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Faculdade de Educação
Goiânia
2019
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Faculdade de Educação
Goiânia
2019
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Dedicatória
AGRADECIMENTOS
Agradeço:
Aos meus Pais, Joel Clemente Ribeiro e Maria Santa da Costa Santana, pela
vida, educação e sabedoria concedidas com suor e muitas vezes com sacrifícios
próprios;
minha formação, e sobretudo pelo apoio para além da minha vida acadêmica.
vida acadêmica.
deste trabalho.
vii
SUMÁRIO
RESUMO.........................................................................................................................vi
RESUMEN......................................................................................................................vii
INTRODUÇÃO...............................................................................................................01
Método..................................................................................................................07
XIX.........................................................................................................................27
CONSIDERAÇÕES FINAIS..............................................................................................95
REFERÊNCIAS..................................................................................................................100
ix
Resumo
Este trabalho tem como objetivo dissertar sobre as contribuições do marxismo à Psicologia
Política desenvolvida na América Latina, para isso há uma contextualização do nascimento do
modo de produção capitalista, sua expansão mundial, e a consequente divisão internacional do
trabalho que trouxe consequências específicas ao continente latino-americano. Para essa
proposta, partimos do referencial teórico marxista, cujo método — materialismo histórico-
dialético — nos possibilitou analisar uma realidade histórica e ontológica, bem como normas
político-jurídicas para ordenar relações entre classes como na sociedade classista capitalista.
Sendo assim, inicialmente, empreendemos esforços para descrever o nascimento da Psicologia
Política ante uma análise histórica da ascensão de novas forças produtivas que possibilitaram o
nascimento de novas ideologias conforme a racionalização de interesses estabelecidos pela
nova classe dominante burguesa. Em um segundo momento, buscamos descrever a história do
nascimento da Psicologia Política latino-americana. Para esse fim, apresentamos as
consequências da expansão mundial do capitalismo-imperialista que explorou da América
Latina seus recursos humanos, naturais e materiais, e a partir dessa realidade histórica, tentamos
descrever a Psicologia Política latino-americana como Psicologia Política crítica que sob a
racionalidade político-jurídica burguesa, buscou formas de emancipação social. Em uma
terceira parte, desenvolvemos a perspectiva teórica, crítica e revolucionária do marxismo —
como resposta concreta à necessidade geopolítica da América Latina. Nesse sentido, colocamos
o marxismo como expressão histórica e ontológica da América Latina, e destacamos que suas
contribuições são indissociáveis de uma Psicologia Política latino-americana que almeje, de
fato, não só a emancipação política, mas, sobretudo, a luta pela transformação social e a
revolução do modo de produção capitalista ao modo de produção socialista.
Abstract
The purpose of this thesis is to probe the contributions of Marxism to Political Psychology
developed in Latin America. A contextualization of the birth of the capitalist mode of
production, its worldwide expansion, and the consequent international division of labor that
brought specific consequences to the Latin American continent is provided. The Marxist
theoretical framework and its method - historical-dialectical materialism - enabled us to analyze
historical and ontological reality, as well as political and juridical norms to order relationships
between classes as in capitalist class Society. Initially, we endeavor to describe the emergence
of Political Psychology through a historical analysis of the rise of new productive forces that
allowed the birth of new ideologies according to the rationalization of interests established by
the new bourgeois ruling class. Then, we describe the history of the emergence of Latin
American Political Psychology. In doing so we present the consequences of the worldwide
expansion of imperialist capitalism that explored Latin America's human, natural and material
resources. Latin American Political Psychology is described as a Critical Political Psychology
in this historical reality that under bourgeois political-juridical rationality sought social
emancipation. In a third part, we develop the theoretical, critical, and revolutionary perspective
of Marxism - as a concrete response to the geopolitical needs of Latin America. In this sense,
we place Marxism as a historical and ontological expression of Latin America, and we
emphasize that its contributions are indissociable from a Latin American Political Psychology
that seeks, in fact, not only political emancipation but, above all, the struggle for social
transformation and the revolution of the capitalist mode of production to the socialist mode of
production.
Resumen
Este trabajo tiene como objetivo disertar sobre las contribuciones del marxismo a la psicología
política desarrollada en América Latina, para ello hay una contextualización del nacimiento del
modo de producción capitalista, su expansión mundial, y la consecuente división internacional
del trabajo que trae consecuencias específicas al continente latinoamericano. Para esa
propuesta, partimos del referencial teórico marxista, cuyo método - materialismo histórico-
dialéctico - nos posibilitó analizar una realidad histórica y ontológica, así como normas político-
jurídicas para ordenar relaciones entre clases como en la sociedad clasista capitalista. Siendo
así, inicialmente, emprendimos esfuerzos para describir el nacimiento de la psicología política
ante un análisis histórico del ascenso de nuevas fuerzas productivas que posibilitar el
nacimiento de nuevas ideologías conforme a la racionalización de intereses establecidos por la
nueva clase dominante burguesa. En un segundo momento, buscamos describir la historia del
nacimiento de la psicología política latinoamericana. A este fin, presentamos las consecuencias
de la expansión mundial del capitalismo-imperialista que explotó de América Latina sus
recursos humanos, naturales y materiales, ya partir de esa realidad histórica, intentamos
describir la psicología política latinoamericana como psicología política crítica que bajo la
racionalidad político-jurídica burguesa, buscó formas de emancipación social. En una tercera
parte, desarrollamos la perspectiva teórica, crítica y revolucionaria del marxismo - como
respuesta concreta a la necesidad geopolítica de América Latina. En ese sentido, colocamos el
marxismo como expresión histórica y ontológica de América Latina, y destacamos que sus
contribuciones son indisociables de una psicología política latinoamericana que anhela, de
hecho, no sólo la emancipación política, sino, sobre todo, la lucha por la transformación social
y la revolución del modo de producción capitalista al modo de producción socialista.
Introdução
Durante minha formação, percebi que a Psicologia acadêmica que me foi apresentada
não problematizava as dimensões políticas e sociais referentes aos problemas práticos, sociais
e políticos da América latina. A crítica de Erich Fromm (1971) sobre a Psicologia, como ciência
experimental alienada e com métodos alienantes1, me fez refletir sobre qual era a função política
da psicologia.
Nos períodos finais de minha formação, questionei se a afirmação de Fromm seria
adequada somente para os caminhos trilhados pela ciência psicológica do comportamento
(Psicologia behaviorista) ou se, de outro modo, não caberia a toda Psicologia. Contudo, ao
entrar em contato com a perspectiva marxista e com autores que apresentavam uma explicação
histórica dos processos sociais e de luta de classes, tomei consciência do antagonismo entre a
classe social capitalista e a classe social trabalhadora — como classes principais no modo de
produção capitalista —, e com isso ficou claro que a Psicologia e outras ciências, ao se apoiarem
na divisão social do trabalho e atuarem na regulação social das relações de produção, tomam
partido na naturalização de relações sociais que estão submetidas à dominação da burguesia
como classe dominante (Viana, 2007a).
Após a conclusão da graduação, atuei como funcionário público temporariamente
contratado, na cidade de Alexânia, estado de Goiás, para a prestação de atendimentos
psicológicos e psicopedagógicos às crianças e adolescentes matriculadas na rede municipal e
regular de ensino. Também atendia crianças, adolescentes e adultos que apresentavam algum
tipo de deficiência sensorial, mental ou física, adquirindo experiência profissional na área da
Inclusão Social, além da Psicologia Escolar.
Entretanto, a situação cotidiana que eu mais enfrentava nos atendimentos era uma
imensa quantidade de crianças que chegavam encaminhadas pelas escolas com algum tipo de
rótulo referente aos problemas na aprendizagem. Essas crianças já estavam, de algum modo,
presas a algum tipo de narrativa individualizante e se esperava do profissional-psicólogo,
somente a chancela para se confirmar a culpa individual.
Percebi que os problemas que realmente acometiam essas crianças e adolescentes, era
de ordem estrutural-econômica, porque todas elas, incluindo as deficientes que eram
encaminhadas pelo poder público, eram extremamente carentes nas condições mais básicas de
1
“A moderna Psicologia acadêmica e experimental é, em elevado grau, uma ciência que trata de homens alienados,
é estudada por investigadores alienados, usando métodos alienados e alienantes” (Fromm, 1971, p. 76).
2
2
Conforme Franco (2014) a geopolítica é a análise geográfica articulada aos problemas políticos, econômicos e
sociais a partir de uma cíclica interação e determinação; nesse sentido, a geopolítica delimita a compreensão de
um espaço geográfico (um continente, um país, ou uma região) a partir de determinações de diversos fatores que
compõem o espaço social onde nele se interfere.
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Nesta parte ressaltamos que a palavra antagonismo é mais radical do que a palavra oposição. Isso porque no
antagonismo não há nenhuma chance de conciliação de indivíduos cuja existência e condição de classe é
dependente da exploração de outra classe — como é na relação entre capitalista versus proletários. Enquanto que
no termo — oposição — se abre possibilidades para uma relação a ser restaurada e reformada onde a luta de classes
é reduzida à estratificação social abrindo uma superficial disputa por espaços e renda. Isso exclui da análise a
totalidade social que é as relações sociais sob o capitalismo em sua constituição básica: burguesia contra o
proletariado.
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Método
Para a construção deste trabalho, partimos do método dialético marxista, o qual destaca
o modo de produção da vida social como determinação fundamental das relações sociais (Marx,
1859/1977; 1845-1846/2007). Nesse sentido, sendo a sociedade uma totalidade, as partes que a
compõem mantêm uma relação necessária na regulação das relações sociais.
A dialética marxista expõe as contradições das relações de produção: há uma classe que
produz e outra que se apropria do que é socialmente produzido. Essa relação de contradição é
inerente ao do modo de produção capitalista: a burguesia, como classe dominante, procura
explorar a classe trabalhadora e extrair o mais-valor. A partir dessa relação de contradição, a
teoria marxista nos possibilita denunciar o papel de uma classe apropriadora que detém as forças
produtivas e procura ocultar sua relação de exploração.
Nesse sentido, a perspectiva marxista, além de revelar as contradições nas relações de
produção entre classes sociais antagônicas, é uma descrição crítica, teórica e prática, claramente
definida a partir dos desapropriados cujo único bem é a venda da força de trabalho para
sobreviver (Korsch, 1977).
O método dialético critica o método que abstrai a Psicologia e a categoria4 “política” do
conjunto das relações sociais. Ao contrário, neste trabalho, Psicologia e Política foram
entendidas e situadas a partir das relações sociais concretas que envolvem dominação de classe.
Assim, recusamos a Psicologia como ciência isolada e neutra, bem como a “política” como
categoria abstrata e mistificada.
Sobre a ideologia, vale dizer que historicamente houve a procura por legitimar, por meio
de ideias teológicas, filosóficas ou científicas (formas de ideologia), a divisão de classes
inerente aos diferentes modos de produção da vida social: escravista, feudal e capitalista; o
conhecimento filosófico – no período escravista –, o conhecimento teológico – durante a Idade
Média – ou o conhecimento científico especializado – proliferado no modo de produção
capitalista, foram modos de regulação ideológica das relações de produção entre indivíduos
produtores e não-produtores (Viana, 2009).
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A dialética materialista retira da realidade concreta um conjunto de categorias (recursos para se pensar a
realidade) que estão relacionados a partir de uma totalidade e que servem de guia para se analisar um fenômeno
social. Assim, como exemplo, a categoria “esquerda ou direita”, como orientação espacial, não existe de fato na
realidade pois essas categorias não têm corpos físicos e não ocupam espaço, mas servem, a partir da realidade, de
orientação espacial que indicam caminho, rota ou direção. Sendo assim, não é a dialética, como categoria e recurso
heurístico que busca determinar a realidade, mas, ao contrário, é a realidade que determina o método dialético
(Viana, 2007a).
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existente a partir dos interesses da classe dominante. Para o autor, a ideologia é uma força
social que se converte em um modo de viver, pensar e sentir das pessoas. A objetividade social
se converte em subjetividade individual. As pessoas, pela ideologia, tornam-se sujeitos sociais
e dão sentido à própria existência. Nesse sentido Martín-Baró (1983/2017) evidencia algumas
funções da ideologia como:
oferece uma interpretação da realidade; fornece esquemas práticos de ação; justifica a
ordem social existente; legitima essa ordem como válida para todos, isto é, converte
em natural o que é histórico; efetiva uma relação de domínio existente; e reproduz o
sistema social estabelecido (Martín-Baró, 1983/2017, p. 119).
Terry Eagleton (1997) aponta que a ideologia naturaliza as crenças e os valores, exclui
formas de pensamento que não seguem o fluxo ideológico e obscurece a realidade social de
modo a ocultar os conflitos sociais vivenciados cotidianamente pelas pessoas em suas
experiências reais:
Um poder dominante pode legitimar-se promovendo crenças e valores compatíveis com
ele; naturalizando e universalizando tais crenças de modo a torná-las óbvias e
aparentemente inevitáveis; denegrindo ideias que possam desafiá-lo; excluindo formas
rivais de pensamento, mediante talvez alguma lógica não declarada mas sistemática; e
obscurecendo a realidade social de modo a favorecê-lo. Tal “mistificação”, comumente
conhecida, com frequência assume a forma de camuflagem ou repressão dos conflitos
sociais, da qual se origina o conceito de ideologia como uma resolução imaginária de
contradições reais (Eagleton, 1997, p. 19, grifos do autor).
Portanto, a ideologia é expressão “natural” do ponto de vista dominante, sendo que as
ideias dominantes são formas de regulação das relações sociais de produção, pois a classe que
detém os meios materiais, possui, também, os pensadores como produtores de suas ideias
dominantes, como sustenta Marx (1845-1846/2007).
Sobre o regime político, este não pode ser tomado como autônomo em relação ao modo
de produção capitalista, pois sua essência manifesta-se a partir de como a classe capitalista cria
formas para se relacionar com as demais classes sociais. É nesse sentido que surgiu o Estado
burguês e a democracia burguesa como formas “políticas” que a classe dominante capitalista
elege para construir sua racionalidade e dominação de classe.
Destarte, em se tratando do Estado moderno burguês, ele nada mais é senão um balcão
para gerir os negócios da burguesia (Marx, 1848/2009). O Estado moderno está estritamente
associado à acumulação primitiva e ao capitalismo mercantilista. Foi por meio dele que a
11
burguesia marcou seu período de transição, centralização e ascensão ao poder como nova classe
dominante (Netto & Braz, 2006).
Nesse sentido, o Estado capitalista, analisado a partir do conjunto das relações sociais
do modo de produção capitalista, se configura como aparato para regular as relações sociais de
produção e garantir a dominação da classe dominante (Marx, 1848/2009; Viana, 2003; 2007a).
Para manter a dominação da classe capitalista, o Estado burguês tem como ação a repressão
social e usa as forças armadas (polícia e exército) para reprimir qualquer manifestação social
que vá contra os seus interesses. Mas isso só ocorre quando seus aparatos ideológicos (escola,
mídia, religião, etc.) não efetivam as funções sociais esperadas.
Em relação intima com o estado burguês, há a democracia burguesa. Esta foi erigida a
partir da Declaração Universal dos Direitos Civis do Homem, de 1789. Como extensão do
regime político burguês, a democracia burguesa tem como função garantir uma participação
restrita das classes sociais oprimidas, cooptar indivíduos que criticam e se posicionam ante as
limitadas concessões do estado capitalista e, além disso, amortece a luta de classes (Viana,
2003). Ademais, a democracia burguesa divulga seus interesses particulares como interesses
universais, de modo que concepções universais abstratas (liberdade, direito à propriedade
privada e igualdade), não passam de meios para defender os interesses particulares de quem
detém capital, isto é, a própria classe burguesa (Marx, 1843/2010; Lacerda Jr., 2016).
Portanto, por meio da teoria marxista, passamos a entender que são as condições
materiais de uma determinada sociedade, em seu processo evolutivo, que determinam a
consciência social e a constituição real das relações sociais (Marx, 1859/1977). Nesse sentido,
traçamos um caminho que se orienta por uma perspectiva material, histórica e dialética.
A dinâmica material é entendida como determinação fundamental, porque envolve o
modo de produção capitalista e sua forma de organizar a sociedade. A história possibilita a
compreensão do ser social como movimento dinâmico e de ação criativa, no qual há a
possibilidade de novas transformações que dependem da atividade humana. A dialética, por sua
vez, analisa as contradições sociais dentro das relações de produção sem autonomizar ou isolar
os acontecimentos sociais, políticos e históricos (Viana, 2007a).
O marxismo busca extrair da realidade categorias relacionadas entre si como partes que
compõem a totalidade que é a própria sociedade. O materialismo histórico-dialético possibilita
uma anatomia da sociedade capitalista e suas partes (relações sociais, emprego, democracia,
Psicologia política) sem dissocia-las do modo de produção da vida social. Em outras palavras,
os aspectos particulares que compõem a sociedade podem ser extraídos do conjunto das
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Neste primeiro capítulo, pretendemos expor como a Psicologia como ciência autônoma
nasce junto com o desenvolvimento do conhecimento científico moderno associado às novas
forças econômicas e políticas postas em movimento pela burguesia como nova classe
dominante. O resgate histórico desse processo destaca a indissociável relação da ciência com a
sociedade e, mais especificamente, como o conhecimento científico foi submetido a
determinados interesses sociais da nova classe detentora dos meios de produção. Tal relação,
entre ciência e sociedade, explicita as políticas da Psicologia em seu papel específico na
sociedade moderna, visto que a ciência, antes determinada pelas novas relações capitalistas de
produção, surge como consequência da divisão social do trabalho específica ao capitalismo.
Com isso pretendemos dar base histórica para a construção da Psicologia Política
segundo as mudanças sociais, políticas e econômicas submetidas ao capitalismo como novo
modo de produção, para isso: a) destacamos a ciência como ideologia no capitalismo, b)
expomos a Psicologia como ideologia que atua de acordo com necessidades do modo de
produção capitalista, c) como o novo modo de produção capitalista influenciou as primeiras
concepções teóricas de Psicologia Política do século XIX, d) e a consolidação da Psicologia
Política como nova disciplina no século XX.
A ciência é uma construção humana que produz conhecimento a partir da relação com
a natureza ou com a sociedade. A ciência, antes de tudo, nasceu do ato criador e teleológico
humano do trabalho e esteve, em um primeiro momento, marcada pela promessa de criar um
novo mundo dominando as forças da natureza (Schwartz, 1992). A ciência, como produção de
conhecimento e transformação da natureza, é indissociável do processo especificamente
humano de trabalho, no qual a atividade independe de qualquer forma determinada
naturalmente.
No entanto, a ciência moderna, ao tentar se autonomizar e ser independente das relações
sociais e da própria história social da produção capitalista, passou a ser uma ideologia em
oposição ao ato criativo e inovador humano (Schwartz, 1992). Mas como a ideologia da ciência
nasceu?
15
como instância asséptica e objetiva (Viana, 2007a; Viana, 2007b) e como instrumento de
manutenção de uma administração-dominação racionalizada como efeito da industrialização
(Marcuse, 1973; Habermas, 1968).
Peixoto (2015) destaca que a ciência, assim como a técnica, foi utilizada para sustentar
a dominação da burguesia. A autora destaca que, assim como a filosofia defendeu os interesses
dos intelectuais livres da Grécia Antiga e a teologia legitimou os interesses do clero da
sociedade feudal, a ciência, na sociedade moderna capitalista “cumpre o mesmo papel: a esfera
científica, através de um conjunto de ideias, práticas, etc... indicam os caminhos mais prósperos
e lucrativos para a classe dominante” (Peixoto, 2015, p. 50).
A ciência aparece como acima do conhecimento simples, isto é, do senso comum. Se
apresenta como isenta de valores e livre dos interesses e requisitos das classes desprivilegiadas.
No entanto, segundo Viana (2006; 2010), é impossível à ciência ser neutra em seus conceitos e
categorias, pois foi construída a partir de seres sociais valorativos em sua essência.
Em oposição ao senso comum, a ciência foi construída seguindo um caminho
sistemático, metódico e empírico. Sistemática no sentido de ser estruturada segundo certo rigor
de procedimentos coesos e organizados. Metódica, porque se desenvolveu a partir de uma série
de métodos supostamente objetivos para apreender a realidade. Empírica, porque depende da
experiência observável e da prática dos sentidos. Esses foram os eixos reguladores de toda
ciência, seja ela ciência natural ou humana (Silva, 2017).
Após a instrumentalização da ciência pelo capital, apareceram várias especializações no
campo científico. Cada especialidade passou a definir um objeto de estudo próprio, mas reteve
os elementos normativos gerais mencionados anteriormente (Viana, 2006). Assim, diferentes
especialidades adotam as mesmas noções de ciência.
Duas características da ciência moderna são: a busca pela neutralidade e pela
objetividade. Estes dois critérios evidenciam o discurso científico como ideologia burguesa e
são a base da necessidade de sistematização, método e empiria nas ciências particulares (Viana,
2007a).
Com a consolidação do sistema capitalista e com a nova divisão social do trabalho, na
qual as novas formas de saberes científicos foram autonomizadas, emerge, pelo caminho da
neutralidade e da objetividade, um conhecimento que revoga a unidade entre ser histórico e
consciência histórica, instaurando o dualismo entre sujeito e objeto:
A finalidade da ciência é adquirir a “verdade objetiva”. O conhecimento passa a ser um
objetivo em si mesmo e essa sua autonomização leva a uma supervalorização da ciência,
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valorativo, mas sim graças a qual parte e valores se fundamenta (Viana, 2007a, p. 50-
51).
As citadas características – objetividade e neutralidade – da ciência são carregadas de
valores parciais que expressam interesses dominantes. Por exemplo, podemos citar Thomas
Malthus, ideólogo da classe dominante e economista submisso aos interesses do capital, quem
tentou justificar uma economia a partir das especulações de interesses da burguesia (Viana,
2014). Da mesma forma, a utilização das ideias de Herbert Spencer serviu para justificar a tese
de que a competição e a sobrevivência dos mais aptos seriam leis fundamentais para a vida
social (Portugal, 2015). Outro exemplo, é a obra de Durkheim, um defensor da “neutralidade
científica” que era a favor da divisão social do trabalho e do capitalismo (Viana, 2007b).
Das relações sociais concretas, os seres humanos criam os meios para produzir e
reproduzir seus meios de vida. A classe dominante no capitalismo busca planejar e dirigir os
meios de trabalho, em contraposição aos que são responsáveis pela execução do trabalho. Todos
esses exemplos mostram a produção de ideias a partir de valores sociais, portanto, formam
concepções políticas que têm numa classe social — a intelectualidade — uma classe
improdutiva que, em grande parte, opera como auxiliadora da classe dominante e contribui no
processo de manutenção e dominação entre classes.
tradicionais – como os saberes místicos – entraram em crise e foram substituídos por um saber
que pretendia ser objetivo, racional e verificável (Japiassu, 1995).
A partir do pensamento iluminista do século XVIII, Vidal (2013) sustenta que a
Psicologia, como uma disciplina empírica, já exercia um papel crucial como uma das “ciências
mais úteis” para fundamentar a ciência e a filosofia. Embora a Psicologia ainda não fosse uma
ciência institucionalizada e tampouco uma profissão, Vidal (2013) destaca que a Psicologia –
por rejeitar ideias inatistas, criticar a metafísica e apelar para a observação e à experiência –
exerceu grande influência, tornando-se “a disciplina básica e estratégica dentro do campo das
ciências humanas e filosóficas” (Vidal, 2013, p. 62).
Nesse sentido, de acordo com Vidal (2013), a Psicologia, no século das luzes, foi uma
disciplina antropológica crucial, pois estudava os mecanismos do processo de conhecimento,
isto é, envolvia a condição e a crítica do processo de aquisição de conhecimento. Um outro
motivo, segundo o autor, para a proeminência da Psicologia, seria a definição de ser humano
que defendia na época, alinhada com uma antropologia cristã que valorizava a interação entre
corpo e alma acontecendo no cérebro e mediada pelos nervos do cérebro
Para Vidal (2013) essa psicologização do processo de conhecimento marcou a
constituição da Psicologia como disciplina empírica, pois ao analisar como o ser humano
obtinha conhecimento e ao indicar métodos de investigação empírica, a Psicologia estava
pavimentando, já no século XVIII, “o que ela ainda é hoje — um mecanismo maior de definição
das normas para o ser humano e sua conduta, e para o controle de seu funcionamento” (Vidal,
2013, p. 76).
Embora no trabalho de Vidal (2013) conferimos a importância da Psicologia por ter
atuado no estabelecimento de fundamentos das ciências modernas, constatamos que um outro
movimento importante foi a experiência de individualização. Decorrente de um poder
disciplinar que se inicia no século XVIII, nesse sentido Ferreira (2013) destaca a necessidade
de controle e de disciplina devido ao aumento demográfico da população, a criação de novas
técnicas e novos artefatos industriais, assim como novas relações de trabalho que impuseram a
necessidade de novas tecnologias de poder, dentre elas a Psicologia.
A disciplina do indivíduo esteve, desde o início, mediada por interesses privados e do
Estado, além de ter desempenhado atividades de regulação, esquadrinhamento, vigilância e
ajustamento (Ferreira, 2013). No final do século XIX, a Psicologia era dependente das
condições materiais, ou seja, do desenvolvimento do mundo capitalista e atuou prestando
contribuições na regulação social necessária para a reprodução do capitalismo. Nesse sentido,
21
a Psicologia, a partir do século XIX, foi, cada vez mais, definida pela sua utilidade à classe
dominante e à ideologia da classe dominante.
Para tanto, a Psicologia se adaptou aos preceitos do positivismo e se torna uma
Psicologia comparada ao animal, retirando do meio ambiente etológico modelos para se aplicar
ao meio social e buscando eliminar qualquer espécie de mentalismo ou de vida interior. Nos
rastros do Darwinismo (evolução das espécies, a seleção dos mais hábitos, e a adaptação ao
meio) houve novas práticas na Psicologia que buscaram a classificação e a separação dos
normais dos anormais, e o ajustamento dos desajustados (Ferreira, 2015). Assim, não era
relevante para a Psicologia a significação pela consciência ou a articulação entre esta e o social,
o político e o histórico. A partir daí, surgem as bases para uma Psicologia behaviorista, que era
mais útil para cumprir certas funções políticas e ideológicas. Por esse motivo, Japiassu (1983;
1995) enfatiza a aplicação da ciência psicológica ao controle social. Nas palavras do autor:
a tecnologia psicológica é um conjunto de técnicas fornecidas pelo desenvolvimento de
estruturas especializadas na elaboração e na utilização de um saber psicológico
científico. Essas estruturas especializadas dizem respeito, antes de tudo, aos
conhecimentos necessários à descoberta e ao aperfeiçoamento dos procedimentos
materiais da indústria, dos procedimentos ‘espirituais’ da adaptação social, da adaptação
mental, da aprendizagem escolar, etc. (Japiassu, 1983, p. 59).
Nesse caminho, Japiassu (1983; 1995) destaca o caminho utilitarista e mercantil trilhado
pela Psicologia behaviorista5, e que foi determinado, sobretudo, pelos interesses do capitalismo
norte-americano.
Todavia, no século XX, os projetos de Psicologia que existiram anteriormente foram
considerados como pré-científicos, pois não se encaixavam nas requisições positivistas. A
incorporação do positivismo na Psicologia se traduziu no surgimento das propostas
behavioristas, desde Watson até Skinner (Japiassu, 1983; 1995):
Da palavra-estímulo à palavra-resposta, é colocado fora de circuito epistemológico tudo
aquilo que se refere ao significado, ao sentido, à vida mental constituindo-se como
princípio de significação e de sentido. E é precisamente esta colocação fora de circuito
que o behaviorismo declara como epistemologicamente necessária para a constituição
5
A Psicologia behaviorista é destacada por Japiassu (1983, 1995) porque foi ela que teria “purificado” — sob
os vetos positivistas comteanos redutíveis à ideologia da ciência sob os interesses do modo de produção capitalista
— a Psicologia da introspecção (ou percepção interna) e da instância da consciência que era considerada por
Wundt e por outros psicólogos como Alfred Binet e Théodule Ribot; assim, a psicologia, tratando do observável,
do objetivo e pela neutralidade de valores entre o ser que pesquisa e seu objeto, se consumaria na Psicologia
behaviorista, como ciência verdadeira e autêntica.
22
da Psicologia como ciência verdadeira e independente. Sem isto, continuaria sendo essa
prática bastarda, como o foi a Psicologia pseudocientífica, desde Comte até Watson,
apelando à observação interna e à interpretação das condutas expressivas (Japiassu,
1995, p. 68).
Nesse sentido, Bertalanffy (1971) evidencia o predomínio do positivismo-mecanicista-
comportamentalista na Psicologia moderna que teve como vanguarda a Psicologia norte-
americana. O autor questiona o lugar ocupado pela Psicologia no mundo e afirma que ela se
tornou uma escolástica de técnicas voltadas à dominação da natureza humana e ficou indiferente
às questões humanas. O autor afirma, ainda, que a Psicologia busca tornar o humano um
autômato condicionado e um cidadão comportado e obediente às normas de consumo da
sociedade capitalista. A ciência do comportamento adaptativo toma o ser humano como uma
máquina sem história e produz modelos mecanicistas a partir de ratos torturados e obrigados a
dar respostas (Bertalanffy, 1971).
Assim, evidenciamos, conforme Parker (2014), o nascimento da Psicologia como
ideologia que expressa a existência do indivíduo em relações sociais sob o capitalismo. Essas
novas relações se fundamentam na propriedade privada, na família patriarcal e no Estado que
foram reconfigurados a partir do modo de produção capitalista. As novas relações de
propriedade apoiaram-se na Psicologia para responsabilizar o indivíduo pelo seu sucesso ou
fracasso, naturalizando a competição capitalista, a desigualdade estrutural e o fracasso dos
excluídos. As novas relações patriarcais que oprimem mulheres e crianças tornaram-se
suportáveis, adaptáveis e possíveis pela influência da psicologia. O Estado, aparelho de
dominação e regularização da exploração capitalista, protetor e apoiador da classe dominante,
criador de inimigos internos a partir da disseminação do racismo na defesa do nacionalismo e
como ferramenta do imperialismo colonizador civilizacional também teve, na ciência-
psicologia, um ponto de apoio que condenava, por exemplo, o descontentamento no capitalismo
(Parker, 2014).
Para entendermos esse contexto histórico da Psicologia como ideologia, temos que
estudá-la como ciência que surgiu a partir de mudanças sociais, econômicas e políticas. Como
ciência construída socialmente e dependente de interesses sociais, temos que compreender a
própria Psicologia como um complexo que é parte de uma totalidade mais geral e não como
uma parte autônoma da sociedade. Deleule (1969) destaca que toda ciência expressa a ideologia
que a antecedeu, o que implica que toda ideia científica expressa a ideologia dominante de uma
época.
23
a Psicologia se traduz nas formas mais avançadas das determinações do capital, onde o
trabalho do psicólogo se subordina de forma mais direta às relações de produção, é que
as bases sobre as quais se assentam a Psicologia se desnudam e se deixam entrever mais
claramente, é na Psicologia do trabalho que as formas fetichizadas da ideologia buscam
resolver o conflito da produção, concebendo a sociedade como um conjunto de
indivíduos justapostos, relacionados enquanto mercadoria (Figueiredo citado por
Yamamoto, 1987, p. 22).
Além do desenvolvimento da Psicologia experimental aplicada aos processos do
trabalho industrial, é importante destacar os estudos de Galton sobre a inteligência e a seleção
dos mais capazes na Inglaterra, assim como os trabalhos de Alfred Binet na França. Ambos
contribuíram para as primeiras aplicações da Psicologia à educação por meio de mensurações
da inteligência individual e da medição-classificação das características dos indivíduos em
situação de competição (Yamamoto, 1987, Parker, 2014).
Nesse sentido, a atuação da Psicologia na escola seria marcada pela função de classificar
e selecionar crianças aptas ou excluir crianças inaptas por meio de explicações que interiorizam
na criança as condições sociais e materiais em que vivem (Parker, 2014; Patto, 1984;
Yamamoto, 1987).
A partir de critérios eugenistas de classificação e rendimento individual, a Psicologia
diferencial, inspirada nos preceitos racistas de Francis Galton (Castro, Josephson, & Jacó-
Vilela, 2013) refinou o darwinismo social. Assim, os primórdios da Psicologia escolar foram
marcados por uma atuação funcionalista que não contribuía para proporcionar a humanização,
mas para legitimar a derrota daqueles agredidos pelas condições materiais, sociais e históricas
do capitalismo, responsabilizando-os pelo fracasso escolar (Patto, 1984).
Essa Psicologia aplicada na escola é, também, rigidamente cientificista e inspirada por
teorias ideológicas como o darwinismo social de Darwin que foi sistematizado por Herbert
Spencer, servindo para legitimar a seleção e a classificação dos mais aptos para a escola e,
consequentemente, para a sociedade. Nos dias de hoje, podemos ver, tragicamente, que esse
critério de recrutamento do mais forte ou do mais apto ainda continua a prevalecer na escola: o
que mais se espera da Psicologia Escolar é o diagnóstico de distúrbios de aprendizagem e o
posterior encaminhamento para a intervenção farmacológica (Parker, 2014).
Para Parker (2014), a Psicologia é um poderoso componente das ideias dominantes que
sabotam as lutas contra a opressão. O autor destaca a “psicologização da cultura”, isto é, o
processo de individualização das experiências e dos processos sociais:
26
A Psicologia é importante não porque é verdadeira, mas porque ela é útil para aqueles
no poder. Descrições psicológicas da ação individual, frequentemente, são acolhidas
entusiasticamente por aqueles que têm mais a perder com tais descrições; e aqueles que
se beneficiam com pessoas sendo convencidas de que um problema pode ser reduzido à
forma como alguém pensa ou sente, também, compreensivamente, realmente acreditam
eles mesmos na psicologia. A Psicologia é um componente cada vez mais poderoso da
ideologia, das ideias dominantes que endossam a exploração e que sabotam as lutas
contra a opressão. Esta Psicologia circula para além das universidades e das clínicas e,
atualmente, diversas versões da Psicologia enquanto ideologia podem ser encontradas
em quase toda parte da sociedade capitalista (Parker, 2014, p. 9-10).
O autor enfatiza o indivíduo isolado e a manutenção da ordem social como componentes
constitutivos da nascente Psicologia como disciplina científica. Além disso, destaca que a
Psicologia contribui para que experiências socialmente produzidas (como culpa, fracasso e
tristeza) sejam transferidas para o indivíduo. Este, ao ser tratado de forma isolada de questões
políticas e estruturais, seria o responsável unilateral pela sua vida e suas escolhas. Nessa esteira,
a Psicologia desempenha uma função social na culpabilização e na responsabilização do
indivíduo no capitalismo:
A psicologia, como disciplina, chegou para desempenhar uma função muito específica
no capitalismo. Já as teorias acadêmicas e as práticas profissionais, englobadas pela
Psicologia em escolas, empresas, hospitais e prisões, andam de mãos dadas com o poder.
Isto, por si só, seria o suficiente para colocar a Psicologia na agenda daqueles envolvidos
na política radial. Porém, também há outro motivo mais importante para se lidar com a
psicologia: o campo da experiência individual, que chamamos de ‘psicologia’ foi ele
mesmo formado sob o capitalismo e uma análise mais rigorosa desta Psicologia nos
ajudará a entender algo profundo sobre o funcionamento do próprio capitalismo. Uma
análise rigorosa sobre o desenvolvimento da Psicologia pode, de fato, permitir
entendermos algo sobre a natureza da alienação na sociedade capitalista e o papel das
diferentes formas de opressão no seu interior (Parker, 2014, p. 13).
Nesse sentido, a Psicologia, como campo disciplinar e disciplinador, seria determinada
para fins que não foram postos por psicólogos, mas por instituições ou agências de controle e
de poder. É, portanto, marcada pelos interesses da classe dominante, isto é, a classe social que
detém os meios de produção e o poder econômico.
27
com isso, a inadequação dessa concepção de Psicologia Política à América Latina, pois a mesma
foi de encontro a uma organização sócio-histórica e política distinta.
A Psicologia Política, como campo, olha para as interfaces entre os fenômenos políticos
e os processos psicológicos. Trata-se de uma tarefa complexa, já que o campo da política, assim
como o campo do psicológico, são de difícil definição. Essas categorias, além de serem difusas,
ramificam-se em subáreas ou, até mesmo, em diferentes disciplinas. A Psicologia Política surge
de forma difusa e heterogênea, com singularidades que são marcadas por contextos sociais
distintos e, consequentemente, com ênfases sobre o psicológico e/ou o político que expressam
os diferentes contextos geopolíticos (Garzón, 2008; Montero & Dorna, 1993; Parisí, 2008;
Sabucedo, 1996).
A Psicologia Política buscou suprir lacunas entre a Psicologia e a ciência política.
Todavia, à Psicologia Política não deve ser atribuído um papel de autonomia em relação a outras
ciências. Se assim fosse, a própria Psicologia Política estaria se abolindo, pois sua história é
marcada pelo diálogo com vários campos do conhecimento, especialmente das ciências
humanas (Richter, 2017; Sabucedo, 1996).
Nosso recorte histórico acerca da Psicologia Política parte do século XIX. Isto porque
entendemos a necessidade de demonstrar as influências sociais, políticas e ideológicas na
constituição de uma nova disciplina inserida dentro de um contexto em que novas forças
produtivas estavam se desenvolvendo. Sendo assim, não trataremos aqui, sobre os fundamentos
teórico-filosóficos do período clássico grego que, de certa forma, influenciaram tanto o
pensamento da Psicologia como o pensamento da Política.
Em decorrência dos acontecimentos que ocorreram no final do século XVIII e início do
século XIX (Revolução Francesa em 1789 e a Revolução Industrial que se deu entre 1760 e
1820) houve uma reconfiguração política, econômica, social e psicológica da população do
continente europeu. Hobsbawm (2015), em sua análise histórica sobre esses acontecimentos,
enfatiza que a Revolução Francesa possibilitou, além da queda do absolutismo dirigido pelo rei
Luís XVI, a insurgência dos povos contra regimes opressivos. Isto ocorreu, por exemplo, no
Haiti com o levante dos jacobinos negros. Já a revolução industrial, além de ter aberto as portas
para o capitalismo monopolista sob a hegemonia da Inglaterra, consolidou o proletariado como
nova classe social a ser explorada (Hobsbawm, 2015).
Neste primeiro momento, alguns autores das Ciências Sociais do século XIX
articularam estudos sociais e políticos. Essa articulação, posteriormente, serviria para
demonstrar o potencial fértil da Psicologia Política (Richter, 2017).
29
6
Entendemos que por mais que Durkheim tenha rechaçado os elementos psíquicos por meio de um determinismo
sociológico contido no “fato social” (Durkheim, 1895), acreditamos na impossibilidade de analisar qualquer
elemento social sem antes remetê-lo ao indivíduo à sua constituição dialética entre processos de formação da
personalidade e a objetividade: esse contradição de Durkheim é exposta em sua análise sobre o suicídio, e em sua
tentativa de neutralidade embora parcial e valorativo em seus próprios desejos (Viana, 2007b).
7
Durkheim apresenta a sociedade orgânica como fruto da divisão social do trabalho dentro de um contexto de
evolução cívica (Viana, 2006), nesse sentido o conceito de sociedade orgânica seria, ideologicamente, uma
maneira de integração social e de interdependência solidária numa sociedade dividida entre classes sociais
antagônicas.
31
intimidade pelos acontecimentos sociais, visto que o público e o privado não seriam dissociados
(Jacoby, 1977).
Destacando essa segunda influência, Richter (2015, p. 79) afirma: “não há como pensar
a Psicologia Política sem levar em consideração as contribuições de Freud, em especial, e da
psicanálise, em geral”. Sendo assim, a psicanálise freudiana, junto com a teoria de Marx sobre
o capitalismo, foram os fundamentos do pensamento crítico-social de alguns pensadores da
escola de Frankfurt (Adorno, Erich Fromm, Herbert Marcuse) que contribuíram, com suas
teorias, na construção de uma Psicologia Política como campo crítico (Deutsch, 1983; Moya e
Morales, 1988).
Nesse começo de relações teóricas entre Psicologia e política, à Psicologia foi colocado
o desafio de estudar um novo campo: o campo político. As primeiras discussões eram análises
difusas sobre o comportamento, a cognição e os afetos (Sabucedo, 1996). Diante desses
desafios, conferimos à política, como jogo de forças configurado a partir de relações sociais, a
interpretação de distintos contextos sociais, econômicos e históricos.
Indicando os diversos aportes teóricos à relação entre a Psicologia e a Política no século
XX, Sabucedo (1996) aponta para diferentes influências. Em primeiro lugar, destaca os
trabalhos do norte-americano Louis Leon Thurstone, abordando as atitudes como formas de
comportamentos sociais, assim como suas investigações sobre a inteligência e as aptidões, o
que possibilitou formas de medição sociopolíticas dos processos psicológicos e políticos na
Psicologia Política norte-americana. Sabucedo (1996) também apresenta como influência
importante os estudos realizados por Max Weber, quem, especialmente em a “Ética protestante
e o espírito do capitalismo,” teria colaborado no entendimento da relação entre determinados
sistemas de crenças e a ordem econômica capitalista em sua representação e legitimação social.
Weber contribuiu com a formação da Psicologia Política ao oferecer uma análise de fenômenos
da religião protestante em intersecção com o capitalismo e suas consequências sobre a conduta
humana.
Na primeira metade do século XX, favorecendo uma linha mais crítica nas articulações
entre Psicologia e a Política, também são relevantes os trabalhos de Erich Fromm e Theodor
Adorno. Esses autores foram descendentes de uma perspectiva freudo-marxista e pesquisaram
sobre a formação sócio-política de elementos psicológicos, com uma ênfase especial sobre o
papel dos afetos na adequação e aceitação de governos autoritários (Sabucedo, 1996; Garzón,
2008).
34
refletir não só sobre as determinações políticas dos acontecimentos sociais, mas também sobre
o impacto pessoal desses acontecimentos sobre os indivíduos.
Nessa direção, Garzón (2008) expressa o posicionamento pacifista do psicólogo Edward
Tolman (1886-1959), que se posicionou contra as guerras e lutou contra o decreto que proibia
teóricos comunistas na Universidade de Berkeley, nos Estados Unidos. Esse mesmo psicólogo
também contribuiu para a afirmação da Psicologia Política por meio de sua obra “Drives
Toward Ward”, de 1942, na qual analisou, influenciado pela obra freudiana, os impulsos
agressivos e destrutivos expostos nas guerras.
Garzón (2008) também destaca como a obra “Walden II” de Skinner (1904-1990)
expressou as contribuições do behaviorismo para elaborar um novo projeto para a sociedade.
Segundo a autora, tratou-se de uma obra crítica à organização social das sociedades ocidentais
e, justamente por isso, propunha um experimento social demonstrado por uma nova sociedade
utópica e ideal, na qual o controle, por meio de novos reforçadores, serviria para a formação de
uma nova sociedade submetida às novas estruturas políticas de organização8.
As produções de Abraham Maslow (1908-1970), também expostas por Garzón (2008)
sobre o estudo das necessidades humanas, teria feito importantes contribuições à formação da
Psicologia Política no século XX, pois, ao destacar o desenvolvimento biopsicossocial de uma
pessoa, explicita como as necessidades básicas não podem ser satisfeitas fora da sociedade e do
conjunto das relações sociais.
Finalmente, a autora evidenciou as contribuições de Harold Lasswell (1902-1978) para
a fundação da Psicologia política, enquanto campo científico e independente. Lasswell,
Segundo Garzón (2008), investigou a influência do campo da publicidade no comportamento
eleitoral norte-americano, assim como analisou a conduta política expressa a partir de
motivações inconscientes. Por meio de deduções envolvendo a política e a psicanálise, Lasswell
empreendeu avaliações direcionadas aos processos psicológicos de líderes políticos, de modo
que as ações sociais e políticas desses líderes seriam inseparáveis da formação subjetiva e
individual (Sabucedo, 1996; Garzón, 2008; Richter, 2015). Nesse sentido, Garzón (2008)
destaca duas obras que fizeram com que Harold Lasswell ficasse conhecido como fundador da
Psicologia Política em solo norte-americano: Psychopathology and Politics (1930) e Power and
Personality (1948). Deutsch (1983) também destaca Harold Lasswell como o fundador da
Psicologia Política.
8
Nesta parte tratamos da perspectiva da autora, e não necessariamente da ideologia que está por trás da
abordagem skineriana como bem foi definida por Japiassu (1983).
36
Aunque los prolíficos escritos de Lasswell tratan sobre casi todos los temas de interés
para los psicólogos políticos, su particular énfasis sobre el modo en el que los procesos
psicológicos afectan a los procesos políticos ha influido especialmente en la forma en
que la mayoría de los científicos sociales norteamericanos han enfocado la psicología
política. Sus primeros libros, Psychopathology and politics (1930), World politics and
personal insecurity (1935), Politics: who gets what, when, and how (1936) y Power and
personality (1948) contribuyeron a establecer una perspectiva psicológica particular
para comprender el comportamiento político, la política y los políticos (Deutsch, 1984,
p. 239, grifos do autor).
Nesse apanhado histórico sobre a Psicologia Política, Moya e Morales (1988) enfatizam
três temas de estudo que historicamente influenciaram diretamente o surgimento da Psicologia
Política na segunda metade do século XX:
(...) lo que parece cierto es que la Psicología Política de los años setenta surge
apoyándose en la significación de tres grandes temas de estudio. En primer lugar, el
estudio de las actitudes sociales que tenía ya una tradición de varias décadas, y que
representa indudablemente el análisis de problemas políticos bajo la perspectiva
psicológica; recordemos, por ejemplo, los análisis factoriales de Thurstone (1934) sobre
radicalismo – conservadurismo y nacionalismo- internacionalismo, o las
investigaciones de Newcomb (1943) sobre cambio de actitudes políticas. En segundo
lugar, los estudios desencadenados alrededor de la Segunda Guerra Mundial para
intentar entender y analizar el fenómeno nazi y el genocidio desarrollado en el interior
de países cultos, estudios que tienen su representación más característica en la
Personalidad autoritaria, de Adorno y colaboradores (1950). Y, en tercer lugar, la
investigación sobre las dimensiones psicológicas de la conducta de voto, puesto que ese
comportamiento de participación política es uno de los fundamentos de los sistemas
democráticos occidentales (Cambpell et al., 1960 citado por Moya & Morales, 1998, p.
22).
As atitudes sociais, os fenômenos ligados ao desencadeamento da Segunda Guerra
Mundial e as condutas dos eleitores nos regimes democráticos seriam, segundo a perspectiva
histórica de Moya e Morales (1998), os principais processos que contribuíram para o
surgimento da Psicologia Política como disciplina independente no século XX.
Moya e Morales (1988) afirmam que a Psicologia Política, como ciência autônoma,
seria uma ciência relativamente recente, obtendo seu amadurecimento na década dos anos
37
setenta do século XX, quando foram publicados o primeiro manual de Psicologia Política, em
1973, por Jeanne Nickell Knutson, e o primeiro texto introdutório “A Psicologia da política” de
Willian F. Stone, em 1974. Também foram nos anos 1970 que foram publicadas duas revistas
sobre Psicologia Política e houve, em 1978, a fundação da Sociedade Internacional de
Psicologia Política, sob a presidência de Harold Lasswell. Esses foram os acontecimentos
históricos que consolidaram oficialmente a fundação da Psicologia Política como um novo
campo de saber, sobretudo, autônomo.
Já Deutsch (1983) sustenta que a Psicologia Política nasceu da necessidade de estudar
as relações entre os elementos políticos e psicológicos em contínua interação. A Psicologia
política, segundo a visão do autor, seria filha da ciência social e da psicologia, e teria como
objetivo o estudo da interação entre os processos psicológicos e os acontecimentos políticos do
século XX. Contudo, o autor destaca um ponto crucial: a Psicologia Política nasce num contexto
em que o avanço da ciência e da técnica teria precipitado a convicção de que elas poderiam ser
aplicadas ao comportamento político. Nesse sentido, há a necessidade de se criticar a relação
da Psicologia Política com a tradição científica positivista, a qual reproduz ideais objetivistas e
cientificistas deixando de lado a ação humana. Assim sendo, o autor destaca os acontecimentos
pelos quais surgiram as necessidades de estudar as relações entre os processos políticos e
psicológicos:
La agitación política creciente, la irracionalidad y el carácter destructivo de la primera
guerra mundial, además del advenimiento de los modernos regímenes totalitarios con
sus atrocidades y el uso sistemático de los medios de comunicación de masas con fines
propagandísticos parecían indicar la urgente necesidad de contar con un saber más
sistemático sobre la relación entre los procesos políticos y los psicológicos (Deutsch,
1983, p. 239).
Com relação à indispensável associação entre a Psicologia e a política, Deutsch (1983)
definiu oito campos de estudos referentes aos objetivos da Psicologia Política como uma nova
disciplina: (1) “o indivíduo como ator político”, se referindo aos determinantes do fazer
individual, como a formação das atitudes políticas, a participação e decisão política e o
comportamento eleitoral; (2) “movimentos políticos”, estudos sobre como o ato político é
determinado por grupos ou camadas sociais em interação objetivando fins políticos; (3) “o
político ou o líder”, estudos psicobiográficos de lideranças políticas que se destacaram por meio
da política; (4) “coligações e estruturas políticas”, pesquisas sobre o contexto subjacente que
proporcionam as formações e coligações políticas; (5) “relações entre os grupos políticos”,
38
necessidades dos países industrializados (Marini, 2000; Martins, 2011). Sendo assim, as
exportações de matérias-primas e de alimentos da América Latina, contribuíram,
essencialmente, para o avanço das forças produtivas nos países industrializados.
Para explicar a dependência predominante na América Latina também é preciso destacar
a especificidade do desenvolvimento dos EUA. Com o capitalismo industrial em ascensão e
com a transferência de parte da indústria para a América do Norte — como, por exemplo, o
povoamento dos colonos na região pelo estabelecimento da indústria de algodão e pelo acúmulo
de mão de obra escravizada africana — deu-se início à nação que, já na primeira metade do
século XIX, iniciaria o seu império. Um “novo” imperialismo começou a mostrar sua face
quando os Estados Unidos expandiram suas fronteiras ao sul, apropriando-se de partes
territoriais do seu vizinho, o México, pela anexação do Texas em 1845 e pela Doutrina Monroe
(Ianni, 1974).
Após a II Grande Guerra, a hegemonia do capitalismo estado-unidense consolidou-se
sobre o mundo com a política do dólar e com a suposta proteção à segurança da “democracia”
– ante a ameaça socialista representada pela União Soviética. Tal situação mundial apenas
agravou a submissão da América Latina por meio de vários acordos políticos, militares e
econômicos: Doutrina Truman (1947), Tratado Interamericano de Assistência recíproca (1947),
Carta da Organização dos Estados Americanos (1948), Criação do Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID) em 1959, Criação da Assistência Latino-Americana de Livre Comércio
ALALC (1960), entre outros9 (Ianni, 1974). Contudo, para além de um combate ideológico ao
comunismo, o que era realmente concreto era a necessidade de acumulação capitalista, bem
como a legitimação e criação de condições necessárias à dominação e ao controle norte-
americano sobre as condições socioeconômicas da América Latina, camufladas pela suposta
“ajuda internacional” (Santos, 2011). Nesse caminho, as organizações multilaterais
desempenharam a função de combater revolucionários insurgentes, converter os problemas
resultantes do imperialismo na América Latina em problemas administrativos locais e fomentar
alianças com burguesias locais subalternas (Ianni, 1974).
Esse processo foi construído durante a Guerra Fria, entre 1946-1989, marcando um
período de expansão do capitalismo norte-americano pelo mundo, mantendo uma dinâmica da
divisão internacional do trabalho na qual o capital altamente industrializado controla e submete
economias nacionais dependentes (Ianni, 2001). Nesse sentido, o que já vinha acontecendo no
9
Aqui não tratamos da Criação da ONU, do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional que, logicamente,
contribuíram com o processo de dominação (Viana, 2010).
43
10
Nesse momento vale a diferenciação entre atividade industrial e industrialização. A industrialização é o processo
pelo qual a indústria muda toda uma estrutura social e econômica de modo que há uma acumulação de capital
girando em torno de um eixo produtor independente. Isto é diferente de uma atividade industrial que além de ser
obsoleta mantém, por sua vez, uma dependência em relação ao capital externo, uma dependência tecnológica e de
assistência técnica externa, dando continuidade a uma modernização subordinada. (Marini, 2000; Sunkel, 1967;
Emmanuel, 1981).
44
Com a modernização subordinada atingindo grande parte dos países da América Latina
sob o capitalismo dominante de vanguarda norte-americana, tornou-se imprescindível a
superexploração da mão de obra latino-americana pelo capitalismo nacional e internacional.
Esse período foi marcado, segundo Viana (2010), pela acumulação capitalista extensiva na
América Latina, marcada pela extração de mais-valor bruto, e por uma acumulação intensiva
nos países de capitalismo dominante. Nesse período temos, de fato, uma integração à ordem da
classe trabalhadora nos países de capital dominante, o que foi possível às custas da extração de
mais-valor dos países de capital subordinado, como a América Latina (Viana, 2003; 2009).
A superexploração da mão de obra latino-americana possibilitou a manutenção do
estado de bem-estar social e maior acesso aos bens de consumo pela classe trabalhadora dos
países imperialistas. Portanto, os interesses particulares de burguesias subalternas– formadas a
partir de subsidiárias de empresas de capital industrial do centro dominante – resultaram na
concentração de partes do excedente econômico, o que sustentou a dinâmica de transferência
de riqueza material às burguesias dominantes nos países centrais e acentuou a concentração de
renda exorbitante e a drástica desigualdade na América Latina (Martins, 2011; Marini, 2000;
Furtado, 1974; Santos, 2011, Ianni, 1974).
Agregue-se a isso a obstrução e bloqueio do excedente econômico potencial dos países
da América Latina. Por exemplo, as possibilidades de produção científico-tecnológica e de
avanço industrial interno e original foram sabotadas pela hipertrofia de alguns setores
produtivos (como a exportação de produtos primários) e pela deficiência das forças produtivas
industriais e tecnológicas (Ianni, 1974).
A criação de mais valor no processo de produção de mercadorias é impossível sem a
exploração do trabalhador (Marx,1867/ 2011), seja na América Latina ou em qualquer outro
lugar do mundo. No entanto, a extração de mais-valor do proletariado latino-americano teve a
especificidade de ser uma superexploração que se manifestou sob três formas: aumento da
intensidade do trabalho, prolongamento da jornada de trabalho e redução da capacidade de
consumo e das condições de vida (Marini, 2000; Martins, 2011).
Semelhante ao avanço industrial produtivo do algodão da América do Norte, que
necessitava da mão de obra escrava africana, vemos a exploração e escoação da mão de obra
latino-americana num anacrônico modo de escravização ante o avanço industrial dos países
avançados. A classe trabalhadora latino-americana se viu reduzida aos salários pagos por um
processo de superexploração (Martins, 2011; Marini, 2000; Santos, (2011).
45
chileno, em 1973, dirigido pelo ditador Augusto Pinochet que, inclusive, fez do país a primeira
cobaia das políticas neoliberais, um experimento acompanhado pelo cientista econômico norte-
americano Milton Friedman; o golpe de 1973 no Uruguai, iniciado com presidente Juan Maria
Bordaberry e continuado pelo ditador Aparício Mendez; além de diversas ditaduras ou
diferentes regimes militares em Nicarágua, El Salvador, Paraguai, Guatemala, Cuba, Venezuela
e outros países do Cone Sul (Coggiola, 2001).
Todos esses regimes repressores surgiram da iminência potencial ou real de revoluções
sociais em oposição à acumulação capitalista das elites dominantes. Como consequência social,
os regimes militares assassinaram milhares de trabalhadores, estudantes, insurgentes e
opositores políticos que atuavam em manifestações ou organizações políticas, além de criar
campos de concentração e atuar por meio de sequestros, tal como ocorreu no Chile e na
Argentina. As consequências econômicas foram a imposição de maior abertura ao capital
internacional e a destruição da indústria nacional e do excedente econômico potencial,
mantendo a dinâmica da exportação dos recursos primários (por exemplo, o Chile exportava
mais de 90% de suas matérias-primas), além da destruição inteira de economias nacionais como
ocorreu na Colômbia, Peru e Bolívia (Coggiola, 2001).
Em resposta aos regimes militares, ocorreram diversas greves e lutas insurgentes na
América Latina entre as décadas de 1960 e 1980 (Coggiola, 2001). Por exemplo: no Brasil, a
greve de Contagem em Minas Gerais em 1968 e do ABC paulista em 1979; a do operariado
argentino em 1982 ou a ação do Exército Revolucionário do Povo; a resistência armada de
guerrilheiros insurgentes, como o movimento revolucionário sandinista na Nicarágua entre
outras.
Os períodos ditatoriais geraram, além de uma crise econômica e política, o agravamento
da dívida externa e a crise dos próprios Estados latino-americanos. As falências políticas
advindas da própria ditadura militar passaram a ser desvantajosas ao empresariado local e aos
países dominantes, que passaram a reivindicar uma “redemocratização” dos estados da América
Latina. No Chile, por exemplo, segundo Coggiola (2001), o governo dos Estados Unidos e a
elite do empresariado votaram contra o regime ditatorial de Pinochet e reivindicaram uma
reestruturação do Estado ante a decadência do regime militar.
A crise econômica mundial afundou as ditaduras militares que procuraram inaugurar
uma fase de desenvolvimento econômico e impôs a necessidade de substituição desses
regimes. Em todas as crises militares da Argentina democrática pós-1983, quando
militares direitistas da antiga ditadura (os carapintadas) entraram em atrito profundo
47
11
O Chile serviu de antecipação das políticas neoliberais sendo acompanhado pelos próprios idealizadores, a escola
de Chicago, na implantação do neoliberalismo. Como consequência, suas conquistas sociais foram arrasadas pela
privatização de setores públicos como saúde e educação (Coggiola, 2001).
48
12
Modelo de extração de mais-valor desenvolvido no Japão e adaptado às novas requisições do capitalismo
neoliberal; conforme a evolução do taylorismo (maior controle do trabalhador), do fordismo (produção em massa
e uso tecnológico), chega-se ao taylorismo: modelo que procura atingir as relações de trabalho e produzir de acordo
com a demanda flexível e instável do mercado.
49
pairam acima das nações. A moeda nacional torna-se reflexa da moeda mundial, abstrata
e ubíqua, universal e efetiva. Os fatores da produção, ou as forças produtivas, tais como
o capital, a tecnologia, a força de trabalho e a divisão do trabalho social, entre outras,
passam a ser organizadas e dinamizadas em escala bem mais acentuada que antes, pela
sua reprodução em âmbito mundial. Também o aparelho estatal, por todas as suas
agências, sempre simultaneamente políticas e econômicas, além de administrativas, é
levado a reorganizar-se ou "modernizar-se" segundo as exigências do funcionamento
mundial dos mercados, dos fluxos dos fatores da produção, das alianças estratégicas
entre corporações. Daí a internacionalização das diretrizes relativas à desestatização,
desregulamentação, privatização, abertura de fronteiras, criação de zonas francas (Ianni,
2001, p. 59).
A globalização não é um fenômeno novo, ela é apenas a extensão do capitalismo
mercantilista que se iniciou no século XVI. Como consequência da queda da taxa de lucro
mundial do capitalismo, a globalização, como forma de reestruturação do capital, tem como
objetivo aumentar a coerção da exploração nos países dependentes, assim como o acúmulo e
transferência do mais-valor entre as burguesias nacionais e internacionais (Martins, 2011;
Viana, 2010).
Além dos danos sociais, políticos e econômicos relativos provocados pela exploração
da América Latina pelas potências centrais do capitalismo, há duras consequências sobre o
ecossistema do continente. Martins (2011) sustenta que o capitalismo dependente latino-
americano, têm excluído territorialmente e culturalmente populações originárias e camponesas
pela superexploração e pelo agronegócio. A alta concentração agrária pelos latifúndios têm
levado ao aumento do uso predatório do solo reduzindo sua capacidade biótica e abiótica, além
de expulsar e excluir milhares de pessoas de suas terras. A destruição da natureza é um problema
grave e histórico que acontece na América Latina, pois seu vasto bio-sistema, cada vez mais
explorado, é um dos recursos básicos do capital dominante. Em 10 anos, entre 1990 e 2010, a
proporção de florestas na América Latina teve uma redução de 51,9% para 47,2% (Martins,
2011).
A própria continuidade do avanço industrial dos países avançados necessita da
exploração contínua da força de trabalho e dos recursos materiais e primários dos países da
América Latina (Marini, 2000). O subdesenvolvimento dos países da América Latina é uma
condição necessária ao desenvolvimento dos países industrializados e dominantes.
50
13
No Brasil, por exemplo, se o salário equivalesse a 100 em 1985, teve uma queda para 56 em 2002 (Martins,
2011); esse mesmo país ocupa, em 2018, a 4ª posição mundial de acidentes de trabalho (Keppler, 2018).
14
As Políticas da Psicologia exercendo o poder do discurso ideológico científico, atuou na sociedade latino-
americana segundo o equilíbrio e configuração de forças sociais dominantes (Martín-Baró, 1988/1990); nesse jogo
de forças parcial a ideologia dominante, as políticas da Psicologia foi um dos recursos de dominação ideológica
na América Latina. Seu mimetismo cientificista, fruto do imperialismo norte-americano, colocou em prática a
ideologia do positivismo, do individualismo e do presentismo (Martín-Baró, 1986).
51
forma à perspectiva crítica da Psicologia Política que será desenvolvida na América Latina,
como veremos no próximo tópico.
desenvolvimento do Brasil a partir das leis sociais evolucionistas e pelo controle do Estado
federal republicano.
Apesar de Victor de Brito destacar o sofrimento da massa brasileira nessas disputas, o
autor descreve as disputas entre federalistas e republicanos como disputas políticas e afirma
que governar independe das constituições políticas. O governo seria determinado pelo caráter
moral e honesto dos homens à frente do povo. Assim, fica claro que Victor de Brito deixou de
lado o contexto de exploração colonial de Portugal e suas consequências na formação de um
estado patrimonialista e autoritário no Brasil, assim como não evidenciou a disputa de poder
pela aristocracia brasileira e sua melhor forma de controle sobre a população. Nesse sentido,
percebemos uma análise política e psicológica individualista, a qual desconsidera problemas
estruturais e os conflitos entre classes sociais.
Com esse contexto, apresentamos algumas das primeiras obras que abordaram
elementos psicopolíticos em suas análises. Para além de meras produções teóricas, as obras que
descrevemos são documentos históricos que narram as primeiras manifestações de Psicologia
Política na América Latina. A partir daqui, evidenciaremos um segundo momento de Psicologia
Política latino-americana que foi pensada a partir da necessidade de resposta ante os anseios
sociais, políticos e econômicos da América Latina.
Para Sabucedo (1996), é inegável a existência de contribuições norte-americanas à
institucionalização da Psicologia Política no âmbito acadêmico. Isto se eu pela publicação de
manuais e revistas de Psicologia Política e pela criação da Sociedade Internacional de
Psicologia Política. No entanto, o autor destaca a necessidade de cautela na leitura das
contribuições norte-americanas, pois são provenientes de condições histórico-políticas
particulares.
La implantación y evolución de la Psicología Política en otros países tiene que traducirse
en nuevos enfoques y perspectivas, que respondan a lo que son sus tradiciones de
pensamiento, sobre la relación entre los fenómenos psicológicos y políticos. Ese debate
entre diferentes posiciones resulta no sólo obligado, sino también necesario, para el
desarrollo y avance de la Psicología Política (Sabucedo, 1996, p. 39).
Nesse sentido, Sabucedo (1996) destaca dois pontos marcantes na formação da
Psicologia Política latino-americana: um seria a luta pela liberdade representada pelos
processos de redemocratização; outro seria a inseparabilidade da Psicologia Política da
Psicologia social na América Latina. Os países da América Latina enfrentaram em sua formação
política ditaduras militares e isso marcou a história da Psicologia e da Psicologia Política.
53
Sabucedo (1996) ilustra a tese resgatando o livro “Los problemas psicológicos actuales”
escrito por Mira y Lopez, em 1941, que abordou elementos psicopolíticos para uma Psicologia
social aplicada à transformação social no contexto da ditadura de Franco na Espanha. O livro,
produzido em uma situação de exílio decorrente da participação do autor na guerra civil
espanhola, teria elementos semelhantes às produções teóricas sobre o trauma político criado no
Chile sob a ditadura de Pinochet ou às análises de Martín-Baró (1988/2017) acerca do trauma
psicossocial do terrorismo de estado em El Salvador. O argumento de Sabucedo contribui para
pensarmos a necessidade de uma Psicologia Política que tenha em seu campo conceitual o
diálogo com a realidade social em que está inserida.
Na América Latina, a Psicologia Política partiu de uma perspectiva social, pois não foi
possível analisar processos psicológicos na política de maneira abstrata e descontextualizada
de uma formação história e social (Hur; Lacerda Jr., 2016). Nesta esteira, as análises de Martín-
Baró sobre a opressão, a Psicologia social e a Psicologia da Libertação , em 1986, foram obras
essenciais à construção da Psicologia Política latino-americana. Martín-Baró, como veremos
mais adiante, marcou um novo referencial teórico, conceitual e prático a ser explorado pela
Psicologia Política latino-americana.
Montero e Dorna (1993) destacam como eixo central da Psicologia Política latino-
americana o compromisso com a transformação social. Nesse sentido, a Psicologia Política
desenvolvida na América Latina tem um duplo papel: o papel de produção científico-acadêmico
e, ao mesmo tempo, de luta pela transformação social.
Em uma primeira revisão bibliográfica sobre a construção da Psicologia Política na
América Latina, Montero (1987) destacou algumas áreas de estudo que seriam indissociáveis
da origem do campo. Essas áreas foram: o nacionalismo; a conduta política e processos
psicológicos; o trauma político; a ideologia, a alienação e consciência política; e o papel social
do psicólogo e da psicologia.
Sobre o nacionalismo, a autora apresenta produções teóricas e pesquisas de autores
latino-americanos que abordaram os efeitos da colonização e a influência da América do Norte
na construção identitária, cultural e linguística do continente. Esses efeitos marcaram a
autopercepção identitária da América Latina, resultando na depreciação do caráter nacional pela
comparação com referenciais externos.
Na Venezuela, logo após a queda da ditadura de Pérez Jimenez, em 1958, e com a
implantação de um processo de redemocratização do ambiente sócio-político, dois anos após
foi publicado um dos primeiros artigos tratando de fenômenos políticos na Psicologia com o
54
título “La Psicologia Política y la possibilidad de investigación acerca del caráter nacional
venezolano,” pelo psicólogo social, J.M. Salazar (Montero, 1978). O tema do nacionalismo,
abordado por esse artigo, dera início, segundo Montero (1978), à composição teórica da
Psicologia Política na América Latina.
Sobre o tema da conduta política e os processos psicológicos, Montero (1978) destaca
os estudos sobre a percepção e a cognição de eleitores na escolha dos candidatos políticos.
Também apareceram discussões sobre formas de socialização política, destacando as principais
dinâmicas e influências como família, grupo social e ambiente universitário sobre escolhas
políticas.
O trauma político, o terceiro tema da Psicologia Política latino-americana, engloba
descrições clínicas sobre traumas decorrentes das torturas físicas e psicológicas provocadas pela
repressão militar, assim como estudos sobre as consequências traumáticas deixadas pelos
conflitos armados.
A ideologia, alienação e a consciência política foi outro grupo de investigações da
Psicologia Política na América Latina. Montero (1987) identificou estudos sobre as causas
históricas que colocaram em marcha processos ideológicos e de alienação, assim como sua
influência na formação objetiva-subjetiva do povo latino-americano. Montero (1987) sustenta
que aqui há estudos que procuraram situar geopoliticamente a América Latina a partir de um
contexto histórico de exploração e dominação que funcionou criando obstáculos e dificuldades
ao desenvolvimento independente da região. Sendo assim, para uma compreensão mais global
de problemas estruturais, as pesquisas buscaram contribuições da Ciência Política, da
Sociologia, da Filosofia, da Economia para elaborar uma perspectiva crítica sobre os efeitos da
ideologia e da alienação..
Montero (1987) conclui, a partir de seu levantamento, que no caminho de construção teórica da
Psicologia Política na América Latina houve duas tendências. Em primeiro lugar, uma linha
mais tradicional de Psicologia Política definida como a área da conduta política e dos processos
psicológicos. A segunda, seria uma linha mais autêntica e fiel às necessidades político-sociais
da América Latina que trouxe análises sobre ideologia, alienação e consciência política. Ambas
as perspectivas estiveram sob influência teórica europeia ou estadunidense.
Contudo, “a necessidade de produzir explicações teóricas para uma realidade particular”
(Montero, 1984, p. 45) foi comum nos campos de investigação na América Latina. Para
Montero (1984), o importante são os modelos teóricos e de investigação de maneira geral, desde
que sejam incorporados e interpretados conforme o contexto histórico da América Latina: “isso
55
pode ser aplicado tanto aos teóricos funcionalistas e positivistas clássicos quanto aos autores de
abordagem marxiana” (Montero, 1987, p.45), pois o que importa é “dar voz a América
Latina”15.
As contribuições de Montero são inegáveis não só para a história da Psicologia Política
na América Latina, mas para a própria epistemologia da Psicologia Política latino-americana,
porque ela teve a intenção explicitamente assumida de propor uma Psicologia Política latino-
americana para a libertação e transformação social em prol das classes oprimidas:
A Psicologia política, em lugar de ser uma testemunha de processos sociopolíticos que
afetam ao indivíduo, é vista como um meio para intervir em transformações sociais, para
promovê-las e para analisá-las, a fim de produzir respostas aos problemas gerados pelas
relações sociais, econômicas e políticas (Montero, 1987, p. 46, tradução nossa).
Silva (2015) expõe que nas reuniões da Associação Internacional de Psicologia Política
(ISPP), os psicólogos políticos latino-americanos tinham seus próprios modelos teóricos e
metodológicos frente uma abordagem de Psicologia Política hegemônica e neutra representada
por psicólogos políticos dos Estados Unidos e da Europa. Em decorrência disso, Silva (2015)
evidência a ocorrência de algumas tensões em conferências ocorridas na Cidade do México e
em Barcelona, acentuando a necessidade de alguns pesquisadores iberolatinoamericanos de
terem seu próprio espaço institucional e alternativo frente a Associação Internacional de
Psicologia Política:
Portanto, as raízes da Associação Ibero-Latinoamericana de Psicologia Política (AILPP)
remontam aos anos 1970-1980, quando emerge a Psicologia Política latino-americana,
inspirada na produção intelectual e na ação coordenada por Ignácio Martín-Baró,
Maritza Montero, Graciela Mota, Silvia Lane e Leoncio Camino e outros psicólogos
políticos (Silva, 2015, p. 28).
Apesar da tardia consolidação da Associação Ibero-Latinoamericana de Psicologia
Política, em Medellín, no ano de 2011, a Psicologia Política latino-americana, como vimos, já
possuía toda uma bagagem teórica e metodológica desde a segunda metade do século XX.
Sendo assim, ela já possuía discussões teórico-metodológicas distintas e originais das
concepções de Psicologia Política euro-estadunidense.
15
Achamos problemática uma teoria genérica referente a uma visão interdisciplinar e até mesmo positivista da
autora, além disso, não partilhamos que o marxismo seja mais um ponto de vista especializado e fragmentado de
ciência. Esse é um ponto crítico, entre outros, que posteriormente analisaremos ao abordar a presença do
pensamento burguês na Psicologia Política latino-americana.
56
das maiorias populares foi responsável pelo giro político que transformou a Psicologia Política
latino Americana (Hur, Sabucedo & Alzate, 2018).
Por sua vez, Parisí (2016) defende a Psicologia Política Latino-americana como um
dispositivo de análise da realidade para a desconstrução dos discursos dominantes e
ideológicos. Na América Latina, esses discursos, como vimos, além de apresentarem um
esquecimento ou negação da história desse continente, colocaram como exemplo de
organização política, os próprios causadores da colonização-desorganização, isto é, os países
colonizadores. Por outro lado, a Psicologia Política Latinoamericana teria um compromisso
social com a cultura e história dos povos da América Latina, materializando-se através de um
conhecimento subversivo e contrário à ordem dominante (Parisí, 2016).
Assim, Parisí (2008) sustenta a especificidade da Psicologia Política Latinoamericana
dentro de uma perspectiva discursiva, de modo que sua atuação revelaria as intenções implícitas
dos discursos políticos dominantes e ideológicos. Em nosso ponto de vista, percebemos que
somente a análise de discursos dominantes não basta, pois, além de transferir para o campo
linguístico-representativo a dominação que se faz concreta no campo das relações sociais
concretas, despreza-se a base intencional de interesses de classe que estão por trás desses
discursos.
Entretanto, Parisí (2008) expõe vários modelos de análise da Psicologia Política
construídos conforme especificidades geopolíticas distintas. Entre eles, se destaca o modelo
Liberacionista-crítico, criado a partir de uma nova epistemologia construída a partir dos
trabalhos de Martín-Baró em resposta à situação geopolítica do continente. O autor ainda
destaca o modelo marxista, abrindo espaço para um novo campo de expressão teórica e prática
para a Psicologia Política Latinoamericana.
Para o modelo marxista de Psicologia Política, os processos e comportamentos
psicopolíticos, seriam produtos de instituições sociais e culturais, onde estas, por sua vez,
estariam condicionadas pelo modo de produção material de uma sociedade. Entendendo a
importância desse ponto, faz parte desse trabalho destacar as contribuições do marxismo à
Psicologia Política latino-americana, para que haja, além de uma contribuição teórica, um
aprofundamento de análise da Psicologia Política Latinoamericana, a partir da teoria marxista
cujo fundamento é a luta de classes.
Em síntese, no continente latino-americano predominou uma Psicologia Política que
não foi asséptica ou imparcial na análise de elementos psicopolíticos e de fenômenos políticos
que foram entendidos a partir de uma relação estrutural de dominação e imposição das forças
60
dominantes. Isso fez que se desenvolvesse na América Latina uma Psicologia Política singular
com traços críticos, visto que o elemento crítico de uma Psicologia Política na América Latina
— conforme entendimento do contexto social e histórico de exploração e opressão imposto a
essa parte do continente — que formulou estudos direcionados a um compromisso político,
ético e militante (Hur & Lacerda, 2016). Portanto, a Psicologia Política assumiu uma nova face
na América latina que fundamentou intervenções sociais e análises críticas de elementos
psicopolíticos (Hur & Lacerda, 2016; Lacerda, 2016b; Montero, 2007; Montero, 2009; Montero
& Dorna 1993; Martín-Baró, 1985a, 1986, 1988, 1991; Parisí, 2016; Pavón-Cuéllar, 2016;
Sabucedo 1996).
Como descrevemos no capítulo anterior, é indiscutível que a América Latina tenha sido
marcada pela exploração colonial. A divisão internacional do trabalho e o colonialismo
produziram um “desenvolvimento” marcado por graves problemas estruturais que envolvem
questões políticas (crises institucionais e autoritarismo), econômicas (concentração de renda
exorbitante e alarmante desigualdade social), culturais (falta de memória histórica, crise
educacional etc.) e sociais (banalização da violência, desumanização da vida, fatalismo, etc.).
Também nas páginas anteriores, traçamos uma introdução da história da Psicologia
Política na América Latina apanhando suas raízes desde o final do século XIX até chegarmos
em uma caracterização da Psicologia Política desenvolvida na América Latina. Com esse
apanhado histórico, chegamos às especificidades da Psicologia Política Latino-americana que,
alinhada à Psicologia Social, empreendeu esforços na luta pela liberdade democrática conforme
a geopolítica Centro-Sul do continente americano.
Concluímos que a Psicologia Política latino-americana, em decorrência das
consequências históricas da colonização, construiu suas bases epistemológicas fundamentando-
se numa crítica da realidade social específica do continente (Parisí, 2016; Souza, 1994).
No entanto, se a condição social precária das maiorias populares na América Latina, foi
e é decorrente da divisão internacional do trabalho e do imperialismo, então não basta uma
crítica que busque reformular as instituições burguesas com propostas reformistas ou a crítica
de instituições isoladas que buscam apenas a cidadania, a garantia de direitos e deveres ou a
reformulação do Estado burguês.
61
16
Aqui ressaltamos que a economia política não deve ser entendida como a ciência especializada da Economia,
mas sim como os seres humanos criam suas condições materiais para se reproduzirem tendo em vista a base
produtiva a partir da divisão social do trabalho, isto é, a divisão básica entre produtores e apropriadores da riqueza
que é socialmente produzido (Marx, 1967/2011).
63
burguesia, como o Estado burguês, e mesmo a democracia, não tiveram a intenção de propor
uma emancipação humana, mas sim garantir sua hegemonia como nova classe social.
As fissuras, as contradições e a incapacidade das instituições cridas pela burguesia em
lidar com os segmentos assalariados, denotam as verdadeiras intenções por trás da emancipação
política colocada em marcha pela burguesia: aquela transfigurou-se numa manipulação,
cooptação e no enfrentamento à classe proletária. Estes foram os marcos de início da decadência
ideológica da burguesia.
No plano das ideias, 1848 assinala uma inflexão de significado histórico-universal: a
burguesia abandona os principais valores da cultura ilustrada e ingressa no ciclo da sua
decadência ideológica, caracterizado por sua incapacidade de classe para propor
alternativas emancipadoras; a herança ilustrada passa às mãos do proletariado, que se
situa, então como sujeito revolucionário (Netto & Braz, 2006, p. 20).
Lacerda Jr. (2010) afirma que a burguesia, ao deixar de portar os interesses objetivos
das massas que se envolveram nos processos revolucionários do final do século XVIII, passou
a defender seus próprios interesses tornando-se uma classe conservadora.
A racionalidade burguesa, composta por toda articulação da cultura dominante
burguesa17, criou um conjunto de práticas e expectativas para compreender o ser humano a
partir da organização social conforme as necessidades econômicas e políticas do capitalismo.
A partir de Lacerda Jr. (2010) destacamos dois projetos essenciais traçados pela
burguesia. O primeiro projeto foi de formulação de um conhecimento epistemológico que
aceita, reproduz e intensifica as deformações inerentes à divisão social do trabalho. O segundo
projeto é a continuidade de uma apologética à dinâmica do capitalismo a partir do conhecimento
científico limitado a setores parciais da realidade, assim se desconsidera a totalidade social sob
o modo de produção capitalista (Lacerda Jr., 2010). Esses dois pontos são constituintes do
paradigma que se configura e se define na racionalidade burguesa.
A decadência ideológica e seu subproduto — a racionalidade burguesa como projeto
conservador — se manifesta de maneira contraditória, ora objetivamente ora sutilmente. O que
importa dizer é que sua principal funcionalidade é a de ocultar as relações sociais sob o
capitalismo:
17
A cultura dominante burguesa é a hegemonia burguesa que é indiferente à divisão social do trabalho, assim, a
cultura, a tradição ou a hegemonia burguesa, planejou e executou um plano de dominação e exploração contra a
classe produtora; para isso, a dominação burguesa contou com o conhecimento científico como principal ideologia
como foi exposto no primeiro capítulo.
65
18
Se antes a divisão social do trabalho era uma divisão naturalizada pelo sexo ou pela faixa etária, com o
capitalismo ela passa a ser conforme a necessidade e a posição da classe dominante (Viana, 2007).
67
19
Marx, nas palavras de Da Silva (2017), define que nem todo trabalhador assalariado é, necessariamente, um
trabalhador produtivo, visto que nem todo trabalhador agrega ou repassa valor ao que é produzido.
68
configuração geral da consciência social de nossa época cumpre uma função que nem
sempre é visível, mesmo para os convictos militantes da “álea singular dos
acontecimentos”. Ela cumpre a função ideológica de ocultar a dimensão geral que
articula, transpassa e determina as opressões e explorações específicas, apagando os
nexos e determinações, isolando-as em suas legalidades próprias, fragmentando-as
pulverizando-as. Não se trata de um mero problema teórico: a fragmentação das
diferentes esferas da opressão e a perda de suas determinações com a ordem geral
permitem que meras alterações de forma se rearticulem em outro patamar
funcionalmente renovadas na garantia da mesma ordem contra a qual se confrontavam.
A absorção pela sociedade de mercado e pela ordem burguesa de movimentos radicais,
como a luta feminista, o movimento negro ou a rebeldia geracional de jovens, assim
como expressões organizativas da classe trabalhadora, como sindicatos, partidos e
movimentos sociais, podem demonstrar tragicamente esse princípio (Iasi, 2017, p. 36-
37).
Todas as reivindicações dos movimentos sociais que buscam direitos civis e estão
submissos à racionalidade burguesa, desconsideram a base fundamental pela qual o capitalismo
se sustenta, ou seja, a divisão social do trabalho. Sendo assim, as reivindicações fragmentadas
sempre capitulam ao Estado, à democracia burguesa e ao fortalecimento dos direitos civis sob
a ordem burguesa dominante.
Como garantia da fragmentação social oriunda da divisão social do trabalho, o trabalho
intelectual exerce a função de oposição e tem como função explorar diretamente ou
indiretamente a força de trabalho (Barrabas, 2014). Nesse sentido, é inevitável que o trabalho
intelectual, para além da execução da fábrica, tenha como função a reprodução do controle do
capital sobre o trabalho devido a ganhos secundários (como altos salários, posição de classe,
etc.) inerentes à divisão social do trabalho.
Portanto, toda crítica que não ultrapasse o pensamento burguês é um conjunto de
protestos românticos “anticapitalistas” que refletem, na verdade, as angústias resultantes das
crises do modo de produção capitalista (Lacerda jr., 2010). Trata-se de uma apologética ao
modo de organização social capitalista que se insere dentro dos limites da racionalidade
burguesa.
Nesse sentido, não é à toa que o trabalho reflexivo de grande parte dos intelectuais seja
direcionado aos fins do reformismo das instituições e da organização liberal burguesa. Sendo
assim, passemos a analisar a função do trabalho intelectual que, oriundo da especialização do
69
conhecimento científico, terá especificidades próprias numa sociedade cindida entre classes
sociais antagônicas, estando a favor da racionalidade burguesa.
20
Na ideologia alemã, Marx não se refere ao trabalho intelectual como classe especializada e fixa a favor do
capitalismo, no entanto é clara a proposição do autor ao se referir ao trabalho espiritual (ou intelectual) como
consequência da divisão social do trabalho na construção de ideologias. O surgimento da classe intelectual a partir
de papeis fixos, da especialização do conhecimento e da submissão a regras disciplinadoras e modeladores dessa
classe, se deram no final do século XIX e Marx já tinha escrito a obra citada.
71
Como seu papel social garante certos privilégios, a atividade intelectual, dentro da
especialização do conhecimento científico, mantém suas necessidades e interesses de classe por
meio de críticas que não ultrapassam setores parciais da realidade e que capitulam à
racionalidade burguesa. Suas críticas gravitam em torno de reformismos ou reivindicações
através de instituições burocráticas e pela luta “democrática” que tem como objetivo fortalecer
a sociedade civil e não abolir a sociedade capitalista.
Conforme sustenta Braga (2014), os intelectuais tendem a desenvolver um papel distinto
da classe trabalhadora manual. Seu modo de vida (suas próprias condições sociais, seus
interesses e valores) demanda uma atividade que apenas regula as relações sociais:
A atividade da intelectualidade, devido ao papel que ela ocupa na divisão social
do trabalho, produz um modo de vida que lhe é comum, típico daqueles que a exercem
cotidianamente. Esse modo de vida coage ao cumprimento de certas regras e normas
burocráticas específicas, gera necessidades próprias, se organiza de forma
corporativista, estabelece ligação com outras instituições, tais como editoras, centros de
pesquisa e financiamento de pesquisas, em muitos casos estabelece vínculos com
sindicatos, partidos políticos e com o próprio Estado. Essas ligações aliadas às
necessidades da intelectualidade acabam por padronizar
um modo de vida, um conjunto de valores e representações típicas dos indivíduos que
ocupam essa função na sociedade (Braga, 2014, p. 18).
Entendendo que o trabalho intelectual, a partir da divisão social do trabalho, é necessário
ao controle do trabalho manual para a extração do mais-valor (Lessa, 2007), as críticas a partir
da atividade fixa e classista intelectual, não ultrapassam os limites da sociedade burguesa.
Contudo, todo indivíduo possui uma autonomia com relação aos papeis fixos, valores
e interesses condicionados pelo pertencimento de sua classe. E devido sua formação pessoal,
experiências anteriores, ou pertencimento anterior à classe explorada, esse mesmo indivíduo
pode assumir outros papeis sociais mesmo adquirindo uma ascensão social e se tornando
pertencente à intelectualidade (Braga, 2014; Da Silva, 2017). Nesse sentido, há entre os
intelectuais, um pequeno número de indivíduos que, devido ao seu processo histórico de vida e
formação pessoal, acabam por assumir um posicionamento crítico às ideologias e uma
perspectiva radical de transformação e revolução social (Braga, 2014; Da Silva, 2017).
Todavia esse não é o caso de grande parte da força intelectual construtora das bases
teóricas da Psicologia Política latino-americana. Isso porque grande parte dessa força
intelectual, além de não reconhecer a divisão social do trabalho, parte de críticas propositivas
72
21
O modo de produção capitalista gera uma sociabilidade e uma mentalidade que se cristaliza e se solidifica nas
formas de consciência formadas pela hegemônica episteme e racionalidade burguesa condicionada por esse modo
de produção; nesse sentido, nossos valores, nossa linguagem, nossa percepção e nossa capacidade de análise
tendem a ser formadas a partir do pensamento burguês (Viana, 2018). Neste trabalho nos ocupamos da presença
subjacente do campo analítico burguês na Psicologia Política latino-americana, que consome uma apologética à
racionalidade e ao pensamento burguês.
73
Por sua vez, Montero (2009) afirma a Psicologia Política latino-americana como espaço
multidisciplinar, que se ocupa da análise e da descrição de fenômenos da vida pública,
mecanismos de poder e relações de força. A autora entende que o papel da Psicologia Política
latino-americana é o de realizar uma denúncia crítica para construir uma melhor sociedade na
luta pelos direitos humanos, pela democracia e pela vida:
Para mantener activa la condición dinámica y cambiante de la sociedad, contribuyendo
con una mirada crítica a la construcción de esa sociedad que
siempre se desea mejor, que siempre puede y debe ser mejor Para no permitir el olvido
y a la vez para generar la conciencia de la fuerza y de la debilidad y de la necesidad de
cambiar. Para ejercitar la memoria colectiva y la creatividad colectiva e individual. Para
mantener la búsqueda continua de un mundo mejor para todos los seres humanos. Hacer
la utopía a partir de utopías que crean nuevas utopías generando la esperanza motivante
y positiva… Para permitir la diversidad en todos los campos de la vida social, sin
reservas ni resquemores, sin culpa y sin vergüenza. Sin ser objeto de castigo. Por la
libertad. Para la democracia. Por la vida (Montero, 2009, p. 211).
Todavia, vemos como problemática a ideia de colocar a Psicologia Política latino-
americana como espaço teórico-metodológico multidisciplinar, assim como não partilhamos da
ideia de reduzir a Psicologia Política à luta por uma suposta democracia sem superar as lutas de
classes.
Com relação ao espaço multidisciplinar da Psicologia Política latino-americana,
problematizamos a prática de disciplinas fragmentadas conforme a especialização da ciência
como ideologia, fruto da divisão entre trabalho manual e intelectual. A defesa da
multidisciplinaridade trata dos efeitos aparentes, ocultando as verdadeiras contradições sociais
entre as classes sociais que são antagônicas a partir das relações na produção.
Já a luta pela democracia que a autora sustenta é irrealizável sem a abolição de uma
sociedade formada por classes sociais antagônicas. É impossível uma verdadeira democracia
numa sociedade em que o povo aguarda por concessões de uma minoria dominante.
Portanto, nos trabalhos citados aqui, percebemos a presença do pensamento burguês,
porque não analisam as raízes estruturais da divisão social do trabalho e não concluem em favor
do papel da classe trabalhadora como classe revolucionária. Processos políticos como
democracia e participação na política são entendidos como direitos políticos e dissociados do
modo de produção capitalista.
77
contra a dominação do capitalismo burguês. No entanto, isso não impediu que fosse cooptado
por diferentes grupos ou teóricos que extraíram da teoria marxista diferentes direcionamentos.
Assim como há diferentes projetos de Psicologias, construídos historicamente por seres
concretos, sociais e valorativos, o marxismo se revelou na história a partir de projetos teórico-
metodológicos distintos. Muitas versões do Marxismo não contribuem para compreender a
gênese, a consolidação e o desenvolvimento das inerentes crises da sociedade burguesa em seu
modo de produção capitalista (Lacerda Jr., 2018).
Por meio de uma leitura ontológica do pensamento de Marx, Lacerda Jr. (2018) expõe
como o centro do pensamento de Marx é a anatomia da sociedade burguesa. Ante isso, “a
atualidade do pensamento marxiano não depende de sua relação com o aparato estatal ou
partidário e também não depende de critérios positivistas de ciência” (Lacerda Jr., 2018, p. 23).
Descrevendo a relação entre Psicologia e Marxismo, Lacerda Jr., (2018) apresenta
formas de articulação que vão desde uma Psicologia contra o Marxismo, (ou Marxismo contra
a Psicologia), a uma necessária relação dialética entre o Marxismo e a Psicologia.
Na primeira forma, Psicologia e Marxismo seriam termos excludentes entre si. Nas
propostas psicologistas que desqualificam o Marxismo, há a afirmação da subjetividade como
uma instância isolada das determinações sociais. Já as críticas que separam o Marxismo da
Psicologia incluem tanto críticas provenientes de um marxismo ortodoxo, dogmático e não
dialético. Posição que predominou após a glorificação da reflexologia materialista-mecanicista,
a partir da hegemonia stalinista, após a morte de Lenin22. Há ainda, um outro tipo de crítica que
não concilia o Marxismo e a Psicologia, mas que é muito distinta da crítica stalinista:
Uma tese especialmente importante nesta vertente crítica é a que argumenta a
impossibilidade de diálogo entre Marxismo e Psicologia a partir das análises de Lukács.
Assim, se o marxismo se caracteriza, justamente, por buscar explicar o movimento da
totalidade (LUKÁCS, 1968/2012), então toda e qualquer teoria (seja a Psicologia, seja
a sociologia) que fragmenta a realidade social é uma mistificação da vida
contemporânea. Por isso, argumenta-se que não é possível desenvolver uma Psicologia
Marxista, pois ela necessariamente parte da fragmentação da totalidade (YAMAMOTO,
1987) (Lacerda Jr., 2018, 25).
22
A revolução de 1917 e a derrubada do czarismo autocrático levou Lênin ao poder e isso cooperou bastante com
as pesquisas de vários fisiologistas materialistas russos que antes não foram bem vistos pelos czares que presavam
por uma tradição religiosa e metafísica; indo ao encontro da ideologia socialista, Lênin apoiou pesquisas com
metodologias totalmente materialistas unindo-as com propostas que fortaleceram o marxismo ortodoxo, sendo
construído até mesmo uma cidade conhecida como a Cidade da Ciência (Júnior; Lopes; Cirino, 2015).
80
23
Juan B. Justo foi o responsável pela primeira tradução em espanhol do livro O capital de Marx e esteve associado
a II Internacional, na divulgação do movimento operário e do socialismo.
83
opressor. Contra a violência deste, não há nada mais natural do que a defesa do oprimido pela
via da violência (Fanon, 1968).
Foi, portanto, Cuba quem abriu uma possibilidade inédita para a América, com uma
revolução tão grandiosa quanto a francesa, a russa e a chinesa, consideradas as modestas
dimensões do seu território e a localização geográfica às portas do império americano
(Semeraro, 2009, 129).
Nesse sentido, Löwy (2007) destaca que as ações e o pensamento de Che Guevara, ao
não se alinhar com as burguesias nacionais, iniciou uma nova proposta revolucionária marxista
na América Latina.
Che Guevara propôs um socialismo solidário, prático e de luta social. Sua posição se
contrapôs ao socialismo real soviético e lutou, junto com os camponeses, contra as burguesias
nacionais e o imperialismo. A Revolução Cubana abriu novos caminhos para a América Latina:
Una nueva etapa en el desarrollo del guevarismo –utilizamos este término para definir
la nueva corriente guerrillera después de la muerte de Che Guevara–, caracterizada
particularmente por el desarrollo de movimientos guerrilleros urbanos con considerable
impacto político, tuvo inicio después de 1968. Estos incluían al Movimiento de
Liberación Nacional – Tupamaros (liderado por Raúl Sendic) en Uruguay, el PRT-ERP
(Partido Revolucionario de los Trabajadores - Ejército del Pueblo, liderado por Roberto
Santucho) en Argentina, la ALN (Acción Libertadora Nacional, liderada por Carlos
Marighella) y el MR-8 (Movimiento Revolucionario 8 de Octubre, liderado por el
capitán Carlos Lamarca) en Brasil, y el MIR (liderado por Miguel Enríquez) en Chile.
Aunque tuviesen bases en el campo, esos movimientos eran fundamentalmente urbanos.
Encontraron apoyo significativo en medios estudiantiles e intelectuales y, en menor
grado, en las poblaciones pobres y en ciertos sectores radicalizados de la clase obrera
(Lowy, 2007, p. 50).
Com todo esse percurso histórico sobre o marxismo na América Latina, destacamos dois
pontos centrais: 1) o atraso econômico, social e político vivenciado pelos países da América
Latina não se dá pela permanência do feudalismo, mas a desumanização, a perda da memória
histórica e a desigualdade social da América Latina resulta da colonização e da dependência;
2) é impossível a transformação e a emancipação da América Latina sem ruptura revolucionária
e marcada pelo reformismo por meio do estado burguês.
O marxismo descreveu e criticou a dinâmica de lutas sociais entre classes, desvelando
os planos, as metas e os meios da burguesia como nova classe dominante e opressora.
85
Cada particularidade possui uma especificidade que é identificada pela sua relação
específica com o todo. Sem a categoria da totalidade é impossível apreender o real, pois
ele mesmo é uma totalidade. Sem dúvida, a categoria da totalidade e seu uso não
significa abordar tudo, como alguns ingenuamente pensam. A categoria da totalidade é
uma concepção do real, do total e do particular, sendo um recurso heurístico para
analisar a realidade. Contudo, a própria realidade e seus componentes é uma totalidade
e por isso essa categoria é insubstituível e o real sem ela é incompreensível (Viana,
2018, p. 112-113).
A totalidade não pode ser compreendida sem a fundamental análise da história
enquanto processo. Nesse sentido, a compreensão marxista da história, aborda-a como resultado
da atuação de homens e mulheres para transformar a natureza e as condições materiais reais da
existência. O marxismo identifica a determinação fundamental, o modo de produção capitalista,
constitutivo das relações sociais. Lacerda Jr. (2014) afirma que o marxismo:
1. afirma a radical historicidade da essência humana, isto é, não há qualquer força
natural ou sobrenatural que governe a existência humana; 2. entende que o ser social é
produto da práxis humana, nele, há uma permanente dialética entre objetividade e
subjetividade; 3. analisa a individualidade em sua determinação reflexiva com a
sociabilidade, assim, se o marxismo não cinde a relação indivíduo-sociedade, também
não incorre no erro de identificar os processos de reprodução do indivíduo com os
processos de reprodução social; 4. é “anatomia da sociedade burguesa” que analisa o
seu processo de gênese e de desenvolvimento e; 5. tem como eixo fundamental a
perspectiva revolucionária, isto é, sua análise do presente, tenta prefigurar as distintas
possibilidades históricas de destruição e a superação da sociabilidade burguesa (Konder,
1984,1988; Lessa, 2007; Lukács, 1968, 1979, Marx, 1859; Tertulian, 2004) (Lacerda
Jr., 2014, pp. 32-33).
Por essa perspectiva marxista, há a possibilidade de contribuições do marxismo à
Psicologia Política latino-americana, pois o primeiro contribui para que a Psicologia Política
latino-americana se torne além de crítica, aparato de resistência e de ação ante a exploração e
as opressões.
Por exemplo, Pavón-Cuéllar (2016) nos oferece uma sistematização de algumas
contribuições do marxismo à Psicologia Política, para que ela se torne “coletiva, situada,
histórica, parcial e política, reflexiva e crítica, materialista e dialética, prática e conflitiva,
subversiva, revolucionária e libertadora” (Pavón-Cuéllar, 2016, p. 33 e 34).
87
24
A perspectiva marxista, como afirma Korsch (1977), parte da expressão teórica do movimento operário ao
analisar as bases materiais de uma sociedade de classes, assim, o marxismo não parte da divisão social do trabalho
para regularizar uma sociedade de classes antagônicas.
88
25
A Psicologia da Libertação , criada através das obras de Martín-Baró, busca libertar a América Latina da
dominação estrutural, das injustiças e desigualdades sociais, e procura fomentar processos de libertação a partir de
uma nova Psicologia que parta da necessidade das maiorias populares (Lacerda Jr., 2017; 2018).
89
quantificações pela Psicologia política, mas propõe uma inversão realista: que o problema não
seja definido pelo instrumento, mas sim que o instrumento seja definido a partir do problema
ou fenômeno social.
Com relação à prática, o principal problema seria a falta de posicionamento objetivo-
crítico de muitos pesquisadores com respeito aos fenômenos sociais e políticos da Psicologia
da política. Muitos desses pesquisadores tomam a objetividade científica como sinônimo de
falta de posicionamento sobre dados empíricos.
A assepsia é eticamente inaceitável, mas o compromisso político coloca em perigo a
objetividade do psicólogo. Não se pode confundir objetividade com parcialidade; o
psicólogo pode e, ainda, deve ser parcial, isto é, tomar partido, sem que isso resulte em
redução de sua objetividade. Não se pode permanecer imparcial frente à calúnia
sistemática ou a tortura e diante do maltrato à criança ou da dependência de drogas; mas
não há razão para essa parcialidade reduzir a objetividade, isto é, tornar as elaborações
teóricas e práticas menos adequadas à realidade (Martín-Baró, 1988/2013, p. 564).
Contudo, para que a Psicologia Política vá ao encontro de anseios e necessidades do
continente latino-americano, ela precisa romper com os condicionamentos e limites da
Psicologia. Nesse projeto, Martín-Baró (1988/2013; 1991/2013) defende uma Psicologia
Política que parta, prioritariamente, da realidade da América Latina, ou seja, uma Psicologia
Política latino-americana que enfrente três dilemas principais: ditadura e democracia,
dependência e autonomia regional e, por fim, alienação e identidade histórica.
Sobre a ditadura e a instabilidade democrática, Martín-Baró afirma:
O dilema entre ditadura e democracia, tão patente na história dos países latino-
americanos, não pode ser reduzido à realização periódica de eleições que permitem
definir, por meio do voto, quem dirigirá os poderes executivo e legislativo do país, ainda
que este seja um importante elemento da democracia. O problema dos povos latino-
americanos reside, muito mais, na necessidade de uma democracia social enquanto
fundamento das democracias formais. De outra forma, a democracia converte-se em um
simples instrumento de quem tem poder e os processos eleitorais se tornam nada mais
do que rituais cerimoniais que, no melhor dos casos, revelam qual dos setores
dominantes exercerá a hegemonia. A América Latina, utilizando a, mais que sutil,
distinção de Jeane Kirkpatrick, viveu e continua vivendo sob “democracias” que talvez
não são totalitárias, mas que, certamente, são autoritárias (Martín-Baró,1988/2013, p.
565).
92
No segundo dilema, o psicólogo social destaca a dependência de maior parte dos países
da América Latina aos Estados Unidos contrariando, assim, a soberania nacional. Os países da
América Latina estariam subordinados aos interesses da América do Norte.
Por consequência dessa falta de autonomia há uma alienação frente à identidade
nacional, grupal e pessoal da sociedade latino-americana. Este terceiro dilema está associado
com um “estado produzido nas pessoas por relações sociais que as espoliam e as despojam de
sua humanidade material e psíquica” (Martín-Baró, 1988/2013, p. 567). Em contrapartida,
Martín-Baró (1988/2013;1991/2013) propõe o resgate histórico da existência pessoal e social,
colocando como princípio metodológico da Psicologia Política a necessidade de considerar o
cidadão latino-americano numa mediação entre o macrossocial com o microssocial, ou seja, a
partir de uma elaboração objetiva e estrutural que considere os comportamentos cotidianos e
concretos.
Na lógica de Psicologia Política latino-americana, Martin-Baró (1988/2013) destacou
as limitações e possibilidades da própria Psicologia. O autor enfatiza, nesse sentido, a
impossibilidade de exercer a Psicologia, seja em pesquisa ou profissão, sem influenciar o
sistema sociopolítico onde “querendo ou não, sabendo ou não, a práxis científica e profissional
tem um impacto no equilíbrio de forças sociais e, portanto, favorece interesses sociais diversos”
(Martín-Baró, 1988/2013, p. 567). Torna-se evidente, portanto, a impossibilidade, tanto da
Psicologia como do psicólogo, em não fazer política em sua atuação, pois toda Psicologia é
política, mesmo que esta assuma uma posição de neutralidade e indiferença (Parisí, 2016;
Martín-Baró, 1988/2013).
Martín-Baró (1988/2013) sublinha o compromisso com a verdade. Isso representa a
prudência e a habilidade de uma Psicologia que deve posicionar-se a serviço das maiorias
populares sendo revolucionária sem, ao mesmo tempo, não se deixar cooptar por interesses de
instituições que podem, como exemplo, usar a miséria da população como promoção eleitoral
partidária:
A Psicologia Política latino-americana não pode permanecer no limbo da assepsia
científica e profissional, mas deve partir de uma opção axiológica. Qual será essa opção
é algo discutível. Inicialmente, e de forma muito genérica, cabe dizer que a Psicologia
deve se colocar a serviço das maiorias despossuídas de nossos povos e isso não apenas
por razões éticas ou políticas, mas por razões provenientes da própria psicologia. O
difícil é aplicar este princípio genérico à realidade concreta de cada país. Porque se
colocar a serviço das maiorias significa vincular-se com instâncias e organizações
93
26
Martín-Baró (1985/2017) deixou bem claro a inexistência de uma verdadeira democracia na América Latina,
referindo-se às mesmas como “democracias em regime de segurança nacional”, ou seja, formas de regimes
políticos submissos aos interesses dos Estados Unidos. Martín-Baró (1983/2017) em um artigo sobre as eleições
em El Salvador, considerou o ato de votar como uma ação ideológica indissociável de uma alienação colonial que
sustenta a ordem nacional imposta.
94
pois destacou o antagonismo e a luta de classe a partir de relações sociais concretas conforme
as consequências do capitalismo na América Latina.
95
Considerações finais
27
Entendemos que mundialmente, devido elementos da luta de classes, as classes desapropriadas sempre foram
perseguidas pelos capitalistas burgueses como em 1919, nas ruas da Alemanha, onde foram mortos pelo exército
de Groner e Von Hindenberg milhares de trabalhadores pertencentes a conselhos populares (Schwartz, 1992).
97
Psicologia Política Latino-Americana, engajou-se na luta pelos direitos civis e por uma
democracia que valoriza a emancipação política, cultural e civil.
Ante isso, acrescentamos que há manifestações da Psicologia Política latino-americana
que refletem o pensamento burguês decadente e não conseguem ultrapassar as crises
decorrentes do modo de produção capitalista. Isso porque a Psicologia Política latino-
americana, como qualquer outra disciplina científica, parte da divisão social do trabalho e,
devido isso, aceita e reproduz a racionalidade burguesa por meio de crença nas instituições
burguesas. Desse modo, neste trabalho propomos uma análise da construção histórica e teórica
da Psicologia Política latino-americana, buscando responder como o marxismo pode contribuir
para a Psicologia Política da América Latina.
No capitulo III, expomos algumas contribuições do marxismo à Psicologia Política
latino-americana, no qual apresentamos o marxismo como expressão teórica da classe
trabalhadora e anatomia da sociedade burguesa.
Como sustenta Lacerda Jr. (2010) a crítica marxista vai além dos limites da
racionalidade burguesa e expõe elementos fundamentais para problematizar a sociedade
capitalista com o fim de superá-la, pois tem como força motora dessa crítica e ação de mudança,
a ofensiva da classe trabalhadora como possibilidade de realizar revoluções sociais e
transformar as relações sociais capitalistas.
Sendo assim, num contexto de insurgência contra a ordem dominante e crítica das
instituições burguesas, o marxismo foi apropriado por psicólogos e psicólogas que repensaram
a atuação ideológica da Psicologia e construíram novas propostas teóricas e profissionais a
partir das maiorias populares oprimidas.
Assim, destacamos que o marxismo, ao abordar o modo de produção capitalista e sua
inerente divisão internacional do trabalho, apresenta uma perspectiva histórica, política e social
da América Latina, visto que Marx descreveu toda maldição que caiu sobre a América Centro-
Sul. Dessa forma, é impossível que a Psicologia Política que parte de uma orientação ético-
político-crítica, seja indiferente ao marxismo como campo teórico-metodológico e, sobretudo,
revolucionário.
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