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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS DE RIBEIRÃO PRETO

DEPARTAMENTO DE MÚSICA

Prof. Dr. Luciano de Freitas Camargo

TÉCNICAS DE ENSAIO

Ribeirão Preto

2023
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS DE RIBEIRÃO PRETO

DEPARTAMENTO DE MÚSICA

Prof. Dr. Luciano de Freitas Camargo

TÉCNICAS DE ENSAIO

Pesquisa de pós‐doutorado
apresentada ao Departamento
de Música da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras de
Ribeirão Preto sob a supervisão
do Prof. Dr. Rubens
Russomanno Ricciardi.

Ribeirão Preto

2023

2
RESUMO

A performance musical em conjunto, seja instrumental ou vocal, é construída

essencialmente no processo de ensaio. Por esta razão, a efetividade das técnicas e

procedimentos adotados no decurso desse processo influi diretamente na qualidade do

resultado final da interpretação do conjunto. Com esta perspectiva, este trabalho propõe

um estudo sistemático de técnicas e estratégias que podem ser aplicadas em ensaios

corais e orquestrais, a fim de potencializar a efetividade do processo de preparação da

performance musical.

PALAVRAS‐CHAVE: Performance musical, regência, canto coral, prática orquestral.

ABSTRACT

The ensemble’s musical performance, whether instrumental or vocal, is built essentially

in rehearsal’s process. Thence, the effectiveness of the techniques and procedures

adopted in the development of this process directly influences the quality of the result

of the ensemble’s interpretation. From this perspective, this work proposes a systematic

study of techniques and strategies that can be applied in choral and orchestral rehearsals

to enhance the effectiveness of the musical performance preparation process.

KEYWORDS: Musical Performance; Conducting; Choral Singing; Orchestral Practice.

3
Lista de figuras e exemplos musicais

Figura 1 – A ʺMatriz da Confiançaʺ (BARRETT, 2017, p. 74)…………………………….…………40

Figura 2 – Início do quarto movimento da Bachianas Brasileiras nº 4 de Heitor Villa‐Lobos…….43

Figura 3 – Cifra 3 do quarto movimento da Bachianas Brasileiras nº 4 de Heitor Villa‐Lobos…...44

Figura 4 – Exercício de ajustamento de vogais………………………………………………………66

Figura 5 – Exercício de Caruso (FUCITO, BEYER, 1922, p. 186), ………….………………………67

Figura 6 – G. F. Haendel – Dixit Dominus HWV 232 – V. Coro – Tu es sacerdos in aeternum……..68

Figura 7 – Ludwig van Beethoven – Sinfonia nº 9 em Ré menor op. 125 – IV movimento…………69

Figura 8 – Vocalise de ressonância (MILLER, 2019, p. 138) …..……………………………………75

Figura 9 – Sinfonia nº 35 ʺHaffnerʺ KV 385 de W. A. Mozart – 2º movimento….…………………89

Figura 10 – Sinfonia nº 35 ʺHaffnerʺ KV 385 de W. A. Mozart – 1º movimento.….…………….…92

Figura 11 – 8. Chramer gip die varwe mir (Carmina Burana) de Carl Orff.…………………………101

Figura 12 – Exercício de intervalos melódicos (LECK, 2020, p. 61) ...…………………………….101

Figura 13 – Requiem KV 626 de W. A. Mozart – Offertorium ………………………………………110

Figura 14 – Moteto Jesu, meine Freude BWV 227 de J. S. Bach ..……………………………………114

Figura 15 – Quadro sinótico da estrutura de construção da polifonia ………………………..…116

Figura 16 – Estrutura esquemática do roteiro de ensaio por seções..…………………………….119

4
Sumário
INTRODUÇÃO........................................................................................................................... 6
1. PRESSUPOSTOS DO ENSAIO MUSICAL ................................................................... 10
1.1 Aproveitamento do tempo ............................................................................................ 10
1.2 Desenvolvimento do senso comunitário ..................................................................... 18
1.3 Construção de conhecimentos musicais ..................................................................... 25
1.4 A condição acústica como determinante da sonoridade do conjunto .................... 27
2. QUESTÕES DE LIDERANÇA INTERPESSOAL NA MÚSICA................................. 32
2.1 Chefe ≠ Líder ............................................................................................................... 33
2.2 Desafios da liderança ..................................................................................................... 37
2.3 Articulação de sublideranças ........................................................................................ 41
2.3.1 Lideranças de naipe na orquestra ....................................................................... 42
2.3.2 Lideranças de naipe no coro ................................................................................ 45
2.4 A mudança do “eu” para “nós” .................................................................................... 49
3. A TÉCNICA VOCAL COMO DINÂMICA DE ENSAIO ........................................... 53
3.1 Aquecimento vocal......................................................................................................... 54
3.2 Aplicações dos fundamentos da técnica vocal ........................................................... 57
3.2.1 Respiração .............................................................................................................. 58
3.2.2 Articulação ............................................................................................................. 63
3.2.3 Registros vocais ..................................................................................................... 69
3.2.4 Ressonância ............................................................................................................ 74
3.3 Técnicas de aprimoramento da afinação de vozes e instrumentos ......................... 77
4. ESTRATÉGIAS E DINÂMICAS DE AÇÃO APLICADAS ......................................... 82
4.1 Técnicas de ensaio aplicadas à orquestra .................................................................... 87
4.1.1 Leitura de diagnóstico .......................................................................................... 88
4.1.2 Refinamento da expressão e sonoridade ........................................................... 90
4.1.3 Marcação de arcadas............................................................................................. 94
4.1.4 A música orquestral enquanto criação coletiva ................................................ 94
4.2 Técnicas de ensaio aplicadas ao coro ........................................................................... 96
4.2.1 A questão da leitura musical ............................................................................... 97
4.2.2 A utilização do piano como instrumento de referência ................................ 103
4.2.3 Questões de texto e prosódia ............................................................................. 106
4.2.4 Processos de memorização e construção da polifonia ................................... 110
5. AS IMPLICAÇÕES DO ESTILO NA PREPARAÇÃO DA PERFORMANCE ....... 122
5.1 A questão da interpretação estilística em conjunto ................................................. 124
5.2 O estabelecimento do estilo na música escrita ......................................................... 130
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................. 135
REFERÊNCIAS ....................................................................................................................... 136

5
INTRODUÇÃO

O ato performático da execução de uma obra musical em conjunto, seja

por vozes ou instrumentos, é a culminância de um longo processo, que envolve

planejamento, estudo e, principalmente, a realização de ensaios. A qualidade de

uma execução musical é condicionada pelos diversos aspectos artísticos que

devem ser trabalhados nos ensaios que antecedem a sua realização. Por esta

razão, este trabalho propõe a elaboração de um estudo aprofundado sobre as

técnicas e estratégias que podem oferecer maior efetividade e aproveitamento

deste momento essencial do processo performático.

Entre as diversas etapas que constituem a atuação do regente, o ensaio

encontra‐se no centro desse processo (PAINE, 1988, p. 17). Johann van der Sandt

(2016, p. 10) reitera que “o ensaio é visto como a situação na qual a efetividade

de um regente é demonstrada. [...] A qualidade da performance é influenciada

pela efetividade do ensaio”1. A despeito da importância desse momento no

processo de preparação da performance, são raros os estudos corais ou

orquestrais que se concentram especificamente em técnicas e estratégias

aplicadas no desenvolvimento dessa etapa essencial do processo performático,

quando comparados a outros estudos das áreas de regência e performance

musical coletiva, tais como a técnica gestual da regência. Este trabalho tem por

objetivo, portanto, contribuir para a diminuição desta lacuna específica nos

estudos corais e orquestrais.

Ao coordenar uma realização em conjunto, o grande desafio do regente é

criar um ambiente produtivo, no qual todos os participantes estejam engajados e

1“The rehearsal is seen as the situation where a conductor’s effectiveness is chiefly demonstrated. […] The
quality of the performance is influenced by the effectiveness of the rehearsal.” (tradução nossa).

6
comprometidos com a música a ser feita. Hermann Scherchen (2002, p. 1), ressalta

que “o instrumento do regente é um instrumento vivo.”2 Portanto, compreende‐

se que questões de liderança interpessoal são intrínsecas ao processo da

performance musical em grupo, e a principal ação na qual essa liderança se

manifesta é justamente a condução dos ensaios. É evidente que vários fatores

externos, anteriores à realização do ensaio, também influem de forma decisiva na

qualidade da interpretação; por isso, considera‐se que a realização de um ensaio

eficiente se inicia com o seu planejamento, ação esta que implica em antever as

circunstâncias necessárias para que sejam atendidas todas as condições para a

realização de um ensaio efetivo.

Desta forma, este trabalho se propõe a sistematizar estratégias e técnicas

de ensaio baseadas na experiência de trabalho com coros e orquestras,

confrontada com estudos técnicos e científicos de áreas relacionadas, tais como

as questões de liderança interpessoal, administração de recursos humanos,

metodologias de memorização e treinamento cognitivo, musicologia analítica e

histórica relacionadas a questões de estilo, bem como uma revisão de estudos

desenvolvidos sobre processos preparatórios da performance musical em

conjunto por Henry Leck (2020), Johann van der Sandt (2016), Hermann

Scherchen (2002), Max Rudolf (1995), Ilya Mussin (1994), entre outros.

No primeiro capítulo serão abordados os pressupostos do ensaio musical

em conjunto. Uma das razões pelas quais optou‐se por abordar neste trabalho

tanto a atividade vocal quanto a atividade instrumental é justamente a

verificação de que vários pressupostos do ensaio musical são comuns às duas

práticas: o princípio de aproveitamento do tempo, o desenvolvimento do senso

2 “The conductor’s instrument is a live one” (tradução nossa).

7
comunitário, a construção de conhecimentos musicais e as condições acústicas

como determinantes da sonoridade dos conjuntos musicais.

O segundo capítulo é inteiramente dedicado à questão da liderança nas

relações interpessoais no ambiente musical. Serão abordados diferentes aspectos

da liderança, confrontados com experiências na área educacional e corporativa

apresentadas por Cortella e Mussak (2009), Hill e Lineback (2019), Gérald

Mailhiot (2013) e Richard Barrett (2017).

A questão da técnica vocal e suas implicações diretas na preparação das

obras corais é o objeto do terceiro capítulo, que é especialmente dedicado à

prática coral. Não se pretende oferecer aqui um guia para a preparação vocal de

um coro, proposta que transcenderia os objetivos deste estudo. Entretanto, é

necessário reconhecer que as condições técnicas do grupo influem diretamente

nos processos de preparação do repertório, de forma que será realizado um

levantamento dos problemas mais comuns enfrentados pelos regentes na

preparação de obras corais e se discutirá caminhos para sua resolução. Completa

o capítulo 3 uma reflexão sobre técnicas de aprimoramento da afinação para

vozes e instrumentos, que contempla de forma bastante assertiva, além dos

estudos corais, também a prática orquestral. Para além do desenvolvimento

técnico individual de cada músico que atua, entendemos que a afinação de um

conjunto é uma construção coletiva realizada no ensaio. O aprimoramento da

afinação envolve diversos fatores, em especial o timbre, a dinâmica e a

articulação, que requerem unidade e precisão dos executantes que só podem ser

alcançados com um treinamento eficiente.

O quarto capítulo apresenta estratégias e aplicações práticas de técnicas de

ensaio propriamente ditas. Por se tratar de técnicas bastante diferenciadas entre

orquestra e coro, o capítulo está dividido em duas partes, a primeira dedicada às

técnicas aplicadas à prática orquestral e a segunda dedicada às técnicas

8
específicas aplicadas ao coro. Por princípio, compreendemos que não há regras

ou técnicas universalmente aplicáveis – as estratégias de ensaio serão sempre

condicionadas ao repertório e às condições do conjunto executante. Entretanto,

serão apresentadas algumas técnicas que tem demonstrado bastante eficiência

em diferentes contextos e, por esta razão, são dignas de serem compartilhadas e

sistematizadas metodologicamente.

O capítulo final do trabalho inicia uma discussão sobre as implicações das

questões de estilo na performance. Sem a pretensão de abordar de forma

aprofundada este que é um dos maiores desafios do intérprete, propomos uma

reflexão sobre os problemas da escrita musical levantado por Harnoncourt (1998)

e suas implicações na performance em conjunto, bem como a compreensão

estilística das obras e a normatização dos aspectos musicais a ser adotada pelo

grupo, incluindo andamento, durações, articulações e equilíbrio dinâmico. No

sentido estrito do termo, propomos uma reflexão sobre o estabelecimento do

estilo na música escrita, cientes de que este possa ser o marco inicial de uma

pesquisa mais aprofundada sobre as relações entre as ciências da performance e

a compreensão histórica dos estilos como arquétipos e paradigmas

interpretativos referenciais, mesmo quando estes não estão nominalmente

expressos na partitura. A teoria das tópicas musicais, a partir de Leonard Ratner

(1980), consolidou um caminho consistente de análise das implicações da

significação musical na compreensão formal das obras e, a partir desta visão,

propomos o dimensionamento de seus impactos na performance. Partindo dos

pressupostos de Ratner, a compreensão das tópicas musicais está ligada

diretamente ao estudo do estilo e, portanto, trata‐se de assunto diretamente

relacionado à prática da performance.

9
1. PRESSUPOSTOS DO ENSAIO MUSICAL

Existem incontáveis formas e maneiras diferentes de se realizar um ensaio

musical – tão numerosas quanto são os diferentes tipos de conjuntos musicais,

desde os círculos de canto3 até as orquestras sinfônicas profissionais, incluindo

também conjuntos com finalidade formativa, tais como coros escolares e

orquestras jovens. Por isso, não há técnicas ou estratégias que se apliquem

indistintamente a todos os grupos. Entretanto, há alguns pressupostos que, em

pequena ou grande escala, estarão sempre presentes quando um grupo de

pessoas se reúne para fazer música. Entre estes pressupostos destacamos o

princípio de aproveitamento do tempo, sobre o qual são construídas as principais

estratégias de ensaio; o desenvolvimento de um senso comunitário, que está

associado, entre outras questões, à disseminação de uma cultura de disciplina

coletiva; a contínua construção de conhecimentos musicais, que faz do ensaio um

momento de aprendizado; e também as implicações da condição acústica do

ambiente no qual se realizam ensaios e concertos, que deve ser encarada como

determinante da sonoridade do grupo e, consequentemente, deve ser

considerada no planejamento das atividades.

1.1 Aproveitamento do tempo

Em qualquer contexto da ação humana que se possa considerar, o tempo

constitui um recurso valioso e limitado. Na era da informação, a racionalidade

do uso do tempo tornou‐se um imperativo, não só nos ambientes de trabalho,

mas também nos momentos de descanso e de lazer. Diretamente proporcional à

3 Singkreise: prática comum na Europa de canto coletivo com finalidade recreativa ou ocupacional.

10
autonomia de administração do tempo de um trabalhador, tanto mais desafiador

é o equilíbrio entre uma jornada de trabalho gratificante e um momento de lazer

e descanso satisfatórios. A realização de um ensaio consiste, portanto, na

utilização apropriada desse recurso valiosíssimo: dos músicos profissionais, sua

jornada de trabalho; dos músicos voluntários, seu momento de lazer; dos

estudantes, seu tempo de formação. O tempo, nestes três casos, deve ser

igualmente valorizado e tratado com o respeito devido.

Quando se trabalha com cantores e instrumentistas profissionais o

aproveitamento do tempo configura‐se como uma condição de viabilidade

financeira: o custo do trabalho de um músico qualificado é tão alto que um

projeto que não apresente um dimensionamento adequado de ensaios e

apresentações torna‐se inviável financeiramente. Existe uma equação financeira

que é difícil de administrar quando observada do ponto de vista exclusivamente

econômico: apresentações constituem receitas – ensaios constituem despesas.

Somente quem já teve a experiência de administrar concertos e espetáculos sabe

que o ponto de equilíbrio ideal deveria constituir uma paridade entre

apresentações e ensaios. Em outras palavras, a economia da música viável é

aquela para a qual os ensaios são financiados através da realização de muitas

apresentações. No meio profissional, é praticamente inviável realizar mais do

que cinco ensaios para uma única apresentação, considerando‐se um pagamento

satisfatório para os músicos. Portanto, o dimensionamento dos projetos musicais

deve sempre passar por um cálculo de viabilidade que possa equilibrar a

quantidade necessária de ensaios com a quantidade de apresentações a serem

realizadas.

Esta situação se diferencia dos grupos voluntários ou formativos que, por

seu caráter de aprendizado, normalmente se dispõem a realizar trabalhos

extensivos sem remuneração. Por esta mesma razão, não é raro encontrar

11
trabalhos de grupos voluntários que apresentam uma ótima qualidade – muito

provavelmente, estes grupos realizaram uma quantidade de ensaios que seria

inviável com um grupo profissional. Entretanto, ao considerar o trabalho não

remunerado de um músico amador, engana‐se aquele que compreende o

trabalho voluntário como um recurso “infinito” – pelo contrário, o músico que se

dispõe a se engajar voluntariamente tem muita clareza de seus objetivos quando

emprega seu tempo de descanso e lazer em uma atividade artística. O músico

amador – no melhor sentido do termo, como aquele que é músico por amor –

normalmente realiza uma dupla jornada de trabalho, e por isso sabe valorizar o

tempo que dedica: se a proposta não for artisticamente gratificante, certamente

esse músico não persistirá em seu engajamento. E uma proposta artisticamente

gratificante só é realizada se ela for consistente – isso significa ser feita com

qualidade, com planejamento, em um tempo adequado e racionalizado. Portanto,

a atividade voluntária requer ainda mais eficiência no emprego do tempo, pois

só assim poderá contar com voluntários mais experientes e qualificados que,

exatamente por não dependerem dessa atividade para sobreviver, tem uma

ampla possibilidade de escolha e exigência de qualidade em relação à atividade

que elegeram para se engajar.

Partindo‐se desta reflexão, conclui‐se que, qualquer que seja a natureza do

grupo musical em questão, a realização de um ensaio precisa ter sempre em vista

a utilização racional do tempo. Segundo Sérgio Figueiredo (1990, p. 5), “o

regente deve ter um planejamento adequado para que haja um maior

aproveitamento do tempo nos ensaios, sem desperdícios e sem levar o grupo ao

desinteresse ou à fadiga”. Esse planejamento deve contemplar estratégias

efetivas de potencialização do tempo de ensaio, que sejam capazes de produzir

melhores resultados.

12
A elaboração de estratégias de utilização do tempo de ensaio está

diretamente ligada à estrutura musical do repertório a ser preparado – a natureza

da polifonia da obra, em associação com a experiência e capacidade técnica do

grupo – é determinante para o estabelecimento do cronograma de ensaios. O

regente deve sempre ter em mente que toda polifonia é, em essência, uma

combinação de diferentes uníssonos simultâneos. Carlos Alberto Figueiredo (in

LAKSCHEVITZ, 2006, p. 8), enfatiza que


Cantar em coro é sempre cantar em uníssono. Parece estranho dizer
isso, quando a maior parte das obras feitas por coros é a duas, três e
mais vozes. Não podemos perder de vista, porém, que cada cantor ‐
soprano, contralto, etc.‐ canta em uníssono com seus colegas de naipe.
Assim sendo, a busca de um perfeito uníssono é um passo importante
em qualquer etapa de um ensaio, um ideal. Falar em uníssono
significa enfatizar, antes de tudo, a afinação perfeita, que deve passar,
necessariamente, pela emissão igual das vogais, essenciais na formação
do som de um cantor. Significa, também, a emissão das articulações das
notas no momento absolutamente preciso, o que toca, também, na
questão da emissão das sílabas que estão sendo cantadas, com o
cuidado especial com as consoantes, elemento articulador por
excelência. Significa, finalmente, a fusão ideal dos timbres dos diversos
cantores envolvidos, passo muito difícil, não só tecnicamente, mas
também pela necessidade do cantor saber dosar entre o dar mais de si
e o ceder.

As observações de Carlos Alberto Figueiredo indicam uma direção

acurada para a realização de ensaios: tão importante quanto a capacidade de

cantar em polifonia é a capacidade de um naipe de cantar em uníssono preciso,

timbrado e expressivo. Fica claro também que a construção desse uníssono

requer um trabalho específico de desenvolvimento da sonoridade e precisão na

articulação que demanda tempo de ensaio. Portanto, ao ensaiar uma obra a quatro

vozes com um coro, o trabalho de uníssono em um dos naipes acarretará o tempo

de espera dos outros três naipes – situação esta que compromete seriamente a

utilização racional do tempo aqui considerada. Portanto, a realização de ensaios

por naipes ou por seções separadas constitui uma estratégia fundamental para

13
diminuir o tempo de espera dos diferentes grupos, enquanto o trabalho centrado

em determinada seção ou naipe é desenvolvido.

Rapidamente o regente perceberá também outras vantagens de se ensaiar

os naipes em separado, em especial a mitigação da tendência natural de se imitar a

voz mais aguda, problema recorrente em corais iniciantes e amadores: quando

contraltos ensaiam separadamente – sem ouvir o ensaio das sopranos – tenderão

a fixar a sonoridade de sua linha melódica, diminuindo o risco de “entrarem” na

linha de sopranos – falha comum quando as vozes ensaiam sempre juntas, umas

ouvindo o ensaio das outras. A mesma situação ocorre entre tenores e baixos –

um naipe inexperiente de baixos terá sempre a tendência a imitar a linha de

tenores uma oitava abaixo e, nos casos em que as linhas melódicas sejam muito

semelhantes, verifica‐se também a tendência de ambas as vozes imitarem a linha

de soprano, especialmente quando esta é constituída por uma melodia já

conhecida, tal qual ocorre em arranjos corais de melodias populares. O regente

deve então conhecer estas tendências, provocadas em grande medida pelo fator

acústico, e planejar uma estratégia para diminuir seu impacto.

Concluímos então que a realização de ensaios de naipe constitui um

procedimento imperativo no processo de preparação de um repertório. Pode‐se

estabelecer uma relação proporcional entre a quantidade de ensaios de naipe

necessários e o nível de desenvolvimento técnico dos executantes – quanto menor

o nível de desenvolvimento técnico, tanto maior deverá ser a realização de

ensaios de naipe. Entretanto, mesmo quando se trata de músicos qualificados, de

nível técnico avançado, não se pode prescindir da realização de ensaios de naipe.

Segundo Emile Jaques Dalcroze (2013, pos. 2568), “os indivíduos que compõem

um coro, ainda que sejam talentosos, jamais produzirão um efeito realmente

14
dramático enquanto estiverem atuando independentes uns dos outros”4. Uma

voz só encontrará sua identidade expressiva no contexto de uma obra musical se

ela puder consolidar sua sonoridade e expressão de forma homogênea com as

vozes que executam a mesma parte. Músicos experientes normalmente realizam

esta tarefa de forma bastante breve; entretanto, ainda que breve, esta etapa jamais

deve ser negligenciada.

Esta reflexão, realizada basicamente sobre a atividade coral, está longe de

ser restrita a ela. O trabalho orquestral, em toda a sua complexidade, apresenta

problemática semelhante, apesar de diferir em certos aspectos. Antes de tudo, o

regente orquestral deve observar que os instrumentos de sopro são, em essência,

solistas: há uma parte única para cada executante, ainda que atuem de forma

integrada em grupos. Já as cordas articulam‐se sempre em conjunto – as cordas

são “corais”, uma vez que uma mesma parte é executada por muitos músicos

diferentes simultaneamente. Por esta razão haverá, majoritariamente, um grande

ganho quando se realiza ensaios separados dos instrumentos de corda. Nas

práticas orquestrais do El Sistema, referência mundial da performance sinfônica

desenvolvida na Venezuela, os ensaios separados são chamados de oficinas e são

realizados à exaustão. Os resultados dessa prática são inequívocos – basta se

observar as orquestras venezuelanas em concerto. Pelo contrário, quando se

observa uma orquestra que apresenta resultados musicais insatisfatórios,

normalmente estes resultados estão associados à aparente desigualdade na

performance dos naipes: membros de um mesmo naipe tocando com articulações

e arcadas diferentes, em regiões do arco incompatíveis, quantidades distintas de

arco, entre outras questões, cujas resoluções não deveriam ser tratadas na

4 “The individuals composing a chorus, however gifted, will never produce a really dramatic effect so long
as they act independently of one another” (tradução nossa).

15
presença de instrumentos de sopros ou percussão. Estes, por sua vez, possuem

questões próprias, com pouca ou nenhuma ligação com a abordagem das cordas

e, portanto, podem ter seu tempo melhor aproveitado se estas questões forem

tratadas em ensaios específicos.

Com relação ao trabalho orquestral profissional, sabemos que, muitas

vezes, as limitações materiais se impõem. Prazos exíguos de preparação, falta de

remuneração adequada ou correspondente ao trabalho a ser realizado pelos

músicos são, entre outros, alguns dos problemas que impedem uma preparação

adequada do repertório. Ainda que sob condições não plenamente satisfatórias,

é possível mitigar estes efeitos realizando‐se ensaio(s) prévio(s) com os chefes

de naipe: a utilização de partes orquestrais com arcadas já marcadas tem um

impacto substancial no aproveitamento do tempo de ensaio de uma orquestra. A

sistematização desta prática, normalmente factível em qualquer contexto, trará

um benefício substancial para o processo de preparação de um repertório

orquestral, seja com músicos amadores, estudantes, ou mesmo músicos

profissionais.

Oportunamente discutindo‐se sobre a preparação prévia das partes

orquestrais e, aqui estendendo‐se a questão também às partituras corais, é

fundamental que o regente se certifique que o material esteja legível, com a

diagramação apropriada (referindo‐se especialmente às viradas de páginas,

especialmente nas partes de orquestra), com uma encadernação apropriada, e

com partes compatíveis entre si e também em relação à edição utilizada pelo

regente. Além de questões práticas como a numeração de compassos e letras (ou

números) de ensaio que precisam ser compatíveis, há também discrepâncias

editoriais de notas, dinâmicas, abreviaturas, ritornellos etc. que podem

comprometer seriamente o tempo de ensaio. Cada minuto utilizado na revisão

prévia dos materiais e partituras utilizados compensará em grande medida a

16
economia de tempo relativa aos problemas de divergência entre partes e

partituras, que podem comprometer seriamente cronogramas que não tiverem

flexibilidade. Observe: é praticamente impossível realizar um ensaio orquestral

se não houver números de compasso ou letras/números de ensaio indicativos.

Portanto, antes de produzir ou entregar as partituras corais ou partes orquestrais,

certifique‐se que a numeração de compassos ou letras/números de ensaio estejam

presentes em todas as partes de orquestra e sejam compatíveis com a partitura

utilizada pelo regente.

O cuidado com a edição a ser utilizada da obra que se pretende apresentar

resolve não somente questões práticas de numeração de compassos ou

discrepâncias de notação, mas também questões musicais essenciais, tais como

notas e articulações, que muitas vezes encontram divergências entre diferentes

edições. Pela escassez de fontes primárias e por sua própria natureza

interpretativa, o repertório renascentista e barroco apresenta com maior

frequência divergências relevantes. Músicos utilizando diferentes edições

tendem a compreender a obra musical e sua agógica de forma diferente e,

portanto, interpretá‐la de modo diverso. A conciliação de divergências no

material pode consumir uma porção significativa do tempo de ensaio que

poderia ser melhor aproveitada no processo de preparação da obra. Portanto,

constitui um pressuposto da ação musical conjunta que o regente verifique com

atenção e prepare todo o material gráfico a ser utilizado pelo grupo, seja um coro

ou uma orquestra. Conjuntos profissionais normalmente contam com arquivistas

especializados contratados que são responsáveis pelo material a ser utilizado.

Ainda assim, o regente deve verificar o material com a devida antecedência a fim

de que possíveis divergências não se tornem fatores de utilização inadequada do

tempo de ensaio. Em grupos amadores recomenda‐se a indicação e treinamento

de uma pessoa voluntária que se disponha a responsabilizar‐se pelo arquivo de

17
partituras do grupo5. Entretanto, a existência de uma pessoa encarregada da

organização de partituras e materiais de um grupo, seja ela profissional ou

voluntária, não dispensa a supervisão cuidadosa do regente em relação ao

material que será utilizado na performance.

1.2 Desenvolvimento do senso comunitário

Indistintamente dos objetivos, condições ou natureza de sua proposta

artística, o sucesso da realização de uma atividade musical em conjunto depende

essencialmente do comprometimento de seus participantes. No campo

profissional, este comprometimento muitas vezes é identificado com as

condições financeiras da ação, pressupondo que a remuneração seja o elemento

fundamental do compromisso do artista. Entretanto, a observação ampla das

diversas manifestações musicais em conjunto na atualidade e também na história

demonstra que o comprometimento efetivo do participante está diretamente

relacionado com o reconhecimento do projeto artístico e humanístico da

atividade, e em várias circunstâncias a qualidade desse reconhecimento supera a

própria relação profissional ou provento financeiro do engajamento em

determinado grupo. Esta afirmação não contraria a importância da valorização

do profissional da música em seus mais diversos ramos de atividade – pelo

contrário, é absolutamente natural que o músico profissional procure e selecione

a melhor remuneração pelo seu trabalho, que normalmente vem acompanhada

de melhores condições de realização, e se engaje nessa atividade6. A fim de se

5 Na língua alemã, a pessoa responsável pelas partituras de um grupo musical é chamada de


Notenwart.
6 Ao tratar‐se deste assunto complexo, não se pode ignorar também a ocorrência de relações

profissionais precárias às quais muitos músicos são obrigados a se submeterem exclusivamente

18
esclarecer a sutileza desta questão, propomos a observação desta relação do

ponto de vista institucional da entidade organizadora. É evidente que o regente

ou coordenador de uma atividade musical, almejando o rigor artístico que só

pode ser oferecido por músicos profissionais, deverá elaborar um planejamento

que contemple uma remuneração adequada aos participantes, condizente com a

carga horária, com a responsabilidade, com o tempo exigido para a preparação

do repertório, entre outros fatores. Para além destas questões, é necessário que o

diretor da ação musical conjunta tenha em mente que o comprometimento do

músico com a atividade para a qual foi contratado constitui um desafio que

transcende a relação profissional do músico com a organização que o contrata. O

músico remunerado coloca seu tempo à disposição de um grupo ao ser

contratado, assim como o estudante de música coloca seu tempo à disposição do

professor durante sua formação. Entretanto, o fazer musical em plenitude exige

um grau de comprometimento espiritual que só pode ser realizado a partir de

uma motivação intrínseca ao fazer artístico – o músico precisa desejar

intimamente realizar aquela conexão metafísica que é efetivada no fazer musical,

tal qual descrito por Nietzsche (1999, p. 20)7, enfatizando a dimensão dionisíaca

inerente ao impulso criativo da música. Tal impulso criativo tem sua gênese no

próprio ato musical e dificilmente pode ser afetado por fatores não‐musicais que

não sejam a própria viabilidade de sua existência. É justamente nesse momento

que o músico percebe a inexorável interdependência entre os executantes de uma

obra e a necessidade do estabelecimento de um vínculo espiritual que, deixando

em busca de seu sustento. Nestes termos, é evidente que a própria natureza deste tipo de
atividade não tem a qualidade artística como meta e, portanto, suas questões relacionam‐se mais
com a sociologia do que com as ciências da performance.
7 O nascimento da tragédia do espírito da música (Die Geburt der Tragödie aus dem Geiste de Musik),

I.

19
o artista vulnerável em seus mais profundos afetos, potencializa sua força e seu

ímpeto em um grau que jamais poderia ser alcançado individualmente: “fazer

música constitui uma lição de humanidade, pois a interrelação entre os

musicantes constitui sempre um exercício de cooperação e interdependência

mútuas” (CAMARGO, 2018, p. 48). Esta noção de interdependência, a longo

prazo, se consolida no estabelecimento de um senso comunitário entre os

integrantes de um grupo, criando um ambiente favorável ao desenvolvimento de

atividades artísticas com o rigor correspondente à ambição de seu projeto. Trata‐

se, portanto, de um pacto pela qualidade do que se realiza – quanto mais robusto

esse pacto, tanto mais audacioso poderá ser o objetivo, pois a confiança

multilateral se torna um incentivo para a superação conjunta dos desafios, que se

tornam objetivos de interesse de todos.

Em grupos amadores, especialmente em corais, o desenvolvimento do

senso comunitário é mais evidente, uma vez que a adesão ao grupo é voluntária

e normalmente não depende de circunstâncias materiais. O músico profissional

que eventualmente não encontra satisfação artística no engajamento em

determinado grupo pode permanecer no contrato em nome de sua necessidade

material. O músico voluntário, por sua vez, tem em sua satisfação pessoal o

principal (e, talvez, o único) critério para se engajar em uma atividade musical

em grupo e, por isso, seu engajamento depende diretamente do senso

comunitário do grupo, seu acolhimento e a consolidação de sua sensação de

pertencimento. Sinal inequívoco desta questão é a consideração do canto coral,

em sua dimensão voluntária, como atividade aglutinadora e potencial

ferramenta de integração de pessoas: “a atividade coral é associativa por

excelência, sendo um trabalho de equipe que, bem conduzido, prepara

20
indivíduos para uma convivência positiva em sociedade.”8 (LAKSCHEVITZ,

2006, p. 9).

Tão desafiador quanto o desenvolvimento do senso comunitário entre

músicos profissionais é a construção coletiva em ambientes de formação, tais

como universidades e escolas de música, em grupos com finalidade pedagógica.

Neste contexto, verifica‐se também uma relação utilitária: o canto coral ou a

prática orquestral constituem créditos de ensino necessários para se concluir

determinado curso de formação. Esta relação caracteriza uma divergência de

propósito, uma vez que a realização musical não constitui a finalidade em si, e

impacta consideravelmente o processo de formação de um senso comunitário no

grupo e, em última instância, o planejamento e as técnicas de ensaio a serem

empregadas na condução destes grupos. A sazonalidade da atividade – com a

entrada e saída de alunos a cada semestre – também desempenha um papel

decisivo no contexto, pois períodos de seis meses constituem prazos demasiado

curtos para a consolidação do senso comunitário em conjuntos musicais que, fora

deste contexto, devem trabalhar sempre projetando prazos maiores.

O caso do trabalho com orquestras universitárias ou conservatoriais,

quando são integradas por instrumentistas executantes que têm seus

instrumentos como atividade principal, tende a ser bastante colaborativo, de

forma que o desenvolvimento do senso comunitário se torna propício. O

estudante tende a compreender a prática orquestral curricular como parte do

8 Apesar da evidente consideração do potencial integrativo da atividade coral (ou mesmo de


outras atividades musicais), sua importância jamais deverá ser medida a partir de sua
instrumentalização – antes de ser “útil” para alguma finalidade extramusical, a atividade musical
em conjunto deve ser compreendida como um fim em si, e jamais subordinada a “utilidades”
extramusicais. No afã de defender o movimento coral, alguns regentes apelam para justificativas
que, por mais relevantes que sejam, jamais superarão a finalidade intrínseca do próprio fazer
musical.

21
aprendizado de seu instrumento principal e normalmente mostra‐se predisposto

ao trabalho. Até mesmo a propensão à rivalidade entre grupos, traço típico de

determinados momentos da juventude, constitui um fator contributivo com a

integração e o desenvolvimento do trabalho em equipe no contexto educacional.

Entretanto, a falta de experiência prática ou a imaturidade afetiva podem criar

situações de conflito que podem impactar a coesão do grupo, e devem receber

uma atenção especial do professor. Já a prática coral curricular, especialmente

quando seus integrantes não têm o canto como sua atividade musical principal,

acarreta dificuldades mais sérias. Apesar de haver uma unanimidade centenária

em torno da importância do canto coral na formação de músicos – sejam

instrumentistas ou cantores – há uma resistência constante entre os

instrumentistas ao ato de cantar. Talvez a alta exigência que os instrumentistas

desenvolvem com a sonoridade de seus instrumentos contraste com a falta de

apuro técnico de sua expressão vocal, causando certa rejeição ao canto. Portanto,

cabe ao professor a tarefa de convencimento do estudante de música

instrumentista que ele pode cantar bem e fazer música cantando. Esse processo de

convencimento deverá então basear‐se em uma estratégia de ensino e

treinamento assertivo da técnica vocal que permita ao aluno sentir‐se à vontade

cantando, bem como uma seleção apurada do repertório. Instrumentistas tendem

a trabalhar repertórios mais complexos com seus instrumentos e, por isso, têm a

necessidade de encontrar no repertório coral um desafio compatível com sua

atuação como instrumentista, bem como vislumbrar no canto coral uma ação que

provoque uma correlação imediata com seu objetivo principal que é o

aprendizado de seu instrumento. Um aluno que estuda sonatas de Beethoven em

seu instrumento terá dificuldades em se entusiasmar com o canto de arranjos

22
simplificados de canções folclóricas9, e o regente, ao realizar a programação do

repertório, deverá considerar estas questões – a pergunta é: o que o aluno

efetivamente aprenderá cantando o repertório proposto? Esta problemática

deverá ser seriamente considerada no planejamento do trabalho com corais

pedagógicos, e certamente configura‐se como um dos maiores desafios de

regentes corais quando se tornam professores e líderes de atividades musicais

em conjunto em entidades educacionais.

O desenvolvimento do senso comunitário a partir de um pacto em torno

da realização artística em conjunto desempenha um papel essencial na disciplina

coletiva do grupo – condição sine qua non da música em conjunto. Considerando‐

se a importância do já mencionado uníssono coletivo, entende‐se que é necessária

disciplina para a realização de articulações musicais e agógica precisas, bem

como a evidente necessidade de precisão na execução rítmica e melódica. Essa

cultura disciplinar parte do macro para o micro – somente um grupo disciplinado,

assíduo, diligente e pontual, será capaz de cumprir o rigor necessário inerente à

performance musical em conjunto. Entretanto, o regente deve ter claro que a

disciplina começa com o líder. Antes de exigir pontualidade dos músicos,

pergunte‐se: os ensaios iniciam‐se pontualmente? Os preparativos para o ensaio

foram feitos no devido tempo? Muitas vezes o regente depara‐se com o dilema:

9 Não se pretende aqui emitir qualquer juízo de valor com relação ao repertório clássico em
relação à música folclórica ou popular. Toda música tem o seu valor estético próprio intrínseco e
quaisquer comparações são evidentemente impróprias. Entretanto, o termo clássico já define que
há um reconhecimento comum em torno do valor artístico de determinadas obras, enquanto o
trabalho com repertórios inovadores, sejam eles relacionados com manifestações populares ou
experimentais, estão sujeitos a carecer, em seu processo de preparação, ter o seu propósito
artístico manifesto ou claramente explicitado na proposta. Quando o propósito é substancial e
sua consistência artística é enfatizada pelo regente, certamente é possível conquistar o
engajamento de qualquer músico, seja cantor ou instrumentista, que terá a oportunidade de
desenvolver sua sensibilidade musical para além da música histórica, usualmente privilegiada
pelas instituições de ensino.

23
começar pontualmente um ensaio faltando muitas pessoas, ou atrasar o ensaio

esperando a chegada dos faltantes? Como regra geral, atrasar deliberadamente

um ensaio somente colabora com a indisciplina e falta de pontualidade de um

grupo – afinal, o participante que chega atrasado sente‐se “justificado” quando,

ultrapassado o horário estabelecido de início, o ensaio ainda não começou. Por

outro lado, iniciar o ensaio com o grupo desfalcado pode comprometer o

cronograma de obras de maior complexidade. Sobre este assunto, Leck (2020, p.

82) propõe, no contexto do canto coral: “Dê o pontapé inicial nas vozes fazendo‐

os cantar algo que já experimentaram, mas que ainda precisa de trabalho. Então,

trabalhe continuamente com material mais difícil até que estejam completamente

focados e aquecidos.” No trabalho orquestral, considerando que em alguns

momentos é inevitável ou irremediável a ausência ou atraso de um ou mais

instrumentistas, o regente deve estar preparado para iniciar o ensaio com aquela

seção na qual o instrumento faltante não toque, ou não tenha atuação

preponderante. A utilização sistemática destas propostas torna‐se efetiva

principalmente quando a cultura da pontualidade ainda não está disseminada no

grupo. Esta estratégia ajuda a consolidar a disciplina coletiva, diminuindo o

impacto negativo da chegada tardia de participantes no ensaio.

Mais do que um pressuposto da prática de musical em conjunto, o

desenvolvimento do senso de comunidade tem uma relação direta com as

questões de liderança interpessoal na regência, e será abordado de forma mais

aprofundada no próximo capítulo, com a abordagem na perspectiva de liderança

como habilidade aplicada a técnicas de ensaio.

24
1.3 Construção de conhecimentos musicais

Além dos casos evidentes de grupos musicais vinculados a instituições de

ensino de música, que têm por objetivo primordial a formação do músico, é

inerente a toda prática coletiva de música uma dimensão formativa, em maior ou

menor grau, que compreende a construção e compartilhamento de

conhecimentos musicais.

Mesmo nos conjuntos profissionais, nos quais se espera a participação de

músicos formados e experientes, o ensaio constitui, por natureza, um espaço de

experimentação e intercâmbio de experiências. Por esta razão, o já mencionado

“pacto comunitário” que se forma em torno da prática musical deve ter como

pressuposto o desenvolvimento musical de seus membros.

Nos grupos voluntários esta dimensão torna‐se ainda mais marcante e

deve receber especial tratamento, considerando que, na maioria dos casos, a

própria atividade musical deve assumir a responsabilidade pela formação do

participante. Referenciado em estudos de Paul Brandvik (1993, p. 49), Ângelo

Fernandes (2009, p. 197) afirma que


Uma estimativa aproximada revelou que pelo menos 95% dos cantores
corais de todo o mundo (14.250.000 em 1992) não estudam canto com
um professor particular, de onde se conclui que o preparo vocal desses
milhões de coralistas está nas mãos de seus regentes.

Em sua reflexão, Fernandes (2009, p. 198) prossegue, enfatizando os

postulados de Richard Miller (1996, p. 58) a respeito do canto coral:


Um som coral completo só pode ser alcançado quando os cantores do
grupo usarem suas vozes eficientemente. É dever do regente coral
ensinar os coristas como se tornarem cantores eficientes, de forma que
as exigências musicais a eles impostas os beneficiem e não os

25
prejudiquem, e assim, a qualidade do som do conjunto seja da mais alta
condição possível.10

No canto coral, além do desenvolvimento da técnica vocal – que é pré‐

requisito para o desenvolvimento da sonoridade do grupo – há também a

necessidade do desenvolvimento de conhecimentos teóricos e da técnica de

solfejo, que devem fazer parte do planejamento e do trabalho de qualquer grupo

coral. Comentando essa dimensão formativa da prática coral, Sérgio Figueiredo

(1990, p. 13), afirma que


É no ensaio que se constrói o conhecimento musical de um grupo. São
várias as habilidades exigidas dos integrantes de um coral. Diversos são
os treinamentos que ocupam o ensaio com a finalidade de promover
aprendizagem. Estes treinamentos devem possuir um objetivo comum:
facilitar a realização musical.

Dessa forma, conclui‐se também que constitui um pré‐requisito da prática

musical em conjunto a elaboração de um programa de desenvolvimento técnico

e artístico de seus membros, cuja execução deve estar integrada no momento de

ensaio, mas que não deve se limitar a este. O planejamento de cursos, oficinas e

seminários revela‐se uma importante estratégia complementar para o

desenvolvimento técnico dos membros de um grupo.

No contexto de coros amadores e recreativos, em inúmeros debates sobre

este assunto com diferentes regentes, surgiram relatos sobre a atividade de corais

cujos integrantes não dominavam a leitura musical e o consequente tempo

excessivo que era necessário para o aprendizado de obras de duas ou mais vozes

com esses grupos. Questionamos: será que o excessivo tempo que era utilizado

10 “A complete choral sound can be achieved only when the singers within the ensemble use their
voices efficiently. It is the duty of the choir director to teach the choristers how to become efficient
singers, so that they will profit from, and not be injured by, the musical demands placed on them, and
so that the quality of sound from the ensemble is of the highest possible order.”

26
para o aprendizado exclusivamente “de ouvido” de obras novas não seria muito

melhor empregado se fosse dedicado ao ensino dos fundamentos básicos da

teoria musical e do solfejo? Constatamos que não só o tempo teria sido melhor

aproveitado, como também o resultado musical seria significativamente melhor,

pois a leitura de partitura garante não só um aprendizado mais ágil das partes

musicais, mas também favorece a maior precisão na execução dos diversos

elementos que fazem parte da música a ser apresentada. Conclui‐se, em suma,

que conduzir um grupo musical significa também formá‐lo e capacitá‐lo; que ser

maestro significa, em essência, ser professor, conforme a etimologia da palavra

original italiana:
A atividade do professor de música, nos mais diversos contextos de sua
atuação, está estreitamente ligada à figura do regente de coro ou de
orquestra. Uma das principais evidências desta proximidade é a forma
de tratamento comumente atribuída aos regentes – a palavra italiana
maestro. [...] Desde a educação infantil até o ensino superior todos os
professores na Itália são chamados de maestros, ou seja, um termo muito
mais próximo de nosso termo mestre do que da designação regente, o
qual, na terra de Vivaldi e Verdi, é chamado de direttore (CAMARGO,
2018, p. 43‐44).

1.4 A condição acústica como determinante da sonoridade do conjunto

Os conjuntos sinfônicos internacionalmente célebres tem a particularidade

de estarem sempre ligados às melhores salas de concerto, em termos acústicos,

do mundo. Essas orquestras têm o privilégio de ensaiar e se apresentar nas

melhores condições acústicas para a música que executam. Esta observação não

deve ser compreendida como uma coincidência – pelo contrário, conclui‐se que

esta situação recorrente constitui uma relação causal: grandes orquestras

apresentam sonoridades admiráveis justamente porque podem contar com um

espaço propício para sua sonoridade – certamente a Orquestra do Concertgebouw

de Amsterdã não teria sua sonoridade reconhecida se realizasse concertos em um

27
estádio de Futebol. Partindo‐se desta perspectiva, propomos uma reflexão sobre

o reconhecimento do impacto das condições acústicas em diversos aspectos da

performance, considerando que


A intensidade de um forte ou um piano dependem muito menos da ideia
original proposta pelo compositor do que das condições acústicas do
local onde a apresentação será realizada. Por esta razão, parte essencial
do trabalho do regente como intérprete é justamente a escolha criteriosa
do local onde será realizado o concerto, uma vez que as condições
acústicas desse local serão determinantes na própria capacidade de o
grupo musical executar, de forma satisfatória, a “imagem” musical
elaborada durante o estudo [...] o regente deve ter critérios rigorosos ao
optar por um local, com sua respectiva condição acústica, para a
realização de sua apresentação, reconhecendo que nem todos os
lugares podem proporcionar as condições necessárias para a obtenção
adequada da sonoridade correspondente àquela ideia musical
determinada. Portanto, a espacialidade do local de apresentação
constitui um fator determinante da sonoridade de um grupo musical,
seja um coro ou uma orquestra, podendo incrementar a qualidade e o
volume de som, ou, pelo contrário, prejudicar seriamente o seu
resultado sonoro. Uma avaliação cuidadosa da performance de alguns
grupos musicais supostamente incapazes de solucionar determinados
desafios técnicos pode, muitas vezes, evidenciar a falta de capacidade
daquela acústica para revelar a realização que está sendo executada por
aquele grupo musical. Entretanto, tal situação não diminui a
responsabilidade do regente em relação à escolha do local de
apresentação – um local com condições acústicas inadequadas não
deve ser aceito para a realização de concertos. Ainda que se considere
as evidentes restrições que a maioria dos regentes tem em relação à
liberdade de escolha dos locais nos quais devem ser realizados os
concertos, a viabilização de ambientes adequados e a escolha de obras
que possam se adaptar melhor a salas com acústica desfavorável devem
ser prioritárias no planejamento das atividades dos grupos musicais,
seja de instrumentistas ou de cantores (CAMARGO, 2020, p. 12, grifos
nossos).

Compreendendo, portanto, que a espacialidade e as condições acústicas

são determinantes da sonoridade de um conjunto musical, é necessário que o

regente trate essa questão como elemento fundamental do planejamento de

ensaios de seu grupo que, como pressuposto de uma atuação de qualidade, deve

dispor de um local de ensaios com uma acústica adequada para o

desenvolvimento de sua sonoridade e, principalmente, que realize concertos em

locais que apresentem condições acústicas adequadas para o repertório que será

28
apresentado. Trata‐se de um princípio fundamental, que se aplica igualmente a

conjuntos de alta performance e também a conjuntos amadores ou pedagógicos

– todos são igualmente afetados e, por esta razão, devem fazer todo o possível

para disporem das melhores condições acústicas para a realização de suas

atividades.

Ambientes sem reverberação, também chamados de acústica seca, podem

ser utilizados em ensaios de naipe que exijam grande precisão na execução de

sutilezas do repertório, especialmente instrumental. Ambientes maiores, com

reverberação comedida, costumam ser ideais para obras sinfônicas e corais. Já os

ambientes altamente reverberantes, tais como igrejas e catedrais, são

inadequados para obras que apresentam coloraturas e mudanças harmônicas

constantes, mas revelam‐se bastante adequados ao repertório sacro tradicional,

especialmente quando composto por uma textura predominantemente

homofônica.

Idealmente se espera que um grupo possa realizar seus ensaios no mesmo

ambiente no qual realizará seus concertos. Entretanto, é evidente que esta não é

a realidade da maioria dos coros, e mesmo de muitas orquestras. Com isso, é

essencial que o planejamento dos ensaios contemple, pelo menos, ensaios gerais

que possam ser realizados no local da apresentação, a fim de se fazer os ajustes

necessários de articulações, dinâmica e até mesmo andamento:


Certas condições de reverberação elevada podem impor a necessidade
de adotar andamentos mais lentos e articulações mais curtas, ao passo
que acústicas com ausência de eco favorecerão andamentos mais
rápidos, mas com articulações mais sustentadas (CAMARGO, 2020, p.
14).
O grupo musical não deve “ser surpreendido” por uma acústica

desfavorável. Obras mais complexas podem ter sua execução comprometida caso

as condições acústicas não coadunem com as articulações e andamentos

treinados com o grupo. A realização de ensaios gerais no local de apresentação

possibilitará a checagem do resultado sonoro e a realização dos ajustes

29
necessários para adaptar a interpretação àquelas condições verificadas. O ensaio

é um momento de experimentações e, por isso, o regente deve explorar as

possibilidades sonoras nas diferentes acústicas, e este processo consome um

tempo considerável, ainda que o grupo esteja bem treinado na execução de

diferentes articulações. A realização de dois ou mais ensaios no local previsto

para apresentação trará benefícios notáveis para os resultados artísticos do

grupo.

Situação diversa enfrentam alguns corais de igrejas, que com maior

frequência tem a possibilidade de realizar ensaios no local onde se apresentam.

Nestes casos pode ocorrer a situação inversa: considerando que o local da

apresentação pode proporcionar uma acústica excessivamente reverberante,

talvez seja melhor que o coro disponha de um local menor, com menos

reverberação, para realizar ensaios de leitura de novos repertórios. As acústicas

reverberantes exigem alto controle da sonoridade e da articulação, dois aspectos

que ficam prejudicados quando o conjunto realiza as primeiras leituras de um

novo repertório. Nestes casos, a programação de ensaios deve contemplar uma

fase de leitura a ser realizada em um ambiente de ensaio mais favorável, e uma

fase de desenvolvimento sonoro, no qual a interpretação pode ser aprimorada

em diálogo com a condição acústica do espaço de apresentações.

Em suma, ao preocupar‐se com a qualidade sonora do conjunto musical

sob sua direção, tão importante quanto o aprimoramento técnico do grupo é o

cuidado com as condições acústicas de suas atividades. Não há sonoridade que

se adapte a qualquer acústica. A amplificação através de microfones, vista por

muitos como um recurso para vencer dificuldades acústicas de espaços

inadequados, deve ser considerada com muito cuidado, pois não se pode perder

de vista que o som de um conjunto não é simplesmente a soma de sonoridades

individuais, mas deve constituir uma construção sonora uniforme, balanceada e

30
homogênea que depende da condição acústica – não havendo essa condição, a

sonoridade não se constrói e, portanto, não pode ser captada por microfones, que

tendem sempre a captar e enfatizar sonoridades individuais, comprometendo

seriamente a qualidade do resultado musical. Devemos ter sempre em vista que

corais e orquestras, em séculos de atividades, nunca contaram com recursos de

amplificação que não fossem sua própria sonoridade e as condições acústicas dos

locais – e os modernos meios de amplificação mecânica não devem apagar estas

lições que são trazidas de séculos de prática musical, principalmente enquanto

não puderem oferecer resultados melhores do que aqueles já alcançados pelas

antigas práticas.

31
2. QUESTÕES DE LIDERANÇA INTERPESSOAL NA MÚSICA

Considerando que “o instrumento do regente é um instrumento vivo”

(SCHERCHEN, 2002, p. 1), e partindo‐se do princípio de que o ensaio é o

momento no qual a prática musical em conjunto se constrói, é essencial

considerar, como premissa de sua técnica, uma reflexão aprofundada sobre as

questões de liderança interpessoal que são indissociáveis de todas as realizações

coletivas.

Segundo Eugênio Mussak,


Sempre que se estabelece um grupamento humano, formal ou informal,
em qualquer área de atividade, alguém estará liderando o processo em
cada momento. A liderança pode ser compartilhada, pode ser
alternada, mas nos grupos humanos, mesmo aqueles constituídos de
duas pessoas, ela sempre estará presente. Portanto, exercer liderança e
ser liderado são condições que caracterizam as relações humanas
(CORTELLA; MUSSAK, 2009, p. 9).

Esta proposição de Mussak encerra uma reflexão sutil, mas decisiva, na

prática musical em conjunto. É evidente que se espera do regente de um coro ou

de uma orquestra que este seja o líder dos ensaios, pois o seu posto compreende

uma autoridade outorgada pela entidade mantenedora do grupo, criando uma

relação hierárquica. Entretanto, uma reflexão aprofundada sobre a liderança nas

atividades musicais em conjunto deve transcender a relação estabelecida pelo

vínculo hierárquico para uma relação de liderança colaborativa e inspiradora.

Sobre este assunto, Hill e Lineback (2019, p. 38) afirmam que


É um erro comum pensar que a liderança é definida por uma
autoridade formal – a habilitação outorgada por um título para impor
a sua vontade sobre outras pessoas. Na verdade, a autoridade formal é

32
uma ferramenta útil, mas limitada. As pessoas desejam mais do que
uma relação formal, baseada em autoridade, com o seu chefe11.

Para que esta questão possa ser aprofundada, é importante refinarmos a

discussão sobre o conceito de liderança, desdobrando alguns de seus diversos

aspectos. Segundo Mário Sérgio Cortella,


Liderança [...] não é um cargo em que um indivíduo desempenhe uma
atividade específica. Trata‐se, isso sim, de uma virtude, uma função a
ser exercida. Logo, não é determinada pela hierarquia em qualquer
dimensão. Passando a vista pela história, deparamos com muitos
líderes que não tinham cargos de chefia. Alguns eram até “antichefes”.
Basta que nos lembremos de figuras como Nelson Mandela, Mahatma
Gandhi, Jesus de Nazaré, Martin Luther King, Sócrates, Madre Teresa
de Calcutá – pessoas que não ocupavam nenhum cargo de chefia
(CORTELLA; MUSSAK, 2009, p. 8).

É surpreendente observar que algumas das mais extraordinárias

lideranças da história não possuíam autoridade outorgada, mas somente a

autoridade conquistada através de sua postura e de suas ações, e assim foram

capazes de desencadear processos e realizar transformações duradouras na

sociedade. Portanto, ao assumir a responsabilidade pela preparação de um grupo

musical para a performance, questione‐se: frente ao seu grupo, você é um chefe

ou um líder?

2.1 Chefe ≠ Líder

No capítulo 1 deste trabalho, nas considerações sobre o desenvolvimento

do senso de comunidade nas práticas musicais em conjunto, foi dito que o fazer

musical em plenitude exige um grau de comprometimento espiritual que só pode ser

11 “It’s a common mistake to think management is defined by formal authority – the ability that comes with
a title to impose your will on others. In fact, formal authority is a useful but limited tool. People want more
than a formal, authority-based relationship with the boss” (tradução nossa).

33
realizado a partir de uma motivação intrínseca ao fazer artístico. Este é justamente o

ponto no qual se diferencia o regente que simplesmente exerce sua autoridade

outorgada de um verdadeiro líder artístico. O regente‐chefe se aproveitará da

relação de dependência que os músicos profissionais têm com o seu trabalho para

realizar a sua música, de seu jeito – não será a música de um grupo, mas a música

de uma pessoa. A música será executada, mas não haverá comprometimento

espiritual, certamente prejudicando a qualidade da execução, uma vez que o

referido “pacto” em prol da obra a ser executada não estará estabelecido.

Compreende‐se, portanto, que


A eficácia de ação de um professor ou regente [na condução de um
grupo musical] não está ligada à autoridade outorgada a este cidadão
através de uma determinada estrutura organizacional, mas sim à
autoridade conquistada através do estabelecimento de relações de
confiança, respeito, admiração e cumplicidade que são construídas
durante o processo de condução do trabalho em conjunto por um líder
autêntico. Portanto, a liderança é a capacidade de desencadear
processos através da motivação e engajamento de outras pessoas em
uma determinada ação, criando um ambiente propício para atuação
ativa e consciente, onde ocorrem os insights – sinais evidentes da plena
realização do conhecimento e da criação artística (CAMARGO, 2018, p.
49).

Partindo‐se destas considerações, passamos então à reflexão sobre quais

são os aspectos mais relevantes da postura que o regente deve assumir em

posição de liderança frente a um grupo. Um dos princípios básicos dessa reflexão

deve ser justamente a ênfase no propósito da realização musical – a música

realizada em conjunto não deve ser a música de uma pessoa, mas a música de

um grupo. O propósito será então o principal gatilho de motivação para o

engajamento desse grupo. Esta perspectiva constitui uma nova tendência, que

contrasta com a visão antiga da regência no século XX, pela qual a condução dos

grupos musicais era realizada de forma autoritária e monocrática (conf.

LEBRECHT, 2001, p. 66‐67). Entende‐se, portanto, que a performance musical

deve ser construída a partir do diálogo entre todos os executantes, assegurando‐

34
se sua autonomia expressiva, em um processo de mediação promovido pelo

regente no decorrer dos ensaios.


Apesar da concepção geral de uma obra ser de responsabilidade do
regente que conduz o grupo, ele não deve perder de vista que a
interpretação de uma obra em conjunto constitui essencialmente uma
criação coletiva¸ que deve ser desenvolvida a partir de um diálogo de
visões e concepções estéticas e realizada de forma que cada executante
possa compreendê‐la, tanto quanto possível, como “a sua própria
interpretação”, e não a execução da “interpretação de um outro” (no
caso, do regente), sob o risco de tornar‐se uma atuação carente em
inspiração e motivação, sem a sinceridade necessária a uma realização
artística em plenitude (CAMARGO, 2020, p. 2).

Em outras palavras, a diferença entre chefes e líderes é que “líderes

mostram a relação entre a tarefa e o objetivo principal, a missão, a causa. Nós não

gostamos de tarefas, mas gostamos de causas. O bom líder não é aquele que dá

a tarefa, mas o que dá a causa” (CORTELLA, MUSSAK, 2009, p. 76, grifos nossos).

Ao assumir a direção de um grupo, pergunte‐se: minha condução dos ensaios se

parece mais com uma distribuição de tarefas, ou com a mobilização de pessoas

em torno de uma causa?

Tratando‐se de causa e propósito na atividade musical, são inúmeras as

questões que envolvem o estabelecimento de relações motivadoras nas práticas

de conjunto. Referindo‐se à regência coral, Samuel Kerr faz uma síntese do que

se pode compreender como seu propósito, afirmando que


Regência Coral é gesto maior que o gesto de reger. É uma tomada de
atitude frente à música... É a busca incessante das qualidades do som,
em conjunções e disjunções com os silêncios e as sonoridades. É a
procura incansável de um repertório. É a identificação de muitas
maneiras de cantar. É a habilidade em reunir grupos de cantores. É,
acima de tudo, admitir que estudar música significa estudá‐la por toda
a vida. Esse gesto maior pode até dispensar o gesto de reger, porque no
momento em que ele for necessário, tudo já terá sido feito (e muito
ainda haverá por fazer). Trata‐se, então, da construção de um projeto
sonoro (in LAKSCHEVITZ, 2006, p. 119, grifos nossos).

A ideia de construção de um projeto sonoro, tal qual referido por Kerr, pode

ser igualmente aplicada a corais e orquestras. Entende‐se que este projeto sonoro

35
é algo que transcende a interpretação de uma única obra, ou um único programa

de concerto, constituindo um planejamento de longo prazo, orientado para o

desenvolvimento musical do grupo, tanto no plano individual como também no

plano coletivo – estes dois aspectos são complementares, pois não é possível um

grupo se desenvolver plenamente se, durante este processo, não houver também

a promoção do desenvolvimento individual. O trabalho em grupo é a

oportunidade de se extrair o melhor potencial de cada pessoa, de forma que a

reunião destas capacidades potencialize significativamente seu resultado final.

Entretanto, a concretização de um projeto sonoro com um grupo musical

inexoravelmente implica na realização de mudanças, incluindo alterações de

processos e rotinas. Segundo Cortella e Mussak (2009, p. 36), as pessoas são

resistentes a mudanças por determinismo biológico, e essa resistência se torna

ainda mais forte nos grupos humanos e nas organizações, criando uma barreira

que dificulta seriamente a efetivação de transformações substanciais. Nesse

contexto é que se destaca o líder, pois


Ele é o que conduz os demais nos tempos de mudança ou é responsável
pelas mudanças acontecerem. E o líder provoca as mudanças porque
associa pelo menos três qualidades: coragem, persistência e relevância.
A primeira é a coragem de propor uma mudança, pois ele sabe que, ao
sugerir um movimento do conhecido para o desconhecido, vai
enfrentar reações contrárias, por vezes até violentas. Temos isso
registrado em vários momentos da história da humanidade, mesmo
quando se trata de mudanças de ideia. [...] A segunda qualidade para o
líder conseguir realizar uma mudança é a persistência, porque uma
mudança não se obtém de um dia para o outro. Salvo raríssimas
exceções, a mudança, principalmente de um grupo, vai se instalando
lentamente. Então é necessário, além de coragem, persistência. E a
terceira qualidade é a que eu chamo de relevância. Entendo aqui por
relevância a ideia de que a mudança proposta é boa, útil, bela, ética e
verdadeira. Se uma dessas qualidades falhar, a mudança não
acontecerá, e o líder verá frustrada sua liderança (ibid., p. 37).

Conclui‐se, portanto, que as grandes transformações são lentas e

paulatinas – portanto, são mudanças de longo prazo. Por esta razão, a persistência

constitui um valor essencial da liderança e sua sustentabilidade depende

36
diretamente da relevância de sua proposta. Nos grupos musicais, pode‐se dizer

que a relevância da proposta está diretamente ligada ao repertório que se

pretende fazer – é o propósito do projeto sonoro. Ideias inovadoras exigem

coragem para sua implantação, mas é o propósito que garante força e persistência

para a efetivação dessa transformação.

2.2 Desafios da liderança

Provavelmente o maior desafio da liderança não será mudar a sua própria

atitude – o que já se configuraria como um grande desafio – mas a capacidade de

modificar práticas estabelecidas, o que significa promover mudanças nas

atitudes de outras pessoas. Hill e Lineback (2019, p. 16) sintetizam esta questão

de forma precisa, quando afirmam que “Liderar é difícil por causa de seus

paradoxos inerentes. [...] Você é responsável por aquilo que os outros fazem [...]

e, para focar no trabalho, você terá que focar nas pessoas fazendo o trabalho”12

(grifos nossos). Esta observação deve ser cuidadosamente refletida pelo líder,

pois ela promove a quebra do paradigma da impessoalidade na condução do

trabalho coletivo: tão importante quanto as metas e as estratégias para se atingir

as metas, é a atenção que se deve ter à dimensão emocional das pessoas que estão

envolvidas no trabalho. Se até mesmo no mundo corporativo as empresas estão

preocupadas com as disposições emocionais de seus colaboradores, será que nas

práticas musicais não deveríamos estar ainda mais atentos a esse aspecto? As

disposições emocionais são diretamente responsáveis pelos movimentos

12“Management is difficult because of its inherent paradoxes. […] You are responsible for what others
do. […] To focus on the work, you must focus on people doing the work.” (Tradução nossa)

37
comportamentais de indivíduos e de grupos – portanto, para influenciar

comportamentos, é necessário influenciar suas disposições emocionais. Baseando‐se

nos estudos de Kurt Lewin, Gérald Mailhiot (2013, p. 30) apresenta relevantes

reflexões sobre comportamento de grupo, afirmando que


Para que haja comportamento de grupo é preciso que vários indivíduos
sintam as mesmas emoções de grupo, que estas emoções de grupo
sejam suficientemente intensas para integrá‐los e fazer deles um grupo
e que, finalmente, o grau de coesão alcançado por estes indivíduos seja
tal que se tornem capazes de adotar o mesmo tipo de comportamento.
Estes comportamentos de grupo podem variar, em termos de duração,
conforme sejam desencadeados por um agente externo, por um agente
provocador ou por um líder.

Muitos conflitos podem surgir quando o foco, mesmo estando

concentrado nas metas estabelecidas, não seja capaz de abranger e considerar os

aspectos pessoais dos agentes envolvidos na ação. O líder deve desenvolver a

capacidade de realizar uma leitura das pessoas e situações envolvidas nos

diversos processos, direta ou indiretamente relacionadas com o trabalho em

conjunto que se está liderando. Segundo Hill e Lineback (2019, p. 14),


Liderar é a responsabilidade pela performance de um grupo de
pessoas. [...] Para cumprir esta responsabilidade, você precisa
influenciar os outros, o que significa que você deve fazer a diferença
não só naquilo que eles fazem, mas também nos pensamentos e
sentimentos que conduzem suas ações. A liderança é definida pela
responsabilidade mas é realizada através da ação de influenciar13.

A capacidade de influenciar pessoas está diretamente ligada à prática da

escuta e observação atenta dos anseios e necessidades destas pessoas, processo

este que gera a empatia necessária para a criação de laços de confiança. O espaço

13 “Management is responsibility for the performance of a group of people. […] To carry out this
responsibility, you must influence others, which means you must make a difference not only in what they
do but in the thoughts and feelings that drive their actions. Management is defined by responsibility but
it’s done by exerting influence” (Tradução nossa)

38
de escuta busca permitir que todos possam ter garantida sua individualidade,

mesmo em um contexto no qual todos busquem um objetivo comum. Toda

coletividade é composta por individualidades, e o valor dessa coletividade é

justamente a pluralidade de visões e pensamentos que ela representa e que

enriquece tanto os processos quanto os resultados do grupo. Uma atitude

bastante simples, mas que adquire notável relevância na mobilização de um

grupo, é a prática de chamar as pessoas pelo nome. Em corais e orquestras maiores

é relativamente comum o regente não saber de memória os nomes dos

instrumentistas ou cantores. Tratar as pessoas pelo nome é uma atitude que

aproxima e valoriza as pessoas, impactando diretamente no engajamento.

Portanto, quem dirige um grupo musical deve se dedicar a “estudar” o grupo,

conhecendo cada um pelo nome. Serão abordadas técnicas de memorização no

capítulo 4 que podem auxiliar no processo de memorização dos nomes dos

integrantes de seu grupo.

Esta atenção ao outro, incluindo este espaço de escuta, deve estar presente

não só nas relações verticais entre o líder e o grupo, mas também deve ser

incentivada horizontalmente, entre os membros do grupo:


O rendimento de um grupo de trabalho e sua eficácia estão
estreitamente ligados não apenas à competência dos membros, mas
sobretudo à solidariedade de suas relações interpessoais (MAILHIOT,
2013, p. 81).

O estabelecimento de laços interpessoais solidários consolida a premissa

de desenvolvimento do senso comunitário mencionada no capítulo 1, que

constitui o ambiente propício para a geração de confiança – sem a qual, não é

possível mobilizar pessoas.

Partindo‐se desta condição, é essencial reconhecer que a confiança

transcende sua dimensão abstrata e subjetiva e pode ser compreendida como um

processo estruturado que se estabelece a partir de uma construção – ela surge a

partir de uma postura, baseada em valores, que perfaz uma ação consciente,

39
deliberada e contínua, que pode ser aprendida e desenvolvida. Richard Barrett

(2017, p. 73) identifica a estruturação de relações de confiança baseadas no caráter

e na competência:
Os principais componentes da confiança são caráter e competência [...] O
caráter é um reflexo de como você é internamente – a sua intenção, e do
nível de integridade que você exibe em seu relacionamento com os
outros [...] A intenção é demonstrada por cuidado, transparência e
abertura, e a integridade é demonstrada por honestidade, justiça e
autenticidade. A competência é um reflexo de como você é
externamente – a sua capacidade e os resultados que você atinge em seu
papel [...] A capacidade é demonstrada por habilidades, conhecimentos
e experiência. Os resultados são demonstrados por credibilidade,
reputação e performance.

Esta estrutura lógica proposta por Barrett é sintetizada em um fluxograma,

reproduzido na Figura 1 denominado “A matriz da confiança” (BARRET, 2017,

p. 74). A visualização sistematizada da construção de processos de confiança

revela a iminente propriedade de aprendizado, treinamento e desenvolvimento

de seu potencial.

Figura 1 – A ʺMatriz da Confiançaʺ (BARRETT, 2017, p. 74)

40
Esta reflexão sobre os caminhos de construção dos processos de confiança

reitera a visão da liderança como uma habilidade a ser treinada e desenvolvida,

de acordo com as considerações de Cortella e Mussak (2009, p. 11), para quem “a

pessoa pode desenvolver a liderança justamente porque se trata de uma virtude

[e não um dom]: ela já nasce com a virtude, mas terá que desenvolvê‐la, praticar

seu potencial de liderança”. Portanto, entendemos que a liderança não deve ser

vista como uma capacidade inata, mas uma habilidade a ser aprendida e

praticada de forma contínua, tal qual um instrumentista se dedica ao treinamento

de escalas e arpejos em seu instrumento. Por esta razão, profissionais em posições

de liderança, tais como regentes e professores, devem sempre refletir sobre sua

atuação e seu aprendizado contínuo nas relações interpessoais.

2.3 Articulação de sublideranças

Por mais eficiente que seja a liderança de um regente frente a um ensaio,

nenhuma liderança será realmente efetiva se não houver a devida articulação de

sublideranças. Quanto mais numeroso for o grupo, tanto maior será o número de

sublideranças necessárias para que o trabalho seja plenamente realizado.

Uma articulação deficiente de sublideranças pode abrir espaço para

lideranças inoportunas. O exemplo clássico desta situação é a sala‐de‐aula na

qual o professor não consegue impor a disciplina – se a situação é muito difícil,

isto significa que, provavelmente, existe algum aluno liderando a indisciplina, ou

seja, incitando os outros alunos a se desconcentrarem, e a chave da solução deste

problema é justamente o professor ser capaz de identificar qual é (ou quais são)

o(s) estudante(s) que tem a posição de liderança da indisciplina e envolve‐lo, de

forma que sua postura desagregadora passe então a servir o propósito da aula.

Portanto, utilize as sublideranças a seu favor!

41
2.3.1 Lideranças de naipe na orquestra

Nas práticas musicais em conjunto há um elemento primordial nas

questões de sublideranças: o gestual do regente não produz som, enquanto o chefe

de naipe tem a capacidade de liderar através do som que ele produz. E não pode

haver dúvida que a liderança provocada pelo som na música é mais forte que o

gesto – não há gesto que possa resolver problemas de andamento ou articulação

se não houver um músico líder que esteja diretamente conectado a esse gesto e

assuma a postura de impor a sonoridade de seu instrumento ou voz de acordo

com a leitura que ele faz desse gesto. Por esta razão o papel de spalla nas

orquestras continua sendo essencial, mesmo quando este deixou de ser o

principal responsável pela condução da orquestra – pode‐se até mesmo dizer que

o ato de reger originou‐se da atuação do spalla ou do contínuo condutor.


Praticamente todo o repertório estritamente instrumental do período
barroco é passível de ser dirigido por um instrumentista integrante da
orquestra. Entretanto, com o desenvolvimento das técnicas
instrumentais e o aumento da complexidade do repertório nas últimas
décadas do século XVIII, surgiu a figura do regente não‐executante, que
passou a dirigir o conjunto orquestral através de gestos ritmicamente
sincrônicos (CAMARGO, 2020, p. 3).

O surgimento do fenômeno do regente não‐executante pode ser atribuído

justamente ao momento no qual a música passou a ser mais complexa,

especialmente a partir da ampliação do aparato orquestral, que não foi mais

possível para o spalla conduzir a totalidade de eventos de uma música, além de

liderar o naipe de cordas, considerando ainda a crescente complexidade na

execução das partes. Neste contexto passam a destacar‐se cada um dos chefes de

naipe na orquestra: o crescente efetivo de cordas aumentou a responsabilidade

dos chefes de naipe (além do spalla, os chefes de segundo‐violino, violas,

violoncelos e contrabaixos) e os chefes dos sopros, que passaram a constituir

grupos independentes e passaram a ter um líder em cada grupo – a primeira

42
trompa, a primeira flauta, o primeiro oboé, o primeiro trompete, o primeiro

trombone e assim por diante.

Segundo Max Rudolf (1995, p. 297), os gestos da regência não regem tudo,

mas demonstram o que é necessário. Uma regência que incluísse todas as

informações de uma partitura seria incompreensível. Partindo‐se desta premissa,

é possível destacar um exemplo típico no qual a execução de uma obra depende

diretamente da atitude de liderança do spalla. No quarto movimento (Dança –

Miudinho) da Bachianas Brasileiras nº 4 de Heitor Villa‐Lobos (Figura 2 – Início do

quarto movimento da Bachianas Brasileiras nº 4 de Heitor Villa‐Lobos), para que o

regente possa indicar claramente o movimento de tresillo dos segundos‐violinos

e violas, bem como os sforzatti dos sopros, cordas graves e tímpano, é essencial

que o spalla mantenha, por sua própria energia, o movimento de ostinato de

semicolcheias, pois o gesto que poderia controlar esse movimento contínuo é

incompatível com o gesto necessário para enfatizar o tresillo e os sforzatti.

Portanto, um caso típico de liderança compartilhada na execução em grupo.

Figura 2 – Início do quarto movimento da Bachianas Brasileiras nº 4 de Heitor Villa‐Lobos

43
Este constitui um exemplo típico da liderança musical do spalla, mas no

mesmo movimento, na cifra de ensaio 3 (figura 3), ocorre situação análoga, na

qual responsabilidade equivalente é atribuída aos chefes de naipe de violoncelo

e viola.

Figura 3 – Cifra 3 do quarto movimento da Bachianas Brasileiras nº 4 de Heitor Villa‐Lobos

Portanto, quando refletimos sobre as práticas orquestrais, concluímos que

o spalla e os demais chefes de naipe devem estar imbuídos do mesmo espírito de

liderança que o regente, e que essa liderança deve ser essencialmente

colaborativa. Assim, quanto mais os chefes de naipe estiverem envolvidos nas

tomadas de decisão da orquestra, tanto maior será o engajamento do grupo. Esta

é a razão pela qual as orquestras mais importantes do mundo são geridas por

conselhos artísticos fortalecidos, nos quais os chefes de naipe tem efetivo papel

decisório. O regente deve ter em mente que seu ponto de vista em relação à

orquestra sempre terá um viés vertical, de forma que o spalla terá sempre a visão

44
privilegiada de observar a situação do ponto de vista dos instrumentistas. Assim,

as decisões tomadas em conjunto entre regente e chefes de naipe sempre terão

força decisiva no processo de engajamento da orquestra. Por conseguinte, os

chefes de naipe são compreendidos como a própria personalidade da orquestra

e, devido a essa importância, seu processo de escolha ou seleção deve levar em

consideração, além dos fatores técnicos e artísticos de seu desempenho

instrumental, principalmente sua experiência e habilidade na liderança musical

e interpessoal. Para além de suas capacidades reconhecidas, o chefe de naipe da

orquestra deve estar integrado em um processo contínuo de aperfeiçoamento de

lideranças, juntamente com o regente e os demais chefes de naipe, tomando parte

nos processos decisórios.

2.3.2 Lideranças de naipe no coro

Da mesma forma que a orquestra possui seus chefes de naipe, qualquer

formação coral demanda a atuação de vozes líderes em seus naipes. Dependendo

do patamar de desenvolvimento técnico do grupo as funções de liderança

também apresentam diferentes ênfases em suas variadas atribuições nos

processos de ensaio.

Nos corais profissionais, ou corais de níveis técnicos avançados, os chefes

de naipe praticamente desempenham a tarefa de supervisores, limitando muitas

vezes sua atuação para uma postura mais discreta, ou eventualmente atuando

como solista de coro, quando necessário. Dependendo da estrutura do grupo,

podem conduzir ensaios de naipe, apesar desta função ser atribuída usualmente

ao próprio regente ou ao regente assistente.

Nos corais amadores e voluntários a situação é bastante diferente. Pode‐

se dizer que, neste tipo de coral, a atuação de chefes de naipe é determinante.

45
Isto acontece porque, por sua natureza, músicos amadores tendem a sentir‐se

inseguros no processo de leitura de repertório, especialmente quando se trata de

obras mais complexas. As dificuldades de leitura associadas com escassez de

ensaios podem tornar o trabalho enfadonho, afugentando os cantores mais

experientes, que normalmente são também mais ambiciosos por repertório

qualificado e apresentações prestigiadas. Nesse contexto, havendo chefes de

naipe qualificados (preferencialmente profissionais e remunerados), será

possível para o regente preparar e executar obras de maior complexidade, uma

vez que a voz do chefe de naipe constituirá uma referência segura para ser

seguida por cada um dos naipes. Além do evidente benefício técnico e musical

da atuação dos chefes de naipe, há também um notório progresso no senso

comunitário do grupo proporcionado pela maior proximidade entre os chefes de

naipe e os cantores, que propicia um melhor acolhimento e decorrente

engajamento dos participantes, monitorando humores e resolvendo conflitos.

Por esta razão, recomenda‐se também que o regente realize, ao término de cada

ensaio, uma breve conversa com cada chefe de naipe, colhendo suas impressões

sobre o andamento do ensaio, avaliando possíveis alterações de estratégia e

planejando os próximos passos a partir dos resultados alcançados naquele dia.

Esse monitoramento possibilita ao regente ampliar a sua percepção do ensaio,

englobando diferentes percepções do ponto de vista dos participantes do grupo.

Esta observação a respeito da importância da atuação dos chefes de naipe

pretende reiterar seu caráter metodológico. Em grande medida, a música se

aprende por imitação. Desta forma, é evidente que todo coral precisa ter cantores

que sirvam de modelo e inspiração para o aprendizado. Na maioria dos casos, a

chefia do naipe é instituída informalmente – o bom regente procura atrair

cantores experientes que acabam desempenhando este papel, mesmo não sendo

profissionais, ou não sendo remunerados para isso. Partindo‐se dessa reflexão,

46
podemos deduzir que a qualidade de um coro amador depende diretamente da

capacidade de seus chefes de naipe, além da qualidade e experiência de seu

regente. Em outras palavras, pode‐se dizer que, para iniciar um trabalho coral

amador, engajando‐se quatro bons chefes de naipe, o novo grupo estará

preparado para cantar um bom repertório em pouco tempo.

Entretanto, os chefes de naipe devem ser orientados a desenvolver a

sensibilidade e a habilidade de adaptar sua sonoridade em diferentes momentos

do processo de ensaio. No estágio inicial, durante a leitura de uma obra nova, é

essencial que sua voz seja mais volumosa e projetada, a fim de servir de

referência para o naipe que está estudando a obra – o chefe de naipe deve ter

consciência que esta é a sua função quando atua em um coro amador. Em

momento posterior, quando as linhas melódicas já estão dominadas pelo grupo,

o chefe de naipe deve ter a sensibilidade de controlar o volume e o timbre de sua

voz, de forma que seu som individual não se sobressaia sobre o naipe, facilitando

a homogeneização do timbre do grupo. Em outras circunstâncias, quando a obra

apresenta dificuldades limítrofes da técnica de parte do grupo, o naipe pode ficar

dependente do desempenho do líder, sobrecarregando sua vocalidade. Nestes

casos, o chefe de naipe deve desenvolver a habilidade de selecionar os momentos

determinantes, tais como entradas difíceis ou melismas mais complexos, e atuar

na condução do grupo, aproveitando passagens nas quais o naipe se sente mais

seguro para preservar sua voz e evitar o desgaste de seu aparato vocal. Nestes

casos, recomenda‐se também que o chefe de naipe tenha um “assistente” – traga

para junto de si um membro do coral que tenha mais experiência e melhor

desempenho, a fim de que, juntos, possam sustentar a condução da linha

melódica do naipe.

Em situações ideais deveríamos ter chefes de naipe de tal forma

qualificados que pudessem também dar aulas de técnica vocal, refinando cada

47
vez mais a sonoridade do naipe em que atuam. Mas sabemos que a atividade

coral no Brasil ainda é pouco valorizada – muitas vezes, nem mesmo aos regentes

é oferecida remuneração adequada. Apesar deste contexto, é fundamental que o

regente reivindique e tenha como meta constituir uma equipe coral profissional,

que possa dispor de um regente assistente, um pianista, um preparador vocal e

quatro chefes de naipe, sob a liderança do regente. Mesmo que a constituição

desta equipe pareça um objetivo remoto para a maioria dos corais do país, o

regente, ao pensar em médio e longo prazo, deve compreender que uma equipe

coral estruturada tem a capacidade de entregar uma qualidade artística

substancial em um curto espaço de tempo, algo que pode atrair o interesse dos

empregadores ou entidades mantenedoras dos grupos. É necessário que seja

superado o ciclo vicioso do investimento e da entrega: corais não são valorizados

por não apresentarem boa qualidade, ou os corais têm qualidade limitada por

não serem valorizados.

De qualquer forma, a qualidade do resultado artístico do grupo depende

de um processo de qualificação de longo prazo de seus membros, conforme já

mencionado no capítulo 1. Se o grupo não é qualificado, cabe ao regente

estabelecer um plano de qualificação, com cursos, seminários e oficinas de solfejo

e técnica vocal. Entende‐se que um grupo voluntário que não tenha qualificação

se voluntarie justamente pela oportunidade que eles terão, junto a esse grupo, de

aprender o que ainda não sabem. Portanto, é importante considerar que um coral

que não qualifica seus membros não tem sustentabilidade a longo prazo.

Assim como os chefes de naipe de uma orquestra, toda a equipe coral deve

desenvolver o senso de liderança através da mentoria de seu regente, sempre

tendo em vista que “a liderança é uma autoridade que se constrói pelo exemplo,

pela admiração, pelo respeito” (CORTELLA, MUSSAK, 2009, p. 9). Justamente

por isso ocorre ser tão comum haver chefias de naipe não institucionalizadas na

48
maioria dos grupos – liderar é uma atitude natural. Mesmo assim, a valorização

das lideranças e sua articulação constituem estratégias essenciais na condução de

ensaios. Nesta perspectiva, é importante que o regente tome alguns cuidados: é

importante que todos os cantores estejam sempre presentes, em todos os ensaios,

especialmente os chefes de naipe. No coro, os cantores precisam uns dos outros

para conseguir realizar sua parte. Entretanto, a liderança de um naipe constitui

uma responsabilidade muito grande para um cantor voluntário – sua ausência

pode comprometer totalmente o andamento de um ensaio que, por sua vez, pode

comprometer o cronograma de estudo de um repertório e o próprio concerto. Um

naipe pode se sentir fragilizado pela ausência de seu líder. Esta é uma das

importantes razões pela qual os chefes de naipe devem ser profissionais e

remunerados por sua atuação, otimizando o aproveitamento de tempo dos

ensaios e minimizando a ocorrência de faltas. Considere seriamente que a

realização de um ensaio com desfalques pode prejudicar mais a preparação de

um repertório do que ajudar, especialmente se o ensaio comprometer a confiança

do grupo – eventualmente, cancelar um ensaio do coro desfalcado pode ser mais

produtivo do que realizá‐lo. Neste caso, a melhor opção seria dispensar o naipe

que está sem líder e realizar ensaios de naipe com aqueles grupos que estiverem

completos.

2.4 A mudança do “eu” para “nós”

Nossa linguagem constitui um reflexo de nossa visão de mundo. O

simples fato de utilizarmos determinados pronomes ou tempos verbais contribui

decisivamente para a percepção que os outros tem daquilo que falamos: “eu

quero”, “eu prefiro” e mesmo “eu gostaria” estabelecem, ainda que de forma

subliminar, uma relação hierárquica – “eu mando, vocês obedecem”. Por outro lado,

49
quando o regente faz uma observação sobre determinada passagem da música

que está sendo ensaiada, dizendo: “sopranos, por favor, no compasso 4, ficará

melhor se fizermos todas as notas ligadas”, esta expressão denota que esta música

nós fazemos juntos. Ainda que seja uma linguagem metafórica (afinal, o regente

não canta de fato a parte junto com as sopranos do coro), a mera mudança de

linguagem impacta de forma significativa a percepção que o grupo tem do seu

líder.

Em minha experiência como diretor de música sacra do Kantorei St. Peter

und Paul na cidade de Freiburg (Alemanha), distrito de St. Georgen, nos anos

2000 e 2001, sempre me incomodava o tratamento formal que todos os membros

do coro adotavam uns com os outros, e especialmente comigo. Na língua alemã,

o termo Sie equivale à forma senhor/senhora em português, mas nunca me atrevi

a pedir a permissão para utilizar os termos informais Du ou Ihr (respectivamente,

“tu” e “vós”) durante os ensaios corais, especialmente por se tratar de um grupo

composto principalmente por idosos, enquanto eu ainda era um jovem

estudante. Mas nunca tinha parado para refletir sobre a linguagem que eu

utilizava durante os ensaios do coro. Somente quando, anunciada minha saída

ao final de 2001 para meu retorno ao Brasil, foram realizadas audições para os

candidatos a me substituírem no cargo, e um dos jovens regentes, em seu ensaio

de audição, na tentativa de criar um vínculo de intimidade a partir da

informalidade, perguntou ao grupo se poderia tratá‐los informalmente pela

forma Du. Imediatamente o coordenador do grupo14 respondeu dizendo: “em

nosso grupo nós tratamos exclusivamente pela forma Sie”, seguido de um

silêncio constrangedor. É claro que aquele candidato não foi escolhido para

14“Vorsitzender” – coordenador responsável pela parte administrativa do coro. No caso de


cantoratos litúrgicos, é a pessoa responsável pela interlocução com o pároco.

50
minha sucessão, mas aquela situação me fez refletir – afinal, qual era o termo que

eu usava com o grupo, uma vez que também me incomodava utilizar a forma Sie

constantemente no ensaio? A partir de então comecei a perceber que,

instintivamente, eu evitava o tratamento direto utilizando sempre a primeira

pessoa do plural – uma vez que a forma nós não possui distinção de tratamento

formal/informal – de modo que nunca foi necessário, para mim, utilizar da

informalidade no tratamento, mas que mesmo assim o efeito de minha estratégia

foi que os membros do coral consideravam meu tratamento próximo e caloroso:

“sopranos, por favor, vamos cantar a frase do compasso 10 mais forte”. Assim

compreende‐se que líder não é aquele que manda fazer, mas aquele que faz junto.

Barrett (2017, p. 23) faz uma reflexão que se relaciona diretamente com este

assunto, afirmando que


O tema central do paradigma da nova liderança deve ser uma mudança
do interesse próprio para o bem comum, e para realizar este objetivo
temos de nos concentrar em mover‐nos de um mundo motivado pelo
“eu” para um mundo motivado pelo “nós”.

O autor defende que a abordagem coletiva das interações humanas, mais

do que uma proposta de conscientização ética ou social, representa a

continuidade de um processo biológico evolutivo, caracterizado como estratégia

de sobrevivência e estabilidade pela busca da prosperidade. Segundo o autor,


Os seres humanos estão aprendendo como se tornar viáveis e
independentes em sua estrutura de existência. Quando as condições se
tornaram mais ameaçadoras, eles aprenderam como se unir com outros
seres humanos para formar clãs, tribos e nações; e os maiores dentre
essas estruturas de grupo – as nações – agora estão aprendendo como
cooperar entre si para criar uma estrutura de ordem mais elevada
chamada humanidade (ibid., p. 27).

Compreendendo então que a tendência à união e ao trabalho colaborativo

constitui uma continuidade natural do processo evolutivo, podemos concluir que

o senso comunitário construído nas práticas musicais em conjunto traz em si o

potencial de sinergia humana que aponta para o futuro – e talvez seja esta a razão

51
pela qual a música coral e sinfônica seja universalmente tão fascinante. Cabe

então aos músicos – líderes e liderados – aprender a direcionar essa sinergia

natural dos grupos para um comprometimento com a alta performance, pois a

música, em si mesma, representa um símbolo do congraçamento humano –

conforme mencionado no capítulo 1, “fazer música constitui uma lição de

humanidade, pois a interrelação entre os musicantes constitui sempre um

exercício de cooperação e interdependência mútuas” (CAMARGO, 2018, p. 48),

na medida em que a prática da música em conjunto nos ensina que, juntos, somos

capazes de fazer coisas que jamais poderíamos fazer sozinhos.

52
3. A TÉCNICA VOCAL COMO DINÂMICA DE ENSAIO

Este capítulo é especialmente dedicado aos estudos da performance em

canto coral, não obstante alguns aspectos aqui abordados terem aplicação

também nos estudos orquestrais. Questões técnicas – sejam elas vocais ou

instrumentais – estão sempre presentes no planejamento e na realização dos

ensaios. Entretanto, as questões técnicas no canto coral têm um impacto direto na

própria capacidade de execução, enquanto nos conjuntos instrumentais as

questões técnicas específicas de cada instrumento desempenham um papel mais

significativo no refinamento estilístico e expressivo da execução do que na

capacidade de execução propriamente dita. Por sua complexidade e diversidade,

o estudo das técnicas instrumentais dos diferentes instrumentos da orquestra

requereriam um tratamento que transcende o escopo deste trabalho. A técnica

vocal, por sua vez, constitui um aspecto essencial do planejamento de ensaios de

um coro.

Conforme mencionado no capítulo 1 deste trabalho, em qualquer contexto

em que são desenvolvidas atividades de canto coral compreende‐se que haja uma

construção coletiva da técnica vocal. Mesmo em grupos profissionais, dos quais

espera‐se que os cantores possuam formação individual prévia na técnica do

canto, o desenvolvimento da sonoridade passa por um processo de unificação do

resultado sonoro, compreendido como a homogeneidade do timbre, que constitui

uma premissa do canto coral (cf. SANDT, 2016, p. 28). A partir dessa perspectiva,

Fernandes (2009, p. 451) enfatiza que


O som coral é formado a partir da somatória das características das
várias vozes que compõe o grupo. Assim, o regente coral deve sempre
ter em mente que o coro é seu instrumento, e sua sonoridade precisa
ser construída paciente e disciplinadamente [...] Falando em coros
amadores, podemos afirmar que o preparo vocal oferecido aos cantores
como parte integrante de suas atividades é o caminho mais eficaz para
que se construa uma sonoridade esteticamente bonita, tecnicamente
eficiente e estilisticamente adequada.

53
Portanto, compreende‐se que o planejamento do trabalho com um grupo

coral deve conter um programa de ações de preparo vocal que possa desenvolver

amplamente as habilidades vocais do conjunto, incluindo aulas e seminários para

estudo e treinamento da técnica vocal, que podem ser realizados

facultativamente por profissionais especializados. Não obstante, o processo de

desenvolvimento técnico não deve se limitar a essas ações pedagógicas – o

regente, durante o processo de ensaio de uma obra ou de um programa, deve ter

clareza quanto aos desafios técnicos que aquele repertório impõe e adotar

estratégias específicas para aplicação direta no ensaio. Esta é justamente a

abordagem que trazemos neste capítulo – questões técnicas a serem trabalhadas

no processo de ensaio de obras. Por conseguinte, não se pretende oferecer

indicações detalhadas de um programa completo de preparação vocal, proposta

esta que exigiria um aprofundamento inconciliável com as finalidades deste

estudo. Serão apresentadas estratégias específicas do trabalho vocal para

aplicação em ensaio.

3.1 Aquecimento vocal

A realização de um aquecimento vocal no início de um ensaio coral

constitui um princípio elementar de estrutura e planejamento de ensaio, por

diversas razões. A primeira e mais evidente necessidade se baseia no fato de que


A maior parte das pessoas fala [em uma altura] cerca de uma oitava
abaixo [da altura] em que canta. [...] [No aquecimento vocal] novas
informações podem ser transmitidas, enquanto as já conhecidas podem
ser reforçadas. O aquecimento é um momento pedagógico15.
(EMMONS; CHASE, 2006, p. 186‐187)

15“Most people speak at least an octave below where they sing […] New information can be imparted and
old information should be reinforced. The warm‐up period is a pedagogical moment”.

54
Compreende‐se, portanto, que o aquecimento vocal é o momento em que se

prepara a voz dos cantores para o trabalho coral, condicionando seu

funcionamento para a música que vai ser executada. Por esta razão, recomenda‐

se realizar exercícios e vocalises que reiterem os fundamentos principais da

técnica vocal, em especial aqueles que serão mais exigidos pelo repertório a ser

ensaiado. Tomando‐se por exemplo um repertório com coloraturas, é importante

se realizar vocalises de agilidade; quando se ensaia um repertório com notas

longas e agudas, recomenda‐se a utilização de vocalises em sostenuto.

Recomenda‐se, inclusive, a elaboração de vocalises utilizando os trechos mais

difíceis do repertório em estudo, em acréscimo aos vocalises básicos que são

utilizados no estudo dos fundamentos da técnica vocal. Por ser um momento de

realização de exercícios, entende‐se que o aquecimento é um momento

pedagógico, no qual pode‐se também ensinar ou aprofundar elementos da

técnica vocal. Para Fernandes (2009, p. 452),


Aquecimento vocal significa colocar de prontidão toda a musculatura
envolvida no canto. O preparo vocal deve começar no momento do
aquecimento, entretanto, não se limita ao exercícios realizados em tal
momento. Ele se estende até o último instante do ensaio e deve incluir
não somente exercícios de técnica pura como também a aplicação
desses exercícios em todo o repertório ensaiado.

A partir desta perspectiva propomos que o aquecimento seja sempre

realizado no início de cada ensaio, com os exercícios direcionados para as

especificidades técnicas do repertório a ser ensaiado. A duração do aquecimento

é variada, e depende basicamente da duração total do ensaio. Para ensaios de 90

minutos de duração certamente não será possível realizar mais do que 15

minutos de aquecimento, enquanto nos ensaios de 120 a 180 minutos o momento

de aquecimento pode ter até 30 minutos, sendo também utilizado para

desenvolver fundamentos técnicos do canto. Considera‐se também que a

duração do aquecimento pode variar de acordo com o cronograma de preparação

55
de um concerto e o tempo efetivamente disponível – quando há um repertório

muito extenso em fase de leitura, exigindo grande esforço vocal do conjunto,

certamente o aquecimento poderá e deverá ser abreviado, enquanto no fim da

preparação de um programa, quando o repertório já está dominado pelo grupo,

um aquecimento mais detalhado pode favorecer o refinamento da sonoridade. O

aquecimento é, portanto, flexível, mas não deve ser negligenciado, pois ele

contribui de forma decisiva para a saúde vocal dos cantores e seu desempenho

musical. Além destes fatores, o aquecimento também constitui um importante

exercício de concentração – cada participante do grupo chega no ensaio trazendo

seus pensamentos, suas preocupações e sentimentos da vida cotidiana mas, a

partir daquele momento, todos devem se concentrar no mesmo objetivo, no

mesmo espírito. O aquecimento acaba se transformando em uma espécie de portal

de entrada para o mundo da música, que tem uma atmosfera própria, preparando

os cantores para sua atuação. É justamente essa atmosfera que traz tanto bem‐estar

e satisfação para quem canta e, por isso, devemos, cultivá‐la.

Também se espera que cantores profissionais tenham mais prática e,

portanto, mais facilidade de concentração, além da capacidade pessoal de

aquecimento da própria voz. Por esta razão, no trabalho com cantores

profissionais, o aquecimento deve ser comedido e assertivo, especificamente

direcionado para a sonoridade e homogeneidade do timbre. O aquecimento

também colabora com a função de reconhecimento acústico de locais

desconhecidos, no caso de realização de ensaios ou concertos em locais diferentes

do ambiente de ensaios ordinários, já conhecido pelo grupo. A adaptação a

diferentes condições acústicas constitui um elemento essencial do planejamento

da performance, pois o regente deve considerar que o ambiente canta junto com

o coro. Assim, este processo de adaptação inicia‐se já no momento do

aquecimento, que proporciona a tranquilidade necessária para que os cantores

56
tenham a percepção acústica necessária para dimensionamento do excesso ou

falta de reverberação, e possa ajustar as articulações e a sonoridade de forma a

adequar‐se ao espaço sonoro. Considerando estas questões, o regente deve

adiantar‐se e selecionar os vocalises que favoreçam essa adaptação, de acordo

com o repertório e as características do ambiente.

Ainda sobre a execução de vocalises no aquecimento vocal, recomenda‐se

que o coro execute os exercícios sem que a melodia seja continuamente apoiada

pelo piano em uníssono. Ainda que o piano sustente o acorde relativo à altura

corrente do vocalise – o que é recomendável durante a sequência cromática – o

piano não deve duplicar o vocalise, pois essa prática desestimula a autonomia das

vozes, que tendem a se “apoiar” nas notas atacadas pelo piano. Ao apresentar o

exercício para o grupo, é favorável tocá‐lo uma vez ao início, para que o grupo

tenha clareza de seu perfil melódico. Uma vez iniciada a sequência, permita que

o coro assuma a responsabilidade pela energia do exercício. Se houver dúvidas,

toque novamente, mas não deixe de incentivar a autonomia da voz em relação a

qualquer ponto de apoio instrumental.

3.2 Aplicações dos fundamentos da técnica vocal

Partindo‐se do pressuposto que a sonoridade de um coro é construída a

longo prazo, a partir de um amplo programa de preparação vocal, que não se

limita aos exercícios de aquecimento, mas engloba diferentes momentos de

atividades e treinamentos, incluindo a própria preparação do repertório,

trataremos aqui especificamente de estratégias de aplicação dos fundamentos da

técnica vocal no momento do ensaio – isto é, questões técnicas que afetam

diretamente a montagem de obras corais.

57
Para alcançarmos essa assertividade do trabalho da técnica vocal no

ensaio, é essencial que o regente analise quatro problemas fundamentais do canto

em conjunto e atue diretamente em suas resoluções:

a) Adequação da capacidade pulmonar e pressão subglótica;

b) Antagonismo na articulação da mandíbula entre notas e vogais;

c) Distinção do registro de voz de cabeça como timbre modelador;

d) Acoplamento da nasofaringe na produção sonora.

Tendo a clareza a respeito destas quatro questões que são decisivas para

a capacidade de execução de obras corais, é possível relacionar algumas

estratégias simples que podem resolver problemas pontuais no momento de

preparação do repertório. Reiteramos que estas estratégias, se tomadas de forma

isolada, não perfazem um programa de preparação vocal – todo coro deve ter

uma agenda de atividades diversas com o objetivo de desenvolver a técnica vocal

em conjunto, e as estratégias aqui descritas constituem apenas uma parte desse

plano maior. Ainda assim, verifica‐se que os quatro problemas aqui mencionados

referem‐se exatamente a quatro dos elementos mais importantes que podem ser

considerados os fundamentos da técnica vocal: a respiração, a articulação, os

registros vocais e a ressonância, que serão tratados a seguir.

3.2.1 Respiração

Problema: adequação da capacidade pulmonar e controle da pressão


subglótica.

Segundo Sundberg (2018, p. 59‐60), “na respiração silente [...] utilizamos

apenas uma pequena quantidade de toda a nossa capacidade vital: 0,5ℓ, ou

apenas uma décima parte de 5ℓ disponíveis em homens adultos. Esse volume é

chamado de volume corrente”. Partindo desta observação, concluímos que, na

58
maior parte do tempo, as pessoas estão condicionadas a utilizarem apenas 10%

de sua capacidade pulmonar vital e, portanto, somente cantores experientes e

bem treinados são capazes de aumentar significativamente o volume máximo de

ar inspirado compatível com a capacidade vital que, para isso, exige o empenho

de dois grupos musculares – torácicos e abdominais – que naturalmente não são

ativados nas atividades do dia a dia. Por esta razão, a respiração ideal para o

canto é denominada respiração costoabdominal, pois somente o acionamento de

ambos os grupos musculares proporcionará a utilização máxima de nossa

capacidade pulmonar que é necessária para entoarmos frases musicais projetadas

e ressonantes. Portanto, estamos tratando de um movimento contínuo de

conscientização dos cantores de que é necessário utilizar toda a sua capacidade

pulmonar, independente se a frase cantada seja aguda ou grave, forte ou piano,

longa ou curta – enquanto estamos cantando precisamos sempre buscar a

inspiração máxima, de acordo com as circunstâncias oferecidas pelo fraseado da

música a ser cantada. Segundo Miller (2019, p. 386), “o volume do pulmão

depende da ação total [da musculatura] da caixa torácica”. Assim, durante os

ensaios, o regente precisa ser um “fiscal” da respiração do coro. O movimento de

levantamento do osso esterno na fase de inspiração da respiração

costoabdominal é claramente perceptível visualmente – portanto, o regente deve

se certificar que o coro desenvolva o condicionamento do uso de toda sua

capacidade vital.

Esta atenção à respiração do coro se deve à importância desse fundamento

para a arte do canto. Não é possível desenvolver outros aspectos da técnica vocal

e, portanto, da sonoridade, sem um controle adequado do mecanismo da

respiração. Para Miller (2019, p. 84) “o controle da respiração é sinônimo do

controle do instrumento voz”. Isso se deve ao fato de que a utilização de toda a

capacidade vital viabiliza um melhor controle da pressão subglótica, que é a

59
potência da corrente de ar que incide nas pregas vocais, causando sua vibração.

Sundberg (2018, p. 39) explica que “o aumento da pressão subglótica produz,

como principal efeito, o aumento da intensidade da fonação e, em menor medida,

da frequência de fonação”. Logo, o controle da pressão subglótica permite aos

cantores não só controlar a intensidade da emissão de sua voz, mas também a

própria altura das notas que estão sendo cantadas, influindo diretamente na

clareza da linha melódica e sua afinação. Estas observações esclarecem, portanto,

que as notas produzidas pela voz humana não dependem somente da

configuração das pregas vocais, como se imagina inicialmente, mas são resultado

de uma combinação de ajustes da prega vocal em relação à pressão subglótica

proporcionada pelo sistema respiratório. Fica claro, a partir de então, que “o

sistema respiratório do cantor deve produzir uma pressão própria específica para

cada uma das notas cantadas” (SUNDBERG, 2018, p. 73).

Estas considerações são essenciais para se compreender as dificuldades

que cantores sem experiência enfrentam ao concentrar esforços no ajuste das

pregas vocais durante a vocalização, sem dar a devida atenção ao controle da

pressão subglótica, gerando uma sonoridade deficiente. Por isso, é necessário que

o controle da pressão subglótica seja continuamente treinado – e a chave deste

treinamento é justamente realizar exercícios em staccato e também estudar as

passagens mais difíceis do repertório em staccato, a título de treinamento,

ainda que no momento da execução essas passagens venham a ser executadas em

legato ou sostenuto. Sundberg (2018, p. 74) explica que “cantar em staccato envolve

também a habilidade de diminuir a pressão subglótica até zero entre cada uma

das notas da sequência melódica”. Ao diminuir a pressão subglótica até zero

entre uma nota e outra, nosso sistema respiratório promoverá a determinação da

pressão relativa a cada nota cantada, diferente de ter que ajustar a pressão de

uma nota diretamente para a outra, como deve ocorrer no legato ou sostenuto. Este

60
processo facilita o condicionamento da ação respiratória à configuração das

pregas vocais, a fim de que o som produzido seja afinado e ressonante. Esta é a

razão pela qual os professores de canto e estudiosos propõe contínuos

treinamentos em staccato (cf. MILLER, 2019, p. 57 e FUCITO e BEYER, 1922, p.

124).

Mesmo em passagens musicais de grande agilidade como as coloraturas,

o mesmo princípio se aplica. Sundberg (2018, p. 66) enfatiza que


A pressão subglótica deve em geral se modificar rapidamente entre as
notas adjacentes [...] a técnica de coloratura requer grande virtuosismo
para o controle das variações da pressão subglótica de acordo com a
nota produzida: as notas duram entre 120 e 170 milissegundos e cada
nova nota necessita de seu pico próprio de pressão.

Portanto, nas passagens de grande agilidade, especialmente se o coral for

numeroso, não só é possível como é recomendável o estudo em staccato,

inicialmente mais lento e progressivamente ficando mais rápido, até que o

staccato se transforme gradualmente em uma sequência clara em non legato. Em

passagens não melismáticas recomenda‐se ensaiar em staccato sem o texto, com

uma vogal única neutra [ʌ], ou fechada [ɑ]/[ɔ]. Logo o regente perceberá que

existe uma evidente dificuldade de se cantar em staccato em trechos silábicos,

especialmente se houver intensa articulação de consoantes. Cantar em staccato

sem o texto facilitará a execução dos intervalos mais difíceis, melhorando

também a sonoridade. Uma vez que a linha musical estiver bem dominada, a

execução com o texto não será mais um empecilho.

É importante salientar que esta estratégia não se aplica somente a

passagens com notas rápidas ou curtas. Mesmo em trechos pesantes, nos quais

houver dificuldades nos intervalos, é interessante que o coro realize articulações

diversas da original com o intuito de fixação das variações de pressão subglótica

requeridas pela passagem. Em linhas gerais, Miller (2019, p. 87‐88) recomenda o

amplo treinamento de exercícios de agilidade, enfatizando que

61
A agilidade e o sostenuto são polos opostos da proficiência vocal, mas
ambos são produzidos pelos mesmos participantes musculares [...] É
essencial para qualquer categoria vocal, quer a literatura daquele tipo
de voz exija isso, quer não, que a agilidade seja parte da prática diária
do cantor.

Nota‐se nesta observação a preocupação dupla de Miller com o

treinamento do staccato, realizado em grande medida pela musculatura da

parede abdominal, para as passagens de agilidade e também o treinamento do

sostenuto, que só é possível com a utilização total do volume pulmonar dos

cantores. Estes dois recursos são interdependentes, uma vez que qualquer

atividade abdominal que vise o controle da pressão subglótica só terá resultado

se o cantor tiver uma quantidade de ar considerável em seus pulmões – não há

técnica que vença uma quantidade insuficiente de ar. Por esta razão, o regente

deve sempre incentivar o coro a realizar respirações parciais, até mesmo

alternadas, se necessário, pois “o cultivo da chamada inspiração ‘parcial’ é tão

essencial à boa técnica vocal quanto a habilidade de respirar completamente”

(MILLER, 2019, p. 86), sem prejuízo das marcações pré‐determinadas das

respirações de frase que devem ser seguidas por todos e marcadas na partitura.

A respeito do papel da musculatura abdominal na realização de passagens

em staccato, Miller (2019, p. 395) enfatiza que


No canto, o mais ativo dos músculos do abdômen é o oblíquo externo.
Este músculo caracteristicamente mostra contração imediatamente
antes da produção de som e em qualidade faseada quase no fim da
articulação, especialmente em vocalises em staccato. Quando se
produz voz sustentada, há também contração sustentada (grifos
nossos).

Partindo‐se destas considerações, define‐se então estratégias claras para se

vencer os problemas decorrentes da falta de pressão subglótica que

comprometem não só a afinação mas a própria sustentação da linha de canto da

frase musical.

62
3.2.2 Articulação

Problema: Antagonismo na ação da mandíbula entre notas e vogais.

Estudos recentes sobre a fisiologia do canto demonstram uma relação

direta entre a abertura da mandíbula e a altura da nota cantada. Segundo

Sundberg (2018, p. 172), “a abertura mandibular no canto está aparentemente

mais vinculada à frequência de fonação do que à vogal emitida, particularmente

quando se trata de notas muito agudas”. Experimentos baseados em exames de

imagem16 comprovam essa relação, que também pode ser verificada na prática

do canto, especialmente quando se observa cantores solistas executando

melismas ou coloraturas: o ajuste da abertura da mandíbula à linha melódica

desempenha um papel essencial para a clareza e precisão da emissão sonora.

Partindo‐se destas observações, deparamo‐nos com um problema que

ainda não foi abordado de forma aprofundada pelos estudiosos da técnica vocal:

a abertura da mandíbula, juntamente com o posicionamento da língua e dos

lábios, constitui a base da configuração de emissão das vogais; isso significa,

portanto, que há incompatibilidades iminentes entre a configuração básica das

vogais e determinadas alturas de notas. Em outras palavras, determinada nota

pode exigir uma abertura da mandíbula que seja incompatível com a vogal

atribuída a ela.

Esta questão nos coloca em uma polêmica encruzilhada: a abertura da

mandíbula deve seguir a altura da nota cantada ou a configuração da vogal?

Mesmo conscientes das escolas de canto históricas que pregam o si canta come si

16Sundberg (2018, p. 177) demonstra em um experimento baseado em imagens de Raio X as


diferentes posições da língua e da mandíbula durante a execução de notas em diferentes alturas
com diferentes vogais.

63
parla17, compreendemos que a abertura da mandíbula é uma condição para o

alcance de determinadas notas – especialmente as notas mais agudas – e que a

articulação da mandíbula também é uma condição para a emissão adequada de

sequências de diferentes notas. Considerando então que a abertura da mandíbula

seja uma condição da sonoridade, teremos que assentir que a configuração das

vogais cantadas, em determinadas circunstâncias, pode não corresponder à

configuração original das vogais da fala. A estratégia de ajuste das vogais à altura

da nota cantada é denominada aggiustamento18 em italiano, e constitui uma

prática consolidada no canto lírico. Entretanto, ainda há muitas dúvidas e pouco

consenso sobre a maneira e os princípios de aplicação dessa técnica, e quais são

as condições de sua aplicação na prática coral.

Para tratar dessa questão no contexto do ensaio coral propomos algumas

estratégias básicas, especialmente recomendadas para o trabalho em passagens

agudas: estudar as linhas sem texto, em forma de melismas, com uma vogal neutra

[ʌ], ou fechada [ɑ]/[ɔ], pois estas permitem a variação na abertura da mandíbula,

evitando‐se as vogais frontais [e] e [i], que em sua configuração original requerem

o fechamento da mandíbula. Com este procedimento, ficará clara a articulação

da mandíbula necessária para o alcance das notas e, uma vez que o grupo tiver a

segurança na execução das passagens mais difíceis, passar então a uma gradual

inclusão do texto na execução.

Neste ponto, deparamo‐nos com novas dificuldades: em notas sustentadas

com articulação de sílabas, especialmente em sequências de diferentes vogais,

observar‐se‐á uma notável mudança de timbre e, muito provavelmente,

problemas de afinação com as diferentes vogais em notas de uma mesma altura.

17 Cf. MILLER, 1996, p. 47.


18 Cf. MILLER, 2019, p. 225.

64
Identifica‐se então outro problema físico de difícil contorno para a performance

do canto: diferentes vogais são emitidas a partir de diferentes configurações dos

articuladores frontais, especialmente mandíbula, língua e lábios. Portanto,

conclui‐se que diferentes vogais resultam em diferentes timbres. Esta constitui uma

questão crucial para a sonoridade coral, que busca continuamente a unidade de

timbre e, portanto, precisa encontrar uma estratégia para sua resolução. A esse

respeito, Sandt (2016, p. 28) afirma que “a qualidade do som vocal e a

homogeneidade do timbre são inseparáveis uma da outra”. Henry Leck (2020, p.

22), por sua vez, propõe que “a consistência da cor da vogal melhora com menos

movimento da boca”. Considerando as observações acima, inferimos que a

qualidade sonora será consequência da homogeneidade de timbre, que só pode

ser alcançada com a homogeneidade entre as próprias vogais. Adeptos da escola

italiana utilizam a chamada copertura para alcançar esse resultado, propondo o

arredondamento dos lábios em uma projeção das comissuras labiais para frente,

resultando no alongamento do trato vocal (SUNDBERG, 2018, p. 143) e o

consequente “escurecimento” do timbre. Entretanto, considerando que vozes

solistas enfrentam circunstâncias diferentes das vozes corais, propomos que este

recurso só seja utilizado de forma excepcional no canto coral. Em linhas gerais,

compreendemos que as vogais frontais [i, I, e, ɛ, æ, a], por seu padrão espectral

aberto que é resultado da incidência de parciais harmônicas altas, apresentam

notável dificuldade de homogeneização de timbre e decorrente dificuldade de

afinação. Por essa razão, propomos que a técnica do aggiustamento aplicada ao

canto coral seja baseada na neutralização das vogais, de forma que diferentes

vogais cantadas na mesma altura mantenham a mesma abertura da mandíbula e

sejam articuladas exclusivamente pela língua e pelos lábios. O resultado será

uma aproximação sonora substancial entre as diferentes vogais, que favorecerá a

homogeneidade de timbre e consequente melhor afinação do grupo. É evidente

65
que esta técnica deve ser aplicada em circunstâncias específicas, tais como a

sustentação de notas longas, notas agudas e finalização de frases, e que passagens

rápidas com texto silábico claramente prescindem deste tipo de ajuste,

especialmente em tessituras confortáveis.

Propomos, na figura 4, um exercício para o desenvolvimento da técnica do

ajustamento de vogais em notas longas na mesma altura. Deve‐se entoar as 5

vogais principais /a e i o u/, iniciando‐se ainda com a consoante nasal /m/ para

facilitar a ressonância nasofaríngea. Entretanto, aplicando‐se o princípio de

neutralização das vogais e mantendo a abertura da mandíbula fixa para todas as

vogais cantadas na mesma altura, a execução resultará nos fonemas [ɑ œ ʌ ɔ u].

A sonoridade das vogais neutras é facilmente identificada quando se parte da

configuração identificada como a “boca do bocejo”. O exercício pode ser

realizado no momento de aquecimento, mas pode e deve ser repetido durante a

leitura de uma passagem da obra que requeira este tipo de ajustamento.

Preferencialmente, o regente deve compreender as bases do ajuste proposto e

aplicá‐las na própria obra que está sendo ensaiada.

Figura 4 – Exercício de ajustamento de vogais

Esta estratégia vai ao encontro de práticas propostas por Leck (2020, p. 28),

para quem “as vogais cantadas exigem mais espaço na boca do que as vogais

faladas”, bem como das considerações de Fernandes (2009, p. 290), quando

afirma que “escurecer o som das vogais é uma estratégia para alcançar um som

homogêneo, pois há uma redução nos harmônicos agudos que contribuem para

a individualidade de cada vogal.” Sundberg (2018, p. 196) reitera que “coralistas

66
devem ajustar a ‘cor’ de suas vogais de modo a adequá‐las à homogeneidade

sonora do grupo coral, algo que não se aplica a cantores solistas”. Leck (2020, p.

3) adota como premissa que “o timbre de um coro será resultado direto das

fôrmas das vogais ensinadas pelo regente”, que pressupõe que as tais “fôrmas”

nada mais são do que os ajustes de neutralização aplicados às vogais. Fucito e

Beyer (1922, p. 186), ao transcreverem um vocalise de Caruso (Figura 5), explicam

que
o cantor deve buscar a homogeneidade da vogal ao longo das diferentes
notas: isto é, quando passa de uma nota para a outra, a vogal cantada
deve manter a mesma posição ou produção e a mesma intensidade.
Além disso, não somente a forma de cada vogal deve permanecer ao
longo das oito notas cantadas, mas todas as cinco vogais devem ser
semelhantes em posição e intensidade.

Figura 5 – Exercício de Caruso (FUCITO, BEYER, 1922, p. 186),


com a inclusão de fonemas ajustados.

A necessidade de ajuste de vogais em algumas obras que apresentam

passagens na tessitura extrema aguda poderá exigir que, virtualmente, a

articulação do texto seja abandonada. Em obras do período renascentista e

barroco, em especial, é comum que a distribuição do texto cantado entre as notas

seja irregular, cabendo ao intérprete fazer os ajustes necessários – não somente

pela adequação da prosódia, mas também em relação às exigências articulatórias

da melodia. Robert Donington (1992, p. 524) enfatiza que “a maioria dos textos

da música antiga são casuais, incompletos e inexatos em sua distribuição do texto

67
cantado; cabe ao executante decidir qual sílaba deve coincidir com qual nota”19.

Cabe ao regente tomar as decisões que melhor atendam as dificuldades vocais

apresentadas na partitura. Na figura 6 apresentamos um excerto do coro Tu es

sacerdos in aeternum do oratório Dixit Dominus HWV 232 de G. F. Haendel, no qual

a distribuição de texto original torna a execução da linha de soprano II

praticamente impossível devido às dificuldades de articulação na tessitura

aguda. Abaixo do texto original propomos uma adaptação na qual o texto é

preservado, mas sem a necessidade de repetição, reservando à passagem mais

aguda uma articulação melismática que favorece substancialmente sua execução.

Figura 6 – G. F. Haendel – Dixit Dominus HWV 232 – V. Coro – Tu es sacerdos in aeternum


Parte de soprano II – Compassos 20‐21 – Texto original e texto adaptado.

Também a articulação de consoantes muitas vezes pode se tornar um fator

de dificuldade na execução de notas agudas. Neste ponto o regente depara‐se

com a antiga discussão sobre a compreensão dos textos cantados. A esse respeito,

limitamo‐nos a observar que a maioria das obras corais caracteriza‐se pelo

tratamento livre e repetitivo do texto; assim, consideramos que a compreensão

do texto não fica prejudicada no caso em que, eventualmente, em passagens mais

difíceis, sejam privilegiados os ajustes vocais para a boa execução das notas em

detrimento da articulação do texto. Considera‐se ainda que, com grande

19“Most early texts are casual, incomplete and inaccurate in their underlaying of the words; it is
for the performer to decide which syllable should go to which note or notes” (tradução nossa).

68
frequência, enquanto uma voz canta uma passagem bastante difícil, outra voz

pode estar cantando uma passagem homofônica em uma região muito

confortável, na qual a articulação do texto seja francamente favorável. Nestas

situações, o resultado sonoro final é certamente satisfatório, ainda que a voz mais

aguda tenha que adaptar o texto às necessidades articulatórias das notas, tal qual

ocorre no quarto movimento da Sinfonia nº 9 em Ré menor op. 125 de Beethoven

(figura 7), no qual todas as vozes entoam o texto de forma homofônica, mas

contraltos e baixos cantam em uma região confortável, enquanto sopranos e

tenores encontram dificuldades substanciais na execução melódica de suas

partes. Emmons e Chase (2006, p. 88) corroboram esta prática, afirmando que
Quando todos estão cantando forte, usando a mesma frase já repetida
anteriormente, como é típico em uma coda, deixe que os naipes que
estiverem cantando notas realmente agudas virtualmente abandonem
as consoantes, deixando as tarefas de enunciação aos naipes que estão
cantando notas mais razoáveis.

Figura 7 – Ludwig van Beethoven – Sinfonia nº 9 em Ré menor op. 125 – IV movimento

3.2.3 Registros vocais

Problema: Distinção do registro de voz de cabeça como timbre modelador.

O ato de cantar é algo que fascina a todos, indiscriminadamente. Todos

cantam, todos gostam de cantar. Canta‐se em casa, canta‐se na igreja, canta‐se em

shows, canta‐se nos bares. Entretanto, pouca atenção é dedicada à compreensão

69
das diferenças que há entre as práticas populares, as práticas midiáticas e as

práticas de concerto da música vocal. Em coros amadores é comum que os

voluntários procurem os grupos simplesmente porque “gostam de cantar”.

Diferente de outras práticas vocais, a música coral, em regra geral, segue

paradigmas de sonoridade que requerem determinadas configurações no trato

vocal que nem sempre são comuns a outras práticas vocais. Dessa forma, muitos

praticantes que não tiveram a oportunidade de ter uma formação individual em

canto ingressam em atividades de canto coral ainda condicionados por outras

práticas que são incompatíveis com o repertório coral. Referimo‐nos

especialmente ao trabalho com os diferentes registros vocais. Fernandes (2009, p.

254 reitera que “saber lidar com a questão da registração vocal é fundamental

para o regente e seus cantores”.

Não constitui objetivo deste estudo aprofundar as questões fisiológicas e

metodológicas que envolvem o desenvolvimento das técnicas de utilização dos

diferentes registros da voz cantada. Entretanto, cabe aqui a discussão sobre os

cuidados que os regentes devem ter no processo de ensaio e as implicações do

manejo dos registros vocais no preparo do repertório.

Entende‐se que a voz de peito corresponde, em regra geral, à região

confortável da fala. Entretanto, excetuando‐se as vozes de baixos e barítonos, que

cantam em uma tessitura predominantemente próxima de sua região de fala, as

outras vozes tendem a cantar em uma tessitura acima de sua região falada. A voz

de peito é produzida com o chamado mecanismo pesado20 e sua sonoridade, apesar

20Acionamento do músculo tireoaritenóideo que permite que as pregas vocais fiquem menos
tensas. Segundo Miller (2019, p. 414), “a amplitude de vibração é maior no registro grave porque
a glote se abre mais, e há um movimento vibratório completo das pregas a partir da posição
paramediana.”

70
de robusta, é caracterizada por parciais não‐harmônicas que conferem uma certa

característica gutural que desfavorece a ressonância e, consequentemente, a

afinação. Por esta razão, os timbres de voz de peito tendem a ser muito

diferenciados entre as pessoas, comprometendo seriamente a homogeneidade

entre as vozes de um coro. Na prática, seria impossível homogeneizar o timbre

de um coro em que todos cantem com voz de peito21. Já a voz de cabeça, por sua

vez, é realizada pelo mecanismo leve22, que produz um timbre puro e cristalino,

que favorece a ressonância velofaríngea e apresenta predominantemente parciais

harmônicas, privilegiando a homogeneidade de timbre e a afinação. As notas

mais agudas só conseguem ser alcançadas com a voz de cabeça, enquanto as

notas da região extrema grave só conseguem ser realizadas com a voz de peito.

Entretanto, toda a região média (compreendida a tessitura “dentro do

pentagrama” da clave de Sol) pode ser cantada com uma combinação de

transição entre os mecanismos, que chamamos de voz mista. Cantores iniciantes

tem uma tendência natural a resistir à mudança da voz de peito (identificada com

seu registro de fala) para a voz de cabeça, registro que raramente é utilizado no

cotidiano. O problema é que a partir do centro da tessitura as notas cantadas com

voz de peito puras tendem a apresentar uma sonoridade deficiente, com a

afinação comprometida, além das limitações de homogeneidade de timbre já

mencionadas. Portanto, concluímos que a sonoridade da voz de cabeça, devido

ao favorecimento da homogeneidade de timbre e consequentemente da afinação

21 A voz de peito constitui a essência da técnica denominada Belting, que não é compreendida
como uma voz coral, mas uma voz solista que faz uso de microfone. Utilizadas basicamente na
música midiática, há muitas controvérsias sobre essa prática, tanto do ponto de vista artístico
como fisiológico (cf. SUNDBERG, 2018, p. 275‐277).
22 Ação do músculo cricotireóideo que provoca o alongamento e tensionamento das pregas vocais,

de forma que a vibração ocorra exclusivamente na região membranosa, proporcionando um


timbre mais leve e afinado.

71
do conjunto, constitui o timbre modelo a ser seguido por todo o coro, pela

máxima extensão da tessitura que o treinamento permitir, compreendendo que a

voz mista deve ser sempre preferencial à voz de peito. A esse respeito, Miller

(2019, p. 184) afirma que


A voce mista não está restrita à zona di passagio; apesar de estar
completamente funcional na voz média, a voce mista pode descer à
região grave para modificar a ação mecânica pesada, assegurando
assim uma transição gradual de timbre por toda a escala.

Esta é uma das razões pela qual o aquecimento vocal é tão necessário no

início do ensaio: o condicionamento do registro vocal dos cantores à voz de

cabeça e à voz mista na região média e grave. Leck (2020, p. 3) propõe indicações

práticas, especificamente para vozes infantis, mas que são perfeitamente

aplicáveis a vozes femininas e tenores adultos:


Introduza vocalises e exercícios com modelos descendentes. No caso de
coros infantis, sempre comece com a voz de cabeça. Incentive cantar na
parte superior da clave de Sol (...) Uma boa escolha é o Dó 4.
Começando nesta altura, eles automaticamente começam a cantar na
voz de cabeça. ”

Entende‐se, portanto, que o conceito de homogeneidade sonora do coro se

aplica não só ao aspecto harmônico das diferentes vozes, mas também da linha

melódica ao longo da escala, uma vez que os registros tendem a se modificar nas

diferentes regiões da tessitura.


Um desafio clássico para os professores de canto, em particular dentro
do canto lírico, é o de minimizar ou mesmo eliminar as diferenças entre
as qualidades vocais correspondentes aos diferentes registros,
tornando as transições entre eles idealmente imperceptíveis
(SUNDBERG, 2018, p. 84).

Conclui‐se que outra necessidade do trabalho com vozes é justamente a

unificação dos registros. Tanto no treinamento vocal com vocalises, como

também no trabalho direto com o repertório o regente deve sempre ter em mente

que o timbre da voz de cabeça deve ser trazido para toda a frase, todo o conjunto.

Miller (2019, p. 205) aponta que “trazer a voz de cabeça para baixo até o registro

72
grave não é um ato de separação de registro, mas sim uma técnica para combinar

registros”. Seguindo este princípio, recomenda‐se para o naipe de tenores

experimentar as frases mais agudas em falsete e dinâmica suave, a fim de se

concentrar na homogeneidade e na afinação, para depois, gradualmente, inserir

um pouco de voz mista para se aumentar a intensidade. A ânsia pelo canto em

dinâmica forte, bastante comuns nos naipes de tenores, com frequência levam a

um comprometimento do timbre e da afinação.

Mesmo as vozes masculinas médias e graves, cantando na região próxima

da fala, devem também procurar sempre uma sonoridade mais próxima à voz

mista. Miller (2018, p. 199) reitera que “alguma sensação de voz de cabeça deverá

sempre estar presente durante toda a escala da voz masculina, independente da

categoria vocal, sem importar se começa ou termina na voz grave”.

Partindo‐se destas considerações, o regente deverá sempre estar atento ao

timbre produzido pelo coro – afinação insatisfatória e sonoridade heterogênea

normalmente são consequências da utilização inadequada dos registros, com

excessivo uso da voz de peito. Entre todas as vozes do coro, a experiência mostra

que a as partes de contralto, por sua tessitura mais grave, são as mais suscetíveis

a uma configuração inadequada dos registros. O mesmo princípio se aplica a

parte do repertório de coro infantil. Emmons e Chase (2006, p. 52) alertam que

“não se deve requerer de nenhuma voz infantil ou juvenil cantar forte as notas

graves, ou na voz de peito pura”. O cuidado com as vozes infantis e com o naipe

de contraltos deve partir do princípio que as notas mais graves não devem ser

cantadas em intensidade muito forte, pois isso conduz à configuração de voz de

peito pura que, além de ser musicalmente desinteressante, pode ser

fisiologicamente prejudicial para as cantoras e cantores. Estes cuidados podem

ser previamente estudados pelo regente, ao analisar a partitura que será

73
executada, observando as passagens que oferecem risco e adiantando‐se na

observação e controle do timbre.

3.2.4 Ressonância

Entende‐se por ressonância o fundamento da técnica vocal que envolve os

ajustes do trato vocal capazes de amplificar a produção de parciais harmônicas,

melhorando a qualidade, a projeção e a intensidade do som produzido pela fonte

glótica. Estes ajustes referem‐se principalmente aos articuladores posteriores,

incluindo o palato mole, a nasofaringe e as configurações laríngeas. A

ressonância também está diretamente ligada ao adequado uso dos registros

vocais. Portanto, uma vez que o grupo domine o correto ajuste dos registros às

exigências da partitura, naturalmente sua sonoridade tenderá a ser ressonante.

Por essa razão, o fundamento da ressonância exigirá menos atenção durante os

processos de leitura e montagem das obras, mas deve ser cuidadosamente

trabalhado no processo de refinamento da sonoridade. Compreende‐se,

portanto, que as estratégias para desenvolvimento da ressonância devem ser

aplicadas no contexto do ensaio quando a obra a ser preparada demande

especificamente o desenvolvimento do timbre, com longas frases em sostenuto e

seções corais homofônicas com notas longas, tais como ocorrem na música coral

do período romântico, particularmente na música eslava e germânica.

A respeito da relação do timbre com os ajustes nos articuladores

posteriores, Paul Lohmann (1996, p. 28) afirma que “esse espaço de ressonância,

cuja ativação no canto e sua expansão dominamos mais claramente, é a

74
nasofaringe. Podemos denominá‐lo espaço do timbre”23. O autor propõe,

portanto, que o mecanismo de desenvolvimento da sonoridade vocal é

justamente o acionamento do palato mole, que amplia os espaços de ressonância

da nasofaringe até a cavidade nasal.

Miller (2019, p. 120; 146) propõe uma definição concisa do fundamento da

ressonância e faz uma indicação prática bastante assertiva para sua aplicação,

afirmando que
A presença ou a falta de ‘ressonância’ na voz cantada é ligada
diretamente a ajustes feitos na região velofaríngea. [...] Um dos
melhores modos de desenvolver uma boa função acústica no ajuste dos
ressonadores é através do uso de continuantes nasais.

Propondo exercícios com a vocalização das consoantes nasais [m, n, ŋ, ɲ],

Miller reitera a importância do estudo da sonoridade de bocca chiusa para o

desenvolvimento da ressonância nasofaríngea. A alternância entre os fonemas

[m] e [ɑ] propicia a sensação contínua de acoplamento das cavidades nasais na

emissão sonora (figura 8). A respeito deste vocalise, Miller (2019, p. 139) afirma

que “[estes vocalises] são um meio de checar aquele equilíbrio acústico tão

essencial para o que os cantores chamam de ressonância. É recomendado que

estes vocalises sejam praticados pelo menos alguns minutos por dia.”

Figura 8 – Vocalise de ressonância (MILLER, 2019, p. 138)

23“Derjenige Klangraum, dessen Einschaltung zum Singen und dessen Ausweitung wir am eindeutigsten
beherrschen, ist der Nasenrachenraum. Wir könnten ihn den Raum des Timbres nennen” (tradução
nossa).

75
Uma indicação bastante prática para a realização deste vocalise é fazer

com que os cantores observem e sintam claramente a vibração provocada nos

seios nasais até a ponta do nariz enquanto os lábios estiverem fechados, e a

gradual perda dessa vibração à medida em que os lábios se abrem. Assim, o

objetivo do exercício passa a ser que a vibração sentida em bocca chiusa possa

persistir, ainda que parcialmente, quando se abre os lábios. Para facilitar o

alcance deste objetivo o regente deve recomendar o aumento da intensidade da

vibração quando em bocca chiusa, combinado com uma abertura extremamente

lenta e gradual dos lábios. Miller (2019, p. 138) explica ainda que
Quando os lábios se separam, nenhuma continuação da nasalidade de
fato deve estar presente no som, mas a mesma sensação deve pertencer
às áreas do nariz e dos seios nasais (a ressonância simpática
experimentada pelo cantor principalmente através da condução de
osso e cartilagem).

Partindo destas observações, concluímos que o estudo de passagens em

sostenuto e de notas longas de obras corais pode ser realizado parcial ou

integralmente em bocca chiusa, a fim de condicionar a vibração proporcionada

pela ressonância nasofaríngea. Incluir o fonema [m] antes do início de uma nota

longa, a título de treinamento, pode facilitar substancialmente o estabelecimento

de um ajuste ressonante. É importante salientar que a vocalização com a alveolar

[n] privilegia a ressonância frontal na busca do equilíbrio de ressonância,

enquanto [m] mantém a ressonância posterior. Portanto, a utilização da alveolar

[n] constitui uma alternativa para a construção de uma ressonância mais frontal

e, portanto, mais brilhante.

76
3.3 Técnicas de aprimoramento da afinação de vozes e instrumentos

Apresentamos agora algumas considerações sobre a questão da afinação

dos grupos musicais e, portanto, seus princípios se aplicam indistintamente para

vozes e instrumentos, bem como suas combinações.

É necessário distinguir entre os diferentes problemas de afinação que

surgem em diferentes contextos da performance em grupo. Pode‐se distinguir,

basicamente, dois tipos principais de incidências: a desafinação melódica e a

desafinação harmônica, e estes dois tipos devem ser tratados de forma específica.

O que podemos entender como desafinação melódica são aquelas ocorrências que

se caracterizam pela imprecisão da sucessão de intervalos melódicos, muito

comuns nos instrumentos de arco e nas vozes quando os músicos estão inseguros

durante a leitura de obras novas, geralmente em passagens de notas rápidas e

difíceis. Nos instrumentos de corda este tipo de ocorrência normalmente é

minimizada a partir da definição de dedilhados eficientes e unificados em cada

naipe. Nas vozes, é necessário realizar ensaios de naipe com o estudo específico

dos intervalos mais difíceis, utilizando as técnicas já mencionadas de respiração

e articulação. Por outro lado, os problemas que podemos denominar como

relativos à afinação harmônica referem‐se aos intervalos harmônicos resultantes

das diferentes partes concomitantes da harmonia, sejam executadas por vozes ou

por instrumentos. Esta é uma questão específica que deve ser tratada diretamente

no ensaio, não sendo passível de resolução com o estudo individual ou na

realização de ensaios de naipes separados.

Para o desenvolvimento das questões de afinação em grupo é necessário

refletir sobre algumas propriedades do som, uma vez que os problemas de

afinação em grupo constituem, em regra geral, uma consequência, e não uma causa

77
por si. Dessa forma, compreende‐se que, para combater uma consequência

indesejável, é necessário encontrar sua causa.

A primeira reflexão que propomos sobre as propriedades do som são as

implicações dos níveis de dinâmicas de intensidade. Trazemos à discussão que

as indicações piano e forte, na prática da performance, podem estar se referindo

mais a uma indicação de timbre do que propriamente a quantidade de decibéis

que o músico deve emitir. É interessante recordar que, nas obras do período

barroco, quando as indicações de dinâmica ainda não eram amplamente

utilizadas, é comum encontrar a indicação dolce naquelas circunstâncias

identificadas mais tarde com o termo piano, especialmente em obras de Giovanni

Battista Pergolesi. A utilização do termo dolce é, portanto, emblemática:

claramente trata‐se de uma questão de sonoridade e timbre, não obstante estar

implícita uma noção de “suavização” do som em termos de intensidade.

Considerando‐se a experiência da prática com os instrumentos modernos

e vozes, observa‐se que quando há a indicação de dinâmica forte o timbre

produzido é menos puro – literalmente, há “ruídos” que fazem parte da

sonoridade compreendida pela dinâmica forte. Esses “ruídos” são resultantes da

incidência de parciais não‐harmônicas próprias de uma produção agressiva do

som: nos instrumentos de arco, uma maior pressão da crina sobre as cordas aliada

a uma velocidade maior de deslocamento da crina; nos instrumentos de sopro de

metal ocorre a vibração de porção maior da massa labial; nos instrumentos de

sopro de palheta, maior material vibrante da cana etc. Nas vozes, a dinâmica forte

está sistematicamente ligada ao denominado mecanismo pesado (ação do

músculo tireoaritenóideo), com as pregas vocais distensionadas, provocando o

aumento da massa vibrante, resultando na configuração chamada de voz de peito

ou voz mista. Partindo‐se destas observações, pode‐se deduzir que as parciais

não‐harmônicas que caracterizam o timbre comumente produzido por vozes e

78
instrumentos quando há indicação dinâmica forte são percebidas como um

aumento de intensidade, mas implicam em certo comprometimento da afinação,

uma vez que misturam‐se parciais harmônicas com parciais não‐harmônicas.

Partindo‐se destas considerações, pode‐se concluir que, por princípio, a

força é inimiga da afinação. Isso não significa que não seja possível uma sonoridade

forte afinada – sim, é claramente possível, mas também é perceptível a

deterioração da afinação na medida em que aumenta a intensidade do som.

Consequentemente, pode‐se inferir que constitui uma técnica para

aprimoramento da afinação o estudo de passagens problemáticas em dinâmica

suave e, gradualmente, aumentar o nível dinâmico buscando a preservação da

afinação alcançada na dinâmica suave.

Compreendendo‐se que os problemas de afinação constituem mais

consequências do que causas, e considerando a questão dos níveis dinâmicos, é

possível concluir também que os problemas de afinação em naipes numerosos

(tais como as vozes de um coro ou em uma orquestra de cordas) está também

diretamente ligada à qualidade e homogeneidade do timbre. No coro, quando

não há um timbre ressonante, as vozes tornam‐se heterogêneas e as diferenças de

timbre, que são resultado das diferentes parciais harmônicas e frequências de

formantes, tornam as afinações também incompatíveis entre si. Sandt (2016, p.

47) reitera que “dificuldades de homogeneização de timbre crescem

consideravelmente à medida que o nível dinâmico aumenta [...] é mais fácil

alcançar a homogeneidade do timbre quando se trabalha em passagens suaves”24.

Portanto, quando há problemas de afinação, mais importante do que se buscar

“a altura correta das notas” é se encontrar um timbre melhor, mais ressonante e

24“Blending difficulties increase considerably as the dynamic level increases [...] it is easiear to achieve good
blend when working in soft passages” (tradução nossa).

79
mais homogêneo. Por esta razão, o registro de voz de cabeça deve sempre ser o

modelo de sonoridade do coro, pois apresenta predominantemente parciais

harmônicas que contribuem com a afinação. Conforme Günther Habermann

(2003, p. 118), “quanto mais registro de cabeça estiver contido em um som, tanto

mais ‘doce’ e ‘flautado’ será o seu timbre”25.

Nos instrumentos de arco as decisões relativas ao dedilhado e ao arco

condicionam a homogeneidade do som de um naipe. Por esta razão, espera‐se

que todos os músicos de um mesmo naipe, ao executar a mesma parte, devam

seguir dedilhados e arcadas padronizados. Entretanto, o equilíbrio da

sonoridade do naipe também depende de outros fatores, tais como a região do

arco utilizada, a quantidade de arco utilizada e, em última instância, o próprio

vibrato. A região e a quantidade de arco utilizadas influem diretamente no

timbre, que depende da homogeneidade para alcançar uma afinação apurada. O

vibrato, por sua vez, apesar de contribuir de forma decisiva para a ressonância

do som, tem também a propriedade de dissimular imprecisões de afinação.

Portanto, o trabalho com os naipes de corda deve atentar para uma unificação

definitiva de dedilhados, arcadas e posições do arco, e não se pode descartar a

utilidade do estudo de passagens mais difíceis sem vibrato, a fim de que se

alcance uma precisão maior da afinação e, a partir de então, incluir o vibrato

gradualmente, aumentando a expressividade.

Outro fator decisivo em relação a afinação harmônica dos conjuntos é a

questão dos intervalos justos. As regras de condução de vozes estudadas no

contraponto e na harmonia trazem implícitas em si dificuldades práticas da

performance: as consonâncias imperfeitas são notavelmente mais fáceis de afinar

25 “Je mehr Kopfregister (Randstimme) ein Ton beinhaltet, umso »süßer«, »flötender« wird seine
Timbrierung” (tradução nossa).

80
do que as consonâncias perfeitas, e seu amplo emprego na música popular e

folclórica testemunham essa tendência26. Portanto, o regente deve observar a

incidência de quintas e oitavas justas entre instrumentos e naipes e dar uma

atenção especial a elas. Nestes casos, constitui uma estratégia prática justamente

a execução mais suave dos intervalos justos do que as consonâncias imperfeitas.

No caso de oitavas paralelas, nas quais o cuidado tem que ser sempre redobrado,

devido à estrutura da série harmônica, a afinação será favorecida se a voz

superior estiver sempre mais suave do que a voz inferior – afinal, o objetivo de

se orquestrar em oitavas paralelas é justamente o reforço dos harmônicos para

que a fusão de timbres resulte em uma linha melódica única, mais encorpada. No

caso de composições harmônicas com instrumentos de madeira, o regente deve

isolar os intervalos justos, a fim de resolver estas questões pontuais, para então

inserir as demais notas da harmonia. Em suma, quando há casos de desafinação

harmônica, localize os intervalos justos – na maior parte dos casos, são eles os

vetores dos problemas de afinação.

26Referimos aqui as práticas de condução melódica de terças ou sextas paralelas chamadas de


bufas ou caipiras, particularmente comuns na música popular.

81
4. ESTRATÉGIAS E DINÂMICAS DE AÇÃO APLICADAS

Compreendendo o aproveitamento do tempo como um pressuposto do

planejamento e realização de ensaios, é necessário que sejam traçadas estratégias

e sejam desenvolvidos métodos que permitam otimizar o tempo que se tem

disponível para a preparação de um programa. Segundo Cortella e Mussak (2009,

p. 64), “eficiência significa atingir melhores resultados com mais rapidez”.

Entretanto, é importante que o regente tenha a clareza que o ensaio não pode ser

uma prática mecânica – os músicos precisam, antes de tudo, compreender a música

que vai ser executada, e este constitui um processo intelectual. Por esta razão

entende‐se que o ensaio é também um momento de ensino e aprendizado, e deve

ser planejado como tal. Neste ponto já se observa que a definição do repertório

constitui a pedra angular do planejamento de ensaios, pois a tentativa de se

realizar um programa inadequado provavelmente não será bem‐sucedida, por

melhor que seja o planejamento realizado. Qualquer que seja a natureza ou as

condições de um grupo musical, é sempre sadia a prática de se retomar obras

anteriormente realizadas, cujo discurso e espírito artístico já seja conhecido – essa

prática possibilita o amadurecimento da performance e das próprias habilidades

performáticas. Por outro lado, os grupos artísticos sempre caminham para a

descoberta de novos repertórios ainda não realizados, e um equilíbrio entre obras

conhecidas e novas sempre é recomendável neste planejamento.

Antes de abordarmos as técnicas específicas para coros e orquestras,

apresentamos elementos do planejamento geral de ensaios: quantas obras serão

executadas? Quantos movimentos (ou atos) tem cada obra? Existe uma espécie

de conta genérica que o regente deve elaborar ao planejar um programa: serão

apresentadas cinco obras e há dez ensaios programados – logo, há dois ensaios

por obra. Não que a programação dos ensaios seja feita dessa maneira – em um

82
ensaio podem e devem ser ensaiadas mais de uma obra e, próximo ao ensaio

geral, é esperado que se ensaie o repertório completo. Mas a proporção

ensaios/obras é importante para se ter uma ideia do tempo total disponível que

há para cada obra. A partir desse raciocínio, o regente poderá avaliar, de acordo

com o desempenho médio de seu grupo, se o número de ensaios é suficiente para

preparar o repertório proposto. Com esse planejamento também se deduz que há

diferenças de método fundamentais entre os primeiros ensaios de um novo

programa e os ensaios finais antes das apresentações – há estratégias específicas

para cada momento da preparação.

Ainda se tratando deste planejamento geral inicial, dependendo do

repertório a ser trabalhado, é importante considerar o efetivo musical necessário

para cada obra. É comum que obras sinfônicas tenham movimentos nos quais

alguns instrumentistas não participem: na Sinfonia nº 5 em Dó menor op. 67 de

Beethoven, o flautim e os trombones tocam somente no quarto movimento. Em

óperas ou oratórios, as discrepâncias de efetivo são ainda mais comuns – há

movimentos somente com cordas e madeiras reduzidas, outros movimentos com

a orquestra completa, e assim por diante. Também algumas obras corais

apresentam tais características: obras multimovimentos como motetos ou

cantatas algumas vezes apresentam partes nas quais cantam somente vozes

femininas, ou somente vozes masculinas. Nestes casos é necessário estabelecer

um cronograma de escalação de músicos para os ensaios de acordo com o efetivo

instrumental ou vocal exigido pela partitura, de forma que músicos não sejam

obrigados a estar presentes ou aguardarem o ensaio de movimentos nos quais

não há partes a serem executadas. O ensaio eventual de trechos mais curtos

certamente não constitui um problema para os músicos que não tocam.

Entretanto, é necessário que a programação seja produtiva e o músico sinta que

seu tempo é valorizado. Em conjuntos arregimentados este planejamento pode

83
representar uma substancial economia de recursos; em conjuntos com efetivo fixo

a economia de ensaios pode significar a potencialização de realização de outros

projetos, além do próprio bem‐estar dos músicos.

Ainda que a estrutura do ensaio varie no decorrer da preparação de um

repertório, existem algumas diretrizes que podem contribuir decisivamente para

a produtividade de um ensaio. Sendo a orquestra e o coral “instrumentos

humanos”, é necessário contar com diferentes níveis de concentração ao longo

do tempo e o cansaço decorrente do esforço para o cumprimento do que se

propõe. Leck (2020, p. 82) faz uma proposta baseada em sua experiência no canto

coral que, em grande medida, também é aplicável a grupos instrumentais. Para

o autor,
Um ensaio deve ser projetado com base na proporção áurea, um pouco
como um programa. Planeje trabalhar na música mais desafiadora [ou
na parte mais desafiadora da música] quando houver concentração
máxima a dois terços percorridos do tempo total de ensaio. Pode ser
uma nova peça ou uma que requeira grande resistência vocal. [...]
Termine o repertório desafiador antes que o ensaio ultrapasse dois
terços percorridos do tempo total de ensaio. Isso é quando eles estão se
concentrando e envolvidos. Use o último terço do ensaio para refinar
peças que eles conhecem bem. Termine com uma peça que eles gostam.
Isso dá um sentido de fechamento, realização e bem‐estar para que os
coristas saiam com melodias flutuando através de suas mentes.

Em essência, a proposta de Leck se aplica a quaisquer grupos musicais,

amadores ou profissionais. É evidente que músicos profissionais, por sua prática,

tem maior capacidade de concentração, de forma que é possível ampliar essa

porção mais produtiva do ensaio. Entretanto, não se pode menosprezar o cansaço

dos executantes ao se ensaiar obras mais complexas, especialmente se estiverem

sendo tocadas pela primeira vez. Terminar o ensaio de forma conclusiva,

executando a seção que foi bem trabalhada, demonstrando as dificuldades

vencidas, traz uma significativa satisfação para os músicos e contribui

significativamente para o estabelecimento de um ambiente favorável para o

84
trabalho – o músico leva na memória uma impressão positiva que o motivará

para o retorno no próximo ensaio.

Disciplina e pontualidade são fatores também decisivos para a

produtividade de um ensaio. A pontualidade deve sempre ser recíproca – o

regente deve ser pontual tanto no início como no encerramento do ensaio. A

cultura da pontualidade começa com o líder. A disciplina normalmente é

conquistada pelo envolvimento com o trabalho – na medida em que o ensaio vai

exigindo atenção de todas as partes, há uma tendência ao aumento da

concentração. Com a prática, observa‐se que a dispersão ocorre com o ócio – o

músico que não está tocando ou cantando fatalmente se dispersará se esse

momento ocioso se prolongar. Por esta razão, o regente deve evitar ouvir naipes

separados de forma prolongada nos ensaios de tutti – deixe o trabalho específico

das seções reservado para os ensaios de naipe, que devem ser realizados em

momento anterior aos ensaios tutti. Se for imprescindível ouvir alguma seção

separada, que este momento seja assertivo e breve. Quando há um movimento

coletivo de indisciplina, normalmente caracterizado por conversas paralelas que

se iniciam rapidamente após a conclusão de um trecho, este constitui um sintoma

claro de cansaço do grupo que, involuntariamente, tenta aumentar seu tempo de

descanso ao promover a dispersão passageira entre a conclusão de um trecho

musical e seu reinício, uma vez que o regente não pode dar a entrada para a

orquestra antes que todos estejam concentrados e olhando para si. Esta é uma

prática que deve ser mitigada, se possível, passando a ensaiar um trecho menos

exigente e que requeira menos interrupções, ou mesmo realizando um intervalo.

Se isto não for possível, o regente deve ser mais assertivo nas intervenções: nunca

se deve interromper a execução de uma obra sem que se tenha consciência de

qual é a indicação ou correção que deve ser feita, e em qual lugar, deixando claro

o motivo daquela interrupção e iniciando a explicação imediatamente após o

85
corte. Quando o regente interrompe uma execução e se abaixa para procurar

alguma informação na partitura, este é um convite para a dispersão do grupo, e

essa atitude muitas vezes pode custar minutos valiosos do ensaio. Caso diferente

ocorre quando um indivíduo ou pequeno grupo destoa do conjunto por sua

consciente e deliberada dispersão. Esta situação ocorre principalmente em

conjuntos de caráter formativo, tais como coros ou orquestras escolares, para os

quais nem sempre os participantes têm uma disposição intrínseca. Nestes casos,

o regente deve ter cuidado redobrado para minimizar ao máximo os intervalos

ociosos do naipe no qual se encontram tais elementos, pois isso favorecerá a

concentração e diminuirá a possibilidade de ser necessário realizar uma

repreensão verbal.

As intervenções e comentários realizados pelo regente durante o ensaio

devem também ter critérios rigorosos – o regente precisa sempre ter em mente

que os músicos estão lá para fazer música, e não ouvir discursos. Portanto, a

acurácia nas indicações realizadas nas interrupções deve ser maximizada,

indicando exatamente aquilo que se quer corrigir e de qual maneira deve ser

realizado. Explicações delongadas normalmente não trazem resultado prático.

Martin Wolschke (1968, p. 10) alerta que “o falar estraga a regência em

definitivo”27. É evidente que em todo ensaio há um momento de avisos, um

momento de descontração – é favorável utilizar momentos de avisos para criar

momentos de descanso para o grupo. Realizar algum comentário jocoso, quando

pertinente, ajuda a criar um clima descontraído e agradável que colaborará para

o resultado final da performance. No entanto, é preciso discernir qual é o

momento em que se exige concentração máxima e o momento de descontração.

O momento de concentração máxima demanda grande empenho físico e mental

27 ʺDas Reden verdirbt das Dirigieren dann endgültig“ (tradução nossa).

86
e, por isso, deve ser bem aproveitado e potencializado. Descontrair um momento

de concentração máxima é desperdiçar o melhor momento para se superar os

grandes desafios de um repertório e pode ter um efeito bastante perturbador,

especialmente para músicos experientes.

4.1 Técnicas de ensaio aplicadas à orquestra

Entende‐se como pressuposto que o repertório a ser ensaiado é

condicionante do planejamento de ensaio, bem como o perfil do grupo orquestral

executante. Portanto, existem tantas estratégias e técnicas quanto há obras

diferentes a serem executadas. Assim, não constitui objetivo deste trabalho

estruturar padrões ou esquemas de ensaio, mas realizar uma reflexão sobre

princípios e métodos capazes de potencializar processos de preparação de obras

musicais em conjunto. Além das considerações já realizadas, que se aplicam a

conjuntos vocais e instrumentais indistintamente, as práticas orquestrais

apresentam determinadas particularidades que requerem um tratamento

diferenciado das práticas corais, especialmente no que diz respeito à capacidade

de leitura – instrumentos tem sempre a propriedade de realizar leituras de obras

de forma mais ágil quando comparados às vozes que, além de ler as notas,

precisam também ler o texto de forma integrada e dependem de uma interação

referencial harmônica e melódica para entoar corretamente os sons, processo este

que implica em um tempo maior para a leitura. A orquestra, por sua vez, tem a

característica de realizar a leitura das obras mais rapidamente e passar,

imediatamente, ao trabalho específico de unificação de articulações,

balanceamento dinâmico e refinamento da expressão musical. Essa agilidade de

trabalho requer, por parte do regente, perspicácia e método para responder ao

87
desafio da preparação da orquestra em um ritmo adequado à sua capacidade

técnica e artística.

4.1.1 Leitura de diagnóstico

Uma vez definida a obra (ou o movimento) que será trabalhado no ensaio,

entende‐se como um princípio geral da prática orquestral que se deve iniciar o

ensaio realizando uma leitura de diagnóstico. Esta execução inicial possibilita a

observação de diversos aspectos, tais como elementos interpretativos trazidos de

eventuais execuções anteriores, identificação de passagens que apresentam

maior dificuldade técnica de execução para determinados instrumentos ou

seções, passagens com problemas de afinação e, principalmente, localizar os

pontos específicos nos quais será necessário trabalhar as articulações e o balanço

das intensidades de cada naipe.

A leitura de diagnóstico proporciona também ao regente a oportunidade

de identificar as tendências de andamento – se a orquestra já tem um andamento

confortavelmente estabelecido, ou se há divergências na concepção do tempo

entre os instrumentistas. Considerando que os instrumentos tocam diferentes

partes com diferentes ritmos entre si, é comum que o andamento leve algum

tempo para se unificar, até que os instrumentos que tocam notas mais longas –

que tendem a compreender o andamento de forma mais rápida – possam se

adaptar às partes dos instrumentos que tocam notas mais curtas – que tendem a

compreender o andamento de forma mais lenta. Além disso, nem sempre os

primeiros compassos de uma obra demonstram claramente o andamento mais

adequado para sua execução, tal qual ocorre no segundo movimento Andante da

Sinfonia nº 35 “Haffner” KV 385 de W. A. Mozart (figura 9), no qual os primeiros

compassos tendem a indicar um andamento mais movimentado, enquanto a

88
figura melódica que surge a partir do compasso 18 praticamente requer sua

execução em um andamento mais tranquilo.

Figura 9 – Sinfonia nº 35 ʺHaffnerʺ KV 385 de W. A. Mozart – 2º movimento


Acima: compassos 1 a 5; abaixo: compassos 16 a 20

Nestes casos, iniciar o trabalho de refinamento das articulações e da

expressão nos primeiros compassos sem que a orquestra tenha tocado o

movimento inteiro pelo menos uma vez, sem que cada instrumentista tenha

compreendido as implicações rítmicas da decisão sobre o andamento da obra,

pode gerar equívocos interpretativos que implicarão no uso de um tempo maior

de ensaio até que todos os aspectos sejam devidamente esclarecidos, gerando um

indesejado retrabalho que pode resultar em cansaço e indisposição. Este tipo de

situação pode ser resolvida de forma bastante satisfatória com a realização da

89
leitura de diagnóstico logo no início do ensaio. A realização deste procedimento

permite também observar se há alguma tendência geral ou pontual de redução

ou aumento do andamento, avaliando suas causas e planejando meios para sua

resolução.

Recomenda‐se realizar este procedimento não só no primeiro ensaio de

um repertório, mas também nos demais ensaios, uma vez que, vencida a leitura

inicial da obra, o principal objetivo desse procedimento passa então a ser a

avaliação dos elementos que já foram trabalhados nos ensaios anteriores, o que

já foi consolidado e o que ainda falta ser refinado. A leitura inicial passa a ser um

índice do roteiro do ensaio, demonstrando os principais elementos que devem

receber maior atenção.

4.1.2 Refinamento da expressão e sonoridade

Decorrido o primeiro momento de reconhecimento da obra, passa‐se então

ao trabalho de refinamento da expressão e da sonoridade. Recomenda‐se, então,

que o regente se concentre em uma sessão limitada da música e procure unificar

ao máximo as articulações e a expressão, trabalhando também os níveis

dinâmicos. Sendo a obra o primeiro movimento de uma sinfonia, por exemplo,

pode‐se trabalhar a seção de exposição até a barra dupla, ou em obras maiores, o

grupo temático principal, até a cesura média. O regente não deve se preocupar

por utilizar muito tempo em uma seção tão curta da obra – pelo contrário, esse

refinamento inicial é fundamental para o estabelecimento do estilo28: por mais

treinada que seja a orquestra, leva algum tempo para que a sonoridade do estilo

28 Questões relativas ao estilo serão tratadas de forma mais aprofundada no capítulo 5 deste
trabalho.

90
da obra se consolide de forma unificada entre os executantes. Cada minuto

dedicado ao trabalho na seção de exposição terá grande proveito, uma vez que,

ao chegar na seção de recapitulação, não será necessário o mesmo trabalho – a

orquestra já estará com sua ideia musical consolidada, e rapidamente o trabalho

com o movimento estará concluído. O mesmo processo se aplica à maioria dos

movimentos em forma ternária e mesmo os rondós – obras musicais formalmente

consistentes tem sempre elementos expressivos unificados: quando a orquestra

entende a linguagem musical do início, o fim já estará, em grande medida,

compreendido.

O grande desafio do refinamento da expressão de obras orquestrais está

justamente na simultaneidade de elementos que a música apresenta – é

necessário que o regente compreenda o ‘contraponto’ da obra – não a mera

condução de vozes, mas a combinação de eventos ou diferentes ‘coros’ da obra,

e tenha certeza que toda a orquestra compartilha desta compreensão. Partindo‐

se do pressuposto já mencionado que toda a polifonia é a combinação de diferentes

uníssonos simultâneos, entende‐se que o trabalho de refinamento da expressão na

orquestra inicia‐se com a verificação de que todos os instrumentos que estejam

tocando a mesma linha melódica (ou o mesmo ritmo) estejam realmente tocando

juntos, com todas as notas apresentando o mesmo ataque e a mesma duração.

Algumas obras do repertório apresentam uníssonos célebres, tal qual o início do

primeiro movimento da já mencionada Sinfonia nº 35 “Haffner” KV 385 de W. A.

Mozart (figura 10). É sempre um desafio conduzir a orquestra a executar de

forma homogênea os 5 primeiros compassos da obra, e o regente não deve

avançar no trabalho sem estar certo de que toda a orquestra executa exatamente

a mesma articulação e as mesmas durações das notas, o que exigirá gestos de

corte precisos. Esse investimento de tempo é compensado pela consistência do

tratamento motívico da obra: a figura inicial é frequentemente retomada durante

91
o primeiro movimento – assim, todas as vezes que o motivo reaparece, sua

execução já estará interiorizada pelo conjunto, ainda que ocorra em contextos

musicais diferenciados, tal qual ocorre no compasso 13, quando violoncelos,

contrabaixos clarinetes e fagotes iniciam o motivo e são seguidos, em forma de

cânone, pelos primeiros violinos, dobrados pelos oboés e flautas. Verifica‐se aqui

o mencionado ‘contraponto de eventos’ que merece especial atenção por parte do

regente: o balanço do volume dos instrumentos deve revelar a proposta em

cânone, e não escondê‐la – além das entradas enfatizadas, o regente deve

certificar‐se que as notas longas tocadas por trompas e trompetes não encubram

a sequência do tema em cânone.

Figura 10 – Sinfonia nº 35 ʺHaffnerʺ KV 385 de W. A. Mozart – 1º movimento

Para se obter a clareza deste tipo de sequência, é bastante recomendável

que se ensaie o trecho sem a participação de trompas, trompetes e tímpanos, bem

como os segundos violinos (que estão simplesmente mantendo uma nota pedal).

92
Esta prática é importante não só para que cordas e madeiras possam escutar‐se

mutuamente e ajustar as articulações em comum, mas também para que os

instrumentos que estão em silêncio possam ouvir os elementos musicais que

devem estar em primeiro plano enquanto eles tocam notas longas, que devem

estar em segundo plano (ainda que tenham uma indicação de dinâmica forte).

Este é justamente o momento de aprendizado que nos referimos quando

mencionamos que os músicos precisam aprender a obra para além de sua própria

parte, pois
Observando do ponto de vista dos instrumentistas de uma orquestra
ou cantores de um coro, a situação prática mais comum é que cada
executante tende a concentrar sua atenção na execução de sua própria
parte; no caso de uma orquestra, os músicos sequer têm acesso às partes
escritas executadas pelos outros instrumentos. Essa situação propicia
um estado inicial de alienação do músico partícipe em relação à
integralidade da obra, ou seja, a concepção geral de sua estrutura e
sonoridade, desde os fatores extramusicais (ou extratextuais) até o
conhecimento minucioso de cada singularidade e cada necessidade
manifesta no texto musical. Esse estado de alienação vai se dissolvendo,
aos poucos, durante a realização dos ensaios, nos quais os músicos
passam a interagir auditivamente com todo o grupo (CAMARGO, 2020,
p. 1)

Outro benefício bastante importante dessa prática é a economicidade no

tratamento dos instrumentos de metal: ao contrário dos instrumentos de corda,

que tem a capacidade de tocar de forma contínua por longos períodos de tempo,

os instrumentos de metal dependem diretamente das condições dos lábios dos

músicos para emitirem uma boa sonoridade, e estes tem um alto fator de desgaste

durante a execução. Portanto, deve se ter, como regra geral, o princípio de poupar

os instrumentos de metal de seguidas repetições, que muitas vezes são

necessárias no processo de preparação dos demais instrumentos. Poupando‐se

os lábios de alguns instrumentistas e os ouvidos de outros, certamente haverá

grandes benefícios para o resultado final da performance.

93
4.1.3 Marcação de arcadas

No momento em que se trabalha os elementos musicais em detalhe é

comum que os chefes de naipe de cordas façam acertos, correções e marcações de

arcadas. Ainda que arcadas e dedilhados tenham sido previamente marcados e

discutidos pelos chefes de naipe – o que constitui uma prática altamente

recomendável, mas nem sempre factível – sempre há alterações ou adaptações a

fazer, e o regente pode participar ou não desse processo. Quando a definição das

arcadas tem um impacto na expressão musical, normalmente o spalla ou os

chefes de naipe se dirigem ao regente, ou mesmo o regente deve fazer sua

indicação no momento oportuno. Se a definição é simplesmente um ato de

padronização, muitas vezes o spalla toma a decisão por si. De qualquer forma, é

importante que o regente, no momento de uma pausa para marcação de arcadas,

respeite o tempo necessário para que todos compreendam e anotem as decisões

que vão sendo tomadas durante o ensaio.

4.1.4 A música orquestral enquanto criação coletiva

Muitas estratégias podem ser elaboradas para se vencer os desafios do

ensaio da música orquestral. Entretanto, a estratégia mais significativa para esse

trabalho será sempre valorizar as diferentes visões artísticas que os diferentes

músicos envolvidos trazem em sua experiência – é reconhecer que o músico

orquestral é um especialista e que domina seu instrumento em um nível

intangível ao regente e, por essa razão, ele muitas vezes pode ter ideias musicais

mais interessantes ou efetivas do que as propostas apresentadas pelo regente. Por

isso, compreendemos que todos os ensaios constituem um momento de

aprendizado também para o regente. Em um estudo baseado em entrevistas com

94
regentes e músicos, Michele Biasutti (2012, p. 62) anotou de um dos participantes

de sua pesquisa que “o estudo em grupo é mais difícil porque há muitas

personalidades envolvidas e novas ideias aparecem, e você precisa misturá‐las e

amalgamá‐las”29. Este processo de amalgamar ideias é, antes de tudo, um

processo de escuta – o regente deve sempre estar atento às propostas que surgem

no ensaio, sejam propostas de expressão musical, sejam propostas de aplicação

prática. Cabe ao regente criar oportunidades para que o músico possa se

manifestar no ensaio:
A prática do trabalho conjunto com músicos profissionais demonstra
que muitos executantes experientes se colocam de forma ativa nos
ensaios, fazendo sugestões ou mesmo trazendo novas propostas a
partir de suas experiências, muitas vezes notavelmente pertinentes.
Isso ocorre especialmente nos ensaios orquestrais, nos quais se verifica
uma especialização dos músicos em seus instrumentos. Já no canto
coral isso ocorre com os pianistas acompanhadores, solistas, assistentes
e também com os cantores. Ou seja: apesar da concepção geral de uma
obra ser de responsabilidade do regente que conduz o grupo, ele não
deve perder de vista que a interpretação de uma obra em conjunto
constitui essencialmente uma criação coletiva¸ que deve ser
desenvolvida a partir de um diálogo de visões e concepções estéticas
(CAMARGO, 2020, p. 2).

Entende‐se, portanto, que o ensaio constitui o laboratório dessa criação

coletiva e cabe ao regente realizar a mediação das diversas ideias e das diferentes

visões que se unem para executar uma obra em conjunto. Quando os músicos

interagem, cria‐se um ambiente propício para os insights criativos que conferem

a real singularidade àquela execução enquanto obra de arte.

Após todas as considerações a respeito do planejamento dos programas e

dos ensaios, é necessário reconhecer, em última instância, que a estratégia mais

29“Group study is more difficult because several personalities are involved and new ideas appear and you
have to mix and merge them” (tradução nossa).

95
efetiva para a economia de tempo e potencialização do trabalho conjunto em

orquestra é justamente que o regente domine a técnica gestual padronizada e

possa aplicá‐la de forma significativa, produzindo uma síntese dos elementos

que foram trabalhados durante os ensaios a fim de consolidá‐los na performance.

J. B. Hylton (apud SANDT, 2016, 79) determina que “uma regência clara e

expressiva é um dos atributos mais importantes de uma técnica de ensaio

efetiva”30.

4.2 Técnicas de ensaio aplicadas ao coro

Diferente do que ocorre com a orquestra, o primeiro desafio a ser vencido

por um grupo coral é justamente a leitura polifônica da partitura. Enquanto os

instrumentos executam as notas de sua tessitura principal de forma mecanizada,

os cantores sempre dependem de referências harmônicas ou melódicas para

entoar as alturas de forma precisa, acarretando um processo mais trabalhoso para

a estruturação da leitura da obra e da interpretação final na performance.

Partindo‐se desta constatação, os ensaios corais passam a ter sempre um

objetivo duplo: a leitura e consolidação da montagem da polifonia da obra e, ao

longo deste processo, o simultâneo trabalho de refinamento da expressão e da

sonoridade, de forma que a memorização das sequências polifônicas já

compreendam também os aspectos de articulação e estilo. Ponderando sobre o

tempo necessário para se realizar uma leitura satisfatória de uma obra polifônica,

seria improdutivo não utilizar este processo também para trabalhar a sonoridade

e as questões de articulação.

30“Clear and expressive conducting is one of the most important atributes of effective rehearsal technique”
(tradução nossa).

96
Considerando ainda que o canto apresenta uma sensibilidade maior em

relação a questões de afinação, uma vez que as vozes são sempre

interdependentes em termos harmônicos, há uma série de estratégias que podem

ser empregadas a fim de se minimizar as dificuldades de entoação e potencializar

o tempo de ensaio no sentido de se consolidar as relações melódico‐harmônicas

entre as vozes na trama polifônica. O emprego destas estratégias variará de

acordo com a capacidade média de leitura dos grupos – cantores profissionais e

experientes tendem a vencer as dificuldades mais rapidamente, de forma que

poderão ser dispensadas algumas das etapas propostas. Não obstante, serão

apresentadas estratégias que podem ser aplicadas a diferentes grupos, incluindo

iniciantes e amadores, até conjuntos de atuação mais avançada. Em todos os

casos, em maior ou menor grau, será possível aplicar os métodos e

procedimentos que serão propostos a seguir, que tem por objetivo principal a

consolidação do domínio do repertório ensaiado no menor tempo possível.

4.2.1 A questão da leitura musical

A habilidade de solfejar uma partitura é decisiva para o cantor, tanto

solista quanto integrante de um coro. Para um grupo vocal, a capacidade de

leitura de seus membros é decisiva para a qualificação de seu resultado musical.

Toda pessoa que inicia uma trajetória em canto deve se conscientizar dessa

necessidade. Entretanto, não se deve inferir desta constatação que a leitura de

partitura seja um pré‐requisito para o canto coral – pelo contrário, a prática coral

deverá servir de incentivo e oportunidade de aprendizado do solfejo. Segundo

Carlos Alberto Figueiredo (in LAKSCHEVITZ, 2006, p. 16),


Para um cantor de coro, o solfejo torna‐se ainda mais importante, já que
ele deveria ser capaz de aprender sua parte, apenas utilizando este
recurso [...] A experiência demonstra que cantores permanentemente

97
estimulados a ler música durante os ensaios desenvolvem esta
habilidade de maneira espantosa.

Portanto, aquele que se inicia no canto coral deve ter claro que o domínio

da leitura musical e do solfejo não constitui uma etapa anterior à prática coral,

mas um aprendizado concomitante. Keith Swanwick (2003, p. 69) postula que “a

fluência musical precede a leitura e a escrita musical”, corroborando a ideia de

que o canto coral deve ser universalizado e, em sua prática, devem ser incluídas

estratégias para o desenvolvimento da leitura musical dos participantes. A esse

respeito, Leck (2020, p. 3) recomenda que “[o regente] ensine habilidades de

leitura. Usando um sistema de solfejo (preferivelmente o Dó móvel), desenvolva

a leitura musical em todo ensaio. Evite ensinar as músicas de ouvido”. Não há

dúvida que o ouvido é a principal meio de aprendizado do canto – a afirmação

de Leck sugere, em essência, que os cantores sempre disponham e utilizem a

partitura das obras cantadas nos processos de ensaio, ainda que venham a cantar

de memória, dispensando a partitura, mais tarde. Os cantores sempre devem ter

consciência que estão cantado notas musicais que constroem as frases melódicas

que aprendem, e isso é feito através da utilização de partituras, com o seu devido

treinamento.

Partindo então do pressuposto que o desenvolvimento da leitura musical

dos coralistas deve ser um objetivo permanente da prática coral, propomos

diferentes estratégias para esta ação, incluindo atividades extra‐ensaio e

atividades intra‐ensaio. Especialmente quando se trabalha com cantores amadores

voluntários, é essencial pensar na qualificação do grupo. Portanto, a principal

estratégia extra‐ensaio consiste em oferecer, em paralelo aos ensaios corais, um

momento exclusivo para ensino e treinamento de teoria musical e solfejo. Se o

coro realiza um ou dois ensaios regulares por semana, que se proponha um

segundo ou terceiro encontro exclusivamente dedicado ao ensino e treinamento

da leitura musical. Certamente o resultado musical compensará largamente o

98
tempo empregado nessa atividade formativa. Entre as vantagens dessa prática

verifica‐se que, nos casos em que haja discrepâncias significativas entre

participantes mais experientes e iniciantes integrando o mesmo grupo, aqueles

cantores que já dominam a leitura podem ser dispensados da atividade

formativa, poupando seu tempo e energia – simultaneamente, estes cantores

mais experientes ficarão satisfeitos em perceber, a cada dia, a melhora do

desempenho de seus companheiros de grupo nos ensaios regulares do repertório.

Uma opção à realização de cursos ou formações extensivas em teoria

musical e solfejo é a realização de seminários – cursos intensivos de curta duração,

seja todos os dias de uma semana ou mesmo um fim de semana de trabalho

imersivo. A perspectiva de se alcançar um aprimoramento técnico substancial em

um curto período de tempo constitui um significativo fator de entusiasmo para

o grupo, que certamente se disponibilizará a realizar tal formação, quando

programado com a devida antecedência e planejamento adequado. A realização

semestral deste tipo de atividade pode contribuir de forma decisiva para o

desenvolvimento geral das habilidades de leitura musical do grupo. Dentro das

possibilidades de cada conjunto, o oferecimento de uma formação extensiva de

periodicidade semanal pode também ser reforçado pela realização de seminários

ou cursos de férias, aumentando ainda mais as possibilidades de

aprofundamento do aprendizado.

O impacto da realização de cursos intensivos de solfejo é tão relevante que

foi utilizado como estratégia para a criação de grupos corais em áreas remotas no

projeto piloto da Associação Coral da Cidade de São Paulo31 nos anos de 2002 a

31Partindo de uma iniciativa não‐governamental, inicialmente vinculado à ONG Organização de


Cultura, Cidadania e Arte, o projeto independente do Coral da Cidade de São Paulo surgiu em
2002 na COHAB Raposo Tavares, no Butantã, e propunha a criação de um coral sinfônico
comunitário dedicado à música de concerto, funcionando em diferentes núcleos na periferia da

99
2004. Foi anunciada nas comunidades da COHAB Raposo Tavares, Butantã e

Campo Limpo a realização de cursos intensivos de teoria musical e solfejo com

duração de uma semana, de forma que as turmas destes cursos se tornaram as

bases dos novos núcleos corais – quem aprende quer logo colocar em prática o

que aprendeu e, após uma semana, todos os participantes dos cursos estavam

motivados a integrar um coro, comprometendo‐se a longo termo.

Apesar das referidas estratégias extra‐ensaio serem decisivas na

qualificação dos participantes dos grupos corais, é essencial que o próprio

processo coral adote, em sua rotina de ensaios, práticas de leitura musical.

Particularmente recomendável é o estudo com nomes de notas de passagens

melismáticas ou trechos sem texto das obras musicais, tais como a parte de coro

grande do movimento 8. Chramer gip die varwe mir da cantata Carmina Burana de

Carl Orff (figura 11), previsto para ser cantado em bocca chiusa. O sistemático

treinamento desta passagem com nomes de notas colabora decisivamente para a

fixação das alturas das notas das diferentes vozes em grupos que tem pouca

fluência em solfejo.

cidade. O primeiro concerto sinfônico ocorreu em 5 de abril de 2003 na Catedral da Sé de São


Paulo, apresentando a Cantata “Nun komm, der Heiden Heiland” BWV 61 de Johann Sebastian Bach,
juntamente com o Ricercar a 6 da Oferenda Musical e a Suíte nº 2 em Si menor BWV 1067, com a
Orquestra Acadêmica de São Paulo – à época, uma orquestra jovem criada justamente para
realizar os concertos com o coral sinfônico – sob a regência de Luciano Camargo. Mais tarde, em
2009, o projeto estabeleceu sua personalidade jurídica própria com a criação da Associação Coral
da Cidade de São Paulo, que passou a ser conhecida a partir dos anos 2020 como UNIOPERA.

100
Figura 11 – 8. Chramer gip die varwe mir (Carmina Burana) de Carl Orff.

Também é recomendável que o coro adote em sua rotina a execução de

exercícios específicos para o treinamento do solfejo em grupo, tais como as séries

propostas no livro Cantabile – exercícios para canto coral de Baldur Liesenberg

(2016), bem como exercícios adaptados de Henry Leck (2020), tais como o estudo

de intervalos melódicos transcrito na figura 12.

Figura 12 – Exercício de intervalos melódicos (LECK, 2020, p. 61)

101
É importante reiterar, entretanto, que a leitura de obras corais com nomes

de notas, sendo uma prática comum e recomendável nos coros profissionais e

alguns coros universitários compostos exclusivamente por estudantes de música,

normalmente não tem aplicação entre coros amadores que ainda têm

dificuldades de leitura, excetuando‐se os casos já mencionados de trechos

melismáticos ou sem texto. O regente deve ponderar que o solfejo com nomes de

notas existe para auxiliar a leitura, e não criar uma dificuldade a mais para o

aprendizado das obras. Será discutida a seguir a importância da associação

fonético‐melódica dos textos cantados junto às melodias aprendidas, que

apresenta uma eficácia significativa nos processos de aprendizado das linhas

melódicas. Não se deve confundir a importância do treinamento do solfejo como

habilidade técnica com a utilidade do solfejo como habilidade técnica nas práticas

corais: treinamentos e técnicas devem ser realizados, cada um com seu propósito

e em seu contexto apropriados. Não se deve perder de vista que as estratégias de

ensaio visam a consolidação do domínio do repertório no menor tempo possível

– portanto, forçar um grupo que ainda não tem pleno domínio da leitura de

partituras a cantar uma obra inteira com nomes de nota constitui um processo

claramente improdutivo, a não ser que a iniciativa tenha uma finalidade

explicitamente pedagógica. Talvez o regente deva se propor a alcançar este

procedimento como uma meta de desenvolvimento do grupo a ser alcançada em

médio ou longo prazo. Mas não há razão para se transformar o processo de

aprendizado de um repertório em um processo penoso de aprendizado de nomes

de notas.

102
4.2.2 A utilização do piano como instrumento de referência

Para se discutir a utilização do piano como instrumento de referência para

os ensaios corais é necessário fazer duas considerações fundamentais:

a) A voz humana, por mais treinada que seja, é imprecisa quando

comparada a um instrumento como o piano, quando consideramos em

termos de sonoridade de referência para o aprendizado. O mecanismo

percussivo do piano permite um ataque pontual e preciso da nota

desejada, com a afinação correta imediata, ao contrário da voz, que

sempre apresenta um tempo de latência entre sua emissão e o

estabelecimento do som pleno e da afinação adequada.

b) Por razões ainda não inteiramente conhecidas pela biologia e pela

física, as vozes de um coro, ao interagirem harmonicamente,

apresentam por natureza a tendência ao estabelecimento da afinação

pitagórica, com a propensão às quintas perfeitas. Esta tendência entra

em choque com a afinação temperada dos instrumentos de teclado, que

apresenta quintas mais abertas, causando sempre uma perturbação na

afinação. Quando o coro canta com suas partes dobradas por um piano,

o ouvido entende os intervalos de quinta temperada como

desafinados, prejudicando a afinação do grupo. Por esta razão um coro

a capella sempre soará mais afinado do que um coro acompanhado por

piano ou outro instrumento temperado.

Estas considerações trazem duas informações contraditórias: afinal, deve‐

se utilizar o piano nos ensaios corais ou não? Algumas doutrinas de escolas de

canto coral europeias são enfáticas ao condenar a utilização do piano como

referência nos ensaios corais, especialmente a célebre tradição húngara, baseada

103
justamente nos problemas decorrentes do choque entre a afinação pitagórica das

vozes com a afinação temperada dos instrumentos de teclado. Considerando a

larga tradição da cultura do canto coral na Hungria, por exemplo, reconhecemos

que sua prática está alinhada a uma situação favorável, na qual as crianças são

treinadas desde cedo a cantar nos registros mais propícios à afinação (voz mista

e voz de cabeça pura), bem como ao estrito estudo do solfejo e leitura musical.

Esta realidade musical, existente em muitos países da Europa, é absolutamente

admirável e nos indica caminhos utópicos para a educação musical no Brasil, que

devemos todos buscar construir a longo prazo. Entretanto, temos que reconhecer

que a técnica de estudo estritamente a capella, ainda que produza melhores

resultados em termos de afinação, é amplamente desfavorável quando os

participantes do coro não tem o domínio estrito do solfejo cantado, ou ainda não

tem a técnica vocal suficientemente desenvolvida para uma correta utilização dos

registros vocais. Com a experiência dos ensaios, verificamos também que a

utilização do piano em ensaios de naipe colabora substancialmente com a

velocidade do aprendizado, especialmente porque, nesse contexto, não há

nenhum problema de afinação, uma vez que o naipe canta geralmente em

uníssono.

Partindo‐se então destas considerações, entendemos que a utilização do

piano nos ensaios é bastante recomendável, especialmente nos momentos iniciais

de preparação de um repertório novo, e constitui uma ferramenta essencial para

dar celeridade ao aprendizado das linhas melódicas, particularmente nos ensaios

de naipe. Entretanto, é necessário que haja sempre uma alternância entre o canto

acompanhado e o canto a capella, a fim de romper a relação de dependência das

vozes com o apoio melódico que o piano proporciona. Em outras palavras, o

regente deve ter sempre como objetivo a autonomia das vozes em relação ao

instrumento de apoio, utilizando‐o quando necessário, e silenciando sempre que

104
possível. Nos ensaios tutti, quando se trabalha um repertório a capella, é

absolutamente necessário que a referência do piano seja abandonada o mais

rápido possível. Enquanto ainda não for possível excluir inteiramente a

referência do piano, recomenda‐se tocar a parte do baixo com vigor,

complementando‐se eventualmente a harmonia ao estilo de baixo contínuo, sem

duplicar de fato as demais linhas melódicas. É importante observar também que

a vantagem do uso do piano é justamente a volatilidade de seu som – após o

ataque da nota, o som decresce gradualmente, enquanto as vozes produzem sua

sonoridade de forma inversa, com a consolidação dos intervalos somente após o

período de latência, diferença temporal esta que propicia ao coro, mesmo

“perturbado” pela intervenção de um piano, alcançar uma afinação

razoavelmente satisfatória. Ainda assim, no momento em que o coral conseguir

cantar sem nenhum acompanhamento, a diferença positiva da afinação será

claramente perceptível.

Esta reflexão sobre a utilização do piano nos ensaios deve ser considerada

também na escolha do repertório e no planejamento das apresentações. O coro se

apresentará a capella ou com acompanhamento instrumental? Considerando as

questões já expostas, aconselha‐se que, nos casos em que o coro demande um

acompanhamento instrumental, que seja dada prioridade a instrumentos

melódicos, como um quinteto de cordas ou uma pequena orquestra. Os

instrumentos melódicos – particularmente as cordas, que são afinadas em

quintas justas – tendem a seguir a afinação pitagórica do coro, o que favorecerá

a afinação do conjunto de forma decisiva. O acompanhamento de piano só é

realmente recomendável se o repertório cantado for expressamente escrito para

essa formação, com partes de piano autônomas ou, no caso de repertórios da

prática popular, o piano realizar figuras ritmadas de acompanhamento, evitando

o dobramento de vozes. Cabe aqui recomendar também a utilização de

105
instrumentos de cordas dedilhadas, como o violão, viola caipira e bandolim, que

igualmente favorecem afinações de temperamento desigual.

4.2.3 Questões de texto e prosódia

A pronúncia do texto cantado é um ponto chave em vários aspectos do

canto coral, especialmente quando se canta em línguas estrangeiras. O trabalho

com o texto cantado inicia‐se com a verificação da distribuição do texto na

melodia. Conforme mencionado no capítulo 3, observa‐se na música antiga uma

imprecisa distribuição silábica do texto nas notas, e constitui uma prática comum

que o regente promova alterações nessa distribuição, que podem ser baseadas

tanto na própria correção da prosódia – fazendo coincidir sílabas tônicas com os

tempos fortes do compasso ou com inflexões específicas da melodia –, como

também por questões técnicas da vocalidade, já tratadas na seção dedicada ao

fundamento da articulação na técnica vocal. Esta imprecisão na distribuição do

texto também ocorre em muitos arranjos corais, especialmente arranjos novos ou

recentes, que foram pouco executados. Ao se trabalhar este repertório, deve‐se

dar atenção especial a esta questão.

Entende‐se que o trabalho da prosódia deve respeitar também

determinadas inflexões particulares – obras em latim escritas por compositores

franceses tendem a transformar palavras paroxítonas em oxítonas, assim como

esses mesmos textos, musicados por compositores húngaros, tendem a acentuar

as primeiras sílabas, por vezes transformado oxítonas e paroxítonas em

proparoxítonas. Estas inflexões particulares fazem parte do estilo e devem ser

tratadas de maneira própria, diferente das situações nas quais seja possível

encontrar soluções melhores do que aquelas propostas pelos compositores, que

muitas vezes são gratos aos regentes por aprimorarem a escrita de suas obras.

106
Em suma, a divisão do texto cantado deve merecer a mesma atenção e cuidado

de outros aspectos musicais, e o ensaio deve ser o laboratório onde estas

propostas são experimentadas.

Sobre o treinamento da pronúncia de obras na língua materna – em nosso

caso, o português – é importante verificar algumas padronizações de pronúncias.

São inúmeros os sotaques e acentos da língua portuguesa, no Brasil e no mundo.

Por isso, não se deve compreender que haja um português “correto”, mas

simplesmente a pronúncia que será adotada naquele lugar e naquela

circunstância. Quando se canta na língua materna, é normal que se utilize, em

regra geral, a pronúncia usual do lugar onde o coro se encontra – corais do Rio

de Janeiro certamente cantarão com uma pronúncia diferente dos corais de

Pernambuco. Entretanto, o regente deve discernir as necessidades e adequações

de cada obra pois, eventualmente, alguma adaptação da pronúncia pode

favorecer a execução de passagens mais difíceis, especialmente quando se trata

de fonemas guturais ou sibilantes. Além do fator técnico vocal, há também o fator

estilístico, uma vez que cantar obras que referenciem lugares ou culturas

específicas podem representar um convite para a adoção de sotaques locais que

enriqueçam a interpretação, como um coro brasileiro que apresente o repertório

das tunas portuguesas utilizando o sotaque lusitano, ou um coral do sul do país

que cante obras da tradição baiana adotando sua vocalidade característica. Além

destas possíveis adaptações, é importante também que o regente realize o

treinamento da pronúncia do texto com o ajustamento vocálico correspondente32,

pois a prática demonstra que os cantores têm maior resistência a realizar o ajuste

das vogais cantando em língua materna do que na execução de peças cantadas

em língua estrangeira.

32 Cf. 3.2.2 Articulação

107
Ao planejar o ensaio, o regente deve ter em mente que a pronúncia de

línguas estrangeiras constitui um desafio para os cantores, e sua dificuldade não

pode ser subestimada. No processo de ensaio de uma obra cantada em língua

estrangeira é comum que o coro aprenda com maior facilidade as notas e as linhas

vocais antes mesmo de ter automatizado a pronúncia do texto. Neste caso, o texto

pode se tornar um empecilho para o aprendizado. Portanto, utilize o texto a seu

favor: realize um treinamento extensivo e recorrente de textos mais difíceis.

Concentre o treinamento na real dificuldade encontrada pelo grupo – não há

sentido em “desgastar” a voz do coro repetindo uma obra cantando várias vezes

para corrigir uma dificuldade que poderia ser corrigida falando, e não cantando.

Condicione o coro a realizar treinamentos falados de repetição: enuncie cada

frase do texto fazendo o coro a repetir em seguida. Quando há uma palavra

difícil, repita‐a isoladamente, depois repita a frase inteira. Se houver problemas

em fonemas específicos, trabalhe aquele fonema em particular, depois a palavra,

depois a frase completa. Quando necessário, utilize outras palavras com o mesmo

fonema, para fixar sua pronúncia.

A utilização da notação fonética baseada no Alfabeto Fonético

Internacional33 constitui uma ferramenta bastante útil no treinamento de

cantores. Entretanto, sua utilização requer uma capacitação específica que nem

sempre é acessível a todos os grupos. Mesmo assim, conjuntos que se dedicam a

repertórios variados em diferentes línguas devem se dedicar ao estudo da

notação fonética e utilizar essa notação em suas partituras. Cabe ao regente

preparar a partitura a ser utilizada incluindo a transcrição fonética, de forma que

o aprendizado seja gradual.

33 IPA – International Phonetic Alphabet

108
O estudo do texto cantado deve ser compreendido como um aliado no

aprendizado de obras mais complexas. João Luís Komosinski (2009, p. 149)

observa que
Ao praticarem a fala do texto, os cantores estariam ativando sua
memória muscular, estariam promovendo o início de uma codificação
mecânico‐vocal para aquela música e estariam pré‐condicionando a
futura codificação rítmico‐melódica devido à associação fonético‐
melódica que sabemos existir em nossa memória.

Esta associação fonético‐melódica referida por Komosinski constitui

justamente um dos principais mecanismos do solfejo: quando adquirimos a

prática, condicionamos o nome de uma nota a sua altura, facilitando o processo

de entoação das notas corretamente – é mais fácil repetir uma mesma nota

cantando o mesmo nome. Por esta razão, trabalhando‐se com coros que já

dominem a leitura musical, é recomendável a leitura solfejada com nomes de

notas. Por outro lado, quando o coro ainda não tem fluência na leitura de

partituras, é justamente a associação do texto com a melodia que facilitará o

processo – o regente deve utilizar este método associativo para facilitar a

memorização das linhas melódicas. Destacamos um exemplo típico para

aplicação desta estratégia em uma sequência de intervalos de sétima e sexta no

Offertorium do Requiem KV 626 de W. A. Mozart (figura 13). O treino dos

intervalos de grande âmbito pode ser facilitado com a associação do texto

cantado com cada uma das passagens melódicas, de forma que a memória

muscular provocada pela articulação do texto favoreça a codificação melódica

dos difíceis intervalos a serem entoados.

109
Figura 13 – Requiem KV 626 de W. A. Mozart – Offertorium
Associação fonético‐melódica e memória muscular

4.2.4 Processos de memorização e construção da polifonia

Para tratar sobre técnicas aplicadas de ensaio é necessário que se tenha

clareza dos processos cognitivos que envolvem o canto polifônico. Diferente dos

instrumentos, que produzem sons através de processos essencialmente

mecânico‐musculares, cujo condicionamento é primariamente físico, o canto é

realizado a partir de associações cognitivas harmônico‐melódicas que

condicionam o sistema fonatório, constituído por um mecanismo muscular sutil,

fisiologicamente conectado com o trato auditivo. Portanto, o canto coral depende

de um condicionamento mnemônico baseado em estímulos sonoros

multilaterais, razão pela qual o ensaio coral deve ter como objetivo a construção

da trama sonora que seja capaz de proporcionar as referências necessárias para a

sustentação das âncoras harmônicas que viabilizam a clareza e precisão da

polifonia.

Portanto, o processo de ensaio coral constitui essencialmente um método

de memorização. Isso não tem nenhuma relação com o fato de se cantar ou não

com a partitura – a partitura também constitui uma referência para a memória,

ainda que, a partir de determinado momento, ela não seja mais necessária. A

110
partitura é justamente a garantia de que o cantor não seja traído pela própria

memória – temos a tendência de associar tudo o que é parecido; e, na música, é

muito comum encontrar passagens parecidas, mas não iguais, e o uso da

partitura auxilia no discernimento desse tipo de sutileza, depois de decorrido o

processo de leitura. Por esta razão, mesmo quando um coro esteja treinado para

executar uma obra de memória, sem a utilização da partitura, é sempre

importante realizar, durante o ensaio, pelo menos uma execução com todos os

cantores lendo a partitura, visando o esclarecimento de passagens ou aspectos

que podem não ter sido devidamente memorizados, ou podem ter sido

confundidos nas reminiscências da escrita. Este procedimento deve ser

compreendido como uma leitura de checagem, para que todos tenham a

oportunidade de conferir notas, dinâmicas, articulações e outros aspectos que

possam estar imprecisos na execução.

Considerando‐se então que o ensaio constitui um processo de treinamento

da memória, é necessário que se compreenda o funcionamento das sinapses e os

mecanismos neurológicos que regulam a memorização. Segundo Izquierdo et al.

(2013, p. 11),
Com relação ao conteúdo, as memórias podem ser divididas em dois
grandes grupos: as declarativas (eventos, fatos, conhecimentos) e as de
procedimentos ou hábitos, que adquirimos e evocamos de maneira
mais ou menos automática. [...]
Todas as memórias são associativas: se adquirem através da ligação
entre um grupo de estímulos (um livro, uma sala de aula) e outro
grupo de estímulos (o material lido, aquilo que se aprende; algo que
causa prazer ou penúria). O do segundo grupo, que é de maiores
consequências biológicas, chama‐se estímulo condicionado ou reforço.
Em algumas formas de aprendizado, associa‐se um grupo de estímulos
com a ausência do outro ou de qualquer outro. A forma mais simples
dessas formas de “aprendizado negativo” associa um estímulo repetido
(um som, uma cena) com a falta de qualquer consequência; esse tipo de
aprendizado se chama habituação. (grifos nossos)

Partindo‐se desta análise, é possível compreender que o principal desafio

do treinamento musical de um coro é justamente transformar o domínio das

111
linhas melódicas cantadas de uma memória declarativa para uma memória de

procedimento – a habituação. A memória declarativa, além de ser mais volátil,

ainda que esteja consolidada, depende de um tempo de latência das sinapses que

é incompatível com o tempo musical e as necessidades de ativação de todos os

mecanismos necessários para a emissão do som, desde a ação muscular

costoabdominal envolvida na respiração até os ajustes do trato vocal. Já a

memória de procedimento permitirá um certo grau de automação na emissão

sonora, estabelecendo vínculos entre as diversas ações musculares envolvidas no

ato de cantar. Essa memória de procedimento será construída a partir de dois

processos: o método acumulativo, ordenando estímulos a partir de informações

sequenciadas e o processo associativo de referências paralelas, particularmente

direcionadas à formação de âncoras harmônicas34.

É importante observar que o método acumulativo tem duas dimensões

complementares: a dimensão melódica e a dimensão harmônica. Isso significa

que, para construir a consolidação da polifonia, não é suficiente que as vozes

dominem suas próprias linhas melódicas35 – as vozes precisam estabelecer

vínculos harmônicos em seus pontos de apoio em um processo associativo que,

por sua vez, também constitui uma ordem acumulativa, quando consideramos

os procedimentos de sobreposição das diferentes vozes que compõe a polifonia.

Propomos então uma sistematização deste método de construção da

polifonia a ser aplicado nos ensaios de tutti, baseada em dois procedimentos

34 Este processo é particularmente aplicável no repertório do sistema tonal e grande parte da


música pós‐tonal de base modal.
35 Conforme mencionado na seção 1.1 deste trabalho, a realização de ensaios de naipe, com todas

as implicações do princípio de economia de tempo, constitui uma estratégia essencial no processo


de construção da polifonia, pois o domínio das linhas melódicas pelas vozes, bem como a
construção de uníssonos consistentes, é fundamental para o estabelecimento de uma performance
substancial. Entretanto, somente o treinamento das linhas melódicas em separado não garante a
estruturação segura da polifonia.

112
principais: o trabalho seccionado por frases e o estabelecimento da linha de

baixos como âncora harmônica da polifonia. O estudo das frases musicais

seccionadas dá sentido ao aprendizado – o cantor assimila melhor frases do que

notas. Por esta razão, o regente deve delimitar uma frase ou um período com

sentido musical completo que possibilite o trabalho da sobreposição vertical das

vozes. Por melhor que seja a qualidade do coro, não há nenhum sentido em se

trabalhar a linha completa de uma única voz durante um ensaio tutti – estando‐

se todas as vozes reunidas no ensaio, as seções trabalhadas devem ser curtas,

tanto para se reduzir a ociosidade das demais vozes no tempo de espera, quanto

para se potencializar a capacidade de assimilação da memória dos cantores,

consolidando frases com o sentido musical completo, preferencialmente

delimitadas por cadências. O tamanho ou duração da frase a ser trabalhada varia

de acordo com a complexidade da obra e também com a capacidade de leitura

dos cantores: quanto mais difícil uma frase, tanto mais curto deverá ser seu

seccionamento; quanto mais aprimorada a capacidade de leitura dos cantores,

tanto mais longa poderá ser a frase ou a seção a ser trabalhada. Este

seccionamento pode ser revisto durante o ensaio: caso o regente perceba que os

naipes encontram dificuldades para memorizar a linha delimitada, ele deve

reduzir essa delimitação para frases ou membros de frase menores, até que os

naipes tenham condições de memorizar aquela seção sem dificuldades. Para o

detalhamento do método, apresentamos como exemplo prático a frase inicial do

moteto Jesu meine Freude BWV 227 de J. S. Bach (figura 14). Trata‐se de uma frase

musical de 6 compassos, composta por três segmentos de dois compassos.

Considerando tratar‐se de uma obra cantada no idioma alemão, pressupõe‐se

que sua leitura deva ser iniciada por um trabalho cuidadoso da pronúncia36 antes

36 Cf. seção 4.2.3.

113
de qualquer estudo melódico. Tendo o grupo vencido as dificuldades de

enunciação, ainda que preliminarmente, inicia‐se a partir de então o estudo das

linhas vocais.

Figura 14 – Moteto Jesu, meine Freude BWV 227 de J. S. Bach

Seguindo o princípio de estabelecimento de âncoras harmônicas, o regente

deve dedicar uma clara ênfase no trato da linha de baixos, que é o “alicerce” da

harmonia: nada pode ser construído se não houver um alicerce sólido. Portanto,

o primeiro passo sempre será o ensaio da linha mais grave. Na passagem dessa

linha isolada, a complementação harmônica em forma de baixo contínuo pode

ser de grande valia, reforçando o contexto harmônico.

Estando a linha de baixos satisfatoriamente entoada, o regente deve passar

então para a linha de tenores. Constitui uma prática muito produtiva que, ao

ensaiar as outras linhas, o regente continue sempre tocando a linha de baixo

paralelamente no piano – assim, os baixos conseguem estudar mentalmente sua

linha enquanto são ensaiadas as outras vozes (a repetição sistemática desta

prática condicionará os cantores do naipe de baixo a essa técnica). A partir da

linha de tenores satisfatoriamente aprendida, inicia‐se então o processo

acumulativo: passa‐se então a ensaiar pares de vozes, sempre tendo a linha do

114
baixo como referência – antes de estudar as linhas das outras vozes, o regente

deve realizar então o ensaio das linhas de tenores e baixos conjuntamente, de

forma que não só as alturas sejam fixadas, mas também a afinação harmônica

dos intervalos entre as vozes. Dependendo da complexidade da obra o regente

terá que relembrar a linha de baixos antes de ensaiar as duas juntas; entretanto,

em pouco tempo isso não será mais necessário, principalmente se a linha de baixo

estiver sempre sendo tocada, qualquer que seja a voz que esteja sendo ensaiada.

Concluída a leitura com tenores e baixos, passa‐se então ao ensaio de

contraltos, utilizando o mesmo processo realizado com os tenores. Após a leitura

da linha de contraltos, o regente realizará o ensaio das vozes de contralto e baixo

juntas, verificando notas e a afinação harmônica resultante. Obtendo‐se um

resultado positivo, o regente deve ensaiar então as três vozes juntas – contralto,

tenor e baixo. Eventualmente, será necessário relembrar a linha de tenores antes

desta etapa – mas, devido à constante recorrência e às propriedades acústicas das

notas graves, certamente não será mais preciso repetir a linha de baixos isolada:

neste momento, os baixos já terão sua linha assimilada na memória, e o sentido

tonal proporcionado pelas três vozes em conjunto favorecerá o estabelecimento

da âncora harmônica que cada uma das vozes precisa para ter sua linha melódica

consolidada.

Após a execução satisfatória das três vozes inferiores, passa‐se então ao

ensaio da voz aguda. Tendo ouvido atentamente o ritmo e o texto durante o

estudo das outras vozes, certamente as sopranos terão mais facilidade para

entoar e assimilar sua própria linha melódica. Seguindo‐se o mesmo processo

realizado com as outras vozes, ensaia‐se então sopranos e baixos, verificando‐se

a afinação dos intervalos; depois reúnem‐se sopranos, tenores e baixos. Neste

ponto recomenda‐se, antes de se ouvir as quatro vozes juntas, ensaiar sopranos e

contraltos combinadas. Esta leitura possibilitará ao naipe de contraltos consolidar

115
sua linha melódica de forma privilegiada, uma vez que pode ser ouvida como

voz mais grave. Chega‐se então ao momento de se ensaiar a polifonia completa

com as quatro vozes juntas.

Destaca‐se que, neste processo, a voz de baixo teve o maior número de

repetições durante o ensaio, enquanto a voz de soprano foi a voz menos ensaiada.

Esta discrepância constitui também uma estratégia de ensaio pois, conforme

mencionado anteriormente, devido às propriedades acústicas de ser a voz mais

aguda, a linha de soprano apresenta a tendência de se tornar pregnante e

“contaminar” as outras linhas, especialmente quando se trata de cantores

inexperientes e com leitura musical deficiente entoando uma passagem musical

homofônica. Dessa maneira, o ensaio menos recorrente da linha de soprano ajuda

a mitigar tal tendência. Outra observação importante deste processo é que a

recorrência alternada da linha de baixos contribui de forma decisiva para sua

consolidação – e uma linha de baixos consolidada é a principal base para a

construção de uma trama polifônica. Apresentamos na figura 15 um quadro

sinótico com a estrutura de construção da polifonia pelo processo acumulativo.

Figura 15 – Quadro sinótico da estrutura de construção da polifonia


de uma frase musical pelo processo acumulativo.

Contudo, é importante salientar que este processo implica em constantes

interrupções e recomeços, incidindo o risco de dispersão do grupo e,

consequentemente, perda de tempo. Para se minimizar o impacto das constantes

116
interrupções, o regente deve manter o ritmo da música ensaiada internamente,

como se as interrupções fizessem parte da própria música. Ao finalizar a frase de

uma voz, a pulsação deverá continuar mentalmente, de forma que haja o tempo

certo para dar instruções para a próxima voz, que continuará no ritmo

estabelecido, entrando aproximadamente após um compasso de pausa desde o

encerramento da frase anterior. Sobre a utilização desta técnica, Carlos Alberto

Figueiredo (in LAKSCHEVITZ, 2006, p. 15), reitera que “todo bom ensaio tem

uma pulsação, um ritmo. As coisas vão acontecendo quase como se houvesse um

metrônomo marcando essas pulsações. A manutenção desse ritmo ajuda na

concentração do coro e do regente”.

Finalizada a leitura da primeira frase com uma execução satisfatória da

polifonia, passa‐se então à próxima frase, utilizando o mesmo processo.

Concluindo‐se então o trabalho com a segunda frase, é importante aplicar o

princípio da recorrência alternada: não se deve passar à terceira frase antes de se

retomar a primeira frase já ensaiada e executá‐la já em sequência com a segunda

frase. Esta prática favorece o estabelecimento da memória aditiva sequencial,

criando os estímulos de reforço necessários para a consolidação do processo

acumulativo horizontal. A memória de procedimento se estabelece a partir de

uma espécie de sedimentação dos dados – uma informação só é consolidada no

momento em que é deixada de lado para a assimilação de uma nova informação

de forma que, no momento do resgate da primeira informação armazenada,

estabelece‐se o laço que permite o acesso automatizado daquela informação, por

intermédio de relações sequenciadas. Por esta razão compreende‐se que não se

deve ensaiar ininterruptamente muitas vezes a mesma frase, pois a recorrência

simples, por si, não é capaz de desenvolver a memória de procedimento, que só

pode ser estabelecida através da formação de relações sequenciais de estímulos.

117
Utilizando‐se então este método, a leitura da obra musical vai sendo

construída ao longo do ensaio de forma que as vozes sejam condicionadas aos

estímulos sequenciados, incluindo as âncoras harmônicas que vão se formando

nos pontos de apoio da condução de vozes, possibilitando a execução consistente

da polifonia. Nos ensaios seguintes o processo deve ser repetido, não obstante o

fato de que o coro irá cantar cada vez com maior facilidade, até ser capaz de

executar a obra completa sem a audição preliminar de partes separadas ou pares

de vozes.

Há ainda uma observação importante sobre a aplicação deste método,

especialmente em obras de textura contrapontística mais complexa, que exigem

a repetição da aplicação da técnica de forma extensiva a vários ensaios.

Considerando o processo aditivo descrito anteriormente, observa‐se que em sua

execução as primeiras frases são sempre privilegiadas em relação às últimas, que

são quantitativamente menos ensaiadas. Para se compensar este desequilíbrio,

propõe‐se a realização do processo aditivo reverso: em ensaios posteriores, o

regente deve utilizar o mesmo processo, mas iniciando com a última frase,

seguindo para a penúltima frase sequenciada à última e assim por diante até

chegar à frase inicial, quando a obra será realizada do início ao fim, em um

processo de compensação que privilegiará as últimas frases em detrimento das

primeiras, já consolidadas em ensaios anteriores. C. A. Figueiredo (ibid., p. 24)

ressalta ainda que “é necessário, por exemplo, trabalhar seções diferentes de uma

mesma obra, sempre em ordem diversa, para que o cantor perceba que a música

é feita de seções e que cada uma tem uma finalidade em si mesma”. De forma

esquemática, atribuindo‐se letras para identificar as diferentes seções de uma

música, propomos um modelo de roteiro de ensaios baseado no processo aditivo

e no processo aditivo reverso (figura 16).

118
Figura 16 – Estrutura esquemática do roteiro de ensaio por seções.

Evidentemente, as sequências apresentadas devem ser compreendidas

como princípios e não regras estritas. Cada obra apresenta suas particularidades

que irão orientar a melhor maneira de se construir a polifonia. Obras de

contraponto imitativo, por exemplo, apresentarão maior dificuldade de

seccionamento, uma vez que as frases das diferentes vozes se sobrepõe de forma

não sincronizada; obras que apresentam alguma espécie de cantus firmus exigirão

que a construção da polifonia seja baseada na voz que conduz a linha principal,

bem como ocorrerá em determinados arranjos corais de música popular. De

qualquer forma, considera‐se que os princípios aqui apresentados constituem

norteadores do planejamento e da execução do ensaio, e tem a capacidade de

potencializar a efetividade e agilidade do trabalho em menor tempo.

Considerando então que o processo de ensaio de uma obra constitui

essencialmente um processo de memorização, chega‐se à conclusão que é

favorável que o coro alcance a capacidade de cantar as obras de memória, sem o

uso da partitura. Da mesma maneira que a leitura da partitura é essencial no

processo de ensaio de obras complexas, especialmente na parte inicial da leitura

e aprendizado das obras, verifica‐se, na prática, que decorrido o período da

leitura da obra, muitos cantores criam o hábito de fixar o olhar na partitura,

negligenciando a atenção à regência. Esta é uma prática bastante inconveniente,

119
pois dificulta a unidade da respiração e do fraseado, que implica em dificuldades

de ritmo e articulação. Segundo Leck (2020, p. 94),


Quando coros cantam de cor, cantam mais musicalmente e com melhor
sentido de unidade. Eles não dividem sua atenção entre a página
impressa e o regente. Contato visual com o regente em vez da página
impressa direciona o som para um ponto com um som unificado e a
atenção é focada adequadamente para os cantores responderem às
colorações e nuances transmitidas pelo regente.

As causas desse tipo de comportamento podem ser variadas, desde a

insegurança do cantor, até o condicionamento do trabalho do regente nos ensaios

– regentes que conduzem ensaios sentados ao piano acabam, por vezes, omitindo

parcialmente o gestual da regência durante seu trabalho, situação que incentiva

os cantores a fixarem o olhar na partitura. Nestes casos, o regente deve refletir

sobre as circunstâncias e minimizá‐las, sistematizando com especial rigor os

ataques e os cortes, reiterando sempre a necessidade constante da atenção visual

ao regente como premissa de uma performance em conjunto consistente.

Existem ainda algumas circunstâncias específicas que praticamente

exigem que o coro cante exclusivamente de memória, sem o uso da partitura nas

apresentações e em grande parte dos ensaios. Coros dedicados ao repertório

negro spiritual, bem como coros de óperas, têm como requisito de sua execução

musical sua movimentação corporal expressiva, que jamais deve ser

negligenciada. Nestes dois casos há diferentes procedimentos a serem adotados:

enquanto o repertório negro spiritual, como característica geral, apresenta

harmonizações paralelas e homofônicas, isso facilitará a memorização imediata

já nos primeiros ensaios, possibilitando ao regente condicionar a movimentação

corporal como parte integrante da performance musical; já a ópera, por outro

lado, muitas vezes apresenta repertórios mais complexos, cuja movimentação

cênica exigirá também a criação de cenas teatralmente desafiadoras, que

demandam em seu processo a atuação de um diretor cênico. Nestes casos, não há

120
outro caminho a não ser programar um cronograma extensivo de ensaios, que

contemple ensaios exclusivamente musicais – concentrados no desenvolvimento

musical da interpretação – e ensaios cênicos, nos quais, aos poucos, o coro se

desvencilha do uso da partitura. Neste processo, uma vez que o coro já tenha

memorizado inteiramente a obra, reiteramos a necessidade de se realizar, ao

início do ensaio, a já mencionada leitura de checagem, com todos os cantores lendo

a partitura uma vez, ainda que já a dominem de memória – as extensivas

repetições realizadas em ensaios de ópera tendem a deteriorar a interpretação

musical, neutralizando sutilezas interpretativas e mesmo confundindo notas na

mesma harmonia. Com essa prática, mitiga‐se os efeitos negativos da ausência

de partitura a longo prazo. De qualquer forma, todo regente deve considerar

seriamente a possibilidade de os grupos realizarem concertos cantando de

memória, pois sua expressão é notavelmente potencializada quando a música é

executada sem partitura.

121
5. AS IMPLICAÇÕES DO ESTILO NA PREPARAÇÃO DA

PERFORMANCE

Quando se trata de alta performance musical, espera‐se dos intérpretes

que sejam capazes de executar diferentes obras de diferentes estilos. Esta é uma

exigência obrigatória tanto em concursos de láurea artística como também em

processos seletivos profissionais. Esta exigência reflete a importância e o

reconhecimento de que cada estilo e cada momento da história da música

apresentam uma maneira peculiar de execução e, por conseguinte, uma

sonoridade própria, que varia de forma substancial conforme o autor, o estilo e o

período da obra. Segundo Sandt (2016, p. 77), “as características particulares que

fazem uma obra diferente das outras, assim como o modo pelo qual são

expressas, representa o estilo musical”37. As questões interpretativas de estilo, em

última instância, estão também ligadas ao problema da notação musical.

Nikolaus Harnoncourt (1998, p. 34) pondera a dimensão destas implicações,

enfatizando que
É um erro fatídico crer – como acontece hoje em larga escala – que as
figuras de notação, as indicações de caráter e tempo, e as dinâmicas
têm, ainda hoje, o mesmo significado de antigamente. Este conceito
errôneo sustenta‐se pelo fato de que, há séculos, vem sendo usado o
mesmo tipo de grafia musical; o que se esquece, todavia, é que a escrita
musical não é simplesmente um método atemporal e internacional para
transcrever a música, que possa permanecer o mesmo com o correr dos
séculos. Juntamente com as mudanças estilísticas na música, com as
ideias dos compositores e dos executantes, transforma‐se também o
significado dos diferentes símbolos de notação. Ela adquire um
significado peculiar a cada época que pode, por um lado, ser estudado
em obras didáticas ou, por outro, pode ser abstraído do contexto
musical e filológico, o que, de certa maneira, não exclui a possibilidade
de haver conclusões incorretas. A escrita musical é, portanto, um
complicado sistema de códigos. [...] Deveria ser claro para todo músico

37“The particular characteristics that make a work different from others, and the mode in which it is
expressed, represent musical style” (tradução nossa).

122
que esta notação é muito inexata, que ela não nos indica com precisão as
coisas que nos diz: nada informa a respeito da duração de uma nota,
sobre sua altura, nem sobre o andamento, pois os critérios necessários
a este tipo de informação não podem ser transmitidos através da
notação.

Avaliando‐se as considerações de Harnoncourt, percebe‐se a dimensão

dos desafios da performance musical em conjunto. Por princípio, é necessário

estabelecer um acordo sobre o andamento e a duração das notas, bem como a

determinação das articulações e o equilíbrio dos níveis dinâmicos. Fica claro

também que estes acordos são válidos para uma determinada obra, pertencente

a um determinado estilo. Mudando‐se a obra, mudam‐se os acordos e os

entendimentos dos elementos indicados pelo compositor na partitura, e o

momento de efetivação destes acordos é justamente o ensaio. Esta questão reitera

a importância e a necessidade de realização de ensaios de naipe ou de sessões

separadas – a compreensão da polifonia como simultaneidade de diversos

uníssonos amplia a relevância do trabalho de unificação das linhas instrumentais

ou vocais de cada obra. A realização de diferentes ensaios, em diferentes dias,

também oportuniza a reflexão e o amadurecimento das ideias interpretativas,

tanto por parte do regente, como também por parte dos executantes. O ensaio é

também, por natureza, um momento de experimentação. É saudável para um

grupo experimentar diferentes maneiras de se tocar ou cantar uma obra – este é

um ato de aprendizado coletivo e, por isso, deve ser valorizado. Portanto, não

obstante a cuidadosa observação ao princípio de economicidade do tempo de

ensaio, é fundamental compreender que o processo de amadurecimento de uma

interpretação requer tempo – tocar aprende‐se tocando. A falta de tempo

adequado de preparação incorrerá sempre na imaturidade da performance, que

se revela justamente no grau de consistência de sua interpretação.

Esta discussão aponta o grau de complexidade do processo de execução

de uma obra musical em conjunto, dentro do seu estilo, dentro de sua proposta.

123
Apresentar obras do mesmo compositor ou de estilos análogos em um mesmo

programa e em um mesmo período de preparação constitui, portanto, uma

estratégia de aperfeiçoamento da performance, uma vez que os acordos

interpretativos serão compatíveis entre as obras apresentadas.

5.1 A questão da interpretação estilística em conjunto

Esta reflexão sobre questões de estilo na performance traz à tona um

aspecto que é seriamente subestimado nas práticas musicais em conjunto: afinal,

apresentar obras em diferentes estilos em um mesmo programa é algo simples e

trivial, ou constitui um real desafio? Se este é um desafio para um músico solista,

qual é a dimensão desse desafio nas práticas de conjunto – o desafio é maior, ou

é irrelevante? Qualquer músico experiente certamente responderá que, quanto

maior o grupo, seja vocal ou instrumental, tanto mais difícil será a execução

consistente em relação a determinado estilo. Mesmo em conjuntos musicais

profissionais de ponta, cujos músicos são selecionados justamente a partir de sua

capacidade interpretativa e, portanto, se espera que sejam individualmente

capazes de executar diferentes estilos em seu instrumento ou voz, verifica‐se que

a sonoridade estilística de um conjunto não é, em nenhuma circunstância,

facilmente adquirida. Pelo contrário, mesmo quando se trabalha com músicos

experientes e capacitados, é necessário tempo e trabalho em relação a

articulações, fraseado e sonoridades para que a compreensão de estilo do

conjunto seja unificada – afinal, entre diferentes indivíduos, com diferentes

experiências, há diferentes compreensões de estilo e, portanto, é necessário que

se alcance um acordo sobre as características estilísticas que serão adequadas

àquela determinada obra. Em corais amadores, cujos membros não possuem

sequer a consciência das implicações de estilo na performance, é ainda mais

124
difícil treinar o grupo para executar, de forma consistente, as obras de acordo

com seu estilo – por esta razão, um grupo amador sempre levará um tempo muito

maior para conseguir realizar uma interpretação estilisticamente adequada,

quando comparado a grupos profissionais. Em concordância com H. Swan,

Fernandes (2009, p. 9; 11) compreende que


o regente que é familiarizado com o desenvolvimento histórico da
música sabe que elementos interpretativos mudam radicalmente a cada
período de composição e para todo compositor e suas composições. Da
mesma forma, o som do coro também deveria mudar com as idéias
interpretativas se uma performance pretende ser fiel às exigências da
música. [...] Diferentes estilos requerem diferentes sonoridades.

Tratando do mesmo assunto, Sandt (2016, p. 78) propõe uma abordagem

que pode associar a prática da performance com questões de semiótica e tópicas

musicais, afirmando que “o propósito de um regente deve ser a criação da

ambiência ou aura de diferentes períodos estilísticos”38.

Considerando estes postulados e suas consequência, questionamos: é

pertinente a suposição de que seja favorável realizar ensaios mistos, nos quais se

ensaia obras estilisticamente contrastantes? Esta prática seria benéfica para os

conjuntos musicais ou pode dificultar o trabalho de construção das linguagens

estilísticas de cada obra a ser trabalhada? Seria realmente possível criar a

mencionada “ambiência ou aura de diferentes períodos estilísticos” quando um

coral apresenta, em um mesmo programa, um madrigal renascentista, uma

partsong romântica, um negro spiritual e arranjos corais de MPB? Ou mesmo para

uma orquestra, é realmente favorável apresentar uma sinfonia de Haydn como

abertura para uma sinfonia de Mahler? É importante ressaltar, entretanto, que

utilizamos aqui o termo estilo de maneira ampla – é claro que, dentro das obras

38“A conductor’s aim has to be to create the ambience or aura of different stylistic periods” (tradução
nossa).

125
de um mesmo compositor, pode‐se dizer que há vários estilos – ninguém toca um

menuetto da mesma maneira como se toca um adagio. Entretanto, há uma relação

evidente entre os mais diversos estilos (compreendidos aqui de maneira estrita)

que interagem dentro da obra de um compositor, ou das obras de compositores

de um mesmo período, enquanto as diferenças entre as obras de compositores de

tendências singularmente distantes mostram‐se de forma muito mais notável. A

experiência prática demonstra que estilos caracterizados por sonoridades mais

pungentes tendem a neutralizar estilos mais leves e delicados – por exemplo,

uma sinfonia de Haydn sendo executada antes de uma sinfonia de Mahler

tenderá a soar mais pesada e robusta do que se estivesse em um programa

composto exclusivamente por obras do período clássico. Em sua reflexão sobre a

interpretação de obras de diferentes períodos, Harnoncourt (1998, p. 21) adverte

ainda que
Certamente, nenhum violinista do século XVII poderia, por exemplo,
tocar o Concerto de Brahms, da mesma forma que um violinista que toca
Brahms não é capaz de executar irrepreensivelmente uma obra difícil
da literatura violinística do século XVII. Exigem‐se técnicas diferentes
num e noutro caso, e cada uma delas é igualmente difícil.

Não queremos, contudo, postular que seja inconveniente a mistura de

estilos em um programa – simplesmente procuramos analisar que a composição

de obras de um programa traz implicações claras para a consolidação estilística

da performance. Em casos extremos, considerando‐se uma certa tendência

praticada por determinados conjuntos de se apresentar programas com mais de

uma dezena de obras diferentes de pequena duração – em grande medida ou na

totalidade somente as “partes famosas” de obras maiores, com a justificativa de

“popularização” – verifica‐se, na prática, que a apresentação de obras de

diferentes estilos em profusão resulta em uma interpretação “pasteurizada” que

126
descaracteriza as marcações de estilo, comprometendo seriamente a coerência

interpretativa do programa39.

Depara‐se, portanto, com uma questão que transcende as técnicas ou

estratégias de ensaio para uma discussão estético‐filosófica sobre a elaboração de

programas de concerto, que influi de forma decisiva na qualidade da prática da

performance. A pesquisa de repertório e a montagem de programas são

consideradas como alguns dos maiores desafios daqueles que dirigem atividades

musicais em conjunto, por razões estéticas e técnicas. Não existem conjuntos com

capacidades ilimitadas – seja pela habilidade técnica de seus integrantes, seja pela

dimensão do efetivo, seja pelo tempo disponível para preparação. A escolha do

repertório deve levar em consideração estas circunstâncias, que serão decisivas

para o resultado sonoro. Entretanto, postulamos que a composição estilística do

repertório também pode influenciar de forma decisiva a qualidade da execução,

uma vez que um programa composto por obras de características estilísticas

semelhantes revela‐se mais propício para o efetivo estabelecimento da

sonoridade coletiva estilisticamente adequada, enquanto a mudança radical de

estilo no decorrer do programa exigirá uma modificação de sonoridade no

momento da própria execução. Não se duvida da capacidade de um grupo de se

39Este é mais um efeito da influência da indústria da cultura sobre as práticas musicais a partir
do século XX pois, segundo Adorno e Horkheimer (1969, p. 130), “a disposição do público que,
pretensamente e de fato, viabiliza o sistema da indústria da cultura constitui uma parte do
sistema, e não sua justificação. Quando um ramo artístico procede a partir da mesma receita que
outro, cujo meio e conteúdo são em grande medida distantes deste, [...] ou quando a ‘adaptação’
distorcida de um movimento de Beethoven é realizada do mesmo modo que a adaptação de um
romance de Tolstoi pelo cinema, o expediente de atender aos desejos espontâneos do público
torna‐se um pretexto leviano” (tradução nossa). [“Die Verfassung des Publikums, die vorgeblich und
tatsächlich das System der Kulturindustrie begünstigt, ist ein Teil des Systems, und nicht dessen
Entschuldigung. Wenn eine Kunstbranche nach demselben Rezept verfährt wie eine dem Medium und dem
Stoff nach weit von ihr entlegene; [...] oder wenn die antastende “Adaptation” eines Beethovenschen Satzes
nach dem gleichen Modus sich vollzieht wie die eines Tolstoiromans durch den Film, so wird der Rekurs
auf spontane Wünsche des Publikums zur windigen Ausrede”].

127
propor a realizar este desafio e cumpri‐lo de forma satisfatória – observamos tão

somente que apresentar obras de estilos radicalmente diferentes em um mesmo

programa constitui definitivamente um desafio, compreendido então como uma

dificuldade adicional ao próprio desafio da performance. Por esta razão,

questionamos a tendência verificada em algumas orquestras a se incluir obras

contemporâneas na abertura de programas de concerto com obras clássicas e

românticas – além da possível percepção equivocada do público ao apreciar

obras de expressões tão contrastantes, ainda há a questão da adequação estilística

da performance de cada obra segundo suas próprias referências. Tendemos a

reconhecer que um programa inteiramente composto por obras contemporâneas

tenderá a formar uma linguagem musical mais consistente, tanto para os músicos

elaborarem a concepção de sua interpretação, como também para a compreensão

do público, criando uma rede de referências que possa conectar a expressão e as

ideias de todas as obras que compõem o programa.

A unidade estilística não depende unicamente do período no qual a obra

foi composta – mesmo obras compostas no mesmo período podem ser altamente

divergentes, assim como obras de diferentes períodos podem apresentar unidade

estilística. A música do século XX, particularmente em suas vertentes

neoclássicas, apresenta uma série de obras inspiradas em estilos antigos cuja

interpretação pode ser favorecida pela composição do programa com obras

antigas, tais como a Suíte Pulcinella de Igor Stravinski, a Sinfonia nº 1 “Clássica”

de Serguêi Prokofiev e as Sinfoniettas de Heitor Villa‐Lobos. Concebida como a

recriação de obras de compositores barrocos, a Suíte Pulcinella, sendo executada

em um programa juntamente com obras barrocas, certamente terá sua expressão

estilística ressaltada, favorecendo sua interpretação. Já a Sinfonia Clássica e as

Sinfoniettas, incluídas em programas com obras do classicismo vienense, terão

128
sua sonoridade galante enfatizada, e a orquestra conseguirá incorporar mais

facilmente a expressão e o estilo.

A música coral, por sua vez, é mais influenciada pelos seus gêneros – a

música sacra, por sua tradição, mesmo tendo sido composta em diferentes épocas

ou sendo fruto de diferentes práticas, muitas vezes apresenta considerável

unidade estilística, o que favorece a montagem de programas que reúnem obras

de diferentes estilos, desde que pertençam ao mesmo gênero. É importante

ressaltar também que a música sacra constitui um repertório que foi concebido

para ser apresentado em igrejas – uma arquitetura que tem a acústica

reverberante por natureza. Portanto, há uma razão musical para que este

repertório seja preferencialmente apresentado em igrejas, ou lugares com a

condição acústica análoga a estas. É pertinente mencionar também que o

ambiente religioso também colabora com a experiência musical da música sacra,

que é evidentemente enriquecida quando apresentada em uma igreja que

apresente uma arquitetura apreciável. Entretanto, caso o local de apresentação

não coincida com o local dos ensaios do coro, o regente deve realizar ensaios

prévios no local, a fim de efetuar os ajustes necessários na sonoridade para o tipo

de acústica diferenciada que será encontrada no local.

Ainda no contexto da música coral, verifica‐se que os arranjos de música

popular apresentam uma vocalidade característica que se diferencia da tradição

coral europeia do séculos XVIII e XIX. Esta diferença de sonoridade tem um

impacto muito grande nas duas práticas e, por esta razão, não se recomenda sua

combinação. Ressalva feita aos madrigais renascentistas seculares que, segundo

Fernandes (2009, p. 193), apresentam uma sonoridade mais próxima do ideal

sonoro dos arranjos corais da música popular brasileira, uma vez que são

pautados na inteligibilidade do texto, no timbre claro e na voz leve, considerando

ainda uma tessitura mediana e confortável, mais próxima da voz falada. Em

129
suma, reconhecendo que “diferentes estilos requerem diferentes sonoridades”

(FERNANDES, 2009, p. 11), o regente deve considerar que o ecletismo é

antagônico à especialização: quanto mais unificado for o estilo do repertório

definido, maiores as chances e melhores as condições de se realizar uma

interpretação estilisticamente adequada.

5.2 O estabelecimento do estilo na música escrita

Discorrer sobre a construção da performance em cada estilo é uma

proposta ambiciosa que transcende o escopo deste trabalho. Entretanto,

indicamos caminhos para uma compreensão cada vez mais consistente das

questões estilísticas na performance. Fazendo uma reflexão sobre a corporeidade

do ritmo na música, Dalcroze (2013, pos. 3481) afirma que


Em um grande número de peças instrumentais dos séculos XVI e XVII
o ritmo é manifestamente de origem corporal. Os mesmos ritmos
permeiam a música coral do século XVII. A maioria dos corais de
Albert, Schein, Hassler, Kreiger etc. são realmente música de dança40.

Apesar de ter o foco nas relações entre ritmo e movimento, esta observação

de Dalcroze revela, de forma implícita, o processo do surgimento do estilo na

música escrita. Até o século XVI toda a música grafada era baseada

essencialmente em regras de contraponto. A escrita rítmica, ainda em seus

primórdios, ainda não tinha a propriedade de consolidar na música escrita aquilo

que era natural nas canções populares e na música com instrumentos dos bailes,

sejam nos palácios ou nas tavernas: as expressões de dança. A música da

40 “In a great number of the instrumental pieces of the sixteenth and seventeenth centuries, the rhythm is
of a manifestly corporal origin. The same rhythms permeate the choral music of the seventeenth century.
The majority of the chorales of Albert, Schein, Hassler, Kreiger, etc., are really dance music” (tradução
nossa).

130
Renascença constitui, portanto, o processo de estilização da música, que se

consolida definitivamente no período barroco, com o estabelecimento da escrita

rítmica determinada. A adoção das formas de danças como padrões expressivos

referenciais representa a estabelecimento da variedade estilística na música

escrita.

A consequência dessa prática é o surgimento das formas instrumentais no

período barroco e, consequentemente, sua influência nas formas vocais, que

acompanham esse processo de estilização. É nesse momento que surge a

estilização de danças da época, tais como o minueto, o rondó a giga, a bourrée, a

sarabanda, a polonaise, a contradança, entre outras, e a consolidação dessas

expressões como estilos musicais. Em seu trabalho referencial Classic Music –

Expression, Form and Style, Leonard Ratner (1980, p. 9) analisa os efeitos desse

processo no repertório clássico, afirmando que


As danças, pelas virtudes de seus ritmos e passos, representam sentimentos.
Suas formas compactas e elegantes serviram como modelos para composição.
Elas foram escritas aos milhares por compositores clássicos. Mozart compôs
mais de 300 minuetos e contradanças; Beethoven e Haydn produziram um
número comparável. Livros de danças eram lançados periodicamente para o
modismo da época tanto quanto a música popular é editada hoje em dia.
Danças foram usadas para ensinar composição e instruir a performance; elas
forneceram material para a ópera e para a música de câmara, para árias,
sonatas, concertos, sinfonias, serenatas e chegaram inclusive a invadir a música
sacra. Kirnberger, em Recueil (1783) enfatiza a importância da música de dança
como base para composições elaboradas e especialmente para a compreensão
da natureza rítmica de vários tipos de fugas. Joseph Riepel, em seu
Anfangsgründe de 1752, afirma que o trabalho com um minueto não é diferente
do trabalho com um concerto, ária ou sinfonia. Koch, em 1793, reafirma o
mesmo ponto. Mozart usava danças para ensinar composição. Ritmos de dança
virtualmente saturaram a música clássica; portanto, um dos principais pontos
de atenção para o estudante, para o ouvinte ou para o performer é o
reconhecimento de padrões de dança específicos que podem oferecer
importantes indicações para a qualidade expressiva de uma composição41.

41“Dances, by virtue of their rhythm and pace, represented feeling. Their trim and compact forms served
as models for composition, They were written by the thousands by classic composers; Mozart composed
more than 300 minuets and contredanses; Beethoven and Haydn produced a comparable number. Books of
dances were issued periodically for the fashionable world much as popular music is published, today. Dances
were used to teach composition and to instruct in performance; they furnished material for opera and

131
Analisando de forma mais aprofundada o panorama da música anterior

ao período clássico descrito por Ratner, observa‐se que as primeiras formas

barrocas que se “libertaram” da escrita contrapontística foram as formas de

danças, que posteriormente foram reunidas em suítes, que deram origem aos

concertos grossos, que deram lugar à forma sonata. Ainda que se verifique as

formas vocais, sejam árias ou coros, conforme observado anteriormente por

Dalcroze, conclui‐se que, na prática, toda música a partir do barroco passa a ser

referenciada, em maior ou menor grau, pelos estilos de dança, e essa tendência

continua a se desenvolver a partir de então, com novas sonoridades e expressões,

mas sempre referenciados nos passos de dança consolidados no período barroco.

Mesmo o estilo conhecido com cantabile pode ser compreendido a partir das árias

barrocas, inspiradas na expressão de canções, também presentes de forma

estilizada nas suítes instrumentais.

Compreende‐se, portanto, que esta reflexão sobre a consolidação dos

estilos na música escrita constitui uma essencial chave interpretativa para a

orientação estilística da performance musical. Pouco se fala sobre bourrée,

sarabanda ou giga na música de Beethoven ou Schubert – entretanto, estas

expressões passaram a ser adotadas como figuras características, que continuaram

como padrões ao longo dos séculos, constituindo o que a musicologia

contemporânea denomina tópicas musicais (RATNER, 1980, p. 9). Conclui‐se então

chamber music, for arias, sonatas, concertos, symphonies, serenades, and even invaded church music.
Kirnberger, in Recueil, 1783, emphasizes the importance of dance music as a basis for elaborate
compositions and especially for the understanding of the rhythmic nature of various types of fugues. Joseph
Riepel, in his Anfangsgründe, 1752, says that the working out of a minuet is no different than that of a
concerto, aria, or symphony. Koch, 1793, makes the same point. Mozart used dances to teach composition.
Dance rhythms virtually saturate classic music; therefore, one of the principal points of attention for the
student, listener, and performer is the recognition of specific dance patterns that can provide important
clues to the expressive quality of a composition” (Tradução nossa).

132
que a compreensão histórica dessas figuras características, com suas

particularidades expressivas, constitui um importante caminho para o

discernimento das decisões interpretativas que consolidarão a linguagem dos

diferentes estilos, tanto da música histórica, como também da música

contemporânea, que adotou novas referências estilísticas para a sua linguagem,

que devem ser igualmente estudadas e compreendidas pelo intérprete de nosso

tempo.

Ao estudar a música histórica, a consciência dos marcos estilísticos é

essencial para a construção de interpretações consistentes. Donington (1992, p.

109) afirma que “foi a música galante que atingiu a transição crucial entre música

barroca e música clássica”42 – observação esta que traz uma orientação bastante

precisa para diferenciar articulações e outros elementos da execução das obras

destes dois períodos que, com certa frequência, são executadas sem as devidas

marcações estilísticas. A diferenciação entre o estilo galante e os estilos rústicos,

bem como a expressão dos diferentes estilos de dança, marchas, e ambientações

pictóricas exigem inventividade e rigor na interpretação, que devem ser

compartilhados entre todos os executantes, em um pacto pela obra musical a ser

executada.

O próprio entendimento da música de Beethoven como expressão do

romantismo – visão duvidosa relativamente comum da obra deste compositor,

especialmente entre pessoas sem formação musicológica – traz implicações

sérias para a interpretação da maioria de suas obras que, do ponto de vista de

articulações e sonoridade, estão arraigadas no estilo galante, não obstante o fato

42 “It was galant music which achieved the crucial transition between baroque music and classical music”
(tradução nossa).

133
de sua escrita trazer elementos alheios às marcações típicas originárias do estilo.

A pungência sonora do romantismo, por sua vez, baseada na ênfase da linha

cantabile, provoca a tentação de se “romantizar”, na performance, quaisquer

melodias, independente de seu estilo. Entretanto, ao interpretar o repertório do

romantismo, o intérprete muitas vezes ignora a importância de se salientar de

forma expressiva os segmentos temáticos transformados através de processos de

variação, que constituem muitas vezes elementos estruturadores das obras, mas

que frequentemente não são devidamente destacados na interpretação.

A observação destes marcos estilísticos revela a importância do

discernimento das questões de estilo e expressão na performance de obras de

diferentes períodos e a necessidade de se dedicar o adequado tratamento à sua

preparação, de forma que a sua interpretação, nos dias atuais, seja capaz de

transmitir a música de cada época com sua sonoridade e seu espírito próprios,

enfatizando as singularidades que fazem essas obras únicas e que justificam sua

revisitação em nossos dias.

134
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por sua natureza prática, as ciências da performance musical vem

alcançando tardiamente seu reconhecimento como atividade filosófica e, por

conseguinte, sua sistematização. A tradição do aprendizado experimental,

realizado fundamentalmente através da observação dos mestres, colaborou para

que os intérpretes, ao longo do tempo, não estivessem dispostos a dedicarem‐se

a uma ordenação sistemática de suas práticas, resultando na escassez de textos e

relatos que possam constituir fontes e referências consistentes para a pesquisa

histórica da performance musical. Neste contexto, esta pesquisa propôs‐se a

materializar, de forma sistemática, algumas das práticas aplicadas nos ensaios

musicais em conjunto, bem como alguns de seus pressupostos e decorrências.

Consciente das evidentes limitações de se escrever sobre um assunto tão amplo

quanto o próprio repertório, acreditamos ter dado um passo, ainda que modesto,

em direção a uma metodologia de pesquisa na área da performance musical, que

possa colaborar para a diminuição da lacuna existente nos conhecimentos

sistematizados relacionados a essa atividade essencial para a área de regência

que é o planejamento e realização de ensaios preparatórios para a execução

musical. Sem deixar de abordar alguns dos mais importantes fundamentos da

regência, este trabalho direcionou o seu foco para o processo de construção

coletiva da performance e alguns de seus procedimentos, que revelam‐se

estratégicos ao considerar os desafios materiais, temporais e humanos nas

realizações musicais em conjunto, deslocando o foco do gestual e do regente em

si (tal qual observado na maioria dos livros sobre regência), para o processo de

treinamento do conjunto executante. Esperamos que este estudo possa servir de

orientação e reflexão para as novas gerações, que enfrentarão o desafio de fazer

a música acústica em um mundo vastamente dominado pela cultura digital.

135
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