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NICOLAU BOTEQUILHA
NICOLAU BOTEQUILHA
Mel
Outra prova de persistência encon-
tra-se a poucos metros da Bolaria
Tavares & Marques, num dos pavi-
lhões da zona industrial de Vila Velha
de Ródão. Vítor Claro está, com o pai
e a Ælha, a tratar das suas colmeias.
A paixão pelas abelhas e pelo mel
vem de há muito. “Começou quando
eu era estudante em Portalegre”,
recorda. “Depois fui para Coimbra,
tive que deixar, mas o meu pai con-
tinuou.” Entretanto, Vítor seguia
outros caminhos – foi padre, deixou
de o ser, trabalhou numa empresa
de construção, mas, por muitas vol-
tas que a vida tivesse dado, não
esqueceu a paixão pelas abelhas.
Hoje a família tem mais de 500
colmeias e faz uma apicultura de
transumância, o que signiÆca muitas
vezes noites inteiras a transportar as
NICOLAU BOTEQUILHA colmeias de um lado para o outro à
Houve já tempos em que a Tavares procura das zonas onde há Çoração.
& Marques tinha três carros a fazer O ideal é conseguir fazer meles
vendas pela zona, mas, lamenta Arlin- monoÇorais, os mais valorizados,
do, “as aldeias vão perdendo pessoas, mas nem sempre é possível (a Claro’s
há rotas que vão deixando de ser ren- tem o de rosmaninho, biológico e o
táveis, e daqui a pouco são mais os de castanheiro).
vendedores que os consumidores”.
É a realidade de um concelho muito
A nossa “Neste momento estamos no pon-
to alto da extracção. Trabalhamos o
envelhecido, onde a falta de emprego
levou à saída de muita gente.
esperança é que ano inteiro para isto”, diz Vítor, exem-
pliÆcando como se faz para retirar o
“A nossa esperança é que as gran-
des cidades estejam muito cheias e
as grandes mel e separá-lo da cera, que é depois
reaproveitada para os novos quadros,
as pessoas queiram voltar às origens
e a uma vida mais calma.” Arlindo e
cidades estejam que as abelhas voltarão a encher de
mel. Aqui reaproveita-se tudo: os resí-
a mulher Æcaram por Vila Velha de
Ródão precisamente porque gostam
muito cheias e duos da cera que derrete ao sol, num
decantador com painéis solares, são
dessa vida, da proximidade dos ami-
gos, de conhecerem muitos dos que
as pessoas usados para alimentar a caldeira a
vapor utilizada para derreter mais
i
ANDREIA PATRIARCA
NICOLAU BOTEQUILHA
Os primeiros quilómetros
Luís Simões e Anisa Subekti estão a dar a volta a Portugal em bicicleta. Devagar, com tempo
para pararem e desenhar (ele) e fotografar (ela). Começamos hoje a acompanhar esta viagem,
que arrancou em Vila Real de Santo António e chegou nesta primeira etapa a Mourão.
Mourão
20 de Junho, 70km
Dois dias seguidos de muitos quiló-
metros começavam a dar-nos algu-
ma fadiga. A vontade de não perder
tempo com descansos “desnecessá-
rios” e ir para as ruas desenhar fala-
va mais alto. Demos voltas e mais
voltas pela pequena vila de Mourão.
Poucas pessoas passavam. Ana, a
dona da casa onde estávamos a Æcar,
levou-nos a descobrir as inúmeras
chaminés de topo arredondado,
recantos pitorescos e subimos à tor-
re do castelo, onde nos sentámos a
olhar pela janela a ver as andorinhas
voarem. Luís Simões
Serpa
19 de Junho, 76km
À medida que íamos entrando
pelo grande Alentejo, as searas
loiras e ovelhas em busca de
sombra foram aparecendo. Os
campos e vales inspiravam-nos
a cada quilómetro para parar de
pedalar e tirar mais uma foto-
graÆa. No Æm de um longo dia,
os alentejanos de Serpa apare-
ceram à hora de jantar e muda-
ram o canto da noite.
10 | FUGAS | Sábado, 17 de Julho de 2021
Cinfães
a No encontro do Douro com o Pai- o hábito. Deus anda connosco e pro- A primeira noite da jornada por
va, Cinfães preserva a ruralidade de tege-nos. Sinto-me bem, sinto-me Cinfães termina com uma visita e jan-
outrora, ao mesmo tempo que guarda feliz.” E transparece essa felicidade tar no Museu EtnográÆco da Nespe-
a natureza de sempre. Das margens ao mesmo tempo que nos mostra as reira, criado pela Associação Recrea-
do rio Bestança às altitudes e ventoi- peças de artesanato que vai fazendo tiva do Grupo Folclórico de Nesperei-
nhas do cimo da serra de Montemuro, enquanto acompanha o rebanho ra para preservar o património
com vistas distantes para todo o vale,
a região oferece vários tipos de paisa-
pelos montes. Na mão, um saco cheio
de carqueja para fazer chá. Já nós dei-
Qual é o sítio material e tradicional da região.
Durante a refeição, o primeiro con-
gem, actividades e pontos de interes-
se – acompanhando sempre a visita
xamos Emília com duas bonitas inter-
acções na memória.
mais bonito de tacto com a boa carne arouquesa.
Seguir um rebanho
Subimos um pouco mais a serra, até
aos 1136 metros de altitude, onde a
sorri. É Aveloso, Casa Rural da Costeira, o segundo dia
de viagem começa cedo, no ponto
(ou dois!) na serra Capela de São Pedro do Campo, data-
da do século XVIII, se destaca no meio
pois claro, com mais alto do Vale do Bestança, a 1800
metros de altitude, onde encontra-
O início da visita de três dias da Fugas
a Cinfães começa no alto da serra, na
de vasto planalto verde e rochoso.
Todos os anos se realiza aqui a roma- a vista sobre as mos as Portas de Montemuro. Daqui
a vista capta a norte todo o vale do rio
exploração dos trilhos dos pastores
com a actividade “Segue o Rebanho”.
ria do São Pedro, nos Ænais de Junho,
que reúne milhares de visitantes. encostas da Bestança até ao Douro, onde o aÇuen-
te desagua depois de 15 quilómetros
O programa pode ser marcado atra-
vés da autarquia, que entra em con-
Aproveitamos para provar vinho
verde da região, queijo e presunto serra, repletas de serpenteado. Encontramos deste
lado das portas a capela de Nossa
tacto com os pastores, mas nem todos
estão envolvidos no projecto.
oferecido por quem nos guiava por
Tendais. Pelo meio, uma conversa de urze, e as Senhora do Amparo, com construção
que data de 1758. Para sul, o olhar
É o caso de Abel, que encontramos sobre o empenho em divulgar a região recai sobre o vale do Paiva e as serras
perto da aldeia de Aveloso, um encon-
tro do acaso motivado por um equí-
e a malograda pandemia. O presiden-
te da Junta de Tendais, André Almei-
estradas que a do Centro de Portugal, da Estrela ao
Caramulo, passando pelo maciço da
voco. Não tem problema, recebe-nos
sem hesitar, ele mais os três cães aten-
da, realça o grande trabalho que
vinha a ser realizado até Março de
serpenteiam Gralheira – e é para lá mesmo que
vamos.
tos que o acompanham na guarda das 2020 e mostra-se conÆante para o que Uma visita a Cinfães não pode dei-
cerca de 60 cabras que pastoreia. se avizinha. Por tudo o que a região xar de incluir uma passagem pela
Abel diz ser o último pastor de Avelo- tem para oferecer, com destaque par- “princesa da serra”: a aldeia da Gra-
so. As cabeças de gado que agora tem ticular para a população local. “Rece- lheira, a mais de 1100 metros de alti-
poucas são comparadas com as “mil bem muito bem o turismo e colabo- tude, uma das mais altas de Portugal
e tal” que em tempos subiam e des- ram”, elogia. – os locais reclamam a distinção para
ciam estas mesmas encostas da serra FOTOS: DR si, mas há disputa do título com Pitões
de Montemuro. Há pouco trabalho, de Júnias, em Montalegre. Apesar do
agora. retorno de alguns emigrantes, e con-
Abel, de 67 anos, solteiro, conti- sequente descaracterização de algu-
nuou o trabalho que o seu pai tinha. mas casas, a aldeia ainda preserva
E já vinha do avô. Está vacinado, mas muitas marcas de outrora. Para
não liga muito ao que se passa com “a conhecer a vida difícil de uma aldeia
doença”. “Já acabou ou ainda vai que passava os Invernos isolada devi-
Æcar?”, inquire. Viver na paz da serra do ao tempo agreste da serra, reco-
permite-lhe desligar-se da pandemia. mendamos uma visita às Serranitas
E qual é o sítio mais bonito de Cinfães, da Gralheira.
perguntamos? Abel não responde e É uma casa típica que mantém
sorri. É Aveloso, pois claro, com a vis- todas as características, como o tecto
ta sobre as encostas da serra, repletas de colmo ou as paredes de granito,
de urze, e as estradas que a serpen- apesar de restaurada em 2012. Per-
teiam. tencia ao alfaiate da aldeia, o
Deixamos Abel e partimos ao tio Manel, e à tia Madalena. Continua
encontro da pastora que nos espera- na família, servindo de casa – casa de
va, Emília. Vive em Fermentões, uma artesanato e lar para um projecto que
localidade mais abaixo na serra, e faz é iniciativa da sobrinha, Helena. Pre-
Ioga em cima de oito quilómetros por dia para acom- tende dar a conhecer e preservar os
pranchas de panhar as cabeças de gado que tem. ofícios, a cultura e os costumes da
paddle é uma A dona Emília foi criada no meio da Gralheira, como o modo de vida dos
das actividades costura, fez-se costureira em Cinfães, antepassados ou a história do capu-
que a Kay.up mas mudou-se para o pastoreio por cho de burel, traje típico dos mais
Douro Valley tem gostar da actividade. Conta o presi- carenciados feito de um material que
disponíveis no dente da Junta de Tendais que a agora serve para produzir peças de
rio Bestança; ao mudança da pastora aconteceu artesanato. Ainda na senda das tradi-
lado, o pastor depois de uma paixoneta que não deu ções locais, o centro interpretativo da
Abel , de 67 em nada. Gralheira (a Casa do Ribeirinho), está
anos, que Emília sai com o gado de manhã, aberto a visitas por marcação duran-
encontramos na depois de tratar do que está em casa, te todo o ano.
serra com as onde ainda tem mais cabras e bois. Para completar a passagem pela
suas cabras Tal como Abel, também vive sozinha. Gralheira, os dois restaurantes da
Mas não se sente só, nem passando aldeia convidam também a uma refei-
os dias na companhia dos animais e ção tradicional. Desde a vitela arou-
do silêncio da montanha, apenas cor- quesa ao cozido, passando pelo cabri-
tado pela central de energia eólica. “É to assado em forno de lenha, c
12 | FUGAS | Sábado, 17 de Julho de 2021
Cinfães
FOTOS DR
i
Contacto com
a natureza para
relaxamento total
Victor Hugo e Cátia Ferreira
trocaram há cinco anos o
corrupio da urbe pelo verde de
Cinfães. Encontraram a paz e
calma que desejavam e
decidiram no ano passado
lançar a Kay.up Douro Valley,
que tem como objectivo pleno
“o contacto profundo com a
natureza” – e com grande
enfoque no rio Bestança.
Conseguem-no através da
mistura de técnicas “holísticas e
terapêuticas, de cariz mais
oriental”, com actividades
como o caiaque ou o stand-up
paddle, explica-nos Victor.
A Kay.up Douro Valley tem
assim sessões de sup-ioga (ioga
em pranchas de paddle), para
além de outras actividades
“dentro desse conceito
holístico” como tai-chi ou
sessões de meditação. Sempre
“com cenários naturais”.
As sessões começam no Porto
Antigo, com os participantes a
ninguém sai mal servido com os Segunda paragem: estamos já per- up paddle para uma sessão de ioga do Paiva que visitamos o Parque Flu- subirem depois o rio nas
vários pratos típicos da região. to das margens do rio Bestança, um diferente, que explora o meio natu- vial Km 10, onde mais uma vez há um pranchas até a uma zona do rio
Durante o ano, a autarquia de Cin- dos mais limpos da Europa, quando ral para experiências únicas de rela- convite à envolvência com a nature- Bestança onde é possível estar
fães tem também dinamizado a visitamos o Centro de Interpretação xamento e meditação (ver caixa). za. O espaço teve algumas interven- em “contacto total com a
aldeia com actividades que já come- do Vale do Bestança. Na aldeia das O dia já se alonga, e antes de uma ções junto ao rio “para garantir abri- natureza”. Há eventos
çam a trazer gente de vários cantos Pias, no edifício que até há poucos visita ao Porto Antigo, na conÇuência go para os animais”, num esforço marcados, mas também podem
do país. Falamos da Aldeia do Pai anos era uma escola primária, pode- do Bestança com o Douro, regressa- pensado para “preservar ao máximo ser agendadas sessões por
Natal, que este ano vai para a sexta mos conhecer mais sobre a fauna e mos a Cinfães, ao restaurante Rabe- a fauna e Çora” do lugar, explica-nos marcação individual.
edição e convida as famílias para um Çora do vale durante todo o ano, da lo, para experimentar um outro Carlos Cardoso, vereador da Câmara O projecto do casal vai
local que se embebe do espírito fes- Primavera ao Outono, com quatro prato típico da região (e delicioso): o de Cinfães responsável pelo pelouro também desenvolver ao longo
tivo durante o Inverno. Outrora duro salas dedicadas a cada uma das esta- arroz de aba. Um prato que surgiu da do Turismo. do ano uma série de concertos
e motivo de isolamento da aldeia, ções e ecrãs interactivos. necessidade de os feirantes aprovei- O parque tem um bar para refei- meditativos. O conceito é
essa altura do ano surge agora como E o rio, por Æm. Da aldeia das Pias tarem a aba da vitela para uma refei- ções, mas conta também com parque semelhante às sessões na água:
uma oportunidade para atrair visi- até às margens do Bestança são pou- ção com o que sobrava no Ænal de de merendas para quem quiser levar “O público está nas pranchas,
tantes. cos minutos de viagem. Descemos a um dia de trabalho. as suas provisões. O espaço, onde se assiste ao concerto deitado e os
Vale também a pena passar pela íngreme Calçada das Cinco Rodas (e pode até acampar, tem também músicos estão aqui na margem
Ponte da Panchorra, uma construção o que custa subi-la depois!) até a um Douro e Paiva a uma viagem estruturas de apoio para rafting e com os pés na água. O que
de arquitectura vernacular, com dois local onde nos esperam Victor Hugo outras actividades, para além de um torna isto muito interessante é
de barco de distância
arcos, que une as margens do rio e Cátia Ferreira, os criadores do pro- anÆteatro para concertos ou acções que, como são concertos
Cabrum, outro rio de pequenas jecto Kay.up Douro Valley. Cátia está O último dia da visita a Cinfães come- de sensibilização ambiental. meditativos, só usam
dimensões que nasce na serra de em cima de uma prancha de stand- ça junto a outro rio. É nas margens Viajamos entretanto até à con- instrumentos vibracionais. Ou
Montemuro e desagua no Douro. Um Çuência do Paiva com o Douro. Há seja, além de os ouvirmos,
espaço onde o silêncio é cortado ape- partida do cais de Escamarão para conseguimos sentir as
nas pela corrente do rio e pelo choca- um passeio de barco. Entramos Pai- vibrações na água”, explica
lhar do gado, ideal para merendar ou va adentro, o que nos permite admi- Victor.
descansar à sombra das árvores. rar as margens repletas de vegetação
Desçamos em direcção ao rio. Pelo e a água calma deste aÇuente. No
caminho, duas paragens. Porque regresso, reentramos nas águas vas-
estamos no concelho de Cinfães, vale tas do rio Douro, contornando a ilus-
a pena visitar a vila. Passamos pelo tre Ilha dos Amores, bem perto do
Museu Serpa Pinto, onde podemos cais onde voltamos a atracar.
Æcar a conhecer a história do General Não poderíamos terminar de outra
Alexandre Serpa Pinto, um militar e forma que não à mesa. Ficamos mes-
explorador português natural de mo à face da N222, na Encosta do
Cinfães, e ver algum do seu espólio, Amial, para nos despedirmos com
obtido através de doações. O museu uma posta arouquesa. Quando é que
tem ainda disponível uma outra regressamos mesmo?
exposição com alguns artefactos da
investigação arqueológica realizada A Fugas viajou a convite do
no concelho. Município de Cinfães
Sábado, 17 de Julho de 2021 | FUGAS | 13
Crónica
Humberto Lopes
a Naquele dia em que acordou
muito antes do amanhecer,
inquieto pela jornada que se
avizinhava, o viajante pensou que
as promessas do mundo sempre se
cumpriam de uma forma ou de
outra e que cada coisa tinha o seu
lugar no inalienável caminho para
a felicidade. Acordou e
levantou-se. Daí a meia hora estava
a deixar a cidade num velho
Land-Rover em direcção a uma
montanha coberta de nevoeiro. O
viajante era jovem, aquela era uma
das suas primeiras viagens. Ao
volante ia um caçador branco.
Quando saíram de casa, o dia
não tinha ainda nascido, mas, à
medida que iam subindo a
montanha, despertavam os
primeiros sinais da aurora. O jipe
avançava aos sacões pela picada
rasgada pela luz dos faróis.
Pequenas rochas, como seixos
rolados descobertos pela maré
vaza, aÇoravam do solo arenoso.
Nas bermas do caminho, árvores
retorcidas estendiam os ramos
sobre o tejadilho do veículo.
Apesar do frio, o jovem viajante
decidiu subir para a carroçaria.
Mesmo com o trovejar do motor
conseguia ouvir os pássaros nos
seus cantos matinais. Cheirava a
terra, às folhas das acácias
fustigadas pela cabina do jipe, à
humidade dos restos do cacimbo aculturações e tinham-se Na primeira noite, houve uma penedo onde o caçador branco
da noite. habituado a consumir produtos batida. Veio da aldeia, iluminada tinha um joelho no chão e a arma
A picada que atravessava aquele que vinham do litoral e que a loja por archotes, uma meia dúzia de apontada. O animal estacou,
pedaço de montanha não era da roça tinha para troca ou venda. homens. Em Æla indiana, o confuso, sem saber que direcção
longa e em menos de uma hora A casa, um piso térreo de caçador branco, o jovem viajante e tomar, hesitação fatal. O
estavam a descer para a savana. Os
primeiros raios de sol ajudavam a
construção rudimentar, cimento e
cobertura de zinco, era muito
os caçadores munidos de azagaias,
arcos e Çechas percorreram uns
O mundo já estampido repercutiu-se com um
eco através do vale e a gazela foi
desfazer a neblina e a certa altura
tiveram que esperar que um
simples. Além da venda, havia
mais três dependências: um
poucos de quilómetros sem que
pudessem avistar mais do que os não era igual atingida mortalmente. O odor a
sangue era forte e o corpo do
elefante especado no meio da
estrada acabasse de arrancar a
armazém, um quarto e uma
cozinha, onde eram tomadas as
olhos acesos dos gatos selvagens e
escutado o tropel dos bichos ao da véspera. pequeno animal sofria ainda os
últimos estertores da vida que se
escassa folhagem de uma acácia. O
tempo da seca Ændava-se, mas era
refeições. A construção era tosca,
típica de pioneiros ou colonos, e a
assustados.
No dia seguinte, logo que se fez O jovem escoava quando os batedores o
arrastaram até aos pés do caçador
ainda pouca a ramagem capaz de iluminação fazia-se com dia, outra batida. Num estreito branco. O atirador quis uma
alimentar com fartura bichos de candeeiros a petróleo, cujo cheiro vale pincelado ainda por farrapos viajante fotograÆa e sorriu para a máquina.
tal tamanho. só desaparecia durante o dia. de neblina, um grupo de batedores No dia seguinte, durante a
Chegaram à roça quase três
horas depois, atravessando uma
Naquela zona planáltica as manhãs
eram límpidas, o ar fresco
nativos armados de arcos e Çechas
avançou aos gritos, forçando
cogitava em viagem de regresso, havia de novo
neblinas sobre as montanhas, a
planície de savana e voltando a
trepar por uma picada acidentada
atalhado gentilmente por um sol
cálido cuja memória os sentidos
gazelas e antílopes na direcção de
um penedo elevado, onde o
silêncio que savana era a mesma e mesmas as
acácias com as mesmas Çores
com o mesmo caminho de pedras.
Naquela área de penedias e vales
do jovem viajante conservariam
pela vida fora. As noites
caçador branco esperava
empunhando uma espingarda de
nem a viagem despontando e anunciando o Æm
da estação seca. Mas o mundo já
criava-se gado e o espaço das
pastagens era partilhado com uma
enchiam-se de uma particular
excitação: entravam pelo sono,
grosso calibre. Os urros que
ecoavam no vale assemelhavam-se
parecia capaz não era igual ao da véspera. O
jovem viajante cogitava em
comunidade de nativos. Era uma
população de caçadores que se
sem cessar, ruídos que vinham do
exterior, aves nocturnas, pios de
a um canto guerreiro entoado em
uníssono. Os animais, tomados de
de cumprir as silêncio que nem o mundo nem a
viagem pareciam capazes de
ocupava também com alguma
agricultura em lavras espalhadas
mochos, choros e gargalhadas de
hienas, uivos distantes e
pânico pelos gritos da turba que
avançava em linha, punham-se em
promessas cumprir as promessas imaginadas.
Isso tudo foi no ano em que ele
pelo vale. Com o tempo, os
caçadores foram passando por
enigmáticos que chegavam do
fundo dos vales.
fuga para a armadilha. Uma gazela
correu desnorteada até perto do imaginadas disse à mesa do jantar que não lhe
parecia que Deus existisse.
14 | FUGAS | Sábado, 17 de Julho de 2021
A Malhadinha
Nova em
busca da
sustentável
leveza do luxo
a Amanhece. Espero os primeiros cia social e real é garantida - pode
raios de Sol aquecerem a água. A pis- andar-se uma hora até chegar a outra
cina é toda minha, todo o Alentejo casa ou ao restaurante gourmet che-
parece meu, do alto desta Casa do Æado pela “estrela Michelin” de Joa-
Ancoradouro, um “monte” inspirado chim Koerper, para ir espiar as outras
na terra e na sua cor, pavimento cria- estrelas da propriedade: as ovelhas
do pelo mestre de Beringel a partir merinas que trabalham nas vinhas, as
deste mesmo chão em que estamos, vacas alentejanas, os cavalos puro-
que, com mais traços alentejanos, se sangue lusitanos, os porcos pretos e
mescla com peças de design de topo mais uma imensidão de bicharada,
internacional ou um centenário piano que, de patos a galinhas, vive tudo em
de cauda Steinway e um icónico can- extensivo e em (quase) liberdade.
deeiro de Marcel Wanders. O peque- Numa herdade que se tornou um íco-
no-almoço rico espera-me ao lado da ne do turismo de luxo graças ao tra-
água, a passarada é a banda sonora, balho e visão da família Soares - os
tudo à volta é campo aberto, além a casais Rita e João, Paulo e Margaret -,
beleza das vinhas, ali a ribeira, a mui- com uma marca respeitada, e agora
ta distância outras casas. Mergulho renovada, de vinhos a azeites e mel,
nesta piscina inÆnita alentejana, vol- que se pode querer mais do futuro?
to à tona e bebo o cenário. Umas “É preciso que tudo mude para que
andorinhas cruzam os céus frente aos tudo Æque igual”, dirá João Soares, na
meus olhos. O que é o luxo? Na Her- apresentação da nova comunicação
dade da Malhadinha Nova, 20 anos da Malhadinha Nova, citando O Leo-
depois da estreia, o luxo é todo este pardo de Tomasi di Lampedusa.
espaço e todo o tempo. Não é barato, O percurso “foi vertiginoso”, o pro-
nunca Æca por menos de umas cente- jecto atinge agora a “sua maioridade”,
nas de euros por noite, até muito sublinha João: “Recuperámos todas
mais, num dos 30 quartos em seis as casas que havia para recuperar,
alojamentos - uma grande expansão plantámos toda a vinha que podíamos mas aqui na Malhadinha chegou o produzido em regime biológico com ambientais de reaproveitamento de
recente, eram só dez quartos. [são agora 80 hectares] - não podere- momento de desfrutar”. Mas com certiÆcação desde 2020” e, além de águas, etc. - e a auto-suÆciência -
Parece grande o aumento? A her- mos nunca mais voltar a plantar vinha pilares que a família defende com integrarem o plano de sustentabilida- incluindo energética: vêm aí 450 pai-
dade já tem 455 hectares (a que se nesta terra, não existem projectos unhas e dentes: a sustentabilidade de dos vinhos do Alentejo, Æzeram a néis solares. Muito críticos das cultu-
junta outra da mesma dimensão para além daquilo que está.” Existem global “e humana” - “vinhos, olivais, preservação de bosques e searas, do ras intensivas que atazanam partes do
arrendada mesmo ao lado), a distân- “outras oportunidades a aproveitar, pastagens, animais, hortas, tudo é pastoreio tradicional, têm planos Alentejo, um “atentado ecológico”,
Sábado, 17 de Julho de 2021 | FUGAS | 15
FOTOS: DR
lariças e que também serve de recep-
ção –, a coudelaria, também novinha
em folha, estreada em 2020, onde
éguas e garanhão de puros-sangue
lusitanos garantem a competição e
o turismo equestre, reino do cavalei-
ro Pedro Sousa –, e, claro, o restau-
rante gourmet cheÆado por Joachim
Koerper, que tem uma estrela Miche-
lin em Lisboa graças ao Eleven. Mas
o chef não está sozinho: conta com
o chef residente Rodrigo Madeira e
com Vitalina Santos, cozinheira alen-
tejana de mão-cheia especialista na
tradição da região. Com produtos da
herdade (da carne à horta e mais
além) e das vizinhanças, a partir da
cozinha do Alentejo, propõem-se
vinho mais popular, junto com o criações originais que podem ir do
i Malhadinha, edições especiais e
outros, incluindo quatro novidades
tártaro de novilho DOP com queijo
de Albernoa, ovo biológico, folhas da
fresquinhas, apresentadas pelo enó- herdade e batata-doce de Aljezur (18
Herdade logo residente Nuno Gonzales, que euros) ao mil folhas de bacalhau com
da Malhadinha Nova trabalha com o consultor Luís Duar- brandade e coentros (24 euros); do
7800-601 Albernoa te). Em 2008, dez anos depois do lombinho de porco preto DOP com
Beja - Portugal início do projecto e da aquisição de beterraba, cogumelos, aipo e poejo
Tel.: 284 965 432 / 429 (hotel), mais terrenos e recuperação de ruí- (26 euros); sempre com pão da terra
284 965 210 / 211 (adega), 284 nas e casas (em colaboração com a e os melhores vinhos (da herdade,
965 210 / 211 (restaurante) arquitecta Joana Raposo), abriu-se ao claro, mas não só), até sobremesas
GPS: 37° 49’ 50.60”N, 7° 59’ turismo exclusivíssimo (dez quar- como as deliciosas texturas de cho-
20.91” W tos…). colate e calda de caramelo (14 euros)
malhadinhanova.pt Depois desta Country House – aqui mais um toque familiar, já que
Preços: alojamento (monte típico alentejano revisto) e é a chef Cintia Koerper, a mulher do
desde 300 euros em quarto da Venda Grande (antiga mercearia), mestre da cozinha, a tomar conta da
duplo e desde 350 euros em chegaram mais recentemente e ain- área mais
suíte, em villas desde 600 euros da a cheiram a fresco as casas do É que por aqui, família é, realmen-
– reservas mínimas de duas Ancoradouro (a de terracota e mais te, uma palavra-chave sempre a ligar
noites; restaurante com menus elevada), das Pedras (singularíssi- as ideias: “Acho que aqui consegui-
desde 35 a 55 euros (sem mas e intimistas, suítes cada uma mos manter esse equilíbrio, o da sus-
bebidas). com terraço e piscina privados, blo- tentabilidade humana”, como nos
cos em “concreto pigmentado à cor dirá João Soares. E é até com alguma
Porto. Ribatejanos, Maria Antónia e dourada da palha”) e das Artes e Ofí- emoção que o co-proprietário assume
João Soares (já falecido) emigraram cios (villa com dois quartos, recupe- que os investimentos feitos são tam-
para França, trabalharam (ela ração de um antigo espaço comuni- bém a pensar na próxima geração, no
doméstica em casas, ele a supervi- tário da aldeia em ruínas e por isso “planeta que vamos deixar aos nossos
sionar limpezas) e pouparam, inves- repleta de artesanato local). Por Ælhos”. Entre apoios e fundos pró-
tiram em Albufeira. Abriram até um estes espaços é apontar o dedo e prios, foram já cerca de cinco milhões
minimercado, onde pais e Ælhos tra- descobrir detalhes da tradição alen- de euros desde 2017, que Æzeram todo
balharam aÆncadamente. “Foram tejana mas também Philippe Starck, o projecto, entre a vitivinicultura e
muitas horas na caixa”, lembra o serviços em casquinha da ChristoÇe agricultura, permitir-lhes aÆançar
Ælho Paulo. Os pais incutiram-lhes a e serviços Vista Alegre, mobiliário que são “totalmente biológicos nos
“cultura do trabalho”. “Temos orgu- antigo restaurado e marcas icónicas 455 hectares da propriedade”. Quase
lho desse início dos nossos pais, como a Olaio, designers vanguardis- uma reserva natural em actividade,
orgulhamo-nos do nosso trajecto, os tas como Umut Yamac ou mestres ainda com arestas para trabalhar, jun-
nossos pais sempre exigiram muito como Alvar Aalto, produtos Hermès tam a isto tudo apostas no apoio a
de nós, mas sempre nos deram mui- ou Bulgari… E muito mais, tudo a entidades locais – inclusive com auxí-
to.” “O que temos hoje devemos a juntar-se para criar uma espécie de lio de materiais de protecção a lares
eles, deram o seu passo de gigante”, elegia em comunhão com a beleza e do concelho durante a pandemia – e
aproveitam o boom turístico dos anos desmesura da paisagem circundan- na manutenção da equipa (há quem
de 1980. É esse espírito que se pres- te. Entre quartos, suítes ou casas esteja cá a trabalhar há mais de duas
João e a família Soares (incluindo a o seu trabalho também: João e Rita, sente por todo o lado – repare-se que privadas, os terraços e as piscinas, décadas). Mas, apesar do espaço que
matriarca, Maria Antónia, e sete Ælhos Paulo e Margarete, cada um tem o até os rótulos dos vinhos da Malha- uma coisa é certa neste turismo que parece inÆnito, não conseguem parar
entre os dois casais que gerem o negó- seu papel na direcção dos vários dinha Nova têm sido feitos a partir já integra a exclusiva rede Relais & quietos: depois de duplicarem a vinha
cio) vivem também aqui parte das segmentos do negócio: João gere a de desenhos criados e assinados Châteaux: só é preciso ter dinheiro junto à Albernoa e de assegurarem
suas vidas. E se o negócio aqui é luxo, produção vitivinícola e agro-pecuá- pelos Ælhos de Paulo e João. A auto- suÆciente para poder pagar este todas as uvas que precisam para os
parecem nunca esquecer o outro ria, Rita é a embaixadora da hotela- suÆciência corre-lhes no sangue, luxo real, o resto é paz. seus vinhos pela primeira vez, aca-
pilar de todo este puzzle de natureza ria e faz o design de interiores, Pau- assim como essa ligação contínua bam de adquirir vinha em Portalegre
e luxos: precisamente, a família. lo Æca pelas áreas tecnológica e entre a tradição e a inovação, entre O Alentejo e o mundo e ascendem aos vinhos de altitude:
Ænanceira, Margaret é investigadora o melhor da terra e o melhor do são uvas a 700m na serra num “vale
casam-se na cozinha
Uma herdade familiar em em vitivinicultura. mundo. encantado”, como diz Paulo. Um
Tal como acontece na empresa- Junto à vila de Albernoa, toda no A tudo isto juntam-se a adega em outro mergulho no futuro para a famí-
que tudo se quer do melhor
raiz de tudo isto, a célebre garrafeira concelho de Beja mas ali mesmo ao declive, a nova sala de visitas que é lia Soares.
A palavra família não é só marketing. Soares, criada pelos pais de João e lado de Castro Verde, a Malhadinha loja com todos os produtos produzi-
A família no seu conjunto dá a cara Paulo, que, em 38 anos de vida, che- Nova começou pela recuperação do dos na herdade e bar de vinhos, a A Fugas esteve alojada a convite
pelo projecto, humanizando-o, e dá gou às 25 lojas no Algarve e uma no Monte da Peceguina (que dá nome ao Taberna – erguida em antigas cava- da Herdade da Malhadinha Nova
16 | FUGAS | Sábado, 17 de Julho de 2021
Kappo
Um restaurante
dos ingredientes: grelhado, cozido
em caldo, cru, frito e ao vapor. São
preparações delicadas, um trabalho
de detalhe, muitas vezes sabores sua-
que é uma
ves, subtis, aqui combinadas, em
alguns pormenores, com técnicas da
cozinha francesa.
A primeira fase da refeição no
aula de cozinha
menu Danketsu, que experimentá-
mos (85€) inclui, além do cha-
wanmushi, tártaro de toro (a parte
mais gorda da barriga do atum) com
japonesa
caviar, um sunomono (caldo) de sapa-
teira de Cascais, e o ankimo, que é um
fígado de tamboril cozinhado com
saké, soja e mirin e acompanhado
com a raiz ralada de wasabi fresco,
que Tiago coloca no balcão para que
Midori, acaba de abrir em Cascais um caldo suave, desta vez com amêi-
joas à Bulhão Pato abertas com saké;
um restaurante japonês onde o o mukozuke (prato que deve mostrar
o sashimi sazonal) apresenta lula
mostrar e explicar o katsuobushi, ou
bloco de atum bonito seco, fumado e
mosto do saké, e todo o peixe passa
por uma cura, em sal ou em algas,
respeito pelo mais clássico desta gigante dos Açores, sal de Okinawa e
beurre blanc de ouriço do mar; no
fermentado, que é aqui utilizado)
com percebes do Guincho.
formas antigas de preservar o produ-
to quando não existiam frigoríÆcos.
gastronomia se cruza, aqui e ali, agemono há uma tempura de miolo
de alga kombu prensado e avinagrado
Um momento central são os oito
niguiris ao estilo Edomae, ou seja, do
Sobre o balcão vão sendo colocados,
por exemplo, carapau com gengibre
com toques pessoais do chef Tiago recheado com folha de shiso e ouriço-
do-mar. Vem depois o dashi, que é
período Edo, antigo nome de Tóquio.
O arroz não tem qualquer adição de
e cebolinho, cavala curada em sal e
em vinagre de arroz, ou sardinha que
Penão. Alexandra Prado Coelho feito numa chaleira em frente ao
cliente (oportunidade para o chef
açúcar e é trabalhado com três vina-
gres, um branco e dois feitos com o
passou por vinagre de vinho branco
e água do mar. Para comer imediata-
Sábado, 17 de Julho de 2021 | FUGAS | 17
Ofício
FOTOS: DR
Para despedida, o mizugashi, a situado a dois passos, no Largo da “sopa” com tomate cherry, Çor de
sobremesa: kakigori Frasier des bois, Trindade, e tem à frente o mesmo curgete e vinagrete de alface e azeite
e purin (sim, é o pudim). A sobreme- chef, Hugo Candeias. de coentros, antes de a montanha-
sa é sempre o grande dilema dos Com as devidas distâncias entre o russa tomar uma direcção completa-
restaurantes japoneses fora do Japão. fine dining do TAG e a carta mais des- mente diferente, com um tártaro de
Que estilo seguir, dado que os doces contraída do Ofício – onde conta com novilho com tutano e azeite de ale-
japoneses muitas vezes não corres- o apoio do sous-chef executivo Micael crim, acompanhado por um brioche
pondem às expectativas ocidentais? Duarte e do chef Rodolfo Lavrador, da padaria/restaurante Isco (há no
Aqui a solução encontrada foi uma ambos com passagem por projectos Ofício um reconhecimento da impor-
“brincadeira”, como diz Tiago de Nuno Mendes em Londres – há, tância central dos fornecedores, das
Penão: primeiro, um doce com contudo, uma linha comum no traba- ostras da Neptun Pearl ao presunto
morangos e um chantilly de soja e, a lho de Hugo Candeias em ambos os Absoluto do projecto Porcus Natura
seguir, um pudim, lembrando o espaços: uma cozinha segura, de per- de Montemor-o-Novo, passando pelas
pudim salgado do início, mas desta sonalidade deÆnida e sabores vinca- louças do Studioneves).
vez com caramelo e mirin (vinho de dos, com inÇuências da passagem de Por Æm, os pratos “de substância”:
arroz) de 20 anos e um pickle de Hugo por Espanha, onde trabalhou uma excelente raia com funcho, estra-
ameixa negra com vinagre de ume- com Albert Adrià. gão e molho de salsa e coentros, e,
boshi (ameixa japonesa). Tudo isso se vê desde o primeiro para não sairmos com fome, o tal
Este projecto, explica Tiago Penão, momento em que nos sentamos à arroz de forno à antiga. Nas sobreme-
vinha sendo pensado “há quatro ou mesa (optámos pela esplanada, mas seguir, uns deliciosos ouriços-do-mar abrindo caminho para a experiência sas, há uma tarte de amêndoa à fatia
cinco anos” e Ænalmente surgiu a no interior há, para além das mesas, com leche de tigre e creme de abacate, seguinte. Sempre acompanhados por inspirada na receita da avó de Micael,
oportunidade de o abrir em Cascais, uma barra com 14 lugares com vista e logo depois um taco com base de sugestões de vinhos tudo menos uma pannacotta de arroz tostado,
vila à qual praticamente todos os ele- para uma montra de ostras) e em que alface icebergue e recheado com óbvios – do pet nat Protótipo P2 (Arin- laranja com granizado de poncha,
mentos da equipa (que inclui, além nos é apresentado um torresmo espadarte, amêndoas torradas, maio- to, Viosinho, vinhas velhas, de Távo- espuma de chocolate com cacau
da sommelier Andrea, inclui Bruno gigante, feito a partir de uma pele de nese de chipotle, tomate e coentros. ra-Varosa), ao transmontano Quiló- mexicano e chantilly de coco e, last
Prazeres, Fábio Ruela, André Pereira barriga de porco inteira transformada Mesmo nos pratos mais frescos, metro, da Arribas Wine Company, but not least, a já célebre tarte de quei-
e a americana Keila Kingston) têm numa imensa pipoca crocante e nunca descemos muito da intensida- passando pelo Saravá, de Miguel jo de Hugo Candeias (vendida inteira,
uma ligação e onde, segundo Tiago, viciante. Depois vem uma homena- de de sabores que marca esta cozinha Viseu – o que permite descobertas 25€), tentação à qual mesmo os fra-
“existe muita procura e pouca oferta gem aos santos populares, com uma – mas, note-se, são todos sabores mui- interessantes a partir da carta criada des do antigo convento da Trindade,
gastronómica”. O Kappo propõe-se sardinha em tosta de broa com to diferentes, que fazem disparar o por João Pombo. que no passado aqui existiu, teriam
agora alterar este cenário. pimento e pó de cebola queimada. A palato para lugares muito distintos, Vem depois uma refrescante muita diÆculdade em resistir.
18 | FUGAS | Sábado, 17 de Julho de 2021
Quinta do Vesúvio
Douro
do Marão – hoje muito facilitada
vinhos, paisagem e gastronomia da região pelo túnel – tinha acabado de nos
mostrar o recorte das montanhas
duriense. Miguel Marques Ribeiro (texto e fotos) para este e a linha de socalcos que
caem em escadinha nos declives,
mas faltava esta proximidade com
o rio para Æcar completa a imersão
no lugar único que é o Douro Vinha-
teiro.
O barco é providenciado pela
quinta e vai servir para o transporte
dos clientes da nova experiência de
enoturismo que a Symington acaba
de lançar numa das suas proprieda-
des mais emblemáticas, e que pode,
em alternativa, ser acedida directa-
mente por automóvel (pela margem
que nos recebe e nos serve de guia vindimadas durante o dia, acompa-
durante o resto do dia. Como o pró- nhados de música e dança”. As
prio explica, esta experiência que enormes peças de granito que com-
a Symington está a lançar tem um põem os tanques foram trazidas
desenho pré-estabelecido que põe para a quinta em carroças e carros
em destaque os principais chama- de bois, demonstrando uma vez
rizes da quinta: as diversas vinhas mais o aÆnco inquebrável das gentes
situadas em pontos-chave; a adega destes lugares.
que mantém vivas algumas tradi- Seguimos depois para a garrafeira
ções seculares; a garrafeira, onde Vintage, para uma prova vínica. Nas
são envelhecidos vinhos emblemá- prateleiras que nos rodeiam enve-
ticos da empresa; e a varanda com lhecem alguns dos melhores vinhos
vista para o rio, onde decorre o produzidos pela Symington. Na
almoço. Contudo, a ideia é que este Quinta do Vesúvio, para além dos
itinerário-base possa ser adaptado Portos Vintage, produzem-se tam-
de acordo com a vontade de cada bém DOC Douro desde a colheita de
grupo de visitantes, que não pode 2007. Fazemos uma prova vertical
ser inferior a dois elementos e não com os Vinhos do Porto de 1994,
deve ultrapassar os seis, de forma 2003 e 2011. São absolutamente
a garantir uma experiência verda- magníÆcos e a degustação permite-
deiramente única, especial e inti- nos compreender o efeito do enve-
mista. lhecimento e as nuances de cada
ano de produção. Os DOC Douro são
O itinerário também extraordinários. O Quinta
do Vesúvio 2011 Douro DOC é um
Depois de um welcome-drink, ser- Grande Reserva produzido a partir
vido nos jardins, iniciamos a visita dos melhores lotes. A duas partes
às vinhas. É feita em jipe, mas nem praticamente iguais de Touriga
o poder da máquina escapa incólu- Nacional e Touriga Franca, adicio-
me à dureza destes terrenos. Os na-se 5% de Tinta Amarela, “uma
solavancos, o vai-e-vem da carroça- casta mais rústica, que lhe dá a
ria, o sobe e desce da caixa de velo- autenticidade duriense”, explica
cidades, são sinais da luta constante Dominic Symington, Um toque Ænal
que aqui se trava contra a adversi- que é quase uma assinatura dos
dade natural. Em contrapartida aí vinhos produzidos pela família. O
estão elas, à distância de um esticar Pombal do Vesúvio 2018 Douro
de braços: as cepas em carne e osso, DOC é um vinho mais fresco, com
com os seus cachos ainda verdes estágio de barrica de segundo uso,
que as folhas da videira resguardam mas igualmente encorpado e con-
do sol abrasador. tendo o melhor que o terroir durien-
Subimos para a primeira paragem se tem para oferecer num tinto.
no pombal da quinta – totalmente Depois de tudo isto, não é possí-
recuperado e no qual se destaca o vel estar mais satisfeito: as pernas
magníÆco desenho imbricado do exercitadas, a mente saciada por
telhado. Junto dele estendem-se as tudo o que conheceu nas últimas
vinhas que dão o nome à marca horas e o estômago já preparado
Pombal do Vesúvio. Aqui estamos para o almoço, que é servido na
ainda abaixo da meia cota da pro- varanda. A refeição é totalmente
detém (26 no Douro e uma no Alen- priedade, que ultrapassa os 500 confeccionada na cozinha da quinta
tejo), possuindo a particularidade metros. Na paragem seguinte, a que e usando os produtos frescos da
de ter pertencido em tempos à famí- se chama o Raio, subimos mais um horta, pelas mãos das duas cozi-
lia de Dona Antónia Ferreira, a gran- pouco. É um dos lugares cimeiros nheiras da casa: a dona Mariazinha
de empresária vinícola que enfren- do Vesúvio, de onde se tem uma e a sua ajudante Célia. O menu é
tou com tenacidade a crise da Ælo- perspectiva panorâmica, a 360º, de típico, com um toque de moderni-
xera, inscrevendo para sempre o tudo o que rodeia a quinta: o braço dade: entradas de salmão fumado e
seu nome na história da produção poderoso do rio que se estende até polvo servidas em colher de degus-
de vinhos da região. perder de vista entre as colinas, o tação, uma sopa fria de melão com
Seguimos tranquilamente no bar- tricotado das vinhas sobre os mon- presunto, bacalhau no forno, leite-
co, sobre o espelho de água macio. tes, numa margem e noutra, e os creme e fruta para a sobremesa,
Aqui o céu parece mais limpo, o azul vilarejos e quintas que despontam rematada com um prato de queijos
mais saturado. Ao longe, avistamos nas encostas. É uma vista que, ao e frutos secos. Um cardápio sump-
o ediÆco de estilo senhorial e a cape- mesmo tempo que nos tira o fôlego, tuoso, acompanhado dos vinhos de
la, que são apenas a face mais visível parece que o devolve, limpo das grande qualidade da Symington.
de uma extensa imensidão de terre- complicações do dia-a-dia. Nesta O tempo passa a correr na Quinta
no que perfaz os 326 hectares da altura é servido um Porto tóni- do Vesúvio. Esta experiência pro-
propriedade, 133 dos quais planta- co com aperitivos. Que bem que se porciona-nos, em poucas horas,
dos com vinha. está aqui em cima! tudo o que de melhor o Douro tem
Já apeados, entrar na quinta é, De regresso ao palacete, é tempo para oferecer: natureza, conheci-
por si só, todo um manual da expe- Depois da aquela organização bruta tão carac- de visitar a adega, a umas escassas mento, vinhos, história, gastrono-
riência autêntica do mundo rural. imersão na terística dos campos. É daqui que se centenas de metros de distância. mia, tradição e a enorme afabilidade
Entre os ciprestes, e bordejada por paisagem e nas colhem os produtos para uso da Um lugar que, garante a Symington de todos os colaboradores da
uma linha roxa de alfazemas em vinhas da quinta, casa e os hortícolas que serão servi- no folheto de divulgação da expe- Symington. Partimos do Douro
Çor, estende-se a horta com talhões é servido um dos mais tarde, à hora do almoço. riência, é um dos últimos “do mun- Superior com a enorme vontade de
variados e fartos. Os cheiros são almoço na É o próprio Dominic Symington, do onde homens e mulheres pisam voltar em breve. Texto editado por
intensos, inebriantes. Tudo tem varanda um dos quatro gestores da família, a pé nos lagares de pedra as uvas Sandra Silva Costa
20 | FUGAS | Sábado, 17 de Julho de 2021
Vinhos
Vinhos
Os vinhos aqui apresentados são, na sua maioria, novidades que chegaram recentemente
ao mercado. A Fugas recebeu amostras dos produtores e provou-as de acordo
com os seus critérios editoriais. As amostras podem ser enviadas para a seguinte morada:
Fugas — Vinhos em Prova, Rua Júlio Dinis, n.º 270, bloco A, 3.º 4050-318 Porto
55 a 70 71 a 85 86 a 94 95 a 100
90 Um tinto do 92 89
Ladeira da Santa
Dão a precisar Quinta da Ramalhosa Monólogo Avesso 2019
Grande Reserva
Tinto 2018
de tempo Palhete 2019
Paulo Batista Ferreira, Mouraz,
A&D Wines, Baião
Região: Vinho Verde
Tábua Tondela Castas: Avesso
Região: Douro Região: Dão Graduação: 13% vol
Castas: Touriga Nacional e a Todo o bom vinho, sobretudo o Castas: Várias Preço: 7,50€
Alfrocheiro que estagia em barrica, ainda mais Graduação: 12% vol
Graduação: 13,5% vol. se for nova, precisa de tempo. Pode Preço: 25€ Vinhas em modo de produção
Preço: 13€ apreciar-se com prazer ainda jovem, biológico, com selecção da
mas ainda não será nítida a sua ver- Em homenagem ao avô, Micael parcela mais representativa da
dadeira essência e qualidade. A jovia- Batista produziu este palhete à colheita. Aroma frutado, com
lidade inicial pode ser excessiva, tal moda de antigamente, um blend notas exóticas e tropicais, em
como certas maquilhagens em algu- de vinha com uvas brancas e fundo cítrico e ambiente maduro.
mas mulheres. Podem impressionar, tintas de várias castas e Na boca é amplo, intenso e
só que se vê logo que há algo de fermentação com engaço em crocante, com notas frutadas de
excesso e que não espelham a verda- lagar de pedra. Vinhas que vêm compotas e goiaba envoltas por
de. A verdade surge quando cai a desses tempos áureos do Dão, um belo equilíbrio ácido. Final
“maquilhagem”. Numa mulher ou onde se pressente um leve tenso, como notas fumadas
num homem, pode bastar uma sim- perfume de Baga, acidez muito subtis e um leve rasto
ples limpeza do rosto. Num vinho, a vibrante, com aromas frescos de taninoso a conferir boa aptidão
sua essência pode demorar alguns caruma e especiarias, estrutura gastronómica. J.A.M.
anos a emergir. Mas emerge sempre. e grande intensidade na boca.
E o que emerge não é a barrica ou Cativa pela frescura, textura
qualquer aditivo que se adicione ao fina, intensidade e
Proposta vinho. É a natureza das castas e do prolongamento com leves
lugar. É por isso que chega a ser mais amargos que lhe conferem
da semana fácil adivinhar a origem de um vinho amplitude gastronómica.
quando ele é mais velho do que Claramente para a mesa. Não
quando é novo. será consensual, mas é uma bela
O vinho desta semana, o segundo homenagem aos bons tempos
tinto mais pontuado do último con- da região e o Dão precisa destes
curso Vinhos de Portugal, organiza- vinhos distintos. J.A.M.
do pela Viniportugal, a entidade que
assegura a promoção do vinho por-
tuguês, é um daqueles tintos que
precisam mesmo de tempo para
mostrar o seu melhor e libertar-se de
equívocos. Nesta fase é sensorial-
mente impressionante, mas também
89 87
ainda demasiado marcado pela bar-
rica, embora esta não se consiga Casa de Pedra Maria 2020 Falua Reserva
sobrepor à impressionante intensi- Casa de Pedra Maria, Varziela, Unoaked Branco 2019
dade das nuances frutadas e Çorais. Felgueiras Falua, Vinhos SA
Não se sobrepondo, acaba, ainda Região: Vinhos Verdes Região: Regional Tejo
assim, por retirar alguma pureza e Castas: Loureiro e Alvarinho Castas: Fernão Pires
frescura a esse perfume. Graduação: 12,5% vol Graduação:12,5% vol
Na boca, é amplo, vivíssimo e Preço: 6,50€ Preço: 14,50€
saboroso. No entanto, mais algum
tempo de garrafa também ajudará a Com base na casta Loureiro, que Cor citrina aberta, aroma
domar o tanino ligeiramente angu- fermenta já em conjunto com o elegante com notas florais e
loso da casta Alfrocheiro, ideal para complemento de Alvarinho e a apontamentos de fruta branca,
o envelhecimento do vinho. O lado combinar na perfeição a como ameixa ou maçã. Na boca
bom de ser anguloso é dar mais gar- frescura e vivacidade com notas mostra a textura macia, algum
ra ao vinho. Não se trata, já viu, de mais maduras e tropicais. volume e corpo cheio e em
um Dão Æno, daqueles que passam Frescura cítrica, tensão e algum equilíbrio com a intensidade
meio despercebidos em novos mas volume de boca aliam-se ao fresca da acidez natural. Final
que depois nos podem deixar nas paladar frutado, boa secura e com notas de mineralidade,
nuvens. É um Dão mais fogoso e insi- estrutura. Um branco sério, com prolongamento amplo e
nuante, mas com a frescura e o sabor aptidão gastronómica e muito saboroso a destacar as notas
típicos dos tintos desta região, sem- bem desenhado. A casa lançou frescas que lhe marcam a
pre encantadores para os amantes também um vinho mais identidade. Potencial para boa
do bom vinho. Pedro Garcias convivial, o Pedra Maria, fresco e evolução em garrafa. J.A.M.
acidulado, que junta ainda
Trajadura e Arinto, as outras
castas da propriedade. J.A.M.
22 | FUGAS | Sábado, 17 de Julho de 2021
FUGAS N.º 1095 FICHA TÉCNICA Foto da capa: Daniel Rocha Direcção Manuel Carvalho Edição Sandra Silva Costa Edição fotográfica Nelson Garrido Directora de Arte Sónia Matos Designers Joana Lima e José Soares
Infografia Cátia Mendonça, Célia Rodrigues, José Alves e Francisco Lopes Secretariado Lucinda Vasconcelos Fugas Rua Júlio Dinis, nº270, Bloco A, 3º, 2, 4050-318 Porto. Tel.: 226151000. E-mail: fugas@publico.pt. www.publico.pt/fugas
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