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Meu Brasil Latino

Mateus Fiorentini1

Resumo: O presente artigo pretende promover uma reflexão acerca da relação do Brasil e a
existência, ou não, de sua identidade latino-americana. Para isso, buscará chamar a atenção
para as narrativas que construíram a ideia de um Brasil formado de costas para a América
Latina, tanto em âmbito local quanto regional. Assim, o trabalho tem como meta explicitar
algumas das razões pelas quais a percepção dos brasileiros em relação a sua latinidade é tão
baixa. Ao mesmo tempo identificar os elementos apontados pelos nossos vizinhos como
fatores que sustentam o distanciamento do Brasil em relação ao continente, com o objetivo de
apresentar os limites dessas narrativas. Por fim, buscaremos reivindicar a latinidade da
sociedade brasileira a partir da perspectiva das representações desenvolvidas por Pierre
Bourdieu.

Palavras-chave: Representações, Identidade latino-americana, Brasil latino, União da


América Latina, Integração regional.

Resumen: El presente artículo pretende promover la reflexión acerca de la relación del Brasil
y la existencia, o no, de su identidad latinoamericana. Para tanto, se buscará llamar la
atención para las narrativas que construyen la idea de un Brasil formado de espaldas hacia
América Latina, tanto en ámbito nacional como regional. Así, el trabajo tiene por meta
explicitar algunas de las razones por las cuales la percepción de los brasileños en relación a
su identidad con América Latina es tan baja. Al mismo tiempo, identificar los elementos
planteados por nuestros vecinos como factores que sostienen el alejamiento de Brasil en
relación a los demás países de la región, con el objetivo de presentar los límites presentes en
dichas narrativas. Por fin, se busca reivindicar la latinidad de la sociedad brasileña partiendo
de la perspectiva de las representaciones desarrolladas por el sociólogo francés, Pierre
Bourdieu.

Palabras clave: representaciones, identidad latinoamericana, Brasil latino, América Latina,


Integración regional.

1
Mateus Fiorentini é graduado em História pela PUC-SP, mestre pelo Programa de Pós-graduação em
Integração da América Latina da Universidade de São Paulo (PROLAM-USP), doutorando junto ao Programa
de Pós-graduação em História da Universidade de Passo Fundo (PPGH-UPF) e educador da rede privada de
ensino do Rio Grande do Sul.
A existência de uma identidade latino-americana tem sido alvo da preocupação
de um conjunto considerável de análises por parte de pesquisadores, lideranças e movimentos
políticos e culturais de toda a região. Essa identificação de caráter continental foi, e continua
sendo, reivindicada por um variado espectro de grupos sociais e correntes políticas e
ideológicas de todo o continente. Entretanto, historicamente, a temática é comumente
identificada com mais força nos países de língua espanhola. Nesse sentido, é um lugar
comum apontar o Brasil como um país deslocado e isolado dentro do contexto
latino-americano. Seja pelo complexo de vira-latas dos brasileiros que sempre sonharam em
serem europeus e haviam virado as costas para a vizinhança ou pela imagem construída pelos
nossos hermanos de que o idioma, a colonização portuguesa e a monarquia teriam tornado o
Brasil em algo “estranho” à unidade da região.
Assim, o presente artigo pretende jogar luz acerca dos debates em torno da
identidade e a relação do Brasil com a América Latina. Ou seja, será que somos tão distantes
dos nossos vizinhos quanto se afirma constantemente? Deve-se considerar verdadeira a ideia
de que o Brasil foi formado de costas para a América Latina? Quais os argumentos que
sustentam essas posições? Quais os elementos que permitem apontar as características que
tornam os brasileiros mais ou menos latino-americanos? Diante dessas indagações entende-se
que o debate proposto pode ser elucidado se localizado no âmbito da perspectiva das
representações, desenvolvida principalmente pelo sociólogo francês, Pierre Bourdieu.

Pierre Bourdieu e as representações acerca da região


Em um primeiro momento todos tendemos a compreender o termo região
como uma expressão oriunda da geografia enquanto disciplina que se dedica ao estudo dos
espaços e territórios. Entretanto, se recorre-se à definição de América Latina, pode-se
identificar que o elemento geográfico não foi o fator definidor para conferir tal identificação a
essa região. Compreendendo a origem do termo no contexto da Era Napoleônica e os
conflitos entre França e Inglaterra pela liderança do continente europeu, o termo surgiu como
forma de demarcação política diante das contendas entre as duas potências. Contudo, o
significado conferido a esta marca está sustentado em um elemento linguístico e cultural: os
idiomas espanhol e português e o vínculo da região com países e culturas de origem latina.
Distinguia-se, então, esta região daquela de características anglo-saxãs. Se tomarmos o
caminho inverso, é possível afirmar que os elementos referentes à cultura e ao idioma falado
nos países latino-americanos serviram como instrumentos legitimadores de uma determinada
posição política. Assim sendo, como é possível definir uma região? Quais os elementos que
permitem estabelecer esses limites? Que forças sociais, culturais, políticas ou econômicas
atuam para o estabelecimento dessas representações? De onde vem o termo região?
Aos questionamentos acima, é possível responder afirmando que o conceito de
região pode ser definido a partir de diferentes prismas. Partindo do ponto de vista de José
Carlos Chiaramonte, entende-se que esse é um conceito de “carácter histórico global”
(CHIARAMONTE, 2008, pg. 04). Ou seja, ao reivindicar a historicidade da definição de
região indica que o entendimento sobre o tema varia de acordo com as características de cada
sociedade ou período histórico. Assim, a compreensão de que a região é historicamente
constituída leva ao entendimento de que as regiões são produto dos conflitos sociais,
econômicos e culturais que marcam um contexto específico. Dessa forma, o autor entende
que a região deve ser compreendida enquanto “totalidade histórica” (CHIARAMONTE,
2008, pg. 04), resultado de processos dialeticamente complexos e não apenas como
consequência de um fator isoladamente. A variabilidade do conceito permite que a região
assuma as mais diversas formas e dimensões dentro de cada conjuntura histórica. A forma
mais tradicional de definir uma região é a partir da perspectiva político-administrativa ou
burocrática. Mas também, pode ser definida a partir de fatores morais, culturais, linguísticos,
costumes, etc.
Outro aspecto que não deve ser esquecido diz respeito à articulação entre o
conceito de região com a noção de fronteira. Os conceitos se inter relacionam na medida em
que definem uma região e induzem ao estabelecimento de limites, assim como criam pontos
de diálogo entre duas áreas. Quer dizer, a noção de região traz consigo a ideia de limite
articulada à ideia de fronteira, que cumpre o papel de divisor ao mesmo tempo em que pode
ser vista como ponte entre dois espaços. Levando com consideração as origens do termo
região, localizada no período medieval na Europa, e o seu fortalecimento durante a
Modernidade, a partir da constituição dos Estados Nacionais, o estabelecimento de fronteiras
relaciona-se com as relações de poder entre nações modernas. Esse é o ponto de vista que
apresenta o professor Tau Golin (2002), da Universidade de Passo Fundo. Na sua obra
intitulada Fronteira (GOLIN, 2002, pg. 14), o historiador sulriograndense aborda o tema sob
o prisma das relações de poder. Relacionam-se, de tal maneira, na visão do pesquisador, as
noções de região e nação, uma vez que a fronteira cumpre a função de estabelecer os limites
do exercício do poder de um determinado Estado-Nação ou mesmo de uma região. Assim, a
fronteira se converteu em marco que limita e, ao mesmo tempo, conecta duas regiões,
econômicas, culturais ou políticas a partir de um ordenamento jurídico. Em torno a esse papel
jogado pelas novas nações emergentes na Europa o conceito de região e fronteira assumiu
destaque dentro da constituição do atual sistema mundo e a constituição de relações
internacionais entre estados soberanos regulamentada pelo Direito Internacional.
Entrelaçam-se dessa forma, elementos políticos, administrativos, jurídicos, culturais,
diplomáticos, militares, entre outros no conceito de região, fronteira e nação, ou “pago,
querência e nação” (FAGUNDES, 2005), brincando um pouco com o professor Tau Golin.
Assim, diante da diversidade de pontos de vista e abordagens possíveis para o conceito de
região e fronteira, apoiaremos esta análise no entendimento desenvolvido por Pierre Bourdieu
acerca do conceito de representação. Identifica-se no autor uma perspectiva ampla para
compreender o conceito de região, bem como aplicá-lo ao debate acerca da identidade
latino-americana dos brasileiros.
Diante do exposto acima, é importante apontar que Bourdieu (1989) não
negligencia o papel da geografia e dos geógrafos nos debates em torno do conceito de região.
Porém, para o sociólogo francês reduzir a questão da região ao território era demasiadamente
limitado, uma vez que circunscrevia a discussão aos elementos da natureza. Do ponto de vista
de Bourdieu, a temática assumiu relevância quando as “disciplinas ambiciosas”
(BOURDIEU, 1989, pg. 109), leia-se sociologia e economia, envolveram-se no assunto.
Dessa forma, a perspectiva da região deixaria de limitar-se aos elementos da natureza para
definir uma região passando a levar em consideração os vínculos e relações sociais que
ultrapassam as próprias regiões geográficas. Sobretudo a partir da segunda metade do século
XX, importantes transformações de caráter econômico promoveram fluxos de mercadorias
mais intensos entre os países, o que permitiu aos economistas ampliar o conceito de região.
Do mesmo modo, a emergência de movimentos sociais ligados a novos atores produziu
formas diferentes de identificação que superaram as fronteiras. Assim, com a emergência do
movimento estudantil, com o maio francês em 1968, ou os movimentos de independência na
África e a guerra no Vietnã, ou ainda, a luta pelos direitos civis nos EUA criou afinidades de
caráter transnacional. Esse novo cenário permitiu que surgissem, além de novas identidades,
novas fronteiras e regiões não apenas aquelas delimitadas pelas “cercas embandeiradas que
separam quintais” (SEIXAS, 1973).
Assim, um componente importante do entendimento de Bourdieu acerca da
definição de região relaciona-se ao conceito de representação, especialmente ao referir-se à
distinção entre o que chamou de “lógica da ciência” x “lógica da prática”. Para o sociólogo,
estas duas áreas possuem atribuições e objetivos distintos na medida em que a “lógica da
ciência” consistiria em buscar “superar as visões do senso comum desconsiderando sua
funcionalidade prática” (BOURDIEU, 1989, pg. 111). Por outro lado, a “lógica da prática”
busca agir sobre as representações de maneira performática com a meta de agir sobre as
representações no sentido de reunir força social, política, econômica e cultural que legitime
um determinado discurso acerca de uma realidade específica. Por isso, Bourdieu identifica a
existência de uma luta de representações em que os grupos que atuam em uma sociedade
buscam afirmar a sua narrativa como representativa de toda a comunidade. De acordo com
Bourdieu (1989, pg. 112), essas representações cumprem o papel de criar imagens mentais
sobre a realidade que influenciam as manifestações dos grupos sociais levando-os a agir com
o objetivo de manipular essas imagens para disputar o monopólio da narrativa acerca da
realidade. Em última instância, pode-se afirmar que, para Bourdieu, o conflito entre distintas
representações se desenvolve em torno aquilo que um povo acredita sobre si mesmo, ou seja,
age na percepção do real e na constituição de verdades. Assim, pode-se dizer que, para o
autor, representação é resultado da relação dialética entre realidade e subjetividade rompendo
com a dicotomia clássica que opõem o real e a representação. Ou seja, Bourdieu visualiza que
essa representação do real é expressão da própria realidade na medida em que é produto dela
própria ao mesmo tempo em que age, por distintos meios e instituições, no sentido de criar as
práticas sociais que definem uma cultura ou civilização. Assim, pode-se dizer que as
representações são construídas socialmente a partir dos conflitos que marcam uma
determinada sociedade, da mesma forma que agem sobre o corpo social produzindo novas
realidades.
Uma vez situado o conceito de Bourdieu acerca das representações passemos a
discussão proposta pelo autor sobre a noção de região. Para o sociólogo francês a origem do
termo provém do latim “regere fines” ((BOURDIEU, 1989, pg. 113), que pode ser traduzido
grosseiramente como a finalidade de regir. Ou seja, busca estabelecer os limites e o alcance
do poder de um Estado, governo, reino, governante, etc. Nas palavras do autor,
Esta etimologia conduz ao princípio da divisão, acto mágico, quer dizer,
propriamente social, de diacrisis que introduz por decreto uma descontinuidade
decisória na continuidade natural [não só entre as regiões do espaço mas também
entre as idades, os sexos, etc.]. Regere fines, o acto que consiste em ‘traçar as
fronteiras em linhas rectas’, em separar ‘o interior do exterior, o reino do sagrado
do reino do profano, o território nacional do território estrangeiro’, é um acto
religioso realizado pela personagem investida da mais alta autoridade, o rex,
encarregado do regere sacra, de fixar as regras que trazem à existência aquilo por
elas prescrito, de falar com autoridade, de pré-dizer no sentido de chamar ao ser,
por um dizer executório, o que se diz, de fazer sobrevir o porvir enunciado”.
(BOURDIEU, 1989, p. 113-114)
É possível identificar, portanto, que Bourdieu interpretou as regiões a partir
das representações e das relações de poder existentes em um dado contexto social. Estes
embates estariam permeados por forças materiais e simbólicas que agem a partir de uma
determinada intencionalidade cujo objetivo consiste em legitimar a narrativa que reforça o
poder do grupo que rege a sociedade. Diante disso, a autoridade científica entra como fator de
certificação de um discurso para conferir-lhe status de verdade absoluta. É possível dizer,
então, que o conhecimento científico é apropriado pelos grupos e forças políticas, econômicas
e sociais com o intuito de transformar uma crença em unidade real da comunidade em
questão buscando atribuir uma identidade simbólica entre seus membros. Daí o alerta
apresentado por Pierre Bourdieu (1989, p.121)
Quando os investigadores entendem erigir-se em juízes de todos os juízos e em
críticos de todos os critérios, com a sua formação e seus interesses específicos a
isso os impelem, ficam privados de apreender a lógica própria de uma luta em que
a força social das representações não está necessariamente proporcionada ao seu
valor de verdade (medido pelo grau em que elas exprimem o estado da relação de
forças materiais no momento considerado).
(...)
Mas, esses investigadores não fazem melhor quando, abdicando da distância do
observador, retomam à sua própria conta a representação dos agentes, num
discurso que, à falta de meios para descrever o jogo em que se produz esta
representação e a crença que a fundamenta, não passa de uma contribuição entre
outras para a produção da crença acerca da qual haveria de descrever os
fundamentos e os efeitos sociais.

Ainda que as ciências humanas tenham dedicado-se fartamente ao debate em


torno do distanciamento necessário do investigador de seu objeto de análise e, desde Max
Weber, identificamos as dificuldades em promover tal prática, Bourdieu chama a atenção para
os cuidados que o pesquisador deve tomar. Para o francês o cientista não deve ser tragado
pelo discurso da representação, deve combater o que chamou de ciência régia. Ou seja, deve
evitar vincular seu pensamento à lógica da prática que busca instrumentalizar o conhecimento
científico como ferramenta legitimadora de um discurso, ação, representação ou poder.
Ora, se entende-se que Bourdieu compreende que as representações servem
para legitimar narrativas hegemônicas, deve-se considerar que a recíproca é verdadeira. Quer
dizer, se o poder se desenvolve a partir da luta de representações, os grupos alijados do poder
ou deslocados da representação dominante buscarão produzir representações
contra-hegemônicas igualmente. Contudo, o autor aponta que, mesmo sendo subversivas, a
estratégia dos grupos marginalizados têm como meta tornarem-se dominantes. Buscam,
portanto, constituir novas representações para legitimar um novo poder constituído a partir da
chegada desses grupos ao poder. Conforme Bourdieu (1989, p. 124-125)
Quando os dominados nas relações de forças simbólicas entram na luta em estado
isolado, como é o caso nas interações da vida quotidiana, não têm outra escolha a
não ser a da aceitação (resignada ou provocante, submissa ou revoltada) da
definição dominante da sua identidade ou da busca da assimilação a qual supõe um
trabalho que faça desaparecer todos os sinais destinados a lembrar o estigma (no
estilo de vida, no vestuário, na pronúncia, etc) e que tenha em vista propor, por
meio de estratégias de dissimulação ou de embuste, a imagem de si o menos
afastada possível da identidade legítima. Diferente destas estratégias que encerram
o reconhecimento da identidade dominante e portanto dos critérios de apreciação
apropriados a constituí-la como legítima, a luta coletiva pela subversão das
relações de forças simbólicas - que tem em vista não a supressão das
características estigmatizadas mas a destruição da tábua dos valores que as
constitui como estigmas -, que procura impor senão novos princípios de di-visão,
pelo menos uma inversão dos sinais atribuídos às classes produzidas segundo os
antigos princípios, é um esforço pela autonomia, entendida como poder de definir
os princípios de definição do mundo social em conformidade com seus próprios
interesses.

A ação dos grupos contra-hegemônicos, dessa forma, exige um distanciamento


da representação oficial. Seja um grupo político e social, ou um segmento da economia ou
uma região, que não está contemplada da estrutura de poder dominante, é conduzida ao
separatismo como forma de resistir ao poder estabelecido. O separatismo é, para Bourdieu
(1989, p. 127-128), o recurso dos dominados para promover uma revolução simbólica contra
a dominação simbólica. É preciso, para estes grupos, estabelecer uma reapropriação coletiva
do poder (BOURDIEU, 1989, pg. 125) com o intuito de construir novos significados para os
símbolos de uma determinada região ou nação. São os casos de processos revolucionários
marcantes na América Latina, Em Cuba, por exemplo, a revolução promoveu uma
ressignificação dos símbolos e personagens da história nacional. Após a chegada de Fidel
Castro ao poder, aquele José Martí idealizado pela direita daquele país, deu lugar a um herói
revolucionário, anti-imperialista, vinculado aos movimentos populares, que flertava com o
marxismo. Assim, o socialismo passou a ser visto como ferramenta para a materialização do
projeto “martiano”. O mesmo poderia se dizer a respeito da Venezuela ao identificar a
reapropriação da imagem de Simón Bolívar após a eleição de Hugo Chávez. Assim, o
“bolivarianismo”, reivindicado pelos setores conservadores da sociedade venezuelana,
transformou-se em sinônimo do socialismo no século XXI defendido pelo discurso chavista.
O mesmo poderia ser identificado no Uruguai, onde a conformação da Frente Ampla, em
1971, esteve acompanhada de uma nova interpretação acerca da sociedade uruguaia e a
atribuição de novo conteúdo social aos personagens da história do país, como José Artigas, e
uma nova perspectiva quanto à nacionalidade uruguaia.
Reflexões acerca da nacionalidade brasileira e a América Latina
Partindo do conceito de representação de Pierre Bourdieu, conforme abordado
anteriormente neste artigo, pode-se afirmar que o conhecimento científico produzido por
inúmeros intelectuais de alto calibre foram apropriadas para legitimar projetos de sociedade e
disputas de poder no Brasil. Em outras situações o próprio conhecimento produzido acerca da
formação social brasileira derivou de uma intencionalidade política por parte do Estado que
objetivava a construção de uma determinada visão hegemônica. A partir desta história oficial,
diversas instituições do Estado e atores da sociedade civil agiram e agem no sentido de
formatar uma representação dominante acerca do que é ser brasileiro. Ao mesmo tempo, é de
amplo conhecimento a existência de um potente pensamento crítico nacional, seja no âmbito
acadêmico quanto da sociedade civil que possui forte influência sobre as narrativas acerca da
nacionalidade. Assim, este tópico será dedicado a refletir acerca dos limites dessas
representações sobre a relação do Brasil com a América Latina, tanto no plano nacional
quanto regional.
Ao considerar que as representações são resultado dos conflitos e
transformações sociais ao longo da trajetória nacional, pode-se dizer que a construção das
narrativas acerca da nacionalidade desenvolveram-se de maneira processual. Ou seja, ela não
pode ser encarada como algo estático ou engessado, permitindo compreender que o sentido
da brasilidade adquiriu distintas formas ao longo da história nacional, de acordo com o
contexto de cada época. Ao mesmo tempo, deve-se entender que o resultado desse processo é
um acumulado de toda essa caminhada e que permanece em constante desenvolvimento. Em
suma, a criação da nacionalidade brasileira não deve ser vista como algo pronto e acabado,
mas vivo e em construção. Dito isso, é razoável elencar a independência do Brasil como um
dos momentos constitutivos das representações acerca da nacionalidade brasileira. Em torno a
esse episódio produziram-se diversas imagens que refletiam pontos de vista distintos sobre a
declaração de independência. Se tomarmos como referência o quadro de Pedro Américo “
Independência ou Morte” pintado em 1888 que tornou-se a principal expressão do momento
da declaração de independência durante a república buscava enaltecer uma versão do
ocorrido. Explicitamente, a obra atribui um caráter militar à separação política da colônia
portuguesa nas Américas e sua metrópole. Apresenta a visão de que a independência resultou
de um pacto entre a elite civil e militar tendo Pedro I como ponto de aglutinação desses
campos. Enquanto isso, o conjunto da sociedade civil apenas assistia ao passo que os
escravizados pouco compreendiam ou encontravam sentido naquela cena. Ainda que a ideia
de enaltecer a figura de um monarca nos primeiros anos da república não parece combinar
muito o destaque dado a obra no centenário da independência (1922) permitia colocar São
Paulo no centro daquele evento. No contexto da República oligárquica e a hegemonia paulista
no cenário nacional consolidada durante esse período, uma narrativa paulistocêntrica veio a
calhar.
Entretanto, essa representação contrastava com a imagem difundida ao longo
de mais da metade do século XIX. No quadro “A proclamação da Independência” de
François-René Moreaux, o pintor francês criou um cenário bem diferente, mantendo Pedro I
como principal protagonista e o caráter militar, mas com ampla participação. Pode-se dizer
que Moreaux apresentou militares misturados com o povo em meio a uma grande celebração
popular. Atualmente, graças ao desenvolvimento da historiografia brasileira sobre o assunto,
sabe-se que a cena não foi tão heróica e decisiva tal como as imagens apresentam. Esse
amadurecimento da nossa historiografia tem permitido, cada vez mais, transcender as
explicações superficiais e simplificadas e dar visibilidade a atores centrais para o processo de
independência tradicionalmente apagados dos livros didáticos. É o caso do papel
desempenhado pela Imperatriz Leopoldina a quem se atribui a assinatura da declaração
oficial da independência do Brasil, uma vez que era ela quem se encontrava no comando do
governo, diante da ausência de D. Pedro. Nesse mesmo sentido o destaque a Maria Quitéria e
a guerra de independência na Bahia chamam a atenção para a participação destacada das
mulheres bem como dos intensos confrontos entre brasileiros e portugueses no processo.
Considerando o período que se inicia na década de 90 do século XVIII com as revoltas em
Minas Gerais e na Bahia até a constituição de estruturas mais sólidas e maior estabilidade
política com a coroação de Pedro II, contamos com 50 anos, aproximadamente, de conflitos
sangrentos em todo país marcados pela violência e intensa agitação política.
Outro elemento simbólico da identidade nacional corresponde ao papel da
miscigenação para a formação do povo brasileiro. Desde Von Martius (1844) em “Como se
deve escrever a história do Brazil” publicado em 1844 configurando uma das primeiras
iniciativas do jovem Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), compreende-se o
brasileiro como um povo miscigenado. Para Darcy Ribeiro o brasileiro era um povo novo,
diferente de tudo que havia, onde
"Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados.
Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura
mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente
sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos".…
(RIBEIRO, 1995, p. 25).
Por outro lado, pesquisadores importantes como Gilberto Freyre (FREYRE,
2001) contribuíram para a formatação da ideia acerca da existência de uma democracia racial
no país associada ao papel da miscigenação. Já outros intérpretes do Brasil, como Sérgio
Buarque de Holanda (1936), identificaram que a suposta cordialidade que se associou ao
brasileiro poderia ser mais cruel do que se imaginaria. Romper com essa visão é como sair da
matrix e encarar a realidade para poder enfrentar e combater o que muitos grupos identificam
como genocídio da juventude negra e o extermínio de povos indígenas que afligem o Brasil
como um “mancha de caim”, como diria Joaquim Nabuco (1883, p. 23)
Entretanto, a imagem de um Brasil negro, país do samba e do carnaval, das
praias e do futebol representam elementos fortíssimos para a constituição da identidade e
mesmo do soft power brasileiro. Esses componentes forjaram a imagem mais difundida, tanto
em nível nacional quanto global, acerca dos brasileiros. No contexto republicano, uma vez
abolida a escravidão e o avanço do processo de industrialização, sobretudo após a Revolução
de 1930, a nova conformação das estruturas de poder provocaram modificações importantes
na sociedade brasileira. Entre estas mudanças, deve-se mencionar a incorporação de uma
massa de ex-escravos e imigrantes ao processo industrial. Trata-se da “alteração do caráter do
Estado” (CARDOSO; FALETTO, 1973), sustentado por outro equilíbrio de poder baseado
em um jogo de acordos e alianças que envolviam setores agro-exportadores, financeiros,
classes médias e industriais urbanos (CARDOSO; FALETTO, 1973). Nesse cenário, a
participação política nas

“(…) associações e o sufrágio como meio básico de expressão popular


constituem outros dois aspectos da incorporação das massas populares às
estruturas políticas do capitalismo brasileiro em processo de desenvolvimento
e urbanização.”(WEFFORT, 1978).
Weffort identifica, ainda, que as características surgidas permitem que este já não pudesse ser
entendido como o Estado oligárquico, tampouco como uma democracia nos moldes
ocidentais (WEFFORT, 1978). Para ele, a grande marca desse contexto foi a incorporação das
massas oriundas do campo, basicamente, no processo produtivo e político nacional, onde a
proletarização significava mobilidade social. Com a crescente urbanização, decorrente da
industrialização, essas massas urbanas assumiram um peso cada vez maior na vida nacional.
Tendo o sufrágio como principal canal de incidência desses setores, sua importância é
crescente e faz com que a mediação com as massas seja uma marca da política nesse período
e o populismo sua expressão política.
Diante do vazio aberto pela crise de hegemonia do sistema oligárquico e a
incapacidade de um setor impor hegemonia frente aos demais na composição do bloco de
poder, o populismo surge como manifestação daquilo que FHC chamou de “aliança
desenvolvimentista”. Resulta, de maneira direta, da incorporação das massas à dinâmica de
produção e ao aumento da massa eleitoral resultante do crescimento da urbanização. À
medida em que esse processo se intensifica, esse contingente eleitoral passa a ter um peso
cada vez maior na vida do país. Assim sendo,

(…) desde 1945, qualquer político que pretendia conquistar funções


executivas com um mínimo de autonomia em relação aos grupos de interesse
localizados no sistema partidário, deveria, embora de maneira parcial e
mistificadora, prestar contas às massas eleitorais.” (WEFFORT, 1978).

Assim, esse novo contexto permitiu aos segmentos marginalizados da


sociedade brasileira obtivessem margem para incidir nas estruturas de poder, ainda que de
forma limitada. Esse fenômeno provocou, também, a incorporação de elementos populares à
representação da nacionalidade brasileira. Assim, o samba e o carnaval, legítimas
manifestações populares passaram a ser promovidos pelo próprio Estado como elementos de
identidade entre os brasileiros. Quer dizer, uma festa européia transformou-se, no Brasil, na
festa dos negros e, por conseguinte, dos brasileiros. O mesmo pode ser dito acerca do futebol,
um esporte da elite que transformou-se em símbolo nacional com a incorporação de negros e
pobres ao esporte e forte promoção do Estado, mais uma vez, aliado a tentativas de
manipulação por parte de distintos grupos políticos, econômicos e sociais.

Ao longo dessa caminhada foi-se fortalecendo a imagem de um Brasil


litorâneo, negro, cordial, herdeiro de um poder monárquico e da escravidão, sambista e de
língua portuguesa que distinguia-se da imagem que se produziu, igualmente no Brasil, acerca
da América Latina. Construiu-se, assim, no Brasil, a imagem de um país de costas para a
América Latina. Contudo, as representações acerca do Brasil constituídas no continente
latino-americano, historicamente, tem reforçado essas concepções. Consequentemente,
nossos hermanos latino-americanos reforçam o distanciamento da região na medida em que
reafirmam o idioma como obstáculo a esse diálogo e uma diferenciação do Brasil em relação
aos demais. A presença da cultura africana contrastava com a imagem de uma América
Latina majoritariamente indígena. Além disso, a projeção de um Brasil monárquico que não
havia rompido totalmente os laços com a metrópole europeia discrepava da representação de
uma América Latina republicana e sem escravidão. Contudo, se compreendemos a definição
de identidade defendida por Bourdieu e apresentada anteriormente neste trabalho, devemos
identificar que a identidade de uma nação, cultura ou povo é forjada nos seus próprios
embates e na confrontação com os outros. Ou seja, a identidade se produz a partir daquilo que
une uma comunidade mas a distingue de outra. Ora, esses embates em torno das
representações acerca das identidades nacionais e regionais não marcaram apenas a sociedade
brasileira mas, os países vizinhos igualmente. Dessa forma, essas representações devem ser
vistas igualmente como resultado das lutas de representações e a influência brasileira na
região.

Segundo a professora Marcela Ternavasio (CONGRESSO, 2022), o


principal constrangimento a respeito da participação argentina na Guerra da Tríplice Aliança
se deu mais pelo fato do país haver se aliado a um Império escravista que pelas atrocidades
cometidas no Paraguai. Para a historiadora, em pleno século XIX as nações sul-americanas
viviam um processo de formação ou consolidação, portanto, ainda era difícil estabelecer uma
distinção entre os interesses nacionais e internacionais. E, os debates em torno do modelo
político-administrativo marcou os debates entre federalistas contra modelos mais
centralizadores, monarquistas e republicanos levando, em vários casos, à guerra civil. Ou
seja, a imagem de uma América Latina republicana constituiu-se em volta dessas discussões e
a prevalência deste modelo em relação ao monárquico e, a existência de uma monarquia
absolutista na vizinhança influenciava os debates na região. Assim, a afirmação de um
americanismo republicano contra um lusitanismo monárquico e escravista contribuiu para as
disputas pela liderança regional, sobretudo entre Brasil e Argentina no contexto regional.

Esse percurso histórico produziu, no caso brasileiro, uma sociedade que pouco
se vê no contexto latino-americano. Assim como, é vista como algo distante para o conjunto
da América Latina. Segundo pesquisa divulgada pela BBC Brasil no ano de 2015 aponta que
“apenas 4% dos brasileiros se definem como latino-americanos, ante uma média de 43% em
outros seis países latinos (Argentina, Chile, Colômbia, Equador, México e Peru)”
(ALBERGARIA, 2022). A pesquisa foi realizada através do projeto The Americas and the
World: Public Opinion and Foreign Policy (As Américas e o Mundo: Opinião Pública e
Política Externa), coordenado pelo Centro de Investigação e Docência em Economia (Cide)
do México, em colaboração com universidades da região. Quando perguntados sobre como se
identificavam, “a principal resposta foi ‘brasileiro’ (79%), seguida por ‘cidadão do mundo’
(13%), ‘latino-americano’ (4%) e ‘sul-americano’ (1%)” (ALBERGARIA, 2022). Por outro
lado, a pesquisa revelou que 16% dos brasileiros acreditam que o foco da política externa
brasileira deve se concentrar na América Latina e 66% acreditam que o Brasil deve ocupar
vaga no Conselho de Segurança da ONU, caso surgisse uma cadeira de representação da
América Latina.

Considerações finais.
Ao longo deste artigo buscou-se apresentar que criou-se, no Brasil, uma
dinâmica controversa da sua formação posto que a imagem de um Brasil litorâneo destoava
do processo de consolidação da nação que se deu em direção ao interior. Porém, a política
bandeirante de interiorização do território português nas Américas, continuada após a
independência, constituía uma economia que se rumava ao interior em função do litoral. Sob
outra perspectiva é possível afirmar que foi ao longo do processo de interiorização que essa
identidade nacional forjou-se. Não à toa, grande parte dos líderes dos projetos de afirmação
nacional provém do interior do país. Getúlio Vargas e João Goulart, oriundos da região de
fronteira, Juscelino Kubitschek, do interior de Minas Gerais, Lula, interior de Pernambuco,
para citar apenas alguns de distintos momentos históricos. A questão que pretendo ressaltar
reside no fato de que a consolidação da nação brasileira se desenvolveu no curso da
interiorização do país e, consequentemente, em direção aos países da América do Sul. Sob
esse prisma torna-se mais fácil visualizar a Guerra do Paraguai como o grande confronto
entre as nações emergentes dos processos de independência e não apenas como resultado de
interesses imperialistas forasteiros na região. Além disso, a projeção continental do Brasil
revela que o país não esteve tão de costas para a América Latina como se propaga.
Para corroborar o argumento exposto podemos recorrer ao pensamento
geopolítico de Mário Travassos, um dos precursores dessa área do conhecimento no país.
Para o geógrafo, as características do processo de independência do Brasil permitiram que o
país obtivesse vantagem em relação aos vizinhos que viveram momentos mais conturbados.
Esse fenômeno criou, no Brasil, um poder e institucionalidade mais sólida e estável que sua
vizinha, favorecendo os planos expansionistas dos brasileiros. Os principais exemplos desse
processo residem na Guerra Cisplatina, quando o Brasil ocupou a Banda Oriental (atual
Uruguai); na interferência brasileira na política argentina durante a Guerra contra Rosas ou na
Guerra do Paraguai. Para o doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Integração da
América Latina da Universidade de São Paulo (Prolam-USP), Marcos Antônio Fávaro
Martins, a influência argentina no pensamento de Mário Travassos na medida em que passou
a desenvolver a perspectiva da construção do espaço vital brasileiro. A partir desse ponto de
vista, a expansão argentina em direção à bacia Amazônica representava uma ameaça para os
interesses geopolíticos brasileiros uma vez que o país vizinho passaria a controlar as duas
principais bacias hidrográficas do continente. Devido a isso, a Bolívia passou a ser vista
como um marco divisor entre as bacias Amazônica e do Rio da Prata, fortalecendo este país
como palco dos conflitos geopolíticos regionais. Outra contribuição de Mário Travassos ao
pensamento geopolítico brasileiro e sul-americano diz respeito ao desenvolvimento da
perspectiva que identificou a Bolívia como vértice de um Triângulo Econômico estratégico
que envolvia as principais disputas entre Brasil, Argentina e Chile, principalmente. La Paz,
Cochabamba e Santa Cruz de La Sierra passaram a ser vistas como o coração econômico da
América do Sul. Por isso, Martins aponta para as influências da perspectiva continental sobre
a Guerra do Chaco, envolvendo Paraguai e Bolívia. A absoluta dependência imposta pela
Argentina à economia paraguaia despertou, no Brasil, o medo de que uma derrota boliviana
poderia representar uma ampliação do domínio portenho sobre a região. Assim, o Brasil
alinhou-se ao lado da Bolívia no conflito em que acabou derrotada, vendo os territórios
disputados serem incorporados pelo Paraguai. Ou seja, é possível identificar que o
pensamento geopolítico brasileiro se desenvolveu sob influência da América Latina e em
função dos conflitos regionais.
Nesse sentido, compreendendo o contexto marcado pela guerra de
representações, faz-se urgente desconstruir a imagem de um Brasil ignorante e prepotente em
relação a sua identidade latino-americana. Torna-se, portanto, mais que necessário reivindicar
um Brasil latino que identifique o seu idioma como uma ponte e não um obstáculo para o
diálogo com nossos vizinhos. Difícil é imaginar uma integração regional com povos que
falam alemão, francês, inglês e português, contudo a União Europeia é vista como modelo de
sucesso. Estranho não é promover o diálogo entre povos de língua portuguesa e espanhola,
mas presenciar cenas em que duas pessoas que falam idiomas de origem latina recorreem a
uma língua anglo-saxã para comunicar-se. Conforme pontuou o próprio Ernesto Guevara de
la Sierna:
En este continente se habla prácticamente una lengua, salvo el caso
excepcional del Brasil, con cuyo pueblo los de habla hispana pueden
entenderse, dada la similitud entre ambos idiomas. Hay una identidad tan
grande entre las clases de estos países que logran una identificación de tipo
‘internacional americano’, mucho más completa que en otros continentes.
Lengua, costumbres, religión, amo común, los unen. El grado y las formas
de explotación son similares en sus efectos para explotadores y explotados
de una buena parte de los países de nuestra América. (GUEVARA, 1967. pg.
592)
Assim, para El Che, do Rio Bravo à Patagônia, a América Latina está
composta de “uma só raça mestiça” (DIÁRIOS... 2004)
É possível identificar que a partir da consolidação do regime republicano, no
século XX, as aproximações entre Brasil e o conjunto do continente estreitaram-se. O fim da
monarquia e da escravidão quebraram parcialmente o distanciamento mencionado, embora
não o suepraram. Especialmente a partir da metade do século passado, com a ascensão de
governos progressistas nos países da região pode-se constatar uma maior identificação
regional. O papel de intelectuais brasileiros nos debates relacionados ao desenvolvimentismo
e projetos de sociedades autônomas, especialmente a partir da CEPAL com Celso Furtado,
levaram a intelectualidade brasileira a ser incorporada à antessala dos pensamento
latino-americano. Assim, pesquisadores como Fernando Henrique Cardoso, Darcy Ribeiro,
Sérgio Buarque de Holanda, Milton Santos, Rui Mauro Marini, Paulo Freire e outros tantos
brasileiros passaram a cooperar e produzir conhecimento de maneira compartilhada com seus
pares latino-americanos. Nesse mesmo cenário, a interação no âmbito da cultura aproximou
Chico Buarque do cubano Silvio Rodríguez, do chileno Víctor Jara ou do uruguaio Daniel
Viglietti, Milton Nascimento de Mercedes Sosa, Caetano Veloso e Pablo Milanés, Vinicius de
Moraes de Pablo Neruda e Gabriel García Márquez, entre outros.
No contexto da redemocratização, o Mercosul surgiu como um bloco
econômico de integração das nações democráticas do conesul. E, mesmo nas ditaduras
civis-militares de toda a região é possível encontrar inúmeros intercâmbios, como a Operação
Condor que integrou os órgãos de inteligência promovendo a cooperação entre esses regimes.
Vale mencionar, igualmente, obras de infra-estrutura de caráter regional como Itaipu, uma
forma da ditadura militar brasileira fortalecer o regime de Stroessner no Paraguai. Por outro
lado, a integração das ditaduras, promoveu também a articulação das resistências nos países
da região com intercâmbios intensos durante esses períodos, seja no que diz respeito à
solidariedade quanto no apoio logístico, no caso dos exilados, ou material e bélico no que se
refere aos movimentos armados. No período mais recente, especificamente na primeira
década e meia do século XXI, esse processo de diálogo e integração latino-americana ganhou
novo impulso com a criação de órgãos multilaterais de perfil exclusivamente
latino-americanos. Os melhores exemplos são a construção da Comunidade de Estados
Latino-americanos e Caribenhos (CELAC), União de Nações Sul-americanas (UNASUL)
permitindo uma projeção global do continente, principalmente a partir dos BRICS (Brasil,
Índia, China e África do Sul). Durante esse período histórico a região viveu intensos fluxos
comerciais e econômicos entre os países, podendo mencionar obras de infraestrutura como a
parceria cubano-brasileira para a construção do porto de Mariel em Cuba. Tal projeto
articulado a outras obras, como o Canal Interoceânico construído na Nicarágua, ou a
perspectiva de viabilizar uma estrada de ferro que ligasse os oceanos pacífico e atlântico
projetavam a América Latina como uma potência regional a nível global. Por outro lado, esse
projeto integracionista chamou a atenção para a necessidade de uma integração cultural,
social e educacional do continente. Neste aspecto, talvez, o elemento mais proeminente resida
na construção do Espaço Latino-americano e Caribenho de Educação Superior (ENLACES)
como ferramenta de integração dos sistemas universitários da região, fundado oficialmente
em 2018 durante a III Conferência Regional de Educação Superior (CRES) e reconhecido
pela CELAC desde 2013.
Por fim, afirmamos que devemos compreender que as representações não são
meras ficções imaginárias acerca de uma determinada realidade. Muito pelo contrário,
encontram sentido na subjetividade das pessoas devido a materialidade que possuem ou
passaram a possuir a partir das lutas de hegemonia e conflitos sociais. Dessa forma, não
deve-se apontar a história oficial como mentirosa ou fictícia, mas limitada, parcial e
instrumentalizada para um projeto de poder. Diante do amadurecimento da historiografia
brasileira e latino-americana já é hora de construir um Brasil de Nuestra América como
apontou José Martí.

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Anexos.
Abaixo elencamos as obras de arte mencionadas no artigo:

1. Independência ou Morte de Pedro Américo, pintada no ano de 1888 sob


encomenda do governo brasileiro e;

2. O quadro A proclamação da Independência, feito por François-René Moreaux


em 1844, foi bastante difundido no século XIX, antes de ser suplantado pela
obra de Pedro Américo

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