as mesmas explicações podem ser empregadas, simetricamente, para os bu
verdadeiras ciências e as falsas. Apenas estas últimas- as ciências "pros racos negros (Lagrange, 1990); ao atacar a parapsicologia, é possível usar
critas"- podem estar ligadas ao contexto social. Quanto às ciências "san os mesmos fatores para a psicologia (Collins e Pinch, 1991)? Ao analisar
cionadas n , apenas se tornam científicas porque se separam de qualquer o sucesso de Pasteur, será que os mesmos termos irão permitir dar conta
contexto, qualquer traço de contaminação, qualquer evidência primeira, de seus fracassos (Latour, 1984)?
chegando mesmo a escapar de seu próprio passado. Esta é a diferença, para Antes de mais nada, o primeiro princípio de simetria propõe um re
Bachelard e seus discípulos, entre a história e a história das ciências. A pri gime de emagrecimento para as explicações. Havia se tornado tão fácil dar
meira pode ser simétrica, mas isto não importa porque nunca trata da ciên conta do erro! A sociedade, as crenças, a ideologia, os símbolos, o incons
cia; a segunda jamais deve ser simétrica, a fim de que o corte epistemoló ciente, a loucura, tudo era tão acessível que as explicações tornavam-se
gico permaneça total. obesas. Mas a verdade? Ao retirarmos esta facilidade do corte epistemo
Um único exemplo será suficiente para mostrar até onde pode levar lógico, nós que estudamos as ciências percebemos que a maior parte de
a rejeição de toda e qualquer antropologia simétrica. Quando Canguilhem nossas explicações não valia muito. A assimetria organizava todas elas e
faz a distinção entre as ideologias científicas e as verdadeiras ciências, não apenas dava um pontapé nos vencidos. Tudo muda se a disciplina do prin�
somente afirma que é impossível estudar Darwin - o sábio - e Diderot cípio de simetria nos força a conservar apenas as causas que poderiam servir
o ideólogo - nos mesmos termos, mas também que deve ser impossí tanto para o vencedor quanto para o vencido, para o sucesso e para o fra
vel colocá-los no mesmo saco (Canguilhem, 1968). "A separação entre a casso. Equilibrando com precisão a balança da simetria, a diferença tor
ideologia e a ciência deve impedir que sejam colocados em continuidade, na-se mais clara e permite compreender por que uns ganham e outros per
em urna história das ciências, alguns elementos de uma ideologia aparen dem (Latour, 19896). Aqueles que pesavam os vencedores com uma ba
temente conservados e a construção científica que destituiu a ideologia: por lança e os perdedores com outra, gritando, como Brennus, "vai victisr',
exemplo, procurar no Rêve de d'Alembert elementos precursores de A até aqui tornavam esta diferença incompreensível.
origem das espécies" (p. 45). Só é científico aquilo que rompe para sem
pre com a ideologia. Se seguirmos tal princípio, é de fato difícil seguir os
quase-objetos em seus princípios e fins. Após terem passado pelas mãos Ü PRINCÍPIO DA SIMETRIA GENERALIZADA
do epistemólogo, todas suas raízes terão sido arrancadas. Só irá sobrar o
objeto extraído de toda a rede que lhe dava sentido. Mas por que chegar O primeiro princípio de simetria oferece a incomparável vantagem
mesmo a falar de Diderot e de Spencer, por que o interesse pelo erro? Por de livrar-nos dos cortes epistemológicos, das separações a priori entre ciên
que sem ele o brilho da verdade seria insuportável! "O enlace da ideolo cias "sancionadas" e ciências "proscritas", e das divisões artificiais entre
gia e da ciência deve impedir que a história de urna ciência seja reduzida as sociologias do conhecimento, da crença e das ciências. Outrora, quan�
à platitude de um histórico, ou seja, de um quadro sem sombra de relevo" do o antropólogo retornava de algum local longínquo para descobrir, em
(p. 45). O falso é aquilo que dá valor ao verdadeiro. O que Racine fazia sua cultura, ciências que haviam sido purificadas pela epistemologia, era
para o Rei-Sol sob o belo título de historiador, Canguilhem faz por Darwin, impossível para ele estabelecer uma relação entre as etnociências e os sa
sob o rótulo, igualmente usurpado, de historiador das ciências. beres. Abstinha-se, portanto, e com razão, de estudar a si mesmo, conten-
o o
Para que a antropologia se torne simétrica, portanto, não basta que
Polo natureza Polo sujeito/sociedade
acoplemos a ela o primeiro princípio de simetria que só dá cabo das
Explicações injustiças mais óbvias da epistemologia. É preciso que a antropologia ab
assimétricas sorva aquilo que Michel Callon chama de princípio de simetria generaliza
da: o antropólogo deve estar situado no ponto médio, de onde pode acom
o
O que é verdadeiro é O que é falso é
explicado pela natureza explicado pela sociedade panhar, ao mesmo tempo, a atribuição de propriedades não humanas e de
propriedades humanas (Callon, 1986). Não lhe é permitido usar a reali
dade exterior para explicar a sociedade, nem tampouco usar os jogos de
Primeiro
poder para dar conta daquilo que molda a realidade externa. Também não
princípio de
simetria
lhe é permitido alternar entre o realismo natural e o realismo sociológico,
A natureza não explica nem o que Tanto o que é verdadeíro quanto o que ,
_ _! f:!_15.::., ::_e� o_q1::._e � V:_!d::_d:!r� _é falso são explica�osye}_a :_ociedade usando "não apenas, a natureza, "mas também" a sociedade, a fim de con
servar as duas assimetrias iniciais, ao mesmo tempo em que dissimula as
fraquezas de uma sob as fraquezas da outra (1.atour, 1989a).
A natureza e a sociedade Princípio
Este princípio exige, de fato, que o verdadeiro e o falso sejam expli de ninguém, um não-lugar. Tudo muda de figura, conforme descobrimos,
cados com os mesmos termos; mas quais são os termos escolhidos? Aque quando, ao invés de alternar sempre entre os dois polos da dimensão mo
les que as ciências da sociedade oferecem aos descendentes de Hobbes. Ao derna, apenas, nós descemos ao longo da dimensão não-moderna. O não
invés de explicar o verdadeiro através da adequação com a realidade na -lugar impensável torna-se o ponto de irrupção, na Constituição, do traba
tural, e o falso através da restrição das categorias sociais, das epistemes, lho de mediação. Longe de estar vazio, é lá que os quase-objetos, quase
ou dos interesses, este princípio tenta explicar tanto o verdadeiro quanto -sujeitos proliferam. Longe de ser impensável, torna-se o terreno de �odos
o falso usando as mesmas categorias, as mesmas epistemes e os mesmos os estudos empíricos realizados sobre as redes.
interesses. É portanto assimétrico, não mais porque divide, como o fazem Mas este lugar não seria exatamente aquele que a antropologia pre
os epistemólogos, a ideologia e a ciência, mas porque coloca a natureza parou durante um século, com tanta dificuldade, e que o etnólogo ocupa
B
Primeira Grande Divisão interna
cráticos (Le Witta, 1988), são todos terrenos férteis para investigações, por
sinal excelentes, porque a questão da natureza ainda não está presente neles.
Contudo, o grande repatriamento não pode parar aí. Ao sacrificar o
exotismo, o etnólogo perdeu aquilo que tornava suas pesquisas originais
em relação àquelas, dispersas, dos sociólogos, economistas, psicólogos ou
"Nós" historiadores. Sob os trópicos, o antropólogo não se contentava apenas em
------ Segunda Grande Divisão externa ------ estudar as margens das outras culturas. Se ele permanecia marginal por
vocação e por método, ainda assim era o próprio centro dessas culturas
Partição moderna Recuperação pré-moderna que tencionava reconstituir, seu sistema de crenças, suas técnicas, suas
g e o e e .
s e nfr aqu c id s s p ud r m os p ro va r q u e elas se s uperp õem (Br own, 1976 )
terrenos que l he permitirã o estud ar o dispo sitiv o ce tr al de to do s os c o l r a
n N a p á t i c a, p or t a nt o, as si m q ue a nat u reza entra em jogo sem est r
tivo s, a té mesm o os nosso s . E a p e rde su a ligaçã o excl u s iv a co as u l tue
l m
l ga da a u m a c ult ur a em pa r ti cu l ar , h á s empre um ter ceiro mo del o que em �
ra s - o u co m a s dimensõ es cultura s - , m as ganh a a s natur e z a s, c 0 q
i
i r a d e "p a u la . U m a das soc ieda d e s - sem pre a nos sa- defi ne o quadr
o rt i c r '' o
ensa o - aque a qu e o etnólog o ocupav a se m faz er esforço , e a u el a u t i
i l
q q
e ge ra l da n a t ur e z a e m rel açã o ao qual as o utras e sta rão situa das. É a solu
o analist a da s ciência s pesq uis av a co m tant a dificu ldad - o de m a go r a
e p çã o de L év i - S tra u s s, q ue distin g uia ent re uma socie dade ocide ntal com a cess o
se r s up erposta s. A anális e da s rede s estend e a mã o à a n t ro po lo g lh
ia e e à n a t u r ez a e a pr pri a n a t ur eza, miraculosa mente c onh ecida por nossa so
ó
Com isso, a questã o d o relativism o j á s e encontr a si m plific a da . S a o - n o mo s a p e nas u m a c ul tura entr e outras - ,m as a segunda pe rm
ciênci a, concebid a so b o pont o d e vist a do s epistemólog o s, to rn a v a o pe o t ó s s i
t e o r e t o r n o s ub -r ep t í cio do un i ve rs al i smo arrogante - con tinuamos a se r
blem a insolúve l, bast a -com o tanta s o u tra s veze - muda r a co n ce p çr ão
s abs o lu ta m e nt e dif e r entes . Nã o h á qualqu er con t radição, no entant o, ao s
da s prática s c i entífica s par a qu e a s dificuldade s artificia s d e sa ar e a m . v s s s s
i p o i h ios ãd e L é i- S t rau , entr e a s duas met ades , já que, j u ta mente, no ssaCon
Aquil o qu e a razã o complica , a s rede s expli cam . A peculiar idad e d o sç o c
l
a t
t t u ç o , a pe n a s el , p e r m i e distin guir uma s o ciedade A composta p or hu
dentai s foi a d e te r imposto , a tr a vé s d a Constitu içã o , a se par a çã o tota l do i s e
ma no s e u m a s o cie d a de A' co mpo s ta por nã o - h umanos e pa ra sempre afas
humano s e do s não-humano - Grand e Di visã o interio - te nd o a s s im
r t a a da pr i m eira A co ntr a di ç ãos ó é ap a ren te, h o je, aos olho s da ant r o po lo
s d
s
tivi
m
tir nos aspectos comuns de todos estes pontos de v ista , os r elati v istas n a
p r i v i gia d o à n atu re z ,a o q u e a s aep r a culturas; ap ena s a dim e n sã o d a
.
d a s o u t r as . m o b i l i z aç ã o ír á v a ir a r
102 J a mais fo
m o s m o e rno
d
s R el at i v i s m o 10 3
Os relativistas jamais foram convincentes quanto à igualdade das cul natureza dos epistemólogos - as coisas-em-si. Aos olhos da antropolo
turas, uma vez que consideram apenas estas últimas. E a natureza? De acordo gia comparada, estes coletivos todos se parecem, como eu já disse, por
com eles, ela é a mesma para todos, uma vez que a ciência universal a de que repartem ao mesmo tempo os futuros elementos da natureza e os fu
fine. Para escapar a esta contradição, eles precisam então limitar todos os turos elementos do mundo social. Ninguém jamais ouviu falar de um co
povos a uma simples representação do mundo fechando-os para sempre na letivo que não mobilizaria, em sua composição, o céu, a terra, os corpos,
prisão de suas sociedades (Wilson, 1970); ou, pelo contrário, reduzir todos os bens, o direito, os deuses, as almas, os ancestrais, as forças, os animais,
os resultados científicos a simples produtos de construções sociais locais e as crenças, os seres fictícios... Esta é a antiga matriz antropológica, que
contingentes, a fim de negar à ciência toda e qualquer universalidade (Bloor, jamais deixamos de lado.
1982; Bloor, 1983). Imaginar milhares de homens aprisionados em visões Mas esta matriz comum define apenas o ponto de partida da antro
deformadas do mundo desde a aurora dos tempos é tão difícil quanto ima pologia comparada. Realmente, todos os coletivos diferem bastante no que
ginar os neutrinos e os quasares, o DNA e a atração universal enquanto diz respeito a como eles repartem os seres, quanto às propriedades que eles
produtos sociais texanos, ingleses ou borgonheses. Ambas as respostas são lhes atribuem, quanto à mobilização que acreditam ser aceitável. Estas
igualmente absurdas, e é por isto que os grandes debates do relativismo nunca diferenças formam diversas pequenas divisões sem que qualquer Grande
levam a lugar nenhum. É tão impossível universalizar a natureza quanto Divisão seja visível. Entre estas pequenas divisões, existe uma que nós agora
reduzi-la à perspectiva restrita do relativismo cultural. sabemos reconhecer como tal e que distingue a versão oficial de certos
A solução surge no mesmo momento em que o artefato das culturas segmentos de certos coletivos há mais de três séculos. É nossa Constitui
se dissolve. Todas as naturezas-culturas são similares por construírem ao ção que atribui a um conjunto de entidades o papel de não-humanos, a
mesmo tempo os seres humanos, divinos e não-humanos. Nenhuma delas um outro conjunto o papel de cidadãos, e a um terceiro a função de um
vive em um mundo de signos ou de símbolos arbitrariamente impostos a Deus árbitro e impotente. Por si mesma, esta Constituição não nos separa
uma natureza exterior que apenas nós conhecemos. Nenhuma delas, e so mais dos outros, uma vez que vem acrescentar-se à longa lista dos traços
bretudo não a nossa, vive em um mundo de coisas. Todas distribuem aqui diferenciais que compõem a antropologia comparada. Poderíamos fazer
lo que receberá uma carga de símbolos e aquilo que não receberá (Claverie, disso um conjunto de fichas no grande banco de dados do Laboratório de
1990). Se existe uma coisa que todos fazemos da mesma forma é construir antropologia social do Collêge de France - sendo apenas conveniente
ao mesmo tempo nossos coletivos humanos e os não-humanos que os cer mudar seu nome para Human and Non-Human Relations Area Files.
cam. Alguns mobilizam, para construir seu coletivo, ancestrais, leões, es Em nossa distribuição das entidades de geometria variável, somos tão
trelas fixas e o sangue coagulado dos sacrifícios; para construir os nossos, diferentes dos achuar quanto estes diferem dos tapirapé ou dos arapesh.
nós mobilizamos a genética, a zoologia, a cosmologia e a hematologia. "Mas Nem mais nem menos. Entretanto, tal comparação respeitaria apenas a
estas são ciências", irão gritar os modernos, horrorizados com esta confu produção conjunta de uma natureza e de uma sociedade, apenas um dos
são, "é claro que elas escapam completamente às representações da socie aspectos dos coletivos. Satisfaria nosso espírito de justiça mas recairia, por
dade". Ora, a presença das ciências não é suficiente para romper a sime outras vias, no mesmo erro que o relativismo absoluto, uma vez que abo
tria, foi o que descobriu a antropologia comparada. Do relativismo cultu liria imediatamente as diferenças, tornando-as todas igualmente diferen
ral, passamos ao relativismo "natural". O primeiro levava a diversos ab tes. Não permitiria dar conta deste outro aspecto que busco desde o iní
surdos, o segundo irá permitir que reencontremos o senso comum. cio deste ensaio, a amplitude da mobilização, amplitude que é ao mesmo
tempo a consequência do modernismo e a causa de seu fim.
Isto porque o objetivo do princípio de simetria não é apenas o de
DIFERENÇAS DE TAMANHO estabelecer a igualdade - esta é apenas o meio de regular a balança no
ponto zero - mas também o de gravar as diferenças, ou seja, no fim das
Isto não será suficiente para resolver a questão do relativismo. Ape contas, as assimetrias, e o de compreender os meios práticos que permi
nas a confusão criada pelo afastamento da natureza se encontra por hora tem aos coletivos dominarem outros coletivos. Ainda que sejam semelhantes
eliminada. Nos encontramos agora frente a produções de naturezas-cul pela coprodução, todos os coletivos diferem pelo tamanho. No começo da
turas que irei chamar de coletivos, para deixar claro que eles são diferen pesagem, uma central nuclear, um buraco na camada de ozônio, uma rede
tes tanto da sociedade dos sociólogos- os homens-entre-si- quanto da de satélites, um aglomerado de galáxias não são mais pesados do que uma
107
106 Jamais fomos modernos Relativismo
outro princípio de composição ao transformar a relação de representação Siracusa com a ajuda de máquinas que podem ser dimensionadas, o cole
política em uma relação de proporção mecânica. Sem a geometria e a es tivo aumenta proporcionalmente, rnas a origem desta variação de escala,
tatística, o soberano deveria compor com as forças sociais que o dominam desta comensurabilidade, irá desaparecer para sempre, deixando o Olimpo
infinitamente. Mas basta que a alavanca da técnica seja acrescentada ao
das ciências como uma fonte de forças novas, sempre disponíveis, nunca
jogo da representação política para que um indivíduo possa tornar-se mais visíveis. Sim, a ciência é de fato a política executada por outros meios, os
forte que a multidão, para que ele possa atacar e defender-se. Não há nada quais só têm força porque permanecem radicalmente outros.
de espantoso no fato de Hieron ficar "estupefato pela potência da técni Ao descobrirmos o golpe de Arquimedes - ou melhor, de Plutarco
ca )'. Ele não havia pensado, até então, em compor a potência política com -, nós localizamos o ponto de entrada dos não-humanos no próprio teci
a polia composta (Latour, 1990a). do do coletivo. Não se trata de buscar como a geometria "reflete" os inte
Mas a lição de Plutarco vai mais longe. A este primeiro instante no resses de Hieron, ou como a sociedade de Siracusa "encontra-se restringida"
qual Arquimedes torna comparáveis a força (física) e a força (política) -
pelas leis da geometria. Um novo coletivo é constituído envolvendo a geo
graças à relação de proporção entre o pequeno e o grande, entre o mode metria e negando, ao mesmo tempo, que o fez. A sociedade não pode ex
lo em escala reduzida e a aplicação em tamanho real - ele acrescenta um plicar a geometria, uma vez que é uma sociedade nova, "geométrica", que
segundo, ainda mais decisivo: começa quando as muralhas de Siracusa são protegidas de Marcelo. A so
ciedade "movida pelo poder político" é um artefato obtido através da eli
"Arquimedes possuía um espírito tão elevado e profun minação das muralhas e das alavancas, das polias e dos gládios, da mesma
do e havia adquirido um tesouro tão rico de observações cien forma como o contexto social do século XVII na Inglaterra só podia ser
tíficas que não quis deixar, a respeito das invenções que lhe obtido mediante a excisão prévia da bomba de vácuo e da física então nas
deram o renome e a reputação de uma inteligência não huma cente. É somente quando retiramos os não-humanos misturados pelo cole
na, mas divina, qualquer anotação escrita; considerava a me tivo que o resíduo, ao qual chamamos de sociedade, torna-se incompreen
cânica e, em geral, todas as artes relacionadas às necessidades sível. Nem seu tamanho, nem sua rigidez, nem sua duração têm uma causa
da vida como trabalhos manuais vis, e consagrava seu zelo ape qualquer. Seria o mesmo que sustentar o Leviatã apenas com os cidadãos
nas aos objetos cuja beleza e excelência não estavam mistura nus e o contrato social, sem a bomba de vácuo, sem a espada, sem o gládio,
dos com nenhuma necessidade material, que não podem ser as faturas, os computadores, os relatórios e os palácios (Callon e Latour,
comparados aos outros, e nos quais a demonstração se equipara 1981; Strum e Latour, 1987; Latour, 1990b). O laço social não se sustenta
ao assunto, este fornecendo grandeza e beleza, e a primeira uma sem os objetos que o outro ramo da Constituição permite mobilizar ao mesmo
exatidão e uma potência sobrenaturais". tempo em que os torna eternamente sem comparação com o mundo social.
A demonstração matemática continua sendo incomparável aos tra
balhos manuais vis, à política vulgar, às simples aplicações. Arquimedes é RELATIVISMO ABSOLUTO E RELATIVISMO RELATIVISTA
divino, e a potência da matemática, sobrenatural. Qualquer resto de com
posição, de conexão, de aliança, se apaga agora. Até mesmo os escritos
Nem por isso a questão do relativismo está encerrada, mesmo se le
devem desaparecer sem deixar vestígios. O primeiro momento produziu
varmos em conta ao mesmo tempo a semelhança profunda nas naturezas
um híbrido desconhecido graças ao qual o mais fraco torna-se o mais for -culturas a velha matriz antropológica - e a diferença de tamanho -,
te através da aliança que estabelece entre as formas da política e as leis da a amplidão da mobilização destes coletivos. O tamanho, como já disse tan
proporção. O segundo momento purifica e torna impossível a compara
tas vezes, está ligado à Constituição moderna. É precisamente porque a
ção entre a política e a ciência, o império dos homens e o Olimpo (Serres,
Constituição garante que os quase-objetos serão transformados de forma
19896). O ponto de Arquimedes não deve ser procurado no primeiro mo
absoluta e irreversível, seja em objetos da natureza exterior, seja em sujei
mento, mas sim na conjunção dos dois: como fazer política através de novos tos da sociedade, que a mobilização destes quase-objetos pode tomar uma
meios que subitamente tornaram-se comensuráveis com ela, ao mesmo amplidão até então desconhecida. A antropologia simétrica deve, portan
tempo em que é negada qualquer ligação entre atividades absolutamente to, fazer jus a esta particularidade, sem acrescentar a ela nenhum corte epis
incomensuráveis? O balanço é positivo, em dois sentidos: Hieron defende
temológico, nenhuma Grande Divisão metafísica, nenhuma diferença en-
pequenas d1fer.enças, as �uais serão recolhidas, resumidas e amplificadas pela os instru mento s as cad eias qu e foram
porém mais empíricos, mostram e
grande narrativa do Ocidental radicalmente à parte de todas as culturas. ades, hi rarq ias difere nças (Callon,
usadas para criar assimetrias e iguald e u e
111
110 Jamais fomos modernos Relativísmo
A etnologia é uma destas medidas medidoras que soluciona na prática a americanizado, racionalizado, cientificizado, tecnicizado. Chega de chorar
questão do relativismo ao construir, dia após dia, uma certa comensura sobre o desencanto do mundo! Não basta o terror que já foi feito em torno
bilidade. Se a questão do relativismo for insolúvel, o relativismo relativista do pobre europeu, jogado em um cosmos frio e sem alma, girando em uma
ou, de forma mais elegante, o relacionismo, não oferece nenhuma dificul terra inerte em um mundo desprovido de sentido! J�í. não sofremos o bas
dade a priori. Se deixarmos de ser totalmente modernos, ele irá tornar-se tante diante do espetáculo do proletário mecanizado submetido ao domínio
um dos recursos essenciais para relacionar os coletivos, que tentaremos não absoluto de um capitalismo técnico, de uma burocracia kafkiana, abando
mais modernizar. Servirá de organon para a negociação planetária sobre nado em meio aos jogos de linguagem, perdido no concreto e na fórmica!
os universais relativos que estamos construindo aos poucos. J�í. lamentamos por demais o motorista de ônibus que só levanta de seu banco
para jogar-se no sofá em frente à televisão onde ele é manipulado por forças
mediáticas e pela sociedade de consumo! Como adoramos vestir a mortalha
PEQUENOS ENGANOS SOBRE O DESENCANTO DO MUNDO do absurdo e como gozamos mais ainda com o absurdo do pós-moderno!
Entretanto, jamais abandonamos a velha matriz antropológica. Jamais
Realmente somos diferentes dos outros, mas estas diferenças não de deixamos de construir nossos coletivos com materiais misturados aos pobres
vem ser colocadas no lugar onde a questão - agora encerrada - do re humanos e aos humildes não-humanos. Como poderíamos desencantar o
lativismo acreditava ser correto. Enquanto coletivos, somos todos irmãos. mundo, se nossos laboratórios e fábricas criam a cada dia centenas de híbri
Exceto pela dimensão, dimensão que é ela mesma causada por pequenas dos, ainda mais estranhos que os anteriores, para povoá-lo? A bomba de
diferenças na repartição das entidades, podemos perceber um gradiente vácuo de Boyle por acaso é menos estranha do que a casa dos espíritos arapesh
contínuo entre os pré- e os não-modernos. Infelizmente, a dificuldade exis (Tuzin, 1980)? Ela também não constrói a Inglaterra do século XVII? Em
tente no relativismo não resulta apenas da supressão da natureza. Resulta que sentido seríamos vítimas do reducionismo, se cada cientista multiplica
também de uma crença relacionada a esta supressão, a de que o mundo centenas de vezes as novas entidades quando tenta eliminar algumas delas?
moderno está realmente desencantado. Não é apenas por arrogância que Como dizer que somos racionais, se continuamos não enxergando mais que
os ocidentais acreditam ser diferentes dos outros, mas também por deses um palmo à frente de nosso nariz? Como dizer que somos materialistas
pero e autopunição. Gostam de sentir medo de seu próprio destino. Sua voz quando cada uma das matérias que inventamos possui novas propriedades
treme quando opõem os bárbaros aos gregos, o Centro à Periferia, ao cele que nenhuma outra matéria nos permite unificar? Como poderíamos ser
brar a Morte de Deus ou a do Homem, a Krisis da Europa, o imperialismo, vítimas de um sistema técnico total, quando as máquinas são constituídas
a anomia, ou o fim das civilizações que sabemos, hoje, serem mortais. Por por sujeitos e não chegam nunca a fechar-se em algum sistema razoavelmente
que sentimos tanto prazer em nos percebermos tão diferentes dos outros e estável? Como poderíamos ser congelados pelo sopro frio das ciências, quan
também de nosso passado? Que psicólogo terá sutileza suficiente para ex do estas são quentes e frágeis, humanas e controvertidas, cheias de bambus
plicar este deleite moroso por estarmos em crise perpétua e pelo fim da pensantes':- e de sujeitos que estão, por sua vez, povoados por coisas?
história? Por que adoramos transformar em dramas gigantescos as peque O erro dos modernos quanto a si mesmos é muito fácil de compreen
nas diferenças de tamanho dos coletivos? der, uma vez que tenhamos restabelecido a simetria e que levemos em con
Para superar completamente o pathos moderno que não nos deixa reco ta ao mesmo tempo o trabalho de purificação e o trabalho de tradução. Eles
nhecer a fraternidade dos coletivos, o que nos permitiria reordená-los livre confundiram produtos com processos. Acreditaram que a produção da ra
mente, é preciso que a antropologia comparada meça exatamente estes efeitos cionalização burocrática supunha burocratas racionais; que a produção de
de tamanho. Contudo, a Constituição moderna nos obriga a confundir os uma ciência universal dependia de sábios universalistas; que a produção de
efeitos de dimensionamento de nossos coletivos com suas causas, as quais técnicas eficazes acarretava a eficácia dos engenheiros; que a produção de
ela não poderia compreender sem antes tornar-se inútil. Justamente espan abstração era, em si, abstrata, corno a de formalismo deveria ser formal. O
tados com o tamanho dos efeitos, os modernos acreditam que é necessário que equivale a dizer que uma refinaria produz petróleo de forma refinada,
encontrar causas imensas para ele. E como as únicas causas que a Constitui ou que um laticínio produz manteiga de forma leiteira! As palavras ciência,
ção reconhece são, realmente, miraculosas, uma vez que se encontram inver
tidas, é necessário que eles acreditem ser diferentes do resto da humanida
'' Cf. Pascal, "L'homme est un roseau pensant", um ser frágil, porém capaz de
de. Em suas mãos o ocidental se torna um mutante, desenraizado, aculturado, dominar a matéria através de seu pensamento. (N. do T.)
Relativismo 117
1 16 Jamais fomos modernos
que eles são toda a humanidade, mas estas são crenças respe
itáveis que a território bem delimitado; é quase impossível distinguir as conversas dos
antropologia comparada não precisa mais compartilhar.
diretores daquelas dos empregados; quanto aos vendedores, estão sempre
devolvendo o troco e preenchendo formulários. Seriam os macroagentes
Ü LEVIATÃ É UM NOVELO DE REDES
compostos por microagentes (Garfinkel, 1967)? Seria a IBM composta por
uma série de interações locais? E a Brigada Vermelha por um agregado de
Os modernos não só exageraram a universalidade conversas de cantina? O ministério por uma pilha de papéis? O mercado
de suas ciências mundial por uma pletora de escambos locais e de acordos?
- ao arrancar a fina rede de práticas, instrumentos e
instituições que co Encontramos aqui o mesmo problema que já havíamos encontrado
bria o caminho que levava das contingências às neces
sidades- como tam antes, com os trens, os telefones ou as constantes universais. Como conec
bém, simetricamente, exageraram o tamanho e a duraç
ão de suas socie tar-se sem, contudo, tornar-se local ou global? Os sociólogos e os econo
dades. Acreditaram que eram revolucionários, porq
ue inventaram a uni mistas modernos não sabem como colocar esta pergunta. Ou permanecem
versalidade das ciências, arrancadas para sempre dos
particularismos lo no "micro" e nos contextos interpessoais, ou então passam subitamente
cais, e também porque inventaram organizações
gigantescas e racionais para um nível "macro" e só lidam, segundo eles, com racionalidades des
que rompiam com todas as lealdades locais do passa
do. E ao fazerem isto, contextualizadas e despersonalizadas. O mito e a burocracia sem alma e
estragaram duplamente a originalidade daquilo que
estavam inventando: sem agente, assim como o do mercado puro e perfeito, apresenta a ima
uma nova topologia que permitia atingir quase todos
os lugares sem que, gem simérrica àquela do mito das leis cienríficas universais. Ao i_nvés da
para tal, fosse necessário ocupar mais do que estreitas
linhas de força. Glo caminhada contínua da pesquisa, os modernos impuseram uma diferença
rificaram-se por virtudes que não podem possuir -
a racionalização - ontológica tão radical quanto a que separava, no século XVI, o mundo
mas também se flagelaram por pecados que são incap
azes de cometer _: sublunar - vítima da corrupção ou da incerteza - e os mundos supra
esta mesma racionalização. Em ambos os casos,
tomaram o tamanho,ou lunares, que não conheciam quálquer alteração ou dúvida. (Por sinal, são
a conexão como se fossem diferenças de nível. Acred
itaram que realmente estes os mesmos físicos que se gabaram, com Galileu, desta distinção on
havia pessoas, pensamentos, situações locais e organ
izações, leis, regras tológica, mas que a restabeleceram imediatamente depois de forma a pro
globais. Acreditaram que havia contextos e outras
situações que gozavam teger as leis da física de toda e qualquer corrupção social...)
da misteriosa propriedade de serem "descontextualiz
ados" ou i'deslocali Desta forma existe um fio de Ariadne que nos permitiria passar con
zados". E, de fato, se a rede intermediária form
ada pelos quase-objetos tinuamente do lo�al ao global, do humano ao não-humano. É o da rede
não for reconstruída, torna-se difícil compreender
tanto a sociedade quan de prátícas e de instrumentos, de documentos e traduções. Uma organi
to a verdade científica, ambas pelas mesmas razõe
s. Os intermediários que zação, um mercado, uma instituição não são objetos supralunares feitos
foram apagados sustentavam tudo, enquanto que
os extremos, uma vez de uma matéria diferente daquela de nossas relações locais sublunares. A
isolados, não são mais nada.
única diferença vem do fato de que os primeiros são compostos por hí
. S�m os inúi:rieros objetos que asseguram tanto sua duração quanto bridos e, para sua descrição, precisam mobilizar um grande número de
s�a :1g1dez, os ob1e os tradicionais da teoria social-
. : império, classes, pro objetos. O capitalismo de Fernand Braudel '?u de Marx não é o capita
fissoes, orgamzaç oes, Estados - tornam-se misteriosos (Law,
1986a; lismo total dos marxistas (Braudel, 1979). E um labirinto de redes um
19866; Law e Fyfe, 1988). Qual é, por exemplo,
o tamanho da IBM, ou pouco longas que envolvem, de forma incompleta, um mundo a part�r de
da Brigada _Yermelha, ou do ministério francês da
Educação, ou do mer pontos que se transformam em centros de cálculo ou de lucr�. Segmndo
cado �und1al_? Certamente são todos atores de grand .
_ e porte, uma vez que esta rede de perto jamais seremos capazes de ultrapassar o !tmes miste
mobilizam milhares ou mesmo milhões de agen
tes. Sua amplitude deve, rioso que deveria separar o local do global. A organização de uma gran
portanto resultar de causas que ultrapassam de form
: a absoluta os peque de empresa americana, tal como ela é descrita por Alfred Chandler, não
nos coletivos do passado. Entretanto, se passearmo
s pela IBM, se seguir é a Organização de Kafka (Chandler, 1989; Cbandler, 1990). É um ema
mos a cadeia de comando da Brigada Vermelha,
se pesquisarmos nos cor ranhado de redes materializadas em faturas e organogramas, em proce
redores do ministério da Educação, se estudarmo
s a compra e venda de dimentos locais e acordos particulares, os quais permitem, na verdade, que
um sabonete, não teremos nunca saído de um plano
local. Estamos sem esta rede seja estendida sobre um continente, contanto que não cubra este
pre interagindo com quatro ou cinco pessoas; o
porteiro possui sempre um continente. Podemos seguir o crescimento de uma organização do início
118
Jamais fomos modernos Relativismo 119
ao fim, sem nunca descobrirmos a racionalidade "desc
ontextualizada" Figura 13
O próprio tamanho de um estado totalitário só pode
ser obtido atravé�
da construção de uma rede de estatísticas e de cálc
ulos, de organismos e
de pesq uisas, que não obedece de modo algum à
topografia fantástica de
um Estado total (Desrosiêres, 1984
Global
). O império tecnocientífico de lorde
Kelvin, descrito por Norton Wise (Smith e Wise,
1989), o u o mercado da
eletricidade, descrito por Tom Hughes (Hughes,
19836), nunca nos levam trabalho de mediação
para fora das particularidades dos laboratórios, das
salas de reuniões on
das centrais de controle. Contudo, estas "redes de
poder" e estas "linhas
de força" de fato se estendem em escala global. Os merc
ados descritos pela Local
economia de convenções são de fato regu lados e
globais, sem que nenhu
ma das causas desta regulação e desta agregação seja,
em si, global ou to
tal. Os agregados são feitos da mesma madeira q
u e eles agregam (Thé
venot, 1989; 1990). Nenh uma mão, seja visível
ou invisível, surge subi Este esquartejamento permite que a tragédia do homem moderno se
tamente p ra colocar em ordem os átomos individuai
� s, dispersos e caóti desenvolva de forma absoluta e irremediavelmente diferente de todas as
cos. Os �ois extre�os, local_ lobal, são bem meno
�� s interessantes do que outras humanidades e de todas as outras naturalidades. Mas uma tragé
os agenc1amentos mtermedianos que aqui chamamos
de redes. dia deste tipo não é inevitável, se lembrarmos q ue estes quatro termos são
representações sem relação direta com os coletivos e as redes que lhes dão
sentido. No meio, onde supostamente nada acontece, quase t udo está pre
sente. E nas extremidades, onde reside, segundo os modernos, a origem
0 GOSTO DAS MARGENS
120
Jamais fomos modernos
1
Relativismo 121
., J;
humano, os particularismos locais, a interpretação, as margens e as perife àquilo que é essencial: somos completamente diferentes dos outros e rom
rias. Missão admirável, mas que seria ainda mais admirável caso todos estes pemos para sempre com nosso passado. Mas as ciências e as técnicas, as
sem
cálices sagrados estivessem realmente ameaçados. Mas de onde vem esta organizações e as burocracias são a própria prova desta catástrofe
podem os perceb er me
ameaça? Certamente não vem dos coletivos, incapazes de deixar suas frá precedentes e é justamente através delas que nós
lhor e de forma mais direta a permanência da velha matriz antropo lógica.
geis e estreitas redes povoadas por almas e objetos. Certamente não das
basta
ciências, cuja universalidade relativa deve ser paga, dia após dia, através de É verdade que a inovação das redes ampliadas é importante, mas não
ramificações e calibragem, instrumentos e alinhamentos. Certamente não para construir toda uma história.
das sociedades, cujo porte só varia quando os seres materiais de ontologias
variáveis são multiplicados. De onde ela vem, então? Ora, em parte dos
IDOS
próprios antimodernos e de seus cúmplices, os modernos, que assustam uns NÃO ACRESCENTAR NOVOS CRIMES AOS QUE JÁ FORAM COMET
aos outros e acrescentam causas gigantescas aos efeitos de tamanho. "Vocês
a
desencantam o mundo, mas eu conservarei os direitos do espírito". "Ah, É contudo muito difícil acalmar o delírio moderno, pois este surge
co
você quer conservar o espírito? Então nós iremos materializá-lo". "Redu partir de um sentimento que, em si, é respeitável: a consciência de ter
íveis contra os outros mundo s naturai s e cultura is,
cionistas!". "Espiritualistas!". Quanto mais os antirreducionistas, os român metido crimes incorrig
ticos, os espiritualistas desejam salvar os sujeitos, mais os reducionistas, os e também contra si mesmo , crimes cujo tamanh o e os motivo s parecem
co
cientistas, os materialistas acreditam possuir os objetos. Quanto mais os romper com tudo. Corno trazer os modernos de volta à humanidade
mum e à inumanidade comum sem, com isto, absolvê -los depress a demais
segundos se vangloriam, mais os outros ficam amedrontados; quanto mais
acre
eles ficam assustados, mais os outros realmente acreditam ser terríveis. dos crimes dos quais eles, com razão, querem ser castigados? Como
crimes são hediond os mas que ainda as
A defesa da marginalidade supõe a existência de um centro totalitá ditar, de forma justa, que nossos
s são grande s mas que também elas são
rio. Mas se este centro e sua totalidade são ilusões, o elogio das margens é sim são comuns; que nossas virtude
bastante ridículo. É muito louvável querer defender as reivindicações do muito comuns?
corpo que sofre e do calor humano contra a fria universalidade das leis Quanto a nossos crimes, assim como quanto a nosso acesso à natu
efei
científicas. Mas se esta universalidade advém de diversos lugares nos quais reza, é preciso não exagerar suas causas enquanto moderamos seus
si, causa de crimes ainda maiore s.
sofrem corpos que são feitos de carne e calor, esta defesa não se torna gro tos, uma vez que este exagero seria, em
crítica, benefic ia o totalita rismo.
tesca? Proteger o homem da dominação das máquinas e dos tecnocratas é Toda e qualquer globalização, ainda que
de
uma tarefa digna de elogios, mas se as máquinas estão cercadas por ho Não devemos acrescentar a dominação total à dominaªção real. Não
, 1984, 2 parte). Ao impe
mens que as saúdam, tal proteção é absurda (Ellul, 1977). Demonstrar que vemos acrescentar a força à potência (Latour
smo,
a força do espírito transcende as leis da matéria mecânica é uma tarefa rialismo real, não devemos permitir o imperialismo total. Ao capitali
a (Deleuz e e Guattar i,
admirável, mas tal programa é uma imbecilidade caso a matéria não seja não devemos acrescentar a desterritoralização absolut
r à verdad e científi ca
material, nem as máquinas mecânicas. É um belo gesto querer, em um grito 1972). Da mesma forma como não devemos permiti
a
desesperado, salvar o Ser justamente quando a mentalidade técnica pare e à eficácia técnica, ainda por cima, a transcendência, também total, e
quanto para o
ce dominar tudo, porque "onde há perigo também cresce o que salva". Mas racionalidade - também absoluta. Tanto para os crimes
com
é bastante perverso querer tirar proveito arrogantemente de uma crise que domínio, tanto para os capitalismos quanto para as ciências, devemos
efeitos (Arendt ,
ainda não começou! preender as coisas banais, as pequenas causas e seus grandes
Se procurarmos a origem dos mitos modernos, quase sempre iremos 1963; Meyer, 1990).
descobrir que esta origem está relacionada com aqueles que tentam blo É claro que a diabolização nos é mais satisfatória, já que, mesmo no
e
quear o modernismo com a barreira intransponível do espírito, das emo mal, continuamos a sermos excepcionais, separados de todos os outros
de nosso próprio passado, modernos para pior, ao menos, após termos
ções, do sujeito ou da margem. Ao tentar oferecer um suplemento espiri
so
tual ao mundo moderno, acabam retirando sua alma, a que ele tem, a que acreditado que o éramos para melhor. Mas a totalização toma parte
im
ele tinha, aquela que ele não poderia nunca perder. Esta subtração e acrés bretudo, por vias tortas, naquilo que ela pretende abolir. Nos torna
Não
cimo são as duas operações que permitem aos modernos e aos antimodernos potentes diante do inimigo ao qual ela atribui propriedades fantásticas.
total e homog êneo. Não é possível recomb inar
de ameaçarem-se mutuamente, ao mesmo tempo em que concordam quanto é possível julgar um sistema
123
122 Jamais fomos modernos Relativismo
uma natureza transcendental e homogênea. Ninguém consegue redistribuir cemos depois da guerra, e antes de nós houve os campos negros e depois
um sistema técnico totalmente sistemático. Ninguém consegue reagenciar os campos vermelhos, sob nós a fome, sobre n�ós o apocalipse nuclear e, à
fa
uma sociedade kafkaniana. Jamais alguém será capaz de redistribuir um nossa frente, a destruição global do planeta. E de fato difícil negar os
sem hesitar , nas virtu
capitalista "desterritorializador" e completamente esquizofrênico. Não é tores de escala, mas é ainda mais difícil acreditar,
ou econô
possível argumentar sobre um Ocidente radicalmente separado das outras des incomparáveis das revoluções políticas, médicas, científicas
con�ec emos apenas a
naturezas-culturas. Assim como não é possível avaliar culturas aprisiona micas. E no entanto nascemos no meio das ciências,
sar isto? - as técni
das para sempre em representações arbitrárias, completas e coerentes. paz e a prosperidade, e adoramos - devemos confes
stas das geraçõ es
Ninguém salvará um mundo que tenha esquecido completamente do Ser. cas e os objetos de consumo que os filósofos e os morali
técnica s não são
Nenhuma alma poderá reordenar um passado do qual estamos para sem precedentes nos aconselhavam a abominar. Para nós, as
sim coisas
pre separados por cortes epistemológicos radicais. novas e nem modernas no sentido mais banal da palavra, mas
er outra,
Todos estes suplementos de totalidade são atribuídos, por seus crí que d;sde sempre fazem parte de nosso mundo. Mais que qualqu
Isto porque
ticos, a seres que pediam bem menos. Vamos tomar como exemplo um nossa geração as digeriu, integrou, ou mesmo humanizou.
nos peri
empresário, procurando hesitantemente algumas peças, um concorrente somos os primeiros a não acreditar mais nem nas virtudes nem
seus vícios
qualquer tremendo de febre, um pobre cientista fazendo experiências em gos das ciências e das técnicas; somos os primeiros a partilhar
seja mais
seu laboratório, um humilde engenheiro agenciando aqui e ali algumas e virtudes sem neles ver o céu ou o inferno, assim como talvez nos
homem
relações de forças favoráveis, um político gago e amedrontado, solte os fácil pesquisar suas causas sem ter que _apelar para o fardo do
ade do capital ismo, para o destino europe u, para a
críticos em cima deles e o que teremos em retorno? O capitalismo, o im branco, para a fatalid
mais fácil,
perialismo, a ciência, a técnica, a dominação, todos igualmente absolu história do Ser ou da racionalidade universal. Talvez nos seja
em nossa própri a estranh eza. Não somos exóti
tos, sistemáticos, totalitários. Os primeiros tremiam. Os segundos não hoje, abandonar a crença
que, conseq uentem ente, també m faz com que os
tremem mais. Os primeiros podiam ser derrotados. Os segundos não o cos, mas sim comuns. O
s. São como nós, jamais deixar am de ser nos
podem mais. Os primeiros ainda estavam bem próximos do humilde tra outros deixem de ser exótico
radi
balho das mediações frágeis e mutáveis. Os segundos, purificados, tornam sos irmãos. Não devemos acrescentar o crime de nos acreditarmos
-se todos igualmente formidáveis. calmente diferentes a todos os outros que já comete mos.
O que fazer, então, com estas superfícies lisas e preenchidas, com
estas totalidades absolutas? Bem, virar todas elas pelo avesso, subvertê
-las, revolucioná-las. Que belo paradoxo! Por seu espírito crítico, os mo TRANSCENDÊNCIAS ABUNDANTES
dernos inventaram ao mesmo tempo o sistema total, a revolução total para
acabar com ele, e a impossibilidade igualmente total de realizar esta re Se não somos mais inteiramente modernos, mas nem por isso somos
Como
volução, impossibilidade que os desespera absolutamente! Não é esta a pré-modernos, em que iremos apoiar a· comparação dos coletivos?
oficial o trabalh o
causa de muitos dos crimes de que nos acusamos? Ao levar em conta a sabemos agora, é preciso acrescentar à Constituição
às cultura s descri
Constituição ao invés do trabalho de tradução, os críticos imaginaram que oficioso da mediação. A comparação da Constituição
smo
estávamos realmente incapacitados para compromissos, para experimen tas pela antiga antropologia assimétrica nos levava apenas ao relativi
compa ramos
tar, para misturar e para triar. A partir das frágeis redes heterogêneas que e a uma modernização impossível. Por outro lado, quando
da an
formam os coletivos desde sempre, eles elaboraram totalidades homogê o trabalho de tradução dos coletivos, possibilitamos a existência
problem as
neas que não poderíamos tocar sem que, com isso, as revolucionássemos tropologia simétrica e, ao mesmo tempo, dissolvemos os falsos
dos recurso s
totalmente. E como esta subversão era impossível, mas eles tentaram fazê do relativismo absoluto. Mas ficamos também desprovidos
o, sem falar
-la assim mesmo, foram passando de um crime a outro. Como este Noli desenvolvidos pelos modernos: o social, a natureza, o discurs
agora que
me tangere dos totalizadores ainda seria capaz de passar como uma pro do Deus suprimido. Esta é a última dificuldade do relativismo:
os coleti
va de moralidade? A crença em uma modernidade radical e total levaria, a comparação se tornou possível, em que espaço comum todos
lhados?
portanto, à imoralidade? vos, produtores de naturezas e de sociedades, se encontram mergu
. Talvez fosse menos injusto falarmos de um efeito de generalização, Estariam eles na natureza? Claro que não, pois esta natureza exte
produção
amda que só alguns poucos de nós sejam capazes de senti-lo agora. Nas- rior, homogêne�, transcendente, é o efeito relativo e tardio da
125
124 Jamais fomos modernos Relativismo
ocaram contra os modernos devído
coletiva . Estari am na sociedade? Ta mbém não, uma vez q ue esta é a penas As outr,as culturas sempre se ch as •1ama1s • cotoca-
o artefa to simé trico da natureza , aqu ilo q ue sob ra quando arrancamos
ao as pecto d·1fusO de
suas forças ativas ou e"spi. rituais . El ,.
mc pu . O p
ou fo rças mec
tntos e os
todos os objetos e cri amos a tra nscendê ncia misteriosa do L eviatã. Esta em jogo matérias p uras
a as ras s es
doxo surpreendente, o pensamento do Ser tornou-se o próprio resíduo , uma orças puramente mate
na1s. _A_ss111: como nos , �stas
mensão simbólica" a f aces�o a na -
vez que toda ciência , toda técnica , toda sociedade, toda história , toda lín também são transcenden
tes, ativas, agitadas e esp1ntua 1s. O _
D primido. No
g ua , toda teo logia foram entregues à meta física, ao puro expansionis mo ~ i·ato do q ue à soci eda
eus su
turez a nao e• mai• s 1·med
de ou ao
d d s quais •
s entre três enti dades , c , �
lu gar do jogo sutil dos mode rno
uma
do ente. Natura lização , soci alizaçã o, di�cursivizaçã o, ontol ogização, to
a a
umca pro:
e i manente, obtemos uma
das estas "-izações " são , ela s também, impossívei s. Nenhuma delas for e ra ao mesmo tempo transcendente p f aze �ace a
o polêmico inventa �
liferação de transcendências. Term
ara
ma o fundo comu m sobre o q ual sã o ap oi ados os co letivos , tornados en
do
discurso , do discurso a D eus, de De us ao Ser. Estas instânci as s ó ti nham caso não h aja mai s oposição . . _
ência sem opos�o. A en�nc1aça� ,
uma função constitucional enquanto fossem disti ntas. Nenhuma delas pode Chamo de delegação esta tran scend i
mensage iro permite cont
cobri r, preencher, subsumir as outras , nenh uma delas pode servir para des o de mensa gem ou de
ou a deleg açã o ou O envi ::1 �
ab andona �os
sej a, exi sti r. Quando
o und o mo
crever o trabalho de mediação ou de tradução. nua r e m pre sença , ou n
,
bre alguém ou sobre a lguma co1S �
a o reca 1mo s
Onde estamos , então? Em que i remos recai r? Enqua nto nos colocar de rno , não reca ímos so
p ces , b e movimento ,. uma
mos est a perg u nta , é certo q u e estaremos no mund o moder no, obcecados sobre uma essência, mas si m sobre
um ro so so r um
a tem �os J ogo
o senti�o que es�a :alavr
com a construção de uma imanênci a ( immanere: residir em) ou na descons passagem, literalmente , um p�ss�e , � a- co�tmua por
�
trução de alguma outra . Permanecemos ainda , p ara usar um termo do voca i e x en c1a contmua e arriscad
de b ola. P e 1st
ência; p� rti mos da co_locaçao em pre
art mos d uma
bulári o antigo, na meta física . Ora , ao percorrer estas redes,' n ão encontra que é arriscada - e não de uma e:s s1, da passa ge m e
mos nada que sej a pa rticul armente h omo gêneo. Permanecemos, antes, em sença e não da perma
nência . Par timos do vmculum em ,
p p ti pe . � ueles �eres s� 1dos
uma i nfr afísica . Nós somos imanentes, entã o, tex tos entre outros textos, da rel ação , c it como ont o de ar da a nas a
d1scurs1�a. N� o p� rnm
a e and o
tempo coletiva , . real e
os
sociedade entre outras socieda des, entes entre os entes ? desta rel ação ao mesmo
m , mais tardia a m . O
tário , nem da lmgua g� .
da
Também n ão, uma vez que, se ao i nvés de ligarmos os pobres fenô dos homens , este ret arda d ,
menos às a marras sóli das da natureza e da sociedade, deixarmos que os O m undo do se r são
um uruco � mesmo mun o o
mundo dos sentidos e
ção , do passe . Dire1:1os, sobre �ua,�-
mediadores produz am as naturezas e as sociedades, teremos i nvertido o da tradução , da . substi tuição, da delega ,
sentido das transcendências m oder nizadoras. Naturezas e sociedades trans ~ de uma essência , que ela é "desprovida de sentido
· ao
quer outra defm1ç r -
nç , para durar. To� a
ara ma nter-se em prese a
du a
formam-se nos produtos relativos da história . Portanto , não recaímos ape des provida de mei os p iadores.
ia dever á r p g p r
ção toda dureza, toda permanênc
seus med
nas na i manência , uma vez que as redes nã o estão mergulhadas em nenhum
se a a o
128
Jamais fomos modernos Redistribuição 129
re maior. T ��bém
das sociedades quando os próprios mo dernizadores causam a proliferação íntimo e pro fundo, que contin ua ho je n uma escala semp
usando a for ma militante
dos híbridos graças à mesma Constituição que nega sua existência? Durante não precisamos lutar contra a modernização -
nos -, uma vez q �e,
um longo tempo esta contradição foi mascarada pelo próprio crescimento dos antimodernos ou a d ecepcionada dos pós-moder
ição, a qual reforçar�a
dos modernos. Revoluções constantes no Estado, revoluções constantes nas neste caso, estaríamos apenas atacando a Constitu
re, lhe fornece e�erg �a.
ciências, revoluções constantes nas técnicas iriam terminar absorvendo, pu mos ainda mais ao ignorar aquilo que, desde semp
r a mo dermz�çao
rificando e civilizando estes híbridos, através de sua colo caçã o na so cieda Será que este diagnóstico possibilita uma solução pa �
o do livro, qu e a C�ns
de ou na natureza. Mas a falência d upla da q ual parti, a do so cialismo - impossível? Caso seja verdade, como eu disse ao long
e se recu�a a p.e nsa-los
pátio e a do naturalismo - jardim! -, tornou o trabalho de p urificação tituição permita a proliferação dos híbridos porqu A
se a ex1stenc1a destes
mais improvável e a contradição mais visível. Não há mais revoluções em como tais, ela só continuaria eficaz enquanto negas
as partes - o trabalho
estoq ue para continuar a fuga para frente. Os híbridos são tão nu merosos híbridos. Ora, se a contradição fecunda entre as du
que ninguém mais entende como absorvê-los na antiga terra prometida da oficial de p urificação e o trabalho
oficioso de mediação - tornar-sedar_a
ficaz? A modermzaçao
modernidade. De onde a súbita h esitação dos pós-modernos. mente visível, a Constituição não deixaria de ser e
s, t na m s a ser , pré-modernos?
A modernização foi impiedosa para os pré�modernos, mas o q ue dizer não se t ornaria impossível? Seremo ou or re o
além de romper com o passado, ela rompe agora com o fut uro. Após ter
aguentado as chicotadas da realidade moderna, os povos pobres devem agora
aguentar a hiper-realidade pós-moderna. Nada mais tem valor, tudo é refle EXAMES DE ACEITAÇÃO
xo, sim ulacro, são todos símbolos fl utuantes - e esta .fraqueza, segundo
separar as. diver:as
eles, irá quem sabe salvar-nos da invasão das técnicas, das ciências, das razões. Para resp onder a estas perguntas, devemos antes
ma a co nst rutr o nao
Será preciso destruir tudo para que seja possível introduzir mudanças estru posições q ue esbocei ao longo deste ensaio , de f?r
iremo gu�r�a� do,s mo
s
turais? O mundo vazio no qual evoluem os pós-mode rnos é um mundo esva -moderno com o que elas têm de melhor. O que
ziado por eles, e por eles apenas, porque levaram os modernos ao pé da letra. Constttutçao, a q u�l
dernos? Tudo, exceto a confiança exclusiva em sua
eza vem de ter em f:1-
O pós-modernismo é um sintoma da contradição do modernismo, mas não se rá preciso acrescentar algumas emendas. Sua grand
rado a produçao
saberia diagnosticar este último, uma vez que compartilha a mesma Consti to proliferar os híbridos, expandido um tipo dnede, acele
t uição - as ciências e as técnicas são extra-h umanas - mas não comparti dos vestígios, m ultiplicado os delegados,
produzido umversa1s rela:1vos at�a
pes�rnsa, . sua movaç:o,
lha mais aquilo que lhe dava força e grandeza - a proliferação dos quase vés de aproximações su cessivas. Sua audácia, sua
ampla de �ua açao,
-objetos e a multiplicação dos intermediários entre h umanos e não-humanos. sua bricolagem, sua sandice juvenil, a escala sempre mais .
so ciedade, a liberd ade
Não é difícil, contudo , formu lar o diagnóstico , agora que somos obri a criação de objetos estabilizados independentes da
manter. Por outro
gados a considerar de forma simétrica o trabalho de purificação e o de media de uma sociedade livre dos objetos, é isso que queremos
va) que �le� têm
ção. Mesmo durante os piores momentos do imperium ocidental, jamais se lado , não podemos conservar a ilusão (negativa ou positi
: ateus, matenalistas,
separou claramente as leis da natureza das convenções sociais. Tratava-se sobre si mesmos e que desejam generalizar para todos
ais, críticos, r�
sempre de construir coletivos mistu rando, em uma escala sempre maio r, um espir itualistas, teístas, racionais, eficazes, objetivos, univers
o s, separados de seu passado, cuia
certo tipo de não-humanos e um certo tipo de h umanos, o bjetos do tipo B oyle, dicalmente diferentes dos outros coletiv
nicam ent e pelo historicismo, sepa rado s �a
sujeitos como Hobbes (sem falar do Deus sup rimido). A inovaçã o das re so brevida artificial é mantida u .
des extensas é uma particularidade interessante, mas não chega a ser sufi natureza sobre a qual o sujeito o u a soci e dade imporiam formas arb1trana
esmo s.
ciente para nos separar radicalmente dos o utros ou nos cortar para sempre mente denunciadores sempre em guerra contra si m
de nosso passado . Nã o pr ecisamos co ntin uar a modernização reunindo :Êstávamos distantes dos pré-mo de rn o s d e vid o à Grande Divisão exte
nossas forças, ignorando os pós-modernos, trincando os dentes, continuando a Grand e Divisão in�er�or. Ao
rior, simples exportação, como já disse, d
tamb ém desap arece, subst1tm�a por
apesar de t udo a acreditar nas promessas duplas do naturalismo e do so acabar com esta última divisão, a o utra
estam os mais distan tes dos pre-mo
cialismo , urna vez que esta modernização jamais começou . Jamais deixou diferenças de tamanho . Agora que não
iá-l s tamb ém. Cons ervemos, so-
de ser algo além da rep resentação oficial de um outro trabalho muito mais dernos, devemos nos perguntar como t r o
,;-:ç_u 131
130 Jamais fomos modernos Redistribuição
;�&;1;:-,
Figura 14
bretudo, aquilo que eles têm de melhor, sua a·ptidão para refleti r de fo rma O que rejeitamos
exclusiva sobre a produção dos híbridos d e natureza e sociedade , de coisa O que conservamos
e signo, su a ce rteza de que· as transce ndência s abu ndam, su a ca pacidade de Separação da natureza
Redes extensas
conceber o passado e o futuro e nquanto repetição e renovamento, a multi Dos modernos
Tamanho
e da sociedade
plicação de outros tipos de n ão-humanos que não os dos modernos. Por outro Clandestinidade das práticas
Experimentação
de mediação
lado, não poderíamos manter o conjunto dos li mites que eles impõem ao Universais relativos
nde Divisão exterior
Gra
dimensionamento d os col e tivos, a loca lização por te rritóri o, o processo de Separação da nat ureza
e Den úncia crítica
acus ação expiatório, o etnocentrismo e, finalmente, a indiferenciação du objetiva e da socíedade livr
Universalidade, racionalidade
radoura entre na tu rezas e socieda des.
Mas a triagem parece impossível e mesmo contra ditória já que o di Obrigação de ligar sempre
Não-separabilidade das
mensiona mento dos coletivos depende do silêncio ma ntido em relação aos
Dos pré-modernos a ordem social e natural
coisas e dos signos
Mecanismo de acusação
quase-objetos. Como conservar o tamanho, a pesquisa, a proliferação , e a o Transcendência sem oposto
expiatório
mesmo tempo torna r explícitos os híbridos? Este é, en tretanto, o amálgama Multiplicação dos
Etnocentrismo
não-humanos
que p rocuro: manter a colocação em natu reza e a colocação em socie dad e Território
Temporalidade por
que permitem a mudança de tamanho a través da criação de uma verdade intensidade
Escala
exterior e de um sujeito de direito, sem com isso ignorar o trabalh o contínuo
Crença no modernismo
de construção conjunt a das ciências e das sociedades. Usar os pré-modernos Dos pós-modernos Tempo múltiplo
Impotência
para pensar os híbridos, mas conservando , dos modernos, o resultado final Desconstrução
Desconstrução crítica
do tra balho de purificação, ou seja , a colocação e m caixa-preta de uma nature Re(lexívídade
Reflexividade irônica
Desnaturalização
za exterior claramente distinta dos sujeitos. Seguir de f orma contínua o gra Anacronismo
dien te que leva das existências instáveis às essência s estabiliza das - e in
versame nte. Obter o trabalho de purificação, mas co mo caso pa rticular do antimodernos que m
ereça ser salvo.
traba lho de mediação. Manter todas as vantagens do dualismo dos modernos Infelizmente' n ão vejo nada nos t uilo que os modernos
s ipre na d_efensiva, a�redit ;; c::�:��e:::i ; ::f
sem seus inconvenientes- ad andestin idade dos quase-objetos; conserva r :u: s mver
;: 0 a r e ucionários, tinha m a
diziam ?e �1 11:e�mo ,
todas as vanta gens do monismo dos pré-modernos sem sofrer suas limitações o de rnos ua nt o ao
passado e à tradição. Os
mesma ,de1a ntc la q_ue os ;; � é r íduo deixado por seus
-, a restrição de tamanho devido à confusão durável entre saberes e poderes. � i oram alg al m do es
valores que de en em iama dos modernos
Os pós-mod erno$ sentiram a crise, e p ortanto também merecem o a orn preender que a o-randeza
exa me e a triagem. Impossível conservar sua iron ia, seu desespero, seu desâ inimigos, sem que chegasstm � o : seus combates na reta
r esidia , na prática, n
os va ores mversos. Mesm e o que lhe s
nimo, seu niilismo, sua autocrítica , uma vez que todas estas belas qualidades r, ocupando sempre o banquinh
guarda, n ão conseguira m inova m capa-
d ependem de uma concepção do modernismo que este jamais p raticou real e favor, não se pod
e nem mesmo d1·zer que fora
era reservad o. A s u pre ,
mente. Por outro l ado, podemos ficar com a desconstrução - que , despr o . os quais f or am sem
nesi dos modernos, d
vida agora de oposto, torna -se construtivismo e não est� mais liga da à auto zes de colocar um f.re10 no fre
ar as
no fundo, os melhores c omp � . g f v ável . Podemos con-
destruição; podemos manter sua recusa à Í1aturalização - mas como a pró d
O balanço este ex me na o c he a a ser des a or
pria natureza não é ma is natural, este refúgio não mais nos afasta das ciências nidade, conta nt o que
remos, n a Cons-
r einteg
a
já constituída s, mas a ntes nos aproxima das ciências atu ant es; p odemos servar as L uzes. sem a moder. ,.. . icas , qu ase-objetos entre ta
n-
• ~ o, os obJetos das c1encia s e das te'cn
tttm• ça
conservar seu forte gosto p ela reflexivida de - mas como esta p ropriedade
tos u os, 1• gênese nao
. se r clandestina ' mas antes acoate-
d eve mais
m
riginam
� : ���\ p asso, dos acon tecimentos quentes qu: o� o
~
é compartilhada por todos os atores, perde sua car'acterística de paródia para
tornar-se positiva ; en fim, podemos rejeitar, c om el es, a ideia de um tempo p an a a .p a a m ess cias da nature
. que os tra nsf or
este resfria mento p rogre ss1vo
m e en
traçavam . Ele é feito destes objetos, tanto quanto estes são feitos dele. Foi dos homens. Mostrei ta f ; era ção dos hí bridos, não mais
ter p oss1 b1 it a o a p rolif
do is r s, ap ós o. Urna constitui çã
multiplicando as co isas q u e ele defi niu a si mesmo. Como poderia ser en ovo terce,·ro estad
amo o
a junção entre
s d ã c m
- te ndo qualquer rel. aç
o a
ação com determinadas p otênci as apenas, transformando o resto do mundo ,
o o o
t eza c ontm . u ara ; nao ter
e construçao, - n ur
man tid a pelas c01sas,
nao - a
em meros intermediários ou si mples forças muda s. Q uando redistribuímos
a
e
a
que trans cen den te • • l-
soc1e . d ad e, a qual ' ainda . quase-ob jetos serao of'1c1a
a ação entre todos os mediad ores perdemos, é verdade, a fo rma reduzida n turez a Ou seJ a , os
mais uma rela ç - o co m a a
• ;i - e as redes de tra dução irão t •ar- r
do hom em, mas g anhamos uma outra, que devemos chamar de irreduzida.
a o n
o ta b us. '
mente 6am'd. os - O u m esm de p unfi' caçao ,
O humano está no próp r io a to de delegação, no passe, no arremess o, na
re uma contraparte ao trabalho
-se clandestm as, o cendo od er-
a té q ue os pós-m
f e
troca contínua da s f ormas. É claro que ele não é urna cois a, mas a s coisas
teme n te pens ada e cobe ta -
a qual será in
cess n Deus supri-
A qua;ta garantia ' a do
a
t ambém n ão são coisas. É claro que ele não é um a mercadoria, mas as com p leto.
nos ven ham o
bl't er á - la por . fosse estab1Tiza -
mercadoria s também não são mercad orias. É cl aro que ele nã o é u ma má assimétrico
n mo d'uarista e
1
qu e este meca udo ,
quina , mas aq ueles que já viram as máquina s sabem quão po uco maqui mido, permiti a ; m sem que houvesse, cont
r ma fu çã o e arb itrage
do, ao assegura u n
nais elas são. Claro que ele nã o pertence a este m undo , ma s também este
presença e poder. que
mundo não pertence a este mu ndo. Claro que ele não está em Deus, mas . . ça- o moderna' basta levar em conta aquilo
Pa ra esboçar a C surm mos man
antias que quere
on
qua l a relação existente entre o Deus do alto e aquele que deverí amos di d de lado e escoIher as gar
a primeira havi
deix os. Para
ça~o p.a ra os quase-objet
a o
zer de ba ixo? O huma nismo só pode manter-se dividindo-se entre todos
a
s a uma repr esenta
. , que era ela q ue tornav
1 dar
os seus enviados. A natureza humana c onsiste no c onj unto de seus dele ter. Estamos d ec1'd'd o
ceir
.
a ga rantia , l ª
a
• ir a ter
g ados e de seus representa ntes, de suas figura s e de seus mensageiros. Este tanto, precisamos. � su nm
T ise d estes qu ase-ob
jeto s. A n atureza a e
mdad e d a
impossível a contm
a na
un iversal do qual falamos, simétrico, vale m uito bem o outro, d upla rnen-
137
136 Jamais fornos modernos Redistribuição
onstitui�ão �o�er�a , uma
sociedade não são dois polos distintos , m as antes uma mesma produção de A historicida de não possuía um lugar na C
enti s cui a ex1s tenc1 a reco-
sociedades-na turezas, de cole tivos. A primeira garantia torna -se, port anto , vez que era enquadrada Pelas três únicas
dade
uma nos e a revo luçao
~
para h
a não-separabilidade dos q uase-obj etos e dos quase-su jeitos. Qualquer con nhecia. A história contingente só existia
os
o de compreender seu passa
tornava-se, para os modernos, o único mei
do
c eito , ins tituiçã o ou prática q ue a trapa lhar o desdobra mento contín uo dos
t t lmen t m ele. M
como mostrei a nte ri ormente-, ro mpen
e co as o
coletivos e sua experimentação de híbridos será tachado como p erigoso,
do o a
· , or um l d l pend e o-
tempo nao e um fluxo ho mogêneo • Se p
ass
-
de das
nefasto e imoral. O trabalho de mediação torna-se o próprio centro do duplo
a o e e
,, 1
nã d pen em le. Nã o deve ser mais poss1ve
poder na tural e soci al. As redes saem da clandestinidade. O Império do Cen ciações , por outro estas o e d de
, amen
tro está representado . O terceiro estado, q ue não era nada, torna-se tudo. usar O golpe do tempo qu
e passa definitivamente atraves do agrup
os que pertenc � e t s te
to, em um conj unto coerente, de element . ��
odo os s
Não desej amos, contudo, voltarmos a ser pré-modernos. A não-sepa
a
!39
138 Jamais fomos modernos Redistribuição
Mas se eu estou certo quanto à minha interpre tação da Constitui
mento dos mudos, o laboratório, onde apenas os cientistas, simples inter
ção moderna, se ela realmente permitiu o desenvolvimento dos coletivos
mediários, falavam em nome das coisas. O que diziam estes representan
ao proibir oficialmente aquilo que permitia na prática, como é que nós
tes? Nada além daquilo que as coisas teriam dito por si mesmas caso pu
poderemos continuar a fazê-lo, agora que tornamos sua prática visível e
dessem falar. Os descendentes de Hobbes haviam definido, longe do la
oficial? Ao oferecer estas garantias para substituir as anteriores, nós não
boratório, a República, onde os cidadãos nus, já que não podiam falar todos
tornamos impossíveis tanto esta dupla linguagem quanto o crescimento
ao mesmo tempo, escolhiam para representá-los um dentre eles, o sabera
dos coletivos? É exatamente o que desejamos fazer. É nesta desacele ração,
. nó, simples intermediário porta-voz de suas ideias.- O q� e dizia este repre-
nesta moderação, nesta regulamentação que buscamos nossa moralida
sentante? Nada além daquilo que os cidadãos tenam dito caso pudessem
de. A quarta garantia, talvez a mais importante, é a de substituir a louca
falar todos ao mesmo tempo. Mas há uma dúvida que surge de imediato
proliferação dos híbridos por uma produção regulamentada e consensual
quanto à qualidade desta dupla tradução. E se os cientistas falassem sobre
dos mesmos. Talvez seja chegada a hora de voltar a falar em democra
si mesmos ao invés de falarem das coisas? E se o soberano segmsse seus
cia, mas de uma democracia estendida às coisas em si. Não podemos cair
próprios i�teresses, ao invés de recitar o script que seus mandantes �:viam
de novo no golpe de Arquimedes.
escrito para ele? No primeiro caso, perderíamos a natureza e recainamos
Será preciso acrescentar que o Deus suprimido, nesta nova Consti
nas discussões humanas; no segundo, recairíamos no estado natural e na
tuição, foi libertado da posição indigna que faziam com que ocupasse?
guerra entre cada um dos indivíduos. Quando definimos uma separa�ão
A questão de Deus está reaberta, e os não-modernos não precisam mais
total entre as duas representações, científica e política, a dupla traduçao
tentar generalizar a metafísica improvável dos modernos, a qual os for
-traição tornava-se possível. Jamais saberemos se os cientistas traduzem
çava a crer na crença.
ou traem. Jamais saberemos se os mandatários traem ou traduzem.
Durante o período moderno, os críticos sempre se alimentaram des
tas duas dúvidas, bem como da impossibilidade de solucioná-las. O mo
dernismo, portanto, escolheu este arranjo mas desconfia �onstantemente
0 PARLAMENTO DAS COISAS
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