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FUGAS | Público N.º 11.

404 | Sábado 17 Julho 2021

Vila Velha de Ródão


Os peixes de rio
e outros produtos
das Terras de Oiro
Série de Verão
Luís e Anisa estão a pedalar
e a desenhar Portugal
Vinhos
Um dia na Quinta do Vesúvio
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Vila Velha de Ródão

O azeite, o mel, o vinho


e o mais que nos
dão as Terras de Oiro
Primeiro veio o azeite, o oiro destas terras. Depois juntaram-se outros
produtos: queijo, vinho, mel, bolos, presunto. E, mais recentemente, os
peixes do rio. Unidos numa marca, a Terras de Oiro, os produtos de Vila
Velha de Ródão mostram que a região tem mais para oferecer do que a
paisagem única das Portas de Ródão. Alexandra Prado Coelho
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NICOLAU BOTEQUILHA

a Como dois mundos paralelos, um


o exacto contrário do outro, as duas
paredes escarpadas das Portas de
Ródão reÇectem-se no rio Tejo. Quan-
do o nosso barco passa pela garganta
mais apertada – são 45 metros de lar-
gura – a imagem duplicada atinge a
sua perfeição. Diríamos que debaixo
de água existe, invertido, o mundo
que se ergue ao cimo dela.
E, no entanto, não é nada disso. A
ilusão pode ser perfeita, mas a con-
versa com Leonel Barata puxa-nos
para a realidade: debaixo de água há
outro mundo. Cheio de peixes. “O
consumo de peixe de rio é muito
maior do que se julga”, garante este
chef que criou o projecto Conserveira
do Interior e a marca Bem Amanha-
do, conservas de peixe de rio. “No
distrito de Castelo Branco, muita gen-
te tem peixe de rio na arca frigoríÆca.
Há esse hábito de consumo. Pescam
e consomem directamente.”
Para juntar esta tradição de consu-
mo de peixe de rio com outra arte
portuguesa, a das conservas, Leonel
Barata vem trabalhando há quase três
anos, um deles centrado essencial-
mente nas análises laboratoriais. A
par disso, tem procurado todas as
receitas locais que consegue encon-
trar para ver como funcionam quan-
do transpostas para uma lata de con-
serva.
“Queremos registar, talvez em
livro, um receituário nacional à volta
do peixe do rio, porque ele está mui-
to disperso. Estamos a fazê-lo sobre-
tudo nesta faixa de Mértola até Torre
de Moncorvo, passando por Serpa,
Alandroal, Vila Velha de Ródão. E
queremos fazer também um levanta-
mento das artes de pesca à volta do
peixe do rio”, resume.
Quando se olha para o passado e os
hábitos de consumo dos peixes destas
águas há, no entanto, uma diferença
que salta à vista. Com a construção
das barragens – aqui estamos na área
da barragem de Fratel, construída no
início dos anos de 1970 – a população
alterou-se. Foram introduzidas novas
espécies para a pesca recreativa, e,
em alguns casos, estas dizimaram as
que existiam no passado.
“Antigamente predominavam aqui
a borga e o bargo, que eram os mais
consumidos. O sável, que era uma
realidade nesta zona, deixou de exis-
tir”, explica Leonel. “Hoje temos
essencialmente o lucioperca, o achi-
gã, a carpa e o bargo comum. Quere-
mos fazer uma pesca sustentável, por
isso trabalhamos sobretudo com as
espécies invasoras, para contribuir
para o equilíbrio.”
Essa preocupação com a sustenta-
bilidade passa igualmente por promo-
ver uma pesca artesanal e apenas no
período de Novembro a Maio. E, entre
os projectos futuros, esperam vir a
trabalhar estes peixes para o mercado
da restauração, oferecendo-os ultra-
congelados, à posta ou em Æletes. c
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Vila Velha de Ródão

Um dos casos mais evidentes de


uma espécie que está a levantar pro-
blemas é o do siluro, “um peixe que
está no topo da cadeia alimentar, que
pode atingir 250, 300 quilos e até 2,5
ou três metros de comprimento”. O
siluro “é muito recente neste rio e
come tudo”. Os testes já realizados,
sublinha Leonel, mostram que “tem
valores nutricionais muito interessan-
tes e concentrações de ómega 3 acima
de qualquer salmão que esteja no
mercado nacional”. Neste momento
estão a fazer experiências para ver
como resulta fumado e em patê.
Para já, os produtos da Bem Ama-
nhado à venda em lata são a carpa
grelhada, o lucioperca de escabeche,
o achigã assado no forno, a caldeta de
barbo e o sável frito. Todos eles, à
excepção do sável, existem também
em conserva de vidro. Além disso, foi
lançada uma colecção com receitas
que podem ser feitas em casa e trazem
acompanhamento necessário: achigã
à Brás, risotto de carpa, massada de
lucioperca, caldeta de barbo.
O barco desliza sobre o rio e as Por- NICOLAU BOTEQUILHA

tas de Ródão, Monumento Natural onde as pessoas passavam cinco, seis


Nacional, abrem-se à nossa frente. horas, à espera de moer os cereais”.
Em breve estaremos de volta ao cais Aí, à beira-rio, punham as panelas de
Çuvial de Vila Velha de Ródão, cujo ferro ao lume e cozinhavam o peixe
restaurante é explorado pelo grupo que apanhavam – um pouco de cebo-
Vila Portuguesa, de Vasco Fernandes la e alho, tomate, e as ervas que ali
(que tem também alojamento, é pro- existiam. O que espera é que as suas
prietário dos barcos nos quais se latas transportem esses sabores e
fazem os passeios no rio e está ligado estas memórias.
ao projecto da Conserveira do Inte-
rior). Aí podemos almoçar uma sopa Bolos
de peixe, com carpa cozida, além do
lucioperca e barbo fritos, e as delicio- Quando chegamos à bolaria Tavares
sas sopas de pão com o sabor da hor- & Marques, pedem-nos para aguardar
telã da ribeira e do poejo. um pouco. O proprietário, Arlindo
Vasco e Leonel estão apostados em Tavares, está a terminar uma coisa e
manter estes pratos no restaurante e vem já. Daí a pouco, chega uma caixa
em divulgá-los nas conservas Bem grande de pizza para uma cliente que
Amanhado (todas com ingredientes aguardava, e, logo de seguida, Arlin-
bio, incluindo o azeite da Herdade da do, desculpando-se pela espera.
Urgueira). Fazem-no porque o peixe Estamos numa bolaria, nascida em
do rio existe em grandes quantidades 1993 do gosto do sogro de Arlindo
e porque estes sabores são parte inte- pela doçaria tradicional da região.
grante da história local. Bolos secos, simples, feitos com pou-
O barbo em caldeta, conta Leonel, cos ingredientes: as broas de mel, os
é uma receita que nasceu “à volta dos biscoitos, bons para beber com chá,
moinhos, que eram espaços sociais, as cavacas com a sua cobertura em
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DANIEL ROCHA NICOLAU BOTEQUILHA


No plano anterior, as
Portas de Ródão, ícone
natural do concelho

Ao lado, o siluro, uma


das espécies que está a
levantar problemas no
Tejo; e Arlindo Tavares,
da bolaria Tavares &
Marques; em baixo, as
conservas, alguns
pratos com peixes do
rio e o mel Claro’s

NICOLAU BOTEQUILHA

com uma convicção: “O sucesso é a


persistência. Quem desiste a meio,
não chega lá.”

Mel
Outra prova de persistência encon-
tra-se a poucos metros da Bolaria
Tavares & Marques, num dos pavi-
lhões da zona industrial de Vila Velha
de Ródão. Vítor Claro está, com o pai
e a Ælha, a tratar das suas colmeias.
A paixão pelas abelhas e pelo mel
vem de há muito. “Começou quando
eu era estudante em Portalegre”,
recorda. “Depois fui para Coimbra,
tive que deixar, mas o meu pai con-
tinuou.” Entretanto, Vítor seguia
outros caminhos – foi padre, deixou
de o ser, trabalhou numa empresa
de construção, mas, por muitas vol-
tas que a vida tivesse dado, não
esqueceu a paixão pelas abelhas.
Hoje a família tem mais de 500
colmeias e faz uma apicultura de
transumância, o que signiÆca muitas
vezes noites inteiras a transportar as
NICOLAU BOTEQUILHA colmeias de um lado para o outro à
Houve já tempos em que a Tavares procura das zonas onde há Çoração.
& Marques tinha três carros a fazer O ideal é conseguir fazer meles
vendas pela zona, mas, lamenta Arlin- monoÇorais, os mais valorizados,
do, “as aldeias vão perdendo pessoas, mas nem sempre é possível (a Claro’s
há rotas que vão deixando de ser ren- tem o de rosmaninho, biológico e o
táveis, e daqui a pouco são mais os de castanheiro).
vendedores que os consumidores”.
É a realidade de um concelho muito
A nossa “Neste momento estamos no pon-
to alto da extracção. Trabalhamos o
envelhecido, onde a falta de emprego
levou à saída de muita gente.
esperança é que ano inteiro para isto”, diz Vítor, exem-
pliÆcando como se faz para retirar o
“A nossa esperança é que as gran-
des cidades estejam muito cheias e
as grandes mel e separá-lo da cera, que é depois
reaproveitada para os novos quadros,
as pessoas queiram voltar às origens
e a uma vida mais calma.” Arlindo e
cidades estejam que as abelhas voltarão a encher de
mel. Aqui reaproveita-se tudo: os resí-
a mulher Æcaram por Vila Velha de
Ródão precisamente porque gostam
muito cheias e duos da cera que derrete ao sol, num
decantador com painéis solares, são
dessa vida, da proximidade dos ami-
gos, de conhecerem muitos dos que
as pessoas usados para alimentar a caldeira a
vapor utilizada para derreter mais

glacé de açúcar, ou os borrachões, Arlindo e a mulher, os actuais pro-


lhes entram pela porta do estabele-
cimento. queiram voltar cera quando não há sol.
“Já Æzemos a polinização das cere-
que à farinha, açúcar e azeite juntam
a aguardente, a jeropiga ou o vinho
prietários, a diversiÆcarem a oferta.
“Temos que ir fazendo o que as pes-
Reconhecem, no entanto, que “é
complicado estar a fazer investi- às origens e a jeiras, depois vamos para os casta-
nheiros”, conta, recordando que o
branco, e daí recebem o nome.
Mas, por muito que estes bolos
soas vão precisando”, justiÆca. E as
pizzas, que lançaram em 2008, são
mentos”, tanto mais que “o turismo
é muito residual” – a região “tem uma vida mais trabalho de um apicultor vai muito
para além da extracção do mel. “É a
continuem a ter fãs e a mostrar o que
pode a imaginação mesmo quando
muito procuradas em Vila Velha de
Ródão, assim como o pão, que tam-
potencial para o turismo de nature-
za, mas faltam infra-estruturas”, diz calma actividade humana que mais contri-
bui para a biodiversidade, e até para
se tem pouco, a realidade levou bém vendem aqui. Arlindo. Despede-se, apesar disso, o combate aos incêndios, mas o c
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Vila Velha de Ródão


NICOLAU BOTEQUILHA

i
ANDREIA PATRIARCA

Os produtos nosso país não valoriza isso.” É, diz,


exactamente o contrário do que acon-
A marca Terras de Oiro, criada tece em Espanha. Na sua opinião, as
pelo Município de Vila Velha de medidas de apoio aos apicultores por-
Ródão, destina-se a promover tugueses são desadequadas, impondo
o património gastronómico da um limite de duas colmeias por hec-
região. Para já, fazem parte os tare, enquanto os espanhóis têm
azeites da cooperativa Rodoliv direito a apoio mesmo com densida-
e da Herdade Tapada da des muito maiores e muitos deles
Tojeira, o mel Claro’s, a bolaria trazem as colmeias para Portugal
tradicional com as marcas aproveitando plantas, como a esteva,
Tavares & Marques e Canelas & cujo pólen é muito valorizado.
Coelho/Padaria dos Amarelos, Mas este é apenas um dos proble-
os presuntos Rodrigues, as mas que os apicultores enfrentam,
queijarias Queijos Lourenço, outro são as enormes perdas nas
Ródão e Irmãos Dias e Reis, os populações de abelhas devido às
vinhos Adega 23 e as quantidades de pesticidas e herbici-
conservas de peixe de rio Bem das que continuam a ser usados na
Amanhado. agricultura. “Os polinizadores estão
A loja online, com todos os a desaparecer”, alerta.
produtos que integram o Vítor conhece as diÆculdades, mas
projecto, está em www. há muito que percebeu que a sua
terrasdeoiro.pt paixão pela apicultura é mais forte
– e os frascos de mel de rosmaninho
e de castanheiro e ainda o favo cheio
de mel dourado que insiste em ofe-
recer-nos quando nos despedimos
são a prova disso.
Em cima, a Adega para a próxima época de apanha da outras variedades, e neste momento
Azeite 23 e Manuela azeitona e produção de azeite. menos valorizada nos concursos
Carmona; na página Apesar disso, Filipe Silva, director internacionais por ser mais doce do
Se no mel apanhámos a família Claro ao lado, a Herdade de produção e operações, convida- que outras (o que está na moda são
em plena época de extracção, no da Urgueira e o nos a dar uma volta pelas instalações os amargos e os picantes), foi desde
mundo do azeite – o oiro destas Terras Lagar de Varas enquanto nos apresenta este projec- sempre a azeitona rainha desta
de Oiro – está, para já, tudo calmo. Na to que reúne 530 sócios, todos eles região. E os produtores não querem
cooperativa Rodoliv – Azeite de Ródão apostados em manter a azeitona virar-lhe as costas.
é tempo de limpezas e de preparação Galega viva. Menos produtiva que “Esta cooperativa existe há 31 anos
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NICOLAU BOTEQUILHA

Herdade da Urgueira Herdade da Urgueira separa as localidades de Vila


Herdade agrícola com (restaurante) Velha de Ródão e Nisa. O rio
mais de 600 hectares, a Monte da Urgueira – escavou na serra do Perdigão
Urgueira fica na freguesia de Vale de Pousadas, Perais esta passagem, onde, no seu
Perais, sobre a qual se conta que Vila Velha de Ródão ponto mais estreito, as duas
os pastores que faziam a Tel.: 272 073 570/935 360 261 paredes escarpadas distam 45
transumância do gado das terras E-mail: meetingplace@ metros uma da outra. O passeio
frias do Norte para o calor do herdadedaurgueira.com de barco é a forma ideal de
Alentejo esperavam uns pelos www.herdadedaurgueira.com apreciar esta paisagem.
outros aqui, junto ao Tejo. Era Castelo Rei Wamba
igualmente ponto de encontro Vila Portuguesa (restaurante) A tradição oral liga este castelo
dos contrabandistas que A vista é excelente, o serviço ao rei visigodo Wamba, mas
sussurravam uns para os outros muito atencioso e na ementa, julga-se que as suas origens
e é composta por pequenos produto- 23 tem agora um novo enólogo resi- “esperais aí”. Com as voltas que a variada, destacam-se as sopas de remontem à ocupação
res”, descreve. “Temos um Virgem dente, José Hipólito, que aqui chegou língua dá, “esperais” ter-se-á peixe (atenção, as doses são muçulmana. A torre de atalaia,
Extra Ródão DOP [Denominação de no início da pandemia. E também um transformado em Perais. generosas). que ainda resiste, data dos
Origem Protegida] que é único no novo consultor para a vinha, o enge- Um dos locais mais bonitos da Rua do Porto do Tejo, 155, séculos XII/XIII e terá sido
mundo, com 95% de azeitona galega nheiro António Selas, que “tem sido Urgueira é a beira-rio, onde está a Cais de Ródão mandada erguer pelos
que se manteve em pequenos olivais fundamental”. réplica de um antigo lagar de Vila Velha de Ródão Templários. A sua localização
tradicionais, numa exploração com “Foi altura para uma certa acalmia, azeite, com a maquinaria original Tel: 272 541 216 privilegiada permitiu, ao longo
muita diversidade: montado de azi- para arrumar a casa”, explica Manue- preservada – ponto de partida E-mail: geral@vilaportuguesa.pt dos tempos, a vigilância da linha
nho, ovelhas, olival.” la. Até porque a covid-19 veio ensinar- para o projecto de olivoturismo de fronteira do Tejo neste ponto
Para valorizar este azeite, criaram nos a todos que “não vale a pena fazer da herdade. Mas essa ligação Ponte do Enxarrique entre Norte e Sul.
até uma garrafa especial, com rótulo grandes planos” porque de um com a vida agrícola passa por Aberto desde 2003, este Estrada Municipal 1373 (acesso a
do pintor Manuel Cargaleiro. É uma momento para o outro eles podem outras coisas, entre as quais o restaurante, situado na margem Vilas Ruivas)
forma de dizer que este produto, par- ser abalroados por algo inesperado. que é servido no restaurante, direita da Ribeira do Enxarrique
te integrante da identidade da região, “O que temos é que ter uma ideia com destaque para o borrego (muito perto do Lagar de Varas), Lagar de Varas
não pode desaparecer. “Nos últimos clara do que queremos para a Adega criado na propriedade. serve comida regional, do sável Este antigo lagar, que esteve ao
cinco anos arrancaram-se mais de mil e o que queremos é qualidade, man- A Urgueira tem sete com açorda de ovas às enguias abandono e foi recuperado,
hectares de olival tradicional para ter a imagem e um determinado per- apartamentos temáticos ligados fritas, passando pelas sopas de permite uma viagem no tempo
fazer outras culturas, frutos secos, Æl, e, sobretudo, ter uma grande pro- às fases do processo de peixe ou o cabrito. para se conhecer os processos
por exemplo. Mas há zonas aqui em ximidade com os clientes.” Proximi- olivicultura (poda, oliva, panal, Estrada Nacional 18, 1081 antigos de extracção do azeite,
que o solo é só pedra, nem erva lá dade que passa muito por visitas à joeira, tulha, lagar e coiro), e Vila Velha de Ródão quando ainda eram usados
nasce, só mesmo as oliveiras.” adega, provas, workshops e, por outro outra unidade composta por uma Tel: 272 541 306 animais. As visitas são guiadas
“Neste momento”, conclui Filipe lado, pela presença de Manuela nos suíte e quatro quartos. E-mail: (no nosso caso por Jorge Reis,
Silva, “apesar do abandono, ainda restaurantes. Tudo coisas complica- Herdade da Urgueira joaquimbelo@hotmail.com que explicou todo o processo e
existe algum olival tradicional”. “Há das quando a covid nos impõe dis- Monte da Urgueira – Vale de Horário: de segunda a sexta, contou várias curiosidades sobre
também alguns produtores que opta- tanciamento. Pousadas, Perais das 12h às 22h, sábado das 12h às a história do lugar) e este é um
ram por um tipo de olival mais inten- Foi, portanto, com tranquilidade Vila Velha de Ródão 16h. ponto de partida ideal para quem
sivo, mas aqui no lagar não aceita- que Manuela continuou a trabalhar. Tel.: 272 073 570/935 360 261 quiser explorar os produtos das
mos esse tipo de azeitona, para não “Este é o Viognier que vindimámos E-mail: meetingplace@ Monumento Nacional Terras de Oiro.
descaracterizar o nosso azeite.” Esta no ano passado”, apresenta. Foi um herdadedaurgueira.com das Portas de Ródão Rua da Estrada, 18
é – tal como o mel, os bolos, o vinho ano no qual as estimativas de produ- www.herdadedaurgueira.com É um dos pontos mais Vila Velha de Ródão
ou o peixe de rio – uma forma de ção falharam. No caso do Viognier bonitos de Portugal. As Portas de Tel.: 272 540 312/963 445 928
resistir, acreditando na força de uma eram de três toneladas e a produção Vila Portuguesa Ródão resultam de uma E-mail: turismo@cm-vvrodao.pt
identidade própria. foi quase de dez toneladas.” Apanha- Para além do alojamento (nove ocorrência geológica natural que
da de surpresa, Manuela aprendeu, quartos), o projecto Vila aconteceu entre as duas
Vinho entre outras coisas, que fazer a vindi- Portuguesa inclui um margens do Tejo, onde o rio
ma só com voluntários e com uma restaurante, no cais fluvial de Vila
Tínhamos visitado a Adega 23 depois produção destas é inviável. Velha de Ródão, passeios de NICOLAU BOTEQUILHA
da vindima de 2018. Voltamos três Mas foi também uma oportunida- barco (para grupos maiores ou
anos (e uma pandemia) depois para de. “Se tivéssemos tido uma produ- menores, e com a possibilidade
encontrar a oftalmologista Manuela ção mais baixa não teríamos podido de refeição a bordo) pelas Portas
Carmona animada como sempre e fazer o monocasta, porque o Viognier de Ródão (todos os dias, sob
entusiasmada com os novos vinhos é importante para o nosso [blend de] reserva pelo 272 541 216 ou 272
que está a lançar – entre os quais um branco.” Assim, a Adega 23 apresen- 541 138) ou na zona onde é
espumante. A aposta que fez numa ta o Viognier e um monocasta tinto, possível ver as gravuras do
região de onde a vinha estava pratica- o Syrah, de 2018 (demorou mais tem- Complexo de Arte Rupestre do
mente desaparecida e onde fazer po a ser lançado porque passou por Vale do Tejo.
agricultura é particularmente difícil, madeira), ambos com cerca de 3000 Vila Portuguesa
está a revelar-se ganhadora. É em garrafas. Além, claro, do espumante Rua das Pesqueiras, 33
frente a uma fatia de bolo de choco- de Arinto e feito pelo método clássico. Vila Velha de Ródão
late e a um copo de espumante que O primeiro já foi lançado, o próximo Tel.: 272 541 138
pomos a conversa em dia. sairá em Outubro, a seguir à vindima. E-mail: geral@vilaportuguesa.pt
O difícil não é lançar um projecto, A tempo, espera-se, de celebrarmos www.vilaportuguesa.pt
diz Manuela. O mais complicado é novos recomeços.
mantê-lo quando ele já está lançado.
A consultoria continua a cargo do A Fugas viajou a convite do
enólogo Rui Reguinga, mas a Adega Município de Vila Velha de Ródão
8 | FUGAS | Sábado, 17 de Julho de 2021

Desenhar Portugal em bicicleta

Os primeiros quilómetros

a Foram nove anos da minha vida a


viajar e a desenhar arquitectura, pes- Vila Real de Santo Mértola
soas, culturas e sabores para, um dia, António 17 de Junho, 29km
poder trazer todo esse conhecimen- 14 de Junho
to para Portugal. Ainda assim, uma O melhor momento foi o chegar à
coisa eu já sabia, no arranque de uma vila e as árvores irem desvendando
nova aventura há sempre medos e Foi do canto mais a Este do Algarve, o majestoso castelo. Foi nesse
incertezas. com cheiro a maresia, que a primei- momento que subimos a um monte
Preparámos, quilómetro a quiló- ra manhã chegou. O som das rodas em busca da melhor vista. O branco
metro, os lugares que podiam dar um das bicicletas juntou-se ao das gaivo- das casas contrastava com o alaran-
bom desenho. A experiência ensi- tas em busca de comida. Na praça, jado esbatido dos telhados e toda a
nou-nos que em bicicleta não há passavam os matinais trabalhadores vila parecia abraçada pelas mura-
luxos. Cadernos A5 e material de e a plana estrada inicial pedia para lhas. Lá dentro, as estradas são todas
desenho, que cabe numa mochila de apreciarmos a vida quotidiana. de pedra e as pessoas que passam
cintura e uma cadeira leve para me dizem-nos: “Bom dia”!
sentar a desenhar. Mas esta viagem
é diferente de todas as que já Æz. Não Alcoutim
tanto pelo tempo que iremos levar a
percorrer Portugal, mas pelo facto
16 de Junho, 53km
de estar no “meu país”. Começámos a viagem pela Grande
Rota do Guadiana. Rodámos sobre
asfalto e terra batida. Vimos cobras,
rios, pontes e fomos brindados por
um clima fresco. Nada mal para
começar! 53 quilómetros depois,
chegávamos às ruas inclinadas de
Alcoutim com vista para o rio Gua-
diana. Do outro lado é Espanha, mas
era de uma esplanada portuguesa
que se escutava música espanhola.
https://worldsketchingtour.com/
Sábado, 17 de Julho de 2021 | FUGAS | 9

Luís Simões e Anisa Subekti estão a dar a volta a Portugal em bicicleta. Devagar, com tempo
para pararem e desenhar (ele) e fotografar (ela). Começamos hoje a acompanhar esta viagem,
que arrancou em Vila Real de Santo António e chegou nesta primeira etapa a Mourão.

Mourão
20 de Junho, 70km
Dois dias seguidos de muitos quiló-
metros começavam a dar-nos algu-
ma fadiga. A vontade de não perder
tempo com descansos “desnecessá-
rios” e ir para as ruas desenhar fala-
va mais alto. Demos voltas e mais
voltas pela pequena vila de Mourão.
Poucas pessoas passavam. Ana, a
dona da casa onde estávamos a Æcar,
levou-nos a descobrir as inúmeras
chaminés de topo arredondado,
recantos pitorescos e subimos à tor-
re do castelo, onde nos sentámos a
olhar pela janela a ver as andorinhas
voarem. Luís Simões

Serpa
19 de Junho, 76km
À medida que íamos entrando
pelo grande Alentejo, as searas
loiras e ovelhas em busca de
sombra foram aparecendo. Os
campos e vales inspiravam-nos
a cada quilómetro para parar de
pedalar e tirar mais uma foto-
graÆa. No Æm de um longo dia,
os alentejanos de Serpa apare-
ceram à hora de jantar e muda-
ram o canto da noite.
10 | FUGAS | Sábado, 17 de Julho de 2021

Cinfães

Da serra ao rio, a harmonia


entre a ruralidade e a natureza
Seguir um rebanho e o seu pastor, encher os pulmões de ar puro e os olhos de vistas
panorâmicas e relaxantes. E, claro, mimar o estômago com boa comida. Durante três dias,
andámos a coleccionar postais em Cinfães. José Volta e Pinto
Sábado, 17 de Julho de 2021 | FUGAS | 11

a No encontro do Douro com o Pai- o hábito. Deus anda connosco e pro- A primeira noite da jornada por
va, Cinfães preserva a ruralidade de tege-nos. Sinto-me bem, sinto-me Cinfães termina com uma visita e jan-
outrora, ao mesmo tempo que guarda feliz.” E transparece essa felicidade tar no Museu EtnográÆco da Nespe-
a natureza de sempre. Das margens ao mesmo tempo que nos mostra as reira, criado pela Associação Recrea-
do rio Bestança às altitudes e ventoi- peças de artesanato que vai fazendo tiva do Grupo Folclórico de Nesperei-
nhas do cimo da serra de Montemuro, enquanto acompanha o rebanho ra para preservar o património
com vistas distantes para todo o vale,
a região oferece vários tipos de paisa-
pelos montes. Na mão, um saco cheio
de carqueja para fazer chá. Já nós dei-
Qual é o sítio material e tradicional da região.
Durante a refeição, o primeiro con-
gem, actividades e pontos de interes-
se – acompanhando sempre a visita
xamos Emília com duas bonitas inter-
acções na memória.
mais bonito de tacto com a boa carne arouquesa.

com uma excelente gastronomia


local. E sempre perto do meio urba- Romarias no planalto
Cinfães? Abel Serra ou rio,
ruralidade ou natureza
no, a uma hora das cidades do Porto,
de Viseu ou de Vila Real.
e tradições na Nespereira não responde e Depois de uma noite de descanso na

Seguir um rebanho
Subimos um pouco mais a serra, até
aos 1136 metros de altitude, onde a
sorri. É Aveloso, Casa Rural da Costeira, o segundo dia
de viagem começa cedo, no ponto
(ou dois!) na serra Capela de São Pedro do Campo, data-
da do século XVIII, se destaca no meio
pois claro, com mais alto do Vale do Bestança, a 1800
metros de altitude, onde encontra-
O início da visita de três dias da Fugas
a Cinfães começa no alto da serra, na
de vasto planalto verde e rochoso.
Todos os anos se realiza aqui a roma- a vista sobre as mos as Portas de Montemuro. Daqui
a vista capta a norte todo o vale do rio
exploração dos trilhos dos pastores
com a actividade “Segue o Rebanho”.
ria do São Pedro, nos Ænais de Junho,
que reúne milhares de visitantes. encostas da Bestança até ao Douro, onde o aÇuen-
te desagua depois de 15 quilómetros
O programa pode ser marcado atra-
vés da autarquia, que entra em con-
Aproveitamos para provar vinho
verde da região, queijo e presunto serra, repletas de serpenteado. Encontramos deste
lado das portas a capela de Nossa
tacto com os pastores, mas nem todos
estão envolvidos no projecto.
oferecido por quem nos guiava por
Tendais. Pelo meio, uma conversa de urze, e as Senhora do Amparo, com construção
que data de 1758. Para sul, o olhar
É o caso de Abel, que encontramos sobre o empenho em divulgar a região recai sobre o vale do Paiva e as serras
perto da aldeia de Aveloso, um encon-
tro do acaso motivado por um equí-
e a malograda pandemia. O presiden-
te da Junta de Tendais, André Almei-
estradas que a do Centro de Portugal, da Estrela ao
Caramulo, passando pelo maciço da
voco. Não tem problema, recebe-nos
sem hesitar, ele mais os três cães aten-
da, realça o grande trabalho que
vinha a ser realizado até Março de
serpenteiam Gralheira – e é para lá mesmo que
vamos.
tos que o acompanham na guarda das 2020 e mostra-se conÆante para o que Uma visita a Cinfães não pode dei-
cerca de 60 cabras que pastoreia. se avizinha. Por tudo o que a região xar de incluir uma passagem pela
Abel diz ser o último pastor de Avelo- tem para oferecer, com destaque par- “princesa da serra”: a aldeia da Gra-
so. As cabeças de gado que agora tem ticular para a população local. “Rece- lheira, a mais de 1100 metros de alti-
poucas são comparadas com as “mil bem muito bem o turismo e colabo- tude, uma das mais altas de Portugal
e tal” que em tempos subiam e des- ram”, elogia. – os locais reclamam a distinção para
ciam estas mesmas encostas da serra FOTOS: DR si, mas há disputa do título com Pitões
de Montemuro. Há pouco trabalho, de Júnias, em Montalegre. Apesar do
agora. retorno de alguns emigrantes, e con-
Abel, de 67 anos, solteiro, conti- sequente descaracterização de algu-
nuou o trabalho que o seu pai tinha. mas casas, a aldeia ainda preserva
E já vinha do avô. Está vacinado, mas muitas marcas de outrora. Para
não liga muito ao que se passa com “a conhecer a vida difícil de uma aldeia
doença”. “Já acabou ou ainda vai que passava os Invernos isolada devi-
Æcar?”, inquire. Viver na paz da serra do ao tempo agreste da serra, reco-
permite-lhe desligar-se da pandemia. mendamos uma visita às Serranitas
E qual é o sítio mais bonito de Cinfães, da Gralheira.
perguntamos? Abel não responde e É uma casa típica que mantém
sorri. É Aveloso, pois claro, com a vis- todas as características, como o tecto
ta sobre as encostas da serra, repletas de colmo ou as paredes de granito,
de urze, e as estradas que a serpen- apesar de restaurada em 2012. Per-
teiam. tencia ao alfaiate da aldeia, o
Deixamos Abel e partimos ao tio Manel, e à tia Madalena. Continua
encontro da pastora que nos espera- na família, servindo de casa – casa de
va, Emília. Vive em Fermentões, uma artesanato e lar para um projecto que
localidade mais abaixo na serra, e faz é iniciativa da sobrinha, Helena. Pre-
Ioga em cima de oito quilómetros por dia para acom- tende dar a conhecer e preservar os
pranchas de panhar as cabeças de gado que tem. ofícios, a cultura e os costumes da
paddle é uma A dona Emília foi criada no meio da Gralheira, como o modo de vida dos
das actividades costura, fez-se costureira em Cinfães, antepassados ou a história do capu-
que a Kay.up mas mudou-se para o pastoreio por cho de burel, traje típico dos mais
Douro Valley tem gostar da actividade. Conta o presi- carenciados feito de um material que
disponíveis no dente da Junta de Tendais que a agora serve para produzir peças de
rio Bestança; ao mudança da pastora aconteceu artesanato. Ainda na senda das tradi-
lado, o pastor depois de uma paixoneta que não deu ções locais, o centro interpretativo da
Abel , de 67 em nada. Gralheira (a Casa do Ribeirinho), está
anos, que Emília sai com o gado de manhã, aberto a visitas por marcação duran-
encontramos na depois de tratar do que está em casa, te todo o ano.
serra com as onde ainda tem mais cabras e bois. Para completar a passagem pela
suas cabras Tal como Abel, também vive sozinha. Gralheira, os dois restaurantes da
Mas não se sente só, nem passando aldeia convidam também a uma refei-
os dias na companhia dos animais e ção tradicional. Desde a vitela arou-
do silêncio da montanha, apenas cor- quesa ao cozido, passando pelo cabri-
tado pela central de energia eólica. “É to assado em forno de lenha, c
12 | FUGAS | Sábado, 17 de Julho de 2021

Cinfães
FOTOS DR

i
Contacto com
a natureza para
relaxamento total
Victor Hugo e Cátia Ferreira
trocaram há cinco anos o
corrupio da urbe pelo verde de
Cinfães. Encontraram a paz e
calma que desejavam e
decidiram no ano passado
lançar a Kay.up Douro Valley,
que tem como objectivo pleno
“o contacto profundo com a
natureza” – e com grande
enfoque no rio Bestança.
Conseguem-no através da
mistura de técnicas “holísticas e
terapêuticas, de cariz mais
oriental”, com actividades
como o caiaque ou o stand-up
paddle, explica-nos Victor.
A Kay.up Douro Valley tem
assim sessões de sup-ioga (ioga
em pranchas de paddle), para
além de outras actividades
“dentro desse conceito
holístico” como tai-chi ou
sessões de meditação. Sempre
“com cenários naturais”.
As sessões começam no Porto
Antigo, com os participantes a
ninguém sai mal servido com os Segunda paragem: estamos já per- up paddle para uma sessão de ioga do Paiva que visitamos o Parque Flu- subirem depois o rio nas
vários pratos típicos da região. to das margens do rio Bestança, um diferente, que explora o meio natu- vial Km 10, onde mais uma vez há um pranchas até a uma zona do rio
Durante o ano, a autarquia de Cin- dos mais limpos da Europa, quando ral para experiências únicas de rela- convite à envolvência com a nature- Bestança onde é possível estar
fães tem também dinamizado a visitamos o Centro de Interpretação xamento e meditação (ver caixa). za. O espaço teve algumas interven- em “contacto total com a
aldeia com actividades que já come- do Vale do Bestança. Na aldeia das O dia já se alonga, e antes de uma ções junto ao rio “para garantir abri- natureza”. Há eventos
çam a trazer gente de vários cantos Pias, no edifício que até há poucos visita ao Porto Antigo, na conÇuência go para os animais”, num esforço marcados, mas também podem
do país. Falamos da Aldeia do Pai anos era uma escola primária, pode- do Bestança com o Douro, regressa- pensado para “preservar ao máximo ser agendadas sessões por
Natal, que este ano vai para a sexta mos conhecer mais sobre a fauna e mos a Cinfães, ao restaurante Rabe- a fauna e Çora” do lugar, explica-nos marcação individual.
edição e convida as famílias para um Çora do vale durante todo o ano, da lo, para experimentar um outro Carlos Cardoso, vereador da Câmara O projecto do casal vai
local que se embebe do espírito fes- Primavera ao Outono, com quatro prato típico da região (e delicioso): o de Cinfães responsável pelo pelouro também desenvolver ao longo
tivo durante o Inverno. Outrora duro salas dedicadas a cada uma das esta- arroz de aba. Um prato que surgiu da do Turismo. do ano uma série de concertos
e motivo de isolamento da aldeia, ções e ecrãs interactivos. necessidade de os feirantes aprovei- O parque tem um bar para refei- meditativos. O conceito é
essa altura do ano surge agora como E o rio, por Æm. Da aldeia das Pias tarem a aba da vitela para uma refei- ções, mas conta também com parque semelhante às sessões na água:
uma oportunidade para atrair visi- até às margens do Bestança são pou- ção com o que sobrava no Ænal de de merendas para quem quiser levar “O público está nas pranchas,
tantes. cos minutos de viagem. Descemos a um dia de trabalho. as suas provisões. O espaço, onde se assiste ao concerto deitado e os
Vale também a pena passar pela íngreme Calçada das Cinco Rodas (e pode até acampar, tem também músicos estão aqui na margem
Ponte da Panchorra, uma construção o que custa subi-la depois!) até a um Douro e Paiva a uma viagem estruturas de apoio para rafting e com os pés na água. O que
de arquitectura vernacular, com dois local onde nos esperam Victor Hugo outras actividades, para além de um torna isto muito interessante é
de barco de distância
arcos, que une as margens do rio e Cátia Ferreira, os criadores do pro- anÆteatro para concertos ou acções que, como são concertos
Cabrum, outro rio de pequenas jecto Kay.up Douro Valley. Cátia está O último dia da visita a Cinfães come- de sensibilização ambiental. meditativos, só usam
dimensões que nasce na serra de em cima de uma prancha de stand- ça junto a outro rio. É nas margens Viajamos entretanto até à con- instrumentos vibracionais. Ou
Montemuro e desagua no Douro. Um Çuência do Paiva com o Douro. Há seja, além de os ouvirmos,
espaço onde o silêncio é cortado ape- partida do cais de Escamarão para conseguimos sentir as
nas pela corrente do rio e pelo choca- um passeio de barco. Entramos Pai- vibrações na água”, explica
lhar do gado, ideal para merendar ou va adentro, o que nos permite admi- Victor.
descansar à sombra das árvores. rar as margens repletas de vegetação
Desçamos em direcção ao rio. Pelo e a água calma deste aÇuente. No
caminho, duas paragens. Porque regresso, reentramos nas águas vas-
estamos no concelho de Cinfães, vale tas do rio Douro, contornando a ilus-
a pena visitar a vila. Passamos pelo tre Ilha dos Amores, bem perto do
Museu Serpa Pinto, onde podemos cais onde voltamos a atracar.
Æcar a conhecer a história do General Não poderíamos terminar de outra
Alexandre Serpa Pinto, um militar e forma que não à mesa. Ficamos mes-
explorador português natural de mo à face da N222, na Encosta do
Cinfães, e ver algum do seu espólio, Amial, para nos despedirmos com
obtido através de doações. O museu uma posta arouquesa. Quando é que
tem ainda disponível uma outra regressamos mesmo?
exposição com alguns artefactos da
investigação arqueológica realizada A Fugas viajou a convite do
no concelho. Município de Cinfães
Sábado, 17 de Julho de 2021 | FUGAS | 13

Crónica

O ano em que Deus deixou de existir


HUMBERTO LOPES

Humberto Lopes
a Naquele dia em que acordou
muito antes do amanhecer,
inquieto pela jornada que se
avizinhava, o viajante pensou que
as promessas do mundo sempre se
cumpriam de uma forma ou de
outra e que cada coisa tinha o seu
lugar no inalienável caminho para
a felicidade. Acordou e
levantou-se. Daí a meia hora estava
a deixar a cidade num velho
Land-Rover em direcção a uma
montanha coberta de nevoeiro. O
viajante era jovem, aquela era uma
das suas primeiras viagens. Ao
volante ia um caçador branco.
Quando saíram de casa, o dia
não tinha ainda nascido, mas, à
medida que iam subindo a
montanha, despertavam os
primeiros sinais da aurora. O jipe
avançava aos sacões pela picada
rasgada pela luz dos faróis.
Pequenas rochas, como seixos
rolados descobertos pela maré
vaza, aÇoravam do solo arenoso.
Nas bermas do caminho, árvores
retorcidas estendiam os ramos
sobre o tejadilho do veículo.
Apesar do frio, o jovem viajante
decidiu subir para a carroçaria.
Mesmo com o trovejar do motor
conseguia ouvir os pássaros nos
seus cantos matinais. Cheirava a
terra, às folhas das acácias
fustigadas pela cabina do jipe, à
humidade dos restos do cacimbo aculturações e tinham-se Na primeira noite, houve uma penedo onde o caçador branco
da noite. habituado a consumir produtos batida. Veio da aldeia, iluminada tinha um joelho no chão e a arma
A picada que atravessava aquele que vinham do litoral e que a loja por archotes, uma meia dúzia de apontada. O animal estacou,
pedaço de montanha não era da roça tinha para troca ou venda. homens. Em Æla indiana, o confuso, sem saber que direcção
longa e em menos de uma hora A casa, um piso térreo de caçador branco, o jovem viajante e tomar, hesitação fatal. O
estavam a descer para a savana. Os
primeiros raios de sol ajudavam a
construção rudimentar, cimento e
cobertura de zinco, era muito
os caçadores munidos de azagaias,
arcos e Çechas percorreram uns
O mundo já estampido repercutiu-se com um
eco através do vale e a gazela foi
desfazer a neblina e a certa altura
tiveram que esperar que um
simples. Além da venda, havia
mais três dependências: um
poucos de quilómetros sem que
pudessem avistar mais do que os não era igual atingida mortalmente. O odor a
sangue era forte e o corpo do
elefante especado no meio da
estrada acabasse de arrancar a
armazém, um quarto e uma
cozinha, onde eram tomadas as
olhos acesos dos gatos selvagens e
escutado o tropel dos bichos ao da véspera. pequeno animal sofria ainda os
últimos estertores da vida que se
escassa folhagem de uma acácia. O
tempo da seca Ændava-se, mas era
refeições. A construção era tosca,
típica de pioneiros ou colonos, e a
assustados.
No dia seguinte, logo que se fez O jovem escoava quando os batedores o
arrastaram até aos pés do caçador
ainda pouca a ramagem capaz de iluminação fazia-se com dia, outra batida. Num estreito branco. O atirador quis uma
alimentar com fartura bichos de candeeiros a petróleo, cujo cheiro vale pincelado ainda por farrapos viajante fotograÆa e sorriu para a máquina.
tal tamanho. só desaparecia durante o dia. de neblina, um grupo de batedores No dia seguinte, durante a
Chegaram à roça quase três
horas depois, atravessando uma
Naquela zona planáltica as manhãs
eram límpidas, o ar fresco
nativos armados de arcos e Çechas
avançou aos gritos, forçando
cogitava em viagem de regresso, havia de novo
neblinas sobre as montanhas, a
planície de savana e voltando a
trepar por uma picada acidentada
atalhado gentilmente por um sol
cálido cuja memória os sentidos
gazelas e antílopes na direcção de
um penedo elevado, onde o
silêncio que savana era a mesma e mesmas as
acácias com as mesmas Çores
com o mesmo caminho de pedras.
Naquela área de penedias e vales
do jovem viajante conservariam
pela vida fora. As noites
caçador branco esperava
empunhando uma espingarda de
nem a viagem despontando e anunciando o Æm
da estação seca. Mas o mundo já
criava-se gado e o espaço das
pastagens era partilhado com uma
enchiam-se de uma particular
excitação: entravam pelo sono,
grosso calibre. Os urros que
ecoavam no vale assemelhavam-se
parecia capaz não era igual ao da véspera. O
jovem viajante cogitava em
comunidade de nativos. Era uma
população de caçadores que se
sem cessar, ruídos que vinham do
exterior, aves nocturnas, pios de
a um canto guerreiro entoado em
uníssono. Os animais, tomados de
de cumprir as silêncio que nem o mundo nem a
viagem pareciam capazes de
ocupava também com alguma
agricultura em lavras espalhadas
mochos, choros e gargalhadas de
hienas, uivos distantes e
pânico pelos gritos da turba que
avançava em linha, punham-se em
promessas cumprir as promessas imaginadas.
Isso tudo foi no ano em que ele
pelo vale. Com o tempo, os
caçadores foram passando por
enigmáticos que chegavam do
fundo dos vales.
fuga para a armadilha. Uma gazela
correu desnorteada até perto do imaginadas disse à mesa do jantar que não lhe
parecia que Deus existisse.
14 | FUGAS | Sábado, 17 de Julho de 2021

Herdade da Malhadinha Nova

São duas décadas entre o turismo,


os vinhos, a agricultura.
A Malhadinha aposta na
sustentabilidade e no biológico,
no tempo e no espaço: são seis
alojamentos de topo em
455 hectares. Luís J. Santos

A Malhadinha
Nova em
busca da
sustentável
leveza do luxo
a Amanhece. Espero os primeiros cia social e real é garantida - pode
raios de Sol aquecerem a água. A pis- andar-se uma hora até chegar a outra
cina é toda minha, todo o Alentejo casa ou ao restaurante gourmet che-
parece meu, do alto desta Casa do Æado pela “estrela Michelin” de Joa-
Ancoradouro, um “monte” inspirado chim Koerper, para ir espiar as outras
na terra e na sua cor, pavimento cria- estrelas da propriedade: as ovelhas
do pelo mestre de Beringel a partir merinas que trabalham nas vinhas, as
deste mesmo chão em que estamos, vacas alentejanas, os cavalos puro-
que, com mais traços alentejanos, se sangue lusitanos, os porcos pretos e
mescla com peças de design de topo mais uma imensidão de bicharada,
internacional ou um centenário piano que, de patos a galinhas, vive tudo em
de cauda Steinway e um icónico can- extensivo e em (quase) liberdade.
deeiro de Marcel Wanders. O peque- Numa herdade que se tornou um íco-
no-almoço rico espera-me ao lado da ne do turismo de luxo graças ao tra-
água, a passarada é a banda sonora, balho e visão da família Soares - os
tudo à volta é campo aberto, além a casais Rita e João, Paulo e Margaret -,
beleza das vinhas, ali a ribeira, a mui- com uma marca respeitada, e agora
ta distância outras casas. Mergulho renovada, de vinhos a azeites e mel,
nesta piscina inÆnita alentejana, vol- que se pode querer mais do futuro?
to à tona e bebo o cenário. Umas “É preciso que tudo mude para que
andorinhas cruzam os céus frente aos tudo Æque igual”, dirá João Soares, na
meus olhos. O que é o luxo? Na Her- apresentação da nova comunicação
dade da Malhadinha Nova, 20 anos da Malhadinha Nova, citando O Leo-
depois da estreia, o luxo é todo este pardo de Tomasi di Lampedusa.
espaço e todo o tempo. Não é barato, O percurso “foi vertiginoso”, o pro-
nunca Æca por menos de umas cente- jecto atinge agora a “sua maioridade”,
nas de euros por noite, até muito sublinha João: “Recuperámos todas
mais, num dos 30 quartos em seis as casas que havia para recuperar,
alojamentos - uma grande expansão plantámos toda a vinha que podíamos mas aqui na Malhadinha chegou o produzido em regime biológico com ambientais de reaproveitamento de
recente, eram só dez quartos. [são agora 80 hectares] - não podere- momento de desfrutar”. Mas com certiÆcação desde 2020” e, além de águas, etc. - e a auto-suÆciência -
Parece grande o aumento? A her- mos nunca mais voltar a plantar vinha pilares que a família defende com integrarem o plano de sustentabilida- incluindo energética: vêm aí 450 pai-
dade já tem 455 hectares (a que se nesta terra, não existem projectos unhas e dentes: a sustentabilidade de dos vinhos do Alentejo, Æzeram a néis solares. Muito críticos das cultu-
junta outra da mesma dimensão para além daquilo que está.” Existem global “e humana” - “vinhos, olivais, preservação de bosques e searas, do ras intensivas que atazanam partes do
arrendada mesmo ao lado), a distân- “outras oportunidades a aproveitar, pastagens, animais, hortas, tudo é pastoreio tradicional, têm planos Alentejo, um “atentado ecológico”,
Sábado, 17 de Julho de 2021 | FUGAS | 15

FOTOS: DR
lariças e que também serve de recep-
ção –, a coudelaria, também novinha
em folha, estreada em 2020, onde
éguas e garanhão de puros-sangue
lusitanos garantem a competição e
o turismo equestre, reino do cavalei-
ro Pedro Sousa –, e, claro, o restau-
rante gourmet cheÆado por Joachim
Koerper, que tem uma estrela Miche-
lin em Lisboa graças ao Eleven. Mas
o chef não está sozinho: conta com
o chef residente Rodrigo Madeira e
com Vitalina Santos, cozinheira alen-
tejana de mão-cheia especialista na
tradição da região. Com produtos da
herdade (da carne à horta e mais
além) e das vizinhanças, a partir da
cozinha do Alentejo, propõem-se
vinho mais popular, junto com o criações originais que podem ir do
i Malhadinha, edições especiais e
outros, incluindo quatro novidades
tártaro de novilho DOP com queijo
de Albernoa, ovo biológico, folhas da
fresquinhas, apresentadas pelo enó- herdade e batata-doce de Aljezur (18
Herdade logo residente Nuno Gonzales, que euros) ao mil folhas de bacalhau com
da Malhadinha Nova trabalha com o consultor Luís Duar- brandade e coentros (24 euros); do
7800-601 Albernoa te). Em 2008, dez anos depois do lombinho de porco preto DOP com
Beja - Portugal início do projecto e da aquisição de beterraba, cogumelos, aipo e poejo
Tel.: 284 965 432 / 429 (hotel), mais terrenos e recuperação de ruí- (26 euros); sempre com pão da terra
284 965 210 / 211 (adega), 284 nas e casas (em colaboração com a e os melhores vinhos (da herdade,
965 210 / 211 (restaurante) arquitecta Joana Raposo), abriu-se ao claro, mas não só), até sobremesas
GPS: 37° 49’ 50.60”N, 7° 59’ turismo exclusivíssimo (dez quar- como as deliciosas texturas de cho-
20.91” W tos…). colate e calda de caramelo (14 euros)
malhadinhanova.pt Depois desta Country House – aqui mais um toque familiar, já que
Preços: alojamento (monte típico alentejano revisto) e é a chef Cintia Koerper, a mulher do
desde 300 euros em quarto da Venda Grande (antiga mercearia), mestre da cozinha, a tomar conta da
duplo e desde 350 euros em chegaram mais recentemente e ain- área mais
suíte, em villas desde 600 euros da a cheiram a fresco as casas do É que por aqui, família é, realmen-
– reservas mínimas de duas Ancoradouro (a de terracota e mais te, uma palavra-chave sempre a ligar
noites; restaurante com menus elevada), das Pedras (singularíssi- as ideias: “Acho que aqui consegui-
desde 35 a 55 euros (sem mas e intimistas, suítes cada uma mos manter esse equilíbrio, o da sus-
bebidas). com terraço e piscina privados, blo- tentabilidade humana”, como nos
cos em “concreto pigmentado à cor dirá João Soares. E é até com alguma
Porto. Ribatejanos, Maria Antónia e dourada da palha”) e das Artes e Ofí- emoção que o co-proprietário assume
João Soares (já falecido) emigraram cios (villa com dois quartos, recupe- que os investimentos feitos são tam-
para França, trabalharam (ela ração de um antigo espaço comuni- bém a pensar na próxima geração, no
doméstica em casas, ele a supervi- tário da aldeia em ruínas e por isso “planeta que vamos deixar aos nossos
sionar limpezas) e pouparam, inves- repleta de artesanato local). Por Ælhos”. Entre apoios e fundos pró-
tiram em Albufeira. Abriram até um estes espaços é apontar o dedo e prios, foram já cerca de cinco milhões
minimercado, onde pais e Ælhos tra- descobrir detalhes da tradição alen- de euros desde 2017, que Æzeram todo
balharam aÆncadamente. “Foram tejana mas também Philippe Starck, o projecto, entre a vitivinicultura e
muitas horas na caixa”, lembra o serviços em casquinha da ChristoÇe agricultura, permitir-lhes aÆançar
Ælho Paulo. Os pais incutiram-lhes a e serviços Vista Alegre, mobiliário que são “totalmente biológicos nos
“cultura do trabalho”. “Temos orgu- antigo restaurado e marcas icónicas 455 hectares da propriedade”. Quase
lho desse início dos nossos pais, como a Olaio, designers vanguardis- uma reserva natural em actividade,
orgulhamo-nos do nosso trajecto, os tas como Umut Yamac ou mestres ainda com arestas para trabalhar, jun-
nossos pais sempre exigiram muito como Alvar Aalto, produtos Hermès tam a isto tudo apostas no apoio a
de nós, mas sempre nos deram mui- ou Bulgari… E muito mais, tudo a entidades locais – inclusive com auxí-
to.” “O que temos hoje devemos a juntar-se para criar uma espécie de lio de materiais de protecção a lares
eles, deram o seu passo de gigante”, elegia em comunhão com a beleza e do concelho durante a pandemia – e
aproveitam o boom turístico dos anos desmesura da paisagem circundan- na manutenção da equipa (há quem
de 1980. É esse espírito que se pres- te. Entre quartos, suítes ou casas esteja cá a trabalhar há mais de duas
João e a família Soares (incluindo a o seu trabalho também: João e Rita, sente por todo o lado – repare-se que privadas, os terraços e as piscinas, décadas). Mas, apesar do espaço que
matriarca, Maria Antónia, e sete Ælhos Paulo e Margarete, cada um tem o até os rótulos dos vinhos da Malha- uma coisa é certa neste turismo que parece inÆnito, não conseguem parar
entre os dois casais que gerem o negó- seu papel na direcção dos vários dinha Nova têm sido feitos a partir já integra a exclusiva rede Relais & quietos: depois de duplicarem a vinha
cio) vivem também aqui parte das segmentos do negócio: João gere a de desenhos criados e assinados Châteaux: só é preciso ter dinheiro junto à Albernoa e de assegurarem
suas vidas. E se o negócio aqui é luxo, produção vitivinícola e agro-pecuá- pelos Ælhos de Paulo e João. A auto- suÆciente para poder pagar este todas as uvas que precisam para os
parecem nunca esquecer o outro ria, Rita é a embaixadora da hotela- suÆciência corre-lhes no sangue, luxo real, o resto é paz. seus vinhos pela primeira vez, aca-
pilar de todo este puzzle de natureza ria e faz o design de interiores, Pau- assim como essa ligação contínua bam de adquirir vinha em Portalegre
e luxos: precisamente, a família. lo Æca pelas áreas tecnológica e entre a tradição e a inovação, entre O Alentejo e o mundo e ascendem aos vinhos de altitude:
Ænanceira, Margaret é investigadora o melhor da terra e o melhor do são uvas a 700m na serra num “vale
casam-se na cozinha
Uma herdade familiar em em vitivinicultura. mundo. encantado”, como diz Paulo. Um
Tal como acontece na empresa- Junto à vila de Albernoa, toda no A tudo isto juntam-se a adega em outro mergulho no futuro para a famí-
que tudo se quer do melhor
raiz de tudo isto, a célebre garrafeira concelho de Beja mas ali mesmo ao declive, a nova sala de visitas que é lia Soares.
A palavra família não é só marketing. Soares, criada pelos pais de João e lado de Castro Verde, a Malhadinha loja com todos os produtos produzi-
A família no seu conjunto dá a cara Paulo, que, em 38 anos de vida, che- Nova começou pela recuperação do dos na herdade e bar de vinhos, a A Fugas esteve alojada a convite
pelo projecto, humanizando-o, e dá gou às 25 lojas no Algarve e uma no Monte da Peceguina (que dá nome ao Taberna – erguida em antigas cava- da Herdade da Malhadinha Nova
16 | FUGAS | Sábado, 17 de Julho de 2021

Kappo

a Omakase signiÆca, em japonês,


algo como “Æcar nas mãos do chef”.
É isso que nos é proposto no novíssi-
mo Kappo, que acaba de abrir em
Cascais, com uma equipa liderada
por Tiago Penão, e que inclui outros
elementos que, tal como ele, vieram
do Midori, o japonês do Penha Longa
– e trazem a escola de rigor mistura-
i
do com criatividade que é a deste
restaurante cheÆado por Pedro Kappo
Almeida. A. Emídio Navarro, 23 A,
Fiquemos, portanto, nas mãos Cascais
do chef – e, já agora, de Andrea Tel.: 214 844 122
Smith, a sommelier também ex- E-mail: reservas@kappo.pt
Midori, que nos acompanha Menu Sakai - 50€
toda a refeição com uma esco- Menu Danketsu - 85€
lha de vinhos e de sakés que Existe também a opção
vai ser, ao mesmo tempo, à la carte
uma aula sobre o comple- Horário: variável de acordo
xo mundo desta fascinan- com as restrições. De
te bebida japonesa, dos momento, das 12h30 às
tipos de fermentos 15h30 e das 19h30 às
usados ao grau de 22h30. Encerra ao domingo
polimento do arroz. No e segunda. Quando não
Ænal, Æcamos com a cer- houver restrição de
teza de que daria para um horários, só jantares das
curso de muitos anos. Mas, 19h à 0h30.
enÆm, o importante é come-
çar.
Sentamo-nos ao balcão, o que
permite ir ouvindo as explicações de
Tiago Penão, à medida que vai colo-
cando os pratos à nossa frente. Come-
çamos com um chawanmushi, pudim
japonês salgado com dashi feito com
consomé de galinha e soja branca e
um puré de milho.
Seguindo a lógica do menu kappo
(diferente do kaiseki, que é outro tipo
de menu de degustação de alta cozi-
nha no Japão), teremos ao longo da
refeição cinco formas de confecção

Um restaurante
dos ingredientes: grelhado, cozido
em caldo, cru, frito e ao vapor. São
preparações delicadas, um trabalho
de detalhe, muitas vezes sabores sua-

que é uma
ves, subtis, aqui combinadas, em
alguns pormenores, com técnicas da
cozinha francesa.
A primeira fase da refeição no

aula de cozinha
menu Danketsu, que experimentá-
mos (85€) inclui, além do cha-
wanmushi, tártaro de toro (a parte
mais gorda da barriga do atum) com

japonesa
caviar, um sunomono (caldo) de sapa-
teira de Cascais, e o ankimo, que é um
fígado de tamboril cozinhado com
saké, soja e mirin e acompanhado
com a raiz ralada de wasabi fresco,
que Tiago coloca no balcão para que

Uma equipa vinda, em parte, do possamos conhecer.


A seguir, o suimono é igualmente

Midori, acaba de abrir em Cascais um caldo suave, desta vez com amêi-
joas à Bulhão Pato abertas com saké;
um restaurante japonês onde o o mukozuke (prato que deve mostrar
o sashimi sazonal) apresenta lula
mostrar e explicar o katsuobushi, ou
bloco de atum bonito seco, fumado e
mosto do saké, e todo o peixe passa
por uma cura, em sal ou em algas,
respeito pelo mais clássico desta gigante dos Açores, sal de Okinawa e
beurre blanc de ouriço do mar; no
fermentado, que é aqui utilizado)
com percebes do Guincho.
formas antigas de preservar o produ-
to quando não existiam frigoríÆcos.
gastronomia se cruza, aqui e ali, agemono há uma tempura de miolo
de alga kombu prensado e avinagrado
Um momento central são os oito
niguiris ao estilo Edomae, ou seja, do
Sobre o balcão vão sendo colocados,
por exemplo, carapau com gengibre
com toques pessoais do chef Tiago recheado com folha de shiso e ouriço-
do-mar. Vem depois o dashi, que é
período Edo, antigo nome de Tóquio.
O arroz não tem qualquer adição de
e cebolinho, cavala curada em sal e
em vinagre de arroz, ou sardinha que
Penão. Alexandra Prado Coelho feito numa chaleira em frente ao
cliente (oportunidade para o chef
açúcar e é trabalhado com três vina-
gres, um branco e dois feitos com o
passou por vinagre de vinho branco
e água do mar. Para comer imediata-
Sábado, 17 de Julho de 2021 | FUGAS | 17

Ofício
FOTOS: DR

Hugo Candeias, chef do TAG, está também à frente do novo projecto


do grupo, o renovado Ofício. Estamos convidados a “soltar a franga”.
E isto já diz muito do espírito deste Ofício. Alexandra Prado Coelho

Tarte de queijo, arroz de forno


e outras tentações da Trindade
LUIS FERRAZ

a O arroz de enchidos que chega à


mesa já no Ænal da refeição é um por-
tento de sabor. Chamam-lhe “arroz
i
de forno à antiga com carnes de
fumeiro”, mas Hugo Candeias, o chef Ofício
do Ofício, vem explicar que é um cru- Rua Nova da Trindade 11, Lisboa
zamento de duas receitas, a primeira Tel.: 910 456 440
incluída no livro Cozinha Tradicional E-mail: hello@oficiolisboa.pt
Portuguesa, de Maria de Lourdes Horário: de terça a sábado, das
Modesto, e a segunda que é, na reali- 12h30 às 22h (confirmar horários
dade, a técnica da paella, com um com as restrições devidas à
refogado que se prolonga por cinco pandemia). Consultar a carta
horas e que resulta no chamado para saber quais os pratos
mente, porque a temperatura do socarrat, o arroz que vai caramelizan- disponíveis na esplanada e barra
arroz acabado de sair das mãos do do e absorvendo todos os sabores. entre as 15h e as 19h.
chef não é um pormenor. E agora que temos a vossa atenção, Preço médio: 25 euros
Continuamos para os pratos mais podemos passar à apresentação do
intensos, o nimono e o yakimono, e, Ofício – podemos, como dizem as
antes da sobremesa, o shokuji, tradi- t-shirts da equipa, “soltar a franga”
cional forma de encerrar a refeição ou, em inglês, “release the chicken”.
com arroz e pickles: assim, temos pre- De portas (re)abertas há cerca de um
gado com foie gras e pimenta sancho, mês e meio no número 11 da Rua Nova
carne wagyu A5 (nível máximo de da Trindade, em Lisboa, apresenta-se
gordura intramuscular) de Miyazaki como um “tasco atípico” e promete,
com alho francês, miso e jus de cha- “à volta da mesa, bom comer e rica
lota, e salmonete, arroz gohan com gente, reboliço e boa pinga”. Perten-
ouriço-do-mar e gema de ovo e ce ao mesmo grupo do TAG – The Art
pickles de daikon e yuzu. Gate, restaurante, hotel e galeria, LUIS FERRAZ

Para despedida, o mizugashi, a situado a dois passos, no Largo da “sopa” com tomate cherry, Çor de
sobremesa: kakigori Frasier des bois, Trindade, e tem à frente o mesmo curgete e vinagrete de alface e azeite
e purin (sim, é o pudim). A sobreme- chef, Hugo Candeias. de coentros, antes de a montanha-
sa é sempre o grande dilema dos Com as devidas distâncias entre o russa tomar uma direcção completa-
restaurantes japoneses fora do Japão. fine dining do TAG e a carta mais des- mente diferente, com um tártaro de
Que estilo seguir, dado que os doces contraída do Ofício – onde conta com novilho com tutano e azeite de ale-
japoneses muitas vezes não corres- o apoio do sous-chef executivo Micael crim, acompanhado por um brioche
pondem às expectativas ocidentais? Duarte e do chef Rodolfo Lavrador, da padaria/restaurante Isco (há no
Aqui a solução encontrada foi uma ambos com passagem por projectos Ofício um reconhecimento da impor-
“brincadeira”, como diz Tiago de Nuno Mendes em Londres – há, tância central dos fornecedores, das
Penão: primeiro, um doce com contudo, uma linha comum no traba- ostras da Neptun Pearl ao presunto
morangos e um chantilly de soja e, a lho de Hugo Candeias em ambos os Absoluto do projecto Porcus Natura
seguir, um pudim, lembrando o espaços: uma cozinha segura, de per- de Montemor-o-Novo, passando pelas
pudim salgado do início, mas desta sonalidade deÆnida e sabores vinca- louças do Studioneves).
vez com caramelo e mirin (vinho de dos, com inÇuências da passagem de Por Æm, os pratos “de substância”:
arroz) de 20 anos e um pickle de Hugo por Espanha, onde trabalhou uma excelente raia com funcho, estra-
ameixa negra com vinagre de ume- com Albert Adrià. gão e molho de salsa e coentros, e,
boshi (ameixa japonesa). Tudo isso se vê desde o primeiro para não sairmos com fome, o tal
Este projecto, explica Tiago Penão, momento em que nos sentamos à arroz de forno à antiga. Nas sobreme-
vinha sendo pensado “há quatro ou mesa (optámos pela esplanada, mas seguir, uns deliciosos ouriços-do-mar abrindo caminho para a experiência sas, há uma tarte de amêndoa à fatia
cinco anos” e Ænalmente surgiu a no interior há, para além das mesas, com leche de tigre e creme de abacate, seguinte. Sempre acompanhados por inspirada na receita da avó de Micael,
oportunidade de o abrir em Cascais, uma barra com 14 lugares com vista e logo depois um taco com base de sugestões de vinhos tudo menos uma pannacotta de arroz tostado,
vila à qual praticamente todos os ele- para uma montra de ostras) e em que alface icebergue e recheado com óbvios – do pet nat Protótipo P2 (Arin- laranja com granizado de poncha,
mentos da equipa (que inclui, além nos é apresentado um torresmo espadarte, amêndoas torradas, maio- to, Viosinho, vinhas velhas, de Távo- espuma de chocolate com cacau
da sommelier Andrea, inclui Bruno gigante, feito a partir de uma pele de nese de chipotle, tomate e coentros. ra-Varosa), ao transmontano Quiló- mexicano e chantilly de coco e, last
Prazeres, Fábio Ruela, André Pereira barriga de porco inteira transformada Mesmo nos pratos mais frescos, metro, da Arribas Wine Company, but not least, a já célebre tarte de quei-
e a americana Keila Kingston) têm numa imensa pipoca crocante e nunca descemos muito da intensida- passando pelo Saravá, de Miguel jo de Hugo Candeias (vendida inteira,
uma ligação e onde, segundo Tiago, viciante. Depois vem uma homena- de de sabores que marca esta cozinha Viseu – o que permite descobertas 25€), tentação à qual mesmo os fra-
“existe muita procura e pouca oferta gem aos santos populares, com uma – mas, note-se, são todos sabores mui- interessantes a partir da carta criada des do antigo convento da Trindade,
gastronómica”. O Kappo propõe-se sardinha em tosta de broa com to diferentes, que fazem disparar o por João Pombo. que no passado aqui existiu, teriam
agora alterar este cenário. pimento e pó de cebola queimada. A palato para lugares muito distintos, Vem depois uma refrescante muita diÆculdade em resistir.
18 | FUGAS | Sábado, 17 de Julho de 2021

Quinta do Vesúvio

a Depois de chegar de carro ao


A mais recente proposta de enoturismo da lugar da Senhora da Ribeira, situado
na margem sul do rio Douro, junto
Symington leva-nos até uma das suas quintas mais a Arnelos, no concelho de Vila Nova
de Foz Côa, o acesso à Quinta do
emblemáticas, para uma experiência imersiva nos Vesúvio faz-se por barco. A travessia

Douro
do Marão – hoje muito facilitada
vinhos, paisagem e gastronomia da região pelo túnel – tinha acabado de nos
mostrar o recorte das montanhas
duriense. Miguel Marques Ribeiro (texto e fotos) para este e a linha de socalcos que
caem em escadinha nos declives,
mas faltava esta proximidade com
o rio para Æcar completa a imersão
no lugar único que é o Douro Vinha-
teiro.
O barco é providenciado pela
quinta e vai servir para o transporte
dos clientes da nova experiência de
enoturismo que a Symington acaba
de lançar numa das suas proprieda-
des mais emblemáticas, e que pode,
em alternativa, ser acedida directa-
mente por automóvel (pela margem

mais autêntico do que este não há


norte, via Vila Real) ou por comboio
(através da linha do Douro).
Adquirida em 1989, a Quinta do
Vesúvio é uma das 27 que a família
Sábado, 17 de Julho de 2021 | FUGAS | 19

que nos recebe e nos serve de guia vindimadas durante o dia, acompa-
durante o resto do dia. Como o pró- nhados de música e dança”. As
prio explica, esta experiência que enormes peças de granito que com-
a Symington está a lançar tem um põem os tanques foram trazidas
desenho pré-estabelecido que põe para a quinta em carroças e carros
em destaque os principais chama- de bois, demonstrando uma vez
rizes da quinta: as diversas vinhas mais o aÆnco inquebrável das gentes
situadas em pontos-chave; a adega destes lugares.
que mantém vivas algumas tradi- Seguimos depois para a garrafeira
ções seculares; a garrafeira, onde Vintage, para uma prova vínica. Nas
são envelhecidos vinhos emblemá- prateleiras que nos rodeiam enve-
ticos da empresa; e a varanda com lhecem alguns dos melhores vinhos
vista para o rio, onde decorre o produzidos pela Symington. Na
almoço. Contudo, a ideia é que este Quinta do Vesúvio, para além dos
itinerário-base possa ser adaptado Portos Vintage, produzem-se tam-
de acordo com a vontade de cada bém DOC Douro desde a colheita de
grupo de visitantes, que não pode 2007. Fazemos uma prova vertical
ser inferior a dois elementos e não com os Vinhos do Porto de 1994,
deve ultrapassar os seis, de forma 2003 e 2011. São absolutamente
a garantir uma experiência verda- magníÆcos e a degustação permite-
deiramente única, especial e inti- nos compreender o efeito do enve-
mista. lhecimento e as nuances de cada
ano de produção. Os DOC Douro são
O itinerário também extraordinários. O Quinta
do Vesúvio 2011 Douro DOC é um
Depois de um welcome-drink, ser- Grande Reserva produzido a partir
vido nos jardins, iniciamos a visita dos melhores lotes. A duas partes
às vinhas. É feita em jipe, mas nem praticamente iguais de Touriga
o poder da máquina escapa incólu- Nacional e Touriga Franca, adicio-
me à dureza destes terrenos. Os na-se 5% de Tinta Amarela, “uma
solavancos, o vai-e-vem da carroça- casta mais rústica, que lhe dá a
ria, o sobe e desce da caixa de velo- autenticidade duriense”, explica
cidades, são sinais da luta constante Dominic Symington, Um toque Ænal
que aqui se trava contra a adversi- que é quase uma assinatura dos
dade natural. Em contrapartida aí vinhos produzidos pela família. O
estão elas, à distância de um esticar Pombal do Vesúvio 2018 Douro
de braços: as cepas em carne e osso, DOC é um vinho mais fresco, com
com os seus cachos ainda verdes estágio de barrica de segundo uso,
que as folhas da videira resguardam mas igualmente encorpado e con-
do sol abrasador. tendo o melhor que o terroir durien-
Subimos para a primeira paragem se tem para oferecer num tinto.
no pombal da quinta – totalmente Depois de tudo isto, não é possí-
recuperado e no qual se destaca o vel estar mais satisfeito: as pernas
magníÆco desenho imbricado do exercitadas, a mente saciada por
telhado. Junto dele estendem-se as tudo o que conheceu nas últimas
vinhas que dão o nome à marca horas e o estômago já preparado
Pombal do Vesúvio. Aqui estamos para o almoço, que é servido na
ainda abaixo da meia cota da pro- varanda. A refeição é totalmente
detém (26 no Douro e uma no Alen- priedade, que ultrapassa os 500 confeccionada na cozinha da quinta
tejo), possuindo a particularidade metros. Na paragem seguinte, a que e usando os produtos frescos da
de ter pertencido em tempos à famí- se chama o Raio, subimos mais um horta, pelas mãos das duas cozi-
lia de Dona Antónia Ferreira, a gran- pouco. É um dos lugares cimeiros nheiras da casa: a dona Mariazinha
de empresária vinícola que enfren- do Vesúvio, de onde se tem uma e a sua ajudante Célia. O menu é
tou com tenacidade a crise da Ælo- perspectiva panorâmica, a 360º, de típico, com um toque de moderni-
xera, inscrevendo para sempre o tudo o que rodeia a quinta: o braço dade: entradas de salmão fumado e
seu nome na história da produção poderoso do rio que se estende até polvo servidas em colher de degus-
de vinhos da região. perder de vista entre as colinas, o tação, uma sopa fria de melão com
Seguimos tranquilamente no bar- tricotado das vinhas sobre os mon- presunto, bacalhau no forno, leite-
co, sobre o espelho de água macio. tes, numa margem e noutra, e os creme e fruta para a sobremesa,
Aqui o céu parece mais limpo, o azul vilarejos e quintas que despontam rematada com um prato de queijos
mais saturado. Ao longe, avistamos nas encostas. É uma vista que, ao e frutos secos. Um cardápio sump-
o ediÆco de estilo senhorial e a cape- mesmo tempo que nos tira o fôlego, tuoso, acompanhado dos vinhos de
la, que são apenas a face mais visível parece que o devolve, limpo das grande qualidade da Symington.
de uma extensa imensidão de terre- complicações do dia-a-dia. Nesta O tempo passa a correr na Quinta
no que perfaz os 326 hectares da altura é servido um Porto tóni- do Vesúvio. Esta experiência pro-
propriedade, 133 dos quais planta- co com aperitivos. Que bem que se porciona-nos, em poucas horas,
dos com vinha. está aqui em cima! tudo o que de melhor o Douro tem
Já apeados, entrar na quinta é, De regresso ao palacete, é tempo para oferecer: natureza, conheci-
por si só, todo um manual da expe- Depois da aquela organização bruta tão carac- de visitar a adega, a umas escassas mento, vinhos, história, gastrono-
riência autêntica do mundo rural. imersão na terística dos campos. É daqui que se centenas de metros de distância. mia, tradição e a enorme afabilidade
Entre os ciprestes, e bordejada por paisagem e nas colhem os produtos para uso da Um lugar que, garante a Symington de todos os colaboradores da
uma linha roxa de alfazemas em vinhas da quinta, casa e os hortícolas que serão servi- no folheto de divulgação da expe- Symington. Partimos do Douro
Çor, estende-se a horta com talhões é servido um dos mais tarde, à hora do almoço. riência, é um dos últimos “do mun- Superior com a enorme vontade de
variados e fartos. Os cheiros são almoço na É o próprio Dominic Symington, do onde homens e mulheres pisam voltar em breve. Texto editado por
intensos, inebriantes. Tudo tem varanda um dos quatro gestores da família, a pé nos lagares de pedra as uvas Sandra Silva Costa
20 | FUGAS | Sábado, 17 de Julho de 2021

Vinhos

O que fez Vieira é crime? Crime é um pai deixar uma garrafa


de Petrus na sala e a filha usá-la numa sangria
BOBBY YIP/REUTERS

uma sangria - e deixar uma garrafa


Elogio do vinho destas à disposição dos Ælhos não é
crime, senhor doutor Magalhães e
Silva? Foi o que fez o inglês Pete
Jones, de acordo com notícia
recente. Tinha-a comprado há 17
anos, no dia do aniversário da Ælha
mais velha, e sonhava abri-la numa
ocasião especial. Há uns tempos,
vaidoso, foi buscá-la à cave para a
Pedro Garcias mostrar a um amigo e deixou-a na
sala. Um dia destes, saiu de casa
a Anda o sereníssimo povo para deixar a Ælha mais nova, de 19
português a tentar enganar a anos, fazer uma festa com os
lucidez, para viver melhor, e vem o amigos. Quando regressou, ainda
advogado Magalhães e Silva, entrou na galhofa e bebeu uns
membro do Conselho Superior da copos. Depois foi-se deitar. No dia
Magistratura mas aqui na condição seguinte, não encontrou a garrafa
de defensor de Luís Filipe Vieira, de Petrus. Foi ao lixo e lá estava
abanar-nos com esta singela ela, vazia, juntamente com muitas
pergunta de recorte socrático: garrafas de cerveja. Stones
“Qual é o crime?”. perdoou a Ælha, porque nem esta,
Sim, qual é o crime, pergunta nem os amigos, faziam ideia do
ele, quando “um devedor na que tinham aberto. Filipe Vieira
relação com o credor e para também não sabia que era segundo
facilitar a negociação da compra maior devedor do Novo Banco.
do crédito aparece através de uma “Isso até me está a assustar”,
terceira pessoa”?. “Vieira não tinha respondeu à deputada Cecília
dinheiro disponível para comprar Meireles no Parlamento.
o crédito, pergunta ao amigo de 40 Quem acha que tudo isto é de
anos, José António dos Santos, se pasmar, então o que dizer das
quer comprar porque por baixo sondagens que dão o PS e António
havia aquele negócio imobiliário Costa à beira da maioria absoluta?
no Rio de Janeiro. E ele disse claro E o que dizer da garrafa de seis
que sim, podia ganhar dinheiro ali litros do tinto borgonhês
e Vieira dava a ajuda necessária e Romanée-Conti 1985 arrematada
também via algum [dinheiro]. Qual num leilão recente na Suíça por
é o crime?”. imperador dos frangos (dizem que costados, que têm uma concepção 950 mil euros? É o vinho mais caro
Filipe Vieira, através da empresa não gosta do termo “rei dos ética diferenciada dos negócios. Há da história e o nome do comprador
Imosteps, devia 54 milhões de frangos”) José António Santos a uns que acham tudo isto normal - é não é conhecido. Apenas se sabe
euros ao Novo Banco. Em 2014, e informá-lo que estava ali um o caso dos envolvidos. E há outros, que foi recolher a garrafa no seu
citando o advogado, tinha “Æcado grande negócio. O dono da Avibom como qualquer português decente, jacto privado. Há razoáveis
com as calças na mão” e sem meios nem duvidou, aÆnal é amigo de que acham tudo isto e o mais que possibilidades de ser português e
para pagar o crédito. O Novo Banco
deu-o como perdido e cobrou 89%
Vieira há 40 anos, e comprou o
crédito, através de outro fundo,
se desconhece uma verdadeira
fraude e miséria moral. Os
No dia seguinte, devedor da banca. E como
classiÆcar a intenção de Putin de
dessa dívida ao Fundo de
Resolução (Ænanciado pela
por nove milhões. Qual é o crime
do presidente do BenÆca, de
primeiros têm sucesso com
grandes negócios e manigâncias,
não encontrou obrigar os produtores de
champanhe que queiram vender
Estado), ao abrigo do tal capital
contingente previsto na venda do
acordo com a acusação e a mais
básica evidência, ter usado um
fazem fortunas, vivem
arrogantemente à grande e à
a garrafa de na Rússia a colocar no rótulo
“vinho espumante”, podendo em
banco à Lone Star. E a seguir
vendeu o crédito a um fundo
amigo como testa de ferro para
comprar por nove milhões uma
francesa, mas, por vezes, quando a
justiça se faz, acontece chegarem
Petrus. Foi ao contrapartida os produtores russos
de vinhos espumosos usar o termo
americano, a Davidson Kempner,
por 6,6 milhões. Um passarinho
empresa com um activo potencial
de 90 milhões de euros que deixou
ao ocaso da vida carregando com a
humilhação da cadeia e da
lixo e lá estava “champanhe” ou Champánskoe?
Eduardo Cabrita continua como
voou até Filipe Vieira para o
informar dessa venda. O
por pagar um calote de 54 milhões,
conseguindo ao mesmo tempo
desconsideração geral. Os
segundos podem ter tido uma vida
ela, vazia, ministro da Administração Interna.
Rui Rio ainda acredita que um dia
presidente do BenÆca Æcou à cuca.
Garante o advogado que
recuperar as livranças pessoais que
tinha dado para garantir a dívida
mais austera ou até cheia de
diÆculdades, mas chegam à juntamente será primeiro-ministro. E, pela
primeira vez, João Miguel
“debaixo” da Imosteps havia uns
terrenos na barra da Tijuca, no Rio
da empresa? Parece bastante
claro que se trata antes de uma
reforma com alguma garantia de
gozar a velhice em paz, a tratar do com muitas Tavares escreveu sobre o regime
aqui no PÚBLICO sem citar o nome
de Janeiro, que, bem
trabalhadinhos, poderiam valer
“genialidade”, termo aparentado
com a “liberalidade” dos 14
jardim e a fazer o que mais gostam
sem o peso da vergonha. PreÆro a garrafas de de José Sócrates. Consta que
Sócrates pediu uma garrafa de
uns 90 milhões de euros, quase o
dobro da dívida inicial. Como não
milhões de euros dados pelo
empresário José Guilherme ao
vida dos segundos.
Também simpatizo com a jovem cerveja Château Margaux ao amigo Carlos
Santos Silva para comemorar. Não
podia comprar o crédito então dono do BES Ricardo inglesa que numa festa com amigos se conhece o ano de colheita.
directamente, o crédito que era a Salgado. usou uma garrafa de vinho Petrus
sua dúvida de 54 milhões de euros, Há pessoas, explicou o distinto 1999, um dos tintos mais famosos Jornalista e produtor
Filipe Vieira ligou ao amigo, o advogado, portista dos sete de Bordéus (Pomerol), para fazer de vinho no Douro
Sábado, 17 de Julho de 2021 | FUGAS | 21

Vinhos
Os vinhos aqui apresentados são, na sua maioria, novidades que chegaram recentemente
ao mercado. A Fugas recebeu amostras dos produtores e provou-as de acordo
com os seus critérios editoriais. As amostras podem ser enviadas para a seguinte morada:
Fugas — Vinhos em Prova, Rua Júlio Dinis, n.º 270, bloco A, 3.º 4050-318 Porto

55 a 70 71 a 85 86 a 94 95 a 100

90 Um tinto do 92 89
Ladeira da Santa
Dão a precisar Quinta da Ramalhosa Monólogo Avesso 2019
Grande Reserva
Tinto 2018
de tempo Palhete 2019
Paulo Batista Ferreira, Mouraz,
A&D Wines, Baião
Região: Vinho Verde
Tábua Tondela Castas: Avesso
Região: Douro Região: Dão Graduação: 13% vol
Castas: Touriga Nacional e a Todo o bom vinho, sobretudo o Castas: Várias Preço: 7,50€
Alfrocheiro que estagia em barrica, ainda mais Graduação: 12% vol
Graduação: 13,5% vol. se for nova, precisa de tempo. Pode Preço: 25€ Vinhas em modo de produção
Preço: 13€ apreciar-se com prazer ainda jovem, biológico, com selecção da
mas ainda não será nítida a sua ver- Em homenagem ao avô, Micael parcela mais representativa da
dadeira essência e qualidade. A jovia- Batista produziu este palhete à colheita. Aroma frutado, com
lidade inicial pode ser excessiva, tal moda de antigamente, um blend notas exóticas e tropicais, em
como certas maquilhagens em algu- de vinha com uvas brancas e fundo cítrico e ambiente maduro.
mas mulheres. Podem impressionar, tintas de várias castas e Na boca é amplo, intenso e
só que se vê logo que há algo de fermentação com engaço em crocante, com notas frutadas de
excesso e que não espelham a verda- lagar de pedra. Vinhas que vêm compotas e goiaba envoltas por
de. A verdade surge quando cai a desses tempos áureos do Dão, um belo equilíbrio ácido. Final
“maquilhagem”. Numa mulher ou onde se pressente um leve tenso, como notas fumadas
num homem, pode bastar uma sim- perfume de Baga, acidez muito subtis e um leve rasto
ples limpeza do rosto. Num vinho, a vibrante, com aromas frescos de taninoso a conferir boa aptidão
sua essência pode demorar alguns caruma e especiarias, estrutura gastronómica. J.A.M.
anos a emergir. Mas emerge sempre. e grande intensidade na boca.
E o que emerge não é a barrica ou Cativa pela frescura, textura
qualquer aditivo que se adicione ao fina, intensidade e
Proposta vinho. É a natureza das castas e do prolongamento com leves
lugar. É por isso que chega a ser mais amargos que lhe conferem
da semana fácil adivinhar a origem de um vinho amplitude gastronómica.
quando ele é mais velho do que Claramente para a mesa. Não
quando é novo. será consensual, mas é uma bela
O vinho desta semana, o segundo homenagem aos bons tempos
tinto mais pontuado do último con- da região e o Dão precisa destes
curso Vinhos de Portugal, organiza- vinhos distintos. J.A.M.
do pela Viniportugal, a entidade que
assegura a promoção do vinho por-
tuguês, é um daqueles tintos que
precisam mesmo de tempo para
mostrar o seu melhor e libertar-se de
equívocos. Nesta fase é sensorial-
mente impressionante, mas também
89 87
ainda demasiado marcado pela bar-
rica, embora esta não se consiga Casa de Pedra Maria 2020 Falua Reserva
sobrepor à impressionante intensi- Casa de Pedra Maria, Varziela, Unoaked Branco 2019
dade das nuances frutadas e Çorais. Felgueiras Falua, Vinhos SA
Não se sobrepondo, acaba, ainda Região: Vinhos Verdes Região: Regional Tejo
assim, por retirar alguma pureza e Castas: Loureiro e Alvarinho Castas: Fernão Pires
frescura a esse perfume. Graduação: 12,5% vol Graduação:12,5% vol
Na boca, é amplo, vivíssimo e Preço: 6,50€ Preço: 14,50€
saboroso. No entanto, mais algum
tempo de garrafa também ajudará a Com base na casta Loureiro, que Cor citrina aberta, aroma
domar o tanino ligeiramente angu- fermenta já em conjunto com o elegante com notas florais e
loso da casta Alfrocheiro, ideal para complemento de Alvarinho e a apontamentos de fruta branca,
o envelhecimento do vinho. O lado combinar na perfeição a como ameixa ou maçã. Na boca
bom de ser anguloso é dar mais gar- frescura e vivacidade com notas mostra a textura macia, algum
ra ao vinho. Não se trata, já viu, de mais maduras e tropicais. volume e corpo cheio e em
um Dão Æno, daqueles que passam Frescura cítrica, tensão e algum equilíbrio com a intensidade
meio despercebidos em novos mas volume de boca aliam-se ao fresca da acidez natural. Final
que depois nos podem deixar nas paladar frutado, boa secura e com notas de mineralidade,
nuvens. É um Dão mais fogoso e insi- estrutura. Um branco sério, com prolongamento amplo e
nuante, mas com a frescura e o sabor aptidão gastronómica e muito saboroso a destacar as notas
típicos dos tintos desta região, sem- bem desenhado. A casa lançou frescas que lhe marcam a
pre encantadores para os amantes também um vinho mais identidade. Potencial para boa
do bom vinho. Pedro Garcias convivial, o Pedra Maria, fresco e evolução em garrafa. J.A.M.
acidulado, que junta ainda
Trajadura e Arinto, as outras
castas da propriedade. J.A.M.
22 | FUGAS | Sábado, 17 de Julho de 2021

Fugas dos leitores


Os textos, acompanhados preferencialmente por uma foto,
devem ser enviados para fugas@publico.pt.
Os relatos devem ter cerca de 3000 caracteres.
Mais informações em www.publico.pt/fugas

Marrocos e os dois tipos instaFugas


de homens no mundo #FugasPorPortugal
Mostre-nos o melhor do país, de Norte a Sul, da costa
ao interior, passando pelas ilhas. A Fugas (@fugaspublico)
a Os portugueses iniciaram em Destaco a praça Djemaa El Fna, A meio do percurso que me levaria quer ver por onde anda e quer ver qual é a sua melhor foto
1415, no reinado de D. João I, a “aven- grandioso mercado a céu aberto, até ao deserto, Æz um desvio para de um recanto único de Portugal.
tura” que viria a transformar o nosso onde tudo acontece! Há pequenos visitar a região das Gargan-
país no primeiro império marítimo macacos à solta; mulheres a ler a tas do Todgha. Situada nas monta-
global. A conquista de Ceuta foi há sina; comerciantes a fazer trocas; nhas do Alto Atlas, é um oásis habi-
quase 606 anos. Neste contexto, caracóis para degustar (muitos dos tado quase exclusivamente por ber-
recordo uma viagem realizada em que se comem em Portugal vêm de beres. Gente simpática, que vive
2014 a Marrocos. Marrocos). Com o Sol a pôr-se, subi muito do turismo e que agradece aos
A primeira sensação que tive à ao terraço de um restaurante e visitantes os dirhams (moeda marro-
chegada, concretamente a Marra- observei a Djemaa El Fna… O que vi quina) que deixam à passagem.
quexe, foi… “isto é outro mundo!” era fantástico, muitos candeeiros Voltei à estrada, quase a chegar ao
Apesar, sublinhe-se, de o voo ser cur- rudimentares que mais pareciam tão ansiado Sara. Em Merzouga só há
to, pouco mais de uma hora (partin- tochas cor de laranja. dois meios de transporte para chegar
do de Lisboa). Situada no centro-sul Ainda a viagem estava no início e ao deserto: jipe ou camelo. Se “em
do país, Marraquexe conduz imedia- já dava por bem entregue a ida a Mar- Roma, sê Romano”, a partir de Mer-
tamente a um modo de vida diferen- rocos. Mas havia curiosidade, muita zouga fui de camelo. Quase duas
te do que estamos habituados. E este curiosidade, em conhecer o deserto horas, numa coluna com mais alguns
é um dos seus fascínios. do Sara. Tinha ouvido José Manuel turistas.
O trânsito caoticamente organiza- Barata-Feyo, actual Provedor do O que senti em pleno deserto? Um
do com peões, carros, motos, bici- PÚBLICO, dizer numa entrevista que espírito de comunhão com a nature-
cletas e muitas carroças. O comércio “há dois tipos de homens no mundo: za que ela proporciona apenas em
presente um pouco por todo o lado. os que já atravessaram o deserto e os alguns locais do planeta. E se o pôr
A mistura de sabores e odores, com outros!” Isto a propósito de uma via- do Sol impressiona pela sua beleza,
bancas de especiarias e de fritos a gem que realizara, nos anos de 1980, o que dizer quando ele nasce? Tal
cozinhar lado a lado com oÆcinas pelo Sara e a África Ocidental. como um arquivista de memórias,
mecânicas ou ateliers de tapeçarias. Aluguei então um carro para a lon- tirei muitas e muitas fotograÆas. A
Mulheres com véu islâmico, algumas ga viagem até Merzouga, bem no minha casa Æcou com um quadro
com burca, mas também muitos interior do país. Esperavam-me mais bonito.
turistas. de 550km de alcatrão e de terra bati- Já no avião que me trouxe de volta,
Visitei a ex-madrassa Ben Youssef, da, cerca de 8h a conduzir, se não lembrei-me outra vez da frase sobre
escola teológica que chegou a alber- houvesse percalços. E para quem os homens que conhecem o deserto @nuno_alfarroba A Pateira de Fermentelos, a maior
gar 800 estudantes; o Jardim Majo- gosta de condução, fazê-lo em Mar- e os outros. Convictamente, adoptei- lagoa natural da Península Ibérica. Fotografia de Nuno
relle, tranquilo, silencioso, com rocos é imperdível. Quilómetros e a e adaptei-a. Há os que conhecem Alfarroba.
cores garridas, repleto de palmei- quilómetros por rectas, vales e pistas Marrocos e os outros! João PontíÄce
ras. intermináveis. Gaspar
JOÃO PONTÍFICE GASPAR

@foge_da_rotina leva-nos até à Quinta de Ventozelo,


no Douro.
Sábado, 17 de Julho de 2021 | FUGAS | 23

O gato das botas

O pior peixe para amar


é o salmonete
inconhecível. O outro é a nossa O meu pai fazia pouco de mim onde foi - foi num dos meus
perdição, a nossa maior por causa dos salmonetes. Podia restaurantes preferidos - mas não
curiosidade, o nosso maior desejo, defender-me dizendo que era uma digo o nome porque vou lá muitas
o podermos soltar-nos da prisão criancinha mas felizmente nada vezes e não quero que saibam que
confortável de nós próprios. mudou nos anos que se seguiram: foi só um. Assim pensam que foi
Ora, eu gosto muito de peixe. só o sofrimento aumentou. noutro qualquer.
Mentira, gosto de alguns, Amar salmonetes signiÆca que Gosto muito de Nem vou dizer onde é que eu
pouquíssimos peixes. São trinta no sou quase sempre desiludido, ano comia bons salmonetes (em certos
Miguel Esteves Cardoso
máximo, quase nada atendendo aos após ano, terra após terra. Amando peixe mas o meses) porque já fechou há muito
peixes que há no mar. Assim, a salmonetes peço-os sempre, tempo. Vou é dizer o nome de duas
a Nunca se pode fazer contas ao pergunta interessante é: Porque é mesmo tendo a certeza que não vão único peixe que terras - Sesimbra e Setúbal - onde,
amor. Ou se ama ou não se ama. Não que não gosto dos outros? A prestar. Não vou complicar as coisas com um bocadinho de paciência e
se pode escolher amar ou não amar. resposta é “porque não os conheço, falando de salmonetes diferentes, amei foi o um bocadão de humildade, é
Em princípio pode-se fazer um nunca os provei”. E vem a nova em épocas diferentes, em mares possível encontrar bons salmonetes
análise de custos e benefícios do pergunta, a importante: “E porque diferentes. salmonete. Soa que sejam bem grelhados, desde
amor, tentando medir o quanto não?” Os maiores desgostos são aqueles que se aceite que os realmente bons
agrada e desagrada ou, menos Gosto muito de peixe mas o único que nos suscitam maior esperança. ridiculamente, venham acompanhados de alguns
friamente, o bem e o mal que nos peixe que amei foi o salmonete. Soa Já as desgraças previsíveis - menos bons.
causa. ridiculamente esta frase. Mas o salmonetes a 8 euros o quilo, cheios esta frase. Mas o Quem me dera não amar
Mas quem é que faz essas contas? amor é assim. Tantos outros peixes de “neve”, para fritar, à venda na salmonetes. Se não amasse, só os
É quem ama ou quem não ama? Ou têm um nome menos óbvio, menos Andaluzia - só conÆrmam o que já amor é assim comia quando fossem perfeitos e,
é quem é amado mas não ama? Ou beto, menos previsível, mais desconÆávamos. nos longos e duros tempos em que
quem ama mas não é amado? eufónico. Que diabo, a password do Vou apenas dizer que nos últimos não houvesse desses, pensaria
Amar só é bom numa coisa: meu restaurante favorito do planeta vinte anos só comi um salmonete noutras coisas. Para não dizer
tira-nos as escolhas. Tira-nos a é “salmonete”. perfeito em Lisboa e Cascais. Sei outros peixes.
liberdade. Tira-nos a sensatez. AMILAT/GETTY IMAGES
Tira-nos a dignidade. Tira-nos as
hesitações de comportamento
(”que devo eu fazer?”). Embora as
substitua por uma coisa muito mais
sofrida, mais cruel e mais morosa:
as dúvidas acerca dos sentimentos
da pessoa amada (”será que gosta
de mim?”).
Quem não ama pensa que lhe faz
falta o alvoroço de amar. E quem
ama sonha com a paz de não amar.
Estariam bem um para o outro? Não
vá mais longe, acabo de descrever
uma grande parte dos casais desde
o princípio dos tempos. Serão
felizes ou infelizes? É a pergunta
errada. A pergunta certa, se é que
há alguma, é: no amor, como na
vida, as pessoas que confundem as
duas coisas são aquelas que, apesar
de tudo, apesar de todo o
sofrimento e de toda a desilusão,
aproveitam a vida. Aproveitam a
vida para alguma coisa de jeito, que
precise da vida para existir e
manifestar-se.
O que é que isto tem a ver com
gastronomia? É mais uma pergunta
errada. O amor não nasce da pessoa
amada - essa é apenas a impressão
maravilhosa que dá -, mas da alma
de quem ama. Amar é sairmos do
eu, é aventurarmo-nos,
atirarmo-nos para os braços do
outro, de qualquer outro,
forçosamente misterioso e
desconhecido, encantador e

FUGAS N.º 1095 FICHA TÉCNICA Foto da capa: Daniel Rocha Direcção Manuel Carvalho Edição Sandra Silva Costa Edição fotográfica Nelson Garrido Directora de Arte Sónia Matos Designers Joana Lima e José Soares
Infografia Cátia Mendonça, Célia Rodrigues, José Alves e Francisco Lopes Secretariado Lucinda Vasconcelos Fugas Rua Júlio Dinis, nº270, Bloco A, 3º, 2, 4050-318 Porto. Tel.: 226151000. E-mail: fugas@publico.pt. www.publico.pt/fugas
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