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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

JEFFERSON BASÍLIO CRUZ DA SILVA

“SOU UM NEGRO QUE CORREU PARA A POLÍCIA”


Carlos Magno Nazareth Cerqueira (1937-1999) e o sonho pedagógico de um novo policial

NITERÓI
2020
JEFFERSON BASÍLIO CRUZ DA SILVA

“SOU UM NEGRO QUE CORREU PARA A POLÍCIA”


Carlos Magno Nazareth Cerqueira (1937-1999) e o sonho pedagógico de um novo policial

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em


Educação da Faculdade de Educação da Universidade
Federal Fluminense, como requisito parcial à obtenção do
título de Mestre em Educação.

Campo de confluência: Ciência, Cultura e Educação

Orientador:
Prof. Dr. Everardo Paiva de Andrade

Niterói, RJ
2020
Ficha catalográfica automática - SDC/BCG Gerada com
informações fornecidas pelo autor

S586" Silva, Jefferson Basílio Cruz da


"Sou um negro que correu para a polícia" : Carlos Magno
Nazareth Cerqueira (1937-1999) e o sonho pedagógico de um
novo policial / Jefferson Basílio Cruz da Silva ; Everardo
Paiva de Andrade, orientador. Niterói, 2020.
186 f.
Dissertação (mestrado)-Universidade Federal Fluminense,
Niterói, 2020.

DOI: http://dx.doi.org/10.22409/POSEDUC.2020.m.14224946750

1. Biografia. 2. Educação. 3. Segurança Pública. 4.


Negritude. 5. Produção intelectual. I. Andrade, Everardo
Paiva de, orientador. II. Universidade Federal Fluminense.
Faculdade de Educação. III. Título.

CDD -

Bibliotecária responsável: Thiago Santos de Assis - CRB7/6164


JEFFERSON BASÍLIO CRUZ DA SILVA

“SOU UM NEGRO QUE CORREU PARA A POLÍCIA”


Carlos Magno Nazareth Cerqueira (1937-1999) e o sonho pedagógico de um novo policial

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em


Educação da Faculdade de Educação da Universidade
Federal Fluminense, como requisito parcial à obtenção do
título de Mestre em Educação.

Campo de confluência: Ciência, Cultura e Educação

BANCA EXAMINADORA

________________________________________________________________
Prof. Dr. Everardo Paiva de Andrade – UFF
Orientador

________________________________________________________________
Profa Dra Alessandra Frota Martinez de Schueler – UFF

________________________________________________________________
Profa Dra Ana Paula Barcelos Ribeiro da Silva - UERJ

________________________________________________________________
Profa Dra Warley da Costa – UFRJ

Niterói
2020
Agradecimentos

Sempre e antes de tudo eu vou agradecer à mulher que tem essa força vital tão grande e que
com ela me mostra todos os dias não só a importância de ter me dado a vida, mas também de como
eu devo vivê-la: com toda a verdade que a dignidade pode ter e sem nunca se resignar. Karla, através
de você eu vi que Deus é mãe.
Antes de tudo novamente, é preciso agradecer a quem veio antes de mim. A quem sempre
reivindicou o papel fundamental da ciência enquanto vetor da nossa soberania nacional, bem como
da importância do pensamento crítico como um valor soberano da sociedade. Foram eles e elas que
conquistaram depois de anos de luta políticas públicas de fomento à pesquisa, bem como da expansão
universitária a qual eu, então aluno da escola pública, fui um dos beneficiados ao ingressar na
Universidade Federal Fluminense em 2011. Não cheguei até aqui sozinho, por isso agradeço a quem
proporcionou tais mudanças para eu estar aqui. Nesse espaço em disputa, espero que ele possa
continuar a ser ocupado.
Eu também não teria chegado aqui se não estivesse cercado dos meus. Às minhas amizades:
quando eu penso em vocês a lembrança primeira é a do meu aniversário no karaokê “astros e estrelas”
do Manoel (que eu vou deixar essa menção honrosa aqui pois foi um local importante para afogar as
mágoas e renovar energias cantando Revelação e Pearl Jam, recomendo a visita para quem estiver
lendo esta dissertação). Bem no meio da escrita deste trabalho, no olho do furacão acadêmico e do
Brasil vocês, com a simples presença e um pouco de afinação me moveram com uma potência que
fora um impulso fundamental para a metade final. Obrigado por me proporcionarem este e tantos
outros momentos felizes!
Ainda sobre amigos, alguns ficaram levemente revoltados por não terem sido citados
nominalmente nos agradecimentos da monografia, quando eu fiz uma menção generalizante. Não
estão errados! Vou tentar me redimir dessa vez: Renatinha, Ivys, Rayssa, Paco, Beatriz, Bella,
Mohamed, Elisa, Wagner, Mayra, Lenon, Danilo, Digão, Jansen, Débora, Robinho, Guilherme,
Gabriela, Evelyn, Isadora, Mariana, Rafael e Raphael, Filipe e, por fim, Clarisse, com quem eu divido
a dor e a delícia de ser vascaíno (no momento mais dor mesmo). Vocês são de tempos e espaços
diferentes, alguns nem se conhecem, mas todos têm em comum serem ao mesmo tempo de uma
grandeza e não tão sérios! Ainda bem, pois é preciso leveza.
E se o mestrado por si só pode ser considerado o oposto de leveza, não posso deixar de
agradecer a quem eu conheci no campo da Pós-Graduação em Educação e ajudou a torná-lo menos
pesado. Fui muito bem acolhido por todos os funcionários e funcionárias, sem exceção. Agradeço às
professoras Zuleide, Jacqueline, Mariana e Maria de Fátima que ministraram as disciplinas que
ingressei no meu primeiro ano por compartilhar seus saberes com este forasteiro vindo da História.
Da mesma forma, agradeço a quem passou comigo por este momento, seja na sala, seja na Cantareira:
Virgínia, Bruno, Júlio, Lívia e Juliana, obrigado pelas conversas, as vezes regada a café, as vezes a
cerveja. Aqui deixo um agradecimento especial ao Franco, sempre tão atencioso e disposto a ajudar
este sujeito de humanas com os meandros da burocracia.
Também sou grato pela acolhida no grupo de pesquisa CDC, um espaço de muito conforto e
ternura que só poderia ter como um dos participantes a própria personificação do afeto: meu
orientador, Everardo. Professor, ao longo desses dois anos o senhor foi tão significativo no meu
percurso acadêmico quanto pessoal, pois, mais do que ensinar-me sobre Goodson e Certeau, sua firme
serenidade e alegria nesses tempos foram um aprendizado para a vida inteira. Obrigado por tanto e
desculpa qualquer coisa.
Resumo

Este trabalho propõe-se a estudar um personagem: Carlos Magno Nazareth Cerqueira (1937-1999).
Policial, intelectual, formado em filosofia e psicologia, um dos pioneiros na formulação do
policiamento comunitário no Brasil e primeiro Comandante-Geral negro da história da corporação,
sendo um dos raros quadros da própria polícia e não do Exército a assumir o comando da Polícia
Militar do Estado do Rio de Janeiro até então, em 1983. Ao lado dessas caracterizações pretende-se
acrescentar mais uma: a de educador. Baseando-se na metodologia biográfica e no jogo de escalas,
objetiva-se demonstrar como a dimensão intelectual do coronel fora articulada em diversos momentos
com uma intencionalidade própria do discurso pedagógico, no sentido de alterar os parâmetros de
uma formação policial a qual ele não via sentido. De uma formação dentro de uma mentalidade
repressiva e guerreira baseada em uma noção de força, Cerqueira procurou fundamentalmente
transformar a formação baseada numa ideia de serviço, de forma preventiva e em diálogo com a
comunidade. Além disso, a produção de material didático, como manuais, cartilhas, revistas e os
cadernos de polícia, a alteração nos currículos da formação de oficiais e praças, o investimento em
uma editora própria da polícia, bem como da biblioteca, a tentativa de mudança na relação ensino-
aprendizagem e a experiência do policiamento comunitário em si enquanto duplo eixo formador na
relação entre polícia e comunidade são elementos que ao meu ver possibilitem uma interpretação de
Cerqueira enquanto um educador não só perante a polícia, mas também diante da sociedade civil.
Nesse sentido, no período dos seus comandos, o contexto de possibilidade (1983-1987) e
consolidação (1991-1994) democrática é o atravessamento formativo nesta relação entre polícia e
sociedade visto por Cerqueira como propício para a implementação de suas propostas. O ex
comandante fora Secretário de Polícia Militar em um governo de orientações progressistas e
comprometido com pautas caras às mulheres, à população negra e aos povos indígenas, no caso, o
Partido Democrático Trabalhista do governador Leonel Brizola. Interpreto que esse contato fora uma
inflexão no pensamento de Cerqueira para a polícia que tivera reverberações em seus comandos, em
especial no segundo. Mais do que isso, porém, as demandas de um gestor público em um governo
atento a grupos como o já mencionado movimento negro e que tinha integrantes nos quadros do
mandato levara Cerqueira a um movimento de reavaliação de valores identitários próprios, como a
ressignificação do racismo sofrido e da afirmação de sua negritude. Assim, tal dimensão e politização
convergem em efeitos tanto pessoais quanto nas suas diretrizes para a polícia, em que isso fica nítido
ao meu ver no segundo comando. A despeito de seus esforços para uma nova polícia e um novo
policial serem a história de um fracasso, parafraseando o mesmo, e com o final do segundo comando
ganhando tons de dramaticidade, Cerqueira mantivera-se ativo após sua experiência no governo
pedetista. Cada vez mais amadurecido intelectual e politicamente, e mantendo-se preocupado com a
formação policial, sua vida é interrompida tragicamente por um assassinato de circunstâncias mal
resolvidas até o momento que escrevo.

Palavras-chave: Biografia, negritude, educação, segurança pública, democracia


Abstract

This work proposes to study one character: Carlos Magno Nazareth Cerqueira (1937-1999). Police
officer, intellectual, philosophy and psychology graduate, one of the pioneers in the formulation of
community policing in Brazil, and the first black Commander-General in the history of the
corporation, being one of the rare officials of the police rather than the army to take command of the
Military Police of Rio de Janeiro State until then, in 1983. Alongside these characterizations I intend
to add one more: educator. Based on biographical methodology and on the game of scales, the
objective is to show how the colonel’s intellectual depth was articulated with an intentionality
particular to the pedagogical discourse in various moments, in an effort of changing the parameters
of a police training that he considered senseless. Coming from a training with strength-based, warlike
and repressive mentality, Cerqueira sought to fundamentally transform the police training, basing it
in an idea of serving, working preventively and communicating with the community. Besides, the
production of courseware, such as manuals, booklets, magazines and police journals, the change in
the training curriculum of officers and enlisted personnel, the investment in a publisher for the police
as well as a library, the effort to change the relationship between teaching and learning, and the
experience of community policing being in itself a double axis in the relationship between the police
and the community are the elements that enable my interpretation of Cerqueira as an educator not
only before the police, but also before the civil society. In this sense, during his command, the context
of democratic possibility (1983-1987) and consolidation (1991-1994) is the formative path in this
relationship between police and society, seen by Cerqueira as favorable to the implementation of his
proposals. The former commander was a Military Police Secretary in a government of progressive
orientation and committed to policies dear to the women, to the black population and to the indigenous
peoples, as was the case of the Worker’s Democrat Party (PDT) of governor Leonel Brizola. I
understand that this contact was an inflection in the thought that Cerqueira had for the police that had
reverberations in his tenures, especially the second. More than that, however, the demands of a public
manager in a government that was alert to groups like the previously mentioned black movement and
that had constituents in his tenure led Cerqueira to a movement of reevaluation of his own identity
values, such as the resignification of the racism he suffered and the affirmation of his blackness. Thus,
said dimension and politization converge in personal as well as police directive effects, which I
understand becomes clearer in his second command. Despite his efforts to make a new police and a
new police officer turning out a failure story, paraphrasing his words, and with a dramatic ending to
his second tenure, Cerqueira remained active after his experience in the PDT government. Having
intellectually and politically matured, and having remained worried with the police training, his life
was tragically ended by an assassination of circumstances uncertain until this writing.

Keywords: Biography, blackness, education, public security, democracy


Sumário

INTRODUÇÃO...............................................................................................................................................10

CAPÍTULO 1: BIOGRAFIA E BIOGRAFRIAS: LEVANTAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS E


DE MULTIPLICIDADES PERCEBIDAS SOBRE NAZARETH CERQUEIRA POR OUTROS
AUTORES.......................................................................................................................................................20
1.1 A biografia e o indivíduo no tempo: as escalas em debate........................................................................20
1.2 Cerqueira e a alma no exílio, por Íbis Silva..............................................................................................29
1.3 - Militarismo e democracia: um intelectual inquieto e suas contradições, por Bruno Marques...............35

CAPÍTULO 2: ENTRE A RUA PEQUENA E O TORNAR-SE NEGRO – POLÍCIA, RACISMO E


NEGRITUDE EM UM NAZARETH CERQUEIRA PELOS VERSOS........................................................48
2.1 - Depoimentos para a posteridade: contextualização................................................................................48
2.2 - Olaria e a rua pequena: o início..............................................................................................................50
2.3 - A educação como bem supremo em um país de racismo estrutural........................................................53
2.4 - “Tá vendo, o senhor não disse que não tinha problema?” – O ingresso na polícia................................60
2.5 - Tornar-se negro ou uma pedagogia da negritude: um processo formativo.............................................68

CAPÍTULO 3: “NA MINHA FORMAÇÃO EU NÃO ENTENDIA MUITAS COISAS” – O OFICIAL


CERQUEIRA CRIANDO SEU ESPAÇO....................................................................................................80
3.1 Entre a tática e a estratégia......................................................................................................................80
3.2 O aprofundamento da formação militarista em tempos embrutecidos...................................................87
3.3 Inventário e crítica nos primeiros textos sobre polícia...........................................................................94

CAPÍTULO 4: DE MILITAR A SERVIDOR – O PRIMEIRO COMANDO E A TENTATIVA DE


RECONSTRUÇÃO NA FORMAÇÃO POLICIAL.....................................................................................106
4.1 O ciclo de políticas e sua relação com os comandos - uma introdução..................................................106
4.2 Contexto de influência ou “quando a água subiu a barragem” ..............................................................107
4.3 Reeducando a PM e além – a produção do texto.....................................................................................113
4.4 Um debate sobre discurso a partir da campanha “O Rio contra o crime” e o plano diretor da PMERJ..122
4.5 Contexto da prática: a aplicação de “um saber crítico, menos dogmático” ............................................133

CAPÍTULO 5:” A “GUERRA CONTRA O CRIME” NÃO PODE SER UMA GUERRA CONTRA AS
CLASSES MAIS HUMILDES” - SEGUNDO COMANDO, APROFUNDADO E TRIPLAMENTE
FERIDO.......................................................................................................................................................142
5.1 Contexto de influência: Retornos e acirramentos..................................................................................142
5.2 Contexto de produção do texto: quando as rupturas se aprofundam.....................................................144
5.3 Contexto da prática: a polícia na escola e a escola na polícia...............................................................149
5.4 Copacabana, 1994: o duplo eixo formador em ação..............................................................................158
5.5 Dificuldades e resistências: o pêndulo...................................................................................................162

CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................................................172
FONTES.......................................................................................................................................................178
BIBLIOGRAFIA..........................................................................................................................................182
Introdução

Se o campo epistemológico da educação é marcado por sua heterogeneidade de saberes, esta


é uma obra que também se localiza na fronteira. Entre a educação, a história e a segurança pública, o
trabalho possui como vórtice um personagem: Carlos Magno Nazareth Cerqueira (1937-1999),
primeiro Comandante-Geral negro da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro e Secretário de
Polícia Militar nos dois mandatos do governo estadual de Leonel Brizola no estado (1983-1987 e
1991-1994). Se em um primeiro momento tal descrição dá sentido a trabalhos possíveis nas duas
últimas áreas, no campo da educação pode causar estranheza. Seria sandice?
Durante as famigeradas crises de um mestrando e seus descaminhos na pesquisa também
pensei que sim. Escrever sobre um personagem significa -a despeito do distanciamento exigido por
um trabalho de cunho acadêmico e que se pretende científico- uma inevitável aproximação. Quando
o pesquisador se identifica com certos valores defendidos pelo seu objeto, maior ainda. Não considero
isto necessariamente um problema pois a alegação de imparcialidade e/ou ausência de ideologia em
qualquer trabalho são mitos mobilizados por ingenuidade ou interesses inconfessáveis. Esta obra,
pautando-se por metodologia, contraposição de fontes e referencial teórico não deixa de ter um
posicionamento, embora acredito que não esteja visível de forma demasiada ou forçosa.
Contudo, o problema consiste, sim, em a aproximação ser tal que o argumento pensado para
o seu trabalho se justifica mais no “crer para ver” do que no “ver para crer”, forçando uma
interpretação para o seu objeto que não encontra sentido para quem lê. Algumas vezes no início da
pesquisa questionei-me sobre isso. Porém, ao entrar em um contato mais profundo com as fontes
disponíveis, minha angústia fora se dissipando e dando lugar a desdobramentos imprevisíveis que
abordarei mais à frente. De qualquer forma, agora este trabalho é uma jangada que foi para o mar.
Espero que contribua, seja criticado e, principalmente, desperte um interesse maior pela temática e
por este personagem.
Mas afinal, por que um estudo no campo da educação? A ideia remonta a um desdobramento
do meu trabalho monográfico durante a graduação em história, que não deixou de ser também um
desdobramento da ideia inicial para tal. Vendo-me cada vez mais imerso no campo do Brasil
contemporâneo, em especial no período de transição entre a ditadura e a democracia (fronteiras...)
interessava-me compreender as rupturas e continuidades, visto que uma demarcação institucional de
um processo político está desacompanhada das dinâmicas próprias da sociedade, suas crenças e
ideologias.
Nesse sentido, o plano inicial era trabalhar em torno do primeiro governo de Leonel Brizola
no estado do Rio de Janeiro, por suas peculiaridades. Considerado inimigo número um do regime
militar, Brizola retorna do exílio e se torna, nas eleições estaduais, o único governador fora de um

10
partido do eixo situação-oposição (Aliança Renovadora Nacional, a ARENA e o Partido do
Movimento Democrático Brasileiro, PMDB) a ser eleito, vindo pelo Partido Democrático Trabalhista,
o PDT.
Uma certa memória peculiar da infância me atraía por tal personagem. Morto em 2004, minhas
memórias do gaúcho são poucas e vão até o início da adolescência quando, logo que aparecia na TV
ele já era chamado de maluco e velho senil pelo meu entorno. Eu, sem nenhuma ideia de quem era
aquele senhor, não entendia os ataques. Olhando em retrospecto, e provavelmente sendo esta uma
memória retrabalhada pela minha aproximação com o personagem ao longo da vida, a lembrança é
de uma certa curiosidade com aquele velhinho de olhos ainda empedernidos e que parecia bastante
lúcido para mim. Ao longo da vida minha curiosidade fora aumentando pois era inquietante ver pelas
pessoas o sentimento por um personagem raramente ter meio termo.
Tais memórias se reencontram no meu projeto de pesquisa para a monografia. O contexto
tratou de finalizar a escolha do tema, pois os debates em torno de um modelo repressivo na segurança
pública, se nunca deixaram de cessar completamente, estavam cada vez mais efervescentes nas redes
sociais e nos programas policialescos. Não à toa tal temática fora decisiva nas eleições de 2018, em
especial no estado do Rio de Janeiro.
Assim se deu a escolha do recorte temático: a política de segurança pública no primeiro
governo Brizola. A ideia principalmente era realizar uma análise de discurso de Brizola com relação
à opinião pública, debruçando-se em especial sobre os jornais enquanto arena desse campo de
disputas. Realizando o levantamento inicial de fontes, o desdobramento: Cerqueira aparece. O jovem
pobre que queria ser padre, professor, mas não policial porque não entendia “a guerra, morte, ter que
matar1” e que escrevia poesia quando se sentia triste. Mas que fora policial pela oportunidade de
ajudar a família financeiramente e que ouviu do pai de que na polícia “não tinha discriminação racial”2.
Um oficial que logo viu que o pai estava errado e que “não entendia muitas coisas” 3 sobre a
sua formação que pouco tinha a ver com o fazer policial específico das ruas. E que, em certo momento,
não se conformou: “Ou eu saio dessa polícia ou eu tenho que abrir espaço para mim dentro da
polícia.”4. E que saiu mas não saiu, pois fora procurar conhecimento fora dos muros da corporação e
fora do que geralmente se busca fora dos muros. Por um “lado místico”, Cerqueira formou-se em
filosofia pela então Universidade do Estado da Guanabara, hoje UERJ. Algo diferente do que seria o
comum no mundo policial, a graduação em direito. Posteriormente se formaria em psicologia pela
Universidade Gama Filho.

1
CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Carlos Magno Nazareth Cerqueira: depoimento [jul.1988]. Entrevistadores:
Airton da Silva Rabello, João Marcos Aurore Romão, Yvonne Maggie. Rio de Janeiro: MIS-RJ, 1988, 4 cds. Entrevista
concedida ao Projeto 100 anos da abolição: depoimentos para a posteridade.
2
Ibid.
3
Ibid.
4
Ibid.
11
Um comandante negro defensor de uma transformação na corporação pautada por uma
atuação que respeitasse os direitos humanos e fosse sobretudo preventiva e dialógica com a
comunidade. E se tivesse que reprimir que o fizesse sem distinção de cor e classe. Um comandante
que confrontou o general do Comando Militar do Leste - veremos mais à frente sobre as relações
históricas e imbricadas entre polícia e exército - que tentou impedir o comício das Diretas Já em 1984
e foi em frente com a organização da manifestação. Um comandante que não viu nenhum problema
em levar o funkeiro Rômulo Costa para o quartel conversar com os policiais sobre o fenômeno do
funk nos anos 90. Um ex-comandante que fora assassinado em um crime de circunstâncias não
resolvidas até o momento em que escrevo, mais de vinte anos depois.
Sentia-me intrigado em conhecer mais sobre ele, bem como um certo compromisso em trazer
novamente este personagem ao cenário para não cair na invisibilidade. Contudo, ao pesquisá-lo
descobri, ainda bem, que eu não era o único interessado em sua história naquele momento. No mesmo
ano em que começara a escrever descobri que uma tese e uma dissertação de cunho biográfico sobre
o coronel estavam em vias de finalização. Cerqueira enquanto um dos protagonistas do campo da
segurança pública nos anos 80 e 90 está presente em diversos trabalhos dessa temática. Entretanto,
trabalhos inteiros que o tenham como centro são poucos. Eles serão abordados ao longo desta
dissertação. De antemão, entretanto, vale deixar aqui o reconhecimento para os trabalhos de Íbis Silva
Pereira e Bruno Marques Silva por me proporcionarem caminhos, tanto teóricos quanto de fontes
levantadas, para construir esta obra.
Enfim, o trabalho ganhou um caminho diverso. De mera curiosidade Cerqueira passa a ser o
fio condutor da monografia, analisando seu percurso até o primeiro comando. Aqui, como um
trabalho vindo do campo historiográfico, a proposta fora de relacionar o micro com o macro, ou sua
atuação neste momento em relação ao período de transição democrática vivido em suas
imprevisibilidades. Buscava discutir como a proposta de uma polícia democrática elaborada por
Cerqueira e sua cúpula não deixava de dialogar propositalmente com o contexto. E como as
resistências encontradas tanto no meio policial como na sociedade não deixavam também de dizer
sobre tal cenário, a partir das marcas deixadas pela ditadura e que continuam a existir. Ao mesmo
tempo, achei que não poderia deixar de escrever sobre a sua negritude, algo que retomo neste trabalho.
Uma nova polícia. Assim, no percurso da monografia e visitando as fontes que envolviam
Cerqueira, a percepção era de alguém que buscava tal transformação na corporação, tanto na estrutura,
estudando modelos administrativos que modernizassem a polícia, quanto no policial. Percebia uma
preocupação com a formação policial, com esse novo policial que de forma dialética geraria uma
nova polícia. Uma fala sua me chamou a atenção nesse sentido:

Era tentar ver se a gente explodia a corporação e transformava a polícia velha em uma polícia
nova, mas como? Através do ensino. Então o esforço meu foi melhorar ensino, as escolas,
então a gente realizava debate pra mexer com isso. Mas eu sabia que seria muito difícil, tanto

12
que quando mudou a orientação isso aflorou.5

Outros relatos, tanto de Cerqueira quanto de pessoas que trabalharam com ele apontavam para
este olhar em torno da formação policial. Durante a escrita da monografia, entretanto, o foco era outro
e preferi deixar esta faceta em segundo plano. Após a conclusão, sentindo que ainda existia “pano pra
manga”, decidi retomar a ideia inicial, a partir de uma pergunta que era ao mesmo tempo o fio
condutor e o problema da pesquisa: poderia Cerqueira ser considerado um educador da polícia? A
partir dela, os desdobramentos: quais seriam os limites de tal interpretação? Como não cair em uma
banalização do termo em uma visão que poderia soar forçosa? Qual metodologia deveria ser
considerada para tal análise? Qual a disponibilidade de dados que sustentem tal hipótese?
Foi lendo a tese de Bruno Marques, porém, que tomei o impulso necessário para me dedicar
à elaboração do projeto. A obra trabalha enquanto uma “biografia intelectual” de Cerqueira,
levantando sua extensa produção bibliográfica ao longo de sua vida sobre os mais diversos temas
relacionados à segurança pública como textos de polícia, violência, corrupção, criminologia, bem
como sua contribuição para a vertente da criminologia crítica. Seu trabalho é robusto e já pode ser
considerado ao meu ver uma referência obrigatória para quem deseja conhecer mais a fundo ou
realizar algum trabalho sobre o ex-comandante.
Particularmente ele fora o estalo necessário para tornar concreta minha ideia. Tal impulso,
contudo, não deixou de ser receoso, visto que me inquietava saber o limite entre inspiração e mera
reprodução da obra. Foi uma preocupação constante deste trabalho buscar sua identidade própria sem
deixar de referenciar obras anteriores e espero ter alcançado isso. Durante a pesquisa e produção do
texto tal inquietude fora se assentando, pois, se muitas vezes esbarramos nas mesmas fontes, creio
que cada um olhou da sua forma para tais.
No que toca aos referenciais teóricos, Cipriano Carlos Luckesi me ajudou a ver como as
dimensões da filosofia e da educação são indissociáveis. Afinal, toda concepção pedagógica pautada
pela sua intencionalidade na formação dentro de um propósito de manutenção ou transformação social
parte de uma filosofia. Assim, filosofia e educação se interrelacionam, “Uma como interpretação
teórica das aspirações, desejos e anseios de um grupo humano, a outra como instrumento de
veiculação dessa interpretação” (1991, p.32).
Assim, acredito que Cerqueira era tão filósofo quanto pedagogo. Isto porque sua produção de
conhecimento trabalha numa dimensão dupla: ele, sim, busca inventariar, criticar e formar um campo
de conhecimento próprio em torno de saberes policiais de uma forma acadêmica. Ao mesmo tempo,
sua produção, muito pela preocupação com a defasagem dos saberes e fazeres policiais com relação
a outras polícias do mundo, tinha uma intencionalidade clara em servir de instrumento para formação
de outros policiais, não só da corporação em que ele atua.

5
CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Carlos Magno Nazareth Cerqueira: depoimento [jul.1988] Op. Cit.
13
Nesse sentido, e pensando no processo educativo como atuante em três elementos “um agente,
que está na origem da ação educativa, um modo de atuação (conteúdo/método) e um destinatário
(indivíduo, grupo, geração)” (LIBÂNEO, 2010, p.84) interpreto Cerqueira como agente, o fazer
policial em sua especificidade dentro dos marcos democráticas e humanistas como o modo de atuação
e a corporação como o destinatário. Entretanto, a pergunta se faz necessária: qual o conceito de
educação mobilizado?
Afinal, a despeito de um imaginário acerca da educação enquanto algo etéreo e tão mobilizado
pelo senso comum, sua conceituação é ramificada em diversas vertentes. Não só dentro dos quadros
de concepções teóricas (concepção naturalista, pragmática, interacionista, crítica, pós-moderna, etc.)
como no seu modo de atuação (não-intencional e intencional, formal, informal ou não-formal). Visto
que a educação, em seu sentido amplo pode ser entendido como algo que “compreende o conjunto
dos processos formativos que ocorrem no meio social, sejam eles intencionais ou não-intencionais,
sistematizados ou não, institucionalizados ou não” (p.81). Praticamente todos os meios em que o
indivíduo atua podem ser “educativos”, no sentido de influenciarem no processo formativo da sua
vida, na sua compreensão de experiências e conhecimentos.
Entretanto, um modelo organizado, dirigido com uma certa finalidade é o que caracteriza a
educação intencional. Acredito que Cerqueira, a partir de experiências na sua vida que envolvem
tanto uma educação não-intencional quanto intencional tenha tomado a resolução de atuar por um
discurso dotado de intencionalidade que tivesse influência decisiva no policial. E aqui interpreto tal
atuação bastante próxima do referencial histórico-social, a qual concebe a educação enquanto marca
de um quadro social e um processo histórico próprios, de forma crítica a modelos estáticos e
naturalistas da mesma.
Com o objetivo de articular à polícia dentro dos marcos democráticos possíveis (primeiro
comando) e vigentes (segundo) em ruptura com uma concepção militarizada de segurança pública,
Cerqueira desejava responder às demandas do tempo de forma crítica a um modelo vigente que ele
não via sentido. Assim, o então comandante visava um novo policial que estivesse em sintonia com
o período, que fosse reflexivo sobre sua atuação, dialógico com a comunidade na mediação de
conflitos e que se pautasse pela prevenção em detrimento da repressão, esta sendo utilizada apenas
em último caso. Nesse sentido, veremos ao longo dos capítulos a produção de tal discurso e sua
intencionalidade, bem como suas medidas para a formação desse novo policial tanto nos meios não-
formais, informais e formais de educação. Também veremos seus limites e contradições na sua
proposta.
Contudo, no desenrolar do trabalho, percebi que a concepção de segurança pública formulada
por Cerqueira e seu núcleo envolvia uma ampla participação da sociedade civil para dar certo, seja
dando um voto de confiança em uma proposta nova e que demandaria tempo e apoio para ser
construída e consolidada, o que envolvia medidas de melhora da imagem da corporação perante o
14
público, seja sendo uma colaboradora da polícia na elaboração de soluções em conjunto através das
propostas envolvendo policiamento comunitário.
Nesse sentido, interpreto que o ex-comandante, além de ser um pedagogo da polícia era um
educador dos direitos humanos para a sociedade civil, em que o policiamento comunitário seria o
produto final enquanto duplo eixo formador, tanto do policial quanto do cidadão inseridos numa nova
lógica de segurança pública. Se para a polícia e a sociedade Cerqueira adotava um discurso
intencional para uma reeducação acerca da segurança pública nos moldes humanitários em ruptura
com a herança da ditadura civil-militar, nos atentaremos principalmente para o primeiro eixo. É nele,
evidentemente, que se concentram as maiores ações do coronel, visto que este era o campo mais ao
seu alcance.
A partir da ideia elaborada sobre este novo policial, tanto para o praça na sua atuação das ruas
quanto para o oficial em sua atribuição de comando, veremos medidas que compuseram tal universo
formativo. Elas atravessam tanto a produção de material didático (cadernos, manuais, revistas), bem
como a produção de literatura específica, os diálogos com o meio acadêmico, os incentivos ao
intercâmbio, as políticas curriculares e a tentativa de mudança no processo de ensino-aprendizagem,
muito pautada na relação teoria e prática e que desse um papel mais ativo ao aluno. Como a formação
policial envolve uma atenção permanente às práticas, negociações e o fazer autônomo das ruas,
também abordarei algumas mudanças de diretrizes voltadas para o campo da mediação de conflitos,
bem como uma análise das medidas realizadas, principalmente as iniciativas que envolvam o
policiamento comunitário.
Como mencionado, meu contato inicial com tal dimensão educativa de Cerqueira se deu
durante a escrita da monografia. Ele fora muito incipiente, a partir da leitura de relatos de outros
policiais sobre o comando, bem como do próprio Cerqueira em análises retrospectivas. Para um
trabalho de fôlego maior como este tornava-se imperativo uma coleta de dados mais robusta. Uma
pesquisa inicial na internet sobre o ex-comandante pode ser frustrante para os interessados em sua
vida, pois, a despeito da produção acadêmica nessa década sobre o coronel estar disponível
publicamente, são poucas as informações encontradas.
Em contrapartida, não é pequeno o número de fontes documentais e bibliográficas (muitas
produzidas pelo próprio Cerqueira) que podem ser encontradas no seu acervo. Ele encontra-se
disponível no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ). O acervo do coronel Cerqueira
é dividido em 39 caixas contendo os mais diversos documentos como livros, revistas, ofícios, e-mails
impressos, recortes de jornais, relatórios de gestão, pesquisas encomendadas, cadernos de anotações.
Sua contribuição fora imensa para esta pesquisa pois muitas dessas fontes foram analisadas aqui,
dentro dos limites possíveis de uma dissertação.
Uma fonte em especial merece destaque: seu manuscrito para a entrevista dada ao Museu da
Imagem e do Som em 1988. O ano não é gratuito, visto que se completavam cem anos da abolição
15
formal da escravidão. O projeto, de nome “depoimentos para a posteridade”, reunia negros e negras
com destaque na opinião pública e naquele período teve o depoimento de Cerqueira, primeiro
comandante negro da história da corporação nos seus então 174 anos. O relato está disponível na sede
do MIS para quem quiser ouvir e é riquíssimo. De cunho autobiográfico, sua fala aborda diversas
passagens da sua vida pessoal, em que ele recorda passagens que vão da sua infância em Olaria, da
sua formação policial até a experiência com o primeiro comando. Tal fora a dimensão destas fontes e
a articulação entre o manuscrito e o depoimento que eles ganham um capítulo próprio, como abordarei
mais à frente.
Entretanto, nem tudo são flores. Ainda sobre as fontes, achei que seria importante uma visita
aos arquivos da polícia militar, assim como na Academia de Polícia Dom João VI (a escola de
formação de oficiais) e o Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças para saber da
disponibilidade de fontes. Visava por exemplo a possiblidade de uma análise comparativa entre as
grades curriculares de períodos antes do comando de Cerqueira e durante. Não obtive sucesso. Após
contatos por e-mail e telefone sem sucesso, fui às sedes físicas. A despeito de ser bem recebido tanto
no museu da PMERJ no centro da cidade quanto nas escolas de polícia em Sulacap, minhas tentativas
fracassaram.
No primeiro caso, após explicar minhas motivações, o policial, muito simpático e que
inclusive me proporcionou uma visita guiada pelo museu, tratou de me fornecer um e-mail (que eu já
tinha obtido e enviado) e de garantir o retorno (não retornou). No caso da escola de polícia, após uma
reunião com o oficial responsável pela Academia de Polícia, fui informado que devia enviar uma
solicitação para um e-mail diferente do que eu havia enviado anteriormente. Enviei uma solicitação
de caráter formal acerca do tema da pesquisa e de quais fontes gostaria de pesquisar. Contudo, também
não obtive retorno. Também contei com uma dose de azar pois no período em que fui à Academia de
Polícia a sua biblioteca se encontrava em obras.
Assim, tendo o acervo do coronel e o depoimento ao MIS como os eixos centrais dessa
pesquisa de cunho qualitativo e considerando-os como suficientes para os limites de uma dissertação,
abdiquei de insistir em mais visitas aos quarteis, reorientando a complementação do trabalho a partir
de outras fontes. Para tal, investi nas edições do Jornal O Globo no período dos comandos a partir da
busca por palavras-chave, visto que seu viés predominantemente crítico aos governos Brizola, em
especial o segundo, poderia servir enquanto um outro ponto de vista sobre os comandos. Em menor
número também foram pesquisadas edições do Jornal do Brasil, principalmente nas eleições de 1982
pois a cobertura ao candidato brizolista fora maior que a do jornal de Roberto Marinho.
Além disso também investiguei edições digitalizadas dos Boletins da PM, espécie de “diário
oficial” da corporação e contidas num blog encontrado já na fase final da coleta de dados, momento
em que, dado o tempo exíguo restante, não foi possível analisar todos os boletins em sua extensão.
Nesse sentido, orientei-me tanto pelos primeiros meses dos comandos, referenciando-me pelo
16
“contexto de produção de texto”, de Stephen Ball quanto pelas edições importantes encontradas por
outros autores, como o próprio Bruno Marques.
Este não é um trabalho de história oral, entretanto, uma forma de complementação importante
foi o levantamento de depoimentos de policiais que atuaram no período, assim como de indivíduos
de outras áreas que trabalharam com Cerqueira. Duas fontes fundamentais nesse sentido são os livros
“O futuro de uma ilusão: o sonho de uma nova polícia” e “Sonho de uma polícia cidadã: Carlos
Magno Nazareth Cerqueira”. São obras produzidas em contextos diferentes, mas de teor semelhante:
uma forma de homenagear o coronel a partir da sua memória.
O primeiro é de 2001 enquanto livro póstumo da coleção “polícia amanhã”, organizado pelo
Instituto Carioca de Criminologia. O projeto tinha Cerqueira – vice-presidente do ICC- à frente e
previa um compilado de 12 obras sobre temas envolvendo a polícia e sua atuação numa sociedade
democrática. Reunindo textos de um corpo heterogêneo de autores, a coleção fora interrompida
abruptamente com o assassinato de Cerqueira em 1999. Até sua morte, foram lançados cinco livros,
em que o sexto transformou-se num compilado de textos do próprio Cerqueira.
Assim, temos desde o seu depoimento em 1983 à Comissão Parlamentar de Inquérito
instaurada pela Assembleia Legislativa do Estado para tratar das “causas da violência urbana” até
textos em retrospectiva sobre os dois comandos. Na metade inicial do livro temos textos em
homenagem ao coronel como poesias, um relato de Nilo Batista sobre o contato com Cerqueira, uma
entrevista com o mesmo e um que talvez possa ser considerado o primeiro texto biográfico sobre
Cerqueira, de autoria de Sylvia Moretzshon.
O segundo livro é de 2010, um projeto em conjunto do Núcleo de Identidade Brasileira e
História Contemporânea da UERJ com PMERJ, tendo como organizadores Ana Beatriz Leal, então
coordenadora do Núcleo de Assuntos Estratégicos da Polícia Civil, o historiador Oswaldo Munteal
Filho e o então Coronel Íbis Silva Pereira. Aqui o contexto envolvia o projeto de lançamento de um
livro em comemoração aos 200 anos da PMERJ, em que a escolha de Cerqueira “surgiu naturalmente,
porque ele foi o precursor dos direitos humanos na polícia, um grande intelectual.”. Nesse sentido,
esta obra o entende enquanto um “intelectual humanista”, relacionando ao referencial teórico de
Edward Said. Abordaremos tal caráter no primeiro capítulo.
Esta obra pode ser considerada um ponto de partida interessante para quem deseja se interessar
mais profundamente pela biografia do coronel. A despeito deste e do livro anterior terem
assumidamente um caráter de homenagem, afastando-se de um tom mais crítico sobre a trajetória do
coronel, tais fontes contém informações muito pertinentes sobre sua vida e carreira na polícia, bem
como pode nos ajudar a compreender suas ideias pela quantidade de escritos reunidos.
Assim como o livro de 2001, este também fora dividido em duas partes, A primeira contém
entrevistas com policiais e colaboradores do Coronel, como o próprio Nilo Batista. A segunda reúne
outra coleção de textos de Cerqueira. O tom de reconhecimento pela tentativa de transformação do
17
policial e da polícia e seu caráter de “homem à frente do seu tempo” seria constante na obra. Como
apontado por Bruno Marques, neste livro “Sua formação acadêmica e seus pressupostos teóricos,
responsáveis pelo marcante traço “docente” de Nazareth Cerqueira, são muito valorizados no livro.
Sua tentativa de reformular a “cultura policial” perpassa a obra“ (2016, p.62). Nesse sentido, esta é
uma obra que dialoga bastante com os objetivos do trabalho, em que serão utilizados principalmente
os depoimentos dos policiais acerca das comparações entre a formação mais tradicional e a
engendrada por Cerqueira e seu núcleo.
Além dos relatos colhidos nos livros, também realizei uma entrevista com o próprio Íbis Silva
Pereira e duas com Antônio Carlos Carballo Blanco, em que agradeço a ambos pela gentileza no trato
e disponibilidade. Ambos ingressaram na polícia no início do primeiro comando de Cerqueira e são
considerados seguidores do legado do ex-comandante. A despeito de tal aproximação poder
comprometer o caráter distanciado de uma pesquisa acadêmica, reforço que tal dissertação não se
pretende enquanto trabalho de história oral. Além disso, acredito que os depoimentos contêm
contribuições pertinentes para se compreender melhor algumas medidas na área formativa pelo
comando.
Se a contribuição de Íbis Silva fora principalmente sobre as alterações percebidas nas
disciplina, seja nos novos tipos de estágios realizados e nas palestras, a importância do relato de
Carballo fora no sentido da elaboração das alterações curriculares da escola de oficiais no segundo
comando, bem como seu detalhamento sobre o Batalhão Escola de Policiamento Comunitário, ambos
projetos em que ele possuiu papel fundamental.
Por fim, sobre a estrutura do trabalho: entendendo uma abordagem biográfica enquanto não-
linear e “miríade de estilhaços” nos termos de Giovanni Levi, esta obra não possui uma linha temporal
retilínea. Entretanto, ela não deixa de se inserir numa narrativa de introdução, desenvolvimento e
conclusão. Nesse sentido, o primeiro capítulo busca, a partir de um debate teórico sobre o campo da
biografia no meio acadêmico, introduzir o personagem Cerqueira enquanto multifacetado a partir de
suas outras “biografias”, relacionando as obras de Íbis Silva Pereira e Bruno Marques. Este é um
capítulo mais teórico e de revisão de bibliografia sobre Cerqueira.
A partir daí, o segundo capítulo envereda para uma dimensão que acredito ainda ter sido pouco
explorada sobre o coronel: sua negritude. A partir das fontes mencionadas como a entrevista ao MIS
e o seu manuscrito, interpreto um processo passado pelo coronel que denomino como “pedagogia da
negritude”, inspirando-me na obra de Nilma Lino Gomes, “o movimento negro educador”. Este é
um capítulo acerca do processo de “tornar-se negro” de Cerqueira, ao mesmo tempo em que apresento
momentos de sua infância e adolescência para o leitor. A hipótese é que o seu contato enquanto gestor
público de um governo de caráter popular e que buscava diálogo com organizações como o
movimento negro tenha levado-o a uma ressignificação tal sobre a sua negritude e o racismo vivido
que fora uma inflexão levada não só na entrevista ao MIS, mas também para o segundo comando e
18
até o final de sua vida.
No terceiro capítulo volto-me para a dimensão policial de Cerqueira, especificamente sua
formação em que ele “não entendia muitas coisas”, como o mesmo se refere sobre o período. Utilizo-
me do referencial de Michel de Certeau acerca do conceito de tática e estratégia no processo de
elaboração de práticas para pensar este Cerqueira que buscava criar seu espaço dentro de uma
corporação com saberes que ele não via como utilizar. Assim, relaciono com o contexto de ditadura
civil-militar, o arcabouço repressivo montado e a Doutrina de Segurança Nacional, significando um
aprofundamento nas históricas relações entre polícia e militarismo, seus impactos na formação
policial, bem como na sua atuação nas ruas, com a definição do exclusivo do policiamento ostensivo
às polícias estaduais.
Por fim, os capítulos quatro e cinco. Eles abordam os períodos dos comandos, em que me
utilizo do conceito de “ciclo de políticas” de Stephen Ball como fio condutor para abordar
principalmente os contextos de influência, de produção do texto e das práticas. São capítulos que
dialogam bastante e que por um momento pensei em ser um capítulo só, mas dada a discrepância que
seria do tamanho deste com relação aos anteriores preferi dividir. Aqui estão mais concentradas as
fontes de periódicos, bem como os textos que envolvem diretrizes e relatórios de gestão encontrados
no acervo do APERJ. Assim, no quarto capítulo estão mais presentes as orientações que Cerqueira e
sua cúpula pretendiam para este novo policial e esta nova polícia e em menor grau a dimensão prática,
ainda que existente e variada, porém menos profícua do que no segundo comando.
Já no quinto o foco é maior na dimensão da prática do que nas diretrizes, ainda que estas
também tenham sido abordadas pois mostram diferenças importantes no segundo comando com
relação ao primeiro. Aqui destaco principalmente a experiência de policiamento comunitário
realizada em 1994 em Copacabana enquanto o produto mais concreto para se analisar a atuação deste
proposto novo policial no mundo real. Um relatório de pesquisa de campo produzido por estudiosos
da segurança pública no período fora uma fonte fundamental para analisar tal experiência, em que
vemos suas possiblidades e limites por outro ângulo. Ainda sobre limites, deixo para este capítulo
também um tópico acerca dos problemas e resistências enfrentados pelos comandos, referenciando-
me no modelo de pêndulo elaborado por Soares e Sento-Sé para se analisar as políticas de segurança
pública no Rio de Janeiro.

19
Capítulo 1: Biografia e biografias – Levantamentos teórico-metodológicos e de
multiplicidades percebidas sobre Nazareth Cerqueira por outros autores

A biografia e o indivíduo no tempo: as escalas em debate


Este trabalho toma de empréstimo o método biográfico em diversos pontos da pesquisa. É a
partir dele que interpreto Cerqueira como um pedagogo da polícia. Acredito ser importante, portanto,
localizar, histórica e teoricamente, ainda que de forma breve, o que imagino ser a metodologia
buscada na pesquisa.
A biografia enquanto história de vida, ou das “vidas”, segundo os gregos - diferente da
“História” enquanto narração de fatos coletivos e da “verdade”- advém da Idade Antiga. Aqui ela
servia como exemplos positivos e negativos através de perspectivas políticas, religiosas e morais, em
boa parte realizada na forma de panegíricos (discursos públicos de forma laudatória). Na Idade Média
o modelo exemplar prossegue, muitas vezes na forma de estudos sobre santos (hagiografia). Apenas
na Idade Moderna a biografia começa a tomar forma como ela é comumente conhecida, enquanto
busca de uma “verdade” em detrimento do panegírico.
De acordo com Pacheco (2005), François Dosse distingue em três grandes fases do gênero
biográfico através do processo histórico:
uma primeira que chama de “idade heroica”, na qual a biografia transmitiria modelos, valores
para as novas gerações; uma segunda fase, a da “biografia modal”, em que a biografia do
indivíduo teria valor somente para ilustrar o coletivo (A sociedade do biografado em tempos
e em espaços diversos); e uma terceira e última fase, a atual, que chama de “idade
hermenêutica”, momento em que a biografia tornou-se terreno de experimentação para o
historiador, aberto a várias influências disciplinares. (p.207)

Focando-se na terceira fase, mais especificamente em um primeiro momento na epistemologia


histórica, a relação de tal campo com a biografia é marcada por afastamentos e aproximações. Se no
lumiar da História enquanto disciplina acadêmica, no século XIX, a biografia estava em voga, na
primeira metade do século XX ela estava em franco desencanto, sendo retomada e possuindo
crescente vigor atualmente. Tanto no campo historiográfico propriamente dito quanto no da educação.
No campo da educação, é interessante pensar como os estudos focados na história de vida de
professores surge, com autores como António Nóvoa e Pierre Dominicé, também nos anos 80, período
de retomada do gênero biográfico no historiografia principalmente a partir da microhistória, a qual
será vista neste capítulo. Ainda que com propósitos diferentes do método historiográfico, visto que a
preocupação aqui era em reorientar a pesquisa sobre formação docente que priorizasse os docentes
como sujeitos e protagonistas para momentos antes de sua habilitação profissional, a partir de relatos
autobiográficos e pesquisas biográficas.
Um outro ponto interessante no que tange as pesquisas biográficas no campo da educação é
levantado por Christine Delory-Momberger. Na realidade, dois que se interelacionam. O primeiro
consiste na apreensão do processo de formação em uma biografia a partir da ideia de aprendizado.

20
Assim, “todo percurso de vida é um percurso de formação, no sentido em que organiza temporal e
estruturalmente as aquisições e os sucessivos aprendizados no âmbito de uma história” (2008, p.19).
O segundo é o da reafirmação da escola como um eixo fundamental em tal processo formativo,
entendendo a construção de saberes para além do aprendizado formal, e como isso impacta na
constituição de sujeitos. A autora aponta que nos relatos biográficos, os entrevistados relembram do
período escolar muito mais das experiências afetivas e relacionais do que das questões propriamente
conteudistas. Dessa forma, a escola, com todas as potencialidades de experiências que a atravessam,
é um local por excelência e significativo para a formação do indivíduo.
Relacionando com o tema proposto,interpreto que o processo formativo do coronel, tanto na
educação básica quanto, principalmente, na escola de oficiais e além (ele se formaria em filosofia e
psicologia) foram processos que o impactaram a ponto de trabalhar, quando ele chega em uma posição
de comando no ponto que considero a pedra angular de sua reforma na corporação: a formação
policial. Afinal, ele visava “um novo policial, uma nova polícia”.
Antes de chegarmos aos anos 80, entretanto, um recuo aos oitocentos. No contexto de
construção de projetos de nação, ou, nos termos de Hobsbawn (1983), “invenção das tradições”,
conceito usado em obra homônima, o gênero biográfico era muito utilizado enquanto representação
de personagens heroicos, fundadores de supostos valores nacionais. Isto guardava relação com a
própria concepção de História do momento, ou seja, a história dos grandes acontecimentos, dos
“vencedores”.
Com a consolidação de um caráter mais científico ao fazer historiográfico, muito pela
afirmação da Escola dos Annales6 a biografia pouco a pouco foi perdendo espaço. Agora, a história
total e a visão das grandes estruturas ganhavam espaço. Em meio a isso, a biografia fora relegada à
literatura, como algo menor que fugisse dos procedimentos científicos vigentes. Entretanto, vale
ressaltar que a biografia não fora completamente varrida dos escritos acadêmicos. Lucien Febvre, um
dos fundadores dos Annales, fora responsável por exemplo pela confecção de uma biografia de
Martinho Lutero que é considerada um clássico.
Nela, segundo Mary Del Priore, “instaurava-se uma “biografia modal” que, debruçada sobre
o indivíduo, informava sobre a coletividade” (2018, p.77). Assim, “Estavam lançadas as pistas que
levariam do indivíduo ao ator ou atores da história”(Ibid.). Era o início de um modelo de biografia, o

6
Fundada em 1929 na França, a Revista dos Annales é considerada uma inflexão no fazer historiográfico ao dotá-la de
uma cientificidade - legada da sociologia durkheimiana segundo Jacques Revel - e de uma interdisciplinaridade que iria
além do conhecimento histórico produzido até então, muito voltado para uma história política baseada em eventos
supostamente definidores e nos grandes personagens. A partir principalmente de Lucien Febvre e Marc Bloch,
responsáveis pelo o que seria considerada a “primeira geração” dos Annales, pressupostos como a da História enquanto
estudo do passado para compreensão e problematização do presente, para além da “história mestra da vida” foram
introduzidos no campo teórico-metodológico. Além disso, contribuições como a introdução da História comparada,
História econômica, social, a nova história política e a história de longa duração, além da análise de fontes seriais e da
História cultural em uma fase posterior foram contribuições fundamentais para o campo historiográfico. In:BARROS,
José Costa D’Assunção. A escola dos Annales: considerações sobre a História do Movimento. In: Revista História em
Reflexão, v. 4, n. 8 jul/dez. 2010. P. 1 - 29
21
da relação indivíduo-sociedade, que teria múltiplos desdobramentos. Nesse sentido, vale ressaltar
antes que o debate acerca da relação indivíduo e sociedade em termos epistemológicos não é
necessariamente uma questão nova nas ciências humanas. Norbert Elias, em 1939, apontava para uma
inquietação acerca de uma pouca importância percebida ao indivíduo no processo histórico, ainda
que o faça por um viés estruturalista.
Em seu texto “A sociedade dos Indivíduos”, o sociólogo alemão parte da indagação acerta do
tratamento dado aos conceitos de indivíduo e sociedade. Se o primeiro “se refere ao ser humano
singular como se fora uma entidade existindo em completo isolamento”(1994, p.7), o segundo ora é
entendido “quer como mera acumulação, coletânea somatória e desestruturada de muitas pessoas
individuais, quer como objeto que existe para além dos indivíduos e que não é passível de maior
explicação.”(Ibid.).
Nesse sentido, o autor tenta aproximar os dois termos, partindo do pressuposto do ser humano
como um ser social, mas ao mesmo tempo de uma sociedade dos indivíduos, como o título do texto
diz. Nessa sociedade não planejada, desordenada e imprevisível, seu estudo precisa levar em conta
que ela é permeada por indivíduos com desejos e contradições, repletos de subjetividade. Este é um
pressuposto fundamental para não se cair na armadilha de uma pesquisa que aborde uma suposta
linearidade do processo histórico das sociedades.
Indivíduo e sociedade não são hermeneuticamente excludentes e “a historicidade de cada
indivíduo, o fenômeno do crescimento até a idade adulta, é a chave para a compreensão do que é a
“sociedade”” (p.30), ao mesmo tempo em que para se entender o indivíduo, deve-se levar em conta
contexto e a estrutura nele inserido, suas relações de interdependência a partir das redes criadas. Em
ambos os casos, creio, o ponto em comum é o caráter histórico perpassando os conceitos.
Essa “historicidade de cada indivíduo” encontra posteriormente no método biográfico uma
potência epistemológica, o qual estava em pleno vapor nos anos 80, década em que o polêmico texto
de Pierre Bourdieu, “a ilusão biográfica” é produzido. Seu argumento é provocador e necessário. Ele
alerta para o perigo de se cair em uma biografia enquanto trajetória linear e com determinadas etapas,
atacando justamente a mencionada historicidade. Voltaremos a ele posteriormente.
Após um período sob a égide das grandes estruturas e mais apropriado pelo campo da literatura,
o modelo biográfico volta a luz da escrita historiográfica. Acredito em certo exagero quando Del
Priore afirma que “o fenecimento das análises marxistas e deterministas que engessaram por décadas
a produção historiográfica, permitiu dar espaço aos atores e suas contingências novamente”(2018,
p.77). Apesar da grande proeminência dos estudos estruturalistas no período, e de não deixar de
ressaltar que o movimento de produção da microhistória que será abordada posteriormente surge de
uma reação a tal epistemologia, acredito que não se deve deixar de reconhecer que um dos méritos
das análises marxistas é o de justamente situar o indivíduo como agente transformador no tempo e no
espaço de forma dialética em relação com a sociedade e suas contradições. Gramsci (1978), no
22
mesmo período de surgimento dos Annales, apontava para a importância do sujeito na história ao
considerar que todo indivíduo é um intelectual.
Enfim, a reapropriação da biografia pelo campo acadêmico não deixava de ser perpassada por
debates. Qual o sentido da biografia? Existiria um sentido? Seria possível pensar em uma narrativa
ordenada, linear? Procuro entender algumas dessas questões a partir do referencial teórico que utilizo
para a pesquisa: a microhistória (ainda que considerando a variação de escalas analisada por Jacques
Revel, como se verá). Concebida enquanto campo entre meados dos anos 70 e 80 pela escola italiana,
tal corrente possui seu embrião na produção teórica de Fredrik Barth.
O antropólogo norueguês, rompendo com a tradição estruturalista, foca-se no indivíduo
enquanto sujeito relacional e interdependente. Barth partiu de um pressuposto que inspiraria 15 anos
depois os microhistoriadores. O “da ideia de uma não-coerência dos sistemas de normas e do caráter
não-automático dos seus efeitos” (ROSENTAL, 1996, p.157). A relação indivíduo-contexto se dá
pelas escolhas do sujeito em suas relações para cada situação que lhe é colocada especificamente, o
que gera novas escolhas, em um processo enquanto “barganha entre atores ocupando posições
diferentes devido à posse de status (direitos, obrigações e limites) diferentes”(CARNEIRO, 2018,
p.37). Dessa forma, mais do que o contexto agindo sobre o indivíduo, esta é uma corrente que percebe
o indivíduo agindo sobre o contexto. Ou sobre os contextos:
Em suma, mapear a cultura, descrever o sistema social e ver as categorias próprias dos atores
e seus significados. Ver também as restrições impostas sobre os comportamentos individuais
que surgem na interdependência, vindo daí as estratégias pelas quais os atores sociais
modificam seus comportamentos. (p.39)

Esses seriam pressupostos apropriados pela corrente microhistórica. Tal campo, representado
por autores como Carlo Ginzburg, Giovanni Levi e Simona Cerutti, não surge de forma planejada e
coerente7, mas sim como uma reação e uma reivindicação de uma análise que contornasse um modelo
considerado rígido. Não necessariamente negá-lo, afinal reconhece-se o valor da metodologia
característica das grandes estruturas, como a história demográfica e econômica, mas sim em valorizar
também as pesquisas envolvendo comportamentos, escolhas e negociações de grupos e indivíduos, a
partir da redução de escala. Nesse sentido, esta dimensão revisita e ressignifica o gênero biográfico.
Ela não busca uma trajetória dotada de coerência, tampouco a abordagem heroica dos grandes
personagens. Também não se atém a um indivíduo que simplesmente está inserido de forma passiva
a um contexto. Segundo Jacques Revel:
Uma experiência biográfica (...) pode assim ser relida como um conjunto de tentativas, de

7
Por exemplo, uma demarcação existente no campo é a sua divisão em dois polos, representados por Ginzburg e Levi
respectivamente, ainda que não completamente contrastantes: por um lado, uma microhistória mais preocupada com a
relação dos sujeitos com a cultura, suas ressignificações no campo popular a partir do recorte característico que o meio
sugere. Por outro, uma metodologia mais voltada para a relação entre indivíduo e sociedade, suas escolhas, continuidades
e rupturas com o meio inserido. Se o foco de análise é diferente, em comum o caráter não totalmente passivo dado ao
indivíduo, com determinada margem de ação dentro do contexto vivido. De qualquer forma, este trabalho assemelha-se
mais com a linha de Levi. (LIMA, 2006).
23
escolhas, de tomadas de posição diante da incerteza. Ela não é mais pensável apenas sob a
forma da necessidade – esta vida existiu e a morte a transformou em destino -, mas como um
campo de possibilidades entre as quais o ator histórico teve de escolher. (1996, p.38).

No tema aqui escolhido, as escolhas de Cerqueira em sua historicidade e suas tentativas


pedagógicas na reformulação de uma concepção autoritária de policiamento. Ressalte-se que uma
análise “micro” não significa não discutir questões “macro”. Ginzburg, ao estudar a vida do moleiro
Menocchio, suas relações com a comunidade local e sua interpretação religiosa do mundo em O
queijo e os vermes não deixava de discutir questões envolvendo a Inquisição e a cultura popular a
partir da ressignificação do imaginário cristão. Voltando a Revel,
O que a experiência de um indivíduo, de um grupo, de um espaço permite perceber é uma
modulação particular da história global. Particular e original, pois o que o ponto de vista
micro-histórico oferece à observação não é uma versão atenuada, ou parcial, ou mutilada, de
realidades macrossociais (p.27).

Comentando a própria obra de Ginzburg, o historiador francês ressalta que não seria apenas a
trajetória individual do moleiro que deve reter nossa atenção, mas sim a percepção de todo um
desvelamento de outras dimensões sociais que a experiência de Menocchio pode nos apresentar e que
as vezes não é percebida em um trabalho do ponto de vista macro.
Revel ainda se utiliza de uma analogia da trama de “Blow up – depois daquele beijo” com a
microhistória. No filme, um fotógrafo, ao registrar um casal em um parque, descobre outra cena ao
revelar a fotografia, o que leva a outra trama. A relação feita pelo historiador francês se justifica no
sentido do caráter da metodologia microhistórica em apontar para outras direções a partir da redução
do foco. Não deixa de se relacionar também com minha própria história da delimitação do tema. Se
a ideia inicial ainda na graduação era tratar sobre segurança pública nos governos Brizola, ao longo
do tempo e entrando em contato com as fontes, o foco se “reduz” ao estudo de uma dimensão do
pedagogo Cerqueira a partir do método biográfico. Escalas diferentes, mas não deixando de tratar de
questões macro.
Em artigo de 2010, Revel voltaria ao tema partindo da ideia do “princípio de variação de
escala”. Se sob a influência do contexto de globalização os estudos nos anos 90 passam a assumir um
caráter mais “macro”, o autor interpreta que isto não significa uma certa superação de pesquisas em
tal escala com relação às análises micro, assim como não o foram os estudos de escala reduzida com
relação ao estruturalismo nos anos 80.
O que importa é a consciência das escolhas e renúncias assumidas ao se optar por uma
abordagem de abordagem mais totalizante ou não. Ao mesmo tempo, realizar um estudo de caráter
reduzido não significa negar certas estruturas, ou dotar uma liberdade absoluta ao sujeito em suas
ações. A crítica ao estruturalismo baseava-se principalmente no caráter autoevidente de suas hipóteses,
como uma pesquisa que busca conclusões que apenas confirmem o que fora previamente estabelecido.
Isso não quer dizer que certas categorias não existam, mas apenas que uma abertura às subjetividades

24
possa levar a caminhos diferentes. Do macro ao micro, fenômenos sóciohistóricos existem nas mais
variadas escalas, cabendo ao pesquisador das ciências humanas como compreendê-las em
determinado foco. Revel exemplifica pelo Antigo Regime e na construção do Estado:
Não se trata aqui, mais uma vez, de negar a importância maciça de um fenômeno sócio-
histórico como o da afirmação do Estado, mas, ao contrário, de aprender a olhá-lo e a
compreendê-lo de outra maneira. Costuma-se com demasiada frequência considerá-lo um
processo irresistível e até uma conclusão histórica (era assim que o representavam a
historiografia e a filosofia política alemã no século XIX, assim como a ideologia dos regimes
totalitários do século XX). Podemos tentar entender a maneira como a fórmula estatal ganhou
crédito e foi também parcialmente retrabalhada, reformulada pelo jogo das práticas sociais
que ela tinha por ambição enquadrar. (2010, p.442)

Nesse sentido, o que interessa à microhistória são justamente as fraturas, as tensões e as


negociações de sujeitos inerentemente multifacetados e contraditórios, visando, portanto, sua margem
de liberdade em determinados contextos. Isso não significa ignorar o quadro temporal e como as
estruturas atuam sobre ele. É construí-lo a partir das relações entre indivíduos com determinado
recorte.
E perceber, como na conclusão do artigo do historiador francês, que o que se busca as vezes
é uma resolução simples, seja na formação dos Estados modernos, seja na chamada globalização. A
de que “as grandes transformações que alteram profundamente a face da Terra não existem em
nenhuma parte a não ser pela ação de atores que, na lógica dos contextos peculiares da sua experiência
social, se esforçam em garantir para si um lugar, isoladamente e/ou com outros” (p.444).
Acredito que, no caso aqui estudado, as escolhas de Cerqueira e de sua família que envolviam
em um primeiro momento sobrevivência em um contexto de extrema desigualdade social e racismo
estrutural levaram a contextos imprevisíveis mas que ao mesmo tempo dão mostras de sujeitos agindo
ativamente no tempo e no espaço. Tanto em uma dimensão micro quanto macro (veremos mais à
frente sua relutância em escolher a carreira policial e o que levou a fazê-lo, por exemplo).
Como dito anteriormente, o campo da microhistória não é monolítico. Em sua complexidade,
acredito que o presente trabalho se assemelha mais ao imaginado por Giovanni Levi. Segundo
Henrique Espada Lima, Levi parte do princípio de mudança social como eixo de análise. Assim, “a
ênfase na redução da escala de análise – elemento central da micro-história- fazia sentido antes de
tudo como afirmação da ação individual e das relações interpessoais como a dimensão geradora da
mudança social” (2006, p.275). Uma das bases de sua interpretação é uma crítica ao estruturalismo
vigente na historiografia da época, no sentido de que um dos equívocos ocorridos ao se analisar de
forma hierárquica macro e micro é o de realizar perguntas já sabendo de antemão as respostas. Levi,
não deixando de partir de perguntas mais gerais, diminui o foco de análise, procurando uma relação
mais simbiótica entre as dimensões macro e micro.
Assim, sua visão foca-se nas contradições inerentes aos sistemas que pressupõem-se enquanto
normativos, homogêneos e sólidos. Ao reduzir a escala de análise, torna-se nítido perceber como as

25
contradições são geradas a partir da inter-relação de indivíduos em qualquer contexto histórico. As
relações são forjadas a partir de processos de escolhas constantes dos indivíduos, os quais, enquanto
sujeitos ativos e humanos, geram incoerências no sistema.
Levi inspira-se no já citado Barth. Nesse sentido, portanto, sua metodologia de foco nas
contradições a partir da microanálise “permitiria colher o processo dinâmico das transformações
sociais a partir do seu ângulo mais concreto: resgatar as estratégias individuais e de grupo daria chance
para compreender de que modo engendravam-se nas situações singulares os processos sociais de
grande escala.” (p.262).
A escrita biográfica, portanto, torna-se uma metodologia viável para estudar tais questões.
Ainda que com determinados cuidados. Levi, em texto original de 1989, alerta para as máscaras, a
ilusão de uma identidade específica que esconderia uma “miríade de fragmentos e estilhaços” (2005,
p.173) por trás do objeto e fonte de estudo. Em outras palavras, a preocupação do autor com a
produção historiográfica crescente pela metodologia biográfica consistia na relação entre indivíduo e
sociedade.
A menção ao ano de publicação do trabalho não é fortuita, visto que o autor dialoga com um
trabalho de Bourdieu lançado 3 anos antes, o famigerado “a ilusão biográfica.”Afinal, segundo o
sociólogo francês,“Falar de história de vida é pelo menos pressupor – e isso não é pouco – que a vida
é uma história e que (...) é inseparavelmente o conjunto dos acontecimentos de uma existência
individual concebida como uma história e o relato dessa história.” (2005, p.183). Este caráter histórico
seria a ilusão teórica mencionada, a qual muito se deve a uma tradição literária que não escapa de
suas bordoadas teóricas, visto que a literatura reforça constantemente esta “representação comum da
existência”(p.185).
Segundo o autor, considerando a identidade e o nome próprio como os únicos pontos em
comum de um indivíduo que atua em relação com outros indivíduos nos diferentes espaços e tempos,
um estudo biográfico corria o risco de se juntar a eles como um definidor oficial, um documento de
uma suposta “essência”. O sujeito multifacetado e inserido em tantas estruturas determinantes, não
caberia, portanto, em uma biografia.
Em um artigo que se utiliza de conceitos de Paul Ricoeur para problematizar a ilusão
biográfica bourdieusiana, Maria da Glória de Oliveira busca contornar a provocação do sociólogo
francês. Não se nega o caráter literário e ficcional na produção biográfica, mas articula-o com a
dimensão histórica enquanto dois pólos inseridos na narrativa. Afinal, toda construção de si vai além
do próprio, envolvendo não só o vivido, mas também o outro, em constante mudança temporal e
aberta, em que a fábula não deixa de ser um elemento a ser apreendido.
Assim, “sem o recurso à ficção e a despeito do caráter provisório e revisável de toda e qualquer
configuração de enredo, não seria possível organizar retrospectivamente os acontecimentos sob o
modo de uma “história de vida” (2018, p.429) .Entendo, dessa forma, que a ilusão biográfica
26
converte-se de problema para pressuposto pensando o sujeito na sua dimensão da identidade narrativa.
Ou seja, um conceito que toca tanto o vivido como a percepção de uma suposta “essência”, da
manutenção e retrabalho da mesma ao longo do tempo e da experiência social que o envolve.
Nesse sentido, “a noção de identidade narrativa mostrava-se fecunda para evidenciar o
entrecruzamento entre história e ficção na configuração da experiência de um tempo humano,
indivisamente fenomenológico e cosmológico”(p.438). Portanto, o método biográfico, ainda que
imperfeito, seria o mais próximo de uma organização de eventos tão caóticos justamente por ser o elo
entre o ficcional e o histórico a partir da sua dimensão narrativa e de enredamento.
Ainda que o próprio Bourdieu futuramente teria feito em outros trabalhos uma inflexão e logo
depois sua conversão ao método biográfico8, as críticas extraídas de “a ilusão biográfica” não deixam
de ser pertinentes. Levi, no texto anteriormente mencionado, concorda com Bourdieu ao sugerir a
necessidade de reconstrução do contexto e sua “pluralidade de campos” no qual age o indivíduo ao
se construir um estudo biográfico. Entretanto, não deixa de reconhecer a dificuldade de tal
empreendimento na relação entre indivíduo(s) e contexto(s) na produção vigente.
O autor chega a elencar no debate quatro tipos de métodos biográficos utilizados para mapear
o problema. Resumidamente, Levi enumera quatro tipos de biografias utilizadas: 1) proposografia e
biografia modal, quando o estudo de um indivíduo possui um elemento funcional no sentido de
percebê-lo como representante de determinados comportamentos frequentes em uma coletividade.
Aqui a prevalência de estrutura sobre indivíduo é grande; 2) biografia e contexto, quando ainda
contém certa predominância estrutural, porém identificando justamente como eles são capazes de
produzir singularidades; 3) biografia e casos extremos, em que Levi exemplifica justamente a partir
do referido estudo de Menocchio por Carlo Ginzburg, quanto o que interessa é a margem, até
enquanto contraste com a dimensão social do contexto: 4) Biografia e hermenêutica, a qual, advinda
da antropologia, foca-se mais no que se pode apreender de conhecimento numa biografia do que na
descrição em si. Aqui o que interessa é o processo, em que “o conhecimento não é resultado de uma
simples descrição objetiva, mas de um processo de comunicação entre dois personagens ou duas
culturas.” (2005, p.178). O que todas essas abordagens possuem em comum, entretanto, é um
silêncio por questões fundamentais. (...) sobretudo ao papel das incoerências entre as próprias
normas (e não mais apenas as contradições entre a norma e seu efetivo funcionamento) no

8
Segundo Maria da Conceição Passeggi, Bourdieu em “A miséria do mundo” (1993), adere ao biográfico através da
elaboração de três etapas da pesquisa com fontes primárias: “a entrevista, a transcrição e a publicação” (2014, p.228).
Uma forma de perceber essa mudança na visão do autor sobre a biografia encontra-se, por exemplo, em como este atribui
à entrevista e em seu potencial de gerar empatia uma possibilidade de “tentar compreender ao mesmo tempo na sua
unicidade e generalidade os dramas de uma existência”(ibid.).Assim, a autora entende que esta é uma ideia mais afastada
“dos argumentos apresentados por Bourdieu em “A ilusão biográfica”, em que o autor salientava a pretensão do narrador
tornar-se o ideólogo de si mesmo”(ibid.), devido a este caráter de “exercício espiritual” (ibid.)perante entrevistador e
entrevistado no que tange a tal “conversão do olhar”(ibid.). Já em “Esboço de autoanálise” (2005), Bourdieu teria com-
pletado a travessia da ilusão à conversão (auto)biográfica, visto que pretende “aplicar a si mesmo o rigor científico dos
métodos que utilizara em suas pesquisas sociológicas”(p.231), no que a autora denomina de auto-sócioanálise.Ver PAS-
SEGGI, Maria da Conceição. Pierre Bourdieu: Da "ilusão" à "conversão" autobiográfica. Revista da Faeeba: Educação
e Contemporaneidade, Salvador, v. 23, n. 41, p.223-235, jun. 2014.
27
seio de cada sistema social; em segundo lugar, ao tipo de racionalidade atribuído aos atores
quando se escreve uma biografia; e, por fim, à relação entre um grupo e os indivíduos que o
compõem. (p.179).

Creio que Levi, como Bourdieu, está buscando uma forma de compreender como o método
biográfico poderia dar conta de tantas subjetividades, contextos, ações, coerções e incoerências. Se o
sociólogo francês nesse primeiro momento, ao que não chega a meu ver a renegar, mas ao menos
encontra-se descrente com a “ilusão biográfica”, o historiador italiano credita justamente na biografia
o método possível até para os mais estruturalistas.
Nesse sentido, o estudo de um indivíduo ou de um grupo é a forma de perceber que, por mais
atuantes os mais variados contextos e estruturas ajam sobre o sujeito, este possui margem de liberdade
pelas próprias contradições inerentes aos sistemas. Como já dito, Levi parte da microhistória como
uma pesquisa de compreensão das mudanças sociais, e a biografia pode servir para identificar como
homens e mulheres “podem então impor aos dominantes mudanças nada desprezíveis.” (p.180).
Após esta breve passagem pela “fase hermenêutica” da biografia e a delimitação da
metodologia, nos atentamos para a multiplicidade do sujeito em relação consigo mesmo e com os
outros nos mais variados contextos. Agora chega o momento de, antes de abordar com mais
concretude minha interpretação do coronel, captar o mínimo de multiplicidade possível a partir das
visões de outros estudos sobre o mesmo.
Cerqueira pensava em uma nova polícia, uma corporação democrática para um Brasil em vias
de se tornar democrático. A educação, nesse recorte, era um caminho de ruptura a partir da reflexão
crítica do policial sobre o seu próprio fazer. Isto inserido em um contexto de própria reconfiguração
das políticas públicas em educação no governo de Leonel Brizola em conjunto com Darcy Ribeiro,
também almejando uma escola democrática para um novo cenário histórico.
A intenção, portanto, é de se atentar para um discurso pedagógico em suas teorias e práticas
no cotidiano policial. Este caminho, em nossa interpretação, converge em determinado momento com
a construção de uma identidade negra por Cerqueira, já adulto. Entretanto, esta é uma compreensão
que se encontra longe de ser a única ou a verdadeira.
Cerqueira é um personagem que fora redescoberto nesta década. Se em estudos anteriores de
grande contribuição o ex-coronel esteve em segundo plano, atualmente já existem pesquisas
acadêmicas de fôlego que colocam Cerqueira no centro do debate sobre segurança pública, inclusive
de caráter biográfico. Ao longo desta dissertação elas serão utilizadas fundamentalmente como fonte,
mas aqui elas serão brevemente analisadas enquanto objeto do personagem que estudo, atentando-se
para a multiplicidade tão abordada até aqui. Focarei nas obras do ex-comandante da PMERJ Ibis Silva
Pereira e do historiador Bruno Marques e sua “biografia intelectual”. Vejamos suas dimensões.

28
Cerqueira e a alma no exílio, por Íbis Silva
A ligação do ex-comandante da PMERJ Íbis Silva Pereira com Cerqueira remonta desde as
origens de sua formação policial. Literalmente. Ingressante na turma da escola de oficiais em 1983,
Pereira assiste à aula inaugural oferecida pelo então comandante Cerqueira, no dia 01 de março
daquele ano, em que o tema envolvia a relação da polícia com os direitos humanos.
Com uma trajetória de militância ligada à teologia da libertação 9 anterior ao ingresso na
corporação, Pereira relata em entrevista ao autor que entrou na escola de oficiais basicamente por
uma questão de necessidade de emprego. Assim, os dias iniciais de treinamento em comparação com
o seu passado militante fizeram o então aluno a pensar que “estava no lugar errado”10.
Entretanto, o encontro com um comandante que “lançava as bases de uma aposta ousada:
“entender como atribuição da polícia o compromisso com a proteção e a promoção dos direitos
humanos.”(2016, p.142) em sua aula inaugural e o alinhamento com Leonel Brizola a implementação
de tais ideias em um processo de redemocratização o impactaram como uma boa nova. Em suas
palavras, “esse encontro com Nazareth Cerqueira tem um sabor de um momento da história do país
e da minha trajetória de vida. Eu tinha 20 anos, portanto estava começando a minha vida, e o país
também estava recomeçando a sua”11. Era a síntese desta nova polícia buscada neste novo contexto
por Cerqueira.
Íbis Silva seria considerado um dos “filhos de Cerqueira”, no sentido de prosseguir com o
legado do ex-comandante assassinado em 1999. Uma forma concreta para tal é a organização, em
conjunto com Ana Beatriz Leal e Oswaldo Munteal Filho do livro “sonho de uma polícia cidadã:
Carlos Magno Nazareth Cerqueira” de 2010. Esta obra, espécie de homenagem ao ex-comandante
movida pelo agora coronel Íbis se divide em duas partes: na primeira, um conjunto de entrevistas com
pessoas próximas a Cerqueira, colegas de trabalho policiais, especialistas em criminologia como Vera
Malaguti e o ex-governador Nilo Batista; na segunda, uma coletânea de artigos do ex-coronel. É um
trabalho que possui valor de tremenda riqueza em suas duas divisões e que será analisada ao longo
da dissertação.
Em 2016, ele volta ao seu objeto escrevendo uma dissertação pelo programa de pós-graduação
em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Intitulada “a trajetória de Carlos Magno
Nazareth Cerqueira: Secretário de Polícia Militar dos Governos Leonel Brizola”, o trabalho é dividido
em três capítulos, além de introdução e considerações finais: 1) “Um homem de ideias e de ação”; 2)

9
Surgida no início dos anos 70 enquanto uma ressonância do Concílio Vaticano II e a tentativa de atualização da Igreja
Católica, a teologia da libertação é uma doutrina inserida no contexto das desigualdades sociais na América Latina e que,
no caso brasileiro, muito se inspira na pedagogia freiriana, possuindo como um dos seus fundadores Leonardo Boff. A
prática desta corrente teológica baseia-se numa interpretação religiosa e crítica, tomando como objetivo a transformação
social por uma militância cristã, a qual, inspirada em um pobre e operário que queria transformar o mundo e fora executado,
Cristo, toma como prioridade de sua práxis a libertação dos oprimidos.
Ver https://leonardoboff.wordpress.com/2011/08/09/quarenta-anos-da-teologia-da-libertacao/.Acesso em 05/08/2019.
10
Entrevista concedida ao autor em 30 de agosto de 2018
11
Ibid.
29
“Da democratização ao governo Brizola: caminhos do comando” e 3) “Entre “ventos do pensamento”
e os últimos anos”. Este é o trabalho em que me debruçarei neste momento.
O autor, em sua introdução, aponta que não se pretende uma biografia de Cerqueira, mas sim
“de realizar um sobrevoo por sua trajetória, no intuito de reproduzir seus passos na obra de contribuir
para a redemocratização brasileira, através da tentativa de reforma de uma importante instituição
pública.” (p.14). Para tanto, inspira-se em elementos da literatura, como a Biografia de Tadeo Isidoro
Cruz, conto de Jorge Luis Borges.
Assim, embora oficialmente não se defina como uma biografia, interpreto que seja um
trabalho que se relacione com a denominação de “Biografia e contexto” levada a cabo por Levi. Ou
seja, relacionando estruturas e seus contextos estruturantes (polícia, Estado, ditadura e democracia)
com sua capacidade de produzir singularidades, no caso, o intelectual humanista Cerqueira. Não à
toa este é um trabalho construído no campo da História e perpassado por contextualizações.
O primeiro capítulo começa com um ponto significativo na vida de Cerqueira: sua cerimônia
de posse no comando da polícia militar. Escolha narrativa interessante, pois é um contorno a noção
já problematizada aqui (e em sua obra) de uma suposta biografia que obedeça a uma linearidade
temporal. A partir de então o momento é desconstruído de um suposto triunfo de uma trajetória
inconteste e linear, mas sim relacionado conjunturalmente tanto com um passado difícil (o racismo
também é apontado nesta obra) quanto com um futuro desafiador (a iniciativa reformista e suas
resistências em um contexto de transição democrática).
Vale ressaltar que ao mesmo tempo em que este início de capítulo é uma escolha narrativa ela
também possui simbolismo, visto que também é um ponto com significado para o autor, como já fora
trazido aqui. Dessa forma, o trabalho acerca do coronel começa justamente pelo encontro inicial do
próprio Ibis Silva com o mesmo. É nítida a proximidade do autor com o objeto, assim como sua
tomada de posição. Entretanto, isso não significa necessariamente uma negligência com o fazer
historiográfico proposto, no sentido de análise crítica de processos históricos e da própria política de
segurança pública.
Este passado é então retomado relacionando a formação do policial Cerqueira, sempre tanto
com momentos da história da corporação (mudanças no regimento policial e na própria estrutura
como nos momentos de transferência da capital para Brasília, os Estados da Guanabara e do Rio de
Janeiro e sua posterior fusão, além de análises sobre determinados comandantes da corporação)
quanto da história do país (eventos como o suicídio de Vargas, a conjuntura da posse de Jango, o
golpe civil-militar e seus sucessivos Atos Institucionais e até a história do famigerado jogo do bicho)
nos são apresentados. Muitas vezes com uma escrita literária. Por exemplo:
Os anos de formação de Carlos Magno Nazareth Cerqueira foram duros. Infância pobre;
juventude com muitas incertezas e privações; educação familiar rígida, quase se poderia dizer
estoica. Antônio forjou o filho a partir de uma concepção da vida como permanente luta pela
sobrevivência. No caso da família Cerqueira essa mobilização incluía também a superação
do racismo. Talvez Cerqueira jamais tenha cogitado das veredas por onde a carreira o
30
conduziria. Teria êxito no curso de formação? E depois? Afinal, o ofício tinha suas agruras;
aquele jovem, cujos “braços pareciam “gravetos" talvez não suportasse os treinamentos
intensos, o trabalho pesado da polícia. (p.26).

Os elementos literários perpassam a dissertação, tanto no sentido da estética em si quanto das


referências. Entre os referenciais teóricos encontramos Guimarães Rosa, Dostoiévski, Virginia Woolf
e o já citado Borges. Isto foi algo que me remeteu à noção de identidade narrativa compreendida por
Ricoeur enquanto entrecruzamento do ficcional e do histórico na construção de uma biografia. Afinal,
se as perguntas retóricas por exemplo constituem um recurso narrativo comum nas fábulas, aqui ele
se conecta a fontes (os braços que parecem gravetos são uma descrição do próprio Cerqueira, além
de como ele descreve a rigidez na criação familiar) e a estruturas históricas (o racismo).
Aqui os traços do Cerqueira trazidos por Íbis começam a se evidenciar, um em especial: um
personagem que prezava pela correção. Outras nuances serão descritas pelo autor ao longo do trabalho,
contudo esta é a que acredito ser a manutenção de si interpretada por Ricoeur, um traço marcante
temporalmente. Não necessariamente uma “essência”, mas a ideia de uma marca retrabalhada como
atestação de si.
A rigidez de sua criação é a mesma que perpassa um determinado caráter íntegro, o que
envolve também uma subversão. Se em um primeiro momento pode soar paradoxal, tal cenário
sugerido pelo autor de que na corporação Cerqueira teria uma imagem de “criador de casos” se deve
justamente pela defesa aos seus ideais tão caros.
Subversão que se verá tanto em sua formação em eventos que Pereira descreve aqui e que
serão analisados posteriormente quanto em seu comando, que não deixa de ser subversivo pelo
contexto e pelo caráter reformista fortemente sugerido pela ideia de “nova polícia”. O capítulo
termina de forma elíptica, retomando a cerimônia de posse do agora comandante Cerqueira, agora
enquanto “gancho” para o segundo capítulo, em que será abordado o período do comando em si e o
contexto que o circunda.
No segundo capítulo, após apresentar o contexto ideológico que impregnava na polícia militar
influenciada pela ditadura civil-militar e o período de transição democrática, as eleições de 82 que
consagraram Leonel Brizola e o seu “socialismo moreno” e a escolha por Cerqueira, o autor volta
para o seu objeto. Vemos mais traços de sua “coragem moral” em seus termos, no episódio em que,
seguindo as diretrizes do governador, ele “peita” um general que visava impedir as passeatas pelas
Diretas Já em 1984, durante uma reunião para discutir a viabilidade do evento. Uma insubordinação
impensável em outros tempos.
Aqui também nos é mostrado o homem de poucas palavras, mais destacado por sua escrita do
que pela oralidade. Novamente o evento da posse de seu comando nos é remetido, agora para destacar
que “Suas frases medidas a compasso hipnotizavam a tal ponto o ouvinte, que este mal tinha tempo

31
de discernir a aproximação do sono.” (p.139), o que o tornaria um “palestrante singular” pois, “os
que resistissem ao som encantatório de sua voz perceberiam nela a irradiação de um pensamento
sofisticado e profundo.” (ibid.). Em um primeiro momento, contudo, o autor atenta-se neste
pensamento, na sua caracterização enquanto intelectual e como isso se construiu nesse processo
histórico.
Como o título do primeiro capítulo sugere, além das ações, as ideias do Cerqueira policial
começam a ser mostradas aqui a partir do início de sua produção teórica. Neste ponto o autor já lança
pistas de uma aproximação conceitual que será mais amarrada no segundo capítulo: a interpretação
de Cerqueira a partir da noção de intelectual concebida por Edward Said, e de uma certa relação do
próprio Cerqueira com Said.
Pereira parte da noção geral de intelectual definida por Bobbio enquanto alguém que
compartilha conhecimentos relevantes como forma de transformação, a categoria de intelectuais
expertos. Daí ele parte para uma aproximação com a ideia de intelectual humanista interpretada por
Said. O que seria esta visão?
Segundo o autor, o intelectualismo humanista percebido por Said possui intrinsecamente um
viés democrático, aberto sem distinção de classe, gênero e cor. Ele parte do desconforto com ideias
sedimentadas, autoritárias, em que a crítica permanente é uma técnica de acumulação e
compartilhamento de conhecimento. A necessidade de Cerqueira de produzir conhecimento para a
polícia e compartilhá-lo, perpassado por ideais concernentes pelo respeito aos direitos humanos e de
uma polícia democrática no contexto referido é a marca mais forte do intelectualismo humanista de
Cerqueira. Assim, “A administração de Nazareth Cerqueira encontra-se permeada dessa crença
emancipadora das “virtudes do humanismo [...], considerado um componente do espírito
democrático”” (p.148).
Na visão de Pereira, Cerqueira aproximava-se de Said não só intelectualmente, mas
biograficamente. Afinal, este “escritor nascido em Jerusalém e educado na cidade do Cairo e em Nova
York, dividido entre o árabe e o inglês” (ibid.) e “marcado pela “sensação predominante [...] de estar
fora do lugar.”” (ibid.) possuía uma semelhança com o ex-coronel. Primeiro comandante negro da
PMERJ, defensor dos direitos humanos em uma corporação impregnada por uma visão repressiva,
mas que ao mesmo tempo não excluía de o mesmo fazer uma defesa intransigente da sua instituição,
Cerqueira situava-se na fronteira. Como pretender um conhecimento humanista e democrático em um
meio marcado pela rígida hierarquia e respeito à disciplina (algo que o próprio Cerqueira prezava)?
Acredito que este fora um insight suficientemente potente para um capítulo, tanto o conceito
humanista quanto a aproximação entre Cerqueira e Said no que tange a indivíduos que constroem sua
intelectualidade a partir do desconforto de se sentirem fora do seu lugar. Entretanto, o autor preferiu
não se alongar, retomando o termo de passagem ao longo do trabalho e enfocando mais no terceiro
capítulo ao se discutir a produção de conhecimento por Cerqueira.
32
Durante o comando e o interregno entre o governo de Moreira Franco e o segundo comando12,
é nos apresentado também o Cerqueira enquanto líder político a partir de uma análise weberiana. Pois
é não só no sentido da construção da nova polícia, mas na orientação do agora filiado ao Partido
Democrático Trabalhista Cerqueira na preparação de quadros para o partido.
Pereira nos apresenta um documento de Cerqueira com sugestões em uma reunião do PDT em
1990. Aqui vemos um Cerqueira preocupado com a formação militante, em que o autor traça uma
semelhança com a sua preocupação maior com os praças 13 no segundo comando, algo que não
ocorreu no primeiro. Articulando com Weber, o autor aponta que a preocupação do pedetista
Cerqueira com uma formação militante qualificada é semelhante a do sociólogo alemão, em que a
característica principal do político é a “de deixar que as realidades atuem sobre ele com uma
concentração e uma calma íntima” (p.199).
Assim, “Quadros preparados; funcionários aptos intelectualmente para o desempenho dos
vários cargos a serem ocupados no exercício do poder, significa diluir a paixão política mediante o
“firme controle da alma”” (ibid.). Aqui penso que Pereira refere-se ao Cerqueira enquanto político,
alguém que com sua correção e serenidade mantém a “calma íntima” perante os dissabores, mas que
também se preocupa com uma formação intelectual robusta dos seus quadros, algo que vale tanto
para o PDT quanto para a PMERJ.
É a partir da produção do conhecimento para os policiais da “base” que Pereira inicia o seu
último capítulo. Aqui ele insere Gramsci para relacionar os conflitos envolvendo a “polícia nova” e a
“polícia velha”, no sentido de formação dos intelectuais orgânicos da primeira para a disputa de
hegemonia com a segunda. Hegemonia esta baseada em um modelo repressivo enraizado e que não
deixava de refletir um anseio de outros setores da sociedade para além da policial. O título, “ventos
do pensamento”, vem de uma expressão de outra pensadora: Hannah Arendt.
A partir de uma expressão usada pela autora em a condição humana, Pereira se norteia em um
capítulo focado na produção de conhecimento do coronel. Tanto durante os seus comandos quanto
após, o autor identifica a necessidade de uma produção intelectual e seu compartilhamento para uma
corporação que não apenas aprimore o operacional, “mas a capacidade de distinguir o certo do errado”
(p.211), em que o conhecimento tenha um “elemento purificador” (ibid.) para relacionar com a
filósofa alemã. Novamente o humanismo de Said vem à tona aqui, em que a reflexividade tão batida
na tecla por Cerqueira, o pensar sobre o fazer, é ligado a autocompreensão que o autor de Orientalismo

12
Após a derrota de Darcy Ribeiro representando o PDT para o candidato de oposição Wellington Moreira Franco, este
assume o governo entre 1987-1990. O agora ex-comandante Cerqueira é um coronel reformado (aposentado). Porém,
com a volta de Brizola ao governo em 1991, o mandatário escolhe novamente Cerqueira para a gestão da secretaria de
polícia militar. O coronel voltaria à ativa, o que geraria atritos no oficialato.
13
Praça” é o termo designado para uma das duas classes da hierarquia da corporação. São considerados praças os
quadros com as graduações de soldado, cabo, terceiro sargento, segundo sargento, primeiro sargento e subtenente.
Acima desta classe estão os oficiais, formados pelos postos de segundo tenente, primeiro tenente, capitão, major,
tenente-coronel e coronel. Entre as duas classes estão os cadetes (alunos do curso de formação de oficiais) e aspirantes.
Ver http:// https://pmerj.rj.gov.br/hierarquia/, acesso em 05/06/2019.
33
classifica como a “essência do humanismo como prática persistente de aperfeiçoamento da
democracia” (p.213)14.
Aqui temos as ações de um Cerqueira profícuo, produzindo e produzindo a ponto da PMERJ
se tornar referência para estudos policiais com relação a outras corporações. Também vemos as
resistências ao trabalho na forma de barbárie, com as chacinas 15 da Candelária e Vigário Geral
ocorrendo sob o seu comando enquanto resposta da “linha dura” policial ao reformismo empreendido
pelo comandante e seu núcleo. Vemos o Cerqueira psicólogo e filósofo tentando compreender a
brutalidade policial, ao mesmo tempo em que a correção e rigidez perpassam sua liderança na
resolução do caso com a punição aos policiais envolvidos.
Esta busca pela compreensão de algo que parece tão distante e do qual ele não se sente parte
gera um dos momentos mais interessantes no sentido da percepção biográfica de Pereira sobre o seu
objeto. Aqui, novamente relacionando com Said, vemos o exilado Cerqueira. Não exilado fisicamente,
mas sim de alma. Segundo o intelectual palestino, o exilado muitas vezes sente uma necessidade de
reprodução de um novo mundo. Pereira traz essa interpretação para o coronel, em que o seu novo
mundo seria a polícia que ele sonhava, “a resposta que encontrou para lidar com o páthos do exílio.
Através das ideias, decidiu construir um mundo para substituir a “polícia velha”, a pátria da qual se
sentia distante e incompatibilizado” (p.265).
Este militante com a alma no exílio paga com a própria vida o seu sonho. Sua morte é também
o fim de uma obra que continua a vida de Cerqueira em sua multiplicidade. Na tarde de 14 de setembro
de 1999, no saguão do edifício Magnus, Cerqueira seria assassinado pelo também policial Sidney
Rodrigues. Com histórico de problemas mentais e paralelamente criando uma aversão à Cerqueira
pelo mesmo ter cancelado um curso de cabo que o possibilitaria ascender na carreira, o terceiro
sargento comete o crime e logo depois morre. Entretanto, a hipótese de suicídio foi descartada, visto
que o projétil que o matou veio de outro revólver, tornando-se o caso um mistério até hoje16.
Bruno Marques registra que entrevistados para a sua tese afirmam que Cerqueira sabia que ia
morrer (2016, p.56). Isto dialoga com o relato de Sylvia Moretzsohn, que registra que dois dias antes
do crime Cerqueira teria exclamado à sua mãe, Dona Maria Magdalena, enquanto caminhavam pelo
calçadão do Leme: “Meu Deus! Por que isso? Eu sempre trabalhei na polícia com amor, só não fiz
pela PM o que não devia ser feito, e agora vou pagar com a vida”” (2001, p.15). Sem esclarecer,
teriam voltado para o apartamento almoçar. No mesmo dia, momentos depois, diria à esposa Juçara

14
Ibid., p.213.
15
Voltaremos a estes eventos e suas repercussões de forma mais detida no último capítulo. Entretanto, vale adiantar que
foram crimes de grande repercussão no período por suas brutalidades: no caso da Candelária, na noite de 23 de julho de
1993, 8 crianças e jovens moradores de rua foram assassinados por policiais que abriram fogo aleatoriamente contra mais
de 50. No caso de Vigário Geral, no dia 29 de agosto do mesmo ano e também numa noite, policiais assassinaram a esmo
21 moradores da favela que dá nome ao ocorrido. Disponível em https://anistia.org.br/direitos-
humanos/publicacoes/candelaria-e-vigario-geral-10-anos-depois/ , acesso em 17/01/2020.
16
Para mais detalhes, ver PEREIRA, Ibis Silva. Op. Cit. P.265.
34
que já sabia “onde vou aplicar essa nova polícia” (ibid.), ao que quando a esposa perguntou onde ele
respondera que “num plano superior” (ibid.), um “comentário semelhante ao encontrar-se com as
filhas Eliete e Rosângela” (ibid.) dias antes. Cerqueira possuía uma relação com o espiritismo que
advinha da sua infância, como veremos no próximo capítulo.
Policial voltado para uma polícia democrática, intelectual humanista, ator político histórico,
psicólogo, gestor, um homem com seu lado místico, tímido e que não se destacava pela oratória, mas
firme. Conhecido como disciplinador entre os comandados, prezava pela correção, mas ao mesmo
tempo “um criador de casos” subversivo.
São muitos os Cerqueiras apresentados por Pereira, mas acredito que o mais marcante nesse
trabalho ao meu ver é a ligação entre o autor e o biografado. E não digo isso de forma depreciativa,
afinal é uma obra que corresponde ao fazer historiográfico convencional a partir de levantamento de
fontes, contextualização e embasamento teórico-metodológico atravessados pelo olhar crítico. Porém,
é interessante perceber como a biografia de Cerqueira não deixa de ser uma parte da biografia do
próprio Pereira.
Enquanto oficial preocupado com a formação, o ex-comandante legou uma geração de
policiais com orientação humanista, os denominados “filhos de Nazareth”. Estes são os “que
continuam a tentar realizar o velho sonho do capitão, apesar de tudo” (p.269), como diz a última frase
do seu último capítulo. Assim como o primeiro inicia-se com um momento de inflexão na origem da
formação do jovem oficial Íbis – o momento da posse e o discurso de Cerqueira - é desta forma que
ele termina seu texto, com caminhos cruzados.

Militarismo e democracia: um intelectual inquieto e suas contradições, por Bruno Marques


Um outro trabalho que se utiliza da metodologia biográfica é a tese do historiador Bruno
Marques Silva. Defendida também em 2016, mas pelo Centro de Pesquisa e Documentação de
História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas, a obra possui o título “Uma
nova polícia, um novo policial”: uma biografia intelectual do coronel PM Carlos Magno Nazareth
Cerqueira e as políticas de policiamento ostensivo na redemocratização fluminense (1983-1995)”.
Ela é dividida entre seis capítulos, além de introdução e considerações finais: 1) “O assassinato do
comandante: entre tragédias e memórias”; 2) “O policial”; 3) “O comandante-geral”; 4) “Plano
Diretor da PMERJ: o manual reformista”; 5) “A polícia é o público e o público é a polícia: o
policiamento comunitário no Rio de Janeiro“ e 6) “O intelectual”.
Não se tratará aqui de uma comparação ponto a ponto com o trabalho de Pereira. Seria
descabido fazê-lo pelas diferenças que envolvem a produção de uma dissertação e de uma tese.
Entretanto, acredito que algumas semelhanças e diferenças na interpretação de Cerqueira podem ser
apontadas. Afinal, este é o objetivo principal no momento.
Como já pôde ser percebido no parágrafo de apresentação do título do trabalho e de seus
35
capítulos, o recorte traçado por Silva é bem claro: trata-se de uma análise voltada para o campo das
mentalidades em uma perspectiva histórica e biográfica. Para tal, ele se apropria da metodologia da
História Política e História Intelectual. Afinal, a contribuição das ideias de Cerqueira para o campo
da segurança pública envolve disputas políticas dentro e fora da PMERJ, num contexto em que sua
proposta alternativa de policiamento estava “oferecendo contornos institucionais concretos ao
discurso brizolista dos direitos humanos” (2016, p.8).
Isso significa uma visão unidimensional do intelectual Cerqueira, de suas ideias? Pelo
contrário. É a partir do recorte e da articulação entre vida e obra do objeto, “pensando como uma age
sobre a outra” (p.24) que se pretende perceber um sujeito multifacetado, e como isso está inserido
numa época que age sobre ele e vice-versa (lembremos que ele partia do princípio de uma polícia
democrática em um período de fins da ditadura). Estudar o intelectual Cerqueira, um sujeito que
buscou implementar suas proposições, envolve mais do que nunca estudar suas redes, suas
experiências.
Uma biografia, como já vimos, envolve não só o biografado, mas o outro. As relações forjadas
em sua vida são fundamentais para a construção do grande mosaico que é uma interpretação
biográfica. Aqui, o autor trabalha principalmente com o núcleo de policiais alinhados com as ideias
do ex-comandante enquanto levantamento de hipótese. Cerqueira era um intelectual representativo
dos anseios desse grupo que queria pensar a PM e transformá-la; os “reformistas” em seu termo.
Aqui o objetivo é duplo: não apenas mapear a teia de relações do biografado, mas também se
afastar da ideia de uma instituição policial pautada de forma monolítica pela repressão. A PM de Silva
é um campo de disputas, hegemonicamente com uma orientação repressiva sim, mas possuindo em
seu interior atores sociais importantes negociando uma alternativa de policiamento, com Cerqueira
possuindo um foco maior de análise.
É a partir do outro que o autor começa o primeiro capítulo. Ou dos outros. Afinal, este é um
estudo das memórias envolvendo Cerqueira. Se Pereira começa a sua biografia (ainda que de certa
forma sob um viés memorialístico pois envolve as lembranças do próprio autor) por um dos
momentos que podem ser considerados o “ápice” do coronel – a sua posse no comando da PMERJ -
e termina com sua morte trágica, Bruno Marques prefere começar pelo fim. Discorrerei sobre os
outros capítulos, porém me estenderei mais nesse e no último. No primeiro por considerar de extrema
importância as memórias e o debate trazido pelo autor, no último por entender que é onde a
interpretação predominante de Cerqueira por Silva é onde se encontra mais evidente.
O autor, para além de uma investigação sobre quem mandou matar concentra-se no que
representa a morte, relacionando com sua metodologia: um conflito de ideias antagônicas na
corporação que resultou na morte de um dos representantes da dimensão humanista. A partir daí, ele
relaciona com o próprio contexto histórico no período da morte do coronel.
Era o período de Anthony Garotinho como governador do estado (1999-2002). Inicialmente
36
com um plano de governo voltado para um projeto de segurança pública que tratasse com mais
profundidade a questão do policiamento, aproximando-se do ideal democrático de Cerqueira, ao
longo da primeira metade do seu mandato o modelo começa a tomar outros rumos. Projetando-se para
as eleições presidenciais de 2002, o então governador cede a setores da opinião pública e se apropria
de um discurso mais belicista. Isto é ilustrado por exemplo pela exoneração de Luiz Eduardo Soares,
subsecretário da pasta, humanista e uma referência em estudos sobre segurança pública.
Isto ocorre em 2000, um ano após o assassinato de Cerqueira. Bruno Marques relaciona um
evento ocorrido nesse ano, a tragédia do ônibus 174, quando um jovem sequestra este veículo e faz
os passageiros de refém, ocasionando na morte tanto da passageira Geiza Firmo Gonçalves quanto
do sequestrador, em uma operação atabalhoada da polícia. Depois é sabido, principalmente pelo
documentário “ônibus 174” a trajetória de Sandro, um jovem que sobreviveu a já mencionada chacina
da candelária, quando era um dos meninos de rua que dormiam na igreja quando ocorre o ataque dos
policiais.
Esta, em conjunto com Vigário Geral, seria uma das duas tragédias de Cerqueira antes de sua
morte física, segundo Silva. O autor acredita que as barbáries ocorridas em 1993 foram uma inflexão
na trajetória de Cerqueira, no sentido de que ele “provavelmente passou a entender que não se tratava
de uma luta no plano profissional apenas.” (p.54). Novamente voltamos ao campo das mentalidades
sobre segurança pública em disputa, mas agora não apenas na corporação, mas sim na sociedade.
Algo que estava além dele e que gestou um ressentimento por perceber o quanto estava limitada sua
produção e, consequentemente, seu reconhecimento, até no próprio meio acadêmico. Um
reconhecimento “não por vaidade, que isso ele não tinha. Mas por uma questão de justiça” (p.56,
apud. MORETZHON, 2001, p.14), como relata a viúva Juçara em entrevista a Sylvia Moretzhon,
trazido pelo autor e presente no livro póstumo “o futuro de uma ilusão”.
Nesse ponto a questão da memória começa a tomar mais corpo no capítulo. Se antes foi
mencionada pela comoção da morte do coronel e o depoimento de personalidades como os ex-
governadores Brizola e Nilo Batista naquele momento, agora a investigação vai mais profunda. Aqui,
ainda no contexto da morte, primeiro o autor refere-se aos editoriais do Jornal do Brasil, do Globo, e
uma reportagem da revista Época. As três, seja em elogio, seja em tom crítico, referem-se ao coronel
como um utópico, alguém que “sonhava com uma polícia menos truculenta e bem mais inteligente”
(p.57) ou simplesmente de um “idealismo derrotado” (ibid.), limitado ao campo teórico.
Também vemos relatos de acadêmicos, seja a partir de entrevistas ao autor, seja por relatos
em livros póstumos relembrando o coronel, praticamente unânimes no tom de reconhecimento às
contribuições do coronel. O autor, fazendo um exame problematizador das fontes, ressalta que “que
as narrativas resultantes devem ser entendidas criticamente, não somente pela “dor que elas
descrevem, mas as palavras e ideologias pelas quais são representadas”.” (p.64 apud. PORTELLI,
1996, p.108).
37
Por fim, os relatos de policiais, onde eu considero o momento mais interessante. Aqui vemos
depoimentos de opositores de Cerqueira, onde se concentram as maiores críticas. Nesse sentido, é
onde se encontra com mais nitidez o caráter da memória enquanto campo de disputas. Pois, se a visão
dominante é de alguém bem-intencionado, mas “fracassado”, um idealista, isto é disputado pelos
policiais alinhados ideologicamente de Cerqueira assim como por seus opositores.
Grosso modo, por um lado vemos o oficial “divisor de águas” na polícia, que pagou com seu
sacrifício pelos ideais que lutava e desejava na corporação, um incompreendido à frente do seu tempo.
Também temos a visão do oficial correto, em que o “convívio social era polido e gentil. Entretanto,
como oficial e comandante era extremamente rigoroso e arbitrário.” (p.76). Tal arbitrariedade, na
visão dos “opositores mais diretos” poderia ser classificada como perseguição. Eles também apontam
para uma certa ambição e oportunismo de Cerqueira ao ser comandante geral no governo pedetista,
acarretando uma “demasiada aproximação de Cerqueira com a política partidária e, assim, com os
“brizolistas”.” (ibid.).
Ao mesmo tempo, as críticas de um suposto excesso teórico em detrimento do fazer policial
retornam. Um depoimento dado a Silva por um coronel reformado da PM é sintomático e se relaciona
com o que se almeja na presente dissertação, pois
o comandante geral era ligado a movimentos sociais. Por isso certa preocupação. Agora, eu
não sei se o Brizola orientava o Cerqueira nesse sentido. A formação dele já mostrava isso.
Cerqueira nunca foi um policial operacional. Sempre foi ligado a esse negócio de estudar.
Nunca foi um combatente17.

A intenção com este primeiro capítulo fora trazer uma visão mais holística de Cerqueira
através de diversos depoimentos, buscando uma relação entre história e memória, enquanto campos
de disputa inter-relacionados e que se transformam com o tempo. O autor relaciona história e memória
enquanto interrelacionadas e suscetíveis a mudanças de acordo com a temporalidade principalmente
ao trazer dois depoimentos do coronel PM Mário Sérgio Duarte.
No primeiro, Duarte comandava o Batalhão de Operações Especiais (BOPE) durante o
segundo comando de Cerqueira, e publica um livro sobre sua experiência. Nele, Cerqueira é um líder
com “qualidades e defeitos” que trouxe avanços à corporação na questão do pensar sobre a polícia,
através dos seminários e grupos de estudos. Entretanto, ele era um líder permissivo e pouco sensível
aos seus comandados, em que as críticas sobre a relação Cerqueira-PDT-Brizola voltam à tona.
Já em outro momento, no lançamento do livro já mencionado sonho de uma polícia cidadã,
Duarte era comandante-geral da corporação e em um momento de comemoração dos 200 anos da
PMERJ e de sucesso das Unidades de Polícia Pacificadora, que em seu princípio tinha um caráter
comunitário inspirado no modelo de Cerqueira. Ele fora o responsável pelo prefácio do livro, onde

17
Ibid., p.77. Grifo nosso. Trazendo um pouco para a interpretação almejada no presente trabalho, percebe-se aqui que o
caráter pedagógico do coronel é visto de forma negativa, uma teorização que muito pouco importa para o operacional.
38
temos o Cerqueira vanguardista, realizando uma autoavaliação de suas críticas no passado –
ressaltando ainda que discorde dele em alguns pontos – como na época “tomando-a por um conjunto
de sandices, com ingredientes de intelectualismo pedante e antioperacionalidade disfarçada” (p.73,
apud. LEAL, PEREIRA, MUNTEAL FILHO, 2010, p.10), em que “muitas vezes protestei, asseverei
mal, julguei outros incapazes de realizar o que eu realizaria, desqualifiquei seus discursos e suas ações”
(ibid.). Não se trata de um juízo de valor de Duarte, mas apenas uma percepção da memória como
algo que não é imutável no processo histórico.
O início do trabalho com o fim trágico do coronel serviu para mostrar tal influência deste
evento nas memórias em torno do mesmo, para o bem e para o mal. Ao mesmo tempo, tal estratégia
narrativa de começar pela sua morte demonstra um alinhamento com o objetivo proposto do trabalho,
afinal, o assassinato do ex-comandante representa uma tentativa de assassinar suas ideias também.
Dessa forma, o autor afirma ter “a convicção de que poucos sujeitos históricos tiveram um
fim de vida tão diretamente ligado à própria existência social.” (p.433). Vale lembrar que, sendo uma
tese de doutorado na área da História, a sua morte não deixa também de estar ligada a um conflito de
concepções de segurança pública e na relação entre estado e sociedade no processo histórico, cada
vez mais patentes no processo de transição da ditadura para a democracia.
Buscando distanciar-se de extremos e comprometido com o fazer historiográfico, adentra para
os outros capítulos com a sua interpretação biográfica, em que a dimensão intelectual se mostra cada
vez mais presente. O autor inicia o capítulo sobre o policial Cerqueira utilizando uma fonte que
também será utilizada aqui (e que também foi usada por Pereira): o depoimento autobiográfico do
coronel para o Museu da Imagem e do Som em 1988. Ele se apropria de tal para abordar aspectos
pessoais, pois envolvem questões como uma trajetória marcada pelo racismo desde as origens e a
escolha por ser policial, algo que ele não desejava. Aqui, ele possui uma interpretação entroncada
pelo viés social e psicológico.
Social, pois devida a uma formação em uma família pobre e negra que o lembrava
constantemente da necessidade de sobrevivência devido às condições materiais e o racismo o levaram
a amadurecer muito rapidamente (Cerqueira entra para a escola de oficiais aos 16 anos). Psicológico,
pois a escolha pela polícia não deixa de ter uma influência do pai, Seu Antônio, para além da forma
mais direta, afinal fora ele que lhe sugeriu a carreira militar após uma conversa com um capitão da
PM que lhe disse que lá não existia preconceito racial.
Seu Antônio teve uma carreira militar breve na Bahia antes de se mudar para o Rio de Janeiro.
Tendo a influência militar em sua educação rígida mas com um vínculo de afeto ao pai e ao mesmo
tempo que “dirigiu seus desejos de realização pessoal para os filhos.”(p.91) por ter abandonado a
carreira militar durante a migração, o autor acredita que esta questão subjetiva também influenciou
Cerqueira na escolha pela carreira policial. Ao mesmo tempo, a fonte autobiográfica do MIS é
problematizada, visto que ela é produzida num momento de uma já consolidada carreira do
39
comandante. Dessa forma, e em relação com o contexto da própria proposta da entrevista, aqui o que
se percebe é uma tentativa de narrativa da ascensão linear de Cerqueira em sua unidade pessoal e
profissional, marcada pelo racismo.
Entretanto, como “não é o propósito dessa tese a reconstituição da sua trajetória pessoal, mas
sim da profissional, política e intelectual.” (p.92), Silva foca-se neste capítulo para a carreira
profissional do coronel, sem deixar de lado os traços do intelectual a partir de sua produção durante
a formação e com a análise crítica da fonte mencionada em mente.
Aqui o Cerqueira de formação rígida e de “aplicação notável” do aluno da escola de oficiais
aparece. Mas também, e, novamente, o subversivo. No sentido prático, como policial recém formado
que se recusava a usar de violência nas ruas, a ponto de colegas não gostarem de trabalhar com ele.
Ou pelo seu caráter reivindicatório, visto que sua primeira prisão administrativa seria por ter
“reclamado do excesso de trabalho e da escala mais flexível de oficiais ligados ao Estado-Maior e ao
gabinete do comandante-geral. Além disso, nessa ocasião, teria exigido uma promoção e mais cursos
de aperfeiçoamento.” (p.118).
Um subversivo, também, no campo intelectual. Seja pela busca de uma formação acadêmica
que preenchesse as lacunas e as insatisfações que sentia na corporação, seja pela produção de textos
dentro da mesma, algo influenciado pela sua própria experiência universitária. O oficial começava a
ir além do militarismo em seus trabalhos, algo que seria levado até o fim da sua vida.
Isto será mais aprofundado em capítulos posteriores da presente dissertação. Assim como a
preocupação de Cerqueira com a formação policial que fosse para além dos limites militares e
jurídicos. Se me enveredo pela face pedagógica da questão, aqui Silva a tangencia.
Se no capítulo das memórias algumas das mesmas se referem ao caráter “docente” de
Cerqueira, em outros momentos da obra o atravessamento pedagógico de Cerqueira é vislumbrado.
Seja durante a sua própria formação, seja no momento que ocupa a direção de ensino da escola de
oficiais, considerado um dos momentos mais produtivos, seja nas medidas de “reeducação” da polícia
e nas contradições envolvidas.
Esse caráter pedagógico encontra sua dificuldade nodal, e que talvez tenha sido a maior crítica
do autor a Cerqueira, na contradição entre uma tentativa de polícia comunitária a partir de uma relação
mais horizontal entre os policiais e entre os mesmos e a comunidade, partindo de uma lógica de
reeducação que visasse desmilitarizar a segurança pública. Entretanto, a desmilitarização da polícia
em si não fora levada a cabo, por isso o termo reformista. Assim, o modelo hierárquico e disciplinador
interno continuaram em suas gestões, em conflito com sua mentalidade de uma polícia que pensasse.
Segundo o autor, esta era uma opção consciente de Cerqueira, pois a “manutenção de tal militarismo
centralizador e disciplinador deveria servir de contrapeso ao desgaste da imagem pública da PMERJ”
(p.366). Entretanto:
Valorização e ritualização exageradas da disciplina e das distâncias hierárquicas reforçaram,
40
por sua vez, a tendência a homogeneizar e desqualificar o policial de ponta. Justamente
aquele que atuaria mais próximo às comunidades, restringindo sua motivação para o trabalho
à obediência cega e ao medo de sofrer punições. Talvez as sanções disciplinares não
ocorressem tão frequentemente, nem tão arbitrariamente na prática, mas sua constante
invocação e a possibilidade de serem aplicadas parecem constituir a base do “modelo
pedagógico” em vigor mesmo no comando de Cerqueira, sendo o principal instrumento de
controle interno e a principal garantia de obediência. Sem dúvida, esses fatores repercutiram
negativamente no esforço de implantação do policiamento comunitário. (ibid.)

Todos esses tangenciamentos para a faceta pedagógica ao longo do texto e suas contradições
apresentadas me levaram a uma interpretação da preocupação que considero chave para esta
pedagogia do coronel: a formação policial. Algo que pode ser visto até no título da tese de Silva
(“uma nova polícia, um novo policial”).
Entretanto, este não é o foco do autor, que se atenta mais na dimensão intelectual e no
questionamento das estruturas vigentes na corporação, engendrando o seu potencial reformista
representativo de outros policiais. Afinal, “não apenas a formação policial deveria ser reavaliada, mas
também a própria filosofia institucional”. De qualquer forma, vale o registro desta dimensão
pedagógica tocada pelo autor, que fora inspiradora para o trabalho presente.
Este reformismo na corporação seria evidenciado nos capítulos seguintes, nas suas ações à
frente do comando-geral (capítulo 3, mas estendendo-se aos outros capítulos), com seus pilares sendo
principalmente a formulação do plano diretor (capítulo 4) e a experiência do policiamento
comunitário em seus comandos (capítulo 5). Para os fins deste tópico, não me deterei nestes capítulos,
que aparecerão mais como fontes ao longo da dissertação. Entretanto, destaco no terceiro capítulo a
construção do Cerqueira enquanto homem público através do que ele considera um “acontecimento
biográfico” (p.161): a polêmica envolvendo Cerqueira e a então deputada Sandra Cavalcanti.
Em abril de 1979, Sandra Cavalcanti, política historicamente ligada ao campo conservador, a
qual, no pleito de 1982, concorreria contra Brizola o governo do estado, teceu críticas à polícia militar
e sua desorganização como fatores para a criminalidade urbana18. Segundo Ibis Silva Pereira:
Sandra acusara o despreparo para o desempenho da missão, a carência material e humana da
polícia militar. Ao que parece, um episódio teria motivado suas críticas: um amigo fora
baleado pelas costas por um Policial Militar em Botafogo, no momento em que socorria uma
senhora assaltada, confundido com o agressor (PEREIRA, 2016, p.54).

Cerqueira, tenente-coronel da PMERJ, resolve responder. Em uma espécie de artigo com tons
de réplica, em muitos momentos marcado por uma mistura de acidez e contundência na defesa da

18
Sandra já tinha feito críticas à corporação anteriormente. Em uma carta escrita ao jornal O Globo em março do mesmo
ano com o título “Violência solta”, a ex-deputada arenista comoveu-se com crimes ocorridos recentemente, como o
assassinato de uma criança de 4 anos. Acredita que existam poucos policiais nas ruas, mas não por falta de quadros,
qualificação ou de condições de trabalho, afinal “A PM é boa (...) Eles são bem pagos, se levarmos em conta os outros
vencimentos no Estado”. Sua posição é que, por um “erro de concepção administrativa”, policiais que poderiam estar nas
ruas estão realizando funções que não seriam da sua alçada, como “Cozinhar o rancho do quartel. Cuidar dos jardins. Das
vidraças. Do chão. Fazer serviços burocráticos (...) Fazer a manutenção das viaturas”. Sandra entende que, se isto é
plausível para os militares que, em períodos de normalidade precisam se manter ocupados, para os policiais este é um
trabalho que deve ser designado à terceiros, pois sua função é de estar nas ruas de forma ostensiva. VIOLÊNCIA solta.
Carta dos leitores, O Globo, edição de 04 de março de 1979, página 2.
41
corporação que beira o pedantismo. Seu texto é publicado no jornal O Globo sob o título -sugestivo
do tom ácido que viria- “Dona Sandra, a PM e os outros”.
Enquanto resposta, o então tenente-coronel se utiliza do espaço para defender e valorizar a
polícia, a qual sofre muito com a opinião pública e seus “palpiteiros”. Afinal, em sua visão, “O
brasileiro é por excelência um palpiteiro. Entende de tudo.” 19 . Ele inicia o texto justamente
valorizando a formação policial:
O currículo se desenvolve em torno de disciplinas técnicas, jurídicas, sociais e humanas. É
idêntico ao currículo de todas as escolas de preparação de policiais, nos outros países. Além
desses cursos básicos, a PM possibilita ao oficial outros cursos, na própria PM, nas Forças
Armadas e em organizações policiais estrangeiras. Diante desse quadro, posso afirmar que
todos os oficiais da PM são profissionais de polícia. Embora d. Sandra prefira a “burrice
meiga”, não é essa a orientação pedagógica das Polícias de hoje. 20

Como veremos em outro momento, por depoimentos posteriores de Cerqueira e de outros


oficiais do período, a formação oficial não era tão bem quista assim, a ponto de o futuro comandante
propor uma reformulação durante a sua gestão. Mudança de opinião, contradição ou argumento
político perante a defesa da corporação no espaço público?
Ele reconhece a gravidade do tema proposto, contudo, e embora esteja se utilizando de um
espaço da imprensa, “não é para ser resolvido na imprensa e na TV. É tema técnico para ser resolvido
por policiais, juristas e administradores. Não é tema para ser equacionado por pessoas desavisadas e
movidas por interesses inconfessáveis.” 21. Assim, ele reivindica que tais setores do tema técnico
possuam espaço no debate público e o faz da sua forma nesse texto. E às vezes de um modo não tão
abrangente, vale ressaltar. Em certos momentos Cerqueira cita parágrafos inteiros de autores
franceses na língua original sem qualquer tipo de tradução.
Não sabemos qual teria sido a intenção ou se simplesmente fora algo natural. Se fora de
propósito, vale especular que estivesse visando passar uma mensagem positiva da corporação
enquanto uma polícia que estuda e é culta em um jornal que tem um público em sua maioria de classe
média/ classe média alta, a qual em boa parte possui um imaginário eurocêntrico enquanto referência
intelectual e cultural (principalmente o francês). Ou como ferramenta para um argumento de
autoridade. De qualquer forma, a aproximação da corporação com o público é um tema que ele irá
perseguir a vida inteira e tentará concretizar em suas gestões na secretaria, como veremos adiante.
Outros dois pensamentos que Cerqueira irá perseguir estão presentes no artigo-resposta: uma
reflexão sobre a organização das polícias e uma reforma do judiciário. Acerca da dicotomia Polícia
Militar x Polícia Civil, Cerqueira argumenta que unificar ou multiplicar o número de Polícias não
necessariamente significa influência na diminuição da criminalidade: “Polícia única e polícia múltipla
não faz aumentar ou diminuir o crime. Há vários modelos policiais no mundo e não se sabe que a

19
O Globo. Edição de 22 de abril de 1979, p. 20.
20
Ibid.
21
Ibid.
42
variação da criminalidade sofra qualquer modificação em função disso”22. Assim, Cerqueira relaciona
as diferentes organizações policiais de países como EUA, França e Chile para argumentar que cada
polícia responde às especificidades e História de seu país, visto que “Estado e polícia são
inseparáveis” 23 . Ao mesmo tempo, o exemplo dos dois últimos países serviu também enquanto
tentativas das polícias desses países, também ligadas ao militarismo, de não perderem a origem militar,
mas aprofundando o fazer específico policial. Outro debate que Cerqueira levaria para a sua vida.
No caso brasileiro, a divisão entre polícia militar e civil é criticada pelo então tenente-coronel
não pela sua dicotomia em si, mas pela estrutura própria de cada. Cerqueira entende que as duas são
“polícias incompletas”, pois a “PM não faz investigação e a PC não tem a parte ostensiva
(preventiva)” 24 . Uma polícia completa seria, portanto, uma que englobe as duas características,
ressaltando que a multiplicidade das polícias deve ser feita com cuidado, a fim de estar distante de
interesses eleitoreiros. Por fim, acredito que deixa nas entrelinhas sua posição, pois sugere que “o
movimento das Polícias no mundo é mais para a simplificação do que para a multiplicação”25.
Também acho interessante o destaque entre parênteses que ele insere. Para Cerqueira, polícia
ostensiva é sinônimo de polícia preventiva, não repressiva. Esta é outra ideia que será aprofundada
ao longo da produção teórica do Coronel (e que tentará ser aplicada em suas gestões).
De qualquer forma, aponta que para uma reforma policial faz-se necessária uma
intencionalidade política, e também uma reforma do judiciário. Esta se basearia principalmente na
criação de um Juizado de Instrução, o qual tiraria da Polícia a responsabilidade de realizar um
inquérito, cabendo a ela apenas as funções investigativas e de prevenção. Além disso, caberia a este
órgão “fiscalizar a lei e a polícia”26. Assim, pretende-se limitar as funções penais que a polícia executa.
Alertando para a especificidade da polícia e para sua reivindicação no espaço público, acredito
que Cerqueira fundamenta pontos para reforçar o final do seu texto, em que ele pede um respeito
maior à polícia:
A Polícia é uma instituição que tem que ser prestigiada. Falo aqui do prestígio sociológico
da organização. É preciso pensar nisso. Não adianta unir polícias mudar polícias, se não lhe
for dado prestígio. É preciso definir bem o que seja Prevenção da Criminalidade: é preciso
entender bem a função social da polícia; os seus fins e seus objetivos. A missão da polícia
na sociedade não é só o de prender assaltantes e revistar pessoas nas ruas e nos morros. É
preciso atentar bem para as múltiplas atribuições da Polícia na sociedade moderna. 27

Assim, a polícia, enquanto interligada com a sociedade, precisa ser reconhecida como tal,
como parte integrante. Reconhecendo isso percebe-se uma função mais complexa do que “prender

22
Ibid.
23
Ibid.
24
Ibid.
25
Ibid.
26
Ibid.
27
Ibid.
43
assaltantes e revistar pessoas”28. Esta complexidade reside no deslocamento da lógica repressiva para
a de prevenção comunitária, algo que será aprofundado tanto no campo teórico quanto no prático em
seus comandos, em especial no segundo.
Aqui ocorre uma inflexão em sua carreira profissional, pois, se a defesa enfática da corporação
pela imprensa - o que torna curiosamente subversivo pois Cerqueira irá ser preso administrativamente
de novo – o angaria ainda mais prestígio na corporação, por outro mudaria sua trajetória individual,
pois “dali para frente, o espaço público seria gradativamente uma arena privilegiada de atuação desse
oficial.”(2016, p.162). Ao mesmo tempo, por fim, o caráter de intelectual fica cada vez mais evidente,
pois como vimos, muitas de suas ideias reformistas estão presentes de forma embrionária no artigo, e
seriam desenvolvidas em um texto que escreveria durante a prisão denominado a PM e as tensões sociais.
Como caracterizar o intelectual Cerqueira? Segundo Silva, sua fase mais profícua foi no final de
sua vida e onde melhor se pode perceber sua intelectualidade. Ao sair do segundo comando, Cerqueira,
em conjunto com Nilo Batista e Vera Malaguti Batista, funda o Instituto Carioca de Criminologia em 1996.
Voltaremos de forma mais detida a este acontecimento posteriormente, mas de antemão vale dizer que o
objetivo era basicamente o de disseminar uma produção intelectual acerca de uma teoria de polícia que
contribuísse para a formação policial.
Assim, o autor realiza um percurso de análise crítica de vários artigos do agora ex-comandante.
Não se buscará aqui um resumo dos conceitos trazidos por Cerqueira, ainda que alguns pontos nodais
como a sua contribuição à criminologia crítica serão apresentados a título de contextualização, como a
sua contribuição ao campo da criminologia crítica. O que importa são as dimensões do mesmo trazidas
por Silva em sua interpretação nesse período de maior efervescência intelectual. Segundo o autor, nesse
momento
Dedicando-se às tarefas próprias do intelectual e longe das “amarras” profissionais e dos
compromissos próprios de um gestor público, Cerqueira aprofundou algumas teses já
expostas ao longo de sua trajetória como oficial policial-militar. Agora distante do quartel-
general da PMERJ, o escrever passou a ser sua morada. Assim, ele passou a levantar
publicamente questões, antes embaraçosas, confrontando certas ortodoxias relativas ao
trabalho policial no Brasil. Colocou-se, ainda, como uma das vozes representativas de certos
princípios muitas vezes esquecidos no debate sobre a segurança pública. Voltava-se
principalmente contra as constantes violações de direitos próprios da cidadania que
continuavam caracterizando o sistema criminal brasileiro. Distante do poder e dos
consequentes privilégios e honrarias, Cerqueira pôde, enfim, se dedicar à reflexão teórica
sobre as suas antigas e permanentes inquietações. São seus escritos nessa instituição.
(p.372).

Mais do que uma produção de conhecimento, entretanto, para o autor os textos possuem um
viés memorialístico, visto que Cerqueira encontra-se com suas tragédias: as já mencionadas chacinas
da Candelária e de Vigário Geral, além da Operação Rio29, a qual também será vista no último capítulo.

28
Ibid.
29
Deflagrada em 1994, a Operação Rio consistiu na intervenção federal através do exército nas questões de segurança do
estado do Rio de Janeiro. Sofrendo pressão cada vez maior da opinião pública e dos meios de comunicação acerca de um
descontrole do governo fluminense nas questões de violência, o governo federal intervém a partir do envio de tropas,
reduzindo drasticamente a autonomia dos órgãos estaduais no comando da segurança pública, envolvendo evidentemente
Cerqueira. A despeito da cobertura jornalística, os índices de criminalidade pouco tiveram alteração durante o período da
44
Como se ele estivesse em um acerto de contas consigo mesmo e com suas “derrotas” na proposição
de sua política de segurança pública alternativa e compromissada com os Direitos Humanos. Ao
mesmo tempo, tal acerto é perpassado por um aprofundamento intelectual que o faz ressignificar estes
eventos, ainda que numa ótica “acadêmica”. Desse encontro entre memória e produção do
conhecimento, Silva interpreta que
Os últimos artigos escritos por Nazareth Cerqueira revelam não somente frustração, mas
também um intelectual obstinado. Para ele, haveria um grande atraso das ciências jurídicas
frente aos avanços conseguidos pelas ciências sociais e criminológicas no tocante aos
aspectos criminais. Por isso, o coronel também denunciava a formação acadêmica dos
integrantes do sistema criminal: juízes, promotores, delegados e Oficiais PMs sob a
hegemonia dos cursos de Direito. Para ele, tratava-se do processo de “advogadização” ou,
em outras palavras, da crença dogmática nas ciências jurídicas. (p.412).

Percebe-se neste trecho uma articulação entre a elaboração de conceitos de Cerqueira, mas
também uma dimensão do eu, do sentir. Para além do campo das ideias temos uma interpretação de
alguém com um misto de frustração com obstinação, que desembocaria em uma esperança no futuro,
como Silva diria mais à frente.
Aqui também temos o intelectual de Said, como em Pereira, ainda que sem a comparação
entre biografias dos próprios intelectuais. Silva foca-se mais no conceito de intelectual trazido pelo
pensador palestino. Temos o retorno ao conceito de intelectual exilado, mantendo uma postura
independente para não perder seu viés crítico, embora envolvido numa tensão inerente entre produzir
conhecimento “enquanto oficial de uma instituição burocrática, corporativista e autoritária” (p.384).
Entretanto, fora do comando e dedicando-se a pesquisar no Instituto Carioca de Criminologia
o coronel tem a volta da sua alma no exílio. Longe das “amarras”, Cerqueira é, mais do que um
policial intelectual, é um intelectual que pensa a polícia e para além dela, cada vez mais comprometido
na arena política. Ele alarga sua produção de conhecimento para o meio jurídico ao contribuir com a
chamada criminologia crítica e a questão da violência, e como isso pode influenciar na formação
policial.
Advinda de uma tradição que envolve tanto o marxismo quanto numa análise foucaultiana, a
criminologia crítica constitui-se num rompimento com os modelos liberais e posteriormente
positivistas que formularam o seu conceito. Se na tradição liberal do século XVIII o crime era ligado
a uma noção de moral, na tradição positivista do século XIX o estudo das causas do crime partia de
uma identificação dos fatores que levaram o criminoso a realizar tal anomalia nos valores naturais de
uma sociedade. Dessa forma, “a humanidade foi dividida entre os indivíduos recuperáveis e os seres
anormais. A loucura e o crime seriam alvo de terapêuticas sociais. Consolidava-se, no século XIX, o

Operação Rio. Alguns teóricos tratam a questão como uma jogada eleitoral do governo federal que praticamente sepultou
as chances do então governador Leonel Brizola, descompatibilizado da função para disputar as eleições presidenciais,
consolidando-o de vez o imaginário de um “desordeiro” e “defensor de bandido”. Sobre a Operação Rio, ver SOARES,
Luiz Eduardo. Violência e Política no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume Dumará/ISER, 1996.
45
controle social por meio de estratégias disciplinares.” (p.387). Gerando as instituições policiais e um
sistema penal repressivo e supostamente inquestionável nesse século enquanto instrumentos de
controle.
Assim, e como o nome diz, a criminologia crítica surge justamente enquanto questionamento
aos sistemas penais e ao caráter imutável da sociedade. A contribuição dos teóricos marxistas seria
principalmente a apropriação dos conceitos de hegemonia, luta de classes e materialismo histórico
para o entendimento do crime e do sistema penal desnaturalizados e deslocados de uma noção
individual. Assim, a “prática organizada da classe politicamente hegemônica conseguiria, por meio
do sistema penal, utilizar-se do discurso da igualdade jurídica formal para aplicação seletiva do desvio
dentre os despossuídos, mantendo a reprodução das desigualdades sociais “(p.393). Já a contribuição
foucaultiana serviu para aprofundar uma ideia de que a resolução de todos os problemas da
criminalidade consistiria meramente na diminuição das desigualdades sociais e na associação da
criminalidade à pobreza. Nesse sentido, “ele analisou para além da luta de classes, o poder exercido
como estratégia das instituições disciplinares, desvendando uma “microfísica do poder”” (ibid.).
É a partir dessa articulação desses dois polos que contribuíram para a criminologia crítica que
Cerqueira busca trazer as polícias para o debate sobre a formulação de segurança pública, entendendo
que a questão não envolve só a vontade política e econômica de um exercício pleno do estado de bem
estar social, mas também no questionamento do direito e das agências de controle como a que ele
atuou. Assim, novamente volta-se para a questão da formação do policial reflexivo e que saiba atuar
em conformidade com o processo histórico inserido. No caso brasileiro, uma democracia
representativa. Nesse momento percebe-se um Cerqueira cada vez mais crítico a dimensões da
sociedade como meios de comunicação e a processos históricos como o regime militar e seu
aprofundamento na já existente cultura repressiva policial. Entretanto, e até o fim da sua vida, a
tentativa de conciliar uma ideia de “desmilitarização da segurança pública” com a manutenção de
valores militares como forma de disciplinarização da corporação policial (ainda que com uma ideia
de sistema aberto e com uma formação que visasse o questionamento) persistiu.
A fundação do ICC e sua maior efervescência produtiva neste momento talvez não chegue a
ser classificado como um segundo “acontecimento biográfico”, visto sua interrupção abrupta pelo
assassinato, mas este sem dúvida é um momento que, além de ser um reencontro de Cerqueira com
ele mesmo (no segundo capítulo da presente dissertação isso ficará mais claro) também o é de uma
inflexão intelectual que poderia levar para caminhos infelizmente não vistos pois interrompidos pela
sua morte, mas reconhecidamente potencial por quem trabalhou ou acompanhou o mesmo no período.
A impressão que me passa é a de um intelectual inquieto, não só no sentido de questionamento
externo, mas também interno. Cerqueira, policial que ingressa em 1954 na escola de oficiais e
comanda a corporação em 1983 teve em sua formação os processos históricos da democracia e da
ditadura. As contradições o perpassam intelectualmente, buscando compreender para além da
46
literatura existente uma forma que conciliasse a corporação que tanto defendia e que não deixava de
prezar por valores militares para um reformismo humanista.
Ao mesmo tempo, isto não significa, como o autor aponta, que ele teria sido um “um criador
de consensos”, mas sim “um duro crítico que insistia na recusa das fórmulas fáceis e sempre
conciliadoras, desejando ativamente expor publicamente suas ideias” (p.437). Tal enfrentamento foi
crescente em seus comandos, algo que o autor acredita ter tido influência pelo contexto que Cerqueira
viveu e pelos contatos construídos e necessários às funções de um gestor público, o qual mantém
diálogo com comunidades, movimentos sociais, o meio acadêmico e o próprio governo (no final de
sua vida Cerqueira era filiado ao PDT). Assim, ele ia para fora dos muros da corporação, o qual nunca
deixou de defender, mas buscando manter uma autenticidade.
Assim, em vez de consensos um “criador de casos” também no campo teórico. Silva, assim
como Íbis Silva Pereira enveredam para o intelectual Cerqueira em diálogo com sua trajetória, ou
seja, alguém inquieto com uma cultura policial que não lhe fazia sentido pois confrontava crenças e
valores vindas da sua origem, formulando um escopo teórico que contribuísse para uma nova cultura
policial, mais humanista, preventiva e comunitária consonante com um Estado Democrático de
Direito.
Se ambas são perpassadas pela dimensão intelectual em sua interpretação, a diferença ao meu
ver reside na relação do autor com o biografado: Pereira enquanto um dos “filhos de Cerqueira”,
fazendo o caminho do meio policial para a academia, o qual possui um vínculo com o coronel desde
sua chegada à instituição, em que tal ligação é presente em sua obra. O que não significa, como já foi
dito, um demérito. Silva analisando a partir de outro caminho, da academia para o meio policial, indo
à caserna e conhecendo o campo, assim como o seu objeto.
Não considerando hipóteses excludentes acerca da intelectualidade de Cerqueira, busco
acrescentar uma interpretação de um intelectual que partia de tal concepção de polícia identificando
que um dos pilares de sua transformação seria justamente a formação policial. Assim, depreende-se
que tal discurso possui uma intencionalidade característica da pedagogia enquanto formulador de
novas proposições para a construção de uma nova corporação. Aqui, a partir das contribuições de tais
trabalhos analisados, já foram apresentadas algumas pistas e contradições em tal discurso, que serão
aprofundadas nos capítulos anteriores. Uma pista que acredito merecedora de um foco maior é a
relação de Cerqueira com sua negritude, onde começarei por aí analisando uma última biografia do
coronel. No caso, narrada pelo próprio.

47
Capítulo 2: Entre a rua pequena e o tornar-se negro – Polícia, racismo e negritude em um
Nazareth Cerqueira pelos versos

Depoimentos para a posteridade: uma contextualização


O projeto levado a cabo pelo Museu da Imagem e do Som envolvia na ocasião dos cem anos
da abolição da escravidão reunir, na esteira da sua já consolidada proposta dos Depoimentos para a
posteridade 30 , um movimento em sentido semelhante. Nesse momento, entretanto, a iniciativa
entremeia-se, em articulação com o contexto citado, nos relatos de figuras negras públicas e de
destaque nos variados setores da sociedade. Carlos Magno Nazareth Cerqueira fora um dos
convidados do projeto.
Então um coronel reformado e ex-comandante da corporação após sua primeira experiência à
frente da secretaria de polícia militar31 do governo estadual de Leonel Brizola no Rio de Janeiro
(1983-1987), Cerqueira formula uma narrativa perpassada pelo racismo e sua forma de lidar com ele.
Embora em uma narrativa ordenada e, como Silva menciona, destinada a desembocar em um
destino final – o comando – Cerqueira expõe os preconceitos sofridos individual e institucionalmente,
mas também suas inquietações e descaminhos na forma de lidar com eles. Acredito que existam pistas
– e não apenas circunscritas à entrevista ao MIS – que possam ser mais exploradas visando fornecer
uma reflexão envolvendo memória, racismo, identidade e negritude, conceitos a serem explorados ao
longo deste capítulo.
A questão racial é o traço mais forte da entrevista. Tanto, evidentemente, por parte dos
entrevistadores quanto do entrevistado. Contudo, Cerqueira não deixa de abordar pontos que
considera importantes para sua carreira e pensamento. Assim, aspectos da entrevista que envolvam
seus questionamentos à formação militarizada, sua ideia de polícia e o comando serão analisados com
mais cuidado nos próximos capítulos.
Aqui me deterei ao que interpreto como o processo de tornar-se negro de Cerqueira, sua
afirmação a partir de uma pedagogia da negritude que se percebe por fontes para além da própria
entrevista do MIS e seus manuscritos. Momentos antes de sua trágica morte o comandante negro
ainda escreverá sobre o tema, como se verá.
Não se pode deixar de ressaltar o contexto de produção do relato, a iniciativa do projeto – cem

30
Criada em 1966, tal coleção constitui-se” a partir da gravação, em áudio e vídeo, de depoimentos prestados por
personalidades vinculadas aos diversos setores da cultura. São 1.100 depoimentos, incluindo os projetos especiais, que
perfazem aproximadamente quatro mil horas de gravação”. Disponível em
https://www.mis.rj.gov.br/acervo/depoimentos-para-a-posteridade/, acesso em 08/08/2019
31
Brizola extinguiu a secretaria de segurança, que englobava as polícias militar e civil e era submetida ao Ministério do
Exército, e determinou que a partir de então ambas fossem secretarias de estado. Dessa forma, o governador contornou a
influência do regime militar nos postos de comando com quadros do Exército, possibilitando que membros das
corporações policiais chegassem aos postos mais altos. Ver HOLLANDA, Cristina Buarque de. Polícia e direitos
humanos: Política de segurança pública no primeiro governo Brizola (Rio de Janeiro: 1983-1986). Rio de Janeiro: Revan,
2005

48
anos da abolição, depoimentos para a posteridade de personagens negros em destaque – e como isso
influenciou em sua narrativa. Vale ressaltar, como aponta Christine Delory-Momberger (2008), que
muitas vezes um relato autobiográfico é ressignificado e construído no próprio esforço de produção
de tal narrativa, em que o contexto também possuí influência. Deve-se considerar, portanto, como o
cenário em que tal relato foi fornecido contribuiu para tal narrativa permeada pelo racismo.
Não se está negando o racismo sofrido pelo personagem, longe disso, mas apenas pontuando
que um relato biográfico ou autobiográfico não é neutro ou imparcial, ele possui posicionamentos e
contextos dentro de tal esforço de uma organização narrativa. Tal organização pode ser percebida,
principalmente, no manuscrito que Cerqueira prepara anteriormente à entrevista, o qual também será
utilizado aqui.
Como se verá adiante, interpreto que não só o contexto do evento em si influenciou seu relato,
mas também sua experiência enquanto gestor público e sua necessidade de convivência com grupos
e sujeitos os mais diversos para além da corporação, como o próprio movimento negro, algo citado
pelo ex-comandante no relato. Não à toa um dos integrantes do movimento negro no período, João
Marco Aurore Romão, estava também presente na entrevista. Ele fora um interlocutor entre o
movimento e Cerqueira durante o primeiro comando, levando o movimento para o quartel para a
realização de palestras.
Por outro lado, tal depoimento, se como memória individual possui suas operações e
enredamentos, além evidentemente do seu valor como fonte, também não deixa de se inserir em uma
memória coletiva que disputa. Nesse sentido, deduzo ter sido essa a intenção do projeto engendrado
pelo MIS enquanto edificação de algo que a própria história oral, muito em voga na época contribuiu,
a qual “ressaltou a importância de memórias subterrâneas que, como parte integrante das culturas
minoritárias e dominadas, se opõem à “memória oficial”, no caso a memória nacional.” (POLLAK,
1989, p.4).
No caso, a reunião de relatos de negros e negras em uma sociedade atravessada por um
racismo histórico e suas tentativas de silenciamento e invisibilização do povo negro no processo
histórico para além dos lugares que lhes são pré-determinados. Esta é uma questão que pode ser
observada na própria fala introdutória de Dulce Porto Ramalho, uma das participantes do depoimento
de Cerqueira, ao apresentar o projeto antes do relato do coronel ter início:
A nossa preocupação ao desenvolver esse projeto neste ano do centenário da abolição é
exatamente ampliar o nosso arquivo em termos de pesquisa para que futuros pesquisadores,
jornalistas e o público tenham aqui um acervo material especial sobre a situação do negro no
Brasil (...) e com isso poder naturalmente recriar a história do negro no Brasil, recriar não,
criar a História do negro no Brasil32

32
RAMALHO, Dulce Porto. Carlos Magno Nazareth Cerqueira: depoimento [jul.1988]. Entrevistadores: Airton da
Silva Rabello, João Marcos Aurore Romão, Yvonne Maggie. Rio de Janeiro: MIS-RJ, 1988, 4 cds. Entrevista concedida
ao Projeto 100 anos da abolição: depoimentos para a posteridade.
49
Se Silva aponta para um ordenamento de uma narrativa que leve a origem e deságue no
comando, vale sublinhar, contudo, que existe um esforço por parte do entrevistado em apresentar
dimensões que vão além do policial. Isso se atesta principalmente pelo complemento da entrevista.
Seus 215 minutos divididos em quatro cd´s não foram realizados de uma tacada só. Do total, 162
foram obtidos no primeiro registro, em julho de 1988. Em agosto, Cerqueira voltaria para que seja
melhor visto “o cidadão”, nas palavras de Dulce Porto Ramalho, visto que tal dimensão fora muito
suprimida em favor do policial na primeira entrevista. Vejamos em um primeiro momento então sobre
esta dimensão mais pessoal.

Olaria e a rua pequena: o início


Carlos Magno Nazareth Cerqueira nasceu em 11 de setembro de 1937 no bairro de Botafogo,
zona sul da cidade do Rio de Janeiro. Um ano depois, seus pais, Seu Antônio e Dona Maria Madalena
– migrantes da Bahia, mas que se conheceram na capital fluminense – se mudariam para uma vila de
9 casas em Olaria, na zona norte da cidade. Com os pais adeptos ao espiritismo kardecista, desde
pequeno ele frequentava um centro espírita no bairro do Catumbi.
Daí viria seu “lado místico”, um ponto recorrente na entrevista e que o acompanharia até o
fim da sua vida. Em contraposição ao pai, sua relação com a religião era mais intimista, como
descreve na entrevista: “E eu pensava e penso até hoje que a religiosidade acompanha a gente no
cotidiano e na nossa vida. A gente não é religioso só quando vai pra igreja, mesmo não indo à Igreja
a gente pode ser religioso”. 33
Teve uma infância pobre, mas não miserável. Não chega a trabalhar na infância, mas lembra
das privações sofridas a partir do sacrifício dos pais em destinar grande parte da renda familiar no
estudo dos filhos. Raramente ganhava presentes e andava de tamancos. Nem tudo é dor, contudo.
Botafoguense, alegando a escolha por nascer no bairro homônimo, gostava de jogar futebol e botão
na infância com os amigos da vila e da rua. Na vida adulta passaria a jogar basquete. Em seu
manuscrito, aponta que tinha boa relação com a vizinhança.
No complemento do relato, relembra de três personagens mais velhos no bairro que o
marcaram: José, garçom e bicheiro, João, soldado da PM e Mário, comunista. No convívio com o
último em especial, com quem conversava enquanto lia jornais de esportes com o mesmo, relata que
não entendia e se questionava “por que havia perseguição ao partido comunista?”34. De qualquer

33
CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Carlos Magno Nazareth Cerqueira: depoimento [jul.1988]. Op.Cit., Vale
lembrar que a, despeito da democratização ocorrida com o fim do Estado Novo, a política alinhada do então presidente
Eurico Gaspar Dutra com os Estados Unidos no contexto de Guerra Fria fora um dos fatores responsáveis por colocar o
Partido Comunista Brasileiro na ilegalidade. O PCB estava em franco crescimento no período, chegando a eleger Luís
Carlos Prestes para o senado. In FERREIRA, Jorge, DELGADO, Lucília de Almeida Neves (Org.). O Brasil
Republicano: O tempo da experiência democrática – da democratização de 1945 ao golpe civil-militar de 1965. Volume
3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.
34
Ibid.
50
forma, mais do que a lembrança em si, interpreto que a evocação de três personagens fora uma forma
de Cerqueira ordenar em sua narrativa três símbolos que, em sua visão, perpassariam sua trajetória:
o crime através de José, a polícia através de João e a política através de Mário.
Assim como não entendia a perseguição aos comunistas, Cerqueira também não entendia a
“guerra, morte, ter que matar” 35 . Por isso, entre todas as suas vontades profissionais -professor,
psiquiatra e padre- uma carreira ele tinha certeza que não seguiria: a militar. Duas, na verdade, pois
pelo medo na infância de “cadáver e de sangue”36, não queria ser médico.
Também vemos um Cerqueira que gosta de música e poesia. Sobre a primeira, revela que
gosta de música clássica e popular, e que queria estudar violino. Seus pais foram tácitos: “ou escola
ou música”37. Sobre a segunda, conta que gostaria de ser escritor. Os poemas fazem parte da sua vida
desde os 16 anos, embora “só escrevia poesia quando estava triste”38. Escrevera várias ao longo dos
anos e chegou a inscrever uma em um concurso, embora na época da entrevista não fazia há algum
tempo. Contudo, o entrevistado levou uma poesia sua no relato complementar e a lê. Voltamos à vila,
agora sob a forma de lembranças do já adulto Cerqueira:

Hoje não mais corro


Não brinco
Não salto nem brigo
Hoje lembro
Somente da minha rua
Da minha rua pequena
Da minha gente pequena
Daquela alegria pequena
Que faz da gente pequeno
Gente cheia de amor
Gente cheia de esperança
Saudades da minha rua
Daquela gente pequena
Daquela gente sem dor
Daquela gente que canta
Daquela gente que ri
Sem tempo para chorar
Hoje vejo distante minha rua
Aquela gente pequena
Agora gente grande
Agora dor grande
Agora tristeza grande
Até a rua que era pequena
Agora é grande
Infinitamente grande39

35
Ibid.
36
Ibid.
37
Ibid.
38
Ibid.
39
Ibid.
51
O pequeno que corria e brigava aprendeu a ler na vila, em casa, e assim “pularia” para o
segundo ano no colégio ao ingressar. Estudaria o então ensino primário no colégio público Clóvis
Bevilácqua e o secundário no colégio particular Santa Teresa. Cerqueira – único negro da turma –
considerava-se um bom aluno pois ficava “sempre entre os 3 primeiros da turma”40 e tinha um bom
relacionamento na escola. Em retrospecto, aponta que suas amizades no convívio escolar eram com
um judeu e um italiano, numa ideia de simbolizar tais laços marcados pelas diferentes opressões
vividas por ambos (racismo, antissemitismo e xenofobia).
O nome de uma professora em especial é mencionado: Maria Arlete. Entretanto, novamente a
ofensa racista na primeira página do manuscrito retorna. Desta vez, ao lado da palavra sublinhada
“macaco” a frase “marcou muito”41. Existiria um evento específico desta vez? Como o teria marcado?
Cerqueira relembrou em depoimento ao MIS uma experiência vivida aos 7 anos de idade. Segundo o
mesmo, “a primeira sensação de desconforto que eu tive por ser negro”42:
Eu estava brincando com um quadro do Duque de Caxias, fazendo aquelas palhaçadas, e eu
escutei a professora Maria Arlete falando: “parece um macaquinho”. Eu já não gostava
daquela imagem de macaco, então aquilo não me agradava. Então foi a primeira vez que eu
tive uma sensação de desconforto, eu não sei dizer se até humilhação. O que eu sei é que dali
pra frente eu passei a ser um garoto mais comportadinho em sala, mais obediente. Eu até
tinha medo de falar porque eu sempre pensava naquela reprimenda chamando de macaco43.

Termo que perdura até os dias atuais, o uso da palavra “macaco” para se referir ao negro
possui conotação fortemente racista, visto que, a partir da associação da cor da pele do humano ao
animal busca-se 52nferioriza-lo. Estamos na década de 1940, onde o racismo científico do século
XIX, e reforçado pelos movimentos fascistas dos anos 1930 ainda possuía sua força em grande parte
do imaginário social, em que o negro era visto como uma “raça inferior”, mais próxima aos animais
do que dos humanos.
Contudo, Cerqueira não considera que a professora tenha feito por mal: “ela era uma profes-
sora muito querida”44. De qualquer forma, uma atitude que o impactou a ponto de, segundo o próprio,
interiorizar a experiência e ficar mais calado em sala. E fora dela também. Em seu relato o coronel
afirma que “temia as garotas, tinha medo de ser humilhado por ser negro.”45. Se por um lado sua irmã
alega que Cerqueira nunca foi de namorar por estar “sempre com os livros”46o próprio complementa

40
Ibid.
41
Manuscrito da entrevista com Carlos Magno Nazareth Cerqueira de 18 de julho de 1988. In: Museu da Imagem e do
Som. Projetos especiais “Cem anos de Abolição”, p. 1. In Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, Coleção
Coronel Cerqueira.
42
CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Carlos Magno Nazareth Cerqueira: depoimento [jul.1988] Op. Cit.
43
Ibid.
44
Ibid.
45
Ibid.
46
MORETZSOHN, Sylvia. “O sonho do capitão”. In: CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Op. Cit. P.11
52
justificando que a vontade de ser padre e o receio de ser rejeitado pela cor o fizeram casar tarde, “e
se me apaixonasse por uma branca?”47.
Aconteceu: aos 35 anos, conhece Adelaide, branca, sua primeira esposa. A rejeição veio pela
família, que proibiu a filha de casar com um negro. Após um recuo em que chega a terminar o rela-
cionamento, ela resolve enfrentar os pais e leva em frente o casório. Contudo, a família não compa-
rece, cortando relações por anos. Cerqueira dizia para ela que “tudo bem eles não gostarem de mim,
mas ela é sua mãe, vocês precisam se falar”48. Posteriormente reatariam. Foram casados por 12 anos
e tiveram duas filhas, Eliete e Rosângela.49

A educação como bem supremo em um país de racismo estrutural


Como já mencionado segundo o relato, seus pais concentraram todos os esforços na educação
dos filhos, Cerqueira e sua irmã mais velha, Lourdes. O pai fora condutor de bonde e praça da polícia
militar. Apesar de ressaltar o “bom ambiente familiar”50 Cerqueira se refere no manuscrito ao pai
como “um pouco complicado”51. Já a mãe, “muito paciente”52. Segundo o entrevistado, seus pais
tinham consciência do racismo existente e lidavam com ele de uma forma pragmática:
Meu pai era um homem pobre e trabalhador e sempre se esforçou para que tivéssemos
instrução. E ele sempre colocou pra gente as dificuldades que nós teríamos por ser negros (...)
e ele avisava: “forças armadas você não pode ir; Colégio Militar você nem pensa porque lá
há discriminação racial e não aceitam negro”.53

No manuscrito, Cerqueira aponta que o pai tinha “um grande problema com a cor da nossa
pele”54, ainda que “colocava a questão da cor de maneira bem pacífica. Se não aceita não adianta
ir.”55 Como já dito, Cerqueira pensava em ser padre, um sonho logo cortado pela mãe: “teve uma
ocasião em que eu disse para minha mãe que eu queria ser padre, aí ela disse assim: padre, meu filho?
Você já viu um negro ser padre?”56. No relato ao MIS, o entrevistado aponta que mãe se preocupava
com o filho se destacar, “quase que aquela mensagem: fique no seu lugar”57.Interpreto que eles sabiam
da existência de uma conjuntura que os impunha barreiras socioeconômicas, mas que não deixavam
de lidar com elas a seu modo. Assim, ao mesmo tempo, lidavam com o racismo a partir de um certo
tipo de silenciamento.
Um caso envolvendo o pequeno Carlos Magno é sintomático da forma como o mesmo lidaria

47
CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Carlos Magno Nazareth Cerqueira: depoimento [jul.1988] Op. Cit.
48
Ibid.
49
Em 1982 conheceria sua futura segunda esposa, Juçara, com quem se casou em 1996 e viveria até o fim dos seus dias.
Com ela, além da enteada, Cerqueira teve outros dois filhos.
50
Manuscrito da “entrevista com Carlos Magno Nazareth Cerqueira” de 18 de julho de 1988. Op. Cit. p.1.
51
Ibid.
52
Ibid.
53
CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Carlos Magno Nazareth Cerqueira: depoimento [jul.1988]. Op. Cit.
54
Ibid., p.3
55
Ibid.
56
CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Carlos Magno Nazareth Cerqueira: depoimento [jul.1988]. Op. Cit.
57
Ibid.
53
com o racismo no futuro. Ele relembra que sempre preferiu o idioma francês ao inglês. O motivo:
“Eu não gostava de estudar inglês. Eu tinha uma impressão muito ruim dos americanos, aquela ideia
que americano era racista. Então a minha revolta era não aprender inglês”58.
No final da primeira metade do século XX o racismo de forma institucionalizada nos EUA
está em pleno funcionamento a partir das leis de segregação racial, principalmente nos estados sulistas.
Além disso, sua revolta era dupla pelo professor da disciplina ser negro e o mesmo sofrer ofensas
raciais pelos colegas. Assim, o menino exercia sua revolta passiva, uma inquietação silenciosa. Ainda
que o prejudicasse no longo prazo pelas dificuldades com a língua estrangeira, como o próprio
afirmou.
Até o momento, já se pode perceber em seu relato a presença do racismo articulado de forma
tanto individual quanto estrutural. Se na primeira, “manifesta-se por meio de atos discriminatórios
cometidos por indivíduos contra outros indivíduos; podendo atingir níveis extremos de violência”
(GOMES, 2005, p.52) como o do ocorrido na escola nos mostra, ainda que sem a violência física, no
segundo pode-se perceber pela desigualdade de oportunidades, tanto pela escassez de negros no
colégio, quanto pelo pragmatismo dos pais na orientação vocacional do jovem Cerqueira
As razões para tanto sacrifício e prioridade na instrução possuem raízes históricas, que serão
vistos mais à frente. Por ora, vale ressaltar que “a valorização da educação formal foi uma das várias
técnicas sociais empregadas pelos negros para ascender de status. Houve uma propensão dos negros
em valorizar a escola e a aprendizagem escolar como um “bem supremo”” (SANTOS, 2005, p.21).
Embora a escola em si, enquanto reflexo de uma sociedade no seu tempo e espaço acabe reprodu-
zindo, no caso brasileiro, valores discriminatórios, como também se pôde perceber com a experiência
de racismo sofrida por Cerqueira.
Interpreto que, ao mesmo tempo que os pais tinham consciência do racismo existente, as
táticas para resistir ao mesmo consistiriam no não enfrentamento direto. Algo que acredito ter sido
assimilado por Cerqueira, interiorizando-o a ponto de, como diria na entrevista só se sentir negro
“quando as pessoas lembravam que eu era negro” 59 . Voltaremos a esta questão mais tarde. De
qualquer forma, tal consciência e pragmatismo dos pais não eram fortuitos: eram o caráter ativo de
sujeitos atuando dialeticamente em uma conjuntura que os oprimia, em cor e classe. No caso, o
racismo estrutural.
O racismo estrutural relaciona-se com o processo histórico ocorrido no país: no caso brasileiro,
a escravidão, sua longevidade (a última a ser abolida nas Américas), brutalidade e legado. Neusa
Santos de forma sintética aponta que “A sociedade escravista, ao transformar o africano em escravo,
definiu o negro como raça, demarcou o seu lugar, a maneira de tratar e ser tratado, os padrões de
interação com o branco e instituiu o paralelismo entre cor negra e posição social inferior” (1990, p.19).

58
Ibid.
59
CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Carlos Magno Nazareth Cerqueira: depoimento [jul.1988]. Op. Cit.
54
Ela prossegue ao perceber o tripé que constitui a estrutura das relações raciais no caso brasileiro, que
seriam o “contínuo de cor, ideologia do embranquecimento e democracia racial” (p.22).
Escamoteado pelo mito da democracia racial, um imaginário de que a miscigenação brasileira,
ignorando que muito dela advém da violência sexual dos colonizadores e posteriormente senhores de
engenho perante indígenas e as populações africanas – prescinde uma convivência pacífica dos povos,
o contínuo de cor e a ideologia de embranquecimento atuam perversamente. Ambos se articulam com
a noção de que em uma suposta “linha ininterrupta” das cores “quanto maior a brancura, maiores as
possibilidades de êxito e aceitação.” (ibid.). Além disso, o mito da democracia racial serve como
elemento desagregador, no sentido de atribuir ao “fracasso” na ascensão social dos negros uma
explicação individual e meritocrática. Veremos posteriormente como o próprio Cerqueira se utilizou
de tal narrativa.
Jessé Souza, em seu livro recente “a elite do atraso: da escravidão à lava-jato”, realiza uma
análise sócio-histórica, com elementos de psicanálise de certa forma totalizante sobre os conflitos de
classe e cor no Brasil. Para o autor, ambos estão interligados e tal conflito possui a gênese na
escravidão, sofrendo alterações e adaptações com o passar do tempo, ou seja, com a abolição e a
influência capitalista e burguesa crescente no país.
Com a abolição formal da escravidão em 1888, as relações de trabalho se reconfiguram. Onde
era escravidão agora dá lugar à relação assalariada. E os libertos são “jogados” nessa nova ordem,
sem qualquer tipo de amparo legal ou assistência do Estado. Em cidades como Salvador e Rio de
Janeiro alguns se inserem em atividades informais, mecânicas e de artesanato urbano.
Assim, segundo Jacob Gorender, se no capitalismo o “exército de reserva” é necessário para
a sua manutenção, no caso brasileiro fora criado o “exército reserva da reserva” (1991) a partir da
imigração e da sujeição dos negros e negras à marginalização. Gorender acredita que o racismo serve
muito bem ao capitalismo, pois “mantém a reserva da segunda linha dos discriminados, sempre
disponível para o trabalho em troca de salários rebaixados” (1991, p.203).
O racismo estrutural também se articula a uma referenciação das elites a valores culturais
europeus. Tal europeização também implicava na repressão a expressões culturais dos negros, como
as religiões de matriz africana e a capoeira, vista como vadiagem e proibida por lei pela constituição
de 1890. Assim começa uma reconfiguração do antigo imaginário escravocrata de repressão a uma
“rebelião negra” ou uma “haitização”. Agora “se transforma e é substituído pela definição do negro
como “inimigo da ordem” (...) vem daí, portanto, o uso sistemático da polícia como forma de
intimidação, repressão e humilhação dos setores mais pobres da população” (SOUZA, 2017, p.78).
Portanto, preconceito de classe e de raça estão imbricados. Voltaremos mais à frente para analisar em
particular o papel da polícia em sua formulação histórica enquanto instrumento perante o monopólio
da força do Estado.
Ao mesmo tempo, se o racismo enquanto conjunto de signos preconceituosos no imaginário
55
de determinados grupos que discriminam outros já existia, o racismo científico crescia e influenciava
elites intelectuais brasileiras no final do século XIX. Assim, o racismo como imaginário e prática
social ganhava supostamente justificativa científica. Nesse sentido, um processo histórico de exclusão
estava (e está) em curso.
Segundo Lília Schwarcz, no Brasil as elites intelectuais de fins do século XIX articularam
uma fusão entre características do darwinismo social, que “adotou-se o suposto da diferença entre as
raças e sua natural hierarquia, sem que se problematizassem as implicações negativas da
miscigenação” (1993, p.18) com o evolucionismo social, que “sublinhou-se a noção de que as raças
humanas permaneciam estacionadas, mas em constante evolução e “aperfeiçoamento”, obliterando-
se a ideia de que a humanidade era uma” (ibid.).
Supostamente excludentes, tais ideias foram redimensionadas para se compreender um país
em franca miscigenação. Evidentemente, no topo da hierarquia de uma ou do aperfeiçoamento de
outra estava o ideal branco europeu. Vale lembrar que no contexto histórico vivia-se o imperialismo,
em que tal justificação científica de “atraso” civilizacional de outros países era conveniente para os
Estados e mercados europeus.
No Brasil em específico, houve uma combinação de racismo científico e liberalismo, também
ideias contraditórias ao se pensar que uma determinava a diferenciação natural entre seres e a outra o
individualismo e a vontade pessoal como indicadores de sucesso, mas que ainda assim se articularam.
No pós-abolição isso fora uma mistura conveniente enquanto justificativa para a hierarquização de
raça e classe, em uma dimensão socioeconômica dominada pelas elites oligárquicas e outrora
escravocratas.
Esse liberalismo oligárquico teve influência na política educacional. Na hegemonia de tais
elites no período denominado de Primeira República (1889-1930), a estrutura escolar pouco expandiu.
Nos anos finais do regime, na década de 20, a taxa de escolarização da população chegava a 9%. Ou
seja, mais de 90% da população brasileira não era escolarizada (ROMANELLI, 1986, p.64). Além
disso, o índice de analfabetismo beirava a 70% (p.62). Em um modelo político que dava plena
autonomia à organização escolar básica aos estados, o que refletia o federalismo vigente, mas ao
mesmo tempo com o capital político muito concentrado nas unidades federativas do Sudeste, a
desigualdade prevaleceu. Quando Cerqueira entra para a escola, em 1944, a taxa de escolarização
estava em 21% (p.64). O que aconteceu nesse período tão curto para tal aumento, mais do que o dobro
de todo o período oligárquico?
Durante o processo histórico, existem determinados contextos em que a história se acelera.
Aceleração que não necessariamente significa um sentido positivo, o que a lógica capitalista
interpreta como “progresso”. Afinal a História não é etapista ou linear, uma sucessão de eventos que
aponta para uma evolução sequencial. O período conhecido como Era Vargas pode ser interpretado
como um desses momentos de aceleração da história, mas uma aceleração contraditória.
56
Afinal, fora uma revolução que se caracterizaria como mais uma transição pelo alto no
processo histórico brasileiro. Ainda que contasse com o apoio das camadas médias da população e
dos chamados tenentes, o que gerou tensões com o grupo de oligarcas que, alijados historicamente
do centro do poder da Primeira República, aproveitaram a conjuntura da crise política (esgotamento
do regime e novas eleições fraudulentas) e econômica (crise de 29 e necessidade de reordenamento
capitalista que o modelo agrário exportador não oferecia mais) para derrubar o governo. Ambos os
grupos não tinham uma pauta clara senão a união pelo fim do modelo político anterior, e Vargas surge
desse segundo grupo, mas busca ser um ponto de equilíbrio entre ambos até a instauração do Estado
Novo. Assim surge tal regime eivado de contradições já em sua origem.
Mais contradições: se de um lado os trabalhadores conquistaram a legislação trabalhista, uma
reivindicação histórica, e expansão de direitos sociais como a expansão da rede pública de ensino,
como se verá adiante, os direitos políticos e civis foram suprimidos na ditadura do Estado Novo
(1937-1945). Se a economia caracterizou a entrada do país no capitalismo industrial e uma crescente
urbanização, isso se deu de forma descompassada em um país ainda predominantemente rural.
Tal industrialização está ligada à expansão da rede de ensino. Se na Europa ocidental do século
XIX a Revolução Industrial e as novas necessidades para o mundo do trabalho incitaram ao debate
para a expansão do ensino de forma pública e universal à uma demanda crescente da população, no
Brasil da Era Vargas isso fica cada vez mais patente.
A complexificação de uma indústria que vem desde o início do século XX, mas agora conta
com atuação do Estado e de determinadas elites em seu favor favorecem um papel maior dado à
educação para o trabalho, em contraste com o modelo de educação aristocrático e elitista que
caracterizava até então. Ainda assim, certas continuidades e contradições prevalecem, visto o caráter
classista e discriminatório ao se direcionar o ensino profissional como restrito aos pobres. Algo
explicitamente percebido na Constituição de 1937 da ditadura do Estado Novo, mais especificamente
ao artigo 129. Nele, se diz que “o ensino pré-vocacional e profissional destinado às classes menos
favorecidos é em matéria de educação o primeiro dever do Estado.” (ROMANELLI, 1986, p.153).
Se por um lado o Estado assume o papel de promotor da educação, por outro é por um caráter
discriminatório ao reservar o ensino profissional aos pobres. Isso não deixa de refletir a luta de classes
do período, em que o acesso oscilou entre “os interesses das camadas populares por mais educação,
e educação que assegurasse status, e os interesses das classes dominantes, que procuravam conter, de
várias formas possíveis, as pressões dessas camadas” (p.104).
Outras contradições aceleradas na educação. A Reforma Francisco Campos demonstra uma
maior participação do Estado na organização do ensino em larga escala, enquanto o movimento
renovador aponta para membros da sociedade civil reivindicando uma educação pública, gratuita,
universal e laica. Entretanto, segundo Otaíza Romanelli, esta é uma expansão que se dá muito pela
pressão social do contexto, visto que a expansão da rede se dá nas áreas em crescente urbanização,
57
em detrimento das áreas rurais, bem menos atendidas. Ao mesmo tempo, esta é uma escola que não
retém.
Analisando os 1.681.695 alunos ingressantes na 1ª série do curso primário em 1942 (p.90),
dois anos antes da entrada de Cerqueira, apenas 7,14% (ibid.) chegavam na 1ª série ginasial (em que
logo na 2ª série do primário apenas 40,44% (ibid.) conseguiam chegar). Do número total, apenas 0,97%
(ibid.) chegam ao ensino superior. Ou seja, “para cada 103 crianças que ingressaram no primário,
apenas uma atingiu o ensino superior” (ibid.). É de se entender a preocupação dos pais de Cerqueira
com seu filho, em que sendo negro teria obstáculos redobrados, como o racismo sofrido dentro da
escola que o próprio sofreu explicitamente.
Não à toa, quando Cerqueira relata sua experiência no colégio municipal Clóvis Beviláqua,
ingressando em 1944, afirma que em sua turma no primário ele era o único negro. A duras penas isso
era possível. Na falta de sapatos, Cerqueira e sua irmã usavam tamancos: “E o velho dizia: “meu filho,
eu não dou nada, você anda de tamanco, você não tem um presente. Mas pelo menos a instrução e o
ensino eu vou dar para vocês, o meu esforço vai ser para isso”60 Isto, articulado com o capitalismo e
racismo estrutural, o “exército reserva da reserva”, gerador de um círculo vicioso entre subemprego,
baixa escolaridade e subemprego pode ajudar a entender a escassez de alunos negros na sala de aula
do jovem Carlos Magno.
Entretanto, vale ressaltar que Cerqueira estudara na cidade do Rio de Janeiro, então Distrito
Federal na época. Nesse período, a cidade era considerada, como relata Anísio Teixeira, a “vanguarda
da modernização do Brasil” (DÁVILA, 2006, p.218) e a reforma da expansão da rede de ensino
protagonizada pelo próprio Teixeira é símbolo disso. Tal reforma nos moldes escolanovistas na então
capital da República fora iniciada por Fernando de Azevedo (1927-1930). Para além da expansão
quantitativa, a reforma previa uma mudança na própria concepção de ensino, pois vinha inspirada
pelo movimento da Escola Nova nos anos 20.
Em linhas gerais, a cultura escolar desta vertente apontava para a centralidade do aluno
processo de ensino-aprendizagem, dando um caráter mais ativo ao discente (SCHUELER,
MAGALDI, 2008). Além disso, o docente também possuía centralidade, mas em seu sentido
formativo. Assim, as autoras apontam que, ao longo do processo de reestruturação das escolas
normais no Distrito Federal, em que a renovação seria simbolizada na própria arquitetura dos prédios,
monumentais e em estilo neocolonial, o conjunto de críticas viria pelo alto custo dos projetos, o que
“dificultaria a concretização de um dos objetivos mais assinalados pelas reformas educacionais
escolanovistas – ainda que tenham sido praticados com profundas diferenças e muitos limites –, que
era o da democratização da escola pública.” (2008, p.51).
Era um período de expansão, mas não deixando de possuir tensões acerca das concepções em

60
CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Carlos Magno Nazareth Cerqueira: depoimento [jul.1988]. Op. Cit.
58
torno de um modelo de escola pública, debates protagonizados principalmente pelos grupos
escolanovistas e os educadores católicos. Ressaltando que não era uma polarização estanque (ibid.)61,
os debates se concentravam principalmente acerca de pontos como o ensino religioso nas escolas
públicas, ponto de defesa dos educadores católicos e de rechaçamento pelos escolanovistas. Além
disso, a defesa de um mesmo ensino para todos os gêneros (os educadores católicos defendiam a
diferenciação entre um ensino para homens e mulheres) e a priorização do Estado e da escola pública
como as instituições principais no fornecimento do ensino (os educadores católicos colocavam à
frente a família e a Igreja) eram pontos divisivos (ibid., p.48). Além disso, a despeito do modelo
escolanovista prever uma ruptura com o ensino tradicional vigente, Schueler e Magaldi apontam que
a escola primária que emergia a partir das reformas educacionais dos anos 1920/1930 estava
longe de ser uma escola totalmente renovada, que promovesse uma ruptura absoluta com a
“tradição” e se dissociasse inteiramente do passado – esta é uma representação que os
educadores da época construíram com maior ou menor intensidade e disseminaram. (p.51)

No ano do ingresso de Cerqueira na rede pública, a cidade “contava com 1475 escolas públicas
e particulares, mais de 9 mil professores e quase 250 mil alunos no ensino elementar” (DÁVILA, Op.,
cit., p.214). Enquanto “laboratório” dos reformistas, o Distrito Federal tinha prioridade, sendo o que
“atraiu as principais reformas, a mais ampla rede de escolas, as maiores taxas de matrícula e de
finalização do curso.” (ibid.). Ainda assim, vivendo em uma cidade que devia ser modelo, Cerqueira
relata que era o único negro na sala da escola pública que frequentava.
De certa forma, os dados corroboram uma ampliação limitada que ainda esbarrava nas
desigualdades socioeconômicas de classe e raça. A defasagem se dava logo no início, em que, se a
taxa de mortalidade infantil entre os brancos era de 123 em mil, entre os não-brancos era de 227 em
1940 (p.243). No mesmo ano também se aponta que 86% dos homens e 81% mulheres brancas acima
de 5 anos eram alfabetizados na capital federal (ibid.), para 59% de homens e 44% mulheres negras
(ibid.) (em que vale indagar sobre o critério para se considerar alfabetizado). Esta era uma taxa
altíssima para o período, pois em um estado de maioria não-branca como a Bahia as taxas de negros
e negras alfabetizados eram de 16 e 11%, respectivamente (ibid.).
Ressalte-se, que, a despeito desse cenário historicamente desfavorável, para dizer o mínimo,
ao povo negro, ele também fora sujeito ativo e resistente das mais variadas formas. Das revoltas
escravas e fugas no contexto da abolição, na ação de abolicionistas como Luís Gama e na imprensa
negra de fins do século XIX. Já no século XX, com a formação da Frente Negra Brasileira nos anos
30 e no Teatro Experimental do Negro nos anos 40, além do surgimento do Movimento Negro
Unificado no final dos anos 70. Movimento que teria importância significativa na própria vida de
Cerqueira, como veremos posteriormente.

61
As autoras apontam que apesar da oposição entre os grupos também existiam intersecções, inclusive a partir de uma
corrente denominada “escolanovismo católico”, a partir da apropriação de educadores católicos de valores
escolanovistas (p.48).
59
Enfim, nesse jogo de escalas, seja numa visão macro com a formação de organizações
mobilizadas, seja no micro com as resistências e negociações do cotidiano, a população negra atuou
e atua dentro do possível. Não fora diferente do caso aqui estudado, com a família de Cerqueira
enveredando por um caminho mais pragmático a partir do reconhecimento do racismo e, a duras
penas, se apropriando da educação como bem supremo.

“Tá vendo, o senhor não disse que não tinha problema?” – O ingresso na polícia

O jovem estudante responde tais sacrifícios com excelente desempenho escolar. Ele afirma,
apesar de ressaltar nunca ter gostado de competir, ser o primeiro da turma, por ter sempre gostado de
estudar. Contudo, ao terminar o então primário, não consegue passar na seleção do colégio Pedro II.
Ainda que ele não quisesse tanto tal aprovação pelo deslocamento, Cerqueira achava que decepcio-
nara os pais, visto que seria uma oportunidade de dar um alívio financeiro aos mesmos.
Paralelamente, surgiu a oportunidade de ingresso na PM. Na ocasião, a escola de oficiais
abrira a oportunidade de ingresso para civis, algo que antes só era permitido aos soldados. O pai
sugere a seu filho tal oportunidade após ter conversado com um policial e ter chegado à conclusão de
que não haveria discriminação racial na corporação.
Mais para corresponder aos anseios do pai em “tomar um rumo” em uma instituição que su-
postamente não era racista e que ofereceria a estabilidade de um emprego público do que por vontade
própria, Cerqueira acaba prestando concurso para a escola de oficiais em 1953. Embora inicialmente
o mesmo diria que “não queria ser militar porque eu não compreendia a guerra, morte, briga, ter que
matar”62. De qualquer forma, ao ingressar faria uma promessa aos pais: não iria decepcioná-los, seria
um excelente oficial.
Cerqueira é aprovado, porém em um primeiro momento, sua entrada é negada: no exame mé-
dico é considerado muito magro pelos médicos. Após seis meses e quinze quilos a mais, Cerqueira
faz um exame físico e finalmente ingressa como cadete na escola de formação de oficiais da então
Polícia Militar do Distrito Federal. Durante esse interim, achando que o problema era sua cor e não o
peso, provocara o pai “tá vendo, o senhor não disse que não tinha problema?”63. Sendo ou não uma
discriminação, infelizmente sua carreira na PM64 revelaria mais explicitamente a avaliação errônea
do senhor Antonio. De qualquer forma, a “gente cheia de amor” da vila faria uma festa.

62
CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Carlos Magno Nazareth Cerqueira: depoimento [jul.1988] Op. Cit.
63
Ibid.
64
Cerqueira atravessaria 3 fases da Polícia Militar (Polícia Militar do Distrito Federal até a mudança da capital para
Brasília, Polícia do Estado da Guanabara de 1960 até 1974, e, com a fusão dos estados da Guanabara e do Rio de Janeiro,
a atual Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro) seguindo carreira de aspirante em dezembro de 1955 até coronel em
agosto de 1981. Ocuparia cargos como ajudante-geral, diretor-geral de ensino, subchefe do Estado-Maior e chefe do
Estado-Maior da PM, último posto antes do comando-geral. Comandaria o 4° Batalhão da Polícia Militar, em São
Cristóvão e o 19º BPM em Copacabana. In: LEAL, Ana Beatriz; PEREIRA, Íbis da Silva; e MUNTEAL FILHO, Oswaldo
(orgs.) Sonho de uma polícia cidadã: Coronel Carlos Magno Nazareth Cerqueira. Rio de Janeiro: NIBRACH, 2010,
60
Depois da festa, a reprimenda: não a Cerqueira, mas a Seu Antônio. O entrevistado relembra
que o pai insistiu em levá-lo no dia de sua apresentação ao Regimento Marechal Caetano de Farias,
hoje Batalhão de Choque localizado no bairro do Estácio. “Eu apreensivo, ele todo orgulhoso” 65.
Queria ir sozinho. Sua apreensão consistia em ser motivo de escárnio pelos novos colegas por soar
como “filho de papai”. Ao adentrar na caserna, o pai é barrado por um oficial visto que ali é “onde se
forja homens para o comando. O senhor pode deixá-lo entregue a nós” 66. O pai não voltaria mais.
“Vibrei!”67, relembra um Cerqueira ingressante na instituição com seus 17 anos.
Na Escola de Formação de Oficiais, Cerqueira aponta que era o único negro da turma, embora
“tinham uns mulatos, mas negro mesmo era eu”68. Com certo pragmatismo, relevava as “outras coisas
que aconteciam lá que a gente percebia, mas fingia que não entendia.”69. Entretanto, as interdições
racistas diretamente a ele se fariam presente logo em sua formação.
Na rotina do curso, de 3 anos em regime de internato e exercícios físicos, um momento de
destaque da rotina é a chamada “ordem unida”. Nela é onde se apura, com a tropa alinhada, a capaci-
dade de resposta às ordens do chefe da mesma. Cerqueira relembra a dificuldade nos momentos em
que envolviam empunhar o fuzil, devido ao seu corpo ainda franzino em contraste com o peso da
arma. Contudo, percebe que o primeiro aluno do terceiro ano da turma carrega o estandarte da então
Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF). Assim, resolve se empenhar ainda mais nos estudos para
tal. Entretanto, descobre por um colega de turma que “alguns instrutores estão dizendo que você não
pode ser o primeiro aluno porque você é negro e eles não gostariam de ver um negro carregando o
estandarte da turma.”70.
Tal relato seria corroborado por um tenente que o chama para jantar. Contudo, o movimento
não vai a frente e Cerqueira forma-se aspirante em 1956 como primeiro da turma. Em sua formatura,
relembra suas duas alegrias: receber o “espadim de Tiradentes” -honraria destinada ao primeiro co-
locado- pelo então presidente da República Juscelino Kubitschek e recebê-la no campo do Botafogo,
seu time de coração. Em seu manuscrito, Cerqueira faria alguns comentários não presentes na entre-
vista ao MIS: “embora alegre ficava muito nervoso – pois temi ficar em evidência. Outra alegria –
sabia que os negros da PM (soldados) ficariam felizes em me ver sendo homenageado – eu os repre-
sentava”71 (grifo do autor). Também no manuscrito, anota que “apesar dos pesares, saí da escola sem
ressentimentos. Procurava compreender aqueles que me discriminavam (E o velho não pensava que
a PM discriminava)”72.

p.21.
65
Manuscrito da “entrevista com Carlos Magno Nazareth Cerqueira” de 18 de julho de 1988. Op. Cit. p.7.
66
Ibid.
67
Ibid.
68
CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Carlos Magno Nazareth Cerqueira: depoimento [jul.1988]. Op. Cit.
69
Ibid.
70
CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Carlos Magno Nazareth Cerqueira: depoimento [jul.1988]. Op. Cit.
71
Manuscrito da “entrevista com Carlos Magno Nazareth Cerqueira” de 18 de julho de 1988. Op. Cit. p.9.
72
Ibid.
61
O racismo sofrido por Cerqueira logo no início da sua história na corporação, assim como a
questão envolvendo ele ser o único negro da turma de oficias em contraste com o maior número dos
soldados (os praças) revelam discussões que envolvem a própria história da polícia e sua complexa
relação com a população negra e pobre, algo que está em sua própria origem.
No site da polícia militar temos duas seções dedicadas à história da corporação. Uma consiste
em uma “linha do tempo”, algo mais factual que pontua momentos desde a criação da Guarda Real
da Polícia do Rio de Janeiro pelo príncipe regente Dom João VI em 1809, passando por momentos
que envolvem a história do Brasil mas que influenciam na polícia 73, estruturação da instituição (de
motos e fuscas ao blindado, popularmente conhecido como “caveirão”), criação da companhia de
polícia militar feminina em 1981e culminando na participação nos recentes mega eventos como copa
do mundo e olimpíadas.
Em outra seção vemos um texto corrido com uma narrativa voltada, compreensivelmente, à
valorização da instituição. Vemos, a partir da criação da então Guarda Policial da Província do Rio
de Janeiro em 1834 a participação dos policiais em momentos como a Guerra do Paraguai, sua incor-
poração às fileiras, bem como sua presença na Proclamação da República e na Segunda Guerra Mun-
dial como Polícia Militar do Distrito Federal ao enviar seus praças para o Exército afim de “recom-
pletar suas unidades”74.
Narra-se, também, a transferência da capital federal para Brasília em 1960 e a mudança de
nome da corporação para Polícia Militar do Estado da Guanabara, além da já existente desde 1920
Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMRJ), com atuação na região fluminense. Por fim, a
fusão dos estados da Guanabara e do Rio de Janeiro em 1975 e a consequente também fusão das duas
polícias, agora com o nome atual de Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ). Impor-
tante: Entre outros comandantes gerais da corporação mencionados mais num sentido cronológico,
Cerqueira é o que possui o maior destaque:
Na década de 1980, assume o comando da Corporação o coronel Carlos Magno Nazareth
Cerqueira, oficial culto e professo defensor dos Direitos Humanos. Ele esboça a primeira
tentativa de mudança dos paradigmas operacionais da Polícia Militar, buscando conduzi-la
para uma visão mais democrática, apagando a formação da força repressora com que fora
caracterizada ao longo de dois governos de exceção: o “Estado Novo” e os “Anos de
Chumbo”. Graças aos esforços do coronel Cerqueira, doutrinas e programas que hoje são

73
A constituição de 1934 por exemplo, que, como diz o site, “define a atuação das Polícias Militares como forças
auxiliares do Exército na conservação da “segurança interna e manutenção da ordem”, algo que terá uma profunda
inflexão na atuação policial a partir de sua relação com o exército, acentuada no golpe de 64, que não é mencionado na
linha do tempo. Disponível em http://www.pmerj.rj.gov.br/linha-historica/ , acesso em 02/08/2019
74
Disponível em http://www.pmerj.rj.gov.br/historia-da-pmerj/ , acesso em 02 de agosto de 2019. Entretanto, ao revisitar
o link para a revisão da versão final deste trabalho em fevereiro de 2020, tal página não é mais encontrada, diferente do
link para a linha cronológica, ainda existente. No momento em que escrevo, as menções à Cerqueira no site restringem-
se ao seu registro na série histórica de comandantes-gerais, sem qualquer descrição além do nome e período de comando,
bem como de notícias ao Centro de Capacitação de Programas de Prevenção que leva o seu nome e ao Programa
Educacional de Resistência às Drogas e à Violência (PROERD), projeto inaugurado na segunda gestão de Cerqueira.
Preferi não excluir a informação original por entender que sua retirada do site pode levar a reflexões que vão além de uma
mera reforma na estrutura da homepage, mas também a questões que envolvam a disputa da memória sobre o as ações
humanistas do ex-comandante que ainda persistem e se relacionam ao contexto de uma política de segurança pública mais
repressiva.
62
corriqueiros, como o PROERD e a filosofia de Policiamento Comunitário, tornam-se lugar
presente na PMERJ e espalham-se para outras Polícias Militares.75

Teria tal trecho sido escrito por um dos “cerqueiristas”? De qualquer forma, algo que vai de
encontro com estudos que envolvem entrevistas na caserna que muitos, a despeito das críticas, enten-
dem a polícia como “antes e depois”76 de Cerqueira. Vale ressaltar que não se menciona – talvez por
mero esquecimento, a bem da verdade - o fato de ser o primeiro comandante negro nos então 174
anos da instituição.
Entretanto, para além de uma história institucional que não deixa de ter seu valor como fonte,
entendo como saudável apresentar outras questões que ponham em discussão tal narrativa - princi-
palmente no que toca à sua origem - para uma dimensão que corresponda ao jogo de escalas e à uma
proposta de história enquanto campo de disputas e interesses, com visões de mundo em choque. Nesse
sentido, a formulação dos meios de controle não escapa a tais disputas, em particular no caso aqui
estudado, a polícia. Para além da formulação, deve-se atentar para os atores que forjam essa institui-
ção, não só os que são formados para o comando (oficiais), mas também os que atuam no fazer poli-
cial das ruas (praças)
Infelizmente, não é abundante uma bibliografia que trate sobre a história da PMERJ, em
especial no período de ingresso de Cerqueira na corporação o campo é escasso. Entretanto, algumas
obras de referência sobre a instituição e seus atores nos séculos XIX e início do XX já podem nos
apontar para alguns traços de continuidades, mas também com rupturas ao longo do seu processo
histórico de formação e consolidação este campo.
Segundo Marcos Brêtas, os estudos históricos sobre polícia se dividem em basicamente dois
polos que se tensionam. O primeiro é marcado pela dominação: do Estado sobre a polícia e da polícia
sobre os indivíduos. O perigo aqui é o de cair em uma leitura monolítica da instituição, não se
atentando para os agentes que a constituem, suas negociações e resistências internas. O segundo polo
trata-se de uma história da polícia focada mais na dimensão “micro”, analisando histórias de policiais,
no seu círculo e nas culturas desenvolvidas.
Assim, o perigo encontra-se tanto em imaginar os policiais “para comprovar propósitos
instrumentais cumpridos pela instituição ou para demonstrar pressupostos dados de antemão pela
expectativa comum“ (2013, p.172), quanto ao negligenciar as estruturas que o cercam e que
influenciam em sua formação devido a uma redução de foco excessiva nas trajetórias, abrindo mão
de processos históricos constituintes de uma cultura macro através de regulações, leis, organização e
formação policiais. O que não significa que tenha se forjado naturalmente num processo em que a
polícia e seus atores fossem meramente instrumentos do aparelho repressivo do Estado.

75
Ibid.
76
No mencionado capítulo mais memorialístico da tese de Bruno Marques sobre Cerqueira, este é um aspecto que o
autor percebe ao ouvir muitos policiais que mencionam Cerqueira: alguém que fora um divisor de águas na corporação.
63
Uma das obras de referência no que tange às origens da polícia na capital fluminense é de
autoria de Thomas Holloway, em seu livro “Polícia na cidade do Rio de Janeiro, repressão e
resistência”, o qual construiu um panorama fundamental sobre a história da corporação no século
XIX. História que, como o título sugere, envolve não só a instituição em si, mas os atores que o
cercam. Ainda que, pensando nas duas balizas epistemológicas e tensionadas sobre polícia apontadas
por Brêtas, interpreto o trabalho de Holloway mais para a primeira e sua dimensão macro do que para
a segunda.
De forma bastante crítica, Holloway nos apresenta a formulação da então Intendência Geral
de Polícia, criada no contexto da transferência da corte portuguesa ao Brasil em 1808 e suas tentativas
de modernização da agora então capital do reino, a cidade do Rio de Janeiro. Tal Intendência “era
responsável pelas obras públicas e por garantir o abastecimento da cidade, além da segurança pessoal
e coletiva, o que incluía a ordem pública, a vigilância da população, a investigação dos crimes e a
captura dos criminosos” (1997, p.46). Em 1809, seria criada a Divisão Militar da Guarda Real de
Polícia, a qual, subordinada à Intendência, uma “força policial de tempo integral, organizada militar-
mente e com ampla autoridade para manter a ordem e perseguir criminosos” (p.47).
Ainda que as ordens viessem da autoridade real numa tentativa de obter o monopólio da força
pelo Estado, algo corrente no processo histórico de construção dos Estados modernos, as relações na
manutenção de tal ordem revelam uma distinção de classe que dariam o tom para a atuação policial
nas ruas. Isto porque muito do financiamento de tal instituição viria de “taxas, empréstimos privados
e subvenções de comerciantes locais e proprietários de terras.” (p.48). Após 1830, o financiamento
viria propriamente do Estado, em especial do Ministério da Justiça. Entretanto, tal relação entre Es-
tado e elite e a consequente influência dos seus interesses na atuação e o caráter militar da organização
policial são traços que denotam da origem da instituição e que constituem marcas que, a despeito das
rupturas e continuidades de todo processo histórico, ainda estão presentes de uma certa forma.
Holloway demonstra tais marcas com fontes qualitativas e quantitativas. Aponta que uma das
principais atribuições da polícia no período é a de perseguição a escravizados fugidos, algo que leva
à extinção, na década de 1820, da figura do capitão-do-mato77 na cidade fluminense, devido a pre-
ponderância policial e ao perigo de se manter tal função e um possível atrito. Não só perseguição aos
fugidos, mas que também estivessem em atividades suspeitas, algo que, na diluição do termo, pode
envolver qualquer tipo de reunião de cativos na cidade, ainda que por mera diversão quando minima-
mente possível.
Nesse sentido, um caso específico é o de Miguel Nunes Vidigal, policial com fama de ser o
“terror dos vadios e ociosos, que podiam encontrá-lo ao virar uma esquina à noite ou vê-lo aparecer
de repente nos batuques que aconteciam com frequência nos arredores da cidade.” (p.48). Vidigal

77
Indivíduo, geralmente ex-cativo, responsável pela captura de fugidos da escravidão, atuante não só nos engenhos
como nos meios urbanos.
64
aplicava surras sem distinção entre cativos e livres, capturando-os e entregando os escravizados aos
senhores e os livres ao cárcere. Muitos eram forçosamente alistados no Exército ou na Marinha. Ele
tivera uma carreira meteórica:
Foi promovido a general em março de 1822, quando transferiram sua patente da milícia para
o Exército regular, de maior prestígio, e ele se tornou o comandante da Guarda Real de Polí-
cia. Entre as várias comendas e condecorações que Vidigal recebeu, a mais notável foi a de
Cavaleiro da Ordem Imperial do Cruzeiro do Sul, concedida pelo próprio imperador Dom
Pedro I em dezembro de 1822. Aposentou-se com honras e a patente de marechal-de-campo
em novembro de 1824. (p.51)

Ao nos apresentar registros dos crimes na época, o caráter racista e de distinção de classe
torna-se mais evidente. Por exemplo, a prisão de Francisco Cabinda, cativo, “por estar tocando batu-
que com grande ajuntamento de negros, e se lhe apreendeu o tambor.” (p.57). Punição: trezentos
açoites (chicotadas) e envio para trabalhos forçados na construção de uma estrada no bairro da Tijuca.
No que se refere ao período joanino (1808-1821), dos 5076 casos registrados no recorte, cerca
de 95% envolviam os povos africanos, sendo 80% escravizados (p.52). Nesse sentido, confrontando
dados quantitativos e qualitativos, pode-se dizer que nas origens da polícia, pensando em uma pro-
posta de acordo com o interesse das elites que a financiavam, sua atuação fora “um sucesso total, não
obstante a necessidade ocasional de impor disciplina e frear os excessos das práticas policiais. Tudo
o que eles queriam era infundir terror nos corações dos ociosos, vadios e escravos recalcitrantes”
(p.50).
Em 1831, a então Divisão Militar da Guarda Real de Polícia é substituída pelo Corpo de Guar-
das Municipais Permanentes, com seu organizador e comandante sendo Luís Alves de Lima e Silva,
o futuro Duque de Caxias o que aponta mais aproximação entre polícia e exército, moldando a cor-
poração para um modelo mais próximo ao atual durante a década. A despeito das mudanças na sua
estrutura e nomenclatura78 e das disputas que envolveram o século XIX entre liberais e conservado-
res, a atuação policial não apresentou grandes mudanças ao longo do período imperial. Utilizando
dados da Casa de Detenção do Rio de Janeiro, o autor nos mostra que em 1875, 60% dos presos eram
cativos, sendo que “em 1872 eram apenas 16.4% da população da cidade” (p.233).

78
No que se refere a área do Estado do Rio de Janeiro: Guarda Policial da Província do Rio de Janeiro (1835), Corpo
Policial da Província do Rio de Janeiro (1844), Corpo Policial Provisório da Província do Rio de Janeiro (1865), Força
Militar do Estado do Rio de Janeiro (1920), Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (1947). No que se tange ao
município da capital: Divisão Militar da Guarda Real de Polícia (1809), Corpo de Guardas Municipais Permanentes
(1831), Corpo Municipal Permanente da Corte (1842), Corpo Policial da Corte (1858), Corpo Militar de Polícia do
Município Neutro (1889), Regimento Policial da Capital Federal (1890), Força Policial do Distrito Federal (1905),
Brigada Policial do Distrito Federal (1911), Polícia Militar do Distrito Federal (1920), Polícia Militar do Estado da
Guanabara (1960). Como já mencionado, com a unificação do estado da Guanabara com o do Rio de Janeiro em 1975, a
fusão das duas polícias é sua consequência, gerando a atual Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Por uma leitura
mais fluída, optei por me referir à instituição de forma mais padronizada, com os termos “polícia militar”, ou
simplesmente “polícia”, ou pela sua sigla ao me referir no tempo presente. In MUNIZ, Jacqueline. Ser policial é,
sobretudo, uma razão de ser. Rio de Janeiro: IUPERJ, 1999
65
Dos crimes cometidos, 72,7% referem-se a “ofensas contra a ordem pública”. Tal universo de
delitos incluía crimes como embriaguez, vadiagem, jogo, capoeira79 e mendicância. Nesse sentido, o
autor retoma ao ponto inicial e o que imagino ser o fio condutor de sua obra, a percepção, a partir dos
dados obtidos, de que a polícia estava sendo a representante das elites e de seus interesses excludentes
a partir da repressão de grupos desfavorecidos.
Holloway nos traz por exemplo um relato de um visitante italiano à capital do Império em
1885, em que ele afirma: “a polícia do Rio de Janeiro é a polícia mais despótica, arbitrária e brutal do
mundo, formada em sua maior parte pela camada social mais baixa da cidade, relaxada e violenta ao
mesmo tempo, e sua maneira de agir é completamente o inverso de guardar e proteger a vida e a
segurança dos cidadãos.” (p.223). Com a abolição da escravidão em 1888 e seu modus operandi já
consolidado ao longo do século com relação a negros cativos ou livres e pobres, e a já mencionada
ausência de políticas reparatórias à população liberta, o legado da repressão persistiu.
Isto ilustra menos uma certa perversidade individualizada e imanente ao indivíduo policial,
em uma visão maniqueísta de bem x mal, do que uma estrutura consequente de décadas de um projeto
elitista de repressão das camadas mais pobres imposta de cima para baixo, em um cenário marcado
pelo signo da violência escravista. Isto ocorria de forma disciplinar e repressora aos próprios policiais,
os quais muitas das vezes recebendo poucos recursos salariais e estruturais, devendo atuar respon-
dendo a uma estrutura militarizada de obediência, mas, ao mesmo tempo, trabalhando no cotidiano
das ruas, se vendo obrigado a tomar a iniciativa nas mais diversas situações. O dilema entre militari-
zação e fazer policial já é apontado por um comandante da Polícia Militar em 1888, como nos mostra
Holloway80, um drama que, com o perdão do anacronismo, também afetou Cerqueira e que persiste
até o momento que escrevo.
Outra obra de referência, agora situada no final do século XIX e início do XX (mais especifi-
camente da proclamação da República em 1889 à reforma da polícia em 1907) é a de Marcos Brêtas,
“A guerra nas ruas – povo e polícia na cidade do Rio de Janeiro”. Aqui o autor esforça-se por situar
de forma convergente entre as dimensões epistemológicas sobre história da polícia micro e macro
citados pelo mesmo em artigo referenciado anteriormente. Brêtas nos apresenta a uma cidade em
processo de transformação urbanística, social e demográfica, pós abolição da escravidão, de intensi-
ficação ao fluxo migratório e de uma emergência da classe média urbana.

79
Vale ressaltar que o sentido de capoeira era diferente da expressão cultural atual, indo além. Os capoeiras representavam
grupos que, “organizados (“maltas” ou “badernas” na linguagem da época), com líderes designados, hierarquia interna e
“territórios” demarcados, competiam entre si, travando batalhas pela posse desses territórios e cometendo atos de
violência (mas raramente roubo).” (HOLLOWAY, Op, Cit., p.52)
80
“Justificando mais uma vez a organização militar de sua corporação, ele reconhece, não obstante, o problema que
tornava o trabalho da polícia diferente das funções do solado do Exército regular. O soldado tinha que obedecer às
ordens sem questioná-las, e qualquer ação independente era prejudicial à cadeia unificada de comando. A Polícia
Militar, ao contrário, tinha que instituir uma “disciplina inteligente para que cada um polícia possa ter iniciativa própria
nas circunstâncias especiais em que por ventura se possa achar””. (HOLLOWAY, Op.Cit., p.226.)
66
Para a polícia, se antes no contexto apresentado por Holloway as demarcações de classe eram
bem definidas, principalmente no que toca ao papel de repressão aos escravizados, nesse contexto de
transformação as definições se diluem. Pouco estruturada, com más condições de trabalho, a institui-
ção ainda teve que lidar com a interferência de outros agentes de força como o Exército e a Guarda
Nacional, os quais gozavam de mais prestígio que a corporação.
Dessa forma, era uma cidade que no século XIX fora erguida de forma desordenada e com
mínimo planejamento do poder público e que, no período tratado, fora palco de manifestações popu-
lares das mais diferentes ordens (tanto protestos e greves como o próprio carnaval de rua) e que não
eram percebidas desde o período regencial, o que deu um certo tom de ineditismo aos agentes policiais
responsáveis pelo controle de multidões.
Isso em um processo histórico brasileiro de aprofundamento das relações de trabalho capita-
listas, mas não acompanhadas por uma consolidação do Estado que se apropriaria da agência policial
como prestadora de serviços entre tais relações, e não como mera atribuição da força. Nesse processo
de negociação entre povo e polícia perante a fraca capilaridade do Estado moderno, a despeito de suas
tentativas de ordenação jurídica ao longo do século XIX:
Passa a existir um código informal de processo penal que dispensa advogados e juízes. Nesse
tribunal das ruas, o povo interfere diretamente, sem a representação dos doutores em leis, e
pode ser bem sucedido caso tenha um bom domínio do código. A forma como é tratada a
população neste código informal reflete as distorções e preconceitos vigentes na sociedade.
Ser negro, pobre ou mulher pode constituir agravante nessas leis não escritas, mas a partir do
momento que elas são conhecidas, torna-se possível o cidadão empregá-las, enfatizando ou-
tros pontos que eventualmente funcionam em seu favor. (BRÊTAS, 1997, P.114).

Assim, restou à polícia e aos seus sujeitos o aprendizado improvisado do cotidiano de agentes
que, inseridos no seu tempo, não deixavam de expressar ideologicamente valores e preconceitos ca-
racterísticos de grande parte da sociedade da época, atuando de forma repressiva na maioria das vezes,
mas não também sem formas de negociação. Articulando isso ao apoio precário e de certa forma
desorganizado das instâncias superiores, os policiais de rua interpretavam e aplicavam a lei numa
tensão constante entre o não cometimento de equívocos e o esforço de manutenção da ordem. Assim:
No processo de identificação dos grupos populares na cidade, categorias de classificação ne-
gativa são manipuladas de forma a permitir o maior enquadramento possível. A mendicância
é punível “tenha-se ou não, saúde e aptidão para trabalhar” e a vadiagem abrange de forma
indiscriminada os que não se encontram empregados. Dessa forma, a polícia tem nas mãos
instrumentos de disciplinarização do conjunto das camadas populares que lhe permitiram
demarcar regras de comportamento no espaço urbano – ainda que precariamente. (p.104)

Dessa forma, na construção de categorias e “com classificações referentes a gênero, cor, na-
cionalidade e trabalho, a polícia constrói uma hierarquia social que distribui as possibilidades de re-
curso e as punições.” (p.111), chegamos a dados como os de 1890, em que, no contexto do pós-
abolição, negros e mulatos formavam 44,5% da população carcerária brasileira, ainda que constituís-
sem, de acordo com o censo da época, 33,9% do contingente populacional.
67
Quem compunha este corpo policial? Segundo Brêtas e como se percebeu pelo relato trazido
anteriormente, a grande maioria dos praças no período imperial é formada pelas camadas pobres da
população, incluindo negros livres e cativos fugidos que veem na corporação uma forma de proteção.
Muitas vezes, como se viu no caso do alistamento forçado ao exército, o mesmo ocorre na força
policial.
Assim, uma ambiguidade se opera no sentido de que “agentes da dominação estatal, eram eles
muitas vezes vítimas do recrutamento forçado e participantes cotidianos dos dramas das vidas da
camada de homens livres e pobres” (BRÊTAS, 1998, p.220). No quadro de oficiais, ainda que
requeira uma maior instrução pelas demandas de gestão e comando que o cargo impõe, também são
indivíduos que estão “muito distantes da elite de letrados que se dedicava a construir o sistema legal
que esses policiais eram encarregados de aplicar no dia-a-dia.” (p.231).
Brêtas aponta para uma silenciosa resistência na formação desse quadro e nas suas más
condições oferecidas – às vezes de forma forçosa como vimos -, pois muitas vezes o número de
policiais era insuficiente, nunca preenchendo o número de vagas previstas. Isso se devia aos
constantes pedidos de deserções, que não eram em número insignificante. No final do império, no
contexto do afluxo migratório, cerca de 20% das vagas do corpo policial são formadas por
estrangeiros.
Atuação improvisada no imperativo das decisões cotidianas, embrião do militarismo,
repressão com recortes de classe, cor e gênero, más condições de trabalho, negociações e resistências
tanto na relação dos policiais com a população quanto entre os agentes e sua corporação. A despeito
das mudanças, são nessas continuidades históricas na operação policial que Cerqueira se insere na
polícia. Continuidades que atravessam a instituição e possuem ressonância no processo histórico de
formação social no Brasil, como se percebe por Cerqueira ser, a duras penas, o único negro na Escola
de Oficiais, a qual possui status de instituição de ensino superior em contraste com o número maior
de sujeitos da mesma cor no quadro de praças da instituição.

Tornar-se negro ou uma pedagogia da negritude: um processo formativo


O racismo institucional sobre se Cerqueira se incidiria novamente. Em 1957, o tenente Cer-
queira toma conhecimento de um curso de especialização para oficiais no Panamá. Não seria difícil
o ingresso para o novamente primeiro da turma e tendo em vista que nos anos anteriores os melhores
colocados foram convidados. Dessa vez, seis oficiais foram chamados, menos ele. Cerqueira desco-
briria que o chefe de gabinete contraindicou sua ida por motivos não explicados. Ficara “ressentido
com a polícia, eu tava querendo ir para me aprimorar profissionalmente81. Porém “De certa forma foi
bom”82, pois daí tomou uma resolução: “já que a polícia não quer que eu estude lá fora vou estudar

81
CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Carlos Magno Nazareth Cerqueira: depoimento [jul.1988]. Op. Cit.
82
Ibid.
68
por aqui mesmo”83. Resolveu, portanto, entrar na AMU (“Associação dos Milicos Universitários”)
em detrimento da COSAN (“Círculo dos Oficiais Semianalfabetos”), uma piada pejorativa com to-
ques de incentivo que fazia de forma recorrente entre os colegas.
Por uma “tendência mística”, Cerqueira optou pelo curso de filosofia pela então Universi-
dade do Estado da Guanabara, agora UERJ, algo incomum na escola de oficiais, em que a faculdade
de direito geralmente era o caminho natural na escolha acadêmica dos policiais. A estranheza era
recíproca, pois, se seus colegas de turma o recebiam bem, ao mesmo tempo “não entendiam o que eu
fazia lá”84. Como na infância, voltaria a ter contato com um comunista, chegando a receber revistas
sobre socialismo do mesmo. Guardaria em casa até o golpe de 1964, quando relata que na ocasião
correu para queimá-las.
Cerqueira também fora da mesma turma de Lélia Gonzales85 e José Guilherme Merquior86,
“dois monstros (...) os professores não davam aula, conversavam com eles enquanto a gente obser-
vava”87. Sobre a primeira, Cerqueira revela sua perplexidade em ver que Lélia fora a primeira colo-
cada no vestibular: “como pode, mulher e negra?!”88. Ao mesmo tempo, ele gerava perplexidade nos
alunos, que não compreendiam por que um policial iria fazer filosofia e não direito, curso geralmente
buscado pelos oficiais, Cerqueira respondia com um “o que é que tem?”. Após trancar o curso breve-
mente, Cerqueira obtém o diploma de bacharelado em 1961. Meses depois, obteria o de licenciatura.
Em 1967, fez sua segunda graduação, formando-se em 1971 na Universidade Gama Filho pelo curso
de psicologia.
O diálogo com o meio acadêmico seria um dos traços tanto na formação quanto no comando
de Cerqueira. Sua trajetória na corporação seria marcada pela ocupação de cargos considerados rele-
vantes, mas também pela relegação a outros considerados menos expressivos enquanto punição pelo
caráter de “criador de casos” do oficial. De qualquer forma, nas vésperas de sua confirmação no
comando geral, Cerqueira era um oficial prestigiado na corporação89.

83
Ibid.
84
Ibid.
85
Formada em história, geografia e filosofia, com mestrado em comunicação social e doutorado em antropologia, Lélia
Gonzales (1935-1994) é uma das mais importantes intelectuais brasileiras, principalmente no que toca acerca do racismo
brasileiro. Militante negra e feminista, Lélia participou do Movimento Negro Unificado e foi uma das criadoras do
Instituto de Pesquisas das Culturas Negras (IPCN-RJ). Disponível em: http://www.geledes.org.br/livros-e-textos-de-lelia-
gonzalez/#gs.My7OowY. Acesso em 21/01/2019.
86
Formado em filosofia e direito e com doutorados em sociologia e letras, José Guilherme Merquior (1941-1991), foi,
também, um importante intelectual, no que tange principalmente ao liberalismo. Foi diplomata e ocupante de uma cadeira
na Academia Brasileira de Letras. Disponível em: http://www.academia.org.br/academicos/jose-guilherme-
merquior/biografia. Acesso em 21/01/2019.
87
CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Carlos Magno Nazareth Cerqueira: depoimento [jul.1988] Op. Cit.
88
Ibid.
89
Ao transmitir o cargo, em boletim interno o então comandante, coronel Pingarilho, afirmou que Cerqueira “Destacou-
se pelo seu total devotamento ao cumprimento do dever e continuado estudo dos problemas sociais; pela sua disciplina,
cultura geral, técnico-profissional e acendrado amor corporativo, granjeando admiração e o respeito de seus pares e
subordinados”. In:SILVA, Bruno Marques. Op.Cit., p.168. De fato, possuía prestígio: Em pesquisa à corporação sobre
quem deveria ser o novo comandante, o nome de Cerqueira foi sugerido por ampla maioria (45,33 % contra 15,33% do
segundo mais citado). O, coronel Edgar Pingarilho, entregou o comando em fevereiro de 1983. Brizola tomaria posse em
69
Veremos estes aspectos no próximo capítulo ao se compreender a questão formativa. O que
vale dizer no que se propõe este capítulo é outro ponto, que também se relaciona com a formação: a
indagação do coronel de, até chegar ao comando, não se sentir como negro, “mas apenas quando
lembravam.”90. Ao mesmo tempo, Cerqueira sintetizaria sua maneira de lidar com o racismo ao dizer
que “sabia do código, evitava as situações”91. No comando, contudo, seria o momento em que inter-
preto como uma inflexão nas relações entre Cerqueira e o racismo.
Nas primeiras eleições de governadores no período ditatorial, Leonel de Moura Brizola ganha
a disputa em 1983. Retornando do exílio em 1979, Brizola carrega na bagagem a experiência do
contato com setores da esquerda europeia nos anos 70. Desse amálgama entre trabalhismo brasileiro,
experiência no exílio e esquerda europeia92 surge a carta de Lisboa, um documento com princípios e
ideias perante a situação brasileira, produzido por Brizola em conjunto com colaboradores.
Era uma tentativa de reconexão do trabalhismo, movimento surgido durante o período
denominado de Era Vargas capitaneado pelo próprio, mas com base popular, com as demandas de um
novo contexto. Mais do que uma reconexão, uma ressignificação. Afinal, embora a carta buscasse
construir as bases teóricas do almejado novo Partido Trabalhista Brasileiro 93 e Brizola nunca
escondesse o termo trabalhista, a carta apontava para um caminho de socialismo democrático – para
além do sentido institucional do termo- focado na especificidade brasileira, em sua população
multiétnica. Um “socialismo moreno”, como definiria Darcy Ribeiro. Só o documento em si teria
espaço para um capítulo, entretanto, vale apontar, relacionando com a temática abordada, a atenção
do texto, ainda que embrionária, às denominadas minorias.
Entre as denúncias ao golpe, ao imperialismo, à concentração fundiária e de renda e a
proposição de um Estado interventor que garantisse justiça social e a soberania perante os interesses
internacionais, a carta possuí méritos por introduzir no futuro Partido Democrático Trabalhista pautas
de forma praticamente pioneira no âmbito político institucional, articulando ao discurso de classe as
especificidades sofridas por índios, mulheres, nordestinos e negros, buscando potencializar o caráter
democrático insistido na carta. Embora o universo LGBT, vale ressaltar, não seja mencionado.

março. Fontes afirmam que Pingarilho não queria participar da cerimônia de posse por antipatia ao governador eleito.
Cerqueira, seu imediato, viraria comandante geral, cargo depois confirmado pelo governador empossado. In: RIBEIRO,
Ludmilla. O nascimento da polícia moderna: uma análise dos programas de policiamento comunitário implementados
na cidade do Rio de Janeiro (1983-2012). Lisboa: Revista análise social, v 211, nº 49, 2014, p.287
90
CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Carlos Magno Nazareth Cerqueira: depoimento [jul.1988]. Op. Cit.
91
Ibid.
92
No encontro de Lisboa entre os trabalhistas no exílio encontraram-se representantes da Internacional Socialista, como
o português Mário Soares, figura importante no cenário político português da redemocratização nos anos 70 e que seria
primeiro-ministro e presidente daquele país posteriormente.
93
Em uma batalha jurídica entre a sobrinha-neta de Getúlio Vargas, Ivete Vargas e Brizola pela legenda do PTB, a sigla
acabou ficando com Ivete. A querela contou com a intervenção decisiva de Golbery do Couto e Silva, então chefe da casa
civil do governo de João Baptista Figueiredo, último militar a presidir o país no período ditatorial. Brizola, então, funda
o PDT, Partido Democrático Trabalhista. Ver FREIRE, Américo. A via partidária na transição política brasileira.
In:QUADRAT, Samantha Viz (org.). Não foi tempo perdido: Os anos 80 em debate. Rio de Janeiro: FAPERJ, 2014. p.
9-34.
70
Como dito, uma iniciativa de certa forma pioneira, mas também embrionária. Afinal, das 2234
palavras que compõem a carta, a palavra “negro” aparece uma única vez. Assim como a atenção à
sua causa, circunscrita diretamente a um parágrafo relacionado as “quatro categorias de pessoas”94
que estão marginalizadas em um “drama social pungente”95, cada qual à sua maneira. Depois da
primeira categoria exposta, as “milhões de crianças abandonadas e famintas, que estão sendo
condenadas à delinquência”96, viria a exposição da segunda, buscando:
As formas mais eficazes de fazer justiça aos negros e aos índios que, além da exploração
geral de classe, sofrem uma discriminação racial e étnica, tanto mais injusta e dolorosa,
porque sabemos que foi com suas energias e com seus corpos que se construiu a
nacionalidade brasileira.97

De qualquer forma, um passo importante e que encontraria ressonância em integrantes do


movimento negro que integrariam o futuro PDT, o qual teria uma divisão própria dentro do partido.
Veremos mais à frente acerca das relações do movimento com o partido e com Cerqueira.
Fundado o partido com a reforma pluripartidária98 em 1979, Brizola candidata-se ao governo
do estado do Rio de Janeiro no pleito de 1982, as primeiras eleições estaduais realizadas durante a
ditadura. Considerado azarão e em último lugar nas primeiras pesquisas, o gaúcho constrói uma
arrancada baseada numa campanha simples financeiramente, mas com um forte discurso
oposicionista e apresentando-se como o único candidato verdadeiramente de oposição. Visto que
ambos os candidatos do PMDB (Miro Teixeira) e PDS (Moreira Franco), herdeiros dos então MDB
e ARENA no sistema bipartidário da ditadura (além da já citada Sandra Cavalcanti pelo PTB)
poderiam ser identificados com o regime militar, tendo em vista a peculiaridade 99 dos governos
estaduais cariocas durante o período ditatorial. Veremos mais detalhes do processo eleitoral no
capítulo quatro.
O gaúcho fora empossado em março de 1983 e, apoiado no lobby do movimento negro do
PDT e na pesquisa sobre Nazareth Cerqueira, o efetiva no comando em abril. Como bem define Íbis
Silva Pereira em sua dissertação, Cerqueira seria o “comandante negro para o socialismo moreno”
(2016, p.77). Acredito que a escolha ganha sentido e, em bom português, “caiu como uma luva” por
1) o já mencionado prestígio de Cerqueira na corporação, o que inibiria ruídos sobre uma indicação

94
Disponível em https://www.pdt.org.br/index.php/carta-de-lisboa-marco-do-trabalhismo-na-redemocratizacao-do-
brasil/ . Acesso em 14/07/2019
95
Ibid.
96
Ibid.
97
Ibid.
98
Lei 6.767 de 20/12/1979, a qual altera o bipartidarismo vigente, formado por ARENA e MDB para o pluripartidarismo.
Ver FREIRE, Américo. Op.Cit.,
99
Brizola argumentava que o outrora MDB fluminense possuía certa simpatia do regime intermediado principalmente
pelo governador anterior, Chagas Freitas. O qual fora nomeado pela ditadura em 1971 para o então estado da Guanabara
e em 1979 para o agora unificado estado do Rio de Janeiro. Desse modo, perante os candidatos concorrentes, o gaúcho
dizia em campanha que “Sou o candidato para desmascarar o falso oposicionismo desses candidatos; candidatos que são
o diabo, o demônio e o satanás, para que o inferno ganhe sempre. Falta-lhes legitimidade, exatamente o que me sobra”.
In SENTO-SÉ, João Trajano. Brizolismo: estetização da política e carisma. Rio de Janeiro, Editora FGV, 1999.p.222
71
forçada; 2) o histórico de Cerqueira na corporação por sua luta em um saber e fazer especificamente
policiais, o que significaria um afastamento da doutrina militarizada e repressiva fortemente
impregnada e que Brizola rejeitava; 3) a já mencionada “pressão” do movimento negro e o
atendimento a essa demanda, bem como dos princípios da Carta de Lisboa.
Algo que demonstrava, além da importância e necessidades históricas de se ter negros e negras
em posições de destaque na arena pública, o efeito simbólico de um negro à frente de uma instituição
com relações historicamente complexas com a população negra. Complexas pois ao mesmo tempo
que representa um agente repressivo perante a população com seus recortes de classe e cor em
constante negociação, também é uma oportunidade de emprego para muitos indivíduos negros e
pobres.
Em entrevista, Cerqueira afirma que, ao contrário de companheiros que estavam correndo
atrás de políticos, ele não tinha amizade com nenhum, e também nunca fez lobby. Isso gerou, segundo
o próprio, um certo ruído entre ele e o movimento negro, pois acredita que o movimento interpretou
como uma soberba do coronel perante a causa. A aproximação se deu pelas ideias, visto que “No
momento que o governador disse o que ele queria foi muito fácil para mim porque eu já pensava
isso” 100 . Assim, tornou-se secretário de polícia militar, na nova estrutura de segurança pública
organizada pelo governo pedetista101.
De qualquer forma, se já na formatura do aspirante Cerqueira na escola de formação de
oficiais o ex-comandante relembra (ou ressignifica?) o orgulho de representar os praças negros em
seu manuscrito, agora é um momento em que Carlos Nobre aponta como um momento definidor para
a ascensão de negros dentro da corporação. Uma representatividade inédita marcada pelo fato
histórico de Cerqueira ser o primeiro comandante negro nos então 174 anos. Segundo o autor, existia
uma “classe média negra militar” escamoteada na corporação pelos oficiais brancos, que agora ganha
visibilidade com o comando de Cerqueira. Assim:
Até então, a opinião pública desconhecia haver profissionais do porte de Nazareth Cerqueira
na corporação, pois esta instituição coercitiva sempre fora comandada por oficiais brancos,
enquanto a tropa de choque fora constituída por negros ou brancos pobres. Dentro da
corporação, a reação à nomeação de Nazareth Cerqueira par ao comando-geral fora dramática
por parte dos oficiais brancos, pois, em geral, os oficiais negros estavam acostumados aos
cargos de menor responsabilidade (...) Nesta mesma época, a presença de outros coronéis
negros chefiando batalhões ou seções de destaque na gestão Nazareth Cerqueira pôs mais
lenha na fogueira. Chamou a atenção o fato de o chefe do estado-maior de Nazareth Cerqueira,
coronel Jorge da Silva, ter um oficial negro culto e inteligente com curso de pós-graduação
em Letras no currículo. Nazareth Cerqueira, por seu turno, acabou se tornando um chefe
mitológico na corporação (2010, p.26).102

100
Ibid.
101
Brizola extinguiu a secretaria de segurança, que englobava as polícias militar e civil e era submetida ao Ministério do
Exército, e determinou que a partir de então ambas fossem secretarias de estado. Dessa forma, o governador contornou a
influência do regime militar nos postos de comando com quadros do Exército, possibilitando que membros das
corporações policiais chegassem aos postos mais altos. Ver HOLLANDA, Op., Cit., 2005
102
Vale ressaltar, entretanto, que Jorge da Silva seria chefe do Estado-Maior no segundo comando de Cerqueira. No
primeiro, o escolhido para o cargo fora Ayrton Rabelo.
72
De qualquer forma, Cerqueira é empossado em um contexto histórico com ventos de certa
forma favoráveis, principalmente no recorte estadual. Nesse caldo de efervescência democrática,
abertura a movimentos sociais e atenção para as minorias, é criado o Conselho de Justiça, Segurança
Pública e Direitos Humanos. Como o nome sugere, o órgão tinha caráter consultivo e buscava integrar
uma gama de representantes como membros da OAB, ABI, CNBB, Associações de moradores,
industriais, comerciantes, jornalistas, do movimento negro, feministas e estudantis em reuniões
mensais. Este era presidido ora pelo secretário de justiça, Vivaldo Barbosa, ora pelo próprio Brizola.
(HOLLANDA, 2005)
Cerqueira, presente nas reuniões, narra um momento. O representante do movimento negro
no órgão, Sebastião Rodrigues Alves103 “começou a enaltecer o governo Brizola “porque agora nós
temos negros no governo””104 citando nomes de pessoas que compõem o governo105, sem mencionar
Cerqueira. Assim, alguém perguntou:
- E o Cerqueira?
- Não, o Cerqueira não é negro, ele nunca pensou como negro.106
“E começou a me atacar”107. Já não era o primeiro alerta. Cerqueira diz que “um outro rapaz
tinha me entrevistado e tinha chamado a atenção para isso “você precisa pensar um pouco mais como
negro”108. Também no relato, mais inquietações:
eu fiz um curso uma vez de negritude, mas eu confesso que eu nunca fui muito ligado no
problema do movimento negro e do negro no Brasil. Eu acreditava em coisas que o
movimento negro não acreditava mais. Um rapaz foi me entrevistar e eu dizia que acreditava
na princesa isabel (...) e eu falei pra ele que eu não me sentia negro, eu só me sentia quando
as pessoas lembravam que eu era negro109

Ao ser efetivado no comando da corporação, Cerqueira, comandante negro encontra-se

103
Sebastião Rodrigues Alves fora um dos fundadores do Teatro Experimental do Negro em 1945. Entre outros, o TEN
teria como fundadores Abdias do Nascimento, amigo de Alves que conhecera quando ambos eram do exército nos anos
30. No mesmo período também fundaria o Comitê democrático Afro-Brasileiro e o diretório negro trabalhista (1946).
Militante e pesquisador, Alves publicara obras como “Ecologia do grupo afro-brasileiro” (1966) e “Sincretismo religioso”
(1966). No advento da criação do PDT, fora um dos fundadores da Secretaria do Movimento Negro do partido, bem como
mobilizou a campanha de seu amigo Abdias do Nascimento para a câmara dos deputados. Falecera em 1985. Disponível
em https://ipeafro.org.br/personalidades/sebastiao-rodrigues-alves/ , acesso em 07/08/2019 e GUIMARÃES, Antonio
Sérgio Alfredo; MACEDO, Márcio. Diário Trabalhista e democracia racial negra dos anos 1940. Dados, [s.l.], v. 51, n.
1, p.143-182, 2008.
104
CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Carlos Magno Nazareth Cerqueira: depoimento [jul.1988]. Op. Cit.
105
Um dos nomes é o de Carlos Alberto Oliveira dos Santos, o Caó. A convite de Brizola, Caó filiara-se ao PDT, sendo
secretário de habitação no governo. Pelo mesmo partido, seria deputado constituinte, responsável pela lei que torna
racismo crime inafiançável. Abdias do Nascimento militante histórico, organizador do Congresso do Negro Brasileiro em
1950 e que esteve a frente do Teatro Experimental do negro nos anos 60, também fora deputado pelo PDT nos anos 80 e
90, ocupando no segundo governo a pasta da Secretaria Extraordinária para Defesa e Promoção das Populações Afro-
Brasileiras, até ocupar o posto, enquanto suplente, de senador na vaga de Darcy Ribeiro que se tornaria também secretário
no segundo governo Brizola.
Disponível emhttp://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/carlos-alberto-cao-oliveira-dos-
santosehttps://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas2/biografias/abdias_do_nascimento , acesso em 08/08/2019.
106
CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Carlos Magno Nazareth Cerqueira: depoimento [jul.1988]. Op. Cit.
107
Ibid.
108
Ibid.
109
Ibid.
73
inserido e alinhado com a proposta de segurança pública humanista, o que envolve uma polícia
democrática e que dialogasse com os mais variados setores da sociedade. Nesse sentido, uma das
medidas envolve abrir os quartéis para palestras do movimento negro.
Um dos presentes no relato ao MIS foi João Marcos Aurore Romão ativista do Movimento
Negro, “ponte” entre Cerqueira e o movimento na organização dos encontros e com quem o mesmo
criaria um vínculo após o primeiro comando (a ponto de estar no relato a convite do próprio então
ex-comandante). Com relação à ida de representantes do movimento ao quartel, Romão afirma que
“foi difícil pro movimento negro aceitar esse convite (...) nossa relação com a PM não existia, era
praticamente nenhuma”110, afinal, segundo o próprio “a PM é branca, a PM não é negra”111, em um
sentido metafórico. De qualquer forma, o movimento foi “inúmeras vezes”112ao quartel.
Interpreto que, para além da importância de abertura dos quarteis e do significado do ingresso
do movimento negro com seus saberes, este fora um momento significativo na trajetória do próprio
Cerqueira. Acredito que a demanda de um agora gestor público em um governo de caráter progressista
minimamente o levou a manter contato com uma certa frequência com grupos como o movimento
negro. Isto, aliado com sua própria biografia marcada pela inquietação e a busca por conhecimento
(o próprio curso de negritude que o mesmo se refere) muito pode ter contribuído para o seu processo
de tornar-se negro. Ao ser perguntado sobre se o movimento trouxe contribuições para o repensar de
ser negro, Cerqueira, referindo-se ao curso de negritude que fez anteriormente, responde:
Trouxe, não há dúvida que trouxe. Porque quando fui fazer esse curso era mais ligado àquelas
filosofias da negritude, de valorizar sua raça, aquelas coisas todas, mas o curso não se referia
muito ao negro no Brasil. Então eu comprei muitos livros, comecei a ler muita coisa sobre o
negro mas não me passou pela cabeça essas questões que hoje o movimento negro levanta,
né113

É interessante como esse trecho, e outros de forma mais indireta, se alinham com o trabalho
de Nilma Lino Gomes. A autora utiliza como referencial teórico os conceitos de saberes de
Boaventura de Sousa Santos, relacionando com os trazidos historicamente pelo Movimento Negro
enquanto saberes emancipatórios em sua obra “O movimento negro educador”. Segundo a autora, o
Movimento Negro, tomado não só em seu aspecto formal, mas como “as mais diversas formas de
organização e articulação das negras e dos negros politicamente posicionados na luta contra o racismo
e que visam à superação desse perverso fenômeno na sociedade” (2017, p.23) possui importância
histórica por ser um potencializador de saberes muitas vezes invisibilizados e que são emancipatórios.
Este último termo a partir de um conceito empregado de Santos
Assim, o Movimento é interpretado enquanto sistematizador de conhecimentos e demandas
(não sem contradições internas à organização) históricas da população negra. A partir da

110
ROMÃO, João Marcos Aurore. Carlos Magno Nazareth Cerqueira: depoimento [jul.1988]. Op. Cit.
111
Ibid.
112
Ibid.
113
CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Carlos Magno Nazareth Cerqueira: depoimento [jul.1988]. Op. Cit.
74
sistematização, ele atua enquanto “um dos principais mediadores entre a comunidade negra, o Estado,
a sociedade, a escola básica e a universidade.” (p.42).
Como mencionado anteriormente, o Movimento Negro Unificado surge no final dos anos 70.
Este fora um período de importantes mobilizações populares inseridas no quadro da “distensão lenta,
gradual e segura”114 do regime ditatorial vigente como a campanha e posterior implementação da
anistia “ampla, geral e irrestrita”, ainda que problemática115 e das greves dos metalúrgicos liderados
por Luiz Inácio Lula da Silva no ABC paulista, o Movimento Negro também se organiza a partir da
unificação de diversas entidades.
Primeiro em 1978 em São Paulo, sob o nome de Movimento Unificado Contra a
Discriminação Étnico-Racial (MUCDR). Depois, em 1979, adotando o nome utilizado até hoje de
Movimento Negro Unificado. Segundo Gomes, “Essa organização de caráter nacional elege a
educação e o trabalho como duas importantes pautas na luta contra o racismo.” (p.32). No campo
educativo em especial, as demandas são por acesso que se dividem em um primeiro momento de
caráter mais universalista, e posteriormente encampando pautas como a lei de cotas e a lei
10.639/2003 que estabelece a obrigatoriedade de ensino sobre a história e cultura afro-brasileira e
africana na educação básica.
Para além de pautas para educação formal, seja básica ou superior, o Movimento Negro possui
contribuição fundamental na contemporaneidade ao produzir e socializar saberes não formais, mas
de certo modo formativos e emancipatórios. Por exemplo, em questões como a denúncia ao racismo
apropriando-se do conhecimento histórico, principalmente no sentido da especificidade brasileira, o
qual “se afirma via sua própria negação” (p.51) denunciando o mito da democracia racial. Ou na
afirmação da negritude e da valorização do corpo negro. Também possui importância em disseminar
tanto a ressignificação do conceito de raça enquanto construção social quanto o caráter passivo
atribuído aos negros no 13 de maio, data referente à promulgação da Lei Áurea e consequente
abolição formal da escravatura. Em consequência, na revitalização de personagens como Zumbi dos

114
Pouco após ser empossado, Ernesto Geisel, quarto general-presidente no período ditatorial civil-militar, anuncia, em
discurso aos dirigentes do partido governista, a ARENA, a intenção de uma “lenta, gradativa
e segura distensão”. O Globo, edição de 30 de agosto de 1974, p.5.
115
Entre movimentos crescentes pela anistia e a cautela do gradualismo de Geisel, a Anistia é aprovada no início do
governo de João Baptista Figueiredo pela lei 6.683 de 23/08/1979. Permeada tanto pela estratégia de diluição da força do
partido oposicionista MDB a partir da vinda de líderes políticos fortes como o próprio Brizola, Miguel Arraes e Luis
Carlos Prestes, que iriam fundar ou refundar suas próprias legendas quanto pelo medo do revanchismo aos torturadores e
outros agentes do Estado responsáveis pela repressão, a referida lei concedeu anistia política tanto aos exilados políticos.
Assim, o texto final da lei em outubro de 1979 resolve, em seu artigo primeiro, que “É concedida anistia a todos quantos,
no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos
com estes, crimes, eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta
e Indireta, de Fundação vinculada ao Poder Público, aos servidores dos poderes Legislativo e Judiciário, aos militares e
aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares.”.
Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1970-1979/D84143.html, acesso em 17/08/2019 Sobre o
processo e as negociações envolvendo a elaboração da lei da Anistia ver FICO, Carlos. A negociação parlamentar da
anistia de 1979 e o chamado "perdão aos torturadores". Revista Anistia Política e Justiça de Transição, Brasília, v. 4,
n. 1, p.318-334, jul/dez 2010.
75
Palmares representando a resistência histórica dos negros.
Contribuição principalmente no sentido referenciado de Boaventura de Sousa Santos,
interpretado pela autora como pedagogia das ausências e das emergências. Afinal, conhecimentos
acumulados, porém historicamente invisibilizados pelas políticas de branqueamento elitistas vêm à
tona de forma organizada a partir da mobilização de um movimento social que se estrutura. A partir
disso, e desconstruindo o conhecimento advindo de uma tradição perpassada pelo ideário da
racionalidade e modernidade oitocentistas, ignorando os atores envolvidos em sua construção e
considerado como dado, o Movimento Negro ocupa espaços formais e informais no cotidiano para
disseminar sua “ecologia de saberes”, conceito formulado por Santos.
Isto significa que suas formas de conhecimento acumuladas historicamente, seja a partir da
trajetória de negros e negras e que seriam consideradas “alternativas”, mas não necessariamente
hierarquizadas com relação aos saberes consolidados, seja pela própria produção considerada erudita,
mas ainda assim secundarizada. Dessa forma, o Movimento constitui enquanto canal de
sistematização e propagação, mas também de criação e negociação, pois não é algo monolítico.
Como vimos anteriormente, um dos espaços ocupados pelo Movimento é o recém fundado
PDT, os quais surgem, ainda que de maneiras diferentes, no mesmo período. Cerqueira está inserido
nesse caldo, mais por uma afinidade ideológica acerca de questões envolvendo Direitos Humanos do
que por um engajamento antirracista e afirmação de sua negritude, embora pelo lado do Movimento
e do partido, engajado na construção do socialismo moreno, o fato de ser negro tenha sido uma
questão que pesou em sua escolha.
Como já apontado, Cerqueira, pelo contrário, dizia que não se sentia negro, só quando
lembravam, embora soubesse “do código”. Entretanto, acredito que a obrigatoriedade de contato e
negociação enquanto gestor público com esse movimento e “sua ecologia de saberes” muito
provavelmente contribuíram para que o então comandante “pensasse como negro”. Para além de não
acreditar mais na Princesa Isabel, o que significaria um pensar como negro?
Antes de mais nada, é preciso situar o conceito de negritude. Aqui apoio-me ao referenciado
por Kabengele Munanga (2009). Segundo o autor, que se utiliza de uma perspectiva histórica do
termo, o conceito abrange em primeiro lugar uma contraposição a um branqueamento, seja o imposto
historicamente de forma colonial, cultural e “científica”, na forma de exclusão do povo negro, seja a
partir da própria tentativa em um primeiro momento de assimilação dos negros de tais valores
culturais, corpóreos e psicológicos.
A partir da rejeição de tais valores e da afirmação de uma cultura, história e corpo negros,
constrói-se a negritude. O conceito não é unidimensional e o autor propõe um debate entre as
diferentes concepções de intelectuais negros acerca do termo, algo que vai além dos limites deste
capítulo. Contudo, em linhas gerais, a negritude pode ser compreendida como:
Tomada de consciência de uma comunidade de condição histórica de todos aqueles que foram
76
vítimas da inferiorização e negação da humanidade pelo mundo ocidental, a negritude deve
ser vista também como afirmação e construção de uma solidariedade entre as vítimas (...) A
negritude torna-se uma convocação permanente de todos os herdeiros dessa condição para
que engajem no combate para reabilitar os valores de suas civilizações destruídas e de suas
culturas negadas. (MUNANGA, 2009, p.21).

Neusa Santos, em sua obra “tornar-se negro”, obra que reúne diversas entrevistas de negros e
negras que ascenderam socialmente nos anos 80, também parte de uma linha semelhante à de
Munanga. Ainda que por um viés mais psicológico devido à própria formação e proposta de trabalho
da autora, o tornar-se negro parte, em primeiro lugar, da rejeição a um ideal branco visto inicialmente
como dado:
O negro brasileiro que ascende socialmente não nega uma presumível identidade negra.
Enquanto negro, ele não possui uma identidade positiva, a qual possa afirmar ou negar. É que,
no brasil, nascer com a pele preta e/ou outros caracteres do tipo negroide e compartilhar de
uma mesma história de desenraizamento, escravidão e discriminação racial, não organiza,
por si, uma identidade negra. Ser negro é, além disto, tomar consciência do processo
ideológico que, através de um discurso mítico acerca de si, engendra uma estrutura de
desconhecimento que o aprisiona numa imagem alienada, na qual se reconhece. Ser negro é
tomar posse desta consciência e criar uma nova consciência que reassegure o respeito às
diferenças e que reafirme uma dignidade alheia a qualquer nível de exploração. Assim, ser
negro não é uma condição dada, a priori. É um vir a ser. Ser negro é tornar-se negro.
(SANTOS, Op., Cit., p.77).

Assim, se imagino Cerqueira como um pedagogo dentro da corporação, ele também passou
por uma “pedagogia da negritude”, ressignificando sua própria história, como a autobiografia em
forma de entrevista demonstra. Como seria a entrevista ao MIS em outro contexto e sem essa
experiência prévia? Para além da entrevista, Cerqueira demonstraria sua negritude em outros
momentos. Um ano antes de seu assassinato, em 1998, Cerqueira, agora novamente um ex-
comandante após a sua segunda e dramática passagem, como veremos mais a frente viaja aos EUA
para um congresso. Lá, no país de língua oficial inglesa que se recusou a aprender na escola em
protesto, escreve anotações de forma memorialística.
Olhando a minha realidade recolho as seguintes informações:
Sou um negro que não foi preso, não foi assassinado e não correu da polícia
Sou um negro que correu para a polícia

Dessas duas realidades recolho as seguintes lembranças:


1 - Lembrança de um ingênuo policial:
Era um jovem tenente da PM e entrava em uma delegacia policial quando percebi que
despertei o interesse de um jovem preso negro. Vi quando ele chamou outros presos
mostrando-me e dizendo-lhes que eu era oficial. Dirigi-me a ele: de um lado um negro que
correu para a polícia e do outro um negro que cumpria o destino traçado para uma grande
maioria de negros. Ingenuamente (ainda não queria acreditar neste destino), tentei mostrar ao
jovem negro preso que eu vencera porque lutara. (CERQUEIRA, 2001, p.14)

A segunda lembrança viria, por aquele que dizia que só escrevia quando estava triste, em forma de
poesia:
Que coisa!
Descobri que sou negro
e nunca falei em versos
de ser negro

77
Nunca cantei a sua dor
de ser quase-gente
de ser diferente
e quase sempre
humilhado por sua cor
Ser negro é ser pobre
é ser besta
é ser vilão
é ser burro
é estar na servidão
é não ser gente
é ser diferente
Que coisa! (p.15)

Em primeiro lugar, vemos que o seu refletir e registrar sobre ser negro não se restringiu ao seu
relato ao MIS. Dez anos depois, e muito provavelmente até o fim da sua vida, Cerqueira leva consigo
um processo que, se seria difícil dizer que fora iniciado, acredito ao menos ter sido acelerado em seu
primeiro comando em contato com a ecologia de saberes do Movimento Negro: um tornar-se negro.
Pelas anotações em prosa e verso, temos algumas pistas do que isso significa116. Se em primeiro lugar
torna-se patente a denúncia ao racismo, também pode-se perceber que é uma denúncia de caráter
estrutural (“ser negro é ser pobre”).
O tornar-se negro passa por uma recusa ao imaginário individualista que integra o racismo
escamoteado no mito da democracia racial. Afinal, se supostamente em um país miscigenado e com
raças harmônicas como o Brasil não existe racismo, o fracasso nos objetivos de vida de um indivíduo
não passa por interdições estruturantes e históricas. Assim, ainda partindo de um viés meritocrático,
vemos o jovem tenente Cerqueira, em contato com o também jovem negro na delegacia que
“Ingenuamente (ainda não queria acreditar neste destino), tentei mostrar ao jovem negro preso que
eu vencera porque lutara”.
Por fim, mas não menos importante e que também se relaciona com as interpretações acima,
também pode-se perceber a já mencionada complexa relação entre a polícia e a população negra e
pobre. Cerqueira sintetiza tanto ao rememorar sua trajetória “Sou um negro que não foi preso, não foi
assassinado e não correu da polícia. Sou um negro que correu para a polícia”, quanto ao relembrar o
encontro com o jovem negro, “de um lado um negro que correu para a polícia e do outro um negro
que cumpria o destino traçado para uma grande maioria de negros.”. Novamente a denúncia,
infelizmente atual117 acerca do destino de boa parte da população negra e pobre no Brasil, perante

116
Na obra “sonho de uma polícia cidadã: Coronel Carlos Magno Nazareth Cerqueira”, livro que reúne entrevistas de
pessoas que trabalharam com o coronel e textos do próprio, Vera Malaguti Batista é uma das entrevistadas. Ela aponta
que “marcaria isso também, a negritude do Cerqueira, que era algo sobre o que ele não falava. Ele era um homem de
poucas palavras, um pensador.” (2010, p.43). Esta é uma das raras menções acerca da relação de Cerqueira com o
racismo e a negritude entre os relatos, o que sugere uma relação mais intimista do Coronel com tais questões, mais
perceptível nos seus escritos (além de entrevistas especificamente sobre o tema).
117
De acordo com o atlas da violência organizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica em 2017, 75,5% das vítimas de
homicídios no Brasil são pessoas negras. Se entre não-negros a taxa de homicídios para cada cem mil habitantes é de 16,0,
78
uma instituição que em grande parte dos seus praças e em menor grau, do seu oficialato, é composta
por indivíduos de mesma cor e classe social.
Portanto, entendo que Cerqueira, ao fim da sua vida, já tem mais do que consolidada uma
negritude. Esta é construída tanto a partir de uma “ecologia de saberes”, seja de caráter mais formal
a partir de um aporte teórico na busca por uma bibliografia e de cursos, quanto pelo contato e
experiência com setores produtores de saberes emancipatórios, como o Movimento Negro.
Entendo sua negritude como algo intimista, mas baseada em um caráter coletivo, de recusa ao
mito da democracia racial e consequente denúncia ao racismo. Tanto na sua feição cotidiana e de
signos preconceituosos atribuídos ao negro “ser negro é ser besta, é ser vilão, é ser burro”, quanto em
sua dimensão estrutural “ser negro é ser pobre” ou, como o próprio se descreve, de forma sintética e
potente “Sou um negro que não foi preso, não foi assassinado e não correu da polícia. Sou um negro
que correu para a polícia”.
Dessa forma interpreto que Cerqueira passou, em sua trajetória, por uma pedagogia da
negritude. O caráter pedagógico e formativo também atravessaria Cerqueira em outros sentidos em
sua vida, agora partindo do próprio e de seus apoiadores em busca de um fazer policial mais
específicos e humanitários. Buscaremos compreender como esta dimensão se operou e se é possível
perceber como a negritude de Cerqueira pôde aparecer em seu reformismo.

para a população negra esse número aumenta para 43, 1. Em dez anos, a taxa aumentou 33,1%, o que demonstra não só
a persistência do problema como também seu crescimento.
Disponível em http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=34784 Acesso em 25 de
julho de 2019.
79
Capítulo 3: “Na minha formação eu não entendia muitas coisas” – O oficial Cerqueira
criando seu espaço

Entre a tática e a estratégia


Na relação entre filosofia e educação, existe um aspecto crucial: não existe formulação de um
modelo educacional sem uma filosofia por trás. No que toca ao processo de filosofar, Cipriano
Luckesi aponta que este, de forma dialética no processo histórico, percorre “três passos: inventariar
os valores vigentes; criticá-los; reconstruí-los.” (1991, p.29). Sobre a sua formação policial, Cerqueira
relembra que:
Ou eu saio dessa polícia ou eu tenho que abrir espaço para mim dentro da polícia. Então eu
comecei a criar espaço para que eu pudesse conviver dentro da polícia e quando eu cheguei
a comandante-geral eu tentei ampliar esse espaço não só para mim, mas para outras pessoas.
Através de instrução, através do ensino, do debate118.

Michel de Certeau ao tratar das práticas do cotidiano, dos seus modos de fazer e de criação de
espaços com relação ao outro, recorre à distinção de dois conceitos enquanto ponto de partida para
análise: estratégia e tática. A primeira entende-se como a postulação de um lugar próprio como criação
do fazer e do saber, sendo “um poder a preliminar deste saber” (1994, p.100). Possuindo poder
necessário para a imposição deste lugar independente, o sujeito ou instituição pode “preparar
expansões futuras” (p.99), bem como se antecipar a movimentos contrários.
Já a tática é “a arte do fraco” (p.101). Aqui, o sujeito encontra-se em posição desfavorável,
sem lugar próprio que não o outro, não podendo declarar sua autonomia, diferente da estratégia.
Utilizando um jargão do futebol, ele joga no erro do adversário. Aproveita os espaços possíveis, as
oportunidades, precisa ter astúcia para construir sua ação. Acredito que Cerqueira, entre a formação
e o comando, e continuando com o futebol, pôde jogar nos dois times: tática e estratégia. Sua tática,
não entendendo os saberes policiais, fora inventariar e criticar os valores vigentes, não todos, que
fique claro, como hierarquia e disciplina. Entretanto, esta não é uma divisão estanque, pois em certos
momentos antes do comando Cerqueira esteve em posições de poder, criando seu espaço. E as vezes
pagando por isso, como veremos.
De antemão, vejamos tais passos em articulação com sua carreira na corporação. Apontaremos
em primeiro lugar e de forma pragmática as informações contidas no seu próprio currículo, disponível
em seu acervo no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro. Sobre as patentes no oficialato: como
já vimos, Cerqueira ingressa como cadete no curso de formação de oficiais em 1953 e se forma como
aspirante em 1955. Depois, percorreria as patentes de segundo aspirante (1958), primeiro tenente
(1963), capitão (1964), major (1968), tenente coronel (1973) e coronel em 1981.

118
CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Carlos Magno Nazareth Cerqueira: depoimento [jul.1988]. Op.Cit.,
depoimento [jul.1988]. Entrevistadores: Airton da Silva Rabello, João Marcos Aurore Romão, Yvonne Maggie, Dulce
Porto Ramalho. Rio de Janeiro: MIS-RJ, 1988, 4 cds. Entrevista concedida ao Projeto 100 anos da abolição: depoimentos
para a posteridade.
80
Dentro da corporação exerceria as funções de chefe da 3ª seção do Estado-Maior, diretor de
ensino, ajudante geral, comandante dos 4° e 19° batalhões em São Cristóvão e Copacabana
respectivamente, subchefe e chefe do Estado-Maior e, finalmente, comandante geral da PMERJ
enquanto Secretário de Estado de Polícia Militar. Após o primeiro comando Cerqueira também seria
assessor especial da prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, durante o mandato de Marcello Alencar.
Além das formações já mencionadas em filosofia pela então Universidade do Estado da Guanabara e
psicologia pela Faculdade Gama Filho, destaca-se que Cerqueira também realizou o Curso Superior
de Polícia Militar e um curso de psicologia do trabalho pela Fundação Getúlio Vargas.
No que toca às experiências internacionais, o ex-comandante realizou um estágio na
Gendarmerie francesa (espécie de polícia daquele país), além de intercâmbio nas polícias de Portugal
e Itália em 1985, Estados Unidos em 1987, além de Suíca, Canadá, Israel e novamente Estados Unidos,
todas no ano de 1994. As políticas de intercâmbio e patrocínio a viagens de policiais para polícias de
outros países seria uma das marcas dos comandos de Cerqueira. O resultado de algumas dessas
viagens seria condensado em uma edição da Revista da PMERJ, recriada por Cerqueira em seu
primeiro comando e que será analisada mais à frente.
De forma qualitativa, comecemos sobre o aluno Cerqueira. Em entrevistas concedidas à tese
de Bruno Marques, vemos duas visões: na primeira, o coronel reformado Euclydes Carvalho Brito,
professor de redação do futuro comandante, afirma que Cerqueira era um aluno de aplicação notável
e com uma noção de que “oficial tem que saber escrever”(2016,p.97). Já o coronel Edson Gomes
Moreira critica Cerqueira enquanto um “decoreba, sem sentido prático” (ibid.). Este tipo de crítica
seria semelhante às resistências sofridas pelo comandante em suas gestões, quando a pecha de alguém
que supostamente conheceria da teoria, mas muito pouco da prática da polícia, algo que beiraria a
omissão, seria a tônica. Na entrevista autobiográfica concedida ao MIS, temos uma visão do próprio
Cerqueira enquanto aluno:
Na minha formação na escola eu não entendia muitas coisas porque eu não servia o exército
e não sabia como aplicar aqueles ensinamentos (...) eu comecei a pensar a polícia quando fui
major. Então a formação toda nossa era uma formação militar, dentro daquela ideia de que
tinha uma polícia guerreira, você tinha um inimigo e tinha que combater o inimigo. 119

Como vimos, Cerqueira seria major em 1968. Nesses 15 anos de polícia, ele passou por alguns
bocados na corporação, como as primeiras experiências de rua no turbulento fim do período
varguista 120 , as primeiras prisões, a qual retomaremos mais à frente, e a conturbada tentativa de

119
CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Carlos Magno Nazareth Cerqueira: depoimento [jul.1988] Op. Cit.
120
Em 24 de agosto de 1954, em meio a uma intensa crise política envolvendo denúncias de corrupção e a culpa pelo
atentado ao seu opositor Carlos Lacerda, Getúlio Vargas desfere um tiro no próprio peito. Após o suicídio, as ruas do
Distrito Federal, à época localizado no Rio de Janeiro, foram tomadas por manifestações em favor de Getúlio,
marcadas por episódios de violência e depredação a jornais opositores. Todas as forças policiais, bem como do
Exército foram convocadas para realizar a dispersão e Cerqueira, então aluno da escola de oficiais, também fora
chamado. Em seu manuscrito, anota sobre a experiência que teve medo. Medo de entrar em conflito com outros
brasileiros, pois “(pensei que não queria ser militar por causa da guerra). Torci para que tudo terminasse em paz”
(grifo do autor)
81
transferência para Brasília, onde brevemente trabalharia para a polícia da nova capital federal 121, em
que logo retornaria. Também já estava formado em filosofia. Além disso, teria certas frustrações.
Nos anos 60, mais especificamente no início do governo de Carlos Lacerda no então estado
da Guanabara (1960-1965) fora um período de raro acontecimento na história da polícia: o comando
geral sendo exercido por um policial – o coronel Darci Fontenelle de Castro - e não por um militar122.
Nesse contexto de boas novas, o então segundo aspirante Cerqueira “fazia parte de um grupo de
oficiais que se reunia periodicamente tentando melhorar a polícia, que tavam sempre questionando o
comandante e querendo melhorar as coisas. E eu passei a entrar nesse grupo e a participar das reuniões
desse grupo.”123.
Animado, afinal “agora a gente pode ajudar a PM”124o jovem oficial teve uma ideia: pediria
ao comandante que “fizesse conferências e levasse ao quartel conferencistas do meio acadêmico para
que eles pudessem conhecer a polícia e não ficassem com aquela impressão de que na PM tinha um
monte de analfabeto e ignorantes.“125. Pediria. Ao levar a sugestão ao ajudante de ordens do coronel,
o banho de água fria:
Aí o ajudante de ordem do Coronel Darci chegou pra mim e disse: “Cerqueira, não vou
encaminhar a tua proposta”, e eu perguntei o porquê e ele disse “porque eu não entendi o que
você quer”, “mas como você não entendeu, ta bem claro”, e ele perguntou “mas por quê
isso?”. Eu falei “tudo bem, deixa pra lá”, e fiquei meio aborrecido com aquilo. 126

Antes de mais nada, vale ressaltar novamente que este é um relato dentro de uma narrativa
planejada e ordenada, inserida num projeto que teria o registro de tal fala para a posteridade. Isto pode
implicar uma certa linearidade e elaboração de si, uma certa “ordem dos fatos” que contenha
essencialismos. No caso acima, esta essência do estudioso, que em alguns momentos pontua a
narrativa autobiográfica desde a infância.
Não se está discutindo com isso se é “verdade” ou não, mas apenas buscando uma análise

121
Em julho de 1963, no mandato do presidente João Goulart, fora decretada a denominada “lei da opção”. Esta facultava
aos policiais militares do agora estado da Guanabara a possibilidade de escolha para voltar a trabalhar na Polícia
Militar do Distrito Federal, agora localizado em Brasília. Isto gerou um quadro de tensões no período, tanto pelo
presidente da República e do agora governador da Guanabara Carlos Lacerda serem de partidos opositores, o que
gerou uma acusação de Lacerda que os policiais optantes pela transferência eram comunistas, quanto pelo cenário de
crise que poderia ocorrer no contingente de policiais dependendo da defasagem para Brasília, quanto por uma divisão
interna nos quarteis entre os optantes pela transferência e por quem continuaria no estado. O então primeiro-tenente
Cerqueira, que trabalhava como instrutor no Centro de Formação de Praças, resolve optar pela transferência. Tal
decisão gerou atritos dentro da corporação, contudo, Cerqueira ficaria apenas quatro meses por não se adaptar à cidade,
voltando para a Guanabara. Para mais detalhes ver SILVA, Bruno Marques. Op. Cit.
122
Até a fusão entre os estados da Guanabara e do Rio de Janeiro em 1975, a então Polícia Militar do Estado da Guanabara,
ao longo dos seus 166 anos de existência passou seus comandos por policiais da corporação durante somados apenas 12
anos. Já a antiga Polícia Militar do antigo Estado do Rio de Janeiro teve, em seus 140 anos de existência até a fusão, 6
anos e 4 meses de comandos por policiais. A atual PMERJ, da fusão até 1983 também fora comandada por oficiais do
Exército. A partir de então o comando só fora exercido por policiais. Para mais detalhes ver MUNIZ, Jacqueline. Ser
policial é, sobretudo, uma razão de ser. Rio de Janeiro: IUPERJ, 1999. p.76
123
CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Carlos Magno Nazareth Cerqueira: depoimento [jul.1988] Op. Cit.
124
Ibid.
125
Ibid.
126
Ibid.
82
crítica que perceba o personagem como multifacetado. De qualquer forma, percebendo as práticas de
Cerqueira na corporação, vê-se este esforço em dialogar com o mundo acadêmico em diversos
momentos nos seus comandos, assim como antes e depois deles. Essência ou não, este é um ponto
recorrente em sua trajetória. Também vale ressaltar que neste contexto Cerqueira já estava na
faculdade de filosofia pela UEG. Interpreto que, relacionando com outro momento do relato em que
ele diz que não houve hostilidade contra ele na universidade mas sim um certo estranhamento, a
iniciativa de levar o meio acadêmico para os quarteis neste momento tem a ver tanto com a sua
experiência neste outro mundo e as possiblidades de diálogo vistas por ele quanto por uma tentativa
de melhorar a imagem da sua corporação.
Em uma perspectiva macro, é também neste período turbulento politicamente que ocorreria
um mosaico de eventos culminantes no golpe civil-militar de 1964, o qual – tendo o próprio Carlos
Lacerda como um de seus fiadores - provocaria profundos desdobramentos que ainda persistem no
modo de atuar da polícia, já historicamente relacionada com a influência militarista. Antes de
entrarmos neste período em específico, vale ressaltar brevemente um dos eventos que marca, ainda
que de forma indireta e distante, a relação de Cerqueira com Brizola: a denominada Campanha da
Legalidade, a qual teria como um de seus protagonistas o político gaúcho, então governador do estado
do Rio Grande do Sul.
Após a renúncia de Jânio Quadros em agosto de 1961, a próxima etapa natural prevista pela
legislação seria a posse de seu vice presidente, João Goulart, ao cargo de presidente. Neste período
votava-se para presidente e vice-presidente e Jango, considerado tanto herdeiro político do temido
getulismo quanto, de forma mais extrema, como um “comunista” neste contexto de guerra fria, fora
eleito junto com Jânio. Assim, Jânio fora eleito pelo nanico Partido Democrata Cristão (PDC), de
direita e com apoio do também partido de direita, mas de maior estrutura União Democrática Nacional
(UDN). Já Goulart era do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) de tendência à centro-esquerda, ainda
que o próprio Jango fosse de tendência mais moderada.
No momento da renúncia, o então vice-presidente estava em visita oficial à China, e os
ministros militares do governo em conjunto com as forças conservadores queriam barrar a sua posse.
Leonel Brizola, então do mesmo partido de Jango, o PTB, resolve resistir. Governador destacado e
de prestígio na época por seu governo pautado pelo investimento na construção de escolas e na
infraestrutura do estado riograndense, Brizola mobiliza tanto as camadas populares quanto os
comandos militares da região na resistência à tentativa golpista. Segundo Jorge Ferreira:
Brizola conseguiu organizar a Cadeia Radiofônica da Legalidade, com 150 emissoras de
rádio interligadas no brasil e no exterior. A resistência democrática se espalhou pelo país, e
dividiu os próprios militares. E foi assim que João Goulart tomou posse na Presidência da
República em 7 de setembro de 1961 e Leonel Brizola tornou-se o primeiro líder civil
brasileiro a enfrentar e a derrotar um movimento militar golpista. (FREIRE; FERREIRA,
2016, p.25)

83
Cerqueira apoia o movimento, que, vitorioso, garante a posse de Jango, ainda que de forma
negociada e dentro de um novo arranjo, ao adotar o regime parlamentarista. Duraria até 1963 com
um plebiscito que permitira a volta ao regime presidencialista. Jango restituiria os plenos poderes de
chefe do Executivo até o advento do golpe civil-militar de abril de 1964. Sobre a Legalidade, em seu
manuscrito para a entrevista ao MIS, Cerqueira anota:
A renúncia de Jânio – a luta de Brizola no sul – a nossa torcida – Pensamos em tecer um
manifesto apoiando a legalidade – eu e mais dois tenentes // achamos que seria ridículo –
iriam rir dos 3 tenentes – pensei que isso pode ter sido justificativa para o medo de ser preso
– não fizemos127

Para além da característica mais evidente que é a de caracterizar este primeiro contato com o
futuro governador do Rio de Janeiro pontuado por uma convergência de ideias no sentido de defesa
da lei e da democracia, algo que se repetiria de maneira semelhante em sua relação com o mandatário
nos anos 80 e 90, busco fazer outro apontamento. Relacionando este trecho com o do pedido ao
auxiliar do comandante, ambos trazidos por Cerqueira e ambos evocando um grupo de policiais
engajados de maneiras diferentes, na primeira fala preocupados com questões da polícia e na segunda
com a conjuntura política, interpreto uma preocupação de Cerqueira, e de certa forma deste trabalho
também, qual seja: a de valorizar a corporação ao evocar grupos que atuassem de forma crítica dentro
da mesma e de diferentes formas.
Com relação a este trabalho, a preocupação é de não monumentalizar o personagem aqui
estudado, ressaltando a sua importância histórica, mas não interpretando-o como alguém “a frente do
seu tempo” ou que agia de forma isolada dentro da corporação. Neste sentido, Bruno Silva é mais
radical ao trabalhar o tempo todo em sua tese com uma biografia intelectual de Cerqueira, mas em
conjunto com o seu grupo de “reformistas” da corporação. Aqui as pretensões são mais modestas,
mas importa também afastar-se de uma super individualização do personagem estudado.
De qualquer forma, este seria um dos exemplos de engajamento de Cerqueira na corporação.
Se neste momento não acarretou sérias consequências, em outros sim. Além do já citado entrevero
com Sandra Cavalcanti, afinal, ela “falava muito mal da PM” 128. No total, inclusa a querela com a
deputada, Cerqueira seria preso 3 vezes129. Ademais, Cerqueira teria problemas no ensino, para além
da questão filosófica de atuação da polícia, como vimos anteriormente por alto e iremos aprofundar
mais adiante. Seriam questões práticas, tanto como aluno quanto como diretor da sessão de ensino,
que iriam trazer punições ao oficial.
Começamos com uma quase prisão: ainda nos anos 50, com uma inquietação do cadete
Cerqueira, ainda um estudante na escola de formação de oficiais, na disciplina de educação moral e

127
Manuscrito da entrevista com Carlos Magno Nazareth Cerqueira de 18 de julho de 1988. In: Museu da Imagem e do
Som. Projetos especiais “Cem anos de Abolição”, p. 12. In acervo da Coleção Coronel Cerqueira localizado no Arquivo
Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ).
128
CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Carlos Magno Nazareth Cerqueira: depoimento [jul.1988] Op. Cit.
129
Ibid.
84
cívica. Nela, “havia uma prova que era sobre o hino, bandeira, sobre símbolos”130 e “eles pediam que
a gente tinha que decorar” 131 . Cerqueira relata que achava que “não tinha muito sentido ficar
decorando”132. Pensou em tomar uma atitude: “eu não vou estudar não, vou tirar zero nessa prova”133.
Acabou, conscientemente, tirando 2. Por quê? A nota zero podia ser passível de expulsão da
escola e detenção no quartel no final de semana. Ao ser questionado pelo professor o porquê da baixa
nota, Cerqueira, que pensou em dizer o verdadeiro motivo, mas ficou em um conflito interno pelo
receio de insubordinação e suas consequências, respondeu apenas que não tinha estudado. Trago este
momento porque segundo Cerqueira fora uma indignação “que ficou abafada” 134, a qual “em outras
oportunidades a revolta veio”135.
Voltando ao famigerado ano, o então major Cerqueira recebeu a incumbência de chefiar a
seção de ensino da escola de formação de oficiais. Ficaria até 1973, onde considerou seu período mais
produtivo, quando afinal, começou a “pensar polícia”136. Trazendo para os objetivos do trabalho, não
seria forçoso interpretar que as tarefas próprias da chefia da seção de ensino e os desafios propostos
para se pensar sobre a formação deste policial fossem demandas que levassem o já engajado nas
melhorias da corporação do oficial Cerqueira a dar um passo além.
Ali seria o local onde ele “cria a seção de psicologia, para acompanhamento e apoio aos alunos.
Enfrenta o trote, excessivo e brutalizador.” (PEREIRA, 2016, p.46). Nesse meio tempo realizaria sua
primeira viagem internacional, ao realizar um curso na Gendamerie francesa, a força policial do país,
durante quatro meses (SILVA, 2016, p.139). Por fim, ensaiou uma prática que seria outro traço de seu
comando futuramente: reformulou o currículo ao diminuir a carga das disciplinas jurídicas, visando
um equilíbrio na grade, o que o fez entrar em choque com os professores de direito.
O choque decisivo, entretanto, foi com a descoberta de um esquema de fraude no ingresso de
alunos no processo seletivo para a escola de formação de oficiais. Geralmente filhos de oficiais de
alta patente, os alunos ingressavam com diplomas falsos. “Eram cartas marcadas. Fui chamado de
inimigo dos filhos de coronéis. Comecei a ter problemas com as turmas (...) disseram que eu queria
subverter a polícia. Então me tiraram e fui transferido para a cavalaria” 137. No manuscrito, anotaria
em sublinhado: “minha grande decepção. Achava que a escola tinha que ser um lugar sagrado”138. A
relação com os alunos se deteriorou: “Foi horrível. Felizmente o mais burro não conseguiu passar de
ano.”139 Na obra de 1973 e reeditada em 1989 chamada “psicologia da corrupção”, monografia de

130
CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Carlos Magno Nazareth Cerqueira: depoimento [jul.1988] Op. Cit.
131
Ibid.
132
Ibid.
133
Ibid.
134
Ibid.
135
Ibid.
136
Ibid.
137
CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Carlos Magno Nazareth Cerqueira: depoimento [jul.1988] Op. Cit.
138
Manuscrito da entrevista com Carlos Magno Nazareth Cerqueira de 18 de julho de 1988. Op. Cit. p.16
139
Ibid., p.17.
85
conclusão do Curso Superior de Polícia Militar, Cerqueira relataria os desdobramentos e reflexões
que tirara desse momento:
A expulsão da escola deixou-me bastante depressivo, com graves repercussões na minha vida
pessoal. Em quinze dias tive três acidentes com meu automóvel, sendo que no último fui
parar em um hospital. Nos dias em que estive internado refleti sobre a minha posição e decidi
que mudaria de comportamento. Não lutaria para modificar o mundo e os outros. Mas lutaria
com todas as forças para que os outros não me modificassem. Se as respostas estavam
invertidas, se ser corrupto era “virtude”, eu não seria virtuoso, por teimosia. [grifo do
autor].140

Em 1979, Cerqueira estaria de novo envolvido com a educação, dessa vez na terceira seção
da diretoria de ensino da PM. Ali ficaria a cargo de questões relativas a seleção de alunos. Depois, já
coronel, seria diretor de ensino antes de seu ingresso na chefia do Estado-Maior, último posto antes
do comando geral. Nesse momento, o comando era exercido pelo coronel do Exército Nilton
Cerqueira, personagem que voltaremos posteriormente, mas que por ora vale dizer que este era
conhecido por seu modelo repressivo de atuação.
Relatos de policiais a Bruno Marques (2016, p.163) denotam que a decisão do comandante
em enviar Cerqueira para a diretoria de ensino, sendo este já Coronel era uma espécie de “geladeira”.
Pelo contraste de ideias com o comandante, em que Cerqueira ganhara visibilidade e ainda mais
prestígio na corporação após o já mencionado episódio com Sandra Cavalcanti em 1979, Nilton
Cerqueira optou por atribuir a Cerqueira um cargo considerado de menor prestígio.
Diretamente subordinada ao Comando-Geral, bem como tendo função de “fazer observar as
Diretrizes de Ensino baixadas pelo Comandante Geral” 141 , cabia como finalidade primeira da
Diretoria Geral de Ensino e do seu chefe a incumbência de “planejar, orientar, coordenar, controlar e
fiscalizar as atividades relacionadas com a formação, aperfeiçoamento, especialização, atualização,
reciclagem e adestramento de oficiais e praças; e pesquisa de ensino”142.
De qualquer forma, aqui é o momento em que Bruno Marques considera a consolidação de
Cerqueira enquanto um “intelectual de farda” (ibid.), pois este continua a busca por conhecimento,
como a realização de uma pós-graduação em psicologia do trabalho pela Fundação Getúlio Vargas,
em 1982.
Este líder que podia ser visto como duro, subversivo, herói ou “maluco”, era ao mesmo tempo
alguém que vez ou outra era rejeitado pelos comandados em operações na rua. Justamente por não
ser duro o suficiente no sentido de repressão. Segundo Cerqueira, os “praças não aceitavam muito a
minha liderança porque eu não aceitava violência.” 143 Um exemplo: ao ser insultado por um

140
CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Psicologia da corrupção. p.46. In acervo da Coleção Coronel Cerqueira
localizado no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ).
141
Boletim da PMERJ nº161 de 20 de agosto de 1976, p.15. Disponível em
https://sites.google.com/site/tenhoquasetudopmerj/ , acesso em 06/11/2019. Tal estrutura seria alterada em setembro
de 1990, no final do governo Moreira Franco, quando a então Diretoria Geral de Ensino viraria Diretoria de Ensino
e Instrução. Veremos posteriormente as diferenças entre ensino e instrução no âmbito da formação policial.
142
Ibid.
143
CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Carlos Magno Nazareth Cerqueira: depoimento [jul.1988] Op. Cit.
86
indivíduo alcoolizado que se encontrava detido na delegacia, Cerqueira não reagiria pois não via
sentido naquilo, ao passo que os policiais ao redor demandavam uma reação enérgica do oficial. Por
passar uma boa parte de sua carreira em funções burocráticas e dentro do quartel, Cerqueira se
questiona no manuscrito: “Parece que eu me escondia nas atividades burocráticas. Covardia ou
ideologia?!”144.
O aprofundamento da formação militarista em tempos embrutecidos
Pode-se questionar este marco definido pelo próprio Cerqueira ocorrido em fins dos anos 60
como o período em que ele começou a pensar a PM. Afinal, e retomando o processo de filosofar
elaborado por Luckesi, Cerqueira já criticava, seja individualmente, seja em conjunto, práticas e
formulações da corporação desde sua época de aluno na escola de oficiais. De qualquer forma,
entretanto, tomemos o período citado como uma inflexão significativa em sua história.
Isto porque, e retomando o conceito de jogo de escalas, se este fora um período importante
para Cerqueira refletir sobre a polícia, tal instituição também sofrera alterações significativas em sua
atuação nas ruas por influência do contexto. Afinal, este era um tempo de ditadura civil-militar desde
o golpe de 1964, com o aparato repressivo cada vez mais aprimorado, principalmente após o Ato
Institucional número 5, implementado no final de 1968. Segundo Ridenti:
Agravava-se o caráter ditatorial do governo, que colocou em recesso o Congresso Nacional
e as Assembleias Legislativas estaduais, passando a ter plenos poderes para: cassar mandatos
eletivos, suspender direitos políticos dos cidadãos, demitir ou aposentar juízes e outros
funcionários públicos, suspender o habeas corpus em crimes contra a segurança nacional,
legislar por decreto, julgar crimes políticos em tribunais militares, entre outras medidas
autoritárias. Paralelamente, nos porões do regime, generalizava-se o uso da tortura, do
assassinato e de outros desmandos. Tudo em nome da segurança nacional, tida como
indispensável para o desenvolvimento do posteriormente denominado milagre brasileiro na
economia. (2002, p.153)

Com o AI-5 ocorre em definitivo o embrutecimento do regime. Ele duraria até a sua revogação
em 1978, no contexto da abertura “lenta, gradual e segura” do general Ernesto Geisel à frente do
Executivo. Os movimentos de oposição se desbaratariam, em que alguns desembocam para a luta
armada, logo duramente reprimida pelo governo. Assim, para Ridenti “o ano rebelde de 1968 seria
sucedido por anos de chumbo.” (ibid., p.153).
O AI-5 representa um aprofundamento inserido num modelo político-institucional repressivo
que vinha sendo organizado de forma prática desde 1964, mas de forma ideológica de bem antes. É
preciso compreender qual o referencial teórico do regime no que tange às formas de lidar com o crime
e o criminoso, bem como suas diretrizes aos órgãos que detém o monopólio da força, ao qual
Cerqueira e seus companheiros de farda estão inseridos.
Esta matriz vinha sendo gestada e reformulada em anos anteriores ao golpe, em que sua
origem se confunde com o advento da Guerra Fria no pós-segunda guerra. Estamos falando da

144
Manuscrito da entrevista com Carlos Magno Nazareth Cerqueira de 18 de julho de 1988. Op. Cit. p.16
87
Doutrina de Segurança Nacional, uma cartilha formulada pela National War College, a escola de
guerra americana, a qual fora importada pelos militares brasileiros da Escola Superior de Guerra.
Fundada em 1949, muito a partir do contato dos militares brasileiros na segunda guerra
mundial com os estadunidenses e a sua escola de guerra, a ESG torna-se uma formadora dos
intelectuais -utilizando o termo gramsciano- orgânicos militares, voltados para a resolução de
questões envolvendo desenvolvimento e segurança nacional. A Doutrina não deixa de interligar os
dois campos, pelo contrário. Embora, como todo órgão, não fosse algo monolítico e permeado por
disputas, a Escola Superior de Guerra fora a responsável pela importação e assimilação da DSN nos
marcos brasileiros.
Em linhas gerais, a Doutrina pautava-se por forte anticomunismo e defesa dos valores
ocidentais e cristãos contra tal ameaça dos “vermelhos”. Tais valores precisavam ser alimentados
constantemente pela ameaça da iminência de um conflito entre os dois polos antagônicos dominantes
no cenário mundial (BORGES, 2003). As formas de combate passavam tanto pelo desenvolvimento
econômico e política externa atuante quanto por uma guerra permanente, não necessariamente física,
mas também ideológica.
Entretanto, se no caso estadunidense a Doutrina privilegiava “o conceito de guerra total e
guerra nuclear” (FERNANDES, 2009, p.847), no caso brasileiro e nos países latino-americanos que
se entremearam em regimes ditatoriais a ideia-chave de guerra interna e subversiva ganhou mais força.
Entra em cena a figura do “inimigo interno”, um termo abrangente que poderia ir além do comunista
subversivo da ordem. Segundo Ananda Simões Fernandes:
O “inimigo interno” foi utilizado para a elaboração de toda doutrina de segurança readaptada
pela ESG: guerra revolucionária, geopolítica, política externa, segurança nacional,
desenvolvimento econômico. Não há uma definição de “inimigo”; o importante é que toda a
população vira suspeita, podendo ser controlada, perseguida e eliminada. (2009, p.849)

O diagnóstico para o caso brasileiro baseava-se no contexto de ascensão de movimentos


sociais e da classe trabalhadora organizados e cada vez mais mobilizados, um dos motivos principais
para o golpe de 64. De movimentos rurais como as Ligas Camponesas a movimentos sindicais,
passando por iniciativas populares como o método Paulo Freire de alfabetização, o clima pré-golpe
era de intensa mobilização tendo como um dos motes principalmente as chamadas reformas de base.
Isto não veio sem o também acirramento das camadas conservadoras, organizadas em instituições

88
como o IPES145 e o IBAD146. Neste momento a ESG, que anteriormente dirigia seus cursos somente
a militares, agora também o oferece a civis.
Estes órgãos, em conjunto com a Escola Superior de Guerra, foram os principais articuladores
da ideologia e da prática do movimento golpista que daria cabo ao governo Jango. Afinal, na
interpretação destas instituições, a retirada do poder do presidente seria nada mais que uma
antecipação perante o suposto inevitável golpe que as forças de esquerda implementariam. Golpismo
que já vinha sendo tentado desde a volta de Getúlio Vargas ao poder (1951-1954), vale ressaltar.
Mergulhado numa crise política, seu gesto dramático de suicídio é visto para estudiosos do período
(FERREIRA, 2019) como um adiamento dos movimentos golpistas pela comoção gerada. Contudo,
sucessivas tentativas ocorreram posteriormente, como os momentos que antecederam a posse de
Juscelino Kubitschek, a já mencionada Campanha da Legalidade.
Tal clima de agitação e paranoia confluíam para a ideia de inimigo interno tão trabalhada pela
DSN nos moldes brasileiros. Tal noção remete a um estado de permanente de vigilância e, em
consequência, controle de um inimigo que pode estar em toda parte. Dessa forma, engendra uma
política de segurança abrangente, que envolva uma comunidade de informações e um aparato
repressivo robusto. Segundo Borges:
a segurança interna comporta ações que se desenvolvem em duas grandes áreas: a da defesa
interna, que se ocupa dos antagonismos e pressões vinculadas ao processo subversivo; e a
defesa pública, que está ligada ao setor de segurança pública, que integra o quadro de
segurança interna, que se ocupa dos antagonismos e pressões de toda espécie que não
contenham conotações ideológicas. (2003, p.37).

Durante a ditadura, estes aparelhos, subordinados ao Exército, seriam simbolizados pelo


Serviço Nacional de Informações (SNI), além dos serviços secretos das Forças Armadas, a Polícia
Federal, as Delegacias de Ordem Política e Social (DOPS) nos estados em conjunto com o
Destacamento de Operações de Informações (DOI) e o Centro de Operações de Defesa Interna
(CODI). Para além de todos esses órgãos, Borges aponta que dentro desse ideário holístico de

145
O Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais fora fundado oficialmente em fevereiro de 1962 a partir da desconfiança de
representantes do empresariado do Rio de Janeiro e de São Paulo com o governo João Goulart e suas ligações com as
centras sindicais, bem como com os rumos das “reformas de base” e sua suposta inevitabilidade ao comunismo.
Ganhando adesões de outros estados, o IPES atuava a partir da produção de filmes, seminários, cursos, folhetos, e
livros contra as diretrizes do governo trabalhista, além de financiar outros órgãos alinhados no tom oposicionista,
visando uma articulação de entidades de direita. O instituto participou ativamente no processo que culminou no golpe
do presidente Goulart, principalmente no teor propagandístico. Disponível em
https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/Jango/artigos/NaPresidenciaRepublica/O_Instituto_de_Pesquisa_e_Estudos_S
ociais , acesso em 05/11/2019
146
O Instituto Brasileiro de Ação Democrática, fundado ainda em 1959 por Ivan Hassoler e apoiado pelo empresariado
insatisfeito com os rumos na economia do governo JK, tinha um caráter ainda mais político com relação ao IPES. Isto
porque o IBAD, ferrenhamente anticomunista, trabalhou ativamente nas campanhas eleitorais de 1962 a favor de
candidatos oposicionistas ao governo Jango, chegando a alugar jornais durante o período eleitoral e mudando sua
linha editorial a seu favor. Tal captação e alocamento de recursos geraram suspeitas suficientes para se instalar uma
Comissão Parlamentar de Inquérito em 1963, constatando, apesar das tentativas de queima de arquivo, que o IBAD
tinha um grande aporte de empresas estadunidenses. O IBAD seria fechado em dezembro do mesmo ano. Disponível
em
https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/Jango/artigos/NaPresidenciaRepublica/O_Instituto_Brasileiro_de_Acao_Dem
ocratica , acesso em 05/11/2019
89
segurança nacional também abrangia os próprios currículos escolares da educação básica, a partir da
inserção de disciplinas como “Moral e Cívica, Organização Social e Política do Brasil e Estudos de
Problemas Brasileiros, cujos conteúdos programáticos eram formulados tomando por base princípios
e conceitos de segurança nacional.” (2003, p.37). No que se refere à polícia estadual, como já fora
abordado, as relações entre este e a cultura militar remetem à sua origem. Segundo Jacqueline Muniz:

Elas nasceram, em 1809, como organizações paramilitares subordinadas simultaneamente


aos Ministérios da Guerra e da Justiça portugueses, e gradativamente sua estrutura
burocrática foi tornando-se idêntica à do Exército brasileiro. Até hoje, o modelo militar de
organização profissional tem servido como inspiração para maior parte das Polícias Militares.
Assim como no Exército Brasileiro, as PMs possuem Estado Maior, Cadeia de comando,
Batalhões, Regimentos, Companhias, Destacamentos, Tropas, etc. Seus profissionais não
fazem uso de uniformes como os agentes ostensivos das recém-criadas Guardas Municipais;
eles utilizam “fardas” bastante assemelhadas aos trajes de combate dos militares regulares.
Nestas fardas estão fixados diversos apetrechos, como uma tarja com o “nome de guerra”, as
divisas correspondentes aos graus hierárquicos e outras insígnias referentes à trajetória
institucional do policial. (2001, p.179)

Isto não fora muito diferente ao longo do século XX. Ao menos desde 1915 a União legisla
sobre as forças policiais com relação ao Exército. O decreto no 11.497, de 23.2.1915, por exemplo
“estabelecia que as polícias estaduais seriam organizadas de forma similar ao Exército e a ele se
incorporariam em caso de mobilização ou por ocasião de grandes manobras.” (CERQUEIRA, 2010,
p.136)
Se nas constituições de 1934 e 1946 isto já fica marcado institucionalmente ao atribuir, na
primeira constituição, as polícias como forças reservas do Exército147, enquanto que na segunda como
forças reservas e auxiliares148, com o advento do golpe civil-militar de 1964 tal caráter se aprofunda.
Por exemplo, o Decreto-Lei nº 317 de 1967, que “Reorganiza as Polícias e os Corpos de Bombeiros
Militares dos Estados, dos Territórios e do Distrito federal e dá outras providências.”149vale um olhar
mais detido.
No Capítulo I, a definição da força policial ostensiva e fardada, que atue “de maneira
preventiva, como força de dissuasão, em locais ou áreas específicas”150. Entretanto, também cabe a
ela atuar de maneira repressiva, em caso de perturbação da ordem, precedendo o eventual emprego
das Forças Armadas; atender à convocação do Governo Federal, em caso de guerra externa ou para

147
Título VI - “Da segurança nacional”, Art. 167 - “As polícias militares são consideradas reservas do Exército, e gozarão
das mesmas vantagens a este atribuídas, quando mobilizadas ou a serviço da União.” Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao34.html, acesso em 13/11/2019.
148
Título VII, “Das Forças Armadas”, Art. 183 - “As polícias militares instituídas para a segurança interna e a manutenção
da ordem nos Estados, nos Territórios e no Distrito Federal, são consideradas como forças auxiliares, reservas do
Exército.”.
Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao46.html. Acesso em 13/11/2019
149
Disponível em https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1960-1969/decreto-lei-317-13-marco-1967-376152-
publicacaooriginal-1-pe.html , acesso em 16/11/2019
150
Ibid.
90
prevenir ou reprimir grave subversão da ordem ou ameaça de sua irrupção, subordinando-se ao
Comando das Regiões Militares, para emprego em suas atribuições específicas de polícia e de guarda
territorial.151
Além disso, no Capítulo II, consolida algo que já era comum ao menos no que tange à polícia
do Rio de Janeiro: a atribuição de que o “comando das Polícias Militares será exercido por oficial
superior combatente, do serviço ativo do Exército, preferentemente do posto de Tenente-Coronel ou
Coronel”152. Além disso, o artigo sexto define que os “oficiais do serviço ativo do Exército poderão
servir no Estado-Maior ou como instrutores das Polícias Militares”153. Vale destacar que o Capítulo
VI deste decreto regulamenta a criação de um órgão fundamental para esta reorganização policial: a
Inspetoria Geral das Polícias Militares. Ao IGPM cabe:

centralizar e coordenar todos os assuntos da alçada do Ministério da Guerra relativos às


Polícias Militares; inspecionar as Polícias Militares, tendo em vista o fiel cumprimento das
prescrições deste decreto-lei; proceder ao controle da organização, dos efetivos e do material
bélico das Polícias Militares; baixar normas e diretrizes e fiscalizar a instrução militar das
Polícias Militares em todo o território nacional, com vistas às condições peculiares de cada
Unidade da Federação. 154

Outras medidas que reforçam esse caráter centralizador e subordinado das polícias ao exército:
em 1968 o ato complementar nº 40 define que as polícias militares são considerados “forças auxiliares
reserva do Exército, não podendo os respectivos integrantes perceber retribuição superior à fixada
para o correspondente posto ou graduação do Exército.” 155. Em 1969, na esteira da Constituição
outorgada, os decretos 667 e 1072 atribuem a exclusividade do policiamento ostensivo e fardado às
polícias militares estaduais, legisladas pela União sobre sua “organização, efetivos, instrução, justiça
e garantias das polícias militares, incluindo sua convocação e mobilização.“156, proibindo aos estados
a criação de uma organização policial própria. Neste ano também é mantida a decisão dos salários de
policiais serem inferiores ao seu posto equivalente no Exército.
Desde a legislação até questões envolvendo a patente (não existe, por exemplo, uma patente
de General para a polícia, sendo o maior posto o de Coronel, diferente do Exército), percebe-se um
traço de subordinação na relação das Forças Armadas com as polícias. Como mencionado, o IGPM
torna-se o responsável pela organização da Instrução policial, algo reforçado no artigo 12 do Capítulo
IV, o qual aponta que “a instrução militar das Polícias Militares será orientada e fiscalizada pelo
Ministério da Guerra, através da Inspetoria Geral das Polícias Militares, na forma deste decreto-
lei.”157.

151
Ibid.
152
Ibid.
153
Ibid.
154
Ibid.
155
Art. 3º, parágrafo 4º. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ACP/acp-40-68.html , acesso em 16/11/2019
156
Art. 1º. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del1072.html , acesso em 16/11/2019
157
Disponível em https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1960-1969/decreto-lei-317-13-marco-1967-376152-
publicacaooriginal-1-pe.html , acesso em 16/11/2019
91
No que toca às polícias estaduais, enquanto forças auxiliares do exército e sob o controle e
formulação teórica do IGPM, também não estariam de fora em suas funções. Sobre este órgão,
Cerqueira aponta que fora responsável por “enquadrar os governos estaduais e aquelas corporações
nas novas especificações da “revolucionária” legislação federal.” (2001, p.46).
Dessa forma, a segurança pública se confunde com a segurança nacional, visto que “não cabia
ao estado definir sua política de segurança: era questão de segurança nacional, era questão dos
militares” (ibid., p.46). Nas escolas policiais, os ensinamentos da Doutrina são aplicados, como
combate à guerrilha urbana, geralmente sob o comandado de oficiais do Exército.
Nesse mesmo ano, a polícia recebe funções de atividade ostensiva, porém, é em 1969 que a
PM recebe a exclusividade no policiamento ostensivo. Percebe-se uma mudança, pois, segundo
Jacqueline Muniz, antes não era a missão principal da PM ficar na rua, senão em pontos estratégicos
como “estações, torres de transmissão de energia elétrica, legações estrangeiras, instalações
industriais essenciais” (1999, p.74). Sem dúvida esta é a influência da DSN, a qual se percebe também
em 1970, com o decreto lei nº66.862 que integra as PMs ao “serviço de informações e
contrainformações do Exército, conforme dispuserem os Comandantes de Exército ou Comandos
Militares de Áreas, nas respectivas áreas de jurisdição”(p.76).
Também é deste ano a publicação da ordem serviço n° 803 da Superintendência da Polícia
Judiciária do então estado da Guanabara, a qual, em caso de resistência do indivíduo em flagrante
delito, a autoridade policial poderá “usar dos meios necessários para defender-se ou vencê-la,
lavrando-se nessa circunstância o respectivo auto”158. Se aqui o conceito de auto de resistência é
introduzido, na Portaria “E”, n°0030 de 06/12/1974 ele é explicitado numa tentativa de padronização
do procedimento para as instituições policiais do território nacional. Diz a seguinte regulamentação:
1- A presente portaria objetiva uniformizar o procedimento das autoridades policiais da
Secretaria de Segurança Pública nos eventos decorrentes de missões de segurança em que o
policial, no estrito cumprimento do dever e em legítima defesa, própria ou de terceiro, tenha
sido compelido ao emprego dos meios de força necessários, face à efetiva resistência
oferecida por quem se opôs à execução do ato legal.
2- Ocorrendo a morte do opositor, a autoridade determinará imediata instauração de
inquérito, para perfeita elucidação do fato, que compreende:
a) As razões de ordem legal da diligência;
b) As figuras penais consumadas ou tentadas pelo opositor;
c) A apuração da legitimidade do procedimento policial.
2-1 O inquérito poderá ser instruído com o auto de resistência, lavrado nos termos do
art.292 do Código de Processo Penal, e, necessariamente, com o auto de exame cadavérico e
atestado de óbito do opositor, para permitir ao Juízo apreciar e julgar extinta a punibilidade
dos delitos cometidos ao enfrentar o policial.159

A flexibilização em torno da tipificação, a influência da DSN, o punitivismo marcado pela


tradição judiciária brasileira em um contexto de auge das práticas autoritárias dos anos de chumbo
como torturas, desaparecimentos e execuções sumárias são alguns dos fatores que contribuem para o

158
Disponível em https://www.jusbrasil.com.br/diarios/131425295/doerj-poder-legislativo-23-11-2016-pg-30 , acesso
em 16/11/2019
159
Ibid.
92
auto de resistência se tornar, até hoje, “uma verdadeira violência institucional, indicando, em última
instância, a existência de verdadeiras penas de morte extrajudiciais.” (LEANDRO, 2010, p.1323).
Cecília Coimbra vai além, ao elaborar a tese de uma segunda Doutrina de Segurança Nacional
nos anos 90, a qual dialoga com o neoliberalismo em voga. Nesse sentido, em uma sociedade marcada
pelo consumo, o “inimigo interno” se readapta: estes “passam a ser os segmentos mais pauperizados
e não mais somente os opositores políticos.” (1999, p.1). A criminalização da pobreza ganha mais
peso, em um contexto de suposta meritocracia em que o sujeito passa ser o único responsável por sua
trajetória e determinados fracassos ou sucessos. Ressalte-se que o contexto neoliberal de exclusão
não deixa de estar relacionado com um processo histórico já marcado, no caso brasileiro, pela
discriminação, tentativas de higienização e eliminação de sujeitos negros e pobres, algo mais
abordado no capítulo anterior.
Por fim, vale ressaltar que entre 1965 e 1982, ou seja, praticamente todo o período da ditadura
civil-militar, a PM da Guanabara, do antigo Estado do Rio e, a partir da fusão dos estados em 1975,
PMERJ, foram comandadas por quadros militares. Sobre a fusão, também vale destacar o impacto de
tal evento na estrutura da corporação. Isto porque a junção dos estados da Guanabara e do Rio de
Janeiro significou também a união de suas polícias, sem falar nos quadros da polícia do Distrito
Federal, quando este se localizava na capital do estado fluminense.
Assim, a então PMERJ é um amálgama entre a Polícia Militar do Distrito Federal, a Polícia
Militar do Estado da Guanabara e a Polícia Militar do Rio de Janeiro, ou seja, dos policiais
fluminenses. Isto não deve ser desprezado em sua cultura histórica pois representa um total
reordenamento da estrutura e aglutinação de práticas e valores distintos numa mesma organização.
Nesse sentido, “além de um cenário distinto dos problemas de ordem pública, essas polícias estavam
expostas a diferentes orientações de comandos e políticas de policiamento.” (MUNIZ, 1999, p.85).
Assim, segundo Muniz, a polícia vivia um momento de esquizofrenia em suas atribuições,
visto que ela é “simultaneamente uma polícia ostensiva da ordem pública e um órgão integrante da
chamada “Comunidade de Informações” comandada pelo Exército” (1999, p.77). E no momento
mesmo em que a polícia retomaria suas funções de patrulhamento urbano, ela também recebe um
aprofundamento, tanto no que se refere à força da lei, quanto no ensino e instrução, a funções
militarizadas enquadradas na DSN.
Dessa forma, se por um lado o treinamento militar contribui para um ethos do guerreiro
preparado para a missão, combatente e disciplinado, o fazer policial das ruas insere tal sujeito numa
miríade de situações que envolvem decisões rápidas, algumas que envolvam certa dose de
criatividade e iniciativa, em que muitas das vezes este policial precisará tomar tais atitudes sozinho
ou sem um superior por perto. Tal ruído fora um fator a mais para o constante dilema entre o fazer
policial e o militar, em que Muniz denomina como uma “crise identitária”.
Além disso, Kant de Lima (2007) aponta que a estrutura militar brasileira, a qual corresponde,
93
ao menos no caso da PMERJ, a uma organização idêntica, possui uma característica problemática: o
fato de ela possuir entradas múltiplas (no caso, o círculo de praças e o círculo de oficiais). Tal modelo
contribui para uma divisão entre um grupo ser considerado “superior” (oficiais) e outro “inferior”
(praças), o que muitas vezes dificulta no diálogo entre ambos e configura-se um certo traço elitista
que não se encontra apenas no meio policial ou militar, mas enquanto uma mentalidade que faz parte
da cultura histórica das classes dirigentes.
Um componente outro que é característico da denominada esquizofrenia na formação policial
é o caráter excessivamente jurídico em seu processo de construção de saberes. Segundo Muniz,
enquanto tentativa de não se prender tanto ao militarismo, isto acabou levando os alunos e professores
“a uma outra armadilha doutrinária: o "bacharelismo", isto é, o apego acrítico à perspectiva criminal
do direito.” (2001, p.186). Tal tradição jurídica nas escolas de polícia foi demasiada a ponto de “além
de não recobrir o conteúdo interdisciplinar necessário ao profissional de polícia ostensiva, uma
formação policial voltada, quase que exclusivamente, para as ciências jurídicas, parece ter contribuído
para o reforço de uma visão criminalizante da ordem pública, extremamente danosa aos serviços
ostensivos de polícia.” (p.187).
Isto levando em conta também, como aponta Kant de Lima, que a cultura jurídica brasileira é
historicamente marcada pelo elitismo e “profundamente calcada em princípios inquisitoriais, próprios
de sociedades compostas por segmentos desiguais e complementares” (2003, p.81). Nesse sentido, o
efeito da combinação entre militarismo e bacharelismo na formação policial é uma visão com traços
punitivistas do cotidiano, algo que foge da função de negociação de conflitos, característica própria
de uma polícia que atue numa sociedade democrática.
Assim, ainda que não oficialmente, a polícia muitas vezes assume no seu modus operandi um
papel de promotor e juiz, pois “ao acumular funções de vigilância e de auxílio ao judiciário, a polícia
unifica seu método de atuação funcionando, na prática, como instância que emite julgamentos e
realiza punições extraoficiais” (HOLLANDA, 2005, p.41). Basta lembrar por exemplo a questão
abordada envolvendo os autos de resistência e os seus meios de punição e controle.

Inventário e crítica nos primeiros textos sobre polícia


Sobre tal combinação entre bacharelismo e militarismo no processo formativo, o próprio
Cerqueira também possui críticas. A partir da constatação de que “a “militarização” e a
“advogadização” constituem o processo formador da base teórica e prática dos profissionais que
operam nas duas polícias estaduais, dificultando a construção de uma identidade policial “(2001,
p.61). Tal “advogadização” parte de uma visão conservadora do direito, em que sua tese é a de que
“a concepção militarista subsidiada pela doutrina de segurança nacional é reforçada pelas teses da
ideologia da defesa social, hegemônica entre os advogados, particularmente entre os que operam com
as políticas criminais. “(p.61). Considerando tal viés jurídico como “dogmático”, sua permanência na
94
longa duração da formação policial se justifica. Não à toa um dos investimentos teóricos de Cerqueira
enquanto intelectual fora no aprofundamento de uma criminologia crítica.
Voltando aos anos 60, é curioso perceber como nesse mesmo período de aprofundamento de
um modelo repressivo no saber-fazer policial que teria impactos significativos e longevos no Brasil
é também um momento onde ocorre um verdadeiro “corte epistemológico” utilizando-se do termo de
Bachelard. Estamos falando da produção teórica policial mundial sobre o seu fazer, especificando
cada vez mais o modo de atuar e os meios de ensino e instrução do mesmo. Especificamente da
chamada “era da reforma” no policiamento estadunidense e sua reorientação para práticas mais
próximas do policiamento comunitário, algo que advém dos anos 50.
A profissionalização da polícia é um processo acompanhado da própria organização do
chamado Estado-nação. Seu funcionamento depende do exercício de disciplinamento dos corpos, e a
polícia com suas atribuições de monopólio da força do Estado é o órgão mais visível para tal. A polícia
e o policial na ponta, nesse momento, atuam enquanto reguladores da ordem social, orientando os
comportamentos considerados aceitáveis pelas classes dirigentes muitas vezes pelo uso da força.
Entretanto, com a burocratização do Estado, o processo civilizador (ELIAS, 1993) com o aumento
dos padrões de autocontrole acompanhado da complexidade das demandas da população e o crescente
isolamento do policial provocaram uma defasagem do atendimento da polícia perante as expectativas
da sociedade.
Mudando o “foco principal da disciplina dos errantes como forma de garantir a redução do
crime para o desenvolvimento de um modelo de policiamento capaz de gerar a redução do sentimento
de insegurança.” (RIBEIRO, 2014, p.281) nasce a proposta de uma polícia que atue mais próxima às
comunidades de interesse. Reorientando das ações mais simples, como a prioridade ao policiamento
a pé por exemplo, até questões mais complexas como a atuação nas causas do crime de forma
preventiva e o envolvimento da comunidade na elaboração de soluções em conjunto, os programas
de policiamento comunitário foram sendo elaborados desde os anos 50 nos Estados Unidos, como
mencionado, e se espalhando para outras polícias ao redor do mundo. Contudo, não seria um processo
linear, pois como veremos mais à frente, a política repressiva às drogas a partir do war on drugs seria
uma tônica formulada pelo próprio governo estadunidense nos anos 70 e 80.
Este saber seria trazido por Cerqueira e seu núcleo reformista ao longo dos anos 70, algo
intensificado em seus comandos. Veremos posteriormente a influência de um desses autores em uma
produção teórica do então tenente-coronel nessa década. Cerqueira, nesse contexto de inflexão do
militarismo em que “não entendia muitas coisas”, nos traz outro relato significativo da sua formação
e da atmosfera da época:
era aluno do Curso de Aperfeiçoamento de Oficiais pelos idos de 1960, como capitão.
Submetido a uma prova de Direito Constitucional, onde teria que falar sobre soberania,
recordo-me que escrevera que os países pobres tinham perdido sua soberania; soberania era
uma ficção. Disse que pensava até que os países ricos também não eram independentes. O
interesse que prevalecia era o das grandes empresas multinacionais. Elas ditavam as regras
95
do jogo político internacional. Tive uma surpresa. O professor me chamou e disse-me que
tinha me atribuído nota dez na prova, mas a rasgaria. Pediu-me que tivesse cuidado com as
minhas ideias pois poderiam ser perigosas para minha carreira. Aconselhou-me a ter cuidado.
(1989, p.24)

Depoimentos de outros policiais podem ajudar a complementar a dimensão de como era a


formação nesse cenário. O coronel Jorge Braga, no livro “sonho de uma polícia cidadã: Carlos Magno
Nazareth Cerqueira” nos traz um exemplo:
A literatura sobre polícia era toda baseada no modelo dos militares. O aluno era obrigado a
comprar desde o manual de campanha – vocês sabem o que é isso? Aprender a construir na
mata, a armar abrigo, a usar enxada, picareta, areia para construir banheiro improvisado etc.
-, até saber montar e desmontar uma metralhadora. Uma metralhadora pesada, que ninguém
emprega, utilizada somente na guerra. As pessoas eram obrigadas a aprender isso, todo o
modelo do Exército. Não existia uma teoria, uma literatura de polícia. (LEAL, PEREIRA,
MUNTEAL FILHO, 2010, p.80)

No mesmo livro, outro relato de sua formação, agora pelo coronel Ubiratan de Oliveira Ângelo:

A minha formação foi extremamente militarizada e voltada para a guerrilha, com aulas de
armadilhas, de silenciamento de sentinela, com um perfil mais dirigido para a questão de
militar, de atuação em grupo de terrorismo. Não existia literatura policial em português; eram
os manuais do Exército, os polígrafos e dois instrutores que falavam muito de literatura
policial estrangeira. Então, pensei: só tem um jeito se quiser aprofundar; resolvi estudar.
Além de estudar temas de fora do currículo, tinha que alcançar uma literatura diferenciada.
Estudei inglês, francês, alemão, o que me permitiu abrir a cabeça. (p.105)

Por fim, um relato sintomático do contexto, trazido por Íbis Silva Pereira em entrevista com
o mesmo Ubiratan, agora para sua dissertação:

Ubiratan Ângelo, aluno do curso de formação de oficiais da Polícia Militar no final dos anos
1970, recorda um estágio de guerra revolucionária, realizado durante o período de formação
profissional, no qual o objetivo dos estagiários consistia em libertar um território dominado
pelas forças subversivas do general Alozirb, um trocadilho com as letras do nome de
Brizola160. (2016, p.81)

A partir dessa história percebe-se que a doutrina de segurança nacional estava tão enraizada
quanto o antagonismo à Brizola. O que não deixa de estar relacionado, pois como fora visto a Doutrina
se mantém a partir da mobilização contra um inimigo. Isso se evidencia também na própria história
envolvendo a chegada ao comando por Nazareth Cerqueira. O comandante anterior, coronel Edgar
Pingarilho, entregou o comando em fevereiro de 1983. Brizola tomaria posse em março. Fontes
afirmam que Pingarilho não queria participar da cerimônia de posse. Cerqueira, seu imediato, viraria
comandante geral161, cargo depois confirmado pelo governador empossado. A adversidade enraizada

160
Brizola fora um dos aliados mais próximos de João Goulart, presidente que sofrera o golpe de 64. Não só era próximo
como também dos mais engajados e radicais, ganhando a pecha de incendiário por seus adversários. Após o golpe,
buscou montar uma guerrilha na fronteira do Uruguai com o Rio Grande do Sul, porém sem sucesso. Acabou
recorrendo ao exílio. Ver FREIRE, Américo; FERREIRA, Jorge. A razão indignada: Leonel Brizola em dois tempos
(1961-1964 e 1979-2004). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016
161
Ao transmitir o cargo, em boletim interno o coronel Pingarilho afirmaria que Cerqueira “Destacou-se pelo seu total
devotamento ao cumprimento do dever e continuado estudo dos problemas sociais; pela sua disciplina, cultura geral,
96
perante Brizola esteve presente nos comandos de Cerqueira, sendo possível cogitar como um dos
fatores de resistência da corporação às reformas empreendidas.
Cerqueira acredita que a DSN deixou um legado na Polícia Militar que durou para além da
ditadura. Em um texto de meados dos anos 90, no contexto da Operação Rio, uma intervenção do
governo federal no Rio de Janeiro autorizando quadros das Forças Armadas a atuarem em questões
de segurança pública estaduais, o Coronel busca explicações para o apoio da mídia e de parte da
opinião pública acerca da operação.
Sua interpretação é de que “no campo prático do controle do crime, continuamos ainda
convivendo com o modelo da defesa social incorporado pela doutrina de segurança nacional” (2001,
p.62). Sua contestação, como nos relatos já citados de outros policiais, advém de sua formação. Ele
prossegue: “o criminoso, como subversivo e o comunista de ontem, simboliza a figura do inimigo
interno de hoje. É fácil, neste processo de desumanização do criminoso, considerá-lo excluído dos
direitos humanos” (p.63). Com uma concepção que estava enraizada nos “” saberes” e “fazeres”
policiais” (p.47), sua preocupação ao assumir o comando fora “a de desenquadrar a segurança pública
do quadro da DSN.” (ibid.) Isto porque “O ambiente era favorável, pelo menos para se falar sobre o
assunto, já que estávamos vivendo um período de transição democrática e os militares, por razões
estratégicas, saíam discretamente do cenário político” (ibid.).
Contudo e antes de aprofundarmos no comando do coronel, ressaltemos que estamos tratando
de depoimentos e textos críticos de nosso personagem produzidos no final dos anos 80 em diante.
Talvez seja válido em um primeiro momento e em diálogo com a metodologia biográfica adentrarmos
em textos do momento em que Cerqueira começou “a pensar a polícia”.
O texto “Futuro de uma ilusão – análise psicossocial da PMEG”, de 1968, fora uma
monografia produzida para o Curso de Aperfeiçoamento de Oficiais. Escrito pelo então capitão
Cerqueira, prestes a se tornar major, aqui temos uma das primeiras amostras concretas do que o então
jovem oficial refletia sobre o fazer policial. Ao mesmo tempo, mostra o nosso personagem enquanto
um homem de seu tempo. Isto porque, enquanto possui certas contradições, de forma concomitante
estão presentes ideias-chave para o que ele pensava sobre polícia, embora num estado inicial de
desenvolvimento. Salta aos olhos, contudo, a inquietação beirando a revolta em suas linhas.
Destaquemos aqui alguns aspectos principais da obra.
Suas 24 páginas dividem-se em três capítulos, além de apresentação e a conclusão em seu
capítulo final, também chamado de “O futuro de uma ilusão”: “Liderança”, “disciplina” e “moral e
ética da conduta”. O título é uma referência a um texto homônimo de Freud, o que denota tanto a

técnico-profissional e acendrado amor corporativo, granjeando admiração e o respeito de seus pares e subordinados”
(SILVA, 2016, p.168). De fato, possuía prestígio: Em pesquisa à corporação sobre quem deveria ser o novo comandante,
o nome de Cerqueira foi sugerido por ampla maioria (45,33 % contra 15,33% do segundo mais citado) (RIBEIRO, 2014,
p.287).
97
aproximação de Cerqueira com a psicologia, campo que, como já vimos, seria a sua segunda
graduação, formando-se em 1971, quanto um pessimismo pelos rumos que a corporação vinha
tomando.
Na apresentação já temos um pouco de sua insatisfação e a relação com o contexto. Aponta
que o objetivo do trabalho “não é outro, senão mostrar que a nossa Organização estagnou.” 162 por
conta da própria estrutura que realimenta tal estado de imobilização. Ao mesmo tempo, permanecer
assim seria um perigo, visto que “quando o perigo da guerra e da subversão ameaçam todo o mundo,
quando as forças da subversão se organizam, permanecer na estagnação é suicídio.”163. Um desejo de
mudança, ainda que com certa influência do forte ideário presente da Doutrina de Segurança Nacional.
No que tange à liderança, vemos algumas pistas de pontos que Cerqueira retomaria durante
os seus comandos. O então capitão inicia o capítulo ressaltando o homem enquanto “animal social”
e a sua necessidade de interação. Assim, um líder não escaparia a uma necessidade de interação,
estando suas qualidades para além de valores individuais. A partir desse ponto, Cerqueira realiza uma
análise dos tipos de liderança, dividindo entre o líder carismático, o executivo, o autoritário e o
reformista.
Apesar de ao final do capítulo dizer que “não pretendemos defender aqui nenhum ponto de
vista psicológico sobre a liderança.” 164 , fica claro ao meu ver uma preferência pelas lideranças
reformistas e executivas, de uma maneira sequencial. Pelo estado de deterioração da polícia, em um
primeiro momento seria necessária uma liderança de caráter reformista, visto que:
O nosso contexto atual a justifica. Deve ser a bandeira das forças sadias desta corporação. A
apatia, o silencia a passividade é cumplicidade. Se os tenentes, capitães, majores e coronéis
de boa vontade, não se unirem nesta luta, todos seremos tragados. A liderança reformista que
eu proponho é aquela que luta por condições de trabalho honesto; é aquela que luta por
desenvolver uma atividade construtiva.165

Cerqueira se aprofundaria mais na liderança executiva, a que eu entendo que seria necessária
no segundo momento de reforma da corporação. Dentre as características abordadas para tal líder,
quais sejam; especialista, representante do grupo e juiz, ressalto uma: a de educador. Segundo
Cerqueira, este:
faz-se presente não só na preparação técnica como moral dos quadros. É o trabalho de
conscientização. Consiste em fazer conciliar os nossos interesses pessoais com os interesses
coletivos. É o trabalho de incutir em si e nos outros a obrigação do trabalho honesto e eficiente.
É conhecer e inculcar nos liderados a nossa missão de agentes da segurança e da tranquilidade
públicas.166

A questão educacional se faria bastante presente ao longo deste capítulo. Afinal, a demanda

162
CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Futuro de uma ilusão – análise psico-social da PMEG. Monografia
produzida para o Curso de Aperfeiçoamento de Oficiais, 1968, p.1. In acervo da Coleção Coronel Cerqueira localizado
no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ).
163
Ibid.
164
Ibid., p.10
165
CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Futuro de uma ilusão – análise psico-social da PMEG. Op. Cit., p.7
166
Ibid., p.6
98
por este tipo de liderança passa por um programa de formação de líderes. Assim, um plano de
reeducação faz-se necessário, junto com a criação de uma liderança executiva. Isto fica mais claro na
parte final, ao apresentar propostas de soluções, quando o “desenvolvimento de um programa de
formação de liderança, através de um sábio plano educacional, incrementando sobretudo o amor
corporativo”167 é um caminho sugerido. Cerqueira aponta que a situação educacional da corporação
não virou um tópico próprio pois o “próprio sistema impediu que realizássemos tal pesquisa” 168.
Embora não aprofunde o porquê de tal impedimento, aponta críticas:
A falta de aceitação de qualquer processo educacional na PMEG pode ser explicada por um
forte sentimento de culpa. Modificar um comportamento que traz vantagens emocionais e
outras torna-se oneroso. (...) Reconhecer atitudes erradas e modificar hábitos enraizados é
difícil e doloroso. Em termos psicanalíticos, é até certo ponto normal esta resistência a
qualquer forma de aprendizagem que leve a novas formulações 169.

No capítulo seguinte, acerca da disciplina, Cerqueira reconhece a necessidade da hierarquia e


disciplina no meio militar. Estas, por sua capacidade de coesão, seriam a “base das instituições
militares.” 170 . No meio policial, essa coesão se daria em duas correntes: a ascendente, que
corresponde ao meio oficial, e a descendente, que corresponde aos praças. Entretanto, a corporação
estava longe de uma estrutura organizada, isto porque “faltam-lhe os requisitos de solidariedade
interna, respeito aos regulamentos e objetivos orientados pela sua missão”171. Nesse sentido, mais
críticas:
Comportamentos conflitantes, próprios da falta de integração, justificam atitudes de não-
cooperação e de resistência. O processo individualista e egoístico permanente realça atitudes
deformadas e patológicas. A insubordinação justificada pela ausência de valores morais
passeia triunfante, levando tudo para o caos e o desespero. É um quadro realmente triste, mas
negá-lo é mantê-lo. A solidariedade interna inexiste e com ela se dissolvem o espírito do
corpo e o amor corporativo172.

Um dos caminhos para a superação desse quadro seria pela reorientação de disciplina, o que
remonta e está articulado com o conceito de liderança. Nesse sentido, Cerqueira foca-se na corrente
ascendente, pois cabe ao oficialato da corporação as funções de comando. Nesse momento surge o
ponto mais interessante ao meu ver, pois, a partir dessa premissa e realizando um levantamento
bibliográfico no campo da psicologia, Cerqueira faz um movimento de comparação entre grupos
autoritários e democráticos, com seus respectivos líderes. Conclui em tópicos que:
1. Os grupos autoritários apresentavam tendências mais agressivas ou mais apáticas do
que os grupos democráticos
2. Nos grupos autoritários os contatos eram de submissão ou meramente formais. Nos
grupos democráticos as relações eram francas e amistosas.
3. Os sentimentos de coletividade eram mais acentuadas (sic) nos grupos democráticos,
enquanto que nos grupos autoritários predominavam os sentimentos de exaltação egocêntrica

167
Ibid., p.10
168
Ibid., p.9
169
Ibid.
170
CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Futuro de uma ilusão – análise psico-social da PMEG. Op. Cit., p.11.
171
Ibid., p.13.
172
Ibid.
99
4. Nos grupos autoritários a eficiência decrescia acentuadamente na ausência do líder
autoritário, enquanto que, nas ausências do líder democrático, os decréscimos de rendimento
eram quase nulos.
5. Experiências frustradoras no trabalho eram respondidas pelo grupo democrático por
uma intensificação no esforço de resolução das dificuldades, enquanto os grupos autoritários
tendiam a tornar-se explosivos, desintegrados através de recriminações pessoais173.

Cerqueira não só levanta tais resoluções como toma um lado ao afirmar que “temos insinuado
constantemente a adoção de uma liderança democrática e do incremento de uma disciplina
interiorizada.”174. Este processo passaria pela liderança reformista abordada no primeiro capítulo de
seu trabalho. Ressalte-se que não se pretende interpretar o Cerqueira de 1968 enquanto um democrata
na acepção plena e política do termo, visto que o conceito mobilizado pelo autor em sua monografia
circunscreve-se a modelos de liderança. Entretanto, ainda que a intenção é se afastar de uma análise
auto evidente de sua trajetória, é interessante perceber alguns embriões de ideias que seriam
redesenhadas em seu comando.
Pelos ventos do tempo, Cerqueira seria comandante justamente em um contexto de maior
mobilização democrática (abertura política, governo Brizola, os comícios das “diretas já” em 1984)
o que de certa forma pode ter servido ao meu ver enquanto um catalisador de ideias que Cerqueira
vinha perseguindo desde os anos sessenta, ao menos do que se tem registro.
É difícil não relacionar uma ideia motriz de sua concepção da polícia, a de troca semântica de
sua função de “força” para a de “serviço” público pela sua relação com a comunidade quando, no
último capítulo do seu texto, Cerqueira defende que “Nós somos uma organização pública e, como
tal, prestamos serviços públicos à coletividade. É ela quem nos diz se estamos prestando bons ou
maus serviços. É oportuno esclarecer que o conceito de bom ou pior vai depender dos objetivos
visados.”175. Se aqui não está o produto acabado de seu conceito, acredito que ao menos seja uma
reflexão do então capitão que tomaria corpo ao longo do tempo. Ao mesmo tempo, é importante
afastar-se da ideia de um homem “à frente do seu tempo”. Em momentos deste texto e de outro que
analisaremos adiante, Cerqueira se mostra exatamente um sujeito no seu tempo e espaço, com suas
contradições inerentes. A passagem relacionada à subversão já mencionada é um exemplo.
Por fim, em minha interpretação, este texto é mais uma das variadas formas de revolta
individual de Cerqueira com o que ele via de errado na corporação: a corrupção, o egoísmo e excesso
de autoritarismo, as falhas na formação tanto dos oficiais quanto dos praças e suas consequências e,
principalmente, a ausência de uma capacidade de reação frente aos problemas que ele e seus pares
percebem. Se aqui, entretanto, vemos propostas iniciais de mudança na estrutura da corporação, no
texto seguinte veremos um trabalho mais robusto no que tange ao aspecto prático da atuação policial.
Ainda que em um primeiro momento isto possa aparentar um afastamento dos objetivos do

173
Ibid., p.14.
174
CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Futuro de uma ilusão – análise psico-social da PMEG. Op. Cit., p.14
175
Ibid., p.22.
100
presente capítulo, considero sua contribuição importante no sentido de este ser um trabalho mais
extenso e com uma certa “bagagem” maior que o anterior, e que, portanto, mostra de forma mais clara
as ideias que seriam aplicadas em seus comandos. Ao mesmo tempo, é interessante ver novamente o
“homem do seu tempo” em que, sem cair na armadilha do anacronismo, percebemos tais ideias
consideradas reformistas, mas ainda sob matizes conservadores.
Este texto é “A PM e as tensões sociais”. Fora escrito em 1977 após a sua experiência no
comando do 19° Batalhão de Polícia Militar no bairro de Copacabana (antes ele já tinha comandado
o 7° BPM, em São Cristóvão). Vale lembrar que também fora após a sua experiência na chefia da
seção de ensino da escola de oficiais, o seu “período mais produtivo” e a passagem por outros cargos
de ensino na corporação.
Após o mencionado entrevero entre Cerqueira e as “cartas marcadas”, o oficial seria “punido”
com a chefia da 3ª seção do Estado-maior (seção de ensino do 18° Batalhão), de Jacarepaguá. Ficaria
quatro meses e em 1974 seria responsável pela chefia da 3ª seção do Estado-Maior geral da polícia,
também a seção de ensino, onde ficou até 1976 (SILVA, 2016, p.142). Por fim, vale ressaltar que ele
também já terminara a sua mencionada segunda graduação, em psicologia pela Universidade Gama
Filho.
De qualquer forma, a vivência no comando dos Batalhões fora o evento que mais o mobilizou
para a escrita deste trabalho. Não à toa tais experiências foram citadas na introdução como um dos
três caminhos que levaram ao trabalho: a empiria nos batalhões. Os outros dois seriam “do
conhecimento científico e filosófico dos estudiosos em sociologia, psicologia, filosofia social, política
e direito”176 e o da opinião pública. Juntando estes três pontos a obra busca “relatar a imagem real de
uma Corporação feita de gente para servir a outras gentes”, em que ele acaba “falando do Homem”177.
Aqui já vemos um Cerqueira que esteve em contato com uma bibliografia sobre polícia. No
que tange a autores deste campo, vemos referências que ele levaria para vários de seus textos
posteriores, como O. Wilson e Lopez Rey. O então tenente coronel inicia sua obra interpretando
sociologicamente a polícia, bem como a relação desta com a sociedade.
Ele vê a sociedade enquanto um sistema de papeis, com papel sendo definido como “as
atividades sociais de cada um ou a função de cada um no conjunto social. São as tarefas, geralmente
inscritas pelos costumes e pelo consenso social, que cada um terá que desempenhar. “ 178. Assim,
desempenhando papeis dentro de um certo interesse coletivo equilibrado com o individual, temos
uma sociedade organizada. Entretanto, o contexto é o de descompasso na relação entre tais interesses,
com o individualismo prevalecendo.

176
CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. A PM e as tensões sociais. 1977, p.1. In acervo da Coleção Coronel Cerqueira
localizado no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ).
177
Ibid.
178
CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. A PM e as tensões sociais. Op. Cit., p.2.
101
Nesse sentido atua a polícia, sendo esta “uma instituição de controle social – é a força legítima
que o Estado utiliza para disciplinar os comportamentos. Não é a única. Valores, normas, opinião
pública, costumes, religião, educação, são também instrumentos de controle social” (p.2). Ela se
encontra em um contexto de cada vez maior complexidade nas relações sociais e de atuações que
fogem aos papeis, ou das expectativas de papeis gerados pela sociedade. Isto gera novas demandas e,
portanto, um aprofundamento nas atribuições do órgão policial, bem como na sua relação com os
outros.
É a partir deste panorama que Cerqueira envereda por um tópico do texto que considero crucial,
em que seu título é autoexplicativo: “A PM e a prevenção da criminalidade. Um esboço de programa
preventivo”179. Aqui a visão holística de segurança pública começa a ser desenhada. Amparado na
literatura policial, Cerqueira chega a definição de delito a partir de dois fatores, “a – o desejo do
elemento de delinquir” 180 e “b – oportunidade de cometer o delito, ou crença de que existe essa
possiblidade”181.
A polícia enquanto atividade ostensiva atua de forma quase exclusivamente no item b, bem
como ele é entendido como o próprio delito em si. Entretanto, pensar no item a como parte do delito
e que seja responsabilidade de órgãos para além da polícia é imperativo. Aqui entram a “ação
psicopedagógica, orientação religiosa/ ou outra qualquer agindo fundamentalmente ao homem. Não
é ação policial. É ação educativa e os meios de comunicação social podem ajudar bastante.”182. Com
essa resolução o autor justifica-se de que não é o objetivo eximir a polícia de suas responsabilidades,
mas sim numa interpretação do combate ao delito como um trabalho das mais variadas dimensões
sociais.
A partir daí, Cerqueira analisa os crimes tipificados pelo Código Penal da época. Defende a
importância dos policiais conhecê-los e se e como a PM poderia preveni-los. Por exemplo, no que se
refere ao homicídio doloso o autor afirma que a prevenção da polícia é “quase nula” 183 . Já nos
culposos “advindos do trânsito, a PM participa ativamente, controlando o tráfego de veículos. Nos
crimes contra a vida, creio que nada pode a PM realizar com seu policiamento preventivo, a não ser
ocasionalmente.” 184 . A conclusão: “penso que quando se investe em educação, que quando se
aprimoram o comportamento ético dos profissionais liberais, que quando se estabelecem critérios de
censura se esteja prevenindo a criminalidade. Valorizando a pessoa e a vida é também uma forma de
prevenir homicídio.”185.
Este será mais ou menos o tom nos outros exemplos, em uma perspectiva de segurança pública

179
Ibid.p.9.
180
Ibid., p.13.
181
Ibid.
182
CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. A PM e as tensões sociais. Op. Cit., p.13.
183
Ibid. p.16.
184
Ibid.
185
Ibid.
102
como algo que mobiliza setores para além da polícia, e que não é só responsabilidade da mesma,
portanto. Assim, “Nossa intenção foi mostrar os limites da PM na esfera da prevenção da
criminalidade e as dificuldades que encontra para o cumprimento da sua missão. Outra ideia maior é
a de consignar a importância que exerce a comunidade na prevenção da criminalidade. A polícia sem
o auxílio e o respeito do público não consegue sobreviver.”186.
A proposta envolve a criação de um grande Plano de Prevenção ao Crime, elaborado pela
secretaria de segurança pública, em que “na execução do plano, policiais, sociólogos, juristas,
psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais e outros seriam convocados”187. Ao mesmo tempo que
defende a instituição, as vezes de maneira até mais áspera como no artigo em resposta a Sandra
Cavalcanti, Cerqueira também busca estabelecer um diálogo, como vimos no exemplo da iniciativa
de levar conferencistas ao quartel ainda nos anos 60. Ainda que possa parecer e talvez seja
contraditório, acredito que tais dois movimentos de Cerqueira passem pelo mesmo objetivo, qual seja:
o de melhorar a imagem da polícia perante o público.
Dessa forma, interpreto que esta busca por um diálogo entre polícia e população seria a base
do policiamento comunitário ensaiado no primeiro comando e aplicado de forma mais concreta no
segundo, principalmente na experiência de policiamento na área do 19° Batalhão Policial (Leme e
Copacabana). Base porque este é um trabalho mais voltado para a relação da sociedade com a polícia
do que o contrário ao meu ver, em que nos comandos os projetos buscariam articular povo e polícia,
mas pensando na reforma desse novo policial almejado e “aberto” na relação com a sociedade, algo
que não está tão presente no texto. Também é base porque algumas concepções próprias do seu tempo
e de viés conservador seriam retrabalhadas no futuro. Por exemplo, ao comentar o aspecto comercial
das drogas e sua penetração na sociedade, Cerqueira atribui a diversos atores a culpa pela sua
“publicidade”:
Apoiados por uma literatura idiota, imbecil que enaltece a droga como o grande “Deus
libertador”; apoiados por intelectuais, descompromissados com a Inteligência e a Razão, que
criam o ideal de uma Liberdade absoluta, na qual todas as experiências do homem são
justificadas por esse mesmo ideal; apoiados por uma permissividade que justifica lesbianismo,
homossexualismo e outras práticas degradantes e patológicas; apoiados por uma crença
materialista que embrutece e aniquila o homem, que se perde na instabilidade e no relativismo
que nada cria, só confunde; apoiados na crença de que os valores do cristianismo estão
superados, eles, os “moderninhos”, vão se destruindo e acabando com a sociedade, na medida
que tentam se animalizar188.
Nos comandos, em especial no segundo, a tônica seria bem diferente. Nas palavras de Jorge
Braga:
A Polícia Militar era muito rígida. Nem se pensava em falar de política. De jeito nenhum!
Não foi só a literatura que mudou, foi uma revolução cultural. Grupo de teatro na polícia,
homossexual dando palestra, jornalista entrando para ensinar, sociólogos, psicólogos,
antropólogos... Anteriormente isso era inconcebível: era direito e militarismo, geografia,
história, inglês e ordem unida. (LEAL, PEREIRA, MUNTEAL FILHO, 2010,

186
Ibid.
187
CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. A PM e as tensões sociais. Op. Cit., p.55.
188
Ibid., p.39
103
p.82).

Até lá, entretanto, mais contradições se evidenciariam. Por exemplo, no ano de sua chegada
ao primeiro comando, 1983. Ainda em janeiro, quando Cerqueira era chefe do Estado-Maior, cinco
homens foram mortos por policiais em um conjunto habitacional na Cidade de Deus. Registrado como
auto de resistência pela delegacia, mas visto como execução sumária pela associação de moradores189
o coronel, em entrevista ao O Globo em nota de título “Dever cumprido”190 dissera que a ação ocorreu
dentro do “estrito cumprimento do dever legal”191. E mais:
Foi usada a violência necessária e legal. Mesmo assim, determinamos imediatamente a
abertura de um inquérito policial-militar para apurar se houve qualquer procedimento
irregular, os culpados serão punidos e poderão até ser expulsos da corporação. Entretanto, o
comandante do 18° BPM me informou que os cinco mortos eram de fato delinquentes”192.

Se aqui vemos o oficial rígido e disposto a punir os policiais caso estejam envolvidos em uma
irregularidade, causa no mínimo estranheza a um indivíduo que, se disse sempre ser contra a
corrupção e a violência, amenizar a segunda neste caso. Afinal, se não sabemos exatamente como se
dera o ocorrido, de qualquer forma a questão de eles serem “de fato delinquentes” não poderia ser
uma justificativa prévia para as suas mortes.
Um personagem em contradição perante a elaboração de si? Uma frase impensada? A resposta
é difícil de mensurar, pois não é objetivo deste trabalho cair em um julgamento do personagem, mas
sim compreendê-lo no tempo e espaço em suas complexidades e contradições, negando, contudo, o
falso postulado da imparcialidade.
Talvez devêssemos levar em conta, como aponta Bruno Marques ao abordar o episódio, do
contexto: Cerqueira estava iniciando um ciclo de maior evidência na opinião pública ao assumir o
Estado-Maior. Não se omitiu quando foi questionado, e, dado o contexto de crise na segurança pública
no período, seja pelo aumento da criminalidade, seja pelo quadro de insatisfação policial com as
condições de trabalho e baixos salários193 “talvez tenha optado por uma fala menos incisiva, a fim de
não desacreditar seus comandados publicamente” (2016, p.167). Não fora a primeira nem seria a
última fala nesse sentido, mas é nítida a percepção da mudança nos discursos com resquícios
punitivistas, principalmente no segundo comando.
Assim, retomando Certeau, vimos até o momento que Cerqueira operou mais no terreno da
tática do que da estratégia. Como ele mesmo disse, ou saía da polícia ou criava um espaço dentro da
mesma. Esse espaço, essa tática, seria criada principalmente a partir do ensino, do debate, da busca
por conhecimento, mesmo que seja fora da corporação, aproveitando uma oportunidade.

189
Jornal O Globo, edição de 20 de janeiro de 1983, p.16.
190
Ibid.
191
Ibid.
192
Ibid.
193
Sobre tal crise no meio policial, ver PEREIRA, Íbis Silva. Op. Cit.
104
Relacionando com Luckesi, sua tática envolveu inventariar e criticar os valores vigentes. No capítulo
seguinte, contudo, analisaremos Cerqueira no comando, em campo de estratégia, portanto. Dentro de
um lugar próprio chegara o momento de reconstruir os saberes e fazeres vigentes.

105
Capítulo 4: De militar a servidor – o primeiro comando e a tentativa reconstrução na
formação policial

O ciclo de políticas e sua relação com os comandos - uma introdução

Stephen Ball, ao analisar as políticas educacionais, interpreta sua implementação de forma


cíclica, a partir de contextos. Cada contexto modifica e é modificado pelo qual se articula, em nível
micro e macro. Tal articulação parte dos referenciais de Roland Barthes acerca dos textos políticos e
a margem de atuação dos sujeitos na escola a partir deles. São os textos readerly (prescritivo), em que
os sujeitos possuem uma margem mais limitada, ou writerly (escrevível), em que os atores possuem
mais liberdade para interpretar o texto e serem mais ativos.
Jefferson Mainardes, no texto “abordagem do ciclo de políticas”, o qual mapeia a construção
do conceito de Ball, aponta que inicialmente o autor formulou 3 tipos de contextos: contexto de
influência, contexto de produção de texto e contexto da prática. Posteriormente, acrescentou-se a tal
modelo os contextos de resultados e de estratégia política. Creio que, com o devido cuidado, não seria
forçoso aproximar tal referencial tanto para se pensar o modelo anterior na política de formação
policial quanto para as políticas implementadas por Cerqueira e seu núcleo de policiais para a reforma
da instituição e da nova formação.
O contexto de influência está relacionado com a origem dos discursos políticos acerca do que
deve ser educado ou não e qual modelo a se implementar. Ele é sujeito a negociações, resistências e
ao contexto histórico. Geralmente são influenciados pela opinião pública, pelo meio acadêmico e por
órgãos internacionais194, desembocando na política dita oficial, a qual aproxima-se do contexto de
produção do texto.
Como já mencionado, o contexto de produção do texto está relacionado, segundo Mainardes,
de maneira quase “simbiótica” com o contexto da influência. Isto porque, “ao passo que o contexto
de influência está frequentemente relacionado com interesses mais estreitos e ideologias dogmáticas”
(2006, p.52). Dessa forma, “os textos políticos normalmente estão articulados com a linguagem do
interesse público mais geral. Os textos políticos, portanto, representam a política.” (p.52).
Eles se encontram nos textos oficiais, mas também em comentários sobre os mesmos,
discursos formais ou não, peças publicitárias, vídeos etc. Sua concretização forja-se no contexto da
prática. É aqui onde está de maneira mais presente as ressignificações da política original, a
articulação macro e micro a partir do prescritivo e do escrevível. Este é o contexto em que se aponta
principalmente para os sujeitos da escola, seu fazer e a forma que interpretam os textos políticos
oficiais no cotidiano, suas estratégias e negociações a partir do dito e do não dito.

194
Vale ressaltar, entretanto, a desigualdade nas disputas políticas nesse contexto, em vista do peso do capital econômico
e de seus representantes, ainda mais ao se pensar o caso brasileiro. Isso não significa, porém, uma reprodução total do
modelo internacional, sendo este sujeito a uma reelaboração de acordo com o Estado.
106
Assim, no modelo de ciclo, os contextos de influência, produção de texto e de prática se
articulam e se remodelam de forma contínua, porém não linear. Esta seria, ao meu ver, a espinha
dorsal do conceito de ciclo de políticas. Entretanto, como já foi mencionado, Ball acrescentaria
posteriormente mais dois contextos aos três já expostos: contexto dos resultados e o contexto das
estratégias políticas, os dois ligados pela questão das desigualdades geradas na prática das políticas.
Sobre o quarto contexto, mais do que resultados, Mainardes aponta para um contexto dos
efeitos, que consistiria em uma análise dos impactos e suas possíveis mudanças da política original
em um recorte global e local. Entretanto, indago até que ponto tal contexto já não se encontraria de
forma suficiente no contexto das práticas, imaginando que tal já pressuporia os efeitos das políticas a
partir das ressignificações. Por fim, o contexto das estratégias políticas “envolve a identificação de
um conjunto de atividades sociais e políticas que seriam necessárias para lidar com as desigualdades
criadas ou reproduzidas pela política investigada.” (ibid., p.55).
Relacionando o conceito de Ball ao caso estudado, na formação mais militarizada, o contexto
de influência é a ditadura civil-militar em pleno vapor a partir da produção de textos como a Doutrina
de Segurança Nacional, a qual teria influência decisiva no aprofundamento de uma formação mais
repressiva e instruída para o combate.
Já o contexto de influência da atuação de Cerqueira nos comandos difere em alguns sentidos.
Como já vimos nos capítulos anteriores mas vale relembrar rapidamente, no plano nacional, vivia-se
o processo de abertura política acentuado desde 1979, com a anistia “ampla, geral e irrestrita” e a
revogação do famigerado AI-5. A partir daí, novas dinâmicas no teatro político ocorrem com a entrada
em cena de personagens que teriam influência decisiva no futuro político nacional e estadual.

Contexto de influência ou “quando a água subiu a barragem”


Tal teatro seria redefinido com a reforma pluripartidária engendrada pelo regime militar, a
partir da extinção do bipartidarismo. Além dos antigos partidos de situação e oposição do regime
(ARENA e MDB, agora com os nomes de Partido Democrático Social e Partido do Movimento
Democrático Brasileiro, praticamente idêntico ao anterior) surgem as siglas do Partido dos
Trabalhadores, Partido Trabalhista Brasileiro, Partido Popular e Partido Democrático Trabalhista.
Realizada em 1979 e com um viés supostamente democratizante, a reforma não deixava de atender
estrategicamente ao governo, “pois, além da fragmentação dos quadros de esquerda, o governo
promovera a extinção de uma sigla partidária governamental bastante desgastada, a Arena,
substituindo-a pelo PDS “(HOLLANDA, 2005, p.48). Além disso, a implementação do voto
vinculado, obrigatoriedade da escolha por candidatos no mesmo partido para os cargos eletivos,
favorecia os partidos com sua máquina partidária mais consolidada, no caso o próprio partido do
governo.
Assim, a despeito da reformulação partidária, na realização das eleições gerais de 1982, o
107
resultado no âmbito dos governos estaduais ficara dividido entre PDS e PMDB, com ligeira maioria
para o partido da situação195. Contudo, haveria uma exceção: Leonel Brizola, único governador eleito
fora do mencionado eixo. Eleito pelo PDT, o político gaúcho que já tinha se aventurado pelas terras
fluminenses ao ser eleito o deputado federal com a maior votação da história até então 196 em 1962
pelo estado da Guanabara, retorna em um pleito em que as singularidades não se restringiriam a
solidão da sigla trabalhista.
A eleição de Brizola possuiu um caráter de “carnavalização” e de mobilização popular como
poucas vezes se viu na história democrática brasileira, como bem apontado por Sento-Sé em obra de
referência sobre o gaúcho197. Isso tanto pelo voto vinculado e a demanda de crescimento do partido,
o que flexibilizou seus critérios de ingresso para personagens excêntricos como o cantor Agnaldo
Timóteo e o produtor Carlos Imperial, conhecida figura da cena artística pelo imaginário de “cafajeste”
e “malandro” quanto pela própria figura de Brizola e sua inserção na disputa eleitoral. Isso sem deixar
de lado o socialismo moreno a partir da presença de figuras como Abdias do Nascimento e o Cacique
Juruna, primeiro indígena eleito na história do Brasil.
Carismático, o gaúcho pôde mobilizar seu crescente eleitorado a partir principalmente do
argumento de ser a autêntica oposição ao regime em relação com os mais cotados postulantes ao
Palácio Guanabara. Isto porque, embora o estado fluminense fosse um dos poucos a ser governados
pelo então MDB durante o período ditatorial isto significava não um foco de resistência contra o
regime, mas justamente o contrário. O período conhecido como “chaguismo”, em referência ao
governador Chagas Freitas, então mandatário no período eleitoral, mas que já advinha de uma
trajetória política longeva, seja em cargos legislativos, seja no executivo, era marcada por uma
combinação entre personalismo, clientelismo e submissão aos ditames do regime.
Uma “oposição possível” (SARMENTO, 2004, p.219) construída pelo tripé “partido, jornal e
poder” (p.220), visto que a máquina chaguista detinha o controle de jornais como O Dia. Assim,
misturando centralização com barganha na máquina partidária e submissão ao regime civil-militar, o
chaguismo fora uma tradição política considerável entre os anos 70 e início dos 80. Entretanto, se
estas foram estratégias que funcionaram em um contexto de eleições para o executivo indiretas, no
pleito de 1982 o cenário é diverso e menos previsível.
Assim, se no início da corrida eleitoral o então candidato do MDB, Miro Teixeira liderava o
pleito (p.167) apoiado na máquina chaguista, a entrada em cena de Brizola mudava o panorama, visto
que “representava uma maior definição ideológica das plataformas políticas e a condução do debate
para esferas que transcendiam os limites da política local, territórios considerados inóspitos e hostis

195
O PDS elegera 12 governadores, o PMDB 9. Embora tenha eleito a maior bancada da câmara, o PDS perdera a maioria,
elegendo 235 deputados contra 244 dos demais partidos somados (REIS, 2016, p.105).
196
No pleito, Brizola “recebeu 269 mil votos, em um eleitorado de um milhão de votantes – quase 27%.” (FERREIRA,
2016, p.37).
197
O teor carnavalesco da campanha fora algo percebido inclusive pelo noticiário do período. Ver JB 14/11/1982
108
pela estrutura política da máquina eleitoral chaguista” (p. 168).
Nesse sentido, Brizola, com uma linguagem popular e nacionalizando o debate em um
contexto de crise da ditadura, mostra-se enquanto oposição autêntica em confronto à “oposição
possível”. Nas palavras do próprio candidato pedetista, o chaguismo era uma “planta exótica da estufa
da ditadura” 198 Paralelamente, os outros dois candidatos com chances reais, Wellington Moreira
Franco (PDS) e Sandra Cavalcanti (PTB) também tinham relações com o regime. O primeiro por ser
do próprio partido do governo e a segunda pelas relações históricas com o campo conservador, seja
com Carlos Lacerda seja por seu passado na ARENA. Este caráter de oposição autêntica combinado
com o carisma e a mobilização em torno da figura de Brizola levavam a certos fenômenos do seu
eleitorado durante a campanha. Não é algo incomum encontrar no noticiário do período reportagens
envolvendo gritos de “Brizola” durante comícios e eventos de campanha de outros candidatos199.
Nesse sentido, ao defender sua candidatura pretendendo “desmascarar o falso oposicionismo
desses candidatos; candidatos que são o diabo, o demônio e o satanás, para que o inferno ganhe
sempre”(SARMENTO, 2004, p.172) Brizola consegue ao mesmo tempo 1)usar uma linguagem
dotada de capilaridade ao remeter a signos da religiosidade; 2) corresponder a uma estratégia eleitoral
de ser uma oposição autêntica e 3)manter-se coerente com seus valores de denúncia ao regime militar,
visto sua trajetória como um dos principais inimigos ao governo. Brizola usava e abusava de
metáforas ao longo da campanha.
Nesse sentido, um discurso em Irajá é ao meu ver a melhor expressão do fenômeno do
“brizolismo” enquanto cultura política em tempos de transição ao afirmar que “o povo é como a água
e a história é um rio. Não há rio sem água. Uma represa colocada no rio é como uma ditadura. A água
vai subindo até que passe por cima da barragem.”200 Dessa forma, segundo Sarmento, a campanha
brizolista não deixava de ter um caráter de “acerto de contas” com a ditadura a qual cassou seu
mandato de deputado, o perseguiu, exilou e o tornou um dos principais inimigos do regime. Já um
político calejado, Brizola retornava com um discurso que ora alternava a moderação ora um tom mais
virulento, mas sempre adotando um teor crítico com relação ao regime.
Em certos momentos o caráter de acerto de contas era explícito, como em uma entrevista de
janeiro de 1982. Nela, o gaúcho afirma que “precisamos chegar a uma nomenclatura, saber quem é
quem neste país, em termos de responsabilidade, saber nominalmente quais os responsáveis por esta
tutela ilegítima de 120 milhões de brasileiros.”201. Em outros, contudo, o discurso era de que “nada o

198
BRIZOLA almoça no SAARA, passeia por suas ruas, mas não discursa para o povo. Jornal do Brasil, 02 de outubro
de 1982, p.4.
199
FIGUEIREDO acha manifestação “irreverência carioca”. Jornal do Brasil, 08 de novembro de 1982, p.4.
200
BRIZOLA acha que o PTB o ajuda por tirar no Rio e S. Paulo votos do PDS. Jornal do Brasil, 07 de novembro de
1982, p.8.
201
BRIZOLA volta a criticar a unificação das oposições. O Globo, 18 de janeiro de 1982, p.2.
109
afastará da moderação”202 e que “revanchismo é uma palavra que não existe no nosso dicionário”203.
Embora não deixe de fazer uma provocação pois “eles se preocupam com revanchismo e nós nos
preocupamos com a eventualidade de um retrocesso no processo de abertura”204.
No que concerne à segurança pública, visto que a violência é “uma das minhas maiores
preocupações, porque nesta área o Rio de Janeiro bate campeonato”205. Seu “plano de emergência”206
propõe desativar a polícia política e remanejar seus recursos para o policiamento ostensivo, além de
melhorar o “nível”207 da polícia. Embora não se aprofunde no que consistiria o nível e em como
melhoraria, entende-se que o discurso vai no sentido da relação da polícia com a comunidade, pois
em seguida afirma que “primeiro precisamos mudar a carranca, porque ela chega a ser um estímulo
para a criminalidade”208.A intenção de nomear o próprio secretário de segurança já estava presente
ali, bem como de que ele, assim como seus comandados, estejam alinhados com uma política de
valorização dos direitos humanos dentro de um quadro de reordenação e melhoria técnica da polícia
militar, pois “quando os superiores são autoritários incentivam o arbítrio”209.
Ainda que de forma superficial, percebe-se uma intencionalidade por uma política de
segurança pública que envolva, no respeito aos direitos humanos, medidas que se atentem para as
causas sociais da violência. Investimento em educação, na diminuição da miséria e do desemprego
não deixam de ser propostas articuladas no campo da segurança pública. Além disso, também se
encontrava em campanha uma das medidas que seriam motivo de maior polêmica entre seus
opositores: a inviolabilidade das moradias em favelas perante operações policiais. Em discurso na
Rocinha, o então candidato prometeu, além do título de posse, uma política que “respeite as casas dos
moradores da Rocinha em vez de invadi-las à procura de suspeitos”210. Tal iniciativa seria contribuinte
do imaginário conservador em torno de um governo que seria permissivo perante a criminalidade.
Tal discurso e carisma, aliado a seu desempenho nos debates eleitorais, foram fatores que
contribuíram para sua vitória antes considerada improvável, mas que se caracterizou por uma rápida
ascensão, consolidando-o na liderança há um mês do pleito211. De 10% das intenções de voto em
agosto segundo pesquisa IBOPE, Brizola chegaria ao início de outubro com 33,5% das escolhas do
eleitorado212, mantendo tal índice até o pleito realizado em quinze de novembro, quando venceria
somando 34,2% dos votos válidos213. Uma vitória consolidada, mas que não significa amplamente

202
BRIZOLA assegura que nada o afastará da moderação. Jornal do Brasil, 26 de outubro de 1982, p.4
203
Ibid.
204
Ibid.
205
BRIZOLA promete auditagem do governo Chagas. Jornal do Brasil, 28 de julho de 1982, p4.
206
Ibid.
207
Ibid.
208
Ibid.
209
Ibid.
210
JBRIZOLA promete posse da terra e creche a favelado. Jornal do Brasil, 18 de outubro de 1982, p.2
211
IBOPE dá liderança a Brizola no estado. Jornal do Brasil, 15 de outubro de 1982, p.4
212
Ibid.
213
TRE dá vitória a Brizola por 178 mil votos. Jornal do Brasil, 14 de dezembro de 1982, p.14.
110
hegemônica, pois Moreira Franco também teria um crescimento na reta final, ainda que insuficiente.
Este teria 30,6% da preferência, uma diferença de 178 mil e 536 votos com relação ao primeiro
lugar214.
Tal colocação já alçaria Moreira como um dos protagonistas do agora campo oposicionista e
candidato das eleições de 1986, quando venceria justamente se apropriando do discurso de “lei e
ordem”. Além disso, muito devido ao voto vinculado, este é um cenário que seria bastante semelhante
na câmara estadual. Das 70 cadeiras da assembleia legislativa, 24 seriam ocupadas por eleitos do PDT
(34,3%), 21 do PDS (30%), 16 do PMDB (22,8%), 7 do PTB (10%) e 2 do PT (2,9%)215. Um quadro
de maioria pedetista, mas longe de ser ampla, ainda mais se pensarmos nas possíveis alianças
programáticas. Assim, forma-se um conjunto que demandaria um governo de coalizão. Levando-se
em conta que ainda se estava sob um regime militar no governo federal, este seria um período de
tensões que já se iniciaram na apuração dos votos216.
Se o final dos anos 70 e início dos 80 é marcado por avanços no processo de abertura política
e democratização das instituições perante o período ditatorial, isto não significou uma queda nos
índices de criminalidade, pelo contrário. Entre os anos 80 e 90 o que se percebe é um aumento
acentuado em praticamente todos os números de violência, especialmente nos homicídios. Uma série
de fatores interrelacionados e que envolvem questões históricas, sociais, econômicas e culturais
podem ajudar a entender este suposto paradoxo.
Um ponto de partida possível é pela questão envolvendo as drogas, seu consumo e
comercialização. Proibidas no início do século XX sob o argumento do problema de saúde pública
gerada por sua dependência, os psicoativos foram alvo de um esforço de criminalização internacional,
bem como sua repressão. Em certo momento até o consumo de álcool fora proibido nos EUA através
da chamada Lei Seca enquanto emenda constitucional. Entretanto, após 13 anos de duração (1920-
1933), logo a emenda seria revogada, e apenas nesse período as consequências seriam longevas, como
a criação de redes de crime organizado para o seu tráfico.
Algo semelhante ocorrera com os psicoativos, porém muitos são criminalizados até o
momento em que escrevo este trabalho. Após a II Guerra Mundial, tais drogas, já ilegais, teriam seu
consumo cada vez maior. Isto porque, o “crescimento da demanda, a facilitação da circulação de

214
Ibid.
215
Ibid.
216
O chamado “caso Proconsult” envolveu uma suspeita de fraude de votos pela empresa homônima responsável pela
apuração. Contratada pelo Tribunal Regional Eleitoral em licitação mesmo sem ter experiência no setor e com militares
na direção, a empresa apresentou erros como lentidão na contagem das cédulas, mistura de votos brancos e nulos com
votos de candidatos e apontando um resultado que projetava a vitória de Moreira Franco, diferente da apuração paralela
feita pela rádio Jornal do Brasil, que dava a vitória a Brizola. Ao longo do processo, as coberturas do JB e do jornal O
Globo foram contrastantes, em que o primeiro apontava para os equívocos da empresa contratada e realizando apuração
própria, enquanto que o segundo seguiu a apuração oficial até o quadro se tornar insustentável. Após o candidato pedetista
denunciar à imprensa internacional uma tentativa de fraude e o PDT pedir recontagem de votos, o TRE resolveu atender
ao pedido, confirmando a vitória brizolista. A diferença entre a apuração da rádio JB e o resultado oficial fora de apenas
0,08%. Ver FERREIRA, 2008 e SILVEIRA, 2018.
111
produtos e pessoas com as inovações tecnológicas e dos meios de transporte no pós-1945, além do
incentivo ao tráfico propiciado pelos lucros auferidos na ilegalidade, dinamizaram os fluxos de drogas
ilícitas” (RODRIGUES, 2012, p.14). Além desses fatores, uma questão cultural: após o horror da
guerra, valores hedonistas como a valorização do prazer e lazer estavam em voga (ZALUAR, 2004).
Se o quadro se acentua ainda mais nos anos 60 e 70, isto vem acompanhado de um também aumento
nas medidas repressivas e proibicionistas. Têm-se início nos EUA a chamada war on drugs, a “guerra
às drogas”.
Iniciado no mandato de Richard Nixon em 1972, a war on drugs partia da premissa simplista
da divisão do mundo entre países consumidores e produtores de ilícitos. Assim, o objetivo era gerar
uma rede internacional na repressão militarizada ao narcotráfico, com os EUA oferecendo recursos,
treinamento e material humano para outros países. Nos anos 80, durante o governo Ronald Reagan,
tal política seria retomada com força, agora sob a marca do narcoterrorismo, a partir da “associação
entre guerrilhas de esquerda – como as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) e o
Sendero Luminoso no Peru – com o tráfico de cocaína naquilo que seria uma nova ameaça à segurança
continental” (2012, p.17). Tal política, assim, contribuía para a legitimação de modelos repressivos
de segurança pública, principalmente nos países latino-americanos.
Nesse sentido, se o Brasil não deixava de ter suas especificidades na relação polícia e
exército como vimos, também deve-se ressaltar que a política repressiva naquele momento estava
inserida dentro de um contexto internacional que a favorecia. Também vale ressaltar, como aponta
Rodrigues, que não se deve também cair numa leitura dos países latino-americanos como marionetes
dos EUA, mas sim no sentido de uma convergência em pontos de interesse no que tange aos modelos
repressivos já vigentes.
Voltando ao Brasil, especificamente ao Rio de Janeiro, estudos apontam que a entrada da
cocaína produzida na Colômbia desde fins dos anos 70 fora um ponto de inflexão na dinâmica da
criminalidade (DOWDNEY, 2002). Mais barata que a produzida por outras praças e gerada em larga
escala, utilizando o Brasil como rota intermediária para a Europa e os EUA, a cocaína logo
ultrapassou a maconha enquanto ilícito mais consumido no estado, sendo muito mais rentável.
Isto acompanhado da organização de facções como o Comando Vermelho foram elementos
cruciais para uma maior complexidade da dinâmica do crime organizado, a partir do aumento do
tráfico de drogas e de armas que se inter-relacionam. Com o surgimento de outras facções ao longo
dos anos 80 e 90, as disputas territoriais se intensificam. Assim, apesar do caráter transnacional do
tráfico, sua face mais visível encontra-se na ponta, nos conflitos entre facções e nas “bocas” de fumo
com seus vendedores no varejo. É nessa área em que se encontram as principais operações policiais
dentro de um modelo repressivo e que contribuí para o aumento de um ciclo de violência, corrupção
e impunidade.
Vale lembrar que em uma corporação marcada pelo baixo salário oferecido com relação ao
112
risco inerente à profissão, relações escusas com os criminosos como a prática de extorsão e tráfico de
armas aparecem. Vale lembrar também que uma das heranças da ditadura foi que “por ter empregado
a tortura, as prisões ilegais e a censura, o regime militar abriu o caminho para a disseminação do
crime organizado em vários setores. Alguns oficiais, que haviam aderido a essas práticas subterrâneas,
tornaram-se membros de grupos de extermínio ou de extorsão.” (ZALUAR, 2007, p.39), associando-
se também com membros do jogo do bicho,
Assim, embora o contexto de crise econômica conjuntural com seu aumento de inflação e
desemprego e da dramática desigualdade de renda estrutural sejam pontos importantes para se
entender o fenômeno da criminalidade brasileira (e no caso, fluminense) eles são insuficientes. Seu
uso exclusivo em tal análise pode beirar o preconceito, ao associar automaticamente crime e pobreza,
relevando que a questão envolvendo as drogas por exemplo possui um caráter internacional de forma
organizada e envolvendo praticamente todas as classes sociais nos processos de produção,
distribuição e consumo.
Medidas que persigam uma distribuição de renda mais justa, bem como o incentivo pelo
Estado da educação e cultura em áreas mais pobres são fundamentais, mas devem vir acompanhadas
de debates sobre a nossa já vista tradição punitivista no judiciário, sobre a descriminalização das
drogas, sobre o sistema penitenciário, sua superpopulação e funcionamento enquanto “escola do
crime” por exemplo. No caso aqui tratado, o foco está sobre uma tentativa de reorientação da filosofia
de policiamento e, mais especificamente, as medidas no campo formativo desse novo policial
prestador de serviços.

Reeducando a PM e além – a produção do texto


Como vimos, Cerqueira já era comandante antes do governador tomar posse, mais
precisamente desde o dia dezenove de fevereiro, quando antes era chefe do Estado-Maior da
corporação. O comandante anterior, Edgard Pingarilho, fora elogiado pelo jornal O Globo por sua
“eficiência e discrição”217 e pela continuidade dada ao trabalho do seu predecessor, Nilton Cerqueira,
no sentido de “ampliar a presença da PM nas ruas da cidade” 218. O jornal também alerta para a
continuidade do alto número de “atos de violência e outros crimes cometidos por PMs” 219, embora
de certa forma exima o comandante de culpa pois atribui tais desvios pela “dificuldade do
recrutamento de policiais moralmente equipados para sua difícil missão”.220
Na cerimônia de passagem do comando, na esteira de um decreto presidencial que atribuía
aos estados a incumbência de nomear os comandantes das PMs, medida considerada pelo novo

217
PINGARILHO passa comando a Coronel da própria PM. O Globo, 19 de fevereiro de 1983, p.11.
218
Ibid.
219
Ibid.
220
Ibid.
113
comandante “muito boa, tendo em vista que o militar, conhecendo o ambiente interno, tem seu
trabalho bastante favorecido” 221 , Cerqueira adotou um discurso conciliatório que beirava a
contradição. Se por um lado afirmava, segundo o jornal que “a filosofia do trabalho da PM não vai
mudar”222 e que continuaria o trabalho desenvolvido por seu antecessor, por outro antecipava uma
mudança no pensamento policial que seria a pedra angular de seus comandos. Diria que “o objetivo
nosso, a filosofia do nosso comando é de incutir na mente do nosso comandado que nós somos uma
organização de prestação de serviços. Somos servidores de uma coletividade.223”. A ideia de mudança
nos princípios da atuação policial de “força” para “serviço” seria um dos fatores preponderantes nas
resistências ao comando, como veremos.
Se aqui temos uma mudança que pode ser considerada quase revolucionária, o Cerqueira de
1983 ainda teria pensamentos que podem ser entendidos como conservadores, nesse personagem
composto de uma “miríade de fragmentos e estilhaços”, retomando Levi. No começo de março de
1983, temos uma reportagem de título “Coronel Cerqueira critica sistema” 224 , abordando a aula
inaugural do novo comandante na Escola de Formação de Oficiais. O “sistema” a que se refere o
título seria o penitenciário brasileiro, a qual Cerqueira ataca “uma filosofia errônea e perigosa com
relação aos presos”225.
Se em um primeiro momento não sabemos exatamente qual seria tal filosofia, mais à frente é
mostrado que se trata de que “Segundo o Coronel, esta filosofia paternalista em relação aos presos
constitui-se em problema para polícia e também para a Justiça porque os detidos são liberados com
facilidade, através de recursos utilizados pelos advogados”226. Antes, a matéria destacou uma fala de
Cerqueira de que “Como psicólogo, não acredito muito na recuperação do preso”227, e, embora não
traga uma citação, afirma que ele acrescentou que “a prisão deve ser um instrumento de castigo e não
local de reabilitação”228.
Enfim, a despeito desses traços conservadores, Cerqueira seria confirmado pelo novo
governador que fora empossado em março por uma aproximação de ideias, como já mencionado no
segundo capítulo. A mudança, com sua confirmação no cargo, ocorre principalmente na nomenclatura
dentro da estrutura de governo: Cerqueira, comandante-geral da polícia militar é alçado também ao

221
Ibid. Decreto-Lei 2.010 de 1983 regulamenta em seu artigo sexto que o comando das polícias militares “será exercido,
em princípio, por oficial da ativa, do último posto, da própria Corporação.”, com os governadores tendo a prerrogativa
de escolha do nome. Entretanto, de acordo com parágrafo primeiro, o nome escolhido deverá ser aprovado pelo
Ministro de Estado do Exército, observada a formação profissional do oficial para o exercício de Comando.”, o que
ainda denota a relação de subordinação das polícias perante o exército. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del2010.htm , acesso em 06/12/2019.
222
Ibid.
223
Ibid.
224
O Globo, 02 de março de 1983, p.12
225
Ibid.
226
Ibid.
227
Ibid.
228
Ibid.
114
cargo de Secretário de Polícia Militar, assim como Arnaldo Campana seria o Secretário de Polícia
Civil. A cerimônia, embora simbólica pois Cerqueira já estava se reunindo com o secretariado e com
o Conselho de Justiça, Segurança Pública e Direitos Humanos ocorreu em 19 de abril de 1983.
O pai, Seu Antônio, a quem Cerqueira prometera não decepcionar, esteve presente. Ele, de
“terno e camisa brancos como seus cabelos” 229 na descrição do Jornal do Brasil, aparece numa
fotografia sendo abraçado por Brizola. No discurso do filho, um “agradecimento ao meu querido pai,
velho amigo e orientador, bom servidor que foi desta PM como soldado e hoje, aqui presente, pode
verificar que o seu filho não o decepcionou.”230. O JB relata um abraço dado pelo filho em uma “cena
comovente que fez muita gente presente a posse chorar.231”.
Além da família, presentes estiveram membros do governo, imprensa e duzentos oficiais da
polícia. Em seu discurso, a projeção de aumentar o efetivo em cinco mil homens em dois anos e uma
confiança de que a “corporação já está integrada a nova filosofia de trabalho” 232 . Por isso, “as
diretrizes que vão fluir do novo conceito de segurança pública e justiça não deverão causar grandes
transformações na Polícia Militar”233. De qualquer forma, com a polícia à frente das questões de
polícia “não tem mais desculpa”234. Aqui Cerqueira não diz - ou ao menos não é relatado pelo jornal
– qual o novo conceito de segurança pública e suas diretrizes, mas imagina-se, pela sua confirmação
por Brizola no secretariado e pela própria menção por Cerqueira anteriormente, qual seria: uma
polícia baseada numa noção de serviço que seja pautada em sua prática prioritariamente pelo respeito
aos direitos humanos do cidadão, seja quem for. Em um perfil elaborado pelo O Globo, entre
informações curriculares, o jornal o definiria como “atencioso, mas cuidadoso nas atitudes”235. Este
homem cuidadoso e que adotou um tom reformista em seu discurso de posse diria na entrevista ao
MIS que a intenção
Era tentar ver se a gente explodia a corporação e transformava a polícia velha em uma polícia
nova, mas como? Através do ensino. Então o esforço meu foi melhorar ensino, as escolas,
então a gente realizava debate pra mexer com isso. Mas eu sabia que seria muito difícil, tanto
que quando mudou a orientação isso aflorou.236

229
CERQUEIRA assume a Secretaria da PM. Jornal do Brasil, 21 de abril de 1983, p.5.
230
Ibid.
231
Ibid.
232
Ibid.
233
Ibid.
234
Ibid.
235
CERQUEIRA. O Globo, 16 de abril de 1983, p.9.
236
CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Carlos Magno Nazareth Cerqueira: depoimento [jul.1988] Op. Cit. Nesse
universo de mais de trinta mil policiais (34.957 de acordo com o relatório de 1986), o processo formativo envolvia: para
os soldados, o curso se dava no Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças, constando de curso de formação de
soldados, com duração que varia entre 6 meses e um ano, além dos cursos de formação de cabos e o de sargentos. Para os
oficiais, o processo envolve a formação inicial na escola de formação de oficiais, com duração de 3 anos; o curso de
aperfeiçoamento de oficiais, de seis meses a um ano e, por fim, a Escola Superior de Polícia. Tais cursos são necessários
para a progressão de patentes, em que a mudança mais polêmica de Cerqueira no campo estrutural fora a determinação
de concurso para o ingresso na Escola Superior, como veremos mais à frente. Como o ex-comandante escreveria
posteriormente, “Ninguém é promovido sem concurso e sem curso.” (2010, p.148). Além disso, pelo então Centro de
Especialização e Recompletamento, a corporação oferecia, como o nome sugere, cursos de especialização (como música,
conversação, legislação) para os policiais, além de reciclagem para os mesmos. In Secretaria de Estado de Polícia
Militar. Relatório anual, 1986, p.73. In acervo da Coleção Coronel Cerqueira localizado no Arquivo Público do Estado
115
Se a corporação já estava integrada à filosofia de serviço, logo o início de sua gestão mostrou
que não era bem assim. Em maio de 1983, no dia do trabalhador, uma perseguição de policiais a
indivíduos no morro do Cantagalo terminou em tiroteio e morte de uma moradora, uma senhora de
52 anos. Em depoimento ao jornal, moradores não entenderam o porquê da perseguição, visto que
eram supostamente marginais conhecidos na região e “se a PM quisesse mesmo prender o Sapão já
tinha prendido” 237 . Outro depoimento aponta que “Se a polícia quisesse prender alguém, não
precisava sair em perseguição dando tiros”238.
Seria uma das primeiras formas de resistência às novas orientações? De qualquer forma, a
ação atabalhoada gerou respostas duras de Brizola e Cerqueira. Do governador, a promessa de que é
preciso insistir permanentemente nas novas diretrizes, que consistiriam em que “só em último caso
um policial pode fazer uso de sua arma”239 e que “episódios como esse vão acabar no Rio”240. Além
disso fora enviado um memorando a Cerqueira cobrando “as mais rigorosas providências”241 para
“esclarecer o conflito e evitar sua repetição” 242 . Já por parte do Secretário de Polícia Militar, a
afirmação de que “nossa diretriz está sintonizada com a do Governo do Estado e não vamos permitir
ações violentas contra a população”243, além da promessa de “medidas severas”244 para os policiais.
De qualquer forma, maio seria um mês agitado. No dia 11, assim noticia na sua capa o Jornal
do Brasil: “PM será “anjo da guarda” na Cidade de Deus”. A notícia se referia a primeira tentativa de
implantação de um modelo próximo ao que seria o policiamento comunitário nas gestões de Cerqueira:
o CIPOC, Centro Integrado de Policiamento Comunitário. Funcionando em um posto policial, o
CIPOC seria formado a partir da aproximação de quatro grupos policiais com a comunidade: o Grupo
de Apoio Comunitário (GAC); Grupo de Apoio Social (GAS), Grupo de Patrulhamento Mirim (GPM)
e Grupo de Apoio ao Trabalhador (GAT).
A reportagem citada é voltada para o GAT e a iniciativa de cadastramento e criação de um
banco de empregos em articulação com as secretarias de Habitação, de Promoção Social e do
Trabalho. Até o momento da reportagem já tinha sido realizado o cadastro de 500 desempregados.
Nas palavras do comandante do 18° Batalhão e que estava à frente do projeto, Coronel Ile Marlen,
pela “primeira vez na história da polícia, estamos fazendo algo em relação a uma das causas – e não
somente aos efeitos da violência criminal: a crise de empregos.”245. Na primeira edição da Revista da

do Rio de Janeiro (APERJ).


237
FAVELADOS criticam a violência geral no Rio. O Globo, 01 de maio de 1983, p.30.
238
Ibid.
239
GOVERNADOR exige afastamento dos PM's. O Globo, 01 de maio de 1983, p.30.
240
Ibid.
241
Ibid.
242
Ibid.
243
CERQUEIRA lamenta precipitação e punirá culpados. O Globo, 01 de maio de 1983, p.30.
244
Ibid.
245
Jornal do Brasil, 11 de maio de 1983, capa.
116
PMERJ, publicada em dezembro do mesmo ano, temos um artigo acerca do CIPOC, em que vemos
seus objetivos de forma mais aprofundada. Seriam eles:
A presença do policiamento em determinadas áreas carentes, onde a presença do
policiamento normal, da Unidade Operacional, seja dificultada por qualquer fator; dinamizar
as ações no local em que se localize o Centro, dotando-o de condições de funcionamento
como elemento avançado; integrar a Polícia Militar à comunidade, sobretudo a mais pobre;
articular e atualizar recursos comunitários existentes na área, utilizando-os, no atendimento
da comunidade; promover e incentivar o desenvolvimento de um trabalho a nível preventivo,
junto as camadas mais jovens; colaborar no programa de favorecimento e oportunidade de
ocupação e emprego, visando a melhoria de condições de vida da comunidade carente;
minimizar os problemas sociais existentes na área afetada ao CIPOC, através de um esforço
conjunto da PM, com técnicos da área humana (Psicólogos, Sociólogos, Pedagogos e
Assistentes Sociais); prevenir e reduzir tensões sociais, levando a comunidade carente a
engajar-se no desenvolvimento social; proporcionar aos comunitários recursos de uma
documentação completa (Carteira de Identidade, Carteira Profissional, Título de Eleitor,
Certidão de Nascimento e Certidão de Casamento) e conjugar esforços entre a Polícia Militar
e o Grupo Social, na incessante busca do bem estar social em complementação a manutenção
da ordem pública.246

Já no dia 21 de maio, Cerqueira anuncia uma das primeiras medidas práticas voltadas para a
formação deste novo policial: a elaboração de um “plano para mudar a mentalidade dos soldados e
oficiais da corporação”247 em conjunto com um psicólogo contratado: Wilson Moura, professor da
Fundação Getúlio Vargas. Cerqueira resume o que pretende com a iniciativa:
Vamos colocar na cabeça dos nossos homens a ideia de que a função da corporação é muito
mais preventiva do que repressiva. É preciso acabar com a crença de que o marginal deve
morrer, de que o bandido deve ser torturado. Esse entendimento, não é só do público interno
da PM, mas também disseminou junto ao público externo. Queremos questionar isso e provar
que a PM pode produzir mais e melhor se cumprir os seus deveres respeitando os direitos
humanos, defendendo as instituições e protegendo a sociedade248

Para isso, contava com a ajuda da comunidade no objetivo de “reeducar os nossos homens
para que tentem contornar as situações dramáticas em que se veem envolvidos sem recorrer
automaticamente à violência”249. O apelo à população no sentido de cooperação com o modelo de
segurança pública proposto não é gratuito. Na visão da polícia comunitária e enquanto serviço, a
comunidade é seu cliente principal e ajudante na manutenção da ordem, no sentido de construir
soluções conjuntas para a prevenção da criminalidade.
Aqui também temos um Cerqueira que talvez já tenha percebido os efeitos iniciais de suas
propostas, pois afirma que “é natural que alguns soldados, a princípio, se mostrem confusos e
hesitantes. Mas vamos convencê-los de que, agindo de forma amistosa e respeitando o ser humano, a
PM ganhará a amizade e a colaboração da população.”250. Na edição do dia 29 o tema volta ao jornal,
sob o título “Psicólogo é convidado para fazer a cabeça da PM”, em que novamente o conceito de

246
Revista da PMERJ, ano 1, nº1, dezembro de 1983, p.27. In acervo da Coleção Coronel Cerqueira localizado no
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ).
247
PM contrata psicólogo para mudar mentalidade. O Globo, 21 de maio de 1983, p.11
248
Ibid.
249
Ibid.
250
Ibid.
117
reeducação é utilizado mais de uma vez. De acordo com a matéria, o convite de Cerqueira ao
psicólogo deveu-se a um entendimento do comandante de que “sentia uma profunda necessidade de
mudança de mentalidade da corporação.”251.
Segundo o Major Jorge Afonso, chefe do setor de relações públicas da PM no período, “a ideia
é fazer uma reflexão sobre a nossa atuação, para verificar onde nós estamos errando e procurar
conscientizar nossos homens de que é possível trabalhar de outra forma e conseguir resultados
positivos.”252. Em outro momento da reportagem, o próprio Major revela que Cerqueira “admite que
ainda há, não só por parte dos policiais como da comunidade de um modo geral, uma perplexidade
quanto à decisão da instituição, que de repente busca uma outra fórmula para atuar.”253. Apesar de
revelar esperança com a experiência do CIPOC, o major prossegue com a impressão de que:
o nosso homem está um pouco indeciso (...) se a gente tiver colocando na cabeça de nosso
soldado que a função da Polícia não é matar, que o delinquente não deve morrer, mas se a
comunidade não mudar a sua crença e jogar nos órgãos de comunicação de que o marginal
tem de morrer, o nosso homem que está na rua trabalhando vai ficar recebendo mensagem
contraditória, e isso leva sempre à indecisão.254

Assim, a partir dos dados levantados desse momento inicial percebe-se que, a despeito de um
tratamento de jornais como O Globo com relação à política de segurança pública nesse início de
governo, - o qual adotou um certo tom crítico às práticas de violência policial que vinham ocorrendo
e com um tom de ataque à política brizolista menor do que no futuro - as resistências internas já
existiam e eram consideráveis. Se ao tomar posse Cerqueira acredita que as medidas não encontrariam
grandes dificuldades de serem assimiladas pelos comandados em poucos meses o tom já seria
diferente.
Inserindo-se na estrutura militar e hierarquizada da polícia, Wilson Moura propunha uma
medida ousada: de acordo com a reportagem “caso o psicólogo seja contratado, irá convocar eleições
para representantes dos diversos setores da corporação.”255. Em um contexto de democratização, o
comando de Cerqueira almejava uma gestão aberta, ainda que com contradições como veremos mais
à frente. De qualquer forma, tal iniciativa fora semelhante a uma proposta no Plano Diretor da PM
elaborada na sua gestão: a criação dos grupos de pares. Basicamente, ela previa “uma espécie de
reuniões cotidianas de oficiais intermediários (capitães), oficiais subalternos (tenentes) e praças
visando a melhoria do ambiente organizacional, bem como espaço para proposições visando melhoria
nas condições de trabalho” (SILVA, 2016, p.231) Em entrevista concedida a Bruno Marques, o
coronel Jorge da Silva, parte do núcleo denominado pelo autor de “reformistas” durante a gestão de
Cerqueira, comenta que a intenção era
transformar uma organização que era muito hierarquizada, em uma organização um pouco

251
O Globo, 29 de maio de 1983, p.20
252
Ibid.
253
Ibid.
254
Ibid.
255
Ibid.
118
mais horizontalizada em termos de distribuição de responsabilidades. Também era uma forma
de viabilizar essa aproximação com a comunidade. No sentido de transformar a polícia em
uma organização um pouco mais igual a esse morador, ou seja, tirar um pouco esse ethos de
proteção, como se fosse uma tentativa de construir um programa conjunto. Quando você
horizontaliza uma organização, você sai do controle militar de autoridade. Essa
horizontalização implica na delegação de autoridade. Quando você começa a trabalhar nessa
direção, você também afeta alguns interesses daqueles que só querem mandar, querem ter o
controle. Então, havia uma resistência muito grande dos comandantes aos grupos de pares.
Porque o sargento de um determinado batalhão tinha uma comunicação direta com o
comando geral. O coronel Celso [Guimarães] fazia essa ligação. Coisa que no Exército não
existe. Está nesse sentido de você valorizar mais as pessoas que estão na ponta para que essas
pessoas tenham mais responsabilidades, que elas sintam valorizadas e que assumam um
compromisso com a instituição. (2016, p.282)

Iniciada, a medida sofreu fortes resistências, tanto internas quanto externas. De fora, mais
precisamente por um ofício de Brasília pela Inspetoria Geral das Polícias Militares e assinado pelo
General Luiz da Silva Vasconcellos, do dia 8 de outubro de 1984. Este, “tendo por escopo orientar,
por meio de colaboração franca e leal, a continuidade da eficiência e discrição desse comando” 256,
demonstra “estranheza à medida que é dissonante com o princípio basilar da hierarquia e da disciplina
militar” 257 , em que “a repartição das responsabilidades de Comando e Administração com os
comandados, fere os princípios de autoridade e disciplina consciente”258. Isto porque “o judicioso
aproveitamento dos principais elos da cadeia de Comando – Estado-Maior e Comandantes
subordinados – constitui princípio doutrinário de comprovada eficácia” 259 . Por fim, tal iniciativa
“introduzirá na PMERJ um sistema de hierarquias paralelas, exotismo incompatível com governos de
regime democrático.”260. Sofrendo fortes oposições, logo a medida seria abandonada.
A percepção de uma “perplexidade” por parte dos policiais e de camadas da população com
relação às novas orientações revela que o desafio seria maior que o esperado, justamente pelo
entendimento que muitas vezes a própria legitimidade da violência policial partia de parcelas
consideráveis da população, o que dificultaria um projeto de policiamento comunitário no sentido
amplo do termo. Em entrevista após os comandos, Cerqueira admitiria um de seus equívocos:
Acho que o grande problema, onde nós falhamos, é que nós tínhamos a política correta, mas
erramos ao achar que isso seria facilmente implementado. Fomos ingênuos de não achar que
as resistências seriam maiores. As resistências são grandes. E o pessoal nosso quer isso
mesmo. Foi treinado para isso. Enquanto não terminar com essa política de bandido bom é
bandido morto... o nosso slogan era bandido bom é bandido preso. (HOLLANDA, 2005,
p.144).

Seriam meses agitados para o Coronel. Em junho, a pressão viria da Assembleia Legislativa,
na forma de uma Comissão Parlamentar de Inquérito. A CPI, que surgiu por uma crise no sistema
penitenciário fluminense a partir de constantes fugas chegou em um âmbito mais geral ao apurar “as

256
Estado-Maior do Exército, Inspetoria Geral das Polícias Militares. Ofício nº024. Brasília, 08/10/1984, p.1. In acervo
da Coleção Coronel Cerqueira localizado no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ).
257
Ibid.
258
Ibid.
259
Ibid.
260
Ibid., p.2
119
causas da violência urbana”. Presidida pelo deputado do PTB Leôncio Vasconcelos, ela contou com
o depoimento de Cerqueira. Tal fala consistiu na leitura de um texto de sua autoria, que hoje encontra-
se em seu livro póstumo sob o título “Ideias sobre a violência urbana” e de uma sabatina perante os
deputados.
Acerca do texto, Cerqueira retoma tanto os trabalhos de suas referências no campo da
criminalidade, como Jacques Lantier e Manuel López Rey quanto o de sua própria obra, a já vista “A
PM e as tensões sociais”, de 1977. O comandante aproveitou a oportunidade para propor um debate
amplo com a sociedade “para uma reflexão maior sobre a violência. Penso que é chegado o momento
dessa grande reflexão” (2001, p.33).
Aqui ele reafirma sua crença na criminologia crítica e no crime enquanto “um fenômeno
sociopolítico” (p.34), o que significa um corte epistemológico com o quadro de referências da
criminologia tradicional, visto que “o crime não é um fenômeno natural e que não pode ser alcançado
pela metodologia das ciências naturais” (ibid.), como almejava tal corrente de pensamento. Além da
crítica ao conceito de crime como algo natural e da análise realizada pela criminologia tradicional,
Cerqueira ataca uma terceira frente: o sistema de justiça criminal enquanto “inadequado para entender
o crime e os criminosos.” (ibid.)
Ao mesmo tempo, percebe-se que, a despeito do alinhamento de ideias com a política de
segurança proposta pelo governo pedetista, no texto também se encontram certas divergências. Se
para Brizola e alguns quadros do partido a criminalidade é diretamente relacionada com as “causas
sociais” e a pobreza, para Cerqueira “Afirmar hoje que a pobreza ou distúrbios de comportamento
sejam causas de crime é desconhecer que ricos e sadios cometem crimes” (p.35), dando como
exemplo os crimes do colarinho branco. Em outro momento, afirma que “No instante em que a
extensão do crime mostra à sociedade que todos os grupos sociais delinquem, fica impossível explica-
lo por generalizações causais, isto é, encontrar uma causa que o explique ou, ainda, tentar resolvê-lo
através de planejamentos socioeconômicos.” (p.37).
Sua resolução acerca desta crítica é de que a ideia de diminuição da criminalidade
simplesmente pela melhora das condições de vida dos mais pobres está, junta com outras visões
predominantes sobre o crime, que passam do criminoso enquanto um “enfermo” até o crime enquanto
um reflexo da desorganização social desembocam num princípio em comum: o do crime enquanto
uma anomalia. Referenciado por López Rey, Cerqueira apresenta um outro olhar, o da criminalidade
enquanto “um fenômeno social normal” (2001, p.39) e por isso a necessidade de um programa de
prevenção amplo.
Assim, o coronel envereda-se para uma visão mais holística da criminalidade, envolvendo a
sociedade como um todo, não apenas os criminosos e os não criminosos. Retomando ao “sistema de
papeis” mobilizado no seu texto de 1977, o coronel entende que, se os criminosos continuam
exercendo seu “papel” de delinquir, o mesmo não ocorre com a parte “sadia” da sociedade, em que
120
estamos falhando enquanto civilização. Nesse sentido, “A sociedade não é mais vista como meio para
o pleno desenvolvimento das potencialidades humanas. Há uma defasagem muito grande entre os
interessados gerais e individuais. Os interesses particulares dirigem os processos sociais.” (p.42).
É neste desequilíbrio entre os papéis exercidos pelos criminosos e os não exercidos do que se
espera de uma sociedade que se encontra a raiz da violência urbana em sua visão. Um outro fator que
Cerqueira, em uma “rápida digressão” (p.38), apresenta, baseia-se numa visão de certa forma
conservadora sobre o aumento da criminalidade, interpretando o crime enquanto “no campo da
filosofia penal, um comportamento cujo conteúdo fere, ao menos, o mínimo ético-reprovável pela
sociedade, retratado na tipicidade da lei” (p.38). Eis a sua hipótese:
Ora, se há uma tendência acentuada ao afrouxamento dos laços morais (e as novelas, filmes
e programas humorísticos de televisão nos demonstram isso diuturnamente), o sentimento de
reprovação é mais atenuado e, consequentemente, fatos tidos como inaceitáveis ontem caem
na faixa da normalidade hoje. Tudo traz como consequência uma convivência, tolerância e
participação nos papéis delituosos brandos, imperceptivelmente. Onde chegaremos? (ibid.)

Este viés não deixa de estar inserido numa visão macrocriminal e preventiva, em que o delito
é a combinação entre “a vontade do elemento de delinquir e a oportunidade de cometer o delito, ou
crença de que existe essa oportunidade” (p.40). Se no que tange à oportunidade o trabalho de polícia
está mais circunscrito, no que se refere à vontade é tarefa que vai além. A vontade “traduzindo
incorporação distorcida de valores”(ibid.) encontra-se na mencionada ideia de sociedade que falha ao
desempenhar seu esperado papel civilizatório, em uma crítica que envolve tanto o traço conservador
citado quanto algo que resvala superficialmente nos valores do capitalismo – então em constante
ascendência neoliberal no período - ao se referir nas vontades individuais que se sobrepõem às
coletivas.
Para ambas as instâncias responsáveis por prevenir o crime (polícia e sociedade), um trabalho
educativo faz-se necessário. Para reeducar a polícia dentro de um fazer preventivo e de “exame
detalhado dos crimes: como ocorrem, sua frequência, os transgressores”, não à toa a inserção, em seu
comando, da disciplina de criminologia nos currículos da escola de formação de oficiais. Para a
população “não são ações policiais e sim ações psicopedagógicas envolvendo aprendizagem para não
delinquir que vão eliminar este componente essencial para a ação criminosa” (p.40). Ao final do texto,
divide em quatro áreas que passam por essa ação psicopedagógica: da educação básica, a partir do
“estudo da questão pública nas escolas de 1° e 2° graus” (p.42) às universidades, passando pelos
“estudos de filosofia social e psicologia social” (ibid.) e o “trabalho dos órgãos de comunicação social
para o exercício de uma ação psicopedagógica no campo da criminalidade.” (ibid.).
Dessa forma, e relacionando com o prisma aqui engendrado, interpreto a partir das suas falas
um esforço do coronel em um processo de reeducação que vá além da formação de um novo policial,
mas também de se iniciar uma discussão sobre os valores da população, ainda que inicialmente de
forma superficial e com traços conservadores. Evidentemente, a alçada e onde ele pôde ir mais longe

121
fora nas reformas empreendidas na corporação. Contudo, e relacionando tanto a sua visão holística
da criminalidade, do criminoso e sua prevenção quanto com um contexto de uma transição -embora
naquele momento com fins imprevisíveis- de fins da ditadura e, no plano estadual, um governo que
tinha como mote a defesa dos Direitos Humanos e a prioridade no campo educacional é de se pensar
que Cerqueira teria achado propício para “o momento dessa grande reflexão”. No depoimento ao MIS,
Cerqueira destaca tal importância da relação entre polícia e comunidade:
Integração comunitária era um pressuposto teórico nosso muito forte. Tanto que a gente
entendia que não podia pensar em ordem pública sem a participação da comunidade e,
principalmente, num momento em que o país estava passando por uma transição democrática.
A gente tinha que aprender a viver democraticamente. E a polícia tinha que se modificar 261

Assim, interpreto que, de forma dialética, Cerqueira estava em diálogo com o macro, ou o
contexto de influência retomando Ball, no caso o de perspectiva democrática a partir do processo de
abertura e do governo estadual ao qual ele estava inserido. Se em obras já vistas como a “PM e as
tensões sociais” já se percebia um esforço em aprofundar o policiamento a partir de saberes
especificamente policiais em referência ao que vinha sendo produzido teoricamente, agora o
comandante articula tanto suas referências quanto com o contexto no papel de gestor público,
potencializando seu “sonho de uma nova polícia”. Ainda que de forma não tão profunda como seria
no segundo comando, como veremos.

Um debate sobre discurso a partir da campanha “O Rio contra o crime” e o plano diretor da
PMERJ
Um dos momentos que podem ser considerados como de tentativa em aproximar a corporação,
bem como a política de segurança pública como um todo, da população fora o seminário organizado
pelas organizações Globo “O Rio contra o crime”. Cerqueira e os secretários de Justiça, Vivaldo
Barbosa e de Polícia Civil, Arnaldo Campana, estiveram presentes na cerimônia de lançamento da
campanha, ocorrida na Cinelândia, tradicional espaço no Centro do Rio de Janeiro.
Lançada em 15 de julho de 1984, na esteira da “onda crescente de violência na cidade” 262, a
iniciativa era ambiciosa pois previa, a partir da instalação de dez barraquinhas em todas as zonas da
cidade além de Niterói e Baixada Fluminense, o recolhimento de cem mil opiniões e sugestões de
moradores sobre questões envolvendo a segurança pública do estado. Do levantamento de tais
apontamentos ao longo de um mês, o projeto se encaminharia para a sua segunda etapa, a qual
consistia num seminário com estudiosos e envolvidos na temática, como acadêmicos, políticos,
jornalistas, além de representações como a Federação das Associações de Favelas do Estado do Rio
(FAFERJ). A síntese da pesquisa realizada pelo IBOPE e do seminário seria encaminhada ao governo

261
CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Carlos Magno Nazareth Cerqueira: depoimento [jul.1988] Op. Cit.
262
LANÇADA campanha para conter a crescente onda de criminalidade. O Globo, 15 de julho de 1984, p.26.
122
estadual. Apesar da superficialidade, certo viés tendencioso e contradições na elaboração da pesquisa,
acredito que este momento na história fluminense mereceria um trabalho à parte, tanto por seu vulto
quanto por ser um momento significativo das relações entre imprensa e governo Brizola, quanto
também por registrar impressões de diversos setores da população.
E por revelar, nas contradições, as impressões da organizadora sobre a segurança pública. A
despeito de suas pretensões científicas, segundo Walles Costa, um dos organizadores da campanha e
responsável pelo setor de comunicação da Rede Globo de Televisão, “serão deixadas de lado as
discussões filosóficas e sociológicas para se dar ênfase à discussão sobre as saídas possíveis para o
problema.”263. “Deixando de lado” as discussões filosóficas e sociológicas, quais seriam as saídas
possíveis na visão da organizadora? É possível perceber a partir de algumas pistas, como na própria
declaração em si do organizador, quanto na própria proposição prática do formato da pesquisa. Trago,
de acordo com a reportagem, a íntegra da proposta:
Em cada barraca, as pessoas receberão um questionário com esta mensagem: “Deixe suas
impressões sobre o crime e ajude a resolver o caso”. São formuladas sete questões para serem
respondidas: O senhor já foi assaltado? Algum morador de sua casa já foi assaltado? O senhor
confia na Justiça? O senhor confia na Polícia? Quais seriam as soluções para o problema do
crime a curto prazo? Quais seriam as soluções para o problema do crime a médio/longo prazo?
O senhor teria alguma sugestão quanto a medidas que diminuíssem a criminalidade no Rio?
Em relação às soluções de curto prazo, o questionário oferece 12 opções, mas pede que sejam
indicadas apenas três: aumento do número de cabines da PM; participação da Polícia Civil
no policiamento da cidade; volta da Guarda Noturna, volta do Cosme e Damião (duplas de
policiais); maior controle da venda de armas; aumento dos salários dos policiais; Justiça mais
rápida; criação do seguro-desemprego; aumento das penas para os crimes; Polícia mais bem
treinada e equipada; volta das delegacias especializadas e maior combate ao consumo de
drogas.
São feitas ainda sete sugestões de médio e longo prazos; reformulação do Código Penal;
maior atenção ao menor abandonado; reforma do sistema penitenciário; combate à inflação;
aumento do número de empregos; melhor distribuição de renda e instituição da pena de
morte.264

Mais do que o dito, e é perceptível pela campanha a visão do jornal por um viés mais
quantitativo da polícia do que qualitativo, é revelador o não dito: em nenhum momento se vê qualquer
menção a palavras como “direitos humanos”, “prevenção” ou uma polícia que se atentasse para esses
preceitos, pautas levantadas pelo governo e o comando da PM. O mais próximo que se pode perceber
de uma visão “progressista” de segurança pública é no campo da sugestões de médio e longo prazo,
em que se percebem uma certa atenção às “causas sociais”, sendo que tal dicotomia nas discussões
sobre diminuição da criminalidade era algo criticado pelo próprio Cerqueira, como vimos em seu
depoimento na CPI.
Em outro momento da reportagem, ao registrar depoimentos de indivíduos que preencheram
o questionário no primeiro dia, entre as “mais de mil pessoas”265 que participaram da pesquisa, dois
foram entrevistados e mencionados na reportagem, que descrevia que “estes bandidos deviam ser

263
LANÇADA campanha para conter a crescente onda de criminalidade. O Globo, 15 de julho de 1984, p.26.
264
Ibid.
265
LANÇADA campanha para conter a crescente onda de criminalidade. O Globo, 15 de julho de 1984, p.26.
123
todos fuzilados”266 era um discurso comum no local. Dos dois entrevistados, opiniões convergentes.
O primeiro, um contador, que afirmou que “como sugestão para combater o crime a longo prazo, ele
foi enfático: instituição da pena de morte” 267. O segundo, um pedreiro que “escreveu uma única
palavra no espaço em branco deixado no questionário para as sugestões: “matar””268. Interpreto que,
além de não trazer opiniões contrastantes entre os mais de mil presentes, o jornal, a partir da exposição
de opiniões de indivíduos de classes sociais diferentes, propôs reforçar a ideia de que este era um
sentimento generalizado da população.
De qualquer forma, couberam aos secretários o papel de trazer um outro ponto de vista. Ambos
apontaram de forma indireta críticas à pesquisa, os quais “fizeram questão de frisar que o problema
da criminalidade não será resolvido com soluções paliativas ou circunstanciais.” 269. Cerqueira, que
respondeu ao questionário por “uma Justiça mais rápida”270 e que “uma solução a médio e longo
prazo é uma maior atenção aos menores abandonados”271, bem como “deve haver melhor distribuição
de renda” 272 , ressaltou a importância da pesquisa no sentido de trazer mais a população para a
discussão, “inclusive ajudando Polícia em programas de policiamento”273, mas também não deixou
de apontar que “a criminalidade não seja discutida em torno de soluções aparentemente fáceis mas
nas suas causas.”274.
Na edição de 29 de agosto275, temos notícias sobre o início da segunda etapa da campanha,
bem como a exposição dos dados coletados, em que 228.327 pessoas responderam ao questionário.
Dos resultados, destaco respostas como a falta de confiança na polícia (64,4% disseram não confiar
contra 20,8%) e o ranking com as primeiras sugestões a curto prazo (“Polícia mais bem treinada e
equipada” com 41,7%; “Maior combate ao consumo de drogas” com 37,5%; “Participação da Polícia
no policiamento da cidade” com 35,5%) e a médio e longo prazo (“Maior atenção ao menor
abandonado” com 59,6%, “Instituição da pena de morte” com 38,9% e “aumento do número de
empregos” com 37,9%). Nas sugestões espontâneas, embora em número muito menor, os resultados
conflitantes permanecem: se no que tange à repressão a sugestão mais recorrente fora sobre a presença
das Forças Armadas nas ruas (em 3.371 questionários), no que se refere à prevenção fora acerca de
maior atenção à educação (5.180 questionários).
Acredito que, embora a metodologia para o levantamento de dados seja problemática e as
sugestões difusas (qual seria a “polícia mais bem treinada e equipada”, por exemplo, uma treinada

266
Ibid.
267
Ibid.
268
Ibid.
269
SECRETÁRIOS de Justiça e Polícia dão sugestões. O Globo, 15 de julho de 1984, p.26.
270
Ibid.
271
Ibid.
272
Ibid.
273
Ibid.
274
Ibid.
275
SEMINÁRIO é aberto com defesa do direito à segurança, O Globo, 29 de agosto de 1984, p.12.
124
para a prevenção e proteção dos direitos humanos ou para a repressão? A mesma pergunta pode valer
no que se refere à a participação da polícia na cidade), o que se percebe é um cenário contraditório
mas ao mesmo tempo condizente com uma sociedade que experimentou mais de 20 anos de práticas
autoritárias, em que a atenção às “causas sociais” convive com medidas como a implementação da
pena de morte (embora de maneira menor como a que queria transmitir a reportagem mencionada
acima).
Entretanto, destaco este evento principalmente por acreditar ser um marco importante nas
relações entre O Globo e os governos Brizola, já tensionadas desde as eleições, mas aqui ganhando
um componente que seria decisivo nesta relação: as críticas à sua política de segurança pública. Nesse
primeiro momento ainda com certo tom de moderação e de aproximação, mas que ao final do segundo
mandato já bem mais agressivo e desgastado.
É significativa, ao meu ver, o título desta reportagem analisada: “Seminário é aberto com
defesa do direito à segurança”. O título faz uma referência a fala de abertura de Roberto Marinho,
presidente das Organizações Globo, que disse que “o direito à segurança não contradiz os demais
direitos humanos”276. Aqui tem-se ao meu ver um dos primeiros indícios da tônica que seria dada às
críticas à política de segurança pública brizolista: a de inoperância da polícia na repressão ao crime e
de uma atenção privilegiada ao criminoso em detrimento do “cidadão de bem”, algo que cresceria ao
final do primeiro mandato, seria decisivo para a eleição de seu opositor em 1986 e ganharia tons de
dramaticidade em seu segundo governo. Evidentemente isto teria consequências importantes na
gestão de Cerqueira e no que ele imaginava para a sua política de segurança, principalmente em seu
pilar que seria a relação com a comunidade e a imagem da polícia, assim como nas resistências
internas.
Cerqueira participou da segunda etapa do evento, seja como membro da mesa de abertura277,
como ouvinte e como conferencista no último dia do evento. Em sua fala, segundo a reportagem,
Cerqueira voltou a defender a “adoção de medidas psicopedagógicas para estabelecer uma política
criminal”278, em que a “conscientização para o indivíduo não desviar sua conduta (...) depende mais
de um plano educacional e de uma sociedade mais justa do que de um maior contingente de PMs nas
ruas.”279.Ele aprofundaria suas críticas em artigo para a revista da PMERJ, o qual questiona o caráter
indutor da formatação da pesquisa. Afinal,
falar de um tema tão complexo como a prevenção da criminalidade, dentro de uma moldura
imposta pelo resultado da pesquisa – que, sem dúvida, reflete mais o pensamento do
pesquisador, através das perguntas formuladas e soluções por ele próprio sugeridas -, obriga-
nos a refletir um pouco sobre como hoje é pensado no Brasil o problema do crime e sua

276
SEMINÁRIO é aberto com defesa do direito à segurança. O Globo, 29 de agosto de 1984, p.12.
277
Estiveram presentes na mesa Brizola, o presidente das organizações Globo Roberto Marinho, os secretários de Justiça
e Polícia Civil, o Bispo Auxiliar Dom Karl Romer e os presidentes da Câmara Municipal e da Assembleia Legislativa,
Maurício Azedo e Paulo Ribeiro.
278
CERQUEIRA: Precisamos de medidas psicopedagógicas. O Globo, 30 de agosto de 1984, p.13.
279
Ibid.
125
prevenção. 280

Cerqueira objetivava uma reflexão sobre a criminalidade e a sua prevenção de maneira mais
profunda, algo que envolvesse a participação de outros setores da sociedade na manutenção da ordem
pública para não “cairmos no terrível círculo vicioso: maior repressão, mais criminosos nas ruas,
maior policiamento nas ruas e assim indefinidamente” 281 , como o sugerido pelas sugestões pré-
definidas da pesquisa.
Retomando a referência teórica de Lopes Rey e da criminalidade enquanto fenômeno que
envolve toda a sociedade, reforçava o papel preponderante da educação na prevenção do crime, ao
dizer que “qualquer plano de política criminal deve buscar na educação o apoio psicopedagógico para
a mudança de atitudes (...) Não são ações policiais, e sim a ação psicopedagógica, envolvendo
aprendizagem para não delinquir, que vai eliminar este componente essencial da ação criminosa: a
vontade do elemento delinquir”282.
Acredito, assim, que mais do que se interpretar Cerqueira enquanto um pedagogo da polícia,
ele também pode ser visto de forma mais abrangente enquanto um pedagogo dos direitos humanos.
Isto porque, se sua visão de prevenção do crime a mobilização de atores e instituições para além da
corporação, isto também envolvia uma nova formação para tais, que envolva uma compreensão do
crime, da criminalidade, de sua prevenção e dos direitos humanos. Nesse sentido, o policiamento
comunitário seria o eixo que funcionaria como ação pedagógica de forma dialética entre polícia e
comunidade, ambos sendo formados para uma atuação mais humanista perante a violência e a
criminalidade. Um duplo eixo formador, portanto.
O comandante também se utilizaria do seminário para organizar o “1° ciclo de estudos sobre
segurança”, agora dentro dos quarteis. Realizado entre primeiro de setembro e sete de dezembro do
mesmo ano, o ciclo teve como objetivo “analisar minuciosamente os dados resultantes” 283 da
campanha e fora aberto a participação de “estudiosos, de jornalistas, de causídicos de reconhecido
saber, de representações de Universidades e de Oficiais da Corporação”284. Além das palestras de
acadêmicas como Alba Zaluar, referência no campo da segurança pública, também foram realizados
quatro painéis.
A moderação dos debates do ciclo ficou a cargo do professor João Gustavo Lacerda Furtado,
da UERJ e a coordenação dos trabalhos ao então Tenente-Coronel Jorge da Silva. Outro
desdobramento fora a publicação, de circulação interna à corporação pelo Boletim da PM das

280
Revista da PMERJ, ano 2, nº4, outubro de 1985. p.23. In acervo da Coleção Coronel Cerqueira localizado no Arquivo
Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ).
281
Ibid.
282
Ibid., p.24.
283
Relatório do I Ciclo de estudos sobre segurança. Introdução, p.3. In acervo da Coleção Coronel Cerqueira
localizado no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ).
284
Ibid.
126
“proposições resultantes das palestras e debates do I ciclo de estudos de segurança da PMERJ,
elaboradas na mesa-redonda realizada no dia 29 de janeiro do ano corrente”285. Entre as 25 sugestões,
destaco, dentro dos propósitos do trabalho, estas:
1a. Segurança não é só repressão e não é problema apenas da polícia. É preciso que a questão
da segurança seja discutida e assumida como tarefa e responsabilidade permanente de todos,
do Estado e da população.
1b. Adequar a polícia às condições e exigências de uma sociedade democrática,
aperfeiçoando a seleção e a formação profissional orientada para a obediência aos preceitos
legais do respeito aos direitos do cidadão, independentemente de sua condição social. (...)
1e. Promover a participação da comunidade na discussão e elaboração de uma política de
segurança, através de encontros das autoridades com associações representativas, de modo a
que cada solução esteja de acordo com os problemas e as características específicas de cada
localidade. (...)
2. Que a Polícia Militar desenvolva um programa para melhorar a sua imagem baseado nos
pressupostos de que é uma organização aberta e de prestação de serviços públicos. (...)
9. Que se opte por uma nova concepção de ordem pública, na qual a colaboração e a
integração comunitária sejam os novos e importantes referenciais. (...)
20. Que a destinação da Polícia Militar seja entendida e interpretada a partir da sua função,
pública e de natureza civil, e não a partir do nome da Corporação. Militar, aqui, não é o oposto
do Civil. (...)
25. Que os estudos desenvolvidos neste I Ciclo tenham continuidade.286

Acredito que esteja elencado aqui o que seria a espinha dorsal do ideário que Cerqueira
formulava para a formação desse novo policial e dessa nova polícia. Um servidor com papel
fundamental no trabalho de segurança pública do estado, mas que não deixa de ser um integrante em
um projeto conjunto que envolve Estado e sociedade. Articulado com as exigências de um possível,
mas ainda incerto Estado democrático de direito, ele deve estar aberto tanto à integração comunitária
em suas práticas quanto com o intercâmbio de conhecimento entre o meio militar e o civil. O ponto
de número 20 ao meu ver é o mais polêmico, ao tocar na ferida identitária entre o fazer policial e
militarizado. Esta seria uma contradição que Cerqueira perseguiria até o fim de sua vida.
Por fim, interpreto que, se a campanha pode ser vista enquanto tentativa de reunião entre
opinião pública, meios de comunicação e governo numa causa em comum, ela também pode ser
interpretada como um campo de disputas sobre o papel da segurança pública. Para o O Globo, um
primeiro alerta ao governo na sua ideia, ainda que difusa, de uma polícia mais “ativa”, crítica que
começa a surgir nesse período e que teria desdobramentos; para o governo, um momento de reafirmar
sua política; para Cerqueira, uma oportunidade de novamente aproximar opinião pública e polícia,
bem como o meio acadêmico, em sua visão holística de segurança pública.
Para tratarmos das medidas tomadas no campo da formação policial em seu primeiro comando,
é preciso em primeiro lugar olhar-se para o documento que consiste na produção de texto por
excelência do novo policial almejado: o Plano Diretor da PMERJ. Primeiro plano diretor da história
da corporação, ele perpassaria suas duas gestões, só possuindo uma nova versão em 2007 (SILVA,

285
Boletim da PMERJ nº24 de 04 de fevereiro de 1985, p.36. Disponível em
https://sites.google.com/site/tenhoquasetudopmerj/ , acesso em 10/12/2019.
286
Ibid.
127
2016, p.279).
Sua importância reside principalmente em organizar num só documento o que Cerqueira e seu
núcleo pensante imaginavam a partir de contornos concretos o que seria a nova polícia e o seu novo
policial, ainda que sua circulação não tivesse possuído alcance, ficando restrita aos seus formuladores
e a um grupo restrito de oficiais. Entretanto, em entrevista a Bruno Marques que o interpreta como
um “manual reformista” (p.227), o Coronel Ubiratan Ângelo afirma que “que mesmo os opositores
do comandante reconhecem que o grande mérito do plano era o de formar “o novo policial na nova
PM” (p.279).
Reelaborado a partir de uma versão inicial de 1984, tal texto encontra-se de forma completa
enquanto um aditamento ao Boletim da PMERJ. Suas 74 páginas dividem-se em seis tópicos:
“finalidade” 287 , “diagnóstico” 288 , “estabelecimento do grande objetivo” 289 , “políticas” 290 ,
“operacionalização” 291 , “controle e retroalimentação” 292 . Ao atribuir a acentuada concentração
urbana e a problemas de conjuntura econômico-social (embora não especifique quais) o aumento da
criminalidade, o plano atenta-se para a necessidade da polícia, tendo como prioridade a Segurança
Pública e a manutenção da ordem pública que nela se insere, estar em sintonia com as novas demandas.
Mais adiante no plano vemos o detalhamento dessa necessidade de sintonia da PM com as
novas necessidades da população enquanto um dos “balizadores” da atuação policial: a PM enquanto
um sistema aberto. A sobrevivência da organização policial prescinde de uma maior aproximação
com a comunidade, e aqui não está se falando apenas no sentido de policiamento comunitário, mas
de uma forma geral. Isto porque é com “esta interação com o meio externo que realimenta a
organização para que ela consiga fugir à estagnação e possa continuar a desenvolver-se.”.293
O plano aponta para tal prioridade pois busca demarcar, na relação entre polícia e exército,
uma linha de atuação própria da polícia. Para tal ele se ancora tanto no decreto mencionado no
capítulo anterior que atribui a exclusividade do policiamento ostensivo às polícias estaduais quanto
no Plano de Desenvolvimento Econômico e Social do Estado, elaborado na gestão brizolista. Vale
registrar a extensa citação do documento ao plano do governo como forma de legitimar seus novos
marcos:
a mudança de conduta do Governo em relação à comunidade deve começar pelo respeito aos
direitos humanos em todos os níveis, particularmente no que diz respeito à segurança do
cidadão comum. É necessário criar junto à população a consciência do fim da arbitrariedade
e da impunidade, no que diz respeito às autoridades estaduais. O cidadão não deve temer a

287
Boletim da PMERJ nº229 de 03 de dezembro de 1985, n.p. Disponível em
https://sites.google.com/site/tenhoquasetudopmerj/ , acesso em 20/12/2019.
288
Ibid.
289
Ibid.
290
Ibid.
291
Ibid.
292
Ibid.
293
Boletim da PMERJ nº229 de 03 de dezembro de 1985, p.11. Disponível em
https://sites.google.com/site/tenhoquasetudopmerj/ , acesso em 20/12/2019.
128
polícia, que será acionada para protegê-lo, e não para reprimi-lo. Não há mais “blitzen”294
de trânsito e nem prisões sem flagrante delito, e não se entra mais nas favelas arrombando
portas de barracos mas, ao contrário, a nova administração vem tentando atuar em
colaboração com a comunidade. A manutenção da ordem pública se fará através do
policiamento preventivo, do diálogo e da ação política, e o Governo garante ao cidadão o
direito de se manifestar livremente. 295

Apoiado nesses pressupostos, o comando tentou, a partir do Plano Diretor, alinhar a atuação
policial dentro dessas diretrizes. Mais do que alinhar, “o Comando firmou uma filosofia adequada a
uma polícia democrática”296, em que o Plano busca oferecer contornos concretos para tal. Seriam
quatro os pressupostos balizadores da organização policial, além do já mencionado sistema aberto: a
PM enquanto uma organização do sistema de papeis, a PM enquanto uma organização de serviços
públicos e sendo representado pelo último pressuposto, o policial ou “produto-PM”297, com este sendo
“o homem treinado e preparado para a missão”. Tais pressupostos, justificações e propostas seriam
resumidos no “objetivo-síntese”298, qual seja:
Promover, adaptando a estrutura policial-militar às exigências da segurança pública, o
ajustamento comportamental da organização dentro de uma nova concepção de ordem
pública, na qual a colaboração e a integração comunitária sejam os novos e importantes
referenciais, o que implica em um novo policial e uma nova polícia. 299

Como seria formado este produto-PM? Dentro do tópico de políticas, encontra-se um


subtópico especificamente dedicado ao ensino e instrução. Vale ressaltar que ensino e instrução não
são sinônimos dentro da estrutura de ensino da corporação. Se o ensino é mais circunscrito aos
conteúdos curriculares das escolas de formação, bem como seu processo de ensino-aprendizagem nas
salas de aula e em cursos extracurriculares, de aperfeiçoamento e seminários, a instrução volta-se
enquanto uma “formação continuada” para os que saem das escolas de formação e vão para as
atividades práticas do cotidiano. Assim, o teor prático possui um peso maior nas políticas de instrução
do que de ensino.
Nas palavras do plano diretor, a instrução, enquanto “treinamento no local de trabalho”300,
deve ser entendida como “uma forma de reciclagem na qual se procurará o encontro do ensino das
escolas com o dia a dia das Uop. Aqui os Oficiais de Unidade Operacional terão grande importância
para que o processo de treinamento possa se tornar eficaz e funcionar como a grande ligação entre a
Escola e a Uop.”301 . O desafio consistia, contudo, em integrar as políticas de ensino e instrução.
Acerca das políticas de ensino, o plano traçou as seguintes metas:
a) Revisar os currículos e a metodologia dos cursos da Corporação de modo a atender à
prioridade da Segurança Pública.
b) Integrar o ensino das Escolas e dos Cursos da Corporação.

294
Atividades repentinas de policiamento.
295
Ibid.p.3.
296
Ibid.
297
Ibid., p.12.
298
Ibid., p.14
299
Ibid.
300
Ibid., p.30.
301
Ibid., p.31.
129
c)Implantar um sistema de atualização com vistas a preencher as lacunas oriundas da
defasagem entre os cursos da EsFO [Escola de Formação de Oficiais] e o CAO[Curso de
Aperfeiçoamento de Oficiais], e entre este e o CSPM[Curso Superior de Polícia Militar], e
entre os cursos de formação e aperfeiçoamento de graduados
d)criação de um corpo de instrutores
e) criação de uma biblioteca para a Polícia Militar, e ampliação das bibliotecas das escolas
f) ampliar a integração polícia militar/universidade
g) desenvolvimento de um plano de instrução no serviço
h) ajustar o ensino das escolas à prática das unidades operacionais (Uop). 302

Aos alunos, mantendo os valores vistos como caros à estrutura organizacional da polícia
como hierarquia e disciplina, o plano buscou proporcioná-los um caráter mais participativo. Isto
porque o documento objetivava
O redimensionamento do curso nas áreas de formação e aperfeiçoamento, quer na revisão
dos currículos, quer na revisão dos métodos de ensino, quer na revisão dos conteúdos
programáticos não se fará antes partirem de uma concepção geral que busque administrar a
relação aluno x professor de forma a envolver os alunos no próprio processo de planejamento
do ensino.303

Este traço mais aberto dialogava com o novo policial almejado a se formar, ponto
fundamental do plano para o sucesso de sua empreitada: o reenquadramento da polícia militar
enquanto uma prestadora de serviços públicos, com o policial sendo um servidor. Tal formulação
deveria “permear todas as ações dos integrantes da Corporação”304, daí a necessidade de reformulação
no ensino e instrução policiais. Assim, a ideia força principal baseava-se em uma troca semântica
essencial: a polícia não mais como força pública, mas sim enquanto serviço. Nesse sentido, a
corporação seria uma prestadora de serviços, em que seus “clientes” seriam a população. Nesse
sentido, uma instituição fechada como a polícia precisaria se abrir para conhecer tais clientes.
Segundo Bruno Marques:
O coronel e seus colaboradores propunham, enfim, substituir a noção de “força que serve e
protege” para a noção de “serviço público que pode usar a força”, construindo um novo marco
regulatório na administração da segurança pública no estado do Rio de Janeiro. O próprio
Nazareth Cerqueira afirmou que não se tratava de “simples jogo de palavras”. Seriam
conceitos diferentes que informam estas percepções. Finalmente, após um longo período de
maturação, Cerqueira transformaria em políticas públicas muitas de suas ideias gestadas
anteriormente. (2016, p.235)

Não é mero jogo de palavras. Tal reformulação implica uma ruptura com uma longa tradição
militarista da polícia, em que o uso da força é preponderante. Cerqueira, em sua tentativa de
implementar uma polícia reflexiva sobre suas ações, pensava que a atribuição do termo “serviço”
seria adequada à uma nova filosofia policial baseada na prevenção e no reconhecimento da
complexidade do trabalho da polícia perante a segurança pública.
Tentava, também, reformular uma corporação que estivesse alinhada com o seu contexto, o
de transição democrática (ainda que naquele período a democracia ainda fosse um vislumbre),

302
Ibid., p.29.
303
Ibid.
304
Ibid., p.12.
130
pensando em uma noção de polícia que atendesse à toda população sem distinção de classe e cor. O
discurso de serviço implicava tal prática. Como já foi visto, esse discurso viria acompanhado de um
esforço transformador a partir de políticas públicas, em que neste trabalho prioriza-se pelos de âmbito
pedagógico.
Penso que alguns conceitos mobilizados no campo do discurso podem ser articulados ao
exemplo mostrado. Principalmente no que tange ao discurso como ruptura, como fator de mudança
social. Pelo exemplo, pela polícia ser uma instituição bem nítida de controle do Estado a partir do
monopólio da violência, pode-se perceber mais claramente o caráter de discurso enquanto prática no
sentido de Norman Fairclough, tanto o discurso de ruptura como o vigente (força pública). A partir
das contribuições de Foucault ao se pensar o discurso enquanto prática, Fairclough elabora sua visão
tridimensional. Nesse sentido, o discurso é construído enquanto “texto, prática discursiva e discurso
social” (2008, p.89).
Ele nunca é individual, mas sim constituído e constituinte envolvendo relações sociais e com
instituições. Assim, o discurso é uma expressão das lutas hegemônicas, em constante articulação e
rearticulação em um empréstimo ao conceito gramsciano que o autor utiliza. Dessa forma, “as ordens
de discurso podem ser consideradas como facetas discursivas das ordens sociais” (p.99). Em
entrevista a Bruno Marques, o Coronel Ubiratan Ângelo afirma que “que mesmo os opositores do
comandante reconhecem que o grande mérito do plano era o de formar “o novo policial na nova PM”
(ibid.).
Isso não significa que o discurso é simplesmente impositivo de forma estrutural. Em suas
implicações ele é forjado de forma dialética; é a expressão criativa do discurso sua potência
transformadora. Segundo o autor, “a prática discursiva é constitutiva tanto de maneira convencional
como criativa: contribui para reproduzir a sociedade (identidades sociais, relações sociais, sistemas
de conhecimento e crença) como é, mas também contribui para transformá-la” (p.92).
Tal potência criativa se origina principalmente na contestação da ordem do discurso vigente,
em sua problematização, como nas relações de gênero por exemplo. Isso significa que a contestação
se produz em uma relação entre micro e macro, em um campo de disputas e negociações de produção
de sentidos, arranjados e rearranjados no processo histórico. Sua dialética é evocada mais claramente
no trecho abaixo:
os sujeitos são posicionados ideologicamente, mas são também capazes de agir criativamente
no sentido de realizar suas próprias conexões entre as diversas práticas e ideologias a que são
expostos e de reestruturar as práticas e as estruturas posicionadoras. O equilíbrio entre o
sujeito “efeito” ideológico e o sujeito agente ativo é uma variável que depende das condições
sociais, tal como a estabilidade relativa das relações de dominação. (p.121).

Dessa forma, Cerqueira e seu núcleo buscavam enfrentar dentro dos limites possíveis uma
“invenção das tradições” como Ivor Goodson (2003) aponta ao propor sua análise construtivista do
currículo, referenciando-se no clássico conceito elaborado por Hobsbawn no que tange à construção
131
dos nacionalismos. Tal invenção se refere a um modelo de formação dado como natural no
policiamento, no caso o da formação guerreira, repressiva e militarizada. Importante ressaltar,
contudo, que Cerqueira não rejeitava o militarismo como um todo. Valores como hierarquia e
disciplina eram valorizados enquanto parâmetros necessários para um melhor funcionamento da
organização. Antônio Carlos Carballo Blanco, oficial PM aposentado e que trabalhou diretamente
com Cerqueira no segundo comando na direção de ensino, nos ajuda a compreender a questão:
Eu me lembro que ele sempre buscava compatibilizar essa característica, extrair o que existe
de melhor no modelo da estrutura militar e tentar compatibilizar essa qualidade ou atributo
com uma visão de uma nova polícia. Então ele nunca abriu mão do modelo de hierarquia e
disciplina pensado enquanto uma concepção de estrutura organizacional. Mas sempre tava
discutindo questões diretamente associadas à ideologia do modelo e principalmente à técnica.
A técnica utilizada pra desenvolver esse novo modelo de polícia. Eu me lembro de algumas
coisas que são clássicas na visão do Cerqueira. Uma delas é dizer que o serviço policial, na
sua essência, ele devia subordinar a ideia de força a ideia de serviço, e não o contrário, como
vemos até hoje (...) e uma outra coisa que a princípio parece tanto quanto paradoxal ao
paradigma militarista é a ideia que ele acreditava que o policial deveria ter autonomia. Ele
dizia que o policial devia ser sujeito da sua própria história, da história de sucesso ou de
fracasso da sua instituição. Por isso ele era muito fã da estratégia de policiamento comunitário.
Porque o policial ta ali mais como também um tomador de decisão, do que apenas um policial
que está cumprindo ordens dentro dessa perspectiva. 305

Assim, uma associação de Cerqueira à discussão atual de desmilitarização da polícia é preciso


ser feita com cautela, visto que o foco de sua crítica e tentativa de ruptura se voltava mais para a
mentalidade e influência da militarização nas propostas de segurança pública vigente, do que na
estrutura da polícia militar. Embora, atuando dentro de uma suposta contradição, ele buscava também
trazer certa autonomia aos seus comandados sem abrir mão dos valores de disciplina e hierarquia. No
Plano Diretor, no que tange às questões educacionais, isso se percebe por exemplo nas diretrizes de
mudança da mesma:
o redimensionamento dos cursos nas áreas de formação e aperfeiçoamento, quer na revisão
dos currículos, quer na revisão dos métodos de ensino, quer na revisão dos conteúdos
programáticos, não se fará sem antes partirem de uma concepção geral que busque
administrar a relação aluno x professor de forma a envolver os alunos no próprio processo de
planejamento de ensino. (2016, p.263).

Em outro momento do plano, agora sobre o objetivo da aprendizagem e a articulação teoria e


prática:
far-se-á de forma a se buscar com que a teoria das Escolas reflita a prática das Unidades
Operacionais, e esta prática reflita aquela teoria. Assim as UOp [Unidades Operacionais]
terão grande participação na formação e no aperfeiçoamento do pessoal e no ajustamento dos
programas de forma a se voltarem tais programas para o que acontece e se faz na Corporação.
A busca da profissionalização deve ser o escopo maior do ensino, entendendo-se ser o
profissional de polícia não só o homem preparado para o policiamento, mas também
conhecedor das técnicas e dos conhecimentos necessários à devida compreensão dos
problemas de segurança pública”. (ibid.)

Em entrevista posterior, Cerqueira resumiria seu sonho de uma nova polícia em contraste com

305
Entrevista concedida ao autor em 25 de setembro de 2019.
132
a velha:
A formação do policial passava a exigir uma nova configuração. Era necessário enfrentar o
ritual militar pessimamente copiado pelos policiais militares, simbolizado nos seguintes ditos:
“soldado não pensa”, “soldado não sente”; ele tem que ser “duro e insensível” para o combate
e “burro” para cumprir ordens sem contestação. A permissão dada era só para agir de forma
robotizada. Esta concepção é que fundamenta a “política da atividade”, de uma atividade
burra, cega, perversa e inconsequente. Percebemos que havia necessidade de mudanças
significativas no treinamento dos oficiais e praças. Dizíamos na ocasião que era necessário
devolver aos policiais a “cabeça” e o “coração” que foram excluídos da sua formação policial.
Era necessário permitir o “pensar” e o “sentir”; era necessário torná-los plenamente humanos.
O agir agora seria uma dimensão de integridade humana. (2001, p.82).

Um policial autônomo, crítico e reflexivo, “sujeito da história”, que se permitisse o pensar e


o sentir. Cerqueira e seu núcleo buscavam humanizar a formação policial, mas também sem abrir mão
de valores caros ao militarismo, provavelmente mais por sincera convicção de que isso seria
compatível do que por uma tática, mas acredito que esse elemento também se fez presente. De
qualquer forma, o choque existiria e foi provocador de fortes resistências em ambos os comandos. E
não só na tentativa de mudança na formação dos praças e oficiais como em medidas que atingiriam o
alto oficialato, como a obrigatoriedade de concurso para ingresso no Curso Superior de Polícia Militar,
como veremos. Antes, contudo, vejamos o que fora feito no campo da formação e da produção de
conhecimento em outras fontes no primeiro comando.

Contexto da prática: a aplicação de “um saber crítico, menos dogmático”


Cerqueira, em relato posterior e se referenciando ao plano diretor, diria que tanto ele quanto
o seu núcleo entendiam que “o ensino teria a grande missão de preparar a corporação para o
atendimento do nosso objetivo-síntese” (2001, p.171). Interpreto que, ainda que em uma escala menor,
o comando atuou em frentes que seriam retomadas no segundo comando, agora com maior amplitude.
No que tange à formação, seriam: incentivo e produção de conhecimento pelos próprios policiais;
intercâmbio com o meio acadêmico, seja a partir da abertura dos quarteis, seja por uma forte política
de patrocínio a viagens de estudo; revisão curricular nas escolas de formação de oficiais e de praças.
No que concerne à produção de conhecimento, destaco principalmente a recriação da Revista
da PMERJ. Quarenta e três anos depois de sua última edição, a produção da revista é retomada, com
sua primeira edição sendo publicada em dezembro de 1983, ainda no seu primeiro ano de comando,
com tiragem de 5 mil exemplares e de distribuição gratuita. Durante a sua gestão, seriam publicadas
seis edições, sendo a última em fevereiro de 1987 contendo um compilado de relatórios das viagens
de estudo dos oficiais para outras corporações policiais do mundo306.

306
As viagens foram para Portugal, Espanha, França, Itália, Dinamarca, Inglaterra, Holanda, Suécia, Alemanha, Estados
Unidos, Japão, Argentina e Uruguai. Na primeira página, um agradecimento a esta “grande conquista dos policiais
militares” ao “Sr. Governador do Estado, Engenheiro Leonel Brizola”, o qual “além de autorizar as viagens, empenhou-
se pessoalmente para viabilizá-las.” Revista da PMERJ, ano 3, nº6, fevereiro de 1987. p.3. In acervo da Coleção Coronel
Cerqueira localizado no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ).
133
A capa da primeira edição, embora não se possa afirmar ser intencional, não deixa de ter
significado: ela registra o Comandante Nazareth Cerqueira, “em revista a tropa logo após receber o
comando do Coronel do Exército Edgar da Silva Pingarilho Filho”307. Um coronel do exército e outro
da polícia, cada qual com sua farda, lado a lado, com o policial recebendo a incumbência de comandar
sua corporação.
A revista fora criada “com o apoio do Secretário de Polícia Militar, Carlos Magno Nazareth
Cerqueira e a colaboração de alguns Oficiais da corporação e jornalistas profissionais que vieram nos
ajudar com a sua experiência” 308 , objetivando “a divulgar, para os mais diferentes públicos, os
conceitos de matérias técnicas de nossos militares e das demais autoridades que tenham a transmitir
seus conhecimentos e experiências de assuntos que se voltem para as peculiaridades da polícia como
instituição-meio na formação da sociedade.”309.Ela celebrava a publicação no mês de dezembro, em
que se encontrava o dia da declaração universal dos direitos humanos, “uma data que muito tem a ver
com a dignidade inerente a todos os membros da família humana.”310
No editorial, escrito por Cerqueira, encontram-se grande parte de suas ideias para o novo
policial e a nova polícia. Segundo ele, a “criação de um veículo, ponto de convergência e difusor de
ideias, de informações”311 em que é imperativo que tal conteúdo seja “pan-disciplinar, qual o nosso
trabalho, se não o quisermos alienado”312, afinal “há muito sabemos, que a produção de segurança
não deve ser vista apenas como um problema de polícia”313. Nesse sentido,
a Criminologia, o Direito, a Sociologia, a Psicologia, a Antropologia, a Administração, a
Ciência Política, a História, principalmente estas, além, é claro, dos assuntos técnicos, hão
de receber atenção de seus cultores na síntese do saber de que necessitamos, sobretudo os
mais jovens. Assim o Comandante-Geral vê esta Revista, assim deseja mantê-la no tempo.314

Produzindo este saber de forma compartilhada e holística, a revista devia ser entendida como
“um serviço prestado à nossa comunidade e todos quantos aqui colaboraram ou vierem a colaborar
devem fazê-lo assumindo uma postura fundamental: a de servidor público”315. Novamente, alguns
eixos centrais do pensamento de Cerqueira para o saber, fazer e ser policial se encontram no edital: o
policial humanizado enquanto servidor, formado a partir da articulação comunitária e sob
conhecimentos que vão além da esfera técnica, encontrando-se principalmente com saberes das
ciências humanas que fogem do binômio judicialização-militarismo.

307
Revista da PMERJ, ano 1, nº1, dezembro de 1983, p.3. In acervo da Coleção Coronel Cerqueira localizado no
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ).
308
Ibid., p.4.
309
Ibid.
310
Ibid.
311
Ibid., p.5.
312
Ibid.
313
Ibid.
314
Ibid.
315
Revista da PMERJ, ano 1, nº1, dezembro de 1983, p.5. In acervo da Coleção Coronel Cerqueira localizado no
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ).
134
Os apontamentos do editorial seriam aprofundados em outro texto do mesmo publicado na
revista, o seu já mencionado depoimento para a CPI das causas da violência urbana. Além deste e de
artigos de cunho técnico, destaco um artigo envolvendo a história da PMERJ, uma seção fixa de
recomendação de livros e o já mencionado texto acerca do CIPOC, “uma experiência que está dando
certo”316, visando divulgar a primeira experiência de policiamento comunitário, criada a partir da
“filosofia de comando do Secretário da Polícia Militar, com relação a humanização do relacionamento
com a comunidade de baixo nível socioeconômico” 317 . Esta “simboliza, com seu pioneirismo, a
interação Polícia Militar e grupo social carente, em contínuo esforço conjugado numa incessante
busca do bem estar social em complementação a manutenção da ordem pública.”318.
Entre outros textos de outras edições, além dos já destacados anteriormente, aponto um que
demonstra ao menos um esforço na corporação de outros policiais preocupados com a formação
policial. Na segunda edição temos o artigo de título “operacionalização de objetivos educacionais”319,
do major Dorasil Castilho Corval. Amplamente baseado numa visão tradicionalista de currículo (não
à toa nas referências bibliográficas se encontra a obra “princípios básicos de currículo e de ensino”
de Ralph Tyler), o autor propõe uma discussão sobre o mesmo afim de se chegar a mencionada
operacionalização de objetivos.
Assim, o currículo é entendido enquanto “um conjunto selecionado de experiências e de
disciplinas, considerado como fundamental para efetivar os objetivos da Escola, o qual deverá ser
vivido pelos alunos sob direção e controle dessa Escola”320. Sua elaboração deve passar por duas
etapas, a “delimitação e descrição dos objetivos a atingir” 321 e “seleção dos meios necessários à
consecução dos objetivos definidos”322.
Apesar do tom pragmático e de certa forma técnico sobre o que consistiria o currículo e seus
objetivos, acho importante ressaltar de qualquer forma a existência de um veículo para discuti-lo bem
como a de um texto sobre o mesmo em um período em que a formação policial tinha tomado uma
importância significativa demonstra uma preocupação de certa parte do oficialato acerca dessa
questão. Contudo, vale ressaltar que o engajamento na produção de conhecimento para a revista era
restrito. Em entrevista a Bruno Marques, Jorge da Silva relata as dificuldades em conseguir
quatro, cinco pessoas que [escrevessem] artigo para a revista. Não é artigo para gente
censurar não. Era ‘manda que a gente publica’. Eram sempre os mesmos escrevendo na
revista. Mas, de qualquer maneira, ela circulava. E uma coisa que a gente fazia era mandar
entregar nos batalhões. (2016, p.271)

316
Ibid., p.27.
317
Ibid.
318
Ibid.
319
Revista da PMERJ, ano 1, nº2, março de 1984, p.9. In acervo da Coleção Coronel Cerqueira localizado no Arquivo
Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ).
320
Ibid.
321
Ibid.
322
Ibid.
135
Acerca do intercâmbio acadêmico, o investimento na abertura dos quarteis para palestras
acontecia desde o início do comando. O boletim da PMERJ de 04 de julho de 1983 menciona acerca
da organização de um ciclo de palestras no auditório do QG da PMERJ. Seriam cinco conferencistas
abordando temas como “a visão da Igreja sobre violência urbana”323, “violência urbana e o menor”324,
“a ação do governo no controle da violência urbana”325, “visão da justiça enfocando influências dos
sistemas políticos sobre a violência urbana” 326 e “A violência institucional”327, do já mencionado
professor Wilson Moura.
De acordo com o relatório de atividades desenvolvidas no primeiro comando, na sessão
“seminários, ciclos de estudos e outros eventos”328, percebe-se um esforço tanto em trazer a academia
para os quarteis quanto em incentivar os próprios policiais a produzirem conhecimento, como vimos
com a revista da PMERJ e no incentivo às viagens de intercâmbio. Também fora ofertado um curso
de Administração de Segurança Pública a nível de pós graduação para oficiais e delegados de polícia
(2001, p.171) No que tange às palestras temos a realização de um II ciclo de estudos sobre segurança
pública, além do primeiro já mencionado e dando prosseguimento aos trabalhos realizados nesse,
tendo como objetivo “estudar o aspecto operacional de emprego da Corporação a partir da realidade
do trabalho desenvolvido no dia a dia da manutenção da ordem pública” 329. Também se realizou um
“seminário de estudos jurídicos sobre segurança” 330 além de um “encontro com a comunidade
negra”331 no palácio Guanabara.
Além disso, Íbis Silva Pereira, aluno da escola de formação de oficiais no primeiro comando
de Cerqueira, as palestras ofertadas na escola eram uma política do comando. Segundo o próprio
Nas sextas feiras nós tínhamos normalmente um tempo reservado para as palestras. Porque o
currículo da academia é muito longo, muito extenso. Em três anos com aula começando 06:30
até 17h, todo dia. Você tem educação física, parada, e depois é sala de aula até meio dia. Você
não tem essa mudança de uma hora pra outra, você tem que mudar aos poucos. Então essa
mudança foi progressiva. Agora, as sextas feiras nós tínhamos palestras muito interessantes.
Pra você ter uma ideia, até o César Maia [secretário de fazenda na época] ia lá dar palestra
pra gente. A questão era essa: o cadete entender seu lugar dentro do Estado, dentro de um
estado que estava tentando se reinventar. Pensando a segurança pública para além da
atividade policial, então você tinha uma dimensão política da segurança pública. 332

Creio que, para além de uma produção de conhecimento interdisciplinar, o objetivo do

323
Boletim da PMERJ nº91, p.4. Disponível em https://sites.google.com/site/tenhoquasetudopmerj/ , acesso em
07/12/2019.
324
Ibid.
325
Ibid.
326
Ibid.
327
Ibid.
328
Relatório das atividades desenvolvidas na gestão do Cel Carlos Magno Nazareth Cerqueira. Polícia Militar do
Estado do Rio de Janeiro, Estado-Maior e APOM, março de 87, p.36. In acervo da Coleção Coronel Cerqueira
localizado no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ).
329
Ibid., p.37.
330
Ibid.
331
Ibid.
332
Entrevista concedida ao autor em 30 de agosto de 2018.
136
comando com tal abertura passava por um trabalho de “relações públicas” ao buscar melhorar a
imagem da corporação perante a população. No relatório, vemos medidas que vão da criação de uma
quinta parte do boletim da PMERJ dedicada à comunicação social333, com o propósito de “estabelecer
um canal de comunicação direta do Comandante-Geral com todas as policias-militares” 334 até a
criação de uma revista em quadrinhos para estudantes de toda a rede escolar de primeiro grau, a “RP-
500”335, a qual pretendia “divulgar as diferentes formas de policiamento da corporação, destacando
pormenores técnicas do serviço, competência e missão da PM, e procurando enfatizar o lado humano
e familiar do policial-militar”336.
Além disso, a produção de filmes institucionais sobre a polícia na TV Globo e a participação
no programa “Globo-Shell profissões” afim de promover “a valorização da profissão policial-militar,
a divulgação, a nível nacional, de pormenores da profissionalização do PM, o esclarecimento à
opinião pública da área de competência dos policiais-militares” 337 são medidas que podem ser
inseridas nesse rol.
Por fim, no que concerne às mudanças de ensino-aprendizagem nas escolas, percebe-se um
esforço, tanto na escola de formação de oficiais quanto no curso de formação de soldados, em articular
teoria e prática de saberes policiais específicos. Para a formação dos praças, aponta-se que “foi
desenvolvido um outro método de formação com o objetivo de atender à diretriz de conciliação da
teoria e da prática” (2001, p.172), em seis meses, divididos em três fases bimestrais. A metodologia
seria a seguinte:
As 1ª e 3ª fases (teórica e técnica) foram realizadas na escola; a 2ª fase foi desenvolvida nas
unidades operacionais onde o recruta policial viu e praticou o policiamento. O objetivo era
propiciar aos alunos, na fase inicial, o conhecimento básico para a atuação policial; na
segunda fase, que eles vissem como esses conhecimentos eram praticados e aprendessem
com os policiais mais antigos a arte do policiamento; na terceira fase, a escola, as unidades
operacionais e os alunos fariam uma avaliação teórica e prática do que estava sendo ensinado
nos cursos e o que se praticava nas unidades operacionais. (ibid.).

Para a escola de formação de oficiais, além do enfoque durante a formação teórica dos dois
primeiros anos nas “provas discursivas, realização de trabalhos em grupos e utilização da avaliação
como meio de reforçar a aprendizagem”338 implementou-se um estágio nas Unidades Operacionais
(UOp) no terceiro e último ano de formação. Esta, com o objetivo de “fornecer ao futuro oficial a
indispensável familiarização com as principais atividades desenvolvidas pela corporação” 339 fora
uma espécie de residência para os oficiais que estariam prestes a se formar. Íbis Silva nos relata uma
experiência acerca do estágio:

333
Relatório das atividades desenvolvidas na gestão do Cel Carlos Magno Nazareth Cerqueira, Op. Cit., p.61.
334
Ibid.
335
Ibid.
336
Ibid.
337
Ibid., p.62.
338
Relatório das atividades desenvolvidas na gestão do Cel Carlos Magno Nazareth Cerqueira, Op. Cit., p.48.
339
Ibid.
137
Eram várias estações de polícia. Nós simulamos diversas ocorrências e tivemos que
encaminhar essas ocorrências para uma delegacia que foi inventada dentro da academia, em
que nós éramos avaliados pela nossa compreensão desse local de crime e a partir dessa
compreensão a condução da ocorrência, isso era uma novidade. O estágio [antes] era o de
sobrevivência em Ilha Grande, Ribeirão das Lajes, que era o grande medo de todos os cadetes
porque muitos voltavam machucados.

A despeito da escassez de fontes no que tange a uma análise comparativa sobre as mudanças
nas grades curriculares, da então escola de formação de oficiais e do curso de formação de soldados,
bem como de suas ementas, podemos tentar deduzir algumas conclusões. Utilizaremos como base a
partir do que fora pesquisado sobre a filosofia do comando, pelas entrevistas e do que fora encontrado
nos relatórios. Segundo Íbis Silva Pereira, a principal mudança nas grades curriculares fora no sentido
da retirada de disciplinas que tinham a ver com o fazer militarizado:
Por exemplo, quando eu entrei eu tinha uma matéria chamada “defesa interna e defesa
territorial”. Eu entrei no dia primeiro de fevereiro de 1983. Essa matéria foi retirada do
currículo, eu tive duas ou três aulas. O Cerqueira assumiu o comando em 83, fevereiro de 83,
interinamente. A partir do Brizola ele efetiva o Cerqueira em março. Então a primeira matéria
que saiu do currículo foi essa, “operações de defesa interna e defesa territorial”, que era a
matéria mais nitidamente vincada pela perspectiva do emprego da polícia na defesa interna,
precedendo o emprego das Forças Armadas. Porque a DSN tinha essa perspectiva, né, de
aliar desenvolvimento e segurança pública. Então, se há uma perturbação a ordem, há uma
ameaça ao desenvolvimento, há uma ameaça aos objetivos nacionais permanentes e há uma
ameaça ao Estado. E essa ameaça tem níveis de enfrentamento, e quando a coisa vai se
agudizando pro conflito bélico, as polícias, sobretudo a polícia ostensiva, polícia militar,
antecedia o emprego do exército, dentro de uma perspectiva militarizada. Daí a disciplina
operações de defesa interna e territorial, que incorporava noções de guerrilha, de
mobilizações da tropa no terreno, terreno urbano e rural. A gente tinha treinamento pra isso,
para que caso houvesse um foco nesses lugares a polícia pudesse antecipar o emprego das
Forças Armadas. O Brizola assumiu e o Cerqueira acabou com isso. Eu tive duas aulas desse
negócio, e aí o professor desapareceu, graças a Deus, sumiu. Ele transformou essa disciplina,
jogou pro terceiro ano como estágio de policiamento. Então a partir do primeiro ano a gente
começou a fazer estágio de policiamento, no final do meu primeiro ano eu já fiz um estágio
de policiamento ostensivo e no terceiro ano nós fizemos um estágio mais voltado para a área
de segurança pública, estágio em batalhões para aprender o trabalho policial no dia a dia, mas
fora dessa perspectiva de guerra revolucionária.340

Carballo, que entrara na escola de formação de oficiais em 1984, um ano depois do ingresso
de Íbis, mencionou o acesso à literatura policial específica durante a sua formação:

Durante esse período de formação já começamos a ter, já nesse período de 3 anos acesso a
literatura diferenciada. Trabalhos que foram desenvolvidos na década de 50 nos Estados
Unidos, O.W. Wilson e passando por outros autores que já tratavam dessa questão da polícia
comunitária como José Maria Rico, Luis Salas, catedráticos conceituados, Antonio Garcia
Pablos de Molina da Universidade de Madrid. Outros conceitos foram agregados ao currículo
do curso de formação de oficiais. Criminologia, a própria sociologia passou a ganhar espaço
dentro do campo do currículo. Então isso já era um reflexo do comando do Cerqueira. Então
esse foi meu primeiro contato com Cerqueira, quando essas disciplinas começaram a figurar
muito no currículo e eu como aluno tive acesso a alguns conhecimentos que até então não
eram cogitados, eram tratados de uma perspectiva dogmática e acrítica, porque você não
poderia criticar nada. Professor tinha status de major pra você ter uma ideia. Aquilo que o
professor ou o militar responsável dizia era verdade absoluta. E a possibilidade de refutar era
algo muito temerário.341

340
Entrevista concedida ao autor em 30 de agosto de 2018.
341
Entrevista concedida ao autor em 25 de setembro de 2019.
138
Se no relatório de gestão do primeiro comando só temos uma menção à revisão curricular,
mas sem especificar quais mudanças, no relatório de atividades do ano de 1986 temos uma relação
com as disciplinas ofertadas na escola de formação de oficiais. Seriam elas:

Introdução à Ciência do Direito, História da PMERJ, Português, Inglês, Metodologia da


Pesquisa, Medicina Legal, Direito Penal, Direito Civil, Direito Penal Militar, Direito
Administrativo, Direito Constitucional, Sociologia, Psicologia, Direito Processual Penal
Militar, Estatística, Estudo de Problemas Brasileiros, Comunicação Social, Direito
Processual Penal, Informações, Operações de Defesa Interna e Defesa Territorial, Educação
Física Militar, Tiro Policial, Legislação Básica para a PMERJ, Instrução Geral, Instrução
Policial a Cavalo, Ordem Unida, Técnica Policial Militar, Armamento, Comunicações,
Segurança Física de Instalações e Dignatários, Primeiros Socorros, Administração Geral,
Metodologia e Técnica de Ensino, Criminalística, Criminologia, Defesa Civil, Informática e
Chefia de Liderança342

Acerca das disciplinas oferecidas no curso de formação de soldados, o quadro343 é mais detalhado:

Matérias ministradas 1ª Fase 2ª Fase 3ª Fase


Primeiros Socorros 1 - -
Ordem Unida 2 - 1
Educação Física 3 - 2
Defesa Pessoal 4 - 3
Legislação 5 - -
Técnica Policial Militar 6 1 4
Relações Públicas e Humanas 7 - -
Comunicações - - 5
Armamento e Tiro - - 6
Caderno de Desempenho - - 7
Práticas Operacionais - - 8

Embora não especifique o que seriam os números relacionados às disciplinas, percebe-se,


além da preponderância por disciplinas acerca de um fazer policial uma preocupação com a relação
polícia-sociedade em matérias como “Relações Públicas e Humanas” e “Comunicações”. Como
vimos, fora uma tônica do comando a busca por uma melhora da imagem da PM com a sociedade.
Como o praça seria o policial “de ponta”, que estaria efetivamente nas ruas, faz sentido a presença de
tais disciplinas, algo não tão visto na grade dos oficiais, em que vemos aparecer apenas uma,
“comunicação social”.
Ainda sobre as matérias da escola de formação de oficiais, se é possível constatar a presença
da disciplina mencionada por Íbis em seu depoimento, o que seria supostamente uma contradição,
deve-se ressaltar, contudo, que por essa fonte não existe uma divisão das disciplinas por ano,
tampouco sua carga horária. Assim, é possível que a matéria tenha passado, como também
mencionado pelo mesmo, por uma transformação no terceiro ano, apenas mantendo o nome. Nesse

342
Secretaria de Estado de Polícia Militar. Relatório anual, 1986, p.73. In acervo da Coleção Coronel Cerqueira
localizado no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ).
343
Ibid., p.77.
139
sentido, também vemos disciplinas mencionadas por Carballo, como sociologia e psicologia. Por fim,
um depoimento de Carballo é bastante elucidativo sobre o período:

Coincidentemente o Cerqueira tava entrando, e tava entrando justamente com esse propósito,
de trazer inovações, de romper com esse modelo mais arcaico, de tornar a metodologia de
ensino uma metodologia muito mais voltada pra um saber crítico, menos dogmático. Só que
isso demora a acontecer, demora muito a acontecer. Então você imagina que os meus três
primeiros anos foram anos de bastante instabilidade do ponto de vista das orientações
dogmáticas muitas vezes não decoradas por parte até do oficialato da academia que fazia uma
espécie de vista grossa pro que acontecia no ambiente escolar em todas as suas arbitrariedades
e também com o que estava chegando em termo de proposta de inovação. Então havia ali um
ambiente de instabilidade. Então houve uma mudança no comando da escola. Esse comando
a gente percebe, se a gente para pra pensar e analisar friamente, o comando que entrou ele
tinha uma proposta diferenciada daquela que até então vinha sendo conduzida, mas ao mesmo
tempo as resistências internas impediam um avanço mais sério dessas mudanças. E foi assim
durante os 3 primeiros anos da minha carreira até que 87 eu saí oficialmente da academia, na
época não se chamava academia, se chamava escola de formação de oficiais. 344

Carlos Nobre, autor mencionado no capítulo 2, denomina o primeiro comando de “ação de


experimentação” (2010, p.82), tanto por se referir a uma falta de aprofundamento nas ações que teriam
mais concretude no segundo comando quanto por “também uma certa cautela na condução de
tentativas de mudanças em setores profundamente hostis“(p.83) em relação ao contexto de
imprevisibilidade causada pela transição vivido. Bruno Marques também remeteria a tal termo ao
designar o tópico sobre o primeiro comando como de “experimentos e incertezas” (2016, p.290).
Embora concorde principalmente com o primeiro argumento de Nobre, creio que
experimentação remete a uma relação com o segundo comando que naquele momento não era
possível a Cerqueira saber se teria tal oportunidade. Assim, no momento de sua realização, o primeiro
comando era o momento possível de Cerqueira implementar as mudanças, que, se não tiveram um
alcance abrangente e muitas vezes ficaram restritas ao oficialato, como o próprio Cerqueira afirmaria
posteriormente345, não deixaram de ser variadas.
Talvez a questão resida no próprio repertório de conhecimentos que Cerqueira e seu núcleo
estavam angariando naquele período. Principalmente Cerqueira, que volta ao segundo comando após
uma experiência enquanto gestor público que esteve em contato com os mais diversos movimentos e
entidades representativas da população. Não só com eles, mas com o próprio PDT, o qual se interessa
pelas questões do partido paulatinamente, a ponto de estar filiado ao final da sua vida. Tal
aprofundamento, tanto no conhecimento de questões policiais quanto de políticas e ideológicas seria,
ao meu ver, o ponto de mudança para o segundo comando.
De qualquer forma, creio que o ponto nodal para se entender Cerqueira enquanto um pedagogo
de direitos humanos - a relação polícia-sociedade a partir do policiamento comunitário - estiveram

344
Entrevista concedida ao autor em 25 de setembro de 2019.
345
Em entrevista a Rebecca Reichman de novembro de 1992, Cerqueira reconhecera que “eu acho que cometi esse erro
na gestão anterior [referindo-se ao primeiro governo], a gente investia muito nos oficiais e pouco nos soldados, na
crença de que eles, como comandantes, saberiam conduzir os policiais, mas os policiais estão trabalhando sempre
sozinhos, sem um oficial por perto.” (2001, p.28)
140
presentes no primeiro comando e foram aprofundados no segundo. Como aponta Kant de Lima (2007),
mais do que a nomenclatura ou as mudanças nas grades curriculares, o que é mais importante na
formação policial é a inflexão em suas práticas no cotidiano, ainda mais considerando o tamanho do
contingente de praças espalhados pelo estado (aproximadamente trinta mil) e o curto tempo de
formação. Nesse sentido, o primeiro comando, apesar da preocupação em aliar teoria e prática,
circunscreveu-se mais ao campo de produção do conhecimento ao meu ver, com a experiência mais
próxima de policiamento comunitário sendo o CIPOC. Este cenário seria diverso no segundo
comando, quando ele comandou “como se só tivesse aquela oportunidade” (LEAL, PEREIRA,
MUNTEAL FILHO, 2010, p.108), nas palavras do coronel Ubiratan.

141
Capítulo 5: “A “guerra contra o crime” não pode ser uma guerra contra as classes mais
humildes” - segundo comando, aprofundado e triplamente ferido

Contexto de influência: Retornos e acirramentos

Brizola voltaria ao governo estadual em 1991 para o seu segundo mandato, novamente pelo
PDT. Nesse ínterim, seu candidato escolhido ao pleito estadual de 1986, Darcy Ribeiro, perdera para
Moreira Franco, agora pelo PMDB em aliança com 12 partidos. Fatores que envolviam tanto a
conjuntura nacional quanto estadual foram determinantes para a derrota do então partido da situação
(SENTO-SÉ, 1999). No âmbito nacional, o Plano Cruzado do governo Sarney, conjunto de medidas
econômicas, porém principalmente marcado pelo congelamento de preços, gozava de popularidade
pelo seu efeito imediato. Se para Moreira Franco isto fora benéfico por ser do mesmo partido do
governo federal, para Brizola, que desde o lançamento fora um dos poucos críticos o impacto seria
negativo. Nas eleições de 1986 o PMDB, além de Moreira Franco, elegera governadores em todos os
estados da federação, com exceção do Sergipe, além da maior bancada da Câmara (REIS, 2014,
p.108).
É no que concerne ao plano estadual, contudo, que se mostram críticas que acompanhariam
Brizola para o resto de sua trajetória política. Principalmente no campo da segurança pública, o que
acabaria afetando Cerqueira também. Nesse âmbito, segundo Sento-Sé, ocorre uma mudança no
quadro de críticas a Brizola, pois, “Se em 82 eram acenados os fantasmas da subversão e do golpismo,
agora, o grande símbolo do “perigo brizolista” residia na marginalidade, no apelo às invasões, na
desordem, enfim, que as posições e propostas brizolistas traziam embutidas, gerando uma atmosfera
de insegurança e instabilidade em todo o estado” (1999, p.257). As denúncias de ligações com o crime
organizado e o jogo do bicho, em conjunto com denúncias de corrupção em outras áreas do governo
dariam a sensação de insegurança e conivência com o crime.
Não à toa, um dos motes na campanha de Moreira Franco seria o de acabar com a
criminalidade em seis meses, evocando um retorno a uma política de segurança pública repressiva.
De fato, ocorre um retorno a tal política, sem, no entanto, trazer qualquer resultado. Os índices de
criminalidade seriam iguais ou em alguns quesitos maiores do que o de seu antecessor. (SOARES E
SENTO-SÉ, 2000)
Tal promessa seria motivo de crítica e ironia de Cerqueira ao assumir o segundo comando.
Crítica às “grandes operações repressivas”346 que “apenas incomodavam os moradores das favelas e
substituíam um traficante por outro”347. O comandante prezaria por “investigações preliminares, sem

346
PM diz que tentará prender “Fabinho”. O Globo, 24 de abril de 1991, p.13. A declaração geraria polêmica pois logo
em seguida Cerqueira disse que iria continuar fazendo “nossas operações tentando dar respostas à criminalidade, mas sem
essa mania de achar que vamos acabar com o crime”. A fala foi mal recebida pelo jornal e por deputados da oposição,
que viram como uma diminuição do papel da polícia no combate ao crime.
347
Ibid.
142
grandes aparatos” 348 em operações de prisão de traficantes. Ironia, pois, ao saber das fotografias
publicadas pelo O Globo de bocas-de-fumo nos morros do Pavãozinho e Borel, se disse “surpreso
porque pensei que todos os bandidos estivessem presos em Bangu I”349.Moreira terminaria o mandato,
segundo pesquisa Ibope como “o governador mais impopular de todo o país. Ao longo de sua
administração, o governador, já então no PMDB, foi várias vezes posto sob suspeita de corrupção e
viu o problema da criminalidade, que a rigor mostrava um aumento preocupante já no último governo
de Chagas Freitas, ser alçado à condição de prioridade pela população”(SENTO-SÉ, 1999, p.235).
Brizola, que voltara a ganhar popularidade a partir do fracasso do denunciado Plano Cruzado,
perderia a chance de ir ao segundo turno das eleições presidenciais de 1989 por uma diferença
mínima350 de votos com relação ao segundo colocado, Luiz Inácio Lula da Silva. Entretanto, a sua
expressiva vitória no estado do Rio de Janeiro, bem como sua maciça transferência de votos para Lula
(MOTTA, 2008, p.171) ao declarar apoio ao candidato petista no segundo turno já eram indícios de
que o gaúcho possuía um fôlego eleitoral mais do que suficiente para vencer em terras fluminenses.
Assim acontece: Brizola vence no pleito estadual de 1990 ainda no primeiro turno, com 60,88% dos
votos válidos (SENTO-SÉ, 1999, p.232).
Empossado em março de 1991, Brizola indica novamente Cerqueira para o posto de Secretário
de Polícia Militar. O cenário agora é diverso, tanto na vida política do país quanto na sua: se no
primeiro comando Cerqueira, que era preferência entre a corporação para assumir o posto, vinha,
apesar da fama de criador de casos e de suas respectivas punições de uma carreira ascendente na
instituição, em que o comando-geral era um caminho provável, agora ele era um oficial na reserva
após um primeiro comando divisivo.
Nesse sentido, sua recolocação na corporação como comandante fora motivo de revolta do
oficialato e um dos primeiros pontos de resistência ao segundo comando. E isto tanto pela divergência
ideológica quanto por se sentirem desvalorizados pela escolha de um oficial que não estava na ativa.
Chega a ser notícia no Globo a prisão disciplinar de um Coronel da PM que se recusou a comandar o
desfile da polícia na parada de sete de setembro, em protesto pela escolha de Cerqueira. Segundo a
reportagem:
Em recurso enviado em junho à Procuradoria Geral do Estado, à Procuradoria Geral da
Justiça e à Defensoria Pública, o Coronel Portella questionara a legitimidade do comando de
Cerqueira, que, por ser da reserva, não deveria, segundo o Estatuto da PM, assumir o cargo
de Secretário de Polícia Militar, salvo se na ativa não houvesse oficial da mesma patente
capacitado.351

Se na corporação Cerqueira encontrava-se aposentado, nesse meio tempo ele continuou ativo.

348
Ibid.
349
Ibid.
350
O candidato do PT recebera 11.622.673 votos, 16,69% do total, enquanto o gaúcho alcançara 11.168.228 das escolhas
ou 16,04%. Uma diferença de 0,65%, portanto. Disponível em
https://sites.google.com/site/atlaseleicoespresidenciais/1989 , acesso em 17/12/2019.
351
CORONEL é preso por não participar da parada. O Globo, 10 de setembro de 1991, p.12.
143
Desde a saída do primeiro comando em março de 1987, Cerqueira participou de seminários 352 ,
reeditou o artigo “psicologia da corrupção” e participou da prefeitura de Marcelo Alencar como
“assessor especial do gabinete do prefeito”353, coordenando projetos como levantamentos acerca da
situação de menores carentes354. Além da já mencionada entrevista ao Museu da Imagem do Som.
Seu trabalho - embora breve pois logo ingressaria no secretariado do governo brizolista –
como assessor do então pedetista Marcelo Alencar seria mais um indício da aproximação de
Cerqueira com o partido, algo que se consolidaria com sua filiação ao PDT nesse período e
participação na elaboração das propostas no campo da segurança pública para a campanha (SILVA,
2016, p.323) .

Contexto de produção do texto: quando as rupturas se aprofundam


Logo no início, nos “princípios básicos” já se podem perceber as marcas do então ex-
secretário na formulação. Em trechos como “implicar a comunidade na gestão da segurança
pública” 355 , “privilegiar a atuação preventiva” 356 , “impedir toda intervenção policial ilegal ou
abusiva”357 e “tornar os serviços policiais acessíveis a todos, reduzindo a desconfiança ou decepção
com relação a eles por parte das camadas populacionais mais carentes”358 vemos a retomada de pilares
da concepção de Cerqueira para a segurança pública como o policiamento comunitário e preventivo
em detrimento do repressivo e a polícia enquanto serviço público, além do aprimoramento na relação
da polícia com a população, principalmente os mais pobres. Talvez (e também talvez pela sua relação
cada vez mais próxima com o partido) aqui esteja uma inflexão em seu pensamento ao destacar as
“camadas populacionais mais carentes” em vez da visão mais holística e de tratamento policial sem
distinção de classe, como era mais evocado no primeiro comando. Contudo, vale ressaltar que o
documento é fruto de uma elaboração coletiva.
A aproximação com o meio acadêmico também é retomada na proposta de criação de “um

352
“Quarto Seminário do Grupo de Trabalho – Direito e Sociedade Conselho Latino Americano de Ciências Sociais
(CLACSO) – Criminalidade, Polícia e Cidadania em setembro de 1987; “Seminário Internacional de Direito Penal,
Criminologia e Direitos Humanos. Mortes Anunciadas – A (Des) Proteção da vida na América Latina.” Em dezembro de
1988, localizado em Salvador; “Os Direitos dos Menores na Nova Ordem Constitucional” em que participou como
“membro da Comissão Especial destinada a elaborar recomendações para proteção da infância e da adolescência no Brasil”
em 1988 e “O Adolescente Infrator” seus Direitos numa visão Sócio-Educativa” em julho de 1989, ambos na FUNABEM.
Por fim, participou do seminário – “Justiça e Segurança Pública – OAB” em Natal, 1988 e no “Seminário nacional sobre
controle da criminalidade violenta” em Goiânia, outubro de 1989. Curriculum Vitae de Carlos Magno Nazareth
Cerqueira. In acervo da Coleção Coronel Cerqueira localizado no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ).
353
Curriculum Vitae de Carlos Magno Nazareth Cerqueira. In acervo da Coleção Coronel Cerqueira localizado no
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ).
354
MARCELLO promete que fará levantamento sobre menor carente. Jornal do Brasil, 24 de fevereiro de 1990, p.10
355
Minuta do programa para as áreas de justiça e segurança pública: tópicos para debates preliminares – IV
Segurança pública. In acervo da Coleção Coronel Cerqueira localizado no Arquivo Público do Estado do Rio de
Janeiro (APERJ).
356
Ibid.
357
Ibid.
358
Ibid.
144
Centro de Estudos da Violência, para o desenvolvimento de pesquisas que orientem as políticas de
segurança pública.” 359. Na relação com a comunidade e na evocada “reeducação”, a proposta de
“promover campanhas educacionais, por via publicitária ou nas escolas, sobre questões que o
requeiram, tais como segurança no trânsito (...) e drogas” 360 . No campo da formação policial, a
proposta é de “estabelecer programas de reciclagem para o pessoal da área da segurança pública,
reformulando radicalmente os currículos dos órgãos encarregados de sua formação, mantendo estreito
relacionamento com a UERJ e outras instituições universitárias.”361.
No boletim da PM de 27 de março de 1991, vemos uma das primeiras medidas: a retomada
do grupo de pares, agora sob nome de “representação de pares” 362. Abrangendo oficiais e praças,
“possibilitando que todos sejam e sintam-se participantes e responsáveis pelos destinos da
Corporação” 363 . Também é interessante perceber nos objetivos a conciliação com os valores de
disciplina e hierarquia, visto que tal proposição poderia “fortalecer um dos princípios fundamentais
da chefia e liderança que é a confiança recíproca entre comandantes e comandados”364, bem como “a
disciplina consciente que tem por base a responsabilidade assumida por todos de cumprir os seus
deveres e ver respeitados os seus direitos.”365. Assim, novamente percebe-se que o Comando tentaria
articular um projeto de maior abertura e democracia internas, mas sem abrir mão de valores caros à
organização militar.
Já no boletim de 10 de abril estão postas as “diretrizes operacionais do comandante-geral”366.
Espécie de micro plano diretor para o segundo comando, o documento se dividia entre um
direcionamento teórico denominado de “princípios gerais”367 – bastante semelhante com o programa
de campanha para a segurança pública - e uma projeção de aspectos práticos denominada “programas
operacionais”368. Entre os objetivos, a perspectiva de “redefinir as bases teóricas para o treinamento
e a reciclagem.” 369 . No que concerne aos programas operacionais, ele é dividido em 11 partes:
“Integração e articulação operacionais”370; “Integração e articulação comunitárias”371; “Programa de
defesa dos direitos da criança e do adolescente” 372 ; “´Programa de proteção ao cidadão” 373 ;

359
Ibid.
360
Ibid.
361
Ibid.
362
Boletim da PMERJ nº9, p.34. Disponível em https://sites.google.com/site/tenhoquasetudopmerj/ , acesso em
10/12/2019.
363
Ibid.
364
Ibid.
365
Ibid.
366
Boletim da PMERJ nº17, p.9. Disponível em https://sites.google.com/site/tenhoquasetudopmerj/ , acesso em
10/12/2019.
367
Ibid., p.10.
368
Ibid., p.11.
369
Ibid., p.10.
370
Ibid., p.11.
371
Ibid.
372
Ibid.
373
Ibid.
145
“Programa de proteção ao turista” 374 ; “Programa de proteção da Rede Bancária” 375 ; ”Programa
“Segurança de Trânsito””376; “Programa de “Prevenção e repressão ao tráfico de entorpecentes”377;
“Programa ”Meio Ambiente”378; “Programa “Ensino e Pesquisa”379 e “Programa de “Redução da
Violência Policial”380.
Destaco especialmente o último tópico pois acredito que uma das diferenças principais entre
o primeiro e o segundo comandos é um enfoque maior dado ao problema da violência policial. Se no
primeiro acredito que partia mais enquanto inserida dentro da proposta do governo pedetista e, sim,
alinhada com o pensamento de Cerqueira sobre prevenção, mas ainda de forma não tão aprofundada,
no segundo a violência policial é um tema apropriado por Cerqueira e seu núcleo de forma mais
concreta. De um modo geral, as proposições, ao meu ver, transparecem nas medidas próprias de
policiamento comunitário mais diversificadas e concretas com relação ao primeiro.
Isso não deixa certamente de estar alinhado com o novo contexto, pois se antes ainda se vivia
em uma imprevisibilidade de transição democrática, no segundo encontra-se com a mesma em pleno
funcionamento institucional. Bem como com a promulgação de uma Constituição promulgada em
1988, a “constituição cidadã”, que não deixa de trazer um respaldo legal para as ações do comando
inseridas em um oficial Estado democrático de direito.
A intenção em deixar claras as diretrizes da forma mais abrangente possível pode ser
constatada ao encontrar documentos como o “Código de conduta para funcionários encarregados de
fazer cumprir a Lei”381, resolução baixada pela Secretaria de Estado de Polícia Militar de setembro
de 1991. Em forma de livreto, como um manual, tal código era relacionado ao elaborado pela
Assembleia Geral das Nações Unidas de 1979. Nela se encontram normas que se baseiam no respeito
aos direitos humanos, como a de que “os funcionários encarregados de fazer cumprir a lei respeitarão
e protegerão a dignidade humana e, manterão e defenderão os direitos humanos de todas as
pessoas.”382.
Em reportagem de O Globo, o código se inseria num “Programa de Redução da Violência e
Corrupção Policial” 383 elaborado pela vice-governadoria do Estado, a qual era exercida por Nilo
Batista384. Além do código, estavam previstas a “criação de um comitê de queixas nos batalhões e a

374
Ibid.
375
Ibid.
376
Ibid., p.12.
377
Ibid.
378
Ibid.
379
Ibid.
380
Ibid.
381
In acervo da Coleção Coronel Cerqueira localizado no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ).
382
n.p., ibid.
383
CAMPANHA combaterá PM's corruptos. O Globo, 31 de julho de 1991, p.11.
384
No primeiro governo Nilo Batista assumiu a secretaria de Polícia Civil em julho de 1986 no lugar de Arnaldo Campana,
afastado no cargo após denúncias de envolvimento com a máfia dos caça-níqueis. No segundo mandato de Brizola, além
de vice-governador, Nilo Batista acumularia a Secretaria de Justiça e Polícia Civil. Para mais detalhes, ver
http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/batista-nilo , acesso em 03/01/2020.
146
articulação com grupos de defesa dos direitos humanos.” 385 . Procurado pela reportagem, o vice-
governador comentaria que “é um dever da administração tentar reformular a formação do policial”386.
Nilo e Cerqueira se aproximaram na primeira gestão brizolista e manteriam uma relação de amizade
até a morte do ex-comandante. Após o segundo comando, os dois fundariam em conjunto o Instituto
Carioca de Criminologia, órgão que será visto posteriormente. Segundo o ex vice-governador:
Os direitos humanos eram a sua grande preocupação, tanto que, na oportunidade de elaborar
uma coleção, seu primeiro volume foi destinado a esse tema. Ele via nos direitos humanos
uma grande referência de resistência à ditadura. Na minha vida foi assim. Na vida do
Cerqueira, também. Ele fazia uso dos direitos humanos para produzir rotinas policiais
compatíveis com o Estado de direito, para levar a democratização à instituição policial,
prática esta concomitante ao processo nacional de redemocratização. Os direitos humanos se
constituíram no maior referencial teórico que ele iria discutir e pôr em prática, para desenhar
uma nova instituição policial para um Brasil redemocratizado. (LEAL, PEREIRA,
MUNTEAL FILHO, 2010, p.52).

Nos boletins do primeiro ano, percebe-se o esforço em se atentar para a violência policial
principalmente na quinta parte criada por Cerqueira no primeiro comando, a de comunicação social.
Nela, o comandante reproduz tanto textos de jornais quanto do próprio. Logo no boletim de 03 de
abril, menos de um mês após tomar posse, já encontramos a reprodução de um artigo publicado pelo
próprio no Jornal do Brasil em 26 de março, intitulado “a vida e a morte”. Evocando uma atuação
violenta da polícia de Los Angeles contra um suspeito, Cerqueira aproveitou o ensejo para tecer
críticas ao modelo policial vigente brasileiro, de forma bastante dura até, ao afirmar que “qualquer
observador estrangeiro constatará que tudo está errado com a polícia brasileira”387.
O secretário iria além ao mencionar o recorte de classe no modelo repressivo policial, ao
escrever que num governo democrático, de Terceiro como de Primeiro Mundo, a ““guerra contra o
crime” não pode ser uma guerra contra as classes mais humildes -alvo predileto não só dos marginais
como da polícia arbitrária”388. Também destaco a reprodução de um editorial do Jornal do Brasil de
um mês depois, também bastante crítico à violência policial enquanto método, pois “A violência do
crime e a violência da polícia exercida para combater o crime se equivalem em seus efeitos
nefastos.”389. No mesmo texto, percebe-se uma crítica nas entrelinhas aos seus opositores quando o
jornal aponta para o “imenso espírito corporativo”390 das polícias que impediriam qualquer tentativa
de aperfeiçoamento das mesmas.
Creio que um exemplo de produção de discurso pedagógico enquanto intencionalidade e

385
CAMPANHA combaterá PM's corruptos. O Globo, 31 de julho de 1991, p.11.
386
Ibid. No segundo comando fora criada a Corregedoria Geral da Polícia Militar, diretamente subordinada ao Comandante,
embora apenas no último ano de gestão, 1994.
387
Boletim da PMERJ nº12 de 03 de abril de 1991, p.27.
Disponível em https://sites.google.com/site/tenhoquasetudopmerj/ , acesso em 10/12/2019.
388
Ibid.
389
Boletim da PMERJ nº36 de 08 de maio de 1991, p.22. Disponível em
https://sites.google.com/site/tenhoquasetudopmerj/ , acesso em 11/12/2019.
390
Ibid.
147
ruptura encontram-se sintetizado em texto produzido por Cerqueira no boletim da PMERJ de 13 de
abril de 1992. Sob o título “Polícia Comunitária”391, o texto tinha a pretensão de servir de “material
didático para os policiais militares começarem a conhecer os fundamentos da polícia comunitária”392.
Iniciando com os questionamentos se a polícia comunitária seria um “modismo demagógico? Um
programa progressista de policiamento? Uma nova filosofia operacional? O que é isso? Uma nova
polícia?” 393 o texto reúne um levantamento de ideias e propostas realizadas e formuladas no I
Congresso Internacional da Polícia e Comunidade, realizado em São Paulo, em que estiveram
presentes representantes das polícias dos EUA, Canadá e Inglaterra. O autor destaca, dentre os relatos
trazidos pelos participantes, o caráter de pesquisa científica enquanto “método de avaliação de
práticas policiais fundamentadas em crenças ou teorias que vinham sendo utilizados pelas
organizações policiais sem terem sido testadas.”394. Tal destaque vem acompanhado da necessidade
de se empregar tal método em nossas polícias.
A partir daí, o texto se encaminha para uma relação com a experiência do Rio de Janeiro,
relembrando a primeira gestão e o princípio do plano diretor, acreditando que seus princípios
norteadores eram bastante semelhantes aos que vinham sendo trabalhados no modelo de polícia norte-
americana, introduzindo “ideias básicas da polícia comunitária, embora naquela ocasião não se
soubesse, ainda, desse movimento que começava a ocorrer na polícia americana” 395 . Assim,
novamente evoca-se a ideia de serviço, ou melhor, de “polícia-serviço”396 em contraposição a de
“polícia-força”. 397 Esta “trabalha orientada exclusivamente para o ataque ao criminoso e aos que
transgridem os regramentos legais: essa é a sua clientela”398.
Já a polícia-serviço “trabalha orientada para a proteção de todas as pessoas da comunidade,
buscando servi-la e a ajudando na construção de uma vida social harmoniosa.”399. Nesse sentido
relacional e em diálogo com a população, o policial é mais importante do que “as viaturas, o
armamento e as comunicações”400, sendo o “grande produto dessa nova polícia”401, daí a necessidade
de reforço no treinamento e orientação deste policial. Assim, tendo um contato mais próximo com os
modelos de policiamento comunitário neste segundo comando, Cerqueira termina o texto afirmando
que “é preciso experimentar sem receio de inovações: é preciso discutir e repensar o nosso modelo

391
Boletim da PMERJ nº69 de 13 de abril de 1992, p.05. Disponível em
https://sites.google.com/site/tenhoquasetudopmerj/ , acesso em 14/12/2019.
392
Ibid.
393
Ibid.
394
Ibid., p.21.
395
Ibid., p.22.
396
Ibid., p.24.
397
Ibid.
398
Ibid.
399
Ibid.
400
Ibid., p.25.
401
Ibid.
148
operativo e organizacional adequando-o à nossa realidade histórica e social”402.

Contexto da prática: a escola na polícia e a polícia na escola


Para a formulação e implantação de ideias, suas ou não, o comandante, além de contar com o
Estado-Maior chefiado por Jorge da Silva (também negro), também obtinha o retorno da Assessoria
Técnica de Assuntos Especiais (ATAE)403. Criada em 1984, “contava com um Núcleo de atendimento
ao Menor, outro de Prevenção ao uso de Drogas e um setor de pesquisas” (PEREIRA, 2016, p.215).
No segundo comando, ela é ampliada para “assessoria a coordenação de projetos de modernização
organizacional e desenvolvimento de recursos humanos, principalmente quanto ao treinamento e
qualificação profissional” (ibid.).
Núcleo liderado pelo Coronel Celso Guimarães, descrito por Ubiratan de Oliveira Ângelo –
um dos integrantes da assessoria - como “a metade do cérebro do Nazareth Cerqueira” (LEAL,
PEREIRA, MUNTEAL FILHO, 2010, p.105), a ATAE funcionava enquanto um núcleo de
reorientação da polícia dentro das novas diretrizes operacionais, ou um “laboratório de ideias”(2016,
p.215), na definição de Íbis Silva Pereira. Tal núcleo chegara a elaborar até peças de teatro, como
aponta um dos relatórios de gestão encontrados sobre a “reativação da encenação teatral caminhos”404,
em março de 91:
“Caminhos” é uma encenação teatral que se propõe a ser didática e reflete: as situações
relacionadas aos usuários de drogas em seu contexto familiar, de grupo e escolar. É
desenvolvida pelo NUTID (Núcleo de Prevenção ao uso indevido de drogas) da ATAE
(Assessoria Técnica de Assuntos Especiais) e encenada em escolas do 1º e 2º graus da rede
oficial e particular, clubes e associações. O elenco é composto de sargentos, cabos e soldados
da Polícia Militar.405

Nesse sentido, no acervo do APERJ foram encontradas cartilhas didáticas produzidas pela
ATAE. Por exemplo, a que concernia à medida do “Policiamento comunitário de quarteirão”406 era
simples e objetiva, atendendo à demanda de se aliar teoria e prática. Em um folheto que se desdobrava
em três partes, este era dividido pelos tópicos “O que é?”407, “Objetivos”408, “Como funciona?”409 e
“algumas tarefas do policial comunitário”410. Selecionando policiais “especialmente preparados para

402
Ibid., p.26.
403
A diferença no trabalho do EM para o da ATAE era, nas palavras de Carballo, que “Enquanto o Estado-Maior Geral
prestava o assessoramento organizacional e institucional, a ATAE já era uma espécie de staff do comando-geral, estava
diretamente ligado a ele, que também produzia muito material”. Entrevista concedida ao autor em 14 de outubro de
2019.
404
Realizações da Polícia Militar no ano de 1991. Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, p.1. In acervo da
Coleção Coronel Cerqueira localizado no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ).
405
Ibid.
406
In acervo da Coleção Coronel Cerqueira localizado no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ).
407
n.p. In acervo da Coleção Coronel Cerqueira localizado no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ).
408
Ibid.
409
Ibid.
410
Ibid.
149
a consecução dos objetivos propostos”411, cada policial nessa atuação era responsável por um grupo
de quarteirões de determinada área urbana dos bairros da cidade. O funcionamento se daria assim:
O Policial Comunitário se identifica aos moradores, passando a conhecê-los e a ser conhecido.
Participa ativamente na vida do bairro.
Enquanto realiza o patrulhamento, pratica uma abordagem consultiva junto aos moradores e
segmentos sociais locais (Associações de Moradores, Escolas, Igrejas, Clubes Recreativos,
etc.) levantando os problemas e preocupações que deterioram a qualidade de vida daquela
população no campo da segurança pública.
A par desses dados, busca soluções através de um trabalho com a própria comunidade, a
administração pública da área (Administrador Regional, CEDAE, COMULRB, Rio-Luz,
CET-Rio, Parques e Jardins, LIGHT, etc.) e instituições comunitárias de apoio (ONG´s que
tratam das questões da criança e do adolescente, das drogas, NA, AA, Rotary, Lions, etc.)412

Uma cartilha envolvia outro projeto significativo tanto na questão do policiamento


comunitário quanto no ensino: O Batalhão Escola de Polícia Comunitária (BEPC), “uma escola que
faz policiamento”413 como define o subtítulo. Funcionando no 17º Batalhão de Polícia Militar (Ilha
do Governador), o BEPC fora uma espécie de mistura entre residência, reciclagem e especialização
para policiais, “desenvolvendo simultaneamente funções de ensino/instrução e funções rotineiras de
Polícia Ostensiva, dando ênfase às ações de Polícia Preventiva com base na Articulação
Comunitária.”414.
A escolha pela Ilha do Governador fora feita por Cerqueira pelas características geográficas e
urbanas do bairro que possibilitariam realizar tal empiria. Aproveitando a estrutura do Batalhão, nele
fora implantada a companhia de práticas pedagógicas. Esta, segundo Carballo, seria responsável pela
“realização de cursos, de capacitação dos policiais, e era responsável também pela prática operacional
desses policiais, associando teoria à prática do trabalho” 415 . Na cartilha, no campo “Atuação do
BEPC”, constavam-se os tópicos
- Articulação com a comunidade, objetivando estabelecer parceria nas soluções dos
problemas de Segurança Pública, nela despertando uma consciência comunitária
- Informações pedagógicas para atualização do conteúdo programático dos diversos cursos
da Corporação
- Treinamento em serviço
- Estágio no campo da Polícia Preventiva
- Pesquisas de campo416

Algo semelhante ocorreu com o “Grupamento de Aplicação Prática Escolar” (Gape). Este,
diferente do BEPC que era aberto a qualquer policial, agora é restrito a “policiais recém saídos do
centro de formação ou por policiais de outros cursos e estágios”(CERQUEIRA, 2001, p.182), era um
“grupamento constituído de 150 policiais militares preparados para a missão de prevenir a incidência

411
Ibid.
412
Ibid.
413
n.p. In acervo da Coleção Coronel Cerqueira localizado no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ).
414
Ibid.
415
Entrevista concedida ao autor em 14 de outubro de 2019.
416
n.p. In acervo da Coleção Coronel Cerqueira localizado no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ).
150
de delitos e promover uma articulação comunitária forte que possibilite uma sólida defesa à
dominação criminosa.”417. O trabalho fora realizado em conjunto com a “Operação Paz no Morro”,
de policiamento em favelas e abrangeu as comunidades da “Mineira, Providência, Borel, Andaraí,
Pavão e Pavãozinho” (2001, p.182). Nelas, o grupamento policial atuaria até o momento em que fosse
possível ao batalhão de tais áreas poder reassumir o controle. No que concerne às operações de
policiamento comunitário, estas abrangeram catorze bairros em pequena escala e um batalhão, no
caso o 19º BPM, que envolvem os bairros de Copacabana e Leme, este sim, adotado de forma mais
profunda. Voltaremos a este caso posteriormente.
Além das alterações curriculares nas escolas de formação de praças e oficiais, o campo
formativo policial também fora acrescido de cursos especiais como de policiamento comunitário e o
de “treinamento em direitos humanos para policiais militares, patrocinado pelo centro de direitos
humanos das nações unidas”418. De acordo com o relatório de gestão, o curso era “dividido em dois
módulos, o primeiro destinado a instrutores e monitores das Escolas de Formação e Aperfeiçoamento
na PMERJ; o segundo módulo para Oficiais que atuam diretamente na área operacional.”419, treinando
“27 oficiais da PMERJ, 12 de outros estados, dois delegados da Polícia Civil e 14 funcionários do
sistema prisional” (2001, p.180). Nesse sentido, outro relatório também aponta para um processo em
andamento de criação e disponibilidade de “uma massa crítica de conhecimento no campo da
segurança pública (tradução de livros, cadernos de polícia, Revista da PM)”420.
O comando também realizou a criação de um “ciclo de palestras sobre a proteção
internacional dos direitos humanos” (2010, p.180) e um ciclo de estudos sobre “ética policial, direitos
humanos, violência e corrupção para policiais reincluídos e reciclados no centro de formação de
soldados” (ibid.). Entretanto, e excetuando o curso de direitos humanos relacionado à ONU, os
relatórios não mencionam qual foi o alcance de tais medidas dentro da corporação ou quantos policiais
participaram. Se é tarefa difícil mensurar o alcance das propostas, pode-se afirmar que elas eram das
mais variadas e profícuas. Um relato de Ubiratan de Oliveira Ângelo é significativo sobre aquele
período:
Em 1993 ou 1994, nós fizemos um estágio com jovens da academia da Polícia Militar sobre
o funk. Eu convidei o Rômulo Costa para falar sobre esse tema. E também falamos sobre o
Movimento Negro... Orientamos os policiais para fazer pesquisa de campo no baile funk, no
Maracanã, nos jogos do Flamengo... e eles produziram conhecimento, mesmo que sem um
valor científico, devido à precariedade de uma metodologia adequada. Mas tinha um valor
muito grande, e isso só foi possível porque era o comando do Coronel Cerqueira. Naquela
época se pensava nisso... Quando comentei que estava levando o Rômulo Costa, vários
policiais reclamaram: “Você vai levar esse cara para falar para os cadetes?” E eu tinha que

417
Realizações da Polícia Militar no ano de 1992. Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, p.2. In acervo da
Coleção Coronel Cerqueira localizado no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ).
418
Roteiro resumo das realizações do comando do Cel Cerqueira. Período de 1991 a 1994, p.4. In acervo da Coleção
Coronel Cerqueira localizado no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ).
419
Ibid.
420
Projeto de modernização administrativa: Relatório parcial das ações desenvolvidas pelos CTO, 10 de maio de
1994, p.6. In acervo da Coleção Coronel Cerqueira localizado no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro
(APERJ).
151
explicar qual era a minha proposta. (2010, p.111)

Este relato condiz com o relatório de gestão apresentado. Especificamente na área de ensino
e instrução, ao se abordar os planos de matérias dos cursos de formação e aperfeiçoamento de praças.
Nele se descreve que as disciplinas como sociologia, psicologia, administração de conflitos, relações
interpessoais e chefia e liderança, “ganharam um realce programático”421 em seu ensino. Além delas,
temos o registro da realização de palestras sobre “estresse, sindicalismo, homossexualismo,
prostituição, meninos de rua, a questão racial, grupos e galeras funks” 422 . Além disso, segundo
novamente o Coronel Ubiratan, Cerqueira “provocou articulações com todos os movimentos
conhecidos como de “minorias”, começou a estudar as atitudes dos adolescentes, fenômenos como o
Maracanã, nos anos 1990” (2010, p.109). Na já mencionada entrevista a Rebecca Reichman,
Cerqueira demonstra sua atenção para a questão racial nos currículos, pois
agora a gente está fazendo um convênio para incluir nos currículos os temas relativos à
história do negro e da cultura negra, para combater os estereótipos e os preconceitos de que
o negro é sempre o suspeito, o negro é bandido. Também em relação aos bailes funk, já por
iniciativa do dr. Nilo Batista, ocorreram encontros e agora vamos fazer um seminário para
debater a influência do funk, o que ele significa como expressão cultural, para esclarecer os
policiais e combater o preconceito (2001, p.26)

Se não fora possível encontrar um plano de disciplinas mais preciso do que o achado no
primeiro comando, aqui temos outras pistas do que se almejava, como o objetivo de dar um “maior
enfoque profissional”423, tendo em foco os aspectos cognitivos, éticos, morais e de treinamento físico.
No que tange ao oficialato, além da já mencionada reestruturação do ensino de segurança pública, as
alterações foram as seguintes:
- Retirada das superposições de assuntos em matérias diversas principalmente na área jurídica
- Aumento da carga das matérias técnico-profissionais
- Implantação de carga horária sobre Direitos Humanos, Crianças e Adolescentes,
Vitimologia, Criminologia etc.
- Reestruturação do ensino de Segurança Pública, inclusive, com criação de curso específico
para instrutores e oficiais da Escola.

Carballo, que participou ativamente da reformulação curricular da escola de oficiais, aponta


que foram duas as principais mudanças com tal reformulação, ambas atreladas: a própria mudança na
grade curricular em si, considerada pelo mesmo uma ruptura com o modelo vigente e herdado do
arcabouço repressivo, o que representou o momento em que “o cordão umbilical foi cortado” 424. A
outra seria no processo de ensino e aprendizagem, em que “o maior dos problemas era justamente a
dificuldade que você tinha no ambiente da sala de aula de questionar. Era tudo na base do decoreba,
tudo decoreba.”425 Assim, houve
do ponto de vista da metodologia uma mudança na condução das dinâmicas didático-

421
Roteiro resumo das realizações do comando do Cel Cerqueira. Op.Cit., p.5
422
Ibid.
423
Ibid.
424
Entrevista concedida ao autor em 14 de outubro de 2019.
425
Ibid.
152
pedagógicas em sala de aula. Antigamente as aulas eram observadas, tinha uma câmera em
cada sala de aula para observar o que tava acontecendo em cada sala de aula. Até nisso houve
uma mudança, pra justamente evitar o desconforto que esse efeito inibitório causava no
próprio aluno. Já tava no ambiente acrítico, onde predomina um saber dogmático, com uma
câmera atrás de você então era quase uma sentença de morte ali esperando pra ser assinada.
426

Uma alternativa para o ensino não se concentrar neste ambiente inibitório fora a criação do
Centro Unificado de Ensino e Pesquisa (Ceuep). Projeto articulado com a vice-governadoria e
localizado na UERJ, o Ceuep era uma espécie de grupo de estudos heterogêneo sobre segurança
pública que envolvia acadêmicos, policiais militares e civis, bombeiros e agentes penitenciários. Para
estes, a ideia era a de propiciar uma “nova formação”427, em que eles aprendam mais do que “manejar
uma arma ou a prender um infrator”428, recebendo conteúdos sobre “história, cotidiano da cidade, a
violência no Brasil, violência contra crianças e adolescentes, poder e controle social, ética e
cidadania”429. Segundo Carballo, a intenção era a de formar altos gestores no campo da segurança
pública, não só no âmbito da polícia militar.
Um dos projetos mais ambiciosos no sentido de produção de conhecimento, e, portanto,
formativo, é a política editorial e bibliotecária do segundo comando. Logo no segundo semestre de
1991, Cerqueira consegue o registro da PMERJ como Biblioteca e editora, bem como a criação do
Núcleo de Documentação e Editoração (PEREIRA, 2016). Assim, é uma medida do segundo
comando a criação de uma nova biblioteca da PMERJ, com sua coleção dividida em quatro séries:

A série “Estudos e pesquisas” seria composta por textos produzidos por membros da própria
corporação e a seção “Acadêmica” traria outras pesquisas sobre áreas de interesse da PM. Já
a série “Clássicos” seria formada por títulos das ciências jurídicas e sociais esgotados ou
ainda inéditos no Brasil. Por fim, a parte “Historiográfica” seria composta por obras que
tratassem da história brasileira, especialmente da fluminense, e que remetessem à ação das
instituições policiais. (SILVA, 2016, p.349)

Nesse bojo, insere-se o projeto “cadernos de polícia”, o qual, entre 1993 e 1994 gerou uma
produção de 23 volumes (2001, p.181). Mina Seinfeld de Carakushansky, acadêmica trazida por
Cerqueira para trabalhar na corporação realizando um trabalho de tradução de textos internacionais
de polícia, bem como realizando ações de intercâmbio, traz um relato acerca de como se realizava a
produção:
Sabidamente, a absoluta maioria dos trabalhos que são publicados nas mais diversas áreas
está em inglês ou espanhol. Na polícia, contávamos com pessoas engajadas querendo
progredir, mas ao mesmo tempo com limitações em conhecer o que se fazia no exterior em
termos de policiamento. Uma ideia do Coronel Cerqueira e que eu tive a satisfação de poder
implementar foi a tradução e a adaptação de textos e cadernos de polícia e de pesquisa, muitos
recebidos diretamente da comunidade internacional, dos Chefes de polícia com os quais
estabelecemos intercâmbios. Nós efetuávamos uma análise e depuração dessa imensa

426
Ibid.
427
Realizações de governo, período: 15 de março de 1991 até maio/93, Gabinete do vice-governador. p.3. In acervo da
Coleção Coronel Cerqueira localizado no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ).
428
Ibid.
429
Ibid.
153
quantidade de novas informações, traduzindo e adaptando os textos em um ritmo quase
frenético. Eu me reunia com um, dois ou três oficiais, conhecidos como sendo profundos
conhecedores de determinado assunto, e mostrava a eles minhas traduções e escutava o que
tinham a dizer para a adequação ao nosso meio. E, junto com eles, produzimos os “Cadernos
de Polícia”. Refizemos e fizemos muitos outros novos. De certa maneira, com todas essas
versões, com os “Cadernos de Polícia”, com novos livros sobre policiamento traduzidos para
o português, formamos uma biblioteca mais moderna para a Polícia Militar. E isso atualizou
um pouco a instituição. (2010, p.98).

Nas primeiras páginas do caderno, a ambição de “preencher uma lacuna existente no campo
da bibliografia policial; rara e por vezes contradita. Esperamos poder apoiar didaticamente os cursos
de formação, especialização e aperfeiçoamento, não só da nossa Corporação, como também de outros
Estados.” (CERQUEIRA, “Apresentação”, s/d [grifo do autor]). Nesse sentido, os cadernos também
não deixavam de ter a função de ensino à distância para os policiais, algo inspirado numa iniciativa
ensaiada no primeiro comando, o de “sistema de instrução por cadernos”. Sua estrutura era em
formato de apostila com temas específicos, estruturados em capítulos e seus tópicos, conclusão e
bibliografia.
Cada caderno reunia textos de autores diferentes, mas dentro de uma certa coesão com o tema
principal levantado. Por exemplo e aproveitando a temática recém abordada, no número 20,
denominado “Polícia, Violência e Direitos Humanos”430 divide-se em três partes, “A polícia em uma
sociedade democrática” de Cerqueira; “Violência social”, de Pedro Demo, secretário dos Direitos da
Cidadania e Justiça do Ministério da Justiça e “violência urbana e suas vítimas” de Jorge da Silva,
então chefe do Estado-Maior da Polícia na época. O núcleo de editoração, a biblioteca da polícia e
propostas como os cadernos no sentido de formar uma literatura própria policial foram marcos para
a consolidação da PMERJ ser considerada nesse período referência em produção de conhecimento
no Brasil. Segundo o Coronel Ubiratan, Cerqueira:
colocou a polícia em contato com polícias e fundações de outros países. Quem ia pensar, nos
anos 1970, que a polícia seria financiada pela Fundação Ford? Que teria contato com editoras
e fundações alemãs? Foi o Comandante-geral. Ele era uma referência internacional. Mas
quem não o conhecia chamava-o de policiólogo, como se fosse ofensivo ser policiólogo,
como se fosse uma doença infectocontagiosa; quisera que se espalhasse para mais pessoas.
Seria muito mais fácil só se preocupar com o cumprimento do regulamento, do manual, com
o passo a passo da hora do café, da refeição... colocar o policial na rua. Mas ele criou um
colegiado para discutir questões de polícia. (2010, p.113)

Interpretando o policiamento comunitário enquanto duplo eixo formador, reservo este


momento para destacar medidas socioeducativas realizadas pela polícia. Se antes vimos o movimento
inverso, de um discurso pedagógico calcado pela intencionalidade dentro dos quarteis, aqui também

430
Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, Cadernos de Polícia, s/d. In acervo da Coleção Coronel Cerqueira
localizado no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ).
154
se percebem propostas em que a própria PM atuava como eixo formador trabalhando nas escolas.
Este era um movimento existente desde o primeiro comando, em que por exemplo fora criado
o programa “PM residente”, de 1985. Em uma tentativa de articular a polícia no contexto da nova
política educacional implementada pelo governo pedetista encabeçada pelos CIEP's, o programa
envolvia tanto o caráter comunitário quanto “as causas sociais” da violência. Ele consistia em integrar
policiais previamente selecionados e preparados para trabalhar na segurança dos CIEP's, mas ao
mesmo tempo oferecendo guarda para menores carentes que estudavam lá. A previsão era de alcançar
300 policiais militares, sendo que até o momento da produção do relatório431 46 estavam participando.
É do primeiro comando também uma criação do ATAE, o Núcleo da Criança e do Adolescente
(NU/CRIAD). Na sua cartilha, o objetivo de criar projetos integrados voltados para a “humanização
do relacionamento policial com a criança e ao adolescente.”432, visando a “prevenção como técnica
policial, utilizando a integração como caminho.”433 Ele fora responsável pela elaboração de projetos
como o “salas-oficinas”, o qual continuaria no segundo comando, sendo realizado no 1º BPM (Morro
da Formiga), 3º BPM (Jacarezinho), 16º BPM (Vila Cruzeiro) e 15º BPM (Lote 15 – Duque de Caxias).
Este consistia no fornecimento de ensino profissionalizante para adolescentes entre 13 e 17 anos
“selecionados em núcleos comunitários na área operacional de habilitação”434. O curso, com duração
de 3 meses, era oferecido dentro do quartel e de caráter técnico, em áreas como mecânica, reparo de
eletrodomésticos e instalações elétricas.
Outro projeto elaborado pelo núcleo fora o “de volta ao campo”435 oferecido a meninos de rua
da mesma faixa etária do programa anterior. Este utilizava o centro de formação e aperfeiçoamento
de praças como um “quartel-fazenda” fornecendo aos menores durante três meses “noções de
montaria, encilhamento, higiene e técnica de domínio com cavalo”436.
No segundo comando o destaque fica para um projeto que deixou um legado até os dias atuais
em outras polícias do Brasil e que fora trazido ao país a partir de uma adaptação de um projeto
estadunidense: o Programa Educacional de Resistência às Drogas (PROERD). Inspirado pelo Drug
Abuse Resistance Education (DARE), o PROERD fora inaugurado em agosto de 1992, sendo
desenvolvido em conjunto com a Secretaria de Educação. Após participarem de um treinamento com
policiais dos departamentos de Los Angeles e San Diego, os policiais da PMERJ começaram a aplicar
o programa que consiste em intervenções nas escolas da rede pública ensinando aos alunos “técnicas

431
Relatório das atividades desenvolvidas na gestão do Cel Carlos Magno Nazareth Cerqueira. Polícia Militar do
Estado do Rio de Janeiro, Estado-Maior e APOM, março de 87, p.10. In acervo da Coleção Coronel Cerqueira
localizado no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ).
432
Cartilha “Núcleo da Criança e do adolescente”. Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, ATAE e NU/CRIAD.
n.p. In acervo da Coleção Coronel Cerqueira localizado no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ).
433
Ibid.
434
Cartilha “Programa de proteção à criança e ao adolescente”. Secretaria de Estado de Polícia Militar, ATAE e
NU/CRIAD. n.p. In acervo da Coleção Coronel Cerqueira localizado no Arquivo Público do Estado do Rio de
Janeiro (APERJ).
435
Ibid.
436
Ibid.
155
de como resistir às pressões para usar drogas”437 focado em crianças de 09 a 11 anos de idade. O
PROERD, no momento do relatório de gestão, alcançava 25 municípios da rede estadual e
aproximadamente trinta e nove mil crianças438.
Dessa forma, estão relançadas as bases teóricas em conjunto com o contexto da prática que o
comandante e seus colaboradores visavam. Creio que no que concerne ao campo da estratégia de
Certeau, agora encontra-se um Cerqueira mais amadurecido, não só como gestor, mas politicamente,
e isso se reverberaria na atuação policial, a qual teria um viés mais crítico do que no primeiro comando.
Nesse sentido, a produção de conhecimento, as políticas de formação e o policiamento comunitário
ganham uma nova potência, tendo como eixo o discurso da polícia enquanto serviço e o do policial
enquanto servidor. Como já foi visto, tal discurso viria acompanhado de um esforço transformador a
partir de políticas públicas, em que neste trabalho prioriza-se pelos de âmbito pedagógico.
Sobre tal caráter, é preciso ressaltar sobretudo que qualquer discurso desse tipo passa pelo
princípio de intencionalidade. Segundo Amélia Domingues de Castro, “a primeira peculiaridade do
processo de ensinar, pois, seria sua intencionalidade, ou seja, pretender ajudar alguém a aprender.
Não corresponde a uma certeza, mas a um esforço. E se refere sempre a quem recebe a comunicação
didática.” (2001, p.15).
Tal esforço é o ponto inicial que é preenchido por métodos, técnicas, ideologias e interesses.
Ele passa por um processo dialógico, que envolve emissão e recepção, ensinar e aprender,
considerando o educando um sujeito ativo no processo. Segundo a autora, “o ensinar transforma-se
em incentivar, instigar, provocar, talvez desafiar. Na verdade, ensinar algo é sempre desafiar o
interlocutor a pensar sobre algo” (p.19).
No caso de Cerqueira, percebe-se claramente tal esforço mencionado por Castro a vontade de
ensinar algo a alguém. Não só na atividade docente, mas nos escritos, produção acadêmica, revisão
da formação. Seus textos envolviam esforço intelectual e esforço pedagógico. E de ensinar no sentido
de desafiar. No caso, de instigar a polícia a repensar seu fazer policial a partir de uma nova conduta
condizente com um Estado democrático de direito.
Eni Orlandi, em “a linguagem e seu funcionamento”, entende que o discurso pedagógico
possui uma circularidade que serve para manter o próprio discurso e a instituição que o emite: a escola
enquanto meio de controle dos corpos. Este discurso circular é propagado por um professor enquanto
cientista, detentor do conhecimento e não um mediador em relação a um aluno que supostamente não
sabe e está na escola para aprender. Assim ocorre o processo denominado pela autora de inculcação,
em que nesta relação aluno-professor uma informação supostamente despida de ideologia é
direcionada, em que na realidade a ideologia é que o preenche.
Assim, a forma de inculcação do discurso pedagógico seria pelo viés autoritário legitimado

437
Realizações da Polícia Militar no ano de 1992. Op. Cit., p.5.
438
Roteiro resumo das realizações do comando do Cel Cerqueira. Op.Cit., p.3
156
pelo sistema educacional. Seria a partir daí que existiria a tensão entre a paráfrase (discurso
pedagógico autoritário) e a polissemia (discurso pedagógico polêmico). Enquanto a paráfrase é “um
retorno constante a um mesmo dizer sedimentado” (2009, p.27), a polissemia “é essa força na
linguagem que desloca o mesmo, o garantido, o sedimentado” (ibid.).
Assim se forma tal conflito, “tensão entre o texto e o contexto histórico-social: o conflito entre
o “mesmo” e o “diferente”, entre a paráfrase e a polissemia”” (ibid.). Esta tensão se articula, ao meu
ver, com a mobilização do criativo enquanto transformador da ordem do discurso hegemônico
interpretado por Fairclough.
Como romper a circularidade? Focada em uma análise do funcionamento, Orlandi interpreta
que o caminho é pela predominância do discurso polêmico. Isso parte pelo questionamento dos
princípios do discurso autoritário, do jogo de veicular ideologia camuflada de informação “neutra”,
de sua construção histórico-social, de vê-la não como algo dado, mas construído, algo também
mencionado por Fairclough. Se pelo aluno isso pressupõe valorizar sua capacidade de discordância,
de ser crítico ao que lhe é mostrado, por parte do professor:
uma maneira de se colocar de forma polêmica é construir seu texto, seu discurso, de maneira
a expor-se a efeitos de sentidos possíveis, é deixar um espaço para a existência do ouvinte
como “sujeito”. Isto é, é deixar vago um espaço para o outro (o ouvinte) dentro do discurso
e construir a própria possiblidade de ele mesmo (locutor) se colocar como ouvinte. É saber
ser ouvinte do próprio texto e do outro. (p.32)

Com as devidas proporções, acredito ser um referencial teórico válido para o objeto estudado.
Sendo uma esfera de ensino dentro de uma lógica militarizada e sendo o braço mais explícito do
Estado no que tange a repressão e o controle dos corpos, a ideia de discurso autoritário na formação
policial possui sentido.
Ao mesmo tempo, o discurso polêmico proposto por Cerqueira também se justifica por seu
caráter de produção do próprio material e de questionar a lógica anterior, sua construção e a que
interesses serviam, ou seja, o de romper com o discurso autoritário. Também ganha sentido ao se
pensar que o ex-comandante buscava um relação professor-aluno em que este fosse escutado, é o
‘’deixar vago um espaço para o outro”. Esta tensão entre paráfrase e polissemia foi a tônica dos
comandos do coronel. As resistências foram tantas que, como se vê nos dias atuais, suas diretrizes
por uma polícia comunitária, preventiva e que respeitasse os Direitos Humanos fracassaram.
Como essa ruptura se origina? Fairclough aponta que “as origens e as motivações imediatas
da mudança no evento discursivo repousam na problematização das convenções para os produtores
ou intérpretes, que pode ocorrer de várias formas” (2008, p.127). Como já mencionado, acredito que
para se pensar tal origem é preciso recorrer ao método biográfico, afinal, o ex-comandante relata que
desde sua formação policial não via sentido no que lhe era ensinado, na formação dita guerreira.
Não devem ser descartados, portanto, eventos que vão desde a sua origem pobre, seu

157
entendimento precoce do estudo como forma de mobilidade social e a busca constante por
conhecimento para além dos muros da polícia, o racismo sofrido, a sua aproximação com Brizola e
setores do campo progressista, tudo isso relacionando-se com o contexto histórico que o perpassou,
como fatores que contribuem para compreender as condições de produção de discurso de um sujeito
que se usou de um discurso polêmico, nos termos de Orlandi, para romper a circularidade do discurso
policial vigente.
Sobre os discursos polêmicos portanto, creio que os textos evocados de Cerqueira no caderno
de polícia e no boletim da PMERJ, bem como seu texto no Jornal do Brasil constituem momentos
claros de produção de discurso pedagógico enquanto intencionalidade e ruptura, por exemplo. Tanto
para o policial quanto para população, em um esforço de reeducação tendo como eixo o policiamento
comunitário. Vejamos agora tal discurso em funcionamento a partir de uma iniciativa prática neste
sentido.

Copacabana, 1994: o duplo eixo formador em ação

Em setembro de 1994 fora dado o início ao projeto mais concreto de policiamento comunitário
dos dois comandos de Cerqueira. Implantado na área que circunscreve o 19º BPM (Leme e
Copacabana), a experiência contou com o apoio do Viva Rio439, além do próprio comandante do
Batalhão, e gerou um relatório de pesquisa produzido por Jacqueline Muniz, Patrick Larvie e Bianca
Freira, sob a coordenação de Leonarda Musumeci. Esta é uma fonte muito rica para se analisar tal
experiência, tanto pela qualidade do trabalho quanto por trazer um outro olhar a partir do
distanciamento com relação à cúpula do comando da corporação.
Acredito que um olhar sobre tal relatório pode ser interpretado como um microcosmo e síntese
dos alcances e limites do modelo comunitário almejado por Cerqueira, por isso creio ser importante
se deter sobre ele. A pesquisa objetivava por
monitorar durante um ano sua implantação, seu andamento e seus resultados, através de uma
pesquisa que ao mesmo tempo avaliasse o impacto da experiência sobre os índices de
criminalidade do bairro (monitoramento quantitativo) e captasse percepções, tanto da
comunidade, quanto dos policiais comunitários, sobre os problemas de segurança existentes,
sobre o trabalho da nova patrulha, sobre os efeitos e percalços do projeto no seu primeiro ano
de atuação (monitoramento qualitativo). (MUSUMECI et al., 1996, p.10)

Devido a mudança de segurança pública que se iniciara em 1995 no governo de Marcello


Alencar (PSDB), retomando à lógica repressiva, o projeto fora desmontado sistematicamente ao

439
Fundada em 1993, a Viva Rio é uma Organização Não Governamental que surge justamente como uma tentativa de
apresentar soluções para a sensação de insegurança crescente que o estado vivia. Formada por um corpo heterogêneo de
indivíduos como acadêmicos, jornalistas, sindicalistas, empresários e ativistas como Herbert de Souza, o Viva Rio
promovia ações de combate à violência que iam de manifestações a apoio a políticas públicas como o projeto de
policiamento comunitário. Disponível em http://vivario.org.br/quem-somos/#nav-historia , acesso em 09 de janeiro de
2020.
158
longo do ano, com a pesquisa sendo encurtada em dez meses em vez dos doze previstos. De qualquer
forma, o relatório, ao longo de suas 150 páginas, nos apresenta um quadro suficientemente detalhado
e complexo acerca da iniciativa para ser analisada.
A área onde atuaria o policiamento comunitário fora dividida geograficamente em seis setores,
os quais conteriam um total de 28 subsetores, quarteirões selecionados estrategicamente. Neles foram
designados para o trabalho sessenta policiais recém-saídos das escolas de polícia, todos com o então
segundo grau completo e formados no “Curso de Formação de Policiais Comunitários”. Este continha
“dinâmica de grupo, técnica de resolução de conflitos e seminários sobre temas como “busca de
parceria – técnicas de relacionamento com o público e com ONGs”, “vitimização infanto-juvenil” e
“atuação dos grupos de mútua ajuda” (p.26).
Segundo o relatório os policiais atuaram “utilizando rádios, realizando rondas a pé e em
quarteirões selecionados, cumprindo uma escala de trabalho especial (seis horas diárias), tendo
liberdade para organizar sua rotina.” (p.9). Revezando-se por turnos, eles deveriam fazer um
policiamento integrando-se à comunidade que conviveriam, “tornar-se conhecedores dos seus
problemas e coautores de soluções (sempre que possível, mais preventivas do que repressivas)” (ibid.).
Para tanto, o policiamento contaria com a criação de estruturas como os seis Conselhos Comunitários
(CCA's) espalhados pela região. Nestes conselhos ocorreriam reuniões periodicamente entre
representantes civis dos setores e com os policiais para elaborarem soluções em conjunto. Além disso,
em toda a área foram espalhadas trinta urnas em que a população poderia depositar qualquer
informação envolvendo “denúncias, sugestões, críticas e demandas” (ibid.).
Entre os próprios policiais, antes de se encaminharem aos respectivos batalhões ocorria uma
reunião denominada de “instrução”, na qual “discutiam entre si e com os oficiais supervisores os
problemas das áreas cobertas pelo novo policiamento” (p.26). Por fim, para fins de acompanhamento
e avaliação, o programa organizou um sistema de pastas. Em cada subsetor existiria uma pasta, em
que os policiais anotariam na forma de relatório não apenas as ocorrências, mas também “problemas
levantados; contatos feitos; parcerias conquistadas; recursos mobilizados externamente à PM, planos
mensais de ação, detalhando fins, meios e estratégias; resultados alcançados e reações da comunidade.”
(p.131).
A despeito do desmonte sofrido no governo tucano, o projeto já vinha capengando pelos mais
diversos motivos. Como veremos adiante, o próprio contexto não era favorável à implantação do
projeto. O governo -tendo à frente o vice Nilo Batista pois Brizola se descompatibilizara do cargo
para concorrer à presidência - sofria forte rejeição da opinião pública e estava imerso num oceano de
críticas à política de segurança, o que culminaria na intervenção federal a partir da atuação do Exército
nas atividades de policiamento.
Nesse sentido, seja pela falta de um apoio mais robusto do governo pedetista, seja pela
dificuldade de articulação deste tanto com outras esferas do executivo (não houve nenhum empenho
159
da prefeitura na colaboração com o projeto e até a eleição de Marcello Alencar o governo estadual
vivia em conflito com o governo federal) quanto com outras secretarias e disputas entre PM e Polícia
Civil e Guarda Municipal. Problemas como a precária divulgação do projeto e de iniciativas como
das urnas – seja pelo governo, seja pela mídia - foram um dos fatores responsáveis pelo pouco
engajamento da comunidade no projeto. Ao final, apenas dois CCA's estavam em funcionamento e
as urnas continham número insuficiente de informações.
No que concerne à Polícia Militar, os problemas seriam estruturais, tanto físicos quanto
ideológicos. Isto envolvia questões simples como falta de cartões de apresentação dos policiais para
a população após o esgotamento da primeira leva passando pela ausência de uma secretária eletrônica.
Contudo, para além da superficialidade da “falta de recursos” tão evocada pelos órgãos de imprensa,
os problemas envolviam questões próprias da organização policial, como
precariedade logística; fraca articulação entre as companhias no interior dos batalhões;
ineficiência (e não número excessivo) dos serviços internos responsáveis por essa articulação;
ausência de planejamento; precária estrutura de levantamento, distribuição e processamento
de informações; escalas de trabalho dessincronizadas; rigidez do regimento interno em vigor
(herança obsoleta da ditadura militar). (1996, p.122).

As autoras também criticam a própria formatação do projeto inserido na política macro de


segurança pública ou, no caso, a falta de uma inserção maior em tal política, algo que não deixava de
respingar no comando da PM. A interpretação é de que o projeto estava, como todos os outros, como
um “projeto especial” da polícia, e não como um ponto de partida transformador do paradigma da
segurança pública. Assim, “Em vez de “carro-chefe”, era um “balão de ensaio”, envolvendo somente
uma das polícias e, dentro desta, apenas um batalhão, ou melhor dizendo, um regimento
especialmente criado para desempenhar o novo serviço” (p.113).
No que tange à herança da ditadura, os problemas também envolviam conflitos internos. As
sanções disciplinares próprias do modelo militar, que envolviam questões como ““levantar a voz
para um superior”, apresentar “aparência descuidada””(p.126) eram, segundo as autoras, o “modelo
pedagógico”(p.127) de controle em vigor, não apenas por sua prática, mas pela simples existência e
possibilidade de aplicação aventada. Trabalhar sob a lógica da punição, infere tanto dentro da lógica
militarizada quanto por um certo pouco apreço à própria capacidade de trabalho do policial, que, por
supostamente ser um “bronco” e não confiável, “só funcionaria” dessa forma. Ao mesmo tempo, os
pressupostos de obediência e não questionamento do superior contribuiriam para alimentar uma
lógica quase “robótica”, de forma cíclica.
Como o fazer comunitário pressupõe uma maior autonomia e fazer críticos do policial na
ponta, isto por si só já é um gerador de ruídos na estrutura militar calcada pela hierarquia. Acreditava-
se, entretanto, que por mais viciada que estivesse a estrutura policial, o fazer comunitário seria uma
espécie de força centrífuga para tal lógica, um ponto gerador de debates e, quem sabe, de rupturas no
modelo tradicional a partir do investimento e funcionamento em policiais críticos e reflexivos sobre
160
a sua atuação em conjunto com a comunidade. Entretanto, e apesar de nenhum deles sofrer sanções
disciplinares, para os próprios comunitários a sombra do medo de uma punição os cercou, limitando
as vezes seu poder de decisão para uma atuação mais comedida, sintetizada na frase “melhor não
inventar muito” (p.129).
Apesar de, em pesquisa realizada (p.128), 88% dos comunitários se dizerem “satisfeitos” ou
“muito satisfeitos” com sua nova atuação, os conflitos com os policiais do tradicional foram grandes.
Creio que algumas das reações possam ser vistas em pequena escala como indicativas das reações à
tentativa em larga escala de reforma da polícia por Cerqueira e a cúpula policial. Especificamente ao
projeto, as reações também envolviam um certo “ciúme” perante às condições de trabalho dos
policiais comunitários como a jornada de trabalho mais curto, uso de equipamentos como rádio e
apoio do VIVA RIO (p.32). No que tange ao aspecto mais geral, o depoimento de um policial acerca
da relação com os policiais atuantes do modelo mais repressivo é bastante significativo:
Eles [policiais mais antigos] falam que a gente é “funcionário”, que a gente é 'meio polícia'
porque não encara bandido, não troca tiro, não sobe morro..., que a gente fica só de conversa
fiada com madame. Às vezes eles nem cumprimentam a gente. Fazem aquela encarnação: aí,
chegou o comunitário, chegou a babá da comunidade. [grifo nosso] (p.32)

Nesse trecho, além da visão de que o policial comunitário é algo menor ao modelo tradicional
por uma negação da lógica de combate “não encara bandido, não troca tiro, não sobe morro” é
interessante a pecha de “funcionário”. Ironicamente, não deixa de dialogar com o que Cerqueira
queria implementar como o princípio básico do novo policial almejado, dele enquanto servidor. Aqui,
entretanto, o sinal está invertido: se para Cerqueira e seu núcleo o policial enquanto servidor é uma
complexificação do ser policial pensando no mesmo enquanto um mediador de conflitos dentro do
signo preventivo e comunitário atuando, embora dentro de suas especificidades, como um servidor
público da população, para este grupo de oposicionistas o policial “funcionário” nada mais é que um
nível abaixo do “verdadeiro” policial. Em vez do enfrentamento, o papel de “babá da comunidade”.
A visão de uma forma policial como única e verdadeira já é indício do quão enraizada está tal
modelo, em que não se deve deixar de relacionar com o caráter machista e de exaltação da virilidade
que se retroalimenta neste quadro. Um depoimento de um próprio policial comunitário que se
questionava sobre o seu fazer é revelador deste sentido:
Eu, quando vim para a polícia, eu não sabia que era para ficar fazendo esse papel de relações
públicas. Esse negócio de ser relações públicas, esse negócio de bom dia, boa tarde, eu acho
que não é pra mim não. Mulher tem mais jeito pra isso, podia pegar PM feminina e colocar
pra conversar com o pessoal. (p.30)

Entretanto, a despeito das dificuldades, o relatório não considera o projeto um fracasso total.
Como já mencionado, a grande maioria dos comunitários sentiam-se satisfeitos na sua nova função,
bem como sua imagem fora melhorada na relação com o público. Nas entrevistas com moradores, o
relatório aponta que muitos depoimentos evocavam uma maior sensação de segurança e de
161
diminuição de roubos e furtos, assim como conflitos nas ruas. Dos conselhos comunitários que
permaneceram, o legado fora a manutenção das reuniões entre os moradores mesmo após o fim do
projeto e a reivindicação pela continuidade do projeto na Assembleia Legislativa do Estado do Rio
de Janeiro através de representantes dos moradores. Assim, apesar de todos os problemas, o projeto
poderia ser considerado ao menos um ponto de partida e de mudança interessante se houvesse ao
menos uma política pública consistente e articulada para sua continuidade.

Dificuldades e resistências: o pêndulo


Não foram poucas as dificuldades enfrentadas pelo comando em seus dois momentos. Antes
de entrarmos em problemas específicos é necessário abordarmos um traço marcante das políticas de
segurança pública fluminense como um todo e apontado por estudos nesse campo: o modelo pendular
de suas políticas. Tal conceito de pêndulo é mobilizado por Sento-Sé e Luiz Eduardo Soares para
trabalharem a hipótese acerca da ausência de uma política de Estado no campo da segurança, a qual,
ao menos no período estudado pelos autores (1983-1998) alternou-se entre propostas mais alinhadas
com os marcos dos direitos humanos e do Estado democrático de direito em construção (Brizola) e
outros que retomavam as práticas repressivas próprias e herdadas do período da ditadura (Moreira
Franco e Marcelo Alencar), a qual variou pelo sabor dos ventos da chamada opinião pública e de seus
representantes, bem como pelas possibilidades de vitória eleitoral dependendo da atmosfera vigente.
Para os que se debruçam na temática, este é um texto fundamental para se entender tanto as
dinâmicas próprias da política fluminense e suas consequências no campo da segurança quanto para,
no caso aqui estudado, ser um ponto de partida no entendimento das deficiências e dificuldades na
administração brizolista. Ainda que reconheçam que os governos pedetistas – em comparação com
os outros analisados como os mais próximos de uma gestão mais comprometida com as balizas
civilizatórias, os autores entendem que o primeiro governo “esbarrou em uma série de dificuldades
de ordem material, política e cultural.”.
Restringindo operações policiais como as chamadas blitzens e as invasões nas moradias das
favelas sem mandado e sob as notícias de saques em supermercados, “invasões” de terrenos e suposto
envolvimento com o crime organizado, tem-se início, segundo os autores, a uma redefinição da
imagem de Brizola perante os críticos. Se no período pré-golpe ele era visto como um “incendiário”
e “desordeiro” no sentido político, agora a imagem de permissividade perante um suposto “caos” na
cidade o realoca enquanto um agente da desordem no sentido social.
Como já mencionado, a temática da segurança pública seria um dos alvos preferidos da
campanha do vencedor do pleito de 1986, Moreira Franco, embora este não apresentasse “qualquer
plano de ação mais efetivo ou mesmo defender abertamente princípios básicos que norteariam sua
política” (2000, p.14). Assim, é neste período que se constrói a imagem de Brizola enquanto omisso
ou até conivente com a criminalidade, algo que o acompanharia e se consolidaria de vez em sua
162
segunda gestão. Entretanto, vale ressaltar, e como os próprios autores apontam, não fora o governo
pedetista que inaugurara na população fluminense o sentimento de insegurança, visto que uma
pesquisa do IBOPE de 1979 apontava a violência como a principal preocupação dos habitantes do
estado (p.5).
No que toca a ordem material, o contexto de crise econômica nacional que vinha se agravando
desde meados dos anos 70, as tensões na relação com o Palácio do Planalto e com consequências na
obtenção de recursos são as hipóteses levantadas pelos autores para se pensar que uma mudança de
tal vulto na polícia se faria necessária com um volume de investimentos muito maior que o possível
no período. Ao mesmo tempo, se o entendimento da criminalidade relacionada às causas sociais -
embora insuficiente para tratar de uma questão tão complexa como a violência e a segurança públicas
– tenha fundamento, o tamanho do investimento feito na construção dos CIEP's, realocando recursos
de outras pastas significou, segundo Hollanda (2005), uma relegação da política de segurança
envolvendo as polícias militar e civil a um segundo plano, tendo a ausência de recursos para tais áreas
sendo sentida440.
Segundo a autora, o rol de críticas à segurança pública do primeiro mandato brizolista inclui
“as limitações da estrutura e orçamento da polícia somadas à prioridade para a educação, às
resistências à política de direitos humanos, às denúncias de corrupção, centralismo e favorecimento
de quadros do partido “(2005, p.147). No que toca ao comando, um problema admitido pelo próprio
Cerqueira em entrevista a Sento-Sé fora o enfoque dado das mudanças empreendidas aos oficiais e
não tanto aos praças, na esperança de que os primeiros seriam os responsáveis por difundir a
transformação aos segundos. Além das resistências terem sido grandes desde o início do primeiro
comando, um outro ponto de dificuldade é o fato de que muitas vezes o policial de ponta não atua
com um oficial por perto, provocando um distanciamento que seria um obstáculo à instrução.
Nesse sentido, e sem a intenção de com isso realizar uma análise tendenciosa, talvez seja o
momento de se deter sobre a mais nítida, explorada, persistente e, porque não, vitoriosa dificuldade:
as oposições às tentativas de reforma na política de segurança pública. Tal é a magnitude das
oposições em tantas frentes (além da já esperada partidária, também dos meios de comunicação e no
seio da corporação) que se torna necessário uma análise mais debruçada, visto que não deixa de
revelar limites de um período histórico que possuem certa continuidade. Em entrevista realizada no
ano de 1992, Cerqueira relata acerca das dificuldades enfrentadas naquele momento no que concerne
à tentativa de mudança na formação:
É complicado, sim. Agora mesmo vamos treinar os tenentes e estamos organizando uma
semana, são 40 tenentes por semana, o curso começou agora e eu recebi as primeiras
informações do que eles falaram, disseram que não tem de mudar nada, ta tudo bom, sempre
funcionou, por que agora o comandante quer mudar... quer dizer... e garotos novos, tenentes,
oficiais, mas saíram com uma formação muito bitolada, muito equivocada, uma formação

440
Esta também era uma denúncia feita pelos partidos de oposição. Ver “vereadores afirmam que Brizola não dá
condições de trabalho à polícia.”. O Globo, 11 de abril de 1986.
163
que valia para um regime autoritário mas não vale para um regime democrático. Se bem que,
mesmo no regime autoritário, eu já questionava esse tipo de formação. (CERQUEIRA,
2001, p.29).

Ainda que o depoimento seja no período do segundo comando, é possível dizer que as
resistências dos policiais às mudanças na formação, bem como na política de segurança como um
todo, já advinham de sua primeira gestão. Vimos pelos recortes de jornais referências de Cerqueira a
uma certa “perplexidade” e “indecisão” do policial frente às buscas por transformação da corporação
registradas logo no primeiro ano.
De forma paralela, a ideia do comandante marcado pela correção transmuta-se para um
dirigente excessivamente rigoroso, o que para alguns beirava a perseguição 441 , ao mesmo tempo
distante do policial de ponta. Isso, aliado com o suposto imaginário de permissividade com o crime
engendraria uma crítica a um comandante que protegeria mais os marginais do que a própria
corporação, que já sofrera com o crônico problema de melhores condições salariais e de trabalho.
Entre o alto oficialato, a resistência também se incidiria por uma determinação do comando:
a implantação do sistema de concurso para ingresso no Curso de Aperfeiçoamento de Oficiais e no
Curso Superior de Polícia, cursos necessários para a progressão de patentes dos oficiais, antes obtidos
através do tempo de carreira. Implantado em abril de 1984 (PEREIRA, 2016, p.174), o critério de
mérito a partir de exames atingia não só uma questão cultural expressada na máxima “antiguidade é
posto”, sendo agora possível um oficial mais jovem obter uma patente superior de um mais antigo
como também afrontava as concepções antigas de policiamento com a nova bibliografia exigida.
Além disso, policiais do período que preferiram não revelar sua identificação em depoimento
a Bruno Marques argumentaram que “que os concursos para o Curso Superior de Polícia eram
avaliados por bancas compostas por oficiais próximos ao comandante, comprometendo, dessa
maneira, a lisura do processo seletivo. No seu entendimento, seria mais uma forma de perseguição
política dentro da PMERJ.” (2016, p.262).
Sobre a suposta permissividade com o crime e o criminoso, nos traz um caso trazido pelo
próprio Cerqueira em entrevista a Sento-Sé sobre uma forma de protesto dos policiais perante a nova
orientação policial acerca de um assalto ocorrido na Urca, no período do primeiro comando.
Considerado um dos bairros mais ricos da cidade e com baixos índices de criminalidade, tanto pelas
relações bem sucedidas entre o policiamento de bairro e a comunidade quanto pela dificuldade
geográfica ao trânsito de traficantes pelas poucas possiblidades de acesso, o crime chama a atenção
de Cerqueira pela facilidade encontrada pelos bandidos na fuga. Ao se encontrar com a associação de
moradores do bairro ele fora informado que:
nos últimos tempos, os policiais assumiram uma postura claramente negligente. Conforme

441
Ver “Clube propõe eliminação de Cerqueira”, O Globo,03 de janeiro de 1985; “Tenente engana escolta, escapa e
denuncia na OAB perseguição na PM” O Globo, 15 de julho de 1985; “Coronel Cerqueira é acusado de arbitrário”, O
Globo, 21 de novembro de 1985.
164
teria descrito um de seus interlocutores, “ficam aí o dia inteiro namorando”. Ainda segundo
este relato, no dia do assalto, o efetivo de plantão simplesmente teria ignorado o chamado
dos moradores. Cerqueira dirigiu-se então ao comandante do batalhão responsável pela área.
Quando indagado sobre a ineficácia de sua atuação e de seus subordinados nos últimos
incidentes criminais na região, o comandante teria retrucado: “Nesse governo a gente não
pode trabalhar por causa dos direitos humanos.” (2005, p.132)

Assim, segundo a autora, as reações policiais ao comando ocorriam em um movimento


triangular que oscilava entre a negligência, por uma resignação reativa às orientações ou ao conflito
explícito às mesmas. Isso se dá também por uma crítica de Hollanda ao comando, o qual o discurso
seria marcado por uma “sequência de nãos” (p.132) como “não matar, não torturar, não invadir
barraco e assim por diante” (ibid.). Tal política vinha, portanto, desacompanhada de uma política
propositiva e que muitas vezes estava distante da realidade da corporação, como o aprendizado das
cartilhas da ONU, algo que existia “num plano abstrato, alheio ao universo das possibilidades dadas
no mundo da vida”. (ibid.).
Acredito que a crítica é válida se pensarmos mais na questão do alcance da filosofia do
comando do que propriamente nos conteúdos. A despeito de um aprofundamento na forma e na
produção do conhecimento se comparando as duas gestões, creio que, dadas as fontes levantadas, o
que fora produzido no primeiro possui seu caráter propositivo sim. De qualquer forma, vale ressaltar
que a obra da autora possui quase vinte anos, em que é de se supor que as possibilidades de acesso às
fontes eram muito mais restritas do que atualmente.
A sensação de insegurança entre a população fora uma crescente nesse período, e não se torna
gratuita o enfoque da campanha de Moreira Franco na questão do combate à criminalidade de forma
repressiva, bem como a sua vitória. O ano de 1986 fora de grandes pressões ao governo pedetista
nesse sentido, chegando a ocorrer atos públicos de protesto contra o governo por parte dos policiais.
O enterro do Detetive Roberto Moreira Abreu, contando com a presença de “mais de duas centenas
de policiais e amigos do Detetive”442contou com discurso carregado do delegado Guilherme Godinho,
o Sivuca:
Chega de canalhice, chega de omissões covardes. Não podemos continuar dizendo amém.
Não podemos continuar dizendo amém aos desmandos administrativos, a essa baderna
administrativa. Polícia não quer apenas salários dignos e armamento especializado para
enfrentar marginais nesta guerra à violência pelo menos de igual para igual. O que a Polícia
quer mesmo é respeito do Governo, quer dignidade.443

O discurso de Álvaro Codeço, presidente da Coligação de Polícias do estado, seguiu a mesma


linha:
Estamos morrendo por falta de apoio. A nossa paciência tem limite. Não podemos continuar
de cemitério em cemitério. Em 30 dias já mataram dez policiais. E o que o Governo vai fazer
agora? Vai demorar dois anos para dar à família uma pensão miserável. 444

442
DELEGADO discursa no cemitério e pede a Brizola respeito e dignidade. O Globo, 04 de julho de 1986, p.6.
443
Ibid.
444
ENTERRO de detetive se transforma em ato político. O Globo, 04 de julho de 1986, p.6.
165
Sivuca também esteve presente na cerimônia de inauguração da Associação dos Direitos
Humanos das Vítimas e seus Familiares, ocorrida no dia seguinte. Criada pelo promotor Rodolfo
Ceglia, do 4° Tribunal do Júri e contando com a presença de “advogados, promotores de Justiça,
policiais e parentes de pessoas que sofreram violências de todas as espécies” 445 , a Associação
defendia a reforma da legislação penal a partir da inclusão de punições como a “pena de morte e
prisão perpétua, criação de colônias agrícolas e indústrias penitenciárias e conscientização da
população para colaborar com a Polícia e a Justiça na repressão e punição dos que praticam atos de
violência.”446.
Embora não contasse com sede ou qualquer tipo de estrutura organizativa e normativa, tal
cerimônia dava o tom da insatisfação perante o governo. De acordo com a reportagem, o
desembargador Oliveira Ramos em discurso chegou a pedir a renúncia do governador, considerado
como “o principal responsável pelo crescimento da violência e pela situação de impunidade.” 447,
sendo bastante aplaudido pela plateia. Dias depois, o jornal reportou uma nota oficial do Clube de
Oficiais da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros declarando que “a Polícia, além de desaparelhada,
está desestimulada e sem autoridade para agir, “pois é notório o acumpliciamento do Governo com o
crime organizado.”448.
Contribuía para tal atmosfera impopular ao governo e o imaginário de conivência com a
criminalidade as denúncias envolvendo o então secretário de Polícia Civil Arnaldo Campana e a máfia
internacional do videopôquer (2005, p.139), ocasionando em sua exoneração do pouco depois do
episódio dos sepultamentos. Ele fora substituído pelo então presidente da Ordem dos Advogados do
Brasil no Rio de Janeiro, Nilo Batista449. No momento da demissão o governo estava envolto em uma
crise também com o governo federal peemedebista e o seu ministro da justiça, Paulo Brossard.
Acusando Brossard de não receber em seu gabinete de propósito o secretário estadual de justiça
Seabra Fagundes, chamando-o em nota de “leviano e insensato” 450, o ministro resolve responder
Brizola afirmando que suas críticas são para desviar o foco da questão da violência no estado. Isto
porque “o próprio Chefe do Governo do Estado do Rio declarou que não usará a Polícia para combater
a violência, o que está escrito nos grandes jornais cariocas com todas as letras”451.
Pedidos de renúncia, acusações de omissão, incompetência ou envolvimento do governo com
o crime organizado, resistência da corporação, reivindicação de intervenção do exército e aplicação
da pena de morte, conflitos entre o governo estadual e o federal e com a imprensa. Todos esses
elementos estiveram presentes no primeiro comando e retomariam com força no segundo. Nesse

445
CRIADA entidade para defender a pena de morte. O Globo, 05 de julho de 1986, p.8
446
Ibid.
447
Ibid.
448
CLUBE da PM faz acusações severas. O Globo, 10 de julho de 1986, p.14.
449
NILO Batista é o novo secretário de polícia civil. O Globo, 10 de julho de 1986, p.14.
450
MINISTRO acusa o Governador de criticá-lo para desviar a atenção. O Globo, 10 de julho de 1986, p.14.
451
Ibid.
166
período, talvez o que diferencie seja tanto o tom de dramaticidade maior perante a “escalada da
criminalidade” quanto os marcos mais definidos de acentuação deste tom.
De qualquer forma, é possível dizer que, tanto para Brizola quanto para Cerqueira, o início de
suas gestões, em comparação com 1983, era mais desfavorável. Para o comandante, como já vimos,
principalmente pelas insatisfações no oficialato com o retorno de um policial reformado. Para o
gaúcho, pois, a despeito de sua vitória com números eloquentes, “não havia, no início dos anos
noventa, o entusiasmo e o otimismo pela expectativa de redemocratização que o país vivera menos
de dez anos antes.” (SOARES e SENTO-SÉ, 2000, p.16). Sento-Sé aponta que também não existia o
mesmo clima carnavalesco caracterizado pela primeira eleição (1999).
O cenário nacional, com o “fracasso do Plano Cruzado e a dureza arbitrária do Plano Collor”
contribuíam para um cenário de frustrações que se acentuariam com o fracasso do plano Collor, bem
como as denúncias de corrupção que resultariam no seu processo de impeachment. Brizola, em
especial, pagaria seu preço por isso pois fora um dos últimos a apoiar o afastamento do presidente,
cada vez mais desgastado e que acabara renunciando ao cargo.
Brizola também herdaria o imaginário transmutado e construído por seus críticos como um
agente da desordem social e da conivência com o crime. Em um episódio envolvendo uma onda de
saques a supermercados, O Globo em nota dava o tom das críticas ao governo. O jornal apontava para
um “vácuo de autoridade” 452 existente, em que a gestão pedetista “se intimida ante o poder das
quadrilhas encasteladas nas comunidades pobres, quando não se omite intencionalmente, por
cumplicidade.”453. Assim, os “saques se inspiram na certeza de que uma polícia inepta garante a
impunidade do banditismo organizado”454. Dias depois, as críticas viriam do ministro do Exército,
general Carlos Tinoco, alegando que “falta um esforço maior do governo do estado para combater a
criminalidade”455. Um prenúncio sombrio da intervenção federal na segurança pública em 1994, com
o exército realizando atividades de policiamento ostensivo.
Para além dos saques a supermercados, agora um elemento ganhou destaque: os chamados
“arrastões” entre o final de 1992 e o início de 1993. Fenômeno ocorrido principalmente nas praias da
zona sul da cidade do Rio de Janeiro, os arrastões consistiriam em uma concentração de arruaças
protagonizadas geralmente por jovens ao longo da orla. A despeito de momentos em que de fato
ocorreram episódios de violência com agressões e assaltos, o tratamento dado pela mídia televisiva e
imprenso é entendido por acadêmicos como de modo superdimensionado e espetaculoso,
contribuindo para uma sensação de insegurança da população. Além disso, Soares nos traz um relato
sobre o caráter preconceituoso da cobertura:

452
NO vácuo da autoridade. O Globo, 07 de maio de 1992, p.16.
453
Ibid.
454
Ibid.
455
DIAGNÓSTICO. O Globo, 09 de maio de 1992, p.15.

167
Uma foto do Jornal do Brasil diz tudo: três rapazes se olhavam de lado. Os dois negros, um
em cada lado, tinham tarjas sobre os olhos – respeito à privacidade que configura hostil
acusação. O garotão branco reinava absoluto, imaculado. Não ocorreu ao repórter que os três
fossem igualmente responsáveis por o que quer que fosse que ali se passasse – o que valeria
para o caso de culpa ou de inocência. Ao branco conferiu-se um crédito exclusivo de
presunção de inocência. Ele era a única imagem liberada da maquiagem estigmatizante: nada
de tarjas. (1996, p.246).

Os arrastões, as chacinas da Candelária e de Vigário Geral constituiriam o que Luiz Eduardo


Soares denomina como a “tríplice ferida simbólica”(p.243) de 1993: um golpe nas vítimas, homens,
mulheres e crianças; na cidade, “a começar pelo valor que associamos à sua imagem e que vertebra
nossa identidade coletiva” (ibid.); por fim, na política de segurança pública, que com sua filosofia
humanitária confrontava “comportamentos de segmentos consideráveis dos aparelhos policiais,
socializados em suas instituições ainda sob o signo da ditadura, do desprezo pelos direitos individuais,
das estigmatizações de minorias e de discriminações sociais e étnicas.”(ibid.).
Separadas pelo espaço de um mês, entre julho e agosto de 1993, as chacinas da Candelária e
de Vigário Geral possuem em comum o fato de ambas terem sido cometidas por policiais contra civis
escolhidos aleatoriamente. Na primeira, as vítimas foram oito crianças e jovens moradoras de rua,
após os policiais abrirem fogo contra mais de cinquenta que dormiam no entorno da igreja 456. Na
segunda, vinte e uma pessoas foram assassinadas, incluindo “sete homens que jogavam cartas em um
bar e oito membros de uma família, incluindo uma menina de 15 anos, assassinados dentro de sua
casa.”457.
Para Soares, para além das especificidades dos crimes, o alvo não deixava também de ser a
política comprometida com os direitos humanos do governo pedetista e o Comando-Geral, pois “tudo
leva a crer que, pelo contrário, houve, sim, plena consciência dos objetivos políticos, pelo menos dos
mais imediatos e superficiais, nem por isso menos importantes” (p.243), não só no sentido de reação
a uma política que eles não adotavam, mas como tática política ao acirrar as tensões entre a opinião
pública e o governo. Segundo Cerqueira, em texto posterior ao comando, as chacinas demonstravam
o “nível de degradação de determinados setores da Corporação policial; a nossa tese é de que este
quadro era o produto da forte cultura autoritária e repressiva que teimosamente lutava para não ser
banida das políticas e das práticas policiais.” (2001, p.152)
As chacinas foram um golpe duro em Cerqueira. Vera Malaguti Batista, socióloga que o
conhecera nos Centros Comunitários de Defesa da Cidadania458 e seria uma das fundadoras, junto

456
Disponível em https://anistia.org.br/direitos-humanos/publicacoes/candelaria-e-vigario-geral-10-anos-depois/ ,
acesso em 17/01/2020.
457
Ibid.
458
Programa elaborado pela secretaria de justiça em 1991, os centros funcionavam como polos de assistência das mais
diversas formas. Elas previam “atendimento Às vítimas de delito, passando por educação legal, prevenção de acidentes
e catástrofes, patrulhamento comunitário, investigações de pequenas infrações penais, conciliação de conflitos
interindividuais, defesa judicial dos interesses comunitários, identificação legal dos residentes, defesa judicial gratuita,
formação de grupos de ajuda mútua para alcoolismo de drogadização, programas especiais de atendimento aos
adolescentes infratores, regularização fundiária, benefícios previdenciários, programas de saúde, postos do Banerj,
168
com ele e Nilo Batista do Instituto Carioca de Criminologia459, relembra que “Vigário Geral foi para
o Cerqueira uma grande desilusão, porque era impensável para ele que policiais militares pudessem
fazer o que fizeram.”(2010, p.44). Nilo Batista recorda do comandante andando pelas
vielas ensanguentadas de Vigário Geral, perplexo e aturdido com a brutal impiedade de
nossos adversários, caminhando sua estupefação entre os corpos das vítimas sacrificiais não
só da vingança, mas também ou principalmente da irritação que produz nas oligarquias
cariocas e em seus esbirros a consideração de que o barraco da favela também é o asilo
inviolável ao qual se refere a Constituição (2001, p.10)

Ele chega a colocar o cargo de Secretário de Polícia Militar à disposição de Brizola, em que
O Globo crava como certa sua saída460. Segundo o jornal, seu afastamento seria motivo de “alívio
entre os praças e de tensão entre os oficiais” 461 . Prosseguindo a reportagem, ela aponta que,
entrevistando soldados, cabos e sargentos, a impressão era de que o Coronel, “embora fosse um
homem íntegro, não tem carisma com a tropa”462, reavivando as acusações de distanciamento do
comandante com a corporação.
A opinião do jornal seria semelhante. Em uma nota de título “O Comandante”, o jornal
reconhece que Cerqueira “trata-se de oficial íntegro, que representa a vertente mais profissional e
competente” 463 da corporação, “um de seus mais dignos comandantes” 464 . Entretanto, também
advoga pela sua exoneração alegando que a “crise exige uma reformulação de métodos que
dificilmente será conseguida sem renovação de quadros, com ênfase num grau de energia e rigor que
épocas passadas jamais exigiram do Coronel Cerqueira.”465.
Cerqueira é mantido no cargo, mas no final de sua gestão não teria a mesma autonomia de
antes. Isto porque o ano de 1994 daria tons melancólicos com outro golpe duro e de certo simbolismo
no Comandante: a chamada “Operação Rio” a partir da intervenção do Exército em ações de repressão
ao tráfico de drogas nas favelas. .A favor da opinião pública pesava a lembrança recente da
intervenção do Exército durante a conferência internacional Rio-92. Embora fosse uma atuação
completamente diferente do policiamento ostensivo do dia a dia pois previa a atuação específica na
segurança dos chefes de Estado e nos locais por onde eles transitaram em um curto período de tempo,
a imagem fora a de uma cidade pacificada. Iniciada em outubro de 1994, a operação era o ponto
culminante de uma acumulada tensão envolvendo a opinião pública e a alegada perda de controle da
segurança pelo Estado.
Negociada entre o Ministro da Justiça Alexandre de Paula e o então governador Nilo Batista,

INSS, Félix Pacheco, Santa Casa de Misericórdia, além é claro, de equipes do Corpo de Bombeiros e da Polícia
Militar.”. Até o momento do relatório o programa estava sendo implantando no morro do Pavão-Pavãozinho e no
morro da Mineira, com previsão de implantação no morro da providência. Realizações de governo, Op. Cit., p.2-3.
459
Sobre o ICC deterei-me nas considerações finais.
460
COMANDANTE da PM entrega o cargo. O Globo, 01 de setembro de 1993, capa.
461
TRÊS facções em disputa pelo poder. O Globo, 02 de setembro de 1993, p.14
462
Ibid.
463
O Comandante. O Globo, 03 de setembro de 1993, p.11
464
Ibid.
465
Ibid.
169
a operação em um primeiro momento previa um grande plano nacional articulado entre polícia federal,
as polícias estaduais e as Forças Armadas no trabalho de repressão ao tráfico de drogas na origem,
ou seja, em fronteiras e não nas favelas. Entretanto, segundo Cerqueira o” desenrolar da citada
operação só veio a nos frustrar, pois, além da ausência da Polícia Federal, as Forças Armadas se
voltaram preferencialmente para as ações nas favelas (operação “enxuga gelo”)”(2001, p.59).
As ações ficaram marcadas mais pelo caráter espetaculoso de suas operações e de uma
aparente sensação de segurança do que por uma diminuição relevante dos índices de criminalidade.
Em editorial da Folha de São Paulo de dezembro de 1994, o jornal define a operação como algo com
“poucos resultados efetivos e muito abuso de autoridade”466, em que “não resultou em muito mais do
que boas cenas para cinegrafistas e fotógrafos e transtornos para os moradores.”467. O editorial aponta
para as ações arbitrárias e inconstitucionais do Exército, como revirar casas sem ordem judicial e
deter pessoas “apenas por estar sem documentos”468, bem como negar à OAB “o acesso às pessoas
que foram presas”469.
Como mencionado, Cerqueira escrevera sobre a intervenção. Este é um de seus textos mais
fortes, denominado “Remilitarização da segurança pública: a Operação Rio”. Aqui, em uma espécie
de mistura entre desabafo e acerto de contas com um saber militarizado que ele não entendia e que
tanto o perseguiu em sua formação e comandos, o autor já antecipa o tom de suas críticas para a
intervenção ao evocar o caráter histórico de militarização da segurança pública e da ingerência do
Exército em questões próprias da polícia no título.
Ao relembrar a gestão brizolista para chegar ao momento da remilitarização, partindo do
“fracasso de duas tentativas de se implantar uma proposta democrática de gestão do controle social e
penal” (2001, p.46) .o agora ex comandante -alertando que “o leitor se desarme de qualquer
preconceito antibrizolista ou anti-direitos humanos para poder acompanhar o exame da nossa
proposta” (p.47)- reconhece que as formas autoritárias próprias de uma herança militarizada
“estavam enraizadas nos “saberes” e “fazeres” policiais.”(ibid). Assim, era imperativo que se
precisavam construir “um saber e um fazer específicos, próprios da atividade de prevenção e
repressão ao crime. Ficava claro que a polícia não é tropa de guerra e que não existe inimigo a
combater e sim crime a prevenir ou reprimir”(p.48). Entretanto
não percebemos que a resistência dos policiais diante das novas propostas democráticas era
notadamente ideológica: resistiam porque não aceitavam adotar as novas propostas de
trabalho. Não percebemos também que setores importantes da sociedade não queriam a
adoção deste novo modelo (p.50)

Sobre a operação em si, o ex comandante atribui à “insegurança subjetiva” (p.51) causada

466
OPINIÃO. Folha de São Paulo, 22 de novembro de 1994. Disponível em
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/11/22/opiniao/1.html , acesso em 23/01/2019
467
Ibid.
468
Ibid.
469
Ibid.
170
pela opinião pública no aspecto psicossocial da população a decisão política da intervenção. Visto
que, segundo estatísticas obtidas pelo Iser, os índices de criminalidade se mantinham estáveis, embora
num padrão elevado, com relação aos anos anteriores, com crimes como homicídio estando em
declínio inclusive, ocorrendo, na verdade, um salto nas taxas de homicídio no período de intervenção
federal470. Assim, tal insegurança é provocada não só pela mídia e em especial pela TV Globo, mas
também pelos partidos interessados em capitalizar ganhos políticos em um período de eleições. Sobra
até para “alguns partidos políticos de esquerda, silenciosos em alguns instantes e em outros momentos
ardorosos defensores do processo interventivo” (p.55).
Vemos um Cerqueira angustiado com a barbárie diante dos seus olhos. No momento em que
escrevia o estado vivia sob o governo do agora tucano Marcelo Alencar. Retomando o modelo
pendular, este se elegera sob o discurso de endurecimento do crime e tendo no comando da secretaria
de segurança do já mencionado Nilton Cerqueira, egresso da ditadura e apologético do modelo
repressivo de policiamento471. O autor se mostra preocupado pela ampla legitimação por parte de
setores da sociedade de práticas punitivas e com recortes de classe.
Ele lembra, através de uma experiência vivida, como as próprias vítimas adotam tal discurso
através de uma fala que não é incomum de ser ouvida. A memória envolve quando uma “pobre
senhora, mãe de um suspeito morto pela polícia, lamentava a morte de seu filho, dizendo que ele não
era ladrão. Para ela estava bem claro que a morte seria adequada caso ele fosse ladrão.” (p.63). Assim,
o ex comandante termina seu texto recomendando uma coleção de artigos de Norberto Bobbio sob o
título “os fins justificam os meios”. “É uma leitura que recomendamos, particularmente aos políticos”
(p.67).

470
Entre 1990 e 1993 a contabilidade de homicídios dolosos, a despeito da sensação de “escalada de violência” e do alto
patamar, manteve-se estável: em 1990, para cada cem mil habitantes 63,03 foram vítimas de homicídios dolosos. Em
91, 59,74; 92, 60,11; 93, 60,18. Em 1994, entretanto, os dados superam as cifras de 1990, o mais alto até então: 64,90
assassinatos para cem mil habitantes. Se o ano inteiro em si se manteve em um padrão elevado de homicídios, salta
aos olhos o período entre novembro e dezembro, em que o aumento mensal foi da ordem de 21,3%. A título de
comparação, no ano anterior o aumento no mesmo período fora de 1,4%. Quando as taxas incluem nos homicídios
dolosos roubos seguidos de mortes, o salto se mantém: de 4,97 homicídios para cem mil habitantes em novembro para
6,02. No mesmo período do ano anterior, a variação fora de 4,66 para 4,77. (SOARES et al., 1996, p.274-276).
471
Quadro advindo dos órgãos de repressão do Exército, o general Nilton Cerqueira era notoriamente conhecido por seu
modelo de atuação repressivo. Secretário de segurança no governo Chagas Freitas (1979-1983), ele seria retomado ao
cargo no mandato de Marcello Alencar (1995-1999), à frente da também reestabelecida secretaria de segurança pública.
Sua gestão ficaria marcada pela medida lembrada como “premiação faroeste”, em que “policiais que se destacassem
no enfrentamento aos criminosos, recebia honras militares e gratificações adicionais ao soldo. O critério básico de
distinção: os números de bandidos mortos em ações policiais.” (SOARES e SENTO-SÉ, 2000, p.20).
171
Considerações finais

Apesar do final dramático da segunda gestão, Cerqueira cumpriria suas funções até o final do
governo. E, fora da PM e do cargo de secretário, seguiu ativo no campo da produção do conhecimento.
Cerqueira continuou proferindo palestras, visitando polícias de outros estados e ministrando cursos.
Por exemplo, temos em seu acervo no APERJ um e-mail de 1998, um ano antes de sua morte. Nele
consta um plano detalhado sobre um “curso de capacitação de policiais militares para o policiamento
comunitário” para a polícia do estado da Paraíba. Objetivando “familiarizar os policiais militares com
a filosofia e a metodologia do policiamento comunitário”, o curso era dividido em cinco módulos,
“direitos humanos e polícia”, “administração policial”, “dinâmica de grupos” administração de
conflitos” e “polícia comunitária” que se variavam em sua metodologia entre ensino à distância e
presencial com aulas expositivas, dinâmicas de grupo e “outras técnicas de ensino participativas” e
“trabalhos práticos”, embora não especifique quais.
A preocupação com uma polícia que dialogasse com o seu tempo também aparece no
documento “Projeto de Treinamento de Policiais”472. Embora não tenha a data, pode-se afirmar que
este é um documento dos anos 90 pois ele é um plano de curso para formar policiais que atuem dentro
dos parâmetros do Estatuto da Criança e do Adolescente, formulado no ano de 1990. É de se supor
que seja após o segundo comando pois Cerqueira assina como “vice-presidente”, o mesmo cargo que
ele ocupava no Instituto Carioca de Criminologia, embora aqui não diga qual a instituição. O ICC
elaborou um dos livros de sua coleção para a questão da criança e do adolescente, bem como ele
também oferecia cursos a quem manifestasse interesse.
Sobre o curso, vemos na sessão “introdução e objetivos”473, que Cerqueira defende que a
polícia brasileira “atravessa um período de transição, saindo de um ambiente autoritário e se
preparando para um novo ambiente social, agora democrático” 474 , em que muitos resquícios do
período ditatorial encontram-se nas práticas policiais. Assim, “é bastante comum os policiais
entenderem ser incompatível o modelo de eficiência que conhecem, plasmado no período autoritário,
e a política dos direitos humanos”475. Treinar os policiais dentro dos marcos da ECA envolve formar
os mesmos para os parâmetros da democracia em sentido amplo, em que ele evoca novamente a ideia
de polícia enquanto “organização de prestação de serviços públicos”476. Inserido nesse quadro maior,
o ECA só funcionaria articulado com “uma nova polícia”.
O curso é dividido entre os assuntos “administração policial”477, “proteção e tratamento de

472
In acervo da Coleção Coronel Cerqueira localizado no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ). p.1
473
Ibid.
474
Ibid.
475
Ibid.
476
Ibid.
477
Ibid., p.3
172
crianças e adolescentes”478, “justiça da infância e da juventude”479 além de exercícios de aplicação e
avaliação. É interessante ver o tópico “aspectos pedagógicos” 480 , em que destaco o subtópico
“técnicas pedagógicas”481, novamente pautando-se por dinâmicas de grupo e integração entre aluno
e professor. Além do esforço já visto em um ambiente participativo, também vemos novamente a
característica de aliar teoria e prática. Visto que o treinamento em si seria dividido em três fases, em
que
a primeira fase, constituída de três módulos, será desenvolvida em sala de aula, constando de
informações gerais sobre diversos temas e discussões sobre a sua aplicação; a segunda fase
será a de aplicação no campo; exercícios práticos, definidos em sala de aula, serão
desenvolvidos por grupos de alunos nas suas respectivas corporações; a terceira fase constará
da avaliação dos exercícios práticos e do próprio treinamento. 482

Como mencionamos, nesse período Cerqueira funda, junto com Nilo Batista e Vera Malaguti,
o Instituto Carioca de Criminologia. Criado em outubro de 1995, o ICC era um centro de produção
de pesquisas voltado para questões envolvendo polícia e segurança pública, sendo financiado pela
fundação Ford. Ele era responsável pela edição de uma revista própria denominada “discursos
sediciosos – crime, direito e sociedade”. Além disso, o ICC produzira uma coleção de livros, a
“Polícia Amanhã” reunindo um campo heterogêneo de autores da área da segurança pública para a
compilação de artigos em determinadas temáticas.
Visando, “produzir textos para preencher as lacunas na formação de policiais civis e militares
numa perspectiva democrática” 483 o ICC tinha como público-alvo as “Escolas de Formação de
Policiais (governos estaduais) e também projetos temáticos (capacitação de policiais para questões
específicas como crianças e adolescentes, violência contra a mulher, programas ambientais, etc.)”484.
Segundo Vera Malaguti, “Naquela época, a preocupação do Cerqueira era preparar um material de
formação; então, constituímos o Instituto e fizemos a revista.” (LEAL, PEREIRA, MUNTEAL
FILHO, Op., Cit,. p.40).
Assim, buscando uma “linguagem transformadora, produtora de um saber próprio, que não
seja legado mecânico nem da frutuosa experiência militar e nem da literatura jurídica” 485, o ICC
reuniu produção acadêmica e material didático para o aspecto formativo do policial. Isso se mostra
ao meu ver logo no primeiro volume da coleção, denominado “A polícia e os direitos humanos”
(CERQUEIRA, DORNELLES, 2001). Nele consta a tradução e adaptação para a legislação brasileira
do “manual de treinamento sobre direitos humanos para a policiais”, organizado pela ONU.

478
Ibid.
479
Ibid.
480
Ibid., p.2
481
Ibid.
482
Ibid., p.3
483
Projeto Coleção Polícia Amanhã. 1997. In acervo da Coleção Coronel Cerqueira localizado no Arquivo Público do
Estado do Rio de Janeiro (APERJ). p.3
484
Ibid.
485
Ibid.
173
Além do manual, a coleção possui dois textos introdutórios que chamam a atenção. O primeiro,
de título “Direitos Humanos e a atuação da corporação policial”(p.7), trata-se de uma apresentação e
comentários de Cerqueira sobre o manual, que tivera contato com o mesmo em um congresso em
Genebra em 1994 e fora trazido para a PMERJ em outubro deste ano para a realização de um curso.
Contendo tópicos como “direitos humanos e policiamento em regimes democráticos” (p.8), “direitos
humanos, polícia e não-discriminação” (p.9), “deveres e funções policiais” (ibid.), “direitos humanos
das vítimas – proteção e reparação”(p.12) e “investigações de violações dos direitos humanos
cometidas por policiais” (ibid.), Cerqueira, que não considera como excludentes o respeito aos
direitos humanos do criminoso com intolerância ao crime, termina o texto apontando o manual como
“um poderoso instrumento de educação e de treinamento da polícia em direitos humanos” (p.13).
O segundo texto, de João Ricardo Dornelles, intitula-se “Dilemas e impasses no processo de
educação para os direitos humanos” (p.15). Em sua concepção, educação e direitos humanos são
conceitos indissociáveis e que se influenciam mutuamente. Adotando um viés crítico-reflexivo, o
autor entende que, num país como o Brasil marcado historicamente pelo signo da violência, da
escravidão (desdobrando-se no racismo retroalimentado pelo mito da democracia racial), do
autoritarismo e do elitismo, tendo a polícia como órgão que ainda cumpre o seu papel de “capitão do
mato” (p.17) educar para os direitos humanos não só é uma necessidade como um desafio.
Nesse sentido, se os direitos humanos podem ser entendidos em um sentido amplo que envolve
tanto valores individuais como coletivos, valores como democracia, justiça social e emancipação,
educar significa não a manutenção e reprodução de marcas históricos persistentes, mas sua crítica.
Tal crítica e prática libertadora possui sua “referência-fundamento” (p.16) nos direitos humanos, em
que o manual que serve de base para o livro é um instrumento para tal na formação policial.
Segundo Maria Lúcia Aranha, a ação pedagógica caracteriza-se pela sua instância mediadora
na relação entre indivíduo e sociedade. Isso é permeado pelo discurso pedagógico de caráter
intencional, como já referido anteriormente. Tal intencionalidade deve ser engajada em uma reflexão
crítica da cultura e da sociedade, em permanente transformação. Esta é uma reflexão que deve partir
do próprio pedagogo em primeiro lugar, caracterizando-o como um intelectual transformador, em
suas palavras.
Isto se relaciona com o que José Carlos Libâneo aponta como a dupla dimensão do ato
educativo intencional: “primeira, precisamente a de ser uma atividade humana intencional; segunda,
a de ser uma prática social” (2010, p.33). As duas dimensões partem da mesma pergunta: quais
interesses estão por trás das propostas educacionais? A partir desse questionamento, o pedagogo,
enquanto intelectual transformador, desarma a arapuca da suposta neutralidade e do isolamento da
educação de outras dimensões da sociedade. Nesse sentido, orienta sua intencionalidade de forma
reflexiva.
Ao longo destas páginas, este trabalho buscou mobilizar elementos que possibilitassem uma
174
interpretação de Carlos Magno Nazareth Cerqueira enquanto um educador. Optou-se pela
metodologia biográfica não para se pensar monoliticamente, a partir de uma resposta pré-definida de
Cerqueira sob esse viés. Buscou-se, sim, a partir de suas contradições de um personagem
multifacetado e de visões multifacetadas sobre o mesmo, entender uma construção possível e não-
linear sob esse prisma. Afinal, enquanto homem do seu tempo, o Cerqueira dos escritos dos anos 70
como vimos no capítulo três não é o mesmo do ICC, que organiza um livro com um colaborador que
identifica a polícia como “capitão do mato” e denuncia as estruturas excludentes de nosso processo
histórico-social.
Acredito que este Cerqueira, que escreve um ano antes de sua morte em versos que “ser negro
é ser pobre” e em prosa que era um negro que “não foi preso, não foi assassinado e não correu da
polícia”, mas que fora um negro que correu para a polícia, também passou por um processo formativo
e que isto influenciou diretamente no também processo formativo que o mesmo pensava para a polícia.
Se existem momentos importantes apontados pelo próprio Cerqueira em seu processo de elaboração
de si no depoimento ao MIS como o curso de filosofia, e o momento em que ele se torna major e
começa a pensar polícia, creio que sua experiência no campo da política enquanto gestor público fora
um momento significativo.
Afinal, como seria o próprio depoimento ao MIS se o então ex-comandante não passasse pelo
contato com o movimento negro, bem como seus conflitos com indivíduos que o criticavam por “não
pensar como negro”? Existiria este depoimento? Não é o objetivo aqui encontrar respostas para tais
perguntas, mas apenas refletir sobre o que considero uma interpretação possível: a experiência
enquanto gestor público, atuando na arena da política e da negociação e diálogo com os mais variados
setores e movimentos, inserido num secretariado de um governo com uma linha de pensamento
progressista, inclusive um dos responsáveis por trazer para a institucionalidade de um partido pautas
reivindicadas pelas chamadas minorias (não todas, vale a ressalva), como o racismo fora um ponto
de inflexão na biografia do coronel. Não à toa Cerqueira se filia ao PDT em 1990.
Se podemos pensar na preocupação com a formação policial advinda desde seu período no
oficialato, ocupando cargos na direção de ensino, produzindo material que contribuísse para a
formação visando especificar a atuação policial perante um fazer que ele não entendia, é ao longo do
primeiro comando e principalmente do segundo que esta formação possui um caráter mais crítico,
reflexivo e politizado, o que influencia em uma atenção maior a questões como a violência policial,
direitos humanos e racismo.
Vimos medidas tomadas tanto no campo da educação formal (produção de material didático
como os cadernos de polícia, as cartilhas, a reestruturação no currículo e no processo de ensino
aprendizagem, os estágios mais voltados para o fazer policial moderno em oposição às táticas anti-
guerrilha oriundas da ditadura, a criação do centro de estudos na UERJ) quanto no da educação
informal (encontros com movimentos sociais, palestras, debates com representantes do funk). Assim,
175
acredito terem sido mobilizados elementos suficientes que demonstrem uma interpretação de
Cerqueira enquanto um pedagogo da polícia, produzindo materiais de forma sistematizada com uma
intencionalidade de ensinar algo a alguém dentro de um propósito transformador, e não de
manutenção dos saberes vigentes.
Transformação que não deixava de conservar valores caros para Cerqueira na organização
policial como hierarquia e disciplina. O processo de desmilitarização que o coronel investia era mais
voltado para a mentalidade por trás das políticas de segurança pública do que na estrutura da
corporação. Mesmo assim, tentativas de dotar aos policiais um caráter mais ativo e propositivo, como
na tentativa de formação dos grupos de pares geraram resistências grandes o bastante para ecoarem
em Brasília.
Nesse sentido, o policiamento comunitário por exemplo poderia ser pensado enquanto um
modelo concreto de duplo eixo formador, tanto para o policial quanto para o cidadão a partir do
diálogo e da colaboração mútuas, funcionando como uma força centrífuga. Uma educação informal
pensada na interpretação de Dornelles sobre a relação entre educação e direitos humanos. É de se
reconhecer a importância das transformações curriculares e da produção de material didático,
entretanto, e principalmente na atividade policial, a política educacional deve vir acompanhada de
uma alteração na prática cotidiana e de forma continuada. O projeto de policiamento comunitário fora
uma medida nesse sentido, e o caso de Copacabana fora a experiência mais concreta. Vimos,
entretanto, as resistências e os limites de tal projeto, sua estruturação precária e falta de articulação
entre as esferas do governo para o seu funcionamento. Vimos também que, a despeito das dificuldades
e do desmonte ocorrido no governo seguinte, o projeto era considerado por especialistas no mínimo
um ponto de partida interessante para outras experiências nos mesmos princípios.
Se podemos pensar no ex comandante como um educador de viés crítico e humanista para o
policial, ambiciono interpretar também nele como um educador dos direitos humanos perante uma
sociedade historicamente marcada pela repressão e violência. Seu esforço em uma colaboração
conjunta entre polícia e sociedade, além do já mencionado exemplo do policiamento comunitário,
abrindo os quarteis da primeira para palestras, debates, buscando melhorar a imagem da polícia
perante a opinião pública, bem como defendendo uma posição humanitária na arena da mesma são
mostras disso. Cerqueira tinha consciência de que seu modelo de policiamento só funcionaria
plenamente se a população fosse participativa com a polícia na mediação de conflitos, buscando
soluções em conjunto de forma preventiva.
Não era exatamente uma questão de transformação entre uma polícia “despreparada” para
uma polícia “preparada”. Afinal, se podemos discutir questões como condições de trabalho, baixos
salários e estrutura física, dentro de uma lógica repressiva e guerreira a polícia é mais do que
preparada e formada. Além disso, Cerqueira sempre defendera a importância da instituição policial
na mediação de conflitos, e sua busca de transformar a polícia era por, sobretudo, amor à corporação
176
que defendera na medida do possível. Assim, era uma tentativa de transformação de mentalidades, de
uma nova lógica de policiamento, por isso o peso dado às políticas educacionais para a formação
deste novo policial. O ex comandante acreditava que o cenário histórico lhe era favorável, como relata:
Não tinha dúvida de que as diretrizes políticas e o novo contexto democrático estavam
exigindo uma nova polícia, um novo policial e uma nova concepção de ordem pública que
fugisse dos parâmetros, até então adotados, da doutrina de segurança nacional. Tinha certeza
de que havia de uma necessidade de uma nova formulação filosófica, organizacional e
operacional para a polícia brasileira, acreditando que aquele momento democrático era uma
importante oportunidade para tal empreendimento (como me enganei!). (2001, p.169).

Tal fragmento encontra-se em um artigo publicado em 1998, um ano antes de sua morte. Ele
seria inserido posteriormente no volume póstumo da “coleção polícia amanhã”, o já mencionado “o
futuro de uma ilusão: o sonho de uma nova polícia”. A previsão pelo ICC era que a coleção constasse
de doze volumes, já sendo publicados cinco, “a polícia e os direitos humanos”, “do patrulhamento ao
policiamento comunitário”, “a polícia diante da infância e da juventude: infração e vitimização”,
“polícia e gênero” e “distúrbios civis: controle e uso da força pela polícia”.
Seu assassinato trágico encerrara abruptamente a coleção, bem como um período considerado
por pessoas próximas como de grande efervescência intelectual de Cerqueira. Morto por outro policial,
o primeiro comandante negro da história da corporação, o “negro que correu para a polícia” sofreu o
destino de tantos outros negros que morrem por uma política de segurança com os vícios herdados
do período ditatorial e da guerra às drogas, em que tantos policiais morrem também, seja pelo
confronto, seja pelos traumas e estresses que desaguam no suicídio. Nesta guerra em que tanto se
mata e se morre Cerqueira morreu por buscar, sobretudo, a paz. Seu legado, através de suas ideias e
experiências, persiste. Que ele seja aprofundado, criticado e difundido em busca do sonho de uma
nova polícia.

177
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Boletim da PMERJ nº17 10/04/1991

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Boletim da PMERJ nº36 de 08/05/1991
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