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PRÓLOGO
A profecia1
“Como era a profecia?”. Perguntei para Eli. “Que os príncipes falsos vinham do
meio do mar trocando rosário bento por rosário de ouro. Era o dinheiro deles
comprando as nossas casas”. Contou-me e continuou. “Meu avô dizia essa profecia de
Frei Damião, né? Príncipes falsos comprando, vendendo e trocando. Rosário de ouro é o
dinheiro e o outro são nossas humildes casas”. Era um final de tarde de vento forte, já
estávamos nos despedindo quando Eli contou a profecia de seu finado avô que viu o
futuro da Pedra do Sal.
“E uma coisa que eu observo também Raphael, quando terminar tudo, quado eles
acabarem de destruir tudo, aí a gente também não vai entrar aí não. Tu sabia disso? A
gente também não vai entrar aí não”. Falou Eli com seu jeito de quem está segura do que
afirma. “Porque a ilha do caju, eu me criei com aqueles pedaços de camurupim, que eu
te falei, meu pai pegou foi lá. Eu fui criada com a ova do camurupim. Meu pai chegava e
dizia, olha aqui meus filhos, isso aqui é pra vocês. E cada qual com seu espeto naquele
fogo, aquela tranquilidade”. Seu pai era mencionado em nossas conversas quando um
tempo que não existe mais era evocado, um tempo de fartura, de camurupim, de
refeições em família ao redor da fogueira. Lembranças de uma vida de tranquilidade, que
ela compartilhou comigo.
“Hoje lá na praia é cercado. E cada guarda tem um rifle. Se entrar morre. E no
futuro aqui vai ser assim também”. Seu finado avô havia profetizado o futuro há muito
tempo, e, agora, Eli em frente a sua casa nesse lugar esquecido que é a Pedra do Sal,
apresentava-me sua própria profecia.
A vida de tranquilidade passou a encontrar dificuldade a partir de 2008 quando os
primeiros cataventos foram instalados no lado brabo da praia da Pedra do Sal, o lado em
que o mar se agita com ondas fortes que batem nos rochedos respingando água pro céu, o
preferido do surfista que frequenta o lugar. A partir de 2013, mais cataventos chegaram e,
além do lado brabo, passaram a ocupar o lado manso, onde a canoa do pescador
descansa e onde fica o banhista mais sossegado que vêm de Parnaíba no final de semana.
Também tem cataventos na área de mata, para onde Eli vai com o marido Fábio ou o
sobrinho Wanderson pegar caju de manhã cedo.
Em sua cozinha, que ela diz ser de pobre, porque fica do lado de fora da casa, é
onde Eli prepara o licor de caju que vende na comunidade e na cidade de Parnaíba.
Quando nos despedimos, deu-me uma garrafa e instruções para beber. “Você não beba
muito de uma vez. O licor não tem álcool, mas embriaga porque é fermentado”. Agradeci
pelo licor e disse que retribuiria o presente de alguma forma. Ela disse para eu não me
preocupar com isso.
Um “fato histórico”
Foram nesses termos, em 2016, oito anos após os primeiros cataventos chegarem,
que Eli falou-me sobre a Pedra do Sal, as cercas e os guardas, os empreendimentos e os
empresários das eólicas. Parecia que os príncipes falsos profetizados pelo seu avô
finalmente haviam chegado e que não estava mais ali a vida de tranquilidade e fartura do
tempo de seu pai. Aquela mulher criada com a ova do camurupim lida com uma situação
que para seu avô era apenas uma profecia, mas para ela é o presente e anuncia-se como o
futuro.
Uma central eólica começou a ser instalada na Pedra do Sal a partir de agosto de
2008 pela Engie, uma empresa franco-belga2. Em 2014, a Omega Energia iniciou sua
própria central geradora. Quase uma década depois, entre casas e lagoas, dunas e
mangues, carnaubais e cajueiros, vários aerogeradores de 90 metros com grandes hélices3
ocupam vasta área da porção Norte de Ilha Grande de Santa Izabel, bairro não continental
do município de Parnaíba, onde está localizada a Pedra do Sal.
2 Após negociações no mercado financeiro, a empresa Tractebel tornou-se Engie, mas continua integrando o grupo
Suez.
3 Para se ter uma ideia da altura dessas turbinas de produção de energia eólica localizadas na Pedra do Sal, seus 90
metros equivalem a altura de um prédio de 29 andares.
3
INTRODUÇÃO
4 A Central Eólica Pedra do Sal, pertencente a franco-canadense Engie, possui capacidade instalada de 18 MW, 20
aerogeradores Wobben Enercon E-44O e uma linha de transmissão de 24,5Km (Sítio eletrônico da Engie). O
Complexo da Omega é formado pelas Centrais Eólicas Porto Parnaíba (30MW), Porto das Barcas (20 MW) e
Porto Salgado (20MW) somando-se trinta e cinco Unidades Geradoras de 2.000 kW, totalizando 70.000 kW de
capacidade instalada e 15.000 kW médios de garantia física de energia (21,4%), sistema elétrico interno de média
tensão (34,5kV), Linha de Transmissão em 138 kV com cerca de trinta e quatro quilômetros de extensão em
circuito simples, interligando a Subestação Elevadora ao Barramento de 138 kV da Subestação 138kV Tabuleiros
II, de propriedade da CEPISA. Cada central é dividida em duas unidades, onde cada uma delas é composta de 04 a
09 aerogeradores de 2.000kW cada (totalizando 55 aerogeradores). Os aerogeradores instalados no Complexo
Eólico são da marca Gamesa, modelo G97, com potência nominal de 2MW. O equipamento capta a energia dos
ventos a partir de uma velocidade mínima (3 m/s), gerando energia mecânica, que é convertida em energia elétrica
e logo após transferida para a rede de média tensão do parque (NETO, 2016, p. 03).
4
anos 2000 na comunidade Pedra do Sal, localizada no litoral do Piauí, tem incidido sobre
a relação dos moradores com o território que tradicionalmente ocupam5. Após a
implantação dos empreendimentos, surgiram tentativas de regulação do uso comum da
terra realizado por pescadores, extrativistas e agricultores na referida comunidade.
Meu objetivo é compreender a interação entre essa regulação, as condutas
territoriais (LITTLE, 2002) e as moralidades (WOORTMANN, 1987) dos moradores. O
objeto de análise são as “formas de regulação das condutas territoriais”, representadas
pelo cercamento e vigilância de matas e lagoas em terras percebidas pelo morador como
de uso comum (ALMEIDA, 2008). Num contexto de açambarcamento de terras, os
moradores têm acionado “formas cotidianas de resistência camponesa” (SCOTT, 2002;
2013) como o corte de cerca e a pesca em lagoa localizada na área do empreendimento
para manter o acesso as terras e o uso comum dos recursos naturais.
A observação participante e as entrevistas com os moradores da Pedra do Sal,
durante o trabalho de campo entre os anos de 2015 e 2016, produziram os dados para a
discussão desse artigo. O processo de instalação dos empreendimentos, as formas de
regulação da conduta territorial e as formas cotidianas de resistência dos moradores são
descritas e analisadas a partir dos dados do trabalho de campo.
O locus do estudo é a comunidade Pedra do Sal, localizada no município de
Parnaíba, no litoral do Piauí e distante 340 km da capital Teresina. A comunidade é
constituída por cerca de 190 famílias que vivem da pesca artesanal no mar e em lagoas,
da agricultura de subsistência, do extrativismo vegetal, da criação de gado e da venda de
frutos e alimentos na praia.
Autores da economia política agrária tem usado termos como “land rush” e “land
grabbing” para caracterizar o fenômeno de açambarcamento de terras ocupadas por
camponeses e povos tradicionais em países da África, Ásia e América Latina por
investidores internacionais a partir da crise financeira de 2008. Em 2006, os bancos já se
preocupavam com os sinais da crise financeira que em breve eclodiria (SASSEN, 2016,
5 Para os fins desse artigo, optou-se por concentrar-se na interação entre os moradores do lugar com os
empreendimentos de energia eólica. Contudo, na área estudada existem empreendimentos imobiliários turísticos
(resort de luxo) de investidores espanhóis e canadenses. Sobre a presença de empreendimentos de turismo na área,
consultar MILANO (2015).
5
100).
White et al afirmam que em 2010, o Banco Mundial fez a uma avaliação sobre
“terras disponíveis” no mundo e concluiu que
Quando mais baixa a densidade energética de uma fonte, maior é a área que ela
demanda para produzir energia. A geração de energia eólica demanda uma “grande área”,
como diz o autor. Além disso, é necessário um espaçamento entre os aerogeradores para
que não haja turbulência na infraestrutura durante a captação do fluxo de ar. Nesse
sentido, a implantação de parques eólicos demanda uma grande quantidade não só de
vento no lugar, mas também uma grande quantidade de terra disponível para a
implantação da infraestrutura de captação, geração e distribuição de energia.
fósseis para renováveis é inevitável, o que prolongará o fenômeno da corrida por terras
(land rush), com consequências para o uso da terra e para as lutas pelo acesso à terra
(SCHEIDEL; SORMAN, 2012, p. 588).
O Plano Decenal de Energia 2024 (PDE 2024), do MME, indica que a capacidade
instalada eólica brasileira chega a 24 GW em 2024. A Região Nordeste deverá ficar com
21,6 GW (90%). Naquele ano, a geração de energia de fonte eólica da região poderá
responder por 45% da sua geração total. Isso fará do Nordeste um exportador de energia
elétrica em 2024, diferente da atual situação de 10,4% de déficit. (MME, 2016, p. 08).
Esse prognóstico positivo da expansão do setor é resultado do crescimento da
geração de energia eólica nos últimos anos. A sua viabilidade no Brasil foi descoberta
através de um amplo processo de pesquisa do governo, do qual foi produto o Atlas do
Potencial Eólico Brasileiro, publicado em 2001 pelo Centro de Pesquisa de Energia
Elétrica (CEPEL) da Eletrobrás.
9 Folha de São Paulo. Subsídio do BNDES impulsionou setor de energia eólica e aérea Azul. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2016/01/1725269-subsidio-do-bndes-impulsionou-setor-de-energia-
eolica-e-aerea-azul.shtml>. Acesso em 25 set 2017.
9
10 Jornal Nacional. Nordeste puxa a produção de energia eólica no Brasil, que bate recordes. Disponível
em: <http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2017/07/nordeste-puxa-producao-de-energia-eolica-
no-brasil-que-bate-recordes.html>. Acesso em 25 set 2017.
11 Jornal Nacional. Nordeste puxa a produção de energia eólica no Brasil, que bate recordes. Disponível
em: <http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2017/07/nordeste-puxa-producao-de-energia-eolica-
no-brasil-que-bate-recordes.html>. Acesso em 25 set 2017.
10
12 Portal Brasil. Brasil é o maior gerador de energia eólica da América Latina. Disponível em:
<http://www.brasil.gov.br/infraestrutura/2017/03/brasil-e-o-maior-gerador-de-energia-eolica-da-america-latina>.
Acesso em 25 set 2017.
11
A Pedra do Sal está localizada na porção Norte da Ilha Grande de Santa Isabel,
área não continental do município de Parnaíba, um bairro do qual comunidades como
Fazendinha e Vazantinha também fazem parte. O Litoral piauiense é classificado pelo
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) como uma microrregião
pertencente a mesorregião Norte piauiense. Dentre os estados litorâneos brasileiros, o
Piauí possui o menor litoral, 66 km, ao qual pertencem os municípios de Cajueiro da
Praia, Ilha Grande do Piauí, Luís Correia e Parnaíba (IBGE, 2010).
A microrregião está inteiramente situada na Área de Proteção Ambiental do Delta
do Parnaíba. Criada no ano de 1996, a área possui 313.809 hectares e abrange os
municípios de Araióses, Água Doce, Paulino Neves e Tutóia no estado do Maranhão;
Chaval e Barroquinha no estado do Ceará; Luiz Correia, Ilha Grande, Cajueiro da Praia e
Parnaíba no estado do Piauí e, nas águas jurisdicionais dos rios Parnaíba, Timonha e
Ubatuba, além de 5 km de mar territorial (VIEIRA; LOIOLA, 2014, p. 64).
A Leste da Pedra do Sal, a uma distância aproximada de 30 km pela costa,
localiza-se o município de Luis Correia, antes chamado de Amarração. Nos rochedos a
beira mar da Pedra do Sal, está localizado o Farol, que funciona como um cartão-postal
do lugar. Ele foi inaugurado em 4 de março de 1873, é o primeiro farol do Piauí,
integrante de um plano de melhoria da iluminação costeira. Os equipamentos para o farol
chegaram em Parnaíba em 2 de maio de 1871, procedentes de Liverpool, Inglaterra
(MENDES, 1996, p. 76).
A Oeste da Pedra do Sal, na foz do Rio Parnaíba e localizada no estado do
Maranhão, está as Canárias. A construção de um farol automático naquele lugar, fez com
que em 1919 o Farol da Pedra do Sal fosse desativado. Sua lanterna foi desmontada e o
terreno, ocupado por duas casas foi vendido. Em conversas com moradores, são citadas
essas casas localizadas ao lado do farol como pertencente a uma das famílias mais
antigas do lugar, os Severo. Em 1923, atendendo à reivindicação dos pescadores da
região, o Farol foi reaceso. Em 21 de junho de 1973, foi inaugurado um novo farol na
ponta das Canárias, e o alcance do Farol da Pedra do Sal foi diminuído pela metade (5
13
este lado que os pescadores saem para o mar. O caminho pela orla do lado manso leva ao
lugar chamado de Pontal, onde não há habitações nem bares e é utilizado para pesca.
Alguns pescadores vão a pé pela orla até o Pontal e outros vão de moto ou bicicleta.
Neste lado estão instalados alguns aerogeradores da Omega Energia. O Pontal está ao
lado de foz do Rio Parnaíba e atravessando-o chega-se a cidade de Araioses no estado do
Maranhão. O lado brabo é aquele onde as ondas são agitadas e é o preferido dos
praticantes de esportes radicais como surfe e kitesurfe. Este lado da praia já sediou
campeonatos dessas modalidades de esporte. No lado brabo, está a maioria dos bares do
lugar. Eles são administrados pelos moradores. Quem caminha pela orla do lado brabo
passa pelas imediações do parque eólico da empresa Engie. Após o parque, a caminhada
leva a um braço do Rio Parnaíba que deságua no mar e do outro lado está o município
piauiense de Luis Correia.
SITUAÇÃO FUNDIÁRIA
18 Aqui é preciso apontar que esse tipo de relação entre o pai e os filhos não se dá de maneira homogênea na área
pesquisada. Existe um fluxo de pessoas que migram em busca de trabalho em outros lugares, especialmente para a
cidade de Brasília. Nesse processo de migração, os homens trabalham na construção civil como mestre de obras,
pedreiro ou pintor de paredes, e as mulheres nas casas de família como empregada doméstica ou babá. Alguns
deles retornam a Pedra do Sal, alguns conseguem estabelecer-se com a esposa e iniciar um grupo doméstico em
terreno cedido pelo pai, outros tiveram que alugar devido a diminuição do terreno do pai e a falta de espaço para
iniciar um novo terreno devido a especulação imobiliária existente no lugar que têm atraído muitos parnaibanos e
teresinenses a comprarem terrenos na Pedra do Sal.
18
Olha, uma ilha dessa é muito grande, eu num faço questão, eu num faço
não questão, dizer, vou querer esse pedaço de terra pra mim! Não quero
19
Matas Casa
Lagoas Quintal/jardim/terreiro
Igarapés Roça
Mangue Sítio
Dunas Cercado para criação de animais
Pertence a natureza Estabelecimento comercial
Regulado por costumes locais Lagoa localizada nos fundos da casa
Pertencente ao grupo doméstico
Regulado por relações de parentesco
TERRITORIALIDADE E MORALIDADE
Alguns registros do campo sobre os diferentes usos que o morador e
empreendedor fazem da cerca, levaram-me a discussão sobre as moralidades envolvidas
na relação do morador com o território. O morador utiliza-se de cercas para delimitar o
terreno – o espaço da casa, quintal, sítio, roça – contudo, para ele não é moralmente
correto o cercamento da terra – o espaço da mata, lagos, mangue, duna, como vem sendo
realizado pelos empreendimentos de energia.
Torna-se compreensível para o observador externo os usos da cerca se tem em
mente que para o morador a terra não possui um dono, é da natureza, enquanto o terreno
é de uso apenas da família. Assim, é moralmente aceitável a derrubada de cerca posta em
área que é percebida como terra pelo morador, pois lá encontram-se recursos que são
tradicionalmente usados por ele, como peixe, frutos, madeira. Se a derrubada de cerca na
terra é uma ação legítima do ponto de vista moral, por outro lado, é legítimo pôr cerca
para delimitar o terreno de uma família em relação ao terreno do vizinho.
É somente referenciando o uso da cerca nos valores morais associados utilização
da terra e do terreno pelo morador que se compreende que, do ponto de vista nativo,
uma cerca pode estar no terreno, mas não deveria estar na terra.
Contudo, alguns moradores continuam utilizando os recursos localizados na área
do empreendimento. A seguir trago alguns relatos dessas formas de uso da área do
empreendimento pelo morador da Pedra do Sal.
As cercas, elas são mais lá. Só que aqui nessa área dos camarões, da
maricultura [atualmente ocupado por aerogeradores], tem uma cerca, só
que o pessoal [moradores] já cortaram. O pessoal não teve pena,
cortaram mesmo. Mas só que no futuro vai fechar de novo. E no
23
começo, eles [guardas] não queriam que a gente entrasse nessa segunda
etapa. Só que um dos vigias é daqui [Pedra do Sal] e falou com o chefe,
“olha chefe, é melhor o senhor aceitar [que possam passar pela segunda
etapa] porque a comunidade é muito carente, a comunidade foi criada
aqui, aqui é o lazer de todo mundo, e o senhor vai remar contra a
maré”. Aí foi que eles aceitaram a gente entrar. Mas você tá passando e
eles [guardas] estão lá (Entrevista com Eli, 03 de setembro de 2016).
Tércio. (…) O guarda fala pelo walk talk com alguém no prédio em que
o Tércio está. Depois de um tempo, recebi a autorização para ir ao
encontro. Subi na moto com Ananias e fomos até o prédio. Chegando
ao prédio, outro segurança nos recebeu. Ele me deu um capacete azul,
como aqueles usados em obras da construção civil, e um crachá no qual
estava escrito a palavra “visitante”. Agradeçi a Ananias a carona e nos
despedimos. O segurança me levou até uma porta. Abriu. Lá estavam
um homem e uma mulher de macacão sentados em mesas diferentes. A
mulher parecia monitorar algo pelo computador. Logo em seguida,
avistei Tércio. (…) A sala dele estava ao lado. Era uma sala espaçosa.
Tinha uma mesa grande, do tipo das que se pode fazer uma reunião.
Tinha ar-condicionado, boa iluminação, uma mesa pessoal grande com
um computador. Entramos e sentamos a mesa. (…)
Ele me contou um caso: resolveu fazer uma experiência. Colocar ração
para peixe numa lagoa [na área do empreendimento] que ele sabia que
podia dar peixe. Depois de um tempo os peixes começaram a aparecer.
O objetivo, segundo ele, era pegar esses peixes e distribuir entre os
funcionários. Mas ele reclamou que os moradores vinham pegar os
peixes antes deles se desenvolverem. Pegavam o peixe ainda pequeno
[com os dedos da mão ele compara o tamanho do peixe ao de uma
caneta]. Ele disse que ficou chateado com a situação e mandou cercar e
colocar um guarda no local. Ele disse que mesmo assim os moradores
iam lá e pegavam o peixe na troca de turno. Ele falou: “Como é que
eles não entendem que aquilo é uma propriedade privada, tem dono.”
(…) A uma certa altura, ele preferiu não pôr mais ração e deixar a lagoa
sem peixes. Ressaltou que além dos moradores não entenderem que
aquilo era uma propriedade privada ainda eram ousados, pois falavam
para o guarda que iriam pegar peixes mesmo assim, quando eles
dessem bobeira eles iam pescar (Trechos do diário de campo de 21 de
Setembro de 2016).
O ordenamento territorial pelo qual passa as terras da Pedra do Sal com a chegada
dos empreendimentos de energia, tensiona a ordem moral dos moradores em relação aos
usos e significados da terra. No contexto em que terras foram cercadas e vigiadas
passando a ser área do empreendimento, os moradores elaboraram estratégias para
acessar a terra, seja negociando a entrada com o guarda, seja o desafiando abertamente,
como no caso dos talos. O corte da cerca e a pesca na lagoa vigiada são formas de manter
práticas tradicionais com o território, que antecedem a implantação dos empreendimentos
de energia, e que na busca do morador por alimentos como frutas e peixes acaba
tensionando o ordenamento jurídico da propriedade privada.
O que é moralmente aceito pelos interlocutores nos relatos que apresentei (cortar
cerca, pegar madeira, pescar na área do empreendimento), não é legítimo do ponto de
vista legal. O que é justificado do ponto de vista legal, cercar e vigiar uma área, não é
moralmente aceito para alguns dos moradores do lugar. O que sustenta moralmente essas
25
ações nos relatos dos interlocutores é a percepção de que o cercamento de algo que
pertence a natureza não é correto. Do ponto de vista do morador, as terras localizadas na
área do empreendimento ainda não se apresentam (completamente) como uma
“propriedade privada”.
CONCLUSÃO
19 As formas cotidianas de resistência não as únicas formas de luta dos moradores da Pedra do Sal, como atestam as
manifestações de rua, bloqueio de rodovia entre outras modalidades coletivas e públicas de ação.
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Os prognósticos indicam uma expansão dessa fonte energética até 2030. Do ponto de
vista dos direitos de povos e comunidades tradicionais, a expansão da energia eólica pode
significar uma série de ameaças aos seus modos de vida e direitos territoriais. Iniciativas
como os Encontros de Impactados pela energia eólica tem trago a público uma
perspectiva crítica sobre um tipo de energia que é tratada como uma “fonte limpa” por
agentes do governo, dos meios de comunicação e do empresariado.
Nesse artigo, a partir de uma pesquisa de campo, busquei trazer a relação entre
energia eólica e açambarcamento de terras, explicitando que o avanço dessa fonte
energética implica uma grande demanda de terras, que na situação fundiária do Brasil
beneficia-se das históricas desigualdades em relação ao acesso e posse de terra. Situações
como as terras de uso comum são bastante frágeis frente a esse processo de
açambarcamento.
Outro objetivo desenvolvido neste texto é que além das formas públicas e
coletivas de luta por terra e reconhecimento, existem uma série de resistência que são
praticadas pelas pessoas comuns que passam a conviver com grandes “projetos de
desenvolvimento”. Muitas vezes, como já havia percebido James Scott (2002, 2013),
essas são as únicas “armas” disponíveis no momento.
Na área estuda, as formas públicas de ação coletiva e as formas cotidianas de
resistências ocorrem paralelas, demonstrando a versatilidade daquelas pessoas em resistir
a espoliação de terras e direitos.
REFERENCIAS
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comum e conflito. In: ALMEIDA, Alfredo Wagner de. Terras de quilombos, terras indígenas,
“babaçuais livres”, “castanhais do povo”, faxinais e fundos de pasto: terras tradicionalmente
ocupadas. Manaus: PGSCA/UFAM, 2008.
ANEEL. Atlas Nacional da Energia Elétrica. Brasília: ANEEL, 2005.
BEZERRA, Maria Bernadete de Carvalho. Percepção socioambiental da comunidade Pedra do
Sal acerca da implantação do Complexo Eólico Delta do Parnaíba na APA Delta do Parnaíba/PI.
Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente). Universidade Federal do Piauí,
2016.
CEPAL. O investimento externo na América Latina. Nações Unidas, 2011.
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pelos recursos naturais pós-2008, 2016. Disponível em: <http://diplomatique.org.br/crise-do-
capitalismo-e-a-nova-ofensiva-global-pelos-recursos-naturais-pos-2008/>. Acesso em: 15 de mar.
2016.
HARVEY, David. O novo imperialismo. São Paulo: Loyola, 2014.
LITTLE, Paul E. Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil: Por uma antropologia da
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