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E
escreveu outras. Umas que vinham inteiras e eram mais fáceis e
menos doídas. E foram dois anos esquecendo a história que hoje de
manhã na sala de espera lhe apareceu inteira na primeira página do
pior jornal. Quando ela viu as fotos e leu a matéria teve o maior déjà
vu da sua vida (que palavra linda e que sensação estranha). A notí-
cia: (...) menina de oito anos filha de uma fateira do mercado público
municipal desaparecida há três dias é encontrada morta no interior da
câmara frigorífica de uma rede de supermercados. O corpo congelado
estava em posição fetal sobre fardos de peixe. Pelas condições do am-
biente tinha sido encontrado em perfeito estado de conservação, contu-
do apresentava indícios de violência sexual. Os peritos acreditam que a
causa mortis teria sido o frio já que o supermercado estava fechado em
razão do feriado da semana santa (...) Não precisava ler o resto. Ela
Ela (a mulher que escreve) tinha que escrever aquela história. Tinha (a mulher que escreve) sabia o começo. E o fim. Ainda segurando o
mesmo. Não havia mais o que fazer com aquele nó cego na cabeça. jornal e com os olhos fechados ela viu a menina no mercado públi-
Prendendo sinapses. Na cabeça a história. Não no coração. E nem co brincando com os intestinos de boi embaixo do balcão e a mãe
nos intestinos. Na cabeça. Aquela cabeça assombrada que se equi- despachando os clientes. Os mais pobres consumidores. Os que
librava em seu pescoço frágil. Ela (a mulher que escreve) tinha que comiam as vísceras. Os que não podiam pagar pela carne. A mãe
escrever a história: da menina. A menina de oito anos. Que aprendeu era fateira. A vida era dura. A menina era feliz. Fazia tranças com
a fingir o sorriso e percebeu que mostrar os dentes enfileirados fran- as tripas do boi. Enfiava as unhas no fígado fresco molenga e sucu-
zir um pouco o nariz e arquear as sobrancelhas era o melhor artifício lento. Esmagava miolos escorregadios. Brincava com as texturas do
de manipulação que possuía. Melhor que o choro. Melhor que as estômago. Um mundo inteiro debaixo do balcão de vender vísceras.
palavras. A história lhe ocorreu pela primeira vez numa praia. Não. Não sabia o que era nojo. Não sabia se gostava ou não do cheiro.
Numa mesa de bar. Não. Numa fila da lotérica. Não. Surgiu no dia Aquela parte do mercado era relegada. Passava água suja num rego
em que ficou presa na porta giratória do banco procurando metais no meio dos corredores. Água de sangue e restos dissolvidos. Esgoto
que não carregava. Não sabe. O que ela (a mulher que escreve) sabe das pias dos boxes. Esta história tem fôlego curto. De quem respira
é que não teve mais sossego. De vez em quando a menina lhe as- a pulso economizando ar. Tem plexo travado. Esta história é sobre
sombrava. Num sonho. Num engarrafamento. Na padaria. Ela não adivinhações impossíveis. Charadas repetidas como quem martela
era mulher de fugir de assombrações. Mas a falta de continuidade o próprio erro no polegar já inflamado. Na semana santa o cheiro de
da história era angustiante. E vinha e escorregava e clareava e escu- carne do mercado é substituído por cheiro de peixe. No rego boiam
recia. Estava e não mais estava. Tinha que ser puxada a ferro aquela escamas e restos de crustáceos. Restos podres. De cheiro intenso.
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