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Mateus Fiorentini1
Resumo: O presente artigo pretende promover uma reflexão acerca da relação do Brasil e a
existência, ou não, de sua identidade latino-americana. Para isso, buscará chamar a atenção
para as narrativas que construíram a ideia de um Brasil formado de costas para a América
Latina, tanto em âmbito local quanto regional. Assim, o trabalho tem como meta explicitar
algumas das razões pelas quais a percepção dos brasileiros em relação a sua latinidade é tão
baixa. Ao mesmo tempo identificar os elementos apontados pelos nossos vizinhos como
fatores que sustentam o distanciamento do Brasil em relação ao continente, com o objetivo de
apresentar os limites dessas narrativas. Por fim, buscaremos reivindicar a latinidade da
sociedade brasileira a partir da perspectiva das representações desenvolvidas por Pierre
Bourdieu.
Resumen: El presente artículo pretende promover la reflexión acerca de la relación del Brasil
y la existencia, o no, de su identidad latinoamericana. Para tanto, se buscará llamar la
atención para las narrativas que construyen la idea de un Brasil formado de espaldas hacia
América Latina, tanto en ámbito nacional como regional. Así, el trabajo tiene por meta
explicitar algunas de las razones por las cuales la percepción de los brasileños en relación a
su identidad con América Latina es tan baja. Al mismo tiempo, identificar los elementos
planteados por nuestros vecinos como factores que sostienen el alejamiento de Brasil en
relación a los demás países de la región, con el objetivo de presentar los límites presentes en
dichas narrativas. Por fin, se busca reivindicar la latinidad de la sociedad brasileña partiendo
de la perspectiva de las representaciones desarrolladas por el sociólogo francés, Pierre
Bourdieu.
1
Mateus Fiorentini é graduado em História pela PUC-SP, mestre pelo Programa de Pós-graduação em
Integração da América Latina da Universidade de São Paulo (PROLAM-USP), doutorando junto ao Programa
de Pós-graduação em História da Universidade de Passo Fundo (PPGH-UPF) e educador da rede privada de
ensino do Rio Grande do Sul.
A existência de uma identidade latino-americana tem sido alvo da preocupação
de um conjunto considerável de análises por parte de pesquisadores, lideranças e movimentos
políticos e culturais de toda a região. Essa identificação de caráter continental foi, e continua
sendo, reivindicada por um variado espectro de grupos sociais e correntes políticas e
ideológicas de todo o continente. Entretanto, historicamente, a temática é comumente
identificada com mais força nos países de língua espanhola. Nesse sentido, é um lugar
comum apontar o Brasil como um país deslocado e isolado dentro do contexto
latino-americano. Seja pelo complexo de vira-latas dos brasileiros que sempre sonharam em
serem europeus e haviam virado as costas para a vizinhança ou pela imagem construída pelos
nossos hermanos de que o idioma, a colonização portuguesa e a monarquia teriam tornado o
Brasil em algo “estranho” à unidade da região.
Assim, o presente artigo pretende jogar luz acerca dos debates em torno da
identidade e a relação do Brasil com a América Latina. Ou seja, será que somos tão distantes
dos nossos vizinhos quanto se afirma constantemente? Deve-se considerar verdadeira a ideia
de que o Brasil foi formado de costas para a América Latina? Quais os argumentos que
sustentam essas posições? Quais os elementos que permitem apontar as características que
tornam os brasileiros mais ou menos latino-americanos? Diante dessas indagações entende-se
que o debate proposto pode ser elucidado se localizado no âmbito da perspectiva das
representações, desenvolvida principalmente pelo sociólogo francês, Pierre Bourdieu.
Esse percurso histórico produziu, no caso brasileiro, uma sociedade que pouco
se vê no contexto latino-americano. Assim como, é vista como algo distante para o conjunto
da América Latina. Segundo pesquisa divulgada pela BBC Brasil no ano de 2015 aponta que
“apenas 4% dos brasileiros se definem como latino-americanos, ante uma média de 43% em
outros seis países latinos (Argentina, Chile, Colômbia, Equador, México e Peru)”
(ALBERGARIA, 2022). A pesquisa foi realizada através do projeto The Americas and the
World: Public Opinion and Foreign Policy (As Américas e o Mundo: Opinião Pública e
Política Externa), coordenado pelo Centro de Investigação e Docência em Economia (Cide)
do México, em colaboração com universidades da região. Quando perguntados sobre como se
identificavam, “a principal resposta foi ‘brasileiro’ (79%), seguida por ‘cidadão do mundo’
(13%), ‘latino-americano’ (4%) e ‘sul-americano’ (1%)” (ALBERGARIA, 2022). Por outro
lado, a pesquisa revelou que 16% dos brasileiros acreditam que o foco da política externa
brasileira deve se concentrar na América Latina e 66% acreditam que o Brasil deve ocupar
vaga no Conselho de Segurança da ONU, caso surgisse uma cadeira de representação da
América Latina.
Considerações finais.
Ao longo deste artigo buscou-se apresentar que criou-se, no Brasil, uma
dinâmica controversa da sua formação posto que a imagem de um Brasil litorâneo destoava
do processo de consolidação da nação que se deu em direção ao interior. Porém, a política
bandeirante de interiorização do território português nas Américas, continuada após a
independência, constituía uma economia que se rumava ao interior em função do litoral. Sob
outra perspectiva é possível afirmar que foi ao longo do processo de interiorização que essa
identidade nacional forjou-se. Não à toa, grande parte dos líderes dos projetos de afirmação
nacional provém do interior do país. Getúlio Vargas e João Goulart, oriundos da região de
fronteira, Juscelino Kubitschek, do interior de Minas Gerais, Lula, interior de Pernambuco,
para citar apenas alguns de distintos momentos históricos. A questão que pretendo ressaltar
reside no fato de que a consolidação da nação brasileira se desenvolveu no curso da
interiorização do país e, consequentemente, em direção aos países da América do Sul. Sob
esse prisma torna-se mais fácil visualizar a Guerra do Paraguai como o grande confronto
entre as nações emergentes dos processos de independência e não apenas como resultado de
interesses imperialistas forasteiros na região. Além disso, a projeção continental do Brasil
revela que o país não esteve tão de costas para a América Latina como se propaga.
Para corroborar o argumento exposto podemos recorrer ao pensamento
geopolítico de Mário Travassos, um dos precursores dessa área do conhecimento no país.
Para o geógrafo, as características do processo de independência do Brasil permitiram que o
país obtivesse vantagem em relação aos vizinhos que viveram momentos mais conturbados.
Esse fenômeno criou, no Brasil, um poder e institucionalidade mais sólida e estável que sua
vizinha, favorecendo os planos expansionistas dos brasileiros. Os principais exemplos desse
processo residem na Guerra Cisplatina, quando o Brasil ocupou a Banda Oriental (atual
Uruguai); na interferência brasileira na política argentina durante a Guerra contra Rosas ou na
Guerra do Paraguai. Para o doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Integração da
América Latina da Universidade de São Paulo (Prolam-USP), Marcos Antônio Fávaro
Martins, a influência argentina no pensamento de Mário Travassos na medida em que passou
a desenvolver a perspectiva da construção do espaço vital brasileiro. A partir desse ponto de
vista, a expansão argentina em direção à bacia Amazônica representava uma ameaça para os
interesses geopolíticos brasileiros uma vez que o país vizinho passaria a controlar as duas
principais bacias hidrográficas do continente. Devido a isso, a Bolívia passou a ser vista
como um marco divisor entre as bacias Amazônica e do Rio da Prata, fortalecendo este país
como palco dos conflitos geopolíticos regionais. Outra contribuição de Mário Travassos ao
pensamento geopolítico brasileiro e sul-americano diz respeito ao desenvolvimento da
perspectiva que identificou a Bolívia como vértice de um Triângulo Econômico estratégico
que envolvia as principais disputas entre Brasil, Argentina e Chile, principalmente. La Paz,
Cochabamba e Santa Cruz de La Sierra passaram a ser vistas como o coração econômico da
América do Sul. Por isso, Martins aponta para as influências da perspectiva continental sobre
a Guerra do Chaco, envolvendo Paraguai e Bolívia. A absoluta dependência imposta pela
Argentina à economia paraguaia despertou, no Brasil, o medo de que uma derrota boliviana
poderia representar uma ampliação do domínio portenho sobre a região. Assim, o Brasil
alinhou-se ao lado da Bolívia no conflito em que acabou derrotada, vendo os territórios
disputados serem incorporados pelo Paraguai. Ou seja, é possível identificar que o
pensamento geopolítico brasileiro se desenvolveu sob influência da América Latina e em
função dos conflitos regionais.
Nesse sentido, compreendendo o contexto marcado pela guerra de
representações, faz-se urgente desconstruir a imagem de um Brasil ignorante e prepotente em
relação a sua identidade latino-americana. Torna-se, portanto, mais que necessário reivindicar
um Brasil latino que identifique o seu idioma como uma ponte e não um obstáculo para o
diálogo com nossos vizinhos. Difícil é imaginar uma integração regional com povos que
falam alemão, francês, inglês e português, contudo a União Europeia é vista como modelo de
sucesso. Estranho não é promover o diálogo entre povos de língua portuguesa e espanhola,
mas presenciar cenas em que duas pessoas que falam idiomas de origem latina recorreem a
uma língua anglo-saxã para comunicar-se. Conforme pontuou o próprio Ernesto Guevara de
la Sierna:
En este continente se habla prácticamente una lengua, salvo el caso
excepcional del Brasil, con cuyo pueblo los de habla hispana pueden
entenderse, dada la similitud entre ambos idiomas. Hay una identidad tan
grande entre las clases de estos países que logran una identificación de tipo
‘internacional americano’, mucho más completa que en otros continentes.
Lengua, costumbres, religión, amo común, los unen. El grado y las formas
de explotación son similares en sus efectos para explotadores y explotados
de una buena parte de los países de nuestra América. (GUEVARA, 1967. pg.
592)
Assim, para El Che, do Rio Bravo à Patagônia, a América Latina está
composta de “uma só raça mestiça” (DIÁRIOS... 2004)
É possível identificar que a partir da consolidação do regime republicano, no
século XX, as aproximações entre Brasil e o conjunto do continente estreitaram-se. O fim da
monarquia e da escravidão quebraram parcialmente o distanciamento mencionado, embora
não o suepraram. Especialmente a partir da metade do século passado, com a ascensão de
governos progressistas nos países da região pode-se constatar uma maior identificação
regional. O papel de intelectuais brasileiros nos debates relacionados ao desenvolvimentismo
e projetos de sociedades autônomas, especialmente a partir da CEPAL com Celso Furtado,
levaram a intelectualidade brasileira a ser incorporada à antessala dos pensamento
latino-americano. Assim, pesquisadores como Fernando Henrique Cardoso, Darcy Ribeiro,
Sérgio Buarque de Holanda, Milton Santos, Rui Mauro Marini, Paulo Freire e outros tantos
brasileiros passaram a cooperar e produzir conhecimento de maneira compartilhada com seus
pares latino-americanos. Nesse mesmo cenário, a interação no âmbito da cultura aproximou
Chico Buarque do cubano Silvio Rodríguez, do chileno Víctor Jara ou do uruguaio Daniel
Viglietti, Milton Nascimento de Mercedes Sosa, Caetano Veloso e Pablo Milanés, Vinicius de
Moraes de Pablo Neruda e Gabriel García Márquez, entre outros.
No contexto da redemocratização, o Mercosul surgiu como um bloco
econômico de integração das nações democráticas do conesul. E, mesmo nas ditaduras
civis-militares de toda a região é possível encontrar inúmeros intercâmbios, como a Operação
Condor que integrou os órgãos de inteligência promovendo a cooperação entre esses regimes.
Vale mencionar, igualmente, obras de infra-estrutura de caráter regional como Itaipu, uma
forma da ditadura militar brasileira fortalecer o regime de Stroessner no Paraguai. Por outro
lado, a integração das ditaduras, promoveu também a articulação das resistências nos países
da região com intercâmbios intensos durante esses períodos, seja no que diz respeito à
solidariedade quanto no apoio logístico, no caso dos exilados, ou material e bélico no que se
refere aos movimentos armados. No período mais recente, especificamente na primeira
década e meia do século XXI, esse processo de diálogo e integração latino-americana ganhou
novo impulso com a criação de órgãos multilaterais de perfil exclusivamente
latino-americanos. Os melhores exemplos são a construção da Comunidade de Estados
Latino-americanos e Caribenhos (CELAC), União de Nações Sul-americanas (UNASUL)
permitindo uma projeção global do continente, principalmente a partir dos BRICS (Brasil,
Índia, China e África do Sul). Durante esse período histórico a região viveu intensos fluxos
comerciais e econômicos entre os países, podendo mencionar obras de infraestrutura como a
parceria cubano-brasileira para a construção do porto de Mariel em Cuba. Tal projeto
articulado a outras obras, como o Canal Interoceânico construído na Nicarágua, ou a
perspectiva de viabilizar uma estrada de ferro que ligasse os oceanos pacífico e atlântico
projetavam a América Latina como uma potência regional a nível global. Por outro lado, esse
projeto integracionista chamou a atenção para a necessidade de uma integração cultural,
social e educacional do continente. Neste aspecto, talvez, o elemento mais proeminente resida
na construção do Espaço Latino-americano e Caribenho de Educação Superior (ENLACES)
como ferramenta de integração dos sistemas universitários da região, fundado oficialmente
em 2018 durante a III Conferência Regional de Educação Superior (CRES) e reconhecido
pela CELAC desde 2013.
Por fim, afirmamos que devemos compreender que as representações não são
meras ficções imaginárias acerca de uma determinada realidade. Muito pelo contrário,
encontram sentido na subjetividade das pessoas devido a materialidade que possuem ou
passaram a possuir a partir das lutas de hegemonia e conflitos sociais. Dessa forma, não
deve-se apontar a história oficial como mentirosa ou fictícia, mas limitada, parcial e
instrumentalizada para um projeto de poder. Diante do amadurecimento da historiografia
brasileira e latino-americana já é hora de construir um Brasil de Nuestra América como
apontou José Martí.
Bibliografia
https://revistapesquisa.fapesp.br/as-raizes-do-quadro-independencia-ou-morte-
2/
https://www.youtube.com/watch?v=76Oo7UgJgBk
Youtube. https://www.youtube.com/watch?v=yVWUMOgi6h0
https://ihgb.org.br/pesquisa/hemeroteca/artigos-de-periodicos/item/75915-com
o-se-deve-escrever-a-hist%C3%B3ria-do-brasil.html
https://www.youtube.com/watch?v=S9EV5c42sxk
Américas.
https://www.youtube.com/watch?v=RJtvcS9-LFo
Anexos.
Abaixo elencamos as obras de arte mencionadas no artigo: