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Considerações sobre

um Marx “anti-
darwinista”
CARLOS ALBERTO DÓRIA*
Teólogos extintos jazem no berço
de toda ciência

(Thomas Huxley, 1860)

O propósito do presente trabalho1 ência positiva da natureza e da histó-


2
é explorar a fronteira da crítica marxis- ria” . Da antiga problemática do conhe-
ta – entre o pensamento de Marx e cimento restaria apenas “a teoria do pen-
Engels e o darwinismo – a partir de samento e suas leis – a lógica formal e a
3
questões levantadas por Dominique dialética” . Portanto, era fundamental
Lecourt, há mais de duas décadas, so- mergulhar em todos os campos do sa-
bre a intelecção de Marx a respeito de ber, especialmente a biologia, donde a
Darwin e o modo como o marxismo necessidade imperiosa de compreender
dogmático se apropriou do assunto. Darwin. Por outro lado, deve-se consi-
Embora Lecourt tenha feito uma derar que o materialismo moderno é
análise pontual do pensamento de fruto de toda uma geração – a “geração
Marx, é preciso ir além e considerar que do materialismo”4 – originando uma
os materialistas de então acalentaram o nova cultura e uma nova visão de mun-
projeto onde as ciências do homem e as do. Ao expulsar Deus do campo de de-
ciências da natureza integravam a “ci- terminações, os materialistas impuseram-
*
Doutorando em Sociologia pelo IFCH-Unicamp. o
1
O presente texto é o desenvolvimento da comunicação apresentada ao 4 Colóquio Marx e
Engels, promovido pelo Centro de Estudos Marxistas (Cemarx-Unicamp), Campinas, 2005.
2
Frederico Engels, Anti-Dühring, Madrid, Editoral Ciência Nova, 1968, p. 29.
3
Idem, Ibidem.
4
Carlton J. H. Haynes, Una Generación de Materialismo:1871-1900, Madrid, Espasa-Calpe,
1946. O autor define esta geração como o conjunto de intelectuais ativos entre 1840 e 1870
que, de modo explícito, considerou em suas obras o significado da doutrina darwinista sobre
a origem do homem.

110 • CONSIDERAÇÕES SOBRE UM MARX “ANTI-DARWINISTA”


se a tarefa de encontrar as leis que regi- Ao explicitar a distância entre as
am a matéria em todas as suas formas. duas ordens, no tocante ao método, Engels
Para esta revolução, talvez a teo- indica o seu fundamento real: “a diferen-
ria de Darwin seja a mais importante ça essencial entre as sociedades humanas
teoria na “virada”, e mais radical do que e as animais consiste em que essas, na
a crítica marxista ao idealismo alemão. melhor das hipóteses, coletam, enquanto
Por isso tem especial importância a re- os homens produzem. Basta esta diferen-
lação do marxismo com o darwinismo; ça, única mas capital, para tornar impos-
uma relação conflitiva, contraditória, sível a transposição sem mais reservas das
mas sem a qual não se compreende o leis válidas para as sociedades animais para
desenvolvimento do próprio pensamen- as sociedades humanas”.
to de Engels e Marx. Portanto convém Darwin, como se concordasse
registrar de pronto o que escreveu com Engels, admitira antes, em 1871,
Engels, em 1875, sobre o darwinismo: que a ênfase nos mecanismos de seleção
natural havia sido interpretada de modo
Da doutrina darwinista eu acei- absoluto, o que não refletia o seu ponto
to a teoria da evolução, mas não de vista com exatidão:
tomo o método de demonstra-
ção de Darwin (struggle for life, [na] A origem das espécies talvez
natural selection) além de uma tenha emprestado excessiva im-
primeira expressão, uma expres- portância à ação da seleção na-
são temporal e imperfeita, de um tural ou à sobrevivência dos mais
fato que se acaba de descobrir. capazes[...]. Seja-me permitido
[...] dizer, como justificativa, que ti-
A interação dos corpos naturais – nha em mente dois assuntos dis-
tanto os mortos quanto os vivos – tintos: o primeiro, o de que as
implica também a harmonia, assim espécies não haviam sido criadas
como a colisão, a luta, do mesmo separadamente; e o segundo, o de
modo que a cooperação. Se, por que a seleção natural tinha sido
conseguinte, um pretenso natura- o agente principal das mudanças,
lista se permite resumir toda a ri- embora largamente coadjuvado
queza e toda a diversidade da evo- pelos efeitos hereditários dos há-
lução histórica em uma fórmula bitos e claramente pela ação di-
estreita e unilateral, na ‘luta pela exis- reta das condições ambientais6.
tência’[...] semelhante método con- Esta ponderação é de grande va-
tem em si sua própria condenação5. lor historiográfico, pois entre o grande

5
F. Engels, “Carta a Piotr Lavrovich Lavrov”, Londres, 12-17 de novembro de 1875.
6
Charles Darwin, A origem do homem e a seleção sexual, São Paulo, Hemus, 1982, p. 78.

CRÍTICA MARXISTA • 111


impacto de A origem das espécies e até a Da intriga ao objeto
revelação das leis da genética o Na comemoração francesa do cen-
darwinismo chegou mesmo a viver um tenário da morte de Charles Darwin8,
momento de desprestígio e um conse- Dominique Lecourt, com o propósito de
qüente revival do lamarckismo, visto estabelecer um novo campo de crítica
que Lamarck se ocupou frontalmente para análise das relações intelectuais en-
dos problemas da adaptação e o do pa- tre Darwin e Marx, resolveu acertar con-
pel do meio-ambiente na evolução das tas com a leitura enviesada que esse teria
espécies. Esta retomada, conhecida feito da obra do naturalista. Utilizou para
como neo-lamarckismo, nos diz que, tanto – teatralmente – um conjunto de
embora a evolução fosse considerada um seis cartas trocadas entre Marx e Engels,
princípio inquestionável, o valor do entre agosto e outubro de 1866, sobre
mecanismo que Darwin propôs para um livro de Pierre Trémaux, quando am-
explicá-la variou ao longo da história da bos divergiram sobre a teoria deste me-
biologia e em muitas abordagens a ên- díocre autor a respeito da importância
fase recaiu em princípios alternativos, do solo (geologia) no desenvolvimento
atuando simultaneamente e conferindo das espécies animais e raças humanas9.
um papel secundário à seleção natural7. O “caso Pierre Trémaux” – vamos
Essa digressão histórica é impor- chamá-lo assim – se assemelha a um “es-
tante porque, como veremos, as dúvi- cândalo” na cidadela do marxismo. Ao
das de Marx sobre as lacunas teóricas menos é o tom que Dominique Lecourt
do darwinismo serviram à grande con- deu à sua comunicação intitulada “Marx
fusão promovida por Dominique au crible de Darwin”, texto que aparece
Lecourt por ocasião do centenário da nos anais do encontro sob a rubrica de
morte de Charles Darwin. Para o “aberrations marxistes”. O uso da palavra
epistemólogo, Marx, isoladamente, co- aberrações10 sugere que jamais houve rela-
meteu um erro grave de avaliação do ção profícua entre Marx e o darwinismo,
pensamento de Darwin. tratando-se de uma anomalia11.
7
Peter Bowler, The eclipse of darwinism, Baltimore, The Johns Hopkins University Press, 1992.
8
Trata-se do « Congrès International pour le Centenaire de la mort de Darwin », realizado
em Paris-Chantilly, de 13 a 16 de setembro de 1982, pelo Centre d´Histoire et d´Épistémologie
des Théories Scientifiques et des Doctrines Philosophiques de l´Université de Picardie.
9
Os trechos principais das cartas em relação à polêmica são reproduzidos como anexo ao
presente Comentário.
10
Dominique Lecourt, “Marx au crible de Darwin”, In: De Darwin au Darwinisme: Science
et Idéologie”, Congrès International Pour le Centenaire de la Mort de Darwin, Paris-Chantilly,
13-16 Septembre 1982, Paris, Librairie Philosophique J. Vrin, 1983.
11
Segundo o preformacionista Jean-Frédéric Meckel (1781-1833), as anomalias (“arrêts
de développement”) significariam que a “força formatriz” teria estancado em algum mo-
mento por uma carência inscrita na origem do germe.

112 • CONSIDERAÇÕES SOBRE UM MARX “ANTI-DARWINISTA”


Para maior clareza, vale explicitar mento infeliz da história da for-
os elementos do “caso” criado por mação do pensamento de Marx.
Dominique Lecourt:
O “caso Pierre Trémaux” fere vá-
1. Em 1859 aparece em Londres rios problemas para o marxismo: o es-
a Origem das Espécies. tágio do desenvolvimento teórico do
evolucionismo e a assimilação da revo-
2. Em 1865 aparece em Paris o lução promovida por Darwin; o desen-
livro de Pierre Trémaux12. Nele, volvimento do pensamento de Marx e
o autor pretendeu expor a teoria Engels sobre as ciências da natureza; a
do desenvolvimento dos seres vi- historiografia do marxismo. Por outro
vos determinado pelo tipo de lado, a idéia de “escândalo” é um juízo
solo de seu habitat. que transcende o enfrentamento cien-
tífico entre as obras de Darwin e Marx,
3. Durante o ano de 1866, Marx mesclando-o com política e
trocou cartas com Engels nas historiografia. Para a biologia, o “caso”
quais revelou grande entusiasmo não pareceu digno de maiores atenções,
pela teoria de Trémaux, apesar de valendo registrar que Stephen Jay
Engels tê-lo advertido seguida- Gould, referindo-se ao erro de Marx,
mente sobre grande equívoco em observou sobre a obra de Trémaux: “eu
que incorria. jamais li uma tese mais absurda e mal
documentada”14.
4. Estas cartas, apesar de consta-
rem da Marx-Engels Werke A teoria de Pierre Trémaux
(Berlim, 1963-68) não foram Visto da perspectiva atual, Pierre
incluídas nas múltiplas coletâne- Trémaux era um típico orientalista ro-
as de correspondências13. Este mântico15 que se aventurava a dar a sua
“incrível silêncio” (a expressão é contribuição para a “verdadeira expli-
de Lecourt) seria evidência do cação sobre as transformações dos seres
propósito de se ocultar o mo- vivos”, propondo-se a superar o enor-

12
Pierre Trémaux, Origine et Transformation de l’Homme et des Autres Êtres. Première Partie,
Paris, Librairie de L. Hachette, 1865.
13
Tais cartas teriam “aparecido” pela primeira vez em Karl Marx e Frederic Engels, Lettres
sur les sciences de la nature, Paris, Editions Sociales, 1973
14
Cf. John Bellamy Foster, A ecologia de Marx: materialismo e natureza, Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 2005, p. 393, nota 44.
15
Ele havia escrito até então livros como Voyages au Soudan Oriental ; Des Édifices Anciens
et Modernes; Exploration Arquéologique en Asie Mineure.

CRÍTICA MARXISTA • 113


me dissenso entre várias correntes cien- elaborado quando pertence a uma for-
tíficas. mação geológica mais recente”16.
O tema das leis da transformação O “segredo da formação das espé-
17
era, de fato, um dos mais candentes à cies” , posto como “mistério”, mostra-
época no debate científico e filosófico o resistindo ao darwinismo, preferindo
conduzido pelos naturalistas, e não é se filiar ao “grande espírito de concilia-
de estranhar que alguém, à busca de ção de M. de Quatrefages”, assim como
notoriedade, se dedicasse a ele. Ora, fazia um grande número de naturalis-
durante várias décadas duas grandes tas franceses. Este “atraso” dos france-
correntes se enfrentaram em torno do ses em relação a Darwin se atribui espe-
assunto: aquela para a qual a transfor- cialmente à grande influência de Cuvier
mação dos seres vivos é fruto de uma sobre o ambiente acadêmico, pois, mes-
perfeita adaptação ao ambiente – e mo após sua morte, e até o século XX,
portanto uma harmonia da criação se “darwinismo” e “evolução” eram consi-
manifesta através dela – e aquela que, derados termos pertencentes à cultura
ao contrário, via no processo de ajus- anglo-saxônica, quando, para consumo
tamento a ausência de qualquer dire- interno, se utilizava transformismo – ter-
triz, sendo o próprio ambiente mo derivado da tradição lamarckiana18.
mutável. Como corolário, surgiram as Trémaux repete e adapta as teses
hipóteses sobre a diferenciação ou di- de Quatrefages sobre os processos de
vergência das espécies como formas de diversificação e unificação das espécies:
adaptação; não sendo ela útil ter-se-ia a ação do solo diversifica segundo a na-
então a degenerescência. Ao se pergun- tureza, e o crescimento unifica. Assim,
tar “no que consiste esta misteriosa lei dirá, “o tipo de homem corresponde de
que produz sempre a fixidez, a varia- uma maneira muito forte à formação
ção, o progresso, a degenerescência”, geológica do meio e especialmente à
Trémaux situa-se nessa arena de deba- qualidade do solo sobre o qual está es-
tes e ensaia a resposta “definitiva”. A tabelecido. Nos homens que vivem so-
“grande lei de aperfeiçoamento dos se- bre terrenos primitivos das regiões equa-
res” tem o seguinte enunciado: “a per- toriais [...] a deformação dos tipos é
feição dos seres é proporcional ao grau sempre mais pronunciada”19.
de elaboração do solo sobre o qual vi-
vem. E o solo é, em geral, bem mais

16
Trémaux, op. cit., p 17.
17
Idem, Ibidem, p. 10
18
Cf. Robert E. Stebbins, “France”. In: Thomas F. Glinck (Ed.), The Comparative Reception
of Darwinism, The Univ. of Chicago, Chicago, 1988, p. 117.
19
Trémaux, op. cit., p. 25.

114 • CONSIDERAÇÕES SOBRE UM MARX “ANTI-DARWINISTA”


Como Marx e Engels leram tação ao ambiente exterior. Desse modo,
Trémaux a frase de Marx resume boa parte das
Na carta em que Marx se refere diferenças entre Lamarck e Darwin.
pela primeira vez a Pierre Trémaux ele Outro trecho importante da carta é
diz que o livro, “apesar de todos os de- quando Marx diz que “nas aplicações
feitos [...] constitui um apreciável pro- históricas e políticas é muito mais im-
gresso em relação a Darwin”. Este esta- portante e rico de conteúdo do que
ria na idéia de que os cruzamentos não Darwin” porque, a partir de Trémaux,
produzem as diferenças entre as espéci- “questões, como nacionalidade” podem
es, mas a unidade típica delas, e, ao con- ser contempladas no seu “fundamento
trário, o terreno (o solo) é que levaria à natural”.
diferenciação das mesmas. Assim, o que Na carta-resposta Engels diz que
“para Darwin é puramente casual, a teoria “é desprovida de conteúdo” e
aparece aqui como necessário com base “o livro não vale nada. Pura compilação
nos períodos de desenvolvimento do que luta contra os fatos”21. Marx, em
corpo terrestre”. Como corolário, a seguida, volta ao tema acusando Engels
degenerescência, “que Darwin não con- de reproduzir os argumentos de Cuvier
segue explicar, é mostrada como sim- contra a teoria da variabilidade das es-
ples, podendo-se dizer o mesmo quan- pécies, e acrescenta que “a idéia central
to à rápida extinção das formas de pura de Trémaux sobre a influência do solo
passagem [...] de modo que as lacunas [é] uma idéia que precisa somente ser
da paleontologia, que perturbam exposta para conquistar, de uma vez por
Darwin, sejam vistas como necessárias. todas, o seu direito de cidadania na ci-
Igualmente como lei necessária, ele de- ência”22. Em seqüência, Engels reconhe-
senvolve a estabilidade (prescindindo de ce o “mérito de [Trémaux] ter dado
variações individuais etc.) das espécies, maior destaque à influência do ’terre-
uma vez constituídas” 20. no‘ sobre a formação das raças e, conse-
Nesta passagem está condensada qüentemente, das espécies”, além de “ter
a problemática da origem e transforma- desenvolvido as opiniões a respeito do
ção das espécies antes do surgimento da cruzamento mais corretamente [...] do
genética, isto é, a questão da diferencia- que todos os seus predecessores”. Mas
ção originada dentro da própria espécie, Engels não pára aí. Recorda que Darwin
pela divergência dos tipos individuais tem razão “sobre o poder do cruzamen-
(cuja razão do surgimento ainda se des- to para determinar mutações” e também
conhecia), ou por obra e graça da adap- jamais desconsiderou “a influência do

20
Marx a Engels, 7 de agosto de 1866.
21
Engels a Marx, 2 de outubro de 1866.
22
Marx a Engels, 2 de outubro de 1866.

CRÍTICA MARXISTA • 115


terreno”, não lhe dando maior destaque Marx demorou um ano para “fazer eco”
por não se saber “como age esse terreno, à carta e, ao fazê-lo, reconheceu que na
exceto que o terreno fértil age no senti- Origem das Espécies estava “o fundamen-
do favorável e o árido no sentido desfa- to histórico-natural da nossa concep-
vorável” 23. ção”, opinião repetida a Lassalle dois
Ainda que a tese de Trémaux fos- meses depois: “o livro de Darwin é
se uma estupidez, é inegável que Marx muito importante e me serve como base
e Engels estão discutindo, através dela, da luta histórica das classes. Apesar de
questões absolutamente pertinentes para todas as insuficiências [...] é um golpe
a biologia da época. de morte aplicado na ‘teleologia’ pelas
ciências da natureza”.
Como Dominique Lecourt re- Lecourt percebe que em 1862 o
criou o “caso Trémaux” entusiasmo inicial cede lugar à reserva,
A análise de Dominique Lecourt especialmente pela aplicação que
inicia com a dissipação da falsa história Darwin faz de Malthus às plantas e ani-
de que Marx teria escrito a Darwin, em mais, observando Marx que o próprio
1880, manifestando o propósito de lhe Malthus havia explicitado que sua teo-
dedicar a edição inglesa de O Capital, ria não era aplicável à natureza, e que
solicitando a concordância deste. entendia que Darwin estava projetan-
Lecourt mostra que Marx jamais pro- do nela um modelo da própria socieda-
pôs a Darwin semelhante homenagem, de inglesa e sua “luta pela vida”. Assim,
e que a confusão foi repetida como ver- diz Lecourt, a maior parte das
dade por mais de cem anos, mesmo de- referencias à obra de Darwin nos textos
pois de 1975, quando a “verdade” foi de Marx e Engels está marcada por esta
finalmente restabelecida. A função da ambivalência: a concordância e a
repetição teria sido “calar os argumen- discordância pela aplicação do malthu-
tos tanto dos darwinistas anti-marxis- sianismo.
tas quando dos anti-darwinistas anti- Sobre esses fatos constrói-se uma
marxistas e dos marxistas anti- história que é apresentada pelos mar-
darwinistas”24. É este o contexto políti- xistas como tendo duas vertentes: um
co da analise do “caso Pierre Trémaux”. acordo científico fundamental e um
Como antecedentes da posição de desacordo ideológico secundário, ape-
Marx, Lecourt lembra que Engels, em sar de sério pelas suas “redobradas con-
24 de novembro de 1859, havia lhe fa- seqüências metodológicas e políticas”.
lando entusiasticamente do aparecimen- Uma história “edificante” na medida em
to da Origem das Espécies, sendo que

23
Engels a Marx, 5 de outubro de 1866.
24
Lecourt, op. cit., p. 228.

116 • CONSIDERAÇÕES SOBRE UM MARX “ANTI-DARWINISTA”


que seu objetivo é ilustrar uma verdade histórico distintos. A análise exa-
pré-estabelecida: ta das teorias de Trémaux, o exa-
me dos argumentos de Marx para
[a] potência da filosofia marxista fundamentar o seu entusiasmo,
(dita ‘materialismo dialético’) em o estudo atento, enfim, dos ar-
se mostrar apta a fazer o corte, em gumentos que ele contrapõe a
uma obra científica maior, entre Engels, que permitem dar um
o ‘bom’ (a tese da evolução) e o sentido particularmente forte ao
‘mal’ (a struggle for life imputada silêncio da tradição ao jogar uma
a Malthus), tendo ainda um du- luz bastante dura sobre os limi-
plo benefício secundário: o de dar tes da compreensão do
à teoria marxista da história (o darwinismo por Marx e Engels26.
dito ‘materialismo histórico’) o
aval de uma teoria científica re- A dissipação da intriga
conhecida e sustentar, assim, sua É um exagero de Lecourt reinventar
própria pretensão à cientificidade; Trémaux como um teórico digno de nos
e o de sugerir, como os manuais consumir o tempo. Talvez o caminho
soviéticos jamais deixaram de fa- proposto devesse começar pela análise
zer, que a teoria darwinista é, de da concepção marxista da relação pro-
fato, a ‘aplicação’ inconsciente, dutiva com a natureza, especialmente com
portanto inconseqüente, do mes- o solo, contraposta ao malthusianismo que
mo método filosófico que o ‘ma- “rejeitava qualquer noção de progresso
terialismo histórico’, o ‘materialis- rápido e contínuo no cultivo da terra
mo dialético’, que antecipou ‘por ou na criação de animais pelo homem,
direito’ a teoria darwinista25. bem como de todas as possibilidades de
progresso social”27. Nas cartas, está cla-
Só essa razão, justifica ele, é capaz ro no “equívoco” de Marx o propósito
de explicar o incrível silêncio que cerca de encontrar um argumento que liqui-
a correspondência Marx-Engels que de, de uma vez por todas, com a con-
compõe o “episódio Trémaux” – o mo- cepção malthusiana, pois seria o solo, e
mento que revela a face oculta da histó- não as leis da população, o vetor a ar-
ria do marxismo. E conclui: rastar consigo o desenvolvimento da
espécie humana.
O episódio merece, a meu ver, Este não é um argumento
um tratamento epistemológico e darwinista, nem tampouco um argu-

25
26
Idem, ibidem, p. 231.
Idem, Ibidem, p. 232.
27
Foster, op. cit., pág. 156.

CRÍTICA MARXISTA • 117


mento marxista na melhor tradição das Um exemplo dessa corrente neo-
análises do próprio Marx sobre a rela- lamarckiana é Ernst Haeckel. Na sua
ção homem-natureza, quando o homem interpretação, a evolução sempre cria
se transforma ao produzir os seus meios novos caracteres que são testados e in-
de vida. E é inegável que no entusiasmo corporados pela seleção no plano da
de Marx por Trémaux vislumbra-se uma competição interespécies. Esta noção de
tese cara ao materialismo mecanicista, ao variação como adição é fundamental para
admitir um princípio de determinação a sua teoria da “recapitulação” ou “lei
geológica das formas vivas. biogenética”; tal noção estabelece, ain-
Como observa Naccache, o texto da, uma sorte de analogia entre heredi-
de Trémaux nada mais foi do que um tariedade e memória, à luz da qual a
catalizador do entusiasmo de Marx so- evolução aparece como uma progressão
bre um “necessitarismo biológico fun- entre estágios de desenvolvimento reti-
dado num progressismo geológico”, su- dos pelo indivíduo (ontogênese) num
perando o que em Darwin é “aciden- percurso cumprido pela espécie toda
tal” e caminhando em direção ao “ne- (filogênese) em direção a formas sem-
cessário”28. Este tema, que não é exclu- pre superiores, de modo a poder se tra-
sivo das preocupações de Marx, ocupa çar um percurso unilinear e hierar-
posição central naquilo que inicialmente quizado de transformação de todos os
denominamos neo-lamarckismo. seres vivos a partir da unidade original
Esta corrente de pensamento bio- da matéria viva (mônada)30. A heredi-
lógico centra-se nas questões para as tariedade haeckeliana é tomada como
quais Darwin ofereceu respostas consi- uma força centrípeta interna, contra-
deradas insatisfatórias. Diante dos balançada pela força centrífuga externa
impasses, muitos biólogos retornaram dada pela adaptação, sendo a fixidez das
aos textos de Lamarck, especialmente formas “o resultado da preponderância
para tratar da adaptação ou influência momentânea exercida por uma das duas
do ambiente sobre o desenvolvimento forças formadoras”31. Na seleção natu-
das espécies. Em outros termos, a ques- ral, essas forças agem segundo a dinâ-
tão era: o processo de evolução é con- mica da luta pela existência que se trava
trolado pelas influências ambientais ex- porque o número de vegetais e animais
ternas ou por forças internas ao próprio viventes é mais ou menos o mesmo na
organismo?29. superfície da terra32. Assim, o neo-
28
Bernanrd Naccache, Marx critique de Darwin, Paris, VRIN, 1980, p. 103.
29
Bowler, op. cit., p. 9.
30
Idem, ibidem, p. 68.
31
Ernst Haeckel, História da creação dos seres organisados segundo as leis naturaes, Porto,
Lello & Irmãos, 1930, p. 186.
32
Idem, ibidem, p. 189.

118 • CONSIDERAÇÕES SOBRE UM MARX “ANTI-DARWINISTA”


lamarckismo recupera a idéia de que a ordens dos fenômenos naturais e soci-
herança de caracteres adquiridos – ba- ais, contrariando a concepção de Engels
seada em forças desconhecidas que di- que reproduzimos no início de nosso
rigiam a matéria orgânica na absorção texto. Mas o programa de Pannkoek é
de impressões originadas no ambiente bastante extenso e corresponde àquilo
– é a força principal na determinação que o marxismo vulgar entendeu das
da transformação. palavras de Engels diante do túmulo de
A Marx pareceu bastante registrar Marx, em 1883: “Do mesmo modo que
que o argumento de Darwin em rela- Darwin descobriu a lei da evolução da
ção às influências ambientais é insufici- natureza orgânica, Marx descobriu a lei
ente para explicar as variações, sendo da evolução da história humana”.
preciso avançar para o plano da necessi- Podemos entender, porém, que o
dade. O exemplo de Haeckel – contem- que Engels apontou foi a homologia en-
porâneo de Marx, Engels e Darwin – tre dois planos distintos de desenvolvi-
mostra um Marx que indagava a histó- mento do materialismo como exemplos
ria natural numa direção bastante fre- equivalentes de atitude revolucionária
qüente antes da descoberta das leis da no plano do conhecimento, o que ja-
genética. Assim, sem ser fruto da “ig- mais autoriza o leitor moderno a com-
norância” pessoal, como sugerem boa preender a luta de classes como sinôni-
parte dos argumentos de Lecourt, evi- mo de “luta pela vida”. A distinção en-
dencia uma participação pertinente nos tre as leis biológicas e as leis sociais está
debates da biologia de seu tempo. clara também quando, comentando
Mas Lecourt vai além dessas dis- Trémaux, Marx diz “nas aplicações his-
cussões teóricas quando indica que as tóricas e políticas [Trémaux] é muito
relações entre Marx e Darwin têm sido mais importante e rico de conteúdo do que
um objeto de análise nem sempre bem Darwin”34. Lida de modo distinto do
freqüentado pelos marxistas. De fato, que fez Lecourt, esta passagem nos diz
podemos dizer que um dos trabalhos que, para Marx, a teoria de Darwin não
mais célebres, Marxismo e Darwinismo, serve a aplicações histórico-políticas.
do marxista-conselheirista Anton A necessidade de se diferenciar cla-
Pannekoek, surgido em 1909, ainda é ramente a luta pela vida e a luta de clas-
tomado como modelar entre aqueles ses tem uma outra razão histórica: en-
que reivindicam para si a tradição mar- tre Marx, de um lado, e Darwin, de
xista33. Nele é clara a confusão entre as outro, interpõe-se um pensamento es-
33
Anton Pannekoek, Marxism and Darwinism, Chicago, C.H. Kerr & Co, 1912; disponí-
vel em http://www.marxists.org/archive/pannekoe/1912/marxism-darwinism.htm. Há uma
tradução brasileira [Anton Pannekoek, Marxismo e darwinismo, Suplemento de Cultura,
Livraria do PCO, São Paulo, s/d].
34
Grifo nosso.

CRÍTICA MARXISTA • 119


tranho a ambos: o “darwinismo social”. estas posições que avançaram na Alema-
Foi esta doutrina que estabeleceu que a nha a partir do congresso de naturalistas,
“luta pela vida” (caricatamente tomada ocorrido em Munique em 187737.
como sinônimo de darwinismo) pode Sem dúvida Dominique Lecourt
– ou mesmo “deve” – ser aplicada às so- tem razão quando surpreende Marx
ciedades humanas, sendo que a sua pri- dando um passo atrás em direção a ex-
meira aparição é debitada à tradutora plicações teleológicas38 graças ao entu-
de Darwin para o francês, Clémence siasmo com a hipótese de que se pudes-
Royer. Foi ela quem, em 1862, num se, finalmente, estabelecer uma relação
prefácio do qual Darwin não teve co- evolutiva, comandada pelo tempo geo-
nhecimento senão quando publicado – lógico, entre o tipo de solo e os animais
.
e que repudiou de pronto35 – afirmou que o ocupam. Mas cabe perguntar:
que a “lei da seleção natural”, aplicada qual o valor explicativo desta falseada
às sociedades humanas, revela o quanto de Marx no sentido de estabelecer as
são “falsas” as leis política e civis, de fun- bases do seu método? Não seria o argu-
do religioso (idéias de virtude, de solida- mento de Lecourt mero oportunismo
riedade social, etc), cujo único resultado é para atacar o “sovietismo” que, como
a proteção dos “desgraçados da natureza”. indica, falhou historicamente na com-
Mais tarde Royer se deu ao traba- preensão da relação Darwin-Marx?
lho de escrever uma vasta obra, Do ponto de vista do desenvolvi-
intitulada Origem do homem e das socie- mento do pensamento de Marx, a ques-
dades, cujo grande objetivo era destruir tão levantada por Lecourt tem o mes-
a argumentação de Rousseau36 sobre o mo sentido das conhecidas vacilações de
“bom selvagem”, mostrando-o, ao con- Darwin em direção à construção do seu
trário, como o “lobo do homem”. Des- materialismo biológico. Tanto para um
sa maneira, o “darwinismo social” nas- como para outro são os resultados do con-
ceu simultaneamente à Origem das Es- junto dos seus estudos que iluminam a
pécies, e embora seja um ressurgimento caminhada intelectual frutífera. Portan-
do malthusianismo, migra do campo da to, parece mais produtivo para a com-
teologia para buscar legitimidade nas preensão do marxismo situá-lo, e ao
conquistas científicas inéditas de Darwin. darwinismo, no processo de construção
Marx jamais coonestou as opiniões de do materialismo moderno diante de um
Royer, tendo manifestado desacordo com corpus mais complexo e amplo que

35
Trechos do prefácio e uma análise do escândalo que se seguiu encontram-se em André
Pichot, Histoire de la notion de vie, Paris, Gallimard, 1993, p. 764-773.
36
Clémence Royer, Origine de l´homme et des sociétés, Paris, Éditions Jean-Michel Place, 1990.
37
Naccache,op. cit., p. 129.
38
Lecourt, op. cit., p. 238.

120 • CONSIDERAÇÕES SOBRE UM MARX “ANTI-DARWINISTA”


abarca vários embates entre o pensamen- não é mais a “internacional negra” de
to nascente e a decadente teleologia de que falava Ernst Haeckel a grande ini-
paróquia. miga das ciências, pois os ataques vêm
Por fim temos o histrionismo de especialmente daqueles que fizeram das
Dominique Lecourt ao escandalizar o ciências e da técnica a alavanca mons-
“caso Pierre Trémaux”. A razão é natu- truosa do moderno capitalismo.
ralmente a “ocultação” de documentos
de valor histórico que permitiriam uma Excertos das cartas entre Marx
compreensão mais correta do desenvol- e Engels a respeito de Pierre
vimento do pensamento de Marx. Mas Trémaux39
é preciso ir além e ter presente que Marx
nunca está no centro do universo mate- Marx a Engels, em Manchester
rialista, em torno do qual gravitam pla-
netas menores, quando a questão é a Londres, 7 de agosto de 1866
evolução biológica; e a síntese das ciên-
cias que ele e Engels buscaram não en- Querido Fred,
travou o desenvolvimento específico e (....)
ulterior de cada uma das ciências natu- Uma obra importantíssima que
rais em separado. Ora, o materialismo lhe enviarei (porém sob condição de
possui várias constelações, mas já não devolução, porque não é de minha pro-
se trata de explicar a física newtoniana priedade), tão logo eu tenha extraído as
e, sim, o contínuo desdobrar desse uni- notas necessárias, é: P. Trémaux, Origi-
verso em formação. No tocante ao ne et transformations de l’homme et des
evolucionismo biológico, o “Marx- autres êtres. Paris, 1865. Apesar de to-
centrismo” dificultou para as gerações dos os defeitos de que me dou conta,
subseqüentes a abertura para os novos constitui um apreciável progresso em
conhecimentos produzidos no campo relação a Darwin. As duas teses funda-
40
dessa ciência. mentais são: os croisement não produ-
Mas, o “pensamento de pároco” zem, como se pensa, a diferença, mas ao
não foi, de modo algum, soterrado. Por contrário a típica unidade das espèces41.
isso há a necessidade objetiva de fazer Em contrapartida, a conformação do
convergir, mais uma vez, os interesses terreno leva às diferenças (não por si só,
científicos e políticos de darwinistas e mas como base fundamental). O pro-
marxistas no combate às novas teorias gresso, que para Darwin é puramente
deístas e ao criacionismo. Sabe-se que casual, aparece aqui como necessário

39
Tradução do italiano, por Rita Marguerita de Luca.
40
cruzamentos
41
espécies

CRÍTICA MARXISTA • 121


com base nos períodos de desenvolvi- a Rússia e os eslavos ocidentais – que diz
mento do corpo terrestre, e a não serem os russos eslavos e sim tártaros
43
degénerescence42, que Darwin não con- etc. , quando a verdade é o contrário, pois
segue explicar, é mostrada como sim- pela constituição predominante do terre-
ples, podendo-se dizer o mesmo quan- no na Rússia, o eslavo é tartarizado e
to à rápida extinção das formas de pura mongolizado. Ele demonstra também (es-
passagem, em comparação à lentidão do teve muito tempo na África) que o tipo
desenvolvimento do tipo da espèce, de comum negro é apenas a dégénérescence
modo que as lacunas da paleontologia, de um tipo de estatura muito superior.
que perturbam Darwin, sejam vistas “Hors des grandes lois de la nature, les
como necessárias. Igualmente como lei projets des hommes ne sont que des
necessária, ele desenvolve a estabilidade calamités, témoins les efforts des czars pour
(prescindindo de variações individuais faire du peuple polonais des Moscovites.
etc.) das espécies, uma vez constituídas. Même nature, mêmes facultés renaîtront
As dificuldades da hibridação para sur un même sol. L’oeuvre de destruction
Darwin, são aqui, vice-versa, pilares do ne saurait toujours durer, l’oeuvre de
sistema, pois está demonstrado que, de reconstitution est éternelle... Les races
fato, uma espécie é constituída somen- slaves et lithuaniennes ont avec les
te a partir do momento em que o Moscovites leur véritable limite dans la
croisement com outras deixe de ser fe- grande ligne géologique qui existe au nord
cundo ou possível etc. des bassins du Niémen e du Dniéper...
Nas aplicações históricas e políticas Au sud de cette grande ligne: les aptitudes
é muito mais importante e rico de con- et les types propres à cette région sont et
teúdo do que Darwin. Para algumas ques- demeureront toujours différents des ceux
tões, como nacionalidade etc., apresenta de la Russie44.”
somente o fundamento natural. Por exem-
plo, ele corrige o polonês Duchinski – Salut
confirmando entretanto os argumentos Seu K. M.
deste sobre as diferenças geológicas entre

42
degenerescência
43
Cf. Marx a Engels, 24 de junho de 1865.
44
“Fora das grandes leis da natureza, os planos dos homens não são nada mais do que
calamidades, como demonstram os esforços dos czares para transformar o povo polonês
em moscovita. A mesma natureza, as mesmas capacidades renascerão no mesmo solo. A
obra de destruição não poderia durar para sempre, a obra de reconstrução é eterna... As
raças eslavas e lituanas, em relação aos moscovitas, têm o seu verdadeiro limite na grande
linha geológica que corre do norte das bacias de Niemen e do Dniepr.. Ao sul desta grande
linha: as atitudes e os tipos peculiares desta região são e continuarão sendo sempre diferen-
tes dos da Russia”.

122 • CONSIDERAÇÕES SOBRE UM MARX “ANTI-DARWINISTA”


Engels a Marx, em Londres Teu K. M.

Manchester, 10 de agosto de 1866 Engels a Marx, em Londres

Querido Mouro, Manchester, 2 de outubro de 1866


(....)
Quando custará aproximadamen- Querido Mouro,
te o livro de Trémaux?45 Se não for muito (....)
caro, devido às ilustrações ou qualquer Um dia desses escreverei mais
outra razão, vou comprá-lo e, assim, detalhadamente sobre Moilin 49 e
você não terá que enviá-lo. Trémaux50; o segundo ainda não li in-
teiro, mas estou convencido de que a
Marx a Engels, em Manchester sua teoria é desprovida de conteúdo,
porque ele não entende de geologia nem
Londres, 12 août46 1866 é capaz da mais usual crítica histórico-
literária. As histórias do negro Santa
Maria e da transmutação dos brancos
Dear Fred, em negros é de morrer de rir. Principal-
mente quanto às tradições senegalesas
(....) merecerem fé incondicional, justamen-
O título do livro: P. Trémaux: Ori- te porque essa gente não sabe escrever!
gine et transformations de l’homme e des Além disso, é até sedutora a atribuição
êtres. Première partie. Paris (Librairie de das diferenças entre um basco, um fran-
L. Hachette), 1865. A segunda parte cês, um bretão e um alsaciano à confor-
ainda não saiu. Não há ilustrações. Os mação do território, ao qual natural-
maps47 geológicos do autor estão nas mente também deve ser atribuído o fato
suas outras obras. desses povos falarem línguas diversas.
Saudações. Como explica esse senhor que nós,
Receberei também a principal renanos, no nosso território da era de
obra do médecin48 parisiense citado aci- passagem devoniana (que muito tempo
ma, que lhe enviarei, para seu conheci- antes da formação do carvão fóssil não
mento, tão logo eu a tenha lido. havia afundado no mar) não nos tenha-

45
Cf. a anterior carta de Marx a Engels.
46
Agosto.
47
Mapas.
48
Cf. Marx a Paul Lafargue, 13 de agosto de 1866.
49
Cf. Marx a Engels, 13 de agosto de 1866.
50
Cf. Marx a Engels, 7 de agosto de 1866.

CRÍTICA MARXISTA • 123


mos transformado, desde os tempos co-literário – estivesse errado e aqueles
mais remotos, em idiotas ou negros? que expunham as novas idéias tivessem
Talvez o faça no segundo volume, ou razão. A idéia central de Trémaux sobre
então afirmará que somos verdadeira- a influência do solo (apesar dele não le-
mente negros. var em conta as modificações históricas
O livro não vale nada. Pura com- desta influência, e eu incluo entre estas
pilação que luta contra os fatos e que modificações históricas também a mu-
deveria, para cada demonstração que cita, tação química da superfície pela ação da
fornecer todas as vezes demonstração. agricultura etc., além das diferentes in-
fluências que tiveram coisas como os es-
Saudações às ladies. tratos de carvão fóssil nos diversos mo-
Teu. F.E. dos de produção) é, na minha opinião,
uma idéia que precisa somente ser ex-
Marx a Engels, em Manchester posta para conquistar, de uma vez por
todas, o seu direito de cidadania na ciên-
Londres, 3 de outubro de 1866 cia, e isso independentemente das expo-
sições feitas por Trémaux.
Caro Engels,
(....) Saudações.
Ad vocem Trémaux51: o seu juízo Teu K.M.
“que sua teoria é desprovida de conteú-
do porque ele não entende de geologia Engels a Marx, em Londres
nem é capaz da mais usual crítica histó-
rico-literária”52, pode ser encontrado qua- Manchester, 5 de outubro de 1866
se que textualmente em Cuvier, no seu
Discours sur les révolutions du globe con- Querido Mouro,
tra a teoria da variabilité des espèces53 onde, (....)
entre outros, ele ridiculariza os fantasiosos Ad vocem54 Trémaux. Quando eu
naturalistas alemães que expunham em te escrevi, na verdade tinha lido somen-
tudo e por tudo a idéia fundamental de te a terça parte do livro e seguramente a
Darwin, apesar de conseguirem pior (o princípio). O segundo terço, a
demonstrá-la muito pouco. Isto porém crítica das escolas, é bem melhor; a ter-
não impediu que Cuvier – que era um ceira parte, as conclusões, de novo
grande geólogo e, para um naturalista, bastante ruim. O homem tem o mérito
também um excepcional crítico históri- de ter dado maior destaque à influência
51
No que se refere.
52
Cf. a anterior carta de Engels a Marx.
53
variabilidade das espécies.
54
No que se refere.

124 • CONSIDERAÇÕES SOBRE UM MARX “ANTI-DARWINISTA”


do “terreno” sobre a formação das raças gido através do cruzamento é a única
e, conseqüentemente, das espécies, e em causa das mutações das especies orgâni-
segundo lugar de ter desenvolvido as cas no que diz respeito às raças, então
opiniões a respeito do cruzamento mais não vejo mais nenhuma razão para se-
corretamente (apesar de, na minha opi- guir o autor tão longe, pelo contrário,
nião, muito unilateralmente) do que levanto inúmeras objeções.
55
todos os seus predecessores. Vocë diz que também Cuvier
Darwin tem razão de um lado com jogou na cara dos filósofos naturalistas
as suas concepções sobre o poder do cru- alemães a sua ignorância quanto à geo-
zamento para determinar mutações, logia, quando afirmavam a mutabi-
como de resto Trémaux tacitamente re- lidade das espécies, e que depois eles
conhece tratando, quando lhe convém, acabaram tendo razão. Mas então a coi-
o cruzamento como meio de transfor- sa não tinha nada a ver com a geologia.
mação, mesmo se no final uniformizante. De fato, muito diferente é alguém sus-
Do mesmo modo, Darwin e outros ja- tentar uma teoria da mutabilidade ex-
mais desconsideraram a influência do ter- clusivamente baseada na geologia e de-
reno, e se não lhe deram um destaque pois cometer os mais grosseiros dispa-
especial foi por não saberem nada sobre rates geológicos, falsificando a geologia
como age esse terreno, exceto que o ter- de países inteiros (por ex. da Itália e da
reno fértil age no sentido favorável e o própria França) e buscando os exemplos
árido no sentido desfavorável. E mais restantes entre os países sobre a geolo-
do que isso nem Trémaux sabe. A hipó- gia dos quais sabemos pouco ou quase
tese de que o solo se torne, em geral, nada (África, Ásia Central etc.). No que
mais favorável ao desenvolvimento de se refere especialmente aos exemplos
uma espécie superior por ser de forma- etnológicos, envolvendo países e povos
ção mais recente tem algo de extraordi- conhecidos, as premissas geológicas ou
nariamente plausível, e pode ou não ser as conclusões deles extraídas são, quase
correta: mas se olho para as provas ridí- sem exceção, falsas; e ele deixa totalmente
culas sobre as quais Trémaux procura de lado os muitos exemplos em contrá-
fundar a sua demonstração – 9/10 das rio, como as planícies aluvionais no inte-
quais se baseiam em dados errados ou rior da Sibéria, a enorme bacia aluvional
mal interpretados e um décimo não da Amazônia, o inteiro território aluvional
demonstra nada – não posso deixar de ao Sul de La Plata quase até a ponta
passar minhas desconfianças do autor meridional da América do Sul (a Ori-
da hipótese para a própria hipótese. E ente da Cordilheira dos Andes).
se depois ele declara que a influência do Que a estrutura geológica do ter-
solo mais recente ou mais antigo, corri- reno tem muito a ver com o que geral-

55
Cf. a anterior carta de Marx a Engels

CRÍTICA MARXISTA • 125


mente cresce nele é uma história anti- francesa no seu conjunto tenha um cer-
ga, do mesmo modo que esse terreno to caráter inconformista e, por isso ten-
vegetativo exerce uma influência sobre de a ser muito afirmativa e a tratar levi-
as raças vegetais e animais que vivem so- anamente a demonstração. No que diz
bre ele. E também é correto dizer que até respeito aos medicamentos, não há nada
agora essa influência foi pouco, ou me- que todo o médico alemão de bom sen-
lhor, nada estudada. Mas daí até a teoria so não conheça e não pratique; Moilin
de Trémaux há um salto enorme. De qual- esqueçe somente que 1) frequentemen-
quer forma, é um mérito ter dado desta- te devemos escolher o mal menor, o re-
que a essa parte até agora negligenciada e, médio, para afastar o maior, ou seja, um
como eu disse, a hipótese de uma influ- sintoma que gera por si só um perigo
ência que favorece o desenvolvimento do direto, do mesmo modo que se
terreno, em relação à sua maior ou menor destróem cirurgicamente também os te-
antiguidade geológica, pode dentro de cer- cidos, quando não há mais nada a fazer,
tos limites, ser correta (ou então não ser), e 2) devemos-nos ater aos remédios en-
mas quanto a todas as outras conclusões a quanto não houver nada melhor. Tão
que ele chega, eu as considero totalmente logo Moilin consiga curar a sifilis com a
erradas ou então terrivelmente exageradas sua eletricidade, o mercúrio desaparece-
num sentido unilateral. rá, mas antes disso será difícil. De resto,
O livro de Moilin56 me interessou ninguém venha me dizer que somente
muito especialmente pelos resultados os alemães sabem “construir” sistemas,
alcançados pelos franceses através da the French beat them hollow at that57.
vivissecção; este é o único caminho para
estabelecer as funções de certos nervos Marx a Ludwig Kugelmann
e as consequências das suas alterações; em Hannover
parece que eles levaram a tortura dos
animais a um alto grau de perfeição, e Londres, 9 de outubro de 186658
posso entender muito bem o hipócrita
furor inglês contra a vivissecção; expe- 1, Modena Villas, Maitland Park,
riências desse tipo foram frequentemen- Haverstock Hill
te muito desagradáveis aos sonolentos
senhores daqui e jogaram por terra as Querido amigo,
suas especulações. Eu não posso julgar (....)
o que existe de novo na teoria das infla- PS. Li recentemente: Dr. T.
mações (darei o livro a Gumpert), mas Moilin, Leçons de médicine physiologique,
tenho a impressão que essa nova escola que saiu em Paris em 1865. Tem mui-
56
Cf. Marx a Engels, 13 de agosto de 1866.
57
Nesse ponto os franceses os vencem de longe.
58
No manuscrito: novembro

126 • CONSIDERAÇÕES SOBRE UM MARX “ANTI-DARWINISTA”


tos sofismas e “construção” em dema-
sia, mas também muita crítica contra a
velha terapêutica. Gostaria que o senhor
o lesse e me comunicasse detalhada-
mente sua opinião. Gostaria também de
aconselhar-lhe Trémaux, De l’origine de
tous les êtres etc.. Apesar de ter sido es-
crito de um modo descuidado, de estar
cheio de disparates geológicos e de se
ressentir enormemente da ausência de
crítica histórico-literária, ele contém –
with all that and all that59 – um pro-
gresso em relação a Darwin60.

59
Feitas as contas.
60
Cf. Marx a Engels, 7 de agosto de 1866.

CRÍTICA MARXISTA • 127


DÓRIA, Carlos Alberto. Considerações sobre um Marx “anti-darwinista”. Crítica
Marxista, São Paulo, Ed. Revan, v.1, n.24, 2007, p.110-127.

Palavras-chave: Marx; Engels; Darwinismo.

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