Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Peter Ri vie re
Oxford University
Boglár ( 1984-85) , ao esc reve r sobre a arte plun1ária da Amazôn ia, fez
uma distinção entre u1n sistema de signos referente a posições soc iais e
um sistema de signos ideo lógicos. Seus conceitos são apl icáveis 1nais
- 192 -
RFVIS TA DE AN I ROPOJ.{)(,IA, s.\()P AULO . USP. 1995, v. 38 nº 1.
- 193 -
PETER R1v1ERE. AAE NA AMAZÔNIA
- t 94 -
REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SÃO P AULO, USP, 1995, v. 38 nº 1.
çar. Mais uma vez, isso vem na forma de vestitnenta: ao jovem é ofer-
tada uma roupage1n de águia. Primeiro, ele recebe roupa s que lhe per-
mitem caçar pá ssaros e, mai s tarde, lhe são dada s roupas melhores, para
caçar macaco s. Depois de um certo tempo , o jovem fica cansado das
exigências de seus sogros e da dieta: ele tem de comer "carne pratica -
mente crua". Todavia, encontra dificuldade em escapar, apesar de pedir
ajuda a vários pássaros. Finalme nte, persuade uma arara a resgatá-lo
e retorna para casa completamente hu1nano.
E1n ambos esses mito s a palavra "po", o termo padrão Tiriyó para
roupa, é usado para indicar a destreza com que os pai s da esposa pro-
videnciam para que se u genro po ss a caçar para eles. Nos doi s casos,
tambérn, é bastante c laro que os joven s podem pôr e tirar sua s rou-
pas. Em outras palavras, eles podem esconder as respectivas 1násca-
ras de jaguar ou águia e reverter à natureza humana quando queiram.
Gostaria, agora, de abordar um outro mito (Koelewijn, 1987: 118-
20), no qual a transformação é muito mai s profunda. Este refere -se a
dois irmãos que são experientes tecelões. Devo observar aqui que a
tecelagem no Nordeste das Terras Baixas sul-americanas não é sim-
plesmente um trabalho ou habilidade prático s. Entre os Warau do delta
do Orenoco, o tecelão principal é considerado como tendo poderes si-
milares aos do xa mã e entre os Ye ' cuana a arte de tecer é parte do
ordena111ento cósmico.
No mito em questão, doi s hom e ns teciam cestas com desenhos de
jaguar tão rea listas que as ces ta s se transformavam, em certo senti-
do, em jaguares propria1nente dito s. Os dois irmãos podiam, ent ão,
tirar o co ur o desses ja guare s, com o que as ces ta s voltavam a ser ces-
tas e os innãos obtinha111, assim, jo gos de pele de jaguar. Quando ves-
tiam essas peles, e les gostava m de ir caçar e eram bons na caça, ape-
sar de a nterior me nte não o sere m. O mais velho, atrás, aliás, tinha de
repetidamente advert ir o irmão mais moço para que nã o abatesse caça
em demasia . O mais jovem igno rava essa advertência e um dia ele não
- 195 -
PETER R1v1f ::RE. AAE NA AMAZÔNIA
- 196 -
R1:,·1sr., DI· ANTROPOLOlil :\. SAo PAL'U).USP, 1995. ,·. 3H nº 1.
- 197 -
P ETER R IVII~RE. AAE NA AMA ZÔNI A
- 198 -
REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SAo P AULO, USP, 1995, v. 38 nº l.
tangívei s e etéreos - almas, nomes, etc. Além disso, no mito supra re-
su1nido , o "coração" da criança-urub u é descrito co1no sendo ou de
metal ou de pedra-, o que poderia ser considerado como o cerne duro
ou a força vita l da pessoa e, ne ste caso, sua imortalidade. Esse con-
traste entre aquela essência dura, duradoura , interna e invisível e a apa-
rência externa, suave e efêmera é, certamente, muito difundido na Ama-
zôn ia. Por exe1nplo: a versão Yanomami do mito da perda da vida
eterna trabalha exatamente este tema (cf. Wilbert & Simoneau, 1990:
375-6).
A versão desse mito Yanomami a que me refiro foi coletada junto
ao subg rupo Sanumá e conta a sua origem. O herói cultural original
pretendia criar os Sanumá a partir de árvores poli. Essas árvores são
raras e muito esparsamente distribuída s; têrn uma madeira muito dura
e uma casca fina. O herói cu ]tur al 1nandou seu irmão mais novo bus-
car essa 1nadeira, 1nas este, por pregui ça, trouxe árvores kodalinase,
que são cotnun s e têm urna madeira muito macia. Com estas última s
o herói talhou os Sa nu1ná quando, na verdade, sua inten ção era usá-la
para fazer as sucuri s, pois assim elas teriam vida curta. Ele queria que
os Sa num á fossem co mo as árvores poli: capazes de viver um longo
tempo e de rejuvenescer pela troca da pele, como as sucuris. Uma vez
mais , encontra1nos a idéia de um cerne duro e duradouro com u1n re-
vestimento externo que, nes te caso, é renováve l.
A idéia da renovação ou rejuvenescimento, associada à troca de
pele, é ta1nbém um tema com um em toda a Amazônia e - o que não
surpreende - está 1nuitas vezes associado tan1bém a cobras, particu-
lannente a sucuri s. Os Tukano oferece1n um bom exem plo desse ima-
gi nário , altan1ente elaborado não só no mito co1no també1n na ence-
nação ritual. A 1nenstru ação fen1inina , entendida como uma fonna de
troca de pele, é vista como 1neio de renovação , un1a vez que o ciclo
menstrual é co nsiderado como a fonte da força vital f e1ninina. Por isso
é que as mulheres vive1n n1ais que os ho1nens e se recuperan1 das do-
- 199 -
P ETER RIVIERE. AAE NA AMAZÔNIA
- 200 -
REVIST/\ DE ANTROPOLOGI/\, SÃo PAULO,USP, 1995, v. 38 nº 1.
- 201 -
PETER R1v1r~RE.AAE NA AMAZÔNIA
Nota
Este artigo é u1na versão lcvc 1ncntc revisada de un1 traba lho aprese ntad o
nun1 co lóq uio de a1nazonistas e melanesia nistas oco rrid o na Conferência
do Ce ntro de Satterthwaite, da Universidade de Man chester, de 29 de abril
a l º de n1aio de l 994. O objeti vo deste co lóqui o era ex plorar a base co-
n1un1às dua s reg iões, e es te traba lho, assim como o próprio colóquio, te1n
u1n caráter apenas ex plora tório e não chega a conclusões defi niti vas. Sou
grato pelos inestin1üveis come ntári os de outros parti cipant es do coló quio.
Bibliografia
BAER , G.
1992 "The onc intox icatcd by tobacco. Mat sigenka sharnanis1n", in LANGDON ,
E. J. M. e BAER , G. (orgs.), Portais ofpower. Sha,nanisni in South A,n erica,
University of Ncw Mex ico Prc ss.
BOGLÁR , L.
1984-5 "Th e Indian s and the bird s: A111a
zo nian fcath er-art", Acta Ethno graphica
(33) :8 1-9.
FRIKEL, P.
1971 "A 1nitolog ia so lar e a filoso fia de vida dos índios Kaxuyan a", Estudos
sob re líniuas e cultura s indígenas, Brasília , Su1n1ner In stitut e of
Lin guistics, Ed ição Especial, pp. J 03-42.
HUGH-JONES , C.
1979 Fr onz th e Milk riv er, Cmnbr idgc Univcrsity Prcss.
HUGH -JONES , S.
1979 Th e pa/111anel the pl eiades , C::unbridge University Press.
KOELEWIJN , C.
1987 Oral literature ofrlze Trio /ndi ans qfSurinanz, Dordrecht, Foris Publications.
OVERING , J.
1988 "Pcrsonal autono1ny and the don1estication of thc sclf in Piaroa socicty", in
LEWIS, I. e J AH ODA , G. (orgs. ), A cq uiring clllture, London, Croon1 Hchn.
- 202 -
J l)l)() "Thc ...;llam.111
a:,;a makcr orworlds: Nclstrn GtH)dman in thc Ama,on ...
,\fun. (25)·602- 19.
SfEGER. A.
J lJX I r\'uturc und socicry in Central Rro -;.il.Har\'ard Unt\'Crs1ty Prcss.
Tl lRNER. T .
1961.} "Tchikrin. A CL'ntral Bratilian trihc and it:,;s\tnholic bn~uagc ofbouih
.. ~ ...... .1
\'lD .\l. l.
J l)l)2 ··rmtur.i cPrporal t' arte grlffica entre t)S K.uap1.1-:Xicrin do Catcté ... in
\ ' l DAL. L. tn rg. ). Crqfi.,mo !11d(i.:
c11a:cslwlos de u11tropolugio cstéticCl.
S~o PaulP. Studio Nohcl/FAPESP /E DUSP. pp. 1-+l-~9.
.\BS l'R .\CT : ln this p~1pcr. l\ ~tcr Ri\ 1crt'. de.tis wi th l t) \\ L1nd Suuth
. \nl l'l il-,lll nuci~)ns pf lr,rn:--funn,lli()ll a, presente is m: thic narr.1t1\ L':-. ,md
,:1.hlll1.)h\~!ie,as \\l·ll as in :-.nc1,1I practin.'s. Hum ,111n:iturc is undcr,l1.1t)d as
\ ,lrt\..'d,rnd 1ntril"<llcd. thi:-.l't)f)diliPn hcin~ c\prc:-.\cd hy d(Hhtn~ ,llld :-.k..1n
l'()\ l'rllh~:-..
~
l'hc:-.L',111 turn. ,ll'l' lllC,ll1S of dUtlll'SllC,\lin!!
~
an ··,m1111~d" (0111-
pPt1L'llt c...;scntial .ind ah, ,ly, prL':-.l'nl in human n.1turl'. rht' i.lllll'r -.·1.)\ l'rtn~
\)l'llw 111dl\idu~d ,d:-.PlllCdi.ilL':- l"'\..'l\\l'l'll lhe ill11LT :--dr. '-i.h.'ICl\ ,IIH.I thl' \..'\)S-
tlhh. RL'kl'l'll-.·c, .ire nudc lt) thc TnP. lhe K,l: ,lj'\), K.1\U\ ,m,1. .\ L1t,1t-c11k..,t.
\\ ,lr~li.). Y,ll hlllUmn. l'uk..1111.,Jnd Pi.1n,,L
- 203 -