nossa cultura através da poesia. 4ª ed. Rio de Janeiro. Rocco, 1993
● De certa forma, este livro também é a história da representação do corpo nos
(des)encontros amorosos. Sintomaticamente, aí se verá que o corpo feminino ocupa grande parte do discurso, enquanto o corpo masculino é silenciado. E, reveladoramente, embora o corpo masculino esteja ausente, a voz que fala pela mulher é a voz masculina. (SANT’ANNA, 1993, p. 12) ● A análise desses textos, sob a ótica psicanalista, revela um desajustamento entre o real e o imaginário, que confirma a afirmativa de Platão de que o desejo é indigência. [...] A rigor, a literatura como produto cultural, foi sempre o lugar de grandes confissões, porque nela o desejo expôs sua ânsia de realização. Escrever é desejar. (SANT’ANNA, 1993, p. 13) ● Portanto, a história da metáfora amorosa é, em grande parte, a história do medo de amar e da incapacidade de vencer fantasmas arcaicos e modernos. É claro que essa história é a história contada por homens. E, posto que o homem se elegeu como redator da história, escolheu para a mulher o papel do outro, colocando nela a imagem do mal e da desagregação. (SANT’ANNA, 1993, p. 13) ● [...] Como cada época organiza literariamente seu imginário erótico. É como se fosse colocada uma linguagem ou uma moeda em circulação e, de repente, todos começam a expressar seus fantasmas dentro daquele código. Como se organiza essa linguagem, dentro, acima ou a despeito dos conhecidos “estilos de época” (...). (SANT’ANNA, 1993, p. 13, 14) ● [...] Ao estudar o romantismo, o parnasianismo e o simbolismo, grande número de autores menores e desconhecidos ajudava a reconstruir uma teia de significados importantes para a análise do inconsciente ideológico, Por serem autores menores, cristalizavam com mais facilidade a linguagem alheia. Eram autores sintomáticos. Por outro lado, como a maioria dos autores estudados viveu e escreveu em completa ignorância do que era psicanálise, demonstraram uma espontaneidade às vezes comovedora. Certamente, alguns autores modernos, já sabedores dos mecanismos expostos por Freud, acautelam-se mais ao escrever; disfarce que muitas vezes se converte em denúncia. (SANT’ANNA, 1993, p. 16) ● O canibalismo é um traço em nossa cultura muito mais significativo do que se pensa, tendo gerado até movimentos estéticos vanguardistas na Europa e no Brasil no princípio do século XX. Não é à toa que o cristianismo é tido como representante, no Ocidente, da ordem canibal ancestral. A ideia do ágape cristão (ceia do amor) e do ritual da hóstia (palavra que significa “vítima sacrificial”) são uma atualização de um rito intemporal, no qual deuses comem homens, homens comem deuses ou, então, são dramatizados no sangue dos animais mediadores. (SANT’ANNA, 1993, p. 17) ● Por isso, o canibalismo é apenas uma das formas desse ritual; talvez o que concentre o patológico, o religioso, o alimentar e, imaginariamente, o mais viável e compulsivo. (SANT’ANNA, 1993, p. 17)
Da mulher-esfinge como estátua devoradora ao striptease na alcova
● Com a cristalização do movimento parnasiano em torno de 1880, começa a surgir em nossa poesia, reincidentemente, a imagem da mulher-estátua. Descrita em cima de um pedestal, ela é a Vênus e a Afrodite greco-romanas seduzindo o homem. (SANT’ANNA, 1993, p. 65) ● Além disso, recria-se uma atmosfera plástica das esculturas clássicas e renascentistas. O poeta quer que seu texto também seja uma escultura, uma miniatura, uma pintura. Ele, por isso, esculpe, cinzela, e molda seu poema como se ele fosse matéria concreta e mineral. Pode-se aqui dizer que em relação à estética clássica, essencialmente visualista, aqui se desdobra o aspecto tátil. [...] Ele alucina seus desejos em forma de estátuas. (SANT’ANNA, 1993, p. 65) ● Essa mulher-estátua é polissêmica. [...] Ostenta-se aí uma esquizofrenia simbólica característica do homem ocidental cristão: o prazer amoroso corroído pelo remorso do pecado conforme a ideologia judaico-cristã. (SANT’ANNA, 1993, p. 65)
Desenvolvimento – Vênus e Maria: o desejo e a interdição numa só estátua
● A mulher-estátua é a imagem central da questão erótica e estética dos parnasianos. Aparentemente, esse tema está preso ao amor pelo ideal clássico de beleza. [...] Poder-se-ia, por isso, falar que as mulheres parnasianas retratam sempre uma realidade bifronte: a Virgem recalca a bacante. Ou a bacante com um esforço de libertação do desejo recalcado da Virgem. Do ponto de vista técnico freudiano, essas imagens exemplificam os processos de condensação e deslocamento. Ora o poeta condensa Vênus e Maria num mesmo complexo plástico e neurótico, ora as coloca uma em primeiro plano, falando indiretamente da outra. (SANT’ANNA, 1993, p. 67) ● Mas foi no século XIX que o marianismo se instalou. [...] Não apenas sobreveio o culto da Virgem, mas esse culto se manifestou mesclado de signos pagãos, deixando entrever, atrás da cena e das imagens, a presença de Afrodite e Vênus. A ideologia católica optou pela condensação ou superposição dos valores cristãos e pagãos. [...] Disputou o mesmo espaço simbólico da religião, destronada por Constantino, e operou a técnica do recalque, que, por sua vez, não consegue ser total, pois continua no inconsciente social e nas obras que revelam os vestígios do paganismo. [...] Ao contrário, deixou que persistem como prova de um sincretismo [...]. (SANT’ANNA, 1993, p. 67, 68) ● É importante ressaltar, ainda, que, além desse flanco religioso, outro flanco ideológico se constituiu: a divulgação, entre nós, do positivismo, que, convertido numa espécie de filosofia religiosa, enfatizou a função mediadora da esposa e incentivou o culto da santa mãe. (SANT’ANNA, 1993, p. 68) ●